Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas

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Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas
(Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana
LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3
SLG 27 – Estudos de memória e discurso em Língua Portuguesa
OS DISCURSOS FUNDADORES DA FORMAÇÃO DA MULHER DA DÉCADA
DE 50 NA REVISTA O CRUZEIRO
Edna Maria Fernandes dos Santos NASCIMENTO1
RESUMO: Partindo de pressupostos da teoria semiótica greimasiana, analisamos
crônicas e correspondências da seção específica para a mulher, denominada “Para a
mulher”, publicada nos anos 50 na revista O Cruzeiro. “Para a mulher” enfeixa, entre
outras, as matérias “Da mulher para a mulher”, “Elegância e beleza” e “Lar, doce lar”.
“Da mulher para a mulher”, assinada por Maria Teresa, configura-se como um
consultório sentimental, em “Elegância e beleza”, Elza Marzulo dá digas para que a
mulher se torne mais atraente e, em “Lar, doce lar”, Helena Sangerardi e Thereza de
Paula Penna, entre muitas receitas gostosas, que fizeram por anos a alegria de toda a
família, escrevem sobre “probleminhas domésticos” que afligiam a dona de casa da
época. A partir dessa seção feminina, resgatamos os discursos que fundamentam e
prescrevem o sentir, o fazer e o saber do sujeito mulher da década de 50 e determinam
suas formas de ser no desempenho de diferentes papéis temáticos, seja como parceira
amorosa ou como esposa, como dona de casa ou mãe e como mulher da sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: discurso; formas de vida; mulher; O Cruzeiro.
“PARA A MULHER” EM O CRUZEIRO
A revista O Cruzeiro, título inspirado na constelação de cinco estrelas, Cruzeiro
do Sul que figurativiza o Brasil, vem a público no dia 10 de novembro de 1928, época
em que o país tinha cerca de 50 milhões de habitantes. Patrocinada pelos Diários
Associados, de Francisco de Assis Chateaubriand Bandeira de Melo, é considerada
como a principal revista semanal ilustrada brasileira do século XX por ter sido

A apresentação deste trabalho no II SIMELP contou com o apoio da CAPES que me concedeu
bolsa deslocamento para participação de evento no exterior.
1
Universidade de Franca, Faculdade de Letras, Departamento de Letras e Universidade
Estadual Paulista, Programa de Pós-graduação em Língua Portuguesa e Linguística, CNPq Bolsa de Produtividade em Pesquisa, rua Maria Tereza Farabolini Rodrigues, 175, CEP: 05327000 - Parque Continental - São Paulo - Brasil, [email protected]
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responsável pela reformulação técnica e estética no meio jornalístico. Já no seu primeiro
editorial é caracterizada como “um compêndio da vida” do brasileiro. Por 47 anos, O
Cruzeiro publicou reportagens, artigos, textos literários, matérias polêmicas e divulgou
produtos que ditaram padrões de comportamento e consumo, hábitos de leitura,
sintetizando formas de vida do século XX. Por meio de O Cruzeiro, os modernos
eletrodomésticos, geladeiras, enceradeiras, liquidificadores, bem como os mágicos
cosméticos, a refrescante coca-cola, são conhecidos e começam a fazer parte do
cotidiano do brasileiro, tornando-se produtos indispensáveis. Por suas páginas
retratarem os acontecimentos de uma época, ela configura-se como um acervo da
história do Brasil e o exame dos diferentes tipos de textos verbo-visuais nela contidos,
capa, reportagem, conto, charge, matérias assinadas, publicidades, permite o resgate dos
modos de fazer, pensar e sentir que marcaram o cotidiano de uma geração de brasileiros.
A mulher é uma presença constante nas edições de O Cruzeiro, a ela é dedicada,
grande parte das seções e das publicidades. Recortando esse extenso corpus, no
momento, vamos nos restringir à análise de algumas matérias dos anos 50 dedicadas ao
público feminino. Neste texto, analisamos, sob a perspectiva da semiótica francesa,
crônicas e correspondências que compõem a seção específica para a mulher,
denominada “Para a mulher”, que enfeixa as matérias “Lar, doce lar”, “Elegância e
beleza” e “Da mulher para a mulher”, assinadas respectivamente por Helena Sangirardi
(depois de 10/12/57, por Thereza Paula Penna), Elza Marzulo e Maria Teresa. A partir
dos textos dessa seção publicada na revista O Cruzeiro nos anos 50, nosso propósito é
verificar os discursos que regem a forma de vida da mulher desta época, já que tais
matérias refletem, sob perspectivas diferentes, sobre a formação da mulher.
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“LAR, DOCE LAR”
Fazem parte de “Lar, doce lar”, na década de 50, as famosas receitas, que,
ilustradas com fotos coloridas, encheram de gula os olhos de muita gente. Encabeçam
sempre essas receitas pequenos textos denominados pela articulista crônica cuja
temática se circunscreve a ensinar a dona de casa como desempenhar bem as tarefas
domésticas, como por exemplo, decorar uma mesa de aniversário de criança.
