Documento CCFR preparatório para a 2.ª Mesa-Redonda

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Documento CCFR preparatório para a 2.ª Mesa-Redonda
CÂMARA PÚBLICA DA FEDERAÇÃO RUSSA
PAPEL DO BRIC NA CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA ORDEM
ECONÔMICA E NA CRIAÇÃO DE MECANISMOS EFICIENTES DE
REGULAÇÃO GLOBAL
EVOLUÇÃO DAS TAREFAS PRIORITÁRIAS DOS ESTADOS MEMBROS
Relatório Preparado para a Discussão da Segunda Mesa Redonda do
Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Brasil e da Câmara
Pública da Federação Russa
Professor Iosif Diskin
Brasil, 18-19 de maio de 2010
Introdução
Nos últimos anos, os líderes mundiais e as posições dos
especialistas convergiram para um consenso sobre o aumento da influência
global dos países do BRIC. A palavra ganhou corpo. Aquilo que, de início, era
uma sigla contida no conhecido relatório do banco Goldman Sachs
transformou-se num grupo de países unidos por interesses comuns e por
mecanismos institucionalizados recém-criados. Recentemente, os países do
BRIC criaram um sistema de consultas de múltiplas etapas, incluindo as
cúpulas integradas por seus respectivos chefes de estado. Ficou clara a
tendência de nossos países de desenvolver ideias comuns nas principais
cúpulas internacionais.
Os países que integram o BRIC caracterizam-se por alguns traços
comuns que determinam, essencialmente, sua influência sobre o
desenvolvimento internacional global:
•
Estão entre as dez maiores economias do mundo: China – 3º lugar;
Índia – 5º lugar; Rússia – 8º lugar, e Brasil – 10º lugar
(CIAWorldFactBook);
•
Durante a década anterior, a dinâmica do desenvolvimento econômico
dos países do BRIC tornou-se um fator importante que influencia o
caráter comum do desenvolvimento global;
•
Cada país do BRIC é o líder em sua região: Brasil, na América Latina;
Rússia, na Eurásia Central; Índia, na Ásia do Sul, e China, no Sudeste
Asiático;
•
Todos os países do BRIC definem e alcançam uma meta de aumentar
a contribuição de suas indústrias de alta tecnologia para seu
desenvolvimento econômico;
•
Os países do BRIC têm um interesse comum na correção do sistema
financeiro global.
A crise tem introduzido mudanças significativas tanto na economia
global quanto na posição de cada país do BRIC. Embora a China e a Índia
tenham conseguido manter elevadas taxas de crescimento, o Brasil reduziu
drasticamente seu desenvolvimento e a Rússia passou por um declínio
significativo.
Obviamente, a crise revelou as contradições fundamentais de
natureza econômica – e, portanto, político-econômica – do desenvolvimento
global que vinham sendo plasmadas durante as décadas anteriores. A
compreensão do escopo das mudanças globais e de suas tendências está
numa fase muito inicial; a atenção de políticos e analistas está centrada na
avaliação do impacto da crise atual e na necessidade de se desenvolver
medidas para superar suas consequências. Mas poderosas forças no Brasil e
na Rússia não podem esperar até que alguém faça isso em nosso lugar. A
resposta de outros pode ser perigosa.
O problema da falta de um posicionamento político-econômico global
da Rússia, bem como do Brasil, em termos conceituais e instrumentais, é
bastante
agudo
desenvolvimento
agora.
de
A
falta
de
entendimentos
tal
sobre
posicionamento
questões
dificulta
o
relacionadas
a
tendências-chave da política externa de nossos países.
Os países do BRIC terão de enfrentar uma nova fase marcada pela
formação de uma nova economia global pós-crise e, consequentemente, pela
abertura de novas possibilidades para os BRIC no que se refere à criação de
uma nova ordem econômica e de um sistema global de regulação. Além
disso, todas essas condições externas alteradas terão grande influência
sobre a nova agenda de cada país do grupo.
A fim de analisar essa gama de problemas, deve-se ter em mente
aquelas tendências de desenvolvimento global que se formaram durante os
anos anteriores e que influenciam as condições externas do desenvolvimento
dos países do BRIC.
O objetivo deste relatório é iniciar uma discussão pública entre os
intelectuais de nossos países, e entre os BRIC em geral, sobre as novas
configurações pós-crise dos interesses geopolíticos e político-econômicos e
sobre a interrelação das tarefas de desenvolvimento econômico nacional no
contexto de condições externas alteradas.
1. CRISE E TENDÊNCIAS GLOBAIS
A crise intensificou a discussão global tanto sobre a natureza do
desenvolvimento econômico global moderno quanto sobre várias deficiências
de tal desenvolvimento, incluindo a própria crise. Durante essa discussão, a
predominância da corrente teórica macroeconômica foi quebrada, pois essa
se revelou incapaz não apenas de prever a crise em tempo hábil, mas
também de fazer recomendações adequadas para superá-la. A discussão foi
retomada devido, principalmente, ao retorno às ideias de Keynes, de Marx e
dos críticos da globalização moderna – algo que, até há pouco tempo, era
considerado evidência de arcaísmo, educação precária ou radicalismo
politicamente incorreto.
Como revela a análise, a discussão centrou-se nos problemas
relacionados com as manifestações mais sérias da crise: o resgate do
sistema financeiro e bancário e a superação do declínio econômico. A
urgência conferida às questões no âmbito dessa discussão foi determinada,
principalmente, pela percepção de seu nível de influência sobre os esforços
de superação da crise. Pode-se notar que a crise pouco tem facilitado as
discussões de problemas gerais, sistêmicos, embora afirmações como “o
sistema deve ser reformado” sejam ouvidas em toda parte. As discussões
mais aprofundadas desses problemas têm sido feitas por aqueles que, já
antes da crise, haviam se especializado nessas questões. Infelizmente, devese mencionar que a crise, com seus impactos dramáticos e seu novo
empirismo, não introduziu nenhuma correção nas ideias de tais autores.
Há uma contradição notável entre, por um lado, a percepção da
necessidade de fazer algumas mudanças no funcionamento da
economia mundial, em sua base política e econômica, e a discussão
sobre a natureza da crise, por outro.
Durante
a
discussão,
ainda
não
se
expressaram
ideias
revolucionárias sobre a natureza da crise atual. Ao mesmo tempo, pode-se
supor que o entendimento de sua natureza poderia constituir um bom impulso
para estimular grandes inovações teóricas (como ocorreu na segunda
metade do século XIX, com Karl Marx, e na década de 1930, com John
Maynard Keynes). Provavelmente, a reflexão sobre o que está acontecendo e
a superação da rejeição pós-moderna das “grandes teorias” requerem algum
tempo.
Mas,
infelizmente,
não
podemos
esperar.
Existe
extrema
necessidade de alguns pressupostos iniciais para que se possa desenvolver
uma política concreta. Uma vez que se disponha de uma teoria poderosa,
seremos capazes de ajustar a posição. Mas, por enquanto, temos que nos
satisfazer com o ecletismo aceitável. Na realidade, a política econômica
democrática é necessária exatamente para evitar que nos tornemos reféns
da “única teoria correta”, seja o marxismo primitivo ou o liberalismo
messiânico. Uma análise minuciosa das práticas e um feedback eficaz, no
âmbito de um sistema político democrático, não são alternativas menos
confiáveis do que uma boa teoria. É preferível contar com elas.
Uma hipótese eclética correspondente pode basear-se na análise dos
conceitos mais influentes. Chama a atenção o fato de que nenhum dentre os
teoristas mais importantes reconheceu seus erros durante a crise. Isso não
deve servir como pretexto para vaias, especulações e ceticismo teórico; ao
contrário, deve ser um incentivo para a conceituação. Tal validação empírica
de ideias teóricas antigas é, frequentemente, um sinal da possibilidade de
que outros conceitos estejam sendo elaborados na periferia da discussão.
Isso representa a possibilidade de integração de elementos locais numa
estrutura mais geral, embora ainda não haja muita clareza sobre qual seja
esse conceito geral.
Devido à falta de um conceito teórico integrado, uma hipótese inicial
poderia considerar a existência de uma estrutura de níveis múltiplos que
cubra as principais tendências do desenvolvimento político e econômico.
HIPÓTESE:
O
MUNDO
ESTÁ
ENFRENTANDO
SIMULTANEAMENTE QUATRO DIFERENTES CRISES. Cada uma dessas
crises tem um ciclo próprio de duração e requer métodos próprios para
sua superação.
A primeira crise: a crise gerada pelo modelo unipolar de
globalização,
que
está
civilizacionais e nacionais.
em
contradição
com
várias
tendências
Trata-se, principalmente, da transposição, para o nível nacional, dos
padrões institucionais baseados nos valores primitivos do liberalismo. Este
modelo de globalização é como um toque fúnebre para o messianismo
liberal. Esse liberalismo está em conflito com valores e tradições nacionais,
diminui a eficiência das instituições correspondentes e perturba o status dos
valores liberais em várias partes do mundo.
