O HIPERTEXTO E A ESCRITA DO TRÂNSITO

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O HIPERTEXTO E A ESCRITA DO TRÂNSITO
O HIPERTEXTO E A ESCRITA DO TRÂNSITO
Karime Amaral Hauaji∗
RESUMO: Em S/Z, Barthes anuncia o hipertexto como sendo um texto ideal em que as redes,
embora múltiplas, articulam entre si sem que nenhuma encubra as demais. A conceituação de
“texto legível” se aproxima da de “texto eletrônico” e é essa noção que suscitará os elos
virtuais capazes de forjar um espaço a ser habitado pelos novos flâneurs. A atual cultura do
simulacro sugere a formação cada vez maior de identidades reais ou não, mais ou menos
transitórias, permitindo ao sujeito constantemente “reinventar-se”. Nesse sentido, os escritores
do trânsito acionam as definições de arquivo, coleção, para a construção da memória,
reinventando o processo da composição do eu. Georges Perec, com A coleção particular, e
Régine Robin, com La Chiffonière de la Rue Rosa Luxemburg, discutem o papel da arte, uma
vez que ambos levantam a questão do artista como “catador”, remetendo à hipótese de uma
escrita hipertextual. Nossa proposta é averiguar em que medida seus textos são estabelecidos
como hiperlinks, caminhos ou nós a cargo do leitor, guiando a essa nova “biblioteca de
Babel”; investigar em que medida o hipertexto interessa mais à ficção do que à informática,
uma vez que facilita na diluição das diferenças entre autor e leitor.
Palavras-chave: hipertexto; cibermigrância; escrita; Perec; Robin
ABSTRACT: In S / Z, Barthes announces the hypertext as an ideal text where the networks,
although multiple, articulate but without covering each other. The concept of "clear text"
approaches that of "electronic text" and this notion will raise the virtual links able to forge a
space to be inhabited by the new flaneurs. The current culture of the simulacrum suggests the
formation of increasing identities, real or not, more or less transient, constantly allowing the
subject to "reinvent" itself. In this sense, the writers of the transit activate the definition of
archive, collection, for the construction of memory, reinventing the process of self
composition. Georges Perec, with 'A Gallery Portrait', and Régine Robin, with La Chiffonière
de la Rue Rosa Luxemburg, discuss the role of art, since both raise the question of the artist as
"collector", referring to the hypothesis of a hypertextual writing. Our proposal is to ascertain
which extent their texts are set as hyperlinks, paths or nodes to the reader, guiding to this new
"Library of Babel"; it is investigate in which sense the hypertext is more interesting to fiction
than to the computer, since it facilitates the dilution of differences between writer and reader.
Key words: hypertext; cybermigrance; writing; Perec, Robin
∗
Doutoranda em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense (UFF).
“Podes dizer-me, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?
Isso depende muito de para onde queres ir - respondeu o gato.
Preocupa-me pouco aonde ir - disse Alice.
Nesse caso, pouco importa o caminho que sigas - replicou o gato.”
CARROLL, Alice no país das maravilhas
Quando Lewis Carroll criou a narrativa fantástica de Alice no país nas maravilhas,
dando vida à garota que investia atrás de um coelho branco e acabava por envolver-se com
outras criaturas antropomórficas, ele não estaria criando apenas uma história infantil ou se
baseando em suas observações da realidade para falar sobre as fases da adolescência. Essa
parecia ser uma grande metáfora do leitor perdido nos subterfúgios da leitura; ao completar
dizendo “Comece pelo começo, siga até chegar ao fim e então, pare”, Carroll estava
mostrando ao leitor seu papel de condutor da leitura, sua capacidade de guiá-la por um
caminho muitas vezes nonsense, mas que a arte aparentemente apresenta e a que não raro se
presta.
Muito se discute em torno das mudanças de comportamento do leitor e das formas de
ação do mesmo, sugerindo haver uma “crise da leitura”. Podemos não viver crise nenhuma, já
que ainda se lê, e muito: livros de regras de RPG, por exemplo, lê-se também bulas de
remédio, placas de sinalização, mensagens trocadas em chat rooms na internet, etc. Chegamos
aí mais perto da questão: o quanto são vãs a escrita e a leitura se exercidas apenas nos
domínios da “fossa de Babel” em que vivemos hoje?