A crônica denominada “Menu de Natal”, de 12/12/59 (PENNA, p. 54), traz uma
sugestão de um cardápio e recupera dados sobre esta data especial. Observamos que o
requintado menu deve ser preparado em casa e exige da mulher a prática semiótica do
saber cozinhar que implica as ações “escolher, mexer, bater, assar, enformar” e a prática
semiótica “decorar a festa de Natal”. Além dessas tarefas caseiras, subtende-se o
conhecimento de outras no enunciado “Se a coroa do abacaxi não estiver bastante
vistosa, substitua-a por uma planta de seu jardim, espetada por meio de uma agulha de
tricô ou espeto de carne.” Por meio dessa citação e do trecho abaixo, podemos
depreender que a mulher além de exercer a função de decoradora, ainda cuida do jardim
e tem habilidades para o trabalho manual. E é com satisfação que ela desempenha todas
essas competências que só terão êxito se sua família comemorar com alegria a data
máxima da Cristandade:
Depois do século IV, quando o Papa Júlio I estabeleceu que se comemorasse a
25 de dezembro o nascimento do Menino-Deus, tudo se tem feito para solenizar
mais e mais a data máxima da Cristandade. As tradições são inúmeras, quer nos
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adornos, quer nas comemorações: sinos, [...] e a clássica ceia de Natal. A alegria
da dona de casa começa cedo, em seus trabalhos de escolher, mexer, bater,
assar, enformar e decorar a festa de Natal. Juntamente como nosso ‘menu’ e
receitas para a ceia de Natal, sugerimos hoje, uma árvore de frutas para servir de
centro à sua mesa. Se a coroa do abacaxi não estiver bastante vistosa, substituaa por uma planta de seu jardim, espetada por meio de uma agulha de tricô ou
espeto de carne. Não deixe de fazer ainda maior a alegria dos seus na festa de
Natal! (PENNA, 12/12/59, p. 54).
Fundamentada no discurso científico, a cronista ensina para a dona de casa as
propriedades nutritivas dos alimentos, como o peixe:
Cada dia mais se reconhece a importância do peixe em nossa alimentação. Suas
qualidades nutritivas são iguais às da carne, sua digestão é mais fácil e é carne
de fácil assimilação, muito nutritiva e que não engorda. Contém grandes
quantidades de sais minerais e proteínas, vitaminas A, D, e E, fósforo, cálcio,
etc. Em mãos hábeis pode se converter em um prato saborosíssimo. (PENNA,
14/06/58, p.78).
No trecho sobre as propriedades alimentares do peixe, o discurso científico é
citado pela articulista como um saber já incorporado às práticas semióticas alimentares.
No texto a seguir, ela discorre sobre a utilização de castanhas, nozes, amêndoas e passas
nas refeições. Para salientar as contra-indicações calóricas dessas frutas, invoca a
autoridade da nutricionista. O discurso científico dessa profissional, como ressalta a
articulista, perde terreno para a praticidade do uso dessas frutas no cardápio. Por serem
secas e duradouras, elas são utilizadas porque facilitam as tarefas da mulher:
Usadas nas ceias, jantares e intervalos, estas saborosas frutas resistem às contraindicações das nutricionistas. [...] trazem ainda a vantagem de ser pratos
preparados com antecedência. Assim as donas de casa reservam para si mesmas
um dia de festa mais descansado. (PENNA, 26/12/59, p. 90).
Para facilitar as lides domésticas, indica mudanças de gosto e hábitos dos
brasileiros que comprovam que as novas práticas semióticas simplificam a maneira de
preparar a refeição e o modo de servi-la, e a dona de casa ainda recebe cumprimentos de
seus convidados:
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Eis porque se tornou tão comum o uso de um prato único como cozido, feijoada,
vatapá, etc. O prato bem decorado dividido em diversas porções, é colocado
sobre a mesa ou “buffet” para que cada convidado se sirva, sem garçons ou
copeiras. Será enorme o prazer de reunir seus amigos e a despesa será menor,
pois o serviço se simplificou. Entre os pratos únicos e completos, o cozido é de
todos o mais nutritivo. [...] Com ele você terá uma reunião alegre e a sincera
apreciação dos convidados. (PENNA, 31/05/58, p. 72).
Cabe também à mulher economizar. Ela deve então planejar para que nada se
desperdice. Se a receita exige grande quantidade de claras, deve-se planejar o
aproveitamento das sobras das gemas, não só sabendo como armazená-las, mas também
executando receitas em que elas possam ser utilizadas. São novas práticas culinárias,
fundamentadas no discurso da economia que, como observa a conselheira, não tinham
vez no tempo de “nossas avós”:
Com o alto do custo de vida, o aproveitamento das sobras de qualquer
ingrediente tornou-se além de uma necessidade, uma verdadeira arte.
Desapareceram as receitas como no tempo de nossas avós, em que se usavam
três, quatro dúzias de gemas de ovos, sem se preocupar com o destino das
claras. Os deliciosos doces com doze, quatorze gemas, ainda têm, no entanto, a
sua vez, quando ao mesmo tempo se planeja o aproveitamento das claras e viceversa. Para guardar as gemas por três, quatro dias, coloque-as no refrigerador,
em vidros ou copos tampados, cobertos com um pouco de água. (PENNA,
28/11/59, p. 90).
