revista de estudos orientais - Letras Orientais
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REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS USP - Universidade de São Paulo Reitor: Suely Vilela Vice-Reitor: Franco Lajolo FFLCH - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Diretor: Prof. Dr. Gabriel Kohn Vice-Diretor: Profa. Dra. Sandra M. Nitrini Departamento de Letras Orientais Chefe: Mamede Mustafa Jarouche Vice-Chefe: Arlete O. Cavaliere Revista de Estudos Orientais N. 6 Editor Responsável Berta Waldman Conselho Editorial Alexandre Jebit (Acad. de Diplomacia - M.R. Ext. Moscou) Boris Schnaiderman (USP) Franz Shumann (Univ. Califórnia) Haquira Osakabe (Unicamp) Lídia Massumi Fukasawa (USP) Milton Hatoum (Univ. Amazonas) Richard Hovannisian (Univ. Califórnia) Roshdi Rashed (CNRS - Paris) Sakae Murakami Giroux (Univ. Strasbourg) Saul Sosnowski (Univ. Maryland) Departamento de Letras Orientais - FFLCH-USP Av. Prof. Luciano Gualberto, 403 - Cid. Universitária 05508-900 - São Paulo (SP) - Brasil Tel.: (11) 3091-4299 / Fax: 3091-4892 e-mail: [email protected] ISSN 1415-9171. REVISTA DE ESTUDOS ORIENTAIS Revista do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo N. 6 Revista de Estudos Orientais • n. 6 • pp. 1-280 • São Paulo • janeiro 2008 Serviço de Biblioteca e Documentação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo Revista de Estudos Orientais / Departamento de Letras Orientais. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. -- n. 6 (2008)-. -- Campinas : Santos e Caprini, 1997Anual. Publicado: Humanitas, N. 1 (1987)-n. 3 (1999); Ateliê, N. 4 (2003)-n. 5 (2006). ISSN 1415-9171. 1. Estudos orientais. 2. Cultura oriental. I. Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Departamento de Letras Orientais. 21ª. CDD 306.950 950.07 Copyright©2008 by autores Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19.02.98 É proibida a reprodução total ou parcial sem autorização, por escrito, da editora. ISSN 1415-9171. DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA: Santos e Caprini Materiais Gráficos e Editora Ltda C.N.P.J.: 79.643.417/0001-22 - I.E.: 90.390.319-89 Rua Padre Anchieta, 1691 - Bigorrilho - Curitiba/PR CEP 80730-000 - PABX: +55 41 3079.3135 [email protected] - www.opusprinteditora.com.br ÍNDICE Apresentação.................................................................................................... 07 Três Poemas sobre o Gazel.............................................................................. 09 AMÂNCIO, Moacir Línguas Semíticas na Universidade de São Paulo........................................... 14 ARAÚJO, Reginaldo Gomes de Indicações a Respeito da Divisão das Ciências em IBN SINA (AVICENA)............................................................................. 29 ATTIE Filho, Miguel Do Estudo Acadêmico da Bíblia Hebraica....................................................... 36 CHWARTS, Suzana Nas Tramas das Noites..................................................................................... 41 CODENHOTO, Christiane Damien Elementos Formadores do Imaginário sobre o Japonês no Brasil................... 46 DEZEM, Rogério As Cidades, a Fauna e a Flora do Brasil no Testemunho Ocular de um Viajante Árabe...................................................... 60 FARAH, Paulo Daniel A “Fórmula do Horror à Russa” na Belle Époque Brasileira........................... 66 GOMIDE, Bruno Barretto A Tradição Cristã e a Valorização da Origem Judaica de Figuras da Poesia Romântica Brasileira........................................................................................ 82 JESUS, Daniel Santana de Rasgar el Presente: Memoria y Fabulación en Relato de um Certo Oriente......................................................................... 90 KANZEPOLSKY, Adriana Diáspora Armênia no Brasil........................................................................... 103 MARCARIAN, Mônica Nalbandian A Multiculturalidade Otomana. Imigrantes Judeus do Império Otomano no Brasil ..................................................................... 110 MIZRAHI, Rachel Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira e a Imagem da Mulher Nikkei....................................................................... 123 MORI, Koichi e INAGAKI, Bárbara The Structure and Significance of The Spiritual Universe of The Okinawan Cult Center......................................................... 167 MORI, Koichi A Origem Indiana de um Mito do Brasil Colonial......................................... 196 NAVARRO, Eduardo de Almeida Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil................................. 206 SHYU, David Jye Yuan e JYE, Chen Tsung Sentidos do Corpo: Os Usos de Drogas na Sociedade Islâmica Medieval.... 234 SOARES, Marina Juliana de Oliveira Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz.......................... 253 WALDMAN, Berta Apresentação Este número da Revista de Estudos Orientais foi planejado em articulação com o próximo, havendo uma inversão entre ambos: o tema que enfeixa os trabalhos deste número é “O Oriente no Brasil” e o do próximo número, “O Brasil no Oriente”, o que os torna complementares e, por isso mesmo, potencialmente abrangentes. Os estudos e ensaios que compõem este número abrem um painel em que o Oriente desponta tanto nas pesquisas ou estudos acadêmicos, relevando suas múltiplas culturas, como também na marca que os imigrantes orientais deixaram, a partir de sua chegada ao Brasil, em fins do século XIX e princípios do século XX, quando vêm para substituir a mão-de-obra escrava principalmente na agricultura. Um dos resultados desse processo é que o Oriente torna-se presente nas ruas brasileiras, no comércio, na indústria, na academia, na literatura traduzida ao português, na literatura dos descendentes de povos orientais, cunhando em nossa literatura um modo estranhado de ser. Os trabalhos distribuem-se, neste número, contemplando esses dois aspectos do Oriente. Assim, Paulo Daniel Farah apresenta, em seu relato, o percurso de um viajante árabe, na segunda metade do século XIX, que permaneceu durante três anos no país, percorrendo o Rio de Janeiro, a Bahia e Pernambuco. Rogério Dezem estuda a construção/desconstrução dos discursos relativos aos imigrantes do Oriente longínquo no Brasil, focalizando os estereótipos estigmatizadores dos chineses e japoneses. David Jye Yuan Shyu e Chen Tsung Jye refletem sobre o processo de adaptação de imigrantes chineses no Brasil. Rachel Mizrahi apresenta a imigração dos judeus sefarditas e orientais que se fixaram em São Paulo e no Rio de Janeiro, em fins do século XIX, e suas formas de organização comunitária. Koichi Mori (com Bárbara Inagaki) analisa a transformação da imagem da mulher descendente de japoneses no Brasil, no período da Segunda Guerra Mundial, através de concursos de beleza promovidos nas comunidades nikkeis; examina também, em outro trabalho, as características e os significados do universo espiritual dos deuses e dos espíritos no centro espírita criado por uma japonesa que imigrou para o Brasil, vinda de Okinawa. Já Eduardo de Almeida Navarro relata a história do mito de São Tomé desde seu surgimento na Índia e sua subsistência no Brasil do período colonial. Marina Juliana de Oliveira Soares apresenta o modo como os árabes muçulmanos encaravam o uso de drogas durante o período medieval. 7 Reginaldo Gomes de Araújo analisa a história das línguas semitas ensinadas na USP, enquanto Bruno Barretto Gomide detém-se na recepção mundial da literatura russa no século XIX, focalizando os textos produzidos no Brasil da belle époque. Mônica Nalbandian Marcarian apresenta a Diáspora Armênia no Brasil e Daniel Santana de Jesus lê a presença de figuras judaicas na poesia romântica brasileira. Adriana Kanzepolsky trata da recorrência à memória que mistura lembrança e invenção, em Relato de um certo Oriente, de Milton Hatoum, escritor brasileiro de origem libanesa, enquanto Berta Waldman examina o modo como o autor israelense Amós Oz transforma política em literatura. Moacir Amâncio traduz poemas de dois poetas medievais – Samuel Hanaguid e Judah Halevi – e Christiane Damien Codenhoto ressalta as fontes e traduções de As Mil e Uma Noites. Miguel Attie Filho discute a divisão das ciências de acordo com as informações contidas na Metafísica da Al Shifa’ e na Epístola sobre as partes das ciências intelectuais de Ibn Sina (Avicena: 980-1037 d.C.) e Suzana Chwarts faz uma retrospectiva da trajetória dos estudos acadêmicos da Bíblia Hebraica e suas diferentes formas de análise. Como se vê, este número reúne tradução, ensaios e estudos de abordagem múltipla — antropológica, histórica, filosófica, lingüística e literária — oferecendo um panorama amplo e variado dos estudos orientais no Brasil, tanto do Oriente longínquo, quanto do Oriente que vive em nós, entre nós. Berta Waldman maio de 2007 8 Três poemas sobre o gazel Moacir Amâncio* Para Odile Cisneros Resumo: A figura do efebo (o gazel) é aqui apresentada na tradução de três poemas de dois autores judeus medievais da Espanha: Shemuel haNaguid e Iehudá haLevi. São vistos como textos que enriquecem a obra dos respectivos poetas, na perspectiva rigorosamente literária. Palavras-chave: Efebo, haNaguid, haLevi, poesia hebraica medieval, tradução. Abstract: The ephebe in poems from Samuel Hanaguid and Judah Halevi cannot be ignored in its historical and religious implications. Anyway, the poetic expression must be taken as leading criterion every time we are talking about translation and literary conventions. Key words: Ephebe, Hanaguid, Halevi, Hebrew medieval poetry, Translation Gazel ou tsvi. As duas palavras, a primeira em árabe, a segunda em hebraico, têm o mesmo significado e podem ser traduzidas para corço ou simplesmente veado. É como os efebos que serviam à mesa eram chamados pelos poetas árabes e judeus da Andaluzia medieval, notável pela mescla de culturas. Foi sob a influência árabe que a poesia hebraica, à época, deixou a exclusividade da sinagoga, adotando o laicismo e até mesmo certa licenciosidade erótica. A figura do tsvi, e da tsviá, a gazela, aparecem em poemas escritos por autores que além de virtuosos da língua também podiam ser grandes exegetas bíblicos, filósofos e guerreiros. Eram, portanto, rabinos, poetas, soldados, políticos e poeticamente hedonistas cantando o vinho, a flora, a amizade e o amor. A produção cultural intensa entre os séculos 10 e 12 justifica a denominação de ciclo de ouro para esse período. __________ * Professor Doutor de Língua e Literatura Hebraica da Universidade de São Paulo 9 Os três poemas aqui apresentados, sobre o tema do efebo, foram escritos pelo guerreiro e político Shemuel haNaguid (993-1056) e por Iehudá haLevi (cerca de 1075-1141), que se ocupou da medicina, da filosofia e da poesia e empreendeu a longa viagem de volta a Sion, tendo sua morte duas versões. A lendária: teria sucumbido sob as patas de um cavalo diante das muralhas de Jerusalém. A outra: morreu no Egito. Nos poemas de Shemuel haNaguid temos dois instantes do tsvi (sinônimo, ôfer), em textos breves e muito ágeis, que surpreendem pela riqueza das imagens e pela força de sugestão obtida em espaço tão restrito. Já o texto de Iehudá haLevi é um shir ezor ou muashahá, um poema construído com um colar de rimas e encerrado por versos fixos, de uso comum, normalmente escritos em árabe e romance. Os dois autores enaltecem a figura do tsvi e, à parte discussões sobre seus objetivos, deve-se notar que esses poemas se impõem pelo que são, pela expressão poética, da qual procurei trazer algo para o português. Evidentemente, esses poemas encontram resistência e muitas vezes foram e são evitados, mas não há como negar a existência deles e hoje há vários estudos a respeito, seja no campo literário, seja no âmbito histórico e dos costumes1. Ignorá-los é ignorar parte da obra desses gigantes da literatura hebraica e medieval. Claro, quando tomamos conhecimento de tais versos, compreendemos que dificilmente questões históricas e religiosas serão evitadas de início, no entanto, as implicações literárias logo se sobrepõem, pois não se pode esquecer o âmbito da convenção poética em que também se inscrevem (lembremos as canções de amigo), como Shirman percebeu em seu brilhante ensaio intitulado The Ephebe in Medieval Hebrew Poetry2. Para o lado dos fatos, parece pender a evidência de que até hoje se utiliza em português o termo veado para designar, agora de modo chulo, destituído de qualquer nobreza, o efeminado ou alguém inclinado ao homoerotismo masculino. Como sugere Shirman no estudo citado, mesmo a arte pela arte deve ter no primórdio algo de base real. Usei o árabe, gazel, com sua sugestão de beleza inusitada (além da relação com gazela) e como uma maneira de evitar o desgaste da palavra portuguesa, tendo para isso consultado os professores de árabe Safa Jubran e Mamede Mustafa Jarouche. 1. Pesquisas trazem informações sobre hábitos de uma época em que era de bom-tom cultivar efebos. Havia haréns formados por eles. Tanto o judaísmo como o islamismo condenavam tal prática e a poesia resultante, mas houve também uma sacralização do gênero. Na poesia hebraica, o tsvi passaria a simbolizar Israel, ou rei Davi. Basta lembrarmos a interpretação alegórica do Cântico dos Cânticos para termos uma idéia de seqüência histórica. Ver a respeito: Juan Ruiz’s Heterosexual “Good Love”, em que Daniel Eisenberg sugere que a obra do título na verdade refere-se ao amor homossexual por um escritor cristão (disponível na Internet), e The Gazelle, de Raymond P. Scheindlin, sobre a simbologia religiosa. 2. Shirman, Jefim (ou Haim), The Ephebe in Medieval Hebrew Poetry, em Sefarad – revista de estudos hebraicos, sefardies y de Oriente Próximo, no. 15, 1955, p. 56-68 10 Moacir Amâncio - Três Poemas sobre o Gazel Na transposição, mantive o esquema de rimas e a forma dos hemistíquios, nos poemas de Shemuel haNaguid (Samuel o Príncipe, título outorgado a ele por ter sido ministro do governo árabe de Granada). No caso de Iehudá haLevi mantive a forma do shir ezor e adaptei o fecho para o português, utilizando-me de Shirman, guia fundamental nesta matéria. A busca foi de um tom próximo ao de uma canção. Tomei, claro, algumas licenças em relação aos originais, sempre tendo em conta que não existe uma única e “correta” tradução de um poema e sim várias, dependendo do tradutor e da época 3. Não vou expor aqui todas essas licenças nos detalhes porque explicar um poema em sua construção significa entre outras coisas o risco de enfraquecê-lo, se não de negá-lo – e o desafio neste caso é chegar o mais perto possível de um poema no idioma de chegada, que só então terá efetivado seu encontro com o texto escrito no idioma de partida, ou motivo de inspiração. Acrescente-se, quando se coteja com outra versão, surge a oportunidade de aproveitar o resultado, ou deixá-lo para lá, etc. Por exemplo, Shemuel haNaguid configura a lua como a letra iud, um gancho suspenso no céu. T. Carmi, numa tradução inglesa, utilizou o C, que foi trazido para o texto aqui presente por ser uma solução óbvia pela sua visualidade. Já quanto a barêket, uma pedra preciosa, comumente entendida como esmeralda, preferi adaptar para “topázio”, pois uma das cores inequívocas da lua é, como se sabe, o amarelo. Shirman observa que nos melhores momentos tais poemas podem ser incluídos na “longa lista de criações similares na literatura mundial, começando com os autores gregos do período clássico e de períodos posteriores (Anacreonte), até proeminentes representantes do Oriente (árabes, persas) e algumas destacadas figuras da poesia moderna”, como Shakespeare, e Walt Whitman 4. 3. “Na verdade, o tradutor promove o encontro de dois polissistemas de signos, engajado na arte de transpor o sentido poético de um sistema a outro”, diz Fábio Lucas em A Tradução da Poesia, LB, – revista da literatura brasileira, no. 23, p. 23 4. Shirman, idem, p. 68 Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 09-13 - 2008 11 Shemuel haNaguid Daria a vida por / Gazel que despertou À melodia de harpa / E de flautas, gracioso, E ao ver na minha mão / Um copo, disse assim: “Beba em meus lábios sangue / De uvas especioso!” E a lua como um C / Grafava-se por sobre A veste toda treva / Em ouro precioso. *** Daria a vida por / Tão pérfido gazel. Amor por ele em meu / Peito ferroa agora. Aquele que ao erguer / Da lua perguntou: “Vês o esplendor de meu / Rosto e apareces? Ora...” A presença da lua / Nessa noite escura – O topázio que à mão / De uma negrita aflora. *** Iehudá haLevi Oh, oh gazel, oh senhor, Olhos ponha em meu sofrer, Que não cresça este penar. Bem, bem faça à minha alma / Teus cuidados trazem calma. Compadeça deste pobre Que por ti jejua e sofre Enquanto o maná não chove. Teu, teu o teu bom maná / Por única paga, dá! Se zombas de meu penar, Veja a coita neste olhar. Mas tua resposta: “Azar! Não, não, nada na rede / Só do que não tenho sede.” Eu me culpo toda vez: Se temes, seja cortês, Volva meu sono e talvez Voes, voes, caias como / Ave na rede em meu sonho. 12 Moacir Amâncio - Três Poemas sobre o Gazel Se peço um beijo a morrer, Enrubesce, alvorecer – Assim esplende o seu ser: Tal, tal o branco exangue / se transforma em vivo sangue. Parte-me seu canto a alma, Mas canta, porque me inflama, Basta um beijo, a boca clama: Já, já beija co’alegria / E esquece a melancolia. *** Bibliografia: Shirman, Haim, HaShirá haIvrit beSefarad uvProvence, Mossad Bialik, Jerusalém, 1954, vol. 1 Shirman, Jefim (ou Haim), The Ephebe in Medieval Hebrew Poetry, em Sefarad – revista de estudos hebraicos, sefardies y de Oriente Próximo, no. 15, p., Madri, 1955, 56-68 Carmi, T., Hebrew Verse, Penguin, Nova York, 1982 Scheindlin, Raymond P., The Gazelle, Oxford University Press, New York/Oxford, 1991 Eisenberg, Daniel, Juan Ruiz’s Heterosexual “Good Loves”, em Queer Iberia, Duke University Press, 1999, p. 250-74 Lucas, Fábio, A Tradução de Poesia, em LB – revista da literatura brasileira, n. 23, São Paulo, 2001, p. 22-27. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 09-13 - 2008 13 Línguas Semíticas na Universidade de São Paulo Reginaldo Gomes de Araújo* Resumo: Este artigo propõe-se a apresentar as línguas semíticas que são ensinadas na Universidade de São Paulo. Começando pelo panorama histórico, nós apresentaremos o momento em que as línguas semíticas iniciaram na USP. Depois, apresentaremos uma concisa introdução do que são línguas semíticas e suas respectivas classificações. Finalmente, descreveremos quais línguas semíticas e seus respectivos níveis são ensinados na USP. Palavras-chave: Línguas semíticas, árabe, hebraico, aramaico. Abstract: The purpose of this article is to present the Semitic languages taught in the University of São Paulo. Starting from a historical panorama, we will present the momentum in which the Semitic languages started in the USP. Afterwards we will present a concise introduction of what are Semitic languages and their respective classifications. Finally, we describe which languages and in which levels they are offered in the USP. Key words: Semitic languages, Arabic, Hebrew, Aramaic. Panorama histórico A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas – FFLCH – da Universidade de São Paulo oferece, praticamente, desde a sua criação cursos de algumas línguas semíticas, a saber, de árabe, aramaico e hebraico. A língua árabe e a língua hebraica foram ensinadas nesta universidade primeiramente como “cursos livres”, como hoje é o curso de aramaico. Estas duas línguas se firmaram no decorrer do tempo e hoje fazem parte do programa de graduação e pós-graduação dos cursos de línguas oferecidos pela FFLCH. O curso de língua árabe existe na Universidade de São Paulo, em caráter oficial, desde 1963. Entretanto, teve início como curso livre em 1944, inicialmente estimulado pelo Centro Brasileiro de Cultura Árabe, criado pouco tempo antes. __________ *Professor Doutor da Área de Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas, Departamento de Línguas Orientais, Universidade de São Paulo. 15 A instalação do curso de árabe deu-se por iniciativa de membros expressivos da esfera intelectual da colônia sírio-libanesa e com integral apoio do reitor da Universidade de São Paulo, na época, o Prof. Dr. Jorge Americano, e de professores conceituados da FFLC (hoje FFLCH), dentre os quais podemos destacar o prof. Francisco da Silveira Bueno. O primeiro professor responsável pelo curso foi o prof. Taufik Kurban, titulado pela Universidade Americana de Beirute, Líbano. A seguir, assumiu o curso o prof. Jamil Sáfady, igualmente formado para o ensino do idioma e literatura árabes, permanecendo no cargo até fins da década de 50. Todavia, as atividades do Curso de Língua e Literatura Árabe iniciaram em 1963, na então FFLC, o professor Helmi Mohamed Ibrahim Nasr, que viera do Egito em 1962, como professor visitante. A partir de 1967, o curso de árabe passou a pertencer ao conjunto de Letras Orientais, oferecendo as disciplinas de língua árabe, literatura árabe e cultura árabe. Desde 1993 o curso de Língua Árabe passou a ter também um programa de pós-graduação, em nível de mestrado. A língua hebraica, como a língua árabe, existe como curso livre desde 1947, quando o Rabino prof. Fritz Pinkuss foi convidado para ministrar aulas nesta área. Em 1962 foi criado o Curso de graduação em Hebraico, na Área de Estudos Orientais, sendo mais tarde transferido para o Departamento de Lingüística e Línguas Orientais, hoje Departamento de Línguas Orientais da FFLCH. A partir de 1966 o curso passou a ter a colaboração da Profa. Rifka Berezin que assumiu a chefia após a aposentadoria do Prof. Pinkuss em 1975. Em 1983 foi criado o Curso de Especialização em Hebraico, em nível de pós-graduação, com duração de quatro semestres, tendo com o objetivo o aperfeiço-amento de bacharelandos e futuros candidatos para a área de pesquisa e de pós-graduação. A língua hebraica passou a ter programa de pós-graduação em 1989, em nível de mestrado. Hoje o programa de Hebraico oferece, além da graduação, programa de mestrado e doutorado e nos últimos anos, a saber, desde 2001, também conta com a pre-sença de pós-doutorandos. A partir de 2002, com a presença do recém-doutor Reginaldo Gomes de Araújo, a Universidade de São Paulo passou a oferecer também, como extensão universitária, mais um idioma da família das línguas semíticas: o Aramaico. Este curso tem sido ministrado semestralmente, possibilitando aos alunos dos programas de árabe e hebraico conhecerem mais uma língua semítica que contribui para aprofundar transformações lingüísticas ocorridas no árabe e no hebraico no decorrer do tempo. Desde então, têm sido oferecidos cursos de aramaico nos dialetos bíblicos e targúmicos. Estas são as línguas semíticas ensinadas na USP. Que são línguas semíticas? Que relação há entre elas? Estas e outras questões serão respondidas nos parágrafos seguintes. 16 Reginaldo Gomes de Araújo - Línguas Semíticas na Universidade de São Paulo Depois deste panorama histórico da presença de línguas semíticas no curso de Letras da USP, podemos, agora, apresentar uma breve introdução às línguas semíticas e em seguida indicar, de forma breve, como estes idiomas são ensinados na USP, mostrando sua origem, sua classificação e a relação existente entre eles. A ordem aqui apresentada está baseada somente na ordem alfabética e não na contribuição e importância lingüística de cada um deles no âmbito das línguas semíticas. Interessante é que as línguas semíticas estudadas na USP apresentam ramificações diferentes, isto é, o árabe representa o Sul-Ocidental, o hebraico e aramaico o Norte-Ocidental, o hebraico é da família cananéia e o aramaico da família araméia. Todas semíticas, mas com ramificações diferentes. Seja por acaso ou não, este fato possibilita aos estudantes de línguas orientais conhecer três grandes grupos de línguas semíticas. Além disto, eles terão possibilidades, em um futuro breve, de conhecer também línguas semíticas do grupo norte-oriental como o acádico e seus dialetos. Línguas Semíticas 1 Comumente são chamados de línguas semíticas os idiomas falados no Oriente Médio e na África do Norte. Todavia, o adjetivo “semítico” usado quanto ao estudo desses idiomas parece não ser o termo correto, pois ele é derivado da palavra Sem, nome de um dos filhos de Noé (Gênesis 5:32). As línguas semíticas são a família mais ao nordeste das línguas Afro-asiáticas2, formalmente conhecidas como camito-semítico. As línguas semíticas mais comuns hoje são: o árabe, termo que se refere de fato a duas tipologias coexistentes e que se complementam: uma língua escrita, oficial em todos os países de idioma árabe (Arabofonia), chamada de árabe clássico, e uma série de dialetos, marcados por características de uma região, presentes em todo o mundo árabe. Tal situação particular de duplicidade lingüística, que vê os arabófonos passar à segunda das situações, de uma variedade “alta” (clássica) para uma “baixa” (dialeto), é conhecida como diglossia3. O amárico, língua oficial 1. Esta introdução retoma, em parte, o meu artigo “Línguas semíticas: uma introdução”, publicado em Cadernos de Língua e Literatura Hebraica 5 (2006), p. 107-122. 2. Normalmente a família das línguas afro-asiáticas é composta por seis ramificações: semítico, egípcio, berbere, cuchítico, omótico e chádico. Para detalhes cf. J. HUEHNERGARD, “Languages (Introductory)”, em DAVID N. FREEDMAN, The Anchor Bible Dictionary, vol. 4, Nova York/Toronto, Doubleday, p. 155s; D. COHEN, Les Langues chamito-semitiques, Pt.III de Les langues dans le monde ancien et moderne, Paris, Ed. J. Perrot, 1988. 3. Termo proposto pelo arabista francês W. MARÇAIS, que mira a contrapor-se ao bilingüismo, que assiste à convivência de duas línguas diversas e não, como no caso do mundo árabe (e assim também da Suíça Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 15-29 - 2008 17 da Etiópia, com cerca de 16 milhões de falantes4, que possui uma escrita própria e uma tradição literária, cujos primeiros exórdios se situam no séc. XV da E.C. O tigrínio, língua oficial da Eritréia, país independente desde 1992, falada por aproximadamente três milhões e meio de pessoas, escrita com o mesmo alfabeto etíope que recorre ao amárico. O hebraico, língua oficial de Israel – proclamado em 1947 – e língua nacional do Estado de Israel, junto com o árabe, é a primeira língua de mais de dois milhões de israelenses. O hebraico tem sido também, por mais de dois milênios, a língua da religião judaica, sendo difundida como língua cultual de aproximadamente 14 milhões de judeus no mundo. As línguas semíticas apresentam uma formação comum quanto à morfologia, le-xicografia e sintaxe, sendo que a característica que mais aproxima estes idiomas é a construção de morfemas trilíteros (três consoantes), sobretudo nos verbos. A classificação das línguas semíticas é ainda hoje objeto de discussão. A este respeito encontramos dois tipos de classificação: a primeira hipótese, a qual é tida como tradicional, está baseada principalmente em dados geográficos e importâncias culturais das diferentes línguas semíticas. Nesta classificação as línguas semíticas ocupavam as regiões da Ásia Ocidental, do oriente para o ocidente: Mesopotâmia, Síria-Palestina, Arábia. O agrupamento dessas línguas está usualmente baseado em sua distribuição geográfica: Semítico Norte-Oriental (Mesopotâmia), Semítico Norte-Ocidental (Síria-Palestina) e Semítico Sul-Ocidental (Arábia e Etiópia). A segunda hipótese, primeiramente proposta por R. HETZRON5, enfatiza as inovações morfológicas e fonológicas. Aqui, além da classificação geográfica, procurouse classificar estas línguas levando em consideração elementos lingüísticos que aproximavam e, às vezes, distanciavam umas das outras. O semítico Norte-Oriental é representado pelo acádico, falado na Mesopotâmia na era pré-cristã. Este idioma, que predominava na civilização desta região e possivelmente substituiu o sumério, língua não semítica, deriva o seu nome da cidade de Acad, capital do império de Sargão, o Grande (2350 – 2290 A.E.C.). Os principais períodos do acádico foram: O acádico antigo, aproximadamente datado entre 2500 e 2000 A.E.C., e depois de 2000 A.E.C os principais dialetos atestados são o babilônico e o assírio. O babilônico é o dialeto do sul da região e alemã, dos Territórios Franceses do Ultramar, e depois de 1976, da Grécia contemporânea), duas variedades da mesmíssima língua. 4. Dados segundo o Metzler Lexikon Sprache, editado por H. GLÜCK, Stuttgart, J.B. Metzler, 1993, p. 35. 5. R. HETZRON, “La division des langues sémitiques”, em A. CAQUOT e D. COHEN, Actes du première Congrès international de linguistique sémitique et chamito-sémitique, Paris 16 – 19 juillet de 1969, The Hague, 1974, p. 181-194; ID., “Semitic languages”, em B. COMRIE, The World’s Major Languages, Oxford, 1987, p. 654-663. 18 Reginaldo Gomes de Araújo - Línguas Semíticas na Universidade de São Paulo está dividido em Antigo Babilônico (ca. 2000 – 1500 A.E.C.), Babilônico Médio (aproximadamente 1500 até 1000 A.E.C.) e Babilônico Novo (1000 A.E.C. até o começo da Era Comum). O assírio é o dialeto no norte da região e está dividido em Assírio Antigo (2000 – 1500 A.E.C.), com textos de origem capadócia, Assírio Médio (ca. 1500 – 1000 A.E.C.) e Assírio Novo (1000 – 600 A.E.C.), sendo este último período influenciado pelo aramaico na sua fase final. O Semítico Norte-Ocidental é representado por dois grandes grupos, a saber, o ara-maico e o cananeu. O cananeu representa manifestações lingüísticas não aramaicas da área sírio-palestina, do final do segundo milênio Antes da Era Comum em diante. As línguas deste grupo são: O hebraico com suas diversas épocas: período bíblico, cuja literatura pode ser datada aproximadamente entre 1200 e 200 A.E.C., complementado por número de inscrições; período pós-bíblico, começando com a literatura apócrifa e os recentes documentos descobertos no Mar Morto (séculos I e II A.E.C.) e continuando com os escritos rabínicos dos primeiros séculos da Era Comum (mishná, toseftá, midrash); a literatura exegética, a literatura poética e filosófica da Idade Média e a dos tempos modernos. E por fim, o hebraico moderno, hoje falado em Israel6. O fenício e púnico representados pelas inscrições das antigas cidades fenícias, datadas entre o IX e o I século A.E.C., e pelas inscrições de suas colônias no Mediterrâneo (entre o século IX A.E.C. e o século II da Era Comum). O moabita representado pela inscrição do rei Mesha de Moab do século IX A.E.C. O aramaico representado por seus diversos períodos, desde o primeiro milênio A.E.C., que sobreviveu em poucos dialetos, até o presente. Podemos distinguir um período antigo e uma subseqüente divisão em duas ramificações, Oriental e Ocidental. A parte mais antiga deste idioma foi encontrada em inscrições dos reinos arameus. Todas essas inscrições foram descobertas no Norte da Síria (nas proximidades da cidade de Aleppo). Cronologicamente pode-se datá-las entre os séculos X e VII A.E.C. O Aramaico Oficial ou Imperial – é assim chamado por causa da função administrativa que este idioma assumiu no império persa, do século sexto ao quarto A.E.C. O Aramaico Médio é o aramaico do século III A.E.C. até os primeiros séculos da Era Comum. O Aramaico Tardio é usado para textos escritos entre o segundo e o nono século da Era Comum. Da Palestina veio uma forte produção literária do judaísmo, inclusive o Talmude palestino, midrashim e diversos targumim. Encontramos ainda nessa região escritos cristãos, 6. Mais detalhes sobre a história e a divisão dos períodos do hebraico ver A. SAÉNZ-BADILLOS, A History of the Hebrew Language, Cambridge, Cambridge University Press, 1996; E. Y. KUTSCHER, A History of the Hebrew Language, Leiden/Jerusalém, Brill/Magnes Press, 1982; JOEL M. HOFFMAN, In the Beginning: A Short History of the Hebrew Language, Nova York, New York University Press, 2004. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 15-29 - 2008 19 possivelmente de judeus convertidos, e samaritanos. Na parte oriental, encontramos ainda os judeus babilônicos com o Talmude de Babilônia, textos em mandeu e siríaco. O Aramaico Moderno é o aramaico falado hoje em diversas cidades próximas de Damasco – entre elas podemos citar a maior: Ma‘lula – como também por alguns cristãos no sudeste da Turquia, presentes em Tur ‘Abdin. O Aramaico Ocidental está representado pelo nabateu, língua de uma população árabe que se estabeleceu em Pétrea e floresceu do I século A.E.C. ao século III da Era Comum. Papiros em nabateu foram descobertos no meio dos documentos do Mar Morto e também inscrições em nabateu foram identificadas espalhadas na Grécia e na Itália. É representado também pelo palmireno que é uma língua de uma população de etnia árabe que se estabeleceu na região de Palmira e que floresceu entre o século I A.E.C. e o III da Era Comum. Inscrições em palmireno foram encontradas, longe de seu ambiente habitual, na Inglaterra. Como representante deste grupo há também o aramaico palestinense, falado na Palestina no tempo de Jesus e durante os primeiros séculos da Era Comum. O Aramaico Oriental está representado pelo siríaco, originalmente a língua de Edessa, depois desenvolvida por uma riquíssima literatura cristã, indo do século III ao XIII da Era Comum. O aramaico babilônico é a língua dos judeus babilônicos, predominantemente, representada pelo Talmude Babilônico. O mandeu é a língua dos gnósticos que floresceram na Mesopotâmia. Seus escritos cobrem do século III ao VI da Era Comum7. O Semítico Sul-Ocidental, geralmente nas gramáticas e nos livros de lingüística semítica, está dividido em dois grupos: Árabe do Norte e Árabe do Sul com Etíope8. Todavia, consideramos aqui o termo árabe como complexo lingüístico que abarca todas as línguas da Península Arábica, com exceção de algumas influências aramaicas, como no nabateu e palmireno, no Extremo Norte. Este grupo, contendo divergências dialetais, pode ser subdividido da seguinte forma: Árabe do Sul Antigo ou Epigráfico e a língua de inscrições das cidades-estados do antigo Sudeste Arábico, compreendendo os seguintes dialetos: sabaeu, minaeu, qatabaniano, hadrami e awsaian. O Árabe Pré-clássico do Norte é um idioma presente em uma série de inscrições e pode ser datado entre o V século A.E.C. e 7. Para maiores detalhes sobre o aramaico, ver R. GOMES DE ARAÚJO, Gramática do Aramaico Bíblico, São Paulo, Targumim, 2005, p. 21-25; F. ROSENTHAL, A Grammar of Biblical Aramaic, Wiesbaden, Harrassowitz, 1983, p. 6; E. QIMRON, ’aramit miqra’it, Jerusalém, Bialik, 2002, p. 1-2; ROCCO A. ERRICO, Classical Aramaic, book 1, Smyrna, Noohra, 1992, p. v-vi. 8. Ver S. MOSCATI, An Introduction to the Comparative Grammar of the Semitic Languages, Wiesbaden, Harrassowitz, 1969 p.13; C. BROCKELMANN, Grundriss der vergleichenden Grammatik der semitischen, Sprachen, Berlim, Verlag von Reuther & Reichard, 1908, p. 21-22; PATRICK R. BENNETT, Comparative Semitic Linguistics, Winona Lake, Einsenbrauns, 1998, p. 21. 20 Reginaldo Gomes de Araújo - Línguas Semíticas na Universidade de São Paulo o século IV da Era Comum. Seus dialetos são divididos em thamūdic, lihyānite e safā’itic. O Árabe Clássico do Norte, o árabe par excellence, é atestado já no IV século da Era Comum em poucas inscrições e em diversos dialetos preservados por escritores islâmicos. Alcançou sua plena realização na poesia pré-islâmica árabe e mais tarde no Alcorão (século VII da Era Comum). Os dialetos do Árabe Moderno são numerosos. No Sul existe um grupo separado de línguas que, segundo muitos especialistas, representam a continuação e desenvolvimento do antigo idioma. Entre elas podemos citar mehri, shawri e soqotri. Além disso, um grande número de dialetos desenvolvidos do árabe clássico é classificado de acordo com a região onde são falados: Ásia Central, Iraque, Sírio-libanês, Palestino, Egípcio, Norteafricano ou Magrebino9. O etíope10, conhecido também como ge‛ez, é atestado primeiramente em material epigráfico dos primeiros séculos da Era Comum, e sobretudo, nas grandes inscrições de Aksum do século IV. Mais tarde, desenvolveu uma extensiva literatura, predominantemente religiosa, chegando até os tempos modernos. As modernas línguas semíticas da Etiópia são representadas pelo Tigrínio, Tigré, Amárico, Harari, Gurage, Gafat e Argobba, estas últimas agora em extinção. A estrutura tradicional, proposta por diversos autores11, e a estrutura moderna podem ser representadas da seguinte forma: I. Classificação Tradicional I Semítico Oriental 1. Acádico 1.1.Babilônico 1.2. Assírio II Semítico Ocidental 1. Semítico Norte-Ocidental 1.1. Aramaico 1.2. Cananeu 1.2.1. Hebraico 1.2.2. Fenício 9. Para mais detalhes ver W. FISCHER e O. JASTROW, Handbuch der arabischen Dialekte, Wiesbaden, Harrassowitz, 1980. 10. Ver C. BROCKELMANN, Grundriss der vergleichenden Grammatik der semitischen Sprachen, p. 30-33; J. HUEHNERGARD, “Languages (Introductory)”, p. 158; H. LEE PERKINS, “Languages (Ethiopic)”, em DAVID N. FREEDMAN, The Anchor Bible Dictionary, vol. 4, Nova York/ Toronto, Doubleday, 193-195. 11. Entre eles podemos citar C. BROCKELMANN, Grundriss der vergleichenden Grammatik der semitischen Sprachen, Berlim, 1908; S. MOSCATI, An introduction to the Comparative Grammar of the Semitic languages, Wiesbaden, 1969; G. BERGSTRÄSSER, Einführung in die semitischen Sprachen, Munique, 4ª. ed., 1989 [Tradução inglesa: Introduction to the Semitic Languages, Winona Lake, 1983]. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 15-29 - 2008 21 1.2.3. Moabita 2. Semítico Sul-Ocidental 2.1. Árabe 2.2. Etíope II. Classificação Moderna12 I Semítico Oriental 1. Acádico 1.1.Babilônico 1.2. Assírio 2. Eblaita II Semítico Ocidental 1. Semítico Norte-Ocidental 1.1. Aramaico 1.1.1. Ocidental 1.1.2. Oriental 1.2. Cananeu 1.2.1. Hebraico 1.2.1.1. Bíblico 1.2.1.2. Mishnaico 1.2.1.3. Medieval 1.2.1.4. Samaritano 1.2.1.5. Israelense 1.2.2. Fenício 1.2.2.1. Púnico 1.2.3. Moabita 1.2.4. Edomita 1.2.5. Edonita 1.3. Ugarítico 2. Semítico Sul-Ocidental 2.1. Árabe 2.1.1 Árabe Clássico 2.1.2. Árabe Moderno 2.1.3. Dialetos Modernos falados 2.2. Etíope 2.2.1. Norte 2.2.1.1. Ge‛ez 12. Classificação segundo R. HETZRON e alterada por John HUENERGARD. 22 Reginaldo Gomes de Araújo - Línguas Semíticas na Universidade de São Paulo 2.2.1.2. Tigrínio 2.2.2. Sul 2.2.2.1. Tranversal 2.2.2.1.1. Amárico 2.2.2.1.2. Harari Línguas Semíticas Ensinadas na USP Árabe O idioma árabe, junto com o etíope, faz parte do grupo sul-ocidental das línguas semíticas, como mostramos na classificação acima apresentada. Fonologicamente o árabe é considerado como sendo o idioma semítico que apresenta fonemas próximos do assim chamado Proto-Semítico, contendo 29 fonemas consonantais, incluindo aqui as semivogais, e 6 vocálicos13. Para cada fonema há um grafema correspondente. Desta forma, pode-se dizer que a escrita árabe é considerada totalmente fonológica, pois cada grafema representa um fonema. Assim como várias línguas semíticas, o árabe é escrito da direita para a esquerda, apresentando uma particularidade quanto à escrita, pois desenvolveu uma forma do mesmo grafema consonantal para o início, meio e fim da palavra, ou seja, o grafema apresenta uma forma diversa quando se encontra na posição inicial ou individual, mediana e final. Morfologicamente o árabe apresenta características que são comuns às línguas semíticas, sobretudo no que se refere ao verbo e ao substantivo. A base para a composi-ção do substantivo ou do verbo geralmente é trilítera. Tomemos como exemplo as consoantes k t b que constituem a raiz com sentido básico de “escrever”, “escrita” e assim por diante. A presença de afixos nessa raiz determina, de fato, o sentido particular de uma palavra, seja ela um verbo ou um substantivo. Assim teremos: ktb significa “escrita”, mas não é nenhuma palavra. kataba significa “ele escreve” kutiba significa “foi escrito” kitāb significa “livro” kutub significa “livros” kitāba significa “escrevendo” kātib significa “escritor” kuttāb significa “escritores” 13. Para maiores detalhes cf. SAFA ABOU CHAHLA JUBRAN, Árabe e Português: Fonologia Contrastiva, São Paulo, Edusp, 2004, p. 18s. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 15-29 - 2008 23 maktab significa “escrivaninha” maktaba significa “biblioteca” maktūb significa “escrito” Os substantivos são marcados por elementos que determinam sua classificação em determinado ou indeterminado, o caso, o gênero e o número. Quanto ao gênero, os substantivos em árabe têm o masculino e o feminino. Quanto ao número eles podem aparecer no singular, plural e no dual. Com relação ao plural, o árabe, diferentemente de muitas outras línguas semíticas, apresenta dois tipos de formação: um determinado por sufixos e outro conhecido como plural “quebrado”, formado pela mudança vocálica interna na palavra. Para formar o plural com sufixo, a última vogal é alongada e uma vogal paragógica é adicionada para preservar o alongamento (cf. o masculino, nominativo singular: -un; nominativo plural : -ūna; genitivo singular: -in, genitivo plural :-īna). O plural “quebrado” é uma forma lexicalizada, como, por exemplo, kitāb “livro”, no plural temos kutub “livros”. Esta maneira de formar o plural é, praticamente, uma parti-cularidade das línguas semíticas do grupo sul-ocidental (como o ge‛ez). A língua árabe é ensinada na USP no quadro da graduação, oferecida aos estudantes com cursos semestrais, tendo uma carga horária que varia de sessenta a noventa horas, durante os cinco cursos de língua árabe. E, por último, há um curso de comunica-ção em árabe moderno, com uma carga horária de 90 horas. Assim, podemos dizer que o curso de árabe oferecido na USP compreende uma carga horária de 450 horas. Nestes cursos os alunos se familiarizam com o árabe clássico, base para o estudo de qualquer variação do árabe coloquial, como também com o árabe padrão moderno. O curso tem o objetivo de oferecer ao aluno um conhecimento técnico do idioma, sem perder de vista a ativação de um árabe fundamental, que permita a comunicação oral através da língua. Procura-se oferecer um curso no qual o árabe padrão é a base, que se acha suficientemente distante do Árabe literário, também conhecido como clássico. No que se refere à morfologia e sintaxe, está suficientemente distante do árabe falado, que, como se sabe, assume características regionais e mesmo dialetos ao longo dos países que constituem o chamado mundo árabe. Inicialmente, os cursos eram oferecidos tanto no período diurno como noturno. Hoje, a grade dos cursos de língua árabe é somente oferecida no período diurno. Aramaico O idioma aramaico está presente na USP desde 2002, como já informamos. O Aramaico, erroneamente tido como parte da mesma ramificação do hebraico, é a língua que se desenvolveu na ramificação aramaica das línguas semíticas, da parte 24 Reginaldo Gomes de Araújo - Línguas Semíticas na Universidade de São Paulo considerada como norte-ocidental. Assim como o hebraico e o árabe, o aramaico é uma língua tida como totalmente fonológica, pois para cada fonema ela apresenta um grafema, seja ele consonantal ou vocálico. Diferentemente do árabe, o qual está bem mais próximo do Proto-Semítico (vide supra), o aramaico reduziu o seu sistema fonológico para 22 fonemas consonânticos e 5 vocálicos, formando assim um sistema fonológico que compreende 27 fonemas14. A sua escrita, como na maioria das línguas semíticas, é da direita para a esquerda. O seu alfabeto passou por diversas variações; ocorrendo inicialmente uma adaptação do alfabeto fenício, em seguida foi desenvolvido um alfabeto próprio, que no decorrer do tempo passou a ter diversas formas, como o alfabeto nabateu, palmireno, quadrado e o siríaco. Morfologicamente a língua aramaica apresenta características que são comuns às línguas semíticas, sobretudo no que se refere à formação do verbo e do substantivo. A base para a composição do substantivo ou do verbo geralmente é formada por três consoantes. Tomemos como exemplo as consoantes m l k que constituem a raiz com sentido básico de “reinar”, “reino”, e assim por diante. A presença de afixos nessa raiz determina, de fato, o sentido particular de uma palavra, sendo ela um verbo ou um substantivo. Assim teremos: mlk significa “reinar”, mas não é nenhuma palavra. malka’ significa “o rei” malkah significa “rainha” malku significa “reino” melek significa “um rei” melāk significa “reinar” mālēk significa “reinante” Diferente do hebraico e do árabe, o aramaico tem também suas particularidades, entre elas, colocar o artigo definido no final da palavra. É esta diferença que, de modo geral, possibilita identificar com rapidez um texto escrito em hebraico antigo e aramaico. Assim como no árabe, encontramos no aramaico três números: o singular, o dual e o plural, o qual só é formado a partir de sufixos. O ensino do aramaico na USP tem ocorrido na extensão universitária. O idioma tem sido ensinado principalmente na variação bíblica, ou seja, no dialeto do aramaico palestinense que se encontra na Bíblia Hebraica, sobretudo nos livros de Daniel, Esdras, duas palavras em Gênesis e um versículo no livro de Jeremias, por ser uma importante base para o aprendizado posterior do aramaico targúmico 14. Cf. STEPHEN A. KAUFMANN, “Aramaic”, em R. HETZRON, The Semitics Languages, Londres/Nova York, Routledge, 1997, p. 114-130, especialmente p. 119s. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 15-29 - 2008 25 e do Talmude. O Aramaico bíblico é oferecido em dois semestres com uma carga horária total de 60 horas, ao longo dos quais se estuda toda a fonologia, morfologia e parte da sintaxe, tendo como texto básico as passagens da Bíblia Hebraica escritas em aramaico. O aramaico targúmico oferece, depois de um primeiro contato com o aramaico bíblico, um conhecimento gramatical especialmente da tradução aramaica do Pentateuco conhecida como Targum de Onqelos. Neste curso, como nos outros de aramaico, o estudante recebe as principais informações da morfologia e sintaxe, para que ele possa ler, entender e traduzir o texto. A duração deste curso geralmente é de um semestre, pois tem como pré-requisito o conhecimento do aramaico bíblico. A variação talmúdica do aramaico não foi ainda ministrada na USP, mas deve começar a ser em breve, pois assim o aramaico estará sendo estudado de forma completa, sem exceção dessa parte que tem uma produção literária muito grande e importante, como a que se encontra no Talmude Babilônico. Hebraico O idioma hebraico pertence ao grupo semítico norte-ocidental, como o aramaico, mas da ramificação cananéia. É essa diferença entre os dois idiomas que, às vezes, não é levada a sério. Enquanto o aramaico se desenvolveu da ramificação araméia, o hebraico, mesmo sendo do mesmo grupo semítico, desenvolveu-se a partir da ramificação cananéia. Este idioma passou por diversas etapas históricas importantes, antes de ser hoje uma das línguas oficiais de Israel. Quanto à sua fonologia, o hebraico de hoje apresenta diferenças com relação ao período chamado de clássico ou bíblico. Nesse estádio da língua, o hebraico apresentava uma variação mais rica no que se refere aos fonemas. A distinção entre a forma de pronunciar seis consoantes variava de acordo com a sua posição na formação da sílaba, isto é, quando havia um som vocálico, por menor que fosse, essas consoantes eram pronunciadas de forma fricativa; no início de palavras ou iniciando uma sílaba eram sempre pronunciadas de forma oclusiva. São as consoantes /b/, /g/, /d/, /k/, /p/ e /t/ e suas correspondentes fricativas e interdentais /v/, /g/, /d/,/k/, /f/e /t/. Hoje no hebraico, como é falado, essa distinção desapareceu quase que por completo, sendo mantidas apenas as consoantes /b/, /k/ e /p/ e suas correspondentes fricativas /v/, k/ e /f/. Assim como o árabe e o aramaico, também o hebraico é mais uma língua semítica que se escreve da direita para a esquerda. O alfabeto usado no tempo bíblico era também fonológico, pois para cada fonema havia uma consoante. Hoje, com relação ao hebraico moderno, a situação é diferente, pois temos para o mesmo 26 Reginaldo Gomes de Araújo - Línguas Semíticas na Universidade de São Paulo fonema dois tipos de grafemas, como por exemplo /v/ que pode ser tanto o fonema do vav como o alofone do beit, entre outros15. Quanto à formação dos substantivos e verbos, o hebraico clássico manteve a mesma tendência das outras línguas semíticas, como o árabe e o aramaico, mantendo o sistema trilítero na formação básica de verbos e substantivos. Todavia, com relação ao moderno, há novas possibilidades de formar substantivos e verbos. Seja por influência de línguas indo-germânicas, como no caso da palavra ‛iton “jornal” de ‛et “tempo” mais sufixo -on (compare o alemão, Zeitung, “jornal”, do substantivo Zeit “tempo” com sufixo -ung) etc, seja introduzindo uma nova ordem de formação de verbos com quatro con-soantes, como, por exemplo, t-lp-n “telefonar”, etc. Na maioria das vezes, porém, como acontece com as outras línguas semíticas, a base para formação de palavras, substantivos ou verbos, é a raiz formada por três consoantes, como vemos nos exemplos das palavras e verbos formados a partir de g-d-l e s-p-r: gdl significa “grande”, mas não é nenhuma palavra, apenas uma raiz gadol significa “grande” e é um adjetivo, na forma masculina gedolah significa “grande” (adjetivo, forma feminina) giddel significa “ele fez crescer” (verbo transitivo) gadal significa “ele cresceu” (verbo intransitivo) higedil significa “ele amplificou” (verbo transitivo) magedelet significa “amplificador” (lupa) spr é a raiz para “contar” ou “recontar” sefer significa “livro” (contendo contos que são recontados) sofer significa “escriba” (os escribas massoréticos contavam versos) misepar significa “número”. Assim como o árabe e o aramaico, o hebraico tem três números: singular, plural e dual. O plural no hebraico é feito por meio de sufixos, como acontece no aramaico e em parte no árabe. Uma formação do plural na forma “quebrada” como no árabe não ocorre no hebraico. Na USP o ensino do hebraico é oferecido na graduação, com cursos que cobrem o hebraico moderno, numa duração de seis semestres com uma carga total de 360 horas, possibilitando ao aluno o conhecimento fundamental para o uso do idioma hebraico, falado e escrito. Além disto, é ensinado o período clássico ou bíblico do hebraico, com uma carga horária de 60 horas, o que permite perceber que a morfologia deste período praticamente foi incorporada pelo hebraico moderno. 15. Cf. Z. BEN-HAYYIM, “Hebrew Grammar”, em Encyclopaedia Judaica, vol 8, Jerusalém, Keter, 1972, col. 81. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 15-29 - 2008 27 Além da graduação, diversos cursos são oferecidos na pós-graduação, que possibilitam conhecimentos vastos e aprofundados da língua hebraica, tanto em nível de lexicografia quanto de história da língua. Com estes três idiomas semíticos, a USP praticamente é a primeira universidade brasileira a oferecer no quadro de estudos, em nível de mestrado e doutorado, algumas línguas semíticas como habilitação em Letras, como no caso hebraico e árabe, além de oferecer o aramaico na extensão universitária. A USP é também pioneira em oferecer curso de aramaico no Brasil. Assim as línguas semíticas da família norte-ocidental estão bem representadas no quadro geral dos cursos de Letras da USP o qual pode ser, em breve, expandido com a inclusão do grupo de línguas semíticas da família oriental, a saber, o acádico e seus dialetos assírio e babilônico. Interessante é notar que estes três idiomas apresentam características comuns, mas, sobretudo, formam uma linha de estudo, em que entre o árabe e o hebraico aparece muito bem o aramaico, servindo de ponte, às vezes, para explicar as diferenças existentes entre as duas línguas, particularmente no que se refere à fonologia e lexicografia semítica. Desta forma, os estudantes, tanto do programa de hebraico como do árabe, têm mais um idioma da família semítica com o qual aprimorar os seus conhecimentos lingüísticos e históricos de seus respectivos programas. Bibliografia: BENNETT, PATRICK, R., Comparative Semitic Linguistics, Winona Lake, Einsenbrauns, 1998 BERGSTRÄSSER, G., Einführung in die semitischen Sprachen, Munique, 4ª ed., 1989 [Tradução inglesa: Introduction to the Semitic Languages, Winona Lake, 1983] BOLOZKY, SH.e COFFIN, E.A., A Reference Grammar of Modern Hebrew, Cambridge, Cambridge University Press, 2005 BROCKELMANN, C., Grundriss der vergleichenden Grammatik der semitischen Sprachen, Berlim, Verlag von Reuther & Reichard, 1908 CHAIM, R., safot semiot, Jerusalém, Biliak, 1991 COHEN, D., Les langues chamito-sémitiques, Pt.III de Les langues dans le monde ancien et moderne, Paris, Ed. J. Perrot, 1988 COHEN, D.e CAQUOT, Actes du première Congrès international de linguistique sémitique et chamito-sémitique, Paris 16 – 19 juillet de 1969, The Hague, 1974 28 Reginaldo Gomes de Araújo - Línguas Semíticas na Universidade de São Paulo CORRIENTE, F., Gramática Árabe, Barcelona, Herder, 2ª ed., 2005 ERRICO, ROCCO A., Classical Aramaic, book 1, Smyrna, Noohra, 1992 FISCHER, W., Grammatik des klassischen Arabisch, Wiesbaden, Harrassowitz, 3a ed. corrigida, 2002 GLINERT, L., The Grammar of Modern Hebrew, Cambridge, Cambridge University Press, 2005 GOMES DE ARAÚJO, R., Gramática do Aramaico Bíblico, São Paulo, Targumim, 2005 HETZRON, R. “La division des langues sémitiques”, em A. CAQUOT e D. COHEN, Actes du première Congrès international de linguistique sémitique et chamito- sémitique, Paris 16 – 19 juillet de 1969, The Hague, 1974 HETZRON, R., The Semitic Languages, Londres, Routledge, 1997 ________, “Semitic languages”, em B. 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XII d.C. O presente artigo apresenta a divisão das ciências de acordo com as informações contidas na Metafísica da AlShifa’ e na Epístola sobre as partes das ciências intelectuais de Ibn Sina (Avicena 980-1037 d.C.). Palavras-chave: Avicena, Ibn Sina, Filosofia em árabe, Falsafa, Filosofia Medieval. Abstract: Within the falsafa, the subject of the classification of sciences was one of the important points which marked the presence of the theories of Philosophy and Science written in Arabic during the formation of the European medieval thought, through translation into Latin, markedly in the 11th century A.D. This article presents the division of sciences according to information contained in the Metaphysics of Al-Shifa’ and in the Epistle on the parts of intellectual sciences by Ibn Sina (Avicena 980-1037 A.D.) Key words: Avicenna, Ibn Sina, Arabic Philosophy, Falsafah, Medieval Philosophy. A doutrina do conhecimento de Ibn Sina (980-1037d.C) não deixa de constituir uma cadeia hierárquica ascendente em que cada uma das faculdades da alma cumpre uma etapa precisa nesse processo contínuo que leva do sensível ao inteligível, do material ao imaterial1. No topo, encimando os graus ascendentes do conhecimento, está a atualização do intelecto, a mais própria das faculdades da alma humana, cujo aperfeiçoamento só é completado por meio da conexão com a inteligência ativa, uma das dez inteligências cósmicas. Ora, o estudo das inteligências separadas é tema da Ciência Divina – isto é, a metafísica – e, portanto, assim como o intelecto *Professor Doutor de Filosofia e Cultura Árabe do Departamento de Letras Orientais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. 1. Cf. Attie Fo, M. O intelecto no Livro da Alma de Ibn Sina (Avicena) Tese de doutorado, FFLCH/USP, São Paulo, 2004. 31 ocupa o topo das faculdades, a Ciência Divina deve ocupar o topo das ciências. O horizonte no qual se constitui a Ciência Divina está pleno de interligações com as demais ciências, seja para fornecer-lhes os princípios, seja para fundamentar suas finalidades, seja para justificar suas próprias existências. Um breve percurso por algumas passagens de Ibn Sina pode nos dar uma visão panorâmica do conjunto dos saberes. A própria divisão da Al-Shifâ’ – obra que Ibn Sina escreveu já em idade madura, a pedido de um de seus discípulos, Al-Juzjani – fornece uma primeira indicação. Vale lembrar que ele iniciou essa obra em Hamadan e levou aproximadamente dez anos para completá-la em Isfahan, quando tinha por volta de cinqüenta anos, vindo a falecer poucos anos depois. Na ocasião, Al-Juzjani ter-lhe-ia pedido que escrevesse comentários às obras de Aristóteles. Não obstante Ibn Sina seguir de perto a estrutura de classificação da escola peripatética – declarando no prólogo que faria o discurso de acordo com tal estilo – a recusa do comentário e a idéia da reunião dos saberes não deixam de ser fatos notáveis. Herdeiro da tradição peripatética e neoplatônica em língua árabe, sob seu projeto estendeu-se uma concepção própria da classificação das ciências e da possibilidade de realizá-las. Assim, a Al- Shifâ’2 apresenta-se dividida em quatro tomos, fornecendo uma primeira indicação, ainda que parcial, do modo como Ibn Sina propõe uma divisão das ciências: Lógica, Física, Matemática e Ciência Divina. Nessa ordem constam, além da Lógica, as três partes principais das ciências teóricas. Os livros que as compõem têm por base uma ordenação peripatética, arranjando-se da seguinte maneira: o tomo da Lógica compreende nove capítulos: “Isagoge”, “Categorias”, “Perihermeneas”, “Primeiros analíticos”, “Segundos analíticos”, “Dialética”, “Sofística”, “Retórica” e “Poética”. A Física compreende oito capítulos: a “Física” propriamente dita, “O céu e o mundo”, “A geração e a corrupção”, “As ações e as paixões”, “Os meteoros”, “A alma”, “Os vegetais” e “Os animais”. A Matemática é disposta em quatro livros: “Geometria”, “Aritmética”, “Música” e “Astronomia”. E finalmente a Ciência Divina compreende dez capítulos3. A explicação de algumas razões que 2. Para mais informações sobre a composição da Al Shifâ’ , assim como detalhes de vida e obra de Ibn Sina, Cf. ATTIE F., M. Falsafa – a filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Athena, 2002, pp. 226-265. 3. A divisão dos capítulos da Ciência Divina é a seguinte: No Capítulo I, discute-se e estabelece-se o sujeito da filosofia primeira e suas ramificações; inicia-se o estudo da existência pela designação dos existentes, estabelecem-se distinções e multiplicidade entre os existentes possíveis diante da unidade do necessário da existência. O Capítulo II trata da análise da substância e de suas divisões. O Capítulo III trata da natureza e da variedade dos acidentes. O Capítulo IV estuda as relações entre substâncias e acidentes. No Capítulo V encontra-se a análise do universal e do particular e suas intrínsecas relações. O Capítulo VI estuda as quatro causas: agente, final, material e formal. O Capítulo VII dirige-se à refutação de doutrinas antigas, dentre as quais a doutrina das idéias. O Capítulo VIII retorna aos atributos do necessário da existência, agora, com traços 32 Miguel Attie Filho - Indicações a respeito da Divisão das Ciências em IBN SINA levaram a essa divisão, de tomos e capítulos, é fornecida pelo próprio Ibn Sina, em seu prólogo: Iniciei este livro começando pela Lógica e nele procurei seguir a ordenação dos livros do autor da Lógica, indicando alguns segredos e coisas apuradas inexistentes em outros livros. Dei prosseguimento a esta parte com a Física, mas nessa disciplina não acompanhei de perto sua classificação e seu memorial. Segui, então, pela Geometria, resumindo o livro Elementos de Euclides, com um bom resumo, trazendo soluções para ambigüidades, mas sem me prolongar muito. Depois, prossegui com um resumo do mesmo tipo, do livro sobre astronomia, o Almagesto, incluindo, além do resumo, um índice e algumas explicações. Anexei nele, ainda, alguns adendos, terminando-o com o que é necessário para o conhecimento dos aprendizes para dominar a disciplina e fazer correlações entre os princípios da astronomia e as leis naturais. Em seguida, apresentei um bom resumo do livro Introdução à aritmética e concluí a disciplina dos matemáticos com a Música como foi revelada para mim, além de uma pesquisa longa e uma análise minuciosa do resumo. Finalizei o livro com a Ciência que diz respeito à Metafísica segundo suas divisões e seus aspectos, fazendo nele menções à Ciência Ética e à Política, para compor, a partir delas, uma coletânea separada4. Assim justificado, Ibn Sina inclui as ciências Ética e Política entre as ciências práticas, embora elas não constem da divisão em quatro tomos da Al-Shifa’, sendo tratadas, timidamente, apenas nos derradeiros capítulos da Divina. A primeira informação que determina as duas áreas – teórica e prática – está já no correr do texto e pode ser lida nesta passagem: As ciências filosóficas, como já foi assinalado, nos livros, em outros lugares, dividem-se em teóricas e práticas5. Tal distinção é fundamental para ordenar e classificar as ciências nas duas direções apontadas segundo um critério de princípios de ação. Assim, as ciências teóricas são aquelas nas quais se busca o aperfeiçoamento da faculdade teórica da alma por meio da atualização do intelecto: seu propósito é a aquisição de um conhecimento certo das coisas cuja existência não depende da ação humana. Seu resultado é, portanto, uma simples concepção, um certo ponto de vista ou uma certa convicção, sem que tais resultados sejam princípios de ações ou que, a partir deles, ocorra necessariamente qualquer tipo de ação. Por outro lado, as ciências práticas neoplatônicos em que este é definido por ser inteligência, inteligente e inteligido. O Capítulo IX mostra como as dez inteligências derivam do necessário da existência, com suas respectivas almas e corpos celestes, até a processão do mundo sublunar, no qual há composição de matéria e forma. Esse capítulo inicia, ainda, a questão do retorno das almas humanas e trata também da questão do mal. O Capítulo X continua tratando da questão do retorno e, ao final, há considerações éticas e políticas a respeito da sociedade dos homens. 4. Al-Shifâ’, Introdução. 5. AVICENNE, La métaphysique du Shifa. Traduction G. Anawati. Paris: J. Vrin, 1985, p. 85. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 31-37 - 2008 33 são aquelas a partir das quais se busca o aperfeiçoamento da faculdade teórica para que o resultado seja um princípio de ação, ou a efetivação propriamente de uma ação. Seu propósito não é a aquisição apenas de uma concepção, mas de uma concepção em vista de uma ação que vise o bem e o justo. A divisão das ciências acompanha a divisão das operações da alma. Veja-se nesta passagem: É como se nossa alma possuísse duas faces: uma em direção ao corpo - mas é preciso que esta face não receba de modo algum uma impressão de um gênero exigido pela natureza do corpo - e uma face em direção aos princípios supremos – mas é preciso que esta face receba constantemente daquilo que lá está e sofra o seu efeito. Assim, do lado inferior nascem os hábitos morais e do lado superior nascem as ciências6. Nesta outra afirma-se que a primeira dirige-se à verdade e a segunda dirige-se ao bem: Assim, a primeira faculdade que a alma humana possui é uma faculdade que se refere à análise e chama-se intelecto teórico. E uma segunda faculdade que se refere à prática e chama-se intelecto prático. Aquela é para a verdade e para a falsidade, enquanto esta é para o bem e para o mal nos particulares7. Aceita e justificada essa primeira distinção, poder-se-ia esperar que Ibn Sina ordenasse as disciplinas envolvidas em cada uma delas, mas ele não o faz. Uma ordenação completa, que está de acordo com a divisão do início da Divina, pode ser encontrada na Epístola sobre as divisões das ciências intelectuais8, a mapear as disciplinas que fazem parte de cada um dos dois ramos. Na Epístola, as partes do saber teórico – al-hikmat al-nazaryia9 – também são definidas em número de três, mas o são de modo hierárquico: 6. AVICENNA, De Anima, op. cit., p. 47 “ (…) tamquam anima nostra habeat duas facies, faciem silicet deorsum ad corpus, quam oportet nullatenus recipere aliquam affectionem generis debiti naturae corporis, et alliam faciem sursum, versus principia altissima, quam oportet semper recipere aliquid ab eo quod est illic et affici ab illo. Ex eo autem quod est infra eam, generantur mores, sed ex eo quod est supra eam, generantur sapientiae;(…)” AVICENNA LATINUS, Liber de anima, op. cit., p.94. 7. AVICENNA, De Anima. Arabic texte edited by F. Rahman. London University Press, 1959, p. 207 “Ergo prima virtus humanae animae est virtus quae comparatur contemplationi et vocatur intellectus contemplativus, qui est iudex veri et falsi de universalibus; haec autem virtus activa est de bono et malo in particularibus.” CF.AVICENNA LATINUS, Liber de anima IV-V. Édition critique par S. Van Riet. Louvain: Brill, 1968, p. 77s. 8. Rabia Mimoune publicou uma tradução francesa com o título “Épître sur les parties des sciences intellectuelles” em VVAA, Études sur Avicenne, Paris: Les Belles Lettres, 1984, pp. 143-151. Ibn Sina aborda o tema da classificação das ciências em outras obras, inclusive na parte da Lógica da Al-Shifâ’. 9. Cf. “Épître”,. p.144. 34 Miguel Attie Filho - Indicações a respeito da Divisão das Ciências em IBN SINA As partes do saber teórico são três: a ciência inferior, chamada Física; a ciência intermediária chamada Ciência Matemática e a ciência superior que se chama Ciência Divina10. Os ramos da Física são indicados a partir do critério de princípio, desdobrandose depois em subdivisões. A divisão em ramos, a partir dos princípios, ainda que em outra ordem, corresponde aos oito livros da parte da Física da Al-Shifâ’ que assinalamos no início deste nosso artigo. As partes secundárias da Física, desbordantes do quadro aristotélico, são indicadas logo a seguir, em número de sete: Medicina, Astrologia, Fisiognomia, Oniromancia, Ciência dos talismans, Teurgia e Alquimia11. No caso das ciências intermediárias, isto é, a Matemática, a Epístola repete as quatro partes que mencionamos: Aritmética, Geometria, Astronomia e Música. Ibn Sina confirma o que dissera no prólogo da Al-Shifâ’: a Geometria está contida no livro de Euclides, Elementos, e a Astronomia, no livro de Ptolomeu, Almagesto. As partes secundárias incluem uma série de outros saberes: na parte da Aritmética está contida, por exemplo, a álgebra, o cálculo indiano e a muqâbala.12 Na Geometria encontram-se as ciências da medição, da tração, dos pesos, dos espelhos e a hidráulica. Na Astronomia encontra-se a ciência das tábuas astronômicas e a dos calendários. No caso da Música, inclui-se a arte do manejo dos instrumentos. Esse é, portanto, o quadro completo das ciências teóricas, a partir da Epístola, em harmonia com a divisão indicativa proposta no Capítulo I da Divina. Quanto às ciências práticas, o critério de determinação de suas partes é a associação humana, a partir de três níveis distintos. A primeira ciência refere-se à conduta individual do homem, naquilo que dirige seus hábitos e suas ações. Ibn Sina afirma que esta é a ciência Ética e encontra-se na Ética de Aristóteles. A segunda é a ciência que resulta da associação doméstica dos homens, quanto à regulação, administração dos bens e cuidado com seus dependentes, para possibilitar-lhes a busca da felicidade. Tal é a ciência da Economia, e encontra-se na Economia de Aristóteles. O terceiro nível diz respeito à associação humana em seu conjunto, isto é, a organização da comunidade, das cidades, etc. Ibn Sina afirma que essa é a ciência Política e encontra-se nas Leis e em outras obras de Platão e de Aristóteles13. A passagem é a seguinte: “aquilo que concerne ao poder está exposto 10. Cf. ibid,. p.144. 11. Ibid, p.146. Não nos deteremos a discutir os casos de cada uma das ciências apontadas. Na Epístola, Ibn Sina fornece algumas breves indicações a esse respeito. 12. Acompanhamos a tradução francesa de Mimoune, na qual o termo aparece transliterado. Cf. “Épître”,. p. 147. 13. ibid¸ p. 85 texto árabe e p.145 trad. francesa. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 31-37 - 2008 35 nos livros de Platão e de Aristóteles a respeito da Política”. Há uma variação de manuscritos, em que se encontra a referência somente “ao livro de Platão” e não “aos livros de Platão”. A sequência da passagem traz especificamente as Leis, mas isso não garante que a referência fosse apenas a essa obra. O conteúdo da era conhecido entre os árabes. No caso da referência a Aristóteles, o problema é de outra natureza. Os manuscritos não variam na construção da frase. No entanto, o sentido é dúbio, na medida em que não fica claro se a referência é ao livro Política ou ao tema da política. De todo modo, ainda que seja somente ao tema, é possível entender que Ibn Sina sabia de uma obra de Aristóteles a esse respeito, ainda que ela não tivesse chegado às suas mãos. A passagem é importante parte da discussão que envolve a tradução da Política para a língua árabe, naquele período. De todo modo, partindo das informações da Divina, completadas com as da Epístola – excetuando-se os ramos da Divina e o caso da Lógica, teríamos, até este ponto, o seguinte quadro da classificação das ciências: Ciências teóricas Ciência superior DIVINA Ciência intermediária MATEMÁTICA Quatro ramos Aritmética Cálculo Indiano Álgebra Muqâbala Subdivisões Geometria Ciência inferior Oito Ramos Subdivisões Música Medidas Engenhosidade Tração Pesos Máquinas Espelhos Hidráulica Execução de instrumentos Astronomia Tábuas astronômicas Calendários FÍSICA A Física O Céu e o Mundo A Geração e a Corrupção Os Meteoros Os Minerais A Alma Os Vegetais Os Animais Medicina Astrologia Fisiognomia Oniromancia Talismans Teurgia Alquimia Ciências práticas Três ramos 36 Ética Economia Política Miguel Attie Filho - Indicações a respeito da Divisão das Ciências em IBN SINA Bibliografia: ATTIE Fº, M. O intelecto no Livro da Alma de Ibn Sina (Avicena). Tese de doutorado, FFLCH, USP, 2004. ___________ Falsafa, A filosofia entre os árabes. São Paulo: Palas Athena, 2002. AVICENNE, La métaphysique du Shifa. Traduction G. Anawati. Paris: J. Vrin, 1985. VVAA, Études sur Avicenne, “Êpitre sur les parties des sciences intellectuelles”. Paris: Les Belles Letres, 1984. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 31-37 - 2008 37 DO ESTUDO ACADÊMICO DA BÍBLIA HEBRAICA Suzana Chwarts* Resumo: Este artigo apresenta uma retrospectiva sintetizada da trajetória dos estudos acadêmicos da Bíblia Hebraica, ressaltando a heterogeneidade das abordagens empregadas no processo de compreensão e interpretação do relato bíblico. Palavras-chave: Metodologia, Bíblia Hebraica, Estudos Bíblicos . Resume: This article presents a synthesis of the trajectory of the academic studies of the Hebrew Bible, focusing on the heterogeneity of the approaches employed in the process of comprehension and interpretation of the Biblical account. Keywords: Methodology, Hebrew Bible, Biblical Studies. Muitos estudiosos atuais1 consideram Benedict Spinoza, filósofo judeu do século 17, o fundador da abordagem científica à Bíblia Hebraica, com base em seu Tratado Teológico-Político, publicado em 1670. Neste o autor argumenta que a Bíblia Hebraica deveria ser objeto de estudo científico e formula uma linha metodológica para seu estudo, fundamentada no exercício crítico da razão e da história. As conclusões de Spinoza sobre Deus levaram a sua excomunhão e os estudos acadêmicos da Bíblia Hebraica permaneceram engessados na teologia judaica e cristã, até seu renascimento no círculo protestante do século 19, na Alemanha. Inspirados pela crítica histórica, que já havia sido aplicada aos textos clássicos durante a Renascença, e influenciados por correntes intelectuais de seu tempo - como o romantismo e a teoria da evolução - os estudiosos alemães romperam definitivamente com a teologia, submetendo o texto bíblico à investigação filológica da mesma forma que um texto secular, e desconsiderando todas as tradições relacionadas à autoria e autoridade. * Professora Doutora de Estudos da Bíblia Hebraica na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. 1. Sarna, Naum M.. Understanding Genesis.The World of the Bible in the Light of History. New York: Schocken Books, 1966, p. xxi. 39 O principal pilar da discussão teológica – o conceito de verdade – foi descartado para abrir espaço à investigação crítica, livre dos pressupostos da religião e da tradição exegética. Se, por um lado, pesquisadores como Wellhausen empreenderam um estudo minucioso e erudito, por outro, chegaram a conclusões que refletiram apenas a bias do final do século 19: sua idealização da religião imaculada de Israel era profundamente romântica e sua caracterização do judaísmo pós-exílico como sistema meramente legalista e declinante era profundamente anti-semita. A sua Hipótese Documental, entretanto, tornou-se uma afirmação clássica, uma teoria que estudiosos posteriores desenvolveram, aceitaram ou rejeitaram, de uma forma ou de outra, sempre dialogando com ela. A idéia da combinação de diferentes fontes, de períodos diversos, no desenvolvimento do que hoje conhecemos como Pentateuco tornou-se um pressuposto amplamente aceito entre estudiosos da Bíblia Hebraica. Um evento no mundo da arqueologia mudaria para sempre o curso dos estudos da Bíblia Hebraica: as descobertas dos arquivos reais e bibliotecas de cidades mesopotâmicas, canaanéias e egípcias e seus tesouros epigráficos revelaram aos estudiosos modernos o fato, até então desconhecido, de que o antigo Oriente Médio formava um continuum cultural, com intensa troca de influências numa extensa área que incluía a Mesopotâmia, a Síria, Canaã, a costa da Ásia Menor, Chipre, Creta e Egito. A descoberta dos escritos do antigo Oriente Médio coincidiu com a emergência de novas disciplinas como a antropologia, a sociologia e o estudo do folclore; e tanto as novas evidências quanto as novas disciplinas foram incorporadas ao estudo acadêmico da Bíblia Hebraica, que passou a ser ministrado nas grandes universidades, inserido em áreas como: estudos da religião, estudos orientais ou semitas e estudos do judaísmo. Esses documentos permitiram a sincronização com informações contidas no relato bíblico, e as analogias foram empregadas para equacionar a distância e a proximidade entre as culturas, e sobretudo, para restituir o texto a seu contexto original e retirá-lo do vácuo sagrado da exegese. O influxo de data extrabíblica, juntamente com o estudo da tradição oral e do folclore, criou as bases para um novo tipo de abordagem, que transferiu o foco de interesse do aspecto histórico para o literário. O foco passou a ser a intenção do autor/ redator bíblico, que se manifesta na forma e na organização de seu trabalho em unidades textuais maiores e mais complexas. A esta abordagem convencionou-se chamar crítica redacional, embora seja parte integrante da crítica histórico-gramatical, e não constitui um método diferenciado. 40 Suzana Chwarts - Do Estudo Acadêmico da Bíblia Hebraica Sua preeminência, nos últimos anos, é coerente com o crescente interesse pelo estudo de unidades maiores de texto, que vem banindo, gradativamente, o antigo sistema de análise versículo-por-versículo, prevalecente na tradição teológica e nas primeiras décadas de estudos acadêmicos. Mas foi a crítica literária que abriu, de fato, uma nova perspectiva para se compreender a Bíblia Hebraica. A aplicação de sua metodologia, apoiada no estudo de filologia semítica comparada, permitiu a apreensão dos recursos expressivos do hebraico bíblico - as nuances dos valores léxicos, a força das metáforas e dos paralelismos, a integridade estilística e rítmica do texto. A idéia central desta abordagem consiste em considerar o conjunto da Bíblia Hebraica como uma obra literária, e estudá-la tal como ela é, concentrando menor atenção nas circunstâncias históricas de sua composição. O método empregado é o da crítica retórica (close reading), mas o objetivo final é a apreensão do significado do todo, a visão holística e não atomística. Por esta razão, cada vez mais ênfase tem sido colocada no enfoque interdisciplinar no âmbito dos estudos bíblicos. Este percurso possui a qualidade de criar novos parâmetros de compreensão, além de exigir a movimentação em diversas áreas disciplinares e o confronto entre conceitos e instrumentos teóricos de correntes diversas. A trajetória interdisciplinar é articulada, no caso da Bíblia Hebraica, a partir dos paradigmas da crítica literária e da crítica histórica que, associados, propõem um eixo de raciocínio fecundo, valioso na elucidação do texto e da visão de mundo que expressa. Tal é a opinião de grande parte dos estudiosos modernos, como Gotwald2, por exemplo, que argumenta ser o eixo comum aos paradigmas a preocupação central com a estrutura: a estrutura dos escritos, por um lado – objeto da crítica literária – e a estrutura da sociedade israelita e judaica na qual a Bíblia Hebraica foi escrita e transmitida. Os textos da Bíblia Hebraica – compostos, alinhavados, editados e reeditados ao longo de nove séculos – formam o corpus literário fundacional da cultura israelita, e são suas palavras e imagens que compõem as tradições autoritativas desta cultura. No processo de compreensão deste núcleo texto/cultura é necessário reconhecer, e tentar ultrapassar, as limitações de cada método já consagrado nos estudos bíblicos. Isto se dá exatamente através do olhar criativo, renovador, que um outro método oferece. 2. Gotwald, Norman K. Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica (trad. Anacleto Alvarez). São Paulo: Paulus, 1988, p.41. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 39-43 - 2008 41 Assim, a resposta a uma pergunta sobre o rei Davi - afirma Gotwald3 - gravita por canais metodológicos distintos, e transborda. Cada resposta evidencia um aparato – lingüístico, literário, antropológico, arqueológico – empregado com o intuito de iluminar o texto bíblico, através de uma confluência fértil, mas rigorosamente controlada, de modelos. E, no entanto, cada resposta evidencia também novos questionamentos, saturados de subjetividades, de caráter inesperado, o que não permite a inércia nem a observação pré-moldada. É este caráter da Bíblia Hebraica – o de estar sempre aberta à descoberta e a novas interpretações - que tem suscitado a demanda de abordagens inovadoras para seu estudo. Entre as mais recentes, destacam-se o feminismo, o liberacionismo e o póscolonialismo (agrupadas sob o termo “guarda-chuva” hermenêutica cultural), nas quais a posição do intérprete não é apenas explicitada e validada, mas serve como princípio normativo no processo de interpretação, centrado nas categorias de classe, etnia e gênero. O estudioso explora ângulos, até então desprezados, deslocando temas do passado para a sua realidade, e articulando-os – passado e presente - de tal maneira que ambos são transformados. A Bíblia se impõe como texto de liberação, principalmente a narrativa do êxodo e os escritos dos profetas, núcleo irradiador desses movimentos revolucionários. Também o fluxo contínuo de informações impulsionou os estudos bíblicos a incorporar novas abordagens. Desde 1970, a arqueologia tem revelado cada vez mais data sobre a configuração da população, costumes domésticos e religiosos, práticas agrícolas, pecuaristas e comerciais do mundo bíblico. O material epigráfico, descoberto em escavações e datado com precisão, constitui uma evidência valiosa para a contextualização dos escritos bíblicos. Essas informações, juntamente com um amplo leque de possibilidades de modelos comparativos de sociedades não urbanas descentralizadas, têm gerado novas hipóteses sobre os primórdios de Israel, sem que nenhum consenso tenha sido ainda alcançado. É através deste “caleidoscópio multimetodológico” que a Bíblia Hebraica emerge como um documento essencialmente humano, que registra o anseio do homem para compreender Deus nas relações humanas e na história de um povo. Por esta razão, embora essencialmente secular, o estudo acadêmico não deve dessacralizar a Bíblia Hebraica. Não se pode exilar o elemento sagrado de escritos que foram formulados com o propósito explícito de ser literatura sagrada, nem 3. idem, p. 41. 42 Suzana Chwarts - Do Estudo Acadêmico da Bíblia Hebraica desconsiderar os significados de revelação, punição e redenção atribuídos a eventos da história dos antigos israelitas. A sobrevivência dos livros que compõem a Bíblia Hebraica deve-se à crença por parte dos israelitas de que ela continha a palavra de Deus e palavras inspiradas por Deus. Embora não se empregue uma hermenêutica específica para tratar de textos consagrados pela tradição como sagrados, qualquer outra postura, que não a de respeitar esta dimensão dos textos bíblicos, implica perverter a sua essência. O desafio do estudo acadêmico da Bíblia Hebraica, contudo, não se restringe à abordagem crítica. Os modos de expressão, categorias de pensamento e o ambiente sociocultural pressupostos nas narrativas e nas leis são estranhos ao pensamento ocidental, embora o Antigo Testamento seja o livro mais lido do mundo. O contato da grande massa de leitores, e surpreendentemente de vários estudiosos, com a Bíblia Hebraica dá-se através de suas inúmeras apropriações: traduções, versões, paráfrases antigas e modernas. Já o texto hebraico suscita uma compreensão totalmente distinta, em particular por sua raiz triconsonantal que permite múltiplas significações, entrelaçando sentidos e construindo um texto fértil em polissemias e ambigüidades, um desafio a qualquer exercício de tradução. Debruçar-se, horas a fio, sobre o original, implica reformular nosso padrão de pensamento e raciocínio, e mergulhar nas dimensões de uma racionalidade antiga e desconhecida, que se revela aos poucos, encantando-nos no processo de sua leitura interminável. Bibliografia: Gotwald, Norman K. Introdução Socioliterária à Bíblia Hebraica (trad. Anacleto Alvarez) São Paulo: Paulus, 1988. Sarna, Naum M. Understanding Genesis.The World of the Bible in the Light of History. New York: Schocken Books, 1966. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 39-43 - 2008 43 Nas tramas das Noites Christiane Damien Codenhoto* Resumo: Este artigo apresenta uma abordagem geral sobre o percurso do livro As mil e uma noites, desde sua origem controversa e seus manuscritos até suas traduções e recepção no mundo ocidental. Palavras-chave: As mil e uma noites, Galland, literatura árabe, Chahrazád, Islã. Abstract: These article presents a general approach about the trajectory of the book The Thousand and One Nights, since its controversial origin and its manuscripts, until its translations and reception by the western world. Key words: The Thousand and One Nights, Galland, Arab literature, Shahrazád, Islam. As Mil e Uma Noites. Um dos títulos mais belos do mundo, segundo Jorge Luis Borges. O número mil nos remete, imediatamente, à imagem do inesgotável, inexaurível. Talvez, seja essa a sua encantadora beleza: um livro que nos conduz ao infinito, a um tempo desprovido de limites. Histórias tecidas, cuidadosamente, todas as noites e, em cada uma delas, a singular elaboração que vislumbra a sua terna permanência naquele que nelas se aventura. Do ponto de vista dos estudiosos, o título remete à influência da expressão de origem turca bin bir, que significa “mil e uma”, utilizada para indicar uma grande quantidade. E, realmente, um dos traços mais marcantes das narrativas mileumanoitescas reside no próprio sentido e atmosfera do título da obra, ao pensarmos na diversidade de textos de um livro que, na verdade, não possui uma única redação. Assim, o tempo nos legou uma série de manuscritos que diferem entre si quanto ao número, diversidade e variantes das mesmas histórias. Zotenberg, orientalista que introduziu os estudos dos manuscritos de As Mil e Uma Noites, classificou-os em três grupos. O primeiro, denominado Família A¬, é composto de manuscritos oriundos de países muçulmanos da Ásia, os quais formam o grupo oriental e são considerados os mais antigos. Os demais – Família B e C – são de origem egípcia e se diferenciam quanto à distribuição de contos. __________ * Mestranda do Programa de Língua, Literatura e Cultura Árabe da Universidade de São Paulo. 45 Os textos datam dos séculos XIII ao XIX, mas as questões acerca da data de sua elaboração e o local ainda são bastante controversas. O fato de As Mil e Uma Noites terem sido edificadas ao longo dos séculos por autores anônimos torna praticamente impossível, até os dias de hoje, o conhecimento exato acerca do local de nascimento da obra. O único ponto de convergência, entre os diversos estudiosos, é o fato de as histórias serem originárias do Oriente. No século XIX, orientalistas europeus realizaram longas discussões acerca da origem de As Mil e Uma Noites. Langlès (1814) defendeu a origem indiana, Hammer (1827 e 1839), a persa e a indiana e Silvestre de Sacy (1817 e 1829), a árabe. No final do século XIX, de Goeje, um orientalista holandês, sustentou uma tese que ressaltava a origem persa com elementos judaicos. Silvestre de Sacy considerou que as hipóteses da origem indiana e persa não foram apresentadas de maneira convincente, sustentando que As mil e uma noites eram uma obra árabe porque possuíam o “espírito e a concepção de mundo” muçulmanos. O autor ressaltou essa idéia esclarecendo elementos que perfazem o universo árabe: todos os personagens dos contos são muçulmanos; a maior parte dos acontecimentos se dá na região dos rios Tigre, Eufrates e Nilo; as ciências reais ou fantásticas são as mesmas de que os árabes se vangloriam; os gênios são da mitologia árabe; as religiões identificadas na obra são o Islamismo, o Cristianismo e o Judaísmo, além das referências a Moisés, David e Asaf, que eram desconhecidos na Pérsia e na Índia antes da introdução do Islamismo. Outro ponto importante levantado por De Sacy é o fato de que a história do Islã não recusa elementos de outras culturas, como observaram autores árabes do século X, ao identificar a interferência persa e indiana na produção literária árabe. Desse modo, os contos mileumanoitescos se constituem por um entrelaçamento dos saberes chinês, judaico-cristão, persa, indiano, árabe e até mesmo o grego, o que, porém, não interfere na óptica de mundo muçulmana do livro. Os pesquisadores ainda hoje apontam entre as fontes mais longínquas de As Mil e Uma Noites uma obra de origem persa, chamada Hazar afsán – “mil mitos”. Da Pérsia e da Mesopotâmia (que hoje correspondem, respectivamente, ao Irã e ao Iraque), estima-se que as histórias seguiram para a Síria por meio de cópias, desprovidas das regras rigorosas às quais os livros canônicos estavam submetidos, mas foram difundidas, sobretudo, através do sistema oral. Os relatos dos contadores foram propagando o texto pelo Oriente, provocando na sua forma escrita modificações e adaptações na linguagem, de modo que a redação foi compondo-se por um dialeto árabe intermediário entre o urbano – para o qual 46 Christiane Damien Codenhoto - Nas tramas das Noites revela uma forte tendência – e o clássico – que permeia o texto durante o tempo todo –, como ressalta o tradutor Mamede Mustafa Jarouche1. Ademais, há referências concretas de um fragmento de manuscrito pertencente à primeira metade do século IX. O pesquisador iraquiano Muhsin Mahdi, à luz de demais estudiosos, propõe que este seria a primeira elaboração de As Mil e Uma Noites, compilado na cidade de Bagdá, no período da dinastia abássida. É possível ler, nesse fragmento, cerca de vinte linhas que constituem parte do “prólogomoldura” – enredo que antecede as histórias contadas ao longo de um livro –, cujo conteúdo atém-se a uma personagem feminina chamada Chirazád que narra histórias junto com outra personagem chamada Dinazád; não é, entretanto, possível fazer uma única asserção sobre quais histórias eram narradas. No tocante à própria obra, As Mil e Uma Noites prestigiam a arte de contar. No “prólogo-moldura” o encantador ofício de narrar é posto a lume por meio da personagem-narradora, a ardilosa filha do vizir, Chahrazád, que, para se salvar da ameaça de morte feita pelo próprio marido – o rei Chahriár –, conta-lhe todas as noites curiosas histórias. Entrelaçando seus contos pelos fios dos elementos mágicos, coloridos e plenos de calor, Chahrazád, a hábil contadora, encanta o rei todas as noites e mantém a curiosidade de seu senhor suspendendo o final da última história ao raiar do dia. O marido vai poupando-a da morte para ouvir, na próxima noite, o desfecho da narrativa interrompida, que é seguida de novas histórias surpreendentes... Não podemos esquecer que os próprios personagens dos contos de Chahrazád são também habilidosos contadores. O pescador, o gênio, o vizir, o mercador, o médico, a princesa, enfim, os mais variados integrantes das histórias sabem contar as alegrias e desventuras que permeiam suas vidas e dos que estão ao seu redor, revelando a nós, leitores, idéias e valores do mundo muçulmano, sua história e o imaginário popular entremeado de elementos fantásticos. A voz concedida aos personagens para que contem as suas histórias acaba por construir uma complexa estrutura narrativa composta de contos inseridos no interior de outros contos que, por seu turno, são mantidos por um eixo condutor – edificado por Chahrazád, a exímia narradora da obra –, do qual partem e ao qual retornam as sucessivas histórias. O livro, que nos sugere a partir do próprio título a idéia de infinito, mais uma vez, agora pela sua complexa estrutura, nos conduz à imagem dos contornos espiralados de um campo sem limites, inesgotável, quase eterno. 1. JAROUCHE, M.M. O “prólogo-moldura” das Mil e uma noites no ramo egípcio antigo. Tiraz: revista de estudos árabes e das culturas do Oriente Médio. USP. FFLCH. Departamento de Letras Orientais. São Paulo: Humanitas, 2004, ano I, vol. 1, pp 70-117. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 45-49 - 2008 47 As Mil e Uma Noites aportaram na Europa no século XVIII, mais especificamente na França – regida por uma literatura plena de normas, todas elas embasadas na concepção clássica de autores gregos e latinos –, por meio da tradução do orientalista Antoine Galland; a partir de então, iniciou-se um processo de difusão dessas narrativas no Ocidente, que, seduzido pelos encantos de uma literatura e de uma cultura bem diferentes da cristã, passou a produzir inúmeras obras inspiradas por essas histórias ao longo dos tempos que se seguiram. Os primeiros tomos da versão francesa de Galland foram publicados no ano de 1704 e, durante os treze anos seguintes, ele completou a coleção dos contos com uma série de doze volumes. O orientalista baseou sua tradução num manuscrito árabe, datado do século XIV, pertencente ao grupo oriental, considerado o mais antigo das Noites. O manuscrito é constituído de três volumes e, hoje, encontra-se depositado na Biblioteca Nacional de Paris. A partir da tradução do orientalista francês, surgiram outros tradutores, entre eles destacamos E. Lane (1839) e Burton (1885) em língua inglesa; Mardrus (18991904), René Khawam (década de 60), André Miquel e Jamel Eddine Bencheikh (década de 90), em língua francesa; Littmann (1921-1928), em alemão; CansinosAsséns (1955), em espanhol; e a primeira tradução em língua portuguesa por Mamede Mustafa Jarouche, cuja publicação foi iniciada em 2005. Embora a tradução de Galland tenha sido considerada, pelos orientalistas, infiel aos textos originais, “a pior de todas, a mais mentirosa e mais fraca”2, para Borges, ela foi a “melhor lida”3 porque encantou, causou sensações de “assombro e felicidade”4 a quem sobre ela pôde se debruçar. Não podemos deixar de lembrar que a versão de Galland foi a base para as traduções que se seguiram nos três séculos posteriores ao ano de sua publicação. A partir dela foram realizadas traduções nas mais diversas línguas no Ocidente e Oriente, além das adaptações para a literatura infanto-juvenil de A. Henri, na França, e dos irmãos Grimm, na Alemanha. O mundo conheceu, afeiçoou-se e se encantou por As Mil e Uma Noites apresentadas por Galland e, ainda hoje, as histórias mais conhecidas descendem do primeiro tradutor francês. Entre as várias acusações dirigidas a Galland, no tocante à infidelidade aos textos originais, está a de que o orientalista teria adaptado os contos ao gosto francês da época, além de ter acrescentado novas histórias ao livro. Entre elas estão as mais conhecidas, como “Aladim e a lâmpada maravilhosa”, “Ali Babá 2. BORGES, J.L. História da eternidade. Rio de Janeiro: Globo, 1986. p. 77-95. 3. Ibidem, p.78. 4. Ibidem, p.78. 48 Christiane Damien Codenhoto - Nas tramas das Noites e os quarenta ladrões”, “Príncipe Ahmed e a fada Pari-Banu”, “Abu Hassam e o adormecido desperto” e “Aventura noturna de Harun Al Rachid”, que não constam no manuscrito que lhe serviu de base. Tais histórias são atribuídas ao maronita Hanna Diap, que, no contexto de uma viagem à França, divertiu o orientalista e demais ouvintes com suas fabulosas narrativas. Khawam, no entanto, sugeriu que tais contos pertenceriam ao acervo turco5. De qualquer maneira, o modo como as histórias passaram a pertencer à obra é uma discussão polêmica; nesse sentido, como sugere Borges, o traço característico da obra é a própria inexistência de um texto acabado6. Cada tradutor, no passado, no presente ou nos tempos que estão por vir, contribui com uma versão diferente, mesmo porque há o fato de os manuscritos possuírem origem diversa; além da própria particularidade das línguas, que, no ato da tradução, interfere significativamente na elaboração do sentido do texto, mais um motivo para que Borges observasse a existência de muitos livros chamados As Mil e Uma Noites7. O livro trazido do Oriente por Antoine Galland inspira e instiga a criação de novas histórias e obras desde o momento de sua primeira publicação, na comedida França de Luís XIV. Pode-se até mesmo dizer que o romantismo despontava, timidamente, naqueles salões franceses do século XVIII, onde a leitura de As Mil e Uma Noites promovia a saída de um universo literário legislado, suscitando um imaginário liberto, tão valorizado e perseguido pelos autores românticos, tendência essa vivenciada até a atualidade. As Mil e Uma Noites foram fonte de inspiração para os autores do romantismo, que, na busca de elementos e lendas que identificassem as culturas nacionais, encontraram no livro árabe importantes referências: a figura do contador, os mitos, a religião e os valores morais presentes na obra. O reconhecimento da riqueza de As Mil e Uma Noites não ficou restrito aos autores românticos do século XIX. Ainda hoje é uma obra que inspira, desperta interesse, curiosidade e prazer naquele que nela se aventura. 5. Cf. NABHAN, N. N. As mil e uma noites e o saber tradicional. 1990. Tese (Livre Docência) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 1990, p.68. 6. BORGES, J.L. Sete noites. São Paulo: Max Limonad, 1987, p.87. 7. Ibidem, p.87. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 45-49 - 2008 49 Elementos formadores do imaginário sobre o japonês no Brasil Rogério Dezem* Resumo: A partir da análise de artigos e imagens publicadas entre 1903 e 1908 nos periódicos nacionais O Malho e Revista da Semana, este artigo tem como objetivo apresentar como se deu a construção/desconstrução dos discursos relativos aos imigrantes orientais no Brasil. Enfatiza-se a pluralidade dos discursos produzidos, que são comparados, com o objetivo de identificar os estereótipos que vieram a estigmatizar primeiramente os chineses (chins) e depois os japoneses que estavam prestes a vir para o Brasil. Palavras-chave: Imprensa no Brasil, Imigração Japonesa, Perigo Amarelo. Abstract: Based on the analysis of texts and illustrations published in the magazines O Malho and Revista da Semana between 1903 and 1908, this article aims to present how the discussions related to the oriental immigrants in Brazil were constructed/deconstructed. We intend to focus on the plurality of these discourses, comparing them, besides identifying the stereotypes linked to the objective of stigmatizing, first, the Chinese (chim), and then the Japanese people. Keywords: Press in Brazilian Republic, Japanese Immigration, Yellow Peril. 1. Imagens e discursos: matizes do “amarelo” Este artigo tem como objetivo demonstrar que além dos discursos sobre o imigrante de origem asiática no Brasil, produzidos nos gabinetes e tribunas desde meados do século XIX, existe um outro campo discursivo a ser explorado: os discursos formalizados e divulgados a partir da nascente imprensa ilustrada, principalmente, da cidade do Rio de Janeiro, autêntica capital cultural da Belle Époque tupiniquim. __________ * Mestre em História Social pela FFLCH/USP (2003) e pesquisador do PROIN (Projeto Integrado Arquivo do Estado de São Paulo/Universidade de São Paulo) desde 1997. Autor de Shindô-Renmei:terrorismo e repressão. Inventário Deops. São Paulo: AESP/ Imprensa Oficial, 2000 e Matizes do “amarelo”: a gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil. Série Histórias da Intolerância. São Paulo: Humanitas, 2005. 51 Instigado pelos debates do Congresso Agrícola de 1878, procuramos investigar como a Revista Illustrada “representava” os trabalhadores chineses ou chins, primeiros imigrantes “amarelos” trazidos para o Brasil (em reduzido número) no início do século XIX. O viés irônico dos cartuns do jornalista Ângelo Agostini (1843-1910) contribuiu para consolidar estereótipos relativos a esse elemento, constatação que denominamos “equação amarela”, na qual o “outro” denominador seria o japonês. Os estereótipos veiculados com relação ao chim materializaram uma imagem negativa desse elemento que, além de ter sua figura associada “às suas tranças”, foi sempre lembrado como “viciado em ópio”, “ladrão de galinhas”, “pouco higiênico”, “civilizadamente atrasado”, “supersticioso”, “racialmente inferior” etc. Em um primeiro momento a perpetuação desses estigmas no imaginário coletivo deve-se ao fato de que, segundo o historiador da arte E. Gombrich, todos nós temos a faculdade de “fabricar” mitos, e é inserido nesse universo de mitologização do mundo1 que o cartunista assume um importante e, talvez, “único” papel ao encaixar toda uma cadeia de idéias ou uma idéia mais complexa dentro de uma imagem inventiva2, de modo que o leitor possa captar tudo num simples olhar. No caso do chim, sua imagem também permaneceu associada à de um elemento “transitório”. O fato de não ter se efetivado a imigração de trabalhadores chineses em número significante para o Brasil deu ensejo para que, a partir de meados da década de 1890, a palavra chim praticamente desaparecesse dos discursos imigratórios, sendo substituída pela palavra japonês. No entanto, veremos que, assim mesmo, elementos pertencentes ao imaginário relacionado ao trabalhador chinês ainda permaneceram. Associado ou fazendo contraponto ao “outro” elemento amarelo (japonês), o fato foi que os cartunistas que retrataram o chim – como Ângelo Agostini ao se utilizar de maneira tão perfeita daquilo que E. Gombrich chama de “recursos do arsenal do cartunista”, ou seja, a capacidade/necessidade de condensar em um cartum o tópico e o permanente, a alusão de passagem e a caracterização duradoura3 acabaram dando sobrevida à imagem desse elemento ainda nos primórdios do século XX. As imagens, em nosso caso os cartuns e as caricaturas, são de extrema importância, pois não só podemos estudar o “uso de símbolos num contexto circunscrito”, como também “temos o propósito de descobrir que papel a imagem 1. GOMBRICH, E. “O Arsenal do Cartunista”. In: Meditações sobre um cavalinho de pau e outros ensaios sobre teoria da arte. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Edusp, 1999, p. 139. 2. Idem. p. 130. 3. Idem. p. 137. 52 Rogério Dezem - Elementos formadores do imaginário sobre o japonês no Brasil pode representar nos escaninhos de nossa mente”4. É a partir dessa proposição que colocamos lado a lado palavra e imagem. E em alguns momentos a imagem do chim vinha associada à figura do japonês. Para melhor compreensão do modo como começava a se mitologizar a imagem do japonês, utilizamos-nos de imagens produzidas pelas revistas ilustradas O Malho e Revista da Semana, periódicos em circulação a partir de 1902. Ao pesquisar as primeiras edições dos periódicos encontramos, na edição de março de 1903, a representação de uma gueixa, primeira imagem publicada sobre o Japão na revista O Malho5. Qual o efeito dessas caricaturas no imaginário coletivo nacional? Podemos afirmar que a “chegada” dos japoneses ao Brasil se deu por meio dessas publicações? Com base nesses questionamentos gostaríamos de relacionar o discurso oral e escrito à imagem, enfocando a figura do Japão e dos japoneses aos olhos da pulverizada opinião pública nacional6, defensora de uma imagem estereotipada do chinês, uma das matizes do “amarelo”. Para responder, em parte, a essas instigantes questões, nos utilizaremos de uma curiosa pesquisa de opinião realizada pela revista O Malho com seus leitores entre os meses de março e abril de 1904, logo após o início da Guerra Russo-Japonesa (1904-1905). Veremos que entre 1903 e 1908 ocorreu a desconstrução/construção da imagem associada ao Japão e aos japoneses. O principal responsável por isso foi, não apenas no Brasil, o conflito russo-japonês, interpretado aqui como um elemento de ajuste nos discursos relacionados à idéia de “perigo amarelo”. Com a vitória japonesa, as dúvidas que pairavam sobre o real potencial do Japão confirmaram-se e o que para alguns era exótico, tornou-se perigoso. A nascente república brasileira insere-se entre os países que vivenciaram essa mudança conceitual. O imaginário nacional relacionado ao japonês, ainda na transição do século XIX para o XX, respirava os ares do japonismo, enquanto países como o Peru e, principalmente, os Estados Unidos viviam um momento de redefinição dos discursos relativos ao imigrante japonês que ali se radicava. Esse fato é de suma importância para compreendermos a diferença de sintonia entre o Brasil e os outros dois países imigrantistas. A operação de desconstrução do mito de “país das gueixas” e da estética naif associada ao japonismo começou a entrar em evidência a partir da publicação da obra No Japão, do diplomata Oliveira Lima (1903). Ao mesmo tempo, começava-se a construir o mito do “país dos samurais” ou de um Japão imbatível, de um povo bravo e 4. Idem. p. 127. 5. O Malho, Rio de Janeiro, n. 26, ano II, 14 de março de 1903. 6. SALIBA, Elias T. Raízes do Riso. A representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 80. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 51-64 - 2008 53 heróico. Baseadas em metáforas ocidentais, nenhuma dessas imagens irá se diluir totalmente: a da gueixa, associada ao exótico e frágil, personificando os mistérios da mulher japonesa, a do samurai, associado ao guerreiro e ao militar, modelo de força e tenacidade. Esse processo de transformação das formas de representar o japonês no imaginário nacional pode ser constatado nos discursos veiculados posteriormente, a partir da chegada dos imigrantes japoneses ao Brasil (1908). 2. O Escrutínio Russo-Japonez: o simphatico nippão e o colosso russo. No início do mês de março de 1904, logo após o começo das hostilidades entre a Rússia e o Japão no Extremo Oriente, a revista ilustrada O Malho convidou seus leitores a participar de uma votação livre sobre quem venceria a guerra entre russos e japoneses. O chamado Escrutínio Russo-Japonez teve espaço em seis edições da revista,7 iniciou-se na primeira semana de março de 1904 e terminou com a publicação do resultado final da votação na primeira semana de abril. O escrutínio baseava-se em questionário simples composto de três perguntas: 1) Interessa-se pelo conflito Russo-Japonez? 2) Por qual dos dous paízes manifesta os seus votos? 3) Por que? Esta interessante iniciativa surpreendeu até mesmo aos mentores da pesquisa. Na primeira semana o volume de cartas foi tão grande que “mal poderíamos suppor que a nossa idéia tivesse o alcance que teve, e que milhares de respostas nos viéssem ás mãos”8. Notamos pela surpresa dos redatores que havia um certo ar despretensioso na iniciativa, pois o que poderia ser apenas mais um entretenimento da revista acabou se tornando um “espelho” da mentalidade de boa parte dos leitores das regiões Sudeste e Nordeste do país, e até mesmo de alguns estrangeiros aqui radicados. Ao final do escrutínio, a revista havia recebido um total de quase seis mil cartas, das quais apenas uma pequena parcela foi publicada. Destas, a maioria vinha assinada por pseudônimos. No dia 10 de março, após a primeira apuração de votos, o resultado parcial foi o seguinte: Pelo Japão ............... 549 votos. Pela Rússia .............. 231 votos9 7. O Malho, Rio de Janeiro, n°s 77,78,79,80,81 e 82, ano III. 5 de março a 9 de abril de 1904. 8. O Malho, Rio de Janeiro, n. 78, ano III. 12 de março de 1904. p. 17. 9. Ibdem. 54 Rogério Dezem - Elementos formadores do imaginário sobre o japonês no Brasil Constatamos que essa margem favorável de votos ao Japão aumentou de forma significativa, mesmo após o ataque de surpresa efetuado pelos japoneses à base naval russa de Port Arthur um mês antes da pesquisa. A que se deveu essa simpatia pelo Japão? Seria ela apenas resultado da guerra em si, na qual o gigante russo era “malvisto”, pois representava o atraso de um “regime monárquico, autocrático” aos olhos da jovem República brasileira? Aliado a esse fato estaria o chamado “perigo eslavo”, identificado com os planos russos de expansionismo na Ásia? Ou essa simpatia já vinha sendo cultivada havia um certo tempo, não só por aqueles que admiravam as “coisas do Japão” como também por aqueles que viam nesse pequeno país – que se desenvolvia a cada dia, afeito ao progresso e em sintonia com a civilização ocidental – um modelo? Admiração ou desconhecimento por parte dos leitores? Veremos que admiração e desconhecimento acerca do “outro” conviveram lado a lado, produzindo algumas distorções. Em relação aos motivos que levaram o público a votar nos russos, as opiniões estão muito mais atreladas ao ódio ao Japão, visto como representante da raça amarela e com objetivos imperialistas, do que à admiração pela Rússia, avaliada como representante da raça branca e da cristandade. Exemplo dessa motivação é a resposta do leitor J. A. Lutz de São Paulo, que afirmava acompanhar com bastante interesse os combates, sendo favorável aos russos, pois o Japão deveria ficar: “(...) sem as azas com que pretende dominar o mundo (...) Corram mais alguns mezes e o japonez verá (...) o russo”.10 Assinando sua carta como Ruço-Mór, outro leitor disse que sempre teve simpatia pelos russos, detestando os japoneses “por terem os mesmos obrigado os russos a pegar em armas, conquanto procurassem os mesmos evitar a guerra”11. Alguns mais radicais, como o que assinou Sanscripto, gostariam que a vitória russa fosse tão completa que o Japão desaparecesse inteiramente da face da terra. O leitor concluiu sua carta em tom de louvor: “Deus proteja a Rússia! São os votos de um verdadeiro christão e brasileiro. E viva a Rússia! E viva O Malho!”.12 Alguns, como o leitor Odagab Arievilonoch, evocavam a pátria e alertavam para o perigo de uma expansão japonesa no mundo. Por ser brasileiro e patriota, ele desejava a vitória russa, caso isso não ocorresse “(...) a Victoria dos filhos do Nippon poria em pratica o fallado ‘Perigo Amarelo’, não só para o Brasil como para o mundo em geral”.13 10. Ibidem. 11. O Malho, Rio de Janeiro, n. 79, ano III. 19 de março de 1904, p. 19. 12. Idem. 13. O Malho, Rio de Janeiro, n. 81, ano III. 2 de abril de 1904, p. 15. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 51-64 - 2008 55 Em outras cartas favoráveis à vitória russa, os japoneses eram freqüentemente acusados de “haverem provocado covardemente a guerra”, “desleais”, “pérfidos”, “traidores”, “salteadores do Oriente”, “raça orgulhosa e semi-selvagem”. Para esse menor número de leitores que eram favoráveis à Rússia, a raça amarela deveria ser destruída, isto é, derrotada para que o “perigo amarello fosse destruído”. Para o leitor Anníbal Falcão, de opinião totalmente contrária aos japoneses, a maciça votação favorável aos amarelos ocorria devido à “falta de conhecimentos históricos e geográficos” por parte dos leitores, fato que desmerecia a própria raison d´être do escrutínio, que, a seu ver, não tinha lógica. Por mais contundentes que pareçam as opiniões com relação ao Japão e seu povo até o momento explicitadas, estas foram em menor número. Para compreender os motivos que levaram à simpatia pelo Japão e pelos japoneses, nos ateremos à variedade de adjetivos adotados pelos leitores para explicar os motivos pelos quais votaram a favor do Japão. O pequeno arquipélago nipônico era visto como “a nobre nação do sol levante”, “intrépido e destemido”, possuidor de uma “grandeza militar”, que “caminha a passos tão largos para o progresso”. Por seu turno, o povo japonês era, segundo a opinião dos leitores, um fiel retrato de sua nação. Naquele momento, se o governo japonês tivesse em mãos essa pesquisa ficaria satisfeito pelo modo como era visto “o heróico povo japonez, o mais progressista do mundo”. Idealizados sempre com “sympathia”, os japoneses eram freqüentemente citados como “civilisados”, “patriotas”, “valentes”, “briosos”, “pacientes”, “laboriosos”, “viris”, possuidores de “refinado gosto estético” e admirados por “desprezar a morte”. 14 Mas quais seriam os motivos que levaram à “torcida” pela vitória do Japão? Veremos que eles são os mais variados possíveis, desde questões políticas, militares, raciais, até motivos pessoais. Alguns dos que se disseram, favoráveis aos japoneses conseguiram de forma lógica explicar suas razões. Foi o caso do leitor Raul Ribas da cidade de Botucatu, interior do estado de São Paulo, que entusiasmado pelo Japão respondeu: “(...) é uma nação digna de symphatia dos idéaes modernos, não só por ser mais fraca e enfrentar sobranceiramente o colosso e autocrata império moscowita numa lucta de vida ou morte, como ainda mais pelo espírito de nacionalismo de seus filhos, que conscientes das ambições da Rússia, souberam colocar a sua pátria na altura da eventualidade atual.” 15 14. O Malho, Rio de Janeiro, n°s 77,78, 79, 80, 81 e 82, ano III. 5 de março a 9 de abril de 1904. 15. O Malho, Rio de Janeiro, n. 80, ano III. 26 de março de 1904, p.22. 56 Rogério Dezem - Elementos formadores do imaginário sobre o japonês no Brasil A palavra fraca utilizada para definir a situação do Japão em comparação à Rússia foi usada não só por Raul Ribas, mas também por outros leitores. Nesse sentido, o fraco Japão, que não passava de um pequeno arquipélago em processo de modernização, tinha um trunfo: o espírito nacionalista de seus filhos. Elemento importantíssimo aos olhos do leitor para que o país do “sol levante” pudesse vencer a guerra. Outros leitores, como o santista José Barroso, viam o Japão como o país “mais civilisado do mundo, depois do nosso querido Brasil”, e faziam votos para que a vitória japonesa desse “uma lição á velha Europa decrépita!”. Barroso conclui sua carta externando seu desejo pela “(...) victoria do Japão, pois é tão necessária como o alimento ao corpo. Deus é justo, protegerá esse povo heróe”. 16 Dentre as opiniões coletadas havia também aquelas em que a veia humorística e criativa do brasileiro transparecia. Como o leitor Pindoba Junior, que, por ser um “apreciador das perfumarias japonezas”, era favorável à vitória do Japão.17 O leitor que se autodenominou Seixas Vagabundo respondeu que por “não gostar das louras, não poderia amar os russos”, por isso era favorável ao “Japão até (...) dormindo”18. O leitor Juca tinha tanta “paixão pelo Império do Sol” que se manifestava nele “a convicção de que houve equivoco quanto a minha remessa ao globo”, pois acreditava que em “ logar de brasileiro” deveria ter nascido japonês...19 Outro leitor da cidade de Santos, valendo-se do pseudônimo de Zum, escreveu que por estar “extremamente orientado” não poderia deixar de ser “japonez até a morte”, além de se utilizar de “motivos pessoais” para explicar o porquê do seu voto: “(...) gosto das morenas brasileiras e as amarellas japonezas se assemelham mais ás brasileiras que as ruças russas (sic)”.20 Em 9 de abril de 1904, na edição número 82 de O Malho, notificou-se aos leitores o encerramento das votações. Após um mês, os redatores alegaram como motivo para pôr término ao escrutínio o excessivo número de respostas. O resultado final foi marcado pela “triunfal vitória japonesa”, como ocorreria na guerra um ano e meio depois: Pelo Japão ............... 4.169 votos Pela Russia ...............1.132 votos21 16. O Malho, Rio de Janeiro, n. 78, ano III. 12 de março de 1904, p. 18. 17. Idem. p. 19. 18. Ibidem. 19. O Malho, Rio de Janeiro, n. 80, ano III. 26 de março de 1904, p. 20. 20. Idem. p. 22. 21. O Malho, Rio de Janeiro, n. 82, ano III. 9 de abril de 1904, p. 21. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 51-64 - 2008 57 Baseando-nos simplesmente nesses números, poderíamos afirmar que o mito da superioridade da raça branca havia enfraquecido no Brasil? Estaríamos na vanguarda de um novo padrão racial, no qual o amarelo encontrava um “lugar ao sol”? Longe disso. A nosso ver, esse resultado final expressa que a notória simpatia e admiração pelo distante Japão e pelo povo japonês era fruto de uma idealização por boa parte dos leitores participantes, que ao se utilizarem de estereótipos para definir seu voto demonstravam seu (des)conhecimento do “novo” Japão que nascia. Pelo grande volume de cartas recebidas (cerca de seis mil), como também pelo conteúdo das opiniões externadas pelos leitores sobre os resultados da guerra, podemos visualizar um retrato do universo nacional que se transformava. Evidencia-se a pouca variabilidade do nível de informação sobre os dois países que haviam acabado de entrar em guerra. E para definir os motivos de seus votos, os leitores geralmente se utilizavam de estereótipos. Os leitores, na maioria das vezes, admiravam o Japão e os japoneses por um elemento que o Brasil e os brasileiros ainda não haviam conseguido consagrar: a nação. O Japão era transformado em alvo de simpatia (mesmo que para certos leitores “inexplicável”), enquanto os russos (mesmo pertencendo à raça branca), governados pelo Czar Nicolau II, ao estarem associados ao regime monárquico autocrático, eram vistos negativamente pelos leitores, que relacionavam a “decrépita” monarquia russa à extinta monarquia brasileira. A nosso ver, uma série de ilustrações (cartuns) e artigos publicados nas revistas ilustradas O Malho e Revista da Semana durante os anos de 1903 a 1908 tiveram um importante papel na (re)formulação dos discursos presentes no imaginário coletivo nacional. Constatamos que, a partir desse primeiro momento, o Japão e os japoneses passaram a fazer parte do cotidiano da imprensa ilustrada brasileira. 2. Imagens do Japão: japonismo, guerra, costumes, propaganda e perigo amarelo. A veiculação pela imprensa nacional de imagens e artigos relacionados ao Japão no período anterior à conflagração da Guerra Russo-Japonesa praticamente inexistia. O pouco conhecimento público que se tinha sobre as “coisas do Japão” advinha em sua maior parte de obras produzidas por autores estrangeiros, que ainda veiculavam as imagens construídas pelo japonismo, no qual o “outro”, no caso o japonês, é idealizado por seus atributos estéticos, vistos pelo Ocidente como exóticos. Apesar da idéia de “perigo amarelo” rondar o mundo, notamos que seus efeitos no Brasil – naquele momento e fora do estrito círculo diplomático e político – não alcançaram tanta ressonância como nos Estados Unidos e outros países que já haviam recebido imigrantes japoneses em seu território. O imaginário nacional 58 Rogério Dezem - Elementos formadores do imaginário sobre o japonês no Brasil ainda estava em “lua-de-mel” com os valores retóricos e estéticos do japonismo. A intelectualidade e as autoridades políticas brasileiras somente começaram a se dar conta do pesadelo do “perigo amarelo” a partir do momento em que se tornou iminente a vinda dos “embaixadores do vitorioso Japão” (imigrantes japoneses) para o Brasil com os acordos selados em 1907. Desse modo, os anos de 1903 a 1908 representam um período de transformações na maneira como o japonês foi visto e representado no Brasil. Que imagens sobre o japonês foram materializadas mediante a influência dos discursos produzidos e veiculados durante a guerra? Que novos discursos essas imagens ajudaram a construir ou desmistificar? Devido à cobertura jornalística sustentada pelo O Malho e Revista da Semana a partir do início do conflito russo-japonês, os artigos e as imagens relacionadas ao Japão, até então inexistentes, passaram a ser publicados em quase todas as edições desses periódicos. Grande parte do material editado sobre essa questão foi reproduzida a partir da imprensa inglesa e francesa. Foi nesse contexto de “dúvidas” que pairavam sobre quem seria o vencedor do conflito recém-iniciado que a revista O Malho, na edição de número 77, de 5 de março de 1904, publicou em sua capa uma charge de autoria de K. Lixto (18771957), um dos grandes nomes da caricatura nacional. Importante lembrar que foi nessa mesma edição que teve início o Escrutínio Russo-Japonez. Na charge, que mostra o representante “russo” em luta com o representante “japonês”, um primeiro dado merece a nossa atenção: o modo original como o desenho da capa 1. “O Japão chinês”, charge de K. Lixto. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 51-64 - 2008 59 da revista foi idealizado com a utilização da técnica chamada trompe d´oil, que possibilita virar a página de cabeça para baixo de maneira que o contendor que está por cima fique por baixo, dando ao leitor a “liberdade” para escolher o provável vencedor... Outro dado é a figura do representante “japonês”, que, se olharmos atentamente, veremos que na realidade é a figura de um “chinês”, pois a trança (herança da dinastia Manchu na China) denota esse aspecto. Brincadeira de K. Lixto ou resultado do desconhecimento com relação ao Japão e os japoneses? A nosso ver, a imagem do japonês/chinês denota um certo “desconhecimento”, podendo ser considerada expressão do imaginário coletivo que, até certo ponto, ainda se mostrava ambíguo com relação aos orientais no Brasil. A princípio parece que não importava quem “vencesse” (ao longo da guerra nota-se que boa parte dos leitores da revista e da opinião pública “torcia” pelos japoneses) e que aos olhos do cartunista chineses e japoneses, ou seja, amarelos pareciam ser a mesma coisa. Confusão que, se realmente existia para alguns, foi desfeita após o término da guerra entre russos e japoneses. Com o objetivo de informar os leitores sobre quem era aquele “valente” oponente dos russos, foi publicada no decorrer da guerra uma série de artigos sobre os costumes japoneses. Quase nada se falava sobre a Rússia ou os russos. Parecia que a imprensa ilustrada nacional, acompanhando o espírito do escrutínio, estava deslumbrada com a possibilidade de um “país exótico e de raça amarela” vencer o “colosso branco russo”. Em quase todas as edições do ano de 1904 dos periódicos pesquisados identificamos artigos e imagens sobre a guerra. Na revista O Malho, por exemplo, foram criadas colunas semanais com o título de “Desenhos Japonezes” e “Costumes Japonezes”, enquanto, na Revista da Semana, os assuntos relacionados ao Japão faziam parte da seção “Curiosidades Mundiais”. O conteúdo dos artigos veiculados nessas colunas ainda idealizava os japoneses, não mais vistos sob a forma de uma inofensiva e misteriosa gueixa, mas como “Os voluntários da morte”, expressão de um artigo publicado na coluna “Costumes Japonezes”, de O Malho, em julho de 1904. O próprio epíteto, “voluntários da morte”, usado para designar os japoneses se faz impactante. Percebe-se que a intenção dos redatores era demonstrar a “sensível moral japonesa” ao descrever a importância dada às questões ligadas à honra, valor essencial na cultura japonesa. Segundo o artigo, era costume, caso um japonês fosse insultado ou cometesse algum ato que ferisse sua honra ou a de outro, se autopunir, como demonstração do reconhecimento do erro e da preservação da honra. Essa autopunição poderia se formalizar apenas em um ato simples de raspar a cabeça, ou, em casos mais extremos, terminar em suicídio. A “morte voluntária” no Japão – presente no 60 Rogério Dezem - Elementos formadores do imaginário sobre o japonês no Brasil imaginário japonês – era chamada de seppuku, que significa “ventre cortado” (leitura à moda chinesa, mais elegante e sábia). No Ocidente essa ação passou a ser conhecida pelo nome de hara kiri (leitura vulgar ocidentalizada). Costume que “mesmo adoçado pela civilisação ocidental” não deixava de ser extraordinário, podendo, segundo o autor (desconhecido) do artigo, servir de lição aos brasileiros “habituados a ver falhar a justiça publica, e até Divina (!)”.22 Outros artigos de cunho mais ameno, mas voltados para temas não menos exóticos aos olhos dos redatores e dos leitores, retratavam aspectos religiosos da cultura japonesa, como, por exemplo, o artigo “As Religiões Japonezas”, de autoria de F. Mendes Junior, publicado na seção “Curiosidades Mundiais” da Revista da Semana, em agosto de 1904. Aos olhos de Mendes Junior, o culto shintoísta era algo “bem simples”, pois o povo japonês, visto como portador de uma índole calma e de caráter tradicionalista, não apreciava as “cousas difficeis” e desse modo “seus deuses não eram exigentes”.23 Além disso, nas primeiras linhas do artigo, o autor sintetiza de maneira curiosa o modo como o Japão era visto até aquele momento, como um raro e extraordinário Museu: “Nada mais a propósito actualmente do que uma pequena indagação dos usos e costumes antigos dos japonezes. Até agora o grande império do Extremo Oriente era considerado como uma curiosidade que o resto do mundo civilisado ia ver e examinar como se fosse um raro Museu, em que se achasse collecionada toda multidão de pequenos objetos d´arte tão raros e tão apreciados pelos ocidentaes. Desta colleção, os seus homens constituíam a primeira e mais admirada parte do extraordinário Museu. Examinar um japonez ou uma japoneza, ir estudar os seus hábitos, apreciar os seus costumes, admirar sua atividade, constituía, como ainda hoje constitue, uma diversão ao mesmo tempo cara e almejada pelos europeus. (...) os japonezes, habitantes pequenos, nervosos, buliçosos, originaes em tudo, mas em tudo perfeitos até nas mais insignificantes cousas que elles usam”.24 A utilização de imagens de mulheres ocidentais em trajes típicos japoneses foi moda na Europa nas décadas de 1860 e 1870, quando o japonismo estava em voga. Essa moda persistiu no imaginário coletivo nacional pelos traços e artigos dos periódicos, que, em tempos de guerra, viam no Japão a personificação do soldado e em tempos de paz apelavam para a figura da gueixa. Exemplo dessa persistência foi 22. “Os voluntários da Morte”. In: O Malho. Rio de Janeiro, n. 97, ano III. 23 de julho de 1904, p. 23. Seção Curiosidades Mundiais – “As religiões japonezas”. Revista da Semana, n. 222, 14 de agosto de 1904, pp.1469-1471. 24. Idem. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 51-64 - 2008 61 a publicação em dezembro de 1905 do soneto “Gueisha – impressão”, de autoria de Olgario Carneiro da Cunha. No soneto, o autor descreve uma suposta cena, “inesquecível” para ele, na qual um marinheiro deposita um “sello breve” na fronte de uma “mimosa gueisha scismadora e bella” que vivia no “Japão sombrio”. Essa visão fez com que o autor, nas últimas linhas do soneto, repetisse consigo mesmo extasiado que gostaria de “ser marinheiro”.25 A simpatia pelo Japão e os japoneses também pode ser vista na publicidade dos mais variados produtos nas revistas ilustradas, que se utilizavam não só da imagem do japonês, mas também desse adjetivo para nomear alguns produtos. Esse foi o caso do Sabonete Japonez. As frases curtas de sua propaganda se fizeram constantes na revista O Malho26, transformando o sabonete em um produto quase milagroso: “O Sabonete japonez – Dá a cutis belleza, attractivos e encantos” “Torna os cabellos sedosos e perfumados” “Torna a pele fina e acetinada” Três anos após o final da guerra, em 20 de junho de 1908, logo após a chegada da primeira leva de imigrantes japoneses no Brasil, o xarope Bromil, em sua propaganda “Até no Japão!”27, publicava uma cena na qual aparecem uma gueixa e um oficial da marinha brasileira conversando sobre o clima do Brasil e as propriedades “milagrosas” do xarope. Notamos nessa representação a persistência de um imaginário ainda associado a idealizações baseadas em histórias como a da ópera Madame Butterfly (1904) de Giácomo Puccini. No início de 1908, O Malho publicou uma outra interessante propaganda de remédio intitulada “Entre Asiaticos”28, na qual, pela primeira vez, identificamos as figuras de uma mulher japonesa e de um chinês. No diálogo entre os dois representantes da “raça amarela”, ao ser questionada pelo chinês se estava no Brasil também para “povoar o solo”, a japonesa responde negativamente, dizendo ser “rica o bastante” e “não precisar trabalhar”. Podemos afirmar que nesse curto, mas simbólico diálogo ocorre a síntese do modo como eram avaliados os chineses, de tranças e em uma categoria abaixo dos japoneses, vistos como ricos e representados (ainda) pela figura feminina. 25. Gueisha – Impressão” por Olgario Carneiro da Cunha. Revista da Semana. Rio de Janeiro. n. 290, 3 de dezembro de 1905, p. 2932. 26. O Malho, Rio de Janeiro, n. 94, ano III. 2 de julho de 1904, p. 20. 27. “Até no Japão!”. O Malho. Rio de Janeiro, n. 301, ano VII. 20 de junho de 1908, p. 10. 28. “Entre Asiaticos”. O Malho. Rio de Janeiro, n. 227, 4 de janeiro de 1908, p. 40. 62 Rogério Dezem - Elementos formadores do imaginário sobre o japonês no Brasil Nos certificamos que mesmo após as transformações no cenário internacional e nacional ocorridas, algumas imagens relacionadas ao “amarelo” persistiram, enquanto outras desapareceram da imprensa ilustrada. O imaginário relacionado ao chinês/chim ainda veiculava os estigmas nascidos dos debates ocorridos trinta anos antes (Questão Chinesa, 1879), assim como no caso do japonês persistia a figura feminina e exótica. No entanto, após a Guerra Russo-Japonesa (1904-1905) criaram-se “novas imagens” do Japão, o que contribuiu para dissociar no imaginário nacional a sua imagem da dos chineses. Podemos afirmar que, até aquele momento e mesmo depois, nenhum elemento estrangeiro foi em tão curto espaço de tempo (1903-1905) retratado com tanto entusiasmo e euforia no Brasil como os japoneses. Notamos que, antes da chegada dos imigrantes japoneses ao país, as imagens veiculadas pela imprensa relacionadas a esse elemento ainda tinham um ar de exótico, de maravilhoso, feminino. Boa parte da opinião pública alimentava-se dessa forma de idealização da figura do japonês, que, ao desembarcar no Brasil, causou “estranhamento”. Apesar de o Japão ter se tornado uma potência, modelo de progresso a ser seguido, a chegada dos primeiros imigrantes japoneses colaborou para a diminuição da distância entre o “real e o imaginário”. O contato com o “real” fez com que esse elemento passasse a ser visto por parte da imprensa ilustrada – que até então o exaltara – de forma esteriotipada. Resgatou-se o arsenal de estereótipos utilizados anteriormente contra os chineses e agora, em um outro contexto, adaptados aos japoneses. Exemplo dessas mudanças pode ser visto no cartum “Immigração Japoneza”, publicado na revista O Malho, em dezembro de 190829. Muito parecidos com os cartuns publicados pela Revista Illustrada no final da década de 1870, as imagens e os discursos se fazem carregados de marcas negativas inspiradas em questões raciais, religiosas, culturais, sem falar nas questões de concorrência trabalhista, dado que o japonês aparecia como um sério concorrente do trabalhador nacional por conseguir “sobreviver” com salários mais baixos. A imagem desse imigrante em solo brasileiro passou a ser associada à de seu país, configurando-se como um elemento muito mais “perigoso” do que o chinês. A idéia de “perigo amarelo” que até então vinha sendo debatida e combatida em países como os Estados Unidos tornava-se uma (possível) realidade no Brasil, pois o japonês deixava de ser uma figura “imaginada” pelos intelectuais, políticos e periodistas nacionais para se apresentar como partícipe do cotidiano nacional. 29. “Immigração Japoneza”. O Malho, Rio de Janeiro, n. 325, ano VII. 5 de dezembro de 1908, p.9. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 51-64 - 2008 63 A opinião pública ainda mal havia “digerido” os elementos positivos e inofensivos do japonismo, misturados à euforia das vitórias do “Grande Japão”, quando os japoneses aqui aportaram, trazendo consigo um “novo” ingrediente a ser adicionado ao imaginário coletivo sobre a figura do oriental: o perigo amarelo ou, como os políticos e intelectuais norte-americanos denominaram, new Oriental peril. Bibliografia: DEZEM, R. Matizes do “amarelo”: a gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2005. GOMBRICH, E.H. Meditações sobre um cavalinho de pau e outros ensaios sobre teoria da arte. São Paulo: Edusp, 1999. Revista da Semana – Edição semanal ilustrada do Jornal do Brazil (1903-1908) Revista O Malho (1902-1908) SALIBA, Elias T. Raízes do Riso. A representação humorística na história brasileira: da Belle Époque aos primeiros tempos do rádio. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. 64 Rogério Dezem - Elementos formadores do imaginário sobre o japonês no Brasil As cidades, a fauna e a flora do Brasil no testemunho ocular de um viajante árabe Paulo Daniel Farah* Resumo: O imã bagdali ‘Abdurrahman al-Baghdádi viajou ao Brasil em um navio do Império Otomano na segunda metade do século XIX. Al-Baghdádi permaneceu aproximadamente três anos no Rio de Janeiro, na Bahia e em Pernambuco. No relato que escreveu sobre a experiência, o imã descreve as cidades brasileiras, sua flora, sua fauna e sua gente. Palavras-chave: Brasil, Islam, Árabe, viagem, descrição. Abstract: An Iraqi imam traveled to Brazil in a ship that belonged to the Ottoman Empire in the latter half of the 19th century. ‘Abdurrahman al-Baghdádi stayed about three years in Rio de Janeiro, Bahia and Pernambuco. In the book that Al-Baghdádi wrote about his experience, he describes Brazilian cities, its people, its flora and fauna. Keywords: Brazil, Islam, Arab, travel, description. ‘Abdurrahman al-Baghdádi, o primeiro viajante muçulmano de que se tem registro a deixar um relato sobre sua visita ao Brasil do Oitocentos, tece em seus escritos uma descrição minuciosa das cidades do país, de sua fauna, sua flora e sua gente, pelo prisma de um líder islâmico. Vindo ao Brasil em um navio do Império Otomano, em meados do século XIX, Al-Baghdádi foi identificado como autoridade religiosa por muçulmanos residentes no Rio de Janeiro, onde iniciou seu relato autobiográfico. À então capital do Império, “a mais grandiosa das cidades do Brasil”, reserva elogios: “É a capital do reino elevado: o clima é bom, a água abundante, as construções maravilhosas e foi moldada com base em premissas geométricas. Seus jardins são prazenteiros e seus passeios, perfeitos. Encontra-se a 22 graus de latitude sul e 45 graus de longitude leste, com frações de ambos os lados. O calor é intenso e o lucro no comércio, imenso. A cidade é sólida e bem construída”1. * Prof. Dr. da Área de Língua, Literatura e Cultura Árabe do DLO. 1. FARAH, P.D. (ed.) Deleite do Estrangeiro em Tudo o que é Espantoso e Maravilhoso. Argel, Caracas, Rio de Janeiro: BNA, BNV e BNR, 2007, p. 62. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 65-70 - 2008 65 Al-Baghdádi permaneceu no Rio de Janeiro, que abrigava o governo e o setor militar, durante aproximadamente um ano e meio, em um momento em que a cidade passava por transformações na infra-estrutura e em que praças e parques eram reformulados e novas construções erguidas em ritmo de urbanização acelerada. Pouco tempo após a visita do imã bagdali, em 1872, conforme o censo daquele ano indica, moravam na cidade 274.972 pessoas, das quais 48.939 escravizadas. Entre outros temas, o imã descreve o processo de despersonalização e recriação das identidades a que eram submetidos os escravos. Ao explicar como os habitantes do Rio de Janeiro se alimentavam, diz que “seus moradores não conhecem o cultivo do trigo e da cevada, e não há entre eles ninguém que esteja bem informado sobre isso. Comem farinha 2, e ela é a companheira deles. Trata-se [a mandioca] de uma espécie de planta parecida com a faia. Cultivam-na na planície. Quando alcança o grau de amadurecimento correto, eles a trituram para transformá-la em farinha em pó. É barata, e tanto ricos quanto pobres a comem igualmente. Substitui o trigo porque contém uma substância amilácea e de digestão muito rápida. Eu parei de comer pão de farinha de trigo, ainda que exista neste país, mas [o trigo] é trazido de fora e não se cultiva nesta terra. A farinha não é servida como pão. Se for posta em um molho de carne quente, fica parecida com a ‘aÆída3 e é comida como um caldo, com arroz e outros alimentos... O alimento da maioria das pessoas é a carne bovina. Eles não valorizam a carne de ovelha nem a de cabrito”4. Al-Baghdádi informa que a parada e a permanência no Rio de Janeiro não haviam sido planejadas, mas fruto de uma seqüência de tempestades. O comandante não tomara providências no que diz respeito à questão financeira e precisou pegar dinheiro emprestado em um banco do Rio de Janeiro para os reparos no navio, para a alimentação e para outros gastos relacionados à viagem. O consulado inglês serviu de intermediário para essa transação. O imã escreve extensamente sobre o Brasil. Acerca do processo de sua ocupação, afirma que se trata de “um território que pertence à América do Sul. Foi conquistado pelos filhos de Portugal, que despenderam um grande esforço para erguer e embelezar suas construções e sua arquitetura. Depois disso, nomearam um dos filhos de seus reis para governar o país. Mas ele se apoderou [do governo 2. O autor utiliza a transliteração em árabe da palavra farinha ()ﻪﻨﻴﺭﺎﻓ. 3. Espécie de mingau feito de farinha. Come-se – sobretudo no café da manhã ou em épocas festivas – com azeite e mel (ou açúcar) ou com grão-de-bico, lentilha e fava, entre outros alimentos que normalmente são triturados para servir de acompanhamento à ‘aÆída. 4. FARAH, P.D. (ed.), op.cit., p. 63. 66 Paulo Daniel Farah - As cidades, a fauna e a flora do Brasil... do Brasil], opôs-se ao pai e tornou-se independente dele”5. E, à margem do texto, complementa: “Eu acredito que o motivo da denominação Brasil é que este é o nome de uma árvore da qual se extrai uma tinta vermelha chamada Brazuh no idioma dos estrangeiros. Com ela, pinta-se a lã – e Deus sabe mais. A primeira vez em que essa região foi descoberta e passou a ser conhecida foi no ano de 1500 da era cristã. Conta-se que, antes disso, o povo de Djín já a conhecia – e Deus, o Excelso, sabe mais”6. O líder religioso também afirma que o país, “atravessado de oeste a leste pelo Rio Amazonas, o maior rio do mundo... que avança a água doce mar adentro por uma longa distância”7, possuía 40.000 militares, cerca de 85 vapores, navios de guerra e navios mercantes. Descrição da paisagem Em seu relato, o imã descreve a paisagem, tema indissociável da experiência do viajante do século XIX, e as cidades brasileiras pelas quais passou em suas missões de cunho didático: o Rio de Janeiro, Salvador e Recife. São nítidos no texto a sensação da grandiosidade do universo e o encanto que a floresta virgem – e os seres que nela habitam – despertam em Al-Baghdádi. Em uma seção reservada à “floresta que se estende do Brasil até o Sul da América”, afirma que “nestes reinos há uma floresta famosa cujo interior não se sabe o que abriga por causa da água abundante, de suas densas árvores, de seus animais selvagens estranhos e de seus grandes perigos. Mesmo que um cavaleiro eficiente cavalgasse ao lado da floresta durante um mês, noite e dia, não alcançaria seu final nem sua magnitude. E o mesmo vale para sua amplitude, conforme relataram os habitantes dessa terra (...) Observa-se, naquela floresta, durante a noite e à distância, uma luz como [a de] tochas. Diz-se que é a luz do ouro e das pedras preciosas. E há predadores ferozes, da espécie do tigre e da pantera, e vários tipos de macacos pequenos e diversos animais selvagens e estranhos” 8. Sobre as riquezas materiais, elabora: “O Estado utiliza papel-moeda por causa da escassez de ouro e de prata. A princípio, tinham esses dois metais, mas se diz que eles se esgotaram. E [o Brasil] possui uma quantidade enorme de dívidas”9. Al-Baghdádi descreve com curiosidade evidente os “povos selvagens de 5. ibid, p. 95. 6. ibid. 7. ibid, p. 96. 8. ibid, p. 110 9. ibid, p. 80. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 65-70 - 2008 67 humanos na América” e oferece uma explicação que revela o imaginário em torno da representação dos indígenas, o qual se compõe de seres maravilhosos cuja referência remonta a tempos longínquos: “Nestas terras, há grupos de seres humanos que descendem dos habitantes deste país que não foram civilizados nem subjugados. Os reis dos Estados não puderam comandar uma guerra contra eles porque não conseguem se defender. Eles vivem no interior da floresta e no campo aberto. Mantêm-se à sombra das árvores, como [se fossem] abetardas, com os corpos desnudos, de constituição grande e pés exageradamente grossos, que se distanciam da proporção de seus corpos. Contaram-me que, quando chove, abaixam a cabeça até o chão, erguem os pés10 e os utilizam como um guarda-chuva para se protegerem. Fazem [os pés] o que ele [o guarda-chuva] faz e evitam que seu dono se molhe (...) As mulheres possuem extrema beleza, seus cabelos vão até abaixo do joelho e prevalece neles um tom prateado e dourado”11 . A respeito de Salvador da Bahia (cuja pronúncia descreve minuciosamente: “[pronuncia-se] com duplicação do ‘yá’ vocalizado em ‘a’ no paradigma de ‘arabiyya12”), afirma que “é pequena em retidão, grande em extensão13 e intensa no calorão14 . Encontra-se a 17 graus e algumas frações de latitude sul e 38 graus e algumas frações de longitude oeste. Sua população em geral come farinha”15. Nessa cidade, Al-Baghdádi viu uma grande gaiola de prata repleta de pássaros de diversas espécies. O imã ganhou um papagaio que o impressionou ao imitar a convocação à oração. “Com freqüência, ouvia minha convocação à oração e logo a decorou pela observação, pois era rápido na compreensão e na imitação. Mas não respondia sobre o passado com exatidão”16 , informa. Os papagaios eram exportados do Brasil para muitos países, de acordo com a explicação do imã. 10. A referência aos seres de pés grandes já aparece em Plínio, o Antigo (23-79 d.C.), História Natural, livro VII. Diversos autores dos séculos XVI, XVII e XVIII mencionam seres maravilhosos como esses. Ver ALDROVANDI, Ulysses, Monstrorum historiae, cum paralipomenis historiæ omnium animalium, Bononiæ, 1642; BARTHOLIN, Thomas, Historiarum anatomicarum rariorum centuriae I et II, Hafniae, 1654-61; NIEREMBERG, Juan Eusébio, Historia naturæ, maxime peregrinæ, libris XVI distincta, Antuerpiæ, 1635; ROBINET, Jean-Baptiste, Considérations philosophiques de la gradation naturelle des formes de l’être, ou les essais de la nature qui apprend à faire l’homme, Paris, 1768. 11. FARAH, P.D. (ed.), op. cit., p. 121 12. Al-Baghdádi translitera a palavra Bahia em árabe ( )ﺔﻴﺌﺎﺒﺍcom o uso de uma hamza ( )ﺀe a indicação de uma ºadda ( )ﹽe da vocalização em fat®a ()ﹶ. Ademais, ao informar ao leitor que o paradigma para a pronúncia é a palavra ‘arabiyya ()ﻪﻴﺒﺭﻋ, indica a tônica do topônimo. 13. Há um trocadilho entre birr (benevolência, fidelidade, bem-fazer, retidão) e barr (terra, terra firme). Em árabe, a grafia dessas palavras é idêntica, pois Al-Baghdádi não registra os diacríticos. 14. A frase se completa com a rima entre barr (terra) e ®arr (calor). 15. FARAH, P.D. (ed.), op.cit., p. 84. 16. ibid, p. 85. 68 Paulo Daniel Farah - As cidades, a fauna e a flora do Brasil... Outro animal que despertou sua atenção foi a baleia, cuja pesca, bastante rentável, observou em um navio a vapor. “Nela [na baía de Todos os Santos, a maior baía do Brasil], pesca-se um grande peixe, que é chamado entre eles de ‘baleia’ – [pronuncia-se] no paradigma de máhiyya com duplicação do ‘yá’17. A grande [baleia] é vendida por cerca de mil libras e por menos que isso se vende a pequena. Quando uma foi pescada, eu subi no vapor e fui até lá para observá-la. Vi um animal espantoso cuja cabeça tinha a metade de seu corpo aproximadamente... É extremamente forte ao defender-se, sobretudo caso sua fêmea seja pescada primeiro. Em tal caso, pode destroçar o barco, sem desistir, até salvá-la. Retira-se do cérebro desse animal uma quantidade de quarenta barris de óleo, e de alguns se extraem mais, como eu mesmo observei. E todos aqueles que pescam recebem remuneração [fixa] dos comerciantes. E na pesca fazem uso de estratégias que deslumbram os pensamentos”18, relata. Comparação entre as frutas locais e as árabes O imã bagdali fala da grande variedade de frutas que encontra no Brasil e se impressiona com seu aspecto, sabor e diversidade. Ele afirma que há no país cinqüenta variedades de frutas inexistentes no Oriente, “à exceção de uvas, romãs e cocos, que são extremamente comuns e baratos”. Ao descrever as frutas brasileiras, procura compará-las à noz, à romã, à tâmara e à uva, entre outras. Em uma provável referência à jaqueira (Artocarpus heterophylla), diz: “Neste país há uma árvore do tamanho da grande nogueira; ou melhor, é ainda maior. Possui frutos maiores do que a abóbora, pendurados no tronco e nos grossos galhos da árvore. A parte externa assemelha-se à pele de um crocodilo e seu interior, a olho, tem o aspecto de uma romã, embora a semente seja como uma tâmara, e no interior de cada semente há um núcleo semelhante [à semente]. Seu sabor se parece com um doce feito de farinha e mel”19. Em seguida, afirma que no Brasil “há um fruto que se assemelha a um marmelo na cor e no tamanho. Nada nele é comestível; é como uma esponja cheia de água. Tem uma única semente que a separa dos galhos da árvore. Naquela água, prevalece a acidez, então a adoçam com açúcar. Assim, ela causa na boca o mesmo efeito que a essência de menta, mas é mais gelada por dentro e mais benéfica”20. O autor parece descrever o caju, fruto do cajueiro (Anacardium occidentale). 17. Al-Baghdádi translitera a palavra “baleia” em árabe ( )ﻪﻴﻠﺎﺒe indica a ocorrência de uma ºadda ( )ﹽsobre o “yá” para facilitar a pronúncia. 18. FARAH, P.D. (ed.), op.cit., p. 85. 19. ibid, p. 97. 20. ibid, p. 97. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 65-70 - 2008 69 Nessa seção reservada às frutas, afirma ademais: “O que se relatou sobre a origem de uma árvore como um grão semeado no cérebro de um ser humano creio tratar-se de mitos desses povos. E Deus, o Excelso, sabe mais”21. Ao ver peles de cobra à venda e transmitir as histórias que ouviu acerca da sucuri, Al-Baghdádi exalta o Criador (“Sublime é o Criador, que exalta o que Ele quer e o que Ele escolhe, isento, em suas ações, de tolice e artificialidade”). A respeito das sucuris relata que “engolem um grande touro e (...) quando elas enchem o estômago de alimento, adormecem e ficam como uma grande montanha”. Embora a maioria dos cientistas considere fruto da fantasia popular a informação de que tais cobras possam comer um boi, de fato elas se alimentam de animais como capivaras, jacarés e veados. Ademais, antes da presença humana intensa nas regiões de seu hábitat, tais cobras poderiam ter vida mais longa e até se desenvolver mais. As sucuris costumam medir aproximadamente 8 metros, mas já foram encontradas espécies com até 11 metros e mais de 400 kg. A terceira cidade visitada por Al-Baghdádi, Recife, cativou sua atenção pela “inclinação para os quadrados mágicos, a geomancia, a numerologia e o sentido místico das letras”, pelo calor intenso e pela industrialização. “Esta cidade é mais quente que a primeira e fica a oito graus da linha do Equador. Se o Sol brilhasse continuamente, queimaria os habitantes, mas, devido à sabedoria do Uno, do Benfeitor, sempre chove (...) Há nesta cidade uma ponte22 de ferro sobre uma baía ampla; seu comprimento é de cerca de uma milha e sua largura, de quinze braças. E é um prodígio para a contemplação. Os moradores em sua totalidade não exercem nenhum trabalho durante o dia. E os que executam os serviços são os negros porque têm uma capacidade extraordinária de suportar o calor intenso, ao contrário dos brancos. Todos os habitantes são grandes comerciantes, possuem fábricas e têm grandes conhecimentos sobre as indústrias. Nesta cidade, há diversos fortes, cidadelas e construções fortificadas”23. O imã passou seu terceiro Ramadã em Pernambuco (o primeiro foi no Rio de Janeiro, onde também presenciou a Páscoa, e o segundo, na Bahia) antes de iniciar a viagem de retorno rumo a Damasco e, posteriormente, a Istambul, seu destino final. 21. ibid, p. 98. 22. Referência provável à Ponte Santa Isabel, situada sobre o rio Capibaribe. Inaugurada em 1863, foi idealizada pelo arquiteto francês Louis Léger Vauthier e construída pelo engenheiro inglês William Martineau. Trata-se da primeira ponte de ferro de Recife. 23. FARAH, P.D. (ed.), op.cit., p. 113. 70 Paulo Daniel Farah - As cidades, a fauna e a flora do Brasil... A “fórmula do horror à russa” na belle époque brasileira Bruno Barretto Gomide* Resumo: Quando leitores de todas as partes do mundo descobriram a literatura russa em fins do século dezenove, freqüentemente associaram-na a noções de contraste e de excesso. Este trabalho apresenta brevemente alguns textos (narrativas pseudo-russas, fantasias literárias, ensaios) publicados no Brasil do fim de século e da belle époque e marcados pela tonalidade patética. Palavras-chave: Literatura russa, literatura comparada, Dostoiévski, belle époque, melodrama. Abstract: When readers all over the world discovered Russian literature in the end of the Nineteenth Century, they frequently linked it with notions of contrast and excess. This article briefly discusses some texts (pseudo-russian narratives, literary phantasies, essays) published in fin-de-siècle and belle époque Brazil and marked by such pathetic tonality. Keywords: Russian literature, comparative literature, Dostoevsky, belle époque, melodrama. - 1 - Do Japão ao Uruguai, passando pelos centros decisórios do sistema literário internacional, a grande novidade de meados da década de 1880 foi a descoberta em bloco dos romancistas russos. O boom do romance russo a partir daqueles anos foi o primeiro caso de atribuição de um sinal positivo a uma literatura vinda da periferia cultural européia: graças a estratégias editoriais pujantes e a um esforço crítico extremamente bem- sucedido, leitores, críticos e ficcionistas mundo afora logo viram naqueles artistas, vindos de paragens tradicionalmente consideradas infensas às coisas do espírito, formas de ruptura na literatura e novas modalidades de junção entre moral e estética1. * Professor Doutor na Área de Língua e Literatura Russa do Departamento de Letras Orientais da FFLCH – USP. 1. Um panorama desse boom pode ser encontrado no segundo capítulo de GOMIDE, Bruno. Da Estepe à caatinga: o romance russo no Brasil (1887-1936), 2004. 71 Essa grande novidade literária, que gerou respostas das mais criativas e radicais na crítica e na ficção, veio acompanhada de lugares-comuns que, em parte, foram responsáveis pelo êxito social daquela “nova” literatura e pela correlata transformação da Rússia em um cenário simbolicamente válido nas discussões sobre arte e cultura finisseculares. Em especial, ganhou corpo a idéia de uma alma russa, ou de certos traços nacionais estáveis, creditáveis à mesologia ou a fatores psicológicos, traços obrigatoriamente associados ao excesso e a extremos. São caracterizações que se encontram em alguma medida na tradição intelectual russa, mas que ganharam força de lei em certas camadas da recepção ocidental, e associaram a Rússia, seus escritores, cada texto que estes produziram, a uma espécie de exótico lugar da desmedida e da não-civilização, para o bem ou para o mal. Profundidades insondáveis e arroubos místicos: nessa acepção, o pathos deslizava com freqüência para o patético mais ardente, envolvendo a literatura russa em significados próximos ao êxtase religioso. Olhando em retrospecto, Mário de Andrade abespinhou-se com o intermediário francês através do qual o romance russo se difundira nas últimas décadas do século XIX, e quis resgatar a energia primitiva existente na literatura russa, comparável, a seu ver, com certas potencialidades da cultura brasileira. Considerava que o “gosto absorvente pela Rússia” de Paul Morand era sintoma de decadência, de cansaço e da fadiga da França em seu habitual papel civilizador.2 No entender de Mário de Andrade existe um núcleo dostoievskiano que evidentemente é produtivo para as discussões literárias, fundamental, até, para as direções da arte moderna, mas que tem que ser permanentemente escoimado de lugares-comuns. Tendo em mente o surrealismo, Mário afirma: “Os franceses estão fazendo do subconsciente o que fizeram da psicologia de Dostoiewsky quando começaram a usar uma fórmula do horror à russa, outra do abismo psicológico, outra da simultaneidade dos sentimentos contraditórios.”3 O brasileiro faria considerações similares em outras duas ocasiões. Em 1935, lamentava a “moda Dostoievski” e a “moda russa” postas em circulação pela França.4 Na segunda edição de Compêndio de história da música (1933), aludiu à “moda russa que ridiculamente tomou o mundo desde a última década do século passado”, apêndice indesejável da difusão do gênio musical de Mússorgski e da “escola russa”. O interessante é que a primeira edição do compêndio de Mário, publicado quatro anos antes, trazia a mesma passagem, porém sem o “ridiculamente”. Este foi uma das adições feitas na revisão da edição 2. ANDRADE, Mário de, resenha do livro “L’Europe galante”, de Paul Morand, ago. 1925. 3. ANDRADE, Mário de, resenha da revista “Estética n. 3”, ago. 1925. 4. ANDRADE, Mário de, “Decadência da influência francesa no Brasil” (1935), 1993. 72 Bruno Barretto Gomide - A “fórmula do horror à russa”... posterior.5 Na virada da década de vinte para a de trinta, cresceu a impaciência do escritor com o tributo que Paris exigia da cultura russa. - 2 - Os paroxismos do que se considerava fatidicamente a “alma russa”, envolvida em mistérios estetizados, foram facilmente adaptados pelas tendências culturais do fim de século e da belle époque. Assim o comentarista “Fantasio”, da Cigarra, anunciava a presença, no Rio de Janeiro, de um telepata de nome russo, “(...) cuja terminação em off já traz em si um grande mistério, como tudo quanto é russo”.6 E o texto informativo de Leitura para todos sobre o lançamento de uma edição francesa das Notas do subsolo proclamava que os leitores certamente se assustariam com os “contrastes impressionadores de ferocidade e compaixão” encontrados na referida obra.7 Feita a transformação da Rússia e de sua literatura em topos vitalista ou decadente, literatos dos primeiros anos do século vinte prodigalizaram uma série interminável de variações sobre o tema. Veja-se esta extensa citação do quintessencial polígrafo Tomás Lopes: Antes da guerra com o Japão, a Rússia tinha um raro encanto aos olhos de uma geração nova, dominada pelo Evangelho de Tolstoi, comovida pelo gênio de Dostoiewsky, embalada pelas doces lendas de Pouckine, de Tourgueneff, de Gogol, de Kropotkine, de Gorky, afastada do modo de sentir da Raça Latina no Brasil pelo muito que lia, que pensava, que sonhava nas literaturas do Norte da Europa e nas filosofias exóticas. E havia também a paixão do desconhecido: Moscou, por exemplo, era uma cidade verdadeiramente santa; S. Petersburgo um hino ao poder maravilhoso do Imperador, e ao mesmo tempo uma gracilidade da neve e das formas brancas. Do Rio de Janeiro ninguém sabia ou queria saber. Pouco importava que o Pão de Açúcar desabasse e se afogasse; o essencial era que as Ilhas do Neva (que nem um de nós conhecia) continuassem a ser um ponto elegante no inverno. Lembro-me mesmo que uma vez encontrei o Paulo Barreto (nesse tempo ainda não era o brilhante João do Rio) muito nervoso por ter lido numa revista mal informada a possível destruição dos jardins de Peterhoff. Pouco antes tinha caído, vencido por um machado ignaro, e lembrado apenas pelos Cronistas o Baobá gigantesco da Praça da Glória.8 5. ANDRADE, Mário de, Compêndio de história da música, 1933, 2a ed., pp. 144 e 145; ANDRADE, Mário 6. FANTASIO (pseud. Olavo Bilac). “Crônica”, 4 jul. 1895. 7. “Livros Novos”. Leitura Para Todos, abr. 1909. Trata-se provavelmente da edição Le sous-sol. Roman suivi de deux nouvelles inédites. Paris, Fasquelle, 1909. Tradução de J.-W. Bienstock. 8. LOPES, Tomás. Histórias da vida e da morte, 1907, pp. I-II. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 71-86 - 2008 73 O comentário sobre a deliqüescência nevrótica gerada em torno da cultura russa não impediu o autor de enfileirar, na seqüência do mesmo livro, alguns contos (Histórias da vida e da morte, comentados adiante) que são desenvolvimentos da “gracilidade da neve e das formas brancas”. Do mesmo modo, a condessa de Tarnowska, evocada por Gilberto Amado, já está devidamente codificada na chave finissecular das “belas damas sem misericórdia”, de psicologia inescrutável e capazes de atos extremados: Há individualistas e socialistas, cristãos e ateus, divididos nas suas doutrinas, mas aproximados por essa singularidade: todos detestam a mulher. De Tolstoi a Dostoiewski não há deparar exceções. Não só na Rússia, mas nos outros países setentrionais o mesmo sentimento domina entre romancistas e dramaturgos. Todos encarnam na mulher a origem do mal; dão-lhe instintos de fera, insensibilidades mórbidas, extravagâncias grotescas (...) Que sedução não será a desses músculos ágeis de cobra onde a energia fagulha; que maravilha a desses olhos sinistros de opala fria; desses gestos ante os quais a vontade dos homens abdica como diante de uma ordem divina! 9 Em tempos de amor ambíguo, eis o romance russo conforme apresentado por Mario Praz: Nastássias Filípovnas, filhas dos caminhos ocultos de Poe e Baudelaire e netas do Marquês de Sade.10 Enquetes galantes também eram locais adequados para a inserção de feixes da literatura russa. Entre 1916 e 1917 a revista Seleta fez uma série de “reportagens confidenciais” com senhoras e senhoritas da sociedade fluminense. O quesito “escritores prediletos” (havia também flor, cor, principal defeito, traço caraterístico do caráter, sonho de felicidade, etc.) traz várias menções a Tolstói. Laura Correa Hasslocher, uma das entrevistadas, não cita nenhum romancista russo. Entretanto, à pergunta “a minha divisa”, responde solenemente: “Nitchevo!” – “nada”, em russo.11 Divisa sem dúvida tributária do “niilismo”, construto filosófico-político atribuído aos russos desde as agitações sociais amplamente acompanhadas pela imprensa ocidental nas décadas de 1870-1880, mas que aqui ganha sobretons de artificialismo estético. 9. AMADO, Gilberto, “Vênus fulva” (1910). Em: A Chave de Salomão e outros escritos, 1914, pp. 62-63. Amado referia-se a certa nobre russa que cometeu um crime em Veneza. O acontecimento foi relatado em: “O mês no estrangeiro – uma tragédia eslava em Veneza”. Leitura para todos, mar. 1910. Na mesma linha, Amado escrevia sobre o “individualismo violento”, de inspiração nietzscheana e “cujos antecedentes literários andam pelas obras de Dostoiewski, pela tragédia dannunziana Piu che l’Amore (...)”