Deste modo, o presente artigo visa discutir a suposta “crise da leitura” ou até mesmo
um conjeturado desaparecimento do livro intermediado pela criação de recursos alternativos,
como hipertextos virtuais, verificando em que instância o hipertexto importa mais à ficção do
que à informática. Nesse sentido faremos uma breve leitura dos textos A Coleção Particular,
de Georges Perec e La chiffonniére de la Rue Rosa Luxemburg, de Régine Robin, a fim de
compreender em que medida esses textos se assemelham aos hipertextos, ou como “flanar”
nesse novo espaço que agora se apresenta. Termos como ciberespaço, cibermigrância, história
e memória também irão aqui nos interessar. Então, eis o nosso hipertexto.
A LEITURA
Se a capacidade de ler é vã quando não há nada que valha a pena ser lido, a ausência da
escrita, por sua vez, também não é necessariamente deletéria, pois, como diz em seu
Sabedoria Tradicional e Superstições Modernas (1998) Martin Lings: “por mais acostumados
que estejamos a pensar no valor linguístico como inseparável da capacidade de ler e escrever,
um momento de reflexão é o bastante para vermos que não há nenhuma conexão básica entre
os dois, pois a cultura lingüística é totalmente independente do alfabeto escrito, que só aparece
como um apêndice muito tardio na história da linguagem como um todo.
Como Ananda Coomaraswamy indica, referindo-se ao que ele chama de “toda essa
classe de literatura profética que inclui a Bíblia, os Vedas, o Edda [coleção de poemas
noruegueses], os grandes épicos e, em geral, os melhores livros do mundo (...), [eles] existiram
muito antes de serem escritos, muitos nunca foram escritos e outros estão se perdendo ou se
perderão”. Ele continua citando Coomaraswamy: “A cultura destrói essa literatura, às vezes
com surpreendente rapidez. Quando uma nação começa a ler o que antes era propriedade do
povo como um todo, torna-se herança dos iletrados apenas, e logo, a não ser que seja recolhida
pelos colecionadores de antiguidades, desaparece totalmente” (apud LINGS, 1998:36). O
próprio Lings conclui “uma vez que a idéia de duas línguas, uma escrita e outra falada, cria
raiz, a língua falada é condenada a degenerar-se com relativa rapidez e, afinal, arrastar com ela
também a língua escrita” (LINGS, 1998: 36).
OS LEITORES
Northrop Frye (1965) divide em dois os tipos de críticos, e essa divisão pode servir
igualmente para os leitores, ainda mais em nossos tempos de febre exegética: os críticosOdisséia e os críticos-Ilíada; aqueles mais interessados em convenções, e, portanto, em
gêneros como a comédia e o romance, estes mais interessados na tragédia, no drama e na
moral dos textos. O próprio Frye incluía-se na então minoritária ala dos críticos-Odisséia.
O leitor dos hipertextos virtuais, na maior parte das vezes, ao contrário do que poderia
parecer, é um leitor-Odisséia: suas preferências de “jogador” recairão sobre as formas de
narração convencionais e de algum modo previsíveis, ou pré-determinadas, e - como em todo
jogo - submetidas a uma espécie de livro de regras. Recursos utilizados por muitos escritores
ganhando tom autobiográfico hoje são explorados pelo retorno cada vez maior dos diários e
jornais íntimos publicados na Internet através da criação de páginas pessoais na web tais como
blogs e orkuts. Em Os frutos da terra (1982), considerado uma espécie de Evangelho
alternativo, André Gide, por exemplo, escreve uma longa carta a um correspondente
imaginário, Nathaniel, retomando o gênero epistolar, porém inserindo traços de inovação na
medida em que traz para perto de si o seu leitor ideal.
Esse gênero - o das cartas - sempre teve como motivo maior aproximar aqueles que
estavam distantes no espaço e no tempo. Para Eric Landowski, a prática textual da carta não
produz milagres, mas o jogo sobre as figuras, seu exercício, nos conduz àquilo que ele
denomina acidentes de discursos, “a efeitos de presentificação que postulamos e que, talvez,
são somente excepcionais sucessos de linguagem” (2002: 170). O ensaísta complementa
dizendo que esse discurso ao se enunciar introduz as não-coincidências temporais e espaciais,
ao mesmo tempo em que permite a explosão dos actantes que os produzem, fazendo com que
o enunciado se transforme em desdobramento colocando para fora um outro “eu”.