Não falta também em “Lar, doce lar”, ao lado de receitas de pratos mais finos, a
prática semiótica da etiqueta de como degustá-los. Em uma página inteira, depara-se
com uma foto colorida da bela hortaliça alcachofra, cortada ao meio. Destacam-se suas
folhas em tons de roxo e sua polpa em amarelo esverdeada que aguçam a vontade do
enunciatário de experimentar tão deslumbrante iguaria. No longo texto verbal, colocado
ao lado da foto, a articulista, apoiada no discurso científico, ressalta as propriedades
nutritivas e medicinais do requintado vegetal e instrui a dona de casa a forma de
escolhê-los na hora da compra. Sendo um alimento esnobe, não menos esnobe deve ser
a prática semiótica de comê-lo sobre a qual, como ressalta a cronista, já gastaram muita
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tinta os conselheiros de etiqueta. Investindo-se do papel temático de consultora de
etiqueta, a articulista considera o ato de degustá-la simples e descreve detalhadamente
as várias fases pelas quais deve passar o enunciatário para adquirir a competência de um
bom “gourmet”:
No entanto, creio que comer uma alcachofra é mais simples do que comer uma
fruta em jantares de cerimônia, por não exigir garfo e faca para comê-la.
Retiram-se simplesmente as folhas, uma por uma, mergulhando a ponta da folha
no molho colocado de um lado do prato. Come-se apenas a parte tenra, puxando
a polpa macia com os dentes. Colocam-se os restos à volta do prato. Apenas ao
chegar ao centro, usam-se garfo e faca, retira-se a parte pelosa. Corta-se o
restante do coração da alcachofra em pedaços. Com o garfo, mergulhe-os no
molho antes de comê-los. (PENNA, 05/12/59, p. 84).
A alcachofra é apresentada como um prato caro, raro, fino e a ser consumido em
ocasiões especiais, com etiqueta própria, tempo determinado, setembro a fevereiro,
época de sua colheita. Por outro lado, há pratos que podem ser consumidos em qualquer
época do ano e em qualquer hora do dia: “A panqueca pertence a todas as horas e a
todas as refeições: café da manhã, almoço, lanche, chá, jantar ou ainda ‘snack’ depois
do jantar.” (PENNA, 21/06/58, p. 54).
Observando a composição dos textos das matérias de “Lar, doce lar”, sob a ótica
da Fontanille (2008, p.26), vemos que eles apresentam o prato culinário de duas formas:
um discurso de instrução, em que ensina a receita e chama a atenção para suas
qualidades sincréticas e polissensoriais com fotos de Paulo Namorado ou Ed Keffel e
um discurso de interpretação da receita, em que explica quem vai fazer (a dona de casa),
quem vai degustá-lo (convidados, crianças, marido), a que hora deve ser servido (jantar,
ceia de Natal), em que tempo (calor, frio), em que espaço (no lar, na recepção), como
deve ser comido, isto é, que alimento deve acompanhá-lo, arroz, farofa etc.
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Segundo Fontanille (2008, p. 61), uma refeição bem sucedida adota a sequência
canônica em que uma ordem, uma completude e um o ritmo determinam três tipos de
refeição: bem sucedida e “cordial”, refeição malograda e “morna”, ou o “escândalo”.
Uma refeição bem sucedida pressupõe, segundo esse mesmo autor, o equilíbrio entre
esses elementos, ocorrendo o contrário nos outros tipos.
Ampliando essa classificação proposta por Fontanille para as refeições para
todas as tarefas da dona de casa, os conselhos de como desenvolver as lides domésticas
e as receitas são fórmulas não só para que o enunciatário produza e conduza uma
refeição como um acontecimento digno de ser narrado, não deixando que ela seja
malograda e morna, mas também para que a mulher construa uma vida familiar cordial
exemplar. Sob o programa de uso2 de como preparar uma refeição, subjaz o programa
de base3: proporcionar à família e aos entes queridos alegria e felicidade. Se a refeição
manifesta, segundo Fontanille (2008, p.61), uma estrutura de troca em que uma boa
refeição pode ter uma boa recompensa, esses textos propõem programas narrativos para
a dona de casa, que são indicativos de uma forma de vida cuja recompensa é ter uma
família feliz, porque “Só assim você se completará e poderá fazer do seu lar um
verdadeiro - lar, doce, lar...” (SANGIRARDI, 10/01/1948, p.72).
ELEGÂNCIA E BELEZA
É o programa narrativo pressuposto desenvolvido pelo sujeito que converge para o programa
narrativo de base. (GREIMAS e COURTÉS, s.d., p. 354).
2
3
Enquanto o programa de uso pode ser em número indefinido, dependendo da complexidade da
tarefa a cumprir pelo sujeito, o programa narrativo de base é geral e único. (GREIMAS e
COURTÉS, s.d., p. 354).
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Elza Marzullo, em “Elegância e beleza”, matéria sob sua responsabilidade na
revista O Cruzeiro, oferece um guia completo para as práticas semióticas de tratamento
das diferentes partes do corpo da mulher, pele, olhos, mãos, pés. Há uma relação
minuciosa de dietas para o equilíbrio perfeito entre saúde e beleza, de receitas especiais
sobre a maneira correta de vestir, andar, falar e ainda há prescrições sobre educação
social em geral. Com receitas caseiras, em que os ingredientes são, por exemplo, o óleo
de rícino para escurecer e dar brilho aos cabelos ou com sugestões de ginásticas e
fórmulas comportamentais que podem ser praticadas no aconchego do lar, a mulher é
aconselhada pela articulista a desenvolver uma programa de busca de uma forma de
apresentação elegante e bela.
