Julho – Setembro/2015
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Julho – Setembro/2015
ARTIGO ORIGINAL A implementação do programa de distribuição de fórmula infantil para crianças nascidas de mães HIV positivas no Município de Porto Alegre/RS Implementation of the infant formula distribution program for children born to HIV-positive mothers in Porto Alegre, RS Ana Paula Pontes Aires1, Dolores Sanches Wunsch2, Vera Lúcia Bosa3 RESUMO Introdução: A transmissão vertical representou, em 2012, dentre os expostos ao HIV com menos de treze anos de idade, 99,6% dos casos identificados. Para enfrentar este crescimento, programas voltados a enfrentar o aumento da transmissão vertical vêm sendo desenvolvidos no âmbito do Sistema Único de Saúde. Este artigo objetiva investigar o fluxo do programa de distribuição de fórmula infantil para crianças de zero a seis meses de vida, nascidas de mães HIV positivas, na cidade de Porto Alegre/RS, para a identificação dos fluxos de acesso ao programa e sua eficácia. Métodos: O presente estudo é de natureza qualitativa e de caráter exploratório acerca do tema. Resultados: Três das cinco maternidades que fazem parte do Projeto Nascer têm seus dados de dispensação da fórmula infantil contabilizados pela Secretaria Municipal. Constatou-se que o processo está bem implementado e não faltam insumos e fórmula para este grupo da população. Na Atenção Básica, pode-se verificar que, em geral, a retirada se dá de forma sistemática, não há dificuldades por parte dos profissionais em atender a essa demanda no serviço. Conclusão: Necessita-se de mais estudos em relação ao tema, principalmente nas demais regiões do país, bem como nos municípios do interior, para que se possa traçar um perfil da implementação da distribuição em todo o Brasil. Tornam-se indispensáveis, por outro lado, estudos que possam evidenciar os demais aspectos que impactam na vida das crianças e suas famílias. UNITERMOS: HIV, Fórmulas Infantis, Criança. ABSTRACT Introduction: In 2012, vertical transmission accounted, among those exposed to HIV under thirteen years of age, for 99.6% of the identified cases. To meet this growth, programs aimed at facing the increase of vertical transmission have been developed within the National Health System. This paper aims to investigate the flow of the infant formula distribution program for children from birth to 6 months of life, born to HIV-positive mothers in the city of Porto Alegre, RS, to identify access flows to the program and its effectiveness. Methods: This is a qualitative study of exploratory nature. Results: Three of the five hospitals that are part of Project Nascer have their data of infant formula dispensation accounted for by the municipal department. The process was found to be well implemented and inputs and formula abound for this population group. In Primary Care, it can be seen that, in general, delivery takes place systematically, there is no difficulty for professionals to meet this demand in the service. Conclusion: Further studies on the subject should be conducted, especially in other regions of Brazil, as well as in countryside municipalities, so that a profile of the distribution implementation across the country can be traced. However, studies highlighting other aspects that impact the lives of children and their families are crucial. KEYWORDS: HIV, Infant Formula, Child. 1 2 3 Nutricionista. Especialista em Saúde da Criança e do Adolescente. Doutora em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Assistente Social, Professora do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tutora da Residência Multiprofissional Integrada em Saúde – Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA/UFRGS). Nutricionista. Doutora em Saúde da Criança e do Adolescente. Professora do Departamento de Pediatria, curso de Nutrição da UFRGS. Tutora da Residência Multiprofissional Integrada em Saúde – HCPA/UFRGS. 160 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 160-168, jul.-set. 2015 A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA DE DISTRIBUIÇÃO DE FÓRMULA INFANTIL PARA CRIANÇAS NASCIDAS DE MÃES HIV POSITIVAS... Aires et al. INTRODUÇÃO No Brasil, como em muitos outros países, a epidemia da AIDS é complexa e dinâmica. Os primeiros casos notificados ocorreram na década de 1980. Desde então, tem sido caracterizada por extensas mudanças epidemiológicas ao longo do tempo e pela evolução de uma série de respostas políticas e sociais (1). No início da década de 1980, a AIDS teve como característica a predominância de casos entre homossexuais, tendo maior incidência nas regiões metropolitanas da região Sudeste do país. Já no final da década de 1980 e nos primeiros anos da década de 1990, teve surgimento a transmissão sanguínea e inclusão dos usuários de drogas, iniciando-se o processo de juvenização, pauperização e interiorização da epidemia. Na terceira fase, a epidemia se caracterizou pelo aumento do número de casos entre mulheres, e a subcategoria de exposição heterossexual passou a ser a principal via de transmissão do HIV, acelerando a disseminação da epidemia para todo o território nacional, atingindo os municípios de pequeno porte (2). No Brasil, foram notificados 656.701 casos de AIDS desde 1980 até junho de 2012, com um total de 253.706 óbitos, até dezembro de 2011, em todas as faixas etárias. Neste período, ocorreram 17.539 casos em menores de cinco anos, e 4.435 em crianças entre cinco e nove anos. A taxa de detecção de casos de HIV em gestantes no Brasil em 2012 correspondeu a 2,4 casos por 1.000 nascidos vivos. A única região com uma taxa de detecção superior à média nacional foi a Região Sul, com 5,8 casos por 1.000 nascidos vivos (3). Desde 2002, houve um decréscimo importante dos casos de AIDS por transmissão vertical (TV), podendo ser consequência da criação do Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento (PHPN) pelo Ministério da Saúde em junho de 2000. Porém, nos últimos anos, verifica-se uma estabilização em patamares insatisfatórios, em torno de 500 casos/ano em menores de cinco anos de idade (3). Se considerarmos que as mulheres infectadas pelo HIV estão em idade fértil, tem-se o problema adicional da transmissão vertical, de mãe para filho, que representa a principal forma de disseminação desse vírus na população infantil. A maior parte dos casos de transmissão vertical do HIV, ou seja, cerca de 65% dos casos de transmissão acontece durante o trabalho de parto e no parto propriamente dito, e os 35% restantes ocorrem intraútero, principalmente nas últimas semanas de gestação (4), havendo ainda o risco adicional de transmissão pós-parto por meio do aleitamento materno. Em 2012, a transmissão vertical foi a forma de exposição ao HIV em 99,6% dos menores de 13 anos de idade. Em crianças abaixo de cinco anos, considera-se a TV responsável por aproximadamente 100% dos casos de AIDS. No Brasil, a taxa de incidência de AIDS em crianças menores de cinco anos de idade (por 100.000 habitantes) é considerada um proxy da taxa de transmissão vertical no país (3). Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 160-168, jul.-set. 2015 A taxa de incidência de AIDS em menores de cinco anos de idade está estável no Brasil, no patamar médio de 3,5 por 100.000 habitantes, mas há uma grande variação por unidade da federação e por região do país. Em 2012, foram notificados 475 casos de AIDS em menores de cinco anos de idade, sendo o maior número de casos em São Paulo (67), Rio Grande do Sul (59) e Rio de Janeiro (50) (3). A AIDS teve seu primeiro caso registrado em Porto Alegre no ano de 1983 e totaliza até o final de 2011 22.470 casos, sendo 96% em adultos e 4,11% em crianças. Excluindo-se os óbitos, há 14.100 pessoas vivendo com AIDS em Porto Alegre, e a estimativa de pessoas com HIV é de 28.187 pessoas (2% da população), considerando a taxa de infecção do HIV em gestantes ser de 2% no município. A razão de sexo que, em 1987, era de 13 casos em homens para cada mulher com AIDS, em 2012 está em 1,3 caso (4). O risco de transmissão do vírus pelo leite materno é elevado, entre sete e 22%, e se renova a cada exposição (5). Esse risco se eleva, sendo de aproximadamente 30%, quando a infecção da mãe ocorre durante o período de amamentação (6). Durante o aleitamento materno, a transmissão do vírus pode acontecer em qualquer fase, porém parece ser mais frequente nas primeiras semanas, podendo-se concluir pela literatura que quanto maior o tempo de aleitamento materno, maior é o risco de transmissão do HIV, mostrando que o risco é acumulativo (7). Para a discussão da transmissão vertical do HIV no país, é fundamental abordar a sua origem, bem como as estratégias de saúde adotadas ao longo do tempo para evitar a disseminação do vírus de mãe para filho, dando destaque para os programas voltados ao aleitamento de crianças expostas ao HIV. No decorrer desta introdução, a fim de elucidar melhor o tema serão abordados os seguintes tópicos: Políticas nacionais de Suplementação Alimentar e os Programas de Leite; Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento no Sistema Único de Saúde (SUS); Fórmula Infantil no Sistema Único de Saúde (SUS) para as crianças filhas de mães HIV positivo, tendo como recorte para discussão a implementação do programa de distribuição da fórmula infantil, o município de Porto Alegre/RS, para, desta forma, e a partir do ordenamento do SUS verificar os fluxos e desafios para acesso e atendimento desta população usuária. Segundo dados da literatura, desde o ano de 1972 já haviam sido instituídas no Brasil políticas de suplementação alimentar, de modo particular, programas de leite, com o objetivo de proporcionar alimentação mais adequada para crianças pertencentes a famílias de baixo poder aquisitivo ou com problemas nutricionais. Esses programas federais de suplementação alimentar eram dirigidos ao grupo materno-infantil, abrangendo as famílias de até dois salários mínimos mensais (8). Os principais grupos de programas voltados à redução da carência alimentar de mães e crianças brasileiras foram: o Programa de Suplementação Alimentar (PSA) do Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição – INAN, direcionado 161 A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA DE DISTRIBUIÇÃO DE FÓRMULA INFANTIL PARA CRIANÇAS NASCIDAS DE MÃES HIV POSITIVAS... Aires et al. a gestantes, nutrizes e crianças até 24 meses; o Programa de Complementação Alimentar (PCA) e Distribuição de Leite, dirigidos pela Legião Brasileira de Assistência – LBA, sendo destinado exclusivamente para crianças que apresentam sinais de desnutrição; o Programa Nacional de Leite para Crianças Carentes (PNLCC), desenvolvido pela Secretaria Especial de Habitação e Ação Comunitária – SEHAC, beneficiando famílias com crianças menores de sete anos, e o Programa de Distribuição de Alimentos a Crianças em Idade Pré-Escolar de 4 a 6 anos, patrocinado pela LBA e pela Fundação de Assistência ao Estudante – FAE (8). Destes, o mais conhecido foi o Programa Nacional do Leite, lançado em 1986 e extinto em 1989, beneficiando diariamente 7,6 milhões de crianças de famílias carentes (9). Na década de 1980, porém, já havia casos pediátricos de AIDS no Brasil, embora a categoria de exposição vertical correspondesse a 62,3% dos notificados neste período. Isso se deu em virtude do aumento do número de casos da infecção pelo HIV em mulheres em idade fértil, todavia, este modo de transmissão poderia ter sido evitado mediante precauções no pré-natal e parto (10). Nessa mesma década, apesar da ocorrência de crianças nascidas de mães portadoras de HIV/AIDS, não havia programas preventivos direcionados à assistência de gestantes portadoras de HIV, nem mesmo para a orientação da exclusão do aleitamento materno. Da mesma forma, não existiam programas de leite específicos para seus filhos, os quais significariam uma das alternativas para prevenir a ocorrência da infecção em crianças por meio da amamentação (1). Em 1993, foi instituído o Programa “Leite é Saúde” (PLS), voltado ao atendimento de desnutridos e gestantes em risco nutricional, cujos objetivos eram: reduzir a prevalência de desnutrição; reforçar a prestação de ações básicas de saúde e para implementação do Sistema Único de Saúde (SUS). O público-alvo eram crianças desnutridas, na faixa etária de seis a 23 meses de idade (1). Destaca-se que crianças nascidas sob o risco da infecção pelo HIV e para as quais o aleitamento materno é contraindicado não eram inclusas entre os beneficiados, pois os programas citados se destinavam apenas a combater a desnutrição infantil (1). Durante o desenvolvimento do PLS, o número de casos de AIDS entre crianças nascidas de mães soropositivas ao HIV atingiu níveis elevados e, em 1997, chegou a 90,2%. Um dos maiores avanços na prevenção da transmissão vertical do HIV foi o estudo conhecido como Protocolo 076, do Aids Clinical Trial Group – ACTG 076. O estudo demonstrou que nas gestantes que não amamentaram houve redução de aproximadamente 70% do risco da TV com o uso do tratamento antirretroviral na gestação, trabalho de parto e parto e também nos recém-nascidos que foram alimentados, exclusivamente, com fórmula infantil (12). A assistência à gestante no país foi, por muito tempo, orientada principalmente para melhorar os indicadores da saúde infantil. Deste modo, visando a conceitos de aten162 ção à saúde feminina, como a integralidade e a autonomia corporal, foi instituído em 1983, pelo Ministério da Saúde, o Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher – PAISM, onde se apresentava como um deslocamento do olhar na atenção à saúde da mulher, obrigando os serviços e gestores a pensarem de forma mais ampla sobre a questão (1,3). Porém, a não percepção da mulher como sujeito e o desconhecimento e desrespeito aos direitos reprodutivos seguiam constituindo o pano de fundo da assistência inadequada (1,3). Diante desse descaso, entra em cena o Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento, instituído pelo Ministério da Saúde, através da Portaria/GM nº 569, de 01/06/2000, baseado nas análises das necessidades de atenção específica à gestante, ao recém-nascido e à mulher no período pós-parto, e busca concentrar esforços no sentido de reduzir as altas taxas de morbi-mortalidade materna e perinatal, adotando medidas que assegurem a melhoria do acesso, da cobertura e da qualidade do acompanhamento pré-natal, bem como da assistência ao parto, puerpério e neonatal, ampliando as ações já adotadas pelo Ministério da Saúde na área de atenção à gestante. Dados preliminares relativos ao Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento (SISPRENATAL) e as estimativas do uso do AZT (azidotimidina) injetável (CN DST/AIDS), em âmbito nacional, demonstram que a cobertura da testagem para a infecção do HIV durante o pré-natal está abaixo de 40%, sendo ainda menor entre gestantes mais vulneráveis para a infecção pelo HIV, em decorrência de fatores como baixa adesão ao pré-natal e/ ou captação tardia (1,4). Considerando que a quase totalidade de casos de AIDS em menores de 13 anos de idade no Brasil tem como fonte de infecção a transmissão vertical do HIV e, sabendo que a probabilidade de transmissão vertical do HIV na ausência de qualquer procedimento profilático é de 25,5%, e que as intervenções profiláticas realizadas somente durante o parto e puerpério podem reduzir em cerca de 50% a probabilidade de transmissão vertical, faz-se necessário adotar medidas adicionais às já desenvolvidas para a qualificação da assistência à gestante no pré-natal, garantindo assim o diagnóstico do HIV à maioria das mulheres (3). Deste modo, a Portaria/GM nº 2104, de 19/11/2002, instituiu no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) o Projeto Nascer-Maternidades, que objetiva acompanhar a mulher gestante, a princípio, com o provimento de exames laboratoriais ou teste rápido para o diagnóstico precoce da infecção pelo HIV. Caso se confirmasse a soropositividade, era instituída a profilaxia com AZT, a partir da 14ª semana de gestação até o parto; realização de cesariana eletiva, com esquema de Zidovudina injetável no início do trabalho de parto até o clampeamento do cordão umbilical; o recém-nascido faz uso de solução oral de Zidovudina e não ocorre o aleitamento materno ou cruzado (1,4). Ainda em 2002, por meio da Portaria nº 2.313 do Ministério da Saúde, incentiva-se o uso da fórmula infantil para Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 160-168, jul.-set. 2015 A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA DE DISTRIBUIÇÃO DE FÓRMULA INFANTIL PARA CRIANÇAS NASCIDAS DE MÃES HIV POSITIVAS... Aires et al. crianças nascidas de mães portadoras do HIV. Conforme recomendado, a criança deve ser alimentada exclusivamente com a fórmula infantil até os seis meses de vida, e as mães devem ser orientadas quanto à obtenção da fórmula e ao preparo (1,4). Assim, a abordagem que se segue refere-se ao fluxo relativo à disponibilidade da fórmula infantil nas maternidades previamente identificadas pelo Ministério da Saúde e a continuidade da distribuição pelos demais serviços especializados. A fim de estabelecer as atividades previstas no Projeto Nascer-Maternidades, o Ministério da Saúde torna disponíveis às maternidades previamente identificadas, pelo período de seis meses, alguns insumos como: testes laboratoriais para detecção da infecção pelo HIV, testes para sífilis, antirretrovirais, inibidores de lactação e a fórmula infantil (1,4). Esses insumos são adquiridos pelo município segundo a estimativa do número de partos realizados nas maternidades, na prevalência do HIV, na cobertura de testagem anti-HIV por Unidade Federada e no número de maternidades identificadas e cadastradas pelos estados. A Coordenação Nacional DST/AIDS é responsável pela distribuição destes insumos às Coordenações Estaduais de DST/AIDS, e às maternidades identificadas (14). Quanto à fórmula infantil especificamente, em Portaria/GM nº 2104, de 19/11/2002, consta que deverá ser estabelecido pacto entre os gestores para definir a sistemática de aquisição do insumo e sua distribuição aos serviços de saúde. Ao nascer uma criança exposta ao HIV, esta já recebe duas a quatro latas da fórmula infantil no momento da alta hospitalar, depois se garante a distribuição de até 60 latas por criança até o sexto mês de vida, a ser feita pelo serviço especializado, onde a criança será encaminhada para acompanhamento, até ser definido o diagnóstico. Ressalta-se que a mãe deverá receber o “Guia Prático de Preparo de Alimentos” para crianças menores de doze meses que não podem ser amamentadas (14). Ao se analisar o programa de distribuição de fórmula infantil, deve-se também levar em consideração não somente a dinâmica de compra e distribuição, mas também os outros fatores que podem ou não interferir na eficácia do programa. É importante analisar as dificuldades vivenciadas pelos atores em seus diversos níveis, no âmbito dos municípios, ou seja, da Secretaria Municipal de Saúde, dos profissionais envolvidos e mães, além das possíveis consequências destas variáveis no desenvolvimento físico da criança atendida. As dificuldades de implementação de um programa, diversas vezes, não estão relacionadas a limitações financeiras ou à oferta do serviço em si. Na maioria das vezes, tornar essa prática eficiente esbarra em dificuldades entre a disponibilidade e o acesso, na crença da eficácia do mesmo, nas práticas educacionais da população e dos profissionais, na interação e na circulação de informações entre os atores das diversas áreas que compõem o programa, entre outros aspectos. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 160-168, jul.-set. 2015 Além disso, verifica-se escassez de estudos acerca deste tema, o que vem a corroborar com o pouco conhecimento sobre a implementação, do acesso e eficácia do programa nas diversas regiões do país. Diante do exposto, o presente estudo objetiva investigar o fluxo do programa de distribuição de fórmula infantil para crianças de zero a seis meses de vida, nascidas de mães HIV positivas, na cidade de Porto Alegre/RS, para a identificação dos fluxos de acesso ao programa e sua eficácia. MÉTODOS O presente estudo é de natureza qualitativa e de caráter exploratório acerca do tema. O percurso metodológico do processo investigativo foi composto pela revisão bibliográfica a partir da base de dados Medline e Lilacs do Sistema BIREME, com as seguintes categorias teóricas: aleitamento artificial, mães HIV positivo, transmissão vertical do HIV/AIDS, políticas públicas de saúde em HIV/AIDS. No segundo momento, tendo como referência os princípios organizativos do SUS, buscou-se identificar a implementação e os fluxos do programa de distribuição de fórmula infantil para crianças de zero a seis meses de vida, nascidas de gestantes soropositivas para o vírus HIV, na cidade de Porto Alegre/RS. Para tanto, realizou-se uma aproximação com os serviços envolvidos com o programa, tendo como referência os níveis de gestão e “execução” do mesmo, possibilitando, desta forma, a partir do ordenamento do Sistema Único de Saúde (SUS) demonstrar a configuração do programa em questão. Entrou-se em contato com a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre/RS, onde se identificou a Área Técnica de DST/AIDS e Hepatites Virais, responsável pelo Projeto Nascer-Maternidades no município, o que possibilitou identificar os fluxos no âmbito da rede pública de saúde de Porto Alegre/RS relativos à compra, estocagem e disponibilização da fórmula infantil para os filhos de mães HIV positivo, bem como as maternidades que fazem parte do projeto. Com o objetivo de complementar o fluxo, realizou-se uma aproximação com uma Unidade de Saúde da Família da gerência distrital leste-noroeste, que, segundo informação da Secretaria de Saúde, vem a ser um dos locais com maior dispensação de fórmula infantil no município. Este contato se deu no intuito de verificar como se dá o processo de retirada do insumo e informações relativas ao acompanhamento destas crianças pela Unidade de Saúde. Para fins metodológicos, as informações apresentadas neste trabalho, advindas dos serviços de saúde, podem ser publicizadas de acordo com a Lei nº 12.527, de 18/11/2011, que regula o acesso a informações públicas, conhecida como lei de transparência pública. O trabalho contou ainda com os dados disponíveis no portal da Secretaria Municipal de Porto Alegre relativos ao Plano Munici163 A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA DE DISTRIBUIÇÃO DE FÓRMULA INFANTIL PARA CRIANÇAS NASCIDAS DE MÃES HIV POSITIVAS... Aires et al. pal de Saúde de 2014-2017, Relatório Anual de Gestão de 2013 e Relatório de Gestão do 1º Quadrimestre de 2014. Por tratar-se de estudo exploratório com revisão bibliográfica e construção de fluxos relativos à implementação de um Programa de Saúde para HIV/AIDS, a implicação ética constitui-se no compromisso do pesquisador em apresentar publicamente os dados obtidos, contribuindo assim para a análise sobre a efetivação da política de saúde em HIV/AIDS no município de Porto Alegre/RS. RESULTADOS E DISCUSSÃO Para melhor entendimento acerca do fluxo de distribuição da fórmula infantil no município, faz-se necessário historiar brevemente a forma como o Sistema Único de Saúde (SUS) se estrutura dentro de seus princípios, bem como a sua organização hierárquica. A base para organização do Sistema Único de Saúde (SUS) no país são os princípios, que se dividem em princípios doutrinários: universalidade, equidade e integralidade; e princípios organizativos: regionalização e hierarquização, descentralização e participação da comunidade (15). O princípio da universalidade diz respeito ao acesso universal aos serviços de saúde, já a equidade fala da organização dos serviços de saúde para atender pessoas de risco e suas características individuais, trabalha com as iniquidades em saúde, favorecendo a acessibilidade do indivíduo (16). Porém, para a materialização da equidade, são fundamentais a regionalização e a hierarquização, onde temos os serviços organizados em redes, segundo níveis de complexidade tecnológica, localizados em áreas geográficas limitadas e com populações definidas. É um mecanismo de descentralização da administração e dos serviços, pois, com o aumento da cobertura dos serviços e uma eficiente inter-relação entre eles, teremos equidade, eficácia e eficiência, assegurando o acesso de toda a população a serviços eficazes, organizados conforme o nível de complexidade (16). Desse modo, entra em cena o princípio da integralidade, que, de acordo com a Lei 8080 (1990), é entendida como um conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema, onde, no plano sistêmico, pode ser trabalhada através da articulação das redes, dos diversos serviços em diferentes níveis de complexidade da atenção (16). Nesse âmbito, entra o princípio da descentralização, em que cada gestor passa a ter o seu papel mais bem definido na atenção à saúde do usuário. Através de uma gestão única em cada esfera de governo, o município passa a ser mais próximo e responsável pelas necessidades de saúde da sua população (16). Desta forma, o modelo de atenção à saúde, que se centra em níveis de complexidade dos serviços, deve ser estruturado pela atenção básica, principal porta de entrada no sistema, a qual deve ser a sua ordenadora (15). 164 A Atenção Básica caracteriza-se por um conjunto de ações de saúde, no âmbito individual e coletivo, que abrange a promoção e a proteção da saúde, a prevenção de agravos, o diagnóstico, o tratamento, a reabilitação, a redução de danos e a manutenção da saúde, com o objetivo de desenvolver uma atenção integral que impacte na situação de saúde e autonomia das pessoas e nos determinantes e condicionantes de saúde das coletividades (15). Utiliza tecnologias de cuidado complexas e variadas que devem auxiliar no manejo das demandas e necessidades de saúde de maior frequência e relevância em seu território, observando critérios de risco, vulnerabilidade, resiliência e o imperativo ético de que toda demanda, necessidade de saúde ou sofrimento deve ser acolhida (15). Os serviços e programas vinculados à atenção básica de saúde acabam ficando mais próximos da vida das pessoas, a qual se torna o contato preferencial dos usuários, a principal porta de entrada e o centro de comunicação da Rede de Atenção à Saúde, proporcionando acessibilidade, vínculo e continuidade do cuidado, trabalhando de forma a garantir a integralidade da atenção, da responsabilização, da humanização, da equidade e da participação social. Existem grupos populacionais que estão mais expostos a riscos na sua saúde. Isso é evidenciado pelos registros disponíveis de morbi-mortalidade, como, por exemplo, crianças com idade inferior a um ano, gestantes, idosos, trabalhadores urbanos e rurais sob certas condições de trabalho, etc. A exposição a riscos pode também ser vista e entendida em função de cada doença, como no caso da Tuberculose, Câncer, Hanseníase, Doenças cardiovasculares, HIV/AIDS e outras (17). Portanto, no planejamento da produção das ações de educação em saúde e de vigilância epidemiológica, vigilância sanitária, controle de vetores e atendimento ambulatorial e hospitalar, devem ser normalizados alguns procedimentos a serem dirigidos especialmente a situações de risco, com a finalidade de intensificar a promoção, proteção e recuperação da saúde (17). Diante do exposto, vem o conceito e prática dos programas de saúde, que são parte da produção geral das ações de saúde pelas instituições, unidades e profissionais da área. Como tal, os programas de Saúde são eficientes para a população-alvo, somente quando as normas nacionais e estaduais respeitam as condições sociais, epidemiológicas, institucionais e culturais existentes em nível regional ou microrregional, passando por adaptações e até recriações nestes níveis (17). Neste sentido, a seguir será discutido o fluxo de implementação do programa de distribuição de fórmula infantil no município de Porto Alegre/RS e os desafios para sua efetivação eficaz. O Projeto Nascer-Maternidades está vinculado à Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre, materializando-se na coordenação do projeto, a qual tem a responsabilidade de um profissional de realizar todas as ações inerentes ao funcionamento do projeto como um todo, fazendo a ponte entre o Estado e o Município e do Município com os Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 160-168, jul.-set. 2015 A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA DE DISTRIBUIÇÃO DE FÓRMULA INFANTIL PARA CRIANÇAS NASCIDAS DE MÃES HIV POSITIVAS... Aires et al. demais serviços que realizam o atendimento integral das crianças expostas ao HIV. Como já exposto anteriormente, no Brasil o Projeto Nascer-Maternidades, dentre seus objetivos, tem o de garantir e criar mecanismos para a disponibilização de fórmula infantil a todos os recém-nascidos expostos ao HIV, desde o seu nascimento até o sexto mês de idade, com vistas à promoção adequada de seu desenvolvimento pondero-estatural (18). No município de Porto Alegre, a fórmula infantil é disponibilizada até um ano de vida do recém-nascido, abrangendo desta forma um período maior de crescimento e desenvolvimento destas crianças, conseguindo ir além do mínimo preconizado na legislação. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre/RS, são distribuídas 10 latas de fórmula de 1º semestre e, em alguns casos, após criteriosa avaliação, são fornecidas 12 unidades mensais, dependendo da curva de crescimento e das necessidades nutricionais do recém-nascido. A partir do sétimo mês até os 12 meses, o número de latas decresce para 9 unidades de fórmula de 2º semestre, fórmula melhor indicada para as necessidades nutricionais da criança nessa faixa etária, pois do sétimo mês em diante são inseridos outros alimentos. Entretanto, a partir de uma aproximação realizada junto a uma Unidade de Saúde do Município de Porto Alegre, identificou-se que, em casos especiais, as crianças chegam a receber bem mais do que o preestabelecido, dependendo da necessidade de cada caso e de cada família. Há um modelo preestabelecido de fluxograma para distribuição da fórmula infantil, que demonstra o caminho até a chegada ao usuário (Figura 1). Porém, em Porto Alegre, de forma geral, o fluxo estabelecido ocorre da seguinte forma (Figura 2): nas materni- dades do município, as crianças recebem as primeiras quatro latas na alta hospitalar, dando seguimento da retirada na Unidade Básica de Saúde (UBS) ou Unidade de Saúde da Família (USF), na qual são referenciadas pela própria maternidade no âmbito da alta. Nos hospitais em que as maternidades recebem os insumos diretamente da Secretaria do Estado, sem passar pela Secretaria Municipal, os recém-nascidos retiram a fórmula até um ano de idade no próprio hospital e não na UBS ou USF de referência. O fluxograma anterior demonstra que em Porto Alegre/RS o fluxo para distribuição da fórmula é realizado de forma mais simples do que o preconizado, sem comprometer a organização hierárquica e regionalizada. Faz-se necessário ainda salientar que, desta maneira, a implementação do programa tende a ser mais eficaz à medida que os serviços envolvidos se articulam de modo a garantir o acesso e o acompanhamento integral dessas crianças pelos serviços aos quais elas estão vinculadas, podendo vir a garantir o estabelecido pelo SUS, quando se trata de universalidade, integralidade e equidade na atenção à saúde. Realidade esta que não é a mesma em todas as cidades brasileiras. Toma-se como exemplo cidades do interior do Ceará, onde estudo realizado com cuidadores de crianças expostas ao HIV mostrou que parece não existir normalização nas maternidades públicas para a doação de fórmula infantil, pois 20,6% das mães entrevistadas não receberam o produto quando da alta hospitalar. E quanto à continuidade da distribuição pelas Unidades de Saúde, essa distribuição não se mostrou efetiva nos serviços de saúde procurados pelas mães entrevistadas. Tal dado é indicativo de falta de estruturação dos serviços, o que pode dificultar a interação do binômio mãe-filho com o serviço, além de desfavorecer a ingestão de leite pelas crianças nos primeiros seis meses de vida, tornando-as vulneráveis a déficit alimentar (19). Fluxograma de distribuição da rede de Atenção Primária em Saúde – ATUAL Secretaria Estadual de Saúde Secretaria Municipal de Saúde Hospital Hospital Fluxograma de distribuição da rede de Atenção Primária em Saúde – MODELO Atenção primária Notifica a vigilância Maternidade Maternidade Acompanha o caso Usuário Unidade de Saúde (USF/UBS) Solicita para a gerência distrital Notificação Projeto Nascer Usuário Secretaria Municipal de Saúde Distribui, controla e presta contas Área técnica de DST/AIDS Figura 1 – Modelo de fluxograma de distribuição da fórmula infantil em Porto Alegre/RS. Figura 2 – Fluxograma atual de distribuição da fórmula infantil em Porto Alegre/RS Fonte: Secretaria Estadual de Saúde (SES). Fonte: Autor. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 160-168, jul.-set. 2015 165 A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA DE DISTRIBUIÇÃO DE FÓRMULA INFANTIL PARA CRIANÇAS NASCIDAS DE MÃES HIV POSITIVAS... Aires et al. Retomando a realidade de Porto Alegre/RS, como já mencionado anteriormente, a entrega dos insumos preconizados no Projeto Nascer-Maternidades, bem como a disponibilização das fórmulas infantis obedecem ao recomendado, e não faltam insumos (teste rápido, teste para sífilis, inibidor de lactação) nem fórmula para a população abrangida pelo Programa no município. Todavia, como se sabe, em muitos casos a doação do leite possibilita a utilização e divisão pelos demais membros da família, em decorrência da situação socioeconômica desfavorável em que vivem as famílias. Assim, a doação da fórmula infantil, uma estratégia para evitar a desnutrição da criança nascida de mãe soropositiva para o HIV, não necessariamente passa a ser exclusividade desta criança. As mães, principalmente aquelas que têm um número maior de filhos, compartilham o leite doado entre eles. Situação esta que acontece na maioria das Unidades de Saúde, mas que são, de certa forma, flexibilizadas pela grande disponibilidade de fórmulas no município. Como descrito anteriormente, as crianças cadastradas em cada Unidade são, em geral, acompanhadas periodicamente pelo serviço para monitorização de seu crescimento e desenvolvimento, podendo-se, assim, estabelecer um parâmetro indireto da eficácia da distribuição das fórmulas infantis e uso adequado/inadequado das mesmas pela família. Diante disso, há a necessidade de se dialogar entre as políticas públicas de saúde para que estas famílias sejam inseridas eficazmente em outros programas governamentais. A inserção nos programas sociais contribui para atender às demandas da família, evitando, dessa maneira, que parte dos insumos recebidos seja partilhada entre os membros familiares. Pois os programas de transferência de renda, em especial o programa Bolsa Família, representam importantes fontes de subsistência das famílias brasileiras. Mesmo com os restritos valores percebidos pelas mesmas, estudos realizados recentemente mostram o impacto do programa na qualidade nutricional das crianças e na diminuição da mortalidade infantil. (20) Portanto, entende-se que a atenção integral às famílias atendidas passa pela intersetorialidade das políticas sociais, em especial da política de assistência social, através dos diferentes programas e serviços a ela vinculados e da política de saúde por meio do fortalecimento da atenção básica. Retomando os aspectos que envolvem a distribuição da fórmula infantil em Porto Alegre, constatou-se que há na Secretaria Municipal de Saúde um cadastro de todas as crianças nascidas de mães soropositivas para o HIV, o qual contém o nome da mãe, nome da criança, idade, maternidade em que nasceu, entre outros dados e se o cadastro está ativo ou inativo. O fluxo para solicitação das fórmulas lácteas se dá da seguinte forma: se for a primeira solicitação do recém-nascido (RN) não inscrito, a Unidade de Saúde deve preencher o formulário denominado “Ficha de inscrição do Projeto Nascer”, disponível em link na internet e encaminhar para a coordenação do projeto, ou as mesmas informações tam166 bém podem ser transmitidas por telefone para a coordenação do projeto. Se o RN já for inscrito no Projeto Nascer, fará parte do pedido mensal e, se houver um ingresso de RN após o envio do pedido mensal, deve-se entrar em contato com o Projeto Nascer, realizar a inscrição da criança e, dentro da mesma semana, já estará disponível na Unidade a fórmula láctea. Na Tabela 1, estão demonstrados os dados relativos ao número de crianças cadastradas no projeto no município, segundo o relatório anual de gestão do ano de 2013 disponibilizado pela Secretaria Municipal de Saúde, em conjunto com a Prefeitura de Porto Alegre/RS. Os dados demonstram que houve do ano de 2012 para o ano de 2013 uma redução de 5,46% de crianças inseridas no banco de dados no Projeto Nascer. Esta redução está de acordo com o monitoramento até um ano de idade das crianças inseridas no projeto através da dispensação da fórmula láctea na Rede de Atenção Primária do Município. Destaca-se que houve redução da transmissão vertical de 5,6 para 3,6/1000 nascidos vivos (NV) no referente ano, índice este que colaborou para a diminuição de crianças cadastradas no projeto (21). Na Tabela 2, estão demonstrados os dados relativos ao número de crianças cadastradas no projeto no município, segundo o relatório anual de gestão do ano de 2014, disponibilizado pela Secretaria Municipal de Saúde, em conjunto com a Prefeitura de Porto Alegre/RS. A Tabela 2 mostra que houve aumento de 18,6% no número absoluto de crianças expostas ao HIV por raça/cor, consequentemente, ocorreu aumento no número de cadastros e no quantitativo de fórmulas lácteas dispensadas. No ano de 2013 em relação a 2012, a dispensação de fórmulas lácteas apresentou um aumento significativo de 64,24%, dado este que demonstra que as Maternidades estão mais sensíveis para o fluxo do insumo de fórmulas lácteas de recém-nascidos expostos do município de Porto Alegre/RS. Comparando-se o primeiro quadrimestre do ano de 2014 em relação a igual período em 2013, ocorreu Tabela 1 – Crianças cadastradas no Projeto Nascer (2012-2013). Anual Total de crianças Variação 2013 2012 % 225 238 -5,46% Fonte: SMS, Relatório de gestão - 2013 Projeto NASCER Tabela 2 – Crianças cadastradas no Projeto Nascer (2013 - 2014). 1° Quadrimestre Total de crianças Variação 2014 2013 % 267 225 18,60% Fonte: SMS, Relatório de gestão – 2013 Projeto NASCER Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 160-168, jul.-set. 2015 A IMPLEMENTAÇÃO DO PROGRAMA DE DISTRIBUIÇÃO DE FÓRMULA INFANTIL PARA CRIANÇAS NASCIDAS DE MÃES HIV POSITIVAS... Aires et al. aumento de 27,8% nas Maternidades e 12,5% na Rede de Atenção Primária de dispensação de fórmula láctea (21,22). Além deste dado, cabe ressaltar que as maternidades estão realizando quantitativo maior de teste rápido e participação efetiva no Comitê de Transmissão Vertical, o que vem a ser um indicador positivo, pois demonstra maior aceitabilidade das Instituições. Quanto ao acompanhamento das crianças na Rede de Atenção à Saúde, cada unidade de saúde disponibiliza quantas crianças estão sendo atendidas ou não comparecem para a retirada da fórmula naquela UBS ou ESF, retroalimentando o sistema periodicamente. Ao final dos 12 meses de vida de cada criança, a Unidade deverá enviar ao Projeto Nascer por e-mail ou malote a Ficha de acompanhamento da criança. As fórmulas são entregues às UBSs ou ESFs uma vez ao mês, de acordo com o número já cadastrado no sistema. É realizada também a busca ativa das crianças que não estão retirando a fórmula pelos serviços aos quais estão referenciadas. Caso a mãe da criança não se sinta à vontade por qualquer motivo de retirar a fórmula infantil ou mesmo medicação no serviço ao qual foi referenciada, a mesma pode solicitar a retirada dos insumos em outro local em que não se sinta estigmatizada ou exposta. Na perspectiva do direito à saúde, todo cidadão pode buscar qualquer serviço, sem obrigatoriedade do seguimento na área adstrita. Entretanto, existem estigmas e preconceitos em relação aos portadores do HIV. Em virtude desses preconceitos, as pacientes escolhem preferencialmente lugares considerados mais seguros e adequados para seu seguimento e dos seus filhos (15). CONCLUSÃO Esta investigação possibilitou melhor entendimento acerca do fluxo de distribuição da fórmula infantil para crianças filhas de mães HIV positivo no município de Porto Alegre/RS. Pode-se verificar que no município de Porto Alegre três das cinco maternidades que fazem parte do Projeto Nascer têm seus dados de dispensação da fórmula infantil contabilizados pela Secretaria Municipal, demonstrando que os valores absolutos de distribuição na alta hospitalar podem ser relativamente maiores do que os demonstrados neste trabalho. Quanto à compra, estocagem e dispensação das fórmulas pela Secretaria Municipal, constatou-se que o processo está bem implementado e não faltam insumos e fórmula para este grupo da população. Em relação à distribuição das fórmulas pela Atenção Básica, pode-se verificar que, em geral, a retirada se dá de forma sistemática, não há dificuldades por parte dos profissionais em atender a essa demanda no serviço, e estes possuem um bom vínculo às usuárias, além de realizarem o acompanhamento das crianças como o preconizado pelo Programa. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 160-168, jul.-set. 2015 Deste modo, necessita-se de mais estudos em relação ao tema, principalmente nas demais regiões do país, bem como nos municípios do interior, para que se possa traçar um perfil da implementação da distribuição em todo o Brasil. Destaca-se que, para serem mais eficazes, estratégias de prevenção oferecidas pelos órgãos governamentais, principalmente aqueles ligados à saúde, devem considerar as adversidades das famílias com HIV. Tornam-se indispensáveis, por outro lado, estudos que possam evidenciar os demais aspectos que impactam na vida das crianças e suas famílias e consideram as reais necessidades em saúde para que se possam estabelecer outras maneiras de contribuir com o desenvolvimento das mesmas, que não apenas com a distribuição da fórmula láctea no primeiro ano de vida. REFERÊNCIAS 1. CUNHA, Gilmara Holanda da; GALVÃO, Marli Teresinha Gimeniz. 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Aires et al. -saude-se-fundamenta-em-tres-pilares-rede-regionalizacao-e-hierarquizacao/ Acesso em: 18 de outubro de 2014. 16. BRASIL. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Para entender a gestão do SUS / Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONAS) - Brasília; 2003. 243p. 17. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria Nacional de Assistência à Saúde. ABC do SUS - Doutrinas e Princípios. Brasília; 1990. 10p. 18. OLIVEIRA E SILVA, D. O processo de implantação do SISVAN no Brasil e o Programa Leite é Saúde. Boletim Nacional SISVAN. 1996;1 (2). 19. GALVÃO MTG, CERQUEIRA ATAR, MARCONDES-MACHADO J. Avaliação da qualidade de vida de mulheres com HIV/ AIDS através do HAT-Qol. Cad, Saúde Pública, 20:430:7, 2004. 20. BARRETO M L. Eff ect of a conditional cash transfer programme on childhood mortality: a nationwide analysis of Brazilian municipalities. Lancet 2013; 382: 57-64. 168 21. PORTO ALEGRE. Secretaria Municipal de Saúde - Prefeitura de Porto Alegre. Relatório Anual de Gestão 2013. Porto Alegre - RS, 2013. 22. PORTO ALEGRE. Secretaria Municipal de Saúde - Prefeitura de Porto Alegre. Relatório de Gestão 1º Quadrimestre de 2014. Porto Alegre - RS, 2014. Endereço para correspondência Ana Paula Pontes Aires Rua Barão do Triunfo, 549/202 97.010-070 – Santa Maria, RS – Brasil (55) 3311-6083 / (55) 8413-0465 [email protected] Recebido: 9/3/2015 – Aprovado: 20/8/2015 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 160-168, jul.