Documento CCFR preparatório para a 2.ª Mesa-Redonda
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Documento CCFR preparatório para a 2.ª Mesa-Redonda
CÂMARA PÚBLICA DA FEDERAÇÃO RUSSA PAPEL DO BRIC NA CONSTITUIÇÃO DE UMA NOVA ORDEM ECONÔMICA E NA CRIAÇÃO DE MECANISMOS EFICIENTES DE REGULAÇÃO GLOBAL EVOLUÇÃO DAS TAREFAS PRIORITÁRIAS DOS ESTADOS MEMBROS Relatório Preparado para a Discussão da Segunda Mesa Redonda do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Brasil e da Câmara Pública da Federação Russa Professor Iosif Diskin Brasil, 18-19 de maio de 2010 Introdução Nos últimos anos, os líderes mundiais e as posições dos especialistas convergiram para um consenso sobre o aumento da influência global dos países do BRIC. A palavra ganhou corpo. Aquilo que, de início, era uma sigla contida no conhecido relatório do banco Goldman Sachs transformou-se num grupo de países unidos por interesses comuns e por mecanismos institucionalizados recém-criados. Recentemente, os países do BRIC criaram um sistema de consultas de múltiplas etapas, incluindo as cúpulas integradas por seus respectivos chefes de estado. Ficou clara a tendência de nossos países de desenvolver ideias comuns nas principais cúpulas internacionais. Os países que integram o BRIC caracterizam-se por alguns traços comuns que determinam, essencialmente, sua influência sobre o desenvolvimento internacional global: • Estão entre as dez maiores economias do mundo: China – 3º lugar; Índia – 5º lugar; Rússia – 8º lugar, e Brasil – 10º lugar (CIAWorldFactBook); • Durante a década anterior, a dinâmica do desenvolvimento econômico dos países do BRIC tornou-se um fator importante que influencia o caráter comum do desenvolvimento global; • Cada país do BRIC é o líder em sua região: Brasil, na América Latina; Rússia, na Eurásia Central; Índia, na Ásia do Sul, e China, no Sudeste Asiático; • Todos os países do BRIC definem e alcançam uma meta de aumentar a contribuição de suas indústrias de alta tecnologia para seu desenvolvimento econômico; • Os países do BRIC têm um interesse comum na correção do sistema financeiro global. A crise tem introduzido mudanças significativas tanto na economia global quanto na posição de cada país do BRIC. Embora a China e a Índia tenham conseguido manter elevadas taxas de crescimento, o Brasil reduziu drasticamente seu desenvolvimento e a Rússia passou por um declínio significativo. Obviamente, a crise revelou as contradições fundamentais de natureza econômica – e, portanto, político-econômica – do desenvolvimento global que vinham sendo plasmadas durante as décadas anteriores. A compreensão do escopo das mudanças globais e de suas tendências está numa fase muito inicial; a atenção de políticos e analistas está centrada na avaliação do impacto da crise atual e na necessidade de se desenvolver medidas para superar suas consequências. Mas poderosas forças no Brasil e na Rússia não podem esperar até que alguém faça isso em nosso lugar. A resposta de outros pode ser perigosa. O problema da falta de um posicionamento político-econômico global da Rússia, bem como do Brasil, em termos conceituais e instrumentais, é bastante agudo desenvolvimento agora. de A falta de entendimentos tal sobre posicionamento questões dificulta o relacionadas a tendências-chave da política externa de nossos países. Os países do BRIC terão de enfrentar uma nova fase marcada pela formação de uma nova economia global pós-crise e, consequentemente, pela abertura de novas possibilidades para os BRIC no que se refere à criação de uma nova ordem econômica e de um sistema global de regulação. Além disso, todas essas condições externas alteradas terão grande influência sobre a nova agenda de cada país do grupo. A fim de analisar essa gama de problemas, deve-se ter em mente aquelas tendências de desenvolvimento global que se formaram durante os anos anteriores e que influenciam as condições externas do desenvolvimento dos países do BRIC. O objetivo deste relatório é iniciar uma discussão pública entre os intelectuais de nossos países, e entre os BRIC em geral, sobre as novas configurações pós-crise dos interesses geopolíticos e político-econômicos e sobre a interrelação das tarefas de desenvolvimento econômico nacional no contexto de condições externas alteradas. 