Em “A beleza e você”, a preocupação da articulista é com a aparência das mãos
das enunciatárias. Para que elas tenham mãos belas, sugere que usem luvas para
executar as tarefas domésticas. A foto, em branco e preto que acompanha essa matéria,
flagra uma mulher em uma moderna cozinha, colocando uma batata no descascador
elétrico, calçando um par de luvas. Escreve a articulista, referindo-se ao texto visual:
A colaboração de cientistas tornou possível a produção das luvas que se vêem
na gravura. [...] A superfície rugosa num feitio de espinha de peixe, o que dá
segurança para pegar objetos frágeis. [...] Essas luvas, com novas propriedades,
podem ser usadas para todos serviços domésticos. (MARZULLO, 04/09/54, p.
91).
Os avanços científico-tecnológicos permitem à mulher facilitar as tarefas
domésticas, fazendo com que ela tenha mais tempo, mas não como hoje, tempo para ela,
mas tempo para poder dedicar-se mais à família. E ter mãos cuidadas proporciona a ela
melhor servir ao marido, auxiliando-o nas conquistas profissionais, como podemos ler
na continuidade da mesma matéria:
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As mãos bonitas, hoje em dia, nada revelam das múltiplas tarefas que as
mulheres executam desde o cuidado com os meninos até os serviços de casa,
ficando em boa forma para o importante papel de ajudar o marido na sua
profissão, recebendo e fazendo vida social. (MARZULLO, 04/09/54, p. 91).
Em diferentes textos, a articulista se vale da citação do discurso científico, como
o de médicos e de higienistas, para explicar, por exemplo, que a massagem não realiza
milagres ou relatar com sua própria voz experiências de pesquisadores que esclarecem o
porquê dos cabelos brancos (MARZULLO, 18/09/54, p. 85). Em “Como ter pernas
bonitas” é também o discurso científico que auxilia a explicação de ginásticas caseiras:
O pé - dizem as autoridades no assunto - consiste em uma reunião de 26 ossos
perfeitamente distribuídos para que possam suportar o peso do corpo. O pé é
também formado de um grupo de tendões e músculos no meio dos quais se
estendem as veias, as artérias e os nervos. É fazendo trabalhar todo este
conjunto que conseguiremos o fim desejado. (MARZULLO, 14/01/56, p. 61).
Comentando sobre uma nova dieta alimentar, denominada “dieta associada”,
muito utilizada na época nos Estados Unidos, evoca como argumento de autoridade o
discurso científico psicológico que explica esse comportamento compulsivo:
“Parecerá paradoxo, mas também os desgostos fazem engordar; não porque a
dor aumente o depósito de gordura sob a epiderme, mas porque, geralmente,
quem, por uma qualquer razão, sofre um desgosto, tende involuntariamente a
criar coragem comendo mais!” Esta curiosa afirmação foi feita por eminentes
psicólogos [...] (MARZULLO, 25/02/56, p. 93).
Quanto às práticas semióticas da elegância, os conselhos referem-se à sobriedade
no trajar-se, no uso da maquilagem. Na matéria “Como se veste?”, alerta para as
modernidades da moda que devem ser adequadas a cada ocasião. A medida de controle
deve ser a imagem no espelho:
Nenhuma de vocês usaria um vestido de alça para ir à igreja nem um vestido de
“cock-tail” para ir ao trabalho. [...] Para o trabalho, vista-se com sóbria
elegância. Não se deixe atrair por certos modelos cinematográficos, ótimos para
a tela, mas não para um local onde se trabalha. E muito menos para um lotação
ou ônibus. Antes de sair, examine-se no espelho, não para admirar-se, mas para
controlar-se. (MARZULLO, 07/01/56, p. 45).
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Na matéria “A mocinha começa a trabalhar”, acompanhada de foto em branco e
preto de uma jovem, sorrindo, frente a uma máquina de escrever, lê-se na legenda
“VESTIR-SE com propriedade e saber usar maquilagem ajuda a conquistar o equilíbrio
e a autoconfiança de que a mocinha carece ao enfrentar a vida.” A sobriedade no vestirse é recomendada para a jovem que deseja manter seu primeiro emprego. Mais uma vez,
a articulista observa que o modelo a ser seguido na prática semiótica do trabalho não é o
trajar-se das artistas cinematográficas ousadas da década de 50:
A mocinha não deve preocupar-se muito com o ‘rouge’; se é excepcionalmente
pálida, uma base leve, ligeiramente rosada, dar-lhe-á a dose exata de colorido. É
muito importante manter o contorno natural da boca, ao aplicar o batom. E as
tonalidades claras são as mais indicadas. É natural que toda mocinha goste de
imitar o fascínio dos olhos de suas artistas preferidas, o que as leva pintar os
olhos obtendo somente o efeito desastroso do ridículo. (MARZULLO, 26/12/59,
p. 109).