-set. 2015 ARTIGO ORIGINAL Estudo comparativo de artrodese subtalar após fratura de calcâneo com enxerto ósseo ou xenoenxerto liofilizado Comparative study of subtalar arthrodesis after calcaneal fracture with autologous bone graft or freeze-dried xenograft Carlo Henning1, Gabriel Poglia2, Fernando Maurente Sirena Pereira2, Carlos Roberto Galia3, Murilo Anderson Leie4 RESUMO Introdução: A fratura viciosamente consolidada do calcâneo pode evoluir com artrose e deformidades graves do pé. O objetivo deste estudo é identificar diferenças na consolidação da artrodese subtalar corretiva, com interposição de enxerto ósseo tricortical autólogo ou com xenoenxerto bovino liofilizado. Métodos: Foram avaliados prospectivamente 12 pacientes submetidos a artrodese subtalar no Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Em 6 pacientes utilizou-se enxerto autólogo e em 6, xenoenxerto bovino liofilizado. Após seguimento médio de 58 semanas, realizou-se a avaliação dos pacientes utilizando a escala AOFAS e a escala visual analógica de dor (VAD). Dois avaliadores cegos avaliaram o tempo para a consolidação da artrodese e a integração do enxerto por exames radiográficos. Resultado: O escore AOFAS melhorou entre o pré e pós-operatório, média de 37 para 64 pontos (p=0,02) no grupo controle e de 38 para 74 pontos (p=0,02) no grupo estudo. Assim como a escala VAD melhorou, média de 4,7 para 1,9 (p=0,028) no grupo controle e de 5,5 para 2,7 (p=0,046) no grupo estudo. Houve consolidação da artrodese em todos os casos do grupo controle em um tempo médio de 5,3 semanas e em 5 casos do grupo estudo, em 8,8 semanas (p=0,077). A integração do enxerto ocorreu após uma média de 10,7 semanas e de 28,8 semanas no grupo controle e estudo, respectivamente (p=0,016). Conclusão: Não observamos diferença estatisticamente significativa no tempo para consolidação da artrodese entre os grupos, embora o tempo para integração do xenoenxerto bovino liofilizado seja estatisticamente maior. Houve melhora clínico-funcional em ambos os grupos. UNITERMOS: Calcâneo, Artrodese, Enxerto Ósseo, Xenoenxerto Liofilizado. ABSTRACT Introduction: Viciously consolidated fracture of the calcaneus can evolve with osteoarthritis and severe foot deformities. The aim of this study is to identify differences in the consolidation of corrective subtalar arthrodesis with interposition of autologous tricortical bone graft or lyophilized bovine xenograft. Methods: We prospectively evaluated 12 patients undergoing subtalar arthrodesis in the Hospital de Clínicas of Porto Alegre. In 6 patients we used autologous graft and in other 6 lyophilized bovine xenograft. After a mean follow-up of 58 weeks, patients were evaluated using the AOFAS scale and a visual analogue pain scale (VAPS). Two blinded evaluators assessed the time for consolidation of the arthrodesis and integration of the graft for radiographic examinations. Result: The AOFAS score improved between the pre- and postoperative periods, a mean of 37 to 64 points (p = 0.02) in the control group and 38 to 74 points (p = 0.02) in the experimental group. VAPS scores improved as well, from a mean of 4.7 to 1.9 (p = 0.028) in the control group and 5.5 to 2.7 (p = 0.046) in the experimental group. There was consolidation of arthrodesis in all of the cases in the control group at a median time of 5.3 weeks, and in 5 cases in the experimental group, at 8.8 weeks (p = 0.077). Graft integration occurred after a mean of 10.7 weeks and 28.8 weeks in the control and experimental groups, respectively (p = 0.016). Conclusion: We did not find a statistically significant difference in the time for arthrodesis consolidation between the groups, although the time for integration of the lyophilized bovine xenograft is statistically higher. There was clinical and functional improvement in both groups. KEYWORDS: Calcaneus, Arthrodesis, Bone Graft, Lyophilized Xenograft. 1 2 3 4 Médico contratado e preceptor da Residência Médica em Ortopedia e Traumatologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Médico Residente em Ortopedia e Traumatologia no HCPA. Professor da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Preceptor da Residência Médica de Ortopedia e Traumatologia do HCPA. Especialista em Ortopedia e Traumatologia. Mestrando da UFRGS na Especialidade Ortopedia e Traumatologia. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 169-176, jul.-set. 2015 169 ESTUDO COMPARATIVO DE ARTRODESE SUBTALAR APÓS FRATURA DE CALCÂNEO COM ENXERTO ÓSSEO... Henning et al. INTRODUÇÃO MÉTODOS As complicações tardias da consolidação viciosa da fratura do calcâneo estão relacionadas: à artrose da articulação talocalcaneana e, eventualmente calcaneocuboidea, devido à incongruência articular ou à lesão condral; ao alargamento do calcâneo, que pode levar a alterações dos tendões fibulares, impacto fibulocalcaneano e dificuldade para uso de calçados; e à deformidade, usualmente em varo do calcâneo, além da perda de altura do retropé e do planismo do pé (1,2). Também, as lesões neurológicas e do coxim plantar podem ser responsáveis pela dor crônica e pela limitação funcional desses pacientes (3). Vários autores têm descrito a realização da artrodese da articulação subtalar com interposição de um bloco de enxerto ósseo para o tratamento da artrose pós-traumática dessa articulação, juntamente com a ressecção da proeminência lateral da parede do calcâneo visando à correção das deformidades e do alinhamento do retropé com bons resultados clínicos e radiográficos (4-16). A consolidação desse tipo de artrodese subtalar com a utilização de enxerto tricortical autólogo da crista ilíaca ocorre em 86 a 100% dos casos (5-9,12-14,16). Porém, os riscos de complicações da retirada de enxerto ósseo da crista ilíaca são de até 49% (17,18). Entre os mais comuns, estão: dor crônica, lesões nervosas, hematomas e infecção (19), além de ser um procedimento adicional que pode aumentar o tempo cirúrgico e de internação e os custos (18, 20). Com o uso de enxerto ósseo homólogo para esse tipo de artrodese, a consolidação pode ter ampla variação, sendo obtida entre 20 e 90,5% das vezes (10,11,15). Não foi identificado na literatura nenhum trabalho com o uso de xenoenxerto nesse tipo de cirurgia. A necessidade de utilização de grandes quantidades de enxerto ósseo em cirurgias de quadril no nosso serviço fomentou a pesquisa e utilização de substitutos ósseos, especificamente o xenoenxerto bovino liofilizado (21,22). O osso bovino é considerado uma hidroxiapatita natural com composição química, porosidade, tamanho e forma semelhantes à humana, propiciando uma estrutura de suporte e de osteocondução para a neoformação de tecido ósseo (23). O desengorduramento, a descelularização e a desidratação através da liofilização diminuem a antigenicidade do enxerto e mantêm suas características estruturais e sua matriz proteicomineral. Ao final do processo, pode ser esterilizado e facilmente armazenado (24). As vantagens do xenoenxerto são: sua relativa abundância, facilidade de uso e performance clínica potencialmente favorável. Os xenoenxertos atualmente em uso em cirurgia ortopédica têm se mostrado seguros e confiáveis (25). O objetivo deste estudo é identificar se há diferença na consolidação da artrodese subtalar, após fratura de calcâneo, com interposição de enxerto ósseo tricortical autólogo da crista ilíaca ou com xenoenxerto liofilizado em bloco. Entre setembro de 2006 e outubro de 2007, 13 pacientes foram submetidos à artrodese subtalar com interposição de enxerto ósseo em bloco para tratamento da sequela da fratura do calcâneo no Serviço de Ortopedia e Traumatologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre. Em 6 pacientes (6 casos), foi utilizado enxerto tricortical autólogo da crista ilíaca (grupo controle), e em 7 pacientes (7 casos), utilizou-se xenoenxerto bovino liofilizado esponjoso em bloco (grupo estudo) (Figura 1). Um paciente do grupo estudo foi excluído da análise, pois não retornou para seguimento após a sexta semana de pós-operatório. Ao total, foram estudados 12 pacientes (12 casos) não randomizados, com um seguimento médio de 58,17 semanas (mínimo 42 e máximo 82 semanas). Um enxerto ósseo de cada tipo foi utilizado nos primeiros 2 casos operados. A seguir, utilizou-se o enxerto tricortical autólogo em 5 casos sequenciais e, posteriormente, o xenoenxerto bovino liofilizado nos demais casos. Foram incluídos pacientes entre 20 e 60 anos de idade com artrose da articulação talocalcaneana após fratura de calcâneo, que apresentavam perda significativa da altura do calcâneo, limitação da mobilidade no retropé, dor no retropé, e limitação das atividades diárias. Foram excluídos aqueles com fratura exposta do calcâneo ou osteomielite do retropé ou que tivessem doenças reumatológicas, neuropatia periférica ou outras doenças ou deformidades que impossibilitassem a deambulação. Na Tabela 1, são descritos demais dados dos grupos. Houve um caso de fratura bilateral do calcâneo em cada grupo, sendo que apenas um lado foi operado. Um caso 170 Figura 1 – Enxerto bovino liofilizado. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 169-176, jul.-set. 2015 ESTUDO COMPARATIVO DE ARTRODESE SUBTALAR APÓS FRATURA DE CALCÂNEO COM ENXERTO ÓSSEO... Henning et al. Tabela 1 – Descrição dados da amostra. Grupo controle Grupo estudo Sexo* 4F,2M 6M Idade+ 44,2 anos (29-57) 47,2 anos (31-56) Lado Tabagismo Tempo entre fratura e cirurgia+ 4 direito 4 direito 1 paciente 3 pacientes 138 meses (19-330) 134,3 meses (36-362) Tempo de seguimento+ ** 68 semanas (62-82) 48,3 semanas (38-52) F: feminino, M: masculino * p=0,014; ** p=0,001; +média (mínimo-máximo) do grupo controle e 2 casos do grupo estudo haviam sido submetidos previamente à cirurgia para descompressão da proeminência lateral do calcâneo. Para a avaliação clínica dos pacientes, foram utilizadas a escala de avaliação da AOFAS (American Orthopedic Foot and Ankle Society) para tornozelo e retropé e a escala visual analógica de dor (VAD) no pré e pós-operatório. A escala VAD também foi empregada para avaliação da presença de dor na região ilíaca no pós-operatório dos casos nos quais foi retirado enxerto autólogo. Na avaliação radiográfica em perfil foram mensurados os ângulos: talocalcaneano, calcaneosolo, talometatarsal 1 e inclinação talar e foi medida, em milímetros, a altura talar. Na incidência axial posterior do calcâneo foi medida, em milímetros, a largura do calcâneo. Dois avaliadores independentes e cegos avaliaram a posteriori os exames radiográficos na incidência de perfil para a presença de consolidação da artrodese subtalar e integração do enxerto ósseo, além da presença de sinais de afrouxamento do material de síntese e tipo de enxerto ósseo utilizado: autólogo ou xenoenxerto. A consolidação da artrodese foi definida como a união radiográfica entre o talo, o enxerto ósseo e o calcâneo, e a integração do enxerto ósseo como a presença de trabeculado ósseo hospedeiro substituindo o trabeculado do enxerto e, dessa forma, ocultando a individualização do enxerto no exame radiográfico (11). O tempo em semanas para consolidação da artrodese ou integração do enxerto foi definido como sendo aquele que primeiro apresentasse concordância entre os dois avaliadores desde que, na última avaliação radiográfica, tenha sido considerado consolidado ou integrado pelos dois avaliadores. Se na última avaliação radiográfica não houver concordância entre os avaliadores, o caso é considerado como não consolidado ou não integrado, independentemente das avaliações anteriores. Dos registros dos pacientes foram pesquisados: duração do procedimento cirúrgico, tempo de imobilização com gesso e complicações pós-operatórias. Descrição cirúrgica. O paciente foi posicionado em decúbito dorsal com coxim sob quadril ipsilateral. Foi realizada a exsanguinação do membro inferior com faixa elástica e utilizado garrote pneumático no terço proximal da coxa. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 169-176, jul.-set. 2015 O alongamento do tendão calcaneano foi indicado nos casos de dorsiflexão do tornozelo menor de 10 graus. A abordagem da articulação talocalcaneana foi realizada pela incisão lateral estendida em “L” com dissecção única até o plano ósseo. A proeminência da parede lateral do calcâneo era, então, ressecada. Após a abertura e liberação da cápsula articular talocalcaneana, a cartilagem da faceta posterior do calcâneo e do talo era removida até a presença de osso subcondral. O espaço talocalcaneano era aberto com uso de distrator até obtenção da correção das relações ósseas do retropé, avaliadas por controle radiográfico intraoperatório, e interposto o enxerto em bloco que preenchesse o espaço obtido. A fixação era realizada com um parafuso canulado de 7,0 mm de rosca parcial do calcâneo para o talo. No final do procedimento, o garrote era aberto para realização de hemostasia e lavagem com soro fisiológico, seguido pelo fechamento do subcutâneo e pele e pela colocação de tala gessada. A obtenção do enxerto da crista ilíaca foi realizada através de abordagem da sua porção anterolateral. O periósteo era elevado tanto da tábua interna quanto externa do ilíaco 3 cm posterior à espinha ilíaca anterosuperior. O enxerto em bloco tricortical do tamanho desejado era retirado com o uso de osteótomos. O fechamento era realizado de maneira habitual após lavagem e hemostasia. O uso de dreno de sucção não foi necessário em nenhum caso. No pós-operatório, o paciente foi mantido com tala gessada por 2 semanas até retirada dos pontos, quando era substituído por uma bota gessada sem apoio. Após a sexta semana, foi permitido o apoio parcial com a bota gessada até que houvesse evidência clínica e radiográfica de consolidação da artrodese, quando era permitido o apoio conforme tolerância sem o uso de imobilização e iniciada a reabilitação motora. Para a avaliação estatística dos dados, foram utilizados: teste Qui-quadrado para verificar a associação entre variáveis, teste t de Student para comparação de médias, testes não paramétricos de Wilcoxon, Mann-Whitney e Levene para comparação de escores e Coeficiente de Kappa para avaliar concordância entre os avaliadores. O nível de significância estabelecido foi de 5%. RESULTADOS Considerando a escala de avaliação da AOFAS para tornozelo e retropé, houve uma melhora significativa entre o pré-operatório e a última avaliação no grupo controle (p=0,02) e no grupo estudo (p=0,02). Não houve diferença estatisticamente significativa entre os grupos controle e estudo. Na avaliação pela escala VAD também ocorreu diferença estatisticamente significativa entre o pré-operatório e a última avaliação no grupo controle (p=0,028) e no grupo estudo (p=0,046), não ocorrendo diferença entre os grupos estudados (Tabela 2). Nenhum paciente que foi submetido à retirada de enxerto autólogo da crista ilíaca apresentava dor antes do 171 ESTUDO COMPARATIVO DE ARTRODESE SUBTALAR APÓS FRATURA DE CALCÂNEO COM ENXERTO ÓSSEO... Henning et al. Tabela 2 – Resultados da avaliação pela escala AOFAS para tornozelo e retropé e pela escala VAD. Grupo Escala AOFAS+ N Pré-op. Pós-op. Escala VAD+ P* Pré-op. Pós-op. P* Controle 6 37 (11,08) 63,83 (9,58) 0,02 4,73 (2,17) 1,87 (1,33) Estudo 6 38 (14,92) 73,83 (9,54) 0,02 5,53 (1,91) 2,72 (2,4) 0,028 0,046 Total 12 37,83 (12,56) 68,33 (10,77) 0,002 5,13 (1.99) 2,29 (2,01) 0,006 *Teste não paramétrico de Wilcoxon; + Média (Desvio Padrão) Tabela 3 – Parâmetros radiográficos. Grupo Raio x Contralateral Controle Pré-operatório Pós-operatório Estudo Geral Altura TC*+ Largura calcâneo+ Ângulo CS*++ Ângulo TC*++ Ângulo TMT*++ Inclinação talar++ 67 (63,5/69,75) [p=0,18]¶ 31,5 (22,5/34,75) 17 (12,25/22,5) [p=0,11] 41 (32,5/49,5) [p=0,11] 3 (-6,25/10) [p=0,18] 21,5 (15,75/28,75) [p=1,0] 64 (60/71) [p=0,04]¶ 42 (35/49) [p=0,47] 14 (10,5/21) [p=0,85] 29 (22/33) [p=0,04] 12,5 (7,5/17) [p=0,04] 13,5 (9/18) [p=0.07] 36 (30/42) 10 (0/11,5) 69 (63,5/80) 40,5 (36/45,75) 20 (7/23) Contralateral 78 (77,25/79,5) [p=0,11] 35 (29/35) [p=0,1] 21 (18,5/23,5) [p=0,14] Pré-operatório 71,5 (69,5/75) [p=0,03] 48 (39,75/50,5) [p=0,04] 13 (11,5/19,75) [p=0,6] 32 (22/42,5) [p=0,1] 5,5 (0/13,25) [p=0,89] 17,5 (9,75/24,75) [p=0,79] Pós-operatório 76,5 (72,75/80,75) 42 (39/45,25) 15 (10/22) 38 (30,5/44,5) 8,5 (3/10) 18 (16,25/21) Contralateral 73,5 (66/78) [p=0,04] 33 (29,5/35) [p=0,07] 20,5 (14,25/22,75) [p=0,04] 43,5 (40,5/51) [p=0,02] 1,5 (-3/8,5) [p=0,04] 24 (19,5/28,75) [p=0,11] Pré-operatório 69 (63/72,75) [p=0,003] 45 (37/50) [p=0,07] 13 (11,25/19,5) [p=0,54] 29 (22,5/36) [p=0,01] Pós-operatório 76 (69/79) 42 (37/50) 18 (10/22) 36 (30/44) 46,5 (42,75/51) 1,5 (0/3,75) [p=0,1] [p=0,07] 18 (16/25) 24 (24/28,5) [p=0,11] 10,5 (0,5/15,25) 16 (10/18) [p=0,06] [p=0,12] 10 (4/10) 18 (17/22) * Altura TC: altura talocalcaneana, ângulo CS: ângulo calcaneosolo, ângulo TC: ângulo talocalcaneano, ângulo TMT: ângulo talometatarsal 1; + Altura ou largura em milímetros; graus; ¶ Mediana (percentil 25 / percentil 75) [valor p em relação com pós-operatório]: Teste não paramétrico de Wilcoxon. procedimento na região doadora. Na última avaliação realizada, 2 pacientes permaneciam sem dor e 4 pacientes apresentavam dor, nestes a escala VAD variou de 0,1 a 0,6. Todos pacientes apresentavam pequena área de hipoestesia em torno da ferida operatória, mas sem prejuízo das suas atividades diárias. Não ocorreu nenhuma complicação maior nesses pacientes. A altura talocalcaneana apresentou diferença estatisticamente significativa entre o pré- e o pós-operatório no grupo controle (p=0,04) e no grupo estudo (p=0,03). Houve diferença estatisticamente significativa entre o pré- e o pós-operatório nos ângulos talocalcaneano (p=0,04) e talometatarsal 1 (p=0,04) no grupo controle. No grupo estudo, a largura do calcâneo mostrou diferença estatisticamente significativa entre pré- e pós-operatório (p=0,04). Quando avaliamos cada grupo em separado, não houve diferença estatisticamente significativa entre os parâmetros radiográficos no pós-operatório em relação ao lado contralateral (Tabela 3). Na avaliação a posteriori realizada pelos dois avaliadores cegos, não houve diferença estatisticamente significativa no tempo para a consolidação da artrodese, em média de 5,33 semanas e 8,8 semanas para o grupo controle e estu172 ++ Ângulo em do, respectivamente (p=0,77). Houve diferença estatisticamente significativa para a integração do enxerto, em média de 10,67 semanas e 28,8 semanas para o grupo controle e estudo, respectivamente (p=0,016) (Tabela 4). Houve consolidação da artrodese e integração do enxerto ósseo em todos os 6 casos do grupo controle e em 5 dos 6 casos do grupo estudo (Figura 2). Um caso do grupo estudo foi considerado como pseudoartrose, pois não apresentou concordância entre os 2 avaliadores na última avaliação radiográfica realizada com 42 semanas de evolução (Figura 3). Os avaliadores não identificaram sinais de afrouxamento do material de síntese em nenhum caso. A concordância para a identificação do tipo de enxerto utilizado foi fraca (coeficiente de Kappa 0,17) para o avaliador 1 e substancial (coeficiente de Kappa 0,67) para o avaliador 2. No grupo controle, os pacientes permaneceram com imobilização gessada, em média de 10,33 semanas (mínimo 8, máximo 12) e os do grupo estudo, 13,33 semanas (mínimo 10, máximo 18) (p=0,054). A duração média da cirurgia no grupo controle foi de 114,67 (DP 8,14) minutos e no grupo estudo foi de 96,67 (DP 6,83) minutos (18% maior no grupo controle; p=0,002). Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 169-176, jul.-set. 2015 ESTUDO COMPARATIVO DE ARTRODESE SUBTALAR APÓS FRATURA DE CALCÂNEO COM ENXERTO ÓSSEO... Henning et al. Tabela 4 – Tempo para consolidação da artrodese e integração do enxerto ósseo. Consolidação* Integração* Controle Grupo 5,33 (2/8) 10,67 (6/28) Estudo 8,8 (6/14) 28,8 (10/38) 0,077 0,016 p+ A * Média em semanas (mínimo / máximo); + Valor p: teste de Levene A C B B D Figura 2 – Radiografia em perfil pré (A) e pós-operatório (B) da artrodese subtalar com utilização de enxerto autólogo da crista ilíaca e pré (C) e pós-operatório (D) com xenoenxerto bovino liofilizado mostrando a presença de consolidação da artrodese. Foi realizado no mesmo ato cirúrgico o alongamento do tendão calcaneano em 2 casos do grupo controle e em 3 casos do grupo estudo e a retirada da tuberosidade posterodorsal do calcâneo em 1 paciente de cada grupo. Houve 1 caso de deiscência de sutura no grupo controle e 2 casos no grupo estudo. Todos evoluíram com cicatrização por segunda intenção após curativos seriados sem necessidade de reintervenção cirúrgica. Em 2 pacientes do grupo controle, o parafuso utilizado para fixação da artrodese foi retirado após 60 semanas por estar com sua cabeça proeminente no calcâneo e causar desconforto com o uso de calçados fechados. Um paciente do grupo controle permaneceu com retropé varo e foi submetido à osteotomia valgizante do calcâneo na sexagésima semana. Um paciente do grupo controle desenvolveu Síndrome de Dor Complexa Regional no pós-operatório imediato e teve o parafuso canulado retirado na 18ª semana, por estar saliente dorsalmente no corpo do talo. No grupo estudo, um paciente foi submetido na 54ª semana à ressecção de uma proeminência óssea medial do calcâneo, que estava causando atrito no tendão flexor longo do hálux. Houve comprometimento do nervo sural com queixas de parestesia e hipoestesia na face lateral do retropé em 4 pacientes do grupo controle e em 3 do grupo estudo. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 169-176, jul.-set. 2015 Figura 3 – Radiografia em perfil pré (A) e pós-operatório (B) da artrodese subtalar com interposição de xenoenxerto bovino liofilizado no caso considerado como pseudoartrose. Cinco dos seis pacientes do grupo controle e 4 dos 6 pacientes do grupo estudo apresentavam queixas de dor difusa no retropé ao exame físico na sua última avaliação. DISCUSSÃO O tratamento inicial não cirúrgico das fraturas do calcâneo com deformidade geralmente resulta em uma consolidação viciosa e dolorosa que afeta a função das articulações do tornozelo, subtalar e calcaneocuboídea, além de levar a prejuízos funcionais e dificuldade para o uso de calçados (4). A artrose subtalar que se desenvolve nesses casos é considerada como causa de dor. Porém, a realização da artrodese talocalcaneana nem sempre provê melhora dos sintomas (2, 26). A dor também pode ser decorrente dos tendões fibulares, do impacto calcaneofibular, da neuropatia do nervo sural, do impacto anterior do tornozelo ou da lesão do coxim plantar do calcâneo (2,3,27). No tratamento cirúrgico das sequelas da fratura do calcâneo, todas as pos173 ESTUDO COMPARATIVO DE ARTRODESE SUBTALAR APÓS FRATURA DE CALCÂNEO COM ENXERTO ÓSSEO... Henning et al. síveis causas de dor devem ser consideradas e a anatomia do retropé, restabelecida (1). A ressecção da proeminência da parede lateral do calcâneo diminui o impacto calcaneofibular e descomprime os tendões fibulares (27). A artrodese in situ não restaura a altura talocalcaneana fisiológica, o ângulo talocalcaneano ou o ângulo de inclinação talar nos casos de grande comprometimento do calcâneo (1,10,15). Nessa situação, é preferível a realização da artrodese subtalar com interposição de enxerto ósseo, pois ela corrige o comprimento do complexo gastrocnemio-soleo e a relação talocalcaneana e talotibial, além de facilitar a descompressão dos tendões fibulares (5,14). Carr et al. (28) descreveram a artrodese subtalar com interposição de enxerto ósseo para restaurar a orientação do retropé e, com isso, melhorar a função, pois acreditavam que a perda da altura talocalcaneana levava a um impacto tibiotalar anterior doloroso. Myerson e Quill (5) indicam esse tipo de artrodese quando há perda maior de 8 mm na altura talocalcaneana em relação ao lado contralateral, ou quando há evidência de impacto anterior do tornozelo demonstrado por um ângulo de inclinação talar menor de 20°. Chandler et al. (2) sugerem que essa artrodese seja realizada nos casos com dor anterior no tornozelo e dorsiflexão do tornozelo menor de 10°. A escala AOFAS é uma escala de avaliação amplamente aceita, validada e com boa consistência interna (29). Na nossa casuística, ocorreu uma melhora estatisticamente significativa dos pacientes quando avaliados pela escala AOFAS ou pela escala VAD. Pela escala AOFAS, a melhora foi de 30,5 pontos, de uma média de 37,8 para 68,3 pontos do pré- para o pós-operatório, respectivamente (p=0,002), e pela escala VAD, foi de 2,84, de uma média de 5,13 para 2,29 no pré- e pós-operatório, respectivamente (p=0,006). Não foi possível demonstrar diferença estatisticamente significativa entre os dois grupos, tanto para escala AOFAS quanto para escala VAD. Esses valores estão próximos aos descritos na literatura, cuja melhora pela escala AOFAS oscila entre 32 e 50 pontos, de uma média entre 20 e 40 pontos no pré-operatório para uma média entre 69 e 75 pontos no pós-operatório (6,7,10,14,15). E pela escala VAD, varia entre um valor médio de 6,07 e 8,1 no pré-operatório e de 2,0 e 2,56 no pós-operatório (7,10). Apesar disso, todos os seis pacientes do grupo controle e 4 dos seis pacientes do grupo estudo apresentavam queixas de dor no pé operado na última avaliação. A persistência de dor residual após a realização de artrodese com interposição de enxerto foi descrita por Clare et al. (4) em 64% dos 45 pacientes após um acompanhamento médio de 5,3 anos e por Marti et al. (12) em 82% de 19 pacientes com um seguimento médio de 9 anos. Concordamos com Chan e Alexander (8) que afirmam que, apesar do alívio da dor não ser completo nem universal, a satisfação do paciente é alta. Na avaliação dos parâmetros radiográficos, houve melhora estatisticamente significativa da altura talocalcaneana entre o pré- e o pós-operatório nos dois grupos. Essa melhora, todavia, não foi suficiente para equiparar a altura talocalcaneana obtida no pós-operatório com o lado contralateral, 174 considerado o parâmetro normal para o paciente, mantendo uma diferença estatisticamente significativa (p=0,04) quando os dados dos dois grupos foram agrupados. Mas quando os grupos foram avaliados separadamente, não foi encontrada diferença significativa entre o pós-operatório e o lado contralateral. Isso pode se dever a um pequeno número de casos em cada grupo. O ângulo de inclinação talar não mostrou diferença significativa em nenhum momento. O calcâneo mostrou-se significativamente mais estreito, medido por sua largura, somente entre o pré- e pós-operatório do grupo estudo (Tabela 3). O ângulo de Böhler não é útil na avaliação dos resultados da artrodese subtalar, pois os pontos de referência para sua mensuração são perdidos com o bloco de enxerto ósseo e a descorticação da borda superior do calcâneo, por isso não foi utilizado (14). A quantidade de correção dessas variáveis radiológicas não é uniforme na literatura (9,14,30) e não mostrou, em alguns estudos, correlação com os achados clínicos (2,31). Entretanto, Chen et al. (16) observaram que a correção da altura talocalcaneana ocorreu em 80,1% dos casos com bom resultado funcional, enquanto apenas em 47,6% dos casos com mau resultado funcional. Já Marti et al. (12) não encontraram correlação entre as medidas radiológicas e os achados clínicos, exceto na altura do coxim gorduroso plantar do calcâneo. O tempo decorrido entre a fratura e a artrodese também é apontado por alguns autores como um fator que pode influenciar a quantidade de correção possível, dada a retração dos tecidos periarticulares do retropé (7,9,4). Na nossa casuística, esse tempo variou de 19 a 362 meses, média de 136,17 meses, o que pode ter influenciado a não correção de alguns parâmetros radiográficos. A ocorrência de consolidação da artrodese subtalar com interposição de enxerto autólogo da crista ilíaca para tratamento das fraturas com consolidação viciosa do calcâneo é descrita na literatura entre 86 e 100% dos casos (5-9,12-14,16). A retirada de enxerto ósseo da crista ilíaca pode apresentar complicações em até 49% dos casos (17,18). Nas séries de casos de retirada de enxerto ósseo da crista ilíaca para realização de artrodeses do pé, essa porcentagem é menor, somente até 6% dos casos (9,10). Por ser um ato cirúrgico que agrega possibilidades de comorbidades, nem sempre é facilmente aceito pelo paciente (30) e também implica em maior tempo cirúrgico e possivelmente de custos (19). A duração do procedimento cirúrgico foi 18% maior no grupo submetido à retirada de enxerto ósseo do ilíaco (96,67 minutos no grupo estudo e 114,67 minutos no grupo controle), o que foi estatisticamente significativo (p=0,002). Outras fontes de enxerto ósseo têm sido descritas na literatura (32). Clare et al. (4) descrevem bons resultados em 40 pacientes (45 pés) com um seguimento médio de 5,3 anos submetidos à artrodese subtalar com interposição de enxerto ósseo autólogo, proveniente da parede lateral do calcâneo com 93,5% de consolidação. A utilização de enxerto homólogo nessa situação apresentou, em alguns trabalhos, consolidação somente em 20 a 40% dos casos (10,11). Já outros autores descrevem resultados melhores com o uso de Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 169-176, jul.-set. 2015 ESTUDO COMPARATIVO DE ARTRODESE SUBTALAR APÓS FRATURA DE CALCÂNEO COM ENXERTO ÓSSEO... Henning et al. enxerto ósseo homólogo com percentuais de consolidação semelhantes ao do enxerto autólogo (19,30,33). Nickisch e Anderson (1) indicam a utilização do enxerto homólogo quando houver necessidade de um enxerto com mais de 1 cm de altura para interposição na artrodese subtalar. Garras et al. (15) descrevem uma série de 21 casos com seguimento de médio de 35,8 meses utilizando enxerto homólogo congelado para interposição na artrodese subtalar, com 90,5% de consolidação, embora tenham usado, em 7 casos, a associação de centrifugado rico em plaquetas. Devido à dificuldade de oferta de enxerto ósseo homólogo congelado em nosso serviço, foram iniciados a pesquisa e o desenvolvimento de um banco de enxerto ósseo liofilizado (21,22,34). Na literatura, encontramos poucos trabalhos na área médica que descrevem a utilização de xenoenxertos (25,35). Sua utilização em situações diversas tem mostrado bons resultados de incorporação e consolidação de artrodeses (20,36,37). No único trabalho que encontramos na literatura do uso de xenoenxerto ósseo em artrodeses do pé e tornozelo, Thompson et al. (38) descrevem cinco casos que evoluíram com pseudoartrose e que necessitaram nova intervenção cirúrgica com uso enxerto autólogo para obter a consolidação da artrodese. Esses autores contraindicaram o uso do xenoenxerto. Na nossa experiência, houve consolidação da artrodese subtalar com interposição de xenoenxerto ósseo liofilizado em 5 dos 6 casos (83% de consolidação) e em 6 dos 6 casos (100%) com uso de enxerto tricortical autólogo da crista ilíaca, após um seguimento médio de 58,17 semanas. A avaliação radiográfica da consolidação da artrodese e da integração do enxerto ósseo é subjetiva. Por isso, com o intuito de diminuir possíveis erros de avaliação, utilizamos dois avaliadores cegos e independentes. Não utilizamos exames de tomografia computadorizada ou ressonância magnética para avaliação dos casos pela limitação de custos e também por esses exames não serem utilizados de rotina na avaliação pós-operatória de pacientes submetidos a artrodeses do pé ou tornozelo. A ocorrência de retardo de consolidação ou de pseudoartrose é uma preocupação maior na artrodese subtalar com interposição de enxerto ósseo, pela presença de duas superfícies que necessitam consolidar (talo-enxerto, enxerto-calcâneo), do que na artrodese subtalar tradicional com apenas uma superfície (talo-calcâneo) (15). Outros fatores que parecem estar relacionados à ocorrência de pseudoartrose são o tabagismo e a presença de necrose óssea avascular (4,10,11). Observamos a presença de consolidação em todos os casos, exceto em um caso do grupo estudo, que era um dos três tabagistas desse grupo. Esse caso foi considerado como pseudoartrose, pois, na sua última avaliação com 42 semanas, apresentava discordância entre os avaliadores, apesar de ter sido considerado pelos dois avaliadores como tendo sinais radiográficos de consolidação em avaliações prévias entre a 16ª e a 34ª semana. O tempo para ocorrer a consolidação da artrodese foi maior no grupo estudo do que no grupo controle: 8,8 seRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 169-176, jul.-set. 2015 manas e 5,33 semanas, respectivamente, porém não foi estatisticamente significativo (p=0,077). O tempo para integração do enxerto, 28,8 semanas no grupo estudo e 10,67 semanas no grupo controle, foi estatisticamente significativo (p=0,016). O enxerto ósseo liofilizado, pelo processo a que é submetido, é considerado um osteocondutor, sem características osteoindutoras ou osteogênicas, o que pode retardar a sua integração (39). O tempo para a consolidação da artrodese subtalar com uso de enxerto homólogo congelado pode variar entre 3 e 5 meses (média de 3,5 meses), e sua revascularização e integração, entre 6 e 12 meses (15,33). A consolidação com enxerto autólogo pode variar entre 10 e 30 semanas (6,10,11). O tempo de imobilização pós-operatória sem apoio é de 6 semanas (7-11), podendo chegar a 12 semanas (4,6), seguido de um período de imobilização com liberação do apoio. Nós mantivemos os pacientes com imobilização sem apoio por 6 semanas e, após, com apoio parcial até que houvesse sinais clínicos e radiográficos de consolidação. No total, o tempo de imobilização foi, em média, de 10,33 semanas e de 13,33 semanas, respectivamente, para o grupo controle e estudo. Essa diferença não foi estatisticamente significativa. O tempo médio de imobilização realizado pelos autores foi maior que o tempo médio necessário para consolidação da artrodese pelos critérios radiográficos utilizados pelos dois avaliadores cegos. A utilização de uma abordagem extensível lateral em “L” permite uma visualização adequada dos tendões fibulares, da articulação calcaneocuboídea e subtalar e permite a ressecção da prominência da parede lateral do calcâneo com facilidade (4). Porém, existe um potencial risco para o fechamento dessa incisão, principalmente quando forem utilizados enxertos com grande altura, preferindo-se, então, incisões mais verticais (30). Em três dos doze casos operados, houve deiscência de sutura. Clare et al. (4) utilizando essa abordagem descrevem a ocorrência de problemas de cicatrização em 24% dos 45 pés operados. Outra complicação frequente é a lesão do nervo sural, que pode ocorrer em até 17% das vezes (14) e ser causada por lesão direta ou por estiramento, pelo aumento da altura talocalcaneana (15). A presença de queixas relacionadas à lesão do nervo sural em nossa casuística foi de 7 em 12 casos operados. Uma porcentagem acima da esperada e que pode estar relacionada à curva de aprendizagem da técnica cirúrgica. A partir dos dados obtidos no nosso trabalho, o tamanho de amostra necessário para se ter um estudo com poder de 80% e um nível de significância de 5% é de 11 casos em cada grupo para a avaliação do tempo para consolidação da artrodese e de 5 casos em cada grupo para a avaliação do tempo para integração do enxerto. CONCLUSÃO Não houve diferença estatisticamente significativa no tempo para ocorrer a consolidação da artrodese subtalar após fratura do calcâneo, independentemente do tipo de 175 ESTUDO COMPARATIVO DE ARTRODESE SUBTALAR APÓS FRATURA DE CALCÂNEO COM ENXERTO ÓSSEO... Henning et al. enxerto ósseo utilizado: autólogo da crista ilíaca ou xenoenxerto bovino liofilizado. O tempo para integração do xenoenxerto bovino liofilizado foi estatisticamente maior que do enxerto autólogo da crista ilíaca. Os pacientes apresentaram melhora clínico-funcional, estatisticamente significativa, com o procedimento cirúrgico quando avaliados pela escala AOFAS e VAD, apesar da persistência de dor residual na maioria dos casos. A altura talocalcaneana teve aumento estatisticamente significativo do pré- para o pós-operatório em ambos os grupos. Não ocorreram complicações maiores no grupo que utilizou o xenoenxerto bovino liofilizado. Houve persistência de queixas na região ilíaca em 4 dos 6 pacientes submetidos à retirada de enxerto ósseo autólogo. A duração do procedimento cirúrgico foi 18% maior no grupo controle do que no grupo estudo. Os resultados são iniciais, mas promissores, o que estimula a continuar as pesquisas com o uso de xenoenxerto bovino liofilizado como substituto ósseo. REFERÊNCIAS 1. Nickisch F, Anderson RB: Post-calcaneus fracture reconstruction. Foot Ankle Clin N Am. 2006;(11):85-103. 2. 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O objetivo foi estabelecer a prevalência de DMG nas parturientes atendidas em Tubarão/SC, conforme critérios diagnósticos utilizados pelo serviço de referência: classificação da Organização Mundial da Saúde ou The International Association of the Diabetes and Pregnancy Study Groups (IADPSG). Métodos: Estudo transversal realizado com gestantes atendidas em um hospital do Sul de Santa Catarina, de agosto de 2013 a abril de 2014. Os dados foram coletados a partir de uma cópia do cartão das gestantes vinculado ao prontuário. Resultados: O estudo avaliou 506 gestantes. O rastreamento por glicemia de jejum foi positivo em 153 (30,2%) mulheres, mas apenas 96 (62,7%) realizaram TOTG 75g. Três pacientes (0,6%) foram diagnosticadas de acordo com os critérios da OMS, os quais exigem a realização de TTGO para confirmação. Segundo critérios do consenso da Associação Internacional de Diabetes e Grupos de Estudos da Gravidez (IADSPG), o DMG foi confirmado em 73 pacientes (14,4%). Essa confirmação foi mais frequente em mulheres que tiveram rastreamento de glicemia positivo (p<0,001). A macrossomia (peso>4000g) foi verificada em 11 (3,3%) bebês. A frequência de cesáreas foi de 70% nas mulheres com DMG e de 58,5% entre as sem o diagnóstico (p=0,09). Foram registrados dois abortos. Conclusão: A prevalência de DMG, conforme o consenso da IADSPG, foi de 14,4%, superior ao verificado pelo critério da OMS. Este último possivelmente subestimou a real frequência de DMG pela não complementação diagnóstica. UNITERMOS: Diabetes Gestacional, Glicemia, Diagnóstico, Estudos Epidemiológicos. ABSTRACT Introduction: There is no consensus in the literature regarding the ideal method for diagnosis of gestational diabetes mellitus (GDM). The aim was to establish the prevalence of GDM in pregnant women cared for in Tubarão, SC, according to the diagnostic criteria used by the reference service: the classification of the World Health Organization or the International Association of Diabetes and Pregnancy Study Groups (IADPSG). Methods: Cross-sectional study of pregnant women at a hospital in southern Santa Catarina, from August 2013 to April 2014. Data were collected from a copy of the card of the women linked to the medical record. Results: The study evaluated 506 pregnant women. The fasting glucose screening was positive in 153 (30.2%) women, but only 96 (62.7%) underwent 75g OGTT. Three patients (0.6%) were diagnosed according to the WHO criteria, which requires performing OGTT for confirmation. According to IADSPG consensual criteria, GDM was confirmed in 73 patients (14.4%). This confirmation was more frequent in women who tested positive for blood glucose (p <0.001). Macrosomia (weight>4000g) was observed in 11 (3.3%) babies. The frequency of cesarean sections was 70% in women with GDM and 58.5% among those without the diagnosis (p = 0.09). Two abortions were recorded. Conclusion: The prevalence of GDM, according to the IADSPG consensus, was 14.4%, higher than the one reported by the WHO criteria. The latter possibly underestimated the actual frequency of DMG owing to the lack of complementary testing. KEYWORDS: Gestational Diabetes, Blood Glucose, Diagnosis, Epidemiological Studies. 1 2 3 Advogada. Estudante de Medicina. Estudante de Medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Mestre em Epidemiologia. Professora da Faculdade de Medicina da Unisul. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 177-181, jul.-set. 2015 177 CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS E PREVALÊNCIA DE DIABETES MELLITUS GESTACIONAL EM UM HOSPITAL DO SUL DE SANTA CATARINA Zapelini et al. INTRODUÇÃO MÉTODOS O Diabetes Mellitus Gestacional (DMG) é definido como qualquer grau de intolerância à glicose, diagnosticado pela primeira vez durante a gestação, podendo ou não persistir após o parto. Estima-se uma prevalência de DMG no mundo de 7% (aproximadamente 200.000 casos/ano), variando entre 1 e 14%, sendo essa variação dependente da população-alvo e do critério diagnóstico utilizado (1). Dados mais recentes do Ministério da Saúde indicam que 7,6% das mulheres com mais de 20 anos, usuárias do Sistema Único de Saúde, apresentam essa condição. Desses casos, 94% apresentam intolerância diminuída à glicose, e apenas 6% deles atingem critérios diagnósticos para o diabetes não gestacional (2). Não há consenso na literatura com relação ao método de diagnóstico ideal para DMG. Atualmente, os critérios mais utilizados são os recomendados ao longo dos anos pela Organização Mundial da Saúde (OMS), mas os mais atuais (atualizados em 2010) são indicados pelo The International Association of the Diabetes and Pregnancy Study Groups (IADPSG), sendo que o último critério foi gerado pelo Hyperglycemia and Adverse Pregnancy Outcome (HAPO) study. A doença em questão é o mais comum distúrbio clínico que afeta a gravidez (3). Após o parto, a maioria destas mulheres retorna à tolerância normal à glicose, entretanto, 40 a 60% delas podem desenvolver Diabetes Mellitus tipo 2 (DM2) em 15 a 20 anos. Aquelas que mantêm um peso corporal razoável e praticam exercícios físicos regularmente possuem uma incidência menor de DM2 (4). Sabe-se que o sobrepeso e a obesidade pré-gestacionais e ganho de peso gestacional são fatores de risco para o desenvolvimento de DMG (5). A obesidade tem se elevado em proporções mundiais (6) e, especificamente em mulheres brasileiras, o excesso de peso dobrou nos últimos anos (7). Apesar da falta de consenso sobre o melhor método para rastreio e diagnóstico do DMG (8), sabe-se que o sucesso da detecção do diabetes depende do diagnóstico mais precoce possível, durante a assistência pré-natal, a fim de que a paciente e o feto possam beneficiarse do tratamento, melhorando os resultados maternos e perinatais (9), tendo em vista que as pacientes que cursam com DMG estão sujeitas a maiores taxas de complicações maternas, perinatais e fetais (10). Portanto, haja vista a presença elevada, nos dias atuais, de fatores de riscos que levam ao desenvolvimento de DMG, bem como a alta prevalência desta enfermidade, comparada com as demais doenças que atingem as pacientes gestantes e, ainda, o fato de propiciarem taxas elevadas de morbidade e mortalidade em pacientes maternas e em neonatos, torna-se importante determinar a prevalência desta doença nas parturientes atendidas no município de Tubarão/SC, de acordo com os critérios diagnósticos utilizados pelo serviço de referência: classificação da OMS ou da IADPSG e, também, avaliar o tipo de parto e peso ao nascer do neonato conforme a presença de DMG. Trata-se de um estudo observacional transversal, em que foram estudadas gestantes que deram à luz em um hospital do município de Tubarão – estado de Santa Catarina, no período de agosto de 2013 a abril de 2014. Embora não seja o único hospital da cidade, o local estudado é o serviço de maior abrangência regional, pois é referência para atendimento terciário de toda a região da AMUREL (Associação de Municípios da Região de Laguna), composta por 13 municípios, incluindo atendimentos particulares, convênios e SUS. Foram coletadas informações de todas as pacientes gestantes que realizaram seus partos neste serviço no período do estudo. Foram incluídas no estudo mulheres gestantes que foram submetidas aos partos vaginal ou cesáreo, no serviço de saúde e período supracitados. Por outro lado, foram excluídas do estudo as parturientes que não tiverem resultados de teste diagnóstico para DMG nos registros médicos. Os dados foram coletados a partir de uma cópia do cartão das gestantes vinculado ao prontuário. Foram captados do referido cartão o valor da glicemia e o teste realizado para, de acordo com o critério diagnóstico adotado, classificá-los quanto à presença de DMG, além do tipo de parto e peso do recém-nascido. Os critérios diagnósticos utilizados foram os estabelecidos pela Organização Mundial da Saúde e pela Associação Internacional de Grupos de Estudo do Diabetes e Gestação – The International Association of the Diabetes and Pregnancy Study Groups (IADPSG), quais sejam: Consoante à OMS, deve-se realizar dosagem de glicemia nas gestantes que se encontram no início da gravidez, antes de 20 semanas, ou assim que possível. Nível de glicose plasmática de jejum igual ou superior a 85 mg/dL é considerado como rastreamento positivo (2). A glicemia plasmática de jejum com valor igual ou maior que 110 mg/ dL deve ser repetida. Caso esse valor se confirme, considera-se como DMG. Se a glicemia plasmática de jejum for menor do que 85 mg/dL, deve ser repetida na 20ª semana. Se continuar menor do que 85 mg/dL, considera-se como rastreio negativo (2). As gestantes com rastreamento positivo devem ser submetidas à TTOG, a fim de confirmar o diagnóstico. O teste é realizado após a ingestão de 75g de glicose anidra em 250-300ml de água, após um período de jejum entre 8-14 horas. A glicose plasmática é determinada em jejum, após 1 hora e após 2 horas. Diante desta curva, os pontos de corte são maiores ou iguais a 95, 180 e 155, respectivamente. Assim, caso sejam encontrados dois valores alterados, há confirmação diagnóstica. Um único valor alterado indica que o TTOG 75g deve ser repetido na 34ª semana de gestação (2). Já a IADSPG (11) ressalva a importância de detectar e considerar a hiperglicemia materna, a fim de evitar eventos adversos maternos e fetais. Novos pontos de corte foram recomendados diante da curva glicêmica (TTOG 75g), quais sejam: 92, 180 e 153 mg/dL, respectivamente, para 178 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 177-181, jul.