1. CRISE E TENDÊNCIAS GLOBAIS A crise intensificou a discussão global tanto sobre a natureza do desenvolvimento econômico global moderno quanto sobre várias deficiências de tal desenvolvimento, incluindo a própria crise. Durante essa discussão, a predominância da corrente teórica macroeconômica foi quebrada, pois essa se revelou incapaz não apenas de prever a crise em tempo hábil, mas também de fazer recomendações adequadas para superá-la. A discussão foi retomada devido, principalmente, ao retorno às ideias de Keynes, de Marx e dos críticos da globalização moderna – algo que, até há pouco tempo, era considerado evidência de arcaísmo, educação precária ou radicalismo politicamente incorreto. Como revela a análise, a discussão centrou-se nos problemas relacionados com as manifestações mais sérias da crise: o resgate do sistema financeiro e bancário e a superação do declínio econômico. A urgência conferida às questões no âmbito dessa discussão foi determinada, principalmente, pela percepção de seu nível de influência sobre os esforços de superação da crise. Pode-se notar que a crise pouco tem facilitado as discussões de problemas gerais, sistêmicos, embora afirmações como “o sistema deve ser reformado” sejam ouvidas em toda parte. As discussões mais aprofundadas desses problemas têm sido feitas por aqueles que, já antes da crise, haviam se especializado nessas questões. Infelizmente, devese mencionar que a crise, com seus impactos dramáticos e seu novo empirismo, não introduziu nenhuma correção nas ideias de tais autores. Há uma contradição notável entre, por um lado, a percepção da necessidade de fazer algumas mudanças no funcionamento da economia mundial, em sua base política e econômica, e a discussão sobre a natureza da crise, por outro. Durante a discussão, ainda não se expressaram ideias revolucionárias sobre a natureza da crise atual. Ao mesmo tempo, pode-se supor que o entendimento de sua natureza poderia constituir um bom impulso para estimular grandes inovações teóricas (como ocorreu na segunda metade do século XIX, com Karl Marx, e na década de 1930, com John Maynard Keynes). Provavelmente, a reflexão sobre o que está acontecendo e a superação da rejeição pós-moderna das “grandes teorias” requerem algum tempo. Mas, infelizmente, não podemos esperar. Existe extrema necessidade de alguns pressupostos iniciais para que se possa desenvolver uma política concreta. Uma vez que se disponha de uma teoria poderosa, seremos capazes de ajustar a posição. Mas, por enquanto, temos que nos satisfazer com o ecletismo aceitável. Na realidade, a política econômica democrática é necessária exatamente para evitar que nos tornemos reféns da “única teoria correta”, seja o marxismo primitivo ou o liberalismo messiânico. Uma análise minuciosa das práticas e um feedback eficaz, no âmbito de um sistema político democrático, não são alternativas menos confiáveis do que uma boa teoria. É preferível contar com elas. Uma hipótese eclética correspondente pode basear-se na análise dos conceitos mais influentes. Chama a atenção o fato de que nenhum dentre os teoristas mais importantes reconheceu seus erros durante a crise. Isso não deve servir como pretexto para vaias, especulações e ceticismo teórico; ao contrário, deve ser um incentivo para a conceituação. Tal validação empírica de ideias teóricas antigas é, frequentemente, um sinal da possibilidade de que outros conceitos estejam sendo elaborados na periferia da discussão. Isso representa a possibilidade de integração de elementos locais numa estrutura mais geral, embora ainda não haja muita clareza sobre qual seja esse conceito geral. Devido à falta de um conceito teórico integrado, uma hipótese inicial poderia considerar a existência de uma estrutura de níveis múltiplos que cubra as principais tendências do desenvolvimento político e econômico. HIPÓTESE: O MUNDO ESTÁ ENFRENTANDO SIMULTANEAMENTE QUATRO DIFERENTES CRISES. Cada uma dessas crises tem um ciclo próprio de duração e requer métodos próprios para sua superação. A primeira crise: a crise gerada pelo modelo unipolar de globalização, que está civilizacionais e nacionais. em contradição com várias tendências Trata-se, principalmente, da transposição, para o nível nacional, dos padrões institucionais baseados nos valores primitivos do liberalismo. Este modelo de globalização é como um toque fúnebre para o messianismo liberal. Esse liberalismo está em conflito com valores e tradições nacionais, diminui a eficiência das instituições correspondentes e perturba o status dos valores liberais em várias partes do mundo. A crise desse modelo de globalização é óbvia. Ela se manifesta em críticas relativas ao fracasso da integração de vários estados no processo de globalização, sendo que tal colapso tem inúmeras consequências. Os sinais da crise também incluem o fato de que os mais bem sucedidos projetos nacionais de desenvolvimento foram justamente os que se desviaram dos princípios preconizados por esse modelo. Características da crise: • Reconhecimento, em termos práticos (com desaprovação ideológica formal) da existência de uma pluralidade de modelos normativos que regem as instituições políticas e econômicas, incluindo o reconhecimento da eficiência não apenas do modelo chinês, mas também de outros modelos autoritários de mercado na Ásia Oriental. Além disso, os especialistas estão começando a dar mais atenção às peculiaridades institucionais dos países com taxas elevadas de crescimento econômico, como Brasil e Rússia, por exemplo; • Transição para uma globalização sociocultural baseada em múltiplas civilizações (a globalização com uma “cara asiática”, na expressão de analistas americanos, é uma importante tendência dessa transição); • Enfraquecimento