Nas crônicas, entre os conselhos de como cuidar do corpo e de como se
comportar na sociedade, Elza Marzullo imprime uma forma de vida para a mulher da
década de 50 que gira em torno do seu lar. Os textos de “Elegância e beleza” ensinam,
para as enunciatárias de O Cruzeiro, programas de uso que visam tornar a mulher bonita
e elegante e subliminarmente imprimem valores estéticos que, educando seu bom gosto
e comportamento social, permitem a mulher desenvolver um programa de base que tem
como objeto fim segurar o homem. Nos textos de “Lar, doce lar”, os dotes da dona de
casa são responsáveis pela construção de um lar feliz; nos textos de Elza Marzullo, são
as qualidades físicas da mulher que não devem deixar que a relação entre homem e
mulher seja morna ou malograda. Ela deve também ser bem sucedida e cordial,
conforme a classificação de Fontanille (2008, p.61) para as práticas das refeições,
ampliada por nós para a análise das práticas domésticas das matérias de “Lar, doce lar”.
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DA MULHER PARA A MULHER
Os temas tratados por Maria Teresa na matéria “Da mulher para a mulher”
circunscrevem-se ao comportamento da mulher enquanto parceira amorosa.
Desempenhando o papel temático de escritora, ela redige textos denominados crônicas
que são acompanhados de pequenos trechos de cartas de leitoras que ela responde
investida do papel temático de consultora amorosa.
No início dos anos 50, no texto “Antigamente não era assim” (MARIA
TERESA, 21/01/51, p. 108), a cronista condena a liberdade amorosa concedida aos
jovens. Segundo ela: “Isso não nos parece progresso, senão um declínio da inteligência,
um retorno do homem à sua animalidade primitiva.” A sociedade mudou, conclui Maria
Teresa, mas “A mulher pode se distrair, pode ser carinhosa, pode ser agradável sem
descer do pedestal que ela própria se construiu com o mérito de suas qualidades
pessoais.” Esse discurso fundamentado na moral vigente da época é reiterado em
diferentes textos em que a cronista reforça que a moça é inexperiente e, por isso, deve
ter uma liberdade vigiada. Sob os olhos da família, ela deve frequentar ambientes que
lhe proporcione realizar o sonho para o qual foi criada: encontrar o homem amado. Em
“Juventude e alegria” (MARIA TERESA, 04/02/56, p.57), a cronista discorre sobre o
meio termo que os pais devem encontrar para que a moça possa usufruir a liberdade
controlada:
Nem será interessante que lhe permitam completa liberdade, para que se
distraia, nem que a prendam dentro de casa - para que não seja como “as
outras”. [...] Muito bem que não lhe concedam excesso de liberdade: mas ao
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menos que lhe dêem liberdade relativa, que a assistam, que lhe proporcionem
ambiente alegre, que a acompanhem a lugares onde possa conviver com rapazes
porque é no meio de gente nova, da sua idade, que a moça se sente feliz. É nesse
ambiente que ela poderá escolher prazerosamente, sem quaisquer
constrangimentos, o rapaz com quem se casará - por amor, e não apenas para
fugir de restrições em que foi criada como acontece, tantas vezes.
O bom casamento constitui o ideal tanto da mulher quanto para o homem. Para
que eles consigam ter uma união perfeita, a mulher deve conhecer todas as práticas
semióticas do cotidiano do lar. Na crônica “Quem pensa não casa” (MARIA TERESA,
25/09/54, p. 81), a articulista contesta o provérbio popular com o qual intitula seu texto.
Para ela, o casamento é um ato racional porque “quem pensa bem, casa bem e quem
pensa mal, casa mal”. A escolha do homem deve recair sobre uma mulher figurativizada
como “o fiel da balança dos atos do homem”: aquela que introjetou as práticas
semióticas domésticas cujo papel é ancilar às atividades do marido, sabe desempenhar
as tarefas domésticas e zelar pelo emprego do marido. O trecho abaixo é exemplar para
se resgatar a forma de vida da esposa nos anos 50:
A esposa é a companheira inteligente e devotada e, sobretudo, amiga. Ela o
conhece de perto, adivinha quase seus pensamentos e ajuda-o de todos os
modos ao seu alcance. Ajuda-o não a ganhar dinheiro mas a gastá-lo com
sabedoria. “Economizar não é guardar dinheiro; é saber gastá-lo”. Ela
proporciona ao marido, dentro de casa, um lugar de conforto e refrigério que ele
procura avidamente, no fim do dia, para descanso. Orienta bem a economia
doméstica, zela pelas crianças, tem cuidado para que não perturbem o pai. [...]
Mas a natureza dotou a mulher de uma admirável intuição que, quando bem
aproveitada, pode operar milagres. Assim é que, por exemplo, ela pode ajudar
indiretamente o marido na própria carreira, inclusive fazendo relações sociais
com seus chefes. Pode estimulá-lo ou mesmo criticá-lo honesta e sinceramente
quando for o caso. Mesmo que o marido não aprecie a crítica, que será sempre
feita em particular, dentro em breve ele se habituará a ter na esposa uma espécie
de fiel da balança de seus atos que instintivamente será procurado toda vez que
lhe ocorrer alguma dúvida. Uma boa esposa é alegre, está sempre disposta é,
enfim, a melhor ajudadora do homem. (MARIA TERESA, 25/09/54, p. 81).