Nancy Huston e Leïla Sebbar em Les lettres parisiennes também trocam cartas tendo
como pano de fundo a cidade de Paris, e, sob o pretexto de falar de suas questões femininas,
fazem uma autopsia do exílio, dos caminhos que percorrem na cidade para que seus textos se
desenvolvam: os cafés, as ruas, os lugares dos imigrantes e dos turistas, compreendendo os
lugares reais e imaginários que cercam esses estereótipos.
A CIDADE/ O FLANÊUR
As cidades que se formaram a partir dos feudos medievais ganharam força desde o
século XVIII e já no século XIX traziam as belezas e mazelas das cidades modernas. Passaram
então a figurar nos textos como ambiente, mas ganhando muitas vezes status de personagem e
dividindo o espaço lírico e as narrativas. As luzes, o ferro, o vidro, o aço das galerias e vitrines
abrigam o glamour e também a luta de classes. Charles Baudelaire desenvolve então o
conceito do flâneur, aquele que anda pela cidade no intuito de experienciá-la, estendendo-o ao
fenômeno urbano de modo geral e à modernidade.
O papel do flâneur foi fundamental à cidade; foi ele o responsável por compreendê-la
retratá-la, havendo, portanto, nessa figura um elemento perturbador: sua capacidade de estar
ao mesmo tempo “dentro” e “fora”, o que lhe propicia imediata relevância sociológica e claro
faz com que ele seja comparado não só ao próprio Baudelaire, mas ao artista em geral.
Os espaços urbanos são então modificados conforme a necessidade do transeunte. O
pedestre de hoje, contudo, transferiu o prazer da flanar para os espaços virtuais, reinventando
esses novos percursos através da rede, transitando no ciberespaço.
O CIBERESPAÇO
A tão destemida superação das máquinas estaria em vias de ocorrer, o que sugere a
capacidade de serem capazes de reproduzir a si mesmas. Mary Shelley poderia orgulhar-se em
ver o quanto a biotecnologia auxiliaria na formação da criatura de Doctor Frankenstein (o
subtítulo da obra de Shelley – O moderno Prometeu – faz referências à mitologia grega e
mostra o quanto o “monstro” está ligado tanto ao passado quanto ao futuro).
O futuro, contudo, representado nos filmes de ficção dos anos 50 não se realizou como o
previsto. (Não vivemos como no “planeta Lythion”; a Barbarella, que saltou dos quadrinhos
adultos e consagrou-se no filme de Roger Vadin, não passa de um ícone -cult para muitos ou
kitsch, para outros). É essa falta de crenças no futuro nos faz buscar um mundo de simulações.
John Barth já se ocupava de debochar dessa falta de projetos históricos da sociedade pósindustrial fadada a meramente consumir ao escrever em 1966 Gilles goat boy. Na ficção, Billy
Bockfuss é resgatado do ventre de um super-computador e criado nas tetas de uma cabra;
durante a adolescência ele descobre sua vida ambivalente e resolve reivindicar sua
humanidade. A moral máxima dada por Barth está no fato de que o autoconhecimento é
sempre má notícia.
Pierry Lévy se considera um otimista no que diz respeito à internet, reconhecendo que
o ciberespaço está ligado ao movimento dos jovens ávidos por experimentar coletivamente
formas de comunicação diferentes daquelas propostas pela mídia clássica. Assim, Lévy define
ciberespaço como o mais novo meio de comunicação que surge na interconexão mundial, e a
cibercultura como o conjunto de técnicas, práticas e atitudes, de modos e valores de
pensamentos que se desenvolvem junto com o crescimento desse ciberespaço.
O computador não é mais um centro, e sim um nó, um terminal, um componente da rede universal
calculante (...). No limite, há apenas um único computador, mas é possível traçar seus limites,
definir seu contorno. É um computador cujo centro está em toda parte e a circunferência em lugar
algum, um computador hipertextual, disperso, vivo, fervilhante, inacabado: o ciberespaço em si
(LÉVY, 1999: 44).
Ainda na opinião de Lévy, há uma troca de papéis entre a escrita e a leitura, uma vez que
aquele que participa da estruturação de um hipertexto, do seu traçado, é um leitor, e aquele
que atualiza um percurso temporariamente é um escritor. Portanto, “com o hipertexto, toda
leitura é uma escrita potencial” (1999: 61).
Michael Joyce em seu hipertexto Afternoon: a story cria o formato o qual nos
possibilita clicar livremente por todo o texto e de cada palavra partir para um lugar, ou seja,
cada signo remete a outros signos, lugares, possibilitando combinações quase infinitas.