do papel dos Estados Unidos como o principal centro financeiro (em conjunto, as bolsas de valores de Londres e Frankfurt geram mais receitas que a de Nova York e a NASDAQ). Não faz muito tempo, as instituições financeiras norte-americanas (principalmente os bancos de investimento) eram as únicas a definir os padrões institucionais em todo o mundo; • Surgimento de novos centros de força regionais (por exemplo, o Iraque) cuja supressão por meios militares causaria um sério dano aos próprios Estados Unidos. Hoje em dia, todos os principais protagonistas globais e regionais, com exceção do Brasil, possuem armas nucleares. Parece que, para superar esta crise, bastaria corrigir o atual modelo de globalização, sem rejeitar completamente a globalização como tal. A globalização trouxe benefícios para bilhões de pessoas. Com frequência, rejeitá-la significa subdesenvolvimento, pobreza e fome em potencial. A questão é: como, e em que direção, deve o modelo de globalização ser corrigido? Essa não é apenas uma questão abstrata. A resposta influenciará, marcantemente, as tendências de desenvolvimento dos sistemas institucionais nacionais, que buscarão utilizar, na maior medida possível, o potencial da globalização para resolver os problemas do desenvolvimento econômico. Ao definir os rumos da correção do modelo, deve-se ter em mente que as elites mundiais que concentram a influência econômica, política e intelectual são atraídas, em primeiro lugar, pelas tendências liberais, no sentido amplo e moderno do termo. Por essa razão, o quadro geral do sistema econômico-financeiro mundial só pode se basear agora em valores liberais correspondentes, que incluem diversos elementos conservadores e socialistas. Presume-se também que a interpretação de tais valores, no que se refere aos objetivos de correção do modelo de globalização, deve, sem dúvida, ser revista em termos de uma maior assertividade ética. A evidência de tal perspectiva é o óbvio reforço do modelo ético, que se manifesta tanto nas ideias dos chefes dos principais países ocidentais quanto nas dos ‘masterminds’. Conforme evidenciam a teoria e a prática, nas instituições nacionais eficientes o controle real das atividades econômicas e sociais deve ser exercido por valores e normas. O modelo corrigido deverá reconhecer claramente a admissibilidade, em seu contexto, de uma pluralidade de modelos nacionais. O principal objetivo da correção do modelo de globalização é a criação de mecanismos institucionais para a integração eficaz de instituições globais e nacionais baseadas nesses múltiplos valores. Essa tarefa exigirá a análise das práticas de sistemas híbridos que garantam a combinação eficiente das novas normas globais, de um lado, e dos objetivos de desenvolvimento específicos de cada nação, de outro. Isso significa que os marcos de referência nacionais para a correção do modelo de globalização podem ser desenvolvidos por meio do claro estabelecimento instrumental de tarefas concretas de desenvolvimento, enfatizando as peculiaridades das condições de desenvolvimento econômico e social correspondentes e suas características históricas e nacionais. Um importante fator adicional para o estabelecimento desses marcos de referência consiste em levar em conta os requisitos relevantes dos parceiros mais próximos de cada um dos membros do BRIC em geral. Presume-se que o desenvolvimento de marcos de referência para a correção do modelo de globalização deva ser o tema da posição comum a ser alcançada pelos países do BRIC, com a participação de outros aliados mais próximos. Este tópico, por exemplo, pode ser o tema de um seminário internacional em separado, com participação de especialistas dos países do BRIC e organizado conjuntamente. A tarefa principal desse seminário será analisar a especificidade das instituições nacionais que sejam compatíveis com o funcionamento eficiente da economia global. A segunda crise: substituição de um duradouro “período Kondratiev”, surgimento de um novo ciclo do processo. O destacado cientista russo N.D. Kondratiev desenvolveu a teoria da evolução cíclica do desenvolvimento econômico mundial: a cada meio século, a economia mundial tem períodos de crescimento e declínio que formam um único grande ciclo. A fase de crescimento pode incluir declínios e mesmo crises importantes, mas duram pouco tempo, e a perspectiva de longo prazo é caracterizada pelo crescimento econômico. Tem-se como suposto que, no momento, estamos assistindo à conclusão do ciclo-K baseado nas tecnologias de comunicação e informação e na produção em massa de carros e artigos associados. A evidência desse fato está no acentuado declínio da lucratividade de corporações relacionadas a esses produtos. Ao mesmo tempo, estamos diante de uma nova onda cujos principais condutores são as tecnologias orientadas para a melhoria da saúde e o aumento da longevidade. Já é possível visualizar as perspectivas de se aumentar a longevidade até os 130 anos. Além disso, existem possibilidades de mudanças