A crise desse modelo de globalização é óbvia. Ela se manifesta em
críticas relativas ao fracasso da integração de vários estados no processo de
globalização, sendo que tal colapso tem inúmeras consequências. Os sinais
da crise também incluem o fato de que os mais bem sucedidos projetos
nacionais de desenvolvimento foram justamente os que se desviaram dos
princípios preconizados por esse modelo.
Características da crise:
•
Reconhecimento, em termos práticos (com desaprovação ideológica
formal) da existência de uma pluralidade de modelos normativos que
regem
as
instituições
políticas
e
econômicas,
incluindo
o
reconhecimento da eficiência não apenas do modelo chinês, mas
também de outros modelos autoritários de mercado na Ásia Oriental.
Além disso, os especialistas estão começando a dar mais atenção às
peculiaridades institucionais dos países com taxas elevadas de
crescimento econômico, como Brasil e Rússia, por exemplo;
•
Transição para uma globalização sociocultural baseada em múltiplas
civilizações (a globalização com uma “cara asiática”, na expressão de
analistas americanos, é uma importante tendência dessa transição);
•
Enfraquecimento do papel dos Estados Unidos como o principal centro
financeiro (em conjunto, as bolsas de valores de Londres e Frankfurt
geram mais receitas que a de Nova York e a NASDAQ). Não faz muito
tempo, as instituições financeiras norte-americanas (principalmente os
bancos de investimento) eram as únicas a definir os padrões
institucionais em todo o mundo;
•
Surgimento de novos centros de força regionais (por exemplo, o
Iraque) cuja supressão por meios militares causaria um sério dano aos
próprios
Estados
Unidos.
Hoje
em
dia,
todos
os
principais
protagonistas globais e regionais, com exceção do Brasil, possuem
armas nucleares.
Parece que, para superar esta crise, bastaria corrigir o atual modelo de
globalização, sem rejeitar completamente a globalização como tal. A
globalização trouxe benefícios para bilhões de pessoas. Com frequência,
rejeitá-la significa subdesenvolvimento, pobreza e fome em potencial. A
questão é: como, e em que direção, deve o modelo de globalização ser
corrigido?
Essa não é apenas uma questão abstrata. A resposta influenciará,
marcantemente,
as
tendências
de
desenvolvimento
dos
sistemas
institucionais nacionais, que buscarão utilizar, na maior medida possível, o
potencial da globalização para resolver os problemas do desenvolvimento
econômico.
Ao definir os rumos da correção do modelo, deve-se ter em mente
que as elites mundiais que concentram a influência econômica, política e
intelectual são atraídas, em primeiro lugar, pelas tendências liberais, no
sentido amplo e moderno do termo. Por essa razão, o quadro geral do
sistema econômico-financeiro mundial só pode se basear agora em valores
liberais correspondentes, que incluem diversos elementos conservadores e
socialistas. Presume-se também que a interpretação de tais valores, no que
se refere aos objetivos de correção do modelo de globalização, deve, sem
dúvida, ser revista em termos de uma maior assertividade ética. A evidência
de tal perspectiva é o óbvio reforço do modelo ético, que se manifesta tanto
nas ideias dos chefes dos principais países ocidentais quanto nas dos
‘masterminds’.
Conforme evidenciam a teoria e a prática, nas instituições nacionais
eficientes o controle real das atividades econômicas e sociais deve ser
exercido por valores e normas. O modelo corrigido deverá reconhecer
claramente a admissibilidade, em seu contexto, de uma pluralidade de
modelos nacionais.
O principal objetivo da correção do modelo de globalização é a
criação de mecanismos institucionais para a integração eficaz de
instituições globais e nacionais baseadas nesses múltiplos valores.
Essa tarefa exigirá a análise das práticas de sistemas híbridos que garantam
a combinação eficiente das novas normas globais, de um lado, e dos
objetivos de desenvolvimento específicos de cada nação, de outro. Isso
significa que os marcos de referência nacionais para a correção do modelo
de globalização podem ser desenvolvidos por meio do claro estabelecimento
instrumental de tarefas concretas de desenvolvimento, enfatizando as
peculiaridades das condições de desenvolvimento econômico e social
correspondentes e suas características históricas e nacionais.
Um importante fator adicional para o estabelecimento desses marcos
de referência consiste em levar em conta os requisitos relevantes dos
parceiros mais próximos de cada um dos membros do BRIC em geral.
Presume-se que o desenvolvimento de marcos de referência para a correção
do modelo de globalização deva ser o tema da posição comum a ser
alcançada pelos países do BRIC, com a participação de outros aliados mais
próximos. Este tópico, por exemplo, pode ser o tema de um seminário
internacional em separado, com participação de especialistas dos
países do BRIC e organizado conjuntamente. A tarefa principal desse
seminário será analisar a especificidade das instituições nacionais que sejam
compatíveis com o funcionamento eficiente da economia global.
A segunda crise: substituição de um duradouro “período
Kondratiev”, surgimento de um novo ciclo do processo.
O destacado cientista russo N.D. Kondratiev desenvolveu a teoria da
evolução cíclica do desenvolvimento econômico mundial: a cada meio século,
a economia mundial tem períodos de crescimento e declínio que formam um
único grande ciclo. A fase de crescimento pode incluir declínios e mesmo
crises importantes, mas duram pouco tempo, e a perspectiva de longo prazo
é caracterizada pelo crescimento econômico.
Tem-se como suposto que, no momento, estamos assistindo à
conclusão do ciclo-K baseado nas tecnologias de comunicação e informação
e na produção em massa de carros e artigos associados. A evidência desse
fato está no acentuado declínio da lucratividade de corporações relacionadas
a esses produtos. Ao mesmo tempo, estamos diante de uma nova onda cujos
principais condutores são as tecnologias orientadas para a melhoria da saúde
e o aumento da longevidade. Já é possível visualizar as perspectivas de se
aumentar a longevidade até os 130 anos.
Além disso, existem possibilidades de mudanças fundamentais de
processos nas áreas de eficiência energética e de criação de materiais com
características totalmente novas, para uso em diversas indústrias. Uma
evidência parcial da nova onda é o chamado renascimento nuclear, bem
como o desenvolvimento de tecnologias que tornarão a economia mundial
menos dependente da disponibilidade de hidrocarbonetos.
A tese do surgimento de um novo ciclo de processos exige uma
estratégia econômica totalmente nova relacionada à busca de nichos
tecnológicos e de negócios que garantam margens elevadas. Essa ocupação
de setores e nichos com margens elevadas cria possibilidades para a
elevação dos padrões de vida da população, para aumentos nos salários dos
que participam dos correspondentes projetos hi-tech e para a implementação
de novos projetos no âmbito da corrida tecnológica que terá lugar na primeira
terça parte do século XXI.
Esta tese representa um desafio para as economias dos países
membros do BRIC no que se refere à sua integração nos futuros projetos
tecnológicos. Supõe-se que a resposta de nossos países a esse desafio
poderia ser a seguinte:
•
Organização de equipes de especialistas para análise conjunta de
perspectivas de projetos comerciais e utilização dos resultados de
pesquisas fundamentais.
•
Criação de centros de pesquisa conjunta nas áreas relacionadas com
as prioridades do novo ciclo de processo.
•
Desenvolvimento de projetos tecnológicos conjuntos que exijam
elevados gastos financeiros e sofisticada cooperação nas fases de
pesquisa e produção. Um exemplo disso poderia ser um projeto
conjunto
Rússia-Brasil-Índia
para
o
desenvolvimento
de
um
bombardeiro estratégico de primeira geração.
Ao analisar nossa posição atual com relação ao ciclo-K, deve-se ter
em conta que as ondas modernas estão longe de ser tão duradouras como
anteriormente. A tendência à redução do comprimento da onda pode ser
explicada pelos seguintes fatores:
•
A ciência fundamental moderna tornou-se um fator determinante da
criação de tecnologias básicas e de novos produtos. Ao mesmo
tempo, os pesquisadores e os fomentadores têm sua atenção cada
vez mais voltada para o aproveitamento do potencial comercial de tais
pesquisas;
•
O ciclo de processo para a criação de novos produtos e sua introdução
no mercado reduziu-se significativamente;
•
O surgimento de grande número de empresários (mencionados por J.
Schumpeter) que desenvolvem novos produtos e tecnologias e criam
uma concorrência global, reduzindo as margens inicialmente altas dos
inovadores monopolistas e, desse modo, criando condições para que o
transcurso da onda seja mais rápido.
Em certo sentido, pode-se ser surpreendido não por uma tendência
de redução da onda, mas, ao contrário, por um processo relativamente lento
de redução.
Regulação neo-keynesiana de ondas-K. Supõe-se que a redução
da onda-K tenha resultado no fato de que seu comprimento é hoje
comparável à duração do ciclo tecnológico. Se os fatores acima se
fortalecerem, o comprimento da próxima onda de longa duração - que já está
reduzido a 22-25 anos - será comparável ao ciclo tecnológico-econômico
completo, ou seja, ao período de desenvolvimento, produção, organização,
introdução no mercado e reembolso total de um produto de tecnologia
sofisticada.