GEORGES PEREC
Georges Perec faz a literatura “tradicional” (sem os recursos tecnológicos), porém pode
ser entendido como um escritor de “cibertextos”. Sua produção que vai desde poemas, contos,
listas e receitas culinárias parece sempre interrelacionada. Em Penser/Classer ele diz:
si je tente de définir ce que j’ai cherché à faire depuis que j’ai commencé à écrire, la première idée
qui me vient à l’esprit est que je n’ai jamais écrit deux livres semblables, que je n’ai jamais eu
envie de répéter dans un livre une formule, un système ou une manière élaborés dans un livre
précédent.(PEREC, 2003:9).
O que acabou por desconcertar a crítica que buscava uma “senha” para entender o projeto do
escritor e seus próprios leitores. Ele acrescenta: “Elle m’a valu la réputation d’être une sorte
de ordinateur, une machine à produire des textes”.(2003:9).
Se na linguagem da informática o hipertexto é usualmente definido a partir da ideia de
“uma placa de desvios que o direciona a uma outra página por uma interseção de nós”, o mais
popular romance de Georges Perec A vida modo de usar (1991), cujo subtítulo “romances”,
denota a ideia de sua pluralidade, pode ser seu grande hipertexto. O livro reconstitui a vida
cotidiana dos moradores de um edifício (num exercício formal baseado no tabuleiro de
xadrez), e permite ao leitor deslocar-se pelo prédio ativando os conceitos de flanêrie, cidade,
internet e labirinto simultaneamente. Mas é A coleção particular um livro que também se
articula com esse primeiro - pois, como dissemos, toda sua obra parece “hiperligada” - que irá
por agora nos interessar.
A COLEÇÃO PARTICULAR
A novela narra a fictícia história de uma exposição realizada na Pensilvânia em 1913.
A obra de destaque, intitulada “A coleção particular” de Henrich Kürz, havia sido
encomendada a fim de retratar o cervejeiro Herman Raffke, uma espécie de self made man,
diante de sua coleção quadros. O quadro reconstituía o gabinete de Raffke e o mesmo a
observar a sua coleção de pinturas - dentre eles destacando-se: “A visitação”, “Os preparativos
do almoço” e “O retrato de Bronco McGinnis”. O que despertou a atenção foi que o pintor fez
figurar no quadro o próprio quadro, proporcionando uma pintura ao infinito, obedecendo à
tradição nascida na Antuérpia (kunstkammer) e que dará origem a própria ideia de museu.
Estamos diante de um brilhante jogo estético de mise en abîme. A primeira referência a
esse termo é atribuída, em 1893, por André Gide em seu Journal. O recurso foi amplamente
utilizado pelos escritores do noveau roman, mas ganhou terreno na literatura, na pintura,
estando presente também na heráldica, nas caixas chinesas ou nas bonecas russas, “é mise en
abîme todo espelho interno que reflete o conjunto da narrativa por reduplicação simples,
repetida ou complexa” (DÄLLENBACH, 1977: 52).
A exposição torna-se um sucesso e todos querem conferir o quadro, ou melhor, o
quadro no quadro... estabelecendo comparações e medições com os originais. Todos querem
ver a reprodução, mas descobrem que os detalhes foram malignamente alterados, como se
seguindo a teoria da recepção proposta por Jauss e o triângulo formado por autor-obra-público
esse último acabasse perdendo seu lugar ativo para cedê-lo à própria arte e a suas
transmutações, fazendo valer os jogos oulipianos.
Quando um vidro de nanquim é atirado sobre a tela por alguém que não conseguia ver
a exposição, cumpre-se a previsão do fictício Anton Zweig: “uma obra estranha edgar-poesca,
que ainda fará escorrer muita tinta” ( PEREC, 2005: 12). A alusão a Poe se justifica em muitos
graus, já que em diferentes situações a novela guia o leitor aos estranhamentos deixados nas
entrelinhas, como o fazia o mestre dos contos norte americanos em suas Histórias
Extraordinárias. As semelhanças parecem ser muitas; Perec, assim como Edgard Allan Poe,
cria um nível de entusiasmo em seus leitores que permite que o texto seja lido em uma “única
sentada”. Além disso, Poe é uma das referências ao se falar em mise en abîme por seu conto A
queda da casa de Usher (mencionado no livro como título de uma das pinturas mais tarde
leiloadas).