. AMADO, Gilberto, “Crime e Suicídio”, 1914, p. 83. 10. Cf. PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica, 1996, especialmente pp. 282, 307308 e 310. 11. HASSLOCHER, Laura. “Reportagens confidenciais”, 4 nov. 1916. 74 Bruno Barretto Gomide - A “fórmula do horror à russa”... Seleta publicou ainda uma fictícia fantasia epistolar entre três mulheres, que consiste numa suma da conexão frenética entre romance russo e “alma russa”. “Renata” é carioca, mas nunca saiu da capital, “Maria da Graça” é a provinciana e “Magdala” é a esteta decadente. Mora num palácio em Florença “a sorrir o seu sorriso triste” e a dispensar conselhos sobre, entre outras coisas, literatura russa, da qual é sacerdotisa-mor. A “remessa” de missivas começa quando Renata solicita a Magdala mais noções sobre os pré-rafaelitas. Em troca, promete-lhe: (...) uma copiosa leitura dos russos. Ensaiei um pouco o teu Gorki e não me dei mal com ele... Mas não me peças os anarquistas sem literatura, por Deus! Ainda ontem dois senhores da Academia Brasileira trocaram tão furiosamente idéias sobre eles, aqui em casa, que acabaram por já não saber mais quais eram as próprias asneiras e atribuíamse reciprocamente as que afirmavam no começo da discussão. Resultado: a abertura dos nossos salões foi um fiasco.12 Magdala felicita a amiga pela aproximação com o evangelho russo: Tu me pareces disposta a grandes leituras, e eu te felicito por isso. E também porque não queres saber dos anarquistas russos, sem literatura, embora não saiba o que entendes por isso. Todo o anarquismo russo, Renata, é literatura. O anarquismo russo sem literatura é o errante sem pão, sem lar, abandonado à neve, aos ursos das estepes, e que mal percebe o que os grandes anarquistas – Dostoiewsky, Tolstoi, Gorki... – lhe dão em páginas que nunca ele deverá ler. Hei de te falar mais tarde, noutra carta, da alma russa, da alma triste e dolorosa do Eslavo. Perceberás melhor o anarquismo russo através de um perfil dessa gente que eu amo tanto, e em cujo convívio eduquei a minha emoção de americana nos trópicos. Prometeste-me a sério uma copiosa leitura dos Russos. Prometo-te, por minha vez, muitas sensações russas, que vivem na minha alma de iniciada na Grande Religião...13 Maria da Graça, por sua vez, entra na conversa e se torna mais uma adepta da doutrinação russa de Magdala: Queres saber o que eu li? – as Vidas dos Santos e O Crime e o Castigo de Dostoïewsky! Papai não gostou de me ver agarrada ao terrível romance; disse que, com a minha mania de ler tudo, eu terminarei no hospício. Os pais não gostam das filhas muito inteligentes! É uma verdade, minha amiga...14 Na carta seguinte, Renata faz uma pausa nas profundezas russas e fala do clima do Rio, dos malefícios do sol para a pele e da desgraça de não poder usar peles no clima tórrido. Na seqüência, Magdala retoma a sua missão e dá a entender que o amor pela literatura russa nasceu em uma temporada passada no país: 12. “Cartas femininas”, 9 jun. 1915. 13. “Cartas femininas”, 16 jun. 1915. 14. “Cartas femininas”, 23 jun. 1915. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 71-86 - 2008 75 (...) A minha alegria de retornar a Florença e a minha tristeza de abandonar a Santa Rússia dos meus encantos, nem t’as posso dizer! Com certeza isso não pelo prazer que eu tivesse em escutar a todo o momento milhares e milhares de bocas a entoarem, num patriotismo religioso, o Bojê Tsara Krani! Silni dero jarni, stsar stouvyna slavouna slavounam... que é, nestes tempos de sangue e de destruição, o hallali com que aquele povo de alma mística investe contra as hostes inimigas... Nem porque a felicidade de me encontrar novamente em Florença seja menor. Às vezes cuido explicar o que vai em mim, numa cisma que me diz que eu poderia sentir ainda mais Florença, se os meus quinze meses de Rússia fossem trinta, sessenta, fossem mais... Contudo esses poucos meses já me bastaram para encontrar uma Florença diferente daquela outra que eu vira, apenas com os olhos de... ocidental.(...) A paisagem só exprime o que existe em nós, na nossa alma. Ainda me lembro da sensação que me deu o primeiro crepúsculo do Neva... Havia uma cruz e o pope ia abençoando aquelas cabeças em contrição. Entretanto o que os meus olhos deveriam ter visto: alguns vaporetti arrepelando as águas que rebrilhavam; a silhouette de uma ponte e uma multidão de operários que ia a recolher.15 Magdala voltaria à carga em cartas subseqüentes, mas, no começo de 1916, a revista pôs fim a esses eflúvios da alma russa e encerrou a série das cartas “russas”. - 3 - Era comum trazer tais topoi de excesso e desmedida com coloração russa às onipresentes “fantasias” literárias de inícios do século vinte. Algumas misturam temas do repertório político “niilista”, referências ao romance russo e procedimentos do simbolismo e do decadentismo. Em “Decadência”, Coelho Neto relata a vida de duas princesas, uma alemã, outra russa, ambas caídas na miséria. As agruras dessa última desafortunada são tecidas à imagem e semelhança da “Krotkaia de Dostoiewsky”,16 trazida para o miolo da narrativa como referencial para uma situação que beira o melodrama. Talvez Coelho Neto tivesse em mãos a edição da Plon traduzida por Halpérine-Kaminsky em 1886, da qual constava, além de Krotkaia, o arqui-sentimental L’arbre de Noel e seus extremos de patético (existentes em Dostoiévski, reforçados pela tradução/adaptação).17 Outra situação-limite é apresentada na trajetória folhetinesca do aventureiro “Steelman”: 15. “Cartas femininas”, 7 jul. 1915. 16. NETO, Coelho, 1925, p. 74. 17. BOUTCHIK, V, Bibliographie des ouvres littéraires russes traduites em français. 76 Bruno Barretto Gomide - A “fórmula do horror à russa”... Na Rússia, Steelman comprometeu-se no niilismo, aliando-se, em pacto tremendo, com os impulsivos do otchaiane. Fez-se apóstolo da regeneração, adorou o mujik e preparou uma bomba que explodiu à beira de linha férrea dois segundos depois da passagem dum trem imperial e, uma tarde, à margem do Neva, depois dum conflito, foi espezinhado por um esquadrão de cossacos ficando sobre a neve, com o corpo em pandarecos, e uma costela a pedir solda.18 Uma palavra enigmática exige explicação. “Ottcháianiie” (“desespero”) foi definida no ensaio O romance russo, do visconde francês Eugène-Melchior de Vogüé, texto de 1886 que foi a pedra de toque da recepção crítica da literatura russa no ocidente, como a espécie de paixão dolorosa (passion doloreuse) que seria o fundamento das narrativas dostoievskianas. É através desse termo russo que o crítico francês busca definir aquela qualidade excessiva, especialmente visível na composição das personagens e em sua complexa psicologia, que impressionou tantos leitores de Dostoiévski: A maioria destas naturezas pode ser reduzida a um tipo comum: excesso de impulsividade, a otchaïanié, este estado de coração e de espírito para o qual me esforço em vão para encontrar equivalente em nossa língua. Dostoïevsky analisa-o em muitos pontos: É a sensação de um homem que, do alto de uma torre elevada, debruça-se sobre o abismo aberto e experimenta um frisson de volúpia ao pensar que poderia atirar-se de cabeça para baixo. Mais depressa, e terminemos! ele pensa. Às vezes são pessoas bastante calmas e comuns que pensam assim... O homem encontra gozo no horror que inspira aos outros... Estende sua alma em um desespero frenético, e este desesperado pede o castigo como uma solução, como qualquer coisa que “decidirá” por ele.19 O imaginário da belle époque, altamente favorável aos surtos nevróticos do romance russo, confirmava que os textos de Dostoiévski estavam sob a égide do ottcháianiie, numa simbiose entre a consciência desarranjada então atribuída aos eslavos, a deliqüescência mórbida decadentista e a força normativa da psicopatologia criminal. O mesmo ponto já havia, aliás, atraído a atenção de um dos primeiros resenhistas da literatura russa no Brasil. Em 1888, o gaúcho Germano Hasslocher comparou as Recordações da casa dos mortos com A carne, de Júlio Ribeiro, e viu na volúpia do servo chicoteado delineada naquela primeira obra justamente o “excesso de impulsividade” a que Vogüé se referia.20 Segundo o francês, as Recordações da casa dos mortos estavam eivadas de exemplos de ottcháianiie: a morte de Mikhailov e a história do “velho-crente, de conduta exemplar, que lança 18. NETO, Coelho, 1925, p. 346. 19. VOGÜÉ, Melchior de, 1888, p. 227. 20. HASSLOCHER, Germano, 1888. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 71-86 - 2008 77 uma pedra ao comandante unicamente para ser passado pelas varas, ‘para sofrer o sofrimento’”.21 Um curioso conjunto de contos “pseudo-russos” – narrativas escritas com temas e personagens russas, tentando de alguma forma reproduzir o efeito da “nova” literatura – escritos nos primórdios do século vinte nos ajudará a continuar o percurso. A existência de temas russos na literatura ocidental antecede o boom do romance de Dostoiévski e Tolstói em fins do século dezenove. Balzac escreveu uma “novela russa”, narrativas românticas fizeram dos eslavos bons selvagens e a aliança franco-russa, dos anos 1870 em diante, montou obras e mais obras a partir de estereótipos da vida russa. O folhetim firmou sólido e duradouro pacto com o “tema” russo; cossacos deram colorido a incontáveis romances de aventuras.22 Embora seja difícil separá-la completamente dessa tradição, há uma forma de narrativa pseudo-russa umbilicalmente dependente do boom, em que aparece a marca dos novos temas críticos e dos romances recém-aparecidos. O próprio Melchior de Vogüé, primus inter pares da crítica receptiva ao romance russo, não resistiu à tentação e escreveu novelas pseudo-russas. Reuniu-as no volume Coeurs russes.23 O visconde tentou recriar a modulação turguenieviana, apresentando caçadores e servos imersos em melancolia senhorial. Arriscou também uma estória semi-gótica, com enforcamentos e indivíduos aparentemente mortos que ressuscitam. Ou seja, aqueles momentos excessivos que o leitor, segundo o jovem bacharel Clóvis Bevilacqua, escrevendo pioneiramente sobre Dostoiévski em 1889, tinha que fazer “esforços terríveis para suportar”.24 Contos e Crônicas (1922), de Felício Terra, e Histórias da vida e da morte (1907), de Tomás Lopes são exemplos brasileiros desse micro-gênero. Os contos que os compõem foram publicados originalmente nos primeiros anos do século vinte. Felício Terra (pseudônimo de Nuno de Andrade) publicou seus “pseudorussos” durante a guerra russo-japonesa. A polaridade maniqueísta gerada pelo evento será um dos muitos elementos melodramáticos presentes nos contos. O autor não faz a menor questão de esconder que a Rússia – e, mais do que ela, a 21. VOGÜÉ, Melchior de, 1888, p. 227. Um comentário sobre o “ottcháianiie” está em BACKÈS, Jean-Louis, “Le Roman russe et l’esthétique du roman”, 1989, p. 30. 22. Para uma compilação extensa de temas russos na Inglaterra, dos primeiros contatos elizabetanos até romances de espionagem da Guerra Fria, cf. CROSS, Anthony, Under western eyes, 1517-1825, 1971; do mesmo autor, The Russian theme in English literature, from the sixteenth century to 1980, 1985. Na América Latina, cf. SCHANZER, Georges, Russian literature in the Hispanic world: a bibliography, 1972. 23. Uma delas foi publicado na revista Primeira, a 10 abr. 1929, com o título “O tempo da servidão.” 24. BEVILAQUA, Clovis, 1889. 78 Bruno Barretto Gomide - A “fórmula do horror à russa”... autocracia russa – é um vilão digno dos piores momentos de Eugene Sue. O Japão, por sua vez, é um herói de alma pura.25 Para pintar o quadro, Terra valeu-se das “negras cores da indignação e do asco” empregadas pelo “solitário Isnaia (sic)”26 para descrever o despotismo russo. As narrativas tratam de acontecimentos e personagens ligados ao conflito de 1905, ou a episódios da perseguição aos “niilistas” dos anos recentes. Quase todos os contos são cenas de tribunal ou de cárceres subterrâneos.27 Em “Madame Stoessel”, a mulher do comandante caído em desgraça após a derrota naval confronta o conselho de juízes tiranos, culpa a tirania russa “e despedaçando o vestido para mostrar o flanco desnudado em que os cacos de metralha gravaram extensa cicatriz vermelha, gritou, pela terceira vez – Stoessel!”. A atitude surte o efeito típico das reviravoltas melodramáticas: “Todos baixaram as pálpebras. Aquela cicatriz irradiava como um sol, e os farrapos do vestido brilhavam como auréolas”.28 “No calabouço” apresenta a mesma situação: o encontro folhetinesco entre uma princesa e o assassino de seu marido, vítima de bomba niilista. Crime e castigo: o bandido andrajoso, à beira de virar nobre, e a princesa, tornandose aos poucos prostituta misericordiosa, entabulam conversa improvável sobre a intensidade dos respectivos sofrimentos. O preso faz longo discurso sobre a brutalidade da autocracia, prostra-se aos pés da princesa e pede-lhe perdão pelo ato nefando. Reproduz, enfim, a “religião do sofrimento”, noção que Melchior de Vogüé, a partir do encontro entre Raskólnikov e Sônia, situou no cerne do universo dostoievskiano, e assim a transformou em uma das intervenções críticas mais decisivas jamais escritas. O tema da prostituição, numa narrativa banhada do início ao fim de ottcháianiie, está explícito em “Lina, de Moscou”. Novamente, juiz e acusada estão frente a frente. Lina era acusada de ter assassinado quatro soldados. Quando da captura, “fora surpreendida a beijar um punhal, com fervor de alucinada, talvez com requintes de alucinada, talvez com requintes de carniceira”. Lina, cujas mãos “tremiam, como 25. Para não deixar dúvidas, veja-se, resumidamente, como ele descreve Oyama, o líder militar japonês: “(...) brando, profundamente religioso, admiravelmente estóico; insensível ao medo e bravo por temperamento; clemente, justiceiro e sábio; (...) esmoler, sensitivo, artista, às vezes poeta, crente inabalável da supremacia asiática do Japão e nas magnificências da futura vigília mongólica; (...) misto de matemático e de teólogo, de taumaturgo e de aventureiro (...)” TERRA, Felício, Contos e crônicas, 1922, pp. 156-157. 26. Idem, pp. 171-172. O autor refere-se de forma arrevesada a Tolstói. 27. Livros como os de Stepniak pintavam quadros terríveis das prisões russas, e é certamente a essas referências que Terra se voltava quando compunha seus contos. 28. TERRA, Felício, op. cit, p. 23. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 71-86 - 2008 79 se o frio do aço houvesse provocado estranhas crispações de gozo”,29 sentia a volúpia do martírio, identificada por Vogüé no homem prestes a arremessar-se ao chão e no velho-crente supliciado pelo chicote siberiano. E também atribuída por Gilberto Amado aos “músculos ágeis de cobra” da condessa Tarnowska, que era, lembremos, a “mais estranha alma de mulher que jamais conheceram os narradores de melodramas”. Lina, contudo, matou-os porque haviam atentado contra sua pureza, lançando-a no meretrício. A revelação é suficiente para desconcertar o magistrado e torná-lo presa da nevrose: O juiz aproximou-se da desventurada, e insensivelmente tentou despedaçar as algemas com as unhas. Queres fugir, filha? – inquiriu o juiz, rangendo os dentes e com as pupilas enormemente dilatadas, como as do agonizante. Queres fugir, mártir? Perguntou ainda o juiz, colando os lábios febris nas mãos geladas da assassina. (...) O juiz inteiriçou o corpo, distendeu os músculos num largo espreguiçamento felino, tomou o punhal de Lina, deu um grito de desespero e correu, delirante, pelo corredor afora... - Quero matar o grão-duque... quero reabilitar a dignidade humana... quero vingar o infortúnio da Rússia... E brandia o punhal, com a fronte gotejando suor, os cabelos hirtos, a boca cheia de escuma... Estava louco. As Histórias da vida e da morte de Tomás Lopes contêm narrativas de temática diversa; as “russas” estão agrupadas na seção “Páginas mascaradas”, que o autor, conforme o prefácio deixa transparecer, considerava o eixo do volume. O experimento não foi publicado em edição obscura: veio a lume pela Garnier, que, aliás, editou outras obras do autor. Morto precocemente, em Paris, Lopes deixou número considerável de livros publicados. Totalmente esquecido nos dias de hoje, não se trata, pelo menos no que diz respeito à circulação de seu nome entre os contemporâneos, de um pobre-diabo de bulevar. O prefácio, assinado de Paris, oferece pequeno relato dos meandros da composição e publicação das composições pseudo-russas. Os ventos vindos da capital francesa trouxeram a “influência eslava”30 da religião do sofrimento e animaram Lopes a redigir, em outubro de 1902, o primeiro dos contos russos (“Dúvida”), sob pseudônimo de “Ivan Kalganov”. A presença de extremos, de extração melodramática, fica visível já no título do volume e de suas seções: vida e morte, gelo e sol. E a idéia da máscara, inscrita na seção dedicada aos russos, remete ao emblema máximo da “imaginação 29. Idem, p. 300. 30. LOPES, Tomás, Histórias da vida e da morte, 1907, p. II. 80 Bruno Barretto Gomide - A “fórmula do horror à russa”... melodramática”, tal como foi mapeada por Peter Brooks.31 Além dessas referências, Lopes pode muito bem ter se baseado nas antíteses constantes em títulos de romances russos (Guerra e paz, Crime e castigo). Em contraste com outros contos do livro, as narrativas russas têm em comum títulos sintéticos, que evocam o ideário simbolista: “Dúvida”, “Mistério”, “Agonia”, “Vertigem”, “Espectro” e “Febre”. Logo se vê que tratam de situaçõeslimite, de vórtices emocionais, o que é confirmado pela leitura. São dois suicídios, assassinatos de todo tipo e um atentado político, basicamente variações de ottcháianiie. Os demais contos não-russos constroem ambientação fúnebre e melancólica, mas sem tamanho apreço pelo terrível e pelo impressionante; pelo crime, tema dostoievskiano por excelência. Só os contos pseudo-russos conjuram recursos patéticos no último grau. Os contos “russos” são os únicos que fazem uma modesta tentativa de experimentação literária. Ao atribuir a narração de cada um deles a um objeto específico, Lopes tenta obter efeitos de estranhamento. Contudo, a intenção promissora fica dissolvida pelo próprio autor no prefácio, em que ele se apressa a explicar o significado de cada uma das narrativas das “Páginas mascaradas” e transforma a tentativa de simbolização em mero jogo de esconde-esconde. As vozes do punhal, do revólver, da torre, do veneno e da locomotiva e da fome se manifestam por monólogos interiores, certamente inspirados nos diálogos e na consciência cindida dos personagens de Dostoiévski. Claro está, porém, que Lopes não chega nem perto disso. O que ele consegue, por vezes, é criar um símile de determinadas traduções de Halpérine-Kaminsky e de outros tradutores “amaciadores” que deram o tom à primeira leva de traduções dos russos na França. O propósito de Tomás Lopes é emular o “gênio” dostoievskiano, comover e chocar o leitor. A abertura de “Dúvida” traz o lugar-comum repetido em todos os contos: “Era uma fria noite de inverno; lá fora geava como no Pólo; e eu pensava nas criancinhas que morriam de frio e fome, hirtas e enregeladas na neve da cidade”. A opulência do aposento do “Príncipe Dievouchkine”, cheio de tapeçarias e peles, contrastava, novamente, com “as criancinhas morrendo de frio...”.32 Em “Mistério”, o frio, a miséria das crianças e a perfídia da mulher, volúvel e contraditória, são elementos definidores de ambiência “russa”. Signos de que Lopes lança mão para criar um simulacro dostoievskiano: 31. BROOKS, Peter, 1995. 32. LOPES, Tomás, 1907, p. 45. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 71-86 - 2008 81 Oh! As incoerentes injustiças da alma feminina! Nobre e belo Dmitry Fefitchine! Se eu pudesse salvar-te! Mas como? Se eu não tenho nem vontade nem querer? Nunca lamentei tanto a minha imobilidade passiva; se eu pudesse desfazer-me e queimar-lhe o seio branco onde arfava uma doçura de rola e se encondia manhosamente um coração de víbora! Ah! Aquela mulher, que tão calma e capciosamente enterrava na terra úmida o doce Dmitry Ferfitchine, tão bom e amoroso! 33 Morto “Ferfitchkine” pelas mãos de Olga, o enterro é preparado sob clima plúmbeo: “Daqui a três dias é o enterro de Dmitry Ferfitchkine; que será de Olga? Que miséria! Que frio!”. O clima invernal, espécie de ottcháianiie meteorológico, serve de recurso fácil para dar cor local e caracterizar a miséria humana. Tão fácil que Lopes deixa de lado qualquer preocupação com a verossimilhança. Embora o conto seja datado de “S. Petersburgo – junho – 18++”, este é o cenário desolador do verão russo: “Lá fora ventava e caía a neve. Quanta gente àquela hora não acharia sabor e encanto à vida? (...) Lá fora, o vento e a neve... Que frio! Que frio!”.34 Em “Agonia”, o príncipe Astafy Tvorogov manuseava seu punhal e preparava-se para cometer suicídio, com o mesmo ottcháianiie que apoderou-se de “Lina de Moscou”. O apelo ao patético desbragado mantinha evidentes laços intertextuais com as traduções afrancesadas de Dostoiévski. Em 1897, o paulista Diário popular oferecia aos leitores versão da “Árvore de Natal.” Originalmente fragmento do Diário de um escritor, no contexto finissecular circulava na supracitada coletânea de novelas e contos adaptada por Halpérine-Kaminsky. Eis como se encerra a estória: Depois de apalpar a face de sua mãe, admirou-se de senti-la completamente imóvel e tão fria como a parede. - Ah! Faz muito frio aqui. Ficou ainda algum tempo junto dela; tendo sua mãozinha pousado no ombro da morta, assoprou os dedos para aquecê-los e agarrando o seu gorro que caíra, saiu às apalpadelas (...) Mas em compensação fazia calor, havia o que comer, ao passo que aqui vê-se movimento, quanta gente caminha, quantos cavalos, quantos carros e sobretudo quanto frio! Ah, este frio!35 A ligação estreita com as traduções francesas maciçamente disponibilizadas após 1883-1886 se torna ainda mais clara na escolha dos nomes e sobrenomes russos dos personagens das “Páginas mascaradas”. Tomás Lopes obteve suas 33. Idem, pp. 55-56. 34. Idem, p. 68. 35. DOSTOIÉVSKI, Fiódor M, “A árvore de Natal”, 24 dez. 1897. 82 Bruno Barretto Gomide - A “fórmula do horror à russa”... informações em um apanhado de obras russas, em especial as de Dostoiévski. A começar pelo próprio pseudônimo com que publicou o primeiro dos contos pseudo-russos em O país: “Kalganov” está nos Irmãos Karamázov. “Tvorogov” é personagem de La femme d´un autre. O “Dievouchkine” do primeiro conto é protagonista de Gente pobre (O nome “Yestafy”, embora existente em outras obras de Dostoiévski, também está nesse primeiro romance). “Ferfítchkine” aparece em Notas do subsolo. “Volkonsky” pode ser Valkóvski, de Humilhados e ofendidos (segundo Vogüé, um “traidor de melodrama”), ou variação dos Bolkônskis de Guerra e paz. A caracterização dos personagens, portanto, é tributária direta da difusão de traduções estabelecida havia cerca de quinze anos. Amparado nas novas traduções de literatura russa disponibilizadas pelo boom, Tomás Lopes parece seguir bem de perto a letra das considerações dos críticos literários. Em “Vertigem”, o facínora Androwitch Forfitkaia prepara-se para arremessar a esposa Catharina Vanikaia do alto da torre-narradora: De súbito Androwitch Forfitkaia, reunindo as suas cansadas forças de bêbado, ergueu Catharina à altura da balaustrada; houve um arrepio naquele corpo fraco que tremia, e ele, o ébrio, gozou alguns instantes o prazer de sentir aquele pavor! E eu, quieta, na minha imobilidade de tantos anos, não podia libertá-la, nem salvá-la! Os verdes olhos de Catharina estavam parados de assombro; ela adivinhava que os braços cansados do marido já não poderiam sustê-la mais tempo; era certa a sua morte, era certa a sua perdição! 36 Nada mais, nada menos do que transposição literal do ottcháianiie tal como descrito em O romance russo – a “sensação de um homem que, do alto de uma torre elevada, debruça-se sobre o abismo aberto e experimenta um frisson de volúpia ao pensar que poderia atirar-se de cabeça para baixo (...) O homem encontra gozo no horror que inspira aos outros...”. Em Histórias da vida e da morte não falta sequer o contexto “niilista”, no qual Coelho Neto inseriu a desesperada palavra russa. O último dos contos de Tomás Lopes (“Febre”) narra justamente um atentado suicida ao trem do tzar Alexandre. Tentando entender as razões que haviam levado o terrorista a tal impulso, a locomotiva-narradora pergunta a si mesma, numa referência velada a Dostoiévski, “que recordações pungentes trazia ele da Sibéria”.37 Recordações pungentes comovem o leitor: os contos russos de Tomás Lopes terminam onde começam os de Felício Terra – no tribunal, onde crime encontra castigo. 36. LOPES, Tomás, 1907, p. 75. 37. Idem, p. 84. Em 1879, Hartmann tentou explodir o trem do Tzar. Este acontecimento foi um dos muitos que passaram a fazer parte do repertório “niilista” mobilizado por Coelho Neto, Tomás Lopes e Felício Terra. Victor Hugo saiu em defesa do terrorista, então exilado na França. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 71-86 - 2008 83 Resenhando as Histórias da vida e da morte, Souza Bandeira opôs-lhes um senão muito razoável: o que havia, afinal, de especificamente russo naquilo tudo? A seu ver, nada: As Histórias revelam ainda o vício, tão comum entre nós, de escolher para sujeito da elaboração literária a vida artificial da sociedade européia, conhecida através de impressões livrescas de terceira ou quarta mão (...) Estou certo de que, publicando o seu novo volume, quis apenas o autor documentar a sua tão interessante individualidade literária. Vê-se bem que não seria mais capaz de fazer um conto russo, descrevendo uma sociedade através das traduções de Tolstoi ou de Dostoievski, e analisando a psicologia de indivíduos do Catete ou das Laranjeiras, a quem apenas “russificou” os nomes e fez tomarem um “drosky” em vez do conhecido bonde.38 Apesar disso, Bandeira via alguns méritos nos contos: estimulavam os sentidos – produziam “verdadeiros calafrios” – e faziam bom uso do vernáculo. Ou seja: um amálgama de ottcháianiie em pitadas com a boa e velha correção gramatical tão valorizada pelos exegetas da época. Formava-se, em suma, afinidade eletiva entre as teses de críticos como Vogüé, a nevrose atribuída à alma eslava e fetichizada pela belle époque e o conjunto de traduções e adaptações francesas de literatura russa. Bibliografia: AMADO, Gilberto. A chave de Salomão e outros escritos. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1914. ANDRADE, Mário de. Resenha do livro “L’Europe galante”, de Paul Morand. A Revista, ano I n. 2. 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Em várias passagens deste trabalho, tal postura será, no entanto, sempre relativizada quando se notarem ambigüidades. Palavras-chave: Literatura brasileira, Cristianismo, figura judia. Abstract: This article aims to investigate the valorization of Jewish origin of personae of Brazilian romantic poetry, yet before elements of Christian tradition. However, this approach is going to be relativized in any element that it notices ambiguities. Keywords: Brazilian literature, Christianity, Jewish persona. O sentimento de hostilidade em relação aos judeus existe desde antes da origem do cristianismo, mas foi especialmente estimulado pela influência da Igreja Católica na Idade Média. Apesar de mais brando do que em seu vizinho ibérico, o sentimento de ojeriza em relação ao judeu também existia em Portugal. Tal disposição piorou muito depois da imigração dos judeus expulsos da Espanha em 1492. Por fim, o rei D. Manuel publicaria um édito de expulsão dos judeus em 1496. Com a colonização portuguesa o Brasil teria herdado essa antipatia pelo judeu. O projeto de pesquisa de Iniciação Científica “O retrato do judeu pelo escritor romântico brasileiro” considerou esse pressuposto ao verificar qual o tratamento dispensado ao judeu em obras poéticas e romances do Romantismo brasileiro1. Com o intuito de discernir se a caracterização do judeu leva em conta apenas sua especificidade étnica ou * Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Língua Hebraica, Literatura e Cultura Judaicas do Departamento de Letras Orientais da FFLCH – USP. 1. Este projeto foi desenvolvido entre o segundo semestre de 2002 e o segundo semestre de 2005. Durante todo esse tempo, foi financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica PIBIC/ CNPq /USP. Ele estava inserido em dois projetos maiores liderados pela professora Berta Waldman: “A Cultura no Plural: Representações de não-nacionais na Literatura Brasileira” e “A representação do judeu na literatura brasileira”. Por fim, os dados identificados nesta pesquisa estão em processo de publicação. 87 seu status comum de não-nacional, foram coletados também dados referentes aos estrangeiros. Verificaram-se estereótipos negativos na caracterização de mais da metade das quatorze personagens judias identificadas nos romances. Mas a maior parte das vinte e sete figuras2 judias identificadas nas obras poéticas recebe tratamento positivo. Algumas delas têm traços de sua origem judaica enaltecidos mesmo quando são identificados no texto elementos da tradição religiosa cristã. A seguir, será comentada a representação das três figuras judaicas em que se verifica esse fenômeno. Hostilidade dos judeus em relação aos primeiros cristãos Nos Evangelhos e em Atos dos Apóstolos, livros presentes na Bíblia Cristã, há diversas passagens em que os cristãos primitivos são perseguidos pelos judeus. O topos da hostilidade do judeu contra a religião cristã está presente no poema “O renegado: canção do judeu”, de Junqueira Freire (1944). Neste texto, um judeu, profundamente desgostoso com a adesão de seu filho ao cristianismo, desqualifica essa religião na medida em que a concebe como uma violência contra o judaísmo, de tradição muito mais antiga: “E agora, meu filho, Nas tábuas cuspindo, Nos deixa sorrindo” (Idem: p. 129) A palavra “tábuas” refere-se às famosas duas tábuas contendo os dez mandamentos entregues ao líder hebreu3 Moisés, segundo a tradição presente no livro bíblico de Êxodo. O momento da entrega dessas tábuas a Moisés marca o surgimento da lei religiosa judaica. Assumindo-se que “tábuas” é metonímia da tradição religiosa judaica, o filho do judeu que fala no poema estaria cometendo um sacrilégio ao cuspir nelas. Se esse cristão recém-convertido é representado como um sacrílego pelo tu do poema, por ofender um símbolo do judaísmo, pode-se depreender uma representação positiva, por esse mesmo tu, quando são os judeus a agredir um símbolo do cristianismo. 2. Uma vez que, para os fins de coleta de dados desta pesquisa, a definição de personagem se mostrou problemática nas obras poéticas, foi utilizado o termo “figura”. Já o termo “personagem” se manteve para os dados dos romances. 3. “Hebreu” é a denominação dada ao povo judeu em um estágio muito anterior de sua consciência como povo distinto, como nação. 88 Daniel Santana de Jesus - A tradição cristã e a valorização da origem judaica... “E os nossos rabinos, Com a raiva do velho, O falso evangelho Pisaram aos pés” (Ibidem). Nos versos transcritos acima, a imagem sugerida pelo termo “evangelho” é a de um volume contendo os textos canônicos cristãos, também conhecidos como Novo Testamento. O volume sagrado é lançado ao chão e pisoteado pelos rabinos. Desta forma, pode-se considerar “evangelho” como metonímia do cristianismo nesse trecho do poema. Mas uma possível leitura do poema propicia verificar que a atitude dos rabinos não é representada como sacrílega por ofender um símbolo cristão. No verso “Com a raiva do velho” pode-se deduzir uma cólera vista como justa se se assumir o epíteto “velho” como figura de linguagem que denota autoridade (lembremos do dito que exorta a “respeitar as cãs” dos mais velhos). Estendendo o alcance do sentido dessa figura do velho, o episódio da agressão ao volume do evangelho pelos rabinos denotaria uma justa cólera dos guardiões de uma tradição muito antiga em relação ao cristianismo, representado como uma heresia mais recente. Essa valorização da antiguidade da tradição judaica em um contexto cristão teria origem no fato de que o cristianismo teria se apropriado dessa antiguidade ao interpretar o judaísmo como um “protocristianismo”. A religião cristã interpreta o conteúdo da Bíblia Judaica como uma etapa anterior do próprio cristianismo. Essa religião suplantaria o judaísmo por ser uma realização, um aperfeiçoamento do mesmo. Tanto que a Bíblia Judaica é designada no cânone cristão por Antigo Testamento, e os textos produzidos já pelos cristãos, Novo Testamento.4 Em seu artigo “Figura”, Erich Auerbach contribuiu para a investigação dessa apropriação cristã do cânone judaico. O autor trata com bastante detalhe o desenvolvimento de um método de interpretação da Bíblia Judaica pelos Pais da Igreja que leva ao apagamento de seu conteúdo histórico, tornando-se o mesmo apenas índice de acontecimentos importantes do Novo Testamento. No limite do alcance do processo de desistoricização latente nesse método de interpretação, a história judaica presente no Antigo Testamento torna-se uma fase da História, esta vista como uma alegoria maior: na primeira, tem-se a história do povo judeu até seu apogeu com a primeira vinda de Cristo; na segunda, a Encarnação de Cristo é alegoria dos acontecimentos previstos para o Juízo Final; com o Juízo Final temos o fim da História dentro dessa interpretação cristã (Auerbach: 1997, p. 36). Esse estudo de Auerbach foi fundamental para o trabalho de Marczyk, Representações 4. A respeito desse ponto de escatologia cristã, lerei alguns capítulos de A teologia do apóstolo Paulo de James D. G. Dunn. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 87-94 - 2008 89 cristãs de tipos judeus em As minas de prata, de José de Alencar (2006). Também tem sido importante para minha atual pesquisa, mais especificamente para a investigação do destino previsto para o povo judeu no Juízo Final segundo a teologia cristã. Por fim, devo relativizar essa percepção de uma caracterização positiva de elementos da tradição judaica no poema, pois há uma passagem em que o judeu assume para seu povo um estereótipo, negativo em muitos contextos. Durante o período do exílio dos judeus, do século I d.C a 1948, surgiu na Idade Média a figura mítica do Judeu Errante, condenado a vagar pela terra sem descanso. Por sua vez, essa imagem tem paralelos com a de Caim5. Ele matou Abel e foi condenado por Deus a vagar também sem descanso pela terra (Gênesis 4:1-16): “Talvez mais que os nossos, Irás, vagabundo, De rastros no mundo, Sem termo, sem fim! Nas selas, nas côrtes Os homens com gosto Lerão em teu rosto Sinal de Caim.” (Idem: p. 125). Ao se notar tal elemento relativizador de uma caracterização positiva do judeu, poder-se-ia ainda pensar na viabilidade de uma leitura engajada religiosamente que percebesse nas imprecações do velho rabino contra o cristianismo não uma atitude de justa cólera, mas a de alguém bastante resistente a uma religião vista como a verdadeira. Identidade judaica em cenas dos Evangelhos “Uma pobre mulher corrida e quase nua Deita-te aos pés, Jesus, o clarão de uma lua. Ela acolheu-se a ti e nela a formosura! Que abismos nessa carne, e que luz nessa alvura! Canta invisível nela um sol; ouço-lhe o trilo. Não é Vênus de Cós, não é Vênus de Milo: É Vênus de outro mar, é deusa de outra espuma. 5. Essa associação entre o exílio do povo judeu e a maldição de Caim é explícita no poema narrativo “Improbus amor” de Frederico José Correia. Este texto é a fonte de primeira mão de minha pesquisa de mestrado, em que procuro descrever o papel de diversos elementos sombrios que aparecem no poema - entre eles a condição judaica vista como maldita - no destino trágico de todas as personagens judias de seu enredo. 90 Daniel Santana de Jesus - A tradição cristã e a valorização da origem judaica... Bela, não se parece enfim com deusa alguma: É o belo-ideal fundido de outra idéia: Prometeu desta vez roubando a luz divina Coalhou-a, como pode e ninguém imagina, E fez dela o ideal da mulher da Judéia...” (Delfino: 2001, II, p. 727). O trecho acima foi extraído do poema “O Cristo e a adúltera”, do poeta catarinense Luiz Delfino. Na cena do Evangelho retratada nele, Cristo livra uma mulher adúltera de ser apedrejada por religiosos judeus representados como radicais e hipócritas (João 8: 3-11). Não há nessa passagem do Evangelho de João qualquer menção ao nome da personagem. No poema ela é chamada de Maria Madalena. Na verdade, a figura de Maria Madalena que chegou até nossos dias teria sido trabalhada a partir de uma fusão de três mulheres presentes nos Evangelhos: a própria Maria Madalena, uma mulher que lavou os pés de Cristo com perfume e secou-os com os cabelos (Lucas 7:37-50) e a já referida mulher adúltera. Também não há nos evangelhos qualquer menção à beleza física dessa mulher adúltera. Mas no poema sua beleza é extremamente idealizada, um padrão de beleza para a mulher judia. Na pesquisa relativa ao projeto “O retrato do judeu pelo escritor romântico brasileiro” verifiquei grande recorrência de uma caracterização idealizada da beleza da mulher judia a partir de modelos extraídos de textos bíblicos como Ester, Gênesis e Cântico dos Cânticos. Celso Lafer já tinha identificado esse fenômeno ao estudar a representação do judeu em Gil Vicente (1978: 77-78). *** Apesar de eu discorrer sobre o tratamento positivo da figura judia mesmo em presença de elementos da tradição religiosa cristã, é importante atentar para uma postura extremamente laica de Luiz Delfino na caracterização de Maria Madalena. Tal atitude estaria embasando a sugestão, entre outras bastante distantes de um típico comedimento cristão, mesmo de uma atração sexual de Jesus Cristo por Maria Madalena no poema em questão (Delfino: op. cit., II, p. 733-734): Não a deixes guardar a incômoda atitude [Maria Madalena está ajoelhada diante de Cristo]:/ Ó Cristo, embora irado um pouco ainda, eu vejo,/ Que há em todo o teu corpo um frêmito... um desejo...6 6. Eu gostaria muito de associar essa atitude laica de Luiz Delfino com aquela tributária de um peculiar desenvolvimento da sensibilidade erótica no romantismo e no decadentismo europeus descrito por Mario Praz em A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. Há na obra de Delfino dos Santos até um poema em que a descrição da beleza de Cristo atinge claramente traços andróginos (op. cit., I, p. 128). Mas, a meu ver, para Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 87-94 - 2008 91 Fontes judaicas em símbolos cristãos Maria, mãe de Cristo, é um dos maiores símbolos do cristianismo, pelo menos em sua vertente católica. Essa figura é extremamente valorizada, apesar de ser muito pouco referida nos Evangelhos, em comparação com a figura de Jesus e a de alguns apóstolos. No poema “Stella Matutina”, de Fagundes Varela (1970: p. 6364), em meio à exaltação religiosa de Maria, vista em expressões como “Princesa Divina”, “Santa esposa de José” e “Sacrossanta padroeira”, há também a exaltação de sua beleza, como nos versos: “Como és bela! Mais belas não eram não.[,] Leve corça, alva gazela Dos Cantos de Salomão!” (Idem: p. 64). A atribuição de uma grande beleza a Maria chama a atenção, uma vez que não há qualquer referência a esse aspecto da mãe de Cristo nos Evangelhos. Desta forma, é plausível afirmar que a valorização da origem judaica de Maria dá-se através do mito da beleza da mulher bíblica, referido anteriormente. Nota-se que a beleza de Maria é elaborada a partir de uma comparação com imagens presentes no livro bíblico Cântico dos cânticos. *** Interpreto como uma valorização da origem judaica de Maria o fato de sua imagem ser associada a um modelo oriundo da Bíblia Judaica. Mas, ao mesmo tempo, sua beleza é enaltecida, no trecho comentado, como superior a esse mesmo modelo. Neste último caso, poder-se-ia dizer que a caracterização da beleza de Maria no poema de Fagundes Varela representaria a superioridade de um modelo de beleza da mulher cristã em relação a um modelo de beleza da mulher bíblica. Conclusão Apesar de se verificarem ambigüidades, oriundas de um engajamento religioso, mesmo na caracterização, que qualifiquei como positiva, de duas das três figuras judias presentes nos excertos comentados neste trabalho, insisto que é notável se estudar a transmissão dos temas românticos europeus para o Brasil é necessária uma pesquisa de literatura comparada. Essa minha postura se apóia em uma consideração de Antonio Candido no prefácio ao livro de Onédia Barbosa a respeito das traduções de Byron no Brasil. Lá seu autor assevera que para se estudar nossa literatura não se pode dispensar o comparativismo, pois estamos muito ligados à literatura européia (1975: 9). A não ser que o “estado dos nossos conhecimentos” (expressão dele) já tenha chegado, em 2007, a um desenvolvimento que dispense o comparativismo. 92 Daniel Santana de Jesus - A tradição cristã e a valorização da origem judaica... que tais caracterizações se dêem em um contexto cristão. Desta forma, farei um esforço, no fim deste trabalho, para valorizar o tratamento positivo dessas duas figuras. No caso do rabino retratado por Junqueira Freire, penso que, se se abstrair o processo de desistoricização do Antigo Testamento levado a cabo por determinada tradição interpretativa cristã (ver acima), é plausível afirmar que o Antigo Testamento sugeriu e sugere aos cristãos conhecedores do texto bíblico uma força épica praticamente ausente no texto do Novo Testamento. Este, por sua vez, seria mais espiritualizado, mais centrado no drama individual da Redenção do que no espetáculo do mundo. Quer dizer: o Antigo Testamento, principalmente em livros de caráter mais explicitamente histórico como Gênesis, Êxodo, Josué, Juízes, I e II Samuel, I e II Reis, I e II Crônicas dos Reis e Ester, supriria a imaginação cristã de um conteúdo espetacular, que pode beirar o grotesco, como grandes batalhas (livro de Josué), encenação de paixões que levam à vida (Jacó e Raquel) e à morte (Davi, Bat-Sebá e Urias), enfim, vicissitudes do homem carnal e histórico de uma nação que busca cumprir seu destino ético-religioso. Já no caso de Maria, mãe de Cristo, creio que sua caracterização positiva a partir de um modelo de mulher judia, construído principalmente com base nos textos do Antigo Testamento, seria também estimulada por essa atração cristã pelo espetáculo do mundo que boa parte da Bíblia Judaica proporciona. Por outro lado, assumindo-se Maria como encarnação do feminino, elemento de determinado imaginário estético-emocional masculino, a identidade judaica de Maria seria interpretada pelo escritor como um elemento de exotismo. Isto é: o feminino em Maria reforçaria o caráter de singularidade, de diferença de sua identidade étnica. Bibliografia: AUERBACH, Erich. “Figura”. In: Figura. São Paulo: Ática, 1997, p. 13-64. CANDIDO, Antonio. “Prefácio”. In: BARBOSA, Onédia Célia de Carvalho. Byron no Brasil: traduções. São Paulo: Ática, 1975, p. 9-13. CORRÊIA, Frederico José (1817-1881). Inspirações poéticas. Maranhão: Typ. De J. A. G. Magalhães, 1848, 339 (i.e. 253) [4] p [errors in paging: no. 167-176, 201-254, 281-300, 305-306]. __________. Inspirações poéticas. 2a edição. Maranhão: Antonio Pereira Ramos D’almeida, 1868. DELFINO, Luiz. Poesia completa. Organização, estudo e bibliografia por Lauro Junkes. Revisão e atualização lingüística: Lauro Junkes e Terezinha Kuhn Junkes. Florianópolis: Academia Catarinense de Letras, 2001, 736 p, tomos I e II. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 87-94 - 2008 93 DUNN, James D. G. A teologia do Apóstolo Paulo. Tradução de Edwino Royer. São Paulo: Paulus, 2003 (Biblioteca de estudos bíblicos). FREIRE, Junqueira. Poesias Completas de Junqueira Freire. Edição rigorosamente revista, com um estudo de Roberto Alvim Correa. Rio de Janeiro: Zélio Valverde, 1944, 223 p, volume I (Coleção “Grandes Poetas do Brasil”). LAFER, Celso. “O judeu em Gil Vicente”. In: Gil Vicente e Camões. São Paulo: Ática, 1978. (Ensaio, n. 50). MARCZYK, Marta Bernadete Frolini de Aguiar. Representações cristãs de tipos judeus em As minas de prata, de José de Alencar. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2006. PRAZ, Mario. A carne, a morte e o diabo na literatura romântica. 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Partimos da idéia de que a recorrência à memória, que mistura lembrança e invenção, constitui-se como o único meio para tornar suportável o visível. Para tanto, centramo-nos nos diversos narradores do romance e no valor e significação que o ato de lembrar tem para cada um deles. Palavras-chave: visível, memória, invenção, narradores. Abstract: This work explores the ways used in Relato de um certo Oriente to account for the visible, which is regarded here as a synonym for the real. We hold that resorting to memories, where remembering and inventing merge together, constitutes the only means to support the visible. Thus, we focus not only on the different narrators of the novel but also on the value and signification that the action of recalling comprises for each one of them. Key words: visible, memories, invention, narrators. __________ * Doutora em Literatura Hispano-americana pelo Departamento de Letras Modernas da FFLCH-USP. 95 La cegadora luz del presente. Si en Relato de um certo Oriente buena parte del pasado se reconstruye hasta el final del capítulo 5 en la voz de diversos narradores que ofrecen su testimonio a la hija adoptiva de Emilie, quien ordena la trama y homogeniza las voces, me interesa detenerme brevemente en el capítulo 6, contado desde su propia perspectiva y centrado en el lapso de algunas horas del día de su llegada a Manaos, cuando recorre la ciudad y se encuentra con el fotógrafo alemán Dorner; un capítulo que se cierra en el momento en que finalmente alcanza la casa de Emilie y se topa con el velorio. Se trata de un recorrido que abarca varias horas y que, al igual que el proyecto narrativo, se anuncia en las dos primeras páginas cuando, al pasar, la narradora comenta: “Já eram quase sete horas quando resolvi sair de casa” (2000: 12). El objetivo de la salida es ir desde la casa de su madre a la de Emilie, separadas apenas por cinco cuadras. La dificultad de ese encuentro, deseado pero pospuesto durante tantos años, se traduce en un relato que, moroso, prolifera en la descripción de los elementos arquitectónicos con los que ella se encuentra en el trayecto. Si bien los leones de piedra, las columnas, la Diana de bronce, incluso las acacias, se conservan y permanecen idénticos, como si el tiempo no hubiera pasado, ellos cargan la marca de la muerte, se le presentan como ornamentos de una lápida. Y en el breve recorrido, el único resquicio de vida proviene de una imagen del pasado, ya que se trata del recuerdo de los hermanos sicilianos - esos personajes a quienes Soraya Ângela imitaba al regresar de sus paseos con Hakim - que irrumpe en la memoria cuando atraviesa la plaza. El procedimiento narrativo es idéntico cuando, párrafos más abajo, relata su primer arribo a la casa de Emilie, quien no está, situación que la induce a deambular por la ciudad, a “dialogar com a ausência de tanto tempo”. Es decir, los lugares de infancia que reencuentra en el transcurso de su paseo no la remiten claramente al pasado, aunque no dejan de hacerlo, pero tampoco la sitúan nítidamente en el presente. La materialidad del pasado representanda por lugares y objetos que surgen en su camino, antes que situarla en un tiempo de bordes diferenciados, le causan más bien aturdimiento y la colocan en un lugar de indecisión temporal y espacial, porque simultáneamente son los mismos que conoció y no lo son, remiten al pasado pero aguzan la nostalgia. Por lo que ya en ese primer momento, la materia que persiste del pasado no constituye una llave maestra de ingreso al mismo sino, por el contrario, se presenta como una especie de obstáculo que deberá sortear para poder “dialogar com a ausência de tanto tempo”. Que Emilie esté fuera de casa, cuando logra recorrer las cinco cuadras que la separan de ella, abre la posibilidad de salir del espacio conocido y familiar de la 96 Adriana Kanzepolsky - Rasgar el presente: memoria y fabulación... casa, es decir, del espacio de la infancia e internase en un barrio desconocido y, con ello, en el presente. Una decisión que, mientras modifica su estatuto convirtiéndola en observadora externa, le permitirá ingresar en espacios vedados, cuando niña, y considerarlos de otra manera. Pero también, acceder al espacio desconocido, prohibido durante la niñez y sólo imaginado por los relatos de los mayores, suaviza la tensión del encuentro con el ámbito inconfundible de la infancia. El recorrido da lugar a la proliferación del lenguaje que se deleita minucioso en la descripción de ese barrio pobre y, durante varias páginas, la narradora parece ser sólo un pretexto para que el discurso se sumerja en la superficie de lo visible, en todo quello que se amalgama con el presente y la ofusca. Un procedimiento que alcanza su punto culminante en la descripción del “hombre arbusto” — enredado en los animales que carga y al cual los turistas arrojan monedas y después piedras —, con el que se topa en medio del trayecto. En cierto sentido, el ingreso a ese barrio le permite exorcizar las quimeras de los relatos de sus mayores, pero también, la intensidad de lo visible se torna insoportable, al punto de casi cegarla. Escribe: “[...] não era a luminosidade que incomodava, e sim tudo o que era visível” (2000: 124), una afrimación que párrafos más abajo se completa con la confesión de la insuficiencia de la palabra para dar cuenta de aquello que ve. Refiriéndose al hombre de la plaza, comenta: “[...] queria descrevê-lo minuciosamente, mas descrever sempre falseia. Além disso, o invisível não pode ser transcrito e sim inventado” (2000: 126). La confesión de la imposibilidad de describir al hombre de la plaza muestra simultáneamente una ambición desmesurada y una renuncia radical. Al no poder dar cuenta cabal del referente la descripción se torna una pretensión imposible y, en consecuencia, el lugar vuelve a su condición de “ciudad prohibida”. La constatación de esa imposibilidad resulta paradójica en un libro que gozoso se entrega a a la descripción minuciosa y detallada de lo visible. Cabría preguntarse, por lo tanto, si la afirmación de la narradora es un rasgo de este personaje — lo que la situaría como una voz discordante frente a la poética que organiza el texto —, o si por el contrario, ella es una suerte de portavoz de la poética sobre la cual se erige Relato... y, en ese caso, la sobreabundancia de descripción en el mismo estaría vinculada no a la lógica narrativa sino a la lógica poemática. Aunque no tengo una respuesta ni precisa, ni definitiva, creo que la novela, como el personaje, se sitúan en esa contradicción entre la fascinación por lo visible y la frustración por la imposibilidad de dar cuenta cabal de ello. Ahora, la impotencia que la narradora le confiesa al hermano alcanza también a lo invisible, a aquello que, como dice, “não pode ser transcrito e sim inventado”, ¿no transcripto y sí recordado?, podríamos preguntarnos nosotros, a despecho que ella señale a la pintura como un medio más idóneo para la captación de algo que se Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 95-107 - 2008 97 le escapa a la palabra. Nuevamente, la respuesta no es ni simple ni definitiva. Si nos atenemos a las declaraciones de Hatoum acerca de su narrativa1, podríamos afirmar tranquilamente que sí, que inventar y recordar son manifestaciones del mismo movimiento y, en consecuencia, la memoria estaría en condiciones de dar cuenta de lo invisible. Pero, ¿qué sucede si nos situamos en la lógica de la narradora? La única certeza es ese movimiento contradictorio que impulsa la narrativa, la confianza en la palabra y la memoria — o la invención — de otros narradores y la tensión opuesta que la lleva a homogeneizar sus voces, a planear por encima de sus diferencias y otorgales una voz única. Al promediar el capítulo, la narradora se topa inesperadamente con Dorner; un encuentro que relega esos cuestionamientos a un segundo plano porque la conversación con el fotógrafo alemán reintroduce el universo del pasado y, en consecuencia, la memoria del hermano, ligada a sus propios recuerdos, vuelve a ocupar el primer plano. Aunque la lectura del pasaje derive finalmente en ese encuentro que, de algún modo, resulta tranquilizador, creo que el mismo instala ciertas preguntas nodales para pensar Relato... Me refiero a que si como cree el hermano de la narradora la distancia es una forma de huir del horror y de conjurar lo visible, ¿es posible afirmar que la memoria es el único modo de presentificar lo visible sin que dañe, que la memoria es el único medio de soportar lo real y lo visible, en tanto presentifica pero mantiene una distancia que resguarda? ¿En tanto el recuerdo está atravesado por la invención y por historias leídas, pero también por secretos que nunca se revelan y a los que se atisba de forma oblicua? Pienso que el ejercicio de rememoración que llevan a cabo todos los personajes indica que sí pero también habla de un vacío, ya que ellos no sólo cuentan lo que saben porque lo han vivido o porque lo han recibido en forma de relato sino hablan como una forma de llenar el vacío dejado por la red múltiple de secretos sobre los que se organizó esa vida familiar. Cabría, entonces, preguntarse ¿quiénes recuerdan en Relato? ¿qué recuerdan? ¿por qué y para qué recuerdan? e, incluso, ¿de qué modo recuerdan? 1. A lo largo de los dieciocho años que lleva publicada la novela, Hatoum ha dicho en diversas ocasiones que la frontera entre “a realidade e a ficção é quase sempre nebulosa, sem ser necessariamente sombria” (s/d: 26), o que “[en] el límite, la memoria y la imaginación son casi hermanas siamesas” (2004: 24) o, incluso, que concibe Relato... como un récit de mémoire, un discurso que simultáneamente es una forma de memoria y una construcción ficcional. 98 Adriana Kanzepolsky - Rasgar el presente: memoria y fabulación... La tela de la memoria La organización de Relato de um certo Oriente nace de un fracaso: la imposibilidad de la narradora de encontrar una línea que organice su propio discurso, un proyecto que inicia durante la época en que estuvo internada en una clínica siquiátrica, pero que no concluye porque a cada nueva tentativa las líneas narrativas se multiplicaban y se desbordaban en otras historias, lo que finalmente da lugar a un collage que entrecruza fragmentos de papel e imágenes difusas bordadas sobre restos de tela. Es decir, en un relato que combina de modo informe la palabra y la imagen. La muerte de Emilie — la matriarca de la familia, que la acoge junto con su hermano durante la niñez — y la necesidad de narrársela al hermano en Barcelona, quien le había encargado un relato minucioso si se producía algún hecho notable durante su visita a Manaos2, la llevan a recurrir a los “testimonios” de otros personajes/narradores, voluntarios o involuntarios3, que compartieron el ámbito de su infancia pero quienes también guardan secretos e informaciones del pasado de su madre adoptiva que, tanto la narradora, como su hermano, desconocen. Es así, que podemos pensar que ella repite frente a los demás personajes la demanda de relato que recibe del hermano ausente y que los mismos remedan en escala menor su propia función. Entre aquellos que recuerdan y narran, Hakim ocupa un lugar central porque es el personaje que comporta los trazos del heredero; es el hijo dilecto a quien la madre inmigrante le ha enseñado a hablar y escribir en el árabe ancestral, singularidad que lo convierte en el memorialista privilegiado de la inmigración4. Cuando hablo de heredero no pienso en esa condición sólo como un don que Hakim recibe de Emilie sino como una posición que él construyó, ya que no sólo fue protagonista y testigo de la vida familiar sino un buscador incansable de los secretos que Emilie atesoraba. El testimonio de Hakim parte de la curiosidad que en la adolescencia le producía el gran reloj del living, el mismo que en el capítulo 1 sabemos fascinaba a Soraya Ângela5. La recuperación narrativizada de la historia del reloj, que se sobreimprime 2. En la penúltima página le escribe: “[...] [A]o saber que vinha a Manaus, pedias para que eu anotasse tudo o que fosse possível: ‘Se algo inusitado acontecer por lá, disseque todos os dados, como faria um bom repórter, um estudante de anatomia, ou Stubb, o dissecador de cetáceos’” (2000: 165). 3. Me refiero específicamente al padre muerto, cuya llegada a Manaos conocemos por el relato que le había hecho a Dorner y que éste había transcripto en un cuaderno que entrega a Hakim, quien a su vez se lo entrega a la narradora. 4. Si pensamos en la organización de la novela, Hakim también es un narrador privilegiado en el clásico sentido benjaminiano, en tanto es el que vuelve, pero vuelve para contar lo que vivió en el lugar de origen. 5. La narración de Hakim comienza exactamente con una referencia a la curiosidad que le producía el reloj. Cuenta el personaje: “‘Tive a mesma curiosidade na adolescência, ou até antes: desde sempre. Perguntei várias Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 95-107 - 2008 99 al pasado de Emilie en el Líbano y a una vocación religiosa frustrada por la imposición de Emir, quien amenazó con suicidiarse si la hermana no abandonaba el convento y viajaba a Brasil con él, le llega a Hakim muchos años después de la adolescencia a través de relatos de Hindié Conceição. En la conversación sinuosa de Hakim que, a lo largo de extensos momentos deriva en un monólogo, ocupa un lugar central la reconstrucción de una navidad — cuyo relato le llega fundamentalmente a través de Hindié pero también de Anastácia Socorro — particularmente conflictiva porque pone en escena la discrepancia religiosa entre Emilie y su marido, una discrepancia que, según entiendo, metaforiza de modo intenso y nítido la problemática de la extranjeridad en el texto. El conflicto se desata por el método elegido para carnear los pavos destinados a la cena de navidad; por sugerencia de Hindié, los emborrachan y los matan por asfixia, una práctica estrictamente prohibida dentro del islamismo, dado que es vista como una forma de martirio. Hakim cuenta: “As aves morriam lentamente, ébrias, os olhos dois pontos de brasa e o pescoço mulambento como um barbante. ‘Esse martírio só pode ser obra de cristão’, proferia meu pai, sabendo que Hindié já fizera isso em outras casas e que era uma prática bastante difundida na cidade” (2000: 36). Cuando hablo de extranjeridad pienso en la asociación canónica entre esa condición y la barbarie6, ya que es como bárbaras que el marido considera a Emilie y a su amiga por llevar a cabo esa práctica. Pero si ante los ojos de ese hombre sólo um cristiano es capaz de semejante acto de barbarie, inmediatamente el texto agrieta esa imagen cuando se focaliza en Emilie, quien ante la reclusión del marido en el cuarto setencia: “— Deve ser uma das proibições do Livro — ironizou Emilie, mas hoje quem dita o que pode e não pode sou eu, não um analfabeto guerreiro que se diz Profeta Iluminado” (2000: 39). Pienso que esas dos réplicas en las que el desprecio traza una imagen del otro como impiadoso e ignorante dejan leer también uno de los nudos centrales que atraviesan Relato..., hablo del enfrentamiento que el texto muestra una y otra vez entre la adoración de la imagen o el privilegio de la palabra. Una disyuntiva que vezes à minha mãe por que o relógio e depois de muitas evasivas, ela me pediu que repetisse a frase que eu pronunciava ao olhar para a lua cheia. Devia ter uns três anos quando apontava para o céu escuro e dizia ‘é a luz da noite’. Foi a explicação oblíqua que Emilie encontrou na minha infância para não falar de si’” (2000: 33). 6. Se trata de una asociación sobre la que, en general, vuelven todos aquellos que trabajan con la problemática de la extranjeridad; quiero, sin embargo, recuperar dos especificaciones sobre el término que aparecen en “Metáfora y memoria” de Cynthia Ozick porque creo que ponen al desnudo aquello que las ironías de Emilie y su marido dicen de forma oblicua. En el referido ensayo, la escritora señala: “Los romanos originalmente tenían una sola palabra, hostis, para designar tanto al enemigo como al extranjero” Y, más adelante: “En la ley germánica, el extranjero era rechtsunfähig, un paria sin acceso a la justicia” (1997/98: 28). (Cynthia Ozick. “Metáfora y memoria”, en Diario de poesía, nº 44, 1997/98). 100 Adriana Kanzepolsky - Rasgar el presente: memoria y fabulación... luego de esa navidad adquirirá la forma de una guerra entre Emilie y el marido, en la que a la destrucción de las imágenes de los santos, la matriarca responde ocultando durante días el Corán.7 Si, como dije, Hakim evoca esa conflictiva navidad y sus consecuencias a través del recuerdo de aquello que le contó Hindié, y en ese sentido puede considerárselo un testigo de segundo grado, la reconciliación de sus padres modifica su lugar. No sólo porque se tranforma en un narrador de primer grado sino porque se vuelve protagonista, en tanto el relato se desvía de las disidencias entre Emilie y el tendero y se centra en su aprendizaje del árabe, esa lengua que durante años el niño creyó atributo y práctica exclusiva de los adultos8. Una creencia que, como a todo hijo de inmigrantes, le deparaba la ilusión de vivir una vida doble, una vida en árabe dentro de la casa y una vida en portugués en las calles y en la escuela. Y es el haber aprendido esa lengua de los adultos, aquello que, en buena medida, le franquea el acceso al pasado. Precedido por el relato fabuloso que le hace Emilie de la muerte de su abuela Salma, el aprendizaje de la escritura árabe lo inscribe desde el comienzo en el linaje de su familia materna, ya que había sido esa mujer, la encargada de enseñarle el “alifebata” a su madre. La adquisición del árabe fascina como el encuentro con una materialidad sensual, en el que no parece importar la relación entre signo y referente sino la cualidad de dibujo de cada letra que se cincela sobre la página, una percepción en 7. A modo de digresión, cabe señalar aquí que si las diferencias religiosas imprimen trazos de barbarie en Emilie y en su marido respectivamente, los ritos alimentarios, esparcidos y evocados con deleite en varios pasajes de la novela, los connotan como bárbaros ante los ojos de Anástacia Socorro. Me refiero particularmente a un rito que Hakim evoca en el capítulo 2 cuando durante la matanza del carnero, antes de asarlo para la comida del sábado, condimentan el hígado y, repitiendo un rito milenario, lo comen crudo. Sin embargo, mientras que para la india la ingesta de la carne cruda es un indicio incuestionable de barbarie que la lleva a refugiarse en el interior de la casa, para Hakim niño, quien también contempla la escena, se trata de una “festa exótica”, de una “novidade assombrosa”. La elección de las dos perspectivas para contar ese recuerdo apunta, por un lado, a la reivindicación del relativismo cultural como un valor a celar, en otro plano, es un elemento más en la construcción de la figura de Hakim como el heredero del linaje. Él es aquél que pese a haber nacido en Brasil reúne las condiciones para vincularse con la cultura de origen. Valga notar aún que la percepción de la extranjeridad es siempre relativizada y que los personajes establecen alianzas inestables y parciales en lo que a este aspecto se refiere. Me explico: la religión torna extranjeros a Emilie y su marido, la comida los engloba como extranjeros y bárbaros a los ojos de Anastácia, pero otra vez el cristianismo compartido establece una complicidad entre esas dos mujeres que rezan juntas, aunque cada una pronuncie el nombre de Dios en otra lengua. 8. Hakim comenta: “Já estava me habituando àquela fala estranha, mas por algum tempo pensei tratar-se de uma linguagem só falada pelos mais idosos; ou seja, pensava que os adultos não falavam como as crianças” (2000: 49). Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 95-107 - 2008 101 la que el heredero condensa la fascinación de la madre por la imagen y la del padre por la letra. Dije más arriba que su interés por develar el pasado de Emilie es una de las condiciones que contribuyen a que Hakim se configure como un heredero. Y en ese sentido el aprendizaje del árabe se vuelve un elemento esencial, cuando en el momento de la mudanza de la Parisiense a la casa nueva, Hakim viola la correspondencia que Emilie escondía en un objeto de madera que tenía la forma de un árbol. Las cartas entre su madre y alguien que firmaba como V.B. — la vicesuperiora del convento de Ebrin — lo enfrentan con la violencia de la emigración de Emilie pero también con la violencia que ella había ejercido sobre Emir durante el viaje que los condujo a Brasil. A diferencia de los relatos del pasado que recibe por voluntad de los interlocutores, violar la correspondencia de Emilie, ingresar sin permiso en un pasado que ella guardaba celosamente lo lleva al borde del desvarío, al tiempo en que le enseña que hay secretos que deben mantenerse como misterios, una lección que el libro parece hacer suya, en tanto deja al lector zonas vacías que a éste le cabe aceptar o completar con su propia imaginación, con su propio relato.9 Hakim retorna como narrador del capítulo 5. Se trata de un capítulo que alrededor de dos escenas centrales — el momento en que se despide de Emilie y aquél en que se despide de la hermana para irse al sur —, evoca una multiplicidad de conversaciones nimias que son la trama de la cotidianeidad y, por eso, aquéllas que dejan entrever la función que la charla cumple en la vida de diversos personajes. Hakim se detiene fundamentalmente en los momentos compartidos por Emilie y Anastácia, quienes mientras bordan juntas conversan. Pasando de una lengua a otra, Emilie evoca anécdotas de su vida en el Líbano, aquel lugar que según acota el narrador “latejava em sua memória”, porque Manaos era sólo superficie, sólo su mundo visible. Si el relato de Emilie, con su aura fabulosa impuesta por la distancia temporal y espacial que deslumbra a Anastácia tiene como función disminuir la distancia que la separa del lugar de origen, ¿qué sucede con los relatos de Anastácia, quien también ha dejado atrás su mundo original? Hablar, en su caso, es la forma que encuentra para huir del trabajo arduo. Inventar historias que 9. Evidente en las palabras de Hakim, la creencia de que develar los secretos del otro es una práctica violenta parece ser un valor compartido por varios personajes. En el capítulo 6, cuando la narradora se encuentra con Dorner, ambos recurren al destino de amigos para evitar hablar de la propia intimidad y en determinado momento ella comenta: “Conversar era roubar uma crença, violar um segredo do outro” (2000: 131). No deja de ser sugestiva la tensión que se establece entre esa creencia y la necesidad casi incontrolable de los personajes de fabular relatos, de evocar recuerdos. Cabría preguntarse por lo tanto: ¿de qué hablan? o ¿para qué hablan? Retomaré esas cuestiones más adelante. 102 Adriana Kanzepolsky - Rasgar el presente: memoria y fabulación... fascinan a la patrona es un modo de hurtarle el cuerpo a la muerte reiterada que implica el trabajo agotador y diario. Acercar el pasado, entonces, es la función primordial que esos relatos tienen para Emilie y descansar en las palabras el objetivo de Anastácia, pero también los relatos de la primera ensanchan el mundo de la criada, quien interrumpe el flujo discursivo de la patrona y pregunta “como é o mar? o que é uma ruína? onde fica Balbek?”. Por su parte, las historias de Anastácia que tejen fábulas sobre el mundo de la selva y el poder de las plantas, maravillan a la patrona y la inducen a incorpar al patio de la casa esas plantas con poderes extraordinarios. Ninguna de las interlocutoras se preocupa por la veracidad de los relatos de la otra, ni tampoco los pone en duda porque la verdad parece estar en suspenso en el transcurso de esas tardes envueltas por el humo del narguile y por el sabor de algunas frutas de Oriente o del sur del país. Presente, Hakim no interviene, ni siquiera cuando Emilie recurre a él con la mirada porque no entiende alguna palabra de origen indígena, que atribuye a los “truques da língua brasileira”. Situado otra vez entre las dos culturas, ni libanés, ni indio, esas conversaciones son para él la fuente de sus futuros relatos, de aquéllos de los que habrá sido testigo. Pero en el fragmento de cotidianeidad que recorta ese capítulo no son sólo la inmigrante y la india venidas de fuera las que hablan, sino que el narrador alude a las interminables conversaciones a la mesa, que una y otra vez volvían sobre pequeñas o grandes anécdotas de la vida de la ciudad como un modo de apropiárselas, como una manera de que aquellos acontecimientos que no habían protagonizado formasen parte del espesor del propio pasado, pero también como un modo de conferir algún sentido al vacío de la vida provinciana. Al final de capítulo 3 Dorner le dice a la narradora: “A mania que cultivei aqui, de anotar o que ouvia, me permitiu encher alguns cadernos com transcrições da fala dos outros. Um desses cadernos encerra, com poucas distorções, o que foi dito por teu pai no entardecer de um dia de 1929” (2000: 70) (Cursivas mías). Son, entonces, estas anotaciones las que nos posibilitarán leer en el capítulo 4 el relato del arribo a Manaos del padre de la narradora. Su comentario, sin embargo, no se limita a ser un artificio narrativo para introducir el testimonio de un muerto sino que delinea el lugar del fotógrafo alemán dentro de Relato de um certo Oriente. Dorner es el extranjero que, desde afuera, anhela documentar por medio de la imagen y, más tarde de la palabra, la vida de la ciudad, los rostros y costumbres de sus habitantes, la vasta exhuberancia de la selva. ¿A qué me refiero cuando digo que Dorner es un extranjero en una novela cuyos protagonistas son libaneses o descendientes? No sólo a que él es el único europeo de la trama, como también el único personaje ilustrado, sino a que se trata del único Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 95-107 - 2008 103 personaje cuya vida y cuyo discurso no se articulan en el vaivén entre memoria y ficción o entre verdad y ficción. Dorner, del cual nada sabemos antes de su llegada a Brasil, se construye como testigo de esa familia libanesa y también como aquél que en el plano de la representación observa y explicita el carácter entre veraz y fabuloso de los relatos biográficos de los demás personajes. Por lo que pese a ser amigo de Emilie, de su marido y de Emir y de haber sido el testigo privilegiado del suicidio de este útlimo, se mantiene siempre en la distancia cautelosa del extranjero, de aquél que mira desde afuera, aunque sea un invitado bienvenido. Pero Dorner, quien según escribe la narradora en el capítulo 6, desconcertaba a los demás porque “visivelmente não era turista nem da terra” es también el único extranjero de la novela que se distancia de sí mismo y se sabe extranjero, no sólo ante los brasileños sino probablemente ante sus amigos libaneses. Al hablar sobre la religiosidad de Emilie y su marido, un aspecto que, como señalamos, cubre con un velo de extranjeridad a cada miembro de la pareja ante los ojos del otro, especula: “Nunca me perguntaram se eu era religioso, mas talvez condenassem secretamente este estrangeiro que vivia no mato entre os índios, que nunca entrara numa igreja, e no entanto podia rezar uma Ave-Maria em nhengatu” (2000: 69). Una aprehensión que, como vemos en el transcurso del texto, resulta infundada, no sólo porque ni Emilie ni su marido se preguntan por la falta de religión de Dorner sino porque su extranjeridad es la única que nunca se ve amenazada por el halo de la barbarie. Y son su curiosidad y su falta de prejuicio en relación a los habitantes del Amazonas, como también en relación a sus amigos libaneses aquello que lo lleva a leer la traducción alemana de Las mil y una noches, un libro que adquiere el valor de una revelación porque, como dice: “No início de nossa amizade ele [el marido de Emilie] se mostrara circunspecto e reservado, mas ao concluir a leitura da milésima noite ele se tornara um exímio falador. Às vezes, a leitura de um livro desvela uma pessoa” (2000: 79). La lectura de ese clásico los vuelve amigos pero también le devela una suerte de secreto; cuando se acerca al final, Dorner percibe que muchos de los episodios biográficos relatados por el tendero eran adulteraciones de alguna de las noches. Por lo que a través de esa lectura comprende que la intersección entre memoria y ficción articula la vida del amigo. Pero, si tenemos presente que en su conversación con Dorner la narradora comenta que hablar era robar una creencia, violar el secreto a alguien, y si también recordamos que al irrumpir en la intimidad de Emilie a través de la lectura de su correspondencia, Hakim percibe que ese gesto conduce al desvarío, concederle al libro el poder de develar a una persona se vuelve particularmente significativo. Por lo que la reflexión de Dorner parece decir que la única forma posible para 104 Adriana Kanzepolsky - Rasgar el presente: memoria y fabulación... revelar sin violencia la intimidad de otro es a través de la palabra de un tercero, no de cualquier palabra sino de la palabra escrita, aquella que se sitúa en el lugar nebuloso en que se enmarañan la ficción con la memoria y en donde los secretos conservan su calidad de misterios. Como mencionamos, las conversaciones entre Dorner y el padre de la narradora están en el origen del capítulo 4. No leemos esas charlas sino un monólogo que aparece entrecomillado, recurso que si ahora alude a la reproducción de la palabra escrita, en los demás capítulos señala la literalidad y la ajenidad del discurso de los narradores a quienes cede la palabra. Señalé más arriba que Hakim es el testigo privilegiado de la inmigración y, si bien esto es cierto, al padre le cabe la evocación del momento puntual en que llega a Manaos, cuando ese hombre proveniente del Líbano, donde había leído en las cartas de su tío Hanna historias fabulosas sobre la ciudad desconocida, que fusionaban el canibalismo de sus habitantes, la singularidad de la naturaleza y la riqueza exorbitante de la ciudad, se topa con la pobreza pero también se deslumbra con la intensidad de lo visible, al punto que con el tiempo el encuentro con el paisaje es evocado como una suerte de epifanía que sella su relación con la nueva tierra. Recuerda el narrador: “Compreendi com o passar do tempo, que a visão de uma paisagem singular pode alterar o destino de um homem e torná-lo menos estranho à terra em que ele pisa pela primeira vez” (2000: 73). Las seis páginas que conforman su relato detallan minuciosamente el arribo a ese lugar al que sería una pretensión llamar de ciudad, a ese territorio que se escapa de los límites de Brasil y se interna en la selva. Aunque el relato se centra y expande en las sensaciones de la llegada y del encuentro con el primo, por medio de frases extremamente económicas recupera los motivos que determinaron el viaje, su decisión de no abandonar Manaos y el hecho de haberse enamorado de Emilie. Aunque en apariencia se trata de tres decisiones de índole diferente, en el origen de todas está lo leído o lo escuchado. Son los relatos de su tío Hanna, que había emigrado a Brasil décadas atrás, relatos construidos sobre la lógica que articula la mirada exótica, los que alimentan el deseo del viaje, más allá que la decisión final le hubiera cabido a su padre, quien determina la partida10. Es la visión de la cúpula del teatro que le recuerda una mezquita que “jamais tinha visto, mas que constava nas 10. La recepción de una carta de Hanna que incluía una foto que sólo debería ser vista cuando el próximo pariente desembarcase en Brasil decide la partida. “Ao ler o bilhete — cuenta el narrador —, meu pai, dirigindo-se a mim, sentenciou: chegou a tua vez de enfrentar o oceano e alcançar o desconhecido, no outro lado da terra” (2000: 72). Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 95-107 - 2008 105 histórias dos livros da infância e na descrição de um hadji de [sua] terra”, aquello que decide su fijacion en la ciudad. Y son las conversaciones de los levantinos acerca de la belleza de Emilie las que le confieren la certidumbre de que se casaría con ella mucho antes de conocerla, confesión con la que termina su relato11. Traigo a colación los tres ejemplos porque pienso que condensan en pocas páginas el rasgo determinante de ese personaje que en el transcurso de la novela aparece siempre en compañía del Libro. Se trata de aquél en el cual más clara e intensamente se manifieta el continuum entre lo vivido y lo leído, lo fabulado y lo recordado. Y es por ello que el impulso que rige sus acciones está medidado por los relatos que lee o escucha en boca de otros. En ese sentido puede cosiderárselo como un personaje paradigmático de la poética que organiza Relato de um certo Oriente, un texto que se hace en el vaivén entre la memoria y la ficción. Presente a todo lo largo de toda la novela en los testimonios de Hakim y de la narradora, Hindié Conceição, la amiga íntima de Emilie, su compañía al final de la vida es la narradora del penúltimo capítulo y quien se hace cargo de evocar sus días finales y la desaparición misteriosa de Samara Délia. Hindié Conceição es el personaje que estuvo más cerca de Emilie y la depositaria de sus secretos, ya nos refiramos a la historia de su venida a Brasil, o a la clave del cofre enterrado en el gallinero, donde ella guardaba sus recuerdos más preciosos pero también protegía el dinero que semanalmente Samara le entregaba como fruto de las ventas en la Parisiense. Si Hakim es el testigo de la inmigración, Dorner el extranjero que con distancia documenta la vida de la ciudad y registra la llegada a Brasil del padre de la narradora, el relato de Hindié, ese personaje connotado todo el tiempo por un olor inconfundible, se desprende de lo visible y se ancla en las expectivas y frustraciones de la amiga que no se distinguen con nitidez de sus propios sentimientos porque, solterona, su vida se entrelaza a la vida familiar de Emilie. Pese a su intimidad, el relato de Hindié no devela ni secretos ni aspectos desconocidos de la vida de Emilie, su importancia y singularidad no radican, entonces, en su evocación sino en que ella es una metonimia de una Emilie anciana en diálogo con la muerte. El silencio toma cuenta de esa mujer de gestos desmesurados que durante años asustaba a los niños con sus abrazos y es ese silencio que parece dialogar “com algo semelhante à noite” el que cuenta el fin de 11. Cuenta el padre: “Muito antes do desaparecimento de Emir soube que me casaria com Emilie; os levantinos da cidade eram numerosos e quase todos habitavam no mesmo bairro, próximo ao porto. [...] Os solteiros falavam de Emilie com efusão e esperança; os mais velhos recordavam a juventude, resignados e pacientes. [...] Emilie era a única filha e, de tanto ouvir falar dela, enamorei-me” (2000: 76). 