fundamentais de processos nas áreas de eficiência energética e de criação de materiais com características totalmente novas, para uso em diversas indústrias. Uma evidência parcial da nova onda é o chamado renascimento nuclear, bem como o desenvolvimento de tecnologias que tornarão a economia mundial menos dependente da disponibilidade de hidrocarbonetos. A tese do surgimento de um novo ciclo de processos exige uma estratégia econômica totalmente nova relacionada à busca de nichos tecnológicos e de negócios que garantam margens elevadas. Essa ocupação de setores e nichos com margens elevadas cria possibilidades para a elevação dos padrões de vida da população, para aumentos nos salários dos que participam dos correspondentes projetos hi-tech e para a implementação de novos projetos no âmbito da corrida tecnológica que terá lugar na primeira terça parte do século XXI. Esta tese representa um desafio para as economias dos países membros do BRIC no que se refere à sua integração nos futuros projetos tecnológicos. Supõe-se que a resposta de nossos países a esse desafio poderia ser a seguinte: • Organização de equipes de especialistas para análise conjunta de perspectivas de projetos comerciais e utilização dos resultados de pesquisas fundamentais. • Criação de centros de pesquisa conjunta nas áreas relacionadas com as prioridades do novo ciclo de processo. • Desenvolvimento de projetos tecnológicos conjuntos que exijam elevados gastos financeiros e sofisticada cooperação nas fases de pesquisa e produção. Um exemplo disso poderia ser um projeto conjunto Rússia-Brasil-Índia para o desenvolvimento de um bombardeiro estratégico de primeira geração. Ao analisar nossa posição atual com relação ao ciclo-K, deve-se ter em conta que as ondas modernas estão longe de ser tão duradouras como anteriormente. A tendência à redução do comprimento da onda pode ser explicada pelos seguintes fatores: • A ciência fundamental moderna tornou-se um fator determinante da criação de tecnologias básicas e de novos produtos. Ao mesmo tempo, os pesquisadores e os fomentadores têm sua atenção cada vez mais voltada para o aproveitamento do potencial comercial de tais pesquisas; • O ciclo de processo para a criação de novos produtos e sua introdução no mercado reduziu-se significativamente; • O surgimento de grande número de empresários (mencionados por J. Schumpeter) que desenvolvem novos produtos e tecnologias e criam uma concorrência global, reduzindo as margens inicialmente altas dos inovadores monopolistas e, desse modo, criando condições para que o transcurso da onda seja mais rápido. Em certo sentido, pode-se ser surpreendido não por uma tendência de redução da onda, mas, ao contrário, por um processo relativamente lento de redução. Regulação neo-keynesiana de ondas-K. Supõe-se que a redução da onda-K tenha resultado no fato de que seu comprimento é hoje comparável à duração do ciclo tecnológico. Se os fatores acima se fortalecerem, o comprimento da próxima onda de longa duração - que já está reduzido a 22-25 anos - será comparável ao ciclo tecnológico-econômico completo, ou seja, ao período de desenvolvimento, produção, organização, introdução no mercado e reembolso total de um produto de tecnologia sofisticada. Por exemplo, no caso da nova geração de aeronaves, o ciclo tecnológico-econômico é quase desse comprimento, e nele se concentram gastos de centenas de bilhões de dólares. Uma situação semelhante pode ser observada com as tecnologias de base na área de energia (por exemplo, os novos reatores nucleares “breeders”). Se esta hipótese for verdadeira, terá consequências drásticas para o progresso tecnológico. Assim, a probabilidade de se obter retornos com novas tecnologias de ponta reduz-se significativamente. É o caso, por exemplo, dos prejuízos decorrentes de novos projetos de optical carriers. Em consequência de tal situação, os investidores privados sairão do setor de tecnologias de base e se concentrarão em projetos locais e nichos menos dispendiosos. Tendo em conta o drástico aumento do papel do setor privado no financiamento de inovações, isso leva não apenas à recessão, mas também à subutilização do potencial científico e técnico para a solução de problemas sociais e econômicos importantes, e até mesmo críticos para o desenvolvimento global. Além disso, pode levar a uma redução ainda maior da onda-K, à diminuição das possibilidades de reembolso total do projeto e, assim, à fuga em massa do setor privado do mercado de tecnologias. A compreensão desta nova contradição resulta num desafio: renderse à ameaça de estagnação tecnológica ou utilizar as possibilidades do estado neo-keynesiano de exercer o controle anticíclico com base num novo ciclo: ondas-K. O objetivo é prover os fomentadores com tecnologias de base caracterizadas por períodos mais longos de recuperação do investimento e por usos mais longos dos resultados comerciais derivados de nossos avanços. Este problema é bastante claro no caso do desenvolvimento de novos medicamentos em