Avatar conta uma história que preferimos esquecer

Transcrição

Avatar conta uma história que preferimos esquecer
Disciplina - Filosofia -
Avatar conta uma história que preferimos esquecer
Filosofia & Ciências
Enviado por: Visitante
Postado em:01/04/2010
Avatar, uma metáfora para o contato entre culturas humanas diferentes. O destino dos nativos
americanos é tratado com mais proximidade histórica do que a história contada...A Europa
enriqueceu maciçamente com os genocídios nas Américas...
Fonte: George Monbiot Avatar é, ao mesmo tempo, tolo e profundo. É tolo porque a exigência de um
final feliz engendra um enredo previsível que arranca o coração do filme. E é profundo porque, como
outros filmes sobre alienígenas, é uma metáfora sobre o contato entre culturas humanas diferentes.
Nesse caso a metáfora é consciente e precisa: esta é a história do engajamento europeu com os
povos nativos das Américas. Essa é uma história que ninguém quer escutar, por causa do desafio
que oferece ao modo como escolhemos ver a nós mesmos. A Europa enriqueceu maciçamente com
os genocídios nas Américas; as nações americanas foram fundadas neles. O artigo é de George
Monbiot. O Blockbuster em 3D Avatar, de James Cameron, é tanto profundamente tolo como
profundo. É profundo porque, como em muitos filmes sobre alienígenas, é uma metáfora para o
contato entre culturas humanas diferentes. Mas nesse caso a metáfora é consciente e precisa: esta
é a história do engajamento europeu com os povos nativos das Américas. É profundamente tolo
porque a exigência de um final feliz engendra um enredo tão estúpido e previsível que arranca o
coração do filme. O destino dos nativos americanos é tratado com mais proximidade histórica do
que a história contada em outro filme novo, The Road (John Hillcoat, 2009), no qual pessoas
sobreviventes de um cataclismo fogem aterrorizadas enquanto são caçadas até a extinção. Mas
essa é uma história que ninguém quer escutar, por causa do desafio que oferece ao modo como
escolhemos ver a nós mesmos. A Europa enriqueceu maciçamente com os genocídios nas
Américas; as nações americanas foram fundadas neles. Essa é uma história que não podemos
aceitar. Em seu livro Holocausto Americano, o acadêmico estadunidense David Stannard
documenta os maiores atos de genocídio que o mundo já experienciou. Em 1492, 100 mil povos
nativos viviam nas Américas. No fim do Século XIX, quase todos eles tinham sido exterminados.
Muitos morreram de doenças. Mas a extinção em massa também foi empreendida. Quando os
espanhóis chegaram nas Américas, eles descreveram um mundo que dificilmente teria sido muito
diferente do seu próprio. A Europa foi devastada pela guerra, pela opressão, escravidão, fanatismo,
doença e fome. As populações que encontraram eram saudáveis, bem nutridas e em sua maioria
(com exceções, como os Astecas e Incas), pacíficas, democráticas e igualitárias. Pelas Américas, os
primeiros exploradores, inclusive Colombo, observaram a extraordinária hospitalidade dos nativos.
Os conquistadores ficaram maravilhados com as impressionantes estradas, construções e com a
arte que encontraram, a qual em alguns casos ia além de tudo o que tinham visto antes. Nada disso
os impediu de destruir tudo e todos que encontraram pelo caminho. O açougue começou com
Colombo. Ele abateu o povo nativo da Hispaniola (hoje Haiti e República Dominicana) por meio de
uma brutalidade inimaginável. Seus soldados arrancaram bebês de suas mães e espatifaram suas
cabeças em pedras. Jogaram seus cachorros sobre crianças vivas. Numa ocasião, eles enforcaram
13 índios em honra a Cristo e aos 12 discípulos, num cadafalso na altura em que seus dedos
tocassem o chão, então os estriparam e queimaram vivos. Colombo ordenou que todos os nativos
entregassem uma certa quantia de ouro a cada três meses; quem não o fizesse teria suas mãos
http://filosofia.seed.pr.gov.br
2/10/2016 11:16:46 - 1
cortadas. Por volta de 1535, a população nativa da Hispaniola havia caído de 8 mil para zero; parte
como consequência de doença, parte como de assassinato, sobrecarga de trabalho e fome. Os
conquistadores espalharam sua missão civilizatória ao longo das Américas Central e do Sul.
Quando não conseguiam dizer onde seus tesouros míticos estavam escondidos, os povos indígenas
eram açoitados, afogados, desmembrados, devorados por cachorros, enterrados vivos ou
queimados. Os soldados cortavam os seios das mulheres, devolviam as pessoas a suas cidades
com suas mãos e narizes cortados, ao redor de seus pescoços e índios caçados por seus cães, por