Por exemplo, no caso da nova geração de aeronaves, o ciclo
tecnológico-econômico é quase desse comprimento, e nele se concentram
gastos de centenas de bilhões de dólares. Uma situação semelhante pode
ser observada com as tecnologias de base na área de energia (por exemplo,
os novos reatores nucleares “breeders”).
Se esta hipótese for verdadeira, terá consequências drásticas para o
progresso tecnológico. Assim, a probabilidade de se obter retornos com
novas tecnologias de ponta reduz-se significativamente. É o caso, por
exemplo, dos prejuízos decorrentes de novos projetos de optical carriers. Em
consequência de tal situação, os investidores privados sairão do setor de
tecnologias de base e se concentrarão em projetos locais e nichos menos
dispendiosos.
Tendo em conta o drástico aumento do papel do setor privado no
financiamento de inovações, isso leva não apenas à recessão, mas também
à subutilização do potencial científico e técnico para a solução de problemas
sociais
e
econômicos
importantes,
e
até
mesmo
críticos
para
o
desenvolvimento global. Além disso, pode levar a uma redução ainda maior
da onda-K, à diminuição das possibilidades de reembolso total do projeto e,
assim, à fuga em massa do setor privado do mercado de tecnologias.
A compreensão desta nova contradição resulta num desafio: renderse à ameaça de estagnação tecnológica ou utilizar as possibilidades do
estado neo-keynesiano de exercer o controle anticíclico com base num
novo ciclo: ondas-K. O objetivo é prover os fomentadores com tecnologias
de base caracterizadas por períodos mais longos de recuperação do
investimento e por usos mais longos dos resultados comerciais derivados de
nossos avanços.
Este problema é bastante claro no caso do desenvolvimento de
novos medicamentos em consequência de avanços fundamentais na biologia
e na engenharia genética, com despesas que chegam a bilhões e até a
dezenas de bilhões de dólares. Os prazos de validade das patentes desses
medicamentos que às vezes curam doenças até então incuráveis nem
sempre asseguram o reembolso dos gastos. Na realidade, os genéricos
lançados no mercado quando as patentes expiram são mais baratos, sua
acessibilidade é maior e, portanto, curam maior número de pessoas. Mas não
haveria genéricos sem tecnologias de ponta.
Sem a menor dúvida, a redução dos prazos de validade das patentes
acelera a expansão das curas resultantes de medicamentos, pois esses
ficam ao alcance de um grande número de pessoas que hoje não podem
pagar seus altos preços. Mas, ao mesmo tempo, isso freia o impulso para o
desenvolvimento de novos métodos de tratamento que libertarão muitas
pessoas de doenças e sofrimentos no futuro. Aqui, pode-se ver uma
contradição clássica entre consumo presente e consumo futuro, e sua
resolução requer que se busque um novo equilíbrio de interesses.
A necessidade de controle anticíclico relacionado às ondas-K
torna-se ainda mais importante para as economias orientadas para o
uso de tecnologias baseadas nos avanços da ciência fundamental.
Esses países são, em primeiro lugar, os Estados Unidos, principais
fornecedores dessas tecnologias para o mercado mundial atual; a União
Europeia, que propôs o programa de Lisboa para fazer da tecnologia o
principal propulsor da economia do continente; a Rússia, que ainda preserva
seu potencial na área de pesquisa fundamental, e o Brasil, que entra
ativamente na criação de tecnologias de base inovadoras.
O interesse por um novo tipo de regulação anticíclica global é
significativamente menor entre aquelas economias voltadas para importação,
e não para a liderança tecnológica. É bastante óbvio que esses países não
incorrem em nenhuma despesa com pesquisa fundamental nem com o
desenvolvimento de tecnologias básicas, e, no melhor dos casos, adquirem
dos inovadores o direito do uso da propriedade intelectual.
Mais
frequentemente,
essas
economias
copiam
os
produtos
inovadores e fabricam bens pirateados sem indenizar os gastos realizados
pelas economias inovadoras (por mais significativo que seja, a economia
chinesa não é o único exemplo disso). Por outro lado, isso significa que, com
frequência crescente, as economias inovadoras agem como doadoras para
as economias que tomam esses “empréstimos”. A questão de se essas
doações são um tipo de compensação por antigos erros dos centros da
globalização provavelmente precisa ser levada em conta, mas não elimina
um problema assim tão grave.
Devido ao caráter global do problema em questão, sua resolução
deve envolver as instituições que assumiram a responsabilidade pelo
desenvolvimento econômico global: desenvolvimento de princípios
políticos e econômicos – ampliação do G-8, com participação de China,
Índia e Brasil (i.e., G8+3). Tal decisão conferirá maior peso às
recomendações para a reforma desse grupo, de um lado, e permitirá que se
leve em conta a crescente importância dos estados membros do BRIC, de
outro. Modelos específicos e recomendações podem ser desenvolvidos
pelo Banco Mundial.
Levando em conta o referido acima, as agendas nacionais precisam
escolher entre os que aderem à economia inovadora e os que se opõem a
ela, preferindo tomar emprestado. Ao mesmo tempo, é bastante fácil imaginar
que a estrutura dos que aderirem à regulação de ondas-K anticíclicas e dos
que se opuserem a ela irá mudar. Ela será influenciada, por exemplo, pelo
processo de transição das economias da China, Índia e Brasil em direção ao
modelo de desenvolvimento baseado na inovação. Ficará totalmente claro
que o reconhecimento da importância de novas tecnologias de ponta e de
produtos exerce influência sobre o desenvolvimento social e econômico
global.
Supõe-se que o problema real atual consista na criação de
mecanismos econômicos para a regulação do desenvolvimento global e
nacional baseado em inovações, garantindo o equilíbrio de interesses tanto
dos condutores de tal desenvolvimento quanto das economias que recorrem
predominantemente a empréstimos. É aconselhável recomendar aos
executivos russos e brasileiros que formem um painel de especialistas
para preparar um relatório contendo os conceitos iniciais relativos ao
problema em questão, a fim de que tal relatório possa servir de base
para discussões no G8+3.
A terceira crise é a crise do sistema financeiro global, iniciada
pela crise institucional do capitalismo e pela política egoísta dos
Estados Unidos.
Teoricamente, tal como fazem muitos especialistas, devemos levar
em consideração duas crises distintas: a do sistema financeiro mundial e a do
sistema financeiro americano.
Há sérias razões para tal distinção. A crise financeira americana foi
causada pela elevada tendência de consumo atual da população do país e
por um nível extremamente baixo de poupança. Existe um consenso entre a
classe política americana: “o padrão de vida não se encontra em discussão”.
Em grande medida, isso leva à formação de três grandes déficits:
orçamentário, comercial e de pagamentos. Assim, o déficit orçamentário
alcançou o nível sem precedentes para um período não militar: nove por
cento do PIB.
A dívida nacional superou, em muito, o nível “seguro”, e o serviço da
dívida só não conduz à catástrofe orçamentária devido a uma taxa de
refinanciamento extremamente baixa. Esse refinanciamento da dívida só é
possível caso se mantenha o fluxo de investimentos externos, e isso, por sua
vez, só é possível caso se mantenha a confiança no dólar e na economia
americana em geral.
O sistema financeiro americano transformou-se num gigantesco
“sorvedouro”, absorvendo os fundos acumulados pelos países exportadores
líquidos, basicamente pela China e pelo Japão. Esse sistema contamina a
economia global com muitas doenças institucionais causadas pelas
condições vigentes na economia nacional. Assim, a mitologia da “maravilha
americana” gerou os padrões de uma corrida em busca do sucesso
financeiro, com milhões e bilhões de dólares ganhos com alta tecnologia,
Hollywood e Wall Street, bolsas de valores, bancos de investimento e fundos
hedge.
Essa corrida influenciou os negócios: a redução dos limites de risco
gerou manipulações contábeis, projetos de investimento “personalizados” e
avaliações também “personalizadas”. Os mercados financeiros, dominados
por especulações sobre derivativos e futuros, perderam o contato com a
economia real e geraram um “capitalismo de cassino” de âmbito global.
Ainda assim, o tamanho da economia americana e sua escala de
influência no sistema financeiro mundial requerem que se veja a crise de seu
sistema financeiro como inseparável da crise financeira global.
O caráter institucional da crise global é universalmente reconhecido
hoje, pois foi gerada não apenas pelos problemas financeiros dos Estados
Unidos, mas também pelo fato de que esse país estabeleceu exemplos
institucionais para o sistema financeiro global. Nesse sentido, a crise
financeira global é filha da crise da globalização examinada acima. A
influência da globalização sobre a destruição de negócios teve duas faces.