-set. 2015 CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS E PREVALÊNCIA DE DIABETES MELLITUS GESTACIONAL EM UM HOSPITAL DO SUL DE SANTA CATARINA Zapelini et al. as glicemias plasmáticas de jejum, 1 e 2 horas, após a sobrecarga da glicose. Acerca disso, o diagnóstico de DMG é confirmado por apenas um valor igual ou superior aos limites predefinidos, entre a 24ª e a 28ª semana de gestação (5). Assinala-se, ainda, que houve uma pequena diminuição de valores de duas amostras (jejum e 2h) do referido teste, em comparação com o critério estabelecido pela OMS. Essas são algumas das diferenças diagnósticas entre os dois métodos citados anteriormente. A partir disso, espera-se que, com a implementação dos novos critérios advindos do HAPO study, os quais geraram consenso publicado em 2010 pela IADSPG, haverá um aumento na prevalência de DMG. Os dados coletados foram armazenados no programa EpiInfo versão 3.5.4, de domínio público. As variáveis quantitativas foram descritas por medidas de tendência central e dispersão, de acordo com a normalidade dos dados. As variáveis qualitativas foram descritas por meio de frequência (%) e intervalo de confiança (IC) de 95%. Os testes de associação que foram utilizados foram o Quiquadrado para as variáveis qualitativas e o teste t-Student para as análises quantitativas. O nível de significância adotado foi de 5%. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP-UNISUL) pelo parecer 414.583, CAAE 20698613.5.0000.5369. Foram garantidos a confiabilidade dos dados e o sigilo das informações, sem a identificação dos participantes, respeitando-se os preceitos éticos da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Foram analisados os dados já coletados referentes às parturientes e seus bebês, registrados em prontuários médicos, após autorização fornecida pelo guardião responsável por estes. 75g e valor de glicemia do TTGO 75g após 1 hora. Entre as que possuíam informação de glicemia, a média dos valores foi 80,16 mg/dl (± DP 13,4). Somente três pacientes (0,6%) foram diagnosticadas de acordo com os critérios da OMS, os quais exigem a realização de TTGO para confirmação. Entretanto, das 153 (30,2%) pacientes que apresentaram rastreamento positivo, apenas 96 (19%) realizaram o exame de TTGO 75g. Segundo critérios do consenso da IADSPG, o DMG foi confirmado em 73 pacientes (14,4%). A confirmação de DMG pelos critérios da IADSPG foi mais frequente em mulheres que tiveram rastreamento de glicemia positivo (RP 6,5 IC95% 4,03- 6,07, valor de p<0,001). Todas as gestantes com DMG confirmada pela OMS também tiveram o diagnóstico confirmado pelo consenso da IADSPG (Tabela 1). A informação do peso do recém-nascido foi encontrada em 338 prontuários. Destes, 11 (3,3%) tiveram macrossomia (peso>4000g), nove nascidos por cesárea e dois por parto normal. A frequência de macrossomia foi de 7,9% nos bebês de mães com diagnóstico de DMG, confirmada pelos critérios da IADSPG, e de 2,7% das que não tinham DMG (RP = 2,9 IC 95% 0,8 - 10,7; p=0,11). O tipo de parto estava registrado em 424 prontuários. A maioria das gestantes (60,1%) teve parto cesárea, sendo a frequência de cesáreas de 70% nas 60 mulheres com DMG pelos critérios da IADSPG e de 58,5% entre aquelas sem o diagnóstico (RP=1,20 IC95% 0,99-1,44; p=0,09). Foram registrados dois abortos, mas em nenhum deles a mãe tinha a confirmação de DMG tanto pela HAPO quanto pela OMS. DISCUSSÃO RESULTADOS O estudo avaliou 506 gestantes que tinham resultados de teste diagnóstico para DMG em prontuário. Para 37 (7,3%) mulheres, não houve informação a respeito de glicemia de jejum (GJ) no 1º trimestre, 327 (64,6%) não tinham informação de glicemia de jejum no 3º trimestre, e, em 310 (61,3%), não houve dados acerca da GJ do TTGO Dados internacionais apontam que em aproximadamente 7% das gestações é feito o diagnóstico de DMG, com variação de 1% a 14%, dependendo da população estudada e dos testes de diagnóstico empregados (11,12). Como ressaltado anteriormente, segundo os critérios estabelecidos pela OMS, a prevalência de DMG conhecida no Brasil para mulheres a partir de 20 anos atendidas no Tabela 1 – Confirmação Diabetes Mellitus Gestacional (DMG) pelo Estudo HAPO,1 segundo resultado do rastreamento por glicemia e conforme critério OMS Confirmação DMG HAPO1 Study Rastreamento Sim Não Total Positivo 54 (35,3%) 99 (64,7%) 153 (100%) Negativo 19 (5,4%) 334 (94,6%) 353 (100%) Sim Não Total Positivo 3 (100%) - 3 (100%) Negativo 70 (13,9%) 433 (86,1%) 503 (100%) Total 73 (14,4%) 433 (85,6%) 506 Critério OMS 1 2 2 HAPO Study = Hyperglycemia and Adverse Pregnancy Outcome Study Rastreamento positivo = glicose plasmática de jejum ≥ 85 mg/dl no primeiro trimestre Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 177-181, jul.-set. 2015 179 CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS E PREVALÊNCIA DE DIABETES MELLITUS GESTACIONAL EM UM HOSPITAL DO SUL DE SANTA CATARINA Zapelini et al. Sistema Único de Saúde é de 7,6% (2). Pesquisa realizada em Brasília/DF demonstra que 6,6% das gestantes atendidas nos Centros de Saúde Básica possuíam DMG (13). Em decorrência da dificuldade de confirmar o diagnóstico de DMG no presente estudo, de acordo com as instruções da OMS, não foi possível quantificar a prevalência e, consequentemente, compará-la com outros estudos, tendo em vista que, para tanto, seria necessário realizar o TOTG 75g em todas as pacientes com rastreamento positivo. Assim, a frequência da presença de DMG, conforme critérios da OMS, nos partos do Hospital de Tubarão/SC poderia ser subestimada. Isso ocorreu pelo fato de que o critério de diagnóstico para DMG utilizado atualmente no local do estudo, e constante nos cartões das gestantes da presente pesquisa, é estabelecido segundo as orientações preconizadas pelo consenso da IADSPG. A Associação Americana de Diabetes, associada ao IADPSG, já apontava, ao apresentar os novos protocolos acerca do HAPO study, que estes deveriam aumentar, de modo significativo, a prevalência do DMG (14). Pesquisa realizada na França demonstra que a prevalência de DMG, de acordo com as orientações do HAPO study, foi de 14% (15). Um estudo publicado na Irlanda demonstrou que o diagnóstico de DMG aumentou de 10,1% a 13,2% com os novos critérios estabelecidos (16). No estudo em questão, a prevalência de DMG foi de 14,4%, de acordo com as orientações da IADSPG, indo ao encontro dos dados encontrados nos trabalhos internacionais recentemente publicados. Com os novos critérios da IASDP, pode haver um aumento da incidência de Diabetes, sendo necessário abranger, nas estratégias de controle da doença, um número maior de gestantes. Por consequência, considera-se que há menos chance de ocorrerem eventos adversos maternos, fetais e neonatais nestas pacientes que, anteriormente, eram consideradas com níveis de glicemia normais. Ademais, observa-se que a DMG interfere diretamente na saúde do recém-nascido, entre eles o risco para macrossomia, ou recém-nascidos grandes para a idade gestacional. Conforme a Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia, a DMG aumenta em 2,42 vezes o risco desta anormalidade (17). O mesmo pode ser evidenciado em uma pesquisa publicada em 2005, que, ainda, faz associação entre a macrossomia e a alta taxa de mortalidade e, principalmente, morbimortalidade (11,4%) do recém-nascido (18). Assim, o feto, ou, depois, o recém-nascido pode sofrer diversas alterações, desde asfixia perinatal, polidrâmnio, parto prematuro, traumas esqueléticos (19), até alterações metabólicas como hiperbilirrubinemia ou hipoglicemia e, ainda, cardiomiopatia hipertrófica e síndrome do desconforto respiratório (20). Além disso, tardiamente, podem ter dislipidemias, DM tipo 2 e hipertensão arterial (21, 22). Sabe-se que em partos com algum risco de vida tanto para a gestante quanto para o feto, deve-se optar pela ce180 sárea. Entretanto, essa escolha depende de cada gravidez, tendo a análise de vários outros dados. Nas grávidas com fetos muito grandes (macrossômicos), observados pela ultrassonografia, pode ser necessário fazer cesariana. No presente estudo, não foi possível observar se a macrossomia já era confirmada antes do nascimento, mas se consegue perceber que nem todos os recém-nascidos acima do peso nasceram de cesárea. Uma pesquisa nos Estados Unidos, no período de 1994 a 2004, descreveu a prevalência aumentada de mulheres com DMG que tiveram partos hospitalares (23). Essa preferência, que visa à prevenção contra possíveis intercorrências pré e pós-parto, tende a aumentar, devido a vários critérios, dentre eles a maior assistência ao pré-natal. O aborto é considerado como óbito fetal quando acontece antes da 20a semana de gestação (24). A incidência de aborto dentre diabéticas é controversa. De modo geral, encontra-se em torno de 10%, índice este que se considera parecido à da população geral (25, 26). Alguns estudos apontam que há maior prevalência de aborto em Diabetes Mellitus tipo 1, entretanto, esse dado não foi analisado pelo presente estudo, pois o acompanhamento das mulheres foi apenas durante o período gestacional. Mesmo não sendo um resultado considerável, os dois abortos constatados nos prontuários não tiveram relação com a DMG confirmada pela HAPO, pois as mães tinham valores normais de glicemia. CONCLUSÃO Seguindo as novas recomendações do consenso da IADSPG, 14% das gestantes atendidas no serviço apresentaram diabetes gestacional. Foi possível identificar que a frequência de DMG utilizando como único critério o da OMS é subestimada, em virtude da falta de complementação diagnóstica pelo TTGO, ou falta de informações a respeito no cartão da gestante. Observou-se, também, que não há uma convergência entre tais critérios, e, portanto, os profissionais da saúde, principalmente obstetras e ginecologistas, não têm a mesma conduta referente a um mesmo resultado obtido em testes diagnósticos. Sabendo que a gravidez por si já é uma mudança na imunidade da mulher, a atenção a qualquer alteração, seja ela metabólica, no hemograma ou em qualquer sistema, deve ser redobrada. Por isso, esse trabalho visou conhecer o percentual de mulheres com o diagnóstico de DMG atendidas no serviço, de acordo com os dois critérios mais utilizados. Desde o método certo de fazer o exame até as anotações no cartão da gestante, qualquer erro ou deslize pode interferir na saúde da gestante e do feto. Os cuidados com a glicemia são quase sempre lembrados, por isso, além de ressaltá-los, o estudo quis alertar acerca da taxa elevada de DMG e também alguns problemas que ela pode acarretar. Para benefícios mútuos, tanto do paciente quanto do médico, espera-se que um dia chegue-se apenas Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 177-181, jul.-set. 2015 CRITÉRIOS DIAGNÓSTICOS E PREVALÊNCIA DE DIABETES MELLITUS GESTACIONAL EM UM HOSPITAL DO SUL DE SANTA CATARINA Zapelini et al. em um resultado para diagnosticar a DMG, assim, todos conseguem seguir uma mesma meta. Conflitos de interesse: Os autores declaram não haver conflitos de interesse em relação aos dados apresentados. 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Prevalência de diabetes mellitus gestacional em gestantes de um centro de saúde de Brasília - DF. Com. Ciências Saúde. 2008;19(1):11-7. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 177-181, jul.-set. 2015 14. American Diabetes Association. Diagnosis and classification of diabetes mellitus. Diabetes Care 2011 Jan; 1:S62-9. 15. Wery E, Vambergue A, Le Goueff F, Vincent D, Deruelle P. Impact of the new screening criteria on the gestational diabetes prevalence. Gynecol Obstet Biol Reprod (Paris). 2014 Apr;43(4):307-13. 16. Ali FM, Farah N, ODwyer V, OConnor C, Kennelly MM, Turner MJ. The Impact of New National Guidelines on Screening for Gestational Diabetes Mellitus. Ir Med J. 2013 Feb;106(2):57-9. 17. Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. Diabetes mellitus gestacional. Rev. Assoc. Med. Bras. 2008; 54 (6); 477-80. 18. Kerche LTRL. Fatores de risco para macrossomia fetal em gestações complicadas por diabetes ou por hiperglicemia diária. 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Endereço para correspondência Raphaela Mazon Zapelini Rua Recife, 498/601 88.705-720 – Tubarão, SC – Brasil (48) 8824-4800 [email protected] Recebido: 9/4/2015 – Aprovado: 28/4/2015 181 ARTIGO ORIGINAL Síndrome da Morte Súbita Infantil em Pelotas de 2006 a 2013: uma análise descritiva Sudden Infant Death Syndrome in Pelotas from 2006 to 2013: a descriptive analysis Maurício Castro Pilger1, Milton Luiz Ceia2, Vera Lúcia Schmidt3, Denise Marques Mota4, Cecília Fernandes Lorea5 RESUMO Introdução e objetivo: A Síndrome da Morte Súbita Infantil (SMSI) ocupa a oitava posição entre as causas de anos potenciais de vida perdidos e as primeiras posições como causa de mortalidade infantil pós-neonatal em países desenvolvidos. O presente estudo objetiva conhecer as características socioepidemiológicas das crianças que foram a óbito por SMSI no município de Pelotas. Métodos: Estudo observacional, retrospectivo, descritivo baseado nos dados da Secretaria Municipal de Saúde, coletados através da aplicação de Fichas de Investigação de óbitos padronizadas pelo Ministério da Saúde de todos os casos de SMSI que ocorreram do ano de 2006 a 2013 em Pelotas/RS. Resultados: Houve 37 óbitos registrados no período, o que representa um coeficiente de mortalidade por SMSI de 1,5 por mil. A média de idade materna foi de 23,5 anos (dp=5,2), 29 (78%) eram fumantes e 23 (62%) concederam aleitamento materno exclusivo até a data do óbito, 28 (76%) tiverem seus bebês nascidos a termo. Dentre os 37 casos, 16 (43%) vieram a falecer com menos de 1 mês de vida, 26 (70%) dormiam junto aos pais e 23 (61%) em decúbito lateral, enquanto que apenas 2 (5%) em decúbito ventral e 16 (43%) dos casos de SMSI ocorreram durante o inverno. Conclusão: O presente estudo é o único que abrange tamanha amostra (37 casos) de SMSI na cidade de Pelotas, a qual apresenta um coeficiente de mortalidade por essa patologia semelhante aos mais altos encontrados na literatura. Portanto, políticas públicas que visem à prevenção de SMSI em Pelotas são necessárias. UNITERMOS: Morte Súbita Infantil, Pronação, Supinação. ABSTRACT Introduction and aim: Sudden Infant Death Syndrome (SIDS) ranks eighth among the causes of potential years of life lost and is among the leading causes of post-neonatal infant mortality in developed countries. This study aimed to evaluate the social and epidemiological characteristics of children who died of SIDS in the city of Pelotas. Methods: An observational, retrospective, and descriptive study based on Municipal Health Department data collected by applying Research Sheets standardized by the Ministry of Health to all cases of SIDS occurring from 2006 to 2013 in Pelotas, South Brazil. Results: A total of 37 deaths were recorded in the studied period, placing the SIDS mortality rate at 1.5 per thousand. The mean maternal age was 23.5 years (SD = 5.2), 29 (78%) were smokers, 23 (62%) granted exclusive breastfeeding until the date of death, 28 (76%) had term infants. From the 37 cases, 16 (43%) died under 1 month of age, 26 (70%) were sleeping with their parents, and 23 (61%) in the lateral position, while only 2 (5%) in the prone position, and 16 cases (43%) of SIDS occurred during the winter. Conclusion: This study is the only one that covers such sample (37 cases) of SIDS in the city of Pelotas, whose mortality rate from this disorder is close to the highest in the literature. Therefore, public policies for the prevention of SIDS in Pelotas are required. KEYWORDS: Sudden Infant Death, Pronation, Supination. 1 2 3 4 5 Discente do curso de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Mestre em Saúde Pública pela UFPel. Médico pediatra da Prefeitura Municipal de Pelotas. Enfermeira. Mestre em Saúde Pública pela UFPel. Enfermeira da Prefeitura Municipal de Pelotas. Mestre em epidemiologia pela UFPel. Professora adjunta na UFPel. Mestre em doença da criança e do adolescente pela Universidade de São Paulo (USP). Professora adjunta na UFPel. 182 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 182-185, jul.-set. 2015 SÍNDROME DA MORTE SÚBITA INFANTIL EM PELOTAS DE 2006 A 2013: UMA ANÁLISE DESCRITIVA Pilger et al. INTRODUÇÃO A Síndrome da Morte Súbita Infantil (SMSI) ocupa a oitava posição entre as causas de anos potenciais de vida perdidos e as primeiras posições como causa de mortalidade infantil pós-neonatal em países desenvolvidos (1, 2). No Brasil, há escassez de dados que nos permitam avaliar a influência de fatores socioculturais, geográficos na incidência dessa doença em diferentes regiões, pois os poucos estudos se concentram em estados do Sul e Sudeste (3). A SMSI foi definida por Beckwith (4) como “a morte súbita inesperada de uma criança, na qual uma necropsia detalhada não consegue identificar uma causa adequada para o óbito”. Esse evento passou a assumir papel relevante nos últimos anos a partir da queda dos índices de mortalidade infantil, devido a melhorias socioeconômicas, ambientais e na assistência médica, e à descoberta de que lactentes abaixo de 6 meses que dormem em posição de pronação possuem chance de 3 a 9 vezes maior de sofrerem SMSI do que os que dormem em posição supina. A definição de Beckwith torna praticamente impossível a realização de pesquisas epidemiológicas em nosso meio, haja vista a não realização de necropsias em crianças falecidas subitamente. Sendo assim, estudos brasileiros nessa área costumam adotar critério clínico para a classificação de SMSI, como “morte inesperada em criança assintomática ou com sintomas mínimos com menos de 24 horas de duração”, o qual também foi usado para determinarmos a amostra neste estudo (3). Neste estudo, foram investigados todos os óbitos diagnosticados como SMSI na cidade de Pelotas entre os anos de 2006 e 2013, contabilizando 37 casos. MÉTODOS Estudaram-se todos os casos de SMSI do ano de 2006 até o ano de 2013 no município de Pelotas/RS. Os dados foram coletados através da Secretaria Municipal de Saúde, que tem cobertura de 100% dos casos de óbito infantil através do Comitê de Investigação de Óbito Infantil, Fetal e Morte Materna (COMAI) desde 2003. O COMAI investiga os óbitos infantis através da aplicação das Fichas de Investigação de Óbitos (ficha de entrevista domiciliar, ficha de investigação hospitalar, ficha de investigação ambulatorial), padronizadas pelo Ministério da Saúde e colhendo informações da Declaração de Nascido Vivo, da Declaração de Óbito. Foram excluídas do estudo crianças que não se enquadravam na definição clínica de SMSI, ou seja, que apresentavam sintomas plausíveis de risco de vida por qualquer outra patologia. Foram coletados dados referentes a ano do óbito, idade materna, cor de pele, sexo, tabagismo materno, aleitamento materno exclusivo, posição em decúbito, idade da criança, peso ao nascimento, estação do ano em que ocorreu o óbiRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 182-185, jul.-set. 2015 to, idade gestacional e ocorrência de coleito. A informação sobre peso ao nascer foi obtida através dos pais, dado colhido de maneira segura, conforme resultado de estudos prévios (5) e confirmado pela Declaração de Nascido Vivo. Após a coleta de dados, foi feita análise descritiva sobre a prevalência de SMSI no município de Pelotas. RESULTADOS Os 37 óbitos registrados ocorreram em uma população estimada de 28560 nascidos vivos, considerando média de 4284 nascimentos por ano em famílias residentes em Pelotas, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde, o que representa um coeficiente de mortalidade por SMSI de 1,5 por mil. A média de idade materna foi de 23,5 anos (dp=5,2), 10,8% eram primigestas, 29 (78%) eram fumantes e 23 (62%) concederam aleitamento materno exclusivo até a data do óbito. 19 (51%) mães eram da raça branca e 28 (76%) tiverem seus bebês nascidos a termo. Dentre os 37 casos, 19 (51%) crianças eram do sexo feminino, 17 (50%) pesavam 2906g em média (dp 619g), 16 (43%) vieram a falecer com menos de 1 mês de vida, 26 (70%) dormiam junto aos pais e 23 (61%) em decúbito lateral, enquanto que apenas 2 (5%) em decúbito ventral. 16 (43%) dos casos de SMSI ocorreram durante o inverno. DISCUSSÃO O presente estudo descritivo teve como objetivo principal conhecer características socioepidemiológicas, comportamentais e ambientais das crianças que foram a óbito por SMSI na cidade de Pelotas. Deve-se levar em conta que alguns aspectos da metodologia utilizada podem subestimar ou superestimar o coeficiente de mortalidade, como a utilização de um critério clínico para definição de SMSI, haja vista que necropsias não foram utilizadas e nenhum exame microscópico foi realizado, pois, no Brasil, isso não consta como conduta obrigatória. Assim, o critério que classifica a causa como SMSI está à mercê dos médicos que acompanharam a criança e das informações obtidas através dos pais responsáveis. O coeficiente de SMSI de 1,5 por mil não teve alteração diante de estudo longitudinal já realizado em Pelotas em 1982 (6) e, assim como estudo realizado em Passo Fundo-RS (7), apresenta um dos mais altos coeficientes internacionais. Por fim, para termos maior confiabilidade em dados de serviços estatísticos vitais, a melhoria na qualidade do preenchimento das fichas de óbito deve ser uma prioridade. A maior prevalência de SMSI nos meses de inverno pode estar vinculada à possível etiologia da síndrome da SMSI infantil relacionada a doenças respiratórias virais, deficiências bioquímicas, hipotermia, as quais ocorrem mais comumente em meses mais frios (3). Há estudos que indicam que esta prevalência nos meses de inverno esteja 183 SÍNDROME DA MORTE SÚBITA INFANTIL EM PELOTAS DE 2006 A 2013: UMA ANÁLISE DESCRITIVA Pilger et al. Tabela 1 – Descrição das variáveis estudadas. Variável Nº (%) 16-19 9 24 20-23 13 35 24-27 8 22 Idade da criança >27 7 19 Idade materna em anos Nº (%) Masculino 18 49 Feminino 19 51 Sexo Número de filhos ≤1 m 16 43 >1m e ≤2m 11 30 16 1 4 11 >2m e ≤3m 6 2 13 35 >3m e ≤4m 1 3 3 12 32 >4m 3 8 4 4 11 ≥5 4 11 Mãe fumante Peso ao nascimento <2000g 3 8 ≥2000g <2500g 7 19 ≥2500g <3000g 10 27 17 50 Sim 29 78 ≥3000g Não 8 22 Estação do ano Cor da pele Outono 10 27 Inverno 16 43 Branca 19 51 Primavera 7 19 Negra 10 27 Verão 4 11 Parda 8 22 Aleitamento materno exclusivo até óbito Sim 23 62 Não 14 38 Posição em decúbito Período do óbito Neonatal 16 43 Pós-neonatal 21 57 Idade gestacional <32ª 2 6 >32ª e ≤36ª 7 19 >37ª e ≤41ª 28 76 Lateral 23 61 Dorsal 7 19 Sim 26 70 Ventral 2 5 Não 7 19 Ignorado 5 5 Ignorado 4 11 vinculada à quantidade de cobertas e agasalhos usados pelo lactente (8). Mães jovens e com mais de 2 filhos são variáveis relacionadas à baixa renda e escolaridade, fatores que já foram comprovados pela literatura (9, 10) por estarem associados a risco de ocorrência de SMSI. Diversos estudos evidenciaram que o risco de SMSI é maior quando o lactente dorme na posição lateral do que na posição dorsal (6, 11), tendo em vista a maior probabilidade de rolar para a posição ventral do que para a posição dorsal (12). Em 1991, foi lançada uma campanha na Inglaterra chamada “Back to sleep”, que divulgava acerca da necessidade de crianças dormirem em decúbito dorsal em vista de evitar morte silenciosa por asfixia enquanto dormiam e outras possíveis complicações (13). Através dessa política, o governo inglês conseguiu reduzir em 75% o número de óbitos por SMSI, resultados similares foram encontrados na Austrália e Nova Zelândia através da adesão da mesma campanha. Em nosso estudo, 23 (61%) crianças 184 Variável Co Leito assumiam a posição lateral para dormir, enquanto que 2 (5%) dormiam em decúbito ventral, mostrando a preferência por dormir de lado, como apontado por demais estudos (14). Em Pelotas, a campanha “Back to sleep” foi realizada a partir do 2º semestre de 2007 através da colocação de outdoors em vários pontos estratégicos da cidade, da promoção de palestras e exposição de cartazes junto às maternidades, hospitais e unidades básicas de saúde do município, além da distribuição de material de orientação aos pacientes. Atualmente, os outdoors foram retirados, mas a campanha é sustentada pelo material de divulgação e instrução médica para acadêmicos e demais profissionais da área da saúde. De acordo com a Secretaria Municipal de Saúde de Pelotas, do ano de 2005 ao ano de 2007, a média de casos de SMSI foi de 6,7 casos/ano, enquanto que do ano de 2008 a 2013, esse valor passou a ser 3,6 casos/ano. Em adição, em nenhum dos 20 casos ocorridos de 2005 a 2007, a mãe referiu decúbito dorsal do paciente ao dormir, enquanto que, dentre os 25 casos de 2008 a 2013, em 7 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 182-185, jul.-set. 2015 SÍNDROME DA MORTE SÚBITA INFANTIL EM PELOTAS DE 2006 A 2013: UMA ANÁLISE DESCRITIVA Pilger et al. houve comprovação materna de que o paciente assumia a posição supina como hábito de sono. Esses valores podem refletir uma mudança nos padrões de sono por repercussão da campanha. Porém, a amostra restrita ainda não é suficiente para concretizarmos o sucesso parcial da campanha, devendo ser realizados estudos mais específicos e melhor preenchimento das fichas de investigação de óbitos, padronizadas pelo Ministério da Saúde, para termos uma melhor perspectiva da campanha “Back to sleep” em Pelotas. A necessidade desta política também é explícita por Rachel et al (15) e Barsman et al (2), que indicam, respectivamente, falta de conhecimento e má orientação, perante os familiares, da influência da posição das crianças ao dormir. Isso se reflete através do resultado de que, em 70% dos casos, as crianças dormiam junto aos pais, fator de risco para a ocorrência da SMSI também já comprovado (7, 16, 11). Shat et al (17) estimaram que 20,7% dos casos de SMSI poderiam ser prevenidos se mães não fumassem durante a gravidez. Estudos apontam que o tabagismo é um potente fator de risco para SMSI (10, 18), mas também um dos que mais facilmente pode ser evitado, fato que reitera a importância de políticas públicas antitabagismo, especialmente durante a gestação. Em nosso estudo, encontramos que 29 (78%) das mães eram tabagistas. Identificamos que 16 (43%) casos de SMSI ocorreram até o primeiro mês de vida da criança, fator concordante com alguns estudos (19), mas discordante em relação a outros que apontam para nítida maior taxa de SMSI nos meses subsequentes (20), o que requer maior investigação para que tenhamos uma melhor perspectiva acerca desta variável. CONCLUSÃO O presente estudo é o único que abrange tamanha amostra (37 casos) de SMSI na cidade de Pelotas. Deve-se enfatizar a campanha “Back to sleep” nessa cidade, pois, apesar de não ter sido feito estudo para avaliar sua real repercussão, análises prévias apontam para uma melhora nos hábitos de sono a partir do ano em que ela foi adotada. A falta de estudos como este em demais cidades do Rio Grande do Sul limita análises comparativas e o estabelecimento de políticas de prevenção específicas para cada região, considerando suas características socioculturais, socioeconômicas e geográficas. Isso faz com que políticas intervencionistas a curto prazo sejam voltadas à orientação da posição em decúbito, do coleito, do aleitamento materno exclusivo e da cessação do tabagismo, enquanto que políticas de longo prazo visem à melhora das condições socioeconômicas da região. REFERÊNCIAS 1. McVea KL, Turner PD, Peppler DK. The role of breastfeeding in sudden infant death syndrome. J Hum Lact. 2000;16:13-20. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 182-185, jul.-set. 2015 2. Barsman SG, Dowling DA, Damato EG, Czeck P. Neonatal Nurses Beliefs, Knowledge, and Practices in Relation to Sudden Infant Death Syndrome Risk-Reduction Recommendations. Adv Neonatal Care. 2015. 3. Victora CG, Nobre LC, Lombardi C, Teixeira AM, Fuchs SMC, Moreira LB, et al. Quadro epidemiológico das mortes súbitas na infância em cidades gaúchas (Brasil). Revista Saúde Pública. 1987,21:490496. 4. Beckwith JB. Observations on the pathological anatomy of the sudden infant death syndrome. 1ª Ed. 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Métodos: Estudo observacional transversal onde 298 estudantes de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) foram investigados utilizando questionário padronizado, levantando informações de idade, sexo, tabagismo, alimentação, ingestão de bebidas alcoólicas, rendimento acadêmico, atividade física, e qualidade de vida pelo escore WHOQOL. Resultados: A idade mediana foi de 22 anos, sendo 58% do sexo feminino. Sedentarismo foi relatado por 40% dos acadêmicos e consumo excessivo de sal por 44%. Consumo de álcool foi relatado por 88% dos acadêmicos, sem variação em função do semestre avaliado. Tabagismo foi relativamente incomum (8%), observando-se correlação positiva entre quantidade de álcool consumida e tabagismo (p=0,029). O desfecho composto de sedentarismo, consumo excessivo de sódio ou tabagismo foi relatado por 69% dos acadêmicos. A qualidade de vida dos acadêmicos foi influenciada pela época de formação e pela distância da família, mas não houve correlação com fatores de risco. Conclusão: A prevalência de fatores de risco cardiovascular e comportamento de risco é elevada entre os acadêmicos de Medicina da UFPel. Devem ser propostas intervenções visando à conscientização do benefício da adoção de um estilo de vida saudável entre os acadêmicos. UNITERMOS: Fatores de Risco, Estudantes, Aterosclerose, Doença da Artéria Coronariana, Qualidade de Vida. ABSTRACT Introduction: Cardiovascular risk factors and quality of life of medical students can influence the future physicians’ ability to effectively work and advise patients. Keeping this in view, the present study aimed to evaluate behaviors, cardiovascular risk factors and quality of life among medical students of the Federal University of Pelotas (UFPel), using a prevalence approach. Methods: A cross-sectional observational study where 298 medical students of the Federal University of Pelotas (UFPel) were investigated using a standardized questionnaire, gathering information such as age, sex, smoking, diet, alcohol consumption, academic performance, physical activity, and quality of life by the WHOQOL score. Results: The median age was 22 years, 58% female. Sedentary lifestyle was reported by 40% of the students and excessive salt intake by 44%. Alcohol consumption was reported by 88% of the students, and did not vary as a function of the evaluated semester. Smoking was relatively uncommon (8%), with a positive correlation between amount of alcohol consumed and smoking (p = 0.029). The outcome composed of sedentary life style, excessive sodium intake, or smoking was reported by 69% of the students. Students’ quality of life was influenced by time of medical training and distance from the family, but these were not correlated with risk factors. Conclusion: The prevalence of cardiovascular risk factors and risky behaviors is high among UFPel medical students. Interventions aimed at raising awareness of the benefits of adopting a healthy lifestyle among academics should be proposed. KEYWORDS: Risk Factors, Students, Atherosclerosis, Coronary Artery Disease, Quality of Life. 1 2 Acadêmica do Curso de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). MD, ScD. Professor Assistente. 186 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 186-191, jul.-set. 2015 FATORES DE RISCO CARDIOVASCULAR E QUALIDADE DE VIDA DE ACADÊMICOS DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Hickel et al. INTRODUÇÃO A gênese da aterosclerose está intrinsecamente relacionada à presença de fatores de risco, e a identificação e o controle desses fatores são parte crucial do manejo das doenças cardiovasculares (DCVs), desde a fase pré-clínica até a doença avançada (1). Universitários da área da saúde têm um papel importante na orientação da população a respeito de fatores de risco e adoção de medidas preventivas; a sua capacidade de desempenhar esse papel adequadamente pode ser influenciada pelo seu conhecimento e nível de exposição a fatores de risco (2). Nesse sentido, um levantamento do perfil de risco dos acadêmicos da faculdade de Medicina pode promover o debate interno sobre a relevância do problema, alertar professores e gestores de educação, e, em última instância, educar os alunos sobre a importância da detecção e manejo do risco cardiovascular. A influência do estresse e da qualidade de vida nos fatores de risco cardiovascular é alvo de debates, e uma correlação entre escores de qualidade de vida e a prevalência de fatores de risco já foi descrita na população em geral (3). Dados a respeito de fatores de risco e qualidade de vida de estudantes universitários foram descritos no início da década de 2010 em instituições do nordeste e sudeste do Brasil (2,4). No entanto, esses achados são sujeitos à significativa variação em função da região e de características inerentes à instituição. Adicionalmente, a recente instituição do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) como ferramenta de seleção para o ingresso na universidade, por proporcionar o ingresso nas instituições de estudantes de regiões distantes do país, pode trazer mudanças no perfil sociocultural e na rede de apoio familiar disponível para os alunos. Sendo assim, desenvolvemos este trabalho envolvendo acadêmicos de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), no interior do Rio Grande do Sul, buscando aprofundar a compreensão sobre a prevalência atual de fatores de riscos modificáveis e suas potenciais correlações com desempenho acadêmico e qualidade de vida, viabilizando eventuais propostas para redução desses riscos. MÉTODOS Trata-se de estudo observacional, transversal, com estudantes de Medicina da UFPel, do primeiro ao sétimo semestre letivos, incluindo todos os 314 alunos matriculados, após serem devidamente informados sobre o caráter facultativo e os objetivos do estudo, e assinarem termo de consentimento livre e esclarecido, conforme aprovação no Comitê de Ética em Pesquisa local. Foram excluídos do estudo apenas os alunos que não aceitaram responder ao questionário, resultando em uma amostra final de 298 estudantes. O instrumento utilizado para a obtenção dos dados foi um questionário autoaplicado, que contemplava os seguinRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 186-191, jul.-set. 2015 tes itens: idade, semestre, sexo, tabagismo, alimentação, ingestão de bebidas alcoólicas, horas de estudos/rendimento acadêmico, atividade física, qualidade de vida, e frequência de contato e relação com a família. A detecção e análise do tabagismo, padrão de alimentação, ingestão de bebidas alcoólicas, atividade física e estresse tiveram como base a I Diretriz Brasileira de Prevenção Cardiovascular (1) e a V Diretriz Brasileira de Dislipidemias e Prevenção da Aterosclerose (5). A exposição ao tabagismo foi pesquisada por itens de questionário identificando alunos que nunca fumaram, fumaram no passado, ou fumam atualmente, sendo nesse caso quantificadas a frequência e quantidade de cigarros consumidos. Foram considerados tabagistas os indivíduos com consumo regular de qualquer quantidade de cigarros. A avaliação da dieta se baseou em recordatório alimentar autoaplicado, com quantificação do número de porções diariamente consumidas de gorduras (margarinas, manteiga, óleos vegetais), açúcares (açúcar refinado, mel e geleia de fruta), sal, oleaginosas (nozes, castanhas, amêndoas) e azeite de oliva. A frequência de consumo de bebidas alcoólicas durante um mês foi pesquisada, assim como o tipo de bebida e a quantidade. Também foram incluídas questões sobre o motivo da ingesta, se consegue se abster de ingeri-las em ocasiões festivas quando há necessidade e se é feito uso recreativo de outras substâncias (drogas ilícitas ou lícitas). Visando à avaliação da dedicação à atividade acadêmica e seu potencial impacto na qualidade de vida, os acadêmicos responderam sobre quantas horas costumam estudar para a faculdade diariamente, a frequência de estudo no período da noite, quantas horas estudam durante o período noturno e quantas horas de sono obtêm por noite. A atividade física foi investigada através do levantamento da frequência de realização de atividade física, o número de horas semanais dedicadas à atividade, e a intensidade do exercício. A intensidade da atividade física foi definida como vigorosa quando exige aumento marcado das frequências cardíaca e respiratória e gera sudorese profusa, moderada quando exige pequeno aumento das frequências cardíaca e respiratória e pouca sudorese, e leve quando não gera fadiga ou sudorese significativas. Foram considerados sedentários os indivíduos que não praticavam exercício físico regularmente. A qualidade de vida foi estimada através de questionário padronizado. Escolhemos o questionário WHOQOL-breve, traduzido e validado para a língua portuguesa, pelo seu caráter transcultural e seu bom desempenho em indivíduos saudáveis (6). Para avaliar o impacto de eventuais dificuldades no contato com a família em alunos provenientes de outras cidades, o questionário incluiu a necessidade de mudança da cidade de origem para cursar a faculdade, a distância entre a cidade de origem e a cidade de Pelotas, e também a frequência de visita à família e o tempo dispendido na viagem. 187 FATORES DE RISCO CARDIOVASCULAR E QUALIDADE DE VIDA DE ACADÊMICOS DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Hickel et al. A análise de dados foi realizada usando o software SPSS Statistics for Windows, Versão 20.0 (Armonk, NY: IBM Corporation). O nível de significância adotado foi de 5%. As variáveis contínuas foram descritas com uso de média e desvio-padrão, mediana e intervalo interquartil, percentil e outros métodos descritivos quando pertinente. Na tentativa de identificar diferenças nas variáveis entre diferentes grupos, foram utilizados o teste t de Student para variáveis contínuas com distribuição Gaussiana, e o teste de Wilcoxon para variáveis contínuas com distribuição não Gaussiana; para variáveis qualitativas, foram empregados os testes qui-quadrado, exato de Fischer e regressão logística. Testes de correlação foram realizados utilizando-se testes de Correlação de Pearson e de Spearman, para variáveis de distribuição gaussiana e não gaussiana, respectivamente. RESULTADOS O questionário foi aplicado aos estudantes no período de dezembro de 2012 a março de 2013, sendo incluídos 298 alunos (94,6% dos alunos matriculados). A idade média dos participantes foi de 22 anos, sendo 58,1% do sexo feminino. O tabagismo foi relativamente incomum, sendo relatado por 8% dos acadêmicos. Dentre os acadêmicos tabagistas, 17% relataram fumar mais de dez cigarros ao dia. O uso recreativo atual de drogas foi encontrado em 5,7% dos indivíduos, enquanto 14,4% afirmaram ter feito uso prévio de drogas. A ingestão de bebidas alcoólicas foi relatada por 88% dos estudantes, com 24,5% consumindo de 3 a 4 doses ao mês, e 21,5% consumindo 7 ou mais doses ao mês. Foi observada associação entre a quantidade de álcool consu- 100% 97% Tabagismo 97% 94% mida e o tabagismo (p=0,029), como pode ser constatado na Figura 1. A maioria dos questionados respondeu realizar alguma atividade física, e destes, 61% praticam 3 a 5 horas de atividade por semana (Figura 2). Não houve correlação significativa entre nível ou frequência de atividade física e consumo de álcool ou tabaco. Consumo de sódio acima de 2,3 gramas (correspondente a aproximadamente 5 gramas de sal) por dia foi relatado por 131 acadêmicos (44% dos questionados). O desfecho composto por sedentarismo, consumo alto de sódio ou tabagismo teve prevalência de 69,1% nos estudantes participantes. A prevalência dos fatores de risco avaliados foi semelhante entre os sexos. Os escores médios no questionário de qualidade de vida WHOQOL foram 67 no domínio da saúde física, 65 no domínio psicológico, 71 no domínio social, e 67 no domínio ambiental. Esses resultados são melhores do que os da população em geral para os domínios físico e ambiental, semelhantes no domínio psicológico, e discretamente piores no domínio social (7). A presença de fatores de risco cardiovascular não mostrou correlação com os resultados obtidos nos escores de qualidade de vida ou com o desempenho acadêmico. A distância da cidade natal dos acadêmicos até a cidade de estudo teve influência na qualidade de vida, observando-se piora dos escores ao longo dos quintis de distância (Figura 3); essa correlação foi estatisticamente significativa para o domínio ambiental (p=0,009), havendo tendência não significativa para os demais domínios. Observou-se uma tendência não significativa de melhora da qualidade de vida ao longo dos primeiros 5 semestres do curso, principalmente nos domínios físico e psicológico, com os escores voltando a piorar no sexto e sétimo semestres (Figura 3). Não Sim 88% 80% 76% 80% 40% Intensidade da atividade física praticada Leve Moderada Vigorosa 60% 60% Prevalência Percentual do subgrupo 84% 55% 52% 43% 40% 33% 24% 20% 20% 16% 12% 12% 3% 0% 6% 5% 3% 0% 0 1-2 3-4 5-6 Doses de álcool por mês Figura 1 – Consumo de álcool e tabagismo. 188 7 ou mais Menos de 3 3a5 Mais de 5 Horas de atividade física por semana Figura 2 – Padrões de atividade física entre os acadêmicos. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 186-191, jul.-set. 2015 FATORES DE RISCO CARDIOVASCULAR E QUALIDADE DE VIDA DE ACADÊMICOS DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Hickel et al. Tabela 1 – Características demográficas e resultados principais (n = 298) WHOQOL - Escore médio 75 Características demográficas e resultados principais (n = 298) 70 22 (21 - 23) Sexo masculino (%) 121 (41%) Tabagismo (%) 65 261 (88%) Pratica atividade física (%) 180 (60%) Uso recreativo de drogas (%) 17 (5,7%) Qualidade de vida por domínio <250 250-500 500-1.000 1.000-2.000 >2.000 Distância até cidade natal (km) 75 23 (8%) Consumo de álcool (%) Consumo de sódio > 2,3g / dia - n (%) 60 WHOQOL - Escore médio Idade mediana (VIQ) 131 (44%) Escore médio (DP) Saúde física 67 (14) Psicológico 65 (15) Social 71 (15) Ambiental 67 (13) (VIQ = variância interquartil; DP = desvio-padrão) 70 65 60 1 2 3 4 5 6 7 Semestre Físico Psicológico Social Ambiental Figura 3 – Escores de qualidade de vida. Os resultados principais e características gerais podem ser vistos na Tabela 1. DISCUSSÃO Identificar os fatores de risco que levam ao surgimento das DCVs é o primeiro passo para preveni-las. A prevalência de fatores de risco cardiovascular varia de acordo com cada grupo populacional. No Brasil, indivíduos com formação universitária têm menor probabilidade de apresentar DCV no futuro (8). O presente estudo desempenha importante papel dentro do universo de indivíduos pesquisados, expondo hábitos de vida de uma população jovem com acesso a um nível de educação superior. A fisiopatologia das DCV se inicia na infância e adolescência, e os riscos para seu desenvolvimento aumentam com a idade (9). A idade média dos entrevistados foi de 22 anos, faixa etária em torno da qual, em indivíduos com múltiplos fatores de risco, ocorre o processo de transformação de estrias gordurosas em placas ateromatosas, fase pré-clínica que precede o surgimento de eventos adversos em várias décadas, representando, portanto, uma oportunidade para modificação de prognóstico (10). Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 186-191, jul.