Exemplar é também o trecho da crônica “Mulheres mal-humoradas” (MARIA
TERESA, 16/10/54, p. 85) em que a cronista figurativiza o homem como um rei que
deve ser servido com prazer e alegria por toda a família. Nesse texto, também fica
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demarcado o papel de provedor do marido que passa o dia todo empertigado, comendo
mal, porque trabalha em prol da família. Vivendo nas agruras do ambiente exterior
conforme prescrevem as práticas semióticas vigentes para o varão, ele busca na casa um
lugar de refrigério e paz que deve ser construído pela esposa:
O lar, para o marido, é um lugar de refrigério, desde que esse lar lhe ofereça um
ambiente de paz e harmonia. Tendo que se desdobrar em mil ocupações de
responsabilidade que a vida atual exige de todo homem normalmente
ambicioso, que quer dar à família uma situação decente, o marido aspira pelo
fim do dia, quando a esposa e os filhos o receberão de braços abertos, num
ambiente onde ele será o “rei” a quem todos servirão com prazer, onde ficará à
vontade e livre do incômodos colarinhos. (MARIA TERESA, 16/10/54, p. 85).
A preservação do casamento é um tema constante nos textos de Maria Teresa. A
“união indissolúvel, abençoada por Deus” vê-se abalada por novas práticas semióticas,
como o divórcio já vigente em outros países4. Na crônica “Otimismo” (MARIA
TERESA, 30/10/54, p. 74), ela se pronuncia totalmente contra o divórcio e a favor de
uma educação que ensine que os parceiros têm de se amoldar para manterem a união,
mesmo que isso custe maior sacrifício, principalmente, por parte da mulher. O divórcio
provoca mudanças nas práticas semióticas, que envolvem a relação amorosa, e Maria
Teresa o condena, porque o casamento passa a ser encarado como uma experiência. Na
crônica “Evolução nos hábito femininos”, a articulista reconhece que as conquistas
femininas poderiam ter sido bem sucedidas se não fossem as atitudes levianas em
relação ao casamento:
Felizmente os hábitos evoluíram. E se nossa vitória hoje não é total é devido ao
extremo oposto em que caímos. Confunde-se amor com paixão. Fazem-se
casamentos apressados e, nos países divorcistas, o casamento já é quase uma
experiência: se não der certo haverá “chance” para uma nova tentativa. É
evidente que uma moça de boa formação moral não pode pensar no casamento
com tanta leviandade. Tem que escolher bem - para correr menos risco de errar.
(MARIA TERESA, 24/05/58, p 71).
4
No Brasil, o divórcio foi instituído pela Lei 6515/77, de autoria do senador Nelson Carneiro, a
08/06/1977.
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O esforço da mulher para manter o casamento não fica somente restrito ao
desempenho das práticas semióticas domésticas de bem servir o marido com um sorriso
nos lábios. Seu sacrifício é também relativo à prática amorosa: o marido ingrato que
trair a esposa deve ser perdoado. (MARIA TERESA, 12/02/55, p.65).
Os problemas nos relacionamentos amorosos são frequentemente explicados
pela cronista a partir de seus conhecimentos de Psicologia. No texto “Vida vazia”
(MARIA TERESA, 12/02/55, p. 65), a articulista narra a história de uma jovem que se
acha melhor, mais bonita do que as outras, mas não arruma namorado, por esse motivo,
não quer sair de casa. O seu comportamento recluso é explicado sob a ótica do discurso
científico: “E então uma lastimável psicose tomou conta da mocinha – que teria tudo
para ser feliz se tivesse se conformado, naturalmente, à ideia de que a vida não é feita só
de flores, que há espinhos no destino de todo mundo.”
Na resposta à carta de uma consulente que se denomina “infeliz”, entremeada
pelo discurso religioso e pelo da moral vigente, a conselheira se dirige a uma jovem que
errou, segundo ela, quando ainda era uma quase criança. No presente, ela ama um rapaz
e quer casar-se. Maria Teresa veementemente tenta trazê-la para o bom caminho do
casamento, desde que se arrependa perante Deus. O temor da moça pelo ato cometido é
fruto de um sentimento de culpa arraigado na tradição cristã que causa, segundo a
articulista, utilizando um termo da psicologia, uma depressão nervosa:
Está em paz com sua consciência porque é temente a Deus e arrependeu-se
sinceramente de ter procedido mal. É justo, que essa moça diga de si mesma que
“é preciso salvar a alma, renunciando a tudo, porque o corpo está perdido?”
Não! Há um exagero nisso, nascido de uma depressão nervosa. Pois, Deus, que
é o Supremo Juiz mas é, sobretudo, o Pai Amoroso, perdoa aos que se
arrependem, por que é que essa moça, que é como todos nós, um pobre ser
humano suscetível a imperfeições e fraquezas, é tão impiedosa no julgamento
que faz de si mesma? (MARIA TERESA, 07/01/56, p. 73).
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Nas cartas e crônicas, a conselheira discute os direitos e deveres da mulher
dentro da instituição casamento. Cabe ao homem prover a família e à mulher restringirse às tarefas caseiras porque
Mesmo quando, dominada pelo impulso do amor ela se dispõe a trabalhar para
ajudar o marido, intimamente não se sente cem por cento feliz e nada mais
deseja do que um dia ele possa fazer frente, sozinho, às despesas, para que ela
possa lhe prestar a verdadeira assistência para que foi talhada, desde o seu
nascimento. (MARIA TERESA, 18/02/56, p.97).