As empresas líderes mundiais, de acordo com uma série de precedentes
declarados, adotaram as práticas empresariais “do terceiro mundo”, que
antes eram criticadas por contrariar os padrões corporativos do mundo
desenvolvido. As confissões da HP e da Daimler sobre o uso ativo de
transações de corrupção nos países em desenvolvimento foi um claro
exemplo de tal prática duvidosa.
O sistema financeiro global emancipou-se das funções de servir à
reprodução de bens e serviços e voltou-se para si mesmo, regulado por seus
próprios e bastante específicos interesses e mecanismos. A escala e a
velocidade dos fluxos transnacionais e sua influência sobre os destinos de
países e povos é tão forte, que foram transformados em fator multiplicador do
módulo de flutuação cíclica. Em muitos casos, o resultado final foi o colapso
das economias nacionais.
A instabilidade dos sistemas financeiros global e americano e sua
alta vulnerabilidade ao processo de ataques especulativos levaram a
economia global ao desastre final e motivaram muitos líderes mundiais a
investir grande esforço político para reformar o sistema financeiro global.
Aqueles
gastos
foram
compensados
pelas
vantagens
do
crescimento. O sistema financeiro distorcido que existe hoje, com suas
motivações internas especulativas, sempre buscará indícios de “bolhas” e as
ampliará até que alcancem dimensões superlativas. O caráter de sua ação
chegou a tal ponto, quando os prejuízos socioeconômicos do “capitalismo de
cassino” se tornaram descomunais, que a comunidade internacional passou a
ter dúvidas sobre as vantagens fundamentais da economia de mercado como
tal.
A ampla compreensão do caráter institucional da crise financeira
global refletiu-se na agenda do G-20, nas declarações de muitos líderes
mundiais que exigiram a criação de um mecanismo de regulação do sistema
financeiro mundial, nas ofertas do Presidente Barack Obama para reformar o
sistema bancário americano e também nas chamadas de muitos líderes
mundiais para que sejam criadas taxas sobre transações especulativas.
Todas essas medidas estão focadas na redução do componente especulativo
nas atividades das instituições financeiras. Essa aspiração de se criar uma
ligação mais estreita entre o sistema financeiro e os custos de bens de
consumo é bastante promissora. No entanto, essas medidas dificilmente
conseguirão superar as tendências de uma extensa reprodução de crises.
As instituições internacionais e nacionais destinadas a controlar a
atividade empresarial desempenham um papel importante na reforma do
sistema financeiro mundial. Como se sabe na teoria, os sistemas de controle
devem se ajustar ao grau de dificuldade que encontram para controlar
efetivamente os sistemas subordinados. A dificuldade de controlar a atividade
das maiores corporações financeiras aumentou significativamente nas
últimas décadas.
Isso reduz fundamentalmente as possibilidades potenciais de
controle externo. Deve-se acrescentar que os níveis de motivação dos
controladores e dos subordinados devem ser minimamente adequados.
Obviamente, isso é difícil de ser alcançado, tanto no caso das motivações
empresariais aventureiras quanto no caso de funcionários públicos pósmodernos eticamente neutros. Não admira que a SEC (Securities and
Exchange Commission), um dos órgãos de controle mais profissionalizados,
não tenha conseguido controlar os mercados financeiros e a qualidade das
informações fornecidas pelas corporações.
Portanto, só é possível sustar a reprodução das tendências de crise
do sistema financeiro mundial usando-se o controle externo supranacional e
nacional e, simultaneamente, um controle interno que seja institucional e
eticamente assertivo. Isso, por sua vez, requer mudanças tão radicais no
arcabouço teórico predominante e no discurso político, que a ideia está
sendo mencionada aqui apenas para completar o marco de referência. Isso
significa que as perspectivas de mudanças fundamentais no sistema
financeiro global são menos realistas.
Existe também um apelo gerado pela crise do modelo de
globalização, que compromete os fundamentos éticos dos sistemas globais e
institucionais. Supõe-se que o foco da luta para a recuperação do sistema
financeiro
global
deva
estar
na
redução
de
seu
componente
especulativo. Para a Rússia e o Brasil, em particular, isso significa a
redução essencial da volatilidade dos preços dos principais produtos que
compõem nossas exportações primárias. Isso faz com que nossos países se
beneficiem, em medida significativa, com a recuperação do sistema
financeiro
mundial
e,
consequentemente,
participemos ativamente de sua reforma.
cria
motivação
para
que
Os países do BRIC já começaram a tomar medidas ativas focadas na
redução da influência dos defeitos do sistema financeiro global sobre suas
economias. Em primeiro lugar, essas medidas buscam torná-los menos
dependentes da “saúde” do sistema financeiro americano, ou seja, do dólar.
Assim, a China e o Brasil – e, posteriormente, a China e a Rússia –
concluíram acordos intergovernamentais sobre o uso de moedas nacionais
no comércio bilateral. A Rússia e a Índia já haviam assinado um acordo
análogo anteriormente.
O desenvolvimento desta tendência requer diversas novas
decisões institucionais:
•
Criação, pelos países do BRIC, de um banco de compensações
internacionais que amplie as possibilidades de uso de moedas
nacionais nos acordos mútuos e permita que terceiros países que
possuam a moeda nacional de um dos países do BRIC façam acertos
de contas com qualquer dos países deste grupo;
•
Organização pelos países do BRIC, independentemente ou em
cooperação com o Banco Mundial, de uma agência internacional de
avaliação destinada a estimar os riscos do país, levando em conta
a especificidade do caráter institucional nacional. A criação dessa
estrutura oficial ajudará a eliminar o monopólio das agências
tradicionais, que consideram apenas os padrões institucionais
universais sem levar em conta a especificidade do desenvolvimento
nacional de cada país.
•
Continuação dos esforços coordenados dos países do BRIC para
expandir as funções dos SDRs (Direitos Especiais de Saque dos
recursos do FMI). Discute-se a transformação dos SDRs em uma
moeda de reserva global, livre das desvantagens do dólar e de
sua dependência dos problemas dos sistemas financeiro e
econômico americanos. Esta decisão só poderá ser eficaz se contar
com o aumento essencial do papel dos países do BRIC no governo do
FMI, garantindo a seus representantes um lugar na gestão
executiva do Fundo, em conformidade com a influência global
desses países sobre a evolução da economia global;
•
Ampliação das possibilidades financeiras para a realização de grandes
projetos conjuntos de investimento. Vale a pena considerar a
possibilidade da emissão de títulos BRIC para financiar tais
projetos conjuntos, com base nas garantias mútuas. Isso
contribuirá para a realização dos grandes projetos tecnológicos dos
países do grupo. O poder econômico de nossos países, e suas
perspectivas, fará com que esses instrumentos financeiros tenham
sucesso no mercado mundial, e nossos países conseguirão recursos
baratos para a realização de projetos de grande porte – como, por
exemplo, a construção da rede de centrais nucleares.
A quarta crise: uma crise cíclica usual que abrange todos os
países envolvidos nas relações globais.
Nessa relação, deve-se notar que sua escala foi basicamente
exagerada
devido
à
influência
das
três
crises
discutidas
acima,
principalmente a do sistema financeiro global. As medidas relativas à sua
superação, praticamente ditadas pelas receitas keynesianas, demonstraramse eficientes para reduzir o declínio do setor real da economia.
Mas revelaram-se menos eficazes em relação às finanças públicas.
Em certo sentido, os gastos excederam os resultados de forma significativa
na maioria dos países e enriqueceram o sistema bancário. O crescimento da
dívida nacional de vários países europeus levou à ameaça real de que os
pagamentos não fossem honrados. A economia chinesa foi menos afetada,
pois o apoio estatal permitiu que ela sobrevivesse com sucesso ao declínio
das exportações. Isso, na opinião de muitos especialistas, causou a
diminuição significativa da eficiência do sistema de crédito.
Outra consequência de longo prazo da crise, que atinge a Europa, os
Estados Unidos e, parcialmente, o Japão, é o alto nível de desemprego. Sua
superação exige taxas de expansão elevadas num contexto de crescimento
lento da capacidade de geração de empregos. Essa situação contraria os
requisitos para se aumentar a capacidade competitiva nos quadros da
competição global.
Essas
contradições
entre
a
necessidade
de
garantir
o
crescimento da capacidade competitiva no contexto de mudanças
estruturais ampliadas, de um lado, e a necessidade de manter o alto
padrão de vida e reduzir o desemprego, de outro, levam à busca de
estratégias pós-crise nos países desenvolvidos. Os líderes dos países em
desenvolvimento, inclusive os nossos, enfrentam tarefas análogas de manter
o rápido crescimento do padrão de vida e, ao mesmo tempo, manter as
perspectivas de crescimento no longo prazo.
A solução das tarefas de estimulação pós-crise requer esforços
conjuntos coordenados:
•
Criação de um grupo misto de peritos do BRIC para estudar o
potencial de desenvolvimento do comércio entre nossos países,
incluindo a análise das novas perspectivas no contexto das mudanças
pós-crise na economia global;
•
A crise demonstrou que a realização de projetos de infraestrutura tem
influência significativa e positiva sobre a recuperação da economia.