106 Adriana Kanzepolsky - Rasgar el presente: memoria y fabulación... la vida de la casa, el fin del linaje y, en consecuencia, la desaparición de lo visible que cede espacio a la muerte. Su relato no dialoga con el pasado sino con el silencio por venir, por ello no se sitúa entre la ficción y la memoria sino entre la memoria y la muerte. Bibliografía: _________. “Treze perguntas para Milton Hatoum”, Magma. Pós-Graduação do Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada, USP, nº8, 2002/2003, São Paulo. Fonseca, Maria Augusta (org.). Olhares sobre o Romance. 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Zilberman, Regina. “Memória entre oralidade e escrita”, em Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 41, nº 3, setembro de 2006. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 95-107 - 2008 107 Diáspora Armênia no Brasil Mônica Nalbandian Marcarian* Resumo: Na história as nações existem e desaparecem. Os Armênios existem no mundo nos últimos quatro mil anos. Eles contribuíram para o crescimento das civilizações, aceitaram o cristianismo bem no início da era cristã. No final do século XIX começou a sofrer sistemáticas perseguições e assassinatos. A única forma de sobrevivência era migrar para países que aceitassem e dessem oportunidades a imigrantes para melhorar sua vida e ter paz. Os armênios que vieram ao Brasil procuravam uma vida pacífica. Começaram a trabalhar nas mais diferentes áreas, formaram suas famílias e tornaram-se respeitáveis brasileiros sem esquecer a cultura, língua e história de seus ancestrais. Palavras-chave: sobrevivência, novos horizontes, paz, prosperidade. Abstract: Nations existed and disappeared during history. Armenians existed in the world for the last four thousand years. They contributed for the growing of civilizations, accepted Christianity at the very beginning of Christian era. At the end of XIX Century Armenians began to suffer with systematic persecutions and assassinations. The only way of surviving was to immigrate to countries which accepted and gave opportunities to immigrants to improve their living and have peace. Armenians who came to Brazil were seeking for peaceful life. They began to work in many different areas, formed their families and became lawful Brazilians without forgetting their ancestors’ culture, language and history. Keywords: survival, new horizons, peace, prosperity. Todo e qualquer texto que faça referência à Diáspora Armênia no século XX terá como fontes principais relatos de imigrantes armênios que foram forçados a emigrar de sua terra natal. Poucos são os livros que registram a formação da Diáspora Armênia, porém a história contada não difere tanto dos relatos já publicados por outros povos que sofreram perseguições e foram forçados ao exílio. __________ *Mestre em Ciência da Computação pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professora Visitante da Área de Língua e Literatura Armênia do DLO 109 No que se refere à chegada dos armênios ao Brasil, há dois livros, um em armênio de autoria do Arcipreste Yeznig Vartanian (1948) e outro em português de autoria do Reverendo Pastor Aharon Sapsezian (1988), constantes da bibliografia relacionada no final deste artigo. A maior parte das informações é fruto de entrevistas com os primeiros armênios de São Paulo, bem como de pesquisas realizadas nos acervos de correspondência e documentos das organizações da coletividade. Para falar da Diáspora Armênia no Brasil, é necessário definir, em primeiro lugar, o que se entende por diáspora. Segundo o Penguin Atlas of Diasporas, diáspora é “a dispersão coletiva forçada de um grupo religioso ou étnico precipitado por um desastre freqüentemente de natureza política”. A Nação Armênia, em sua história milenar, teve vários movimentos considerados diaspóricos, sendo o primeiro em 1080, rumo à Cilícia. Nos séculos XVII e XVIII, começa o movimento diaspórico em larga escala para a Europa, como conseqüência de dominações e perseguições. Cidades como Amsterdã, Londres e Marselha possuem até hoje igrejas construídas naquela época, símbolos eternos da passagem deste povo cristão. Existem também registros de forte presença armênia na Ásia. A partir do início das matanças sistemáticas de armênios nos anos de 1895 e 1896, o movimento diaspórico se intensifica especificamente para os Estados Unidos da América. Nessa mesma época, algumas famílias armênias chegam ao Brasil. Segundo VARTANIAN (1948) o início da formação da coletividade armênia no Brasil data do final do século XIX, quando a família Gasparian chega a São Paulo. O patriarca da família, Gaspar Gasparian, foi o primeiro a chegar e trouxe aos poucos também seus sobrinhos Nazarian e Jafferian, dando início assim ao que hoje conhecemos como Comunidade Armênia do Brasil. Segundo relatos, não confirmados, Dom João VI teria contratado um engenheiro holandês de origem armênia que veio ao Brasil, cumpriu seu contrato e voltou à Holanda. Os primeiros armênios que vieram de Kharpert, Armênia histórica, foram os pioneiros de um movimento que ganhou força nos anos 20. A Diáspora Armênia no Brasil se formou, verdadeiramente, no período de 1924 a 1926, segundo VARTANIAN (1948), quando um grande número de imigrantes provenientes da Síria, Líbano, Egito e Turquia aportou em terras brasileiras. Eles eram sobreviventes do Genocídio Armênio de 1915 e num primeiro momento tinham conseguido refúgio nos orfanatos, hospitais e casas comunitárias mantidas por organizações armênias fundadas especialmente para dar abrigo e alimentar os armênios, estabelecidas em cidades como Beirute, Cairo, Jerusalém, Aleppo, Damasco. 110 Mônica Nalbandian Marcarian - Diáspora Armênia no Brasil Esses imigrantes vieram com documentos sírios, libaneses, gregos, egípcios, turcos, ou mesmo com o passaporte nanseniano1, documento expedido especialmente para sobreviventes do genocídio que não possuíam nenhum tipo de documento pessoal. Tratava-se de uma forma de autorização internacional, que levava o nome do seu criador Fridtjorf Nansen, e permitia embarcar para o destino escolhido. Na verdade, o destino de muitos não tinha sido nem sequer escolhido, era apenas a certeza de ir para a América, terra nova, de oportunidades, e não necessariamente ao Brasil. Essa certeza é a mesma que permeia a trama do filme América, América de Elia Kazan, que retrata fielmente o desejo dos imigrantes de “fazer América” como diziam, sem sequer saber que o continente americano era uma terra que abrigava culturas, raças e nações diferentes entre si. O primeiro porto na América do Sul era o Rio de Janeiro, local onde ficaram vários armênios, formando uma comunidade considerável com aproximadamente trezentas famílias, que se organizaram em instituições e, apesar de não terem tido a oportunidade de construir uma igreja, ficaram unidas às denominações religiosas armênias de São Paulo. Os armênios que chegaram ao Brasil foram bem recebidos e se espalharam por vários estados. Os registros da comunidade demonstram que os armênios residem ou residiram no Ceará, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Distrito Federal e São Paulo. É provável que haja armênios em outras partes do país, porém não há informações oficiais. É necessário lembrar que os primeiros armênios trabalharam como mascates e, portanto, trilharam os caminhos do Brasil em todas as direções. Na verdade, a comunidade armênia do Brasil, centralizada hoje em São Paulo, Osasco e Rio de Janeiro, é fruto da reunião de famílias que começaram sua vida no interior e, pouco a pouco, se estabeleceram nos grandes centros. Cidades como Campo Grande, Guaxupé, Uberaba, Santa Maria, Porto Alegre, São José do Rio Preto, Anápolis, Araçatuba, Lins, Nova Palestina, Penápolis, São Paulo, Osasco, Fortaleza, Rio de Janeiro são alguns exemplos. Esses locais receberam de braços abertos os sobreviventes do genocídio armênio e lhes deram a possibilidade de trabalhar, formar famílias e progredir. O povo armênio sempre foi grato àqueles que o ajudaram. A história demonstra isto. Os armênios do Brasil se organizaram, erigiram suas igrejas e templos, suas escolas, suas instituições. Trabalharam com afinco e deram aos seus filhos a possibilidade de ter uma profissão, um diploma. Esses filhos começaram a trabalhar, tornando-se, em alguns casos, personalidades de destaque na vida do país. 1. É possível ver documentos desse tipo no acervo do Memorial do Imigrante. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 109-115 - 2008 111 Onde quer que dois armênios se encontrem, sempre haverá uma igreja e uma escola. No Brasil, não foi diferente. A organização da comunidade, especialmente em Osasco e São Paulo, é um exemplo disso. Segundo VARTANIAN (1948), já em 1924, a Igreja Apostólica Armênia tinha seu representante. Nos anos 30, a primeira igreja foi construída. Hoje existem duas igrejas: uma em Osasco e outra em São Paulo, a sede da Diocese. Já SAPSEZIAN (1988) lembra que a Igreja Evangélica Armênia existe no Brasil desde 1931 e a Católica Armênia, desde 1935. A vida comunitária começou a organizar-se com a fundação do Azkain Turian Varjaran, Externato José Bonifácio, que há 79 anos educa as crianças e jovens da comunidade. O povo armênio sempre se destacou perante seus vizinhos pela educação e cultura. Sua história e cultura milenares são estudadas por pesquisadores de inúmeros países. A necessidade de manter tradições, costumes, língua e cultura milenares, de fortalecer o sentimento de armenidade nas gerações nascidas na diáspora, foi e é ponto de extrema importância para os armênios, daí a preocupação de manter escolas, cursos de língua armênia, instituições beneficentes, culturais e regionais. Com o decorrer dos anos, a comunidade armênia do Brasil organizou-se em instituições, procurando assim locais para unir os imigrantes e seus descendentes. Hoje, com mais de oitenta anos de existência, a comunidade tem as três igrejas, a escola já mencionada, cursos de língua e cultura armênia no Clube Armênio (fundado em 1941) e na União Geral Armênia de Beneficência (fundada em 1964), associações culturais formadas dentro dos três históricos partidos políticos armênios, a Associação Beneficente de Damas Brasil Armênia e sua Casa de Repouso. Há também a Marachá, organização que congrega os imigrantes nascidos em Marash, uma das cidades que sofreram durante o genocídio, e seus descendentes. Nenhuma nação pode perdurar sem investir nas futuras gerações. Os armênios sempre souberam que a existência do povo armênio na diáspora dependia dos seus descendentes, cidadãos natos dos países que os acolheram. A comunidade armênia do Brasil hoje oferece aos representantes da terceira e quarta gerações instalações esportivas (dois ginásios de esportes), bibliotecas, salas de reunião para que conheçam e sintam orgulho de suas raízes e percebam que são seres privilegiados, pois são guardiões de duas culturas, a brasileira e a armênia. Sempre que se fala da Armênia, se pensa na distância. Porém, a comunidade sempre manteve laços estreitos com a Armênia. Nos 70 anos da Armênia Soviética, o elo era o Comitê de Relações Culturais com os Armênios da Diáspora, que constantemente enviava livros e materiais diversos para as escolas armênias, bem como para a Cadeira de Língua e Literatura Armênia da USP, estabelecida em 112 Mônica Nalbandian Marcarian - Diáspora Armênia no Brasil 1962 (segundo publicação no Diário Oficial), uma iniciativa pioneira na América do Sul e uma forma de divulgar a língua, literatura, cultura e história para além das fronteiras da comunidade. A partir de 1982, artistas e escritores da Armênia visitaram terras brasileiras. A comunidade armênia teve, em duas oportunidades, em 1985 e 1987, a possibilidade de enviar grupos de jovens à Armênia em viagem cultural. O terremoto de dezembro de 1988 trouxe uma nova realidade à comunidade. Preocupada com mais um momento de extremo sofrimento na história armênia, a comunidade uniu-se e trabalhou incansavelmente para enviar sua ajuda aos desabrigados. Mais uma vez, o governo e o povo brasileiro mostraram sua solidariedade e prestaram seu auxílio à comunidade, contribuindo na campanha nacional para arrecadação de roupas, medicamentos e alimentos, bem como na cessão de um avião da FAB para levar as mais de 40 toneladas de doações. Passados já 100 anos da chegada dos primeiros armênios, é possível afirmar que a comunidade está totalmente inserida na realidade nacional. Há muitos representantes na vida política e econômica. Qualquer registro escrito sobre a comunidade não esquece personalidades como os deputados federais Ubirajara Keutenedjian, Fernando Gasparian e Antonio Kandir; deputados estaduais como Carlos Kherlakian; Hrant Sanazar, primeiro prefeito de Osasco; ministro Antonio Kandir; Pedro Bedrossian, governador de Mato Grosso. Na área diplomática, muitos são os que serviram ou servem no Itamaraty. Só para citar alguns: Helena Gasparian, Garmirian e o atual embaixador brasileiro no Uruguai Arslanian. Nas diferentes profissões ou segmentos econômicos do país, o sobrenome com sufixo -ian aparece constantemente. Nomes como Aracy Balabanian, Stephan Nercessian, Denis Derkian tornaram-se conhecidos do grande público através de suas atuações na televisão. Há personalidades da comunidade que têm importância histórica dentro e fora do âmbito armênio, como é possível verificar em VARTANIAN (1960) e SAPSEZIAN (1994). Comendadores Karnig Bazarian, André Jafferian, José Distchekenian e Yertchanig Kissadjikian; Dr. Simão Kerimian, Prof. Dr. Yessai Kerouzian, Prof. Dr. Antranig Manissadjian, Dr. Antonio Miksian e Dr. Varujan Burmaian são alguns desses grandes homens destacados em suas áreas de atuação. Durante muitas décadas, talvez a única fonte de divulgação da armenidade tenha sido a Cadeira de Língua e Literatura Armênia. Os membros da comunidade na sua luta pela sobrevivência pouco fizeram para que a história e a cultura milenares fossem conhecidas em âmbito nacional, a não ser graças a algumas exceções. Porém, muitos foram e são os jovens não-descendentes de armênios que conhecem e divulgam a história, língua e cultura armênias. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 109-115 - 2008 113 Há poucos anos, a comunidade “despertou”, sentiu a necessidade de mostrar ao país que existia, e organizou uma exposição sobre a imigração armênia no Memorial do Imigrante. Apesar de ter sido uma das comunidades que colaboraram no início da existência do Memorial nos anos 90, ainda não tinha utilizado o espaço para divulgar sua existência. No ano de 2001, nas comemorações dos 1700 anos da adoção do cristianismo, a comunidade, mais uma vez, montou uma exposição bastante comentada. Desta vez, o intuito foi mostrar ao público que é a primeira nação cristã do mundo. Em 2004, por ocasião da primeira visita pastoral de Sua Santidade Karekin II, Patriarca Supremo e Katolicós de todos os armênios, a Pinacoteca foi palco da Exposição dos Tesouros da Igreja Armênia, os quais a Igreja guardou através dos séculos e das dominações. Em 2005, chegou o momento de mostrar ao mundo que, após noventa anos do genocídio, os armênios e seus descendentes continuam mantendo a cultura viva nos países em que se estabeleceram. Com a independência da República da Armênia, a comunidade teve mais uma alegria, o estabelecimento de relações diplomáticas com o Brasil. A existência do Consulado Geral da República Armênia em São Paulo e a definição do local para futura embaixada em Brasília demonstram isso. Hoje, após tantas décadas, a comunidade mostra, por meio da cultura, da língua e do trabalho, que é grata ao Brasil que acolheu seus pais e avós e lhes deu oportunidade de progredir. A melhor forma que encontra para expressar sua gratidão é servir à pátria brasileira com dedicação. Infelizmente, como mencionado no início do texto, não há muitos registros escritos sobre a vida da comunidade. A Comunidade Armênia de Osasco há pouco tempo organizou os documentos em uma área específica: o Clube Armênio e a União Geral Armênia de Beneficência estão montando seus arquivos catalogados. Como fontes de pesquisa, existem hoje também as bibliotecas das Igrejas e da escola, apesar da exígua bibliografia sobre o assunto. Para entender os armênios e a diáspora armênia no mundo, é necessário entender as palavras de William Saroyan (1908 – 1981), escritor armeno-americano, aqui traduzidas: 114 Mônica Nalbandian Marcarian - Diáspora Armênia no Brasil Gostaria de ver qualquer poder do mundo destruir essa raça, essa pequena tribo de pessoas pouco importantes, cujas guerras foram todas perdidas, cujas estruturas ruíram, cuja literatura não é lida, cuja música não é ouvida, e orações não são respondidas. Vá em frente, destrua a Armênia. Veja se você pode fazê-lo. Envie-os ao deserto sem pão ou água. Queime suas casas e igrejas. Depois, veja se eles não rirão, cantarão e rezarão novamente. Pois quando dois deles se encontrarem qualquer lugar do mundo, veja se não criarão uma nova Armênia. Saroyan, William in CHALIAUD and RAGEAU – Penguin Atlas of Diasporas – USA, 1995. Bibliografia: BOURNOUTIAN, George A. A History of the Armenian People vol. I. New York, Mazda Publishers, 1993. CHALIAUD and RAGEAU. 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Embora o Brasil não fosse o local de preferência, algumas famílias desses imigrantes se instalaram em São Paulo e no Rio de Janeiro. Nessas cidades, sefaradim e judeus-orientais organizaram-se em comunidades com características distintas dos judeus de outras origens, que também emigraram no mesmo período. Estudos comparativos entre esses imigrantes nos levaram a considerações interessantes e pouco aprofundadas por aqueles que se dedicam aos estudos da imigração judaica no Brasil. Os dirigentes dessas primeiras comunidades do Oriente Médio no Brasil recepcionaram em suas sinagogas os imigrantes, seus conterrâneos, que chegaram a partir da década de 50 do século XX. Palavras-Chave: Sefaraditas, Judeus Orientais, Árabes/Otomanos, Oriente Médio, Imigrantes. Abstract: the obligatory requirement to join the Turkish army in the first decade of the XX th. Century, unemployment, poverty and conflicts between the ethnic groups in the old Ottoman Empire, lead the Sephardim (Jews from the Iberian Peninsula) and the Oriental Jews (Arabic-speaking Jews) to migrate to the Americas. Although some of these immigrants preferred to settle themselves in Argentina, Uruguay or Chile, a few families settled in Rio de Janeiro and São Paulo. Sephardim from Izmir, Istambul, Rhodes Island and other places of the present Turkish Republic and the Oriental-Jews from Sidon, Beirut, Safed and from other cities of old Palestine organized themselves in communities different and distinct of those of the Askenazim (Yiddish-speaking Jews from Central and Oriental Europe), that migrated in that same period. __________ * Autora de: Imigrantes Judeus do Oriente Médio em São Paulo e Rio de Janeiro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2003. 117 Comparative studies of those communities lead us to unheard of conclusions on studies on the Jewish immigration into Brazil. After studying the Jewish communities in the Ottoman Empire we analysed their insertion into the Brazilian society. Leaders of the first Middle-Eastern communities in Brazil received in their synagogues Jewish immigrants of their same geographic origin that immigrated into Brazil in the 1950’s, after conflicts started between Muslims and Jews following the foundation of the State of Israel. Key words: Ottoman Empire, Multiculturality Identity, Imigration Oriental Jew, Sefardi Jew. Os Otomanos, povo de origem asiática, iniciaram conquistas em direção à Anatólia e Oriente Médio a partir de 1291. Em 1453, depois de conquistar a cidade de Constantinopla, capital do Império Bizantino e baluarte do cristianismo no Oriente, os otomanos ampliaram o domínio sobre extensas terras que iam da Península Balcânica ao Rio Danúbio na Europa e da Anatólia às regiões do Império Árabe e ao norte da África. Em meados do século XVII, absorvendo a Palestina e a Arábia, os otomanos atingiram a máxima extensão do Império, dominando em um único bloco terras dos Mares Negro, Egeu, Vermelho e do Golfo Pérsico, herdando do Islã as grandes concentrações urbanas do Oriente Médio1. Istambul, antiga Constantinopla, foi capital desse imenso Império que perdurou até pouco depois do final da I Grande Guerra. Convertidos ao islamismo e conscientes do fracasso das tentativas de imposição religiosa e cultural, os otomanos posicionaram-se nas terras conquistadas compondo uma ampla sociedade pluralista, considerando oportunas e vantajosas as possibilidades de riquezas advindas da tolerância2. Diante das diferenças étnicoreligiosas e conscientes das possíveis animosidades que poderiam surgir entre os habitantes do Império – muçulmanos, cristãos e judeus —, os otomanos adotaram um sistema administrativo conveniente3. Cada grupo religioso organizar-se-ia em 1. Os 400 anos do domínio otomano podem ser sistematizados da seguinte forma: de 1300 a 1402 – período da ascensão do Primeiro Império; apogeu, de 1555 a 1789 e período da desagregação territorial e política do Império: de 1789 a 1914. 2. O Corão manifesta-se de forma clara e inequívoca sobre o judaísmo e o cristianismo, reconhecidos como “formas primitivas, incompletas e imperfeitas do Islã, mas depositárias de uma genuína, ainda que distorcida revelação divina”. In: Stillman, Norman A. The Jews of Arab Lands. A History and Source Book. Philadelphia: The Jewish Publication of America, 1979, p.25. 3. Os judeus apresentavam-se com vantagens quando comparados a outras minorias do Império: não ofereciam ameaça política, nem desafio à fé oficial e, tampouco, disputavam com os muçulmanos a adesão dos pagãos. Já os cristãos, praticantes de uma religião proselitista e competidora, constituíam-se em uma ameaça potencial, visto serem senhores de vasto Império adversário. Os positivos contatos entre otomanos e judeus permitiram 118 Rachel Mizrahi - A Multiculturalidade Otomana... comunidades próprias e autônomas, denominadas Millet, dirigidas por um chefe religioso, responsável pela administração e cumprimento das leis. Além da religião, o responsável pela Millet cuidava dos deveres e responsabilidades dos participantes comunitários, da segurança coletiva e pagamento dos impostos à classe dominante otomana. A harmonia e a tranqüilidade social constituíam os principais objetivos do sistema organizado pelos otomanos, cujo poder emanava do sultão, personagem central que vivia em um majestoso palácio conhecido, nos círculos diplomáticos, como La Sublime Porte ou La Porte. O soberano constituía a chave do sistema otomano, ponte da lealdade entre governantes e governados. Durante quatro séculos este sistema funcionou e se tornou fator básico de estabilidade em distintos espaços. Por meio dele, diferentes grupos culturais mantiveram-se separados, reduzindo ao mínimo possíveis focos de conflito. Baseado nessa organização administrativa, o Estado Otomano estruturou-se em uma sociedade multicultural. Comunidades Judaicas do Império Otomano Ao cessar as conquistas, os otomanos passaram a dominar numerosas comunidades judaicas, entre as quais, as organizadas por moçárabes e sefaraditas.4 Os moçárabes, conhecidos, hoje, como judeus orientais, viviam nas terras árabe-muçulmanas desde meados do século VII. A convivência de 13 séculos entre judeus e árabes aproximou-os em larga medida, alimentando uma tradição judaicoislâmica, paralela à judaico-cristã do mundo ocidental. A longa convivência levou judeus a assimilar traços da cultura árabe como o idioma, a música, a dança, os costumes alimentares e o forte patriarcalismo. Embora intensa, a “arabização” não atingiu a religião e as tradições. Os sefaraditas5 chegaram às terras otomanas a partir da expulsão da Espanha em 1492 e da Conversão Forçada em Portugal em 1497, estabelecendo-se no Império quase do mesmo modo que na Península Ibérica dos áureos tempos6. No laços sólidos de identidade numa convivência secular de mútuo e duradouro respeito. 4. As dispersões dos judeus por diferentes espaços geográficos produziram um povo de 16 grupos culturais que, embora identificados pela fé e tradições religiosas (interiorizadas antes das diásporas e preservadas nas terras onde se instalaram), apresentam-se hoje com valores, costumes e idiomas diferenciados. 5. O termo sefaradita ou sefaradi designa os judeus da Península Ibérica e seus descendentes. Sepharad (provável região da Ásia Menor) era o nome judaico da Ibéria. Os sefaraditas diferenciam-se dos orientais por se expressarem em ladino ou judezmo-espanõl, misto de termos em português/espanhol medieval, palavras árabes, hebraicas e de outras origens. 6. A expulsão, decretada pelos reis católicos Fernando e Izabel, e a conturbada decisão de D. Manoel I acabaram com a convivência entre muçulmanos, judeus e cristãos da Península Ibérica medieval. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 117-129 - 2008 119 período, o sultão Bayasid II (1481-1512) e sucessores perceberam os préstimos e conhecimentos dos sefaraditas, úteis não só para a expansão e desenvolvimento do comércio regional e internacional, como ao incremento das finanças, da diplomacia, negócios bancários, corretagem e na ourivesaria7. Em pouco tempo, os refugiados acabaram designados pelos dirigentes otomanos para importantes cargos políticoadministrativos, participando, inclusive, da estratégia de colonização de diversas áreas do vasto Império. Um notável exemplo da proximidade entre otomanos e sefaraditas é a mulher do magnata português Francisco Mendes. Em 1537, Grácia Mendes, ao ficar viúva, assumiu os negócios do marido na Europa, posicionando-se depois como conselheira dos negócios exteriores dos sultões Suleiman e Selim II8. O sobrinho, Joseph Nasi, nobilitado por Suleiman como Duque de Naxos, idealizou com a tia um plano de colonização de conterrâneos na cidade de Tiberíades. A idéia não se concretizou pela preferência sefaradita por cidades cosmopolitas como Istambul, Esmirna e Anatólia9. Quando chegaram às terras otomanas do Oriente Médio, os sefaraditas iniciaram contatos com judeus de outras origens. O encontro provocou dúvidas recíprocas, fenômeno que ocorreu em cada região do Império onde os judeus ibéricos se instalaram. Uma característica comum os identificava: a determinação de conservar a identidade cultural preservando a origem, o idioma, as tradições e os costumes religiosos. O trauma da expulsão das terras de origem parecia não ter sido superado, pois tanto portugueses como espanhóis exilados em diversas terras otomanas permaneceram ligados às suas origens e tradições ancestrais. Embora atentos e observantes dos preceitos religiosos e familiares, esses judeus mostraramse, paralelamente, abertos e receptivos ao meio cultural que os cercava. O orientalista Issachar Ben Ami, professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, diz que a interação cultural entre esses dois grupos no Império Otomano seguiu três cursos distintos: assimilação total dos exilados entre os autóctones; preservação completa ou parcial da cultura dos exilados e influência direta e 7. O sultão Bayasid chegou a questionar a sabedoria de Fernando II ao despovoar seus domínios e enriquecer os dele. In: ROTH, Cecil. Pequena História do Povo Judeu. Terceiro vol. (1492- 1962). São Paulo: CIP, 1964, p.33. 8. Grácia ou Beatriz Mendes de Luna, famosa pela beleza e benemerência, depois de viver em cidades como Antuérpia e Veneza, instalou-se, a conselho do sobrinho, ao lado dos dirigentes otomanos. In: Azevedo, J. Lúcio. História dos Cristãos Novos Portugueses. Lisboa: Livraria Clássica Portuguesa, 1921, p. 368 e seg. 9. “Doña Gracia Nasi e Joseph Nasi, Duque de Naxos” (1579). In: Morashá, Revista da CBSP. São Paulo, abril e setembro de 1998. 120 Rachel Mizrahi - A Multiculturalidade Otomana... recíproca entre os dois grupos10. O historiador informa que a interação entre os grupos dependeu do número de participantes envolvidos, do meio e da maior ou menor aproximação entre os grupos. O centro de convergência sefaradita no Império foi Istambul. A capital otomana era uma verdadeira praça de câmbios, onde produtos do velho e novo mundo eram comercializados. Nessa cidade, considerada “mãe das comunidades judaicas”, o Chaham Bashi – líder religioso – era consagrado pelo sultão11. Depois de Istambul, Esmirna, Salônica e a Ilha de Rodes foram cidades de grande concentração sefaradita. Amparados e protegidos, vivendo próximos ao poder, os sefaraditas mantinham-se respeitosos em relação às autoridades otomanas constituídas, identificando-se com suas necessidades e anseios em distintas épocas. Geograficamente distantes do Poder Otomano, os judeus orientais, nas mais antigas comunidades judaicas do Oriente Médio, mantiveram convivência de séculos com os muçulmanos da Síria e da Palestina, resultando, como acima dissemos, uma simbiose entre os dois grupos religiosos. As raízes comuns das línguas árabe e hebraica, as regras do matrimônio, da poligamia e as leis religiosas dietéticas prestaram-se para aproximá-los em larga medida. Os árabes, em maior número nas províncias otomanas, estabeleceram relações econômicas e sociais com os judeus, minoria com a qual mais se identificavam. Na cidade de Damasco, considerada como o “Portão do Jardim do Éden”, as comunidades judaicas viveram em consonância com os árabes muçulmanos. As amistosas relações entre os dois grupos foram, aos poucos, se perdendo, sobretudo, quando os cristãos europeus instalaram-se na Síria. Em 1840, na cidade de Damasco, a denúncia de um “crime ritual”12 atribuído aos judeus foi o estopim para a quebra do equilíbrio e da tolerância religiosa na Síria. O crime, conhecido como “Caso Damasco”, foi o assassinato do frade capuchinho Thomas de Camangiano e de seu criado e serviu de pretexto para o anti-semitismo. Os capuchinhos, mancomunados com o cônsul da França, acusaram os judeus dos crimes, exigindo a punição do principal suspeito. Salomon Negrin foi torturado até “confessar culpas”, seguido por outros judeus que foram presos e também torturados. A fraude foi mais tarde descoberta. Embora os otomanos retomassem a proteção aos judeus na Síria, o 10. Ben Ami, Issachar. Sephardi and Oriental Jewish Heritage. Universidade Hebraica de Jerusalém, 1982. In Identidade Sefaradi: Aculturação e Assimilação. Novinsky e Kuperman. Ibéria Judaica. Roteiros da Memória. São Paulo, EDUSP, 1996, p.343 e seg. 11. A autoridade do “Chaham Bashi” estendia-se das comunidades do Império até as da Palestina. O significado tradicional dessa autoridade é, até hoje, respeitado. 12. O “crime ritual” foi um mito anti-semita, desenvolvido na Europa medieval. Acreditava-se que os judeus utilizavam-se do sangue de uma criança cristã para preparar o pão ázimo na Páscoa Judaica. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 117-129 - 2008 121 anti-semitismo sírio cresceu e levou muitos a buscar refúgio na região do atual Líbano e Egito. No Noroeste da Síria, Alepo, conhecida no texto bíblico como Aram Tzobá e organizada segundo o modelo da antiga Babilônia, foi importante centro do judaísmo13. De ininterrupta vida judaica, Alepo14 tornou-se célebre por guardar em sua Grande Sinagoga antigos pergaminhos, entre os quais, o “Codex de Alepo”, a “Coroa” da Torá, venerável e respeitado manuscrito hebraico, a “Bíblia do Egito” estudada em fins do século IX pelo sábio Aron Ben Asher15. Segundo a tradição judaica, foi nos recintos da Grande Sinagoga de Alepo que os sábios redigiram comentários do Talmud Babilônico, no século V16. Ao lado do significado religioso, Alepo, posicionada entre Europa, Ásia Central e Índia, transformou-se em pólo econômico terrestre do Oriente Médio em direção às terras européias e as do distante Extremo Oriente. Ao se desenvolver o comércio de importação e exportação de produtos diversos, numerosos comerciantes europeus afluíram à cidade. A máxima extensão imperial otomana foi conseguida em 1863 na posse das antigas Jerusalém e Safed, cidades com grande significado emocional para os judeus do Império e da Diáspora. A expressividade de Jerusalém se encontra no “Muro das Lamentações”, parte da grande ala do Segundo Templo, erguido em 518 a.C. sobre os alicerces do primeiro, inaugurado pelo rei Salomão em 960 A.E.C. Na cidade, uma comunidade original subsistiu em congregações amparadas por filantropos do mundo judaico europeu. A cidade de Safed aglutinava judeus, não só pela aura de uma antiga origem, mas por ter sido núcleo administrativo e econômico do Império Otomano na Palestina. Identificada nos antigos documentos como Sepph, Safed situa-se na Alta Galiléia, a 850 m acima do nível do mar. O clima agradável, a disponibilidade de água potável e a proximidade de Sidon, porto mais ao norte, favoreceram sua prosperidade. A entrada de cabalistas espanhóis como Isaac Ben Salomão Luria (1534 -1572) transformou Safed em um centro de estudos judaicos e místicos. Os conhecimentos da Cabala17 difundiram-se pelas comunidades judaicas da Turquia, 13. Babilônia foi o local do primeiro exílio de judeus depois da destruição do Primeiro Templo de Jerusalém, em 586 a C. 14. Alepo é conhecida pelos seus habitantes como Halab, termo que, em hebraico e árabe, significa leite. Segundo se crê, “o Patriarca Abraham em direção à Canaã parou na região com seu rebanho”. 15. Isaac BenTzvi. “Corona de la Torá” de Ben Asher. In Los judíos de Alepo. Jerusalém, Instituto de Estudos Judaicos da Universidade Hebraica de Jerusalém. Israel s/d. pg.3. 16. Talmud: registro comentado da Torá. In Rifka Berezin. O Keter – a “Coroa” de Alepo. Revista Morashá, dezembro 1999. 17. Cabala: concepção mística, cosmológica e especulativa da antiga tradição judaica. 122 Rachel Mizrahi - A Multiculturalidade Otomana... dos Bálcãs e da Europa central, constituindo-se parte normativa do judaísmo, a partir do século XVI18. Em Safed, os sefaraditas, experientes na indústria têxtil, fizeram com que o vilarejo fosse transformado em importante centro urbano. Agradecidas pelo apoio e proteção otomana, quinhentas famílias judias, politicamente confiáveis, transferiram-se em 1577 às recém-conquistadas terras otomanas da Ilha de Chipre19. Em meados do século XVIII, Beirute transformou-se em alicerce regional, por permitir a entrada de embarcações de grande porte. Além do significado do porto, ponto inicial dos peregrinos em direção à Terra Santa20, a cidade foi procurada por habitantes judeus do mundo otomano, entre os quais os de Alepo e de Damasco. Os maronitas, originários da antiga seita fundada por Juan Marón no século VII, constituíam maioria cristã, protegida por europeus que se mantinham em posições privilegiadas na cidade libanesa. Assim que o exército de Napoleão Bonaparte deixou o Egito, Muhammad Ali conseguiu do sultão otomano a outorga do poder egípcio de 1805 a 1849. Pretendendo uma política de tolerância e conformação social, Muhammad estabeleceu tribunais civis, delimitando o poder religioso das minorias. Comunidades judaicas mantinhamse bem nas cidades de Alexandria e Cairo. A abertura do Canal de Suez em 1869 favoreceu o desenvolvimento do Egito e de outras regiões do Oriente Médio pelo incremento dos transportes, mercadorias e atividades bancárias. Elo entre Ásia, África e Europa, o Egito transformou-se em ponte comercial de mercadorias entre as cidades de Paris, Marselha, Madri, Barcelona, Nápoles, Trieste, Gênova e Veneza, de um lado, e as de Alexandria, Atenas, Istambul, Beirute, Alepo, Haifa, Tel-Aviv e Jerusalém, de outro. 18. Johnson, Paul. História dos judeus. Rio de Janeiro: Ed. Imago, 1995, p. 271. 19. Lowry, H. W. “When did the sephardin arrive in Salonica”. In Avigdor Levy (org). The Jews of Ottoman Empire. Washington D.C., 1994, p. 203 e seg. 20. O imperador brasileiro D. Pedro II, a esposa Teresa Cristina e comitiva iniciaram peregrinação à Terra Santa, pela cidade de Beirute. In Reuven Faingold. D. Pedro II na Terra Santa. Diário de viagem, 1876. São Paulo: Ed. e Liv. Sêfer, 1999. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 117-129 - 2008 123 Ruptura do Império Otomano Em 1856, os otomanos, adaptando-se às circunstâncias, abriram canais de contatos — comerciais e diplomáticos — com o Ocidente, abolindo as antigas restrições legais das minorias, impostas pelos árabes desde tempos medievais. A partir dessa determinação, os súditos do Império Otomano foram declarados “iguais, independentemente de sua religião”21. A pressão econômica e a efetivação da presença dos europeus no Império levaram a que lhes fossem concedidas vantagens político-econômicas, institucionalizadas pelas “Capitulações”. Tratava-se de privilégios concedidos a estrangeiros que viviam nas terras otomanas e não estavam submetidos às suas leis e determinações. Essa deliberação levou a que os grupos minoritários se distanciassem dos dirigentes otomanos, pois, ao conseguir identidades ou passaportes estrangeiros, cristãos e judeus passaram a exercer atividades comerciais, sobrevivendo às eventuais desordens políticas. Diante da perda de várias regiões do Império, no decorrer do século XIX, os otomanos se tornaram impotentes e em inferioridade. Extinto o poder dos Janízaros — componente principal da infantaria e virtual controlador de poder dos sultões — oficiais europeus foram contratados para a instrução militar otomana, criandose um exército equipado e organizado nos moldes ocidentais. Reformas foram implementadas no sistema de recrutamento, na carreira militar e no soldo, com o objetivo de submeter toda a população masculina do Império ao serviço militar obrigatório, incluindo as minorias religiosas, anteriormente liberadas da função. Para que essas revolucionárias reformas fossem efetivadas e democraticamente aplicadas era necessário que a posição autocrática do sultão e da classe governante fosse abrandada. Em 1908, o movimento liderado pelos “Jovens Turcos” depôs o sultão Abdül Hamid II, buscando “adaptar o islamismo à ciência e ao progresso”22. Objetivando uma sociedade laica, os líderes do movimento pretendiam, além da emancipação da mulher, abolir a poligamia, adotar a lei civil, o desenvolvimento da indústria, do comércio e a otomanização dos súditos do Império. 21. Lifshitz, Linda Dabbah de. La inmigración de los judios de Alepo. Los Judios de Alepo en México. México: Maguen David, 1989, p.104. 22. No período, um documento do Itamaraty nos informa que a Revolução de 1908 ou dos Jovens Turcos “foi uma das burlas colossais e que tem surpreendido a boa fé da opinião pública européia; o movimento era liberal e constitucional apenas na superfície...seu verdadeiro caráter era nacionalista ou antes otomano, já que cumpre não esquecer que, no Oriente Médio, nacionalidade significa raça e religião”. Doc. nº. 6 553. Atenas, 21/6/1914, AHI/RJ. 124 Rachel Mizrahi - A Multiculturalidade Otomana... No período, o antagonismo entre as grandes nações européias — Inglaterra, França e Alemanha — refletia-se não somente na competição por mercados, mas no interesse de explorar os recursos minerais da região, como o petróleo. A beligerância nos Bálcãs, a ingerência russa em várias regiões do Império Otomano, a construção da Estrada de Ferro Berlim-Bagdá e a tomada da Líbia pela Itália levaram nacionalistas turcos a se posicionar ao lado da Alemanha quando a Primeira Guerra Mundial foi iniciada. O conflito destruiu por completo a velha ordem européia e a do Império Otomano. A inoperância administrativa dos Jovens Turcos levou à anarquia política e ao caos social e econômico das regiões controladas, retalhando completamente o Império. Resistindo às forças vencedoras da Primeira Guerra, Kemal Pachá, o Atatürk, o Pai dos Turcos, transformou-se em instrumento efetivo das rápidas e fundamentais reformas na estrutura política da atual República da Turquia. Eliminando as divisões sociais herdadas do passado, Atatürk conseguiu uma sociedade “homogênea, democrática e moderna”23. Em 1928, a Turquia declarouse laica, afastando-se do conservadorismo do Estado. Essa diretriz transformou a República na primeira nação islâmica a secularizar o islamismo, ato que correspondia às necessidades de uma sociedade moderna. As correntes de renovação política a partir de 1909 não atingiram os grupos religiosos do Império. A maior insegurança das minorias religiosas foi revelada pela obrigatoriedade do serviço militar instituído nos domínios otomanos, pois a extensão das terras levava a que o serviço durasse muitos anos, impedindo o cumprimento das obrigações religiosas e familiares. Diante dessas drásticas mudanças, muçulmanos, cristãos e judeus optaram pela emigração, pois a perda das vantagens tradicionais passou a ser vista como início do processo coercitivo de integração à nação turca. Imigrantes do Oriente Médio no Brasil. Os judeus. Os primeiros imigrantes do Oriente Médio chegaram ao Brasil a partir de 1876, depois da viagem do Imperador D. Pedro II com família e comitiva à Terra Santa. O fluxo imigrante se manteve contínuo. A precariedade das comunicações no início do século XX fez com que os acontecimentos do Oriente Médio chegassem ao Brasil com retardo. O governo inteirava-se do Oriente Médio por meio dos escritórios de representação, instalados nas cidades gregas de Atenas, Salônica e Alexandria, no Egito. Os primeiros documentos do Oriente Médio, existentes no Arquivo Histórico do Itamaraty, são 23. LIFSHITZ, Linda D. de. Op. Cit. p. 104 e 105. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 117-129 - 2008 125 fragmentários. O cônsul de Atenas, Carlos Magalhães de Azevedo, informa-nos que, em 1914, não havia “cidadão brasileiro no Império Otomano, mas existia um grande número de cidadãos otomanos no Brasil”24. Dados estatísticos de 1908 a 1922 indicam a entrada no porto do Rio de Janeiro de 50.766 “turco-árabes” compostos por cristão-maronitas, muçulmanos e judeus. Originários do desmoronado, mas ainda constituído Império Otomano, esses imigrantes foram registrados nos livros oficiais como turcos ou turco-árabes, sem especificação religiosa25. O professor Oswaldo Truzzi demonstrou que esses imigrantes compunham, em 1920, a quarta etnia em São Paulo, com 19.290 pessoas26. Fortunato Sellam, cônsul honorário que representava nossos interesses em Beirute, teve oportunidade de recepcionar, em 1925, os primeiros peregrinos cristãos, procedentes do Brasil, em visita às Terras Santas, utilizando o mesmo roteiro de D.Pedro II27. A proverbial violência militar otomana contra grupos de oposição e minorias étnicas — armênias e curdas —, amplamente divulgada pela imprensa internacional e pela correspondência diplomática do início do século XX, fez com que os imigrantes do Oriente Médio no Brasil rejeitassem uma origem “turca”28. Associados ao estereótipo da época, os emigrantes dos atuais Estados da Síria e do Líbano assumiram a identidade sírio-libanesa no Brasil 29. Da cosmopolita Beirute emigraram muçulmanos, cristão-maronitas, judeus e armênios da Anatólia, refugiados da “tirania turca”30. O cônsul honorário, Fortunato Sellan, emitiu passaportes aos designados por “cartas-de-chamada”, emitidas no Brasil. 24. Ofício de Carlos Magalhães de Azevedo, cônsul de Atenas ao General Lauro Müller, Ministro de Estado das Relações Exteriores. Athenas, 12 de junho de 1914. Doc. 5743. Vol. 202/2/6. AHI/RJ. 25. Ofício de J. Mesquita Barros, diretor interino da Diretoria do Serviço de Povoamento do Ministério da Agricultura, Indústria e Comércio do Rio de Janeiro em 26 de setembro de 1923. Doc. 158. Vol. 293/3/4. AHI/ RJ. 26. TRUZZI, Oswaldo. De Mascates a Doutores: Sírios e Libaneses em São Paulo. São Paulo: Sumaré - Série Imigração. 1992, Cap.I. 27. Ofício de Fortunato Sellan, cônsul de Beirute, ao Dr. José F. Alves Pacheco, Ministro de Estado das Relações Exteriores. Beirute: 28 de julho de 1925. Doc. nº. 573. Vol. 238/1/17. AHI/RJ. 28. Ofício de Carlos Magalhães de Azevedo, cônsul de Atenas ao General Lauro Müller, Ministro de Estado das Relações Exteriores. Atenas, 28 de junho de 1914. Doc. 6553. Vol. 202/2/6. AHI/RJ. 29. O Líbano conseguiu autonomia política em 1943 e a Síria, em 1946. 30. Segundo o ofício de Álvaro da Cunha de Atenas ao General Lauro Müller, Ministro de Estado das Relações Exteriores. Atenas, 4 de outubro de 1914. Doc. nº. 8.718. Vol. 202/2/6. E de Fortunato Sellan, cônsul de Beirute, ao Ministro das Relações Exteriores. Beirute, 16 de novembro de 1922. Doc. nº. 185. Vol. 263/2/7. AHI/RJ. 126 Rachel Mizrahi - A Multiculturalidade Otomana... Natal, Recife, Salvador, Rio de Janeiro e Santos, primeiras cidades-porto da América do Sul, receptoras de mercadorias, abrigaram os imigrantes do Oriente Médio, sem destino certo. Parte dos viajantes, cansada da longa travessia no mar, atraída pelo exotismo da terra e pela luminosidade tropical, tomava a decisão de permanecer na terra. No século XX, a primeira corrente imigratória do Oriente Médio ao Brasil foi basicamente masculina e constituída de rapazes. Os fortes laços de família, os sentimentos de pertinência cultural e religiosa impediam que a decisão de permanecer fosse definitiva. Quando as condições permitiram, os retornos às terras de origem foram comuns. A maioria, depois de encontrar esposa da mesma origem e religião, retornava; os já casados na terra brasileira enfrentavam problemas. Documentos informam que as esposas cristãs, mal recebidas pelas famílias muçulmanas dos maridos, vendo-os retornar aos costumes locais, procuraram ajuda no consulado brasileiro para voltar com seus filhos ao Brasil. A urbanização progressiva do Sudeste brasileiro, decorrente da expansão industrial nas primeiras décadas do século XX, abrindo perspectivas para múltiplas atividades comerciais, possibilitou aos imigrantes do Oriente Médio estabeleceremse não só nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, mas nas suas zonas suburbanas e rurais, onde existiam mercados para produtos de venda “à prestação”. Essa modalidade comercial permitiu enfraquecer a tradicional dependência dos colonos em relação aos proprietários dos armazéns do meio rural. Carregando cortes de tecidos, armarinhos, guarda-chuvas e pequenos produtos nas malas, braços e ombros, o imigrante do Oriente Médio, conhecido como o turco da prestação, em pouco tempo, instalava-se no comércio lojista. Os imigrantes do Oriente Médio estabeleceram-se no Rio de Janeiro no “corredor de passagem da Estrada de Ferro Central do Brasil em direção ao centro de trabalho e financeiro da cidade”. Na Rua da Alfândega, conhecida como Rua dos Turcos, residiam famílias muçulmanas, cristã-maronitas e judias em um espaço de respeito e cordialidade. Local de residência e de trabalho, a área ficou conhecida como “Pequena Turquia”. Em 1962, projetos urbanísticos da área central do Rio de Janeiro levaram a que os comerciantes se organizassem em um órgão de representação, o SAARA – “Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega”. Iniciada a sociedade para defesa de interesses comerciais, os componentes do SAARA construíram amizades duradouras, independentes das diferenças culturais e religiosas31. A primeira diretoria da SAARA foi constituída 31. A Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega (SAARA) foi criada em 1962, por comerciantes da região ameaçada por um projeto urbanístico que pretendia cortar ruas. In RIBEIRO, Paula. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 117-129 - 2008 127 por brasileiros, descendentes de portugueses, sírio-libaneses, muçulmanos, judeus e cristão-armênios. Em São Paulo, da mesma forma, os imigrantes do Oriente Médio de diferentes origens culturais e religiosas compuseram grupos comerciais e de amizade no bairro do Brás, em torno das ruas do Oriente e 25 de Março. Os primeiros imigrantes judeus do Oriente Médio que chegaram ao Brasil fizeram parte, portanto, de uma corrente maior constituída por “sírio-libaneses”, maronitas e muçulmanos que vieram de forma espontânea e sem qualquer ajuda oficial.32 A maioria dos emigrantes sefaraditas do Império Otomano, pertencente aos quadros das classes média e alta, de vida estável, sentindo-se igualmente insegura com as transformações políticas, expressas pelo movimento de 1908, emigrou. A insegurança se ampliou pelo anti-semitismo introduzido no Oriente Médio por europeus e freqüentemente utilizado como arma política da liderança muçulmana e cristã. A perda da autonomia comunitária, do direito de arrecadar fundos para manter as sinagogas, as obras de caridade, o ensino da religião e da língua hebraica, transformou-se em motivo de maior insatisfação na emigração de retorno ao Ocidente. Além dos países europeus, os sefaraditas buscaram os E.U.A., o Canadá e, particularmente, a América Latina pela proximidade do espanhol com o ladino, idioma-mãe dos sefaraditas. Os que permaneceram nos primeiros portos do Atlântico Sul, Salvador e Recife, surpreenderam-se com a semelhança entre o ladino e o português. Os judeus orientais, de fala árabe e condições simples, instalando-se nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, tiveram, como os ashkenazitas, de fala iídiche33, dificuldades iniciais de entrosamento pelas diferenças de idioma. Maioria do conjunto dos imigrantes judeus, os ashkenazitas eram procedentes de diversos países europeus. Embora “minoria da minoria”, os imigrantes judeus do Oriente Médio no Brasil ergueram sinagogas e criaram instituições, mantendo tradições e costumes de suas comunidades de origem. A esses primeiros imigrantes, juntaram-se, na segunda metade do século XX, numerosas famílias procedentes dos países árabes que, pela “Saara”: uma paisagem singular na cidade do Rio de Janeiro. PUC/São Paulo, Dissertação de Mestrado mimeografada, agosto 2000. 32. Os 500.000 judeus do Oriente Médio compunham a quinta maior comunidade da Diáspora. In: McCarthy, Justin. Jewish Population in the late Ottoman Period. Avigdor Levy. The Jews of Ottoman Empire. Princeton, N.J. Washington, D.C. 1994, p.375. 33. Misto de termos alemães, russos, eslavos e palavras hebraicas. 128 Rachel Mizrahi - A Multiculturalidade Otomana... rígida oposição ao Estado de Israel (sancionado pela ONU, em 1948), provocaram a desarticulação das seculares comunidades judaicas lá instaladas, o que levou seus membros a buscar refúgio em países como o Brasil, onde puderam viver e trabalhar com tranqüilidade34. Bibliografia: AZEVEDO, João Lúcio. História dos Cristãos Novos Portugueses. Lisboa: Livraria Clássica Portuguesa, 1921. BENSASSON, H. H. BEN (org.). Historia del pueblo judío. Tel Aviv, e Madrid: Alianza Editorial, 1988. FAINGOLD, Reuven. D. Pedro II na Terra Santa. Diário de viagem: 1876. São Paulo: Sêfer, 1999. FAUSTO, Boris. Negócios e Ócios - Histórias da Imigração. São Paulo: Companhia das Letras. 1997. _________. Fazer a América. A Imigração em massa para a América Latina. São Paulo: EDUSP, 1999. JOHNSON, Paul. História dos Judeus. Rio de Janeiro: Imago Editora, 1989. KNOWTON, Clark. Sírios e Libaneses: mobilidade social e espacial. São Paulo: Anhembi, 1961. LEWIS, Bernard. Judeus do Islã. Rio de Janeiro: Xenon Ed., 1990. MIZRAHI, Rachel. A Inquisição no Brasil: Um capitão-mor judaizante. Centro de Estudos Judaicos/USP, 1984. _________. Lembranças...Presente do Passado. São Paulo: Hebraica/Smkuler, 1997. _________. Judeus. Série: Imigrantes no Brasil. Lazuli/Cia.Editora Nacional, 2005. RATTNER, H. Tradição e Mudança: a Comunidade judaica em São Paulo. 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Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 117-129 - 2008 129 Os concursos de beleza na comunidade nipo-brasileira e a imagem da mulher nikkei1 Koichi Mori* Barbara Inagaki** Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar a transformação da imagem da mulher descendente de japoneses no Brasil no período pós-Segunda Guerra Mundial através dos concursos de beleza promovidos nas comunidades nikkeis, dando especial atenção aos concursos “Miss Colônia” e “Miss Nikkei Internacional”, promovidos pelo Jornal Paulista. Para tanto, além da exposição da visão panorâmica da história da imigração japonesa ao Brasil e do desenvolvimento da colônia nikkei, será traçado um paralelo entre o desenvolvimento dos concursos de beleza e a situação socioeconômica da sociedade brasileira. Palavras-chave: mulher nikkei, concurso miss, história da imigração japonesa no Brasil, identidade feminina, imagem da mulher, comunidade nipo-brasileira. Summary: The objective of the present work is to analyze the transformation of the Japanese descendent woman’s image in Brazil after the Second World War, through the promoted competitions of beauty in the Nikkei Communities, giving special attention to the competitions “Miss Colonia” and “Miss Nikkei International”, promoted by the newspaper Jornal Paulista. Therefore, beyond the expositions of the panoramic vision of the history of Japanese Immigration to Brazil and the development of the Nikkei Community a parallel will be traced between the development of the competitions of beauty and the social and economic situation of the Brazilian society. Keywords: nikkei woman, competition of beauty, history of Japanese immigration to Brazil, feminine identity, woman’s image, Japanese - Brazilian community. 1. Este trabalho foi realizado com o apoio da Fundação Kunito Miyasaka. * Professor doutor na Área de Língua e Literatura Japonesa do Departamento de Letras Orientais da FFLCH. ** Aluna de graduação do Curso de Letras Japonês/ Português da FFLCH, bolsista PRP/IC. 131 1. Introdução: Perto de se completar cem anos da imigração japonesa para o Brasil, muitos estudos foram desenvolvidos acerca da formação da colônia nikkei, de sua estrutura socioeconômica, assim como muitos estudiosos abordaram de forma ampla a questão da língua falada pelos imigrantes e seus descendentes, a religião e outros inúmeros temas. Entretanto, em meio a essa gama de pesquisas, é possível notar que pouco se tem discutido uma das questões fundamentais da história da sociedade japonesa no Brasil: a mulher nikkei, sua assimilação e transformação. Assim, o presente artigo tentará resgatar parte da história da mulher nikkei dentro da colônia japonesa e da sociedade brasileira no período pós-Segunda Guerra Mundial através dos concursos de beleza promovidos pelas comunidades japonesas, dando especial enfoque aos concursos realizados pelo Jornal Paulista – “Miss Colônia” e “Miss Nikkei Internacional” – além dos concursos regionais, com o objetivo de traçar uma análise da transformação e assimilação da mulher nikkei dentro da sociedade brasileira e a mudança gradativa de sua imagem. Tais concursos revelam não somente a transformação da estética e da beleza da mulher japonesa, muitas vezes estereotipada nas últimas cinco décadas, mas também a movimentação da própria colônia japonesa, o seu desenvolvimento e principalmente a sua inserção na sociedade brasileira através de uma intensa interação econômica e social. Os concursos “Miss Colônia” e “Miss Nikkei Internacional” realizados pelo Jornal Paulista durante mais de vinte anos foram um espaço de integração entre as candidatas de diversas colônias − não somente do Brasil, mas do mundo todo − muitas vezes resgatando a identidade japonesa que havia se perdido ao longo das gerações. Através de um breve panorama histórico da imigração japonesa para o Brasil, de entrevistas com os organizadores dos concursos, com as candidatas e com o apoio histórico do desenvolvimento da colônia japonesa e diversas matérias publicadas no Jornal Paulista no período de 1950 a 1994, o presente artigo tentará explorar mais a fundo a questão da mulher nikkei no Brasil, especialmente em São Paulo, estabelecendo, ao mesmo tempo, uma ponte com a expansão gradual da colônia japonesa e com a situação econômica, política e social brasileira. Além disso, será exposta uma visão geral da situação dos atuais concursos de beleza realizados na colônia para que se possa apresentar um panorama amplo sobre a mulher nikkei e a mudança de sua imagem. 132 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... 2. Breve introdução à história da imigração japonesa para o Brasil e os primórdios dos concursos de beleza na colônia japonesa 2.1 Uma pequena história da imigração japonesa para o Brasil: A imigração japonesa oficial para o Brasil teve seu início com a chegada do navio Kasato-Maru no porto de Santos no dia 18 de junho de 1908. Carregado de 781 trabalhadores temporários contratados pela Companhia Imperial de Colonização Ltda., eles iriam suprir principalmente a mão-de-obra nas fazendas de café do Estado de São Paulo, que “havia entrado no período de recuperação [econômica] da crise cafeeira”2 que atingia o Estado desde 1896. Dentre os 781 imigrantes, apenas 186 eram mulheres, pois a mão-de-obra produtiva era um dos requisitos importantes para o trabalho no campo. Entretanto, elas compartilharam da vida árdua nas lavouras ao lado dos homens e desempenharam afazeres domésticos, sofrendo com a adaptação ao novo ambiente e lutando para alcançar a estabilidade econômica que os havia impulsionado a se lançar numa aventurosa viagem. Na condição de trabalhadores de curto prazo (decassegui), muitos dos imigrantes “previam sua permanência no Brasil entre 4 a 5 anos, no máximo 10 anos, para, depois de poupar alguns bens, retornarem imediatamente ao Japão, fazendo ‘um retorno glorioso’”3. Dentro dessas condições, como lavradores, é que os primeiros imigrantes japoneses foram encaminhados para as diversas fazendas cafeeiras como a Fazenda Floresta, em Itu, a Fazenda Canaã e Dumont, na Linha Mojiana, a Fazenda Guatapará e São Martinho, na Linha Paulista, e a Fazenda Sobrado, na Linha Sorocabana.4 Entretanto, sem o objetivo de fixação no Brasil, o imigrante se deslocava freqüentemente nas áreas agrícolas em busca de melhores salários, sendo submetido a péssimas condições de trabalho, de moradia e de alimentação. Assim, “com o passar dos anos [...] os imigrantes japoneses verificaram a impossibilidade de reunir o pecúlio desejado através do trabalho assalariado em um curto período de permanência.”5 Reconhecendo, dessa forma, a dificuldade de retorno imediato ao 2. ZENPATI, Ando & WAKISAKA, Katsunori – “Sinopse histórica da imigração japonesa no Brasil”, IN: Consulado Geral do Japão, “O japonês em São Paulo e no Brasil”, São Paulo, 1971, p.22 3. MORI, Koichi “Burajiru no Nihonjin to Nihongo (Kyôiku): Os japoneses e a Língua Japonesa (ensino)” (In) Revista Mensal Kokubungaku Kaishaku to kanshô (Literatura Nacional- Interpretação e Leitura) 2006.7 Vol.71. No.7 p.7 4. HANDA, Tomoo – “Geografia das seis fazendas (Lavouras em que foram distribuídos os imigrantes)”, IN: O imigrante japonês, história de sua vida no Brasil, T.A Queiroz, Editor/Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, São Paulo, 1987, pp.19~21. 5. ZENPATI, Ando & WAKISAKA, Katsunori, op. cit. p.31 Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 133 Japão, a partir da década de 20, “a estratégia de imigração do decassegui de curto prazo mudou para a estratégia de imigração de médio e longo prazo”6. Os japoneses, mesmo com essa nova estratégia de maior permanência no Brasil, ainda mantinham o ideal de retorno à pátria, estendendo a estada com o intuito de poupar maior quantidade de bens. Entretanto, nessa fase se nota uma organização social e econômica mais concreta no sentido de passarem da condição de arrendatários para a de pequenos proprietários7, adquirindo lotes de terra para “[...] fundar núcleos coloniais semi-permanentes exclusivamente de japoneses”8. Os terrenos poderiam ser áreas de mata virgem cedidas pelos próprios donos de fazenda ou poderiam ser comprados com algum tipo de poupança, quando houvesse. Nessas terras, os japoneses passaram a cultivar seu próprio café, alcançando altos índices de produção, que sofreu forte impacto com a crise cafeeira em 1929, resultado da quebra da bolsa de valores de Nova Iorque no mês de outubro do mesmo ano. Entretanto, apesar da crise cafeeira, o trabalho árduo nas lavouras de café havia “contribuído para que o lavrador adquirisse terras, [...] e a posse da terra representava a construção de uma base econômica mais estável”9. Dessa forma, todos esses fatos contribuíram para a intensa dinamização da produção agrícola dos japoneses, que já vinha se desencadeando principalmente desde a década de 20, com o desenvolvimento de técnicas de cultivo de produtos como o algodão, arroz e batata, dentre outros. Enquanto a produção de café, que em 1912 representava 92,6% da atividade dos imigrantes, caiu para 32,1% no final da década de 3010. Esse desenvolvimento da agricultura foi favorecido ainda por diversas condições na década de 20: nesse período, “o auxílio às despesas de viagem da imigração japonesa para o Brasil foi transferido do governo de São Paulo para o governo japonês. Com a falta de mão-de-obra nas fazendas de café de São Paulo, a condição ruim da economia japonesa e a medida de proibição da imigração por parte do governo italiano, fez o número de imigrantes japoneses crescer rapidamente”11. 6. MORI, Koichi, op. cit. p.10 7. SAITO, Hiroshi. A presença japonesa no Brasil, São Paulo, Edusp, 1980, p.85 8. ZENPATI, Ando & WAKISAKA, Katsunori, op. cit. p.31 9. Comissão de Elaboração da História dos 80 anos de Imigração Japonesa no Brasil - Uma epopéia moderna: 80 anos de imigração japonesa no Brasil, São Paulo, HUCITEC: Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa, 1992, p.121 10. Idem, p.122 11. MORI, Koichi, op. cit. p. 15 134 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... Assim, o aumento da população japonesa e o início da independência agrícola através da aquisição de terras permitiram que a colônia alcançasse seu período de maior prosperidade na década de 30. Acompanhando o processo de formação de núcleos coloniais, surgiram diversas associações japonesas que tinham como funções “o controle dos assuntos de saúde e higiene dos colonos, a manutenção e conservação de estradas e pontes, o estudo do problema educacional dos filhos e sua orientação, ampliação da escola primária e construção de novos prédios e instalações necessárias às atividades produtivas, inclusive meios de transporte”, entre outras12. Ou seja, elas tinham a função de manutenção e auxílio das comunidades recém-abertas. Mais tarde, principalmente no período pós-guerra, essas associações, além das funções sociais, passam a incorporar funções culturais, como ocorre com as associações juvenis, que passam a promover competições esportivas e bailes, entre outros eventos, como os concursos de beleza, a serem comentados posteriormente. Diferentemente do período inicial de imigração de curto prazo, os imigrantes de médio e longo prazo tiveram grande preocupação em relação à educação de seus filhos, já que novas gerações estavam nascendo no Brasil. Dessa forma, houve uma grande movimentação nas comunidades rurais a fim de instruir seus filhos, organizando-se escolas e associações administrativas. A imprensa também sofre grande salto nessa época: os jornais japoneses editados no Brasil, que haviam iniciado suas atividades na década de 1910, acompanhando o crescimento e a estabilização da colônia, passam a ser publicados diariamente no final da década de 3013. No entanto, é também no final dos anos 30 que a comunidade japonesa sofre as conseqüências da política brasileira: com a instauração do Estado Novo por Getúlio Vargas em 1937, diversas leis restritivas nacionalizantes foram aplicadas rigorosamente entre 1938 e 1939, visando “a uniformização, a padronização cultural e a eliminação de quaisquer formas de organização autônoma da sociedade, que não fossem na forma de corporações rigorosamente perfiladas com o Estado”14. Além disso, o rompimento diplomático entre o Brasil e os países do Eixo durante a Segunda Guerra Mundial ajudou a fortalecer a repressão contra japoneses. Dessa forma, a comunidade japonesa, que já havia alcançado certo grau de organização estrutural, passa a sofrer forte censura por parte do governo brasileiro 12. Comissão de Elaboração da História dos 80 anos de Imigração Japonesa no Brasil, op. cit. p.206 13. MORI, Koichi, op. cit. p.13 14. TONGU, Érica A. S. Resistência de Seda: um estudo preliminar sobre a nacionalização dos imigrantes japoneses e a educação no Brasil, Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, 2002, p.106 Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 135 com vistas à assimilação dos japoneses na sociedade brasileira. Tais medidas afetam diretamente a comunidade em diversos aspectos, dentre eles os mais destacados são: • A educação: desde 1933 diversas leis restritivas haviam sido aplicadas, mas é em 1938 que ocorre o fechamento de todas as escolas de língua estrangeira. • A mídia: os jornais que haviam iniciado suas atividades já na década de 1910 sofreram grandes restrições no final da década de 30, quando “o governo federal brasileiro anunciou oficialmente o controle sobre os jornais e revistas publicadas em língua estrangeira, obrigando-os a anexar a tradução das principais matérias e o editorial em língua portuguesa”15, até que, em 1941, a publicação de tais jornais foi totalmente proibida. Dentro dessas condições eclode a Segunda Guerra Mundial, e, com a derrota do Japão, os imigrantes japoneses não mais tinham a esperança de retornar à sua pátria, partindo para a terceira estratégia de vida: a permanência definitiva no Brasil. 2.2 Os primórdios dos concursos de beleza na colônia japonesa: Com a decisão de permanência definitiva no Brasil após a Segunda Guerra, os japoneses que vieram na condição de imigrantes passam a carregar novos objetivos: a inserção na sociedade brasileira e a busca pela ascensão social. E esse desejo pode ser apontado como um dos fatores que deu início aos primeiros concursos de beleza realizados nas colônias japonesas rurais. A estabilidade que haviam alcançado no setor agrícola com a possibilidade de aquisição de terras e a diversificação de produtos fez com que os japoneses, além de cultivar e vender, partissem para uma terceira etapa: a promoção e a divulgação de seus produtos, tanto dentro das próprias colônias como para os governos locais brasileiros. Dessa forma, no período pós-guerra, as colônias japonesas passaram a promover seus produtos através da realização de festas locais anuais que reuniam diversos produtores para a exposição dos produtos de mais destaque em cada região. Assim, Itaquera promovia sua “Festa do Pêssego”, Mogi das Cruzes, a “Festa do Caqui”, Bastos, a “Festa do Ovo”, Indaiatuba realizava a “Festa do Tomate”, Ferraz de Vasconcelos destacou-se com a “Festa da Uva”, Santo André promoveu a “Festa da Verdura”, Bragança Paulista promoveu a “Festa da Batata”, etc16. Nas festas, além da exposição dos produtos, havia outras atrações como apresentação de dança japonesa, exposição de ikebana, de fotografia e apresentação de bandas. E 15. MORI, Koichi, op. cit. p.19 16. A região de cultivo de alguns produtos muda conforme a época e assim a festa também é transferida. 136 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... justamente uma das atrações de grande destaque dentro de tais festas era a escolha das “rainhas”: três a cinco moças descendentes de japoneses e, algumas vezes, brasileiras eram indicadas por associações para concorrer aos títulos de “Rainha do Ovo”, “Rainha do Caqui”, “Rainha do Tomate”, “Rainha da Uva”, “Rainha do Pêssego”, “Miss Laranja”, dentre outros, através da venda de votos. A candidata que recebesse maior número de votos era coroada “rainha” e as demais recebiam o título de “princesa”. O primeiro concurso de beleza promovido na colônia japonesa do qual se tem registro foi a eleição da “Rainha do Ovo” em Bastos, datado de 1948, seguindo-se a ele a “Rainha do Pêssego”, eleita na “Festa do Pêssego” em Mogi das Cruzes em 194917. A partir daí, a eleição de “rainhas” em festas ou feiras agrícolas passou a se popularizar e, em 1961, a votação da “Rainha do Caqui” em Mogi das Cruzes chegou a somar 150 mil votos18. As candidatas a “Rainha do Ovo” na primeira “Festa do Ovo” de Bastos, em 1948 (Fonte: Acervo do Museu da Imigração Japonesa no Brasil) Vencedoras da “Festa do Caqui”, 1964 (Fonte: Acervo do Museu da Imigração Japonesa no Brasil) Entretanto, observa-se que aqui a escolha das “rainhas” e “princesas” não estava vinculada direta ou necessariamente à beleza das candidatas, já que não havia nenhum tipo de regulamentação para a participação ou seleção, o objetivo central era alcançar a maior venda dos votos, sendo a quantia arrecadada muitas vezes destinada ao pagamento das despesas da própria festa. Esse caráter comercial é enfatizado pela grande participação de políticos brasileiros, prefeitos, governadores e ministros da agricultura, como pode ser observado no pequeno excerto publicado no Anuário do Jornal Paulista de 1964, intitulado “A Nona Festa do Caqui em Mogi”: 17. Não foi possível localizar a data exata do início de cada concurso, então há controvérsia em relação a essas datas. 18. Anuário do Jornal Paulista, ano 1962, p.8 Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 137 “A nona ‘Festa do Caqui’ realizada pelas associações Agrícola e Cultural de Mogi nos dias 6 e 7 no Clube União, foi inaugurada com a presença do governador de São Paulo, Ademar, com o Ministro da Agricultura, Thompson e com o presidente da Assembléia, Ciro.”19 Assim, a organização de tais festas reflete uma abertura por parte da colônia japonesa na tentativa de maior interação com a economia nacional, entrando na competição do mercado brasileiro por meio da apresentação maciça de seus produtos. E foi através desses festivais e da eleição das “rainhas” e “princesas” que a mulher nikkei também começou a ser “apresentada” para a sociedade brasileira. 3. Os concursos de beleza realizados pelo Jornal Paulista – Miss Colônia e Miss Nikkei Internacional Os concursos de beleza, que até então aconteciam durante os festivais, ganham um espaço próprio e exclusivo quando o Jornal Paulista decide realizar o seu primeiro concurso de beleza, o “Miss Colônia”, na década de 50. Acompanhado por algumas dificuldades, o concurso é promovido somente por dois anos, retomando a sua realização na década de 70, num contexto muito distinto dos anos 50. Assim, para melhor abordagem do tema, os concursos realizados pelo Jornal Paulista serão divididos em duas fases: 1. Primeira Fase: a realização nos anos 50 2. Segunda Fase: dos anos 70 aos anos 90 3.1 A primeira fase dos concursos - Anos 50 Com o fim da Segunda Guerra e da enérgica censura por parte do governo brasileiro aos japoneses, o desejo de estabelecimento na sociedade brasileira e a preocupação com a educação de seus filhos e sua ascensão social impulsionaram o início do deslocamento da população rural japonesa para as cidades, principalmente para São Paulo. As famílias que já haviam acumulado capital com o trabalho agrícola agora possuem novos objetivos: “oferecer um patrimônio e ‘uma vida melhor’ para os filhos”20. Entretanto, apesar dessa mudança do campo para a cidade na década de 50, apenas 44,9% da população japonesa era considerada como urbana21. A maioria dos japoneses ainda se apresentava concentrada no meio rural no final da década de 50. 19. Anuário do Jornal Paulista, ano 1964, p. 23, traduzido do japonês. 20. CARDOSO, Ruth C. L. – Estrutura Familiar e mobilidade social, estudo dos japoneses no Estado de São Paulo, São Paulo, Kaleidos –Primus Consultoria e 112 Comunicação integrada S/C Ltda, 1998, p.70 21. SUZUKI, Teiichi – Mobilidade geográfica de imigrantes japoneses, IN: Consulado Geral do Japão, O japonês em São Paulo e no Brasil, São Paulo, 1971, p. 97 138 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... Assim, mesmo com o surgimento de novas gerações, as mulheres japonesas ainda viviam no meio rural, muitas vezes ajudando no trabalho do campo e, em razão das poucas opções de vida que lhes eram oferecidas, seja por motivos econômicos seja por outras questões, como adaptação, ainda não freqüentavam universidades, não formavam carreira. A colônia japonesa, tanto do interior como das capitais, retomou o estabelecimento de sua estrutura sociocultural, a começar pela volta da edição dos jornais em língua japonesa, sendo criado em 1947 o Jornal Paulista. Seguindo essa retomada das atividades da comunidade, inicia-se um forte processo de criação de associações juvenis que incluem em seu calendário atividades esportivas (passando a realizar competições entre clubes), culturais e sociais, visando à integração dos jovens descendentes de japoneses. Com a fundação do Jornal Paulista, essa integração da comunidade nikkei ganha um novo rumo, representando também a integração das mulheres nikkeis. O Jornal, na ocasião em que estava comemorando dez anos de fundação, dá seu passo inicial com a realização do primeiro “Miss Colônia” em 1957 para escolher a mais bela nikkei da comunidade japonesa22. O concurso surgiu, segundo Paulo Ogawa (ex-diretor do Jornal Paulista) e Getúlio Kamiji (ex-diretor do programa “Japan Pop Show”), com o objetivo de integrar não somente as mulheres descendentes de japoneses, mas a comunidade nikkei, já que o concurso, nessa primeira fase, recebia candidatas de diversos estados brasileiros que tivessem uma colônia japonesa. O concurso funcionava da seguinte maneira: o Jornal Paulista comunicava a intenção da realização do concurso “Miss Colônia” através de anúncios no jornal, e, para a aceitação da candidata, era imprescindível que ela fosse indicada por uma associação japonesa. Cada associação promovia uma pré-seleção das moças para escolher apenas uma candidata a ser enviada para São Paulo. Dentro dessas condições é que o Jornal promove o seu primeiro concurso em 1957. Nesse ano, o Jornal recebeu inscrição de candidatas de diversas regiões do Brasil, como Paraná, Mato Grosso e Rio de Janeiro, além das candidatas de todo o Estado de São Paulo. Dentre elas, 12 foram selecionadas para a fase final. 22. Em 1954 houve outro concurso também intitulado “Miss Colônia”, realizado na ocasião da comemoração dos 400 anos de São Paulo, sem relação com o Jornal Paulista. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 139 Após a inscrição devidamente efetivada por cada instituição, as moças enfrentavam uma rigorosa banca examinadora composta por figuras de grande peso na comunidade nipônica, tais como Kunito Miyasaka e Michie Akama23, não havendo a participação de jurados brasileiros. As moças eram submetidas a uma análise minuciosa que verificava a proporção física (avaliada em traje de banho somente pelo corpo de jurados feminino em um recinto separado, medindo-se a altura, peso, busto, cintura, quadril e até mesmo o comprimento do rosto24) e os conhecimentos gerais (avaliados através de entrevistas individuais em que todos os jurados faziam perguntas simples e buscavam saber o grau de instrução de cada candidata), além da postura e da beleza. Sobre as etapas de seleção do “Miss Colônia 1957” a revista Arigatô25 registra: “O concurso naquela época tinha critérios seletivos muito mais rígidos e diferentes dos atuais. Constava de testes de beleza (fisionomia e formas do corpo), cultura e etiqueta social. Era muito mais uma maratona em que a moça era analisada não só pela sua bela expressão, mas também pelo que poderia apresentar em termos de finesse e conhecimentos gerais. (...) É curioso notar que, dentro dos padrões de decoro e moral da época, o desfile de ‘formas do corpo’ se dava em recinto fechado, individualmente e somente para a parte feminina do júri que escolhia a candidata que tivesse as linhas mais perfeitas, dignas de uma Miss Colônia. Posteriormente havia o desfile em traje soirèe, destinado a todo o público, ocasião em que eram julgadas pelo corpo de jurados especialmente escolhidos.” Conseguindo ultrapassar todas as etapas da seleção, deixando para trás onze concorrentes, Geny Toshie Fukuda (agora Sra. Sanematsu) se consagrou a primeira “Miss Colônia” no dia 19 de janeiro de 1957. Representando o Esporte Clube Linense, Geny conquistou os olhares apurados dos jurados e se tornou a representante pioneira da beleza japonesa no Brasil. Além da eleição da “Miss Colônia”, Nakano Shôko e Ikeda Satoko foram eleitas “Primeira Princesa” e “Segunda Princesa”, respectivamente. Após o anúncio dos resultados, se realizou uma cerimônia para coroação e entrega das faixas. 23. Kunito Miyasaka foi fundador do Banco América do Sul, e Michie Akama fundou uma das primeiras escolas de corte e costura, a Escola de Corte e Costura Akama. 24. Anuário do Jornal Paulista, 1972. 25. Revista Arigatô, ano 1, nº 5, abr. 1977, p.4. 