Nos anos 50, as mudanças científicas e tecnológicas afetam não só as formas de
vida da mulher casada que, tendo acesso aos modernos eletrodomésticos, têm mais
tempo para se dedicar à família, mas também as formas de vida da moça. Enquanto as
novas descobertas de eletrodomésticos restringem e confirmam o espaço do lar como o
lugar em que deve estar a dona de casa, outros desenvolvimentos tecnológicos, como o
carro, a motoneta, permitem à jovem o mais fácil deslocamento para fora do lar. O
espaço dos jovens é também ampliado com o maior desenvolvimento dos centros
urbanos.
A crônica “Adolescência” é um alerta para os pais de jovens ansiosos pela
liberdade e para os perigos das grandes cidades. Somente se instruindo, eles: “Poderão
aprender, com mais facilidade os defender dos riscos, sobretudo nas grandes cidades,
onde é difícil vigiá-los.” (MARIA TERESA,10/05/58, p. 88).
Em resposta a uma jovem, na carta sob o título “A ocasião faz o ladrão”, a
consultora euforiza o valor pragmático do automóvel enquanto meio de locomoção e
adverte à moça que ele pode levá-la longe demais:
Os automóveis são um excelente meio de condução. Mas às vezes levam a moça
longe demais. É preferível evitá-los pelo menos em passeios fora da cidade ou
em lugares desertos. A moça moderna tem muitas possibilidades para se
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distrair. É jovem. O mundo é seu. É preferível não correr para não cansar.
(MARIA TERESA, 24/05/58, p. 70).
Outra novidade americana que muda a forma de vida da mulher casada é a
propalação do conhecimento científico sobre o funcionamento reprodutivo de seu corpo.
A conselheira recorta da carta, intitulada “Curiosidade” (MARIA TERESA, 07/11/1959,
p. 88) parte do enunciado “Disseram-me que a mulher mesma pode saber...”, deixando
em suspense qual o objeto do saber que a consulente deseja entrar em conjunção. Na
resposta, a conselheira também não deixa muito claro de que assunto se trata. Utilizando
um circunlóquio, ela responde sinteticamente a indagação da moça e admirada sobre sua
curiosidade a respeito de um assunto tabu para quem é solteira e que, portanto, não deve
fazer parte de seu universo de conhecimento, propõe-lhe uma questão: “Claro que sim,
uma vez que essas leis obedecem a um ciclo. Sua consulta, porém, é mais de natureza
médica. Que lhe pode interessar o assunto, particularmente, se você não é casada?”
As matérias de “Da mulher para a mulher” constroem um simulacro de mulher
casada cujo papel temático dever ser desempenho no espaço do lar. O casamento, nos
textos de Maria Teresa da década de 50, é sinônimo de estabilidade e de segurança para
a mulher que em contrapartida deve obediência total ao marido, segundo os preceitos da
sociedade, da lei e da Igreja. Além de ser uma mulher de fibra que tudo faz para
preservar o seu casamento como uma união eterna, ela deve ser a parceira que
possibilita ao marido todas as condições para que ele possa se realizar
profissionalmente. Segundo os discursos religiosos e legais, invocados por Maria
Teresa, o mundo da mulher casada consiste em aprender e desenvolver práticas
semióticas domésticas que possibilitem a felicidade e bem-estar do marido e dos filhos.
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Compete, portanto, à mulher realizar-se nessa tarefa transmitida de mãe para filha como
uma herança, embora, nessa década facilitada pelos novos aparelhos eletrodomésticos.
Se as novas tecnologias permitem um maior tempo livre para a dona de casa no
espaço da casa, para as jovens elas vão permitir um limiar de liberdade que começa no
espaço dos arredores ou prolongamentos da casa, figurativizados nos textos por festas e
cinemas em que ela pode ir sozinha com o namorado ou acompanhada de amigos. São
sempre espaços públicos que a jovem da década de 50 deve frequentar porque, segundo
Maria Teresa, ela é um ser inexperiente e ansioso por liberdade. Como seu espaço
também foi ampliado para lugares mais longínquos pelas novas conquistas tecnológicas,
como o carro e a motoneta, ela deve ter uma boa educação e deve ser vigiada pelos pais,
mas de uma forma que permita sua saída do lar para um espaço perto de casa e seguro
onde possa encontrar o marido sonhado.
Os textos de Maria Teresa de “Da mulher para mulher” ensinam a jovem a frear
sua ânsia de liberdade para não se arrepender no futuro, e a se constituir em uma mulher
de moral ilibada que se tornará uma esposa digna do seu futuro marido, uma mulher
distinta de que seu marido possa se orgulhar. As práticas semióticas configuradas nessas
matérias constroem uma forma de vida em que a moral da mulher se constitui como o
esteio do lar, que é seu habitat natural, que, sempre em ordem, não somente quanto à
sua organização doméstica, prescrita em “Lar, doce lar”, mas também quanto à
observância dos ditames dos bons costumes, possibilitará o desempenho de um percurso
de uso com a finalidade de constituir um espaço cordial cujo fim último é ter uma
família feliz e um marido bem sucedido.