Nesse contexto, é aconselhável que se prepare o relatório analítico
completo sobre as perspectivas de participação dos países BRIC nos
projetos nacionais de desenvolvimento da infraestrutura social e
industrial. Isso inclui a aceitação do documento normativo definindo os
benefícios para as empresas dos países BRIC que participam da
realização dos projetos correspondentes.
As estruturas globais e nacionais dos interesses pós-crise criam o
contexto principal de formação dos interesses russos análogos, sendo um
importante componente da estratégia de modernização nacional.
2. ESTRUTURA
DOS
INTERESSES
PÓS-CRISE
DOS
PROTAGONISTAS GLOBAIS
Como já mencionado, a determinação dos marcos pós-crise da
Rússia e do Brasil requer a análise dos interesses dos outros principais
participantes da cena global. Estamos diante de um resultado importante
da crise: os protagonistas ganharam uma compreensão mais profunda
de seus interesses nacionais. A crise arrancou muitas máscaras. Os
líderes dos países poderosos começaram a falar de algo que nunca teriam
dito sem trágicas consequências para eles mesmos.
É óbvio que as bases ideológicas e políticas de decisões nacionais e
internacionais a respeito de políticas específicas estão sendo revistas, bem
como os motivos e incentivos que atuam como reguladores econômicos. O
estado é um novo protagonista no campo econômico – e, além disso,
desempenha um papel de liderança. Hoje, quando o auge da crise já ficou
bem para trás, e a situação tornou-se clara o suficiente, é possível analisar os
interesses dos principais protagonistas para compreender sua nova
disposição pós-crise e, assim, prever o curso dos acontecimentos futuros.
O relatório está baseado em vários pressupostos.
Em primeiro lugar, a resposta dos Estados Unidos (o protagonista
global chave, independentemente do que possam dizer os radicais) aos
desafios da crise global tem um caráter estratégico. As elites americanas
preservaram sua visão estratégica e, a julgar pelos eventos dos últimos
meses, continuam a seguir a estratégia racional, respeitando as ideias dos
grupos dominantes sobre a estrutura dos interesses nacionais e o papel
global da América. Portanto, não podemos contar com o enfraquecimento
básico do papel dos Estados Unidos na formação da ordem global pós-crise
e na correção do modelo de globalização vigente. Para a resolução de todas
essas
tarefas,
a
reconsideração
dos
interesses
americanos
e
a
reestruturação das metas dos Estados Unidos serão fatores importantes.
Em segundo lugar, a crise econômica global não apenas foi o
resultado da crise do modelo de globalização em vigor, mas também
estimulou mudanças significativas neste modelo. Este se caracterizava pelo
monólogo autocentrado, pela dominação global militar, política, tecnológica e
financeira dos Estados Unidos, pela formação de um único exemplo
institucional político e econômico, e pela disseminação dos valores do
liberalismo como se fossem os únicos legítimos.
A perda da posição dominante dos Estados Unidos leva à formação
do modelo dialógico com um centro “sesqui partidário” e controle
multidimensional. Os Estados Unidos levarão em conta as posições de outros
protagonistas - em primeiro lugar, a da China -, dependendo da real
influência de cada um sobre cada componente da globalização. Os
protagonistas globais estão interessados em ganhar a liderança em alguns
desses componentes, aumentando sua influência no “conselho diretor global”
dirigido pelos Estados Unidos.
Em terceiro lugar, os fatores geoeconômicos têm maior peso na
determinação das estratégias dos estados nacionais, de suas coalizões e
associações, do que os fatores políticos e militares tradicionais.
Em quarto lugar, a crise global está associada à conclusão de um
longo “ciclo Kondratiev” e caracteriza-se pelo lançamento de inúmeras
tecnologias de ponta que irão definir a imagem da segunda e terceira
décadas do século XXI. A liderança na criação e introdução dessas
tecnologias no mercado, ao lado de um papel importante no funcionamento
do sistema financeiro global, serão os principais fatores para definir a
influência no “concerto” dos dominadores globais.
Em quinto lugar, as relações entre os Estados Unidos e a China
influenciam todo o quadro do desenvolvimento global. Hoje, essas relações
caracterizam-se pelo seguinte:
•
profunda interligação econômica entre os dois países, com o
consentimento dos Estados Unidos às enormes exportações chinesas
em troca do financiamento do déficit da balança de pagamentos
americana pela China;
•
a economia chinesa é profundamente dependente de impulsos
tecnológicos (principalmente americanos) e de impulsos inovadores
em geral, que são fortes elementos impulsionadores da dinâmica
econômica chinesa;
•
a compreensão do fato de que a China promove um projeto global
alternativo ao americano, do qual difere com novíssimos exemplos
axiológicos e sociopolíticos;
•
a percepção crescente pelas elites dos dois países de que suas
relações constituem uma rivalidade regulamentada com vista à
dominação global;
•
a tensão crescente entre os Estados Unidos e a China, resultante do
sentimento das elites americanas quanto à crescente vulnerabilidade
de seu país, de um lado, e do rápido crescimento das ambições
globais das elites chinesas, de outro.
O peso das interrelações entre os Estados Unidos e a China sobre o
desenvolvimento global resulta no fato de que essas relações serão
projetadas sobre os processos de definição e negociação de seus interesses
com outros protagonistas influentes. Além disso, o caráter mutável de suas
relações influenciará todo o arranjo global.
A crescente importância das relações entre os Estados Unidos e a
China não significa que se ignorem as estreitas relações da América com o
NAFTA, a União Europeia e o Japão.
Veremos os Estados Unidos, a China e a Índia como os atoreschave, importantes para os interesses da Rússia e do Brasil. Neste caso, os
Estados Unidos são vistos como o um todo, a despeito das nuances nos
interesses de seus participantes particulares. Consideraremos a União
Europeia não como os burocratas em Bruxelas, vendendo sua crescente
(embora longe de essencial) importância, mas como o consenso dos
interesses de seu “núcleo europeu”: Alemanha, França, Itália etc. O “núcleo
europeu” definirá o foco dos interesses da União Europeia.
Analisando os interesses dos principais protagonistas, agruparemos
esses interesses em três círculos:
•
recuperação do sistema financeiro global danificado, criação do
sistema renovado de instituições financeiras globais;
•
recuperação das economias nacionais, sem sérios golpes sóciopolíticos;
•
início da criação da estrutura renovada das economias nacionais,
em conformidade com os desafios globais.
Apesar do fato de que o primeiro e o segundo círculos de interesses
estejam no centro das atenções atuais, devemos ter em mente que os
protagonistas chave se concentrarão no terceiro círculo de problemas. Esses
problemas definirão a agenda política e, respectivamente, o destino das
principais potências políticas e, não menos importante, o destino de certos
líderes.
Supõe-se que a posição dos protagonistas na luta com a crise global
será definida, em primeiro lugar, por suas ideias a respeito do montante de
benefícios e prejuízos que resultarão das alterações em sua estrutura
econômica após o encerramento da crise. Em cada país, as elites e
lideranças responsáveis não querem que a estratégia adotada resulte
em sua própria ruína econômica, mesmo que essa constituísse o preço
a pagar pelo bem-estar global. Existem protagonistas supranacionais e
nacionais – os beneficiários do desenvolvimento global - que tentam impor ou
“vender” a correspondente estratégia aos governos nacionais.
1. Os interesses dos Estados Unidos
Os interesses dos Estados Unidos, o protagonista de maior
influência, são definidos, em grande medida, pelos seguintes fatores:
•
Intenção de manter sua dominação nos setores que propiciam altas
margens: em primeiro lugar, nas indústrias de alta tecnologia e de
entretenimento, e nos serviços financeiros. Os Estados Unidos se
empenharão em manter a liderança em todos os setores com margens
elevadas, pois isso pode garantir seu padrão de vida extra-alto. A
perda das posições dominantes nesses setores levará à perda de
influência global, à drástica redução do padrão de vida e,
consequentemente, às mais sérias perturbações sócio-políticas.
•
Inadmissibilidade de se adiar a superação da crise global, pois ela
reduz a demanda mundial pelos serviços dos setores de ponta
americanos; reduz a possibilidade financeira de se apoiar sua
reprodução e manter a dominação militar e tecnológica; abre “janelas
de oportunidades” para rivais nesses setores de importância vital para
os Estados Unidos.
•
Influência negativa das graves dificuldades orçamentárias, associadas
ao apoio à componente de força do poder americano. A combinação
da crise com a “síndrome Iraque” e o “atoleiro afegão” compromete
seriamente os Estados Unidos no que se refere à sua representação
de força nos pontos críticos de instabilidade global – uma condição
necessária para manter seu papel de “polícia mundial”. Esse papel é
necessário para que a América possa manter a chance de atrair
investimentos do mundo. Sua perda resultará no aprofundamento da
crise nacional e nas mais sérias consequências socioeconômicas e
sociopolíticas.