140 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... Geny Sanematsu, vencedora do “Miss Colônia 1957” (Fonte: Museu da Imigração Japonesa no Brasil) As candidatas ao “Miss Colônia 1957” (Fonte: Museu da Imigração Japonesa no Brasil) O concurso, apesar da grande adesão na época, foi um evento polêmico na comunidade japonesa, pois as mulheres, que até então encontravam-se ligadas aos afazeres domésticos e ao trabalho nas lavouras das colônias, estavam caminhando em direção oposta à imagem da “mulher japonesa ideal”: “(...) a cultura oriental considera como ideal o comportamento recatado. (...) A quietude é, de certa forma, o sinônimo de belo”26. Dessa forma, “havia muita dificuldade para convencer as moças da época a participarem de um concurso de beleza que exigia que (...) mostrassem suas formas, o que ia contra a moral vigente na época. Na maioria das vezes, o preconceito de que ‘moça direita não deve participar de concurso de pernas de fora’ prevalecia, criando grandes empecilhos, principalmente dentro da colônia japonesa, tradicionalmente rígida em termos de recato”27. Essa rigidez no comportamento da mulher japonesa se deve em grande parte à educação recebida na família, com forte influência materna. Por outro lado, o fato de pertencer a uma comunidade fechada, com predominância rural, isolava as jovens da sociedade brasileira e, de certa forma, fazia com que seu ideal de vida fosse como o de suas mães, casar e formar uma família feliz, alcançar estabilidade, não uma ascensão profissional para se tornarem independentes. Isso evidencia uma divisão clara dos papéis dentro da família: 26. OGAWA, Felícia Megumi. Problemas de identidade sócio-cultural no Brasil. IN: Cadernos, n˚16, 1˙ série, nov. de 1981, Centro de Estudos Rurais e Urbanos, São Paulo, p.29. 27. Revista Arigatô, op. cit., p.4 Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 141 “Na família-modelo dessa época, os homens tinham autoridade e poder sobre as mulheres e eram responsáveis pelo sustento da esposa e dos filhos. A mulher ideal era definida a partir dos papéis femininos tradicionais – ocupações domésticas e o cuidado dos filhos e do marido – e das características próprias da feminilidade, como instinto materno, pureza, resignação e doçura.”28 Assim, Geny Sanematsu registrou na sua entrevista à revista Arigatô: “Naquela época, não era costume a mulher estudar. E, se quisesse, teria que sair para a cidade grande, e isso era coisa para os rapazes”.29 Além desse modelo “ideal” de mulher que vigorava na época, outro dado caracterizou o concurso de forma marcante na década de 50. Apesar de não haver um registro sobre a geração exata das candidatas, é possível notar através da análise das fotos que praticamente todas eram descendentes “puras” de japoneses, não havendo candidatas mestiças. Como causa desse quadro, duas hipóteses socioculturais podem ser levantadas: • O primeiro fator que pode ser apontado como causa da presença exclusiva de descendentes “puras” é o quadro dos casamentos interétnicos (casamento entre descendentes de japoneses e não-descendentes, no caso). Segundo o Censo realizado pela Comissão de Recenseamento da Colônia Japonesa, no período de 1953 a 1958, a porcentagem de casamentos interétnicos entre imigrantes era de apenas 4,8%, assim como apenas 4,5% dos casamentos entre os descendentes nascidos no Brasil eram interétnicos30. Ou seja, a grande maioria dos descendentes de japoneses ainda era “pura”, dado que sofre significativa alteração nas seguintes décadas. • Outra hipótese sobre a ausência de participação de mestiças é o forte preconceito em relação à miscigenação racial que predominava na época, um tipo de segregação que talvez tenha sido a arma das minorias étnicas que desejavam perpetuar os valores culturais de sua própria etnia31. Kiyotani Masuji, em “O casamento interétnico do filho e o neto mestiço”, analisa diversos tankas32 escritos por imigrantes, nos quais estes exprimem seus sentimentos sobre o casamento de seus filhos e filhas com pessoas não-descendentes e sua reação diante dos netos mestiços. Para os imigrantes, o nascimento do neto significava a continuidade na 28. BASSANEZI, Carla. “Mulheres nos Anos Dourados”, IN: História das mulheres no Brasil, Mary del Priore (org), São Paulo, ed. Contexto, 2001, pp.608~609. 29. Revista Arigatô, op. cit., p.4 30. Comissão de Recenseamento da Colônia Japonesa, 1964, The Japanese Immigrants in Brazil, Tokyo, University of Tokyo Press, p.356. 31. OGAWA, Felícia Megumi, op. cit., p. 31 32. Um tipo de poesia japonesa constituído por um conjunto de 31 sílabas. 142 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... transmissão dos valores da família japonesa, da cultura japonesa, e “o filho unir os laços com um ‘estrangeiro’ não era apenas uma traição em relação aos pais, mas era algo vergonhoso na comunidade japonesa, era um ato que deveria até mesmo ser desprezado”33. Esse sentimento de rejeição foi expresso em algumas poesias, em que alguns imigrantes consideram o casamento interétnico até mesmo como “uma das tragédias da história da imigração japonesa”. E, sem dúvida, a questão da miscigenação recaiu com maior intensidade sobre as mulheres: “a miscigenação, sempre acompanhada de seu contrário – a ‘pureza racial’, afunila-se, concentra-se e se expressa em termos estéticos na figura do corpo feminino. É a mulher, mais do que o homem, que vem dando maior densidade aos símbolos estéticos ligados ao cromatismo da pluralidade racial (...) e que traça a dialética entre ‘raça pura’ e ‘raça mestiça’”34. Assim, nos anos 50, a mulher mestiça era vista com olhares negativos, e os concursos “Miss Colônia” realizados nesse período acabaram refletindo esse “ideal de mulher japonesa”, prevalecendo a presença de mulheres descendentes “puras”. De certa forma, pode-se dizer que foi um conflito entre duas sociedades: a sociedade homogênea de imigrantes japoneses e a sociedade heterogênea brasileira. Os japoneses “acumularam comuns e idênticas experiências na condição de imigrantes, o que serviu para fortalecer seu sentimento de homogeneidade, (...) tornavam-se etnocentristas e exclusivistas, fechando-se dentro da própria comunidade”35. Entretanto, dentro do contexto social pós-guerra em que se encontrava, a comunidade japonesa caminhava cada vez mais para uma abertura maior, intensificando o contato com a sociedade brasileira e com os brasileiros, tornando-se inevitável a união de seus membros com parceiros não-descendentes. Dessa forma, é possível notar a rigidez em relação à mulher que ainda prevalecia na comunidade nikkei brasileira na década de 50. Assim, por essas questões é que o “Miss Colônia” promovido pelo Jornal Paulista acaba sendo interrompido após o segundo ano de realização, em 1958. Nesse ano, vinte candidatas foram indicadas, porém, através das fotografias enviadas ao Jornal, apenas dez foram selecionadas para participar do segundo “Miss Colônia”, realizado no dia 31 de maio no Cine Niterói. Celebrando o cinqüentenário 33. KIYOTANI, Masuji. Ko no ishukon to konketsu no mago In: Burajiru Nikkei Koronia Bungei, São Paulo, Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, ed. Toppan Press, 2006, p.68. 34. QUEIROZ, Renato. “Estética e Miscigenação”, IN: O corpo do brasileiro – estudos de estética e beleza, São Paulo, ed. SENAC, 1999, p.89. 35. Comissão de Elaboração da História dos 80 anos de Imigração Japonesa no Brasil - Uma epopéia moderna: 80 anos de imigração japonesa no Brasil, São Paulo, HUCITEC: Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa, 1992, p.440. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 143 da imigração japonesa para o Brasil, o concurso contou com a presença do príncipe Mikasanomiya e sua esposa, o que, segundo matéria publicada no Anuário do Jornal Paulista de 1959, “fez com que os conhecimentos culturais [das candidatas] ganhassem mais peso” no momento da seleção. Entre as dez moças, Fujino Utako foi eleita “Miss Colônia 1958”, seguindo-se a ela as “princesas” Itô Miyoko e Hayashi Tereza. Analisando-se a apresentação das candidatas36, publicada no Jornal Paulista de 1957 e 1958, de modo geral, tanto as candidatas ao “Miss Colônia 1957” como as candidatas ao “Miss Colônia 1958” seguiam a educação da “boa moça”, freqüentando cursos voltados para a formação feminina, como escolas de corte e costura e de beleza. No ano de 1958, das 15 candidatas, oito freqüentavam esses tipos de escola, que tinham como objetivo principal “aprimorar os conhecimentos gerais através da aprendizagem básica para jovens mulheres tais como arte culinária, artesanato e corte e costura, cultivando um melhor modo de vida para que pudessem contribuir para o progresso da vida das mulheres rurais, bem como, através de atividades recreativas coletivas, se tornar uma pessoa afetuosa e compreensiva com outrem, contribuindo para a sociedade.”37 Assim, muitas mulheres saíam do campo para a cidade apenas para freqüentar tais escolas femininas. Algumas buscavam algum tipo de especialização em corte e costura, por exemplo, e mais tarde, ao retornarem para o campo, se tornavam professoras, passando seus conhecimentos às mulheres rurais que não tinham a oportunidade de ir para a cidade. Muitas mulheres descendentes também trabalharam em salões de beleza após se formar em “escolas de beleza”. O Jornal Paulista do dia 9 de abril de 1958 registrou a declaração de uma das candidatas: “Agora ela freqüenta a escola de beleza e, com orgulho, diz que, através de um trabalho apropriado para mulheres, quer conquistar um futuro feliz”.38 É interessante notar aqui que, além de a sociedade japonesa já preestabelecer o papel da “mulher ideal”, a própria mulher japonesa busca ser “ideal” dentro dos padrões comportamentais da época, freqüentando aulas de culinária ou corte e costura para se tornar a “dona de casa ideal”: 36. No ano do concurso, o Jornal Paulista publicavam fotos das candidatas com uma descrição breve de suas características. 37. Comissão de Organização da Comemoração dos 50 anos de Mogi das Cruzes – Takkon eien ni kagayaku (Espírito pioneiro, brilhará eternamente), p.298 (tradução do japonês). 38. Jornal Paulista, 9 de abril de 1958, traduzido do japonês. 144 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... “(...) As jovens que se formavam nessas escolas eram ‘mais cotadas para o casamento’ ao voltar às colônias do que aquelas que não as haviam freqüentado; muitas delas também montavam novas escolas de corte e costura no interior. (...) Aliás, as escolas eram carinhosamente chamadas de ‘escolas de noivas’”39. Na Escola de Corte e Costura Akama, por exemplo, fundada por Michie Akama (uma das principais juradas do “Miss Colônia” da década de 50) em 1932, “as aulas não (...) se restringiam a corte e costura, pois havia também aulas de japonês, trabalhos manuais, etiqueta, tênis etc., enfim, tudo o que era necessário para uma futura dona de casa.”40 Essa imagem “ideal” da mulher na década de 50 predominava na sociedade brasileira também. Com o fim da Segunda Guerra, o desenvolvimento industrial brasileiro e a urbanização, “ampliou-se a possibilidade de acesso à informação, [ao] lazer e [ao] consumo”41, sendo uma época em que diversas revistas femininas foram publicadas, ditando o comportamento ideal da “boa moça”, “ajudando-a” a cumprir o seu papel dentro da família e dentro da sociedade: “Ser mãe, esposa e dona de casa era considerado o destino natural das mulheres. Na ideologia dos Anos Dourados, maternidade, casamento e dedicação ao lar faziam parte da essência feminina; sem história, sem possibilidades de contestação. A vocação prioritária para a maternidade e a vida doméstica seriam marcas de feminilidade, enquanto a iniciativa, a participação no mercado de trabalho, a força e o espírito de aventura definiriam a masculinidade. A mulher que não seguisse seus caminhos, estaria indo contra a natureza, não poderia ser realmente feliz ou fazer com que outras pessoas fossem felizes. Assim, desde criança, a menina deveria ser educada para ser boa mãe e dona de casa exemplar. As prendas domésticas eram consideradas imprescindíveis no currículo de qualquer moça que desejasse se casar. E o casamento, porta de entrada para a realização feminina, era tido como ‘o objetivo’ de vida de todas as jovens solteiras”.42 Assim, a mulher descendente de japoneses se encontrava entre a imagem ideal de mulher criada tanto pela comunidade japonesa, como pela sociedade brasileira, tendo as atividades limitadas, seguindo o “curso natural” de vida da mulher. Nesse contexto histórico-social é que surge o concurso “Miss Colônia”, desafiando o tradicional recato japonês e apresentando as mulheres descendentes à sociedade, para serem admiradas. Entretanto, para a comunidade japonesa, isso pareceu ser 39. DEMARTINI, Zeila de B. F. Relatos orais de famílias de imigrantes japoneses: elementos para a história da educação brasileira, Educ. Soc. Vol 21, nº 72, Campinas, Aug. 2000, p.12 40. Idem, p.12 41. BASSANEZI, Carla. op. cit., p.608 42. Idem, p.609. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 145 um passo muito radical ainda, o que fez com que o concurso realizado pelo Jornal Paulista não tivesse mais continuidade na década de 50. 3.2 A segunda fase dos concursos – dos anos 70 aos anos 90 Após um período de pausa, é nos anos 70 que o Jornal Paulista retoma a realização do “Miss Colônia” com um formato muito distinto da primeira fase, não apenas pela força com que surge, mas também pelo contexto social de intensa transformação tanto na sociedade brasileira como na comunidade japonesa. Para melhor análise, o período correspondente será subdividido em duas fases significantes da história do concurso, como segue abaixo: 3.2.1 Década de 70 – De nacional a internacional 3.2.2 Década de 80 a 90 – De amador a profissional 3.2.1 Década de 70 – De nacional a internacional Em 24 de novembro de 1972, o Jornal Paulista anunciou: “ ‘Miss Colônia volta a ser promovido pelo Jornal Paulista.’ Volta o concurso mais conhecido da colônia. Todos os clubes e associações podem inscrever suas candidatas. Prêmios visam viagem ao exterior.” As inscrições para o primeiro “Miss Colônia” da década de 70 haviam sido abertas e, após um longo período de interrupção, em 1973 o Jornal Paulista retomava a realização do concurso. Com caráter nacional, manteve praticamente o mesmo objetivo da década de 50 – “o congraçamento entre as comunidades nipo-brasileiras, o aperfeiçoamento da cultura e rigidez da juventude brasileira”43 - e seguiu basicamente o mesmo critério para inscrição: as candidatas deveriam ser indicadas por uma associação de sua cidade, não sendo aceitas inscrições individuais. É em 1972 também que as regras básicas de participação, as quais se mantêm praticamente as mesmas até o fim do concurso, são rigorosamente definidas: “As inscrições ao concurso Miss Colônia exigem da candidata as seguintes condições: a. Ser descendente da colônia japonesa b. Ter (...) 18 anos completos até a data da realização do concurso c. Ser solteira d. Ter reputação e conduta moral ilibada e. Ser indicada por uma entidade sócio-esportivo-cultural 43. Jornal Paulista, 24 de novembro de 1972 146 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... f. Apresentar no ato de fazer a sua ficha de inscrição, se menor de 21 anos, autorização paterna ou responsável legal, autenticada g. A direção geral do concurso poderá, a critério exclusivo, recusar inscrições de concorrentes que considera inadequadas (...), podendo usar o mesmo critério na recusa de entidades.”44 Definiu-se também as cinco categorias de premiação (essas categorias não são fixas, e sofrem mudanças ao longo do concurso, a serem comentadas): além da escolha da “Miss Colônia”, seriam eleitas quatro “Princesas” e uma “Miss Simpatia”, escolhida através de votação entre as próprias candidatas. Entre os diversos prêmios que as escolhidas ganhavam, apenas a “Miss Colônia” era contemplada com uma viagem de ida e volta ao Japão, com acompanhante. Diferentemente dos anos 50, a banca examinadora passou a ser composta, não apenas por figuras da comunidade nikkei, mas por políticos e empresários brasileiros, que, conforme a regulamentação, deveriam avaliar nas candidatas os seguintes itens principais: “O julgamento das candidatas será feito tendo em vista os seguintes requisitos: a. Beleza do rosto b. Perfeição física c. Graça d. Personalidade e. Desembaraço social” Essas cinco exigências eram básicas e permanecem até o final do concurso, com uma pequena alteração em 1977. A avaliação do júri seria feita em três etapas: a primeira seria o desfile com “vestido de baile”, seguindo-se o desfile de maiô, até a última etapa, em que o júri faria perguntas sobre conhecimentos gerais às candidatas. Essas perguntas, segundo Paulo Ogawa, abrangiam principalmente as “atualidades” da época, como política, por exemplo. Assim, com esses regulamentos e etapas de seleção, é que se inaugurou a segunda fase do concurso “Miss Colônia” em 18 de maio de 1973. Realizado no auditório da Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa em São Paulo, contou com 37 candidatas vindas de todo o Brasil e indicadas por inúmeras associações como o Anhangüera Nikkey Clube, Associação Cultural Esportiva Piratininga, Associação dos Okinawanos no Brasil, Associação Nipo-Brasileira do Mato Grosso do Sul, Associação Cultural de Lins, Associação de Jovens de Marília, Sociedade Agricultura de Taiaçupeba Mogi das Cruzes, Associação Cultural e Esportiva 44. Idem Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 147 Saúde, Ipiranga Shinboku-kai, além de outras entidades localizadas em Presidente Prudente, Registro, Presidente Venceslau, entre outras. É possível notar a expansão do concurso em relação à sua primeira fase. O intercâmbio entre as associações e as colônias se intensifica, o que é observado já pelo aumento significativo no número de candidatas: enquanto na década de 50 não passavam de 15, nos anos 70 elas chegam a somar mais de 40. Ganhando o “Miss Colônia” essa dimensão mais ampla, foi imprescindível o apoio de patrocinadores para tornar possível sua realização. Então, a partir de 73, o concurso passa a contar com diversos patrocinadores como a Hirai Autoveículos, a Colorado RQ (fabricante de televisão em cores), a Varig, que oferecia a passagem de ida e volta ao Japão, a Pearl Center, que premiava a “Miss Colônia” com jóias, o Banco América do Sul, o Osaka Plaza Hotel, Buffet Erico, entre outros45. E, ao longo do concurso, outras inúmeras empresas colaboram com algum tipo de patrocínio, oferecendo prêmios e cedendo espaço para a promoção do concurso. Essa não foi a única transformação que ocorreu em relação aos anos 50. Enquanto na primeira fase o desfile de maiô era realizado em um recinto separado e exclusivamente para a parte feminina do júri, agora, as candidatas desfilam para toda a banca examinadora, não havendo distinção entre os jurados homens e mulheres. Nos anos 50 prevalecia a sagrada “moral feminina”, nos anos 70 a mulher passa a exibir seu corpo, e a tradicional imagem da “menina recatada” é gradativamente quebrada pelas próprias candidatas. O Jornal Paulista publicou o seguinte editorial: “Nesse concurso, diversos prêmios como a viagem ao Japão são oferecidos para as candidatas eleitas e participantes. Entretanto, grande parte delas não participa do concurso apenas pelos prêmios. (...) Elas querem experimentar subir no palco, se auto-desafiar, querem ser avaliadas como a mais bonita dentre as moças de sua geração, o que é bem típico das moças atuais. Isso não revela mais do que o desejo de mudar a sua vida cotidiana de forma ativa, sendo a participação no concurso um formato concreto para realizá-lo. Nos anos cinqüenta o concurso também foi realizado, mas na época não houve o desfile de maiô. Segundo as candidatas, é porque havia muita resistência por parte dos pais. Agora, pode-se dizer que é a filha quem tem o poder de decidir. Em parte, ainda há pais que ‘proíbem’ ou as próprias filhas que evitam [esse tipo de exposição], mas isso é natural.”46 Inaugurando dessa forma o concurso da década de 70, Rosa Maria Fukugawa é eleita “Miss Colônia” no ano de 1973, seguida por Celina Arima, a “Primeira Princesa”, e Margarete Ide, “Segunda Princesa”. 45. Jornal Paulista, 23 de março de 1973 46. Jornal Paulista, 16 de abril de 1974, traduzido do japonês. 148 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... As vencedoras do primeiro “Miss Colônia” realizado em 1973. (Fonte: Museu da Imigração Japonesa no Brasil) Desfile das candidatas ao “Miss Colônia 1973”. (Fonte: Museu da Imigração Japonesa no Brasil) Esse resultado despertou uma polêmica muito grande entre os organizadores do concurso e o público, polêmica que, na verdade, iria se manter ao longo das demais edições do “Miss Colônia”. A primeira classificada desse ano, Rosa Maria Fukugawa, era mestiça, enquanto Celina Arima era descendente “pura” de japoneses. Isso gerou um conflito em diversos níveis do concurso, e Getúlio Kamiji afirma: “Nos primeiros concursos [da década de 50], todas tinham um rosto típico, genuinamente japonês. No segundo concurso [realizado na década de 70] começaram a aparecer as mestiças, tinha mais mistura do que no primeiro concurso. E começaram a falar que o nosso concurso acabaria perdendo a autenticidade da miss japonesa”. A questão da participação da descendente mestiça vem à tona com a eleição de uma mestiça logo na primeira edição do concurso da década de 70. Getúlio Kamiji ainda lembra que muitos questionaram o fato de não ter sido eleita Celina Arima a “Miss Colônia”, já que ela, sendo descendente “pura” e representante mais “fiel” da beleza da mulher japonesa, deveria ser mais valorizada. Isso não deixa de ser uma preocupação, não apenas com o caráter do concurso, mas também com a “afirmação de uma identidade grupal específica”47, que pouco a pouco começava a perder o seu modelo tradicional para dar espaço a uma nova imagem da mulher nikkei, a mulher nikkei mestiça. Talvez pela persistência do conflito, o Jornal Paulista, na edição de 11 de maio de 1976, publica a seguinte matéria: 47. QUEIROZ, Renato – “O corpo, artefato da cultura”, IN: O corpo do brasileiro – estudos de estética e beleza, São Paulo. ed. SENAC, 1999, p.21. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 149 “A propósito de uma dúvida suscitada no interior com relação à participação de mestiças (...) temos a dizer que nada temos contra a participação (...) e o regulamento do concurso não prevê de forma alguma discriminação desse tipo.” Esse aumento no número de mestiças se deve, principalmente, à evolução do quadro de casamentos interétnicos na comunidade japonesa. Enquanto na década de 50 4,5% dos casamentos era com não-descendentes, esse número sobe para 45,9% segundo a pesquisa populacional de 198848, e, a cada nova geração que surgia, havia a tendência de maior grau de miscigenação. Pode-se dizer que a década de 70 foi um período de transição da imagem negativa da mulher mestiça para uma imagem positiva, que será fortalecida principalmente a partir da década de 80. Além disso, o editorial do Jornal Paulista também registra: “Quando questionadas sobre o objetivo de vida (...), não há uma que fale que quer formar uma família e se tornar uma dona-de-casa comum. Algumas desejam se graduar em economia, medicina, arte e engenharia, se tornar professora em escolas com bom conceito. Dentre elas, algumas já estão seguindo o caminho para alcançar o seu objetivo”49 Ou seja, os planos de vida da mulher nikkei estavam se alterando, fato que pode ser relacionado a três circunstâncias históricas: o movimento feminista, a situação econômica brasileira e a mudança na estrutura da colônia japonesa. É a partir da década de 60 que a imagem da mulher passa por uma revolução. Ela começa a buscar seu espaço dentro da sociedade e clama por direitos trabalhistas: “Os anos 60 inauguram o novo ciclo. (...) O ideal da fada do lar já não tem a unanimidade: na imprensa, multiplicam-se os artigos que evocam a insatisfação da mulher de interior, suas frustrações, a monotonia de sua vida. A acusação contra a mulher sem profissão não vai mais cessar e serão radicalizadas pelas novas correntes feministas”.50 Com a emergência dos movimentos feministas e a busca por novos direitos, a mulher passa a recusar a “identidade constituída exclusivamente pelas funções de mãe e de esposa”51, abandonando a rigidez moral da “boa moça” para se assumir enquanto mulher e conquistar novos objetivos de vida, substituindo as “escolas de noiva” pela universidade, e o casamento pela carreira profissional. O Brasil, já na década de 50, havia iniciado um processo intenso de reformulação do sistema econômico com a entrada de Juscelino Kubitschek em 1956. A construção 48. Relatório de Pesquisa da Comunidade Nikkei, Centro de Estudos Nipo-Brasileiros, 2002, p.87. 49. Jornal Paulista, 16 de abril de 1974, traduzido do japonês. 50. LIPOVETSKY, Gilles. “A mulher no trabalho”, IN: A terceira mulher – permanência e revolução do feminino, Maria Lúcia Machado (trad), São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p.218 51. Idem, p.220 150 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... de usinas elétricas, o desenvolvimento do transporte e a criação de Brasília foram algumas das significativas transformações que impulsionaram a economia brasileira, fazendo com que, no final dos anos 60, surgisse o período do “milagre econômico” brasileiro. Com o desenvolvimento da indústria e a urbanização, surgia demanda por mão-de-obra nas cidades, onde as atividades econômicas se concentravam e se diversificavam cada vez mais. A colônia japonesa, acompanhando esse processo de desenvolvimento, também inicia o movimento de deslocamento do campo para a cidade. Decidida a permanência definitiva no Brasil, o grande objetivo agora era alcançar um status social, e “os pais isseis queriam que os filhos seguissem carreiras profissionais que permitissem sucesso material rápido.”52 Assim, principalmente na década de 70, os descendentes de japoneses passam a se inserir na sociedade brasileira, em todas as áreas profissionais. É nessa época que eles começam a “aparecer” na política, na mídia, crescendo o número de nikkeis que desejam formar uma carreira, entrar em uma universidade e se tornar um profissional. Entretanto, para a comunidade japonesa, essa busca pelo objetivo de vida significou também o “abrasileiramento” de seus filhos e netos. A respeito da vencedora do concurso realizado em 1975, Marly Setsuko Matsuura, o jornal japonês Hôchi Shimbun publicou uma matéria com o título “A miss japonesa que não fala japonês”, em que a candidata declara: “No Brasil, o pensamento de que só porque é nissei deve saber falar a língua japonesa é ultrapassado” 53. Essa mudança na forma de pensar da mulher descendente de japoneses causou um episódio muito curioso no concurso de 1975, divulgado na edição do dia 5 de junho do Jornal Paulista: “‘Esclarecimentos com a Miss Araçatuba’ – Na apresentação das candidatas ao público e principalmente ao corpo de jurados, além dos desfiles, elas passam por um ‘teste’ com várias perguntas do apresentador Nelson Matsuda. A concorrente de Araçatuba, a jovem estudante Cecília Setsuko Maekawa (...) respondeu, dentre outras perguntas, a questão: uma vez casada, quem irá mandar em casa, o marido ou você? Como era uma questão delicada, convencionou-se que ela iria responder afirmativamente, ‘sou eu’. Esta brincadeira do animador Nelson Matsuda, do Japan Pop Show, não foi bem interpretada por vários telespectadores, principalmente de Araçatuba. A direção geral do concurso esclarece que 52. Comissão de Elaboração da História dos 80 anos de Imigração Japonesa no Brasil - Uma epopéia moderna: 80 anos de imigração japonesa no Brasil, São Paulo, HUCITEC: Sociedade Brasileira de Cultura Japonesa, 1992, p.435 53. Jornal Paulista, 8 de agosto de 1975, traduzido do japonês. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 151 a pergunta foi ensaiada com objetivo de causar impacto dentro das concorrentes que se achavam nervosas”. A independência da mulher nikkei ainda causava certo “incômodo” na comunidade japonesa, regida pela imposição de uma hierarquia social muito rígida. Porém, esses episódios não interferiram na realização dos concursos, e a cada ano o número de inscritas aumentava. O período de 1974 a 76 foi caracterizado por inovações no “Miss Colônia”. No ano de 1974, o Jornal Paulista firma um acordo com o programa “Japan Pop Show” para televisionar o concurso através da TV Bandeirantes, o que, segundo Getúlio Kamiji, estimulou a participação das mulheres por iniciativa própria. Criado em 1973 com a intenção de oferecer à comunidade nikkei uma nova forma de entretenimento, o programa dominical, além da exibição do próprio concurso, realizava a apresentação das candidatas: “O Japan Pop Show já há mais de um mês vem apresentando todos os domingos, as candidatas ao Miss Colônia 74 (...), de forma que a televisão vem ampliando a imagem do Miss Colônia por mais de 200 cidades do interior e outros estados” 54. Assim, com o desenvolvimento da mídia na colônia japonesa, o “Miss Colônia” passou a ser exibido em diversas cidades, o que estimulou a participação das “torcidas organizadas” que, se não estavam presentes no auditório, estavam na frente da televisão torcendo pela candidata de sua cidade ou associação. E, nos anos de 1974 e 75, justamente por se iniciar a transmissão do concurso, ele passa a ser gravado nos estúdios da TV Bandeirantes, com apresentação de Nelson Matsuda e Suzana Okamura. Essa maior divulgação do concurso atraiu, sem dúvida, mais patrocinadores. Além da colaboração do “Japan Pop Show”, contou-se com o patrocínio da Nissei S/A Indústria e Comércio, Amino, Nippotur, H. Stern, Turismo Fuji, Banco Mitsubishi Brasileiro S/A, Casa Columbia, Valisére (que fornecia os maiôs para o desfile), Osaka Hotel, etc. A loja de cosméticos Ikezaki ofereceu espaço para os preparativos das candidatas, e foi lá que, em 1974, a Max Factor do Brasil e a Escola Profissional de Cabeleireiros Teruya cuidaram da maquiagem e do penteado das candidatas. Nesse ano, o número de participantes somou os 30, e “a maioria das candidatas inscritas (...) são as que venceram as eliminatórias nas suas respectivas regiões através de concursos públicos com a participação de representantes do Jornal Paulista.”55 54. Jornal Paulista, 17 de abril de 1974. 55. Idem 152 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... Dessa forma, a pré-seleção das candidatas por região estava se transformando em um evento grandioso dentro de cada colônia japonesa no Brasil. Entretanto, os realizadores do concurso tinham um objetivo maior. Com a idéia inicial de promover a integração entre as comunidades japonesas e as mulheres nikkeis, e com a grande aceitação do certame na colônia japonesa do Brasil, o Jornal Paulista lança a idéia de internacionalização do concurso em 1975: “ ‘Miss Internacional’ – Para o próximo ano deverá apresentar-se candidatas de outros países. Argentina e Peru, através dos presidentes da Associación Japonesa de la Argentina e AELU – Associación Esportiva la Union prontificaram-se a enviar suas candidatas para o concurso do próximo ano, que poderá ser o primeiro internacional da América do Sul” 56. Apesar do anúncio, a realização do “Miss Nikkei Internacional”57 não se concretizou imediatamente. Em 1976 o concurso recebe duas candidatas argentinas da Associación Japonesa en la Argentina, Isabel Matsubara e Roxana Kawakita, mas elas não chegam a participar da seleção, apenas desfilam junto com as demais candidatas. Nakano Mitsuo, um dos organizadores do concurso, registra: “Neste ano vieram alguns nikkeis argentinos, e era justo a época de realização do Miss Colônia, (...) e parece que a Argentina também já estava realizando a eleição de misses, e as rainhas, primeira e segunda colocada, também vieram para cá. Como era uma oportunidade rara, ao invés delas apenas assistirem ao concurso (...), pedimos que subissem ao palco para um cumprimento. (...) Assim, as duas falaram em espanhol e o público aplaudiu e ficou muito feliz. O concurso miss em qualquer país é igual, e os nikkeis têm a mesma característica facial, então todos ficaram contentes.”58 Após esse episódio, a comissão de organização do concurso fez uma reunião para pedir o envio de candidatas a outros países. O primeiro passo foi entrar em contato com os jornais nikkeis do exterior para pedir a colaboração e a divulgação do concurso do Jornal Paulista. Assim, jornais como Peru Shimpô e Rafu Shimpô (Los Angeles), dentre outros, se encarregavam da divulgação e do envio da candidata ao Brasil. A internacionalização é efetivada em 1977, quando o concurso contou com a participação de candidatas vindas do Canadá, Estados Unidos, México, Paraguai, Peru e Argentina, somando sete nikkeis do exterior. 56. Jornal Paulista, 25 de fevereiro de 1975. 57. A fase internacional do concurso surgiu inicialmente com o nome “Miss Colônia Internacional”. O nome muda para “Miss Nikkei Internacional” em 1978, segundo pôde ser verificado nas publicações do Jornal Paulista. 58. Traduzido do japonês e adaptado de entrevista. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 153 Assim como no concurso nacional, havia a pré-seleção das candidatas por associação ou região e os países participantes também realizavam os concursos de miss regionais para enviar a vencedora ao Brasil, a fim de participar do “Miss Nikkei Internacional”. Nesse ano, Los Angeles escolheu sua candidata no “Japanese Week Festival”, uma festa promovida pela colônia japonesa que também elegia a “Miss Japanese Festival”; o Paraguai enviou a “Miss Paraguai” eleita pela Federación de Associación Japonesa en el Paraguai em um concurso interno; o Canadá realizou a escolha da “Miss Nissei” na ocasião da comemoração do centenário da imigração japonesa; a colônia do México promoveu seu primeiro concurso de beleza para enviar uma representante ao Brasil e o Peru selecionou a candidata através da AELU. Com a internacionalização do concurso, além da análise da beleza do rosto, da perfeição física, graça, personalidade e desembaraço social na ocasião do julgamento, acrescentou-se mais um item no regulamento de 1977: “conhecimento da língua japonesa ou inglesa para efeito de viagem ao Japão”59. E, nesse mesmo ano, houve algumas alterações na categorização das candidatas e o concurso passou a ser apresentado de forma distinta. No dia da competição, primeiramente se realizava o “Miss Colônia” entre as candidatas nacionais e, entre elas, cinco eram selecionadas para se juntar às candidatas internacionais e participar do “Miss Nikkei Internacional”. Assim, a categorização ficou definida da seguinte maneira: seria eleita a “Miss Colônia” (e duas princesas), a “Miss Nikkei Internacional” (e duas princesas) e a “Miss Simpatia”. Além disso, criou-se a eleição da “Miss Fantasia”, para a qual cada candidata desfilaria com um traje típico de seu país. Desfile de fantasia das candidatas ao “Miss Nikkei Internacional 1977” (Fonte: Museu da Imigração Japonesa no Brasil) 59. Jornal Paulista, 11 de fevereiro de 1977. 154 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... “Miss Colônia” e “Miss Nikkei Internacional” eram premiadas com passagens para o Japão, enquanto as demais candidatas eram contempladas com viagens pelo Brasil e diversos prêmios como jóias e roupas. Até essa altura, o concurso havia adquirido uma dimensão muito ampla e o auditório da TV Bandeirantes já não comportava mais o público, até que, em 1976, ele passou a ser realizado no Palácio das Convenções no Anhembi. Assim, em 1977, Maris Estella Sotoma, uma mestiça argentina, é eleita a primeira “Miss Nikkei Internacional” e Sueli Yasuko Kakuda é premiada “Miss Colônia”. Desfile das candidatas ao “Miss Colônia” e “Miss Nikkei” de 1977 (Fonte: Museu da Imigração Japonesa no Brasil) Premiação das candidatas internacionais de 1977 (Fonte: Museu da Imigração Japonesa no Brasil) A transnacionalização do concurso foi um momento muito significativo, pois resultou numa dinamização do intercâmbio entre as colônias japonesas do Brasil e do exterior. No Brasil, o interesse pelo concurso aumentou, recebendo a participação de Curitiba, Porto Alegre, Minas Gerais, Amazonas, Amapá, Pará, Santa Catarina, Paraná e também do estado de São Paulo. No exterior, as colônias passaram a se reunir exclusivamente para a escolha da candidata a ser enviada ao concurso. Luiz Tanigaki, ex-diretor presidente do Jornal Paulista, em relação a essa nova fase do concurso, afirma que: “o nosso objetivo é buscar o congraçamento social e cultural através do certame (...) e nós estamos reunindo neste acontecimento todas essas colônias, irmanando corações, conhecendo anseios, detalhando fatos históricos e coligindo impressões. (...) Não buscamos rendimentos, buscamos apenas o congraçamento social e cultural que essas lindas participantes estão tornando possível.”60 Entretanto, pode-se dizer que o concurso não possuía apenas a função de integração cultural e social entre as candidatas. Havia também um sentido comercial 60. Jornal Paulista, 2 de junho de 1977 Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 155 muito forte. Principalmente após o início da realização do concurso internacional, o número de patrocinadores e colaboradores sofreu grande aumento e, além das empresas já mencionadas, a Sanyo do Brasil, a Yakult S/A, a Indústria de Óleo Pacaembu, Aeroperu Linhas Peruanas, o Hotel Nobilis, a Vasp e a Ótica Lapa passaram a fazer parte da equipe 61. E é em 1977 que a patrocinadora mais importante do concurso surge: a Kodak do Brasil. Mais tarde, em 198362, a Kodak entra como promotora do evento e o Jornal Paulista passa a ser o realizador. A partir de então, a Kodak se torna o grande pilar de sustentação do concurso, anualmente concedendo verba para as despesas com passagem aérea das candidatas internacionais e suas acompanhantes e a viagem ao Japão das candidatas vencedoras, renovando o contrato de cinco em cinco anos. Segundo Paulo Ogawa e Nakano Mitsuo, o concurso foi também um espaço para uma integração política entre os países participantes. As candidatas ao concurso geralmente vinham acompanhadas por representantes de sua associação ou por representantes dos jornais nikkeis de sua região e, enquanto elas se preparavam para o concurso, tais representantes também tinham a oportunidade de trocar informações. A partir desse intercâmbio, nasceu a Associação Pan-Americana Nikkei que realizava, congressos mundiais com representantes de diversas comunidades japonesas do exterior para discutir a situação social e econômica da colônia nikkei. De certa forma, pode-se dizer também que, através dos concursos do Jornal Paulista, a relação política Brasil-Japão também foi intensificada. A candidata vencedora do “Miss Colônia” era encarregada de levar uma saudação do governo brasileiro ao governador ou prefeito das cidades irmãs de São Paulo. Em 1975, o Jornal Paulista publicou uma dessas mensagens: “Com satisfação cumprimentamos, através da Srta. Marly Setsuko Matsuura, Miss Colônia 75, o povo da Cidade Irmã, Ôsaka. Estamos certos de que o permanente relacionamento entre brasileiros e japoneses permita a manutenção dos firmes laços de amizade que une nossas duas pátrias.”63 Dessa forma, a década de 70 foi a época definidora dos rumos do concurso realizado pelo Jornal Paulista. A transmissão pela televisão através do “Japan Pop Show”, a realização no Anhembi e a internacionalização marcaram o concurso até o seu final, em 1994. 61. A entrada e a saída de patrocinadores ao longo do concurso foram muito constantes, não sendo possível citar com precisão todos aqueles que participaram. 62. O ano de transição de “patrocinadora” para “promotora” da Kodak não é preciso. 63. Jornal Paulista, 3 de julho de 1975. 156 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... 3.2.2 Década de 80 a 90 – De amador a profissional A terceira e última fase, apesar de englobar o fim dos concursos, é marcada como o auge do “Miss Colônia” e “Miss Nikkei”. O número de participantes bateu o seu recorde, os patrocínios surgiam em massa e o concurso chegou a ser transmitido por dois canais televisivos, atraindo as atenções do Japão para a beleza da mulher nikkei brasileira. Essa fase ilustrou de forma mais clara a transformação do perfil das mulheres descendentes de japoneses. A partir da década de 60, já havia se iniciado na colônia japonesa um gradual processo de diversificação profissional, ou seja, o afastamento da lavoura e o deslocamento para as capitais com vistas a proporcionar aos filhos melhor nível educacional fizeram com que o número de nikkeis formados em nível superior crescesse aceleradamente64. A princípio, a escolha do curso superior recaía principalmente sobre as profissões das áreas de ciências exatas ([como] Engenharia, Matemática), seguindo-se as áreas biomédicas (Medicina, Odontologia) e por último as ciências humanas (Letras, Ciências Sociais)65. A opção por profissões ligadas à área de exatas se deve à idéia de que facilitam a “ascensão social e, simultaneamente, asseguram melhor remuneração”66. Esse processo de assimilação profissional na sociedade brasileira prosseguiu durante a década de 70, período em que se observa também a acentuação da entrada dos estudantes descendentes de japoneses “em cursos de letras, psicologia, biologia, astronomia, meteorologia, geografia, geologia, paleontologia, etc, (...) o que possibilitou a diversificação profissional, com expansão de nikkeis em todos os setores de atividade do país”67. Concomitantemente ao processo de inserção profissional do nikkei na sociedade brasileira, na década de 80, de modo geral, se observa “um lento, porém intenso e consistente processo de transformação e incorporação feminina no mercado de trabalho”68, incorporação esta que não se restringe às áreas de trabalho consideradas “femininas”, como a enfermagem, alcançando áreas que exigem maior qualificação. Na década de 70, a mulher já havia conquistado maior escolaridade em relação aos homens, e na década de 80 passa a ocupar maior porcentagem dos postos 64. Na pesquisa realizada pela Beneficência Nipo-Brasileira de São Paulo em 1978, a porcentagem de agricultores, que em 1958 abrangia 58% da população japonesa no Brasil, havia caído para 19,3% - Comissão de Elaboração da História dos 80 anos de Imigração Japonesa no Brasil, op.cit., p.435 65. MIYAO, Sussumu. “Posicionamento social da população de origem japonesa” IN: A presença japonesa no Brasil, São Paulo, Edusp, 1980, p.94-95 66. Idem, p.95 67. Comissão de Elaboração da História dos 80 anos de Imigração Japonesa no Brasil, op. cit., p.435 68. www.seade.gov.br/produtos/mulher/index.php?bole=0 Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 157 de trabalho, podendo-se dizer que a qualificação profissional feminina acabou adquirindo “(...) uma legitimidade social na mesma proporção do desapreço pelo modelo da mulher do lar”69. O seu papel social na década de 50 era reconhecido apenas pelas funções de mãe e esposa, agora, o trabalho passou a proporcionar um suporte muito importante de sua identidade social70, desenvolvendo-se uma “autonomia do sujeito feminino” à medida que sua identidade profissional foi se construindo. Esse processo de inserção no mercado de trabalho e a elevação do nível educacional conseqüentemente favoreceram a concretização da inserção da mulher nikkei no mercado de trabalho, fato que claramente pode ser ilustrado pelas escolhas profissionais das candidatas aos concursos de miss. Ao se analisar algumas publicações da revista Miss Colônia e Miss Nikkei Internacional e diversas fichas de inscrição das candidatas aos concursos, em que está registrada a sua formação, de maneira geral, é possível constatar os seguintes dados71: do total de 157 candidatas, contrariando o fenômeno inicial de concentração de estudantes nikkeis na área de exatas, 66,8% freqüentavam os cursos da área de humanas, sendo que a carreira mais recorrente entre as candidatas era Direito, seguida por Psicologia e Administração. A área biológica representou cerca de 26,7% das profissões escolhidas pelas candidatas, sendo a Odontologia o curso mais freqüente, além de Farmácia, Enfermagem, Nutrição e Biologia, entre outros. Por fim, apenas 6,3% das candidatas ao “Miss Colônia” e “Miss Nikkei” estavam se graduando na área de exatas, porcentagem essa que se diluía entre diversos cursos como Ciências Contábeis, Engenharia (Química, Elétrica) e Economia. A abertura do mercado de trabalho para a profissional feminina e também a estabilidade alcançada pelos japoneses no Brasil possibilitaram à mulher nikkei a formação de uma carreira, enfraquecendo-se cada vez mais a imagem da mulher subserviente dedicada apenas aos afazeres domésticos. Em contrapartida, porém, Getúlio Kamiji diz que muitas das candidatas na década de 80 ainda tinham como objetivo de vida o casamento, e, através dos concursos de beleza, diversos relacionamentos acabaram se concretizando. Mas, de forma geral, fica evidente o grande salto na imagem da mulher nikkei em relação aos primórdios do concurso. 69. LIPOVETSKY, Gilles, op. cit., p.220 70. Idem, p.224 71. O levantamento de dados foi elaborado considerando os anos de 1984, 1986, 1987 e 1989 e levou em conta apenas as candidatas que cursavam nível superior, excluindo-se aquelas que freqüentavam cursinhos preparatórios e ensino médio. 158 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... Junto com esse movimento de inserção das mulheres nikkeis na sociedade brasileira, o próprio “Miss Colônia” e “Miss Nikkei” lançou diversas tentativas de apresentar o concurso à sociedade brasileira através de programas populares de televisão, como conta Getúlio Kamiji: “(...) o Paulo Ogawa resolveu levar [o concurso] para o Amaury Jr., no programa ‘Flash Oriental’ (...) e o Amaury abriu espaço dizendo: ‘vamos colocar à noite na Record, ao vivo, direto?’ (...) E foi nesse programa que teve grande repercussão entre o público ocidental”. Ainda segundo Getúlio Kamiji, a grande maioria dos brasileiros não tinha conhecimento dos concursos de beleza realizados na colônia japonesa, e muitas vezes ficavam surpresos ao descobrirem que os japoneses “também” promoviam tais concursos. Alguns jornais brasileiros, como o Diário Popular e o Estado de São Paulo, chegaram a divulgar notas sobre o concurso, mas, sem dúvida, ele recebeu maior destaque dentro da própria colônia japonesa. No dia 26 de junho de 1985, o Jornal Paulista publicou o resultado de uma enquete intitulada “Beleza em discussão”, que lançava duas perguntas: “O que pensam os descendentes sobre os concursos de beleza da colônia? Você assiste ao Miss Colônia e Nikkei Internacional?” Dos 24 entrevistados, 15 assistiam ao concurso todos os anos ou haviam assistido algumas vezes. Um estudante de 17 anos respondeu: “Já assisti ao Miss Colônia e pelo que pude observar, o critério de avaliação da colônia ainda está voltado para o comportamento da pessoa (critérios de concursos da década de 50) e não exatamente para a beleza estética.” Outro estudante declarou que o que lhe chamava a atenção era o “corpo com curvas”, característica típica da mulher brasileira. Ou seja, com o aumento da mestiçagem entre os japoneses (como já mencionado, na década de 80, os casamentos interétnicos representavam quase 50% do total de casamentos), as características físicas da mulher nikkei conseqüentemente sofreram algumas alterações. O corpo tipicamente japonês ganhou traços curvilíneos e os olhos puxados tornaram-se amendoados. Segundo Getúlio Kamiji, se, na década de 50, todas as candidatas ao concurso eram descendentes puras, na década de 80, a cada 10 candidatas, 8 eram mestiças. Essa nova figura estética da mulher nikkei atraiu grandes atenções do mercado publicitário japonês no final da década de 80, o que será comentado posteriormente. A imagem da mulher nikkei através dos concursos “Miss Colônia” e “Miss Nikkei” deu um grande salto especialmente em 1985, como lembram todos os organizadores do evento entrevistados. Nesse ano, a vencedora do título “Miss Nikkei” foi uma americana descendente de okinawanos, Tamlyn Tomita. Eleita a Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 159 nikkei mais bonita através do “Nissei Week Japanese Festival”, organizado em Los Angeles, Tamlyn surpreendeu a todos e levou o título de “Miss Nikkei”, já que não estava entre as favoritas. Após a participação no concurso, Tamlyn passou a ser a divulgadora da beleza da mulher nikkei no mercado cinematográfico americano com a participação no filme Karate Kid. O cinema americano, responsável pela multiplicação de novas imagens femininas72, também incorporou a possibilidade de difusão da imagem da mulher nikkei numa grande escala, ainda que vista de modo estereotipado. “Miss Colônia” Misawa Kiyo e “Miss Nikkei” Tamlyn Tomita. (Fonte: Arquivo pessoal de Paulo Ogawa) Pôster de divulgação do filme Karatê Kid II. (Fonte:Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil) 1985 foi um dos mais significativos para o concurso, já que nesse ano ocorreu o que se pode chamar de “intercâmbio de belezas”. O corpo de jurados, como já mencionado, era composto por diversas personalidades da comunidade nikkei e também da sociedade brasileira. Desde 1982, Mário Covas e sua esposa presidiam o corpo de jurados do concurso, empresários nikkeis de todos os ramos empresariais e inúmeras outras figuras estavam presentes para a escolha das misses. Em 1985, esse corpo de jurados ganhou uma participação especial com a vinda da Miss Japão 85, Rika Kobayashi, e a participação da Miss Brasil 85, Márcia Gabrielle Canavezes. Márcia, além de sua participação como jurada, através do convite realizado pelo Jornal Paulista, fez uma visita ao Japão juntamente com a “Miss Colônia” e a “Miss Nikkei”, participando de diversos desfiles realizados em Tóquio e Ôsaka73. Lá, 72. PRIORE, Mary del. Corpo a corpo com a mulher – Pequena história das transformações do corpo feminino no Brasil, São Paulo, ed. SENAC, 2000. p. 74. 73. Jornal Paulista, 14 de dezembro de 1985. 160 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... divulgou a beleza da mulher brasileira em diversos artigos de revistas japonesas, recebendo alguns convites de trabalho. Dessa forma, o concurso criou um espaço de intercâmbio entre duas belezas muito distintas e, principalmente, apresentou a mulher brasileira à sociedade japonesa, ganhando um sentido totalmente transnacional. Estruturalmente, “Miss Colônia” e “Miss Nikkei” mantiveram-se os mesmos em relação à década de 70, porém, com a parceria estabelecida com a Kodak, em 1981 é criada uma nova categoria para o concurso, a “Miss Fotogênica”. Essa categoria possibilitava à candidata ser contratada para trabalhar nas campanhas de divulgação publicitária da própria Kodak.74 Assim como nos anos anteriores, na semana antecedente ao concurso, as candidatas cumpriam uma agenda cheia de compromissos, visitando patrocinadores, indo a restaurantes e festas para promover o certame. O intervalo entre a chegada das candidatas a São Paulo e o dia do concurso não era apenas uma semana de espera, pois ocorria uma verdadeira maratona de intercâmbio cultural entre as nikkeis de diversas colônias do mundo e o concurso concretizava seus objetivos. “Intercâmbio cultural” aqui se refere não apenas às trocas de informações entre as candidatas, mas ao concurso como um espaço que possibilitou a descoberta e o reconhecimento de uma identidade cultural comum, em maior ou menor grau, entre mulheres nikkeis criadas nas mais diversas localidades do Brasil e do mundo. Embora muitos dos descendentes de japoneses no Brasil afirmem categoricamente “ser brasileiro”, já que nasceram e se criaram neste país, diversos valores socioculturais japoneses inevitavelmente foram deixados como herança e internalizados, seja durante seu crescimento, seja no processo educacional. E essa co-existência de uma cultura minoritária e uma cultura dominante inúmeras vezes foi palco para o desencadeamento de um conflito interior. Nesse sentido, podese dizer que os concursos “Miss Colônia” e “Miss Nikkei” quebraram a barreira do conflito existente entre as mulheres nikkeis, especificamente, e a sociedade ocidental na qual vivem, e possibilitaram um reconhecimento identitário mútuo enquanto pessoas pertencentes a uma comunidade japonesa, independentemente do país em que ela esteja localizada. Nakano Mitsuo, em sua entrevista, relata com emoção um dos episódios que considera como mais marcantes do concurso realizado pelo Jornal Paulista: “Uma vez, quando o concurso já havia terminado (...) levamos as candidatas ao Rio, 74. O nome da categoria varia ao longo do concurso, ora surge como “Miss Kodak”, ora como “Garota Kodak”. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 161 e fizemos uma coisa divertida. Saímos daqui [de São Paulo] e fomos ao Rio de ônibus, pelo litoral, passando por Paraty e Angra até o centro, onde havia o hotel em que elas ficariam hospedadas. (...) Mas elas foram se cansando [da viagem] e uma menina que cantava muito bem, acho que era do Peru, começou a cantar uma canção infantil em japonês. E surpreendentemente, todas começaram a cantar a mesma música, ao acabar esta, começaram a cantar outra e se abraçaram fortemente. (...) E, como se sabe, cada uma falava uma língua, inglês, espanhol, português e japonês, mas todas sabiam cantar a canção infantil. E eu perguntei: com quem vocês aprenderam essas músicas? E elas disseram que aprenderam com suas avós e mães. Mas foi um episódio que me surpreendeu muito, elas choravam de felicidade (...) ao perceber que todas sabiam cantar as mesmas músicas”.75 E esse reconhecimento entre as candidatas acabou estimulando também um auto-reconhecimento enquanto mulher descendente de japoneses. Em entrevista, a mestiça Cláudia Otonari Miura, segunda “Princesa Miss Colônia” do concurso de 1986, revela: “(...) eu só despertei para a cultura [japonesa] e para o seu lado positivo depois do concurso, porque aí ficou mais evidente a minha descendência. (...) eu participava das atividades no clube [Santo Amaro Esporte Clube, pelo qual foi indicada ao concurso] porque tinha minha família, mas eu não era muito ligada à cultura japonesa. E a partir de então é que eu comecei a ter mais ligação. (...) Foi muito bom porque me descobri como japonesa depois dessa convivência maior, e o concurso foi o começo de tudo isso. (...) Depois eu comecei a freqüentar mais os restaurantes [japoneses], as festas, quando tinha na Liberdade, porque passei a me interessar mais. Como eu tive o lado brasileiro da minha mãe muito forte, eu também tenho o lado brasileiro muito mais forte, talvez, que o japonês. Mas eu comecei até a aprender japonês, porque achava o cúmulo as pessoas olharem para mim, com esse olho puxado, e não saber falar japonês”. Hoje, com dois filhos, Cláudia também tem a preocupação de transmitir alguns dos valores japoneses que passou a admirar após a participação no concurso, como a hierarquia dentro dos relacionamentos pessoais, o respeito aos mais velhos. Assim, os concursos realmente foram um espaço de integração entre as candidatas e, além disso, uma oportunidade para o resgate de uma identidade japonesa que havia se perdido ao longo das gerações e em meio ao processo de inserção na sociedade brasileira. E, de certa forma, houve também uma valorização estética da beleza nipônica (ou da beleza oriental). Em 1986 uma candidata declarou: “Quando era pequena, achava feio [os traços orientais]. Hoje aprendi a gostar.”76 Essa valorização da mulher com traços orientais ficou evidente em 1987, 75. Traduzido do japonês e adaptado da entrevista. 76. Jornal Paulista, 4 de julho de 1987 162 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... quando o Jornal Paulista fecha contrato com a agência de modelos japonesa “Urban”. A partir daí, o concurso adquiriu um caráter profissional. Tal agência buscava especialmente a beleza da mulher nikkei mestiça. Tendo sido enviado um “olheiro” aos concursos, algumas candidatas, vencedoras de algum título ou não, fechavam contratos de trabalho de quase um ano no Japão. Aqui se concretiza a transformação da visão negativa que pairava sobre as mestiças nos anos 50 em uma visão positiva dessa beleza peculiar, que acaba por conquistar os olhares do mercado japonês. Tornando-se um concurso que oferece uma oportunidade profissional, o perfil das candidatas também se modificou. A partir da década de 90, muitas das candidatas já possuíam experiência como modelo ou almejavam se tornar modelo, seguir uma carreira profissional na área, o que até a década de 80 não existia. Influenciadas ou não pelo boom do movimento decassegui, que teve seu início aproximadamente na segunda metade da década de 80, muitas das candidatas aos concursos de miss foram ao Japão em busca de um sucesso profissional. Abaixo, seguem algumas das campanhas japonesas realizadas pelas candidatas ao “Miss Colônia” e “Miss Nikkei” no Japão: (Fonte: Arquivo pessoal de Paulo Ogawa) (Fonte: Arquivo pessoal de Paulo Ogawa) Todavia, mesmo com todo o impulso conquistado pelo Jornal Paulista, pela sua força de atuação e divulgação da mulher nikkei, em 1994 o concurso inevitavelmente chegou ao fim. Segundo Paulo Ogawa, o principal motivo do término do concurso foi a suspensão do grande patrocínio da Kodak, que havia acompanhado o concurso durante mais de dez anos. A recessão que assolou o país no começo da década de 90 tornou insustentável o financiamento das inúmeras passagens aéreas e hospedagens em hotéis e nenhum outro patrocinador possuía condições de arcar com a imensa despesa. Dessa forma, ainda no auge de sua realização, é que o Jornal Paulista baixava as cortinas de mais de vinte anos de história. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 163 As vencedoras do último concurso “Miss Colônia” e “Miss Nikkei”, em 1994. (Fonte: Arquivo pessoal de Paulo Ogawa) 4. Uma visão panorâmica dos atuais concursos de beleza da comunidade japonesa no Brasil: Treze anos após o fim do “Miss Colônia” e “Miss Nikkei”, a colônia japonesa continua realizando de forma constante os concursos de beleza, ainda que não tenham tamanho alcance como os do Jornal Paulista. Pode-se dizer que hoje há um movimento de retorno à fase inicial dos concursos de beleza, ou seja, eles estão sendo realizados novamente com características regionais, seja dentro de festivais, seja como um evento independente. Segundo Kendi Yamai, promotor e organizador dos principais concursos de beleza atuais da colônia japonesa, muitas regiões, como Marília, Presidente Prudente, Maringá e Paraná, ainda realizam concursos de miss. Em São Paulo, além do “Miss Tanabata”, promovido na Festa Tanabata, no bairro da Liberdade, os concursos de beleza que recebem maior destaque são o “Miss Festival do Japão” e o “Faces”. O primeiro concurso está conjugado ao “Festival do Japão”, evento anual realizado pela Associação das Províncias Japonesas no Brasil . A forma de seleção varia muito, segundo Kendi, e na sua quarta edição, em 2006, as candidatas passaram por duas fases de avaliação: se fez um desfile em traje social, e aquelas que foram escolhidas desfilaram novamente com yukatá.77 O concurso “Faces” teve início em 1995 com uma nova proposta. De caráter oriental, não mais se restringindo às candidatas descendentes de japoneses, mas abrangendo descendentes de asiáticos em geral, ele surgiu com o intuito de movimentar os jovens da colônia e oferecer uma oportunidade para as candidatas serem modelos, principalmente no Japão. De certa forma, ele possui um caráter profissionalizante, já que bookers e donos de agências japonesas vêm ao concurso 77. Yukatá é um tipo de quimono leve utilizado no verão. 164 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... para avaliar as candidatas, e algumas saem com contrato fechado com as agências. Entretanto, o grande diferencial de “Faces” é que também possui uma versão masculina, fato inédito dentro dos concursos de beleza da colônia japonesa. Candidatas e candidatos ao “Faces 2001”. (Fonte: Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil) Candidatas ao “Miss Festival do Japão 2006” (Fonte: Museu Histórico da Imigração Japonesa no Brasil) Seguindo a tendência observada já nos concursos do Jornal Paulista, a participação de mestiças está cada vez maior e, com a inserção dos descendentes de japoneses na mídia brasileira, Kendi acredita que o estereótipo pregado por muito tempo está desaparecendo, perdendo força o “clichê da ‘japinha’”. Apesar do mercado japonês buscar a beleza da mulher mestiça, nem sempre é possível para a vencedora do concurso seguir uma carreira no Japão, pois a beleza eleita no Brasil muitas vezes não está dentro dos padrões japoneses. Kendi explica da seguinte maneira: “às vezes, a vencedora não tem muito o perfil [japonês], ela é bonita para o Brasil, mas para o mercado japonês não funciona. Então, a gente percebe que têm modelos que dão certo aqui, e outras que dão certo lá. (...) A beleza japonesa, para o mercado japonês, asiático, é aquela que tem um rosto meigo e um corpo fino. No caso ocidental, a mulher possui mais sex-appeal, é cheia de curvas.” Por outro lado, é interessante notar a proliferação dos concursos de beleza dentro das comunidades brasileiras no Japão. Em Aichi, na cidade de Komaki, Daniela Nishikawa promove desde 2002 o “Miss Nikkey”, concurso de beleza voltado para brasileiras descendentes de japoneses residentes no Japão. Junto com o concurso, se realiza também o “Festival Brasileiro”, evento gratuito constituído por diversas atrações como apresentações musicais, teatrais, esportivas e dança, dentre outras.78 O objetivo do “Miss Nikkey” é proporcionar a chance de inserção no mercado 78. http://tudobem.uol.com.br/2007/04/01/tudo-pronto-para-o-miss-nikkey-2007 Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 165 de moda japonês. O concurso já é considerado “o acontecimento tradicional brasileiro no Japão” e, segundo Daniela: “é mais que um concurso de beleza, o Miss Nikkey é o resgate de uma tradição nipobrasileira e também o congraçamento entre candidatas, familiares e torcidas organizadas de diversas localidades. A comunidade brasileira no Japão é carente de atividades de lazer e principalmente em se tratando de eventos gratuitos. Por isso tem sido maior a cada ano. (...)”79 O evento vem atraindo também grande massa de patrocinadores brasileiros e japoneses, sendo também um momento de “congraçamento do empresariado que participa da festa”.80 Há ainda inúmeros concursos de beleza realizados na comunidade nikkei brasileira. Nota-se que atualmente, tanto no Brasil como no Japão, os concursos ainda são realizados com um intuito de promover a integração dos membros da comunidade nikkei e alguns ganham força pelo seu caráter profissional, influenciado talvez pelo glamour com que a profissão de modelo vem instigando a sociedade. 5. Considerações finais: As mulheres descendentes de japoneses passaram por uma verdadeira saga desde a sua chegada ao Brasil em 1908. Enfrentaram o trabalho longo e árduo nas lavouras, a impossibilidade de acesso aos estudos, a submissão ao homem e à família, o posicionamento entre o modelo ideal de mulher japonês e brasileiro, a dificuldade de inserção no mercado de trabalho, a discriminação em relação à mestiçagem e o preconceito contra o casamento interétnico. Entretanto, com a decisão de fixação no Brasil, a mulher nikkei passou por um intenso processo de assimilação na sociedade brasileira, processo que se refletiu parcialmente nos concursos de beleza. Os certames regionais realizados desde a década de 40, assim como o “Miss Colônia” e o “Miss Nikkei Internacional”, foram concursos pioneiros não apenas por serem os primeiros promovidos na colônia japonesa do Brasil, mas justamente por trazer à luz a discussão sobre a questão da mulher nikkei, que até então se camuflava em meio às figuras masculinas. Nos anos 50, o “Miss Colônia” surgiu com uma nova forma de olhar para a 79. www.brazil.ne.jp/contentes/newsinjapan/newsinjapa001_2004041310.htm 80. www.brazil.ne.jp/contentes/newsinjapan/newsinjapa001_2004041310.htm 166 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... mulher nikkei, desafiou valores e, apesar das dificuldades enfrentadas para a sua realização, teve grande importância e na década de 70 pôde ser realizado de forma muito mais ampla. A partir dos anos 70, já com o passar dos anos e a maior abertura sócioeconômico-cultural da colônia japonesa, a mulher nikkei inevitavelmente sofreu diversas transformações, seu objetivo de vida já não era mais freqüentar as “escolas de noiva”, se casar e constituir uma família. Aos poucos ela foi incorporando uma identidade profissional e surgiu o desejo de formar uma carreira. Com isso, gradualmente foi se desligando da imagem estereotipada da mulher submissa e recatada, ganhando independência e sendo reconhecida enquanto profissional. O concurso foi um espaço que possibilitou o reconhecimento e a aceitação, mesmo que parcial, da evolução da mulher nikkei e sua inserção na sociedade brasileira. O concurso também trouxe à tona a questão da mulher nikkei mestiça, abriu espaço para ela e, na década de 80, as mestiças já eram maioria nos concursos e sua imagem sofreu grande transformação, sendo valorizada não apenas no Brasil, mas também pelo mercado publicitário japonês, que avidamente buscava a beleza da mulher mestiça. Todavia, “Miss Colônia” e “Miss Nikkei” vão além disso. Eles realmente promoveram aquilo que desde o início se chamou de “integração” tanto das comunidades japonesas nacionais e internacionais, como das próprias candidatas, que muitas vezes acharam nos concursos uma oportunidade para redescobrir a sua identidade japonesa e compreender com outros olhos a cultura japonesa. O seu impacto não se restringiu às comunidades japonesas. Como lembra Cláudia Otonari Miura, “os japoneses eram vistos como ‘os estudiosos’, aqueles que eram melhores tecnologicamente, mas hoje em dia, os próprios brasileiros têm visto com outros aspectos a cultura japonesa, descobrindo a culinária, a beleza e seus valores fora do padrão só do conhecimento, como era antigamente”. Dessa forma, “Miss Colônia” e “Miss Nikkei” deixaram como herança a importância do resgate da cultura japonesa entre seus descendentes e trouxeram à tona o processo de transformação e assimilação da mulher nikkei, seja na comunidade japonesa, seja na sociedade brasileira. E, atualmente, se observa uma movimentação contrária: a realização dos concursos de beleza nas comunidades brasileiras no Japão para inserir no mercado de trabalho as brasileiras descendentes de japoneses que lá residem e criar uma integração entre os membros brasileiros dessas comunidades. Ao longo desta pesquisa, observou-se a grande necessidade de resgatar a trajetória da mulher nikkei, a transformação de sua imagem ao longo das décadas e a sua contribuição para a constituição da comunidade japonesa brasileira. Em Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 167 2008, se completará o ciclo de cem anos desde a chegada dos primeiros imigrantes japoneses ao Brasil, mas pouco se tem discutido sobre a questão da mulher nikkei no Brasil, e o reconhecimento de seu papel enquanto parte constituinte da história da imigração japonesa ainda está em sua fase inicial. Bibliografia: ACCIOLI, Roberto B. & TAUNAY, Alfredo D’E.. História geral da civilização brasileira – das origens à atualidade, Rio de Janeiro, Bloch Edições, 1973. BASSANEZI, Carla. Mulheres nos Anos Dourados, In: Priore, Mary del (org) História das mulheres no Brasil, São Paulo, ed. Contexto, 2001, p.607-639. CARDOSO, Ruth C. L.. 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Revistas consultadas: - Revista Arigatô: - Ano 1, n° 5, abril, 1977 - Ano 1, n° 7, junho, 1977 - Ano 1, n° 8, agosto, 1977 - Revista Miss Colônia e Miss Nikkei Internacional: edições de 1984, 1987, 1989, 1990, 1991 e 1992. - Anuários do Jornal Paulista: edições de 1953 a 1995. Entrevistas: 06/06/06 – Entrevista com Sr. Nakano Mitsuo. 20/09/06 – Entrevista com Sr. Paulo Ogawa. 23/10/06 – Entrevista com Sr. Getúlio Kamiji. 11/01/07 – Entrevista com Cláudia Otonari Miura. 27/02/07 – Entrevista com Inês Ogata, concedida via e-mail. 08/03/07 – Entrevista com Kendi Yamai. Sites consultados: • www.brazil.ne.jp/contentes/newsinjapan/newsinjapa001_2004041310.htm • http://tudobem.uol.com.br/2007/04/01/tudo-pronto-para-o-miss-nikkey-2007 • www.brazil.ne.jp/contentes/newsinjapan/newsinjapa001_2004041310.htm • www.missnikkey.com • www.fcc.org.br/mulher.presbd.html • www.yushima.net/contiti/soturon Anexo: Lista das vencedoras baseada no Anuário Paulista e em diversas edições do Jornal Paulista*: 170 Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... 1957 (Realizado no quarto andar do prédio sede do Jornal Paulista) 1959 (Realizado no Cine Niterói) 1973 (Realizado no Bunkyo) Miss Colônia: Geny Toshie Fukuda (Lins) Princesas: 1.Ikeda Toshiko (Assai) 2. Nakano Shôko (Suzano) Miss Colônia: Fujino Utako (São Paulo) Miss Colônia: Rosa Maria Fukugawa (Marília) Princesas: Celina Arima (Indianópolis) Margarete Ide (Anhangüera) Takayo Hamada (Araçatuba) Mikiko Tokumoto (Lins) 1974 (Realizado no teatro da TV Bandeirantes) Miss Colônia: Amélia Megumi Yokoo (Ourinhos) Princesas: Luísa Tokiko Yanagibashi (Tomé Assú) Marie Kuroki (Araçatuba) Helena Fumiko Arihara (Cocuera) Fátima Regina Barros Efuji (Minas Gerais) Miss Simpática: Neide Shitayama (São Caetano do Sul) (* O título “Miss Simpática” era escolhido através de votação entre as candidatas) 1975 (Realizado no teatro da TV Bandeirantes) Miss Colônia: Marli Setsuko Matsuura (Capão Bonito) Princesas: Maria Tie Katanami (Porto Alegre) Doroty Izumi (Suzano) Elvira Mitsuko Kiyomizu (Presidente Prudente) Michiyo Asô (Porto Alegre) Miss Simpática: Midori Tangue (São Bernardo do Campo) 1976 (Início da realização no Anhembi) 1977 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Lucy Harue Ikematsu (Curitiba) Princesas: Tomie Sugawara (Rio de Janeiro) Regina Harumi Iizuka (Saúde) Sachie Akajiro (Aurora Clube) Miss Simpática: Marta Michiko Miura (Tucuruvi) Miss Colônia: Sueli Yasuko Kakuda (Araçatuba) Miss Nikkei: Maris Estela Sotoma (Argentina) Princesas: Dalva Yôko Oikawa (Curitiba) Sonia Tanizawa (Araçatuba) Regina Sakakibara (Porto Alegre) Leiko Kotohashi (Recife) Miss Simpática: Roseli Miura (Rio de Janeiro) * Internacionalização do concurso * A relação das candidatas nem sempre estará completa devido à falta de dados no anuário ou no jornal. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 171 1978 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Márcia Setsuko Furuno (São Paulo) Miss Nikkei: Karen Teiko Yano (Havaí) Princesas: Margarete Nishiyama (Saúde) Leda Hibari Kanemori (Saúde) Harumi Nakagawa (Londrina) Miss Simpática: Márcia Mitsue Kiyomizu (Porto Alegre) * O nome do concurso internacional se torna “Miss Nikkei Internacional”. 1979 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Ana Maria Naomi Kurokawa (São Paulo) Princesa Miss Colônia: Regina Sonia Kubo (São Paulo) Akemi Takano (Vila Esperança) Sachiko Takahashi (Amazonas) Amélia Suzuki (Marília) Miss Colônia Simpática: Márcia Hiromi (Paraná) Miss Nikkei: Débora Miyuki Kodama (Havaí) Princesa Miss Nikkei: Mirian Sakaguchi (Peru) Miss Nikkei Simpática: Patrícia Fujii (Seattle) 1980 (Realizado no teatro Bandeirantes) 1981 (Realizado no Anhembi) 1982 172 Miss Colônia: Yone Ikeda Princesa Miss Colônia: Roseli Ueno Miss Simpática: Masumi Yukawa Miss Nikkei: Yone Ikematsu Princesa Miss Nikkei: Harumi de las Casas (Peru) Miss Colônia: Suen Nakahara (Rio Grande do Sul) Princesa Miss Colônia: Yukie Akiyoshi (São Paulo) Takako Iizuka (São Paulo) Miss Simpática: Mayumi Shibata (Mogi das Cruzes) Miss Nikkei: Posi Mizumoto (Los Angeles) Princesa Miss Nikkei: Tomoko Mihara (São Francisco) Susie Arifuji (Peru) Miss Fotogênica: Karen Kimiko Takaki (Toronto) Não houve concurso 1983 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Eliana Nomura (Ribeirão Preto) Miss Nikkei: Eliana Nomura (Ribeirão Preto) Princesas Miss Nikkei: Mitsuko Kuroda (Canadá) Soraia Kawauchi (São Paulo) Miss Kodak: Eliana Nomura (Ribeirão Preto) 1984 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Susi Todo Miss Nikkei: Akemi Nakanishi (México) Miss Simpatia: Akemi Nakanishi (México) Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... 1985 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Kiyo Misawa (Curitiba) Princesa Miss Colônia: Cristiane Kelly Kawaguchi Lúcia Barbosa Tamaki Miss Nikkei: Tamlyn Naomi Tomita (Los Angeles) Princesa Miss Nikkei: Akemi Kobayashi Sakai (Peru) Sandy Hitomi (Chicago) 1986 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Inês Ogata (São Paulo) Princesa Miss Colônia: Jane Iwayama (Santo André) Cláudia Ogata Miura (Santo Amaro) Miss Nikkei: Emi Yasumura (Nova Iorque) Princesa Miss Nikkei: Delia Inoue (Chicago) Mayumi Nakasone Miss Simpatia: Emi Okabe (Califórnia) * Primeira participação de candidata mestiça de chinês e japonês. 1987 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Cláudia Harada (Rio Grande do Sul) Princesa Miss Colônia: Keila Fukuie Simone Suguino Miss Nikkei: Jennifer Kusumoto (Los Angeles) Princesa Miss Nikkei: Mami Hidaka (Nova Iorque) Irene Hamamura (Chicago) Miss Simpatia: Leni Yajima (Havaí) Miss Fantasia: Neli Nakasone Matsuda (Peru) 1988 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Roseli Cristiane Mutai Princesa Miss Colônia: Suzana Lilian Koga (Londrina) Mary Adrian Ishii (Presidente Prudente) Miss Nikkei: Denise Suemi Katô (Califórnia) Princesa Miss Nikkei: Yuriko Hirano (Havaí) Patrícia Barros Moromizato 1989 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Débora Ôtani (Presidente Prudente) Princesa Miss Colônia: Pérola Cristina Tamura (São Paulo) Luciana Andrade Kameyama (Rio de Janeiro) Miss Nikkei: Débora Mitsunaga (Jundiaí) Princesa Miss Nikkei: Lisa Yumiko Statch (Chicago) Joyce Sachiko Hirohata (Califórnia) Miss Simpatia: Simone Okumoto 1990 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Lucrecia Sakamoto Princesa Miss Colônia: Muriel Tiane Nakamura Miss Nikkei: Irina Tsuda (Buenos Aires) Princesa Miss Nikkei: Marie Miyazaki (Nova Iorque) Sharon Nakamura (Califórnia) Garota Kodak: Shisue Mattos Hamada Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 131-174 - 2008 173 174 1991 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Adriana Okada (Pindamonhangaba) Princesa Miss Colônia: Luciana Possas Gondô (Paraná) Patrícia Yamaguchi (São Paulo) Miss Nikkei: Karina Nishino (Brasil) Princesa Miss Nikkei: Sandra Mizumoto (Los Angeles) Leika Ninomiya (Seattle) Miss Kodak: Cíntia Ogama (São Paulo) 1992 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Vivian Ôno Princesa Miss Colônia: Elizandra Okasaki Sinaida Matsumoto Miss Nikkei: Flávia Lúcia Tomo (Brasil) Princesa Miss Nikkei: Ileana Yuri Inuyama (Dominica) Suzana Mutsuko Sato (Los Angeles) Miss Simpatia: Glória Kotsuro Amano (México) Miss Fotogênica: Caldira Toguchi Mesato * Participação de candidatas menores de 18. 1993 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Silvana Sanches Nakayama Princesa Miss Colônia: Karen Tatiane Eiko Noguchi (Paraná) Liliane Nagumo (Guarulhos) Miss Nikkei: Daniela Mitsu da Silva (Maringá) Princesa Miss Nikkei: Pamela Kimura Daniela Silva (Argentina) Miss Simpatia: Mirian Hasegawa (Indaiatuba) 1994 (Realizado no Anhembi) Miss Colônia: Viviane Takabe Egashira (Belém) Karei Barreira (São Paulo) Miss Nikkei: Carola Cecília Vieites Kishimoto (Argentina) Marta Cecília Yuri Takabe (Peru) Miss Simpática: Carola Cecília Vieites Kishimoto (Argentina) Miss Kodak: Alessandra Sagawa de Souza (São Paulo) Koichi Mori/Barbara Inagaki - Os Concursos de Beleza na Comunidade Nipo-brasileira... The Structure and Significance of the Spiritual Universe of the Okinawan Cult Center Koichi Mori* Resumo: Este artigo examinará as características e os significados, tanto no nível coletivo como no nível individual, do universo espiritual dos deuses e dos espíritos possessivos no centro espiritual criado por Maria Nobuko (no texto ela será referida apenas como Maria), uma mulher que emigrou para o Brasil de Okinawa durante o período pré-guerra. E também discutirá a questão da identidade religiosa e étnica da fundadora desse centro e seus seguidores, 90% dos quais são okinawanos e seus descendentes. Palavras-chave: imigração okinawana, sincretismo religioso, umbanda, espiritismo, possessão, etnicidade, invenção de cultura. Summary: This article will examine the characteristics and the meaning of spiritual universe and possession spirits of the spiritual center created by Maria Nobuko, a woman who immigrated to Brazil from Okinawa during the pre-war period, in individual and collective level. And also will discuss topics about the ethnic-religious identity of the founder and its followers, 90% of which are Okinawans or their descendents. Key words: Immigration from Okinawa, religious sincretism, Umbanda, Espiritismo Brasileiro, possession , ethnicity, Cultural invention. 1. Introduction This paper examines the characteristics and significance of the spiritual universe-gods and possessive spirits of the spiritual cult center created by Maria Nobuko1 (henceforth referred to as Maria), a woman who emigrated to Brazil from Okinawa during the pre-war period. * Professor Doutor na Área de Língua e Literatura Japonesa do Departamento de Letras Orientais da FFLCH - USP 1. This woman has both a Japanese name: Nobuko, and a Christian name: Maria. These two names can be related to her identity. Regarding the cult domain, she was only called by her Christian name Maria and her Japanese name Nobuko was not used. On the other hand, her Japanese name Nobuko was used in the yuta domain. This was not only Maria’s case but was also the case among the mediums and the participants in general. 