-set. 2015 O tabagismo é o principal fator de risco independente para infarto agudo do miocárdio no Brasil (8). Encontramos uma prevalência de tabagismo de 8% em nossos acadêmicos de Medicina, mais elevada do que entre estudantes de Medicina na Arábia Saudita (2,8%) (11), mas muito abaixo dos 33% e 40% de fumantes em acadêmicos da Grécia e do Chile (12,13). Adicionalmente, há evidências de redução progressiva da exposição ao fumo em nossos alunos. Menezes e cols. mostraram que, em 1996, a prevalência de tabagismo entre os acadêmicos de Medicina da Universidade Federal de Pelotas era de 11%, comparada com 21% em 1986 e 14% em 1991 (14). Esta tendência à redução progressiva do tabagismo se confirma no presente estudo. Ainda assim, no quintil de alunos com consumo de álcool mais elevado, observamos que a prevalência de tabagismo continua relativamente alta e merece atenção. O consumo de bebidas alcoólicas e substâncias psicoativas tem se mostrado preocupante, principalmente entre adolescentes e adultos jovens. Em nossa instituição, 88% dos acadêmicos fazem uso de bebida alcoólica. Esta prevalência elevada é semelhante à encontrada em outras instituições de ensino superior (15-17). O consumo de álcool apresentou associação com o tabagismo, tornando os dados mais preocupantes no âmbito de risco cardiovascular e de saúde. Embora o consumo de doses moderadas de álcool (menos de 60g/dia) esteja relacionado à menor incidência de eventos cardiovasculares (18), o padrão abusivo e o uso regular de grandes quantidades, encontrado em uma parcela significativa dos participantes deste estudo, estão relacionados com aumento de eventos coronarianos fatais (19). Estima-se que aproximadamente 60% da população global seja sedentária ou não obedeça à recomendação mínima de 30 minutos diários de exercícios moderados (20), valores semelhantes aos previamente encontrados em 189 FATORES DE RISCO CARDIOVASCULAR E QUALIDADE DE VIDA DE ACADÊMICOS DE MEDICINA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS Hickel et al. populações de estudantes universitários brasileiros (21). Nosso estudo encontrou uma prevalência menor de sedentários, porém mais de 40% dos entrevistados ainda se encontram abaixo do nível de atividade física recomendada. Observamos também prevalência alta de consumo de sódio acima das recomendações da OMS e da SBC, o que já havia sido descrito em outros grupos de universitários (16,21). O desfecho composto de tabagismo, sedentarismo e consumo excessivo de sódio teve prevalência muito alta (69% dos estudantes), demonstrando que a grande maioria dos estudantes está exposta a fatores de risco significativos para doença arterial coronariana (DAC). Sabe-se que estresse no trabalho e na vida familiar e ansiedade são fatores de risco psicossociais para DCV (1). Encontramos escores de qualidade de vida mais baixos em acadêmicos que tiveram de se afastar da família para cursar a faculdade. Este achado é particularmente importante se levarmos em conta que a unificação do ingresso às universidades públicas brasileiras pelo Exame Nacional do Ensino Médio, progressivamente implementada ao longo dos últimos anos, proporciona, com grande frequência, o acesso a centros de estudos distantes da cidade natal dos estudantes. Algumas limitações do nosso estudo devem ser levadas em consideração. O desenho transversal, embora útil para demonstrar prevalências e eventuais associações, não é capaz de estabelecer a causalidade. Adicionalmente, dados autorreferidos podem estar sujeitos a viés de memória, e também sofrer distorções em função da percepção dos indivíduos avaliados a respeito do quão desejável é um determinado atributo social. Além disso, embora todos os alunos da faculdade tenham sido convidados a participar, é possível que eventuais ausências causadas por problemas de saúde ou psicológicos tenham perdido a oportunidade de responder. Apesar dessas limitações, acreditamos que este estudo traz informações relevantes sobre a prevalência de fatores de risco, comportamentos de risco e qualidade de vida em uma população de estudantes universitários. Essas informações podem ser utilizadas para planejar medidas de acolhimento e acompanhamento dos jovens ao longo do curso, particularmente no caso dos estudantes provenientes de cidades distantes. CONCLUSÕES A prevalência de fatores de risco para DCV foi alta entre os acadêmicos de Medicina da Universidade Federal de Pelotas, destacando-se o consumo de álcool e o sedentarismo. Não foi observada correlação entre fatores de risco e qualidade de vida ou desempenho acadêmico nesta população. A qualidade de vida dos estudantes foi semelhante à da população em geral; no entanto, estudantes que se afastaram da família para estudar tiveram piores resultados nos escores de qualidade de vida. Medidas de acolhimento 190 e conscientização dos acadêmicos devem ser consideradas visando à melhora da qualidade de vida e à minimização da exposição a fatores de risco. REFERÊNCIAS 1. Simao AF, Precoma DB, Andrade JP, Correa Filho H, Saraiva JF, Oliveira GM. I Diretriz de Prevenção Cardiovascular da Sociedade Brasileira de Cardiologia. Arquivos brasileiros de cardiologia 2014; 102(5):420-31. 2. Martins M do C, Ricarte IF, Rocha CH, Maia RB, Silva VB, Veras AB, et al. Pressão arterial, excesso de peso e nível de atividade física em estudantes de universidade pública. Arquivos brasileiros de cardiologia 2010; 95(2):192-9. 3. Martinelli LMB, Mizutani BM, Mutti A, Dèlia MPB, Coltro RS, Matsubara BB. 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Duque de Caxias, 250 96.030-000 – Pelotas, RS – Brasil (53) 3221-1666 [email protected] Recebido: 27/4/2015 – Aprovado: 14/7/2015 191 ARTIGO ORIGINAL Perfil clínico dos pacientes portadores de fibrilação atrial atendidos em um hospital do sul de Santa Catarina Clinical profile of patients with atrial fibrillation treated in a hospital in southern Santa Catarina Vinicius Mariotti Machado1, Marcia Regina Pereira2, Emely Kaori Iida3 RESUMO Este estudo verificou o perfil dos pacientes portadores de fibrilação atrial (FA) em um hospital do sul de Santa Catarina utilizando o escore CHADS2, que atribui um ponto para insuficiência cardíaca (IC), hipertensão arterial (HAS), idade≥75 anos, diabetes mellitus (DM) e atribui 2 pontos para histórico de acidente vascular cerebral e acidente isquêmico transitório. Foi realizado um estudo transversal com revisão retroativa de prontuários, incluindo pacientes que internaram por FA no período de 2009 a 2013. Dos 73 pacientes analisados, 52,1% eram do sexo feminino, a média de idade foi de 65,32 anos (d.p.= ±17,07). Utilizou-se o escore CHADS2 revisado, que classifica os pacientes em: baixo risco (escore=0); médio risco (escore=1) e alto risco (escore=2), ficando a distribuição dos pacientes em 23,3%, 28,8% e 47,9%, respectivamente. Quando analisadas as variáveis do escore, a mais prevalente foi hipertensão arterial (63%), seguida de insuficiência cardíaca (31%). O perfil dos pacientes encontrado foi com média de idade de 65,32 anos, a doença de base que mais acomete é HAS, seguida de IC. Nota-se a importância de classificar estes pacientes devido à alta morbimortalidade e aos custos dos pacientes portadores de FA, que podem ser reduzidos com o tratamento de anticoagulação ou com antiagregante plaquetário. UNITERMOS: Arritmias Cardíacas, Prevalência, Pacientes Internados. ABSTRACT This study evaluated the profile of patients with atrial fibrillation (AF) in a hospital in southern Santa Catarina using the CHADS2 score, which assigns one point for heart failure (HF), high blood pressure (hypertension), age ≥75 years, and diabetes mellitus (DM), and 2 points for a history of stroke and transient ischemic attack. A cross-sectional study was conducted using a retrospective chart review, including patients who were hospitalized due to AF from 2009 to 2013. Of the 73 patients studied, 52.1% were female, and the mean age was 65.32 years (SD = ± 17.07). We used the CHADS2-revised scheme, which classifies patients as low risk (score = 0); medium risk (score = 1) and high risk (score = 2), and the distribution found was 23.3%, 28.8%, and 47.9% respectively. When score variables were analyzed, the most prevalent was hypertension (63%) followed by heart failure (31%). The AF patient profile found was with mean age of 65.32 years, and the most frequent underlying disease was hypertension, followed by HF. Note the importance of screening these patients due to the high morbidity and mortality and the costs of AF patients that can be reduced with anticoagulation treatment or platelet aggregation inhibitors. KEYWORDS: Cardiac Arrhythmias, Prevalence, Inpatients. INTRODUÇÃO Fibrilação Atrial (FA) é a perturbação do ritmo cardíaco sustentada mais comum; sua prevalência estimada é de 0,4% a 1% no geral, aumentando com a idade. Estudos 1 2 3 transversais encontraram uma prevalência menor em pessoas com idade inferior a 60 anos, aumentando para 8% em indivíduos com mais de 80 anos (1). Estima-se que no Brasil existam em torno de 1,5 milhão de pacientes com FA e que essa população correlacione-se com a pirâmide Estudante. Mestre. Professora assistente da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e médica da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Especialista em Saúde da Família. Residente em clínica médica no Hospital Nossa Senhora da Conceição de Tubarão/SC. 192 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 192-197, jul.-set. 2015 PERFIL CLÍNICO DOS PACIENTES PORTADORES DE FIBRILAÇÃO ATRIAL ATENDIDOS EM UM HOSPITAL DO SUL DE SANTA CATARINA Machado et al. etária (2), representando um importante fator de risco independente para a ocorrência de tromboembolismo sistêmico e particularmente cerebrovasculares (1-5). O comprometimento hemodinâmico e eventos tromboembólicos relacionados à FA estão associados a um aumento do risco, em longo prazo, de acidente vascular cerebral (5 vezes maior do que em pessoas sem FA), falência cardíaca e todas as causas de mortalidade, especialmente em mulheres. Estes fatos acabam levando à morbidade, à mortalidade e a custos para a população em geral. O acidente vascular cerebral é a complicação mais temida, por possíveis sequelas que podem causar para o paciente (1). Segundo as Diretrizes para o tratamento da fibrilação atrial publicada pelo Jornal Europeu do Coração (2010), FA é definida como uma arritmia cardíaca com as seguintes características: 1 – O ECG de superfície mostra absolutamente intervalos RR irregulares (FA conhecida como arritmia absoluta), ou seja, intervalos RR que não seguem um padrão repetitivo. 2 – Não há ondas P distintas no ECG. Alguma atividade elétrica atrial frequentemente pode ser vista em alguns ECG, na maioria das vezes em V1. 3 – O comprimento do ciclo atrial (quando disponível), isto é, o intervalo entre duas ativações atriais, geralmente é variável e, < 200 ms (> 300 bpm) (6). O escore de CHADS2 é um método de avaliação do risco cardiovascular de fácil utilização, cuja utilidade consiste na predição de eventos cerebrovasculares nos pacientes com FA, através de um sistema de pontuação que integra um conjunto de fatores de risco individualizados. O escore de CHADS2 é assim um sistema de pontuação em que se atribui um ponto por qualquer das seguintes condições: C – insuficiência cardíaca congestiva (IC); H – hipertensão arterial (HAS); A – idade ≥75 anos; D – diabetes mellitus (DM) e S – Acidente Vascular Encefálico (AVE) prévio e/ou Acidente Isquêmico Transitório (AIT), que recebe 2 pontos (7). Um escore de dois ou mais implica um risco aumentado de eventos cerebrovasculares, aconselhando o recurso à terapia anticoagulante, salvo se contraindicada (8-10). O escore CHADS2 revisado divide os pacientes em baixo risco (escore = 0), médio risco (escore = 1) e alto risco (escore ≥ 2) (9). Mesmo que as orientações atuais forneçam recomendações claras sobre a profilaxia do AVE, a longo prazo, em pacientes com fibrilação atrial, elas tendem a permanecer um tanto incertas com relação à iniciação de regimes de anticoagulação oral ou não, com baixa aderência pelos médicos no período de internação (10). A taxa de mortalidade de pacientes com FA é aproximadamente o dobro dos pacientes em ritmo sinusal normal e ligado à severidade de doenças cardíacas subjacentes (2). A partir do conhecimento destas características da doença e sua morbimortalidade é que se justifica a importância da realização deste trabalho. Considera-se fundamental conhecer o perfil clínico dos pacientes portadores de FA para atuar na prevenção de suas possíveis complicações e também servir de base para futuros trabalhos científicos nesta área. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 192-197, jul.-set. 2015 Este estudo teve como objetivo avaliar o perfil dos pacientes que deram entrada na emergência do Hospital Nossa Senhora da Conceição, de Tubarão, e foram internados em virtude da fibrilação atrial não valvar utilizando como base o escore de risco para acidente vascular encefálico (AVE) CHADS2 para o manejo terapêutico. MÉTODOS Foi realizado um estudo observacional analítico do tipo transversal, baseado na análise retroativa dos prontuários, disponibilizados pelo sistema eletrônico de registro médico do Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC) em Tubarão/SC. Este trabalho utilizou como critérios de inclusão: ser portador de FA não valvar e ter internado no HNSC no período de 2009 até 2013 e possuir o diagnóstico confirmado de FA por ECG. Foram excluídos os pacientes que não possuíam os prontuários com dados suficientes para elaboração do escore CHADS2. A amostra do estudo foi composta por todos os pacientes registrados no sistema de prontuários eletrônicos que deram entrada no HNSC de janeiro de 2009 até dezembro de 2013, com registro de Código Internacional de Doenças (CID): I49 Outras arritmias cardíacas; I48 Flutter e Fibrilação atrial; I49.9 Arritmia cardíaca não especificada. Com uma amostra de 160 pacientes, foi realizada uma análise criteriosa dos prontuários utilizando somente os pacientes que tinham, além do CID, a confirmação do diagnóstico de FA firmado por eletrocardiograma. Foram coletadas algumas variáveis sociodemográficas: idade no dia do diagnóstico; sexo; raça; religião; profissão; estado civil e escolaridade. Esses dados foram transcritos para a base de dados. O escore CHADS2 foi calculado de acordo com as informações colhidas nos prontuários, a idade utilizada foi a que o paciente apresentou na data do diagnóstico; Diabetes Mellitus foi definida se o paciente apresentou o diagnóstico de DM tipo 1 ou 2 com registro médico prévio e/ ou uso de hipoglicemiantes orais e/ou insulina; hipertensão arterial sistêmica foi definida se o paciente apresentou diagnóstico prévio registrado por médico e/ou uso de medicações anti-hipertensivas; insuficiência cardíaca congestiva foi definida se o paciente possuía registro médico da mesma e/ou pelo laudo do ecocardiograma com fração de ejeção ≤ 35%; acidente vascular encefálico e acidente isquêmico transitórios foi definido se o paciente possuía diagnóstico prévio registrado no prontuário por médico e/ ou tomografia com laudo descrito. Nos casos em que houve divergência nos registros, foram utilizados os registros dos especialistas (Cardiologista, Neurologista, Clínico). A pontuação do Escore CHADS2 foi determinada por 1 ponto para IC, HAS, idade ≥ 75 anos, DM e 2 pontos para história prévia de AVC e/ou AIT, com pontuação total de 6. Foi utilizada a classificação revisada do escore que divide em grupo de baixo (escore=0), médio (escore=1) e alto risco (escore≥2)(9). 193 PERFIL CLÍNICO DOS PACIENTES PORTADORES DE FIBRILAÇÃO ATRIAL ATENDIDOS EM UM HOSPITAL DO SUL DE SANTA CATARINA Machado et al. O teste do qui-quadrado no nível de confiança de 95% foi utilizado para testar as variáveis qualitativas. O teste t-student foi utilizado para a média de hipótese. Os dados foram digitados no programa EpiInfo 3.5.1 e analisados no mesmo. Este estudo foi desenvolvido considerando rigorosamente os princípios éticos relacionados com a realização de pesquisas envolvendo seres humanos, conforme estabelecido na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. Tendo em vista a utilização de dados secundários, não houve contato do pesquisador com os pacientes e, portanto, se minimizou a probabilidade de qualquer dano ou desconforto aos pacientes, cujos dados foram utilizados na pesquisa. O projeto foi submetido ao CEP com número de registro 25166513.9.0000.5369, e o mesmo foi aprovado na data de 03/12/2013. RESULTADOS A partir de uma amostra inicial de 160 pacientes com os CIDS de interesse, 87 pacientes possuíram diagnóstico errado ou não confirmado pelo ECG; de 20 pacientes sem diagnóstico e de 26 pacientes por preenchimento incorreto dos dados. Sendo assim, a amostra real do trabalho a partir da qual os dados foram analisados foi de 73 pacientes. De acordo com a análise feita com os dados coletados de 73 pacientes, o sexo predominante foi o feminino, com 38 pacientes (52,1%). A média de idade foi de 65,32 anos (d.p.=±17,07), sendo que a média do sexo feminino ficou em 70,9 anos e do masculino com 58,4 anos. O perfil educacional encontrado indica que a maioria (80,9%) tinha ensino médio incompleto. Os demais dados sociodemográficos estão representados na Tabela 1. Ao avaliar as doenças de base que fazem parte do escore CHADS2, foi encontrada uma prevalência de HAS de 63%, de IC 31%, de DM 19,2% e de AVC 11%. Pacientes com idade ≥ 75 anos representaram 35,6% da amostra. Ao associar as variáveis do escore CHADS2, a associação de dois escores mais encontrados foi de IC com HAS, totalizando 19,17%; a associação de três foi de IC, HAS e Idade ≥ 75 anos com 6,84%, e a associação com 4 variáveis foi de IC, HAS, Idade, AVC com 4,10% de todos os 8,8% da amostra tiveram 1 ponto, sendo o maior percentual, 23,3% não pontuaram, 23,3% tiveram 2 pontos, as demais pontuações estão descritas na Tabela 2. Quando analisada a média do escore por sexo, encontrou-se no sexo feminino 1,89 ponto (d.p.±1,44) e no sexo masculino 1,48 ponto (d.p.±1,50). Ao utilizar a classificação revisada de CHADS2, que usa baixo risco (escore=0), médio risco (escore=1) e alto risco (escore=2) (11), a distribuição dos pacientes ficou em 23,3%, 28,8% e 47,9%, respectivamente. Encontrou-se uma média de idade de 75,85 anos para o grupo de alto risco; nesse grupo, quanto ao gênero foi encontrado que 62,9% eram do sexo feminino e 37,1% masculino. Ao reclassificar a amostra utilizando o CHADS2 clássico que 194 utiliza baixo risco (escore=0), médio risco (escore=1-2) e alto risco (>2) (13), a distribuição dos pacientes ficou em 23,3%, 52% e 24,6%, respectivamente. Ao cruzar as variáveis do escore CHADS2 entre si fazendo associações bivariadas, foram encontrados valores estatisticamente significantes para: idade ≥75, sendo esta associada ao maior risco de HAS em 1,65 vezes com valor de p=0,003, idade ≥75 anos também está associada ao maior risco de AVC/AIT em 5,42 vezes com valor de p=0,02 e que a presença de DM está associada ao aumento de risco para AVC/AIT em 4,21 com p=0,03. DISCUSSÃO A distribuição da amostra dos 73 pacientes portadores de FA segundo o gênero mostrou maior frequência do sexo feminino, com 52,1%, resultado este que corrobora com os estudos de Henriksson et al. (12) e Gage et al. (11), que também encontraram uma maior prevalência do sexo feminino em suas pesquisas. Este fato pode se justificar, também, pela maior média de idade do sexo feminino enTabela 1 – Dados sociodemográficos dos pacientes portadores de Fibrilação Atrial atendidos em um Hospital no Sul de Santa Catarina, no período de 2009 a 2013. n % Gênero Feminino 38 52,1% Masculino 35 47,9% Brancos 67 91,8% Não Brancos 6 8,2% Solteiro 5 6,8% Casado 46 63% Viúvo 17 23,3% Raça Estado Civil Grau de Escolaridade Analfabeto 1 1,4% Ens. Fund. Incompleto 11 15,1% Ens. Fund. Completo 47 64,4% Ens. Med. Incompleto 1 1,4% Ens. Med. Completo 11 15,1% Superior Completo 2 2,7% Profissão Aposentado 19 26% Agricultor 7 9,6% Profissional Liberal 14 19,2% Outros 18 24,7% Idade Média (dp) 65,32 (±17,07 anos) Feminina 70,97 anos Masculina 58,41 anos Ens: ensino; Fund: Fudamental; Med: médio; dp: desvio padrão Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 192-197, jul.-set. 2015 PERFIL CLÍNICO DOS PACIENTES PORTADORES DE FIBRILAÇÃO ATRIAL ATENDIDOS EM UM HOSPITAL DO SUL DE SANTA CATARINA Machado et al. Tabela 2 – Classificação dos pacientes portadores de FA de acordo com o escore CHADS2 no período de 2009 a 2013. CHADS2 Escore n % 0 17 23,3% 1 21 28,8% 2 17 23,3% 3 9 2,3% 4 3 4,1% 5 6 8,2% 6 0 0% 73 100,0% Total contrada, o que é observado no estudo de Maes et al (13), o qual utilizou uma população acima de 75 anos, encontrando em sua amostra uma prevalência do sexo feminino de 57% nos pacientes portadores de FA (13). Resultado conflitante foi obtido em outros estudos, como no estudo Framimgham, que verificou maior prevalência de FA no sexo masculino (14). A média de idade de toda amostra encontrada nos pacientes avaliados foi de 65,32 anos (d.p.=±17,07), dados diferentes de outros estudos que encontraram média de idade 73 anos (15,16). Este padrão de idade inferior no grupo pesquisado pode estar relacionado à população masculina, cuja média foi de 58,4 anos, reduzindo a média geral para uma idade menos elevada. A média feminina de 70,9 anos apresenta-se muito próxima dos demais estudos (15-17). O perfil educacional encontrado neste estudo serve de alerta para os profissionais da saúde quando forem iniciar uma terapêutica para os pacientes portadores de FA, pois constatou-se que 82,2% não possuíam ensino médio completo, fato este que pode gerar dificuldade em entender o tratamento e/ou adesão do mesmo pelos pacientes. Não foi encontrado nenhum estudo que levasse em conta o perfil educacional das pessoas acometidas por esta doença. Portanto, ressalta-se a necessidade de continuar investigando o perfil dos portadores de FA no que se refere ao grau de escolaridade, visto que a má adesão do tratamento e o baixo entendimento são fatores que podem dificultá-lo a curto e longo prazo. Em relação às comorbidades, a mais prevalente neste estudo foi a HAS com 68%, resultado que também é descrito na maioria da literatura, como no estudo de Framingham, que associa HAS como principal fator de risco para FA (18). Em segundo lugar, constatou-se que a IC acomete 31% da amostra. Este índice desta comorbidade que ocupa a segunda posição também foi verificado no estudo (17). A pontuação de acordo com a classificação CHADS2 demonstrou que o escore 0 totalizou 23,3% da amostra, resultado divergente de muitos estudos que apontam um percentual inferior para o escore 0. Tal fato pode ser justificado pela idade média dos pacientes menor em relação à idade média apresentada nos demais estudos nesta área. Cabe lembrar que, quando se observa uma idade média Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 192-197, jul.-set. 2015 acima de 75 anos, praticamente todos os pacientes terão 1 ponto. Essa característica do estudo demonstra uma grande importância para conhecer o perfil dos pacientes portadores de FA com idade média abaixo de 75 anos. O escore 1 totalizou 28,8% da amostra, resultado muito próximo do estudo de Rietbtock et al. (19), que avaliou 51.807 pacientes portadores de FA e encontrou 30% da sua amostra no escore 1. O escore 2 foi representado por 23,3% da amostra, que também fica próximo do resultado de Heinisch et al. (20), o qual encontrou 25%. Estes percentuais se enquadram dentro dos valores propostos pelos estudos utilizados na meta-análise desenvolvida por Santos et al. (5), que utilizou na sua revisão 6 artigos para averiguar se o escore de CHADS2 é eficaz na predição de eventos cerebrovasculares (5) . Nesta pesquisa, também se observou que 47% dos pacientes possuíam o escore maior ou igual a 2 pontos, classificados como alto risco pelo escore de CHADS2 revisado, tendo indicação de tratamento preventivo com anticoagulação, caso não exista ressalva pelo risco de sangramento. Existem várias ferramentas para estimar o risco de sangramento, a grande maioria dos artigos consultados e as diretrizes internacionais utilizam o escore de HAS-BLEED, que é o método mnemônico em inglês da abreviação de: hipertensão arterial; função renal anormal; função hepática anormal; histórico de AVE; sangramento recente ou coagulopatia; INR instável; idade > 65 anos; uso de drogas que promovam sangramento; uso excessivo de álcool. A cada uma destas variáveis é atribuído 1 ponto, sendo que se todas estas características estiverem presentes, a pontuação máxima será 9. Quando o resultado for ≥3, o paciente é classificado como alto risco de sangramento, porém não há contraindicação para anticoagulação, nestes casos é recomendada uma atenção redobrada para com os pacientes (22). Os pacientes de escore de risco médio = 1, que totalizaram 28,8% da amostra, teriam indicações de usar antiagregante plaquetário para prevenção ou até mesmo anticoagulante oral, como defendem Gorin et al. (23), indicando a eficácia do uso de warfarin em pacientes com esse escore para prevenir AVE. Os pacientes com escore 0 se beneficiariam de uma investigação mais profunda, como mandam as recomendações da sociedade europeia de cardiologia (2010) para classificar os pacientes em “verdadeiro baixo risco” e baixo risco, utilizando o escore CHA2DS2VASC2, que é uma evolução do CHADS2 alterando: a pontuação da idade ≥ 75 anos para 2 pontos, a parte do VASC consiste em: doença arterial periférica = 1 ponto, idade entre 65-74 = 1 ponto, sexo feminino = 1 ponto, a pontuação máxima desse escore é 9 e classifica os pacientes em: baixo risco (escore=0), médio risco (escore=1) e alto risco (escore ≥2) (23). O risco para desenvolver AVE nos pacientes classificados como baixo risco conforme o CHA2DS2VASC2 é de 0,8% ao ano, demonstrado no trabalho feito por Aakre et al. (25), que analisou o risco de cada variável deste escore. Já o risco para os classificados com CHADS2 = 0 foi de 1,5% ao ano. Essa diferença demonstra a grande importân195 PERFIL CLÍNICO DOS PACIENTES PORTADORES DE FIBRILAÇÃO ATRIAL ATENDIDOS EM UM HOSPITAL DO SUL DE SANTA CATARINA Machado et al. cia de se classificar os pacientes em verdadeiro baixo risco, já que os mesmos apresentam 0,7% de chances a menos para desenvolver AVE em relação aos classificados como baixo risco, determinado pelo escore CHADS2. Como o presente estudo baseou-se em uma análise retroativa de prontuários, não foi possível encontrar os dados para preencher adequadamente a classificação do CHADS2VASC2 de todos os pacientes e reclassificá-los em ver2 dadeiro baixo risco e baixo risco. Ao classificar os pacientes utilizando o escore clássico CHADS2, houve um aumento de 23,3% no grupo de médio risco e uma redução desta mesma porcentagem do grupo de alto risco. No grupo de baixo risco, não houve alteração, permanecendo o mesmo do escore revisado. Com esta reclassificação, o escore clássico deixa de recomendar a tromboprofilaxia de 23,3% da amostra. O estudo ATRIA (26) afirma que o escore clássico acaba subestimando o risco de desenvolver AVE, pois classifica os pacientes que possuem escore 1-2 como risco intermediário. A Associação Americana do Coração (2014) (27) demonstrou que pacientes que obtiveram a pontuação de 2 possuem uma probabilidade de 4% ao ano de desenvolver AVE, sendo assim, já classificados como alto risco. Então, os pacientes do grupo intermediário pelo escore clássico que possuem pontuação igual a 2 se beneficiariam do uso de anticoagulante, como já foi constatado em outros estudos (7,27). Dentro dos resultados estatisticamente significativos ao cruzar as variáveis do escore CHADS2, verificou-se que a idade maior ou igual a 75 anos é fator de risco para desenvolver HAS, resultado confirmado na literatura, que mostra uma prevalência de 75% de HAS na população acima de 70 anos, segundo a VI Diretriz Brasileira de Hipertensão (28). Além da idade ≥ 75anos, constatou-se que a presença de DM é fator de risco para AVE, fato sustentado na literatura, também defendido por Friber et al. (29), onde utilizou um estudo de coorte com 182.678 indivíduos, encontrando um risco relativo de 1,78 % ao ano de desenvolver FA em portadores de DM. Como esta pesquisa utilizou-se de metodologia transversal, certas limitações ocorreram por conta da impossibilidade de afirmar o fator causalidade. Outro fator limitante do trabalho foi a análise de dados secundários retirados de prontuários, pois muitos estavam preenchidos de forma incompleta, errônea e/ou com diagnóstico não compatível com FA, o que gerou uma grande perda na amostra. Este fato acaba por alertar os profissionais da área da saúde para o preenchimento completo e correto dos dados referentes a cada paciente, o registro fiel e mais detalhado permitirá estudos mais profundos e fidedignos. CONCLUSÃO Este estudo demonstrou que pelo perfil dos pacientes com FA atendidos em um Hospital no Sul de Santa Catarina, no período de janeiro de 2009 a dezembro de 196 2013, a doença de base que mais acometeu esta população é HAS, seguida de IC, a média de idade é de 65,32 anos. Nota-se a importância de classificar estes pacientes devido à alta morbimortalidade e custos dos pacientes portadores de FA, que podem ser reduzidos com o tratamento de anticoagulação e/ou com antiagregante plaquetário. Fica claro que os pacientes com escore maior ou igual a 2 são altamente beneficiados, mostrando a validação do escore CHADS2 revisado e que os pacientes que ficam no escore de 0 a 1 se beneficiam de uma investigação mais detalhada para iniciar o seu tratamento. utilizando o escore CHA2DS2 VASC2 como recomendam as diretrizes atuais. Espera-se que este trabalho possa servir de suporte para aprofundamentos futuros nesta área. Este tipo de investigação pode trazer benefícios para as instituições ao traçar o perfil dos pacientes portadores de FA que procuram atendimento médico. REFERÊNCIAS 1. Wann LS, Curtis AB, January CT, Ellenbogen AK , Lowe EL, Mark Estes III NA, et al. 2011 ACCF/AHA/HRS focused update on the management of patients with atrial fibrillation (updating the 2006 guideline): a report of the American College of Cardiology Foundation/American Heart Association Task Force on Practice Guidelines. Circulation. 2011;123:104-23. 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Métodos: Estudo observacional transversal, por meio de análise de prontuários de indivíduos em uso de BZDs há pelo menos dois meses, cadastrados em duas Unidades de Saúde da Família (USF) do município de Tubarão/SC. Resultados: Foram identificados 203 indivíduos em uso de BZDs, correspondentes a 4,7% da amostra total, sendo a prevalência maior na área rural (6,7%) do que na área urbana (3,3%; RP 2,03 IC95% 1,55-2,68; p<0,001). Entre os usuários, 72,9% são do sexo feminino, 70% são casados, 75,9% não estão inseridos no mercado de trabalho e possuem em média 60,16 (±13,73) anos. O medicamento mais relatado foi o clonazepam (48,8%), seguido pelo diazepam (26,6%). O clínico geral emitiu 56,7% das prescrições, e as principais indicações foram referentes aos sintomas depressivos, ansiosos e dificuldade para dormir. O tempo mediano de uso do medicamento foi 4 anos (0-15 anos). Os residentes da área rural apresentaram maior tempo de uso e maior número de receituários renovados. Conclusão: O consumo de BZD foi maior entre mulheres, idosos, casados e indivíduos economicamente inativos e moradores da área rural. A maioria das prescrições foi realizada por um clínico geral. UNITERMOS: Benzodiazepínicos, Serviços de Saúde Rural, Perfil de Saúde, Medicamentos sob Prescrição. ABSTRACT Introduction: Benzodiazepines (BZDs) are psychotropic drugs that act in the control of mood disorders and anxiety. The aim of this study was to assess BDZs consumption in two health units located in a urban and in a rural area in Tubarão, SC, from the characteristics of users and medications used. Methods: A cross-sectional, observational study, through analysis of medical records of individuals using BDZs for at least two months, registered in one of two Family Health Units in the city of Tubarão, SC. Results: 203 users of benzodiazepines were identified, corresponding to 4.7% of the total sample, with a higher prevalence in the rural (6.7%) than in the urban area (3.3%; PR 2.03 CI 9595% 1.55 to 2.68; p <0.001). Among the users, 72.9% are female, 70% are married, 75.9% are not included in the labor market, and the mean age is 60.16 (± 13.73). The most frequently reported drug was clonazepam (48.8%), followed by diazepam (26.6%). 56.7% of prescriptions were issued by a general practitioner and the main indications were related to depressive symptoms, anxiety and difficulty sleeping. The median duration of drug use was 4 years (0-15 years). Residents of rural areas showed longer use and more prescriptions renewals. Conclusion: BZDs consumption was higher among females, older, married, and economically inactive individuals and residents of the rural area. Most prescriptions were performed by a GP. KEYWORDS: Benzodiazepine, Rural Health Services, Health Profile, Prescription Drugs. 1 2 Aluna do Curso de Medicina da Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul). Mestre em Epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora da Faculdade de Medicina na Unisul, Tubarão/SC. 198 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 198-203, jul.-set. 2015 DESAFIOS NA PRESCRIÇÃO DE BENZODIAZEPÍNICOS EM UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE Mezzari e Iser INTRODUÇÃO Na prática clínica, os benzodiazepínicos (BZDs) são drogas psicotrópicas que agem no sistema nervoso central, atuando no controle de transtornos de ansiedade e pânico, insônia, epilepsia, além de ser adjuvante no tratamento das principais psicoses, abstinência alcoólica e sedação para a realização de procedimentos cirúrgicos (1,2). Assim, a substância foi aderida de forma positiva pela classe médica, sendo considerada, inicialmente, uma medida terapêutica segura e de baixa toxicidade em relação aos barbitúricos. Este contexto proporcionou a cronificação de tratamentos e o consumo indiscriminado (3). Estima-se que os BZDs já tenham sido consumidos por 1 a 3% de toda a população ocidental de forma regular por mais de um ano (4). Sabe-se ainda que um em cada dez adultos recebe prescrição de BZD por um clínico geral, de acordo com o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (5). Já em relação ao perfil dos usuários, a predominância é do sexo feminino, estado civil casado, donas de casa e baixo nível socioeconômico, segundo a literatura (6-9). No Brasil, os dados corroboram com a literatura científica internacional relacionada às estatísticas sobre a prática inadvertida dos BZDs, conforme análise do II Levantamento domiciliar sobre o uso de medicamentos psicotrópicos, apurado em 2005. O Sudeste e Sul são, respectivamente, as regiões que possuem as maiores proporções de indivíduos em consumo do fármaco. Calcula-se que a utilização da substância dobra a cada cinco anos (8). Os efeitos colaterais, a dependência e a abstinência devem ser considerados perante a análise do risco e benefício ao tratamento. A educação médica a respeito do aconselhamento ao paciente deve ser valorizada de modo a melhorar a qualidade das orientações fornecidas e aderência consciente por ambas as partes. O presente trabalho visa à avaliação da atual situação relacionada ao uso de benzodiazepínicos em pacientes atendidos em duas unidades de saúde de Tubarão/SC, sendo uma de área urbana e outra de área rural, com base na descrição das características do usuário e dos medicamentos utilizados. MÉTODOS Foi realizado um estudo epidemiológico com delineamento observacional do tipo transversal. A população do estudo consistiu em indivíduos em uso de Benzodiazepínicos (BZDs) havia pelo menos dois meses, cadastrados em duas Unidades de Saúde da Família (USF) do município de Tubarão/SC: USF Vila Esperança, localizada em região urbana, e USF Km 63, pertencente à zona rural. Essas unidades de saúde foram selecionadas por conveniência a partir de informações fornecidas pela coordenadora da Estratégia de Saúde da Família (ESF) do município, seguindo os critérios de: método de organização dos prontuários na Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 198-203, jul.-set. 2015 equipe, qualidade dos registros em prontuários e dos cadastros das agentes comunitárias de saúde (ACS), facilidade de acesso à área e zona territorial. Os indivíduos consumidores do fármaco foram inicialmente selecionados através dos registros controlados pelas ACS, em função da sua qualidade, seguido de uma busca de dados de forma ativa nos prontuários destes mesmos pacientes, para coleta de informações adicionais sobre o uso de medicamentos. A pesquisadora teve acesso aos prontuários mediante ciência das coordenações e demais profissionais das equipes de saúde envolvidas no estudo. Foram estudadas variáveis relacionadas ao perfil dos pacientes incluindo: sexo, idade, estado civil e profissão. As variáveis direcionadas ao uso do medicamento, como ano de início do consumo, medicação genérica prescrita, número de receituários renovados até a data da coleta dos dados, indicação primária do uso (diagnóstico inicial), existência de acompanhamento psiquiátrico e última consulta direcionada para a reavaliação quanto à necessidade do seguimento do tratamento, também foram investigadas. Ao término da busca das variáveis nas duas USF, foi realizada uma análise comparativa entre as zonas rural e urbana. Os dados foram organizados e analisados no software Epinfo 3.5.4, de domínio público, sendo os dados faltantes excluídos análise por análise. As variáveis quantitativas foram descritas por meio da média ou mediana como medida de tendência central e o desvio-padrão e variações para mensurar a dispersão dos dados, de acordo com a normalidade dos mesmos a partir do teste de Shapiro-Wilk. As variáveis qualitativas foram descritas por meio de frequência absoluta e percentual. As diferenças nas proporções foram testadas pelo teste de qui-quadrado (X2) ou prova exata de Fisher, e diferenças de médias pelo teste t ou de medianas pelo teste U de Mann-Whitney, conforme adequação dos dados. Para comparação de prevalências, foi utilizada a Razão de Prevalência (RP), com intervalo de confiança (IC) de 95%. O nível de significância estatística adotado foi de 5% (valor de p < 0,05). Este estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL), em cumprimento às normas e diretrizes para pesquisa envolvendo seres humanos, constante na Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (parecer número 384.575, de 12/09/2013). RESULTADOS Foram analisadas na unidade rural, ESF Km 63, cinco microáreas, o que representa a totalidade das 600 famílias cadastradas. Na área urbana, ESF Vila Esperança, foram estudadas cinco das sete microáreas existentes, em virtude de afastamento e férias de duas das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS) no período da coleta de dados. As cinco microáreas estudadas nesta última englobam 827 famílias, cerca de 71% do total de pessoas vinculadas ao serviço. 199 DESAFIOS NA PRESCRIÇÃO DE BENZODIAZEPÍNICOS EM UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE Mezzari e Iser Foram identificados 203 indivíduos em uso dos benzodiazepínicos (BZD) nas duas Unidades de Saúde incluídas no estudo, sendo 121 (59,6%) na área rural e 82 (40,4%) na área urbana. Considerando uma média de três indivíduos por família, pode-se estimar um total de 1.800 pessoas na área rural e 2.481 na área urbana. Com base nessa população total, pode-se estimar uma prevalência de uso de BZD maior na área rural (6,7%) do que na área urbana (3,3%; RP 2,03 IC95% 1,55-2,68; p<0,001). A análise das características dos pacientes em uso de BZD revelou uma maior frequência entre as mulheres (72,9%) e entre os casados (70%), com média de idade de 60,16 (±13,73) anos. Na categoria profissão, 109 (53,7%) pessoas são aposentadas, 45 (22,2%) do lar e 42 (20,7%) indivíduos foram classificados em outras ocupações, como comerciante, diarista e pedreiro. Esse perfil foi semelhante entre as áreas rural e urbana (Tabela 1). A respeito do diagnóstico inicial atribuído à justificativa do uso medicamentoso para determinado paciente, contabilizou-se um total de 78 (38,4%) indicações por Transtorno Depressivo Maior; tal achado altera-se para 28,9% em área rural e 52,4% em perímetro urbano. Já os registros por Insônia e Transtorno de Ansiedade Generalizada englobaram 43 (21,2%) e 27 (13,1%) indivíduos da amostra total, respectivamente. Outras patologias descritas foram: Esquizofrenia, Epilepsia e Transtorno do Pânico. Dos pacientes avaliados, 12,8% não possuíam esta variável especificada em prontuário (Tabela 2). Os medicamentos usados em um primeiro momento com maior frequência foram clonazepam (38,9%), seguidos do diazepam (26,6%) e bromazepam (20,7%). Este padrão modificou-se em meio urbano, sendo equivalente a 48,8% dos pacientes adeptos ao clonazepam e apenas 14,6% para o diazepam. Em relação ao medicamento usado atualmente, Tabela 1 – Características sociodemográficas dos pacientes usuários de benzodiazepínicos em duas unidades de saúde de Tubarão/SC, segundo área geográfica. Amostra estudada Amostra Total N (%) Área Rural N (%) Área Urbana N (%) 203 (100) 121 (59,6) 82 (40,4) Sexo Feminino 148 (72,9) 85 (70,2) 63 (76,8) Masculino 55 (27,1) 36 (29,8) 19 (23,2) Estado civil Solteiro 8 (3,9) 7 (5,8) 1 (1,2) Casado 142 (70,0) 84 (69,4) 58 (70,7) Divorciado 32 (15,8) 19 (15,7) 13 (15,9) Viúvo 21 (10,3) 11 (9,1) 10 (12,2) Aposentado 109 (53,7) 69 (47,0) 40 (48,8) Do lar 45 (22,2) 26 (21,5) 19 (23,2) Profissão Outros Média de idade ± DP 200 42 (20,7) 19 (15,7) 23 (28,0) 60,16 (13,7) 60,65 (14,3) 59,45 (12,8) ou seja, no momento da coleta de dados, foram estimados 48,8% associados ao clonazepam e 20,2% ao diazepam na amostra total. Nas duas áreas distintas analisadas, também foi verificada uma maior frequência atual no consumo de clonazepam em relação ao diazepam (Tabela 2). Englobando a amostra completa da pesquisa, foi avaliada a especialidade do médico responsável pela prescrição inicial do BDZ, o qual totalizou 115 (56,7%) indicações pelo clínico geral, médico responsável pela unidade de saúde, 44 (21,7%) por psiquiatras e, também, 44 (21,7%) foram classificados em outras especialidades, com destaque para os cardiologistas e neurologistas (Tabela 2). O tempo de uso dos BZDs variou de 0 a 15 anos, com mediana de 4 anos e média de 5,0 (±3,4) anos, com maior tempo de uso na zona rural do que na área urbana (Tabela 3). No total, 46,3% dos pacientes utilizam o medicamento há cinco anos ou mais, sendo que destes 52,9% são residentes da zona rural e 36,6% estão entre os da zona urbana. A mediana de receituários renovados foi de 22, com ampla variação (de 1 a 85). O número de receituários renovados foi maior para a área rural (28; 1-85) em relação à urbana (15; 2-47), aumentando de acordo com o tempo de uso do medicamento, conforme demonstrado na Tabela 3. Entre os 203 usuários de BZD estudados, 120 (59,1%) não tiveram avaliação psiquiátrica, e esse percentual não Tabela 2 – Caracterização do uso de benzodiazepínicos em duas unidades de saúde de Tubarão/SC: profissional que prescreveu, diagnóstico inicial e tipo de medicamentos utilizados, segundo área geográfica. Amostra Total Área Rural Área Urbana N (%) N (%) N (%) Profissional que prescreveu Clínico Geral 115 (56,7) 63 (52,1) 52 (63,4) Psiquiatra 44 (21,7) 25 (20,7) 19 (23,2) Outro 44 (21,7) 33 (27,3) 11 (13,4) Cardiologista 19 (43,2) 12 (36,4) 7 (63,6) Neurologista 13 (29,5) 12 (36,4) 1 (9,1) Infectologista 2 (4,5) 1 (3,0) 1 (9,1) Diagnóstico inicial TDM 78 (38,4) 35 (28,9) 43 (52,4) Distúrbio do Sono 43 (21,2) 27 (22,3) 16 (19,5) TAG 27 (13,3) 16 (13,2) 11 (13,4) Não informado 26 (12,8) 23 (19,0) 3 (3,7) Clonazepam 78 (38,9) 39 (32,2) 40 (48,8) Diazepam 54 (26,6) 42 (34,7) 12 (14,6) Bromazepam 42 (20,7) 24 (19,8) 18 (22,0) Clonazepam 99 (48,8) 52 (43,0) 47 (57,3) Diazepam 41 (20,2) 34 (28,1) 7 (8,5) Bromazepam 37 (18,2) 21 (17,4) 16 (19,5) Medicamento Inicial Medicamento Atual Nota: TDM= Transtorno Depressivo Maior TAG= Transtorno de Ansiedade Generalizada Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 198-203, jul.-set. 2015 DESAFIOS NA PRESCRIÇÃO DE BENZODIAZEPÍNICOS EM UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE Mezzari e Iser Tabela 3 – Descrição do tempo de uso, renovações de receita e acompanhamento psiquiátrico entre usuários de benzodiazepínicos em duas unidades de saúde de Tubarão/SC, segundo área geográfica. Mediana de tempo de uso (min-max) Amostra Total (N=203) Área Rural (N=121) Área Urbana (N=82) Nº (%) Nº (%) Nº (%) Valor p 4 (0-15) 5 (0 – 15) 3 (0 – 14) 0,0008* 22 (1 – 85) 28 (1 – 85) 15 (2 – 47) <0,001* ≥ 5 anos 36,5 (1 – 85) 47,5 (1 – 85) 25,0(5 – 47) <0,001** < 5 anos 15,0 (1 – 57) 19,0 (1 – 57) 12,0 (2 – 47) Mediana nº receituários renovados (min-max) Mediana de renovações de acordo com o tempo de uso (min-max) Acompanhamento Psiquiátrio Sim 83 (40,90) 50 (41,30) 33 (40,2) 0,87# Início do consumo no psiquiatra 45 (22,20) 19 (15,70) 26 (31,70) 0,0071# Não 120 (59,10) 71 (58,70) 49 (59,80) 0,87# * teste U de Mann-Whitney **valor de p correspondente à comparação de medianas, segundo tempo de uso em cada área # teste do Qui-quadrado apresentou diferença estatisticamente significativa entre as áreas abordadas. Por outro lado, na população da área rural, 15,7% iniciaram o consumo junto com a avaliação psiquiátrica, frequência menor do que a verificada nos pacientes do perímetro urbano (31,7%) (Tabela 3). DISCUSSÃO A classe medicamentosa dos benzodiazepínicos (BZDs) é uma das mais prescritas no mundo. Atualmente, representa 85% de todas as vendas de psicotrópicos, detendo aproximadamente 5,8% do mercado mundial (10). No Brasil, esta prevalência é cerca de 3,8%, ocupando a terceira colocação em vendas (4). De acordo com o Centro Brasileiro de Informação sobre Drogas (CEBRID), o uso de BZD em algum momento na vida por pessoas de 12 a 65 anos mostrou um aumento de 3,3% para 5,6%, no período compreendido entre 2001 e 2005 (8). Na presente pesquisa, o consumo da substância referente à amostra total revelou-se abaixo da média nacional (4,7%), porém superior na área rural, quando analisada de forma isolada. A avaliação distinta do uso deste fármaco entre habitantes considerados rurais ou urbanos ainda é um fator pouco descrito. Contudo, a literatura evidencia uma frequência aumentada de consumo entre a população com menor renda e escolaridade (6-8), situações usualmente atribuídas à zona rural. Outra possível explicação foi relatada por um estudo que avaliou a morbidade entre trabalhadores rurais, onde os pacientes referiam os problemas laborais como principal causa para seu adoecimento. O excesso de trabalho e a desvalorização externa de seu esforço foram apontados como fatores desencadeadores da doença mental (11). Configura-se, então, uma elevada procura de BDZ como meio alternativo para amenizar este cenário, já que o amplo índice terapêutico e a boa tolerabilidade inovaram o manejo de transtornos psiquiátricos (12,13). Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 198-203, jul.-set. 2015 Entre os usuários, predominaram as pessoas do sexo feminino, casados e idosos, confirmado por outros trabalhos já publicados (6-8, 14). Atribui-se tal situação ao fato da mulher ser mais perceptiva à sintomatologia, procurar atendimento precoce, apresentar menos resistência ao uso de medicamento e, ainda, possuir uma maior expectativa de vida. Também é evidente entre elas a maior prevalência de patologias que cursam com ansiedade e depressão, enfermidades associadas a um consumo terapêutico elevado de BZD (15). Além desses fatores, Mastroianni et al. verificaram que, tanto para ansiolíticos como para antidepressivos, as propagandas de medicamentos utilizam majoritariamente figuras femininas, o que pode ter impacto direto sobre a prescrição e própria adesão ao tratamento (16). A média de idade da amostra analisada foi contabilizada em 60,16 anos, o que reforça a documentação de uma maior indicação e consumo pelo público idoso (6-8,14,17). O processo de envelhecimento é acompanhado pelo aumento de doenças neurológicas e psiquiátricas, o que justifica o alto índice de consumo por esta faixa etária. Esta condição associada à senilidade geram vulnerabilidade à polifarmácia, culminando em outras complicações, como a interação medicamentosa e o risco de toxicidade. Pesquisas apontam que mais de 80% dos indivíduos em idade avançada fazem uso diário de pelo menos um medicamento e que, apesar dos prejuízos conhecidos, o consumo do BZD tem aumentado com a idade (17). Ainda existem os efeitos aditivos com relação à depressão do sistema nervoso central quando este fármaco é associado a outros psicotrópicos (13,18). Tais desfechos revelam a importância do manejo cuidadoso desta classe medicamentosa, especialmente entre idosos. A Associação Psiquiátrica Americana (APA) concluiu que a idade avançada e o uso de BZD em doses terapêuticas são benéficos somente quando utilizado por menos de quatro meses (19). No presente estudo, a média de uso do medicamento foi bastante superior, a maioria utilizando há anos e atingindo de um a dois anos, segundo a mediana de receituários 201 DESAFIOS NA PRESCRIÇÃO DE BENZODIAZEPÍNICOS EM UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE Mezzari e Iser renovados, sem uma reavaliação médica. Nesse contexto, depara-se com um dos desafios da prescrição dessa classe medicamentosa nas unidades de saúde: a avaliação contínua desses pacientes de forma a reduzir/limitar o uso, ao invés de entrar em um ciclo vicioso de renovação de receitas. Já no Brasil, estima-se que 1,6% da população adulta seja usuária crônica de benzodiazepínicos. O uso prolongado de BZD, conceituado por uma adesão superior a seis meses (20), envolve uma provável confiança do prescritor na segurança desses agentes terapêuticos, assim como a solicitação do paciente e a procura de uma relação harmoniosa entre as duas partes, médico-paciente. Em estudo realizado na Noruega, foi relatado que entre os fatores que levam clínicos a prescreverem estes medicamentos estão a dificuldade de negar a receita, o fato de os pacientes já usarem o medicamento devido a um diagnóstico prévio de outro profissional e o desejo de dar um alento à vida do paciente (21). Como seguimento, têmse possíveis fatores explicativos para a propagação desta classe medicamentosa de forma difusa entre a população, sem o devido acompanhamento médico posterior. A presente pesquisa também mostrou um predomínio de consumo da substância entre os indivíduos sem inserção no mercado de trabalho, como aposentados e donas de casa, em relação aos trabalhadores economicamente ativos. Além do uso do medicamento ser mais comum entre os indivíduos de maior idade, tal fato pode estar relacionado a uma maior prevalência de doenças mentais entre as pessoas sem uma colocação profissional, sendo que a falta de oportunidades de ingresso no mercado de trabalho pode gerar frustrações e bloqueios sociais, que acabam por desencadear um quadro de doença mental (12,15). Em relação ao fármaco de maior adesão, o estudo concordou com as estatísticas literárias, destacando o clonazepam. Este possui um mecanismo farmacológico de meia-vida longa, porém, ainda assim, proporciona um efeito com duração reduzida quando comparado ao diazepam, segunda droga mais relatada. Desse modo, seu uso permite uma ação cumulativa matinal reduzida (13). Outros fatores associados à escolha do medicamento estariam relacionados à indução pessoal do profissional e às características culturais locais, apesar desta substância não pertencer à relação municipal de medicamentos essenciais à atenção básica em saúde e programas de saúde específicos de Tubarão (22). De acordo com o boletim do Sistema Nacional de Gerenciamento de Produtos Controlados (SNGPC), os medicamentos clonazepam, bromazepam e alprazolam foram as substâncias controladas mais consumidas pela população brasileira no período de 2007 a 2010, sendo que o clonazepam manteve-se no ápice de forma consecutiva (23). As principais indicações encontradas para o uso de BZD foram referentes aos sintomas depressivos, ansiosos e dificuldade de dormir, mesmas justificativas apontadas em outros estudos (6-8,14,17,18). Entretanto, segundo Mendonça, a presença de patologias depressivas é uma situação em que estes medicamentos devem ser introduzidos temporaria202 mente, apenas para controle da ansiedade inicial (18), o que diverge da prática clínica rotineira. Já a prevalência da insônia no Brasil e dos episódios de ansiedade, em geral, aparece em cerca de 12% a 76% da população, revelando-se, também, um problema de saúde pública. Evidências advindas de revisões sistemáticas apontam que o uso do BZD, principalmente, por mais de um mês, no tratamento de distúrbio do sono e ansiedade possui benefício limitado (24,25). Em um estudo realizado no serviço municipal de saúde de uma cidade no interior de Minas Gerais, foi constatado que em torno de 70% das prescrições emitidas possuíam indicação clínica considerada inadequada (26). Quanto à especialidade do médico, a maior ocorrência de prescrição foi realizada por um clínico geral, profissional responsável pelos pacientes de determinada área abrangida pela unidade de saúde. Os dados são compatíveis com relatos literários que também descreveram os clínicos como maiores prescritores dos BZDs (6,7,26), perfazendo 74,5% das indicações (27), seguidos por psiquiatras, cardiologistas, neurologistas. Segundo o estudo “Transtornos psiquiátricos na clínica geral”, o generalista é o profissional mais atuante em saúde mental não só no Brasil, mas também na Inglaterra, nos EUA, e no Canadá (28). Essa prática está provavelmente associada ao foco na atenção primária como primeira linha de cuidado dos pacientes da área adscrita, dentro da Estratégia de Saúde da Família, mesmo que, em situações mais graves de transtornos depressivos, outras intervenções possam ser necessárias (29,30). Nesse sentido, a prática mostra uma carência de profissionais especializados por unidade de saúde e disponibilidade limitada de medicamentos mais específicos pelo sistema público de saúde do município. Assim, apesar de a cidade de Tubarão possuir opções de atenção psicoterapêutica específica para casos de maior gravidade, estes fatores podem constituir aspectos localizados que agravam o uso inadequado do fármaco. Além disso, o acompanhamento ou avaliação psiquiátrica direcionada para a real necessidade do uso do medicamento foi pouco observado na amostra estudada, sendo o perímetro urbano responsável pelo índice de maior procura por profissionais da área, possivelmente pelo acesso facilitado e pelo maior nível de informação desta população. Como limitação do estudo, deve-se considerar que a avaliação de apenas duas unidades de saúde, as quais foram selecionadas por conveniência, pode não refletir a realidade de todo o município. Outra restrição foi a não inclusão da totalidade de microáreas existentes na unidade de saúde da região urbana, pelo afastamento de duas ACS durante o mesmo período. Ainda, a coleta de dados secundários, cuja qualidade depende da completitude dos registros médicos utilizados. CONCLUSÃO A análise do uso de Benzodiazepínicos (BZDs) de duas unidades de saúde da cidade de Tubarão/SC obteve Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 198-203, jul.-set. 2015 DESAFIOS NA PRESCRIÇÃO DE BENZODIAZEPÍNICOS EM UNIDADES BÁSICAS DE SAÚDE Mezzari e Iser resultados que corroboram com a literatura já publicada, revelando uma maior frequência de usuários entre o sexo feminino, estado civil casado, com média de 60,16 anos e não inseridos no mercado de trabalho, como aposentados e donas de casa. As áreas abrangidas no estudo, rural e urbana, apresentaram perfil semelhante de pacientes adeptos ao medicamento, porém, com maior prevalência de uso entre a população rural. As justificativas atribuídas ao consumo inicial do medicamento mais citadas foram os sintomas depressivos e ansiosos e a dificuldade em iniciar ou manter o sono, sendo o clonazepam o fármaco mais prescrito. Tal indicação foi cedida, na grande maioria das vezes, por um médico generalista, sem acompanhamento subsequente ou avaliação psiquiátrica específica. A avaliação da situação do uso de BZDs em duas unidades de saúde distintas, de meio rural e urbano, e selecionadas justamente pela maior disponibilidade e qualidade dos dados, aponta desafios importantes ao sistema de saúde local em relação aos critérios de prescrição do medicamento e ao monitoramento do seu uso, de forma a evitar a renovação de receituários como rotina dos serviços, sem o devido acompanhamento do paciente. REFERÊNCIAS 1. Andreatini R, Lacerda RB, Zorzetto DF. Tratamento farmacológico do transtorno de ansiedade generalizada: perspectivas futuras. Rev Bras Psiquiatr, São Paulo. 2001 Dec 23(4):233-42. 2. 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Endereço para correspondência Renata Mezzari Rua Professor Arlindo Junckes, 125/C.P. 46 88.850-000 – Forquilhinha, SC – Brasil (48) 3463-3238 [email protected] Recebido: 17/5/2015 – Aprovado: 30/6/2015 203 ARTIGO ORIGINAL Presença e susceptibilidade aos antifúngicos do Cryptococcus spp. em excretas de pombos nos arredores dos grandes hospitais de Porto Alegre Presence and susceptibility to antifungal agents of Cryptococcus spp. in the excreta of pigeons on the outskirts of large hospitals in Porto Alegre Adelina Mezzari1, Adília Maria Pereira Wliebbelling2, Guilherme Girardi May3, Guilherme Carvalho Albé3, Henrique Perez Filik3, Diego Esquerdo4, Nicole Christina Garofalo Fidalgo4, Paulo Renato Petersen Behar5 RESUMO Introdução: Os fungos do gênero Cryptococcus, principalmente as espécies C. neoformans e C. gattii, são patógenos que causam a meningoencefalite, principalmente em indivíduos imunocomprometidos. O fungo é inalado, sendo as excretas de aves o nicho mais evidente do C. neoformans e as árvores do C. gattii. O presente estudo visa pesquisar o fungo Cryptococcus spp. nos arredores de grandes hospitais de Porto Alegre e verificar a susceptibilidade destes isolados ambientais aos antifúngicos. Métodos: Foram coletadas 87 amostras de excretas de pombos no entorno de seis hospitais de Porto Alegre e semeadas. As colônias leveduriformes foram analisadas macro e microscopicamente e submetidas a provas bioquímicas e moleculares. Posteriormente, estes isolados foram submetidos aos testes de susceptibilidade aos antifúngicos Etest® (Biomérieux) e MIC Strip Test® (Leofilchem). Resultados: Os fungos do gênero Cryptococcus foram isolados em seis amostras, sendo que cinco foram identificados, pelas provas convencionais, como o C. neoformans e uma o C. gattii, porém estas espécies não foram confirmadas pelas provas moleculares. No antifungigrama se encontraram entre os isolados de C. neoformans faixas de valores de concentração inibitória mínima (CIM) de 0,25-8 μg/ml para anfotericina B, 0,125->32 μg/ml para cetoconazol, 0,75->256 μg/ml para fluconazol, 0,125->32 μg/ml para voriconazol, e todas apresentaram CIM >32 μg/ml para itraconazol. Conclusões: A presença deste fungo em áreas hospitalares pode configurar um risco biológico, já que nestas áreas circulam muitos indivíduos imunocomprometidos, e a presença de cepas resistentes aos antifúngicos pode levar a uma diferente forma de conduzir o tratamento das patologias provocadas por esta levedura. UNITERMOS: Cryptococcus spp., Cryptococcus neoformans, Cryptococcus gattii, Criptococose, Antifúngicos. ABSTRACT Introduction: Fungi of the Cryptococcus genus, mainly the species C. neoformans and C. gattii, are pathogens that cause meningoencephalitis, especially in immunocompromised individuals. The fungus is inhaled, with the excreta of birds being the most obvious niche of C. neoformans and trees of C. gattii. This study aims to find the Cryptococcus spp. fungus on the outskirts of large hospitals in Porto Alegre and check the susceptibility of these environmental isolates to antifungal agents. Methods: We collected 87 samples of pigeon feces in the surroundings of six hospitals in Porto Alegre and cultured them. The yeast colonies were analyzed macroscopically and microscopically and subjected to biochemical and molecular tests. Subsequently these isolates were submitted to susceptibility tests to antifungals Etest® (Biomerieux) and MIC Strip Test® (Leofilchem). Results: Fungi of the Cryptococcus genus were isolated in 6 samples, of which 5 were identified by conventional tests, such as C. neoformans and C. gattii, but these species were not confirmed by molecular tests. On antifungal susceptibility tests in C. neoformans isolates showed minimum inhibitory concentration values (MIC) ranging from 0.25 to 8 g/ml for amphotericin B, 0.125-> 32 ug/ml for ketoconazole, 0,75-> 256/ml for fluconazole, and 0.125->32 ug/ml for voriconazole, and all showed MIC>32 mg/ml for itraconazole. Conclusion: The presence of this fungus in hospital areas may pose a biohazard, as many immunocompromised individuals circulate in these areas, and the presence of antifungal resistant strains can lead to a different way of conducting the treatment of disorders caused by this yeast. KEYWORDS: Cryptococcus spp., Cryptococcus neoformans, Cryptococcus gattii, Cryptococcosis, Antifungal. 1 2 3 4 5 Professora Associada na Faculdade de Farmácia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). Professora orientadora do Projeto de Iniciação Científica do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Professora assistente na UFCSPA. Acadêmico do curso de Medicina da UFCSPA. Acadêmico do curso de Medicina da UFCSPA. Bolsista do projeto “Jovens talentos para a Ciência” do CNPq. Professor adjunto de Infectologia da UFCSPA e médico-chefe do Serviço de Infectologia da Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. 204 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 204-208, jul.-set. 2015 PRESENÇA E SUSCEPTIBILIDADE AOS ANTIFÚNGICOS DO CRYPTOCOCCUS SPP. EM EXCRETAS DE POMBOS... Mezzari et al. INTRODUÇÃO O fungo Cryptococcus contém duas espécies reconhecidas por seu potencial patogênico, o C. neoformans e o C. gattii (1). Já existem relatos de infecções também por outras espécies, como o C. laurentti e C. albidus(2). Ambos os patógenos podem afetar hospedeiros imunocompetentes e imunocomprometidos, provocando infecções pulmonares no sistema nervoso central e disseminadas para outros órgãos ou sistemas (3). Atualmente, já está bem estabelecida a relação entre as infecções pelo C. neoformans e pacientes (4,5,6). A presença do C. gattii está relacionada principalmente aos eucaliptos, madeira em decomposição e ocos de árvores tropicais, como cássia, oiti, fícus, mulungu, e guttarda (7). No nordeste e norte do Brasil, essa micose é endêmica (8). Com o aumento da incidência do C. gattii em regiões de climas temperados, tem mudado o conceito de que se restringia apenas a climas tropicais (9,10). O C. neoformans é cosmopolita comumente encontrado na natureza, em excretas de aves (11). Essas excretas são um substrato para a levedura, pela presença de ureia e creatinina como fontes de nitrogênio e pH alcalino necessário para o desenvolvimento do fungo (12). Estudos mostram a presença do C. neoformans em aves como psitacídeos e passeriformes (13,14,15), mas o principal reservatório deste fungo são as excretas dos pombos pela sua adaptação ao ambiente (15), expondo, assim, a população a esse patógeno. O contágio ocorre pela inalação dos elementos fúngicos presentes no ambiente e pela deposição alveolar (7). O desenvolvimento da criptococose em indivíduos após exposição ambiental de fonte infectante requer cuidados pelos indivíduos. A presença de reservatórios nos arredores dos hospitais pode configurar um importante problema de saúde pública, visto que nestas áreas existem indivíduos imunocomprometidos, portanto, um grupo de risco para adquirirem a criptococose. Este estudo tem como objetivo isolar e identificar o fungo Cryptococcus spp. em excretas de aves nos arredores de grandes hospitais de Porto Alegre e avaliar a susceptibilidade dos isolados aos antifúngicos comumente usados no tratamento da criptococose. O projeto original foi aprovado pelo Comitê de Ética e Pesquisa da UFCSPA sob o número 10-729. MÉTODOS Foram coletadas excretas de pombos nas regiões que circundam as áreas externas de hospitais em Porto Alegre. Foram a Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (ISCMPA), o Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA), o Hospital de Pronto Socorro (HPS), o Hospital Moinhos de Vento (HMV), o Hospital São Lucas da PUCRS (HSLP) e o Grupo Hospitalar Conceição (GHC). Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 204-208, jul.-set. 2015 A escolha deses hospitais foi determinada por serem locais de intensa circulação de pessoas, tanto imunocompetentes como imunocomprometidos, e por conter grande quantidade e constante presença de pombos. O recolhimento das amostras foi feito semanalmente, durante o período de janeiro a dezembro de 2013, totalizando 87 amostras. Todas as coletas foram realizadas em locais abertos, em volta dos hospitais nas calçadas ou ruas, com grande fluxo de pessoas. Para o recolhimento das amostras, foi utilizada uma espátula de madeira estéril, e as excretas recolhidas foram depositadas em um frasco estéril. Com o intuito de diferenciar as excretas de pombos das de outras aves, as coletas foram feitas em locais onde foi observada a presença constante dos pombos. É importante ressaltar que nenhum experimento foi realizado com tais animais durante o estudo, foram utilizadas somente excretas presentes nos locais de coleta, em respeito aos princípios éticos de experimentação animal do Colégio Brasileiro de Experimentação Animal (16) e de acordo com os critérios estabelecidos no Guide for Care and Use of Laboratory Animals (17). As amostras foram recolhidas e processadas no laboratório de Parasitologia e Micologia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA) O processamento das amostras seguiu o protocolo descrito por Passoni et al. (1998)(18), através da cultura em agar Sabouraud dextrose com cloranfenicol e agar níger, incubadas em estufa na temperatura entre 25 e 30°C, durante 5 a 7 dias. No crescimento do fungo, as colônias mucoides, brilhantes e viscosas, de cor branca/creme no agar Sabouraud e de cor marrom no agar níger, indicam presuntivamente a presença do Cryptococcus spp.. Nesses casos, as colônias foram submetidas às provas confirmatórias, da urease e da canavanina-glicina-azul de bromotimol (CGB). O Cryptocopccus spp. é urease positiva. O C. gattii é resistente à L-canavanina, e cresce no meio de CGB. O C. neoformans, sensível à L-canavanina, não cresce neste meio de cultura (19). Para confirmação molecular, os isolados de Cryptococcus na cultura foram submetidos à extração de DNA utilizando o kit de extração MycXtra (Myconostica, UK). A partir do DNA extraído, foram feitos a Reação em Cadeia da Polimerase (PCR) e o sequenciamento de primers. O sequenciador utilizado foi o MegaBACETM (Amersham Biosciences®). Os fragmentos sequenciados foram analisados on line pelo software NCBI/Blast (BLAST® Basic Local Alignment Search Tool). Para a realização do antifungigrama, foram utilizados o Etest® (Biomérieux) de voriconazol, fluconazol e anfotericina B e o MIC Strip Test®(Leofilchem) para o itraconazol e cetoconazol. Foi utilizado o meio agar RPMI 1640, acrescido de MOPS e 2% de glicose em placas de 4±0,5mm. O inócuo foi obtido através da preparação de uma solução salina estéril (0,85 NaCl) até atingir a turbidez 01 na escala de McFarland. A leitura dos resultados foi realizada após 48 horas de incubação em estufa a 35°C seguindo as recomendações dos fabricantes (19). 205 PRESENÇA E SUSCEPTIBILIDADE AOS ANTIFÚNGICOS DO CRYPTOCOCCUS SPP. EM EXCRETAS DE POMBOS... Mezzari et al. RESULTADOS Das 87 amostras coletadas, 17 (19,54%) provêm dos arredores do HCPA; 18 (20,68%) da área do HPS; 12 (13,80%) em volta do HSL; 12 (13,80%) circunvizinho ao HMV, 15 (17,24%) nas proximidades do GHC e 13 (14,94%) nas imediações da ISCMPA, apresentado na Tabela 1. Após os testes confirmatórios, 6 (6,9%) amostras apresentaram resultados positivos para o Cryptococcus spp.. Das amostras positivas, duas (33,3%) provêm do HPS, duas (33,3%) do HSL, uma amostra (16,67%) do GHC (setembro de 2013), uma (16,67%) do HMV. Das seis amostras positivas submetidas às provas para identificação das espécies, uma reagiu positivamente, indicando a presença do Cryptococcus gattii, e as outras cinco não reagiram, sugerindo a presença do Cryptococcus neoformans. Na confirmação molecular, as amostras amplificaram com pelo menos um conjunto de primers. As seis amostras que amplificaram e que foram submetidas ao sequenciamento confirmaram homologia para Cryptococcus spp. no programa Blast®, uma das sequências (44 pares de bases) apresentou 92% de identidade para Cryptococcus neorformans var. grubii (número de acesso: CP003831.1); outro isolado (381 pares de bases) apresentou 96% de identidade para Cryptococcus albidus (isolado KDLYL12-1; número de acesso: JX174413.1) e uma terceira amostra (569 pares de bases) apresentou 99% de identidade para Cryptococcus albidus (isolado KDLYL12-1; número de acesso: JX174413.1). As outras três amostras, ao realizar o Blast®, apresentaram homologia com Cryptococcus spp.. O Cryptococcus neoformans var. grubii foi encontrado na amostra coletada no HSL, um isolado de Cryptococcus albidus foi encontrado no HPS e o outro no GHC. A Tabela 2 resume a susceptibilidade in vitro dos cinco isolados ambientais de C. neoformans. A anfotericina B apresentou uma ampla faixa de valores de Concentração Inibitória Mínima (CIM), variando de 0,25μg/ml até 8 μg/ ml, sendo que duas das amostras, a 8 e a 65, apresentaram resistência a este antifúngico. As faixas de valores de CIM para o fluconazol foram de 0,75μg/ml até >256 μg/ ml; para o voriconazol a faixa de valores foi de 0,125 μg/ ml até >32μg/ml; para o cetoconazol, os valores variaram entre 0,125 μg/ml até >32 μg/ml. Todas as amostras testadas apresentaram CIM >32 μg/ml para o itraconazol. As amostras 51 e 56 foram resistentes a todos os antifúngicos azólicos testados. DISCUSSÃO Em alguns locais, a limpeza frequente diminuiu o acúmulo de excretas, apesar da presença dos pombos em grande quantidade, devido aos espaços e à alimentação disponível fornecida pelos indivíduos. Outro aspecto relevante é a presença de área arborizada em torno dos hospitais com temperatura amena e sem incidência de luz solar direta, condições climáticas favoráveis para o desenvolvimento do fungo, e todas as amostras coletadas consistiram em excretas secas de aves (19). As coletas foram realizadas em ambientes abertos sem acúmulo de excretas e com fluxo intenso de pessoas, aproximando a real exposição destes indivíduos ao patógeno em questão (19,20). Esta constatação foi demonstrada por Faria et al. (20), com positividade Tabela 1 – Amostras coletadas por hospital. Porcentagem de Amostras Positivas (%) Nº de Coletas Porcentagem de Coletas Realizadas (%) Nº de Amostras Positivas HCPA 17 19,54 0 0 0 HPS 18 20,68 2 11,11 2,3 HSL 12 13,8 2 16,66 2,3 HMV 12 13,8 1 8,33 1,14 GHC 15 17,24 1 6,66 1,15 ISCMPA 13 14,94 0 0 Total 87 100 6 Hospitais Das coletas realizadas no hospital Do total de coletas 0 6,9 Tabela 2 – Susceptibilidade aos antifúngicos. 206 Amostra Anfotericina B Itraconazol Cetoconazol Fluconazol 8 2 μg/ml >32μg/ml 4 μg/ml 24 μg/ml Voriconazol 0,25 μg/ml 12 0,25 μg/ml >32μg/ml 0,75 μg/ml 6 μg/ml 0,125 μg/ml 51 0,25 μg/ml >32μg/ml >32μg/ml >256μg/ml >32μg/ml 56 0,64 μg/ml >32μg/ml >32μg/ml >256μg/ml >32μg/ml 65 8 μg/ml >32μg/ml 4 μg/ml 24 μg/ml 0,25 μg/ml Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 204-208, jul.-set. 2015 PRESENÇA E SUSCEPTIBILIDADE AOS ANTIFÚNGICOS DO CRYPTOCOCCUS SPP. EM EXCRETAS DE POMBOS... Mezzari et al. de 28,6% em engenhos e armazéns de arroz com acúmulo de excretas de aves e 11,1% em ambientes abertos. A positividade neste estudo equivale a outros estudos brasileiros que obtiveram entre 4,3% e 31,3% de amostras positivas para o C. neoformans (21,22,23,24). A amostra positiva para o C. gattii foi coletada nos arredores do HSL. Este hospital possui uma extensa área verde em seu entorno e a presença do Eucalyptus spp., um nicho deste fungo. A presença do C. gattii nas excretas de aves corrobora com os dados da literatura de que esta levedura pode também compartilhar outros nichos ecológicos (25). No entanto, a não confirmação desta espécie pela pesquisa molecular reforça a necessidade de mais estudos, pois a presença do fungo Cryptococcus é um fato confirmado nos ambientes em torno dos hospitais incluídos no presente estudo. A confirmação molecular dos achados positivos no presente estudo é semelhante ao estudo de Silva et al. 2010(26), no qual foram avaliadas a virulência e a caracterização molecular de 62 excretas de pombos e 11 amostras de árvores. O C. neoformans foi isolado em 43,8% das amostras totais. A técnica molecular por PCR tem sido considerada a de maior especificidade para identificação e diferenciação do Cryptococcus spp. (7,26), em comparação a outras técnicas bioquímicas convencionais, porém seu custo, tempo de realização e tecnologia necessária fazem com que outras provas, como a urease e o CGB, sejam mais utilizadas na prática clínica (7). Sendo assim, ainda são poucos os estudos moleculares para identificação de amostras fúngicas isoladas do ambiente e da clínica (19,26). Uma das limitações encontradas neste estudo foi a dificuldade de garantia da origem das excretas analisadas, apesar da grande quantidade de pombos presentes nos locais de coleta. Entretanto, a presença do C. neoformans em excretas de aves é relatada por Marietto et al. (2011) (15), não havendo especificidade do fungo por uma única espécie de ave. As dificuldades terapêuticas têm sido uma preocupação no tratamento da criptococose e também de outras micoses. Neste estudo, a variação das concentrações inibitórias mínimas para a anfotericina B foi muito ampla (0,25 μg/ml - 8 μg/ml), contrastando com dados da literatura que apresentam faixas estreitas de CIM para este antifúngico (27,28,29). Duas das cinco amostras testadas apresentaram resistência a este agente, fato já relatado em estudos anteriores (30). Todos os isolados neste estudo foram resistentes ao itraconazol, contrapondo a afirmação de boa resposta in vitro a este antifúngico (27,28,29,30). Favalessa et al. (28) encontraram 8% de resistência e 16% de susceptibilidade nos isolados de C. neoformans em amostras clínicas de pacientes HIV positivos. Neste estudo, o antifúngico fluconazol apresentou 40% de resistência e 20% de susceptibilidade, o que difere de outros estudos com isolados ambientais de C. neoformans, que apresentaram susceptibilidade a este antifúngico e aumenRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 204-208, jul.-set. 2015 to da resistência nos isolados de amostra clínica (28,29,30), alertando ao fato de cepas que possam naturalmente serem resistentes ao fluconazol. O cetoconazol não é indicado para o tratamento da criptococose, no entanto, foi incluído neste estudo para verificar a suscetibilidade, fato confirmado nas duas amostras isoladas neste estudo. CONCLUSÃO Apesar das amostras sequenciadas não confirmarem as espécies de C. neoformans e C. gattii, as provas fenotípicas laboratoriais indicaram a presença de Cryptococcus spp. e de ambas as espécies, estabelecendo assim o real risco de infecção dos pacientes que circulam nos hospitais. Mesmo assim, ainda são necessários mais estudos para confirmar estes achados. Sendo o ambiente a fonte deste patógeno, é importante averiguar a susceptibilidade aos agentes antifúngicos, uma vez que, possivelmente, estas cepas possam vir a infectar pacientes no futuro, como consequência o tratamento empírico também deverá ser reavaliado. REFERÊNCIAS 1. Espinel-Ingroff A, Aller AI, Canton E, Castañón-Olivares LR, Chowdhary A, Cordoba S, et al. Cryptococcus neoformans-Cryptococcus gattii species complex: an international study of wild-type susceptibility endpoint distributions and epidemiological cutoff values for fluconazole, itraconazole, posaconazole, and voriconazole. Antimicrob Agents Chemother. 2012 Nov;56(11):5898-906. 2. Khawcharoenporn T, Apisarnthanarak A, Mundy LM. Non-neoformans Cryptococcal Infections: a Systematic Review. Infection, 2007;35(2):51 3. La Hoz RM, Pappas PG. Cryptococcal Infections: Changing Epidemiology and Implications for Therapy. 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Ipiranga, 2752 90.610-000 – Porto Alegre, RS – Brasil (51) 3308-2105 [email protected] Recebido: 18/5/2015 – Aprovado: 26/5/2015 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 204-208, jul.-set. 2015 ARTIGO ORIGINAL Estudo ultrassonográfico da esteatose hepática no pré e pós-operatório de cirurgia bariátrica Ultrasound study of hepatic steatosis before and after bariatric surgery Luiz Carlos Kummer Junior1, Ricardo Reis do Nascimento2, Rayane Felippe Nazário1, Henry Mick1 RESUMO Introdução: A esteatose hepática (EH) significa o acúmulo de gordura no fígado. Processo que pode ocorrer de forma benigna ou evoluir para formas mais severas, como exemplo a esteato-hepatite e cirrose hepática. O diagnóstico se faz principalmente através de exames de imagem, sendo a ultrassonografia o mais utilizado. Dentre as múltiplas etiologias desta patologia, a principal é a síndrome metabólica (SM). Tendo em vista a atual epidemia de obesidade, a qual está fortemente associada à SM, ela se tornou uma das principais causas de EH. Atualmente, um dos tratamentos mais efetivos para a obesidade mórbida é a cirurgia bariátrica, a qual possui diversas técnicas em sua realização, sendo a principal delas o by-pass gástrico em Y-de-Roux. O objetivo do presente estudo foi analisar a prevalência de EH, através da ultrassonografia, no pré-operatório e correlacionar com os achados do pós-operatório, dos pacientes operados na cidade de Tubarão de janeiro de 2013 a maio de 2014. Métodos: Foram analisados 42 prontuários de pacientes submetidos à cirurgia bariátrica, no período preestabelecido, e utilizado como objeto de estudo o laudo ultrassonográfico, além dos exames laboratoriais contidos nos prontuários. Estes dados foram utilizados para avaliar a prevalência da EH antes e após a cirurgia e correlacionar com os demais parâmetros metabólicos. Resultados: No pré-operatório foi encontrada prevalência de EH de 69% e no pós-operatório a prevalência encontrada foi de 33,4%. Conclusão: O presente estudo mostrou redução na prevalência da EH após a cirurgia, entretanto, outros estudos são necessários para esclarecer os fatores envolvidos nesta redução. UNITERMOS: Esteatose Hepática, Ultrassonografia, Cirurgia Bariátrica. ABSTRACT Introduction: Hepatic steatosis (HS) means the accumulation of fat in the liver, a process that can occur benignly or progress to more severe forms, such as steatohepatitis and cirrhosis. The diagnosis is mainly through imaging, ultrasonography being the most often used technique. Many are the causes of this disorder, but the main one is metabolic syndrome (MS). Given the current epidemic of obesity, which is strongly associated with MS, MS became one of the leading causes of HS. Currently, one of the most effective treatments for morbid obesity is bariatric surgery, which employs various techniques in its realization, the main one being Y-de-Roux gastric bypass. The aim of this study was to analyze the prevalence of HS by ultrasound preoperatively and correlate it with postoperative findings in patients operated in Tubarão from January 2013 to May 2014. Methods: We analyzed 42 charts of patients undergoing bariatric surgery in the pre-set period, using the ultrasound report as an object of study, in addition to laboratory tests in the medical records. These data were used to assess the prevalence of HS before and after surgery and correlate it with other metabolic parameters. Results: The prevalence of HS was 69% preoperatively and 33.4% postoperatively. Conclusion: This study showed a reduction in the prevalence of EH after surgery, but further studies are needed to clarify the factors involved in this reduction. KEYWORDS: Hepatic Steatosis, Ultrasound, Bariatric Surgery. 1 2 Graduando em Medicina. Médico na empresa Pró-Vida. Médico no Hospital Nossa Senhora da Conceição de Tubarão/SC. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 209-216, jul.-set. 2015 209 ESTUDO ULTRASSONOGRÁFICO DA ESTEATOSE HEPÁTICA NO PRÉ E PÓS-OPERATÓRIO DE CIRURGIA BARIÁTRICA Kummer Junior et al. INTRODUÇÃO O acúmulo de gordura no fígado, assim como o de glicogênio, ocorre de forma fisiológica com a finalidade de estocagem de energia. Entretanto, quando existe um acúmulo de lipídeos que ultrapasse 5 a 10% do peso total do órgão, há uma condição denominada esteatose hepática (EH)(1). A EH, fase inicial, e, relativamente, benigna da doença hepática gordurosa não alcoólica (DHGNA) corresponde ao acúmulo de triglicerídeos no interior do citoplasma dos hepatócitos advindo de diversas situações (2). A EH pode advir do uso de drogas, doenças metabólicas, rápida perda de peso, derivação intestinal, nutrição parenteral total e obesidade, essa representando o principal fator causador (2). A fisiopatologia envolve a resistência periférica à insulina, a qual determina maior transporte de ácidos graxos livres do tecido adiposo para o fígado, caracterizando a EH. A injúria hepática pode ser dividida em primeiro e segundo impacto. A fase inicial da doença, e relativamente benigna, em que ocorre a deposição de ácidos graxos livres no fígado é denominada primeiro impacto. No momento em que há EH instaurada, o fígado se torna mais suscetível a lesões secundárias, decorrente ao estresse oxidativo e à liberação de citocinas, condição a qual denominada como segundo impacto. Em contrapartida à fragilidade hepática, o quadro pode evoluir para esteato-hepatite e, progressivamente, para cirrose hepática (3,4). Há estudo que evidencia que, dos pacientes que evoluírem para esteato-hepatite não alcoólica, metade irá evoluir para fibrose, 10 a 15% para cirrose hepática e 5,4% para insuficiência hepática (5). A DHGNA apresenta elevada prevalência na população mundial, principalmente decorrente da epidemia de obesidade, já sendo considerada a principal doença hepática em países desenvolvidos. Há dados que indicam que cerca de 10 a 24% de toda a população adulta possua EH, e no momento em que é avaliada a população adulta com obesidade, este índice sobe para 57 a 74% (1). As crescentes taxas de pacientes com obesidade se devem principalmente às alterações provocadas pelo mundo moderno. Houve uma alteração na educação e no estilo de vida, com consequente diminuição na prática de atividades físicas e adoção de alimentação menos adequada, do ponto de vista nutricional (6,7). Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF), realizada no Brasil, durante os anos 2008 e 2009, 50,1% dos homens e 48% das mulheres apresentam excesso de peso (8). Em associação à obesidade, houve um aumento na prevalência de doenças crônicas, entre elas a DHGNA (9,10) e a síndrome metabólica (11). Os principais fatores de risco para a DHGNA incluem obesidade, fator mais importante (76% dos pacientes), Diabetes mellitus (DM) tipo II (50% dos pacientes), dislipidemia e rotineiramente está associada à síndrome metabólica (SM) (12,13,14). O diagnóstico da EH é realizado principalmente através de exames de imagem, como exemplo, ressonância mag210 nética (RM), tomografia computadorizada (TC) e ultrassonografia (US). A acurácia da identificação da EH nos exames de imagem, avaliados de forma global, varia de acordo com o índice de massa corpórea do paciente (IMC). Existe uma variação de 49 a 100% na sensibilidade e 75 a 90% na especificidade, sendo que há diminuição à medida que ocorre aumento do IMC (15,16,17). Em um estudo no qual foi avaliada a concordância entre o diagnóstico da doença através da US e da biópsia hepática, o resultado foi concordante em 83,3% dos casos, o que evidencia a US como principal forma de diagnóstico, por ser um método relativamente barato, e não invasivo (18,19,20,21). Embora o padrão ouro para o diagnóstico seja a biópsia hepática com estudo anatomopatológico e exclusão de outras causas de EH, este não é amplamente utilizado em decorrência aos riscos e logística necessária (15,16). Vale salientar que a biópsia hepática permite, além de quantificar a infiltração gordurosa no fígado, diferenciar a EH simples da esteato-hepatite não alcoólica (15,16,22). O parênquima hepático normal visto ao US apresenta ecotextura homogênea, ecogenicidade intermediária e, quando comparado ao córtex renal, se apresenta hiperecogênico e, quando em comparação ao tecido esplênico, se apresenta hipoecogênico. Há uma discreta atenuação do feixe acústico, o que não impede que haja uma boa identificação dos vasos intra-hepáticos e do diafragma localizado na região posterior do fígado, parâmetros esses utilizados para avaliar a gravidade do quadro (23,24,25). A avaliação da EH por via ultrassonográfica apresenta uma sensibilidade muito elevada, principalmente em pacientes que possuem grau moderado a severo da doença, porém reduzida em graus leves (26,27,28). Esta situação é muito bem exemplificada em um estudo o qual realizou uma comparação entre os achados ultrassonográficos e achados da biópsia hepática de pacientes portadores de hepatite C. No presente estudo, foram avaliadas ecogenicidade, ecotextura e atenuação do feixe sonoro, sendo que este último apresentou maior correlação com a EH. A análise estatística do estudo demonstrou que o US possui grande capacidade de demonstrar a ausência da patologia, especificidade de 77,9% e valor preditivo negativo de 95,5%. Vale ressaltar que o mesmo apresentou uma concordância regular entre a presença de EH avaliada pelo US e pela biópsia (29). Tendo em vista que a obesidade é o principal causador de EH, faz-se importante realizar o tratamento da mesma. Há evidências que sugerem que os tratamentos convencionais são capazes de reduzir 5 a 10% do peso corporal inicial, acarretando melhoras metabólicas, porém esta perda de peso não é sustentada em longo prazo e não se mostra efetiva em pacientes com índice de massa corporal (IMC) > 40 kg/m² (obesos mórbidos ou grau III) (30,31). A cirurgia bariátrica, apesar de ser um tratamento radical para a obesidade, é indicada em casos selecionados, e que preenchem critérios preestabelecidos. Os critérios incluem obesos mórbidos ou pacientes com IMC entre 35 e 39,9 kg/m² Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 209-216, jul.-set. 2015 ESTUDO ULTRASSONOGRÁFICO DA ESTEATOSE HEPÁTICA NO PRÉ E PÓS-OPERATÓRIO DE CIRURGIA BARIÁTRICA Kummer Junior et al. (obesidade grau II) juntamente com comorbidades que podem ser atribuídas ao aumento do peso, as quais incluem DM tipo II, hipertensão arterial sistêmica (HAS), dislipidemia, apneia do sono, dificuldades de locomoção. Vale salientar que, antes da adoção de um método cirúrgico, o paciente deve receber tratamento convencional, o qual inclui mudança no estilo de vida e tratamento medicamentoso, por dois anos. Caso não haja sucesso nesta modalidade terapêutica, a cirurgia pode ser considerada (32,33). Há evidências que indicam a intervenção cirúrgica como tratamento mais efetivo, pois resulta em significativa perda de peso, aproximadamente 20 a 40% do peso inicial, a qual é mantida em longo prazo, durante no mínimo 15 anos (33). Vale destacar a capacidade cirúrgica em regredir os parâmetros presentes na síndrome metabólica (SM)(34). Atualmente, a técnica cirúrgica mais utilizada é o by-pass gástrico em Y de Roux (BGYR). Essa cirurgia é considerada de caráter misto, devido à associação entre seu fator restritivo, em que há a neoformação de uma pequena bolsa gástrica, e o fator disabsortivo, consequente à derivação do intestino delgado em Y de Roux (33). A forma de regressão da DHGNA, decorrente da cirurgia bariátrica, ainda não está totalmente esclarecida; entretanto, acredita-se que ocorra devido ao controle da dislipidemia e diminuição da resistência à insulina. Esses são os principais fatores da patogênese da doença e são, na maioria das vezes, controlados após tal intervenção terapêutica (2,35). Decorrente do aumento expressivo da obesidade na população mundial, advindo de tal fato o aumento da prevalência de EH, e as graves consequências que podem ser provenientes desta patologia, faz-se importante este estudo, o qual visou realizar o segmento de pacientes submetidos à cirurgia bariátrica para tratamento da obesidade, através da comparação de exames ultrassonográficos pré e pós-operatórios, que serviram para quantificar a evolução da EH destes pacientes. MÉTODOS Foi realizado um estudo de coorte, o qual compreendeu o período entre janeiro de 2013 e maio de 2014. A população em estudo compreendeu todos os pacientes submetidos à cirurgia bariátrica, na cidade de Tubarão, no período determinado para o estudo. Como critério de inclusão, foram utilizados pacientes submetidos à cirurgia bariátrica, que deveriam preencher os critérios para adoção de tal intervenção, na cidade de Tubarão, no período de janeiro de 2013 a maio de 2014. Como critério de exclusão, foram adotados os pacientes cujos prontuários não continham informações necessárias para o estudo. Os pacientes submetidos à cirurgia bariátrica fizeram exames de rotina no pré-operatório, os quais incluíram US abdominal, glicemia de jejum, perfil lipídico (trigliceRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 209-216, jul.