consequência de avanços fundamentais na biologia e na engenharia genética, com despesas que chegam a bilhões e até a dezenas de bilhões de dólares. Os prazos de validade das patentes desses medicamentos que às vezes curam doenças até então incuráveis nem sempre asseguram o reembolso dos gastos. Na realidade, os genéricos lançados no mercado quando as patentes expiram são mais baratos, sua acessibilidade é maior e, portanto, curam maior número de pessoas. Mas não haveria genéricos sem tecnologias de ponta. Sem a menor dúvida, a redução dos prazos de validade das patentes acelera a expansão das curas resultantes de medicamentos, pois esses ficam ao alcance de um grande número de pessoas que hoje não podem pagar seus altos preços. Mas, ao mesmo tempo, isso freia o impulso para o desenvolvimento de novos métodos de tratamento que libertarão muitas pessoas de doenças e sofrimentos no futuro. Aqui, pode-se ver uma contradição clássica entre consumo presente e consumo futuro, e sua resolução requer que se busque um novo equilíbrio de interesses. A necessidade de controle anticíclico relacionado às ondas-K torna-se ainda mais importante para as economias orientadas para o uso de tecnologias baseadas nos avanços da ciência fundamental. Esses países são, em primeiro lugar, os Estados Unidos, principais fornecedores dessas tecnologias para o mercado mundial atual; a União Europeia, que propôs o programa de Lisboa para fazer da tecnologia o principal propulsor da economia do continente; a Rússia, que ainda preserva seu potencial na área de pesquisa fundamental, e o Brasil, que entra ativamente na criação de tecnologias de base inovadoras. O interesse por um novo tipo de regulação anticíclica global é significativamente menor entre aquelas economias voltadas para importação, e não para a liderança tecnológica. É bastante óbvio que esses países não incorrem em nenhuma despesa com pesquisa fundamental nem com o desenvolvimento de tecnologias básicas, e, no melhor dos casos, adquirem dos inovadores o direito do uso da propriedade intelectual. Mais frequentemente, essas economias copiam os produtos inovadores e fabricam bens pirateados sem indenizar os gastos realizados pelas economias inovadoras (por mais significativo que seja, a economia chinesa não é o único exemplo disso). Por outro lado, isso significa que, com frequência crescente, as economias inovadoras agem como doadoras para as economias que tomam esses “empréstimos”. A questão de se essas doações são um tipo de compensação por antigos erros dos centros da globalização provavelmente precisa ser levada em conta, mas não elimina um problema assim tão grave. Devido ao caráter global do problema em questão, sua resolução deve envolver as instituições que assumiram a responsabilidade pelo desenvolvimento econômico global: desenvolvimento de princípios políticos e econômicos – ampliação do G-8, com participação de China, Índia e Brasil (i.e., G8+3). Tal decisão conferirá maior peso às recomendações para a reforma desse grupo, de um lado, e permitirá que se leve em conta a crescente importância dos estados membros do BRIC, de outro. Modelos específicos e recomendações podem ser desenvolvidos pelo Banco Mundial. Levando em conta o referido acima, as agendas nacionais precisam escolher entre os que aderem à economia inovadora e os que se opõem a ela, preferindo tomar emprestado. Ao mesmo tempo, é bastante fácil imaginar que a estrutura dos que aderirem à regulação de ondas-K anticíclicas e dos que se opuserem a ela irá mudar. Ela será influenciada, por exemplo, pelo processo de transição das economias da China, Índia e Brasil em direção ao modelo de desenvolvimento baseado na inovação. Ficará totalmente claro que o reconhecimento da importância de novas tecnologias de ponta e de produtos exerce influência sobre o desenvolvimento social e econômico global. Supõe-se que o problema real atual consista na criação de mecanismos econômicos para a regulação do desenvolvimento global e nacional baseado em inovações, garantindo o equilíbrio de interesses tanto dos condutores de tal desenvolvimento quanto das economias que recorrem predominantemente a empréstimos. É aconselhável recomendar aos executivos russos e brasileiros que formem um painel de especialistas para preparar um relatório contendo os conceitos iniciais relativos ao problema em questão, a fim de que tal relatório possa servir de base para discussões no G8+3. A terceira crise é a crise do sistema financeiro global, iniciada pela crise institucional do capitalismo e pela política egoísta dos Estados Unidos. Teoricamente, tal como fazem muitos especialistas, devemos levar em consideração duas crises distintas: a do sistema financeiro mundial e a do sistema financeiro americano. Há sérias razões para tal distinção. A crise financeira americana foi causada pela elevada tendência de consumo atual da população do país e por um nível extremamente baixo de poupança. Existe um consenso entre a classe política americana: “o padrão de vida não