175 Maria was born in Sedaka of the former Kushi-village, Okinawa Prefecture in 1928. At the age of two (1930), she emigrated along with her parents to Brazil to join her paternal uncle. Her life had been full of various misfortunes (death of family members, poverty, and illness) and anomalous experiences (such as speaking to spirits and seeing mourning candles) from early childhood. From the period immediately after World War II, Maria succumbed to an illness thought to be incurable by modern medicine, but is regarded as kamidaari according to the idiom of possession in Okinawan folk shamanism. As there was no Okinawan shaman yuta2 in Brazil at that time, Maria sought salvation at the Brazilian spiritualist center where her illness was recognized as a mediumistic manifestation - Manifestação Mediúnica according to the idiom of possession in Brazilian spiritism. She joined the cult center to achieve spiritual development and once developed, she “worked” as a medium3. Following that, Maria left this cult center and formed her own cult center, the Love for Jesus Spiritist Center - Centro Espírita Amor a Jesus, in 1958. The characteristics of Maria’s magical-salvation activities were twofold in that she was not only the leader of a cult center, but was also performing these magicalsalvation activities through the role of yuta4. More than 90% of the followers at the spiritist cult center which Maria founded are of Okinawan origin, and most of the followers seeking to have problems resolved by her in her capacity as yuta5, 2. Refer to the author’s article (2000) about observations related to the process of becoming a yuta in Brazil. Mori, Koichi, “The Process of Becoming a Yuta in Brazil and the World of Magical-Salvation Religion – in Relation to Ethnicity”, in: Yanagida Toshio (ed.) The Japanese in Latin America-Nation and Ethnicity, Keio University Press, 2000, p. 153-212. 3. Maria “started treading her path” at a cult centre whose leader was Dona Dirce, a non-Japanese Brazilian married to an Okinawan. At this centre, many people from Okinawa gathered to have their children “healed” when they were sick (especially those with psychological problems), they participated in the cult, and received advice. At the time, there were no yuta or munushiri with the capacity of communicating with magical spirits in the okinawan ethnic community. 4. In case of problems or misfortune (in many cases illness where modern medicine was ineffective) the hanji or consultation/advice provided by the yuta was considered as saadakaumari, coming from “a person born of high spirituality” and thus he/she had to “open the way” (abrir o caminho). A means of salvation is thus offered to a medium that has not developed spirituality by participating in the cult. Besides, at the consultation within the cult, the matter should be considered as related to an ancestral spirit, Nobuko as yuta would offer a hanji. Hence, the two magical-salvation activities were linked. In other words, the activities are linked by the fact that the domain of problem or misfortune can be considered as two idioms of possession. Most of the followers related to these two domains are second generation Okinawan mediums, whereas the first generation Okinawan immigrants act as yutas, and most of the non-Okinawan followers. 5. Maria’s activities as a yuta can be categorized generally as hanji (consultation, advice) and various ugans (prayers or rituals) conducted as a result of hanjis or requests from followers. The hanji takes place in a dialogue format between Maria who is possessed by Tio Kokichi and the follower (and his/her escort) seeking the cause of the problem and asking for advice to eliminate the cause. Maria conducts this every Monday 176 Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... are also of Okinawan origin. Thus the target of her magical-salvation activities are predominantly the Okinawans - uchinanchus of Brazil.6 Maria and the followers referred to this possession cult as the “White Table” Mesa Branca. Mesa Branca visually describes the large table with its white table cloth which is placed at the center of the cult’s place of worship, but as many researchers point out7, the name symbolically signifies the non-Umbanda nature of their cult center8. Furthermore, Maria and the followers named their cult Center - Centro, or House of Charity - Casa de Caridade, distinguishing it from Tenda or Terreiro used to refer to the cult space for Umbanda. However, even stating the nonUmbanda nature of the cult, there still remains a strong Umbanda influence, since Preto-velho and Caboclo (Indio) are core possessive spirits in Umbanda, and they play major roles at Maria’s cult center9. We can conclude that the cult center founded by Maria took the basic framework of Umbanda, but it was reshaped to suit her own beliefs and those of the Brazilian Okinawans - uchinanchus through incorporating her own ethnic religion, ancestor worship and by selecting a group of symbolicspirits of possession, deities and magical-religious concepts. In other words, the cult (and the center) created by Maria may be considered an act of transformation of a Brazilian national folk and ethnic religion: Umbanda. I have developed this view based on Ortiz’ standpoints (1978) and have called it the “yellowing process” - Processo de Amarelamento or watering down of Umbanda. Ortiz sees the key to the origin of Umbanda as being the unification of two heterogeneous processes; these are the blackening of Kardecism10 and the whitening of African cults. That is to say, the Brazilianazation of these two religious traditions and their further fusion morning from 8:00 to around 10:00 at the yutanyaa which is joined to her home. On the other hand there are various types of ugan-prayers such as unige of akemadoshi conducted at the beginning of the year, houji, ugan thanksgiving, yashiti-ugan, mabuyaa-gumi, hoshi-nu-ugan, tamashii-unchikee, tabi-ugan and yashitimii. Maria´s followers are spread widely throughout the Okinawan community dispersed in Brazil, thus visits are made to cities such as Campinas and Campo Grande, etc. 6. Refer to the following work of the author for Maria´s life history and her magical-salvation activities. This perspective of salvation is called task or mission. 7. Cavalcanti, Maria Laura Viveiros de Castro (1983), O mundo Invisível- Cosmologia, Sistema Ritual e Noção de Pessoa no Espiritismo. RJ. Ed.Zahar. 8. Maria´s view of Umbanda was simplistic and focused on only one point of “manipulating spiritual power for money making”. 9. Camargo (1961) sees Kardecism and Umbanda as being one concept of magical-religious continuum. Camargo, C.P. (1961) Kardecismo e Umbanda. São Paulo, Ed. Pioneira. 10. Kardecism, the mystical spiritual philosophy created in the 19th century by Hippolyte Léon Denizart Riail, a Frenchman, who under the pseudonym Allan Kardec, was introduced to Brazil later in the century. This changed the emphasis on the religious and moral aspects, which are mainly miracle faith, through contacts with popular Catholicism. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 177 resulted in a unique Brazilian religion, Umbanda11. Consequently, the yellowing or watering down process, which I have conceptualized, gave rise to Umbanda, which became a national religion as aforementioned, later recovering its ethnic aspects12. Umbanda, as is well known, is interpreted as a religious movement of spiritual possession, and was created through the syncretism of the African cult (Macumba), Kardecism and popular Catholicism in Rio de Janeiro from the 1920s to the 30s, and many researchers define it as a national folk religion13. The reasons for which Umbanda is understood as a national folk religion are: 1. the lessening of importance of African deities (if not their exclusion) / the focusing more on Brazilian spirits of possession – Preto-velho and Caboclo; 2. the principal followers were non-African Brazilians who were the emerging middle class in Brazilian urban industrial societies; and 3. related to the characteristic of 2, where the central 11. Progress had been noted in Brazil from the end of 19th century, particularly in the southeast, with changes in society such as industrialization, urbanization and stratification becoming evident. According to Ortiz’s (1978) analysis, Umbanda was the religious manifestation of a “newly born urban middle class and the ideology that embodies it” in this social transformation. Ortiz sees the need regard the birth of Umbanda from two different perspectives: the whitening – embranquecimento of the African cult, and the blackening – empretecimento of Kardecism. The former is the penetration of Kardecism into the African cult, where halting the disintegration of Candomblé led to a new direction. In addition, the latter is seen as a non-Kardecism within Kardecism that is believed to have emerged in the 1920s mainly in Rio de Janeiro. In other words, a deviating trend was seen within both Candomblé and Kardecism, thus the initial trend did not demonstrate a specific direction. However, in 1939, the first Spiritist Federation of Umbanda in Brazil – Federação Espírita da Umbanda do Brasil was founded in Rio de Janeiro and later in 1941, a congress aiming to standardize the doctrine was convened. The emergence of a movement to standardize the doctrine or unify the rituals led Umbanda to take shape as one religion. Ortiz, Renato (1978) A Morte Branca do Feiticeiro Negro. São Paulo: Brasiliense. 12 . See details of the yellowing process in the autor´s article. Mori, Koichi (1998) “Processo de `Amarelamento` das Tradicionais Religiões Brasileiras de Possessão - Mundo religioso de uma Okinawana” (In) Estudos Japoneses-USP. No.18, São Paulo. p. 57-76. 13. For example, Brown (1986) as Ortiz, points out the importance of the middle class in the founding of Umbanda, but from regarding the relations of possession and deities of Umbanda, Brown interprets the creation of Umbanda as a nationalistic interest of pursuing Brazilianness or the Brazilian identity. According to Brown, among the divine spirits of Umbanda, the possessions of Preto-velho and Caboclo play a central role, whereas deities and possessions such as the Orixás and Exu play peripheral roles. Focusing on this fact, replacing “Orixás which are from Africa and is foreign (to Brazil)” for Caboclo (regarded as a death spirit of an Indian) and Preto-velho (regarded as a death spirit of the black slave), both of which accepted western civilization through slavery and in a certain sense whitened or became Brazilianized, is a mere indication of the nationalistic character of Umbanda. Brown also indicates that the peripheral position given to Exu is related to the significance (evil and immoral) given to the Exu category of possession, and is thus an existence contradicting the orderly evolution or progress. Brown sees that by excluding the “African feature” Umbanda moved away from Africa and by emphasizing the Brazilian feature, it moved away from “Brazil which is a second class Europe”, and he interprets that Umbanda is an expression of Brazilianness and the Brazilian national identity. Brown, Diana (1986) Umbanda: Religion and Politics in Urban Brazil. Ann Arbor: UMI Research press. 178 Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... doctrine of Umbanda as the ideology of spiritual progression14 interrelates with the cultural code (that one can progress by one’s effort) of an upward social movement in an emerging middle stratum of urban society in a traditional dualistic social structure. One characteristic of Umbanda which is pointed out by Ortiz (1978), Brown (1986) and Pressel (1973), is that the doctrine or rituals of Umbanda have yet to be standardized. The difference in the level of syncretism of Umbanda, the short time since its creation, the high degree of uniqueness and the level of autonomy of each cult group are all considered factors contributing to this characteristic. Two extra features of Umbanda pointed out by researchers are the fact that the categories of spirits of possession are defined by ethnicity and are universally headed by a supreme God at the top of a hierarchy, plus the “openness of the universe of spirits of possession”, since these spirits are not given names even though categories of possession exist. These Umbanda characteristics were the underlying conditions which enabled an Okinawan woman named Maria — by being aware of her own situation — to modify what was national in nature, so that it became ethnic once again. In the post war period, the Okinawans changed their dekassegui strategy to that of settlers in the new country, formulating a new ethnic identity known as Uchinanchú — Okinawans of Brazil and they strove to move upwards socio-economically and become part of the urban middle-class. This paper describes the structural features of the spiritual universe of Maria’s cult center as a result of this shift towards being ethnic. 2. Structure of the Spiritual Universe of the Love for Jesus Spiritist Center - Ethnic Nature of the Spiritual Universe. The spiritual universe of Umbanda basically consists of the five deities of possession Orixá, Caboclo, Preto-velho, Criança and Exu, and these are positioned within a hierarchical pyramid structure with a superior God — Deus at the pinnacle. This hierarchical organization is militaristic with Lines — Linha, Legions — Legião and Regiments — Falange, each represented by a head. An Orixá deity heads each Line and just as the superior God, they do not possess humans. Rather, their representative belonging to the spiritual category of Preto-velho and Caboclo, is sent to the human universe by means of possession. 14. The code of the doctrine / cosmology of Umbanda is an ideology of spiritual evolution borrowed from Kardecism not found in Candomblé. The framework of this is that all spirits are on an evolutionary path and in order to evolve good deeds must be performed. One is expected to become closer to a more perfect existence = Superior God, but in order to achieve this, one needs to repeat the process of reincarnation. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 179 Maria basically incorporates the characteristics of the spiritual universe of Umbanda, such as the hierarchical structure with the superior God at the pinnacle, the categories of possessive spirits and the openness of the universe of possessions; however, she has also made some modifications. The following are the summarized details of these modifications. (Table 1) Firstly, she maintained the concepts of the hierarchical structure with its separating lines, the superior God, spirits that do not possess humans (Orixá category), spirits of possession and the human universe. However, the name “Spirits of Light” — Espíritos de Luz is given to the Orixá category (hierarchy), and each of the Orixás is the “head of a line”. As in the case of the superior God, they do not appear in the human universe. By maintaining these concepts, Maria has deviated from the African cults and has introduced deities which do not possess humans. These deities — kamis are Jesus Christ, Our Lady of Aparecida, Emperor Jimmu, Kannon, and Mutú-ya-nu-kami (the founding god of patriclan (munchú) in Okinawa). According to Maria’s explanation, “these kamis have evolved spiritually and therefore they do not descend to the human universe”. Jesus (Christ) is the kami of spiritism (or Kardecism where it originates from) and is regarded as “the first medium that the superior God sent to the human universe”. Our Lady of Aparecida15 is the kami of Catholicism or kami of Brazil. Emperor Jimmu is the kami of Shintoism and is regarded as “first emperor of Japan and founder of Shinto”. Kannon is the kami of Maria’s birth year (Maria´s umaredoshi nu kami) and the kami that back then, opened the path to kamidaari (spiritual manifestation). At the same time, it is the kami of Japanese Buddhism. Mutú-ya-nu-kami is the kami of the founding couple of the patriclan (munchú) in Okinawa or the kami of ancestor worship. The symbols representing these deities are worshipped at the altar of Maria’s cult center. 15. If the creation of Umbanda is a religious expression of the national identity reflecting the collective characteristics of Brazilian civilization, in other words, the expression of Brasilianness as a mixture of three races, then Our Lady of Aparecida as the patron saint of Brazil, was an attempt to unite Brazilian people by integrating the religiousness of non-official Catholicism of the masses, that is, popular Catholicism – through the political power that leaned towards nationalism in the 1930s. For the Church, however, the 30´s was the period when the image of Catholicism was being strengthened in Brazilian society. With the mutual interest of secular power and religious power in the background, making Our Lady of Aparecida a patron saint, and Catholicism a national religion, were attempts to establish a more homogeneous religious state with the image of Brazil as a Catholic nation. Souza, Juliana Beatriz Almeida de (1993), “Nossa Senhora da Aparecida e Identidade Nacional”. D.O. Leitura, São Paulo, v. 12, n. 139. 180 Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... Secondly, under the stratum of Gods of Light — Espíritos de Luz, there is a stratum of Good Spirits — Espíritos bons that are possessions sent to the human universe as representatives of superior kamis. The spirits of possession in this stratum are placed in the categories of Preto-velho, Caboclo (Índio), death spirits of the white man and death spirits of Okinawans. It is believed that the Criança category of Umbanda is represented by the death spirits of Maria’s two younger sisters16. These spirits of possession are believed to be representatives of superior kamis. For example, as a representative of Jesus Christ “the death spirit of a doctor or a nurse, which are the spirits of Kardecism” is sent. The spirit sent by the catholic kami (or Our Lady of Aparecida) is a Brazilian spirit such as Preto-velho or Caboclo, and the spirit sent by the Japanese (Okinawan) kami (Jimmu, Kannon, Mutú-yá-nu-kami) are the death spirits of the Okinawans. Thus, depending on the religious or ethnic origin of each spirit, a link is created with the superior kamis. Beneath this universe of spirits of possession lies the human world where humans are incarnate spirits, the restless spirits — espíritos sofredores, whose racial or ethnic origin is not clear. The structure of the spiritual universe of Umbanda performed by Maria has been briefly summarized, and what must be noted is Maria’s perspective of spiritual salvation. In her cult, Maria always explains to the Okinawan participants that the Uchinanchus of Brazil need to have two guardian spirits in order to be completely saved; a Brazilian guardian spirit and an Okinawan (Japanese) spirit. 16. The image given to the death spirits of the two sisters overlaps with the image of the Child - Criança category of Umbanda regarding innocence and the playfulness. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 181 In fact, many of the mediums that experienced spiritual development at Maria’s cult have received two types of possessive spirits, one being of Brazilian origin and the other of Okinawan (Japanese) origin, and they are both maintained as their respective guardian spirits. In short, according to Maria’s view of salvation, the Uchinanchu entity of Brazil is assumed to be a hybrid one, receiving spiritual influence from spirits of both Okinawa (Japan) and Brazil. Furthermore, when one examines Maria’s description of her salvation activities, a duality can be observed in these two types of possessive spirits and the idiom of possession (cultural code) created by the superior kamis. The spirits of Brazilian origin use the spiritist idiom of possession, whereas spirits of Okinawan origin use the idiom of possession of Okinawan shamanism. 3. Principal Possessive Spirits of the Love for Jesus Spiritist Center 3.1.Non-individualized Spirits and Individualized Spirits Possessive spirits are death spirits that possess mediums, who have already gone through a spiritual development session — Manifestação Mediúnica (Sessão) and they are the center of the possession cult. Mediums refer to the spirits as guides / guardian spirits — Guias, and to themselves as apparatus — Aparelho “transforming their own bodies so as to host the spirits”. These spirits of possession have common features. First of all they each have individual names. The spirit presents itself giving its individual name at a spiritual development session — sessão de desenvolvimento mediúnico, by possessing a medium that has not yet been spiritually developed. The spirit that presents itself becomes the medium’s guardian spirit. According to Eishun, “the spirits that each medium receives are distinct existences”. However, the spirits of possession that belong to the Caboclo (Índio) category such as Índio Paraguaçu, one of Maria’s spirits, or Burukutu, Eishun’s spirit, or Pai-Tupi, Roberto’s spirit, are not necessarily recognized as having distinct personalities or individual histories. Moreover, it is more reasonable to see these spirits as empty personalities — personagem vazio as Ortiz (1978) states. According to Ortiz, these spirits of possession are given individual names, but their personalities or characters are common to the Caboclo (Índio) category. In this way, spirits of possession that are given categorical personality or characters will be referred to as non-individualized spirits — espírito desindividualizado. In addition to the spirits that fall under the Caboclo (Índio) category, there are those which fall under the category of Preto-velho or “death spirit of a black slave” such as Pai João de Angola (Maria’s spirit) and Mãe Maria (Edina’s spirit). Apart from the spirits of possession that belong to such categories, other spirits are recognized 182 Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... as existing with personalities which bear their unique history. These spirits will be referred to here as individualized spirits - espírito individualizado. There are two types of spirits of possession at the Love for Jesus Spiritist Center. When these two types of spirits are examined from the perspective of whether the spirits may have any direct contact with the medium or whether there are any family ties, the former type of spirits never have any contact with the medium’s life, however, the latter type of spirits have actually encountered the medium in his/her lifetime, or it is a death spirit of the medium’s ancestor or family. Furthermore, from a religious perspective, spirits of possession of the former type have characteristics of those originating from Umbanda. The spirits are also classified by Maria and the mediums into their racial/ethnic categories. The racial/ethnic categories are: Black (Preto-velho); Brazilian Indian or mixed (Índio or Caboclo), White and Okinawan (Japanese). These spirits of possession are recognized as “representatives” of superior kamis which do not possess humans, thus there is a link (line) with a specific kami. 3.1.1 Non-individualized Spirits Preto-velho In this category of spirits of possession, there are both Maria´s Pai João de Angola and Mãe Maria, the spirit of a second generation Okinawan medium. There are only two death spirits that are spirits of possession in this category and they are given family titles such as Pai — father and Mãe — mother. The mediums and general participants acknowledge that these two spirits are the death spirits of “an older black slave (and an older woman) from the days of slavery”. Their personalities are regarded as being “very humble and quiet as they have suffered much during slavery and so they well understand the sufferings of others”, “a very patient and tenacious personality having worked under their masters during the days of slavery”, or “the spirit is stronger as they are spirits of Umbanda”. Brown (1986) points out that in the Umbanda cult, when a spirit of the Pretovelho category “descends or possesses”, it is accompanied by a certain pattern of behavior which makes it immediately identifiable, but in the case of this spiritist center, such a pattern of behavior is not usually exhibited when the possession takes place. However, by saying his own name and speaking slowly in the low voice of an older person, the participants can easily understand that it is Preto-velho. At this center, it is only on May 1317 (Abolition of Slavery Day) which is known as Pai 17. The celebration of the birth of Pai João takes place on the afternoon of May 13, the day when the abolition of slavery is commemorated. On that day, the directors of the Love for Jesus Spiritist Center gather at the center Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 183 João´s anniversary that Preto-velho will show such a pattern of behavior as pointed out by Brown. On this day, purification of the spirit is conducted and an anniversary celebration is held. Maria possessed by Pai João “wears a straw hat, sits on a small bench and smokes his favorite pipe”, “she walks with a black cane like an elderly person” and “drinks red wine”. These activities are repeated on this day. Brown and other researchers have pointed out that in 19th century Brazilian literature such as in works by Castro Alves, Machado de Assis and Artur Azevedo, the stereo-type descriptions of the black slaves are extremely similar. Within the cult, Pai João and Mãe Maria offer consultation services, where the former offers solutions and the latter puts forward a moral message. However, while giving his advice Pai João mentions, “I am getting old and I would like to rest a while” therefore he is relinquishing the role of consultation to the Caboclo spirit and thus possession does not occur so frequently. The mediums and general participants accept that “Pai João has spiritually evolved and will gradually stop descending to the human universe”. In relation to the superior kamis, the spirit of Preto-velho is perceived as “black like Our Lady of Aparecida and is therefore a representation”. On the altar set up at the cult, a statue and photograph of Preto-velho are placed on the right side of the statue of Aparecida, and the mediums and participants give cigarettes as offerings. Caboclo (Índio) The spirits of possession that belong to this category are Paraguaçu, TimbaTupã, Pirajara, Burukutu, Ubirajara, and Iracema, etc. According to Brown (1986), the origin of the personal names of spirits in the Caboclo category of Umbanda can be: 1. nature; 2. an object expressing sacred power; 3. the name of a Brazilian Indian tribe; 4. a character who appears in a novel written by José de Alencar. Following this classification, the origin of the names are mainly from numbers 3 and 4. in the morning and set up the celebration venue as well as prepare the feijoada offered to the participants. In preparing the venue, the Mesa Branca and chair are taken away from the cult space and instead, the small bench where Maria possessed by Pai João´s spirit will sit, a straw hat, a cane, red wine, and a pipe are brought in. At 2pm, the members (mediums, their families and general participants) gather at the site. The mediums do not wear their symbolic white gowns. The participants will gather in front of the altar in about 10 rows and wait for Maria to appear. Maria then sits on the bench and concentrates. Once possessed with Pai João´s spirit, she wears the hat, smokes the pipe, drinks red wine, and behaves like an old man with a cane walking around the audience, snapping her fingers repeating the movements of spiritual purification (passe). This day is regarded as the day when Umbanda, which is the religious origin of Pai João´s spirit, is symbolically reenacted. 184 Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... Some of the personalities/characteristics that have been identified with regard to the spirits of possession in this category are “living in the forest and hunting for a living”, “a sound and strong warrior”, “young with much physical strength due to running in the forest”, “has knowledge of herbs because of life in the forest”, “he is spiritually strong due to natural powers”,—“worships ancestors like the Japanese”. Thus, characteristics such as youth, strength and knowledge of herbs are depictions of the Brazilian Indians seen as being “uncivilized”, noble barbarians, which is nothing more than the image of Brazilian Indians depicted in popular literature on the subject18. The role of the Caboclo spirit in the cult is one of councilor, conducting the purification of the spirit or “passe”, and offering advice. During the consultation he has strong spiritual power, and passe or purification of the spirit and he performs the process of eliminating the influence of spirits of a lower level of evolution. Tisane and herbal bath, etc. are offered using his knowledge of herbs, or a spellbound method that aims to eliminate the negative spiritual power19. There are no statues 18. Monteiro (1954) and Carneiro (1964) point out that the Personalities/Characteristics of the spirits in the Caboclo category of Umbanda are not derived from contact with reality, but rather from the depictions of Indians in popular Brazilians Indian folklore. Teixeira Monteiro (1954), “A macumba de vitória” (in) Congresso Internacional de Americanistas 31. p.463. Carneiro, Edson (1964), Ladinos e Crioulos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira. 19. This is a case of a consultation with a Caboclo spirit. In this case, a Caucasian woman in her fifties is worried about her mother´s illness. The consultation is conducted in a dialogue form with Maria(N) possessed by the Caboclo spirit and her assistant Dona Maria(A), and the follower(FL). A: Thanks to you mother. N: Thanks to Pai Tupã, I am purified. The evil spirits are eliminated…all in peace...Pai Tupã. All is purified… (the leg aches)… you are bearing much pain. A: There is really something possessing my mother. That is why she is not in good mood. Really possessed. A: If your mother cannot fall asleep, stay with her. Give her the protective bath so that she will get better. Understand? So that she will be better. Your mother´s illness is a spiritual one and not a somatic one, understand? N: ...help...she is already protected. A: Is there anything that would work on her bad leg?...swollen….arm. FL: When we showed it to the doctor, he said it was a problem of blood circulation. A: Then let us first try spiritual healing. Let us see (whether she will improve) N: Now, have some tea, jasmine tea and…. A: There is quebra-pedra (medicinal tea which is said to dissolves kidney stones) and chamomile tea… N: We also have rosario (a kind of tea). Drink lots of tea. This will help you pass water more easily. FL: At home in our garden the arruda – common rue tree was blooming beautifully. But just overnight, it died. d. The whole tree, the branches died over night as well. N: Someone contrived that. And it was the tree that was hit. It did not strike you or your family, but hit the tree. That is why you are safe. That is good. It was a good thing that it was the tree. After this dialogue, Maria possessed with the Caboclo spirit screamed “Take it, destroy it, cut it, vomit it Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 185 or photographs depicting the Caboclo spirit on the altar, but at the side there are hunting instruments such as bows and arrows representing the Brazilian Indians as hunters. The frequency of possession of the spirits in this category occurs often. The Restless Spirit The spirits that are believed to be in the Restless Spirit — Espírito Sofredor category are not given personal names as in the case of other spirits. Maria and the mediums consider these spirits of possession to be “spirits that are at a lower level of the spiritual evolution scale” or “restless spirits” and thus live “on the street or in the bush”. Furthermore, unlike other spirits of possession, the racial or ethnic backgrounds are not clearly understood. When one of these spirits possesses the medium during a session, the medium will show behavior patterns such as pain, stomping the floor, and pounding the table, or use of coarse language (immoral behavior). When this type of spirit descends, Maria and her assistant Dona Maria will expel the spirit from the cult by saying: “this is not a place for a spirit like you to come”, or offer a prayer so that this spirit can rest in peace. One can guess that the origin of this type of spirit is Umbanda´s Exu, even though Exu’s category name is not used and in the language of Spiritism, such a spirit is considered one which lags behind in spiritual evolution. 3.1.2Individualized Spirits In this section, the characteristics and personalities of the spirits possessing Maria and her husband (Eishun) who is also a medium will be studied distinguishing Brazilian spirits from Okinawan spirits. (1) Brazilian Spirits – White (branco) category Unlike the death spirits in the Preto-velho or Caboclo category, most of the spirits belonging to this category had some contact or some kin/relation with Maria, Eishun or Dona Maria. The main spirits of possession are Irmão Silva, Padre Donizetti, Dr. José Mendonça, Maria da Glória and Tia Neide. out, the sickness of the spirit”, moved her wrist as if trying to get rid of something and snapped her fingers. 186 Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... Padre Donizetti: Maria first encountered Padre Donizetti in 195120, when she was struck by a peculiar illness leading to loss of vision after the birth of her second daughter. Even after having consulted the doctor, she was not cured. Then, the paternal uncle took Maria to Padre Donizetti’s chapel. At that time he was well known as being “a priest who performs miracles”. According to Queirós, Padre Donizetti had been giving blessings — Benzer over the radio from the late 1940s to the early 1950s, and many of the ill were cured, thus he was extremely popular. Maria said that as soon as she received Padre Donizetti’s blessing her vision recovered. As she was leaving the chapel, she received a statue of Aparecida from Padre Donizetti, and this is the Aparecida statue which is still worshipped at the center of the altar at the cult center. Since the foundation of this center, Maria has continued visiting the chapel with the mediums. She has also continued receiving blessings. After the death of the Padre, they started visiting the cemetery and this has become one of the main annual events of the center. The role of the Padre in the cult is seen at the Prece Final – Final Prayer where holy water is sprinkled onto all the participants to eliminate negative spiritual influences and to give them positive influences. This death spirit does not possess Maria very often during the cult and it only appears about once every two weeks. Irmão Silva: Irmão Silva´s true name is Elvino Luiz da Silva and he was a medium serving as director of the Spiritist Foundation of the State of São Paulo - Federação Espírita do Estado de São Paulo. Maria´s encounter with Irmão Silva was through this federation. Maria left the cult center where she went through her spiritual development as it was turning into an Umbanda center and opened her private magical-salvation activity at home. However, with many Okinawan followers rushing to seek help, she “was scared as her activity was an underground one”, and thus went to the federation to seek advice. Maria consulted Irmão Silva who showed an understanding towards her problem. He praised Maria’s activity and thus the Federation granted a two year limited permission for “family gatherings”. 20. Maria´s encounter with Padre Donizetti was when she encountered popular Catholicism, and this was an opportunity to reinterpret her Catholic identity. Maria regards spiritism as similar to Catholicism and the background to this is the fact that in Brazil both Catholicism and Kardecism were undergoing revision. Renshaw, J. Parke (1969) Sociological Analysis of Spiritism in Brazil. The Univ. of Florida (dissertation) Bastide, R. (1985). As religiões Africanas no Brasil. São Paulo, Brasiliense. Azevedo, Thales (1976) “Catequese e Aculturação” (in) E. Shaden(ed) Leituras de Etnologia Brasileira. São Paulo, Nacional. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 187 Irmão Silva performed an important role in solidifying the foundation of Maria´s cult center (Family Meeting of Irmão Tio Kokichi - Reunião Familiar de Irmão Tio Kokichi) since its infancy, as he participated in the cult as a medium and offered guidance on the cult or on incantation. Although it is not clear when Irmão Silva died, his death spirit possesses Maria and plays a role in giving moral messages during a session - sessão. This possession happens about once a week. Dr. José Mendonça: Dr. José Mendonça is a white doctor who lived in the Brás district of São Paulo where Maria lived and ran a fruit store. At the time, she was already “working” at the cult center as a medium. Dr. Mendonça apparently shopped at her store frequently. He always wore white clothes and was said to have strong spirituality. Later, Maria’s family moved to the Vila Ema district and thus there was no more contact with him. There is no record of when Dr. Mendonça’s death spirit started possessing Maria. Maria is only possessed by this death spirit about once a month, which is not so often. The role that this possession plays in the cult is to offer a moral message. Maria da Glória: Maria da Glória is white and a nurse by profession. Maria first met her when she lived in the Brás district while running the grocery store. Maria da Glória worked at a nearby hospital and often shopped at the store. She was a quiet, intellectual woman. After Maria da Glória’s death, she began to possess Maria. It is believed that Maria da Glória was a member of the Medical Spiritual Group — Grupo Médico Espiritual, which consists of 3 doctors and 2 nurses (Maria and Irmã Freire da Silva). Members of this group carry out medical spiritual assistance — Assistência Médica Espiritual for mediums or family members and friends that require medical treatment due to illness or injury and this is performed at the request of the participant during the first prayer, immediately after the cult starts. The group also shares with Padre Donizetti the role of purifying the spirit by sprinkling holy water on all the participants at the final prayer conducted at the end of the cult. The doctors of the spiritual medical team to which Maria da Glória belonged are Dr. Bezerra de Menezes who is regarded as “the father of Brazilian spiritism”, Dr. Américo Veloso and Dr. Olívio Nascimento who are prominent doctors in spiritism21. 21. Hess, David (1987) “O Espiritismo e as Ciências” (in) Religião e Sociedade. Vol.14-No.3, p.41-54. 188 Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... Okinawan Spirits Most of the Okinawan possessions either have a family tie (including mystical family relation) with the possessed, or involve a death spirit of someone who had social contact with the person during their lifetime. The characteristic of these spirits of possession is that the language used to convey the message related to their personal history varies from Okinawan to Japanese and Portuguese. Some of these spirits use Okinawan folk songs and Japanese children’s songs in their messages. Kokichi Hanashiro (paternal uncle) (Tio Kokichi): Maria’s paternal uncle, Kokichi Hanashiro (henceforth referred to as Tio Kokichi) emigrated to Brazil in 1918 as a dekassegui, along with his wife Nabe and younger brother Kosei with the intention of staying for 4 or 5 years. However, the initial dekassegui plan soon fell through. He worked as an agricultural laborer on a coffee plantation, became a tenant farmer (rice plantation) in Minas Gerais state, owned his own farm at the Itariri settlement on the Santos-Juquiá railway line, planted coffee on a plantation on the Sorocabana railway line, moving from one place to another and after the War, had his own laundry business in Alvares Machado city. He finally died in that city in 1947. Maria´s family emigrated to Brazil in 1930 to join her uncle, and lived on his coffee plantation as an agricultural laborer for the first year. According to Maria, Tio Kokichi “adapted to Brazilian society and spoke Portuguese fluently”, as he lived in Brazil for about thirty years. Maria was first possessed by Tio Kokichi’s death spirit in 1948 at a session for spiritual development — sessão de desenvolvimento mediúnico, where she herself developed her spirituality. At that time, Maria was not only possessed by Tio Kokichi´s spirit but also by the death spirit of Pai João de Angola. Maria stayed at this cult center as a medium even after her spirituality developed and carried out consultation “work” involving Pai João´s possession. At that time, however, the spirit of Tio Kokichi was to play a role in only conveying moral messages in Portuguese at the cult. Later, Maria left this center and started to conduct her personal salvation activity in her own living room. Word spread among the Okinawans that there was a Yuta practicing, which led to a shift in followers from non-Japanese Brazilians to Okinawans. At that same time, tasks were divided between Maria´s two spirits of possession depending on the origin of the followers. With this shift in origin of the followers, Tio Kokichi came to take on the salvation activity of the Okinawans and the Okinawan trait which was latent at the previous center became more prominent. In short, depending on the problem that the follower might bring, a solution or search for a cause was carried out, not through the idiom of possession of Brazilian Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 189 spiritism, but through the idiom of possession of shamanism among the Okinawa folk society. The language used in hanji — consultation, and performed in the form of a dialogue, shifted to either Okinawan or Japanese. When Maria founded her own cult center, Tio Kokichi’s spirit along with that of Pai João’s became possessions which were in charge of consultations — consultas within the cult. However, after Maria’s role as cult leader and her role as Yuta were separated, Tio Kokichi’s spirit changed to a spirit whose role was to convey only moral messages. Tio Kokichi’s possessions occur frequently, possessing Maria at almost every cult session conveying messages. These messages are given in three languages: Okinawan, Japanese and Portuguese. One of the principal mediums of this cult center, Roberto (a second generation Japanese) says, “Kokichi-san is not like an uncle — Tio, but rather in recent years has become more like a grandfather — Avô. Pai João is not like a father — Pai, but more like a grandfather — Avô. The light is extremely strong so I do not think that he will descend during the session in the near future. It just means that he is spiritually higher”. Roberto also explains that Tio Kokichi’s spirit and Pai João’s spirit have extremely similar personalities and “they all suffered as slaves and agricultural laborers in Brazil which shaped their similar personalities and generous characters”. Nabe Hanashiro: Nabe Hanashiro was Tio Kokichi’s wife. Nabe was to inherit the title of Nurugami or Okinawan village priest, however, she married Kokichi, and emigrated to Brazil. She never returned to Okinawa and died due to illness 10 years after emigrating. Because of this, Maria never met this aunt. The main message that Nabe sends to the cult is that she was born a child of god, and she was to become the village’s nurugami — priest, but that did not happen. She emigrated to Brazil and did not keep her word with the kami and because she upset the kami she died 10 years after she arrived in Brazil. Seishin Hanashiro: Seishin Hanashiro was Maria´s father and in 1930 along with his wife Kameto and two-year-old Maria, they left for Brazil to join his older brother Kokichi. The initial plan was to stay for 4 or 5 years to make money and return to Okinawa, but he never went back and died in São Paulo after the war. Seishin spent the first year with his family at his brother’s coffee plantation as an agricultural laborer at the Nittô Settlement, which was in Presidente Prudente in the hinterland of the state of São Paulo. Following that he moved to the Alecson Settlement, which 190 Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... was on the Santos-Juquiá Railway line where many immigrants from the Okinawa Prefecture were living, and there he engaged in rice plantation. However, because his wife Kameto, who was always frail, never recovered well after giving birth and was often bedridden, and because of Maria´s illness, Seishin moved to the Cedro Settlement where his other brother lived. This was another Okinawan settlement along the Juquiá line and there Seishin engaged in banana plantation. In 1947, he moved to the Brás district of São Paulo seeking his older brother and started a fruit store. He finally died in the early sixties due to illness. According to Maria, “father was a very devout ancestor worshipper and taught me a lot along with my mother”. Also with the mother dying of illness and due to Maria’s illness, Seishin had to do the housework as well as having to work, and therefore he suffered financially as well. After his death, Seishin possesses Maria, but his possession is not so frequent. His role in the cult is communicating messages. Kameto Hanashiro: Kameto is Maria´s mother and she moved to Brazil following her husband’s decision to emigrate. Kameto had always been frail, so going through pregnancy and giving birth to a child at the Alecson Settlement often left her bedridden, as her postnatal recovery was not good. Even after moving to the Cedro Settlement, and frail as she was, she became pregnant four times more and gave birth to four children (two of whom are Lidinha and Aurora). She died of illness in her late thirties at the Cedro Settlement. According to Maria, Kameto often told her that she was also born a saadakaumari (kami-umari) or village priest. Kameto was a devout ancestor worshipper, and as early as Maria can remember, Kameto always had a candle lit pointing in the eastern direction and performed utoushi — prayers to the kami of the family as well as ugan — prayers of apology. She talked to Maria about the rites and customs concerning ancestor worship in Okinawa. Kameto had also told Maria several times about the time “when she was still resting recovering from delivery, a woman wearing a beautiful white kimono with long hair and who had just washed, appeared beside the pillow”, and the woman asked her to “give me this child (Maria)” as she “had much milk to give.” Kameto said that this woman was a kami and that she had come to take Maria to “the path of the kami”. She simply said, Kameto had repeatedly talked to Maria about being saadakaumari (kami-umari) — village priest, and that her destiny was the same. Kameto in her possession of Maria plays the role of teaching the customs and rituals of ancestor worship, as well as conveying messages through her experience. In the cult, edicts coming from the kami are fateful and they cannot be rejected. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 191 Lidinha/Aurora: Lidinha and Aurora were Maria’s two younger sisters who both died at an early age at the Cedro Settlement. Lidinha possesses her sister frequently but Aurora seldom possesses Maria. During these possessions, the language spoken is only Portuguese and her messages are full of innocence, similar to the characteristics and traits of the child — Criança category of Umbanda. There is a photograph of Lidinha at the altar and the participants bring candies and sweets as offerings, which in turn are distributed to the children after the cult. Uncle Miyazato (the older brother of Maria’s mother): Uncle Miyazato who is the older brother of Maria´s mother emigrated to Peru with his family. This uncle´s death spirit first possessed Maria in February of 1992. It was immediately after Maria´s husband Eishun had visited the paternal uncle in Peru about the inheritance of the Totome — ancestral tablet, and he used the opportunity to visit Uncle Miyazato`s grave. The message at the time of possession was an expression of appreciation for Eishun offering the ugan — prayer. This possession does not happen so often but the messages (in Okinawan and in Japanese) speak of how they suffered as immigrants in Peru and the importance of keeping Okinawan customs. Kameto Kanashiro: Kameto was Eishun’s mother-in-law and later on her spirit would come to possess him. After the war Maria and Eishun wanted to “let her see her Brazilian grandchild’s face”. They invited Kameto to come and visit. Kameto spent about 8 months with her son-in-law’s family and died in Brazil due to old age. Eishun “wanted to return her ashes to a tomb in Okinawa”, but at the time there was no crematorium, thus she was cremated in his backyard and the ashes were sent along with an acquaintance who was returning to Okinawa for a short visit. Kameto’s death spirit possesses Eishun about once a month. Seiei Kanashiro: Seiei was Eishun´s older brother, and he was married with one child but was conscripted into the army during World War II. He died in the battle of the South Pacific. According to Eishun, “my brother died suffering at a field hospital”, and “when my brother’s spirit descended in the late 1960s, his suffering still lingered on, and I too was tormented. Now, the pain has diminished. My brother’s suffering was not only restricted to dying in action, but also the pain of not being able to assume fatherly responsibility during his lifetime and leaving behind his wife and 192 Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... young child. That is why it took so much time for the spirit to rest in peace”. Seiei’s possession occurs about once a week and the messages conveyed during the possessions are in the Okinawan language. Hanako: Hanako is Eishun´s younger sister and when she died, she lived in Amagasaki City in the Hyogo Prefecture where many from Okinawa lived at the time. Hanako did not recover well from childbirth and soon died. Eishun is also possessed by Hanako’s spirit and he was “tormented the first time her spirit descended as in the case of Seiei”. Hanako’s possession occurs about once a month and the messages conveyed during the cult are in Okinawan and in Japanese. Kamesuke Kanashiro: Kamesuke along with his wife Kamata immigrated to Peru and he is the paternal uncle of Eishun. In Peru, Kamesuke and Kamata only gave birth to daughters, thus Eishun who is the second son in the family, was adopted into the family and he maintains the couple’s totome or ancestral tablet. Maria and Eishun visited the daughters after the deaths of the uncle and his wife, and performed the unchike — ritual then brought the ancestral tablet back to Brazil. From the time that Kamesuke died in the 1960s, the spirit began possessing Eishun. The possession of Kamesuke’s death spirit occurs about once every two months, and the messages conveyed at the sessions are spoken in the Okinawan language. Gensui Taira: Gensui Taira was an immigrant from Okinawa but unlike other Okinawan spirits of possession he had no kin relation and was therefore unrelated to Eishun who is the aparelho — apparatus. Gensui had been engaged in rice and banana plantation for a long time at a settlement on the Juquiá line where many Okinawan immigrants concentrated. Later he moved to São Paulo and ran a laundry business. According to Eishun, “he was a person who attached great importance to trust in society, as well as in his work and the home”. In addition, according to one medium, Gensui’s personality is “very similar to Mr. Eishun. Mr. Eishun is also a person who has placed great importance on trust in society, work and the family.” Gensui’s possession happens about once a week which is relatively frequent and the messages conveyed are in the Okinawan language and also in Japanese. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 193 Agi-gami: Agi-gami is not a personal name and according to Eishun, who is possessed by it, Agi-gami is “a spirit of an Okinawan samurai with strong spiritual powers” and is recognized as “the ancestral spirit of Kanashiro’s family.” When possessed by Agi-gami, Eishun uses forceful language and shows gestures of drawing a sword or becomes more animated. The possession of this spirit only occurs during special occasions of the cult at the beginning and end of the year. The role of this possession is passe - purification of the spirit as in possessions from the Caboclo category. 3.2. Role Division among the spirits of possession during a session Table 2. Possession at a Public Session Scene Opening prayer Specific activity - prayer to supreme God - prayer to thank ancestors´ spirits and to seek protection - prayer for the successful cure or surgery of a medium or his/ her family, relatives or friends Possessive spirits - Death spirits (Brazilian/white category of Spiritual Medical group consisting of 3 doctors and 2 nurses) - Tio Kokichi’s spirit (Maria’s possessive spirits) which is a representative of Okinawa’s mutoyanukam. Consultation (1) - hearing the follower’s story and suggesting solutions from life experience. - Preto-velho category Consultation (2) - hearing the follower’s story to eliminate the cause of the curse and suggesting preventive measures, such as herbs and tea - Caboclo category - possession of the medium conveying moral messages - all possessive spirits (excep. Agi-gami) Final Prayer - at the end of the session, superior God and Spirits of Light are asked to provide spiritual protection. - death spirits of Padre Donizetti, Lidinha and Maria da Glória Passe (Spiritual Purification) - purification of the spirit by the medium’s own possession to receive influence from a higher stage of evolution Mediumistic Manifestation - Caboclo category - Okinawa possessive spirits The possessions described in the previous section mainly involve Maria and 194 Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... Eishun during the sessions at Maria’s cult center. In this section, the division of the tasks of these spirits of possession during the public session — sessão pública22, which consists of (1) opening prayer − prece; (2) consultation; (3) mediumistic manifestation — manifestação mediúnica (4) final prayer — prece final; (5) purification/protection of the spirit (Prece), will be demonstrated. Table 2 indicates the category of the spirits according to the different scenes of the public session. The division of roles during the public sessions indicates that in almost all the possession scenes, at least those involving the Brazilian and Okinawan spirits of possession, we find duality if we further add hanji/akashi — equivalent to a consultation in the cult — that Maria conducts with Tio Kokichi’s spirit. When the division of roles among the spirits of Brazilian origin are considered, the spirits of possession that are believed to originate in Kardecism, or the spirits of the category of branco — white, are seen to be more evolved spirits, according to the 19th century social evolution theory of which spiritism is part. Thus, they assume the role of spiritually assisting modern medicine, whereas the spirits originating in Umbanda, given the strength of their spiritual power, assume the role of purification/ protection of the spirits and of consultation. The presence of Okinawan spirits of possession is most prominent in the spiritual development sessions — Manifestação Mediúnica, whose role it is to convey various messages. The messages of the Brazilian spirits conveyed during the spiritual development sessions relate to the spiritist idiom such as, love thy neighbor, the importance of charity, the importance of prayer, positive thinking, etc. On the other hand, in the case of Okinawan spirits, as illustrated in Table 3, the messages refer to concepts relating to the culture of Okinawan shamanism, such as the importance of ancestor worship or the rituals in ancestor worship, and the fate of the village priest — saadaka-umari (kami-umari), as well as experiences as immigrants and memories of World War II, etc.. The language used to convey these messages vary among Japanese, Okinawan and Portuguese, depending on the life history of the spirit of possession. In addition, depending on the spirits of possession, melodies of Okinawan folk songs or Japanese traditional songs with a variation in lyrics are incorporated in the messages. 22. At Maria´s cult center, there is a training session for controlling a trance-possession called sessão de desenvolvimento mediúnico – Spiritual Development Session held once a month. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 195 Table 3 Messages of Main Okinawan Possessions Posses-sions 196 Messages Usage of Music Language Attributes Tio Kokichi Importance of ancestor worship How perform totomeugan Main annual events, hachimizu, tanabata, obon, jurukunichishogatu, kami of the year of birth, and suffering as an immigrant none Nabe About kamiumare, the fate, suffering as an immigrant, Ryukyu folksongs and dances, about ochatu of the first and the 15th day, offering at ugan Singing Okinawan folksongs Okinawan, Japanese Portuguese First generation Okinawan immigrant, Maria’s aunt Seishin Hardships and life at the settlement along the Juquiá line, importance of ancestor worship, memories of Okinawa, longing for home, business in São Paulo none Okinawan, Japanese Portuguese First generation Okinawan immigrant, Maria’s father none Japanese Second generation Okinawan immigrant, Maria’s younger sister none Okinawan, Japanese First generation Okinawan immigrant, Maria’s mother Lidinha Food and playing at the colony Kameto Fate of being kamiumare, hardship being an immigrant’s wife, importance of passing on ancestor worship Okinawan, Japanese Portuguese Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... First generation Okinawan immigrant, Maria’s paternal uncle. Seiei Experience in the battle of the S. Pacific, remorse in leaving behind his wife and child, importance of praying for the ancestors Hanako Life of Okinawans in mainland Japan, difficulty in personal relationships in Japan (language and customs), always praying to Okinawa’s mutoyanokami on the 1st and 15th days of the month Kamesuke Life and hardship of immigrants in Peru, importance of keeping Okinawan customs Gensui Importance of trust in work and business, importance of ancestor worship, hardship as Okinawan immigrant, discrimination from mainland Japanese Agi-gami Importance of trust and faith, keeping Okinawan traditions Behavior of Okinawan samurai Japanese school songs, Okinawan folksongs Okinawan, Japanese Eishun’s older brother, died in battle during WWII none Japanese Younger sister of Eishun, dekassegui in mainland Japan, lived in Amagasaki. none Okinawan, Japanese Portuguese Paternal uncle of Eishun, first generation immigrant in Peru Okinawa folksongs Okinawan, Japanese First generation Okinawan immigrant, unrelated but from the same home Prefecture none Okinawan Ancestors’ spirit Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 197 4. Conclusion What are the features of the structure of the spiritual universe and spirits of possession of the cult center described up to this point? One can also question the kind of universe they represent. What does this make-up of the spiritual universe particularly mean to the followers who attend the cult center, for approximately 90% of them are Okinawans and their descendants? What kind of entities are these spirits for this Okinawan woman, Maria, who emigrated to Brazil and created the cult center? In this section we will examine the symbolic meaning of the structure of the spiritual universe and the composition of the spirits of possession, at a collective and individual level. 4.1. Collective level. Researchers such as Ortiz (1978), Brown (1986), Pressel (1971) and Birman (1980)23 have presented various interpretations regarding the make-up of possessions in Umbanda. For example, Pressel has interpreted the 4 categories of Umbanda — Preto-velho, Caboclo, Criança, and Exu – from a psychoanthropological perspective and at the following three levels24, (1) Of the four categories of possession, three, namely Preto-velho, Caboclo and Exu represent ethnic background that makes up the Brazilian population – African blacks, Brazilian Indians, and foreigners (particularly Europeans), whereas the Criança category, which is not given a specific racial or ethnic origin, may represent Brazilians who descend from such ethnicities. (2) Focusing on the relative ages of the spirits of possession (category), these spirits may indicate the stage of development of the religion of possession in Brazil. (3) The personality attached to a spirit of possession (category) on the whole, represents a well balanced ideal personal trait25. Bearing the interpretation of previous researchers in mind, I shall interpret the type of universe that the spirits of possession and the spiritual universe of Maria’s cult center represent. Firstly, the spirits of this center have a racial/ethnic composition with blacks, Brazilian Indians, whites, and Okinawans (Japanese), when we exclude the restless spirits — Espíritos Sofredores, whose racial and 23. Birman, P. (1980) O que É Umbanda? Coleção Primeiros Passos/SP. Abril/Brasiliense 24. Pressel, J.Ester.(1973)Umbanda in São Paulo: religious innovation in a development society. In E. Bourguignon (ed.). religion, altered staty of consciousness and social change. Columbus: ohio State Univ. Press. p. 265-318. 25. The significance Umbanda believers give to the possession categories is the following: Preto-velho-calmness, generosity, Caboclo-braveness, austerity, Criança-innocence, playfulness, Exu-shrewd, agressiveness 198 Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... ethnic composition are unknown and are “not included at the center”. If we follow Pressel’s first interpretation, for Maria and the followers, the composition of the spirits of possession can be understood as their interpretation (model) of the “Brazilian” world, as this nation is made up of “four races/ethnicities.”— Furthermore, when we consider the roles assigned to the spirits in the cult, one can say that harmonious racial relationships are depicted in Brazil (without racial discrimination), a nation which divides the roles of the four races/ethnicities according to their traits and characteristics. Clearly the influence of 19th century racial discrimination encompassed in Kardecism is recognized here, but even though the white category is given the image of a more evolved stage, at Maria’s cult center, the distinct contribution of each race/ethnicity is emphasized. The second interpretation is that the structure of the spiritual universe of this center religiously depicts Okinawans as human. From the perspective of the theory stating that Japan and Okinawa share the same ancestors, it is recognized that Okinawans as well as mainland Japanese people have a common Japanese religious tradition represented by Buddhism and Shintoism. Despite the aforesaid, Okinawans have a distinct religious ancestor worship tradition, and therefore these people are seen as different from mainland Japanese. The third interpretation is that Uchinanchus — Okinawans of Brazil26 are not people who simply “assimilate” into Brazilian society but rather, they maintain their distinct “culture”, thus contributing to and integrating Brazilian culture. This is because they have dual guardian spirits and we find dual roles played during the cult. Portuguese, Okinawan, and the Japanese are spoken in the cult, which is therefore multilingual, and duality is also found in the heterogeneous nature of the messages that are communicated by the spirits of possession. That is, the existence of duality in the idiom of possession is a condition upon which Uchinanchus of Brazil are construing themselves as hybrid beings, continuously receiving the influence of Brazilian and also Okinawan spirits of possession. The fourth interpretation is a model of the universe different from that of the first level of interpretation, in which the social universe of the Okinawan immigrants in Brazil is depicted. The Okinawan spirits of possession can all be placed in either of the following categories: 1. family of Okinawans who moved to Brazil or people from the same religion; 2. the remaining family; 3. family or relatives that 26. Refer to the author’s paper (2000) regarding the characteristics of the collective identity of okinawans in Brazil and the transformation. Koichi Mori (2000) “Identity Transformations among Okinawans and Their Descendents in Brazil” (in) Jeffrey Lesser (ed). Searching for Home Abroad: Japanese-Brazilians and the Transnationalism. USA. Duke Univ.Press. p.47-65. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 199 emigrated to countries other than Brazil; 4. Nisseis — second generation Japanese born in the land they emigrated to; 5. relatives that live on the Japanese mainland; and 6. ancestors. Moreover, the Okinawan immigrants that came to Brazil at least at the time when the center was founded, also share this social universe. Within the structure of the spirits of possession, there are no immigrants from mainland Japan, or other immigrants of Japanese origin. Although this argument is weak, this may be so due to the subtlety of the social relationships and the background of the mutually discriminatory relation between immigrants of mainland Japan and those from Okinawa in the pre-war Japanese immigrant society. In this way, the structure of the spiritual universe of the cult center, in particular the composition of the spirits of possession, is a “description” of the Uchinanchus of Brazil including people from various levels and backgrounds. 4.2 Personal Level - Spirits of possession - structuring Maria’s life Table 4 Maria’s Principal Possessions Personal name of spirit Relation Possession category Religious origin Tio Kokichi Paternal uncle Okinawan immigrant Ancestor worship Nabe Paternal aunt Okinawan immigrant Ancestor worship Mother Okinawan immigrant Ancestor worship Seishin Father Okinawan immigrant Ancestor worship Lidinha Younger sister Okinawan nisei Aurora Younger sister Kameto Pai João de Angola 200 Language used Personal encounter Place of encounter J. P. O Yes Nitto Settlement (Interior of SP) J. P. O. Yes Nitto Settlement yes Nitto, Cedro Alecson, Settlements J.O.P. yes Nitto, Cedro Alecson, Settlements none Portuguese yes Alecson Okinawan nisei none Portuguese yes Alecson Preto-velho Umbanda Portuguese no São PauloVila Nova Conceição J. O. Koichi Mori - The Structure and Significance of the Spiritual Universe... Indio Paraguaçu Caboclo Umbanda Portuguese No São PauloVila Nova Conceição Indio Pena Branca Caboclo Umbanda Portuguese No São PauloVila Nova Conceição Indio Piajara Caboclo Umbanda Portuguese No São PauloVila Nova Conceição Indio TimbaTupã Caboclo Umbanda Portuguese yes São PauloVila Nova Conceição Pedro Donizetti Branco Catholicism Portuguese yes SãoPauloBrás Dr. José Mendonça Branco Kardecism Portuguese yes SãoPauloBrás Maria da Glória Branco Kardecism Portuguese yes São PauloVila Ema Irmão Silva Branco Spiritism Portuguese yes São PauloVila Ema Okinawan Immigrant to Peru Ancestor worship J.O. yes São PauloVila Ema Uncle of Miyazato Husband’s Paternal uncle note: J=Japanese, O=Okinawan, P=Portuguese If the structure of the spiritual universe of the center, in particular the composition of the spirits of possession, is collectively a “description” of Uchinanchus of Brazil, what do these spirits mean to each of the mediums? A case study will examine this question focusing on Maria’s spirits, the founder of this center. Table 4 shows the principal spirits of possession of Maria. Maria has always stated at the cult that “the Uchinanchu of Brazil must have Brazilian and Okinawan guardian spirits to be completely safe ”, thus Maria’s spirits are roughly classified as spirits of Brazilian origin and spirits of Okinawan origin. Possession is when the body is temporarily given up to the possessive spirit, this being nothing but the temporary experience of being a “Brazilian” or “Okinawan.” In other words, this means that in terms of possessions, Maria as a person is the recipient of spiritual influences, which define her as an Uchinanchu of Brazil, and thus her religious identity is represented. This table reflects the data concerning her life history, which was obtained during an interview. One can observe that these spirits are idioms that outline her life. Firstly, the spirits of possession represent the places where Maria lived during Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 201 her lifetime. She left for Brazil with her parents at the age of two, starting out at the Nitto-Settlement, she lived at the Alecson Settlement on the Santos-Juquiá line, the Cedro Settlement, the Brás district of São Paulo, the Vila Nova Conceição district and the Vila Ema district. Her spirits are the death spirits of people she had encountered at these places where she resided, thus the different localities of residence throughout her life are represented methodically. Secondly, the spirits seem to depict her religious journey. The religions that Maria encountered throughout her life, namely, ancestor worship in Okinawa, popular Catholicism, Spiritism, Umbanda and Kardecism are articulated in an orderly manner through her possessions. Maria’s spirits of possession systematize her “life” as a whole and are idioms that restructure her existence. Psychologically, the spirits of possession are idioms of possession introduced through Umbanda to restructure society cognitively by adding meaning to society’s psychosomatic disorders and symptoms caused by internal struggle; thank to tasks of projection that reconfirm individual identity, constantly integrating Maria’s fundamental ego. Bibliography: Azevedo, Thales (1976) “Catequese e Aculturação” (in) (ed) E. Shaden. Leituras de Etnologia Brasileira. São Paulo: Nacional. Bastide, R. (1985) As Religões Africanas no Brasil. São Paulo: Brasiliense. Birman, P. (1980) O Que é Umbanda? Coleção Primeiros Passos. SP: Abril/ Brasiliense. Brown, Diana (1986) Umbanda: Religion and Politics in Urban Brazil. Ann Arbor: UMI Research Press. Camargo, C.P. (1961) Kardecismo e Umbanda. São Paulo: Pioneira. Carneiro, Edson (1964) Ladinos e Crioulos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira. 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Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 175-203 - 2008 203 A ORIGEM INDIANA DE UM MITO DO BRASIL COLONIAL Eduardo de Almeida Navarro* Resumo: Este artigo relata a história do mito de São Tomé desde seu surgimento na Índia e como ele pôde existir no Brasil no período colonial, desempenhando um importante papel na assimilação pelos portugueses dos novos fatos culturais revelados pela colonização. Palavras-chave: Índia, mito, colonização Abstract: This paper reports the history of Saint Thomas’ myth since its birth in India and how it could exist in Brazil in the colonial period, playing an important role in the assimilation by the Portuguese of the new cultural facts revealed by the colonization. Key words: India, myth, colonization Introdução Ao transpor o Cabo da Boa Esperança e realizar a façanhosa empresa de chegar às Índias, Vasco da Gama não somente desencadearia um dos mais notáveis processos civilizatórios da história do mundo, como também mudaria a configuração dos mitos europeus. Com efeito, o que chegava à Europa por meio dos navegadores italianos que negociavam com os árabes nos portos do Mediterrâneo eram informações fantasiosas que conduziam à formação de lendas, de histórias assombrosas que, durante séculos, povoaram o imaginário europeu. Com as Grandes Navegações dava-se o passo inicial no processo do conhecimento científico do mundo, conducente, na expressão de Max Weber, a seu “desencantamento”, que se completaria na Idade Contemporânea. __________ * Professor livre-docente do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade de São Paulo. 205 Assim, o lendário reino cristão da Índia, o do Preste João, sofreria um deslocamento geográfico, passando a existir, a partir de então, na Etiópia. Outro grande mito surgiria, nessa época, na Europa: o de São Tomé. Tomé, em grego Dídimos, palavra aramaica que significa “gêmeo”, era o nome do apóstolo que teria duvidado da ressurreição de Cristo e que, para nela crer, pôs os dedos em suas chagas. Uma tradição antiqüíssima atribui a conversão da Índia a esse apóstolo. Da Índia o mito chegou a Portugal e, logo mais tarde, ao Brasil, tornando-se um lugar-comum nas letras coloniais brasileiras até o século XVIII. Dezenas de autores escreveram sobre São Tomé, afirmando sua presença no Brasil nos tempos apostólicos. No entanto, até a chegada dos portugueses, eram desconhecidos na Europa a natureza e os limites da fé cristã que, desde a Antiguidade, sabia-se existir na Índia. Quem eram os cristãos da Índia? Seguiriam eles as leis da Igreja? Seriam hereges? Ninguém podia responder a tais perguntas nos tempos medievais. As informações acerca de uma cristandade na Índia na Antiguidade Antes mesmo de muitas regiões do mundo serem convertidas ao cristianismo, a Índia já possuía milhares de cristãos. Eles estavam concentrados no sudoeste do país, na chamada Costa do Malabar, uma região de vegetação exuberante e luxuriosa, semelhante à da costa leste do Brasil. Os textos antigos falam desses cristãos. É sabido que os antigos gregos e romanos conheceram muito bem a Índia. Muitos nomes de atuais localidades daquele país têm origem grega ou latina, como “Quilon” e “Trivandrum”, embora a Índia nunca tivesse sido parte do império romano. Alexandre da Macedônia, antes deles, chegou até o rio Indo, mas não conquistou o país. Seja como for, mesmo não tendo sido parte do império de Alexandre ou do império romano, existiram intensas trocas comerciais e culturais entre a Índia e a Europa e regiões adjacentes ao Mediterrâneo. É surpreendente a semelhança entre certas fábulas indianas e as de Fedro e Esopo. Também a arquitetura indiana tomou muitas idéias dos gregos. Além disso, é muito provável que a cunhagem de moedas e a Astronomia na Índia muito devam aos gregos alexandrinos. Comerciantes indianos freqüentemente visitavam cidades do Ocidente como Palmira, Alexandria e Antioquia. O rei Kanishka (120-162), da região indiana de Kushan, teve largos contatos com os romanos, tendo enviado algumas embaixadas a Roma. Kanishka, que foi o maior dos reis de Kushan, controlou a rota da seda da Ásia Central, pela qual a seda da China chegava até o império romano. Segundo o historiador romano Plínio, da Índia Roma importava cem milhões de sestércios na forma de pedras preciosas, pérolas, especiarias, perfumes e pavões. Disse ele também 206 Eduardo de Almeida Navarro - A Origem Indiana de um Mito do Brasil Colonial que, em sua época, 120 navios visitavam a cada ano os portos da costa ocidental da Índia. Existiam, na verdade, três rotas, uma por terra (a das caravanas, pela Mesopotâmia, Pérsia e Afeganistão) e duas por mar, uma partindo de Alexandria e a outra de Bosra. Surgiram, assim, muitos empórios romanos em portos da costa ocidental da Índia: Andrápolis, a atual Karachi, no Paquistão, Muziris, na costa do Malabar, a atual Cranganore, Caliana, hoje Kala, etc. Já os empórios romanos na costa oriental da Índia não são facilmente identificáveis. Desse modo, foi com a costa ocidental da Índia, a mesma onde aportariam mais de mil e quinhentos anos depois as caravelas portuguesas, que Roma fez grandes contatos na Antiguidade. Toda essa costa ocidental, tão parecida ao litoral do Nordeste brasileiro, passou a ser, no imaginário europeu, terra de abundantes riquezas. Os judeus na Índia Em vista do que mostramos anteriormente, não haveria, assim, nenhuma impossibilidade material de um judeu da Palestina, como o apóstolo Tomé, sair daquela província romana e ir estabelecer-se na Índia em meados do primeiro século depois de Cristo. O mais intrigante é o fato de existir, deveras, na costa do Malabar, e até hoje, uma comunidade judaica que, segundo alguns, foi para lá nos tempos da Diáspora, isto é, após o ano 72, quando o imperador Tito ordenou, após a famosa guerra de Bar-Kohba, que não houvesse mais judeus na Palestina. Outros sustentam a existência de judeus no Malabar desde o tempo de Salomão (século X a. C), isso porque, em alguns passos do Velho Testamento, fazem-se referências a certas especiarias, matérias e animais que, certamente, vinham da Índia. É o que lemos, por exemplo, no livro de Reis, III, 10: 22, em que se fala de marfim e macacos levados para o rei Salomão. Na verdade, é difícil saber a época em que se estabeleceu uma comunidade judaica na Índia. O que os atuais judeus de Kerala (ou Malabar) afirmam é que lá chegaram no século I d.C. Hoje esses judeus reduzem-se a somente algumas famílias. Sua sinagoga, que os portugueses bombardearam no século XVI, foi reconstruída mais tarde e ainda subsiste, sendo a única de toda a Índia. A existência de uma comunidade judaica na costa do Malabar, justamente onde se achavam cristãos desde a Antiguidade, levou alguns autores a supor que o apóstolo São Tomé teria feito parte dessa comunidade ou que teria pregado a doutrina de Cristo a tais judeus recém-chegados da Palestina, sendo mesmo possível que Tomé fosse um dos que participaram da Diáspora, ocorrida em 72 d.C. Contudo, uma tradição imemorial reza que Tomé chegou à Índia no ano 52 d.C., Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 205-214 - 2008 207 portanto vinte anos antes da Diáspora. Seja como for, é interessante observar que o Malabar concentrou tanto os judeus quanto os primeiros cristãos da Índia. Haveria relação entre esses fatos? Não o sabemos. Os contornos do mito na Índia antes dos portugueses Segundo a tradição, São Tomé teria ido à Índia por mar. Para Zaleski (1912), ele teria seguido a rota que partia de Alexandria-Suez. A chegada do apóstolo à Índia teria acontecido um ano depois do Concílio dos Apóstolos em Jerusalém em 51 d.C. Os primeiros cristãos da Índia, até a chegada dos portugueses, em 1498, não estavam unidos a Roma. Era uma cristandade praticamente isolada do Ocidente, com práticas rituais diferentes e seguidores de uma heresia havia muito extirpada da Europa, o nestorianismo, segundo a qual há em Jesus Cristo duas pessoas distintas, uma humana e outra divina. Sua língua litúrgica era o siríaco, uma língua semítica aparentada ao hebraico e falada em Edessa na Síria. Ficaram sendo chamados, então, de “cristãos siro-malabares”, para serem distinguidos dos católicos do rito latino. Até hoje, na Índia, principalmente no Malabar, existe a distinção entre cristãos siro-malabares e cristãos latinos, estes últimos aparecendo somente com a chegada dos portugueses. Quando o papa João Paulo II esteve na Índia, em 1989, ele reiterou a idéia de que foi São Tomé quem converteu os primeiros cristãos naquele país. A tradição da Igreja, com efeito, é unânime em afirmar isso. O papa tão-somente confirmou o que era dito havia séculos. O Breviário Romano e o martirológio da Igreja Católica afirmam que São Tomé teria evangelizado os medas, os persas, os partas, os hircanos e os bactrianos e que ele foi martirizado em 68 d.C. em Calamina. Desse modo, São Tomé, entre sua chegada e sua morte, teria permanecido dezesseis anos na Índia, segundo a tradição católica. Mas há aqui um desencontro de tradições: os cristãos siro-malabares são unânimes em afirmar que São Tomé morreu em Meliapor (ou Maylapur), parte da cidade de Madras (atualmente Chennai), que se situa na costa leste da Índia. Seria Meliapor o mesmo que Calamina de que falam o Breviário Romano e o martirológio da Igreja Católica? Meliapor (na língua tamil mailepouram, “vila do peixe”) parece ter um significado próximo ao de Calamina, que é, em tamil, uma espécie de peixe. Porém, a questão aqui não pode ser resolvida fora do domínio de tradição que se perde na noite dos tempos. Em Meliapor existe uma basílica erguida no começo do século XX no lugar de uma antiga igreja demolida. Em sua cripta, atrás da igreja, visitada por milhares de indianos cristãos todos os anos, está o lugar em que São Tomé teria sido sepultado. 