As obras de arte sempre foram passíveis de serem reproduzidas, mas nada se compara
à reprodutibilidade moderna, criticada por Walter Benjamin em seu ensaio escrito na
Alemanha do entre-guerras. A aura da obra de arte é que é suplantada por essa capacidade de
reprodução e de alteração dos limites de espaço; há, portanto uma perda inicial de relação com
o original, para em seguida conferir-lhe um poder de presentificação: “a coisa contém e
transmite, desde sua duração material até seu poder de testemunho histórico" (BENJAMIN,
1980: 8).
O também fictício crítico de arte Lester Nowak publica, então, o artigo “Art and
reflection”, onde afirma que “toda obra é reflexo de uma outra obra”. Essa ideia, esse espelho
infinito que parece a princípio ser comentário pertinente somente à pintura de Kürz, estende-se
à literatura de um modo geral, nesse caso engendrando A coleção particular e as vozes que
nela se multiplicam, os textos e documentos que são colocados como se o leitor fosse pouco a
pouco direcionado a hiperlinks.
O cervejeiro é encontrado morto e seu corpo é embalsamado, demonstrando um prazer
mórbido em reproduzir o gabinete em seu jazigo. Para que a vida imite a arte, o colecionador
finalmente – assim como no quadro de Kürz – é colocado em frente a sua coleção, como se
fosse ele a única peça faltosa para que ela se completasse, atentando-nos para a problemática
da coleção.
A COLEÇÃO
A questão da coleção pode exercer em nós uma paixão e que reinará sozinha na
ausência de todas as outras conforme Jean Baudrillard (1968), sendo a posse, portanto, não do
objeto, mas de sua abstração. Nesse sentido, um objeto removido de sua função primeira
remete sempre ao indivíduo, recebendo, então, o objeto duas funções: a primeira, social (de ser
utilizado) a segunda, subjetiva (de ser possuído, de fazer parte da coleção).
Os objetos são uma personificação: “Eis por que todos os objetos são invertidos de
tudo aquilo que não pode sê-lo na relação humana. Eis por que o homem a eles regressa de tão
bom grado para neles se recolher” (Baudrillard, 1968, p. 98). Eles desempenham um papel
regulador. A posse de um objeto é, contudo, satisfatória e perturbadora, podendo-se comparar
ao que acontece no plano sexual. A prática da coleção poderia ser entendida como uma
regressão ao estado anal e às condutas de acumulação, sendo comum, portanto às crianças e
aos homens depois dos quarenta anos.
Baudrillard questiona se de fato a coleção foi feita para ser completada ou se é
justamente a ausência, a falta, que traz um papel essencial, correspondendo a completude do
objeto final à morte do colecionador. Assim, “a coleção é feita de uma sucessão de termos,
mas seu termo final é a pessoa do colecionador” (BAUDRILLARD, 1968: 99).
Em Penser/classer, Georges Perec também fala dessa obsessão por classificar, ordenar,
listar. Ao discorrer sobre sua mesa de trabalho e os objetos que lá se acumulam, ele afirma que
é preciso decidir o que fica e o que sai e que essa não é uma escolha feita ao acaso. Esse é um
trabalho de “ranger, classer, mettre de l’ordre”. Tais objetos que não se ligam somente à
tarefa da escrita acabam por criar sua história, seu cotidiano, sua identidade. A escolha, que
passa também por uma seleção afetiva será parecida, assim sendo, com o trabalho do
“catador”.
Para Baudelaire o trapeiro é a figura encarregada de recolher os detritos de um dia da
capital, tudo o que foi rejeitado, sendo ele responsável por catalogar e colecionar “faz uma
triagem, uma escolha inteligente; recolhe um tesouro, as imundices que reelaboradas pela
divindade industrial, se tornarão de novo objetos de utilidade ou prazer” (BENJAMIM apud
ROUANET, 1993).
A figura do trapeiro se aproxima da do colecionador, aquele que retira os objetos de
seu habitat, transfigurando-os e dando-lhes uma nova razão relacional.
RÉGINE ROBIN
Régine Robin também é adepta desse ato de colecionar. Suas agendas (em branco ou
não) seus livros, papéis, se acumulam como ela descreve (e é possível ver em sua página da
web - lugar em que aproveitando para fazer uso do ciberespaço, mostra suas muitas relações
com a escrita de Georges Perec, como em Penser /classer e a já referida descrição da mesa de
trabalho). Nesse ato parece jogar com a ideia de construção de sua identidade, memória,
história, mas também de sua desconstrução como ao facilmente perder seus “papiers identité”.