se encontra em discussão”. Em grande medida, isso leva à formação de três grandes déficits: orçamentário, comercial e de pagamentos. Assim, o déficit orçamentário alcançou o nível sem precedentes para um período não militar: nove por cento do PIB. A dívida nacional superou, em muito, o nível “seguro”, e o serviço da dívida só não conduz à catástrofe orçamentária devido a uma taxa de refinanciamento extremamente baixa. Esse refinanciamento da dívida só é possível caso se mantenha o fluxo de investimentos externos, e isso, por sua vez, só é possível caso se mantenha a confiança no dólar e na economia americana em geral. O sistema financeiro americano transformou-se num gigantesco “sorvedouro”, absorvendo os fundos acumulados pelos países exportadores líquidos, basicamente pela China e pelo Japão. Esse sistema contamina a economia global com muitas doenças institucionais causadas pelas condições vigentes na economia nacional. Assim, a mitologia da “maravilha americana” gerou os padrões de uma corrida em busca do sucesso financeiro, com milhões e bilhões de dólares ganhos com alta tecnologia, Hollywood e Wall Street, bolsas de valores, bancos de investimento e fundos hedge. Essa corrida influenciou os negócios: a redução dos limites de risco gerou manipulações contábeis, projetos de investimento “personalizados” e avaliações também “personalizadas”. Os mercados financeiros, dominados por especulações sobre derivativos e futuros, perderam o contato com a economia real e geraram um “capitalismo de cassino” de âmbito global. Ainda assim, o tamanho da economia americana e sua escala de influência no sistema financeiro mundial requerem que se veja a crise de seu sistema financeiro como inseparável da crise financeira global. O caráter institucional da crise global é universalmente reconhecido hoje, pois foi gerada não apenas pelos problemas financeiros dos Estados Unidos, mas também pelo fato de que esse país estabeleceu exemplos institucionais para o sistema financeiro global. Nesse sentido, a crise financeira global é filha da crise da globalização examinada acima. A influência da globalização sobre a destruição de negócios teve duas faces. As empresas líderes mundiais, de acordo com uma série de precedentes declarados, adotaram as práticas empresariais “do terceiro mundo”, que antes eram criticadas por contrariar os padrões corporativos do mundo desenvolvido. As confissões da HP e da Daimler sobre o uso ativo de transações de corrupção nos países em desenvolvimento foi um claro exemplo de tal prática duvidosa. O sistema financeiro global emancipou-se das funções de servir à reprodução de bens e serviços e voltou-se para si mesmo, regulado por seus próprios e bastante específicos interesses e mecanismos. A escala e a velocidade dos fluxos transnacionais e sua influência sobre os destinos de países e povos é tão forte, que foram transformados em fator multiplicador do módulo de flutuação cíclica. Em muitos casos, o resultado final foi o colapso das economias nacionais. A instabilidade dos sistemas financeiros global e americano e sua alta vulnerabilidade ao processo de ataques especulativos levaram a economia global ao desastre final e motivaram muitos líderes mundiais a investir grande esforço político para reformar o sistema financeiro global. Aqueles gastos foram compensados pelas vantagens do crescimento. O sistema financeiro distorcido que existe hoje, com suas motivações internas especulativas, sempre buscará indícios de “bolhas” e as ampliará até que alcancem dimensões superlativas. O caráter de sua ação chegou a tal ponto, quando os prejuízos socioeconômicos do “capitalismo de cassino” se tornaram descomunais, que a comunidade internacional passou a ter dúvidas sobre as vantagens fundamentais da economia de mercado como tal. A ampla compreensão do caráter institucional da crise financeira global refletiu-se na agenda do G-20, nas declarações de muitos líderes mundiais que exigiram a criação de um mecanismo de regulação do sistema financeiro mundial, nas ofertas do Presidente Barack Obama para reformar o sistema bancário americano e também nas chamadas de muitos líderes mundiais para que sejam criadas taxas sobre transações especulativas. Todas essas medidas estão focadas na redução do componente especulativo nas atividades das instituições financeiras. Essa aspiração de se criar uma ligação mais estreita entre o sistema financeiro e os custos de bens de consumo é bastante promissora. No entanto, essas medidas dificilmente conseguirão superar as tendências de uma extensa reprodução de crises. As instituições internacionais e nacionais destinadas a controlar a atividade empresarial desempenham um papel importante na reforma do sistema financeiro mundial. Como se sabe na teoria, os sistemas de controle devem se ajustar ao grau de dificuldade que encontram para controlar efetivamente os sistemas subordinados. A dificuldade de controlar a atividade das maiores corporações financeiras aumentou significativamente nas últimas