208 Eduardo de Almeida Navarro - A Origem Indiana de um Mito do Brasil Colonial Meliapor situa-se numa pequena elevação que ficou a salvo dos “tsunamis” que atingiram as costas da Índia no final de 2004 e derrubaram quarteirões inteiros ao seu redor. Como vemos, a tradição reza que São Tomé não morreu na costa do Malabar, onde está a maior parte dos cristãos primitivos da Índia, mas numa outra região do país, onde ele teria sofrido o martírio. A basílica de Meliapor e a basílica de São Pedro, em Roma, são as duas únicas igrejas construídas, segundo a Igreja Católica, sobre túmulos de apóstolos de Cristo. Além dessas duas regiões da Índia, que têm uma tradição sólida e estabelecida da passagem do apóstolo São Tomé, há também uma região do atual Paquistão (que fazia parte da Índia até 1947) em que se diz que o apóstolo esteve: é a região do Sindh, onde atualmente está Karachi. Lá, segundo a lenda, São Tomé tomou contato com o rei Gondophares, do reino de Gandhara, situado na rota das caravanas que iam da Índia para a Mesopotâmia. Ora, durante séculos isso não passou de lenda sem nenhum fundamento histórico nem se tinha qualquer prova de que esse rei Gondophares tivesse existido em algum tempo. Mas no ano de 1834 descobriu-se no Afeganistão uma moeda do primeiro século da era cristã e, depois, mais outras moedas daquele reino de Gandhara onde está escrito o nome de Gondophares. Isso dá maior credibilidade à lenda que reza que São Tomé teve contato com esse rei. Pelo menos está provado que esse rei, cujo nome não se encontra mencionado em nenhum documento histórico, existiu, de fato. Nada, porém, restou de uma cristandade no Paquistão, na região do Sindh, da qual nos fala São João Damasceno. Segundo ele, houve eremitas cristãos indianos que levavam no deserto vizinho do rio Indo uma vida de grande austeridade. João Damasceno menciona, entre esses, São Barlaam. Ele diz que também ali se desenvolviam mosteiros e que havia bispos para governar os numerosos cristãos dos quais não se têm mais notícias. Zaleski (1912) diz que a cidade do Sindh onde São Tomé teria centrado sua ação seria Narankot, hoje Hyderabad, no atual Paquistão. A revivescência do mito de São Tomé com a chegada dos portugueses Em 21 de maio de 1498 as naus de Vasco da Gama chegavam a Calicute na Índia. Ali foi recebido pelo Samorim, o rei local, tendo granjeado hostilidades por parte dos comerciantes árabes, temerosos de perder as vantagens comerciais que possuíam. De Calicute as naus de Vasco da Gama rumaram para Cananor, onde ele estabeleceu um tratado de paz e amizade com seu rei. Já antes de chegar à Índia, em Melinde, na costa oriental da África, os homens de Vasco da Gama haviam tido contato com cristãos de São Tomé. Assim, encontrá-los na Índia passou a ser um de seus alvos. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 205-214 - 2008 209 No entanto, pelo que se depreende do Diário da viagem, o capitão não se avistou com cristãos, mas com hindus, supondo-os cristãos. Seria, com efeito, na viagem de Pedro Álvares Cabral, em 1500, que os primeiros contatos com os cristãos de São Tomé realmente seriam feitos. De regresso a Lisboa, o capitão levaria consigo dois cristãos de São Tomé. O mito arraigara-se, enfim, em Portugal e os primeiros contatos com as cristandades do Oriente estavam feitos. Faltava, agora, chegar ao túmulo do apóstolo, que estaria na costa ocidental da Índia em Meliapor. Somente em 1517 é que os portugueses chegaram àquele lugar, onde estaria, segundo uma tradição muito antiga, um pedaço de pedra em que São Tomé deixara as marcas de seu dedo polegar. A igreja que lá havia foi reconstruída pelos portugueses e gradativamente a população de origem lusitana em Meliapor foi crescendo. As marcas dessa presença podem hoje ser vistas nas inscrições ali deixadas em português sobre lápides. Um fato de suma importância foi a chegada a Meliapor, em 1545, do jesuíta Francisco Xavier, que ali permaneceria durante quatro meses. Ele relatou ter lá encontrado uma importante comunidade cristã, tanto de europeus quanto de indianos, onde havia cerca de cem casais. Esses cristãos eram a espinha dorsal da cristandade na costa sudeste da Índia no século XVI e os guardiães daquele lugar sagrado. Foi Xavier, certamente, quem fez a idéia da presença pretérita do apóstolo Tomé na Índia disseminar-se entre os jesuítas de todo o mundo. Na década de setenta do século XVI, a grande epopéia da gesta portuguesa na Índia, Os Lusíadas, de Camões, daria alento a esse mito, que já possuía grande voga, então: As províncias que entre um e o outro rio Vês, com várias nações, são infinitas: Um reino Mahometa, outro gentio, A quem tem o demônio leis escritas. Olha que de Narsinga o senhorio Tem das relíquias santas e benditas Do corpo de São Tomé, barão sagrado, Que a Jesus Cristo teve a mão no lado. Aqui a cidade foi que se chamava Meliapor, fermosa, grande e rica; Os ídolos antigos adorava, Como inda agora faz a gente iníqua. Longe do mar naquele tempo estava, 210 Eduardo de Almeida Navarro - A Origem Indiana de um Mito do Brasil Colonial Quando a fé, que no mundo se pubrica, Tomé vinha pregando, e já passara Províncias mil do mundo que ensinara. (...) Choraram-te, Tomé, o Ganges e o Indo; Chorou-te toda a terra que pisaste; Mais te choram as almas que vestindo Se iam da santa Fé que lhe ensinaste. Mas os anjos do céu, cantando e rindo, Te recebem na glória que ganhaste. Pedimos-te que a Deus ajuda peças Com que os teus lusitanos favoreças. (Canto 10, CVIII, CIX, CXVIII) O mito de São Tomé no Brasil e sua presença em nossas letras coloniais Resta-nos perguntar, agora, como tal mito teria chegado ao Brasil. Todas as pesquisas apontam para uma origem jesuítica dele. Sabemos como foi intensa a correspondência entre os jesuítas no século XVI. Todos os acontecimentos eram narrados periodicamente aos superiores gerais de Roma nas ditas “cartas ânuas”. As cartas de grandes missionários eram copiadas e lidas nas diferentes casas da Companhia de Jesus pelo mundo, pelas quais todos ficavam sabendo de suas obras nas terras do Oriente e da África. Cremos que a mais importante fonte de formação do mito no Brasil foram as cartas de Francisco Xavier, o apóstolo do Oriente. O primeiro relato que dá conta de São Tomé em terras brasileiras é o do jesuíta português Manuel da Nóbrega, que, em meados do século XVI, falou da sua presença aqui em recuadas eras: Dizem eles que S. Tomé, a quem eles chamam Zomé, passou por aqui, e isto lhes ficou por dito de seus antepassados e que suas pisadas estão sinaladas junto de um rio; as quais eu fui ver por mais certeza da verdade e vi com os próprios olhos quatro pisadas mui sinaladas com seus dedos, as quais algumas vezes cobre o rio quando enche; dizem também que, quando deixou estas pisadas, ia fugindo dos índios, que o queriam flechar, e chegando ali se lhe abrira o rio e passara por meio dele a outra parte sem se molhar, e dali foi para a Índia. Para Nóbrega, assim, antes de pregar na Índia, São Tomé passou pelo Brasil e, como Moisés, atravessou a pés enxutos o mar até o Oriente. Prosseguindo, ele nos conta que São Tomé, como Jesus, voltaria um dia: Assim mesmo contam que, quando o queriam flechar os índios, as flechas se tornavam para eles, e os matos lhe faziam caminho por onde passasse: outros contam isso como por Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 205-214 - 2008 211 escárnio. Dizem também que lhes prometeu que havia de tornar outra vez a vê-los (...). Finalmente, ele nos sugere que São Tomé teria assumido certos atributos dados pelos índios a um herói civilizador de sua mitologia, chamado Sumé: Dele contam que lhes dera os alimentos que ainda hoje usam, que são raízes e ervas e com isso vivem bem; não obstante, dizem mal de seu companheiro, e não sei por quê, senão que, como soube, as flechas que contra ele atiravam voltavam sobre si e os matavam. (in Leite, S., Cartas dos Primeiros Jesuítas do Brasil) As mesmas marcas de pés nas pedras que já haviam sido referidas em Meliapor foram vistas também no Brasil por Manuel da Nóbrega. Como vemos, certos motivos edênicos de nossa colonização são arquetípicos. Por outro lado, um personagem mítico indígena, Sumé, foi identificado ao apóstolo São Tomé. Contribuiria para isso a semelhança sonora entre os nomes Sumé e Tomé. Segundo Clastres (1978, pp. 30-32), Sabemos como se propagou entre os brancos a lenda segundo a qual o apóstolo São Tomé teria vindo evangelizar as Índias Ocidentais. Os guaranis, diz Montoya, sabem por tradição ancestral que São Tomé, a quem eles chamam Zumé, viveu outrora em suas terras. A mesma crença é atribuída aos tupis. (...) Sumé é o herói civilizador a quem os tupis atribuem, em especial, o conhecimento que têm da agricultura e sua organização social. Sumé, por conseguinte, ensinou outrora aos homens as artes da civilização: certas pegadas impressas em rochedos constituíam, para os tupis, a prova ainda visível da sua passagem. (...) Essa história de pegadas miraculosas viria a conhecer um sucesso inesperado entre os cristãos, contribuindo, sem dúvida, em grande parte, para a formação da lenda. Para eles, finalmente, o mito podia ser compreendido assim: a essas terras recentemente descobertas viera, outrora, uma personagem, a quem os índios deviam tudo o que de civilização possuíam. Acrescentemos a isso a semelhança dos dois nomes Sumé e Tomé e a fé nas Sagradas Escrituras que afirmavam que a palavra dos apóstolos correria toda a terra: já bastava isso para que a lenda ganhasse consistência. Graças a isso, a percepção do mundo índio se tornará coerente: será possível atribuir à pregação do apóstolo as parcelas de verdade que se crê identificar cá e lá no discurso indígena. (...) Desde os primeiros tempos da conquista, os brancos apreenderam e relataram as crenças tupis-guaranis: delas retendo apenas os motivos que, nos termos da sua própria religião, eles podiam reinterpretar. Para os europeus do século XVI, a descoberta da existência de seres humanos na América colocava uma séria questão: como incluir os índios nos esquemas de compreensão do homem e do mundo daquela época, em que a Bíblia era tomada em sua literalidade? Como ligar os índios à história da humanidade em geral, já que desde Santo Agostinho afirmava-se a unidade do gênero humano? Por outro lado, se a Bíblia dizia que a palavra dos apóstolos correria toda a Terra, teria chegado a 212 Eduardo de Almeida Navarro - A Origem Indiana de um Mito do Brasil Colonial doutrina cristã até os índios da América? No Brasil, o que se fez foi interpretar o mito de Sumé, herói civilizador a quem os tupis da costa e outros grupos atribuíam, principalmente, o conhecimento que eles tinham da agricultura e de sua organização social, como uma narrativa da vinda do apóstolo São Tomé para a América. O mito de São Tomé teve larga dura no Brasil. Anchieta, Ambrósio Fernandes Brandão, Antônio Vieira, Simão de Vasconcelos, todos referiram-se à presença do apóstolo de Cristo em terras brasileiras no passado. Para Antônio Vieira, em seu Sermão do Espírito Santo, a pregação de São Tomé entre os índios, isto é, entre as gentes mais inconstantes e incrédulas, foi a missão que Cristo lhe delegara para penitência por sua incredulidade, já que duvidara de sua ressurreição: Como São Tomé, entre todos os apóstolos, foi o mais culpado da incredulidade, por isso a São Tomé lhe coube na repartição do mundo a missão do Brasil; porque, onde fora maior a culpa, era justo que fosse mais pesada a penitência. Como se dissera o Senhor: os outros apóstolos que foram menos culpados na incredulidade vão pregar aos gregos, vão pregar aos romanos, vão pregar aos etíopes, aos árabes, aos armênios, aos sármatas, aos citas; mas Tomé, que teve a maior culpa, vá pregar aos gentios do Brasil e pague a dureza de sua incredulidade com ensinar gente mais bárbara e mais dura. Bem o mostrou o efeito. Quando os portugueses descobriram o Brasil, acharam as pegadas de São Tomé estampadas em uma pedra que hoje se vê nas praias da Bahia, mas rasto nem memória da fé que pregou São Tomé, nenhuma acharam nos homens. Em 1781, Santa Rita Durão, em sua epopéia Caramuru, ainda testemunhava a sobrevivência do mito no Brasil no final do século XVIII. Nos passos seguintes, o índio Gupeva fala a Diogo Álvares Correia acerca de um profeta que anunciara aos aborígines o Evangelho (“outra lei”), que eles não aceitaram: Outra lei depois desta é fama antiga, Que observada já foi das nossas gentes, Mas ignoramos hoje a que ela obriga, Porque os nossos maiores, pouco crentes, Achando-a de seus vícios inimiga, Recusaram guardá-la, mal contentes: Mas da memória o tempo não acaba Que pregara Sumé, santo emboaba. Homem foi de semblante reverendo, Branco de cor e, como tu, barbado, Que desde donde o sol nos vem nascendo, De um filho de Tupã vinha mandado: A pé, sem se afundar (caso estupendo!) Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 205-214 - 2008 213 Por esse vasto mar tinha chegado; E na santa doutrina que ensinava, Ao caminho dos céus todos chamava. (Canto 3, LXXX-LXXXI) Assim, Sumé inseria a todos os índios no plano salvífico de Deus, na história da salvação da humanidade. Conclusão O mito de São Tomé no Brasil durou três séculos e foi importante em todo o Império Português e mesmo fora dele, tendo penetrado no período colonial até nos confins do Paraguai, da Argentina e do Peru. É sabido como ele ainda vive nas tradições de certos guaranis da América do Sul. O mito de São Tomé garantia a universalidade, a catolicidade da doutrina cristã, que a descoberta de novos continentes poderia pôr em questão. Referindo o passado indígena à história da salvação da humanidade, a percepção do mundo índio se tornaria coerente, a verdade bíblica estaria a salvo do relativismo geográfico, estaria garantida a universalidade da revelação e os esquemas de compreensão do homem e do mundo, fundados na Bíblia, não seriam subvertidos. Referências Bibliográficas: CAMÕES, Luís Vaz de, Os Lusíadas. Rio de Janeiro, Companhia José Aguilar Editora, 1973. CASTANHEDA, Fernão Lopes de, História do Descobrimento & Conquista da Índia pelos Portugueses. Coimbra, Ed. 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Abstract: In the last two centuries, the chinese people suffered a lot of wars with western colonization countries and Japan. Many of chinese people were trying to find some safe places and immigrate to other continents, including Brazil. In some countries, serious problem had been occurred between chinese and local people, such as Indonesia and Philippine. The chinese specialists start to look at this kind of problem. The study of culture integration process of chinese immigrants study was made by immigration history, local chinese community structure and chinese language teaching. A research fuld with young generation had been made to find their evolution tendency. We hope this may be helpful for better understanding about chinese immigrants in Brazil and find some way that can reinforce the relationship between Brazil and China. Keywords: chinese immigrant, chinese culture, chineses community in Brazil, culture integration. __________ * Professor do Curso de Língua e Literatura Chinesa DLO/FFLCH/USP ** Professor do Curso de Língua e Literatura Chinesa DLO/FFLCH/USP 215 1. Introdução A China é muito distante do Brasil, e, antigamente, a comunicação e o transporte eram extremamente difíceis entre os dois países. Ainda assim, existe um contato oficial entre os países bastante antigo, de que são testemunho os tratados diplomáticos elaborados na Dinastia Qing em 1880. Eles trazem um item interessante, no qual o Brasil se declara contrário à venda de ópio à China, em desacordo com a posição britânica. O Brasil também foi o primeiro país que formalmente reconheceu a República da China em 1913, exemplo logo seguido pelos Estados Unidos e pela Bélgica. A viagem ao Oriente era um sonho esplêndido para os brasileiros, o que pode ser notado na mensagem emocionante de um cartão postal enviado por um viajante brasileiro à família (Figuras 1 e 2). Figura 2: mensagem do viajante brasileiro. saída: Xangai, China Imperial, 08/12/1906 e chegada: São Paulo, 15/02/1907, Figura1: foto de chinesinho com roupa de frio – bandeira de dragão no canto direito superior. Mensagem: Shanghai, 8-12-06 Este chinesinho vai prevenir-te de que já estamos no Celeste Império. Amanhã retomaremos o vapor para continuar a viagem. Faz um frio Bárbaro. Saudades da Rosa à D. Zenóbia.Um abraço do Agenor. Na China, durante a Dinastia Tang (618–907 d.C.), houve um período de grande integração cultural com os países vizinhos, tais como o Japão, a Coréia, o Sul da Ásia e a Ásia Central. Naquela época, havia cerca de 100 mil comerciantes estrangeiros na capital Changan. Além do intercâmbio de tecnologia e cultura, foi feita também a tradução de grande número de sutras budistas indianos, os quais influenciaram significativamente a cultura chinesa. 216 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil O Brasil também é um país que apresenta uma condição excepcional de aceitação e integração de culturas de povos de diferentes origens. Essa fusão cultural está ajudando o progresso e a formação da cultura brasileira e o desenvolvimento do país. Os imigrantes chineses também dão a sua parcela de contribuição. 2. Estudo sobre problemas dos imigrantes chineses no Brasil O estudo do processo de integração cultural dos imigrantes chineses no Brasil foi realizado via análise da história da imigração, da organização de associações na comunidade chinesa e do ensino da língua chinesa, sendo realizada também uma pesquisa em campo sobre as tendências das gerações mais jovens. 2.1. Estudos sobre imigrantes chineses 2.1.1. Estudo tradicional Tradicionalmente, a maioria dos pesquisadores de problemas dos imigrantes chineses preocupa-se mais com as questões relacionadas com a preservação da cultura chinesa tradicional na comunidade do que com a integração com a cultura local e a sua assimilação. Sabemos que, conforme o desenvolvimento tecnológico mundial e a globalização atual, a estrutura da comunidade chinesa dos imigrantes também sofrerá sensíveis mudanças, ou seja, entrará numa nova era. Entretanto, existe uma parte dos imigrantes chineses, especialmente da primeira geração, que ainda mostra resistência a essa nova mudança. Isso gera uma contradição e dificulta a sua vida social. O distanciamento da comunidade local dificulta uma convivência harmoniosa. Portanto, o estudo do processo de aculturação dos imigrantes chineses no Brasil pode colaborar para uma melhor compreensão da situação e para a criação de alternativas para melhorar a integração com a sociedade brasileira. Atualmente, existem mais de 30 milhões de imigrantes chineses e seus descendentes no mundo inteiro, e parte deles parece ter mais dificuldade em integrar-se à sociedade dos países que escolheram, provavelmente por causa de fatores pessoais e de diferenças culturais e sociais. Por isso, muitos grupos de novos imigrantes chineses acabam isolando-se da comunidade local. Esse modo de vida traz muitas dificuldades para o próprio imigrante e seus descendentes, não somente influenciando a sua carreira e vida cotidiana, mas, muitas vezes, causando até problemas sérios com a comunidade local, como, por exemplo, nos graves conflitos entre imigrantes, na Indonésia e nas Filipinas. 2.1.2. Posição do governo chinês quanto ao tratamento aos emigrantes da China Para melhorar essa situação, o Governo Chinês criou, no início do século Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 217 XX, uma comissão especial (que talvez não encontre similar em nenhum outro país), a “Comissão de Assuntos dos Imigrantes Ultramarinos” (Overseas Chinese Affairs Commission). Essa Comissão, embora cuide de quase todos os problemas relacionados com os imigrantes chineses do mundo inteiro, não tinha feito nenhuma análise dos problemas advindos das dificuldades de integração cultural. Somente nos últimos dez anos, percebeu que o problema era bastante sério e que precisava encontrar novos meios para ajudar os imigrantes a integrarem-se mais rapidamente às sociedades locais. Entretanto, alguns pesquisadores fizeram estudos a respeito dos problemas com imigrantes ocorridos em Singapura, Malásia, Filipinas e outros países com maior número de imigrantes chineses. Mas, ainda, é um tema pouco estudado no que diz respeito a outras regiões. 2.1.3. Estudo sobre os imigrantes chineses no Brasil No Brasil, apesar da presença de cerca de 100 mil imigrantes chineses, ainda são muito escassos os estudos sobre a imigração e a integração entre a cultura chinesa e a brasileira. Na dissertação de mestrado do Prof. David Shyu, de agosto de 2000, foi apresentada uma pesquisa relacionada com a utilização da língua dos imigrantes chineses em São Paulo. Percebe-se que existem sérios problemas de adaptação e integração cultural dos imigrantes chineses. Então, com base nesse estudo anterior, discutiremos um pouco mais os problemas de integração cultural dos imigrantes chineses no Brasil. 2.2. História da imigração chinesa no Brasil A maior escala da emigração de chineses para o Brasil começou nos anos de 1940-1950, principalmente por causa da Segunda Guerra Mundial e da guerra civil na China. Os imigrantes chineses encontraram nova cultura no Brasil e lentamente realizaram a sua integração. Hoje, além da área técnica, comercial e cultural, começou também a sua participação na política. Um descendente foi eleito deputado federal recentemente. O processo de aculturação do imigrante chinês é lento e complexo. A emigração chinesa para o Brasil pode ser dividida em três períodos. 2.2.1. Período do século XIX até a Segunda Guerra Mundial No século XIX, a pressão pelo fim da escravidão levou os latifundiários brasileiros a buscar substitutos para o seu trabalhador braçal. A contratação de trabalhadores chineses seria uma das soluções para o problema.1 Os cantoneses, 1. TEIXEIRA LEITE, J. R., IMIGRAÇÃO CHINESA PARA O BRASIL - CHINA EM ESTUDO, FFLCH, NO. 218 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil ou seja, os chineses de região de Guangdong (廣東, Cantão), foram os primeiros que chegaram ao Brasil. Dedicaram-se basicamente a atividades agrícolas, como o cultivo de chá, à mineração, construção civil e outros trabalhos braçais. De acordo com o professor Rafael Shoji, no seu trabalho “Imigração Chinesa e Coreana”2: Os chineses são os mais antigos imigrantes do Extremo Oriente no Brasil... é certo que algumas centenas de chineses desembarcaram no Rio de Janeiro em 1810, inicialmente trazidos para o cultivo de chá. Durante a guerra sino-japonesa (1931-1945) e o estabelecimento do regime comunista na República Popular da China em 1949, grande número de habitantes de várias províncias costeiras, como Shanghai, Shandong, Zhejiang, Fujian e Guangdong, optou por emigrar para outros países mais seguros. Por isso, a emigração chinesa para o Brasil aumentou significativamente, chegando aqui muitos técnicos e industriais. Além disso, os imigrantes, principalmente de Shandong e Shanghai, transferiram as suas fábricas têxteis e moinhos para o Brasil. 2.2.2. Período após o ingresso da República Popular da China na ONU No final da década de 60, na Indonésia, muitos descendentes de chineses fugiram do regime do ditador Suharto, emigrando para o Brasil. Em 1971, o lugar da República da China (Taipei) foi ocupado, na ONU, pela República Popular da China (Beijing); e em 1979, os Estados Unidos romperam relações diplomáticas com a República da China. Nesses momentos, foram desencadeadas migrações de grande número de chineses de Taiwan para o exterior, e muitos vieram para o Brasil. 2.2.3. Período dos anos 1980-1990 Nas décadas de 1980-1990, com a política de abertura da República Popular da China, o número de imigrantes chineses da República da China aumentou consideravelmente. Além disso, a devolução de Hong-Kong à China em 1997 levou muitas pessoas a procurar regiões afastadas de possíveis conflitos e a emigrar para o Brasil. O número de chineses e descendentes no Brasil foi estimado, no censo de 1987, em 100.000. Nesse censo, consta que cerca de 50% dos imigrantes chineses estão presentes em São Paulo e cerca de 30% no Rio de Janeiro. Atualmente, o número de chineses e descendentes no Brasil é estimado em cerca de 190 mil, dos quais 120 mil no Estado de São Paulo, muitos deles ainda em processo de legalização. Apesar 2, 1995 2. http://www.pucsp.br/rever/rv3-2004/t-shoji.htm Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 219 de parecer que existem alguns fatores que podem desmotivar a imigração chinesa, o fluxo de chineses para o Brasil ainda foi relativamente intenso até alguns anos atrás. Durante a anistia do Governo brasileiro, nos anos de 1998 e 1999, foi regularizada a situação de 9.229 imigrantes chineses pelo registro da Polícia Federal. Essa foi a população estrangeira mais beneficiada pela anistia.3 2.3. O Pensamento dos imigrantes chineses 2.3.1. Pensamento tradicional de retornar ao país de origem Os primeiros imigrantes chineses eram, na sua maioria, constituídos por homens solteiros, cujo objetivo, seguindo a tradição, era trabalhar e procurar acumular riquezas, para depois retornar à terra natal com muita glória. Tal mentalidade pode ser percebida nas seguintes expressões idiomáticas: • “衣锦还乡yījǐnhuánxiāng” (Retorno à terra natal com traje de seda – muita riqueza e glória); • “光宗耀祖guāngzōngyàozǔ” (Trazer honra aos familiares e antepassados pelo retorno com muita riqueza); • “落叶归根luòyèguīgēn” (Pessoas voltam, como as folhas que caem, à sua raiz de origem). 2.3.2. Pensamento de fixação no Brasil A partir da década de 1950, esse pensamento tradicional começou a mudar nos imigrantes chineses: • “落地生根luòdìshēnggēn” (As pessoas fixam-se no lugar como folhas que caem à terra, criam raízes e fixam-se nessa terra). Esse último pensamento foi reforçado pelo fato de que o regime comunista se instalou na China e os imigrantes tinham muito receio de retornar a ela. No caso do imigrante taiwanês, na década de 60 e 70, o motivo era a insegurança criada pelo conflito político entre a China nacionalista e a China comunista. Os primeiros imigrantes chineses sempre trabalharam esforçadamente. Famílias inteiras labutaram ininterruptamente em lojas, restaurantes, pastelarias e lavanderias, durante anos. Muitos ficaram a vida inteira sem voltar à China. Lentamente, a situação econômica começou a melhorar e os descendentes receberam apoio para estudar. Muitos formaram-se em Medicina, Engenharia etc. Os grupos que vieram de Shanghai e Hong-Kong trouxeram mais capital e formaram grandes empreendimentos, especialmente nos moinhos de trigo, plantação de soja, produção de óleo de soja, comércio exterior etc. 3. http://www.pucsp.br/rever/rv3-2004/t-shoji-htm 220 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil Nos anos de 1980, os imigrantes de Taiwan começaram a entrar na região comercial da rua 25 de Março (em São Paulo) e tiveram muito êxito. Uma parte ampliou a área industrial e o comércio internacional. Nos últimos anos, os novos imigrantes da China Continental ocuparam os lugares de imigrantes de Taiwan e instalaram-se na região do bairro do Brás e do Pari e também seguiram para outros estados brasileiros. O rápido desenvolvimento econômico da China, nos últimos anos, mudou o estado do país no cenário mundial. O povo chinês já não é visto como doente e fraco. A política de abertura econômica funcionou e resultou num ativo comércio internacional, proporcionando o acúmulo de grande reserva cambial para a China. Muitas fábricas dos países ocidentais instalaram-se nela e procuram compreender melhor a sua cultura e língua. No Brasil, os imigrantes chineses também começam a viajar cada vez mais à sua terra de origem. Essa nova interação está criando uma nova tendência de integração cultural entre os povos do Brasil e da China, efetivamente. 2.4. A estrutura da Comunidade Chinesa no Brasil 2.4.1. A composição principal dos imigrantes chineses A comunidade de chineses de São Paulo é formada por pessoas provenientes de Guangdong (Cantão), Taiwan, Shandong, Shanghai, Zhejiang, Fujian, Beijing (Pequim), Henan, Anhui, Hunan, Hubei, Jiangxie e outras regiões. Segundo dados não oficiais, atualmente, os imigrantes chineses são de 70.000 a 100.000.4 Destes, 95% estão concentrados em São Paulo. Essa população está espalhada em diversas áreas da economia, observando-se comerciantes, técnicos, professores, engenheiros, médicos, entre outros. 2.4.2. Instituições e associações dos imigrantes chineses De acordo com o livro Êxito do Trabalho dos Imigrantes Chineses no Brasil (巴西華人耕耘錄), publicado em 1998,5 há 115 instituições presentes em São Paulo, das quais 72 são institutos de educação, sociedades acadêmicas e outras de caráter cultural. Após a década de 1990, com o rápido crescimento da imigração vinda da China Continental, as associações da comunidade chinesa também se disseminaram 4. YANG, ALEXANDRE CHUNG YUAN, UMA BREVE HISTÓRIA DOS IMIGRANTES CHINESES NA AMÉRICA DO SUL, IN: O MUNDO DOS IMIGRANTES CHINESES NA AMÉRICA DO SUL, TAIPEI, ED. SECRETÁRIO DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA CULTURA CHINESA, 1999, P.49-59. 5. Êxito do Trabalho dos Imigrantes Chineses no Brasil, São Paulo, Editora Jornal Chinês Americana, 1998. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 221 sensivelmente. Além da existência de diferentes regiões e províncias e de religiões, outra das razões para o surgimento de tantas associações é o pensamento tradicional chinês e o fator cultural da tradição chinesa. Quanto ao primeiro fator, o político, tem-se que, na história da imigração chinesa, os primeiros imigrantes vieram principalmente de Taiwan e os mais recentes, da China Continental. Portanto, os imigrantes vieram de realidades políticas diferentes e organizaram-se em grupos próprios. Em segundo lugar, o pensamento tradicional chinês apregoa que “宁谓鸡头, 不为马后 “: “é preferível ser líder de um pequeno grupo a ser um seguidor de grupos maiores”. Assim, cada um quer ser líder de grupo. Alguns desses grupos são compostos por somente uma pessoa, como presidente, sendo os outros membros fictícios. A nossa pesquisa mostra os muitos grupos ou associações de imigrantes chineses. Foi feita uma classificação de instituições pela característica, tendo sido obtida uma lista de grupos muito extensa: a) Associações de imigrantes chineses em geral. 里约中华会馆 (RJ) Centro da Associação Chinesa do Rio de Janeiro; 圣保 罗中华会馆(SP) Centro Social Chinês de São Paulo; 巴西华人协会 Associação de Imigrantes Chineses do Brasil; 圣保罗华侨联谊会 Associação de Imigrantes Chineses de São Paulo; 巴西荣光联谊会 Associação dos Veteranos Militares Chineses do Brasil; 旅巴中国空军联谊会 Associação dos Veteranos da Força Aérea Chinesa do Brasil; 巴西华人选民联谊会 Associação dos Eleitores dos Imigrantes Chineses do Brasil; 巴西各州华侨联谊会 Associação dos Imigrantes Chineses em cada Estado do Brasil; 台湾乘船移民南美联谊会 Associação de Imigrantes de Taiwan via naval da América do Sul; 巴西华侨爱心协进总会 Associação Beneficente dos Imigrantes Chineses do Brasil; 圣保罗华侨互助协会 Associação Comunitária dos Imigrantes Chineses de São Paulo; 巴西华侨祖国和 平统一促进总会 Associação da União Pacífica da China dos Imigrantes Chineses do Brasil; 巴西华侨青年回国观摩团联谊会 Associação do Jovem Visitante da China do Brasil. b) Associações Comerciais 巴西华侨工商协会 Associação Comercial dos Imigrantes Chineses do Brasil; 巴西台湾商会 Associação dos Comerciantes de Taiwan do Brasil; 巴西巴拉纳州 中巴商会 Associação dos Comerciantes Chineses do Brasil, Divisão Paraná; 中巴 外贸联合商会 Associação de Exportadores Brasil-China do Paraná; 巴西华侨农 业养鸡合作社 Cooperativa de Criadores de Frango dos Imigrantes Chineses do Brasil; 慕义山度士菇农协会 Associação dos Plantadores de Cogumelos de Mogi das Cruzes; 圣保罗华侨鸡业公会 Associação de Criadores de Frango de São 222 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil Paulo; 里约巴中工商会 Associação Comercial Sino-Brasileira do Rio de Janeiro; 巴中工商总会圣保罗分会 Associação Comercial Sino-Brasileira de São Paulo; 海西菲中巴贸易促进会 Associação Comercial Sino-Brasileira de Recife c) Associações Culturais 巴西华人学术联谊会 Associação Cultural dos Imigrantes Chineses do Brasil; 南美洲华文作家协会 Associação dos Escritores Chineses do Brasil; 中华文化复 兴总会巴西分会 Associação de Recuperação da Cultura Chinesa do Brasil; 旅巴 中国技术人员协会 Associação dos Técnicos Chineses do Brasil; 圣保罗华侨文 艺座谈会Associação Cultural dos Imigrantes Chineses de São Paulo; 巴西中文 教学协会Associação de Ensino e Pesquisa da Língua Chinesa do Brasil; 巴西梅 苑会Associação Meiyuan do Brasil; 巴西中华书法学会 Associação de Caligrafia Chinesa do Brasil; 巴西中华美术协会 Associação dos Artistas Chineses do Brasil; 巴西人生哲学研究总会 Associação de Estudo de Filosofia da Vida do Brasil; 小 草社 Associação de Jovens Escritores; 巴西华侨对日侵华研讨会 Associação de Estudo da Invasão Japonesa da China do Brasil; 中华文化协会 Associação Cultural da China; 圣保罗华侨天主教堂中文学校家长会 Associação dos Parentes da Escola Chinesa da Missão Católica Chinesa de São Paulo; 里约华人 联谊会 Associação dos Imigrantes Chineses do Rio de Janeiro; 里约中国和平统 一促进会 Associação da União Pacífica da China do Rio de Janeiro; 巴西中国退 伍军人联谊会 Associação dos Veteranos Chineses do Brasil; 南美华侨华人保钓 联合会Associação de Proteção da Ilha dos Pescadores dos Imigrantes Chineses da América do Sul; 巴西中山学会 Associação Sun Yat-sen do Brasil; 巴西华侨 华人促进中国和平统一联合会 Associação para a Unificação Pacífica da China dos Imigrantes Chineses do Brasil; 巴中文化友好协会 Associação Cultural e de Amizade Brasil – China; 巴西中华总商会 Associação dos Comerciantes Chineses do Brasil; 巴中贸易促进会Associação de Exportação e Importação Brasil – China; 巴拉纳州华人文化协会Associação Cultural dos Imigrantes Chineses do Paraná; 亚洲文化中心 Centro de Estudos Asiáticos d) Associações de Medicina Chinesa 南美中医针灸学会 Associação de Acupunturistas Chineses do Brasil; 巴西针 灸学会 Associação dos Acupunturistas do Brasil e) Museus e Bibliotecas 圣保罗华侨图书馆 Biblioteca do Imigrante Chinês de São Paulo; 中华文化艺 术馆 Museu de Cultura e Arte Chinesas f) Igrejas e Templos 圣保罗华侨天主教堂 Comissão Católica Chinesa de São Paulo; 南美华人基 督神学院 Universidade Cristã dos Imigrantes Chineses da América do Sul; 巴西 台湾基督长老教会中会 Igreja Cristã dos Imigrantes Taiwaneses do Brasil; 巴西 Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 223 基督徒圣保罗教会 Igreja Cristã de São Paulo, Brasil; 台湾基督长老教会圣保罗 教会 Igreja Cristã de Taiwan de São Paulo; 台湾基督长老墓道教会 Igreja Cristã de Taiwan, Mudao; 巴西大安基督长老教会 Igreja Cristã de Taiwan do Brasil; 天桥基督长老教会Igreja Cristã de Tianqiao; 巴西台湾基督长老教会永圣教会 Igreja Cristã de Taiwan, Yongjing; 巴西圣保罗城华侨基督教会 Igreja Cristã de Imigrantes Chineses de São Paulo, Brasil; 巴西慕义台湾基督长老教会 Igreja Cristã de Taiwan, Mogi das Cruzes, Brasil; 巴西金边那市华侨基督教会 Igreja Cristã dos Imigrantes Chineses, Campinas, Brasil; 基督福音教会 Igreja Cristã Protestante; 巴西古城基督长老教会 Igreja Cristã de Curitiba, Brasil; 巴西新生 基督长老教会Igreja Cristã de Xinsheng; 圣保罗华人浸信会 Igreja Cristã dos Chineses de São Paulo; 巴西浸信会施恩堂 Igreja Católica de Shi’en do Brasil; 巴西佛光协会Associação de Buda Light do Brasil; 国际佛光会巴西协会里约分 会 Associação de Buda Light do Brasil, Divisão Rio de Janeiro; 佛光山里约禅净 中心 Centro de Meditação da Associação de Buda Light do Brasil; 佛教慈济基金 会巴西联络处Associação Budista de Ciji do Brasil; 巴西如来寺 Templo Zulai do Brasil; 巴西观音寺 Templo Guanyin do Brasil; 巴西弘道远 Templo Houdai do Brasil; 圣保罗弥陀寺 Templo Budista de Maitreia de São Paulo; 圣保罗中观寺 Templo Zhongguan de São Paulo; SUMA青海世界会巴西分会 Centro de SUMA do Brasil; 巴西全真道院 Templo Quanzhen do Brasil; 真谛雷藏寺 Templo Zen-ti do Brasil; 蒋园玉泉寺 Templo Jiangyuan g) Associações de imigrantes de diferentes regiões 西台湾同乡会 Associação dos Imigrantes de Taiwan do Brasil; 里约台湾同 乡会Associação dos Imigrantes de Taiwan do Rio de Janeiro; 巴西客属崇正总会 Associação de Haka do Brasil; 巴西柯蔡宗亲会 Associação de Família He e Cai do Brasil; 巴西山东同乡会 Associação dos Imigrantes de Shandong do Brasil; 巴西广东同乡总会 Associação dos Imigrantes de Cantão do Brasil; 巴西北京侨 民总会Associação dos Imigrantes de Beijing do Brasil; 上海同乡会 Associação dos Imigrantes de Shanghai; 福建同乡会 Associação dos Imigrantes de Fujian do Brasil; 圣保罗青田同乡会 Associação dos Imigrantes de Qingtian do Brasil; 南 美洲闽南同乡会Associação dos Imigrantes do Sul da Região Min da América do Sul; 巴西冀鲁同乡会 Associação dos Imigrantes de Sandong, China, do Brasil; 巴 西大西南同乡会Associação dos Imigrantes do Sul da China do Brasil; 巴西东北 同乡会 Associação dos Imigrantes de Nordeste da China do Brasil; 巴西江苏同 乡会 Associação dos Imigrantes de Jiangsu, China, do Brasil h) Associações de formados de diferentes universidades 台大校友会 Associação dos Formados da Universidade Nacional de Taiwan; 交大校友会 Associação dos Formados da Universidade dos Transportes; 成功大 学校友会 Associação dos Formados da Universidade de Cheng Gong, Taiwan; 政 224 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil 治大学校友会 Associação dos Formados da Universidade de Política, Taiwan; 师 范大学校友会 Associação dos Formados da Universidade Normal de Taiwan; 淡 江大学校友会Associação dos Formados da Universidade de Danjiang, Taiwan; 中 兴大学校友会Associação dos Formados da Universidade de Zhongxing, Taiwan; 慕义大学中国同学会 Associação dos Alunos Chineses da Universidade de Mogi das Cruzes; 中南美黄埔军校同学会 Associação dos Formados da Escola Militar de Huangpu da América Central e do Sul; 中央军事院校校友总会巴西分会 Associação dos Formados da Academia Militar da China do Brasil i) Associações desportivas 巴西华侨高尔夫球协会 Associação de Golfe dos Imigrantes Chineses do Brasil; 圣保罗湖滨华侨高尔夫球协会 Associação de Golfe dos Imigrantes Chineses de São Paulo; 巴西华侨网球协会 Associação de Tênis dos Imigrantes Chineses do Brasil; 巴西华侨篮球协会 Associação de Basquete dos Imigrantes Chineses do Brasil; 巴西华侨保龄球协会 Associação de Boliche dos Imigrantes Chineses do Brasil j) Associações e escolas de arte marcial chinesa 百龄东方文化学院 Instituto Cultural Oriental de Pailin; 中巴武术学院 Academia de Arte Marcial China – Brasil; 游民中华文化学院 Instituto Cultural de Youming; 黄新强太极拳社 Academia de Taijiquan de Huang Xinqiang; 巴西 鹰爪国术总会 Associação Central de Arte Marcial Chinesa de Garra de Águia do Brasil; 巴西飞鹤派武术总会 Associação Central de Arte Marcial Chinesa de Garça Voadora do Brasil k) Associações de artes 好景市中国文化学院 Instituto Cultural Chinês de Belo Horizonte; 圣保罗中 华会馆粤剧研究社 Centro de Estudo da Ópera de Cantão do Centro Social Chinês de São Paulo; 圣保罗华侨国剧研究社 Centro de Estudo da Ópera de Cantão dos Imigrantes Chineses de São Paulo; 巴西华侨围棋协会 Associação de Xadrez dos Imigrantes Chineses do Brasil; 巴西华侨青年吉他社 Associação de Guitarra do Jovem Chinês do Brasil; 圣保罗我歌音乐社 Grupo de Cantores Chineses de São Paulo, Woge; 里约歌友俱乐部 Grupo de Cantores Chineses do Rio de Janeiro; 华夏合唱团 Coral de Imigrantes Chinesas Huaxia; 圣保罗歌友会 Associação dos Cantores Chineses de São Paulo; 唐韵艺术团 Grupo Artístico Tangyun; 华声艺 术学院Instituto de Artes de Huasheng; 巴西摄影学会 Associação dos Fotógrafos do Brasil l) Jornais e revistas 美洲华报 Jornal Chinês Americano; 巴西侨报 Jornal Chinês do Brasil; 华光 报 Jornal Huaguang; 客家亲 Boletim da Associação Haka; 世界报导 Reportagem do Mundo; 圣保罗时报 Jornal Chinês “São Paulo Times”; 中巴新闻 Jornal SinoRevista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 225 Brasileiro; 南美新闻 Jornal da América do Sul; 友联报Jornal Youlian; 南美侨友 Revista Amizade dos Imigrantes Chineses; 南美福音周刊 Jornal da Voz Cristã da América do Sul; 佛光世纪 O Século de Foguang; 中观 Revista Zhongguan; 慈济 Revista Ciji; 南美侨报 Jornal Chinês para a América do Sul; 台湾侨报 Jornal Taiwanês O número de associações é realmente grande, quase 150. Vale a pena ressaltar que a comunidade é servida por dois jornais, dez boletins semanais/mensais6 e uma biblioteca7, fundada pelo padre José Ho Yanzhao em 1957, com acervo de 60.000 livros e expressiva quantidade de fitas de vídeo. Desde 1999, foram criados três sítios chineses na internet. Com tantas associações citadas, muitas se encontram inativas e somente conservam o nome. As atividades da maioria das associações são quase as mesmas: comemorações, festivais de música e dança, reuniões, banquetes, passeios etc. Portanto, a grande maioria das atividades é basicamente social. Por isso, é cada vez mais difícil atrair participantes jovens e brasileiros, ou seja, as atividades de muitos imigrantes chineses ficaram meio isoladas da sociedade brasileira, dificultando a integração. 2.5. Ensino da Língua e da Cultura Chinesas no Brasil Uma das preocupações principais dos primeiros imigrantes chineses era conservar a sua língua e cultura de origem. Além da formação de grupos meio isolados da sociedade, foi reforçado também o ensino da língua e da cultura chinesas na comunidade. Dadas as condições precárias das primeiras gerações de imigrantes, o ensino da língua chinesa normalmente era feito no fim de semana, em grupos pequenos organizados por instituições beneficentes. No levantamento realizado em setembro de 2004, verificou-se que existiam 29 escolas/cursos de chinês no Estado de São Paulo8. Nessas instituições, o nível de 6. Os jornais são: Jornal Chinês Americana (sic) (R. Galvão Bueno, 724, Liberdade, CEP:01506-000, São Paulo – SP); Jornal Chinês para a América do Sul (R. Virgílio de Carvalho Pinto, 619, CEP:05415-030, Pinheiros, São Paulo – SP). Os boletins são: Hua Kuang-Boletim do Centro Social Chinês de S. Paulo (R. Conselheiro Furtado, 261, CEP:01511-000, Liberdade, São Paulo – SP); Literatura Sul – Americana ( R. Vigosa do Ceará, 11, V. Mascote, CEP:04363, São Paulo – SP); Boletim Mensal da Paróquia de Sagrada Família (R. Santa Justina, 290, CEP:04545–043, V. Olímpia, São Paulo – SP); Informativo Semanal da Igreja Evangélica de Formosa (R. Pirapitingui, 174, CEP:01508–020, São Paulo – SP, www.vocel.fiu.edu); Blia América do Sul (Estrada Municipal Fernando Nobre, 1461, Cotia – SP); Ciao (Al. Santos, 745 – Jd. Paulista – São PauloSP); Chongguan (R. Rio Grande, 498, CEP:04018–001, V. Mariana, São Paulo – SP); Tzu-Chi (R. Onze de fevereiro, 372, Jabaquara, 04319-020, São Paulo-SP); Hakka (R. Laplace, 1493, Brooklin Paulista, 04622-001, São Paulo-SP); Taiwanês (R. Conselheiro Furtado, 257, Liberdade - São Paulo-SP, CEP: 01511-000). 7. Localizada à rua Santa Justina, 290, CEP:04545-041, Vila Olímpia – São Paulo – SP, Tel. 820-0264. 8. Fonte da Associação de Ensino e Pesquisa da Língua Chinesa do Brasil, 1999. 226 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil ensino abrange: pré-escola, primário, ginásio e primeiro ano colegial. As aulas são realizadas nos fins de semana e dirigidas aos descendentes de imigrantes chineses e aos interessados em geral. O sistema de ensino segue o sistema de escrita tradicional, diferente do sistema simplificado utilizado na República Popular da China9. O material didático utilizado é uma doação da Overseas Chinese Affairs Commission da República da China. Atualmente há 1.400 alunos, atendidos por 90 professores. A maioria destes não é profissional do ensino. Por causa disso e da pequena carga horária, o nível do ensino é prejudicado. Além disso, a ausência de motivação dos alunos contribui para o fraco desempenho na aprendizagem da língua10. 2.5.1 Primeiro período (até o ano 1970) O ensino de língua chinesa foi quase nulo durante os primeiros cem anos da imigração chinesa. Em 1957, chegou ao Brasil o Pe. Dang Shiwen, que, preocupado com a situação precária do ensino, organizou um curso de férias de verão, mas não encontrou grande interesse. Para aumentá-lo, reuniu as pessoas da comunidade chinesa e começou a formação de uma escola chinesa. a) A Primeira Escola Chinesa de São Paulo Naquela época, os imigrantes chineses de São Paulo estavam muito dispersos e, como o bairro de Pinheiros concentrava o maior número de imigrantes, esse foi o lugar escolhido para começar o curso de língua chinesa, com a ajuda da sua comunidade. O Pe. Dang foi o primeiro presidente, recebeu materiais didáticos do governo da República da China e conseguiu um empréstimo de duas salas de aula. Segundo o anuário da Escola Chinesa, existiam 6 professores, 58 alunos no curso elementar e 24 alunos na creche. Entre os alunos, 38% de Shangdong, 23% de Cantão, 14% de Jiangshu, 14% de Zhejiang, 7% de Hebei e 4% de Hubei, nenhum aluno de Taiwan. Tal era a composição dos imigrantes chineses daquela época. b) O Instituto Confúcio Nos anos 60, o número de alunos da Escola Chinesa aumentou para 200 e foram instaladas três filiais, uma das quais no Centro Social Chinês de São Paulo. Em 1963, foi alugado um terreno da Igreja Católica de Santa Justina e construídas 6 salas de aula e um campo para atividades físicas. A instituição foi registrada com o nome de “Instituto Confúcio” na Secretaria de Educação como escola de ensino elementar. 9. No entanto, para quem aprende um sistema não é difícil, depois, entender o outro. 10. SHYU, David Jye Yuan, Coletânea de Estudos sobre o Ensino da Língua Chinesa, São Paulo, Ed. Hua Kuang - Centro Social Chinês de São Paulo, 1999. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 227 Contrataram-se um presidente e professores brasileiros. Em 1964, começaram as aulas em período integral. As aulas começavam às 8 horas e iam até às 17 horas. As aulas da manhã eram dadas em português, as da tarde consistiam em duas horas de língua e cultura chinesa, incluindo Literatura, História e Geografia. Em 1969, a escola fechou e foi comprada pela Igreja Católica. Nos anos 70, por causa do estabelecimento de grande número de escolas públicas, o número de alunos da escola particular se reduziu sensivelmente. A Escola Confúcio fechou em 1973, e o local foi alugado para outra instituição. Os cursos de língua chinesa foram mantidos apenas no fim de semana, com somente 30 alunos. Na realidade, o “Instituto Confúcio” era uma escola brasileira. O seu fechamento significou um retrocesso no ensino da língua chinesa no Brasil. O ensino da língua chinesa ficou somente restrito a aulas complementares, essencialmente no fim de semana. Não havia professores especializados, apenas pessoas jovens de boa vontade, na sua maioria. Faltar à aula era muito comum e havia trocas de professor durante as aulas. c) O curso de língua e literatura chinesa da Universidade de São Paulo Além do curso complementar da comunidade chinesa, em 1968, a Universidade de São Paulo instalou o curso regular de Língua e Literatura Chinesa no Departamento de Línguas Orientais. O responsável era o Prof. Sun Chia Chin. Em 1970, foi convidado o Sr. Wang Zhiyi como auxiliar voluntário. Em 1971, foi contratado o Prof. Chen Muyu e foram convidados o Pe. Rong Yuanqi e Sr. Tan Wenkin como voluntários. 2.5.2. Segundo período (a partir dos anos 70) O desenvolvimento do ensino da língua chinesa na comunidade foi maior nos anos 70. O Centro Social Chinês de São Paulo recebeu muitas solicitações e requisitou à Comissão Ultramarina de Assuntos do Imigrante Chinês da República da China o envio de professores especializados ao Brasil. Em novembro de 1972, ela enviou o Prof. David para o incremento do ensino da língua chinesa em São Paulo. a) O Curso de Chinês da Igreja Católica de Santa Justina Em 1973, com o fim da Escola de Confúcio, a Igreja de Santa Justina organizou de novo um curso de chinês, mas, por falta de professores, os alunos mudaram para o do Centro Social Chinês de São Paulo. Em 1976, a Igreja Católica convidou a Profa. Zhang e Lin para o curso de chinês. O número de alunos aumentou para 150 no mesmo ano. Depois foi convidada a Sra. Tang como diretora e a escola permanece estável até hoje. Atualmente, há 20 turmas, organizadas em nível elementar, médio e avançado, quase 600 alunos e 20 professores, dois empregados 228 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil contratados e vários voluntários. É a maior escola chinesa de curso complementar, e funciona aos domingos. b) O Curso de Chinês do Centro Social Chinês O Curso de Chinês do Centro Social Chinês começou em 1972. O número de alunos era de 60 e aumentou para 320. O curso foi dado em 13 classes. Em 1973, o professor David Shyu foi convidado a ser diretor da escola. No início, as aulas aconteciam quatro vezes por semana, mas o ritmo diminuiu para três e duas vezes. Nos anos de 1980, houve grande mudança na comunidade chinesa, e o horário do curso foi alterado para a manhã do sábado. Por causa da limitação de espaço, o curso foi dividido em dois períodos. Durante muitos anos, os professores foram professor David e professora Zhang e Lin, sendo posteriormente convidadas também as professoras Chen, Peng e Cai. Além disso, entre 1979 e 1981, o professor David foi convidado também para um curso de chinês em Campinas com cerca de 20 alunos. c) Lista das Escolas/Cursos de ensino da Língua Chinesa no Brasil 19502005 A lista das 65 escolas da comunidade chinesa está apresentada no ANEXO I 2.5.3. Associação de Ensino e Pesquisa de Língua Chinesa no Brasil. No ano de 1989, foi realizado o primeiro congresso dedicado ao ensino da língua chinesa no Brasil, evento que se tornou periódico. Em 1991, foi organizada a Associação de Ensino e Pesquisa da Língua Chinesa no Brasil. Desde 1992, a Comissão Ultramarina de Assuntos do Imigrante Chinês organizou um curso de treinamento, de que já participaram mais de 70 professores do Brasil. 2.5.4. Tendência crescente de procura pela língua chinesa Após os anos 90, houve mais mudanças na comunidade chinesa e começou o estabelecimento de escolas particulares chinesas com função de creche para filhos de imigrantes recém-chegados do continente chinês. Havia cinco escolas. Em 1998, foi fundada a Escola Internacional Chinesa de Rende, em Cotia, São Paulo. Com o rápido crescimento da economia chinesa nos últimos anos e a visita do Presidente Lula à China, o intercâmbio comercial entre o Brasil e a China aumentou significativamente. Muitas empresas brasileiras começaram a intensificar o comércio e a traçar novos planos de investimento na China, surgindo a necessidade de funcionários com conhecimento da língua e da cultura chinesas. Para atender tal demanda, muitos cursos particulares foram montados rapidamente. O curso de língua e literatura chinesa da FFLCH/USP também está sendo muito procurado Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 229 para dar informações aos empresários e à mídia em geral. Neste ano, houve mais de cem alunos inscritos no curso básico para apenas 20 vagas disponíveis! Alunos brasileiros começaram a viajar à China para participar de cursos de língua chinesa oferecidos em muitas universidades. O intercâmbio cultural entre o Brasil e a China está intensificando-se muito rapidamente. 3. Dificuldades na integração cultural dos imigrantes chineses no Brasil 3.1 Questões comuns sobre a aculturação “Por quanto tempo poderá ser mantida a língua chinesa dentro da comunidade?” e “Por quanto tempo poderemos manter viva a cultura tradicional chinesa?” são dúvidas de muitos pesquisadores da cultura chinesa. Na década de 1970, o editor Sr. Wang Ze-I, fundador do primeiro jornal chinês da comunidade chinesa de São Paulo, Jornal Chinês do Brasil, perguntou-nos: “Será que, daqui a algumas décadas, haverá leitores para o meu jornal?” Além disso, os escritores chineses do Brasil crêem ser os últimos da geração. Para as questões colocadas acima, um secretário estadual de São Paulo11 da década de 1960 teve uma resposta interessante. Durante a celebração do ano novo chinês em 1964, realizada no Centro Social Chinês de São Paulo, um dos diretores do centro perguntou ao Secretário: “Não está preocupado com a chegada de muitos imigrantes chineses?”. O secretário respondeu: “Depois de duas ou três gerações, todos eles se tornarão brasileiros, por que teria de preocupar-me?”12. O Brasil já está habituado a receber imigrantes de todos os continentes. 3.2. Influência da globalização na aculturação A globalização e o progresso da era da informática têm considerável influência na cultura, o que constitui um verdadeiro desafio à manutenção das peculiaridades de uma determinada língua. Nesse ponto, evocamos algumas palavras de John Naisbitt e Patricia Aburdene, retiradas da sua obra Megatrends 2000 (1991): “If we accept a cheesburger culture, it’s only gonna give us a stomachache,” says Richard Pawelko, a filmmaker from Wales and critic of American mass culture. “It may mean more than a bellyache.” 11. A revista do Centro Social Chinês de São Paulo não citou o nome do secretário. No entanto, para esclarecermos a sua relação com a imigração de chineses na década de 60, conseguimos algumas informações a respeito dele no Museu da Imigração. O nome do então Secretário da Agricultura é Francisco Penteado Cardoso, responsável por cuidar da situação dos imigrantes naquele período. 12. Shyu, David Jye Yuan, Estudo da Linguagem na Comunidade Chinesa em São Paulo – Influência da Língua Portuguesa e do Dialeto Taiwanês na Língua Oficial, p. 1 230 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil Quanto às conseqüências da globalização para a cultura, Naisbitt conclui: “Unlike cheesburger and jeans, the globalization of television is explosive and controversial because it conveys deeper values the way literature does. Entertainment, through the medium of language and images, crosses over the line of superficial exchange and enters the domain of values. It goes right to the ethos of a culture, addressing the fundamental spirit that informs its beliefs and practices. Language is the great link to the heart of a culture.” Por quanto tempo os descendentes de chineses manterão a cultura e a língua chinesas é, e continuará sendo, uma questão interessante. Além disso, as influências da globalização têm conduzido o cerne dessas questões a outra direção. A questão agora é: “É necessária ou não a continuação de uma cultura ou de uma língua?” e não mais simplesmente: “Será possível ou não a sua sobrevivência?”, o que resulta numa forma de “deslealdade” ou “falta de integridade”, contrária ao direito humano de manter a própria cultura. Os antropólogos e lingüistas defendem a importância da sobrevivência cultural de grupos minoritários e, a fim de que tais culturas possam continuar presentes no nosso patrimônio cultural, organizações não-governamentais, juntamente com pessoas interessadas, assumem a vanguarda na proteção desses grupos. 3.3. O “aportuguesamento” da língua na comunidade chinesa Como professores de língua chinesa, na freqüente convivência com descendentes de chineses, podemos reconhecer o estilo da língua chinesa utilizada por eles. Porém, para obter números estatísticos, realizamos três minuciosas pesquisas nos seguintes períodos: agosto de 1997, abril de 1998 e março-abril de 1999. A primeira pesquisa está relacionada com a concepção da língua utilizada pelos descendentes de chineses de São Paulo. Foi realizado um levantamento com 122 pessoas das duas escolas mais freqüentadas pelos descendentes de chineses. A segunda pesquisa também está relacionada com a situação da língua utilizada pelos descendentes de chineses de São Paulo. Foi realizado outro levantamento com 79 pessoas nas seguintes escolas: Escola Chinesa do Centro Social Chinês de São Paulo, Escola Chinesa da Missão Católica Chinesa de São Paulo e Escola Chinesa da Igreja de Mogi das Cruzes. A terceira pesquisa averigua a quantidade de palavras em português usadas quando os descendentes falam a língua chinesa oficial (Vide anexo I). Ela é dividida em seis categorias, de acordo com os seguintes critérios: idade e nacionalidade. O primeiro grupo apresenta setenta pessoas, cuja idade varia entre 11 e 17 anos, nascidas no Brasil; o segundo é formado por oito pessoas com a mesma idade da categoria anterior, porém não nascidas no Brasil e que, em média, já vivem no Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 231 Brasil há oito anos; o terceiro é constituído por quinze pessoas com idade entre 18 e 21 anos e nascidas no Brasil; o quarto é formado por oito pessoas com a mesma idade do terceiro grupo, no entanto, não nascidas no Brasil, e nele já residentes, em média, há treze anos; o quinto é composto por oito pessoas, na faixa etária entre 22 e 30 anos e nascidas no Brasil; e o último é formado por quatro pessoas, da mesma faixa etária da quinta categoria, porém, não nascidas no Brasil. 4. Pesquisa em campo 1a. Pesquisa: Agosto de 1997 Na pesquisa de agosto de 1997, foi realizado um levantamento com mais de 180 pessoas, das quais 122 responderam às questões de forma precisa e completa. As perguntas foram subdivididas em três itens: (1) relacionamento social dos descendentes de chineses; (2) opinião sobre o casamento; (3) nível de conhecimento da língua chinesa. O objetivo dessa pesquisa é identificar alguns fatores que influenciam a língua chinesa dos descendentes de chineses. Nessa pesquisa, foi observado que, ao responder à pergunta sobre com quais amigos sempre mantêm contato, 61,5% dos jovens responderam que é com brasileiros; 38,5% com japoneses, observando-se apenas 15,6% que declaram ter amigos chineses. Quanto ao item que pede a opinião dos descendentes de chineses sobre o casamento, 53% deles concordam em casar-se com brasileiros ou outros 232 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil “estrangeiros”, 22% responderam que vão casar-se com brasileiros ou outros “estrangeiros” e 38% dizem que não formaram ainda opinião quanto a essa questão. Acreditamos que os ambientes sociais freqüentados pelos descendentes de chineses, geralmente, levam-nos a utilizar a língua portuguesa como o principal meio de comunicação. Além disso, mesmo na companhia de amigos ou irmãos também descendentes de chineses, eles, na sua grande maioria (cerca de 95%), utilizam a língua portuguesa. Ou seja, é visível que os descendentes de chineses sofrem uma forte influência da língua portuguesa. No item casamento, são cada vez mais comuns relações matrimoniais híbridas, e nas relações familiares, a língua mais falada é o português. 2a. Pesquisa: abril de 1998 De acordo com a pesquisa realizada em abril de 1998, apesar de observarmos que 76,3% dos descendentes de chineses sabem falar a língua oficial, o mandarim, 59,3% (em São Paulo) e 20% (em Mogi das Cruzes) deles não têm onde utilizá-lo a não ser em casa com os seus familiares. Além disso, entre os seus irmãos, 89,8% (em São Paulo, capital) e 95% (em Mogi das Cruzes) conversam em português; em Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 233 São Paulo, 15,3% usam a língua chinesa oficial; já em Mogi das Cruzes, não há nenhum descendente que use a língua chinesa oficial. Quanto à língua utilizada nas relações sociais, em Mogi das Cruzes não há nenhum descendente que fale o chinês oficial, e é o português a língua prioritariamente usada. Já em São Paulo, apenas 8,5% dos descendentes de chineses falam o chinês oficial; 94,9% usam o português. 234 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil Pesquisa sobre a situação das línguas utilizadas pelos descendentes de chineses de São Paulo: Período: abril de 1998 Local: Escola Chinesa do Centro Social Chinês de São Paulo Escola Chinesa da Comissão Católica Chinesa de São Paulo Escola Chinesa da Igreja de Mogi das Cruzes, Mogi das Cruzes-SP Número de pessoas: 79 (nascidas ou não no Brasil) Perguntas Língua Chinesa Oficial % Taiwa-Nês % Português % A B A B A B 1. Qual língua sabe falar? 76.3 65 22.0 90 91.5 100 2. Qual é a língua usada na sua casa? 59.3 20 23.7 90 61.0 40 3. Qual a língua usada na sua casa entre pai e mãe / marido e esposa? 57.6 35 28.8 90 16.9 25 4. Qual língua usa para conversar com pais e filhos? 62.9 25 16.9 90 47.5 40 5. Qual língua usa para conversar com os irmãos? 15.3 0 5.1 40 89.8 95 6. Qual língua usa para conversar com os amigos? 8.5 0 1.7 10 94.9 100 7. Qual língua usa para conversar com os parentes? 55.9 10 25.4 90 52.5 40 8. No momento de escrever/falar, ou escrever um texto em chinês, em qual língua pensa? 30.5 35 8.5 30 61 80 A: Escola Chinesa do Centro Social Chinês de São Paulo, Capital Escola Chinesa da Comissão Católica Chinesa de São Paulo, Capital B: Escola Chinesa da Igreja de Mogi das Cruzes, Mogi das Cruzes-SP Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 235 3a. Pesquisa: Março e Abril de 1999 Tabela: Pesquisa realizada em março e abril de 1999 Idade 11-17 18-21 22-30 Nacionalidade Número de entrevistados Brasil 70 Fora do Brasil 08 Brasil 15 Fora do Brasil 11 Brasil 10 Fora do Brasil 08 Observações Em média, moraram no Brasil durante oito anos. Em média, moraram no Brasil durante 13 anos. Em média, moraram no Brasil durante 15 anos. Podemos concluir que, quanto às possibilidades de permanência da língua chinesa nas próximas gerações de descendentes de imigrantes chineses, a tendência é a intensificação do processo de “aportuguesamento”, já que a transmissão de valores culturais vem se enfraquecendo cada vez mais na comunidade chinesa de São Paulo. 4.1. É a comunidade chinesa ainda “fechada ou isolada”? O “aportuguesamento” dos descendentes de chineses é evidente, mas é também inegável que a comunidade chinesa é fechada. A professora Adriana Carranca, em artigo, diz: “Comunidade ainda fechada, chineses fazem 190 anos no País: Costumes e dificuldade com a língua portuguesa distanciam imigrantes dos brasileiros”.13 Nessa pesquisa, podemos observar que não apenas as pessoas mais idosas estão com o pensamento mais conservador, mas até os jovens estão tornando o “aportuguesamento” mais difícil, pois ainda possuem costumes e pensamentos que não estão totalmente adaptados à sociedade brasileira. De acordo com os resultados de pesquisa sobre integração de língua e cultura, realizada entre julho de 2002 e julho de 2003, foi observado que: 76,6% dos jovens se consideram brasileiros e apenas 21% ainda se consideram chineses; 79,8% aceitam casamento com pessoa de outras origens. É muito interessante que 24% dos jovens prefiram casar-se com um(a) brasileiro(a). Mas 43,8% ainda têm preferência em casar-se com parceiro de origem chinesa. Talvez este seja um dos maiores problemas da aculturação. Provavelmente, até um jovem “aportuguesado” ainda sofra a influência de fatores da sua origem e cultura. 13. Carranca, Adriana, “Ainda fechada, chineses fazem 190 anos no País: Costumes e dificuldade com a língua portuguesa distanciam imigrantes dos brasileiros”, In: www.pucsp.br/revista/rv3-2004/ 236 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil Esse problema pode ser aprofundado posteriormente. Mas, segundo a experiência de contato com imigrantes chineses, podemos dizer que o pensamento dos jovens tem ligação com a educação familiar. De acordo com uma pesquisa do Canadá, os jovens possuem uma aparência especial, “banana”, ou seja, pele amarela, mas pensamento de branco. Mas, na pesquisa sobre casamento, muitos dizem respeitar a opinião dos parentes. A sua razão é um pensamento tradicional de “respeito familiar” chinês. Muitos pesquisadores acham que a grande diferença de língua e cultura entre o imigrante chinês e a sociedade local dificulta a sua integração nela. Outros acham que a longa história chinesa e o alto nível cultural podem ser a causa da dificuldade de integração com a sociedade local. Na região de imigração mais antiga do povo chinês, o Sul da Ásia, o ensino da língua e da cultura chinesas é bastante evoluído. Na Indonésia, houve a proibição do ensino de chinês durante 30 anos, mas a língua e a cultura chinesas permaneceram. Ao contrário, os imigrantes chineses na Europa e América, normalmente, dão pouca importância à língua e à cultura chinesas, embora a situação tenha se alterado recentemente, com a tendência mundial de “atenção especial à China”. Pela análise, podemos observar que a região do Sul da Ásia era mais atrasada antes da Segunda Guerra Mundial. Por isso, os imigrantes chineses cultivavam umm orgulho de superioridade e, portanto, não pretendiam integrar-se na sociedade local. Mas, ao contrário, na Europa e na América do Norte, a condição do imigrante chinês era desfavorável, o que se somava à grande diferença de língua e cultura. Nesse contexto, até o imigrante chinês que gostaria de integrar-se na sociedade tinha grande dificuldade. Além disso, tradicionalmente, o imigrante chinês tem receio dos povos europeu e americano, mas, pelo menos, não desrespeita o povo local. 5. Comentários 5.1. O Brasil é uma grande nação para a fusão cultural. A sua cultura e ambiente favorecem muito a adaptação dos imigrantes. Para o imigrante chinês, após os anos 50, iniciou-se o pensamento de fixação em uma terra nova, o Brasil. A maioria dos descendentes de chineses freqüenta escolas brasileiras e está trabalhando na sociedade brasileira. A escola tradicional chinesa não é a opção mais interessante. Apareceram então os cursos complementares de ensino de língua chinesa de fim de semana. O Instituto de Confúcio começou com 200 alunos e fechou em pouco tempo. Na década de 80, os imigrantes chineses vindos de Moçambique também tentaram organizar uma escola chinesa de tempo integral, mas ela também fechou após um ano. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 237 5.2. A maioria das associações, igrejas e templos da comunidade chinesa tem vontade de instalar cursos de língua chinesa. O resultado disso é que os alunos ficam muito dispersos e com grande carência de professores qualificados. Na realidade, existem pessoas qualificadas formadas pela Universidade Normal na China, mas muitos ficaram apenas na atividade comercial no Brasil. Na maioria dos cursos chineses, os professores são voluntários. Somente pessoas de boa vontade aceitam os cargos. Portanto, o nível dos professores dos cursos de língua chinesa da comunidade é bastante variável e deficiente. 5.3. Os alunos do período mais antigo são principalmente da região de Cantão. No segundo período, começou a entrada de alunos de Taiwan e dos nascidos no Brasil. Por causa do nível mais elevado de educação do imigrante de Taiwan, o ambiente de aprendizagem da língua chinesa em família é melhor. Os resultados da aprendizagem de alunos desse período são bem melhores do que os do primeiro período. O estudo da língua oficial chinesa pelo descendente de Cantão é um fenômeno interessante e a sua influência deve ser mais estudada. 5.4. Até o final dos anos 80, quase todos os cursos de língua chinesa da comunidade chinesa do Brasil utilizavam materiais didáticos fornecidos pela Comissão Ultramarina de Assuntos do Imigrante Chinês da República da China. O primeiro livro foi Língua Chinesa para o Imigrante Ultramarino, surgindo depois a edição de Língua Chinesa para a América e atualmente a Edição Revisada. Na parte fonética, utilizava-se o sistema de símbolos fonéticos tradicional. No ano de 90, acompanhando o crescimento rápido do número de imigrantes da China Continental pós-abertura, os cursos de língua chinesa também começaram a utilizar o sistema fonético padronizado e a escrita simplificada do continente chinês. 5.5. Com base na estrutura da comunidade chinesa e na tendência da nova evolução chinesa, o ensino de língua e cultura chinesa está sendo ampliado rapidamente. Mas o modelo tradicional de escola chinesa não é já exeqüível. Pode ser adaptado à forma intensiva como outros cursos intensivos de línguas, tais como inglês, francês, japonês e outras línguas estrangeiras. A forte influência da cultura chinesa no mundo atual exige, além do ensino de língua, também o ensino da filosofia, arte e cultura chinesas aos alunos. O rápido desenvolvimento da China nos últimos anos mudou um pouco a opinião mundial sobre ela. A cultura chinesa está sendo reavaliada novamente pelos países ocidentais para melhor relacionamento e intercâmbio. Vôos diretos entre o Brasil e a China foram inaugurados em outubro de 2006, simbolizando a aproximação mais rápida entre os povos dos dois países. 238 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil Bibliografia: Em português: 1) Carranca, Adriana, “Ainda fechada, chineses fazem 190 anos no País: Costumes e dificuldade com a língua portuguesa distanciam imigrantes dos brasileiros”, In: www.pucsp.br/revista/rvs-2004 2) DUBOIS, Jean et al. Dicionário de lingüística. trad. Frederico P. de Barros e outros. São Paulo, Ed. Cultrix, 1995. 3) HEREDIA, Christine de. “Do bilingüismo ao falar bilíngüe”. In: Vermes, G. & Boutet, J. (orgs.). Multilingüismo. trad. Celene M. Cruz (et alii). Campinas, Ed. Unicamp, 1989. Coleção Repertórios. 4) LYONS, John. Linguagem e lingüística: uma introdução. trad. Marilda W. Averburg e Clarisse S. de Souza. Rio de Janeiro, Ed. Guanabara Koogan S.A., 1987 5) SHYU, David jye Yuan. Coletânea de Estudos sobre o Ensino da Língua Chinesa. São Paulo, Ed. Hua Kuang – Centro Social Chinês de São Paulo, 1999. 6) SHYU, David J. Y.. “Comparações entre as orações chinesas e portuguesas a partir de orações com o verbo ser e orações passivas.” in China em estudo, no 2. Curso de língua e literatura chinesa, DLO-FFLCH-USP, 1995. 7) ________________ . Estudo da linguagem na comunidade chinesa em São Paulo. Influência da Língua Portuguesa e do dialeto Taiwanês na Língua Oficial. 8) STORIG, Hans Joachim. A Aventura das Línguas: uma viagem através da história dos idiomas do mundo. trad. Gloria Paschoal de Camargo. São Paulo, Ed. Melhoramentos, 1990. 9) TARALLO, Fernando & ALKMIN, Tania. Falares crioulos: línguas em contato. São Paulo, Ed. Ática, 1987. Série Fundamentos. 10)TEIXEIRA LEITE, J. R. “Imigração Chinesa para o Brasil” in China em Estudo, nº 2. Curso de Língua e Literatura Chinesa, DLO- FFLCH – USP, 1995. Em língua estrangeira: 1) CHEN, Ke. «中國人說話的俗趣» (Falares regionais da China). Taipei, Baiguan, 1995. 2) “O crescimento de empresas de imigrantes chineses”, artigo publicado pelo Central Daily News, Taipei, 27/junho/1996. 3) GUO, Dalie. «當代中國民族問題» (Estudo dos problemas contemporâneos das etnias chinesas). Beijing, Minzu, 1994. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 239 4) JOPPERT, R., “Taiwan revisited – a summing-up after four decades”. Rio de Janeiro, 2000 5) MC ARTHUR, Tom (ed.) THE Oxford Companion to the english language. New York, Oxford University Press, 1992. 6) SHYU, David Jye-Yuan. «巴西華文教育簡史» [(Breve histórico do ensino da língua chinesa no Brasil)], Boletim do Centro Social Chinês de São Paulo,1991. 7) ___________________. «海外華文教育的缺失與改進之道» [(As falhas no ensino da língua chinesa no exterior e o modo de corrigi-las)]. Boletim do Centro Social Chinês de São Paulo, jun. 1995. 8) XIE, Guoping. «語言學概論» (Introdução à lingüística). Taipei, San-Ming, 1986. 9) XING, Fuyi, «現代漢語» (Língua chinesa contemporânea). Beijing, Gaodengjiaoyu, 1991. 10)Yeh, Feisheng & XU, Tongqiang. «語言學綱要» (Teoria da lingüística). Taipei, Shuling, 1993. 11)YU, Guangxiong. «英語語言學概論» (Introdução à língüística inglesa). Taipei, Chong Ling, 1993. 12)YANG, Alexander Chung Yuan. “Uma breve história dos imigrantes chineses na América do Sul” in O mundo dos imigrantes chineses na América do Sul. Taipei, Ed. Secretário da Organização Mundial da Cultura Chinesa, 1999. ANEXO I – Lista das Escolas/Cursos de ensino da Língua Chinesa no Brasil: 1950-2005 学 地点 Local 备 注 Observação 1. 第一中文学校Primeira Escola Chinesa SP Fechada 2. 孔圣学校Escola Chinesa de Confúcio SP Fechada 3. 圣保罗中华会馆中文识字班Curso de aprendizagem da língua chinesa SP Fechada 4. 圣保罗中华会馆中文学校 Escola Chinesa do Centro Social Chinês em São Paulo SP 5. 圣保罗华侨天主堂中文学校Escola Chinesa da Igreja Católica de Santa Justina SP 6. 苏山诺华侨中文班Escola Chinesa de Suzano SP Fechada 7. 基督教联合浸信会中文学校Escola Chinesa da Igreja Cristã SP Fechada 8. 北区(TUCURUVI)华侨中文班Curso de Chinês do Tucuruvi SP Fechada 240 校 名 Nome 称 David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil 9. 华侨基督教会中文学校Escola chinesa da Igreja Cristã dos Imigrantes Chineses SP Fechada 10. 华侨基督教会中文学校Escola Chinesa da Igreja Cristã dos Imigrantes Chineses SP 1998 Funcionamento novo 11. 里约中华会馆中文学校Escola Chinesa do Centro Social Chinês do Rio de Janeiro RJ Fechada 12. 里约天主堂中文班Curso de chinês da Igreja Católica do Rio de Janeiro RJ 13. 里约基督教会中文班Curso de chinês da Igreja Cristã do Rio de Janeiro RJ 14. 古里堤巴华侨中文学校Escola Chinesa dos Imigrantes Chineses de Curitiba PR fechada 15. 金边市华侨中文班Escola Chinesa dos Imigrantes Chineses de Campinas SP fechada 16. 天桥基督教会中文班Curso de chinês da Igreja Cristã de Tianqiao SP fechada 17. 大安基督教会中文班Curso de chinês da Igreja Cristã de Ta’na SP fechada 18. 圣保罗教会中文学校Curso de chinês da Igreja Cristã de São Paulo SP 19. 新生中文学校Curso de chinês da Igreja Cristã de Xinsheng SP 20. 基督徒之家中文班Curso de chinês da Igreja Cristã de São Paulo SP 21. 中区华侨联谊会中文班Curso de chinês dos Imigrantes Chineses do Centro de São Paulo SP Fechada 22. 中山学校Escola Chinesa de Sun Yat-sen MG Fechada 23. 慕义教会中文学校Curso de chinês da Igreja Cristã de Mogi das Cruzes SP 24. 柯蔡宗亲会中文班Curso de Chinês da Associação de He Cai SP Fechada 25. 华龙体协中文学校Curso de chinês da Associação Esportiva Hua long SP Fechada 26. 华人协会中文班Escola Chinesa da Associação dos Imigrantes Chineses SP Fechada 27. 龙城(LONDRINA)中文班Curso de chinês de Londrina PR Fechada 28. 愉港中文班Curso de chinês de Porto Alegre RS Fechada 29. 美国学校中文班Curso de Chinês da Escola Americana SP Fechada 30. 全真道院中文学校Curso de chinês do Templo Quanzhen SP 31. 孔孟圣道院中文班Curso de chinês do Instituto de Confúcio SP fechada 32. 天恩教会中文学校Curso de chinês da Igreja Cristã de Tianen SP fechada 33. 古里堤巴华侨中文班Curso de chinês de Curitiba PR fechada 34. 施恩堂中文班Curso de chinês da Igreja Cristã de Shien SP fechada 35. 慕道基督教会中文班Curso de chinês da Igreja Cristã de Mogi das Cruzes SP 1997 Funcionamento novo Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 215-242 - 2008 241 36. 圣安德烈教会中文班Curso de chinês da Igreja Cristã de Santo André SP 37. 圣若瑟中文学校Curso de chinês de São José dos Campos SP 38. 敏州华联会中文学校Curso de chinês de Minas Gerais MG 39. 好景市中华文化书院 Instituto de Cultura Chinesa de Belo Horizonte MG 40. 佛光学苑中文学校Curso de chinês do Templo Foguang SP 41. 里约佛光中文学校Curso de chinês do Templo Foguang de Rio de Janeiro RJ 42. 幼华学园Instituto Idioma Jou Hwa SP 43. 乐儿学园Happy Kids Center SP fechada 44. 汉思文教中心Centro Cultural Hansi SP fechada 45. 巴西利亚中文学校Curso de chinês de Brasília DF 2003 Func.novo 46. 康宾纳斯中文学校Curso de chinês de Campinas SP 47. 好景市中文班Curso de chinês de Belo Horizonte MG 48. 仁德国际学校Colégio Sidarta SP 49. 里约欧文国语中心Centro de Língua de Ouwen do Rio de Janeiro RJ 50. 圣保罗大学东语系中文组Curso de chinês da Universidade de São Paulo SP 51. 巴西利亚联邦大学中文班Curso de chinês da Universidade de Brasília DF 52. 巴拉纳州联邦大学中文班Curso de chinês da Universidade Federal do Paraná PR Fechada 53. 圣达卡大利纳联邦大学中文班Curso de chinês da Universidade Federal de Santa Catarina SC Fechada 54. .仁爱学园 Escola Íris Celestial SP 55. .源德语文学校Escola chinesa Deyuan SP 56. .古城基督教会中文学校Curso de chinês da Igreja Cristã de Curitiba PR 57. .圣保罗召会中文版Curso de chinês da Igreja Cristã de São Paulo SP 58. .仁爱中文学校Escola chinesa Renai SP 59. .学儒中文学校Escola Chinesa Xueru SP 60. .亚华中文班Curso de chinês Yahua SP 61. .安琪儿中文学校Escola Chinesa Ângela SP 62. .古城育德中文班Curso de chinês Yude de Curitiba PR 63. 巴西利亞中文教協中文班Curso de chinês da Associação de Ensino de Língua Chinesa de Brasília DF 64. COLÉGIO MONJOLO DF 65. 