esporte. Mas a maior parte foi morta pela escravidão e doença. Os espanhóis descobriram que era
mais barato fazer os índios trabalharem até a morte e substituí-los, do que mantê-los vivos: a
expectativa de vida nas minas e plantações era de três a quatro meses. Um século após sua
chegada, em torno de 95% da população da América Central e do Sul tinha sido destruída. Na
Califórnia, ao longo do Século XVIII a Espanha sistematizou o extermínio. Um missionário
franciscano chamado Juniperro Serra deu cabo de uma série de “missões”: na realidade, de campos
de concentração usando trabalho escravo. A população nativa foi arrebanhada pela força das armas
e posta a trabalhar nos campos, com um quinto das calorias de que os afro-americanos escravos no
Século XIX se nutriam. Eles morriam de tanto trabalhar, de fome e doença em índices alarmantes, e
eram continuamente substituídos, limpando etnicamente as populações indígenas. Juniperro Serra,
o Eichmann da Califórnia, foi beatificado pelo Vaticano em 1988. Neste momento esperam mais um
só milagre seu para torná-lo santo. Enquanto a colonização espanhola foi orientada pelo lustro do
ouro, a Norte-Americana foi pela terra. Na Nova Inglaterra eles renderam as vilas dos nativos
americanos e os assassinaram enquanto dormiam. Enquanto o padrão oeste de genocídio se
espalhava, era endossado em níveis cada vez mais altos. George Washington ordenou a destruição
total das casas e da terra dos Iroquois. Thomas Jefferson declarou que as guerras de sua nação
com os índios deveriam continuar até que cada tribo “seja eliminada ou jogada para além do
Mississipi”. No Massacre de Sand Creek, de 1864, tropas no Colorado abateram povos desarmados
com a bandeira branca em mãos, matando crianças e bebês, mutilando seus corpos e guardando as
genitálias das vítimas para usar como porta-tabaco ou amarrar seus chapéus. Theodore Roosevelt
chamou a esse evento de “o feito mais correto e benéfico jamais ocorrido na fronteira”. O
abatedouro ainda não acabou: no mês passado, o Guardian reportou que fazendeiros brasileiros na
Amazônia oeste, depois de abaterem a todos, tentaram mantar o último sobrevivente de uma tribo
da floresta. Ainda assim, os maiores atos de genocídio da história raramente perturbam nossa
consciência coletiva. Talvez tivesse vindo a ser isso o que teria ocorrido caso os nazistas houvesse
vencido a Segunda Guerra Mundial: o Holocausto teria sido denegado, desculpado ou minimizado
da mesma maneira, mesmo se continuasse a ocorrer. As pessoas das nações responsáveis –
Espanha, Inglaterra, EUA e outros – não tolerarão comparações, mas as soluções finais
empreendidas nas Américas foram muitíssimo melhor sucedidas. Aqueles que cometeram ou as
endossaram ainda perseveram como heróis nacionais. Aqueles que fustigam nossa memória são
ignorados e condenados. É por isso que a direita odeia Avatar. No neocon Weekly Standard, John
Podhoretz reclama que o filme parece “um western revisionista”, no qual “os índios se tornam caras
bons e os Americanos, os caras ruins”. Ele diz que o filme questiona “as raízes da derrota dos
soldados americanos nas mãos da insurgência”. Insurgência é uma palavra interessante para uma
tentativa de resistir à invasão: insurgente, como selvagem, é como é chamado alguém que tem
alguma coisa que você quer. L'Observatore Romano, jornal oficial do Vaticano, condenou o filme,
chamando-o de “apenas...uma parábola anti-imperialista e anti-militarista”. Mas ao menos a direita
sabe o que está atacando. No New York Times, o crítico liberal Adam Cohen elogia Avatar por
defender a necessidade de se ver claramente. O filme revela, diz ele, “um princípio bem conhecido
do totalitarismo e do genocídio, que o oponente é melhor oprimido quando não podemos vê-lo”.
Mas, numa formidável ironia inconsciente, ele contorna estrondosamente a metáfora óbvia e, em
vez de falar dela, ele enfatiza as atrocidades nazistas e soviéticas. Nós nos tornamos todos hábeis
http://filosofia.seed.pr.gov.br
2/10/2016 11:16:46 - 2
na arte de não ver. Eu concordo com as críticas de direita que dizem que Avatar é rude, enjoativo e
clichê. Mas ele fala de uma coisa mais importante – e mais perigosa – do que aquelas contidas em
milhares de filmes de arte. (*) George Monbiot é jornalista e escritor. Texto publicado na página do
autor. Tradução: Katarina Peixoto Este conteúdo foi acessado em 01/04/2010 do sítio:
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=16490 Todas as
modificações posteriores são de responsabilidade do autor original da matéria.
http://filosofia.seed.pr.gov.br
2/10/2016 11:16:46 - 3

Documentos relacionados