•
Continuada influência divisiva da crise sobre a elite americana. A
estratégia antirrecessiva de Barack Obama, ao lado de sua política
social, é percebida em função de diferentes posturas axiológicas e
ideológicas. Seu sucesso - ou sua derrota - será encarado como vitória
dos liberais ou dos conservadores e de seus respectivos fundamentos
radicais. A política antirrecessiva e o combate às consequências da
crise conduzem a mudanças essenciais nas disposições da elite. Os
esforços de Barack Obama destinam-se a desviar essa ameaça, mas
as possibilidades estão desaparecendo rapidamente.
Assim, os Estados Unidos estão interessados na possibilidade
de que a crise chegue ao fim rapidamente, permitindo a manutenção da
atual estrutura econômica americana e das posições do país no mundo.
Isso, em particular, não deixará que a influência dos Estados Unidos sobre a
formação de mecanismos de regulação financeira global após a crise fique
enfraquecida. Retardar a superação das consequências da crise é arriscado
demais e inaceitável para a América. É preciso dar continuidade ao “modo
americano” no mundo pós-crise.
É por isso que os Estados Unidos precisam do apoio do maior
número possível de protagonistas mundiais. A questão principal é saber em
que medida a América reflete sua vulnerabilidade. A resposta a essa questão
influencia sua capacidade de pesar racionalmente a nova correlação de
forças e, consequentemente, definir a extensão das sucessões do governo
americano no caso de formação da nova coalizão global.
Outro problema grave são os crescentes conflitos gerados por
importantes decisões estratégicas americanas. O conflito com a China sobre
a taxa de conversão do yuan é evidente. Surgirá conflito semelhante com a
China
e
a
Europa
em
consequência
do
início
do
processo
de
reindustrialização dos Estados Unidos, que levará de volta ao território
nacional as capacidades produtivas geradoras de altas margens.
Parece que Barack Obama, em virtude de sua carreira e de seu
caráter, bem como das habilidades demonstradas no início do mandato, pode
se tornar um líder capaz de se afastar dos estereótipos das políticas
americanas. Ele poderá conseguir celebrar os acordos necessários com
parceiros potenciais dos Estados Unidos a fim de ganhar seu apoio para
construir a configuração global e atender aos interesses estratégicos
americanos. É óbvio que ele está pronto para oferecer lugares no conselho
diretor da corporação global, mantendo a presidência e o controle acionário.
De fato, Barack Obama apresenta mais uma versão do “novo rumo”.
Na realidade, ela não tem escolha. No entanto, devemos entender que o
preço do fracasso é muito alto tanto para a política interna dos Estados
Unidos quanto para o mundo todo.
2. Os interesses europeus
Os interesses europeus – ou, mais exatamente, do “núcleo europeu”
– ao contrário da opinião vigente, diferem substancialmente dos interesses
americanos. Para a Europa, o retorno à situação pré-crise significa a
preservação do domínio financeiro e econômico americano; a continuação da
transferência da capacidade ativa produtiva para os países que oferecem
custos baixos, principalmente para a China; e a perda de empregos de
pessoal qualificado, sem compensações, em detrimento do crescimento dos
setores pós-industriais.
Além disso, a recessão que agora termina e a restauração que se
inicia apressarão este processo. Nichos nas áreas de serviços financeiros,
alta tecnologia e entretenimento estão ocupados pelos Estados Unidos. A
situação é ainda mais tensa nas novas tecnologias de ponta que estão
surgindo. Assim, uma estratégia econômica realista da Europa requer uma
elevação radical da concorrência com os Estados Unidos nos setores com
margens potencialmente elevadas e, portanto, vitalmente importantes para
esses dois protagonistas.
O retorno ao sistema geoeconômico anterior representaria uma longa
estagnação e a degradação tecnológica das economias europeias,
conduzindo a uma grave crise sociopolítica. O retardo do processo de
superação das consequências da crise pelas maiores economias europeias
terá resultado semelhante. O recente declínio, com elevados gastos
orçamentários na maioria dos estados europeus, induzido pelo apoio aos
setores financeiros e real da economia, bem como a subversão das posições
do euro, prejudicam todo o sistema sociopolítico europeu que foi construído
nas últimas décadas. Existe um limite óbvio para a tensão que pode ser
manejada pelo “núcleo europeu” sem gerar uma nova crise.
Isto significa que a Europa está interessada não apenas em superar
as consequências da crise financeira global, mas também em fazer grandes e
importantes mudanças estruturais em suas próprias economias nacionais,
fornecendo novas fontes de crescimento econômico e bem-estar. A
realização da “estratégia de Lisboa”, com foco na reconstrução da economia
da inovação, está encontrando dificuldades, e vem sendo realizada por
métodos burocráticos. O sucesso financeiro da Europa é maior, mas não está
claro se ela conseguirá manter suas conquistas na situação pós-crise.
Deve-se compreender que, sem mudanças estruturais profundas, a
estagnação europeia é quase inevitável. Tal compreensão da situação leva à
conclusão de que é inevitável a escalada da disputa entre a União Europeia e
os Estados Unidos pelos nichos na “nova economia” com altas margens de
lucro. Ao mesmo tempo, a insuficiente atenção dada pela Europa, por seu
“núcleo europeu”, à reflexão sobre seus interesses geoeconômicos
estratégicos e o medo imaginário de demonstrar suas divergências com os
interesses dos Estados Unidos complicam a compreensão da mudança de
foco dos interesses correspondentes.
É bastante óbvio que ambos os lados, os Estados Unidos regidos por
Barack Obama, e a Europa, vão se esforçar para diminuir a tensão crescente.
O euro pode ter seu papel aumentado no novo sistema financeiro global.
Parece que o efeito agravador das consequências da crise levará os
“grandes” da Europa a reconsiderar a base da estratégia europeia e, em
primeiro lugar, a correlação entre a solidariedade euro-atlântica, de um
lado, e os interesses do desenvolvimento econômico, de outro. Dentro
dos parâmetros dessa luta, o “núcleo europeu” tentará usar recursos russos a
fim de resolver seus interesses estratégicos.
3. Os interesses da China
Os interesses da China são definidos, em grande medida, por uma
situação de transição que tem muitas facetas. A China está a meio caminho
de muitas transições:
•
De um modelo econômico exportador dominante para uma estratégia
mais equilibrada, com foco no mercado interno;
•
De uma economia baseada em inovações estrangeiras, principalmente
americanas, para outra que depende de seus próprios recursos
inovadores;
•
Transição para uma nova estrutura social. Camadas e grupos sociais
modernizados ainda não se tornaram dominantes, ainda não
chegaram a posições sociopolíticas estáveis. Com isso, os valores
antigos e as normas da maioria tradicionalista têm sido seriamente
abalados;
•
A mudança na liderança das elites chinesas ainda não foi finalizada.
Os representantes das províncias litorâneas ainda não foram
substituídos por novos grupos relacionados a novos marcos para o
desenvolvimento.
A crise e suas consequências ainda não controladas agravaram
seriamente todas essas contradições. Atingiram as províncias litorâneas, até
então bem-sucedidas, e as camadas modernizadas, criando uma importante
crise de expectativas. A ameaça de perda da fé na liderança bem-sucedida
do governo chinês e, consequentemente, no seu “mandato recebido do céu”
determinou a forma de combate à crise escolhida por este governo. A crise
foi “extinta” com dinheiro, na mesma extensão em que isso ocorreu nos
países ocidentais. De acordo com os especialistas, os fundos foram gastos
em projetos de infraestrutura e manufatura muitas vezes ineficientes e
frequentemente supérfluos. Há uma séria preocupação com a possibilidade
de que os bancos chineses estejam sobrecarregados com ativos tóxicos.
A crise introduziu importantes mudanças na mentalidade do governo
chinês. Foi entendido que o governo havia obtido um poder acionário de
bloqueio quanto a todas as decisões envolvidas no processo de construção
de um novo sistema global. Sentindo-se um “salvador” da economia global, o
governo pode aumentar as taxas de juros e tentar conseguir o status de
duúnviro no conselho de administração global.
Uma lenta reconstrução da economia global cria os mais sérios
riscos sociopolíticos para a China. O lento crescimento das importações
nas economias desenvolvidas requer que se estimulem as manufaturas,
mudando o foco para o mercado interno. Podemos observar os sinais de
superaquecimento da economia, inflada com o súbito e descontrolado
colapso associado à superprodução, deflação e recessão. A luta com esse
superaquecimento é limitada pela necessidade de manter elevadas taxas de
crescimento do PIB, acima de sete por cento.