décadas. Isso reduz fundamentalmente as possibilidades potenciais de controle externo. Deve-se acrescentar que os níveis de motivação dos controladores e dos subordinados devem ser minimamente adequados. Obviamente, isso é difícil de ser alcançado, tanto no caso das motivações empresariais aventureiras quanto no caso de funcionários públicos pósmodernos eticamente neutros. Não admira que a SEC (Securities and Exchange Commission), um dos órgãos de controle mais profissionalizados, não tenha conseguido controlar os mercados financeiros e a qualidade das informações fornecidas pelas corporações. Portanto, só é possível sustar a reprodução das tendências de crise do sistema financeiro mundial usando-se o controle externo supranacional e nacional e, simultaneamente, um controle interno que seja institucional e eticamente assertivo. Isso, por sua vez, requer mudanças tão radicais no arcabouço teórico predominante e no discurso político, que a ideia está sendo mencionada aqui apenas para completar o marco de referência. Isso significa que as perspectivas de mudanças fundamentais no sistema financeiro global são menos realistas. Existe também um apelo gerado pela crise do modelo de globalização, que compromete os fundamentos éticos dos sistemas globais e institucionais. Supõe-se que o foco da luta para a recuperação do sistema financeiro global deva estar na redução de seu componente especulativo. Para a Rússia e o Brasil, em particular, isso significa a redução essencial da volatilidade dos preços dos principais produtos que compõem nossas exportações primárias. Isso faz com que nossos países se beneficiem, em medida significativa, com a recuperação do sistema financeiro mundial e, consequentemente, participemos ativamente de sua reforma. cria motivação para que Os países do BRIC já começaram a tomar medidas ativas focadas na redução da influência dos defeitos do sistema financeiro global sobre suas economias. Em primeiro lugar, essas medidas buscam torná-los menos dependentes da “saúde” do sistema financeiro americano, ou seja, do dólar. Assim, a China e o Brasil – e, posteriormente, a China e a Rússia – concluíram acordos intergovernamentais sobre o uso de moedas nacionais no comércio bilateral. A Rússia e a Índia já haviam assinado um acordo análogo anteriormente. O desenvolvimento desta tendência requer diversas novas decisões institucionais: • Criação, pelos países do BRIC, de um banco de compensações internacionais que amplie as possibilidades de uso de moedas nacionais nos acordos mútuos e permita que terceiros países que possuam a moeda nacional de um dos países do BRIC façam acertos de contas com qualquer dos países deste grupo; • Organização pelos países do BRIC, independentemente ou em cooperação com o Banco Mundial, de uma agência internacional de avaliação destinada a estimar os riscos do país, levando em conta a especificidade do caráter institucional nacional. A criação dessa estrutura oficial ajudará a eliminar o monopólio das agências tradicionais, que consideram apenas os padrões institucionais universais sem levar em conta a especificidade do desenvolvimento nacional de cada país. • Continuação dos esforços coordenados dos países do BRIC para expandir as funções dos SDRs (Direitos Especiais de Saque dos recursos do FMI). Discute-se a transformação dos SDRs em uma moeda de reserva global, livre das desvantagens do dólar e de sua dependência dos problemas dos sistemas financeiro e econômico americanos. Esta decisão só poderá ser eficaz se contar com o aumento essencial do papel dos países do BRIC no governo do FMI, garantindo a seus representantes um lugar na gestão executiva do Fundo, em conformidade com a influência global desses países sobre a evolução da economia global; • Ampliação das possibilidades financeiras para a realização de grandes projetos conjuntos de investimento. Vale a pena considerar a possibilidade da emissão de títulos BRIC para financiar tais projetos conjuntos, com base nas garantias mútuas. Isso contribuirá para a realização dos grandes projetos tecnológicos dos países do grupo. O poder econômico de nossos países, e suas perspectivas, fará com que esses instrumentos financeiros tenham sucesso no mercado mundial, e nossos países conseguirão recursos baratos para a realização de projetos de grande porte – como, por exemplo, a construção da rede de centrais nucleares. A quarta crise: uma crise cíclica usual que abrange todos os países envolvidos nas relações globais. Nessa relação, deve-se notar que sua escala foi basicamente exagerada devido à influência das três crises discutidas acima, principalmente a do sistema financeiro global. As medidas relativas à sua superação, praticamente ditadas pelas receitas keynesianas, demonstraramse eficientes para reduzir o declínio do setor real da economia. Mas revelaram-se menos eficazes em relação às finanças públicas. Em certo sentido, os gastos excederam os resultados de forma significativa na maioria dos países e enriqueceram o sistema bancário. O