基督福音教會中文班Curso de chinês da Igreja Cristã de São Paulo SP 242 fechada David Jye Yuan Shyu/Chen Tsung Jye - Integração Cultural dos Imigrantes Chineses no Brasil Sentidos do corpo: os usos de drogas na Sociedade islâmica medieval Marina Juliana de Oliveira Soares* Resumo: De que forma os árabe-muçulmanos encaravam o uso de drogas durante o período clássico? Eis a questão que propulsou o desenvolvimento deste artigo. A partir da literatura erótica islâmica, buscou-se tecer a relação entre estes homens e substâncias como o haxixe, o ópio e bebidas alcoólicas – estas proibidas no livro sagrado. O uso de inebriantes e psicoativos pela gente islâmica personifica uma outra convivência harmoniosa: a de homens e mulheres com o prazer do corpo. Os interditos que emergiram mais tarde só podem ser entendidos se recuperados estes momentos de “legalidade corporal”. Palavras-chave: Drogas, Islã, Idade Média. Abstract: How did the muslim-arabian face the use of drugs, during the classic period? That’s the question that impeled the development of this article. From islamic erotic literature, we tryed to show the relation between these men and substances as the hashish, opium and alcoholic drinks – these forbidden in the holy book. The use of the inebriants and psychoatives by islamic people personifies another harmonious acquaintance: that of men and women with the pleasure of their bodies. The prohibitions that emerged later only can be understood if we recuperate these moments of “corporal legality”. Keywords: Drugs, Islam, Middle Age. __________ * Graduada em História pela Universidade de São Paulo, mestranda do programa de Pós-graduação em “Língua, Literatura e Cultura Árabe” pela mesma instituição. 243 1. Introdução A palavra droga, do holandês drooch – seco –, acomoda uma série de significados: designação moderna dada às especiarias e plantas medicinais originárias do Oriente; matérias que entram em preparados farmacêuticos, substâncias medicamentosas, estupefacientes. Exibindo uma ou outra acepção, as drogas estiveram presentes no mundo islâmico clássico. O uso do verbo estar no passado sugere uma relação saudável entre os homens islâmicos – talvez as mulheres também – e a produção e uso de variadas plantas, cujo poder ia além da cura medicinal. Buscando o prazer ou a autotranscendência, os árabe-muçulmanos partilharam do conhecimento de inúmeras drogas – destacandose algumas especialmente – e fizeram-nas circular livremente pela sociedade. Para que possamos tecer considerações sobre esse momento, escolheu-se como objeto um conjunto de tratados de erotologia, que não apenas pensavam a sexualidade islâmica e o prazer que daí advinha, como também faziam inúmeras referências a alimentos que poderiam ajudar na obtenção do gozo e algumas drogas que pareciam visitar esse cenário do deleite. Além dos textos conhecidos comumente como “tratados de erotologia”, escolheu-se uma obra bastante difundida entre nós: o Livro das Mil e Uma Noites. Os seus contos nos trazem inestimáveis contribuições sobre o mundo islâmico clássico, como alertou Ortiz1. Suas histórias, ainda que crivadas de maravilhoso e irreal, fazem menções à alimentação e ao uso de drogas pelos muçulmanos daquele período2. Como se optou por trabalhar com fontes ditas literárias dentro de uma perspectiva histórica, cabem algumas ressalvas. O discurso literário, é certo, não tem a pretensão de traçar stricto sensu o panorama histórico de uma determinada civilização, num espaço estabelecido. De todo modo, é sempre possível descobrir nele inúmeros dados sobre o período e o lugar em que o texto foi gerado, o seu cenário, os costumes e as indagações de um povo. Dados esses que pinçamos, sobretudo, numa literatura despretensiosa. Antonio Candido, ao escrever sobre a crônica no Brasil, assinalou que esse gênero “pode dizer as coisas mais sérias e mais empenhadas por meio do ziguezague 1. ORTIZ, F. Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1991. p. 260. 2. “No mundo árabe, circulou pelo menos desde o século III H./IX d.C. uma obra com título e características semelhantes ao Livro das mil e uma noites. Contudo, foi somente entre a segunda metade do século VII H./XIII d.C. e a primeira do século VIII H./XIV d.C. que ela passou a ter, de maneira indubitável, as características pelas quais é hoje conhecida (...)” in JAROUCHE, M. M. (tradução). Livro das Mil e Uma Noites. Vol. I. São Paulo: Globo, 2005. p.11. 244 Marina Juliana de Oliveira Soares - Sentidos do Corpo: Os Usos de Drogas... de uma aparente conversa fiada”3. A literatura de As Mil e Uma Noites ou dos tratados sobre sexualidade nos deixa entrever, em meio a contos fantásticos, as variadas possibilidades da busca e do uso dos prazeres entre os muçulmanos. As práticas diárias, os comportamentos de gêneros, a relação com o corpo e com o “outro” estão todas ali. Perdido no interior de sucessivos mundos imaginários, encontramos o “mundo histórico”, a partir do qual o historiador pode retirar suas conclusões e refletir sobre o tempo e o lugar que lhe são oferecidos. Qualquer fonte documental depende dos usos que historiador e literato fazem dela. Esforcemo-nos, pois, para conferir a merecida atenção e importância às fontes de que ora dispomos. 2. O discurso erótico Para se pensar a sexualidade na civilização islâmica, é preciso atentar, inicialmente, para o fato de que o discurso erótico é, antes de tudo, religioso. Afinal, tratava-se de um conjunto de “jeques, imanes y cadíes” – autoridades investidas do poder de guiar as condutas dos crentes, portanto – que se debruçaram sobre um dos “terrenos más misteriosos de la creación: el desejo sexual”4. Dentre os fatores que teriam levado ao aparecimento de uma vasta gama de obras eróticas, Sabbah considera o aparecimento de uma classe “rica e ociosa” do Império islâmico, consumidora de todos os tipos de prazeres e refinamentos. Além disso, o intenso fluxo de escravas de Bagdá5 – que carregavam consigo técnicas e práticas sexuais diversas – a todas as partes do Império teria aguçado o interesse erótico dessa classe. É por tal motivo que a maioria das obras eróticas tem suas origens em pedidos de reis e emires. Uma outra face importante da administração abássida foi a fomentação de traduções das obras antigas para o árabe. Daí a presença de conceitos persas, indianos e greco-romanos em variados segmentos da vida muçulmana. Um deles foi a Medicina. Inúmeros autores gregos tiveram suas obras traduzidas e seu pensamento incorporado pelos árabe-muçulmanos. Dentre esses autores, destacamse Hipócrates, Galeno, Dioscórides e Rufo de Éfeso. Os tratados eróticos não se furtaram a apresentar idéias médicas dos gregos. 3. CANDIDO, A. A crônica: o gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil. Campinas: Ed; Unicamp, 1992 p. 20. 4. SABBAH, F. A. La mujer en el inconsciente musulmán. p. 45. 5. A cidade de Bagdá foi construída durante o Reinado Abássida (750 – 1258 d.C. /132 – 656 Hégira), para ser a capital do Império Islâmico. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 243-261 - 2008 245 A produção de textos eróticos alcançou seu apogeu entre os séculos IX e XVI d.C. (III e VIII da Hégira)6. Os temas sobre os quais discorrem tais obras abarcam desde conquistas amorosas, passando por conselhos sobre a cópula, perfumes a serem usados, técnicas para aumentar o volume do órgão masculino, chegando a receitas com vários tipos de alimentos, bebidas e ervas para incitar o desejo e promover a realização do coito. A partir desses tratados eróticos, é possível não apenas vislumbrar a relação entre os muçulmanos e o uso de bebidas e drogas, como também verificar a presença e o pensamento do Islã sobre esse “terreno de intimidade subjetiva evitado siempre por las religiones paganas”. Busquemos, portanto, as referências a bebidas e drogas na tradição literária, confrontando-as ao documento sagrado islâmico: o Corão. 2.1. As bebidas alcoólicas Eis uma questão demasiado controversa dentro da sociedade islâmica. Os biógrafos de Maomé atribuem a proibição do álcool ao fato de que o tio do Profeta, Hamzah, possuía um comportamento “beberrão”, portanto, inadequado às práticas sagradas exigidas pela religião. Contudo, o problema envolvendo o uso do álcool parece ser anterior, derivaria da própria tradução da palavra (khamr). Esse vocábulo nomeia qualquer bebida fermentada ou aguardente de frutas. E o que se percebe em textos islâmicos e nas próprias traduções corânicas é o uso de khamr como sinônimo de sumo fermentado da uva. Isso pode ser verificado nas seguintes suras do livro sagrado: “Interrogar-teão sobre o vinho e os jogos de azar. Responde: ‘Neles, há culpa grave e alguma utilidade para os homens. Mas neles, a culpa é maior que a utilidade’. E perguntarte-ão: ‘O que deveremos gastar?’ Responde: ‘O supérfluo’. Assim Deus esclarece Suas revelações. Quiçá reflitais”7. E, ainda: “Ó vós que credes, o vinho, os jogos de azar, os ídolos e as flechas da adivinhação são obras repugnantes do demônio. Evitai-os. E possais prosperar!”8 (grifo meu). De todo modo, é preciso salientar que a palavra pode designar qualquer bebida. É o que se nota, por exemplo, na tradução dos versos corânicos de Helmi Nasr. Como arabista e conhecedor do idioma árabe, Nasr traduziu (é assim que aparece no Corão em árabe) por vinho, mas notificou que esse significante nomeia “toda bebida inebriante”9. 6. Nas referências posteriores, usaremos apenas as siglas d.C., para ano cristão, e H., para designar Hégira. 7. CHALLITA, M. (trad.). Sura 2:219. p. 47. 8. Ibid. Sura 5:90. p. 89. 9. NASR, H. (trad.). Suratu Al-Baqarah, 2:219. p. 59. 246 Marina Juliana de Oliveira Soares - Sentidos do Corpo: Os Usos de Drogas... Se há uma exegese do termo, como se mostrou acima, é certo também que a ausência de consumo de bebidas alcoólicas na sociedade islâmica não pode ser afirmada contundentemente. O que se pretende verificar, através de textos literários, é se os muçulmanos bebiam, em que circunstâncias e como adquiriam tais bebidas. O livro intitulado O jardim perfumado, concebido pelo Xeque Nefzaui, data dos inícios do século XVI d.C./X H e versa sobre os usos do sexo e as formas de se dar prazer e incitá-lo no parceiro. Um verdadeiro manual, com capítulos destinados a discutir aspectos sensuais, médicos, de gênero e afrodisíacos, que envolvem o sexo. Esse tratado não traz qualquer informação específica sobre o uso do vinho. Mas, deixa-nos entrever, entre outras coisas, a seguinte afirmação: “O coito depois de uma longa rodada de bebida deve (...) ser evitado”10. É necessário observar que esse conselho figura ao lado de tantos outros no capítulo intitulado “Aspectos do ato do coito que podem ser danosos”. Pode-se entendê-lo, portanto, mais como uma prescrição que uma proibição. Numa outra tradução desse mesmo tratado, conhecida como Campos Perfumados, Nefzaui faz notar que a “riqueza da alimentação” é uma das seis causas referentes ao apetite sexual. E chega a reiterar as seguintes palavras de Galeno: “Quem estiver fraco para realizar a cópula deverá beber, com vistas à sua ação, uma taça cheia de mel líquido (...)”11. Contudo, as alusões a bebidas não se estendem. E, portanto, não se encontra nenhum indício sobre bebidas alcoólicas. De todo modo, a literatura árabe não se furtou a discorrer e pensar sobre o tema da bebida. Esses indícios podem nos ajudar a reconstituir o cenário cotidiano do Império islâmico. Em As Mil e Uma Noites, há menções recorrentes ao vinho. Lembremos, antes, que “vinho” é a tradução aceita para khamr, citado anteriormente. Além dessa obra, um outro texto, intitulado O Jardim das carícias, que não possui qualquer indício de datação ou localização espacial, refere-se ao uso de bebidas alcoólicas em inúmeras passagens. Assim como no Livro das Mil e Uma Noites, as alusões são sempre ao vinho. Do conto “O carregador e as três jovens de Bagdá”, extrai-se um dado importante para melhor compreender a relação entre os árabe-muçulmanos e as bebidas. Quando uma moça sai pela cidade em busca de diversas mercadorias, chega à casa de um velho cristão, onde compra por um dinar “um jarro verde-oliva 10. NEFZAUI, Omar Ibn Muhammad. O Jardim Perfumado. Tradução de Richard Burton. p. 137. 11. Id. Os Campos Perfumados. Tradução Monica Stahel. p. 179-180. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 243-261 - 2008 247 de vinho”. A venda da bebida, a essa época, já era interdita aos muçulmanos. Daí ser comercializada por cristãos. Além disso, a bebida não estava exposta, ou seja, não se podia encontrá-la em lojas abertas – como se notou na passagem literária. Ainda que fosse desse modo, o vinho continuaria a freqüentar o cenário islâmico, mesmo após a proibição estipulada no Corão. A bebida parecia ser tolerada na corte do califa abássida, a ponto de Abu Nuwas, um dos maiores poetas “modernistas”, adorador do vinho, tornar-se freqüentador da corte de Harun Arrashid12. Além do consumo em banquetes e outras reuniões, evocado nas obras literárias, há um outro dado histórico igualmente importante: Abu Ali Husayn ibn-Abdallah ibn-Sina (980-1073 d.C./369-465 H), conhecido, no Ocidente, apenas como Avicenna, foi o introdutor da idéia do uso de anestésicos por via oral. Em seu Cânon de Medicina, ele escreveu: “Se for necessário levar uma pessoa à inconsciência rapidamente, de forma a tornar a dor suportável, no caso de procedimentos dolorosos em um membro, coloque água de joio em vinho, ou administre fumária, ópio, hioscíamo (doses de meio dracma de cada); noz-moscada, agáloco cru (quatro grãos de cada). Adicione isto ao vinho, e tome tanto quanto for necessário para a finalidade. Ou ferva hioscíamo negro em água, com casca de mandrágora, até tornar-se vermelha. Adicione isto ao vinho.” 13 Note-se que Avicenna aconselha o paciente a tomar a mistura até que se atinja a finalidade buscada, neste caso, o alívio da dor. Se o médico visse no uso da bebida um ato grave, é certo que não a receitaria como remédio. Neste sentido, Avicenna, ainda que fosse muçulmano, não seguia o preceito de Maomé, que via no álcool uma doença e não um medicamento. Além do uso anestésico, Avicenna recomendou a aplicação do vinho em feridas, o que se tornaria prática comum na Idade Média. Num dos capítulos de seu livro Poema da Medicina, Avicenna assinala como fatores essenciais à boa saúde, entre outros, a alimentação e as bebidas. No tópico “Règles concernant la boisson: eau ou autres”, o médico afirma que o vinho, assim como o nabidh14 e o leite, alimenta. O homem que defendia, ainda, o uso de remédios que misturavam o ópio, nozes, eufórbia e alcaçuz morreu convicto de suas receitas, por uma overdose de ópio acompanhado de vinho. 12. Harun Arrashid foi o quinto califa da dinastia abássida, fundador da cidade de Bagdá. Seu reinado durou de 786 d.C. a 809 d.C/169 a 193 H. 13. RAGIP, H. S. M. “O Islam e as ciências médicas”. Artigo publicado na Revista Mundo da Saúde, Universidade São Camilo, nov.-dez. de 2000. 14. Há uma nota indicando que nabidh pode ser entendido como tâmaras ou uvas secas maceradas na água. 248 Marina Juliana de Oliveira Soares - Sentidos do Corpo: Os Usos de Drogas... Essa visão médica acerca do vinho também aparece nas Mil e Uma Noites. No conto “O carregador e as três jovens de Bagdá”, o comerciante, ao saborear inúmeras taças do líquido, afirma: “A bebida corta o que é nocivo e atua como remédio, fluindo e produzindo boa saúde”15 . Após sorver todo o conteúdo da taça, o carregador recita os seguintes versos: “(...) ‘bebe, pois são minhas lágrimas, e o vermelho/ é meu sangue, tingido, na taça, por meu ardor. Ela disse: “se foi por mim que choraste sangue,/ então, dá-me de beber, e eu o farei com todo o prazer’” 16. Eis a aplicação mais recorrente da bebida, em textos literários: em banquetes, reuniões comemorativas ou tertúlias. A apreciação do vinho parece se dar em encontros noturnos, sempre regados a música e investidas sensuais. Por ser proibido e comercializado às escondidas, é certo que seu valor fosse alto. Em razão disso, o que se observa nos tratados eróticos é um consumo entre gente com posses. No conto citado anteriormente, a reunião é composta pelo comerciante e por três jovens. O encontro se dá numa casa espaçosa, de construção alta e portas decoradas por duas lâminas de marfim engastadas de ouro cintilante. Tratava-se, portanto, de três jovens amparadas financeiramente. Mais que isso, eram moças educadas nas letras, pois afirmam ter lido crônicas de um poeta. Desde o momento da chegada do homem à casa, passa a ser-lhe oferecido vinho. A bebida faz-se acompanhar por conversas, comida, incensos, fragrâncias perfumadas. A casa ainda receberá três dervixes, o califa Harun Arrashid e seu vizir, Jacfar. A respeito do califa, formou-se a lenda de que ele passeava à noite pelas ruas de Bagdá, disfarçado, a fim de descobrir injustiças cometidas contra sua gente. Todos os participantes da reunião bebem. Nem o califa se furta a tal prazer. Um dado curioso a respeito de Harun Arrashid é o fato de que, em algumas traduções recentes da obra, o personagem engendra a desculpa de que não pode beber por estar se preparando para peregrinar a Meca. Nesse caso, é-lhe servida bebida nãoalcoólica. Se atentarmos para tal dado, perceberemos que a figura dotada de grande força política e religiosa, entre os árabe-muçulmanos, não se opunha ao uso do vinho, apenas respeitou o período anterior à sua peregrinação. Outro indício da possível tolerância em relação ao álcool, nesse momento, é a informação – cuja certificação se faz necessária – de que, durante o reinado abássida, o vinho era admitido no palácio do califa. 15. Livro das Mil e Uma Noites. p. 117. 16. Ibid. p. 117. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 243-261 - 2008 249 Há autores que são enfáticos, quando discorrem a respeito da proibição alcoólica. Hitti é um deles. Para o autor, não só os califas desrespeitavam a interdição corânica, como nem mesmo os “vizires, príncipes e juízes davam atenção a este preceito religioso”17. Se esses homens, imbuídos de poder político e da faculdade de orientar as práticas cotidianas dos muçulmanos, não faziam cumprir as ordenações corânicas, há de se pensar que havia todo o respaldo moral para praticar ações interditas. Dada a situação social esboçada nos tratados eróticos, em que há a presença de homens e mulheres, faz-se notar que também as moças bebem vinho. Embora sejam mulheres de alta estirpe, na maior parte dos casos retratados, elas não se furtam a degustar grandes quantidad'es de bebida alcoólica. Os encontros amorosos são prova substancial dessa situação. No livro O Jardim das carícias, o príncipe Flor de Amor encontra duas belas jovens, caminha até elas, despe-se e deita-se ao seu lado. As moças, surpresas e encantadas com o que vêem, oferecem-lhe “frutos e bolos, que repousavam sobre bandejas de ouro e de prata ao alcance das mãos, e beberam com ele caldas e licores tão doces e embriagadores, que os sentidos dos três logo se inflamaram”18. Nem é preciso enfatizar quão belo e rico era o palácio no qual o príncipe ficou hospedado. A riqueza proporcionava abundância de alimentos e também de bebidas, corpos saudáveis e belos, além de convivências correntes em banquetes e festas. Tudo isso está atrelado, se é que não forma a própria condição de existência, aos amores e prazeres sexuais. Num dos jantares, envolto por escravas musicistas e dançarinas, o príncipe Flor de Amor, exaltado pelos “licores generosos”19, olha para uma das jovens, que segura uma taça de vinho dourado, e recita os seguintes versos: “Não me digas que o vinho é funesto aos poetas,/ pois enquanto for azul o vestido do céu/ e verde aquele da terra,/ desejarei beber até morrer/ para que os rapazes e moças/ que vierem visitar minha tumba/ possam respirar minhas cinzas/ e baste seu odor para embriagá-los”.20 Iguarias de extremo requinte e vinhos delicados, citados na obra, estão presentes invariavelmente nos banquetes. E estes se dão, por suposto, em ocasiões muito especiais. O banquete não se resume, aqui, num simposium ao estilo grego. Os 17. HITTI, P. K. Os árabes. p. 108. 18. SAHLI, Rejeb ben. O jardim das carícias. p. 43. 19. Além do fermentado de uva, havia o khamr de tâmaras. Segundo Hitti, a bebida predileta dos árabes a essa época. 20. SAHLI, Rejeb ben. op. cit. p. 47. 250 Marina Juliana de Oliveira Soares - Sentidos do Corpo: Os Usos de Drogas... homens não se reúnem para aprender a beber. Mas há uma característica que em muito se aproxima ao banquete antigo: o uso do vinho se faz em grupo. Não há um personagem árabe-muçulmano que beba sozinho. Os banquetes se dão por razões comemorativas: a um período de desgosto, tristezas e incertezas, sucede a festa. Nesse sentido, o banquete existia com a finalidade de agregar os convivas, celebrar a alegria e compartilhar comidas e bebidas. De acordo com a religião, apenas os alimentos lícitos deveriam ser postos à mesa. Porém, o vinho, ilícito, marcava sua presença. Além das festas para muitos convidados, a literatura nos traz exemplos do uso do vinho em galanteios amorosos. Querendo conquistar uma bela jovem, o príncipe Flor de Amor ordenou às empregadas que servissem uma farta refeição, a que sucedeu um vinho delicioso, servido em taças de cristal de rochas. O príncipe recitou alguns versos e “quando terminou seu canto, bebeu alguns goles de vinho e depois estendeu a taça à companheira, suplicando-lhe que bebesse por amor a ele, tal como bebera por amor a ela”21. A oferta do vinho se justifica, certamente, pelos efeitos do álcool no corpo, mas também pelo significado sedutor que a bebida carrega. Impossível deslindar o prazer do vinho do prazer do corpo. Ao menos foi isso que pregou a literatura erótica. Afora esses usos em reuniões e encontros de amantes, observa-se o emprego do vinho em situações corriqueiras, passíveis de serem testemunhadas em outros espaços e tempos: bebe-se para esquecer os desgostos. O “expulsa-dores”, lembrado por Braudel, não figurou apenas nas sociedades européias à época moderna. Atentando-se aos textos literários, é possível afirmar que os homens islâmicos também recorriam à bebida, quando eram tomados pela tristeza. O príncipe, que já mencionamos anteriormente, ao ver-se abandonado e entregue à mercê do destino, é flagrado por um velho judeu. Este ouve sua história e o leva a uma taberna, onde esvaziam alguns copos de vinho. Eis a forma de um homem ajudar a outro. Saindo do espaço privado e visitando a cidade-capital Bagdá, também encontramos a disseminação da bebida alcoólica. Ao discorrer sobre as diversões na cidade oriental mais rica do período, Mazahéri notou que as pessoas saíam para respirar ar fresco e saborear cabrito assado acompanhado de um bom vinho ou de hydromel22 gelado23. 21. 21 Ibid. p. 73. 22. Hydromel é uma bebida alcoólica fermentada à base de água e mel. 23. MAZAHÉRI, A. Le vie quotidienne des musulmans au moyen age Xe au XIIIe siècle. p. 178. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 243-261 - 2008 251 Por ter o consumo proibido no Corão, é bem provável que pouco ou nada se produzisse da bebida em terras árabes. Daí a uva, assim como laranjas, pêssegos e damascos, ser importada de países mediterrâneos. Além do vinho, outras “bebidas fortes”24 eram consumidas pelos muçulmanos, e sua produção se devia aos cristãos e judeus locais ou, então, recorrer-se-ia à importação da Europa Ocidental. Faz-se necessário notar que, mesmo após a tomada da Península Ibérica pelos árabes, não houve a proibição da cultura da vinha nem da produção da bebida. O emir de Córdoba mostrou-se tolerante para com os cristãos em razão da importância da agricultura para os árabes. Desde tempos longínquos, “onde quer que houvesse solo e água, cultivaram-se frutas e legumes”25. Daí os agricultores gozarem benevolência e proteção dos administradores políticos, em troca da disposição em trabalhar no campo. Não foi apenas o vinho a droga consumida pelos muçulmanos. Substâncias as mais variadas foram empregadas para aliviar dores, incitar o aborto, eliminar o mau cheiro de partes do corpo, aumentar as dimensões do membro sexual masculino, estimular os desejos sexuais. A busca pelo prazer pessoal foi também potencializada pelo uso do haxixe. É sobre esse derivado da cannabis que nos deteremos mais cuidadosamente. 2.2. O haxixe O haxixe é o produto obtido a partir das secreções resinosas das flores e inflorescências femininas da cannabis sativa, contendo elevada concentração de Tetrahidrocanabinol (THC). Entre seus efeitos, encontram-se excitabilidade, risos, relaxamento e sonolência. Ao contrário do que ocorre com a bebida, o livro sagrado não proíbe o uso de haxixe. Daí o seu consumo não consistir em nenhuma transgressão. Assim como o vinho, o haxixe parece ser luxo dos habitantes da cidade. Qual agricultor despenderia dinheiro com uma substância provavelmente cara? Difícil crer que tais homens tivessem conhecimento da droga e quisessem utilizá-la. O consumo de haxixe na literatura erótica comunga esses mesmos princípios: ou é usado por homens renomados, ou é oferecido em ambientes ricos. Os experimentados no uso do haxixe são sempre homens. Essa tradição masculina parece ter origem numa seita persa, fundada por Al-Hasan ibn al-Sabah. Esse homem rompeu com a tradição islâmica e fundou sua própria seita. Os árabes se referiam a ela como hashashin, ou comedores de haxixe. O termo, 24. HOURANI, A. H. Uma História dos povos árabes. p. 141. 25. Ibid. p. 115. 252 Marina Juliana de Oliveira Soares - Sentidos do Corpo: Os Usos de Drogas... pejorativo entre os árabes, passou a significar assassino. Mas a tradição de comer haxixe continuou a vigorar na cultura islâmica. É possível encontrar referências sobre o haxixe também na literatura médica. Avicenna e Razes prescreviam que “para curar la pitiriasis se lave la cabeza com el jugo de las hojas o con el óleo de los cañamones”26. O haxixe era usado, ainda, para provocar sono profundo ou como anestésico. Alguns doutos aconselhavam o emprego do cânhamo como alimento. Ibn Masawayh (777-857 d.C./160-242 H), médico persa, recomendava às pessoas de temperamento fleumático27 ingerir alimentos calóricos e dessecativos, como uvas passas e sementes de cânhamos (os cañamones), em razão de sua natureza fria e úmida. Ibn Al-‘Adim, no século XIII d.C./VII H, cita os cañamones como ingredientes no preparo de quatro receitas para cozinhar nabos. O haxixe foi objeto de interesses médicos, ao mesmo tempo que gozou um status de substância de uso pessoal: alimento, em alguns casos; prazer corporal, em outros. A farmacopéia árabe assinalou, ainda, o uso da substância associado ao ópio e ao vinho. Contudo, as combinações, ao que parece, deram-se também com outros compostos. No livro O jardim perfumado, o xeque Nefzaui escreve o seguinte conselho para quem copula exageradamente: “(...) o homem que se entrega apaixonadamente ao gozo do coito, sem sofrer um excesso de fadiga, deve viver de alimentos revigorantes, confeitos, plantas aromáticas, carne, mel, ovos e outras provisões semelhantes”28. O que nos interessa particularmente nessa passagem são os confeitos. Estes, chamados madjun ou majoun, são preparados com frutas, em especial cerejas e pêras cozidas com mel. Burton afirma que, caso se os queira mais condimentados, “podem-se acrescentar diferentes quantidades de canela, almíscar etc”29. O significado e a origem de madjun ou majoun são obscuros. A princípio, o vocábulo majoun designaria o nome da cannabis na África do Norte. Mas, ao atentarmos para Escohotado e Burton, percebemos que essas palavras indicam uma mistura de variadas substâncias. Ainda que Burton não mencione o detalhe em sua nota, o madjun, como ele grafou, contava com o incremento da cannabis. 26. Solaz del espíritu en el hachís y el vino y otros textos árabes sobre drogas. p. 11. 27. A teoria dos humores, desenvolvida por Hipócrates (460-377 a.C.) e presente na medicina árabe, preconiza que o corpo é composto por quatro elementos: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra. Os temperamentos derivados daí são o sanguíneo, fleumático, colérico e melancólico. As propriedades são, respectivamente, quente e úmido; frio e úmido; quente e seco; frio e seco. Em virtude das características específicas do fleumático, é que se aconselha o uso de alimentos secos. 28. NEFZAUI, Omar Ibn Muhammad. op. cit. p. 135. 29. Ibid. p. 135. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 243-261 - 2008 253 Há uma vasta gama de ingredientes que poderiam ser adicionados ao madjun: frutas, canela, almíscar, manteiga, mel, noz, cravo. Escohotado nos lembra, ainda, que esse confeito poderia ser potencializado com beladona, datura ou ópio. Se acreditarmos que madjun seja uma variação de majoun, teremos algumas pistas sobre o efeito de tal confeito. O significante (majoun) é uma variação de outros dois vocábulos e consiste em sinônimos como libertino, desavergonhado, loquaz. Se este foi um termo cunhado por um personagem que observava um consumidor do confeito, talvez faça sentido atribuir tais adjetivos (seriam depreciativos?) ao comedor de haxixe. Na “História dos dois consumidores de haxixe”, conto de As Mil e Uma Noites, a figura principal é um pescador aficionado ao uso do produto. O homem compra a erva da qual se extrai o haxixe e a toma três vezes ao dia: pela manhã, em jejum; ao meio-dia e ao pôr-do-sol. Lembra o narrador que esse consumo não o impedia de exercer seu ofício. Certa tarde, após ter tomado uma dose de haxixe, o pescador conversa consigo mesmo e decide sair à rua e aproveitar seu prazer e sua alegria solitária. Quando chega à orla do mar, vê o reflexo da lua no chão e pensa que é água. Sem demora, o homem busca sua vara de pescar e joga o anzol sobre aquilo que acreditava ser água. O que ocorre a seguir é que um enorme cachorro, atraído pelo odor do sebo, engole o anzol e se machuca enormemente. O pescador, crendo ter fisgado um grande peixe, puxa o anzol, que, por sua vez, fere ainda mais o animal. Por fim, o homem é arrastado e, com medo de se afogar, grita desesperadamente por ajuda. Os guardas que o acodem, inicialmente riem de sua história, mas acabam por conduzi-lo à casa do cadi. O pescador e o cadi consomem haxixe, desnudam-se, cantam e dançam juntos. Não fosse o bastante, o sultão e o vizir se unem aos outros dois e participam da confraternização promovida pela substância. Toda essa situação, somada ao episódio em que o cadi quase urinou no sultão, já seria suficiente para que o primeiro fosse punido. O que não ocorreu. O pescador, por sua vez, ainda em “estado de delírio”, não apenas foi poupado pelo sultão, como recebeu deste o convite para viver no palácio e, ulteriormente, o cargo de grão-vizir. Atentemos para o comportamento daqueles que consumiram haxixe. Alucinação, vivacidade, distanciamento do mundo. Impressões muito próximas daquelas sentidas por Baudelaire, em Os paraísos artificiais. Para ele, o haxixe causa uma estupefação que se apodera de todo o ser; os sentidos adquirem uma agudeza extraordinária. Logo vêm as alucinações: os objetos se revelam sob formas 254 Marina Juliana de Oliveira Soares - Sentidos do Corpo: Os Usos de Drogas... desconhecidas. Tudo é um constante deformar e transformar. Se o haxixe era visto como perigoso e inútil pelo poeta francês, não o era para muitos árabes. Nos textos analisados, observamos quatro formas diferentes de tomar o haxixe. Em As Mil e Uma Noites, o pescador pegava parte de seus rendimentos e comprava “aquella hierba de la que se extrae el hachís”. Como indicado, o próprio consumidor extraía a resina da cannabis e a comia. Aqueles que possuíam acesso a uma alimentação mais diversificada poderiam utilizar o haxixe em receitas doces. O majoun, confeito que citamos anteriormente, exigia um maior trabalho, não somente pela necessidade de outros ingredientes, como pelo processo mesmo de fabricação. Em virtude disso, é possível que fosse usado, em grande parte, pelas camadas mais abastadas da população, que se davam ao luxo de promover suntuosas festas. Os cafés, sempre aglutinadores de intelectuais e artistas, aqui não podem ser considerados como locais de consumo. Segundo Hitti, eles só entraram em voga no mundo islâmico a partir do século XV d.C/IX H. Ainda em ambientes requintados, deparamos com os narguilés. Numa passagem de O Jardim das carícias, Flor de Amor, acompanhado de outros jovens, chega a uma sala coberta de tapetes, almofadas bordadas e peles de animais. Lá, “havia pequenas mesas de ébano com narguilés de haxixe e taças de licores e sorvetes”30. Para um estudioso31 do assunto, o narguilé aparenta-se à arte do “bem fumar”. A reunião de pessoas em torno do objeto revela a sua função de “coesão microsocial”. Daí o uso coletivo do aparelho, na literatura árabe e também na história desse povo. Não apenas o haxixe, mas também o ópio foi incorporado como ingrediente do narguilé, durante esse período. Mel, frutas, azeite e, por fim, o tabaco puro completaram a lista de produtos fumados no aparelho. Uma outra maneira de consumir o haxixe foi através do emprego de cachimbo. Dada a variedade de materiais usados na fabricação do cachimbo – madeira, barro, osso – é possível que pessoas de classes menos abastadas utilizassem-no. Devido à sua menor complexidade, os apreciadores do haxixe podiam servir-se do aparelho sozinhos, sem a necessidade de um grande cerimonial. 2.3. O ópio O ópio é uma substância extraída da papoula, nome popular do Papaver somniferum, uma das inúmeras espécies da família das Papaveráceas. Dentre os efeitos atribuídos ao ópio, encontra-se a sua propriedade sedativa e hipnótica. A referência ao ópio faz-se ler tanto no Talmude quanto na Bíblia. Segundo alguns 30. SAHLI, Rejeb ben. O jardim das carícias. p. 101. 31. CHAOUACHI, K. Anthropologie d’un mode d’usage de drogues douces. Paris: L’Harmattan, 1997. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 243-261 - 2008 255 estudiosos, a denominação dada ao ópio na Bíblia é rôsh. Numa tradução portuguesa da Bíblia, aparece a expressão “água de fel”. Segundo a Revista Brasileira de Anestesiologia, “água de fel” seria o produto de uma planta conhecida como dormideira, nada mais que o nome popular da papoula. Se se alude ao ópio nos livros sagrados do judaísmo e do cristianismo, o mesmo não se pode dizer sobre o Corão. Isso não significa que a substância tenha sido desconhecida dos árabes. A história do ópio entre eles confunde-se em muito com as tradições médicas desse povo. O maior nome da medicina islâmica, tão recorrente ao longo do texto, não se furtou a enfatizar e empregar as propriedades desse produto. É a Avicenna, e também a Rhazes, que se atribui “la restituición del opio tebaico (‘da adormidera negra de Egipto’) a su lugar dominante en farmacopea”.32 O emprego em triacas, ou misturado a solanáceas e à cannabis, foi amplamente difundido. Aplicou-se o ópio, por vezes, à confecção do majoun – esse confeito à base de haxixe, de que já se tratou em outros momentos. Assim como a resina extraída da cannabis, o ópio também figurou num cenário de desejos humanos. Seu caráter euforizante fez-se sentir tanto nos espaços privados quanto nos públicos, como o diwan. Eis a destacada singularidade do uso árabe, assim compreendida por Escohotado: o ópio não consistiu apenas num analgésico ou antídoto, mas principalmente num euforizante. Ostentando, em alguns momentos, a inscrição “presente de Deus”, as pastilhas de ópio disseminaram-se no mesmo ritmo da expansão árabe. As advertências médicas sobre a qualidade do ópio e sobre as possíveis adulterações feitas por comerciantes denotam a elevada difusão da substância. Alimento, fumo, em sucos de uvas, misturado ao haxixe. Todas as classes sociais deram-se a conhecê-lo e a consumi-lo. Os homens viviam a opiofagia. O ópio, acreditavam os árabes, permitia à gente desse mundo envelhecer sem amarguras e morrer docemente. Se alfaquis e ulemás levantaram qualquer oposição ao uso do haxixe, o mesmo não se pode dizer sobre o produto da papoula, que gozou de adeptos até fins do século XVI d.C./IX H. Se o ópio desfrutou tamanho prestígio na sociedade islâmica, é quase certo encontrar na literatura reflexos dessa relação harmoniosa. Voltemos às Noites. Curioso notar que encontramos apenas um conto, dentre tantos tecidos, que versou sobre a substância. Trata-se da história de um mercador egípcio, de nome Šams al-Din, cuja idade de quarenta anos traz à lembrança o filho que ainda não teve. Alertado por sua esposa de que seu sêmen era demasiado transparente – daí a causa 32. ESCOHOTADO, A. Historia general de las drogas. p. 255. 256 Marina Juliana de Oliveira Soares - Sentidos do Corpo: Os Usos de Drogas... de não engravidar sua mulher –, procurou entre os drogueros algo que pudesse lhe ajudar. Passou horas andando pelo mercado à procura daquilo que enturvasse seu sêmen. Nada encontrou. Foi, então, que deparou com um comerciante adicto ao haxixe, ao ópio e ao barsh. A receita revelada a Shams al-Din era uma mistura de ópio concentrado, canela, cravo, cardamomo, gengibre, pimenta. Combinada, por fim, com azeite e mel de abelha. Tomadas as recomendações e a mistura de ópio, o homem copulou com sua esposa, que engravidou. As traduções de As Mil e Uma Noites, que foram sendo produzidas por europeus pós-século XVIII, fizeram calar qualquer referência a “drogas”, que lá aparecessem. Discrição, pudicícia, moralismo. O resultado, afora a mutilação dos contos, foi o enaltecimento de uma cultura que falava do outro, a partir de si própria. As drogas também se tornaram vítimas desse discurso, que analisa pautado mais em referências éticas e contemporâneas que numa visão histórica e de alteridade. 3. Conclusão Depois da tentativa de fazer emergir a relação nutrida entre os árabemuçulmanos e as drogas, um problema, que se desdobra em variadas questões, surge imediatamente. Por que substâncias usadas pela medicina, pela farmacopéia e por homens e mulheres que buscavam experiências prazerosas foram transformadas ou deformadas pelos interesses das sociedades, a ponto de serem amplamente condenadas na época moderna? As lojas de drogas vendiam um sem-número de ervas e derivados que eram, em grande parte, comprados pelas gentes molestadas por algum tipo de doença. Misturas eram feitas, novas descobertas também. Foi assim que se pôde discernir o caráter medicinal de tantas ervas, flores, frutos, extrações. Sanadas as necessidades primárias de combate aos males, os homens se deram a partilhar um novo tipo de experiência: o prazer advindo das substâncias já conhecidas. Buscava-se pelos “promotores de felicidade”, estes “despertadores de consciência cósmica”, que, para Huxley, haviam sido descobertos “antes da aurora da História”33. Os árabes compartilhavam dessas práticas na medida em que permitiram a circulação e o uso de diversos psicoativos. Inebriantia, phantastica e euphorica34, 33. HUXLEY, A. Moksha. p. 185. 34. Embora se utilize, aqui, o termo psicoativo para nomear substâncias distintas e responsáveis por variadas experiências, é preciso lembrar que há inúmeras outras classificações, como aquela do alemão Louis Lewin. No início do século XX, o farmacólogo classificou as substâncias que agem sobre o corpo e/ou a mente em Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 243-261 - 2008 257 inclusive, estiveram à venda nos mercados, foram utilizados como medicamentos, puseram-se ao alcance de quem acreditava no seu poder benéfico sobre o corpo. Califas, vizires, cadi e outros dignitários islâmicos toleraram o consumo dos psicoativos ou sentiram o poder de tais substâncias. Correntes místicas, como o sufismo, tiveram, entre seus adeptos, entusiastas do vinho. Sobre o inebriante, Hazrat Inayat Khan escreveu a seguinte poesia: “Tu derramaste vinho na minha taça vazia onde quer que nos encontrássemos,/ sobre colinas e vales, sobre os topos das altas montanhas,/ nas espessas florestas e nos desertos estéreis,/ sobre as praias do mar agitado e sobre as margens do rio tranqüilo;/ e lá, ergueu-se em meu coração a paixão não-terrena e a alegria celeste”35. A busca do místico se faz através da bebida: ele atinge uma alegria além das possibilidades mundanas. Outra substância capaz de induzir o crente a um estado de iluminação espiritual foi o haxixe. Embora a resina tenha sido vastamente difundida pela sociedade islâmica, a conduta ascética desses homens de classes inferiores foi repudiada pelos árabes. Também Muhammad teve sua experiência de êxtase. O “vôo noturno” do profeta levaria inúmeros sufis a buscar práticas de ligação com a divindade. Depois desses “vôos”, os místicos islâmicos carregaram a religião “com luz, amor e uma fragrância divina que não vinha deste mundo” contra “o legalismo sufocante que ameaçava comprimir o Islã”36. Quem poderá rechaçar a idéia de que a fragrância divina, que não fazia parte deste mundo, fosse evocada por tâmaras – frutas prediletas do profeta – transformadas em bebida inebriante ou que os “vôos noturnos” compartilhassem os mesmos indutores da experiência mística que aqueles usados pelos sufis? O Islã conheceu os sofrimentos do corpo, e engendrou formas de aliviar os males dos homens. Esteve atento à sexualidade humana, e teceu, portanto, uma relação profícua com o corpo. Em inúmeras passagens do Corão, é possível perceber referências recorrentes ao sêmen, ao sangue, ao deleite. Todos os homens e todas as mulheres têm direito igual ao prazer. Se foi assim com o sexo, por que não seria também com o uso de psicoativos? Afinal, significaria, em última análise, defender a própria satisfação corporal. cinco grupos: excitantia, euphorica, hypnotica, inebriantia e phantastica. Nesse sentido, álcool, haxixe e ópio corresponderiam, respectivamente, a inebriantia, phantastica e euphorica. 35. EICHEMBERG, N. R. (trad.). O coração do sufismo. p. 196. 36. ROGERSON, B. O profeta Maomé, uma biografia. p. 144. 258 Marina Juliana de Oliveira Soares - Sentidos do Corpo: Os Usos de Drogas... Quando pensamos no haxixe e no ópio, não deparamos com o interdito – pelo menos durante o período clássico. O álcool, como sabemos, foi proibido, mas a lei, transgredida. Não se poderia, em algumas páginas, levantar as possíveis causas para o recrudescimento da interdição às drogas, na sociedade islâmica. Principalmente, se a tratássemos como um bloco homogêneo, que passou por processos idênticos de formação de identidade, constituição política, comportamento social. Pode-se pensar em algumas questões, que contribuíram para endossar a vertente proibicionista: à medida que houve a constituição dos Estados-Nação, com demarcação de fronteiras e organização política, revelou-se uma quase incapacidade de separar Estado da religião. O resultado são governos pautados no Corão, que utilizam um documento produzido ao longo do século VII d.C. como manual jurídico. Daí advêm práticas que não condizem com a realidade vivida, punições severas ou mesmo atrozes. São ações como estas que continuam a impelir as sociedades islâmicas para longe da “modernidade”. Modernidade tecnológica e científica, é bom que se diga. Afinal, o corpo – tanto no Ocidente quanto no Oriente – continua a pagar um alto preço por seus desejos. As drogas, outrora agentes de cura ou de uso pessoal, entre os muçulmanos, foram incorporadas ao discurso oficial em voga no mundo “civilizado”, que passou a rechaçar, proibir e punir duramente os que se arriscam a utilizá-las. A sociedade islâmica, outrora aberta e simpática aos desejos dos corpos, escondeu o sexo sob os cuidados do segredo, da decência e da modéstia. A reboque desse comportamento, homens e mulheres tornaram-se indecifráveis perante o proibido. Para Nietzsche, o homem islâmico mostrava-se como o sujeito do “não”, o reativo. Diante disso, cabe inteiramente a pergunta feita por Foucault: “o que alguém deve saber sobre si para que esteja disposto a renunciar a qualquer coisa?”. O corpo continua a ser um enigma. Bibliografia: AL-MAKHZOUMI, Al-Sayed H. I. H. As fontes do prazer. Tradução de Tomás Rosa Bueno. São Paulo: Martins Fontes, 1994. ATTIE FILHO, M. Falsafa: a filosofia entre os árabes. Uma herança esquecida. São Paulo: Palas Athena, 2002. AVICENNE. Poème de la Médecine. Paris: Société d’Édition Les Belles Lettres, 1956. BALICK, M. J. E COX, P. A. Plants, people, and culture. The Science of Ethnobotany. New York: Scientific American Library, 1996. 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Meu intuito foi ressaltar o lugar de destaque que essa literatura dedica à presença e à voz do “outro.” Palavras-chave: literatura, política, árabes, judeus, “nós”, “eles”. Abstract: In this essay the author cross-stiches political aspects of Amos Oz’ literary work. Issues previously repressed by the writers’ generation connected to the foundation of the State of Israel, emerge in Oz´ literature. The author’s aim is to highlight how this literature sticks out the presence and the voice of the “other”. Key words: literature, politics, Arabs, Jews, “we”, “them”. O autor da literatura israelense contemporânea mais traduzido para o português é Amós Oz2. E também o mais apreciado pelos leitores. Sua passagem por São Paulo apenas confirmou a simpatia e o carisma que cercam o escritor e sua obra, traduzida para cerca de trinta idiomas. Professor de literatura na Universidade Ben Gurion, Amós Oz vive em Arad, no deserto do Neguev, em Israel. Contrapondo-se às idéias feitas que perpetuam a discriminação, a intolerância, a opressão, o autor não escreve “em linha reta”; 1. Este trabalho retoma elementos de outro ensaio, “Literatura e política: alguns aspectos da obra de Amós Oz”, mas amplia o anterior e dá-lhe outra direção. Cf. Linhas de Força: Escritos sobre literatura hebraica. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2004. * Professora Titular na Área de Língua e Literatura Hebraica do Departamento de Letras Orientais da FFLCH – USP. 2. As obras de Amós Oz traduzidas para o português são: Conhecer uma mulher (trad.Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras,1992. A Caixa Preta (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Fima (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Não diga noite (trad.George Schlesinger) São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Pantera no porão (trad. Milton Lando e Isa Mara Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 1999. O mesmo mar (trad. Milton Lando) São Paulo: Companhia das Letras, 2001.: Meu Michel (trad. Rifka Berezin et. alii). São Paulo: Summus, 1982. (trad. Milton Lando) São Paulo: Companhia das Letras, 2002. De amor e trevas (trad. Milton Lando). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. 263 para ele todas as coisas são plurais e multívocas. Sua obra autobiográfica De amor e trevas3 é um exemplo disso. Multifacetada e móvel, um caleidoscópio de lembranças recuperadas e imaginadas, misto de referencialidade e subjetividade, a obra retrata não um sujeito, mas vários, ou um autor multiforme, que se move sem cessar entre a “verdade” e a ficção, entre o passado e o presente, entre aquele que conta e o que é contado, substituindo o ponto final pelo texto necessariamente incompleto e aberto. De amor e trevas retoma a vida de Amós Oz da infância numa Jerusalém sob domínio britânico à sua transformação em escritor. De Jerusalém passa a viver no kibutz4 Hulda, onde permanece por muitos anos e ali adota seu pseudônimo literário. A casa em que cresceu, o peso do fracasso do pai e a ferida aberta da mãe, a obrigação de redimir a ambos transformando os fracassos deles em vitórias, os idiomas falados em Jerusalém e pelos pais e parentes, a personalidade complexa de cada um deles, as referências aos livros que leu e os que compunham a biblioteca dos pais, a mudança de rumo ocorrida a partir do suicídio da mãe, episódio que pontua o romance do começo ao fim, o nascimento de uma nação num mundo ainda banhado no sangue da Segunda Guerra Mundial, a multidão de refugiados, pioneiros, sobreviventes que a povoaram, os intelectuais mais próximos como o tio Yossef Klausner, o contato com o escritor Schai Agnon, os políticos e pais fundadores da nova nação, todos fluem diante dos olhos do leitor na construção de um grande painel histórico e humano. O romance termina com o suicídio da mãe de Amós Oz, aludido em diferentes partes, marcando o lugar de um aprendizado precoce a que o menino de doze anos se submete e a partir do qual esse menino terá que reinventar uma variedade de sentidos que justifiquem continuar vivendo. O núcleo irradiativo desse romance é a morte da mãe. Todo o relato se move em círculos ao redor dessa morte, modulando o foco em aproximações e distanciamentos de modo a capturar da história dos ascendentes do escritor à construção de um país, apresentados a partir de um ponto de vista. Quer dizer, é em torno de um nódulo subjetivo e afetivo que a memória pessoal e familiar dispara na construção dessa grande tela narrativa que é o romance. “Foi muito difícil para mim criar essa estrutura. Como fazer as modulações entre uma conversa com ben Gurion, as fantasias e histórias de minha mãe, a vida em Israel há 90 anos, a cultura do kibutz e minha vida atual em Arad/.../? Como 3. De amor e trevas, op. cit. 4. Kibutz (em port., comunidade): comunidade economicamente autônoma baseada no trabalho agrícola e agroindustrial, parte importante do projeto político-ideológico da fundação do Estado de Israel. 264 Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz orquestrar tudo isso? Foi um enorme problema musical. As pessoas me perguntam se foi muito difícil fazer uma confissão. Confessar não é nada ao lado de criar uma estrutura e a combinação artística capaz de harmonizar todas essas coisas.”5 Pantera no porão6 também pode ser lido como uma evocação autobiográfica. Narrado retrospectivamente pelo protagonista já adulto, décadas depois dos eventos apresentados, o romance focaliza Jerusalém, no verão de 1947, ainda sob o mandato britânico, um ano antes da criação do Estado de Israel. O protagonista de 12 anos por acaso faz amizade com um militar britânico tímido e bonachão, um admirador da tradição judaica, que conversa com o garoto num hebraico bíblico. Enquanto o menino pensa estar extraindo do inimigo importantes segredos militares, é acusado por seus amigos de traidor. Mas conversar com o invasor é traição? É traição enganar o inimigo por meio de uma falsa amizade? Essa amizade era falsa ou verdadeira? Décadas depois, o menino torna-se escritor e continua obcecado pelo sentido das palavras. Quem trai quem quando se aproxima do inimigo? O interesse pelo opositor inglês em 1947 será substituído pelo árabe, que marca presença nos textos literários de Amós Oz e também nos textos políticos. Numa prosa que equilibra o lirismo e a reflexão, a política e a metafísica, o escritor transfere para a esfera íntima aspectos da história israelense ressaltando o conflito com os palestinos, questão reprimida na geração dos escritores contemporâneos à formação do Estado. Fazer que idéias ou ideologias ganhem vida, esse vem sendo o propósito de Amós Oz, ficcionista e militante político da esquerda israelense, ligado ao movimento pacifista Shalom Ahshav (Paz Agora). A partir da década de 70, Oz assume uma atitude crítica apontando na imprensa escrita e televisiva sua posição a propósito dos rumos políticos do país. O homem político transparece na ficção de forma engenhosa, conforme veremos em alguns textos, principalmente em Meu Michel e, mais especificamente, em A Caixa Preta. Desde o início de sua carreira de escritor, é possível observar algumas chaves que podem ser usadas até hoje para interpretar a narrativa de Amós Oz. No conto “O nômade e a serpente”7 e no romance Meu Michel 8, por exemplo, a fábula não é o mais importante, mas serve para pôr em relevo o sentimento ambivalente 5. (http://www.pazagora.org/detailartigo cfm?/dArtigo+292) 6. Pantera no porão, op.cit. 7. Incluído na coletânea Nas Terras do Chacal, que reúne contos escritos entre 1962-1965. Publicada em Ramat Gan, pela Editora Massada, em 1965. Os contos foram reescritos pelo autor posteriormente e publicados pela Editora Am Oved, em 1976. Existe tradução do conto para o português, In: O Novo Conto Israelense (coord. seleção, orientação das trad. Rifka Berezin). S.P.: Ed.Símbolo, 1978. 8. Meu Michel , op. cit. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008 265 de atração-repulsão que percorrerá a obra do autor. A atração de Gueula pelo repugnante nômade no conto “O nômade e a serpente”, ou a de Hana pelos gêmeos palestinos em Meu Michel servem ao autor para expressar traços profundos em perpétua luta. O mundo escuro e selvagem, os instintos eróticos e letais são ameaçadores mas atraem mais que a fachada da vida tranqüila e luminosa da sociedade bem constituída, que se apresenta como tranqüilizadora, mas menos atraente que o subsolo misterioso e sombrio representado por elementos hostis, levando as personagens a se debaterem entre esses dois mundos contraditórios, que não recebem, na pena do autor, qualificativos morais. É interessante observar a presença da minoria árabe nesses dois textos de Amós Oz, presença reprimida na primeira geração da literatura israelense. No conto, o autor apresenta o ponto de vista de uma maioria israelense distanciada da minoria árabe, embora haja alguns gestos indecisos no sentido de atribuir-lhe certa autonomia. Entretanto, o narrador confessa ser incapaz de entender os caminhos da minoria. Por outro lado, esse mesmo narrador apresenta-se como cúmplice do ato de vingança contra os nômades, apesar da incerteza em relação à identidade dos ladrões que estariam surrupiando objetos de menor monta no kibutz. A posição do narrador é incerta, oscilante, e, enquanto isso, maioria e minoria entram num jogo de medição de forças, cujas fronteiras aparecem ora relevadas, ora apagadas. Não se pode esquecer que o processo de construção do estado-nação israelense envolveu uma luta conduzida em termos de maioria e minoria nacionais. A presença de uma minoria nacional em um Estado não é apenas um problema quantitativo, mas tem implicações qualitativas nas esferas econômica e social. Sem dizer que um estadonação baseia-se na homogeneização formadora de um “nós”, que exclui os que são “eles”. O conto de Oz problematiza o papel dialético da minoria na fundação do Estado, tensionando a comunidade kibutziana e os beduínos que foram “trazidos pela fome”, em sua busca de sustento. Indo além das noções de distinção sexual ou étnica, o retrato apresentado no conto representa a diversidade da minoria em termos de interesses concretos que podem chocar-se com aqueles da maioria. Nesse embate, há duas possibilidades: ou o Estado de Israel é um estado judaico e exerce um poder soberano que lhe permite ignorar e desconhecer o modo de vida e os motivos da minoria, ou é um estado de maioria judaica e, nesse sentido, deverá explorar de modo ativo as possibilidades que lhe advêm em virtude de sua situação de maioria. O conto aponta para uma ambigüidade em relação à decisão entre essas possibilidades. Por isso, o narrador titubeia, a polícia é ambivalente em relação à “ocupação” dos nômades, a personagem feminina mal-entende o que lhe acontece, os nômades têm um comportamento dúbio em relação aos israelenses. Nada é claro, porque há uma situação de fundo básica que não se resolve. Quando 266 Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz Gueula, no final da narrativa, deixa o nômade e encontra-se sozinha, ela olha os aviões militares no céu, mas seu olhar, diz o texto, “é relutante”. As luzes cintilantes dos aviões e as batidas dos tambores árabes se justapõem e entrelaçam, tornando indistinto os símbolos da maioria e da minoria. Extasiada, Gueula não percebe que seu corpo está bloqueando um buraco onde há uma víbora, por isso, termina mordida e morre. A cobra não se deixa intimidar pelas luzes do avião, e mesmo os símbolos mais poderosos de soberania não a impedem de matar a moça que despertou sua raiva, uma raiva que, segundo o texto, “não é arbitrária”. Enquanto a víbora olha sem piscar, Gueula está de olhos fechados. Assim, o simbolismo fálico da serpente ligado ao nômade traz para o seu clímax uma história de cegueira política repleta de implicações. Em 1968, Amós Oz publica Meu Michel, onde deixa de lado o kibutz, que retomará posteriormente, para se deter na história de Hana, uma jovem casada, que vive uma existência dividida entre a realidade de um casamento cinzento e prosaico e um desejo de auto-realização através de situações oníricas onde os protagonistas são dois gêmeos palestinos, amigos de infância, que depois da guerra de 1948 ficaram do outro lado. O narrador personagem – a mesma Hana – conta a história de tal modo que se produz uma disparidade entre os acontecimentos tais como são contados pelo narrador e como são entendidos pelo leitor. Alguns críticos comparam a narradora/ protagonista com a do conto de Agnon - Bidmei Iameiha (“Na Flor da Idade”)9 - e consideram ambas fideindignas como narradoras, mas há uma distinção entre ambas: Hana Goren vive num mundo de fantasias e desilusões marcadas por um isolamento infantil e por um desejo de violência masoquista. Tirza Mazal, do conto de Agnon, vive inocentemente inadvertida das terríveis implicações dos fatos que relata e das opções que realiza. O romance Meu Michel foi exaustivamente estudado pela crítica israelense porque nele se encontram já as contradições que serão um leitmotiv da obra posterior de Amós Oz. Encontra-se ainda o forte pendor ideológico e político entretecido com a literatura distendida entre a teoria e a experiência. Nele, há uma aparente oposição entre, de um lado, a sociedade israelense representada como uma sociedade distorcida que transformou as relações humanas numa espécie de contrato de compra e venda, que converte o amor em um jogo de poder e posse e as relações familiares em pura alienação, e, de outro lado, a mulher, que vive alienada nessa sociedade, refugia-se no mundo onírico, onde pode virtualmente se realizar com os heróis sonhados. 9. In Sch. I. Agnon, Contos de amor (Rifka Berezin: seleção e tradução). São Paulo: Perspectiva, 1996. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008 267 Entretanto, uma análise mais detida da protagonista mostra que ela construiu seu mundo de fantasia de acordo com a escala de valores que rege o mundo “real”, e deixa-se conduzir segundo as normas sociais interiorizadas, que transparecem até mesmo em seus sonhos. O tema principal desses sonhos é o anseio por um amor absoluto e ideal. Observando, entretanto, a performance da protagonista na relação com as demais personagens, nota-se que suas declarações de amor não se confirmam, antes se contradizem: ela fala de amor, mas pratica a dominação, e o amor aparece identificado, assim, com o poder, inclusive sua relação com os gêmeos árabes mostra-se desigual e dominadora. Assim, a aparente oposição entre sociedade e personagem pode ser vista, em verdade, como uma construção analógica entre duas esferas que distorcem igualmente valores e sentimentos. Acompanhando o curso da analogia, as relações que a protagonista estabelece com os demais, tanto em sonho como em realidade, guardam um certo paralelismo com o contexto nacional. Hana se revolta contra algumas normas sociais e contra os heróis socialmente aceitáveis da Palmach10, guerreiros fortes que dominam territórios do mesmo modo que dominam as mulheres. A idéia de conquista que ela conscientemente repudia – e esse é um dos fortes motivos que a faz escolher Michel como marido – atua sobre ela mesma tanto em sonho como na prática cotidiana. O aspecto nacional desse paralelismo entre mundo privado e social aparece quando a crise pessoal de Hana coincide com a crise nacional da Guerra do Sinai (1956). Esses paralelos implicam uma nova distorsão: a inversão de um valor (amor para Hana, redenção messiânica e sonho de um Terceiro Templo para muitos que a rodeiam) em seu oposto (poder e conquista para ela, guerra, ódio e vingança para os outros). Os paralelos entre as duas crises aparecem no texto no âmbito da linguagem. Usam-se as mesmas palavras em relação aos dois acontecimentos, e, do ponto de vista da trama, o povo de Israel volta a seu cenário histórico-nacional, enquanto Hana volta em sonho para sua infância. O mesmo se pode dizer com relação à ruptura entre a aborrecida (para ela) vida cotidiana da mulher (compra de apartamento, casamento, nascimento do filho, etc.) e seus gloriosos sonhos não só com relação aos gêmeos árabes, mas também com relação ao mundo ilustrado dos maskilim11, que são para ela lutadores que se rebelaram em seu tempo contra a realidade. Esses e outros paralelos são técnicas empregadas por Amós Oz para derrubar os sonhos megalômanos nacionais à luz de certa ironia. A alienação onírica da protagonista seria parte do sonho distorcido de toda a sociedade. 10. Força de defesa instituída em 19/03/1941, na Palestina. 11. Os ilustrados, os judeus que aderem à Haskalá, o Iluminismo judaico. 268 Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz Em A Caixa Preta12, o autor conduz com perfeito domínio o destino das personagens e as motivações políticas da sociedade israelense, construindo as duas partes sincronicamente, como dobradiças em que o duplo movimento agiliza a função. O romance é composto de correspondências: 51 cartas e 56 telegramas que as personagens trocam entre si. Trata-se, pois, de um romance epistolar, gênero que desfrutou de enorme prestígio no século XVIII — Werther, de Goethe, e Ligações Perigosas, de Laclos, são exemplos de romances epistolares. Nele, como numa peça de teatro, o narrador se oculta em benefício de suas personagens que ganham o primeiro plano. A drástica redução da mediação narrativa dá ao romance epistolar uma temporalidade essencialmente dramática. Contrariamente à literatura memorialista, por exemplo, que costuma jogar com a distância entre o presente do narrador e o passado remoto da história, o romance epistolar tende a identificar os dois planos. Os missivistas ficam mergulhados na opacidade do presente e desconhecem qualquer futuro, pois contam a história ao mesmo tempo em que vivem os acontecimentos. Nas Reflexões sobre as Cartas Persas, Montesquieu atribui o sucesso do romance epistolar ao fato de ele suprimir as distâncias e mergulhar o leitor nas paixões das personagens, fazendo-o experimentar diante desse tipo de romance uma tensão semelhante à do espectador teatral. É também como o espectador de teatro que o leitor tem de montar, a partir das cartas, a fábula do romance, seu enredo. Mas por que teria Amós Oz escolhido essa forma para este romance? A resposta que privilegia um nível interpretativo é a que indica que o autor quis dar voz a diferentes segmentos da sociedade israelense (romance polifônico), porque ao mesmo tempo em que as personagens se constroem na e através da escrita, elas compõem algum segmento social e político da vida social e política do país. Em linhas gerais, o romance apresenta um embate ideológico, quando mostra a desestruturação de uma família ashkenazita13 bem estabelecida, que acaba acolhendo um membro da comunidade judaica oriental, o que acelera o sepultamento de uma era cujo tempo de glória e de superioridade acabou. Michael Sommo, além de oriental, é de convicção religiosa e idéias de direita com relação ao “Grande Israel”, e vem, no romance, substituir e desbancar a figura todo-poderosa de outro protagonista, o intelectual bem-sucedido Alexander 12. A Caixa Preta, op.cit. 13. Ashkenazita:adjetivo que marca a origem dos judeus de países europeus setentrionais, em especial da Alemanha (que em hebraico se diz Ashkenaz), mas também da Rússia e outros países da Europa oriental. Falante do ídish. Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008 269 Guideon, que, além de tudo, é simpatizante da esquerda política israelense. Este serviu o exército e tornou-se um pensador de esquerda destacado, alcançou um reconhecimento internacional, porém deslocou-se para o exterior, abandonando Israel nas mãos da direita, representada no texto por Michael Sommo. A trama do romance se passa em 1976, antes, portanto, da virada política de 1977, quando a direita ganhou o poder, tomando-o do partido trabalhista que era apoiado pela elite ashkenazita. O romance, assim, anuncia um desfecho que acontecerá nas décadas de 80 e 90, quando o período heróico dos sabras14 de origem européia começou a se esgotar, e os pioneiros que sonharam em criar uma sociedade laica e pluralista tiveram que enfrentar a frustração. A caixa preta de um avião dá pistas para se desvendar o motivo de um acidente. Mas o romance é uma cartola de mágico que dá a ver, na superfície, uma rede de relações conflitivas que atam uma família integrada por Alexander Guideon, um importante intelectual, Ilana, sua ex-mulher, Boaz, o filho de ambos, criado durante sete anos como bastardo, e o novo marido de Ilana, Michael Sommo. Sob essa trama corre outra subterrânea, representando os conflitos correspondentes em nível sociopolítico. As relações entre Sommo e Alex são representativas das relações étnicas entre ashkenazitas e orientais, esquerda e direita em Israel. A esquerda mostra-se em baixa, e em seu lugar surge uma força nova, a força do judaísmo mediterrâneo, que acredita no “Grande Israel” e que está se preparando para substituir o Israel anterior. A partir da primeira carta de Ilana a seu ex-marido Alex, entra em cena um jogo de paixões que cresce com o desenrolar do texto (marido e mulher, embora separados, são extremamente apaixonados um pelo outro) entremeado com relações de poder, que vêm marcadas pela circulação do dinheiro. Paixão e dinheiro, entretanto, não caminham no mesmo fluxo. O dinheiro flui de Alex para Sommo, Boaz e para o advogado Zakheim, podendo tanto corromper como construir. Já as paixões exacerbadas que desencadearam a quebra dos laços familiares terão o fôlego necessário para reconstruí-los, embora deslocados para outro lugar e em outra condição, isto é, os protagonistas da paixão terão que se submeter ao dado da realidade (doença e morte) e aceitar a mudança de sua posição. De qualquer forma, a linguagem circula e carreia o dinheiro e a paixão. Assim, lentamente, Sommo, o humilde professor de francês, começa a transformar-se, ao perceber a possibilidade de começar a receber uma ajuda financeira do ex-marido de sua esposa. O dinheiro o corrompe, pois ele abandona sua carreira de professor e 14. Sabras: são assim chamados os nascidos no Estado de Israel. 270 Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz usa o dinheiro de Alex para reformar sua casa, sua vida. Ingressa num movimento de direita nacionalista militante, e passa a dedicar-se à compra de terras nos territórios ocupados, planejando levar a família para viver no bairro judaico na cidade velha de Jerusalém. Fundamentalista, acredita num futuro novo inspirado no passado. Sua fala é formal e permeada de citações bíblicas que vão se tornando cada vez mais freqüentes na medida em que o romance evolui e sua adesão ao nacionalismo se acentua. Seu empenho é o de impor a posição que defende aos que o rodeiam. Assim, Boaz teria que se educar em Kiriat Arba e Ilana, teria que reeducar-se. Ambos, porém, escaparão da órbita de sua influência. A transformação de Sommo se faz, segundo lhe parece, em nome do sionismo. Comprar terras, casas em Hebron, reconstruir as antigas sinagogas, numa cidade que já fora a sede do reinado do rei Davi, são parâmetros ideológicos que têm na mira a reconstrução de um mapa antigo da terra de Sion. E impor a Halahá, a lei religiosa judaica, a todos os cidadãos de Israel, sem se importar com a concepção ideológica e religiosa de cada um, é a forma que ele privilegia para redimir o presente israelense e plantar a salvação futura, preparando a vinda do Messias. Sommo expressa a frustração que sente por não fazer parte da sociedade constitutiva da empreitada sionista, ele, um novo imigrante, um imigrante oriental, de estatura menor que os judeus europeus, dá vazão a sua frustração na atividade política, opondo-se fortemente aos árabes. Assimetrias intra-étnicas e interétnicas se cruzam, e cabe ao mais fraco a obrigação de respeitar a força e o poder de quem os tem em mãos. Alex é seu antípoda tanto no aspecto físico, como na origem, no trabalho, na ideologia. Filho de um pioneiro imigrante da Europa oriental convulsionada pelo anti-semitismo, seu pai, movido pelo sonho sionista secular, vai para a Palestina e rompe os laços com a tradição e com o judaísmo normativo, para ajudar a construir uma nação moderna. Esse pai projeta para seu filho nascido na Palestina um futuro heróico, ele seria o sabra alto, destemido e forte, orgulhoso de seu país, o oposto do judeu diaspórico oprimido. Criado para sentir ódio, para defender-se, Alex tornou-se um comandante perdido e solitário e é no exército que conhece a que será sua mulher, Ilana. Um casamento complicado feito de jogos eróticos perigosos e o adultério da mulher separam o casal litigiosamente, deixando mãe e filho sem dinheiro, enquanto o pai amealhava uma fortuna. É essa fortuna que ele irá transferir durante o romance, num momento em que sua carreira de escritor e intelectual está no topo, mas sua saúde se vê prejudicada por um câncer irreversível. É curioso observar que o tema da pesquisa de Alex é o fundamentalismo religioso, visto como uma bomba que implodirá a sociedade israelense e as nações que o albergam, conforme se pode ler numa crítica a seu livro estampada na Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008 271 imprensa mundial: “... a obra despeja uma pesada sombra sobre a psicopatologia de várias fés e ideologias desde a Idade Média até nossos dias” (p.75). Ou: “...seu livro expõe a fé como fonte de imoralidade” (p.76). À beira do desespero, Ilana casa-se com Sommo que lhe oferece uma nova oportunidade de reconstrução da vida familiar. Casar-se com Ilana, ashkenazita alta e bonita, representou uma vitória para Sommo. Ele a salva da auto-destruição quando Alex a abandona, enquanto isso sua auto-imagem cresce. No início, a mulher o admira, mas em seguida fica perplexa com a velocidade com a qual Sommo se deixa corromper pelo dinheiro de Alex. Ainda que o dinheiro seja utilizado para o que ele chama de “o bem da nação”. No final, Ilana abandona-o para ir cuidar de Alex, prestes a morrer. Mas este ato é interpretado por Sommo como um castigo, pelo fato de ele, Michel Sommo, ter quebrado uma norma social e ter casado com alguém acima de sua condição e de fora de sua comunidade étnica. Ironicamente, o herdeiro material de Alex será Sommo, o fanático destruidor de um presente tido como corrompido, cujo objetivo é o de criar uma sociedade inspirada no passado bíblico glorioso, segundo a ideologia que o aproxima do movimento nacionalista Gush Emunim e do partido ultra-nacionalista Kach. No final do romance, Sommo compõe a imagem estereotipada do judeu oriental. E Alex, por sua vez, sabe, no final de sua vida, que o dinheiro herdado de seu pai e que pertencera à geração dos pioneiros destina-se à compra de terras nos territórios além da linha verde, mas, assim mesmo, nomeia Sommo seu herdeiro. Há uma passividade e uma inoperância que talvez o autor coloque nos movimentos pacifistas e nos movimentos de esquerda que silenciaram diante do avanço nacionalista. Assim, Sommo transforma-se numa nova figura que não hesita em tomar o dinheiro do “opressor” ashkenazita e, graças a ele, transforma-se num homem moderno, com poder de decisão no novo cenário político israelense. Já Boaz, o filho de Alex e Ilana, não tem preparo para, nem vontade de continuar a empreitada sionista, embora a certa altura do romance se diga sionista. Sonhador e idealista, sua participação no romance instaura uma quebra entre a ideologia sionista e uma prática amorosa de se enraizar no território que fora desbravado pelos pioneiros, como é o caso de seu avô, sem nenhuma nostalgia do passado grandioso do Israel bíblico. Seu tempo é o presente, e seu propósito, o de redimir a terra, com o trabalho de suas próprias mãos. Que cada um faça algo de construtivo, este é o seu lema. Sua posição com relação aos árabes é a de que têm o direito de viver em sua terra, caso contrário, os judeus acabarão com os árabes e estes com os judeus, sobrando apenas escombros da Bíblia e do Alcorão, chacais e ruínas de um passado glorioso. 272 Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz Não é por acaso que ele estabelece em Zihron Yacov, cidade fundada no início da colonização judaica da Palestina na era moderna, longe do fanatismo de Jerusalém e do consumismo cosmopolita de Tel Aviv, uma comunidade ligada à terra e inspirada num estilo de vida primitivo, contrastando com o luxo e a modernidade perseguidos por Sommo, e ao alcance natural de seu pai, Alex. Em carta de Ilana a Boaz, ela reconhece e verbaliza: “Você é melhor que todos nós”; reconhecimento partilhado pelo pai: “Essa árvore está crescendo longe das maçãs podres”. Também para Boaz reflui o dinheiro de Alex, mas ele, no caso, não corrompe porque não é usado como valor de troca, nem como mediação de poder. O jovem trata os que o cercam como iguais, sua comunidade apresenta uma organização horizontal, e ninguém exerce autoridade sobre o outro. Cada um tem autonomia para fazer o que quer, no hora que quer, ligando-se todos pelo empenho comum de uma construção coletiva. É essa organização, onde há lugar para todos, até mesmo para Sommo, a matriz que ditará a forma deste romance de Amós Oz. Essa é a microcomunidade imaginada como modelo ideal da nação: concede voz a todos, a todas as representações de forças políticas de Israel, mesmo aquelas com as quais o autor não concorda. É sobre esse modelo que se estrutura o romance polifônico de Amós Oz. A partir dessa construção, ele mostra a singularidade de uma comunidade que, com todos os defeitos, conseguiu moldar uma sociedade singular. Talvez Sommo e Boaz tenham que disputar algum dia a liderança do país, mas o romance, com certeza, torce pelo segundo. Num romance epistolar, a caraterização das personagens se faz pela linguagem, por aquilo que elas dizem e como dizem. O tom protocolar e feito de citações religiosas de Sommo; a linguagem pausada e pontuada de erros de quem não freqüenta nem freqüentou a escola de Boaz; a escrita franca e um pouco kitsch de Ilana; o texto cortante, inteligente e irônico de Alex; os relatórios “objetivos” e pragmáticos dos advogados; a linguagem sucinta e decidida dos telegramas, cada um dos discursos figura um ethos, aponta para uma direção e compõe uma “cara”. É a diversidade de vozes justapostas que remete à multiplicidade de caracteres. E como a história vai-se tecendo na medida em que cada carta é escrita com a autoridade que lhe atribui o missivista, ela pode ser e é contraditada pelo destinatário, que desconstrói a história anterior para reconstruí-la de seu ponto de vista em novo patamar. A história passional vivida por Ilana e Alex é construída duplamente. Os motivos que levaram ao casamento, ao adultério da mulher, ao desencontro do casal, vão se montando e desmontando, qual areia movediça, pelo homem e pela mulher, deixando o leitor perplexo diante da impossibilidade de refazer a história Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008 273 num percurso linear. A única certeza que fica é a de que se trata de uma história de amor e paixão nada banal, vivida por duas personagens complexas que, apesar dos impedimentos da vida, não se separam de fato, embora se distanciem e a estrutura familiar se desfaça. Se é a pele que sanciona a integridade dos corpos limitando-os como invólucro, ela explicita uma dinâmica entre superfície e profundidade, ao aceitar e acompanhar, ao mesmo tempo, relevos e depressões. Assim também o corpo da linguagem, no caso deste romance, delimitado pelos múltiplos estilos, múltiplos emissores, deixase atravessar pela paixão, que traz a reboque a ideologia. Essa construção não se deixa capturar em partes excludentes, isto é, a ideologia sem a paixão, a paixão sem a ideologia, o que é um trunfo em termos de seu resultado final. Buscando a estrutura multivocal, onde as vozes contracenam sem submeter-se ao comando de um único desígnio, o homem político, que é a contraface do escritor, também busca um olhar equânime em relação ao conflito israelense-palestino. “Israelenses e palestinos vão chegar a um acordo tristemente pragmático: haverá um estado da Palestina ao lado do de Israel; sem lua-de-mel nem história de amor, mas viveremos como vizinhos civilizados. Não sei quando isso virá, mas posso prometer, em nome de israelenses e palestinos, que se a Europa demorou mais de mil anos para acabar com as guerras e criar a Comunidade Européia, nós o faremos mais depressa e derramaremos menos sangue. Tenham um pouco de paciência e abdiquem da atitude de condenação, indignação, ou paternalismo... Não nos digam que somos terríveis. Tentem ajudar. Dêem às duas partes toda a empatia que puderem. Isso é o que faço em meu livro, não julgo quem era bom e quem era mau entre meu pai e minha mãe. Escrevo sobre os dois, com toda a empatia de que sou capaz.”15 15. Cf. http://www.pazagora.org/detailartigocfm?/dArtigo=292 274 Berta Waldman - Faces e Contrafaces: alguns aspectos da Obra de Amós Oz Bibliografia: AGNON, Sch. I., Contos de amor (Rifka Berezin: seleção e tradução). São Paulo: Perspectiva, 1996. BEREZIN, Rifka, (coord., seleção, orientação das trad.). O Novo conto Israelense. São Paulo: Editora Símbolo, 1978. OZ, Amós, Conhecer uma mulher (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1992. A Caixa Preta (trad. Nancy Rozenchan). São Paulo: Companhia das Letras, 1993. Fima (trad. George Schlesinger). São Paulo: Companhia das Letras, 1996. Não diga noite (trad. George Schlesinger). São Paulo: Compainha das Letras, 1997. Pantera no porão (trad. Milton Lando e Isa Mara Lando). São Paulo: Compainha das Letras, 1999. O mesmo mar (trad. Milton Lando). São Paulo: Compainha das Letras, 2001. Meu Michel (trad. Rifka Berezin et alii). São Paulo: Summus, 1982. Meu Michel (trad. Milton Lando). São Paulo: Compainha das Letras, 2002. De amor e trevas (trad. Milton Lando). São Paulo: Compainha das Letras, 2005. De repente nas profundezas do bosque (trad. Tova Sender). São Paulo: Compainha das Letras, 2007. WALDMAN, Berta, Linhas de Força: escritos sobre literatura hebraica. São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 20-04.w Revista de Estudos Orientais n. 6, pp. 263-275 - 2008 275 Título Editoração Eletrônica Formato Tipologia Papel de Miolo Papel de Capa Número de Páginas Fotolito, impressão e acabamento Revista de Estudos Orientais n. 6 Opus Print Editora 16 x 22 cm Times New Roman Pólen soft 80 g/m2 Cartão Supremo 250 g/m2 280 ???? ????
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