-set. 2015 rídeos, HDL), valores antropométricos (altura e peso que foram utilizados para calcular o IMC) e aferição da pressão arterial. O exame de imagem obtido através da US foi utilizado como objeto de estudo para avaliar a prevalência de EH, assim como sua gravidade nesses pacientes e sua evolução no pós-operatório. A EH foi avaliada através da ecogenicidade do parênquima hepático, da atenuação do feixe sonoro, e também da possibilidade da visualização do diafragma e da vascularização intra-hepática, gerando uma classificação de gravidade, a qual foi obtida nos laudos avaliados. Todos os exames anteriormente mencionados foram realizados novamente seis meses após a intervenção cirúrgica. Essas informações foram utilizadas com o intuito de averiguar a evolução da EH e a possibilidade de existir associação com os parâmetros metabólicos mencionados e a evolução da mesma. Os resultados destes exames foram obtidos através de prontuários eletrônicos, os quais estavam localizados na Clínica Pró-Vida, local onde foram realizadas as consultas pré-operatórias e o acompanhamento destes pacientes. Tendo em vista os preceitos da Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS), o projeto foi avaliado pelo Comitê de Ética e Pesquisa (CEP) através da Plataforma Brasil, sendo aprovado com o número de protocolo 25218213.2.0000.5369. A coleta de dados iniciou-se após a aprovação do projeto. As informações foram adquiridas sem contato direto com os sujeitos da pesquisa, justificando a ausência de Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), segundo os preceitos da Resolução 466/20122 do Conselho CNS. Serão garantidos o sigilo das informações e a privacidade dos pacientes de acordo com o prescrito na Resolução 196/96 do CNS. Haja vista que o objeto de estudo serão os formulários eletrônicos, presentes na Clínica Pró-Vida de Tubarão/SC, foi solicitada autorização ao detentor dos mesmos para utilização na pesquisa. Os dados obtidos através de prontuários eletrônicos e laudos referentes aos exames de US foram digitados utilizando-se o programa Epi Info Versão 3.5.4 e analisados pelo mesmo. Para comparação entre médias, foi aplicado o teste “t” de Student ou a Análise de Variância (ANOVA). Para comparação entre as proporções, foi aplicado o teste do qui-quadrado no nível de confiança de 95%. Fixou-se valor de p menor que 0,05 como significantes e intervalo de confiança de 95% para as diferenças e associações. RESULTADOS Durante o período analisado, de janeiro de 2013 a maio de 2014, foram realizadas 116 cirurgias bariátricas na cidade de Tubarão, sendo que, deste número de pacientes, 42 foram inclusos no estudo por preencherem os critérios preestabelecidos, os demais não foram incluídos em decorrência à perda de seguimento ou falta de dados nos prontuários. 211 ESTUDO ULTRASSONOGRÁFICO DA ESTEATOSE HEPÁTICA NO PRÉ E PÓS-OPERATÓRIO DE CIRURGIA BARIÁTRICA Kummer Junior et al. Dos 42 pacientes analisados, 32 (76,2%) são pertencentes ao sexo feminino e 10 (23,8%) ao sexo masculino. Com relação à idade desses pacientes, a idade mínima foi de 20 anos e a máxima 64 anos, constituindo a média de idades de 40,21 ±11,86 anos. Ao se analisar o peso dos pacientes, no pré-operatório, o menor peso encontrado foi de 82 kg e o maior peso foi de 164 kg, sendo a média de 112,21 ±17,97 kg. O IMC destes pacientes no pré-operatório apresentou como menor número 30,7 kg/m² e como maior 51,6 kg/m², sendo que a média foi de 40,75 ±4,87 kg/m². Com relação aos parâmetros metabólicos encontrados no pré-operatório, o menor nível de colesterol total foi de 129 mg/dL, o valor máximo foi 360 mg/dL, e a média 193,21 ±40,67 mg/dL. O menor nível de colesterol LDL encontrado foi de 65 mg/dL, o maior de 296 mg/dL, e a média dos valores averiguados foi de 120,73 ±44,78 mg/ dL. Já o colesterol HDL apresentou como valor mínimo 28 mg/dL, como valor máximo 75 mg/dL e média de 47 ±10,64 mg/dL. Ao se analisar os valores de triglicerídeos, o mínimo encontrado foi de 52 mg/dL, o máximo 479 mg/dL e a média 165,35 ±85,19 mg/dL. A glicemia de jejum dos pacientes apresentou como valor mínimo 78 mg/ dL, valor máximo 291 mg/dL e a média dos valores foi de 104,02 ±36,95 mg/dL. Com relação à PA encontrada, o valor mais prevalente foi de 150/90 mmHg, presente em 8 pacientes, ou seja, 19%, seguindo a distribuição apresentada na Tabela 1. Ao serem analisados os valores de PA, 66,6% dos pacientes não apresentaram valores adequados no momento da aferição (valores maiores ou iguais a 140/90 mmHg). Em 29 pacientes foi ratificado EH ao exame ultrassonográfico anteriormente à cirurgia bariátrica, evidenciando uma prevalência da patologia em 69% dos pacientes em estudo. O grau mais encontrado foi de EH grau I e II presente em 12 pacientes cada (28,6%). Em 5 pacientes, foi encontrado EH grau III (11,9%), que é a forma mais severa da patologia. Do total de pacientes analisados, 13 não apresentaram EH, sendo que a distribuição dos valores encontrados segue na Tabela 2. Em relação à prevalência de EH, em qualquer nível, em mulheres no pré-operatório, foi encontrado um valor de 65,6%, sendo que a distribuição entre as diferentes graduações segue na Tabela 3. No sexo masculino, houve uma prevalência de 80%, distribuído de acordo com o que evidencia a Tabela 4. A avaliação dos dados obtidos no pós-operatório exibe um peso mínimo de 55,9 kg, máximo de 113 kg e a média dos pesos encontrados foi de 83,07 ±13,65 kg. Em relação ao IMC, o menor foi de 22 kg/m², o maior de 39,65 kg/m² e média destes 30,38 ±4,34 kg/m². Após a cirurgia bariátrica, os dados metabólicos encontrados nos exames laboratoriais mostraram o valor de colesterol total mínimo de 114 mg/dL, máximo de 282 mg/ dL e média de 167,30 ±33,91 mg/dL. O menor valor de colesterol LDL encontrado foi de 46,8 mg/dL, máximo de 193 mg/dL e média de 97,59 ±28,31 mg/dL. O HDL mínimo foi de 23 mg/dL, máximo de 81 mg/dL e média de 49,37 ±11,68 mg/dL. Os valores de triglicerídeos evidenciaram valor mínimo de 39 mg/dL, máximo de 313 mg/ dL e média de 104,38 ±51,21 mg/dL. A menor glicemia de jejum foi de 71 mg/dL, a maior 123 mg/dL e a média destas 87,11 ±9,46 mg/dL. O nível de PA mais identificado foi de 120/80, o qual foi aferido em 12 pacientes, sendo que na Tabela 5 pode-se visualizar a distribuição desses valores nos pacientes estudados. A EH diagnosticada através dos exames ultrassonográficos de pós-operatório se fez presente em 14 pacientes, Tabela 1 – Frequência da PA nos pacientes estudados, no préoperatório. Tabela 2 – Distribuição do grau de EH nos pacientes estudados, no pré-operatório. Frequency Percent Cum Percent 100/70 Pressão Arterial 1 2,4% 2,4% 0 - Sem esteatose hepática Ultrassom Abdominal Frequency 13 Percent Cum Percent 31,0% 31,0% 120/80 7 16,7% 19,0% 1 - Esteatose hepática grau I 12 28,6% 59,5% 130/80 5 11,9% 31,0% 2 - Esteatose hepática grau II 12 28,6% 88,1% 130/90 1 2,4% 33,3% 3 - Esteatose hepática grau III 5 11,9% 100,0% 140/100 2 4,8% 38,1% Total 42 100,0% 100,0% 140/80 2 4,8% 42,9% 140/90 4 9,5% 52,4% 150/100 3 7,1% 59,5% 150/90 8 19,0% 78,6% 160/100 1 2,4% 81,0% Ultrassom Abdominal 160/80 1 2,4% 83,3% 0 - Sem esteatose hepática 11 34,4% 34,4% 160/90 4 9,5% 92,9% 1 - Esteatose hepática grau I 11 34,4% 68,8% 170/100 1 2,4% 95,2% 2 - Esteatose hepática grau II 8 25,0% 93,8% 180/100 2 4,8% 100,0% 3 - Esteatose hepática grau III 2 6,3% 100,0% Total 42 100,0% 100,0% Total 32 100,0% 100,0% 212 Tabela 3 – Frequência de EH no sexo feminino, no pré-operatório. Frequency Percent Cum Percent Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 209-216, jul.-set. 2015 ESTUDO ULTRASSONOGRÁFICO DA ESTEATOSE HEPÁTICA NO PRÉ E PÓS-OPERATÓRIO DE CIRURGIA BARIÁTRICA Kummer Junior et al. resultando em uma prevalência de 33,4%. Além disso, pode-se observar que não houve pacientes com EH grau III, diferentemente do pré-operatório. O grau mais prevalente de EH foi o grau I, com 13 pacientes. Somente 1 paciente apresentou EH grau II, e os outros 28 pacientes não apresentaram a patologia. Essa distribuição pode ser melhor visualizada na Tabela 6. A comparação entre as distribuições do grau de EH no pré e pós-operatório pode ser melhor visualizada no Gráfico 1. Ao se realizar a correlação entre os fatores avaliados no pré-operatório dos pacientes e o achado de EH na ultrassonografia abdominal, foi averiguado que as variáveis colesterol total, LDL, glicemia de jejum e IMC não apresentaram correlação estatisticamente significativa com a EH. Entretanto, ao associar peso, HDL e triglicerídeos, se percebeu que houve associação estatisticamente significativa. Quando se avalia o peso dos pacientes, percebe-se que aqueles que não apresentaram EH expressaram uma média de peso 107,73 ±19,62kg, os que apresentaram EH grau I 103,50 ±10,34kg, EH grau II 118,97 ± 15,49kg e EH grau III 128,54 ±20,98kg, sendo que o valor de p obtido foi de p=0,0298. A média de triglicerídeos dos pacientes que não exibiram EH foi de 128,76 ±63,64mg/dL, dos pacientes que apresentaram EH grau I 155,58 ±68,13 mg/dL, EH grau Tabela 4 – Frequência de EH no sexo masculino, no pré-operatório. Ultrassom Abdominal Frequency Percent Cum Percent 0 - Sem esteatose hepática 2 20,0% 20,0% 1 - Esteatose hepática grau I 1 10,0% 30,0% 2 - Esteatose hepática grau II 4 40,0% 70,0% 3 - Esteatose hepática grau III 3 30,0% 100,0% Total 10 100,0% 100,0% Tabela 5 – Frequência da PA nos pacientes estudados, no pósoperatório. Pressão Arterial PO II 179,66 ±81,22 mg/dL e EH grau III 249,60 ±131,22 mg/dL, sendo que o valor de p obtido foi de p=0,044. A média de colesterol HDL dos pacientes que não apresentaram EH foi de 52,84 ±11,46 mg/dL, os que apresentaram EH grau I 46 ±12,04 mg/dL, EH grau II 45,16 ±4,60 mg/dL e EH grau III 38,6 ±9,91 mg/dL, sendo que o valor de p obtido foi de p= 0,0312. Ao se avaliar os parâmetros encontrados no pós-operatório dos pacientes e correlacioná-los com o achado de EH na ultrassonografia, foi visto que as variáveis colesterol total, LDL, HDL, triglicerídeos e glicemia de jejum não apresentaram associação estatisticamente significativa com a EH. Contudo, as variáveis peso e IMC apresentaram. A média dos pesos dos pacientes que não manifestaram EH foi de 78,20±11,25kg, dos que apresentaram EH grau 1 foi de 92,21 ±13,46kg e EH grau 2 foi de 100,50, sendo que o valor de p encontrado foi de p=0,0023. Já quando se avalia o IMC destes pacientes, os que não apresentaram EH obtiveram média de 28,93 ±3,69kg/m², os que exibiram EH grau I 33,08 ±4,28 kg/m² e os que apresentaram EH grau II foi de 36,00kg/m², sendo que o valor de p encontrado foi de p=0,0114. Quando foi avaliada a progressão da EH após a cirurgia, pode-se observar que 12 pacientes os quais não apresentavam EH no pré-operatório permaneceram sem apresentá-la no pós-operatório. Apenas um deles que não apresentava EH passou a manifestar a doença após a cirurgia. Dos 12 pacientes que expressavam EH grau I, 10 passaram a não Tabela 6 – Distribuição do grau de EH nos pacientes estudados, no pós-operatório. Ultrassonografia Abdominal Frequency PO 0 - Sem esteatose hepática 28 66,7% 1 - Esteatose hepática grau I 13 31,0% 97,6% 2 - Esteatose hepática grau II 1 2,4% 100,0% Total 42 100,0% 100,0% Frequency Percent Cum Percent 100/70 1 2,4% 2,4% 110/60 1 2,4% 4,8% 110/70 7 16,7% 21,4% 30 110/80 3 7,1% 28,6% 25 120/60 1 2,4% 31,0% 120/70 2 4,8% 35,7% 120/80 12 28,6% 64,3% 15 120/90 1 2,4% 66,7% 10 130/80 6 14,3% 81,0% 5 130/90 2 4,8% 85,7% 140/80 1 2,4% 88,1% 140/90 3 7,1% 95,2% 150/90 2 4,8% 100,0% Total 42 100,0% 100,0% Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 209-216, jul.-set. 2015 Percent Cum Percent 66,7% Distribuição da EH 20 0 Sem EH EH grau I Pré-operatório EH grau II EH grau III Pós-operatório Gráfico 1 – Distribuição da EH no pré e pós-operatório. 213 ESTUDO ULTRASSONOGRÁFICO DA ESTEATOSE HEPÁTICA NO PRÉ E PÓS-OPERATÓRIO DE CIRURGIA BARIÁTRICA Kummer Junior et al. apresentar EH, e 2 permaneceram com EH grau I. Dos 12 pacientes que exibiam EH grau II anteriormente à cirurgia, 5 não manifestaram EH após a operação e 7 apresentaram EH grau I. Ao avaliar os 5 pacientes com EH grau III, observa-se que 1 paciente não apresentou a doença no pós-operatório, 3 apresentaram EH grau I e apenas 1 passou a apresentar EH grau II. DISCUSSÃO Atualmente, o crescente número de pacientes obesos vem tornando a DHGNA uma das principais hepatopatias (2). Portanto, há grande importância em melhor compreensão de sua fisiopatologia, e possíveis medidas terapêuticas que estariam envolvidas em sua remissão. Diversos estudos têm sido realizados com o intuito de avaliar tais fatores. Há estudos que avaliaram a cirurgia bariátrica como fator envolvido na gênese da redução da severidade da patologia. Alguns deles serviram como objeto de comparação a este estudo realizado na cidade de Tubarão. Pesquisa semelhante a esta foi realizada por Schild BZ, LC e Alves MK na cidade de Caxias do Sul/RS, em um centro de tratamento avançado de obesidade. Foram analisados 199 prontuários de pacientes submetidos à cirurgia bariátrica. Do total, 66 pacientes preencheram critérios necessários para inclusão no estudo. Este estudo avaliou a prevalência de EH, sendo associada esta condição aos parâmetros que compõem a síndrome metabólica. Todavia, em tal estudo não houve avaliação dos pacientes no pós-operatório. Do total de 66 pacientes, 49 (72,1%) eram mulheres e 17 (27,9%) eram homens, perfil semelhante de distribuição entre os sexos deste estudo, em que 32 (76,2%) foram pertencentes ao sexo feminino e 10 (23,8%) ao sexo masculino. A média de idade foi de 37,57 ±10,29 anos, semelhante a este estudo em que a média foi de 40,21 ±11,86 anos. A média de peso foi de 123,14 ±25,40 kg e de IMC 56,24 ±9,30 kg/m², já no presente estudo a média entre os pesos foi de 112,21 ±17,97 kg e IMC de 40,75 ±4,87 kg/m². No estudo realizado em Caxias do Sul, foi diagnosticado EH, através da US, em 50% dos pacientes, sendo que 20,3% apresentaram EH grau I, EH grau II em 17,4% e EH grau III em 11,6% dos pacientes. No estudo feito na cidade de Tubarão, houve uma prevalência de EH de 69%, sendo que foram encontrados EH grau I e II em 28,6% em cada grupo e EH grau III em 11,9% dos pacientes. Prevalência mais elevada do que no estudo de Schild e col. A média glicêmica foi de 106,9 ±32,84 mg/dL e no presente estudo foi de 104,02 ±36,95 mg/dL, valores muito semelhantes. Ao analisarmos os níveis de triglicerídeos, média de 196,09 ±119,73 mg/dL foi encontrada no estudo de Schild e col. e, neste estudo, média de 165,35 ±85,19 mg/dL. Os níveis de HDL foram bastante semelhantes, 49,51 ±11,92 mg/dL no estudo em comparação e 47 ±10,64 mg/dL neste estudo. Ao avaliar a prevalência de 214 hipertensão arterial sistêmica (HAS), adotando-se valores maiores do que 140/90 mmHg, o estudo em comparação apresentou prevalência de 60,3% e, no presente estudo, encontramos prevalência de HAS de 66,6%. Ao analisar os fatores que compõem a SM, Schild e col. concluíram que a EH foi encontrada em 60% dos pacientes que preenchiam critérios para a síndrome, sendo que há uma associação estatisticamente significativa (P=0,008) entre as duas condições (14). Logo, percebe-se que foram encontrados valores muito semelhantes entre as prevalências de EH no pré-operatório dos pacientes submetidos à cirurgia bariátrica em ambos os estudos. A semelhança entre os valores dos parâmetros metabólicos encontrados faz aventar a hipótese de que, provavelmente, no estudo realizado na cidade de Tubarão haja também uma forte relação entre a SM e a EH, apesar de não ter sido estabelecida uma associação direta entre as duas entidades. No estudo de Losekann e col., feito no Centro de Tratamento da Obesidade, na Santa Casa de Porto Alegre, foram analisados 250 resultados de biópsia de pacientes submetidos à cirurgia bariátrica, amostras essas retiradas no transoperatório. Estas amostras foram utilizadas para avaliar a prevalência de EH e outros achados hepáticos nestes pacientes. Em tais pacientes, a EH hepática se fez presente em 90,4% das amostras, sendo que 30,4% foram classificados como EH grau I, 28,4% como EH grau II e 31,6% como EH grau III (36). Entretanto, não foram especificados os parâmetros metabólicos e antropométricos de tais pacientes, o que impossibilita comparar o perfil dos pacientes dos dois estudos. O que possivelmente tornou a prevalência de EH maior no estudo em comparação é o fato de que a biópsia hepática apresenta maior sensibilidade diagnóstica do que a US (15,16), o método utilizado para diagnóstico no presente estudo. Vale ressaltar que em tal estudo não houve análise pós-operatória dos pacientes. Teivelis e col. realizaram um estudo no Hospital das Clínicas em São Paulo, onde foram analisados os achados ultrassonográficos e endoscópicos do pré-operatório de cirurgia bariátrica de 80 pacientes. O IMC médio dos pacientes alocados em tal estudo foi de 51,4 ±8,20 kg/m². Valor médio de IMC semelhante foi encontrado neste estudo, o qual evidenciou uma média de 56,24 ±9,30 kg/ m². Foram utilizadas ultrassonografias de 63 pacientes de pré-operatório. Nesses exames, a EH foi encontrada em 58,7% do total; contudo, não houve classificação quanto à severidade da mesma. Tal valor é semelhante, no entanto, inferior ao encontrado no atual estudo, o qual apresentou prevalência de 69%, provavelmente, em decorrência ao maior IMC dos pacientes operados em Tubarão. No estudo de Teivelis e col. foram avaliados 57 exames ultrassonográficos no pós-operatório, sendo que a prevalência de EH foi de 43,9%, a qual se apresenta superior à encontrada no presente estudo, que foi de 33,4%. Vale ressaltar que o IMC pós-operatório de Teivelis e col. foi em média 35,2 ± Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 209-216, jul.-set. 2015 ESTUDO ULTRASSONOGRÁFICO DA ESTEATOSE HEPÁTICA NO PRÉ E PÓS-OPERATÓRIO DE CIRURGIA BARIÁTRICA Kummer Junior et al. 7,60kg/m², valor superior ao encontrado neste estudo, que foi de 30,38 ±4,34 kg/m²(37). A possível justificativa para menor prevalência de EH no estudo realizado na cidade de Tubarão é o fato de que os pacientes submetidos à cirurgia nessa cidade apresentaram maior perda de peso, um dos fatores associados à regressão da EH (38). Em um estudo realizado na Clínica Clileal, localizada na cidade de Santos, São Paulo, Andrade e col. analisaram 205 prontuários de pacientes submetidos à cirurgia bariátrica. Foram analisados exames do pré-operatório dos pacientes e exames de pós-operatório após 6 e 12 meses. Entre os exames analisados, ressaltam-se os exames ultrassonográficos, onde se encontrou EH em 35,1% dos laudos, sendo que 25,9% apresentaram EH grau I, 6,8% EH grau II e 2,4% EH grau III. Neste estudo, todos os pacientes que possuíam EH grau III apresentaram regressão do quadro para formas menos severas da doença. No estudo realizado na cidade de Tubarão, houve maior prevalência de EH, a qual foi encontrada em 69% dos laudos. Contudo, de forma semelhante ao estudo de Andrade e col., todos os pacientes que apresentaram EH grau III no início do estudo apresentaram remissão do quadro para formas menos severas da doença (38). Outros dados referentes à população estudada não foram avaliados, o que não permitiu comparação dos demais fatores. Não foram encontrados outros estudos que avaliassem os parâmetros metabólicos e que correlacionassem os mesmos à EH no pós-operatório, como realizado neste estudo. Shuja e Mohamed realizaram um estudo com o intuito de avaliar as alterações proporcionadas pela cirurgia bariátrica que seriam importantes para a remissão da EH. Nesse estudo, os pesquisadores chegaram à conclusão de que há diversos fatores agindo de forma sinérgica para a melhora da patologia. Entre eles, os pesquisadores destacaram a diminuição da resistência à insulina, melhora do quadro dislipidêmico, diminuição na produção de interleucinas pelo tecido adiposo e, consequentemente, diminuição da inflamação sistêmica, aumento na secreção de adiponectina, a qual possui ação anti-inflamatória, perda de peso, e o aumento na secreção de hormônios intestinais, como, por exemplo, GLP-1(2). Logo, conclui-se que existe uma série de fatores, além da perda de peso, fator que neste estudo se associou com a diminuição da EH, e melhora dos parâmetros metabólicos, envolvidos na redução e remissão da EH. Há necessidade de mais estudos para avaliar a participação hormonal, como o incremento na secreção de hormônios intestinais como as incretinas, e a diminuição da inflamação sistêmica, ocasionada pela liberação de agentes pró-inflamatórios pelo tecido adiposo, na melhora da patologia. CONCLUSÃO A prevalência de EH no pré-operatório dos pacientes que foram submetidos à cirurgia bariátrica foi, no presente estudo, de 69%. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 209-216, jul.-set. 2015 Ao correlacionar as variáveis estudadas no pré-operatório, não houve significância estatística entre EH e colesterol total, LDL, glicemia de jejum e IMC. Entretanto, esta se fez presente entre EH e peso, HDL e níveis de triglicerídeos. No momento em que se correlacionam as variáveis de pós-operatório, conclui-se que houve associação estatisticamente significativa entre EH e o peso e o IMC, sendo a prevalência de EH no pós-operatório de 33,4%. REFERÊNCIAS 1. Hamer OW, Aguirre DA, Casola G, et al. O fígado gorduroso: os padrões de imagem e armadilhas. Radiographics. 2006; 26 (6) :1637-53. 2. Shuja Hafeez and Mohamed H. Ahmed. Bariatric Surgery as Potential Treatment for Nonalcoholic Fatty Liver Disease: A Future Treatment by Choice or by Chance? J. Obes. 2013;2013: 839275. 3. Day CP, James O. Steatohepatitis: a tale of two hits? Gastroenterology. 1998; 114:842-5. 4. Day CP. Nonalcoholic steatohepatitis (NASH): where are we now and where are we going? Gut. 2002; 50:585-8. 5. Preiss D, Sattar N. Non-alcoholic fatty liver disease: an overview of prevalence, diagnosis, pathogenesis and treatment considerations. Clin Sci (Lond) 2008; 115 (5) :141-150. 6. Popkin BM. The nutrition transition and obesity in developing world. 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Antonina Burigo Corbetta, 467/601 88.705-030 – Tubarão, SC – Brasil (48) 3626-0043 [email protected] Recebido: 18/5/2015 – Aprovado: 26/5/2015 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 209-216, jul.-set. 2015 ARTIGO ORIGINAL Prevalência de alterações mamográficas em uma série de exames realizados no Hospital Nossa Senhora da Conceição no ano de 2012, em Tubarão/SC Prevalence of mammographic changes in a series of tests performed in a hospital in south Brazil Gilfranklin Silva Queiroz Fontes1, Otto Henrique May Feuerschuette2 RESUMO Introdução: O câncer de mama é a principal neoplasia que acomete a população feminina, e a mamografia é o exame de rastreamento recomendado para realizar o diagnóstico precoce. A classificação BI-RADS avalia a necessidade de uma investigação complementar. Objetivos: Estimar a prevalência de alterações mamográficas e verificar a associação com a idade baseando-se na classificação BI-RADS. Métodos: Foram analisadas 5.978 mamas em pacientes de um hospital da região sul de Santa Catarina no ano de 2012. Foi estimada a prevalência dos achados por meio da classificação BI-RADS, além de analisar a associação com a idade, respeitando os aspectos éticos. Resultados: Observou-se que 85 % das mamas analisadas estavam dentro da normalidade, 12 % tinham laudos inconclusivos, e 37,5 % das mamas com alterações significativas eram em pacientes com idade menor que 50 anos. Conclusões: A maioria das alterações suspeitas foi encontrada em mulheres com mais idade. Entretanto, uma parcela importante das mamografias que necessitavam de avaliação complementar era de mulheres com menos de 50 anos de idade. UNITERMOS: Câncer de Mama, Mamografia, Rastreamento, Idade. ABSTRACT Introduction: Breast cancer is the leading form of cancer affecting the female population, and mammography is the screening test recommended to perform early diagnosis. The BI-RADS classification assesses the need for additional investigation. Aims: To estimate the prevalence of mammographic changes and the association with age based on the BI-RADS classification. Methods: We analyzed 5,978 breasts in patients at a hospital in the southern region of Santa Catarina in 2012. We estimated the prevalence of findings through the BI-RADS classification, in addition to analyzing the association with age, respecting ethical aspects. Results: 85% of the analyzed breasts were found to be normal, 12% had inconclusive reports, and 37.5% of the breasts with significant changes were in patients younger than 50 years. Conclusions: Most of the suspicious changes were found in older women. However, a significant portion of mammograms that required further evaluation were from women under 50. KEYWORDS: Breast Cancer, Mammography, Screening, Age. 1 2 Interno do curso de Medicina na Universidade do Sul de Santa Catarina (Unisul), campus Tubarão. Mestre em Ciências da Saúde. Doutorando em Ciências da Saúde. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 217-222, jul.-set. 2015 217 PREVALÊNCIA DE ALTERAÇÕES MAMOGRÁFICAS EM UMA SÉRIE DE EXAMES REALIZADOS NO HOSPITAL ... Fontes e Feuerschuette INTRODUÇÃO Dentre as neoplasias malignas, o câncer de mama é o mais frequente e a principal causa de morte na população feminina, tanto em países em desenvolvimento quanto em países desenvolvidos (1,2). Cerca de 1,67 milhão de casos novos dessa neoplasia foram diagnosticados no mundo em 2012, o que representa 25% de todos os tipos de câncer diagnosticados nas mulheres (1). No Brasil, em 2014, são esperados 57.120 casos novos, com um risco estimado de 56,09 casos a cada 100.000 mulheres (1). Alguns fatores de risco para o desenvolvimento do câncer de mama são bem conhecidos, como: sexo feminino, idade maior que 40 anos, história familiar positiva para câncer de mama, nuliparidade, menarca precoce, antecedente pessoal de câncer de mama, obesidade, terapia de reposição hormonal prolongada, entre outros. Com o avanço da medicina e os conhecimentos adquiridos nas últimas décadas sobre tal área, protocolos foram desenvolvidos e aprimorados com o objetivo de realizar um rastreamento cada vez mais eficiente, a fim de se chegar ao diagnóstico de tal patologia da forma mais precoce possível, o que melhora consideravelmente o prognóstico das pacientes. (1,2,3) Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), aproximadamente 1/3 dos cânceres pode ser curado se tratado adequadamente quando em estágios iniciais (4). Como medidas de prevenção estabelecidas, temos o exame clínico das mamas (ECM), a ultrassonografia de mama e a mamografia, que é o teste de referência para rastreamento de câncer de mama e é realizado conforme a idade e outros fatores de risco da paciente (1,2). As recomendações do Ministério da Saúde (MS) para o rastreamento desse tipo de câncer consistem no ECM anual para as mulheres a partir dos 40 anos e mamografia bienal para as mulheres entre 50-69 anos. Além disso, para população com risco elevado, preconiza-se rastreio com ECM e mamografia anual a partir dos 35 anos de idade, e para as que possuírem menos de 35 anos, a ultrassonografia de mamas é indicada para rastreio inicial (1,2,3). Até 2013 se iniciava o rastreio com mamografia bilateral em mulheres com menos de 50 anos de idade, porém, a partir desta data, por meio da Portaria nº 1.253, de 12 de novembro de 2013 (5), o Ministério da Saúde (MS) limitou o acesso a este exame para mulheres que possuem essa faixa etária, baseado em um protocolo proposto a partir de dados de um estudo realizado nos Estados Unidos, em 2009, o qual não defende um rastreamento mais precoce, pois o mesmo não possuiria um custo-benefício aceitável e que estaria associado a muitos falsos positivos (6). Entretanto, várias entidades médicas (Sociedade Brasileira de Mastologia, Colégio Brasileiro de Radiologia e Diagnóstico por Imagem, Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, Colégio Americano de Radiologia, Sociedade Americana de Câncer e Sociedade Americana de Ginecologia e Obstetrícia) (7,8) condenam essa estratégia “tardia”, preconizando rastreamento ma218 mográfico a cada 1-2 anos para mulheres assintomáticas a partir dos 40 anos de idade, e para mulheres com risco aumentado a partir dos 30 anos, por comprovada redução significativa na morbimortalidade em mulheres com diagnóstico de câncer de mama (7,8). Sobre a mamografia, este é um exame que proporciona auxílio aos médicos, uma vez que seus achados orientam estes profissionais a seguirem as investigações por meio de biópsia ou controle periódico, dependendo da classificação BI-RADS (Breast Imaging Reporting and Dated System) (9,10,11). Tal sistema de classificação, desenvolvido pelo Colégio Americano de Radiologia (ACR), foi introduzido em 1993 para mamografia e atualizado em 2003, com a finalidade de padronizar os laudos e orientar os médicos quanto às chances de determinada lesão ser maligna, diminuindo a subjetividade na interpretação e descrição das imagens, facilitando a emissão do resultado final do exame (10,11,12). Conforme os achados radiológicos encontrados, como ausência de alterações, calcificações vasculares, nódulos, microcalcificações, densidades assimétricas ou lesões espiculadas, o laudo da mamografia descreve uma classificação, que vai de zero a seis, orientando a conduta médica como descrito na Tabela 1 (9,13,14). Portanto, o presente estudo realizou uma avaliação dos laudos das mamografias realizadas no Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC) para analisar a associação dos achados mamográficos com a idade das pacientes. O objetivo é analisar a prevalência de alterações nesses exames e verificar a associação com a idade das pacientes, utilizando a classificação BI-RADS como padronização para agrupá-los conforme os dados encontrados. Tal pesquisa é significativa pela contribuição epidemiológica aos estudos sobre rastreio de câncer de mama, ao saber a relação dos achados radiológicos com a faixa etária das pacientes, principalmente no que diz respeito às divergências das orientações de rastreamento, além de contribuir como subsídios às políticas de saúde pública. Ressalta-se que esta pesquisa não tem a finalidade de avaliar a acurácia da mamografia, portanto, não houve um seguimento das pacientes para avaliar os achados anatomopatológicos. MÉTODOS A presente pesquisa é um estudo transversal, efetuado a partir da análise retrospectiva de mamografias realizadas no ano de 2012. A população em questão é referente às mamas avaliadas por meio das mamografias feitas no Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC) de Tubarão/ SC, em mulheres de diferentes idades que foram investigadas por uma suspeita clínica ou por rotinas de prevenção. A amostra é composta por 3.047 exames, realizados no HNSC e interpretados por médicos radiologistas que prestam serviços a tal instituição, sendo que a mesma é referente aos exames feitos pelo Sistema Único de Saúde Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 217-222, jul.-set. 2015 PREVALÊNCIA DE ALTERAÇÕES MAMOGRÁFICAS EM UMA SÉRIE DE EXAMES REALIZADOS NO HOSPITAL ... Fontes e Feuerschuette Tabela 1 – Sistema de classificação BI-RADS (9, 11, 13, 14). Classificação Significado Conduta Incompleto. Avaliação adicional (ecografia, magnificação ou compressão localizada). Normal. 0,05 % de chances de malignidade. Acompanhamento normal. BIRADS II Calcificações vasculares, calcificações cutâneas, fibroadenoma calcificado, outras calcificações benignas, cisto oleoso, linfonodos intramamários. Geralmente benigno. 0,05 % de chances de malignidade. Acompanhamento normal. BIRADS III Nódulo de baixa densidade, contorno regular, limites definidos e dimensões não muito grandes, calcificações monomórficas e isodensas. Provavelmente benigno. Até 2 % de chances de malignidade. Dois controles semestrais seguido de dois anuais. Suspeito. 3-94 % de chances de malignidade. Biópsia. Alta sugestão de malignidade. Mais de 95 % de chances de malignidade. Biópsia. Malignidade comprovada. Tratamento e estadiamento. BIRADS 0 Achados inconclusivos. BIRADS I Achados mamográficos negativos. BIRADS IV Nódulo de contorno bocelado ou irregular e limites pouco definidos, microcalcificações com pleomorfismo incipiente, densidade assimétrica, algumas lesões espiculadas. BIRADS V Nódulo denso e espiculado, microcalcificações agrupadas e/ ou pleomórficas seguindo trajeto ductal e/ou ramificadas. BIRADS VI Achados com comprovação de malignidade prévia. Tabela 2 – Frequência da Classificação BI-RADS. Tabela 3 – Frequência das faixas etárias. Classificação BI-RADS Frequência Porcentagem Frequência Porcentagem 0 770 12,9% 1- menor que 30 anos 20 0,3% I 1479 24,7% 2- 30-39 anos 289 4,8% II 3622 60,6% 3- 40-49 anos 1877 31,4% Total Idade III 80 1,3% 4- 50-59 anos 2018 33,8% IV 18 0,3% 5- 60-69 anos 1354 22,6% V 6 0,1% 6- 70-79 anos 380 6,4% VI 1 0,0% 7- >= 80 anos 38 0,6% 5976 100,0% 5976 100,0% Total Fonte: do autor. Fonte: do autor. (SUS), não contando, portanto, com exames particulares nem conveniados. As mamografias foram analisadas uma por uma a partir dos laudos que se encontram disponíveis no Serviço de Arquivo Médico e Estatística (SAME) do HNSC. Cada exame corresponde na maioria das vezes à mamografia bilateral, mas como há exames realizados em uma só mama, seja por um seguimento isolado desta ou por conta de uma mastectomia prévia, a análise dos dados foi realizada conforme o número de mamas e não de exames, para se fazer um estudo mais preciso das variáveis. Sendo assim, o número de mamas estudadas foi de 5978. Para analisar e, em seguida, possibilitar a comparação dos resultados com outros estudos, as pacientes foram agrupadas conforme suas idades em sete grupos: menores de 30 anos, 30 – 39 anos, 40 – 49 anos, 50 – 59 anos, 60 – 69 anos, 70 – 79 anos e com 80 ou mais anos de idade. Por ser um estudo transversal realizado a partir de laudos mamográficos, e o mesmo não possuir informações em relação a outras variáveis como nível de escolaridade, história familiar, dentre outras, foram usadas como variáveis apenas a classificação BI-RADS e a idade das pacientes, caracterizadas, respectivamente, como qualitativa ordinal e quantitativa discreta. O estudo seguiu as normas da Resolução 466, de 2012. Pelas características do mesmo, não houve a necessidade do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) das pacientes para efetuar a pesquisa. Porém, algumas medidas éticas foram tomadas, como a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) para a realização do projeto em questão, que consta sob registro de número 25085413.0.0000.5369, além da autorização por escrito do Coordenador do Centro de Pesquisas Clínicas do Hospital Nossa Senhora da Conceição para ter acesso aos prontuá- Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 217-222, jul.-set. 2015 219 PREVALÊNCIA DE ALTERAÇÕES MAMOGRÁFICAS EM UMA SÉRIE DE EXAMES REALIZADOS NO HOSPITAL ... Fontes e Feuerschuette Tabela 4 – Classificação BI-RADS x Idade. IDADE (anos) BIRADS 0 BIRADS I BIRADS II BIRADS III BIRADS IV BIRADS V BIRADS VI Total < 30 3 6 11 0 0 0 0 20 30 - 39 46 84 154 3 0 2 0 289 40 - 49 285 603 957 25 4 3 0 1877 50 - 59 263 543 1181 22 9 0 0 2018 60 - 69 149 207 971 24 2 0 1 1354 70 - 79 22 32 316 6 3 1 0 380 > 80 2 4 32 0 0 0 0 38 Total 770 1479 3622 80 18 6 1 5976 Fonte: do autor. rios. Com os comprovantes de tais autorizações, deu-se início à coleta dos dados no SAME. Como identificação das pacientes, foi utilizado um número conforme a ordem sequencial dos prontuários analisados, respeitando a organização previamente instituída pelo SAME, a qual é baseada na ordem alfabética dos nomes das mesmas. As variáveis estudadas foram coletadas e, posteriormente, armazenadas e analisadas com o auxílio do programa de informática específico para tal fim, o Epi-Info, na versão 3.5.2. RESULTADOS Após ter acesso aos 3047 laudos de mamografias realizadas no ano de 2012 e, posteriormente, analisar o resultado referente a 5978 mamas, conforme mencionado na metodologia do estudo, durante o processo de análise de dados foram excluídas duas mamas por falha no processo de armazenamento dos mesmos, provavelmente por repetição do número de identificação dessas duas pacientes. Sendo assim, 5976 mamas foram analisadas. As principais categorias de classificação radiológica encontradas nas mamas estudadas foram as classificações BI-RADS I e II, correspondendo a 1479 e 3622 mamas, respectivamente, o que equivalem, juntas, a 85,3% do total avaliado. Já em relação à faixa etária, o destaque foi para as pacientes entre 40 e 59 anos, onde se observou uma prevalência de 65,2 %. Quanto ao número de mamas com avaliação inconclusiva, ou seja, classificadas como BI-RADS 0, identificou-se uma porcentagem de 12,9% de todas as mamas avaliadas, e as pacientes com 40-49 anos e 50-59 anos foram as que tiveram mais destaque nesta classificação, correspondendo a 285 e 263 mamas, respectivamente. Das mamas estudadas, 14,6% necessitavam de avaliação complementar, seja por meio de ultrassonografia (12,9%), controle semestral com mamografia ou ainda por exame anatomopatológico para confirmar se há ou não uma doença neoplásica. Excluindo-se as mamas inconclusivas, tivemos 1,7% das mamas com achados significativos, o que corresponde a 80 mamas classificadas como BI-RADS III, 220 18 mamas com BI-RADS IV, 6 mamas com BI-RADS V e uma mama com BI-RADS VI. Outro ponto importante a ser mencionado é que, das 24 pacientes que necessitavam de avaliação complementar com biópsia, nove tinham menos de 50 anos de idade quando realizaram o exame, ou seja, 37,5% das pacientes com suspeita de doença maligna se beneficiaram de um rastreamento precoce. DISCUSSÃO Os resultados da presente pesquisa foram comparados aos de outros estudos semelhantes, frisando três grandes contribuições para tal fim, referentes aos trabalhos de Milani et al (15), Rodrigues et al (16) e Fernandes et al (17), realizados em São Paulo, Goiás e Acre, respectivamente, três diferentes regiões do país para comparar com resultados encontrados na região sul de Santa Catarina. Os resultados encontrados no Hospital Nossa Senhora da Conceição (HNSC), detalhados anteriormente, mostraram semelhanças com os demais estudos comparados, apesar das diferenças epidemiológicas a que estavam sujeitas, seja por possíveis peculiaridades populacionais, relacionadas aos fatores de risco para câncer de mama, ou por diferenças nas formas de políticas de saúde pública de três distintas regiões do país. Em Tubarão/SC, foi encontrada uma maior prevalência nas categorias BI-RADS I e II correspondendo a 85,3% das mamas estudadas, e a maioria das mulheres que realizaram a mamografia no ano de 2012 tinha entre 40 e 59 anos, correspondendo a um percentual de 65,2%. No estudo de Milani et al (15), as mesmas categorias BI-RADS foram as mais prevalentes, sendo 38,1% para BI-RADS I e 49% para BI-RADS II, o que, juntas, corresponderam a 87,1%. E quanto à faixa etária, Milani et al (15) detectaram que mulheres entre 41 e 60 anos foram as que mais realizaram o exame, com 42,8% entre 41 e 50 anos e 27,1% entre 51 e 60 anos. Já no estudo de Rodrigues et al (16), encontrou-se 55,8% com BI-RADS I e 30,4% com BI-RADS II, tendo a primeira categoria mais prevalente do que a segunda, mas Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 217-222, jul.-set. 2015 PREVALÊNCIA DE ALTERAÇÕES MAMOGRÁFICAS EM UMA SÉRIE DE EXAMES REALIZADOS NO HOSPITAL ... Fontes e Feuerschuette as duas juntas também foram as mais encontradas, porém praticamente não houve diferença na faixa etária, sendo que 43,3% tinham entre 40-49 anos e 31,6% entre 50-59 anos. Já Fernandes et al (17) encontraram 41,1% das pacientes com BI-RADS I e 37,9% com BI-RADS II. Com relação aos laudos inconclusivos, em Tubarão/SC estes foram evidenciados em 12,9% das mamas analisadas, principalmente na faixa etária de 40-49 anos. No estudo de Milani et al (15), obteve-se 11,7% dos achados com tal avaliação mamográfica, com maior prevalência em mulheres de 41-50 anos. Rodrigues et al (16) encontraram em seu trabalho 10,01% de exames inconclusivos, o que foi de encontro aos achados de Fernandes (17), que obteve apenas 4,4% de achados inconclusivos. Quanto aos achados que modificam a estratégia diagnóstica, encontrou-se no HNSC 1,3% com BI-RADS III, 0,3% com BI-RADS IV e 0,1% com BI-RADS V. Um ponto relevante anteriormente mencionado é que 37,5% das pacientes que deveriam prosseguir a avaliação com anatomopatológico tinham menos de 50 anos. Comparando esses dados, Milani et al (15) não foram muito diferentes, encontrando 0,57% com BI-RADS III, 0,34% com BI-RADS IV e 0,14% com BI-RADS V. Além disso, os achados deste estudo também demonstraram que 44,7% das pacientes com BI-RADS IV ou V tinham menos de 50 anos. Por sua vez, Rodrigues et al (16) encontraram 2,44% com BI-RADS III, 1,21% com BI-RADS IV e 0,11% com BI-RADS V. Já nos dados de Fernandes et al (17), houve divergência nos resultados, onde a classificação BI-RADS III correspondeu a 14,4% dos exames, BI-RADS IV com 1,8% e BI-RADS V com 0,4%. Mas o estudo de Fernandes et al (17) detectou que 49,7% das pacientes com risco de malignidade tinham menos de 50 anos. Apesar das possíveis diferenças epidemiológicas das pesquisas usadas para comparação de resultados, além dos possíveis vieses de interpretação profissional, e também pela metodologia do presente trabalho, que avaliou as mamas estudadas, não coletando assim a classificação mamográfica mais chamativa no laudo, para não subestimar dados, foram encontradas poucas diferenças nos resultados comparados. Como limitação, o presente estudo apresenta a possibilidade de um mesmo resultado BI-RADS III se repetir, pois tais pacientes devem fazer controle a cada seis meses. Contrapondo-se à Portaria 1.253 do Ministério da Saúde (5), que tira o direito das mulheres com menos de 50 anos de idade de detectar e, consequentemente, tratar precocemente um câncer de mama ou uma lesão pré-neoplásica, ao passo que limita o acesso ao exame de mamografia para tal população, ficou evidenciada a importância da prevenção precoce, e isso inclui pacientes com menos de 50 anos de idade. Justifica-se este argumento pelo fato de que mais de 37% das pacientes que deveriam prosseguir a investigação diagnóstica com biópsia, por possuir algum risco de apresentar uma lesão de caráter maligno ou que evoluiria para tal, evidenciado nas mamografias da presente pesquisa e nas demais analisadas, tinham menos de 50 anos. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 217-222, jul.-set. 2015 CONCLUSÃO Os achados do presente estudo mostram, em concordância com outras pesquisas semelhantes, que a grande maioria das pacientes não apresentou alterações significativas nos exames mamográficos, que em um pouco mais de 12% das mamas avaliadas, com destaque para pacientes mais jovens, a mamografia não foi suficiente para dar um parecer conclusivo no que diz respeito à exclusão de suspeitas de malignidade, e ainda, 1,7% da amostra possuía algum grau de suspeita. Além disso, os dados evidenciam que é uma irresponsabilidade determinar 50 anos de idade como um ponto de corte para iniciar rastreamento mamográfico, pois 37,5% da população que necessitava de uma avaliação mais esclarecedora por meio de biópsia, com a finalidade de obter um diagnóstico precoce ou excluir o mesmo, estavam abaixo de tal faixa etária. Além do mais, o valor repassado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) para pagamento da realização de mamografia não é tão elevado, principalmente se comparado com o custo financeiro de outros exames, como Ressonância Nuclear Magnética. REFERÊNCIAS 1. Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva. Estimativa 2014: incidência de câncer no Brasil. Rio de Janeiro: INCA; 2014. 124 p. 2. Silva RCF, Hortale VA. Rastreamento do Câncer de Mama no Brasil: Quem, Como e Por quê?. Revista Brasileira de Cancerologia 2012; 58(1):67-71. 3. Freitas F. Rotinas em ginecologia. 6ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. 736 p. 4. Boyle P, Levin B, editors. World cancer report 2008. Lyon: IARC Press; 2008. 510p. 5. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Portaria n° 1.253, de 12 de novembro de 2013. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 13 de novembro de 2013. Seção 1.p. 128. 6. U.S. Preventive Services Task Force. 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B 88.704-240 – Tubarão, SC – Brasil (48) 9608-7049 [email protected] Recebido: 30/5/2015 – Aprovado: 14/7/2015 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 217-222, jul.