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DISCURSOS FUNDADORES
Nos anos 50, as novas conquistas tecnológicas, como o carro e a motoneta,
permitem aos jovens mais liberdade, os eletrodomésticos concedem à mulher casada
mais tempo livre, os novos tratamentos de beleza ensinam à mulher ser mais bela, no
recôndito do lar. A mulher adquire mais conhecimento de como gerir melhor a
economia do lar e renova seu conhecimento sobre as propriedades dos alimentos,
podendo escolher melhor as receitas caseiras que prepara para a família. É uma nova
forma de vida mais moderna e prática à moda americana que se funda no discurso
tecnológico-científico. Mas algumas práticas semióticas adotadas por essa nova forma
de vida que abalam o crer da tradição da religião Católica Apostólica Romana e seus
dogmas, como a fundamentada no saber científico da medicina, que permite à mulher
conhecer melhor seu corpo e poder prevenir-se dos incômodos de uma gravidez
indesejada, ou a amparada na legislação de países divorcistas, abalam a moral vigente e
a união sagrada do casamento. Contrária a essas novas práticas semióticas que
desestabilizam a família, a cronista de “Da mulher para a mulher”, lança mão
frequentemente do discurso científico da psicologia, valendo-se de conceitos como
complexo, trauma, para melhor entender a alma feminina e explicar os desvios
comportamentais da mulher frente a práticas semióticas já solidificadas na moral
vigente ou na religiosa. “Lar, doce lar” e “Elegância e beleza” também têm como meta a
preservação da família, para tanto também cuidam da formação da jovem e da mulher,
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ensinando a elas como ser boa dona de casa sem deixar, no entanto, de cuidar da sua
aparência. A seção “Para a mulher” assemelha-se a uma escola para a mulher, que, por
ser considerada pelas articulistas um ser inexperiente, precisa ser acompanhada,
aconselhada, educada e até mesmo freada em sua índole feminina. Dividindo-se em três
matérias “Lar, doce lar”, Elegância e beleza”, “Da mulher para a mulher”, as articulistas
orientam em seus textos o fazer, o sentir e o saber: 1) da dona de casa que deve ser boa
mãe, exímia esposa; 2) da dama da sociedade, cujos predicados elegância e beleza
constituem-se em atrativos para fisgar o homem; 3) da companheira distinta e digna do
marido. Esses papéis temáticos condensam práticas semióticas próprias da mulher da
década de 50, ensinadas e referendadas semanalmente pelas articulistas nas suas
matérias publicadas na revista O Cruzeiro.
Na seção “Para a mulher”, os diferentes enunciadores das matérias, Helena
Sangirardi e Thereza da Paula Penna, Elza Marzullo, Maria Teresa, compartilham da
mesma crença: a mulher deve ser formada para ser uma bela e digna companheira,
exímia esposa e mãe. Para a formação desse simulacro de mulher desenhado pelas
articulistas concorrem três discursos: o da religião que controlando emoções preserva a
jovem como casta, o do estado que delibera que a esposa deve obediência ao marido e o
da sociedade que cobra da mulher além da beleza e elegância um comportamento
distinto e digno. A prática desses discursos impõe a mulher da década de 50 uma forma
de vida controlada pelas leis de Deus e dos homens e espelha os valores do sistema
patriarcal ainda vigente na classe média emergente. As formas de vida recomendadas
pelas articulistas amparam-se na moral cristã, cujo maior bem da jovem é a castidade e
da mulher servir à família e no Código Civil Brasileiro, de 1917, que vigorava na época,
e determinava que as mulheres casadas “são incapazes, relativamente, a certos atos ou à
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maneira de o exercer”, colocando-a no mesmo nível do menor de idade. A mesma lei,
atribuía ao marido a chefia da “sociedade conjugal”, conferindo-lhe a representação
legal da família, a administração dos bens comuns e particulares da mulher, conforme o
regime matrimonial adotado ou o pacto antenupcial, o direito de fixar e mudar o
domicílio da família, o direito de autorizar a profissão da mulher e sua residência fora
do teto conjugal. Cabia-lhe também, segundo a mesma legislação, “prover a
manutenção da família”. Enfim ser o que se denominava na época “o cabeça da
família”.
O discurso religioso da Igreja Católica Apostólica Romana e o Código Civil são
da ordem do deôntico e descrevem as práticas semióticas possíveis e recriminam as
impossíveis, imputando senso de responsabilidade ao homem e a mulher. Segundo
Zilberberg (2008, p.5), há uma ética da responsabilidade, práticas semióticas que
determinam o que é ser responsável. A responsabilidade assumida, segundo Zilberberg
(2008, p.16) humaniza, “personaliza”, enquanto a não responsabilidade desumaniza,
fazendo do sujeito, uma simples peça de uma engrenagem, um não sujeito.
Os textos de “Para a mulher” se fundam em uma forma de vida patriarcal, onde
o espaço e a responsabilidade do homem e da mulher são bem definidos e delimitados:
o habitat da mulher é o lar e ela é o esteio da família; como “cabeça do casal” cabe ao
homem gerir os imprevistos do mundo. Esses textos, ainda na década de 50, buscam
incutir nas moças e esposas inexperientes, não-sujeitos, porque conduzidas pela índole
feminina, práticas semióticas do século XIX que possam torná-las um sujeito
competente para desempenhar com responsabilidade os papéis temáticos que lhe cabe
no espaço do “Lar, doce lar”.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FONTANILLE, J. Práticas semióticas: imanência e pertinência, eficiência e otimização. In:
DINIZ, M. L. V. P.; PORTELA, J. C. (Orgs.). Semiótica e Mídia: textos, práticas,
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ZILBERBERG, Claude. De la responsabilité. Nouveaux Actes Sémiotiques. Disponível
em: http://revues.unilim.fr/nas/documente.php?id=1760, consultado a 09/07/2008.
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