É em La chiffonniére de la rue Rosa Luxemburg (2001) que esse traço da escritora
“trapeira” fica mais evidente. A narradora que vai a Berlim e acaba por abrir um brechó assim
se define: “Je suis une boutiquière, une chiffonnière, je vends du passé froissé, des calicots
déteints, des restes, des ruines, des bribes depareillées de souvenirs. Une profession
indéterminée” (ROBIN, 2001: 416).
Ela não havia mais retornado a Berlin e é a primeira vez que vai à cidade desde a
queda do muro. As transformações são visíveis; um verdadeiro canteiro se expõe, o que
remete à cidade em construção, em reconstrução, mas também não há como apagar aquilo que
está por baixo. Nesse palimpsesto, dizer que tudo em Berlim é duplo evoca um drama pessoal.
Essa necessidade da narradora de coletar os restos, de selecionar aquilo que em
princípio fora dado como morto pela sociedade, ou seja, o lixo, o abjeto, é justamente uma
forma de negação dessa morte e uma tarefa de transformação. Tarefa seguida pelo artista de
modo geral, uma vez que – vale remeter à idéia de coleção - retira o útil, o objeto comum
cotidiano e atribui a ele valor estético.
Este é então seu projeto: “il s’agit de choisir a Berlin cent lieux et d’evoquer à l’aide
du tissage de ces fragments, les bribes de passe, les traces de ce qui fut, les strates
mémorielles qui se sont accummulées et qui on eté recouvertes par d’autres traces plus
recentes” (ROBIN, 2001: 421); um projeto oulipiano.
O LABIRINTO
Ao repetir frase “Il n’y a pas de Juifs a Berlin, sauf moi...”, Régine Robin transforma
esse trecho em seu mote e faz um discurso em espiral, remetendo ao Anel de Moebius; ao dar
a falsa impressão de infinito retorna sempre ao mesmo lugar. (O anel é a armadilha do eterno
retorno e sendo também ele um terrível labirinto em que se é possível estar dentro e fora
simultaneamente, criando sensações perturbadoras, como se vê nas formigas de Escher que
caminham sobre o Anel de Moebius, lembrando as calçadas dos pedestres, as navegações
infinitas nos hipertextos. Fora do labirinto, contudo, pode incidir em outro labirinto).
No labirinto tradicional existe a ideia de se chegar ao centro, mas também de se chegar
à saída; existe a paradoxal imagem de encontrar-se e de deixar-se perder. As cidades são esse
“espaço-labirinto”, mas que hoje são retomados por labirintos virtuais. Walter Benjamin assim
define: “a cidade é a realização do antigo sonho humano do labirinto. O flâneur, sem o saber,
persegue essa realidade” (BENJAMIN, 1994: 203).
Essa errância pode levar, portanto à diversão, como também à insanidade e ao
autoconhecimento, o que implicaria em travessia, peregrinação em simplesmente observar os
espaços vazios e encontrar o “eu”, enfrentando os monstros individuais. A representação da
serpente que morde a própria cauda e assim neutraliza os efeitos dos contrários: o bem e o
mal, o dia e a noite; o símbolo do retorno, já que ela não para de girar sobre si mesma.
No Conto de Robin, o labirinto também aparece caracterizado pela imagem do muro de
Berlim (e o fato de Robin ser historiadora faz com que ela conduza mais habilmente o seu
leitor). O muro além de ser um divisor na história coletiva tem também representação em sua
história individual (ainda quando ele não está mais lá); seu pai morre um ano após a
construção do muro e ela só retorna a Berlin após a queda.
Marc Augé (1994) ao analisar os espaços urbanos da atualidade classifica-os em
lugares e não-lugares. Para ele o não-lugar é aquele diametralmente oposto ao lar, à residência,
aos espaços que são personificados, tendo como identificação apenas aquilo que identifica
com símbolos impessoais (cartões de crédito, telefônicos ou senhas). Nesse sentido, também
os hotéis fazem parte desse rol, Robin, porém, os transforma em lugares habitáveis - já que
eles fazem parte da vida dela - tornando-os mais familiares ao organizar o ambiente e ao
reconhecer seus detalhes. Existe um charme nesses não-lugares.