Deficiências fundamentais no arcabouço institucional e, acima de
tudo, no sistema político da China, seu insuficiente dinamismo e distorções
nos mecanismos de feedback inevitavelmente se manifestarão durante a luta
pelo equilíbrio socioeconômico e político. A concorrência entre os grupos da
elite aprofundará as atuais contradições entre províncias, setores econômicos
e camadas sociais, e isso requer apoio. Os desentendimentos entre os
grupos da elite são praticamente inevitáveis. De acordo com os cenários mais
negativos, eles podem crescer e se transformar em cisões que adquiririam
uma forma ideológica, provavelmente nacionalista. Os sinais de um conteúdo
nacionalista e de preservação da forma ideológica comunista são óbvios.
Simultaneamente, a memória histórica das discórdias civis ocorridas
no início do século XX, bem como de embates análogos ocorridos nos
diversos milhares de anos da história da China, dão base ao receio de um
cenário de separatismo regional. Por um lado, esse medo mobiliza o governo,
e, por outro, estimula as elites a se baterem pelos interesses de suas
respectivas regiões e grupos sociais.
A China tem que encontrar um novo rumo, um novo equilíbrio de
interesses. Não se pode ter certeza de seu sucesso. A excessiva confiança
do governo chinês, certo de que não admitirá o “absurdo de uma liderança
Gorbachev”, não é a melhor garantia de sucesso.
O curso seguido anteriormente levou ao sucesso, à prosperidade e à
liderança global. A China não está pronta para lutar por essa liderança, e
gostaria de esperar várias décadas. No entanto, o cronograma está
encolhendo. Reconhecendo seus interesses e desafios, o governo chinês
terá que enfrentar uma escolha difícil:
o
Continuar o curso anterior, a despeito de todos os riscos,
baseando-se na economia orientada para o mercado interno
durante a transição para recursos nacionais inovadores;
o
Ocupar temporariamente a posição pragmática extrema e entrar
como um membro da coalizão global, dirigida pelos Estados
Unidos, para a rápida superação das consequências da crise e
restauração do antigo sistema financeiro e econômico global,
benéfico para a China;
o
Usar a crise global para fazer mudanças essenciais no sistema
financeiro e econômico global, para aumentar rapidamente o
papel global da China e promover o projeto global chinês;
o
Agir como um líder do projeto geopolítico “oriental”, incluindo o
Japão, a Coreia e, possivelmente, a ASEAN.
No primeiro caso, dar apoio aos esforços dos Estados Unidos será a
maneira mais eficaz de usar as reservas financeiras. A aliança tática,
fortalecendo a profunda integração econômica, financeira e tecnológica
existente entre os Estados Unidos e a China, pode avançar para uma
parceria
política
estratégica,
denotando
o
surgimento
de
uma
dominação global duopolista. O fantasma da Chimérica está vagando pelo
mundo todo.
Sem dúvida, a escolha a favor do duopólio mundial encontrará a
oposição da elite chinesa, criada dentro do espírito de antagonismo aos
Estados Unidos, orientada pelos valores tradicionais chineses, apoiada pela
nova mentalidade pós-crise. As elites novas, prontas para uma reviravolta tão
radical, ainda não ascenderam nos degraus da hierarquia.
Uma alternativa seria a rápida conclusão da reorientação para o
mercado interno, para os recursos tecnológicos próprios e a manutenção de
uma expansão externa ativa. Esse caminho requer a existência de unidade
política no governo da China, a habilidade para resistir a incidentes locais e
regionais. Um problema adicional é a ainda precária inclinação global das
elites chinesas.
O mais provável é que o governo da China evite uma escolha clara e
lute para manobrar no espaço entre essas alternativas. No entanto, em caso
de agravamento da crise econômica interna e de ameaças à estabilidade
política, o governo da China dificilmente manterá uma posição de observador
passivo. A escolha que conduza à redução dos riscos imediatos é a mais
provável, bem como uma tentativa de firmar um compromisso com os
Estados Unidos e conseguir a posição de membro temporário do conselho de
administração global, como o parceiro mais novo. Este cenário resulta na
diminuição substancial do papel de outros protagonistas no concerto global.
4. Os interesses da Índia
Os interesses da Índia estão definidos por sua posição econômica,
suas tarefas atuais nesta área e seus marcos geopolíticos.
A crise demonstrou que a economia Indiana é bastante estável diante
de sua influência. Seu desenvolvimento econômico já está focado no
mercado interno, menos influenciado pela crise. As exportações indianas
sofreram, mas isso resultou numa diminuição apenas ligeira das taxas de
crescimento. A influência sociopolítica da crise manifestou-se na profunda
reflexão das elites sobre os interesses nacionais e regionais do país. A
compreensão da rapidez com que cresce a influência econômica indiana
ficou mais clara.
A Índia está interessada na reforma do sistema financeiro
mundial, pois as novas condições lhe permitirão aumentar sua
influência, bem como intensificar a entrada de tecnologias e investimentos,
mantendo taxas de desenvolvimento elevadas e estáveis. A expectativa de
uma influência positiva da crise materializou-se, pois a crise forneceu um
ímpeto para aumentar a capacidade competitiva em muitas áreas. Retardar a
superação das consequências da crise levaria na direção contrária: ao
declínio na entrada de recursos externos para o desenvolvimento econômico,
inclusive nas receitas de exportação.
Os marcos geopolíticos da Índia estão associados a uma acentuada
preocupação quanto às intenções da China. A China é uma velha aliada do
Paquistão. As bases navais chinesas no Paquistão e em Mianmar, próximas
da Índia, estão deixando nervosos os indianos e são percebidas como
elementos da “armadilha estratégica contra a Índia”. Este fator define a
intenção do governo indiano de manter a cooperação estratégica com os
Estados Unidos, enquanto compete com a China.
Este fator também determina as flutuações nas relações com a
Rússia, que, na opinião de especialistas indianos, coopera estreitamente com
a China. E a cooperação da Rússia e da China é um argumento importante
usado pelos Estados Unidos em suas tentativas de estabelecer relações
novas e “especiais” com a Índia.
Em certa medida, a crise sustou ou, pelo menos, retardou a
reorientação da Índia no sentido de uma maior proximidade com os Estados
Unidos. As elites indianas estão nervosas devido ao provável surgimento da
Chimérica e lamentam que estejam diminuindo as possibilidades de a Rússia
resolver os problemas mais cruciais da Índia. Além disso, os principais
especialistas notam a imprecisão da política externa russa, seu insuficiente
grau de consistência quando se trata de realizar suas prioridades expressas.
Entende-se que a parceria estratégica com a Rússia é um importante
recurso da política externa indiana. Como resultado, os círculos dominantes
na Índia estão se concentrando na multipolaridade de sua política externa. A
entrada no G-8 ampliado (G-8+3) e no BRIC é considerada um instrumento
para a realização dessa política. O BRIC admite que, dentro da moldura
deste grupo, as consultas representam uma boa possibilidade de limitar “a
liberdade das mãos chinesas”. Basicamente, a Índia tentará entrar no
“conselho de administração global”.
A formação de uma aliança estratégica entre os Estados Unidos
e a China, ou mesmo uma significativa abordagem militar e política da
questão, será vista pela Índia como uma ameaça mortal. Sem dúvida,
essas considerações geopolíticas terão mais peso do que cálculos
econômicos.
Um fator importante que determina os interesses estratégicos da
Índia, no que se refere a seus próprios recursos de inovação e tecnológicos,
é a busca de uma fonte estável de transferência tecnológica. Antigas
tradições nacionalistas indianas e a inércia de alianças estratégicas
anteriores impedem que o país tenha uma orientação bem definida com
relação a suas fontes americanas.
A aliança tecnológica com a Europa também não funcionou. Existem
antigas relações cientificas e técnicas com a Rússia, basicamente na esfera
militar e técnica, mas estão longe do nível que possa influenciar o
desenvolvimento econômico da Índia. Em consequência da crise e das
alterações correspondentes na economia mundial, o governo indiano
compreenderá a interligação entre o caráter do desenvolvimento econômico
do país e seus marcos geopolíticos, proporcionando a efetiva transferência
tecnológica. Isso significa que a Índia se verá envolvida na configuração das
transferências globais de inovações e de tecnologias, e isso, por sua vez,
influenciará substancialmente os marcos geoeconômicos indianos. Exemplos
de tal transferência são os acordos com a Rússia sobre a criação conjunta da
quinta geração de aviões de combate, projetados para a Força Aérea indiana,
e a cooperação no setor de energia nuclear.
***
As consequências e lições da crise criam o pano de fundo para o
cenário de médio prazo – aumento da subjetividade global da Rússia e do
Brasil. Vale a pena estar ciente do fato de que a formação do duopólio
global americano e chinês não deixa espaço para que a Rússia e o
Brasil sejam protagonistas globais significativos. Ao mesmo tempo, a
criação de uma coalizão mais ampla e, portanto, mais leve, encabeçada
pelos Estados Unidos, mesmo no caso da elevação do status chinês no
“conselho diretor global”, cria um campo mais amplo de manobra para a
Rússia e o Brasil. Existe uma variedade de cenários que podem ser
escolhidos, desde entrar diretamente nessa coalizão global até a expansão
das relações de parceria com os membros influentes da coalizão, em
primeiro lugar a China e a Europa, que, em virtude de suas posições, terão
alguma liberdade de manobra.