-set. 2015 RELATO DE CASO Bloqueio da divisão anteromedial do ramo esquerdo e coronariopatia severa: relato de caso Left septal fascicular block and ischemic cardiomyopathy: case report Ismael Polli1, Gilberto Alt Barcellos2, José Luiz Moller Flores Soares3 RESUMO A subdivisão do sistema de condução pelo ramo esquerdo continua controversa, apesar de décadas de estudos. Rosembaum, na década de 1960, dividiu em dois fascículos, e estudos subsequentes apontaram a existência de uma terceira subdivisão, denominada anteromedial. Com critérios estabelecidos pela Sociedade Brasileira de Cardiologia e outras sociedades científicas, o bloqueio divisional anteromedial (BDAM) é ignorado por outras entidades, que alegam não haver critérios universalmente aceitos para sua definição. A associação entre BDAM e cardiopatia isquêmica foi descrita algumas vezes. Relatamos um caso em que a presença de BDAM foi indicador de gravidade em um paciente com dor precordial. UNITERMOS: Isquemia Miocárdica, Bloqueio de Ramo, Oclusão Coronária. ABSTRACT The subdivision of the conduction system by the left branch remains controversial despite decades of studies. Rosenbaum, in the 1960s, split into two fascicles, and subsequent studies indicated the existence of a third subdivision, named anteromedial. With criteria established by the Brazilian Society of Cardiology and other scientific societies, the anteromedial divisional block (AMDB) is ignored by other groups, who claim there is no universally accepted criteria for its definition. The association between AMBD and ischemic cardiomyopathy has been described a few times. We describe a case in which the presence of AMBD was an indicator of severity in a patient with precordial pain. KEYWORDS: Myocardial Ischemia, Bundle-Branch Block, Coronary Occlusion. INTRODUÇÃO A subdivisão do sistema de condução pelo ramo esquerdo tem sido alvo de estudos nos últimos anos. Na década de 1960, Rosembaum propôs a sua divisão em dois sub-ramos: o anteroposterior e o posteroinferior. Surgia então o termo hemibloqueio do ramo esquerdo, ainda muito utilizado até hoje (1). Diversos estudos posteriores, publicados a partir da década de 1970, e especialmente após o desenvolvimento da eletrofisiologia moderna, levantaram a hipótese da existência de uma terceira subdivisão do ramo esquerdo, denominada anteromedial ou septal (2,3). Essa ideia foi aceita 1 2 3 pela maioria das sociedades científicas (4). Entretanto, a American Heart Association, a American College of Cardiology Foundation, e a Heart Rhythm Society, em seu mais recente documento sobre padronização de interpretação de eletrocardiograma (5), informaram não haver critérios universalmente aceitos para a definição do bloqueio divisional anteromedial (BDAM). Quando admitida a sua existência, a presença de BDAM em um paciente com fatores de risco para coronariopatia ou com sintomas sugestivos de cardiopatia isquêmica pode indicar doença coronariana grave, com acometimento da artéria descendente anterior proximal, antes dos primeiros ramos septais (6,7). Cardiologista. Cardiologista. Preceptor da Residência em Cardiologia do Hospital Nossa Senhora da Conceição de Porto Alegre. Cardiologista. Preceptor da Residência em Medicina Interna do Hospital Nossa Senhora da Conceição de Porto Alegre. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 223-226, jul.-set. 2015 223 Bloqueio da divisão anteromedial do ramo esquerdo e coronariopatia severa: relato de caso Polli et al. Relatamos um caso em que a presença de BDAM foi indicador de gravidade em um paciente com dor precordial. RELATO DE CASO Paciente masculino de 79 anos, comerciante aposentado, em tratamento irregular para hipertensão arterial sistêmica e diabetes mellitus há pelo menos uma década, procurou atendimento após episódio de dor anginosa típica surgida há 10 horas, aliviada com o repouso, tendo após permanecido com náuseas e sensação de “mal-estar”. No momento do atendimento, já estava assintomático, e seu eletrocardiograma inicial não mostrava alterações isquêmicas compatíveis com síndrome coronariana aguda (SCA) com supra de ST (Figura 1A). Permaneceu internado para observação clínica e dosagens seriadas de marcadores de necrose miocárdica. Após cerca de duas horas, ainda em observação hospitalar, apresentou novo episódio de dor precordial anginosa típica, sem instabilidade hemodinâmica. O novo eletrocardiograma mostrou surgimento de ampla onda R (> 15mm) nas derivações V2 e V3, com transição rápida da derivação V1 para V2, além de isquemia subepicárdica em parede anterior (Figura 1B). O paciente recebeu manejo clínico para Síndrome Coronariana Aguda, com melhora da dor. Não houve elevação dos marcadores de necrose miocárdica. Dentro de 24 horas após o episódio de angina, foi encaminhado para cineangiocoronariografia, que evidenciou lesão coronariana trivascular severa. A artéria descendente anterior apresentava estenose crítica (99%) no terço proximal, e duas im- A portantes lesões nos terços médio e distal, com lesão grave em terço proximal de primeiro ramo diagonal; a artéria circunflexa estava ocluída no terço médio com circulação colateral distal, e a artéria coronária direita com pelo menos três lesões graves, além de lesão severa no ramo descendente posterior (Figura 2). O Ecocardiograma mostrou contratilidade preservada das paredes do VE, com disfunção diastólica por relaxamento alterado e fração de ejeção de 70%. A alteração eletrocardiográfica descrita anteriormente se manteve em exames subsequentes. O paciente permaneceu internado até ser submetido à cirurgia de revascularização miocárdica, com realização de quatro pontes: artéria torácica interna esquerda para artéria descendente anterior, pontes de safena para artéria coronária direita, ramo marginal de artéria circunflexa e ramo diagonal de artéria descendente anterior. Após a cirurgia, o paciente evoluiu sem complicações. DISCUSSÃO O caso descrito anteriormente ilustra a associação entre uma alteração eletrocardiográfica compatível com BDAM, que se acentuou durante a vigência de dor precordial anginosa. É sabido que, assim como as alterações dinâmicas do segmento ST-T, o surgimento de arritmias cardíacas, bem como os bloqueios atrioventriculares e intraventriculares e as modificações na amplitude das ondas R devem alertar o médico emergencista ou aquele que esteja prestando o primeiro atendimento, sobre a possibilidade de síndrome coronariana aguda (8,9). B Figura 1 – Eletrocardiograma na admissão hospitalar (a) e eletrocardiograma durante quadro anginoso mostrando alterações compatíveis com bloqueio da divisão anteromedial do ramo esquerdo (b). 224 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 223-226, jul.-set. 2015 Bloqueio da divisão anteromedial do ramo esquerdo e coronariopatia severa: relato de caso Polli et al. Figura 2 – Imagem de coronariografia mostrando lesão coronariana severa trivascular. Os critérios para diagnóstico de BDAM definidos pela Sociedade Brasileira de Cardiologia são os seguintes (4): a) Onda R ≥ 15mm em V2 e V3 ou desde V1, crescendo para as derivações precordiais intermediárias e diminuindo de V5 para V6. b) Crescimento súbito da onda “r” de V1 para V2 (“rS” em V1 para R em V2). c) Duração do QRS < 0,12s. d) Ausência de desvio do eixo elétrico de QRS no plano frontal. e) Ondas T, em geral negativas nas derivações precordiais direitas. Todos os critérios anteriores são encontrados no eletrocardiograma do paciente descrito. O ecocardiograma não mostra sobrecarga de ventrículo direito, hipertrofia septal ou acinesia dorsal, achados que poderiam levar a alterações eletrocardiográficas semelhantes. Em um estudo com cerca de 26.000 eletrocardiogramas consecutivos da Universidade da Califórnia, os critérios para BDAM foram encontrados em 0,5% dos casos (10). O BDAM pode ser induzido por isquemia, fibrose ou alteração esclerodegenerativa, sendo que outros fascículos podem ser acometidos igualmente. Estudos com cães sugerem ainda que o bloqueio classificado como incompleto do ramo esquerdo pode ser uma manifestação de BDAM (11,12). A localização desse fascículo, embora de difícil caracterização eletrofisiológica e anatomopatológica, se dá a partir da subdivisão do feixe de His se anteriorizando através do septo (13,14). Como a irrigação sanguínea dessa área é feita predominantemente pelas artérias septais, o surgimento eletrocardiográfico desse bloqueio pode ser um indicador de coronariopatia severa, com acometimento da artéria descendente anterior antes da origem das primeiras septais. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 223-226, jul.-set. 2015 COMENTÁRIOS FINAIS Poucos estudos existem na literatura a respeito da etiologia do BDAM, mas inúmeros relatos de caso apontam a associação entre cardiopatia isquêmica e tal bloqueio (7,8). Consideramos que o caso clínico descrito anteriormente ilustra perfeitamente essa associação. Alertamos os médicos que prestam atendimento de emergência para que estejam atentos às alterações eletrocardiográficas anteriores, e, mesmo na ausência de evidências clínicas mais contundentes, possam considerar a possibilidade de cardiopatia isquêmica no paciente que apresente eletrocardiograma com alterações sugestivas de BDAM. REFERÊNCIAS 1. Rosenbaum MB, Elizari MV, Lazzari JO. Los Hemibloqueos. Editorial Paidos. Buenos Aires, 1967. 2. Rossi L. Trifascicular conduction system and left branch hemiblock. Anatomical and histopathological considerations. G Ital. Cardiol. 1971; 1:55-62. 3. Bayés de Luna A, Riera AP, Baranchuk A, Chiale P, Iturralde P, Pastore C, et al. Electrocardiographic manifestation of the middle fibers/septal fascicle block: a consensus report. J Electrocardiol. 2012 Sep;45(5):454-60. 4. Pastore CA, Pinho C, Germiniani H, Samesima N, Mano R, Andres R, et al. Sociedade Brasileira de Cardiologia. Diretrizes da Sociedade Brasileira de Cardiologia sobre Análise e Emissão de Laudos Eletrocardiográficos (2009). Arq Bras Cardiol 2009;93(3 supl.2):1-19. 5. Surawicz B, Childers R, Deal BJ, Gettes LS, James J, Bailey MD, et al. AHA/ACCF/HRS recommendations for the standardization and interpretation of the electrocardiogram: part III: intraventricular conduction disturbances: a scientific statement from the American Heart Association Electrocardiography and Arrhythmias Committee, Council on Clinical Cardiology; the American College of Cardiology Foundation; and the Heart Rhythm Society. Endorsed by the International Society for Computerized Electrocardiology. J Am Coll Cardiol. 2009; 53 (11):976-981. 6. Tranchesi J, Moffa PJ, Pastore CA, Carvalho, ET, Tobias NMM, Neto AS, et al. Bloqueio da divisão anteromedial do ramo esquerdo 225 Bloqueio da divisão anteromedial do ramo esquerdo e coronariopatia severa: relato de caso Polli et al. do feixe de His nas coronariopatias Caracterização Vetorcardiográfica. Arq Bras Cardiol. 1979; 32 (6): 355-360. 7. Ushida AH, Moffa PJ, Riera ARP, Ferreira BMA. Exercise-induced left septal fascicular block: an expression of severe myocardial ischemia. Indian Pacing and Electrophysiology Journal. 2006; 6(2): 135138. 8. Thygesen K, Alpert JS, White HD, Jaffe AS, Katus HA, Apple FS, et al. Third Universal Definition of Myocardial Infarction. Circulation. 2012;126:2020-2035 9. Fiol M, Carrillo A, Rodríguez A, Pascual M, Bethencourt A, Bayés de Luna A. Electrocardiographic changes of ST-elevation myocardial infarction in patients with complete occlusion of theleft main trunk without collateral circulation: differential diagnosis and clinical considerations. J Electrocardiol. 2012 Sep;45(5):487-90. 10. MacAlpin RN. In search of left septal fascicular block. Am Heart J. 2002;144 (6):948. 11. Dabrowska B, Ruka M, Walczak E. The electrocardiographic diagnosis of left septal fascicular block. Eur J Cardiol. 1978; 6(5):347. 226 12. Pérez-Riera AR, Baranchuk A. Unusual Conduction Disorder: Left Posterior Fascicular Block + Left Septal Fascicular Block. Ann Noninvasive Electrocardiol 2014;00(0):1-2. 13. Ibarrola M, Chiale PA, Pérez-Riera AR, Baranchuk A. Phase 4 left septal fascicular block. Heart Rhythm. 2014 Sep; 11(9):1655-7. 14. Pérez Riera AR, Ferreira C, Ferreira Filho C, Meneghini A, Uchida AH, Moffa PJ, et al. Electrovectorcardiographic diagnosis of left septal fascicular block: anatomic and clinical considerations. Ann Noninvasive Electrocardiol. 2011 Apr;16(2):196-207. Endereço para correspondência Ismael Polli Av. Francisco Trein, 596 91.350-200 – Porto Alegre, RS – Brasil (51) 3357-2000 [email protected] Recebido: 19/11/2014 – Aprovado: 13/1/2015 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 223-226, jul.-set. 2015 RELATO DE CASO Faringo-cérvico-braquial: variante rara do espectro da síndrome de Guillain-Barré Pharyngeal-Cervical-Brachial: A rare variant of the Guillain-Barré syndrome spectrum Marco Antonnio Rocha dos Santos1, Marina Plain Olmi1, Eduardo Anton Oliveira1, Kelin Cristine Martin2, Marino Muxfeldt Bianchin3 RESUMO A Síndrome de Guillain-Barré (SGB) é uma polineuropatia autolimitada, na maioria das vezes de mecanismo autoimune pós-infeccioso. Este caso tem por objetivo relatar uma variante rara do espectro da SGB. O método utilizado foi o acompanhamento clínico do paciente e revisão de prontuário. Conclui-se que conhecimento acerca da FCB e alto grau de suspeição são importantes para o diagnóstico diferencial de pacientes que apresentam sintomas bulbares e fraqueza de membros superiores, principalmente pela gama de diagnósticos diferenciais que os sintomas podem sugerir. UNITERMOS: Síndrome de Guillian-Barré, Variante Faringo-cérvico-braquial, Polirradiculoneuropatia, Neurologia. ABSTRACT Guillain-Barré syndrome (GBS) is a self-limited polyneuropathy, most often by a post-infectious autoimmune mechanism. This case aims at reporting a rare variant of the GBS spectrum. The method used was clinical monitoring of the patient and medical record review. It was concluded that knowledge of the pharyngeal-cervical-brachial variant and high degree of suspicion are important for the differential diagnosis of patients with bulbar symptoms and weakness of the upper limbs, particularly because of the range of differential diagnoses the symptoms may suggest. KEYWORDS: Guillain-Barré Syndrome, Pharyngeal-cervical-brachial variant, Polyradiculoneuropathy, Neurology. INTRODUÇÃO RELATO DE CASO A Síndrome de Guillain-Barré (SGB) é a principal causa de paralisia flácida aguda no mundo, sendo caracterizada por hipo ou arreflexia e dissociação proteico-citológica (1,2). Há evidências que suportam um mecanismo autoimune para a SGB, tendo como principais agentes deflagradores o Campylobacter jejuni, citomegalovírus (CMV), vírus Epstein-Baar, Mycoplasma pneumoniae, e Haemoplilus influenzae. (1,2). A variante de fraqueza faringo-cérvico-braquial (FCB) da SGB é definida por paralisia facial, disartria, disfagia, fraqueza e arreflexia em membros superiores (3,4). Seu tratamento baseia-se em imunoglobulina humana ou plasmaférese, com resultados semelhantes na alteração do curso da doença (1). BAH, 18 anos, sexo masculino, previamente hígido, iniciou com dor lombar moderada de padrão neuropático, perda de força em membros superiores, disfagia progressiva a alimentos sólidos e, cinco dias após, evoluindo para tetraparesia e perda da motricidade de hemiface esquerda. Não apresentava dificuldade respiratória, nem alterações sensitivas. Paciente negou história recente de sintomas gastrointestinais ou quadro viral. Ao exame físico, pares cranianos preservados (à exceção do VII à esquerda), exames sensitivo e cerebelar normais. Presença de arreflexia em todos os membros, força grau I em membros superiores, grau III em membro inferior esquerdo e grau II em membro inferior direito. Punção lombar evidenciou dissociação 1 2 3 Estudante de Medicina. Residente de Neurologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Preceptor da Residência em Neurologia do HCPA. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 227-229, jul.-set. 2015 227 Faringo-cérvico-braquial: variante rara do espectro da síndrome de Guillain-Barré Santos et al. proteíno-citológica (proteínas: 140 e leucócitos: 5), tomografia computadorizada de crânio e ressonância magnética de medula não mostraram alterações. Exames laboratoriais e sorologias normais, à exceção de CMV IgM e IgG reagentes. A eletroneuromiografia resultou em polineurorradiculopatia motora axonal aguda, confirmando, então, o diagnóstico de Síndrome de Guillain-Barré. Foi instaurado tratamento com Imunoglobulina humana por cinco dias, havendo melhora considerável da força. Durante a internação, apresentou sinais de disautonomia com episódios de palpitações, taquicardia de até 115 bpm em repouso e picos hipertensivos de até 149/110 mmHg, tendo estes se estabilizado ao longo do tratamento. Paciente obteve alta hospitalar após 24 dias, com força grau IV em todos os membros e em uso de sonda nasogástrica para alimentação. DISCUSSÃO Descrita por Guillain, Barré, e Strohl em 1916, é, após a quase erradicação da poliomielite, a principal causa de paralisia flácida aguda no mundo. A incidência anual é de 1,2-2,3/100.000, com uma relação de 1,5-1,78 homem para 1 mulher. O número de novos casos globais se mantém relativamente constante, sem surtos mantidos ao longo dos anos (1,2). Há evidências que suportam um mecanismo autoimune para a SGB, sendo que aproximadamente dois terços dos pacientes têm sintomas de infecções em um período de até 3 semanas do início da fraqueza. Os agentes infecciosos mais comumente relacionados à SGB são Campylobacter jejuni, citomegalovírus (CMV), vírus Epstein-Baar, Mycoplasma pneumoniae, e Haemoplilus influenzae (2,1). Vacinação recente, especialmente para influenza, hepatite e tétano, também pode estar associada ao gatilho imunológico que inicia a reação (1,3). Classicamente, a SGB começa por fraqueza aguda flácida de caráter ascendente. A FCB, por sua vez, demonstra um padrão mais localizado da fraqueza em membros superiores e musculatura faríngea, podendo cursar com disartria, paralisia facial e disfagia (3,4). A força e reflexos em membros inferiores, no entanto, podem estar presentes (3). Nosso paciente apresentou diversas características típicas da FCB. O início do quadro deu-se com disfagia e evolução para fraqueza aguda em membros superiores e hemiparesia facial à esquerda. A FCB geralmente não cursa com acometimento de membros inferiores; no entanto, o paciente desenvolveu quadro de importante tetraparesia e arreflexia nos quatro membros. É uma variante rara da SGB, com incidência estimada de 0,007-0,25/100.000 (3). Por conta disso, existem poucos estudos com grande número de pacientes (5). O CMV e C. Jejuni são os patógenos mais comumente envolvidos nessa variante (3). A FCB pode ou não estar relacionada a outras formas da SGB, como a Miller-Fischer e encefalite de Bickerstaff, e, como estas, comumente apresenta os anticorpos GM1, GM1b, GD1a, ou GalNAc-GD1a (5,6). 228 A FCB é, muitas vezes, confundida com miastenia gravis, botulismo e infarto de tronco encefálico, evidenciando a sua singularidade e o desconhecimento por parte de muitos médicos acerca de sua existência e fisiopatogenia (7). A dor é uma apresentação comum na SGB, independentemente da variante. É relatada em até 89% dos casos com padrões variáveis, como parestesia, meningismo, mialgia, artralgia, dor visceral, dor lombar e radicular. O quadro de taquicardia e flutuações na pressão arterial é consistente com o que é descrito e esperado por disautonomias, que são comuns entre os pacientes de SGB (1). Apesar de nosso paciente negar sintomas infecciosos precedendo a abertura do quadro, a confirmação sorológica IgM para CMV é o provável desencadeador da SGB que o acometeu. A eletroneuromiografia mostrou padrão de polineurorradiculopatia motora axonal, ao encontro do que traz a literatura (3). Foi realizado tratamento com imunoglobulina humana por 5 dias. Essa forma de tratamento mostra resultados semelhantes à plasmaférese, sendo preferida em muitos centros por conta da sua maior conveniência e disponibilidade (1). O prognóstico do paciente mostra-se de difícil previsão. Fadiga severa pode ser vista em 60 a 80% dos pacientes. Cerca de 20% dos pacientes possuem grave prejuízo funcional, e a mortalidade é de aproximadamente 5%. As formas axonais, como a do caso supracitado, têm recuperação funcional mais lenta e chances maiores de incapacidade em comparação às formas desmielinizantes (1,2). CONCLUSÃO Devido às manifestações semelhantes, muitos casos de FCB são admitidos como sendo botulismo, infarto de tronco encefálico ou miastenia gravis. Portanto, conhecimento acerca da FCB e alto grau de suspeição são importantes para o diagnóstico diferencial de pacientes que apresentam sintomas bulbares e fraqueza de membros superiores. O tratamento é embasado no uso de imunoglobulina ou plasmaférese, e seu sucesso depende, em grande parte, do diagnóstico correto da doença de base. REFERÊNCIAS 1. Van Doorn PA, Ruts L, Jacobs BC. Clinical features, pathogenesis, and treatment of Guillain-Barré syndrome. Lancet Neurol 2008; 7; 939-50. 2. Yuki N, Hartung HP. Guillain-Barré syndrome. N Engl J Med 2012; 366:2294-304 3. Hall JN, Sheikha MN, Shumak SL. Pharyngeal-Cervical-Brachial Variant of Guillain-Barre Syndrome. J Neurol Res. 2014; 4 (2-3): 88-90 4. Rousseff RT, Khuraibet AJ, Neubauer D. The “Child in the Barrel syndrome” severe pharyngeal-cervical-brachial variant of GuillainBarre Syndrome in a toddler. Neuropediatrics 2008; 39:354-6. 5. Nagashima T, Koga M, Odaka M, et al. Continuous spectrum of pharyngeal-cervical-brachial variant of Guillain-Barré syndrome. Arch Neurol 2007; 64:1519-23. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 227-229, jul.-set. 2015 Faringo-cérvico-braquial: variante rara do espectro da síndrome de Guillain-Barré Santos et al. 6. Ropper AH. Further regional variants of acute immune polyneuropathy. Bifacial weakness or sixth nerve paresis with paresthesias, lumbar polyradiculopathy, and ataxia with pharyngeal-cervical-brachial weakness. Arch Neurol 1994; 51:671-5. 7. Wakerely BR, Yuiki N. Pharyngeal-cervical-brachial variant of Guillain-Barré Syndrome. J Neurol Neurosurg Psychiatry 2014; 85(3):339-44. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 227-229, jul.-set. 2015 Endereço para correspondência Marco Antonnio Rocha dos Santos Rua Coronel Cordova, 914 88.502-001 – Lages, SC – Brasil (49) 9914-9969 [email protected] Recebido: 20/1/2015 – Aprovado: 25/2/2015 229 RELATO DE CASO Comprometimento renal na leptospirose: relato de caso da doença de Weil Renal impairment in leptospirosis: a case report of Weil’s disease Ellen Simionato Valente1, Ralph Vighi da Rosa2, Mauricio Costa Lazzarin2, Rafael de Almeida3, Alexander Gonçalves Sacco4 RESUMO A leptospirose é uma doença de distribuição mundial e epidêmica de determinadas regiões tropicais. A apresentação clínica é inespecífica e pode ser autolimitada. Na sua forma mais severa, caracterizada por icterícia, injúria renal aguda e diátese hemorrágica, é chamada de doença de Weil. Neste relato descrevemos o caso de um paciente com oligúria, azotemia franca e injúria renal aguda. O tratamento baseou-se em hemodiálise diária e tratamento antibiótico empírico, com recuperação total da função renal. O diagnóstico foi realizado através de teste sorológico e confirmado que se tratava de um caso de leptospirose associado a comprometimento renal. UNITERMOS: Leptospira, Lesão Renal Aguda, Diálise. ABSTRACT Leptospirosis is a worldwide disease and epidemic in certain tropical regions. The clinical presentation is nonspecific and can be self-limited. In its most severe form, characterized by jaundice, acute kidney injury and bleeding diathesis, it is called Weil’s disease. We report the case of a patient with oliguria, steady azotemia, and acute kidney injury. The treatment was based on daily hemodialysis and empirical antibiotic therapy, with full recovery of renal function. The diagnosis was made by serologic testing and confirmed that it was a case of leptospirosis associated with renal impairment. KEYWORDS: Leptospira, Acute Kidney Injury, Dialysis. INTRODUÇÃO A leptospirose é um problema de saúde pública mundial, epidêmica de algumas áreas do Brasil (1). Esta infecção afeta tipicamente jovens adultos, principalmente homens (9:1), em seus anos economicamente mais produtivos, e geralmente ocorre através do contato com solo e água contaminados (1,2). Trata-se de uma zoonose que apresenta um curso bifásico: inicialmente, com a fase leptospirêmica, caracterizada por febre aguda, cefaleia severa, anorexia e diarreia; e, tardiamente na fase imune, com sintomas mais severos (3, 4). A forma mais grave da doença, também chamada doença de Weil, está associada à icterícia, à injúria renal agu1 2 3 4 da (IRA) e à diátese hemorrágica, e a fatores como idade, gênero, oligúria, icterícia e envolvimento pulmonar acarretam pior prognóstico (3,5). Pacientes com essa forma de leptospirose tipicamente requerem diálise, uma vez que a mortalidade desta doença quando associada à IRA é de aproximadamente 22% (1,3). A suspeita clínica e a confirmação laboratorial são cruciais, visto que o número de óbitos ainda permanece inaceitavelmente alto (6). RELATO DO CASO Paciente do sexo masculino com 46 anos de idade, previamente hígido, sem acompanhamento médico regular, Acadêmica de Medicina. Residente de Medicina Interna. Nefrologista. Professor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Nefrologista do Serviço de Hemodiálise da Santa Casa de Pelotas. 230 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 230-232, jul.-set. 2015 COMPROMETIMENTO RENAL NA LEPTOSPIROSE: RELATO DE CASO DA DOENÇA DE WEIL Valente proveniente da zona urbana de Pelotas/RS, apresentava queixa de mialgia difusa e cefaleia nucal havia dez dias, acompanhado de febre, inapetência, náuseas e vômitos. Quando procurou atendimento médico, tinha importante dor em panturrilha bilateral e referia coloração amarelada da pele prévia à consulta. No entanto, o principal motivo que fez o paciente procurar atendimento foi o fato de apresentar diminuição da diurese. Ao exame físico, apresentava hiperemia conjuntival, pressão arterial normal e estava anictérico. O paciente referia morar em local com muitos ratos, e que mantinha contato frequente das mãos com água de chuva possivelmente contaminada, quando realizava afazeres do lar. O primeiro exame laboratorial realizado mostrava uma creatinina sérica igual a 11,3 mg/dL e uma ureia igual a 297 mg/dL. Devido ao quadro de azotemia, o paciente foi então encaminhado com urgência para o serviço de nefrologia, a fim de realizar sessões de hemodiálise diária. Exames laboratoriais da internação mostravam contagem de leucócitos de 13.320/μL (neutrófilos 85%, linfócitos 12%, eosinófilos 1%), um nível de hemoglobina igual a 11 g/dL, contagem de plaquetas 362.000/μL, creatinina sérica 10,67 mg/dL, ureia sérica 257 g/dL, sódio sérico 139,5 mEq/L, potássio sérico 4,79 mEq/L, colesterol total 248 mg/dL, colesterol LDL 146 mg/dL, colesterol HDL 18 mg/dL, triglicerídeos 422 mg/dL e ácido úrico 12,8 mg/dL, bilirrubina total de 1,33 mg/dL (bilirrubina direta 1,25 mg/ dL e bilirrubina indireta 0,08 mg/dL). Complemento C3 e C4, valores de AST e ALT estavam dentro dos valores normais de referência. Exame de sedimento urinário com presença de proteinúria e hematúria microscópica. Urocultura e hemocultura sem crescimento bacteriano. Além dos exames de rotina, foram investigadas infecções como sífilis, hepatites B e C, e HIV, cujos resultados foram completamente normais. Realizada ecografia de rins e aparelho urinário que mostrou rins tópicos, com contornos regulares, apresentando dimensões discretamente aumentadas (rim direito com 14,8 x 5,5 cm e rim esquerdo com 14,6 x 7,8 cm), bem como aumento da ecogenicidade do córtex renal, compatível com nefropatia aguda. Durante a internação, devido à alta suspeição clínica de que se tratava de leptospirose na sua forma mais severa, foi iniciado tratamento empírico com Ciprofloxacino 800 mg/ dia por dez dias. O paciente não apresentou mais episódios febris e referia melhora do quadro de mialgia e dor na panturrilha, porém ainda se queixava de dor lombar e cefaleia nucal e frontal. Os exames laboratoriais mantiveram-se regulares, sem presença de plaquetopenia ou hiperbilirrubinemia. Após seis dias do início da terapia de substituição renal, o quadro de IRA evoluiu com melhora progressiva da função renal com o tratamento instituído (creatinina 2,60 mg/dL e ureia 92 mg/dL). O ELISA-IgM (Enzyme Linked Immuno Sorbent Assay) solicitado ao início da internação foi reagente para anticorpos IgM de Lepstospirose, definindo, assim, o diagnóstico do paciente. Após 12 dias de internação, o paRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 230-232, jul.-set. 2015 ciente recebeu alta com melhora do estado geral e dos parâmetros laboratoriais (creatinina 1,22 mg/dL e ureia 45 mg/dL), além de orientação para realizar acompanhamento médico-ambulatorial. DISCUSSÃO A abrangência clínica da leptospirose é grande, variando de doença assintomática a clássica síndrome da doença de Weil (6). Diversos estudos mostram que os sintomas mais frequentes da leptospirose são basicamente febre, cefaleia e mialgia (5). No entanto, quando a doença de Weil, que ocorre em 5% a 10% dos casos de leptospirose, está presente, somam-se sintomas mais graves como a IRA, icterícia e trombocitopenia (7). O paciente do caso em questão tinha o quadro clínico clássico e apresentava ainda a hiperemia conjuntival, um achado físico distinto e característico da leptospirose, embora frequentemente negligenciado (2). A penetração do micro-organismo ocorre através da pele com presença de lesões, ou pele íntegra exposta direta ou indiretamente à urina de animais infectados, principalmente roedores sinantrópicos (4). O contato do paciente se deu através de água possivelmente contaminada pela urina de ratos, visto que a região onde o paciente morava apresentava condições ruins de moradia, as quais, no caso da leptospirose, se tornam uma importante questão de saúde pública (6). A IRA, que pode se manifestar depois de vários dias da doença, está presente em 40% dos casos, e representa a principal forma de morte no mundo (2,3,7). A lesão renal é caracterizada especialmente pela associação entre o dano intersticial e tubular. Patologicamente, todas as estruturas renais estão envolvidas, mas a nefrite intersticial é a lesão básica da leptospirose (3). A IRA geralmente é não oligúrica e tem como anormalidade eletrolítica mais comum a hipocalemia, que reflete uma disfunção renal tubular (2,3,4). Com a perda progressiva do volume intravascular, os pacientes desenvolvem insuficiência renal oligúrica, devido à azotemia pré-renal. Nesse estágio, podem apresentar hipercalemia, e os pacientes podem desenvolver necrose tubular aguda, necessitando o início imediato de diálise para tratamento da IRA (4). No relato, apesar do paciente apresentar azotemia franca, os níveis de potássio sempre estiveram dentro dos limites de normalidade. Há estudos que mostram que, na leptospirose com IRA, oligúria é um fator de risco para a morte e que os padrões clínicos parecem estar mudando (5,7). Pacientes com essa forma de leptospirose tipicamente requerem diálise, porém a necessidade de terapia de substituição renal em pacientes com IRA depende de inúmeros fatores, incluindo a diurese restante, o acúmulo de solutos urêmicos, hipercatabolismo, peso do paciente, e o nível de controle metabólico desejado (1). Estudos sugerem que a hemodiálise mais frequente diminui o risco de complicações fatais em pacientes com doença de Weil (1). Schiffl et al reportaram que a hemodiálise diária intermitente seria 231 COMPROMETIMENTO RENAL NA LEPTOSPIROSE: RELATO DE CASO DA DOENÇA DE WEIL Valente superior à hemodiálise convencional (dias alternados) em pacientes críticos com IRA e necrose tubular aguda concomitante (1). E Andrade et al mostraram que a hemodiálise diária associou-se com melhor controle da ureia e creatinina séricas, assim como a maiores taxas de sobrevivência (1). A recuperação da função renal geralmente é completa na maioria dos pacientes (3). Nosso paciente, que realizou 6 sessões de hemodiálise diária, recuperou totalmente a função renal, o que nos mostra que, de fato, a terapia de substituição renal diária tem uma boa indicação. Além de febre por malária e dengue, influenza, hepatites virais agudas, HIV, meningites, pielonefrite e síndrome hemolítico-urêmica são diagnósticos diferenciais pertinentes em se tratando de leptospirose, visto a inespecificidade dos sinais e sintomas (2,4). Quando investigado, o paciente não apresentava comorbidades e, tampouco, sinais ou sintomas que sugerissem outras doenças. O teste da aglutinação microscópica (MAT) é atualmente considerado como o teste sorológico de referência para o diagnóstico da infecção por leptospirose, porém é pouco disponível e necessita muita experiência, enquanto que o teste ELISA-IgM pode ser realizado com maior facilidade (4,6). Embora a maioria dos casos de leptospirose seja autolimitada, a infecção pode ser tratada com uma ampla variedade de antibióticos, inclusive testes in vitro já mostraram a sensibilidade da maioria destes medicamentos (2,7). O tratamento empírico com antibióticos é frequentemente iniciado antes da confirmação sorológica (2). A penicilina tem se mostrado efetiva tanto nos casos severos quanto nos estágios tardios da doença (7). Segundo diretrizes de 2010 do Ministério da Saúde, na fase precoce está indicado o uso de Amoxicilina, enquanto que na fase tardia a Penicilina G Cristalina é indicada, com a duração do tratamento antibiótico intravenoso de no mínimo 7 dias (4). O uso de Ciprofloxacino em nosso caso mostra que antibióticos do grupo das Quinolonas também podem ser usados, ainda que empiricamente, e possuem uma boa resposta terapêutica. A severidade da doença de Weil é facilmente entendida pelo alto índice de mortalidade dos casos com IRA: 36% em Barbados, 26% no Sri Lanka, 17% na Turquia e 26% na Romênia (6). Portanto, o tratamento empírico antibiótico imediato, suporte clínico adequado e início oportuno e precoce da hemodiálise, seguida por sessões diárias, quando necessária, levam a uma baixa mortalidade (1,2). 232 Ainda assim, a doença pode ter um curso fatal em pessoas previamente saudáveis, com relatos de erros de diagnóstico inicial em 60-70% dos pacientes que, por fim, foram diagnosticados com leptospirose (2,6). COMENTÁRIOS FINAIS A leptospirose é uma infecção espiroqueta aguda de sintomas inespecíficos, endêmica de regiões tropicais, como o Brasil. Quando em sua forma grave, o comprometimento renal é uma complicação comum. No entanto, a trombocitopenia, que pode gerar lesão pulmonar devido à hemorragia alveolar, e a icterícia são outras duas possíveis consequências da doença de Weil. Destaca-se no presente relato a lesão renal aguda na presença de leptospirose, que não estava associada aos outros dois sintomas clássicos citados anteriormente. Assim, a possibilidade de leptospirose deve ser considerada naqueles pacientes previamente hígidos em que, apesar de clínica inespecífica, apresentem lesões sistêmicas graves, como em nosso caso, injúria renal aguda. REFERÊNCIAS 1. Andrade L, Cleto S, Seguro AC. Door-to-dialysis time and daily hemodialysis in patients with leptospirosis: impact on mortality. Clin J Am Soc Nephrol, 2007, 2:739-744. 2. Windpessl M, Prammer W, Nömeyer R, et al. Leptospirosis and renal failure: a case series. Wien Klin Wochenschr 2014; 126:238-242. 3. Cavoli GL, Tortorici C, Bono L, et al. Acute renal failure in Weils disease. Dial Traspl. 2013; 34(1):33-35. 4. Doenças infecciosas e parasitárias: guia de bolso. Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica. – 8ª ed. rev. – Brasília: Ministério da Saúde, 2010. 444 pp. 5. Daher E, Zanetta DMT, Cavalcante MB, et al. Risk factors for death and changing patterns in leptospirosis acute renal failure. Am. J. Trop. Med. Hyg. 1999, 61(4):630-634. 6. Inoue T, Yoshikawa K, Tada M, et al. Two cases of Weils disease with acute renal failure in the central Tokyo metropolitan area. Clin. Nephrol. 2010; 73(1):76-80. 7. Leung J, Schiffer J. Feverish, Jaundiced. Am. J. Med. 2009; 122(2):129131. Endereço para correspondência Ellen Simionato Valente Av. Duque de Caxias, 336/202/bl. E 96.030-000 – Pelotas, RS – Brasil (53) 8126-1122 [email protected] Recebido: 30/1/2015 – Aprovado: 11/2/2015 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 230-232, jul.-set. 2015 RELATO DE CASO Apendicite com intussuscepção e endometriose: um relato de caso Appendicitis with intussusception and endometriosis: a case report Alan Costa dos Santos1, Renan Lemos2, Leonardo Andre Menegatti3, Maurício Castro Pilger4 RESUMO A intussuscepção do apêndice é uma condição rara (1) e de difícil diagnóstico radiológico (2). Várias são as causas primárias da intussuscepção do apêndice, como apendicite, neoplasia e endometriose (2). A apendicite, na sua forma aguda, é a causa mais comum de abdome agudo de tratamento cirúrgico (3). É uma doença típica dos adolescentes e adultos jovens e incomum antes dos cinco e após os 50 anos. O objetivo deste trabalho é o de relatar o caso de uma paciente do sexo feminino, 39 anos, que procurou o serviço de emergência do município de Pelotas com quadro de dor abdominal em fossa ilíaca direita há vários dias e com exame de imagem sugerindo apendicite. Quando submetida à apendicectomia, foi constatado que seu apêndice estava totalmente invaginado para o ceco e, no exame anatomopatológico, foi constatado endometriose no apêndice cecal. A partir do relato desse caso, foi realizada uma revisão da literatura pertinente para debater a relação entre endometriose e intussuscepção de apêndice. UNITERMOS: Apendicite, Endometriose, Intussuscepção. ABSTRACT Intussusception of the appendix is a rare condition (1) of difficult radiological diagnosis (2). There are several primary causes of intussusception of the appendix, such as appendicitis, cancer and endometriosis (2). Appendicitis, in its acute form, is the most common cause of acute surgical abdomen (3). It is a typical disease of adolescents and young adults and unusual before 5 and after 50 years. The aim of this study is to report the case of a female patient, 39, who came to the emergency department of the municipality of Pelotas with abdominal pain in the right iliac fossa for several days and imaging suggesting appendicitis. When subjected to appendectomy, it was found that her appendix was totally invaginated into the cecum, and histopathological examination showed endometriosis in the cecal appendix. From the report of this case, a literature review was performed to discuss the relationship between endometriosis and intussusception of appendix. KEYWORDS: Appendicitis, Endometriosis, Intussusception. INTRODUÇÃO RELATO DO CASO A intussuscepção de apêndice é uma condição rara (1), sendo considerada de difícil diagnóstico radiológico (2) e clínico (4). Apesar de já terem sido registrados mais de 200 casos de intussuscepção de apêndice, sua associação com endometriose permanece obscura, com apenas 15 casos descritos na literatura (5). O presente caso aborda um quadro de intussuscepção de apêndice secundário a endometriose e apresenta uma revisão de literatura sobre esta condição. S.S.P., 39 anos, feminino, natural de Pelotas, portadora de Lupus Eritematoso Sistêmico há 8 anos em uso de Prednisona e Cloroquina, com laqueadura há 11 meses e amamentando, deu entrada no Pronto Socorro Municipal de Pelotas (PSM) dia 24/11/2014 por dor iniciada e localizada em fossa ilíaca direita associada a náuseas e inapetência há 3 dias. Ao exame físico, havia dor à palpação profunda em FID, mas não existiam sinais de irritação peritoneal, febre, 1 2 3 4 Médico Cirurgião Geral. Plantonista do Pronto Socorro Municipal de Pelotas. Médico Residente em cirurgia geral do Hospital Universitário São Francisco de Paula da Universidade Católica de Pelotas (UCPel). Discente do curso de Medicina da UCPel. Doutorando no Pronto Socorro Municipal de Pelotas. Discente do curso de Medicina da Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Interno do Pronto Socorro Municipal de Pelotas. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 233-236, jul.-set. 2015 233 APENDICITE COM INTUSSUSCEPÇÃO E ENDOMETRIOSE: UM RELATO DE CASO Santos et al. nem positividade aos sinais de Rovsig e do psoas. Em relação aos exames laboratoriais, a paciente apresentava leucograma sem alterações. A paciente trouxe consigo uma ultrassonografia não esclarecedora realizada no mesmo dia, que apontava líquido livre na cavidade e dificuldade de visualizar o apêndice. Devido à inespecificidade do quadro clínico, foi concedida alta para a paciente com tratamento sintomático e orientado retorno em caso de piora. No dia 28/11/2014, a paciente retornou apresentando piora da dor e positividade para o sinal de Blumberg. Assim, foi submetida à laparotomia por suspeita de apendicite e em busca de outras possíveis causas de abdômen agudo. No ato cirúrgico, foi encontrado cisto de ovário direito de grande tamanho e apêndice inflamado e invaginado completamente para o ceco. Foi possível realizar evaginação manual das camadas mucosa, submucosa e muscular do apêndice, sendo que a camada serosa teve de ser desinvaginada em um segundo momento cirúrgico, devido às aderências com o ceco, como demonstra a imagem 1. O apêndice apresentava terço distal necrótico e foi possível sua exérese, assim como do cisto ovariano. Ambas as peças foram encaminhadas para exame anatomopatológico, cujo resultado constatou Hidátide de Morgani em relação ao anexo uterino retirado, endometriose estromal e glandular de padrão misto na parede intestinal em apêndice cecal e, no mesoapêncide, periapendicite aguda fibrino-leucocitária, sendo que todas as peças não apresentavam indícios morfológicos de malignidade, e o apêndice media 0,78cm. Ademais, a paciente foi encaminhada para a enfermaria cirúrgica, evoluindo sem intercorrências, recebendo alta hospitalar em 29/11. casos ocorre antes dos 15 anos de vida (7), além de acontecer 5 vezes com mais frequência no sexo masculino (5). O diagnóstico pré-operatório da intussuscepção ocorre na minoria dos casos (4), não apenas por se tratar de uma condição rara, mas também por ser considerada de difícil diagnóstico através da ultrassonografia (US) e da tomografia computadorizada (TC) (2), podendo o enema baritado e a colonoscopia também serem úteis no diagnóstico casual (8). Apesar da US e TC serem os exames de escolha para realizar o diagnóstico pré-operatório de apendicite, não foi encontrado, na literatura, o quanto a intussuscepção do apêndice inflamado influencia na sensibilidade e na especificidade de ambos os exames. Ainda assim, ressalta-se a importância do diagnóstico diferencial pré-operatório de um apêndice invaginado, tendo em vista evitar procedimentos desnecessários e suas complicações: um apêndice invaginado pode ser confundido com um pólipo e, assim, ser submetido a polipectomia colonoscópica, resultando em perfuração e peritonite (9); pacientes podem ser submetidos a hemicolectomia por suspeita de malignidade (10). DISCUSSÃO COM REVISÃO DE LITERATURA A prevalência de intussuscepção do apêndice é de cerca de 0,01% da população (6), sendo que mais da metade dos Figura 2 – Manobras de desintussuscepção manual do apêndice A: Ceco. A B Figura 1 – A: camadas serosa e muscular do apêndice vermiforme B: camadas mucosa e submucosa do apêndice vermiforme. 234 Figura 3 – A: Ceco. B: Apêndice desintussusceptado. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 233-236, jul.-set. 2015 APENDICITE COM INTUSSUSCEPÇÃO E ENDOMETRIOSE: UM RELATO DE CASO Santos et al. A tomografia computadorizada tem sido defendida como o método de imagem mais utilizado e acurado para o diagnóstico de intussuscepção por apresentar uma sensibilidade em torno de 93,3% e uma especificidade em torno de 97,1% (11). Esse exame demonstra uma área central de baixa atenuação envolvida por uma camada de padrão estratificado, produzida pelas listras intercaladas de baixa e alta atenuação. Estudos apontam que a ultrassonografia apresenta sensibilidade de 78% e especificidade de 47% (12) e, portanto, menor do que a encontrada para o TC para diagnosticar apendicite. Isso se explica, em parte, pelo acúmulo de gases intestinais, que obscurecem a visão do apêndice e por se tratar de um exame operador-dependente. Quando inflamado, o apêndice se apresenta como uma estrutura em fundo cego, imóvel, não compressível, com lúmen anecoico, mucosa ecogênica, parede muscular espessada e hipoecoica ao seu longo, adjacente ao ceco, com diâmetro de 0,6 cm ou mais. No corte transversal, é vista uma imagem em alvo com a luz do órgão circundada pela parede espessada. O exame ultrassonográfico apresenta, entretanto, muitas vantagens, como ser de baixo custo, não provocar irradiação, podendo ser usado com segurança em grávidas e crianças, e, além da apendicite, diagnosticar patologias pélvicas de origem ginecológica, muito comum, nos quadros abdominais agudos das mulheres, o que justifica sua escolha como exame inicial na avaliação de uma suspeita de apendicite, como ocorreu neste caso. O mecanismo mais aceito para explicar a invaginação do apêndice são os movimentos peristálticos resultantes de uma irritação local (13). Em adição, a patogênese da intussuscepção do apêndice pode ter origem anatômica ou patológica (14). As causas anatômicas são: a) apêndice completamente móvel, sem fixação pelas pregas peritoneais congênitas ou adesões inflamatórias; b) parede apendicular móvel, capaz de apresentar peristalse ativa; c) mesoapêndice delgado, livre de gordura e com base estreita; d) lúmen apendicular largo, com o lúmen proximal de diâmetro maior que o da porção distal; e) ceco do tipo fetal (em formato de funil). No presente caso, a base estreita e a delgacidade do mesoapêndice foram facilmente identificadas, assim como o lúmen proximal superior em diâmetro em relação ao lúmen distal. Já as possíveis causas patológicas são: a) corpo estranho – fecalitos ou parasitas; b) inflamação – endometriose ou hiperplasia folicular linfoide; c) neoplasia – tumor carcinoide, carcinoma, mucocele, pólipo, papiloma, fibroma, lipoma, cistos ou adenocarcinoma cecal; d) invaginação do coto apendiceal após apendicectomia (1). No presente caso, a intussuscepção foi secundária à endometriose. Apesar de sabermos que em torno de 2,8% dos casos de endometriose acometem o apêndice (15), a falta de estudos que avaliem a prevalência de apêndices não invaginados inflamados com endometriose nos limita a apontar se há relação entre a invaginação do apêndice e o fato de haver endometriose no mesmo. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 233-236, jul.-set. 2015 A maioria dos casos de apêndice intussusceptado é sintomática, embora exemplos de casos assintomáticos já tenham sido registrados (5). Os sintomas descritos são variados e inespecíficos. Classicamente, sua sintomatologia pode ser dividida em quatro grupos: assintomáticos; com sintomas de intussuscepção intestinal, cujo quadro clínico é de dor abdominal e vômitos com duração de vários dias, podendo estar associados à constipação, diarreia ou melena; ataques recorrentes de dor abdominal intensa no quadrante inferior direito, geralmente com vômitos e melena; simulando apendicite aguda (13), como no presente caso. O tratamento da apendicite é cirúrgico e deve ser efetuado tão logo o diagnóstico estiver estabelecido. Caso a redução do apêndice durante o ato cirúrgico seja impossível, uma ressecção parcial do ceco é necessária (14). No presente caso, a desinvaginação do apêndice foi possível manualmente, o que acarretou na preservação do ceco. COMENTÁRIOS FINAIS O presente caso aborda uma condição clínica rara e com poucos relatos e estudo na literatura, o que requer a combinação e análise conjunta com outros casos para, possivelmente, determinarmos condutas específicas para diagnóstico e tratamento de intussuscepção do apêndice. REFERÊNCIAS 1. Franco LLS, Rolim CS, Garcia RA, Utiyama EM, Birolini C, Mitteldorf CATS, Albertotti F, Menezes MR, Albertotti CJ, et al. Qual o seu diagnóstico? Radiologia Brasileira, São Paulo, vol 36, n. 5, outubro, 2003. 2. Miranda FC, Corpa MCE, Kim MH, Silva MRC, Mendes GF, Garcia RF, Lourenço RG, Fleming FCF, Francisco Neto MJ, Funare MBG. Programa de informações médicas UD – Departamento de Imagem, Hospital Israelita Albert Einstein, 2008. 3. Feres O, Parra RS. Abdômen Agudo. Medicina Ribeirão Preto, 2008, 41 (4): 430-6. 4. Duncan JE, DeNobile JW, Sweeney WB. Colonoscopic diagnosis of appendiceal intussusception: case report and review of the literature. Journal of the Society of Laparoendoscopic Surgens, 9.4, 2005: 488-490. 5. Jevon GP, Daya D, Qizilbash AH. Intussusception of the appendix: a report of four cases and review of the literature. Arch Pathol Lab Med 1992;116:960-4. 6. Collins DC. Seventy-one thousand humans appendix specimens: a final report summarizing forty years study. Am J Proctol 1963;14:365-81. 7. Ravin CE, Bergin D, Bisset GS. Image interpretation session: 2000. RadioGraphics 2001;21:267-87. 8. Levine SL, Trenker SW, Herlinger H. Coiled-spring sign of appendiceal intussusception. Radiology. 1985;155:41-44 9. Fazio RA, Wickremesinghe PC, Arsura EL. Endoscopic removal of an intussuscepted appendix mimicking a polypan endoscopic hazard. Am J Gastroenterol. 1982;77(8):556-558 10. Wirtschafter SK, Kaufman H. Endoscopic appendectomy. Gastrointest Endosc. 1976;22:173-174 11. Wijetunga R, Tan BS, Rouse JC, Bigg-Wither GW, Doust BD. 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A 96.015-200 – Pelotas, RS – Brasil (53) 8126-1013 [email protected] Recebido: 17/2/2015 – Aprovado: 2/3/2015 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 233-236, jul.-set. 2015 ARTIGO DE REVISÃO Tumores da mão parte I: tumores de partes moles da mão Hand tumors – Part I: Soft tissue tumors Jorge Diego Valentini1, Daniela Feijó de Aguiar2, Márcio Pereira Lima Ferdinando3, Martina Wagner4, Jefferson Braga Silva5 RESUMO Os tumores de partes moles da mão, principalmente os benignos como os cistos sinoviais, são queixas comuns, principalmente em consultas a cirurgiões da mão. Este trabalho tem por objetivo revisar os principais tipos de tumores de partes moles da mão, desde a sua apresentação clínica até uma revisão objetiva sobre seus diagnósticos e melhores opções terapêuticas. Visa auxiliar, também, na decisão de referência do paciente com uma lesão nodular ou cística da mão a um médico especialista após uma consulta ao médico generalista. As particularidades anatômicas e funcionais da mão tornam o estudo e o conhecimento das suas patologias fundamentais para um adequado manejo dos pacientes. UNITERMOS: Tumores da Mão, Tumores de Partes Moles. ABSTRACT The soft tissue tumors of the hand, especially the benign ones such as synovial cysts, are common complaints, particularly in hand surgeons consultations. This work aims to review the main types of soft tissue tumors of the hand, from their clinical presentation to an objective review of their diagnoses and the best therapeutic options. It also aims to help in the decision to refer the patient with a nodular or cystic lesion of the hand to a medical specialist after consultation with the general practitioner. The anatomical and functional particularities of the hand make the study and knowledge of its conditions crucial for proper management of patients. KEYWORDS: Hand Tumors, Soft Tissue Tumors. INTRODUÇÃO Os tumores de partes moles da mão representam queixas frequentes em consultas a médicos generalistas. Eles se tornam ainda mais prevalentes e fazem parte do dia a dia dos cirurgiões de mão. De todos os tumores de partes moles do corpo, 15% são encontrados na mão (1). É necessário estar familiarizado com esse tipo de lesão, pois o diagnóstico adequado garante o melhor tratamento. Embora a maioria das lesões seja benigna (2), deve-se ter o cuidado e adequado índice de suspeição em caso de características de malignidade. Massas subcutâneas que são firmes, fixas, 1 2 3 4 5 dolorosas e aderidas a estruturas adjacentes são mais propensas a serem malignas (2). A maioria dos tumores de partes moles da mão pode ser diagnosticada pela história clínica e pelo exame físico, porém o diagnóstico definitivo é feito pela biópsia excisional. As particularidades e a complexidade anatômica da mão, além da funcionalidade, sempre devem ser levadas em conta. Este trabalho tem como objetivo auxiliar o médico generalista a identificar os principais tumores de partes moles da mão, avaliar a necessidade de encaminhamento para especialista e auxiliar este no manejo dessas lesões. Residência Médica em Cirurgia Geral no HCPA. Médico Residente do Serviço de Cirurgia Plástica da PUCRS. Residência Médica em Cirurgia Geral no Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA). Médico Residente do Serviço de Cirurgia Plástica da PUCRS. Pós-Graduação em Cirurgia Geral na PUCRS. Médico Residente do Serviço de Cirurgia da Mão e Microcirurgia Reconstrutiva da PUCRS. Acadêmica de Medicina da PUCRS. Livre Docente em Cirurgia da Mão, Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Ex-presidente da Sociedade Brasileira da Cirurgia da Mão. Ex-presidente da Sociedade Brasileira de Microcirurgia. Chefe do Serviço de Cirurgia da Mão e Microcirurgia Reconstrutiva do Hospital São Lucas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Diretor da Faculdade de Medicina da PUCRS. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 237-242, jul.-set. 2015 237 TUMORES DA MÃO PARTE I: TUMORES DE PARTES MOLES DA MÃO Valentini et al. Cisto Sinovial Lipoma Cistos sinoviais (Figura 1) são os tumores mais frequentemente encontrados na mão e no punho, afetam principalmente mulheres, entre a 2ª e 4ª década de vida (3). As causas incluem herniação sinovial, degeneração mucoide e origem traumática. Localizam-se preferencialmente no punho dorsal (70%) e mais comumente sobre o ligamento escafo-lunar; na região volar (10-20%); e na região interfalangeana dorsal distal (2). O exame físico revela uma lesão pequena, preenchida por líquido e translucente, que se conecta a uma cápsula articular ou a uma bainha de tendão (2). Seu tamanho é variável e pode flutuar, devido à conexão com a cápsula articular (4). Frequentemente, apresenta-se apenas como uma queixa estética, mas pode também causar dor ao movimentar o punho ou ao aumentar a pressão dentro do cisto. Pode causar compressão nervosa do nervo ulnar ou mediano (2, 5). O diagnóstico é feito baseando-se na história, no exame físico e na transiluminação. Sem dúvida, ultrassonografia ou ressonância nuclear magnética (RNM) podem ser úteis para confirmar o diagnóstico e/ou localizar a presença e extensão da lesão (5). O tratamento conservador com observação deve ser tentado inicialmente. A cirurgia é reservada para cistos sintomáticos persistentes (4). Aspiração ou injeção de materiais (hialuronidase, betametasona) têm taxas de recorrências significativas (até 58%). O tratamento definitivo envolve excisão cirúrgica de todo o cisto até o nível da cápsula articular, a fim de prevenir recorrências (2,5). O fechamento da cápsula articular não está indicado (6,7). Cistos volares requerem dissecção cuidadosa pela proximidade com a artéria radial. A remoção do osteófito do cisto da interfalange distal deve ser feita para prevenir recorrências (8). Cistos sinoviais em crianças são exceção, onde até 76% dos casos se resolvem apenas com observação em 1 ano (9). Lipomas (Figura 2) são tumores benignos de tecido adiposo que podem ocorrer em qualquer parte da mão (2). Ocorrem tipicamente na palma, na região hipotenar e na eminência tenar (5). Apresentam-se como uma lesão móvel, macia, indolor, de crescimento lento e bem delimitada. Não transiluminam (2). Podem apresentar compressão nervosa se localizadas no túnel do carpo, no canal de Guyon ou no espaço palmar profundo (7). Esses tumores ocasionalmente atingem tamanhos grandes, empurrando estruturas adjacentes, mas nunca invadindo outros tecidos. Lipomas possuem um risco pequeno de malignização para liposarcoma, mas deve-se suspeitar de malignidade quando houver crescimento rápido da massa, dor ou se a lesão for muito grande (4). O diagnóstico é feito usualmente pelo exame físico (5). A radiografia pode mostrar uma área radiolúcida entre os tecidos e significa a rarefação do tecido pela presença de tumor gorduroso (10). RNM mostrando invasão tecidual ou ocultando o plano do tecido deve levantar a suspeita de liposarcoma (4). O tratamento envolve observação ou ressecção cirúrgica (4,10). Lesões que causem dor, problemas neurológicos ou funcionais devido ao seu tamanho ou localização devem ser removidas (5). Biópsias excisionais são indicadas nas lesões superficiais. As lesões profundas podem se beneficiar de ressonância magnética antes da ressecção cirúrgica. Taxas de recorrência são menores que 5% após excisão cirúrgica (2,4). Em geral, são fáceis de serem removidos dos tecidos adjacentes (5). Figura 1 – Cisto sinovial em dorso da mão. Figura 2 – Lipoma gigante em braço. 238 Tumor de Células Gigantes O tumor de células gigantes (Figura 3) da bainha do tendão é o segundo tumor mais frequente da mão. Sua localização típica é na superfície volar dos três dígitos radiais, adjacentes às articulações interfalangeanas distais e proxi- Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 237-242, jul.-set. 2015 TUMORES DA MÃO PARTE I: TUMORES DE PARTES MOLES DA MÃO Valentini et al. mais (2). Ocorre principalmente em pacientes com mais de 40 anos e não tem risco de malignização (4). Apresenta-se como uma massa firme de crescimento lento e indolor, que pode se manifestar como interferência na função da mão (2,4). Diferentemente do cisto sinovial, não flutua de tamanho e não transilumina (5). A radiografia não mostra nenhum achado específico (10), mas pode haver erosão óssea secundária à pressão por tempo prolongado (2). A ultrassonografia pode ser útil para diagnóstico diferencial com cisto sinovial (10). Na biópsia, esses tumores aparecem amarelos, lobulados e bem circunscritos (2). O tratamento é a excisão cirúrgica, com taxa de recorrência que varia de 0 a 44% (11,12). Recorrências estão associadas com lesões-satélites, encapsulamento pobre, localizações distais, envolvimento intraósseo, degeneração da articulação concomitante, ou envolvimento da articulação/ tendão adjacente. Se houver acometimento ósseo, a enu- cleação e a curetagem têm sido defendidas. Radioterapia após a excisão cirúrgica tem mostrado taxas de recorrência menores que 4% (2,5). Figura 3 – Tumor de células gigantes. Figura 4 – Tumor glômico. Figura 5 – Tumor glômico. Figura 6 – Tumor glomico. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 237-242, jul.-set. 2015 Cistos de Inclusão Epidérmica Cistos de inclusão são desenvolvidos secundariamente a uma implantação traumática de epitélio queratinizante no tecido subcutâneo. Sua localização típica inclui a face volar da palma da mão e dos dígitos, comumente achado sobre a falange distal (2). Nenhum risco de malignização foi reportado, mas pode haver destruição cortical, levando a uma suspeita de neoplasia (7). É o terceiro tumor mais comum da mão (4). É um cisto indolor, firme, móvel, de crescimento lento e preenchido por queratina (4,5). Os cistos de inclusão não requerem tratamento, exceto se há prejuízo na função da mão, se infectam ou se há 239 TUMORES DA MÃO PARTE I: TUMORES DE PARTES MOLES DA MÃO Valentini et al. dúvida diagnóstica (5). O tratamento é a excisão cirúrgica, possuindo baixas taxas de recorrência (2,3). Tumor Glômico Tumores glômicos (figuras 4, 5 e 6) são hamartomas benignos do corpo glômico, que possui função termorreguladora, localizados na falange distal e na região subungueal (2). São massas pequenas e avermelhadas, tipicamente na ponta dos dedos, que produzem sintomas como intolerância ao frio e de sensibilidade. Envolvimento subungueal é visto em 25 a 65% dos casos, produzindo descoloração e/ ou deformidade da placa ungueal (2, 10). O diagnóstico é feito baseado na história e no exame físico. Pode-se provocar uma resposta dolorosa ao frio ao submergir o dedo em água gelada. Pode ser realizado, também, o teste de Love, onde encosta-se um alfinete no local do tumor, isso cria uma resposta extremamente dolorosa e o paciente retira a mão (5). O tratamento de escolha é a excisão completa, e a recorrência é incomum. Lesões subungueais são abordadas através da matriz estéril, requerendo a remoção da unha. Para lesões múltiplas, tratamento conservador usando dióxido de carbono e laser de argônio ou escleroterapia tem sido reportado (2,13,14,15). Schwanoma ou Neurilemoma Schwanomas (Figura 7) são tumores benignos em nervos periféricos que raramente envolvem nervos das mãos (2,7,16). São derivados das células de Schwann. Tipicamente, são bem encapsulados e de crescimento lento, aparecendo principalmente em superfícies flexoras e em pacientes de meia-idade (3ª a 5ª década de vida) (2, 4). Sua transformação maligna é rara (5,16,17,18). Sua apresentação inclui uma massa indolor e firme, que é móvel transversalmente e pode causar dor e parestesia (2,5). RNM pode ser útil para avaliar características de malignidade (2). O tratamento envolve observação ou ressecção (10). Frequentemente, esses tumores podem ser retirados com pouco risco de déficit neurológico pós-operatório, porque envolvem a bainha do nervo e não se entrelaçam com os fascículos nervosos (2, 6). Na ressecção, costumam sair facilmente com dissecção mínima (10). Neurofibroma Fibromas constituem apenas 1 a 3% dos tumores benignos da mão (2). São lesões compostas por fibroblastos e colágeno ou outro estroma, usualmente próximos da bainha tendinosa nos dedos. Apresentam crescimento lento e são indolores, podendo afetar qualquer parte do dedo. Não apresentam risco de degeneração maligna. Usualmente, são lesões bem circunscritas, e a excisão costuma ser curativa. Recorrência acontece geralmente dentro dos 4 primeiros meses do tratamento, em uma taxa de 24% (4). Neurofibromas (Figura 8) são os segundos tumores mais comuns de nervos da mão. Distinguem-se dos schwanomas por apresentarem envolvimento dos fascículos nervosos. Lesões solitárias correspondem a 85% dos casos que envolvem as extremidades superiores (2,6). Lesões múltiplas devem levantar suspeita de neurofibromatose, especialmente se associadas a manchas de café com leite, e possuem risco elevado de malignização sarcomatosa (2,4,16). A clínica é similar à do Schwanoma, exceto pelo fato de que pode haver gigantismo do dedo ou das mãos afetados (4). Radiografias geralmente são normais. RNM pode ser útil para demonstrar lesões profundas (10). O tratamento envolve excisão cirúrgica. Esses tumores frequentemente envolvem os fascículos nervosos, tornando a excisão difícil e algumas vezes impossível sem lesionar Figura 7 – Scwhanoma ou neurilemoma de nervo ulnar. Figura 8 – Neurofibroma. Fibroma 240 Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 237-242, jul.-set. 2015 TUMORES DA MÃO PARTE I: TUMORES DE PARTES MOLES DA MÃO Valentini et al. o nervo (10). O reparo do fascículo nervoso ou reconstrução do nervo com enxertia pode ser necessário após a excisão (2). Se o nervo envolvido tem função importante, a biópsia deve ser considerada para o diagnóstico e para excluir lesão maligna, a fim de preservar o nervo se ele estiver funcional. Se o nervo envolvido tiver função mínima, a lesão pode ser removida e o nervo reparado primariamente ou com enxertia (4). Hemangioma Hemangiomas (Figura 9) são neoplasias de células endoteliais vasculares frequentemente encontradas em crianças, que surgem nas suas primeiras semanas de vida, passam por um aumento rápido no seu tamanho seguido por uma involução, e regridem tipicamente até os 7 anos de vida. Na mão, ocorrem principalmente na palma (2,5,6,19). A mão é o 3º local mais comum de hemangioma, correspondendo a 15% dos casos (4). Hemangiomas superficiais se apresentam como placas vermelhas bem demarcadas, enquanto o envolvimento profundo se apresenta como uma massa dolorosa, que pode ser confundida com malignidade. RNM pode diferenciar de sarcomas (2). RNM, TC ou angiorressonância podem ser úteis no pré-operatório para avaliarem a extensão da lesão (4). Lesões pequenas assintomáticas podem ser manejadas com observação até a involução ocorrer. Lesões sintomáticas ou agressivas podem ser tratadas com corticoides, interferon-alfa, vincristina, propranolol, ou ablação a laser. A excisão cirúrgica deve ser feita quando houver prejuízo funcional, dor ou crescimento rápido (2,4,19,20). Malformações Vasculares Malformações vasculares surgem de erros no desenvolvimento vascular e são classificadas conforme Figura 9 – Hemangioma. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 237-242, jul.-set. 2015 seus componentes. Malformações venosas são as mais comuns na mão e podem ser macias e compressíveis, ter edema dependente, mudanças da pele sobrejacente e hipoplasia óssea em 1/3 das lesões da mão. Lesões arteriais de alto-fluxo podem se apresentar com frêmitos ou ulceração digital. Malformações capilares iniciam com máculas róseas que progridem para massas nodulares com o tempo (2,21,22,23). O manejo inicial inclui radiografia, para identificar alguma anormalidade óssea, e ultrassonografia com Doppler, para observação da velocidade do fluxo (2). Ultrassonografia pode ser útil para diferenciar malformação venosa de hemangioma. No preparo pré-operatório, RNM, TC ou angiorressonância ajudam a estabelecer a extensão da lesão (4). O tratamento depende do tipo da lesão e de sua apresentação clínica. Escleroterapia é a primeira linha de tratamento para pequenas malformações venosas. Malformações venosas maiores devem ser excisadas cirurgicamente (2,24). Lesões arteriais podem se beneficiar de embolização seguida de ressecção (25). Sarcomas de Partes Moles Sarcomas de partes moles (figuras 10 e 11) são tumores malignos e agressivos derivados dos tecidos mesenquimais extraesqueléticos. Somente 15 a 25% dos sarcomas de partes moles ocorrem nas extremidades superiores. Quando localizados na mão, apresentam taxas maiores de recorrência e pior prognóstico. Biópsia incisional está indicada para todas as lesões suspeitas, lesões com crescimento rápido ou com mais de 5 cm de diâmetro (2, 7). RNM é o exame de imagem-padrão. O estadiamento pode ser complementado com Rx e/ou TC de tórax. TC de abdome e pelve está indicada para o liposarcoma mixoide (4). Os sarcomas de partes moles mais comuns da mão são os epitelioides e os sinoviais. O rabdomiossarcoma é o mais comum em crianças e adolescentes (4). O tratamento tradicional com amputação da extremidade vem sendo substituído pela ressecção em bloco, com preservação do membro seguida de radioterapia (4). Aproximadamente, 70 a 95% dos pacientes são candidatos a salvamento do membro. A taxa de sobrevida em 5 anos é semelhante entre os dois tipos de tratamento (2,6,7). Margens cirúrgicas de 1 cm atualmente são consideradas adequadas para controle local do tumor (26, 27). Margens cirúrgicas comprometidas estão associadas com maior recorrência local e com diminuição na taxa global de sobrevida (2,6,28,29). Com exceção do sarcoma epitelioide, sarcomas de partes moles têm taxas baixas de metástases, tornando a dissecção linfonodal axilar desnecessária em pacientes sem linfonodos clinicamente positivos. Na maioria dos casos, taxas de sobrevida em 5 anos maiores de 60% podem ser alcançadas (4,30). Radioterapia pré-operatória pode diminuir o tamanho do tumor e antes da ressecção, porém pode levar a um aumen241 TUMORES DA MÃO PARTE I: TUMORES DE PARTES MOLES DA MÃO Valentini et al. Figura 10 – Sarcoma de antebraço. Figura 11 – Sarcoma de antebraço. to nas complicações relacionadas à ferida operatória (31). O uso desse recurso deve ficar reservado para os casos em que a obtenção de margens livres é difícil. A quimioterapia adjuvante não constitui tratamento-padrão para sarcomas de partes moles, mas persiste em investigação (4). Após o tratamento definitivo, o seguimento deve incluir o rastreamento de recorrência e de metástases por meio do exame físico e de radiografia de tórax e/ou TC de tórax na dependência do grau do sarcoma e da suspeita do cirurgião. Exames de imagem devem ser realizados a cada 6 meses nos primeiros 3-5 anos e, após o seguimento, deve ser individualizado, mas usualmente é realizado anualmente (4, 30). 15. Siegle RJ, Spencer DM, Davis LS. 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Diante disso, objetiva-se identificar o perfil sociodemográfico dos pacientes, acompanhantes e profissionais da saúde envolvidos na área pediátrica de um hospital universitário e a sua opinião sobre a AAA. Os dados foram obtidos através da aplicação de um questionário estruturado e analisados no programa SPSS versão 17.0 for Windows. Pode-se identificar que há uma aceitação dos respondentes em relação aos animais, mostrando-se abertos a esta prática. Esta investigação nos permite inferir que as instituições de saúde poderiam se utilizar da AAA como ferramenta complementar de tratamento pediátrico, pois o mesmo seria bem recebido entre os envolvidos neste ambiente hospitalar. UNITERMOS: Bioética, Beneficência, Animais. ABSTRACT Animal-assisted activity (AAA) is the interaction between animals and humans, with the help of an animal caretaker, aiming at the improvement of the patient. In hospital institutions in Brazil this is still an unusual practice. Therefore, the aim here is to identify the socio-demographic profile of patients, caregivers and healthcare professionals involved in the pediatric area of a university hospital and their views on AAA. Data were obtained by applying a structured questionnaire and analyzing the responses with SPSS (17.0 for Windows). We found that there is acceptance of animals by the respondents, who are open to this practice. This research allows to infer that health institutions could use AAA as a complementary tool for pediatric treatment, as it would be well received among those involved in this hospital setting. KEYWORDS: Bioethics, Beneficence, Animals. INTRODUÇÃO A relação dos animais de estimação com seus responsáveis tem sido bastante enfatizada pela mídia. Também na área da saúde tem havido relatos da importância e dos benefícios advindos desta relação. Existem práticas já reconhecidas que se utilizam dos animais como ferramentas auxiliares na promoção da melhoria da saúde. São exemplos a Terapia Assistida por Animais (TAA) e a Atividade Assistida por Animais (AAA). 1 2 3 A Terapia Assistida por Animais, chamada por alguns de pet-terapia, consiste em uma modalidade mais utilizada internacionalmente, em que um profissional de saúde usa o animal para um tratamento, ou seja, o animal é parte complementar da terapêutica. Busca-se, com a TAA, alcançar o bem-estar físico, social, emocional e/ou cognitivo dos pacientes (1). Os primeiros relatos da TAA datam de 1792 em pacientes com doença mental. A equoterapia foi utilizada no século XVIII, para pacientes com distúrbio nas articulações, tentando melhorar sua postura, coordenação e equilíbrio (2). Advogada. Mestre em Gerontologia Biomédica. Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Gerontologia Biomédica – Instituto de Geriatria e Gerontologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (IGG/PUCRS). Pesquisadora do Laboratório de Bioética e de Ética Aplicada a Animais – Instituto de Bioética/PUCRS (IB/PUCRS). Acadêmica de Odontologia. Bolsista pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs) do Laboratório de Bioética e de Ética Aplicada a Animais – IB/PUCRS. Bióloga. Doutora em Filosofia. Professora da Faculdade de Biociências da PUCRS. Coordenadora do Laboratório de Bioética e de Ética Aplicada a Animais – IB/PUCRS. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 243-247, jul.-set. 2015 243 ATIVIDADE ASSISTIDA POR ANIMAIS NA PEDIATRIA Crippa et al. Em se tratando de projetos de atividades com animais no Brasil, cabe ressaltar o Pet Smile(3), em São Paulo, que desde 1997 faz visitas com animais em escolas, hospitais e creches, e o Projeto Cão-Cidadão-Unesp, o qual investiga a relação de crianças com doenças especiais – Síndrome de Down, paralisia cerebral, dentre outras (4). Na Universidade de Brasília, são usados cães no tratamento de pacientes com provável Doença de Alzheimer (5), além da Fundação Selma, em São Paulo, que auxilia crianças e adolescentes que estão em reabilitação física, utilizando cães, ratos, coelhos e aves e porcos da índia (6). Algumas instituições de saúde veem na terapia assistida por animais uma forma de humanização do sistema de saúde e buscam sua implantação embasados no Programa Nacional da Assistência Hospitalar (PNHAH) do Ministério da Saúde (5). Com isso, transforma-se a equipe de saúde em um agente capaz de proporcionar uma experiência menos traumática com a hospitalização, sendo protagonistas autônomos membros de uma instituição com vínculos solidários, vindo ao encontro do que preconiza a PNHAH. Já a Atividade Assistida por Animais (AAA) refere-se à interação que acontece entre animais não humanos e humanos, de forma direcionada e por animais treinados para tanto. Esta atividade não ocorre com animais próprios da pessoa, mas com animais destinados a este fim, que são treinados, desvermifugados, vacinados e limpos com 24h de antecedência, sempre acompanhados de cuidadores. De acordo com Lasa et al, esta interação busca instigar a socialização, a motivação e trazer benefícios que melhorem a qualidade de vida (7). Estas formas de atividade já são muito usuais fora do Brasil e têm sua eficácia comprovadas em vários trabalhos científicos, como é possível ver no trabalho de revisão realizado por Crippa e Feijó, em 2013, em que são apontados 17 trabalhos sobre a atividade assistida por animais, com publicação em diversas bases de dados: BIREME, EMBASE, Cochrane, PubMed e SciELO (8). No Brasil, em instituições hospitalares, ainda há pouca aceitação, tendo sido implantada, por exemplo, no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Nesse hospital, ocorre a visita do animal de estimação do paciente, em um ambiente aberto – para animais de grande porte – ou no leito. Já há projetos de lei tentando mudar esta realidade e permitir que animais visitem seus donos em hospitais que atendem pelo SUS (9). No Rio Grande do Sul, já se tem relatos, no Hospital Centenário, em São Leopoldo, em que ocorre o projeto Visita Pet, com cachorros, coelhos e filhotes de carneiros (10). Existem também os Animais Residentes (AR), sendo uma modalidade na qual animais são treinados para ajudar a enfrentar problemas funcionais para pessoas que têm dificuldade nas atividades da vida diária (11). Como se pode ver, brevemente acima descrito, a TAA já está em atividade no Brasil com alguns projetos. Já a AAA é menos difundida e utilizada. Porém, sua prática também merece relevância e atenção por mostrar-se benéfica aos pacientes, o que incentivou uma pesquisa de cam244 po buscando conhecer a opinião das crianças e adolescentes e seus acompanhantes, bem como da equipe de saúde, de uma ala pediátrica de um hospital sobre esta atividade. MÉTODOS Para realização da presente pesquisa, foi criado um questionário com dados sociodemográficos e nove perguntas relacionadas com a AAA, para os pacientes e acompanhantes, e outro instrumento com onze perguntas para os profissionais de saúde. A investigação aconteceu em um hospital universitário de Porto Alegre, com duração de três meses, na ala da pediatria. Fizeram parte todos os pacientes, acompanhantes e profissionais da saúde que aceitaram participar. Não houve cálculo de tamanho amostral, por se tratar de uma amostra de conveniência, sendo abordados todos os presentes no período de 3 meses, sem que ocorresse duplicata de participante. Os dados foram analisados pelo programa SPSS 17.0 for Windows. Ressalta-se que a presente pesquisa teve aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da PUCRS, sob o nº 24579113.1.0000.5336, e que foi aplicado um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido nos Acompanhantes e Profissionais da Saúde, além de um Termo de Assentimento nos pacientes, acompanhando a assinatura do responsável, de acordo com a Resolução nº 466/2012. OPINANDO SOBRE A ATIVIDADE ASSISTIDA POR ANIMAIS Foram entrevistados 136 acompanhantes, 16 pacientes e 51 profissionais de saúde. Destes, respectivamente, a idade média correspondia a 28,5 (±12,52), 11 (±2,50) e 28 anos (±8,33). Em relação ao perfil sociodemográfico da população investigada, a maioria dos acompanhantes, pacientes e profissionais da saúde era do sexo feminino (85,3%; 56,3%; 94,1%) e de cor autorrelatada branca (61,8%; 50,0%). Todos os pacientes, por se tratarem de crianças/adolescentes, tinham escolaridade até o ensino fundamental, e a maior frequência dos acompanhantes também (49,3%). Quanto à renda, 30,9% dos acompanhantes recebiam até dois salários mínimos, e a maioria dos pacientes não possuía renda (93,8%). Estes dados sociodemográficos dos pacientes e acompanhantes podem ser vistos na Tabela 1. Os acompanhantes e pacientes se mostraram favoráveis à prática do AAA. A maioria dos entrevistados gosta de animais (94,9%; 100%) e já estão habituados a conviver com eles por terem animais de estimação (66,9%; 81,3%). Quando questionados sobre receber uma visita do seu animal de estimação em situação hospitalar, 55,1% dos acompanhantes e metade dos pacientes mostraram-se favoráveis; e 75,0% dos acompanhantes e 81,3% dos paRevista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 243-247, jul.-set. 2015 ATIVIDADE ASSISTIDA POR ANIMAIS NA PEDIATRIA Crippa et al. Tabela 1 – Dados sociodemográficos dos pacientes e acompanhantes da pediatria. Características sociodemográficas Pediatria N (%) Acompanhantes Pacientes Feminino 116 (85,3) 9 (56,3) Masculino 20 (14,7) 7 (43,8) Branca 84 (61,8) 8 (50,0) Parda 20 (14,7) 4 (25,0) Preta 24 (17,6) 3 (18,8) Sexo Cor/raça autorrelatada Indígena 5 (3,7) - Amarela 3 (2,2) 1 (6,3) 3 (2,2) - Ensino Fundamental 67 (49,3) 16 (100,0) Ensino Médio 57 (41,9) - 9 (6,6) - - - Não possui renda própria 41 (30,1) 15 (93,8) Até 1 SM 39 (28,7) 1 (6,3) Até 2 SM 42 (30,9) - Até 3 SM 11 (8,1) - Até 4 SM 3 (2,2) - Escolaridade Analfabetos Ensino Superior ou mais NR Renda Mais de 4 SM Total - - 136 (100,0) 16 (100,0) cientes gostariam de receber uma visita em seu quarto, caso internados, mas acham que deveria ter um local específico para ocorrer esta prática (84,6% acompanhantes; 93,8% pacientes). Caso existisse um local específico, como uma sala de recreação destinada para a AAA, a maioria deles iria participar desta atividade (96,3% acompanhantes; 93,8% pacientes). Em relação à utilização dos animais para melhorar o tratamento dos pacientes, 58,8% dos acompanhantes e 87,5% dos pacientes responderam já ter este conhecimento, sendo que apenas 34,6% dos acompanhantes e 50,0% dos pacientes disseram saber que os animais aceitos em instituições de saúde recebem remédio para não ter doença. Por fim, ao serem questionados sobre o treinamento que os animais recebem, 63,2% dos acompanhantes e 87,5% dos pacientes já sabiam que isso ocorria. Estas informações podem ser verificadas na Tabela 2. Já o questionário destinado aos profissionais de saúde, que iriam rotineiramente conviver com a atividade, foi um pouco diferenciado. Eles mostraram não conhecer o que é a atividade assistida por animais (74,5%). Quando questionados sobre a ajuda que os animais podem proporcionar ao tratamento de um paciente, responderam conhecer (94,1%). Caso os profissionais da saúde estivessem na posição de um paciente, a maioria deles gostaria de interagir com animais (82,4%), achando que deveria ter um local específico para recebê-los dentro do hospital (74,5%). Foram, também, questionados sobre o treinamento, desvermifugação, e acompanhamento por cuidadores que Tabela 2 – Questionamentos e respostas dos acompanhantes e pacientes da ala pediátrica de um hospital universitário de Porto Alegre/RS, em relação à atividade assistida por animais. Acompanhantes N (%) Questionário Pacientes N (%) Sim Não NR Sim Não NR O(A) Sr.(a) gosta de animais? 129 (94,9) 7 (5,1) - 16 (100,0) - - O(A) Sr.(a) tem animais de estimação? 91 (66,9) 45 (33,1) - 13 (81,3) 3 (18,8) - O(A) Sr.(a) gostaria, se hospitalizado, de receber a visita do seu animal de estimação? 75 (55,1) 61 (44,9) - 8 (50,0) 7 (43,8) 1 (6,3) O(A) Sr.(a) sabia que alguns hospitais utilizam animais para melhorar o tratamento dos pacientes internados? 80 (58,8) 29 (21,3) 27 (19,9) 14 (87,5) 2 (12,5) - Em caso de hospitalização, o(a) Sr.(a) gostaria de receber a visita de um animal em seu quarto? 102 (75,0) 29 (21,3) 5 (3,7) 13 (81,3) 1 (6,3) 2 (12,5) O(A) Sr.(a) acha que deveria ter um local específico para receber os animais? 115 (84,6) 19 (14,0) 2 (1,5) 15 (93,8) 1 (6,3) - Se tivesse um local específico para receber os animais, como uma sala de recreação, o(a) Sr.(a) gostaria de participar desta visita? 131 (96,3) 4 (2,9) 1 (0,7) 15 (93,8) 1 (6,3) - O(A) Sr.(a) sabia que animais aceitos em hospitais recebem remédios para não ter doenças? 47 (34,6) 88 (64,7) 1 (0,7) 8 (50,0) 8 (50,0) - O(A) Sr.(a) acha que os animais aceitos em hospitais recebem algum treinamento? 86 (63,2) 47 (34,6) 3 (2,2) 14 (87,5) 2 (12,5) - Total Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 243-247, jul.-set. 2015 136 16 245 ATIVIDADE ASSISTIDA POR ANIMAIS NA PEDIATRIA Crippa et al. Tabela 3 – Questionamentos e respostas dos profissionais da saúde da ala pediátrica de um hospital universitário de Porto Alegre/RS, em relação à atividade assistida por animais. Questionário Profissionais da Saúde Sim N (%) Não N (%) O(A) Sr.(a) sabe o que é Atividade Assistida por Animais (AAA)? 13 (25,5) 38 (74,5) O(A) Sr.(a) sabia que o animal pode ajudar no tratamento de um paciente? 48 (94,1) 3 (5,9) O(A) Sr.(a) gostaria, quando paciente, de ter a possibilidade de interagir com animais? 42 (82,4) 9 (17,6) O(A) Sr.(a) acha que deveria ter um local específico no hospital para receber os animais? 38 (74,5) 13 (25,5) O(A) Sr.(a) sabia que animais que participam de Atividade Assistida por Animais são treinados, desvermifugados e acompanhados por seus cuidadores? 31 (60,8) 20 (39,2) O(A) Sr.(a) acha que esta instituição hospitalar receberia bem essa prática na sua área específica de trabalho? 51 (100) - Como profissional da saúde, o(a) Sr.(a) acha que essa ferramenta ajudaria na melhora/bemestar do paciente? 29 (56,9) 22 (43,1) O(A) Sr.(a) sabia que as atividades envolvendo animais já são utilizadas internacionalmente há muitos anos como terapia auxiliar ao tratamento medicamentoso? 36 (70,6) 15 (29,4) O(A) Sr.(a) sabia que, no Brasil, várias instituições já estão recebendo animais, sempre respeitando a autonomia do paciente? 20 (39,2) 31 (60,8) O(A) Sr.(a) seria favorável se esta prática fosse implantada na sua instituição? 49 (96,1) 2 (3,9) O(A) Sr.(a) sabia que essas atividades são feitas por pessoas treinadas que trazem o animal, sabem e seguem as regras da instituição? 32 (62,7) 19 (37,3) Total ocorre com estes animais, mostrando que a maioria deles já sabia que isso acontecia (60,8%). Sobre a aceitação da AAA na instituição em que trabalham, especificamente na área pediátrica, todos acham que seria positiva, e a maioria achou que a AAA é uma ferramenta para auxiliar na melhora do paciente (56,9%) . Sobre a utilização desta atividade internacionalmente, 70,6% dos profissionais respondentes já a conheciam, porém poucos sabiam que acontece no Brasil (39,2%). Caso fosse implantada a AAA nesta instituição, 96,1% dos profissionais de saúde seriam favoráveis. Por fim, foram questionados sobre o modo como ocorre esta prática, sempre com pessoas treinadas que respeitam e seguem as regras institucionais, mostrando que 62,7% sabiam que é assim que a AAA acontece. REFLETINDO SOBRE A ATIVIDADE ASSISTIDA POR ANIMAIS A AAA, a qual busca ajudar na promoção do bem-estar integral do paciente, vindo ao encontro do que é preconizado pela Organização Mundial da Saúde, é uma atividade que pode ser realizada individualmente ou em grupo, mas que sempre respeita a vontade do enfermo, sendo oferecida mas nunca imposta (12). Esta não imposição na AAA nos remete ao princípio do respeito à autonomia, que, junto com os princípios da não maleficência, beneficência e justiça, estabelecem uma corrente de análise intitulada “Principialismo” (13). 246 51 (100) A proposição de AAA em instituições de saúde permite que se vislumbre também a hierarquização do princípio da beneficência, já que o foco desta atividade é o bem-estar de quem está hospitalizado. De acordo com Clotet, Feijó e Oliveira (14), a beneficência implica em “usar todas as habilidades e conhecimentos técnicos a serviço do paciente maximizando benefícios e minimizando riscos”. Estudos científicos já comprovaram a eficácia desta atividade em crianças tanto na melhoria do comportamento social (15) como na diminuição da dor e aumento na sensibilidade.(16) Quando implantada em instituições hospitalares a AAA pode vir a proporcionar uma diminuição do estresse do paciente hospitalizado, refletindo em uma melhor relação com os profissionais de saúde (5). Como pode se constatar, estas situações vêm ao encontro do já falado princípio da beneficência. Salienta-se que a AAA baseia-se no êxito da relação ser humano/ não humano. Isto só pode acontecer se houver, realmente, um respeito para com o não humano “salientando sua co-participação e não coisificando-o como simples ferramenta de uma nova técnica a ser implementada”(8). Também na infância, os profissionais da saúde buscam a melhoria da qualidade de vida de seu paciente, sabendo que situações de estresse e ansiedade nesta fase poderão ocasionar traumas que se consolidarão no decorrer de sua vida (17). No contexto das hospitalizações, a AAA pode auxiliar minimizando as situações traumáticas e levando a uma melhor adesão ao tratamento proposto, visando ao bem-estar da criança a partir do vínculo que se formará entre ela, o animal não humano e a equipe. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 243-247, jul.-set. 2015 ATIVIDADE ASSISTIDA POR ANIMAIS NA PEDIATRIA Crippa et al. COMENTÁRIOS FINAIS É mister que se reconheça que vivemos em uma sociedade antropocêntrica. Em função disto, a circulação de animais em instituições de saúde voltadas aos seres humanos no Brasil não é nada usual. Entretanto, o novo pode ser benéfico. A implementação da AAA no país é algo novo, busca o bem-estar do paciente e pode, ou talvez deva, unir-se à terapêutica tradicional tentando ajudar na cura ou na minimização dos sintomas de estresse e ansiedade como atividade paliativa. Percebe-se que ainda há um longo caminho a ser trilhado para a aceitação das atividades envolvendo animais no âmbito hospitalar. No entanto, através de projetos bem-sucedidos que estão sendo desenvolvidos em outros estados, pode-se ver sua evolução no Brasil. Sabe-se que o tema é polêmico e acarreta conflitos. Daí advém sua relevância, a qual justifica sua abordagem por parte da Bioética. Porém, a pesquisa realizada mostrou uma abertura dos entrevistados para implementação da AAA. E pode, talvez, servir de estímulo para que nossos profissionais da saúde analisem, a partir de uma outra ótica, esta atividade inovadora e já aceita internacionalmente. AGRADECIMENTOS Agradecemos à Fapergs pelo apoio através da bolsa de iniciação científica. REFERÊNCIAS 1. Juliano RS, Fioravanti MCS, Paulo NM, Athayde IB. Terapia Assistida por Animais (TAA): uma prática multidisciplinar para o benefício da saúde humana. Disponível em: www.vet.ufg.br. 2. De Pauw K. Therapeutic horseback riding in Europe and America. In: Aanderson RK. The Pet Connection: Its Influence on Our Health and Daily Life. Hart LA ed. Minneapolis: Center to Study Human-Animal Relationships and Environments. 1984,141-153. 3. Fuchs H, Oliveira D. Terapia mediada por animais em hospitais: as recusas à visita: Uma retrospectiva de 450 visitas (2006-2007). Boletim Apamvet. Disponível em: file:///C:/Users/13290092/ Downloads/8719-15574-1-SM.pdf. Acesso em: 09 set 2015. 4. Yamamoto KCM, Silva EYT, Costa KN, Souza MS, Silva MLM, Albuquerque VB, Pinheiro DM, Bernabé DG, Oliva VNLS. Avaliação fisiológica e comportamental de cães utilizados em terapia assistida por animais (TAA). Arq. Bras. Med. Vet. Zootec. 2012, 64(3):568-576. Revista da AMRIGS, Porto Alegre, 59 (3): 243-247, jul.-set. 2015 5. Kobayashi CT, Ushiyama ST, Fakih FT, Robles RAM, Carneiro IA, Carmagnani MIS. Desenvolvimento e implantação de Terapia Assistida por Animais em hospital universitário. Rev Bras Enferm. 2009, 62(4):632-636. 6. Fundação Selma. Disponível em: http://www.fund-selma.org.br/ modalidades.php. Acesso em: 09 set 2015. 7. Lasa SM, Bocanegra NM, Alcaide RV, Arratibel MAA, Donoso EV, Ferriero G. Intervenciones asistidas por animales em neurorrehabilitación: uma revisión de laliteratura más reciente. Elsevier: Neurología. 2015, 30(1):1-7. 8. Crippa A, Feijó AGS. Atividade Assistida Por Animais Como Alternativa Complementar Ao Tratamento De Pacientes: A Busca Por Evidências Científicas. Rev.Latinoam.Bioet. 2014, 14(1):14-25. 9. Zero Hora. Projetos de lei preveem permissão de entrada de animais em hospitais públicos. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/ noticias/noticia/2014/04/projetos-de-lei-preveem-permissao-de-entrada-de-animais-em-hospitais-publicos-4476349.html. Acesso em 06 set 2015. 10. Zero Hora. Hospital Centenário, em São Leopoldo, retoma a visita Pet. Disponível em: http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/noticia/2015/08/hospital-centenario-em-sao-leopoldo-retoma-a-visita-pet-4830969.html. Acesso em: 07 set 2015. 11. Wellness Guidelines for Animals in Animal-Assisted Activity, Animal-Assisted Therapy and Resident Animal Programs (Oversight: CHAB; EB 04/01; Revised 11/01, 11/05, 11/06, 04/11) Disponível em: https://ebusiness.avma.org/ProductCatalog/product. aspx?ID=67. Acesso em: 09 set 2015. 12. Pereira MJF, Pereira L, Ferreira ML. Os benefícios da terapia assistida por animais: uma revisão bibliográfica. Saúde coletiva. 2007, 4(14):62-66. 13. Beauchamp TL, Childress JF. Principles of biomedical ethics. New York: Oxford, 1994. 14. Clotet J, Feijó AGS, Oliveira MG. Bioética: uma visão panorâmica. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2005, p.18. 15. Funahashi A, Gruebler A, Aoki T, Kadone H, Suzuki K. Brief report: the smiles of a child whit autism spectrum disorder during an animal-assisted activity may facilitate social positive behaviors – quantitative analysis with smile-detecting interface. J Autism Dev Disord. 2014,44(3):685-93. doi: 10.1007/s10803-013-1898-4. 16. Reed R, Ferrer L, Villegas N. 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