A flânerie do intelectual permite essa transmutação, as alterações do espaço urbano
para que este se torne aos poucos uma morada comum. Berlim é um canteiro de obras
(depósito) onde é possível apagar e recomeçar. Nesse sentido, há a ideia do palimpsesto, pois
o apagamento total é impossível; lembrança e esquecimento são dois traços indissociáveis e
para que um exista é preciso o outro existir: “la mémoire est une maladie dont l’oubli est le
remède” (PEREC, 2003:172).
A construção de um hipertexto, no entanto, pode nos fazer desconfiar que suas
“infinitas” possibilidades se baseiam em caminhos anteriormente estabelecidos numa leitura
então mais ou menos guiada. George Landov propõe a figura do wreader para mostrar a
hibridez existente entre o leitor e o escritor. Se o flâneur, na cidade, é que aquele que
deambula com o objetivo de observar, na Internet, o leitor exerce essa tarefa e o computador é
esse novo lugar.
À GUISA DE CONCLUSÃO I
A tão temida crise da leitura não se justifica, mesmo porque o que se vê é a demanda
por leitores e escritores cada vez mais sofisticados. Régine Robin faz a todo tempo o trabalho
de recortes citando ora outros autores com que tem maior afinidade ora a si mesma. Diz que
precisa colecionar para suprir o identitário. Essa também é uma outra relação que toma por
base a escrita perequiana que por sua vez faz referências a Julio Verne, como ao falar da
biblioteca e da coleção de Capitão Nemo.
Ao que parece, no caso de Régine Robin, Georges Perec e tantos outros autores que de
uma forma ou de outra vivenciaram os horrores do Holocausto – ou de qualquer outra guerra,
pois todas elas são iguais – resta rememorar e trabalhar através das diferentes errâncias
amenizando aquilo que reflete uma história individual ou coletiva.
Aqui, será necessário retornarmos ao nosso hiperlink A COLEÇÃO PARTICULAR.
A FRAUDE
É preciso dizer que após a morte de Raffke seus quadros foram a leilão. A narrativa é
construída com um descritivismo detalhado dos quadros a fim de precisar, autoria, obra e até
mesmo os valores da venda dos quadros.
A Primeira Guerra, no entanto, interrompe o leilão. Em 1921, uma autobiografia sobre
a vida de Raffke é lançada a partir de notas e cadernos. Nesses textos, que funcionam, então,
como documentos, comprovação “real”, são contados em detalhes os modos de aquisição das
obras de arte por parte do colecionador e todos aqueles que serviram de conselheiros para
comprá-las, já que ele mesmo pouco entendia sobre pintura.
A sensação do leitor é de estar experimentando um moderno hipertexto virtual, ou de
estar visitando uma das salas (também virtuais?) do Louvre. Os nós nos conduzem à leitura da
autobiografia de Raffke, aos ensaios de Nowak, aos catálogos dos leilões, como se
estivéssemos em uma grande biblioteca de Babel. Essa possibilidade infinita que já havia sido
apontada por Jorge Luis Borges sugerindo a existência de uma biblioteca capaz de tudo
compilar – assim como muitos o acreditam fazer a internet – demanda a existência de um guia
mais ou menos “divino” capaz de decifrá-la.
O momento atual aponta para um certo logocentrismo conforme vaticinara Derrida.
Diante disso, conhecimento e sabedoria não são sinônimos e o leitor muitas vezes se perde
diante desse misto de sentimentos: vergonha por sua ignorância e encantamento pela forma
como uma verdadeira História da Arte aos poucos se descortina.
Ao final, uma jogada de mestre, uma saída ao estilo Georges Perec, ajuda a confirmar
as tênues fronteiras que separam o real do ficcional, lançando por terra a ideia de verdade
absoluta. Uma carta enviada por Humbert Raffke (sobrinho de Hermann Raffke) após o
segundo leilão informa que todas as obras vendidas eram falsas, assumindo ser ele mesmo o
verdadeiro autor. Tudo não havia passado de uma vingança armada por Hermann Raffke, que
havia sido enganado ao adquirir obras falsas, montando uma “operação que lhe permitiria,
anos mais tarde e mesmo após a sua morte, mistificar por sua vez os colecionadores, os peritos
e marchands” (PEREC, 2005: 72). O ápice dessa ação culminou na pintura da “Coleção
Particular”, em que os quadros apresentados como cópias, não passavam disso: cópias,
pastiches dos quadros reais.