Isso define nosso interesse comum no desenvolvimento da
institucionalização do BRIC, na intensificação de consultas dentro do
arcabouço deste grupo. Individualmente, a Rússia, a Índia e o Brasil carecem
de influência que lhes permita consolidar a posição do BRIC. A China não
concordará em deixar o triangulo BRI “sem atenção”, pois esse poderia se
transformar num centro independente de influência global. Em consequência
desse entrelaçamento de interesses, todos os membros do BRIC têm um
grave motivo para buscar posições coordenadas em relação à reforma global.
Caso o BRIC chegue a tais posições, ninguém correrá o risco de ignorá-las.
Esses cenários e ameaças definem o interesse estratégico da
Rússia e do Brasil, tanto no que se refere à correção significativa do
sistema
financeiro e
econômico
global
quanto
ao
modelo
de
globalização. Seu interesse na criação de uma coalizão global para fazer tal
correção é ainda maior. A participação em tal coalizão não significa enfrentar
os Estados Unidos. Ao contrário, certas correções do sistema financeiro
mundial e do modelo de globalização são interessantes para a economia
americana.
Com o apoio de tal coalizão, interessada na preservação de múltiplos
centros de influência, é possível criar a coalizão global, reduzindo a
probabilidade da aliança política local entre os Estados Unidos e a China.
Essa coalizão pode incluir os países interessados em mudar as regras
globais e em promover sérias mudanças estruturais em suas próprias
economias: o “núcleo europeu” da União Europeia, Índia, Rússia, Brasil e,
provavelmente, a China, caso escolha seguir a estratégia correspondente.
Todos esses países querem ganhar seu lugar no “centro tecnológico
global” e aumentar o componente de inovação de suas economias. Apesar
da concorrência entre eles, estão cada vez mais envolvidos na concorrência
com a América pelos nichos que oferecem altas margens, principalmente no
que se refere às novas tecnologias de base do ciclo tecnológico que se inicia
(veja acima).
Além disso, todos os países estão interessados em sustar a absorção
do fluxo principal de recursos financeiros do mundo pela América, que os usa
para refinanciar seus déficits comercial, orçamentário e de pagamentos. A
participação da Rússia nesta coalizão, reconhecendo as oportunidades que
se abrem, dá a ela uma chance de fazer as mudanças estruturais
necessárias para promover o crescimento econômico sobre uma base
inovadora.
Estimando as possibilidades de tal estratégia, dever-se-ia levar em
conta que a Rússia e o Brasil podem se tornar os elementos de equilíbrio, os
mediadores no âmbito da coalizão de interesses discutidos. Com frequência,
o elemento de equilíbrio não é o país mais forte, mas aquele que ajuda a criar
um equilíbrio estável de interesses, a reconfigurar os interesses de forma
positiva.
3. EVOLUÇÃO DA AGENDA
Uma nova estrutura de formação de interesses e as coalizões
globais criam molduras bastante rígidas para a agenda nacional. A análise
dessas molduras é necessária para o sucesso e, principalmente, para reduzir
os riscos irrecuperáveis que poderiam comprometer o desenvolvimento
nacional. A clara compreensão da nova situação mundial é uma condição
importante, mas não é suficiente para seu sucesso.
O uso de novas possibilidades para o desenvolvimento só é
possível se os governos da Rússia e do Brasil conseguirem cumprir o
percurso estratégico completo, respeitando os interesses fundamentais
nacionais. Isto não é apenas uma suposição, a julgar pelas lições da crise.
•
Marcos estratégicos do desenvolvimento na nova configuração
de interesses.
Um dos desafios mais importantes, neste contexto, é a construção da
estrutura da nova economia que se antecipa. Essa estrutura proporcionará o
crescimento contínuo do bem-estar por um longo prazo.
Quanto
aos
instrumentos,
pressupõem
o
uso
de
vantagens
competitivas dos países a fim de que possam ocupar os nichos confortáveis
existentes
nos
setores
econômicos,
proporcionando
uma
margem
relativamente elevada para seus bens e serviços no mercado mundial. A
detenção de uma parcela significativa dos setores com alta margem de lucro
é um suposto para a reprodução da liderança tecnológica e para o
crescimento do bem-estar – que são, por sua vez, supostos para o
desenvolvimento sustentado no longo prazo. A disponibilidade de tais setores
cria condições para o crescimento da renda dos trabalhadores no setor de
alta tecnologia, receitas orçamentárias, permitindo o financiamento dos
setores sociais cujo desenvolvimento é necessário para manter o
desenvolvimento no longo prazo.
A fim de se estimar o valor dos setores de alta tecnologia para o
desenvolvimento no longo prazo, é necessário levar em conta que o
crescimento da concorrência global reduz o nível das margens para os bens
de produção em massa – principalmente no setor de consumo. O
desenvolvimento da produção manufatureira em massa resolve o problema
do emprego, mas limita o desejado crescimento do bem-estar. O aumento de
salários resulta na falência dessas manufaturas. O destino que tiveram na
Europa é um claro sinal disso. A experiência demonstra que o alto nível de
bem-estar na economia moderna não pode se basear apenas na
produção em massa de bens de consumo.
Isso significa que o crescimento da renda, necessária para o
desenvolvimento de longo prazo, pode ser propiciado pelos setores e nichos
com margens elevadas. A busca de setores e nichos com margens
elevadas e a execução dos projetos estratégicos para sua ocupação e
retenção
é
um
marco
prioritário
para
o
desenvolvimento
em
perspectiva. As inovações e a criação de novos produtos e tecnologias de
ponta não são um fim em si, mas meios eficazes para solucionar os objetivos
estratégicos do desenvolvimento.
•
Onde encontrar as margens?
Uma nova configuração global de interesses e as perspectivas de
reforma do sistema financeiro mundial abrem novas possibilidades para a
busca dos setores e nichos de altos retornos para as economias da Rússia e
do Brasil.
Acima de tudo, esta é uma correção das ideias existentes sobre as
possibilidades dos setores de materiais. Sua desvantagem óbvia é a alta
exigência de capital e a volatilidade do ambiente global. No entanto, a
capacidade de dispor de capital não é uma limitação hoje. Sempre existe
dinheiro para projetos atraentes. Os principais especialistas do mundo
reconhecem que o crescimento da economia global estimulará a demanda
primária e gerará déficits de alguns tipos de matérias-primas.
A perspectiva de realizar os principais projetos fica comprometida
pelas previsões de alta volatilidade dos preços causada pelas “bolhas”, por
distorções especulativas do sistema financeiro mundial como um todo. Caso
a reforma tenha sucesso e o apetite dos especuladores internacionais seja
mitigado, a atratividade do setor primário crescerá significativamente. Isso
deve ser levado em conta agora.
Outro lado atraente do setor primário é seu potencial para estimular a
demanda por inovações tecnológicas. O setor primário moderno é um grande
consumidor de altas tecnologias. São usadas super tecnologias em todos os
estágios da produção primária, desde a geofísica e explorações geológicas
até a manufatura de bens finais. O nível de despesas e a magnitude das
margens, respectivamente, são o alvo das mudanças estruturais e dependem
do uso efetivo de tais tecnologias.
Existe um grande mercado de equipamentos de alta tecnologia e
perspectivas de inovações nesses setores.
Um dos principais campos de batalha que se antecipa nos mercados
de margens elevadas será a questão da energia. O crescimento do consumo
de energia e os limitados recursos de hidrocarbonetos estimularão a criação
de novas tecnologias, tanto a nuclear quanto a que use matérias-primas de
eficiência enérgica relativamente baixa (biorrecursos, carvão preto e marrom,
turfa etc.). Deve-se compreender que o encantamento dos países
desenvolvidos com as ecotecnologias será duramente cerceado pelo
endurecimento da concorrência global nos mercados de energia.
No entanto, o mercado de capacidades energéticas e de fabricação de
equipamentos de energia permanecerá com altas margens num cenário de
médio prazo. Isso cria os pressupostos para a participação de nossos países
na competição de tecnologias, proporcionando novos retornos com recursos
energéticos que haviam sido “deixados de lado”. Existem reservas para isso.
A crise global da produção de alimentos cria boas perspectivas para a
agricultura russa e brasileira. Outro setor com margem elevada e que tem
sido subestimado é a produção pesqueira. O crescimento econômico da Ásia
Oriental, onde os pescados estão em alta demanda, cria condições
favoráveis para o crescimento da renda dos pescadores e dos processadores
de frutos do mar. Esse setor passou a ser um dos impulsionadores do
crescimento.
A questão é saber se a Rússia e o Brasil serão capazes de conseguir
suas fatias legais do bolo dos mercados com altas margens.
A situação global pós-crise representa um sério desafio e uma
chance para a Rússia e o Brasil. Sua clara compreensão é meio
caminho andado para o sucesso.

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