Existe um duplo engano (en abîme): os compradores são enganados pelos pintores
“Verificações conduzidas com diligência não custaram a demonstrar que, de fato, a maior
parte dos quadros da coleção de Raffke eram falsos” enquanto os leitores se sentem alvos do
grande falsário, nesse caso, o narrador que lhes informa “como são falsos a maioria dos
detalhes desta narrativa”; aqueles leitores mais refinados poderão perceber a sutileza do que
conclui Perec “concebidas unicamente pelo prazer, pelo gosto de iludir” (PEREC, 2005: 72).
Assim, tanto a pintura quanto a escrita cumprem o papel primeiro da arte: o gozo estético.
A composição do texto se faz para os escritores do trânsito como uma forma de
“expurgo”; Georges Perec, assim como Régine Robin, parece denotar em seus jogos de falta e
excesso, muito e pouco, tudo ou nada, uma tentativa de composição com sua história pessoal,
remetendo com constância à questão judaica e ao problema vivenciado na segunda guerra,
mesmo quando nenhum desses elementos é mencionado.
Je sens confusement que les livres que j’ai écrits s’inscrivent, prennent leur sens dans une image
globale que je me fais de la littérature, mais il me semble que je ne pourrai jamais saisir
précisément cette image (...) cessant d’écrire, cette image deviendrait visible, comme um puzzle
inexorablement achevé (PEREC, 2003:12).
O leitor será então o responsável por fazer o trabalho de ajustar as partes que, como
propôs Compagnon, já estarão “recortadas” e “coladas”. A tarefa é, portanto, não apenas a de
se perder nos labirintos hipertextuais como propõem Robin, mas como bem disse Perec,
perceber o prazer de ser iludido.
À GUISA DE CONCLUSÃO II
A possibilidade do fim do livro conjeturada por muitos pessimistas parece muito
remota, o que talvez exista com o surgimento do hipertexto é a mudança de comportamento
apontando para a criação do “do it –yourself”, ou seja, a aparição de um novo tipo de leitor o
qual interage todo o tempo com a obra, já que o hipertexto é sinônimo de obra aberta. Para
muitos, o hipertexto é fruto de uma necessidade histórica, fazendo parte de uma nova ordem
intelectual. O paradoxo do hipertexto, no entanto, parece mover-se para o fato de ser inovação,
mas prender-se ao monologismo do texto clássico, descrito por Barthes.
Se a invenção da imprensa possibilitou a ampliação da escrita e o consequente aumento
do mercado literário, o hipertexto pode ser visto como uma extensão deste mercado uma
espécie de “the late age of print”. Stuart Moulthrop questiona a possibilidade de uma crise
geral por parte das editoras, uma vez que todos os textos estariam disponíveis na internet.
Trata-se não da morte do livro, mas de uma coexistência, pois não se fala de uma época de
ruptura, mas de transição, é um momento de mudanças, mas também de resistência. Em breve,
a própria tecnologia irá desaparecer, ou melhor, estaremos tão habituados à sua existência que
não nos importaremos em discutir sua problematização como o fazemos agora neste período
de transição.
Vivemos em uma época em que, como vimos, não há lugar para a tragédia; os
praticantes dessa escrita através das novas tecnologias não passam, no fundo, de uma
caricatura do tipo de artista e de arte (seja ela narrativa ou não) que a nossa era enseja; como
tal, os traços exagerados tornam mais evidente uma verdade mais sutil e mais diáfana nos seus
pares das artes mais “elevadas” (romancistas, dramaturgos, artistas plásticos etc.) abandonada
a tragédia, a “utilidade” da arte que as civilizações tradicionais e os filósofos gregos tinham
por pressuposto (não a utilidade no sentido que damos a essa palavra ao falar da utilidade da
“arte aplicada”, mas uma utilidade no atender simultaneamente às exigências do corpo e da
alma do homem, afinal, “nem só de pão vive o homem”), e isso bem o provam escritores
como Georges Perec e Régine Robin ao usarem a escrita como forma de dissimulação da
realidade.
No vazio espiritual do mundo moderno, que deu ocasião a formas de culto, mas
infinitamente mais perigosas, como os totalitarismos comunista e nazista, e onde a arte
adquiriu, como lembra o citado Ananda Coomaraswamy, o caráter de mera superstição, é
apenas normal que o homem, perdido, se refugie no ludismo puro e simples. Já dizia Ortega y
Gasset que o ato de caridade mais apropriado à nossa época é abster-se de publicar livros
inúteis.
Recebido em outubro de 2009
Aprovado em novembro de 2009
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