crescimento da dívida nacional de vários países europeus levou à ameaça real de que os pagamentos não fossem honrados. A economia chinesa foi menos afetada, pois o apoio estatal permitiu que ela sobrevivesse com sucesso ao declínio das exportações. Isso, na opinião de muitos especialistas, causou a diminuição significativa da eficiência do sistema de crédito. Outra consequência de longo prazo da crise, que atinge a Europa, os Estados Unidos e, parcialmente, o Japão, é o alto nível de desemprego. Sua superação exige taxas de expansão elevadas num contexto de crescimento lento da capacidade de geração de empregos. Essa situação contraria os requisitos para se aumentar a capacidade competitiva nos quadros da competição global. Essas contradições entre a necessidade de garantir o crescimento da capacidade competitiva no contexto de mudanças estruturais ampliadas, de um lado, e a necessidade de manter o alto padrão de vida e reduzir o desemprego, de outro, levam à busca de estratégias pós-crise nos países desenvolvidos. Os líderes dos países em desenvolvimento, inclusive os nossos, enfrentam tarefas análogas de manter o rápido crescimento do padrão de vida e, ao mesmo tempo, manter as perspectivas de crescimento no longo prazo. A solução das tarefas de estimulação pós-crise requer esforços conjuntos coordenados: • Criação de um grupo misto de peritos do BRIC para estudar o potencial de desenvolvimento do comércio entre nossos países, incluindo a análise das novas perspectivas no contexto das mudanças pós-crise na economia global; • A crise demonstrou que a realização de projetos de infraestrutura tem influência significativa e positiva sobre a recuperação da economia. Nesse contexto, é aconselhável que se prepare o relatório analítico completo sobre as perspectivas de participação dos países BRIC nos projetos nacionais de desenvolvimento da infraestrutura social e industrial. Isso inclui a aceitação do documento normativo definindo os benefícios para as empresas dos países BRIC que participam da realização dos projetos correspondentes. As estruturas globais e nacionais dos interesses pós-crise criam o contexto principal de formação dos interesses russos análogos, sendo um importante componente da estratégia de modernização nacional. 2. ESTRUTURA DOS INTERESSES PÓS-CRISE DOS PROTAGONISTAS GLOBAIS Como já mencionado, a determinação dos marcos pós-crise da Rússia e do Brasil requer a análise dos interesses dos outros principais participantes da cena global. Estamos diante de um resultado importante da crise: os protagonistas ganharam uma compreensão mais profunda de seus interesses nacionais. A crise arrancou muitas máscaras. Os líderes dos países poderosos começaram a falar de algo que nunca teriam dito sem trágicas consequências para eles mesmos. É óbvio que as bases ideológicas e políticas de decisões nacionais e internacionais a respeito de políticas específicas estão sendo revistas, bem como os motivos e incentivos que atuam como reguladores econômicos. O estado é um novo protagonista no campo econômico – e, além disso, desempenha um papel de liderança. Hoje, quando o auge da crise já ficou bem para trás, e a situação tornou-se clara o suficiente, é possível analisar os interesses dos principais protagonistas para compreender sua nova disposição pós-crise e, assim, prever o curso dos acontecimentos futuros. O relatório está baseado em vários pressupostos. Em primeiro lugar, a resposta dos Estados Unidos (o protagonista global chave, independentemente do que possam dizer os radicais) aos desafios da crise global tem um caráter estratégico. As elites americanas preservaram sua visão estratégica e, a julgar pelos eventos dos últimos meses, continuam a seguir a estratégia racional, respeitando as ideias dos grupos dominantes sobre a estrutura dos interesses nacionais e o papel global da América. Portanto, não podemos contar com o enfraquecimento básico do papel dos Estados Unidos na formação da ordem global pós-crise e na correção do modelo de globalização vigente. Para a resolução de todas essas tarefas, a reconsideração dos interesses americanos e a reestruturação das metas dos Estados Unidos serão fatores importantes. Em segundo lugar, a crise econômica global não apenas foi o resultado da crise do modelo de globalização em vigor, mas também estimulou mudanças significativas neste modelo. Este se caracterizava pelo monólogo autocentrado, pela dominação global militar, política, tecnológica e financeira dos Estados Unidos, pela formação de um único exemplo institucional político e econômico, e pela disseminação dos valores do liberalismo como se fossem os únicos legítimos. A perda da posição dominante dos Estados Unidos leva à formação do modelo dialógico com um centro “sesqui partidário” e controle multidimensional. Os Estados Unidos levarão em conta as posições de outros protagonistas - em primeiro lugar, a da China -, dependendo da real influência de cada um sobre cada componente da globalização. Os protagonistas globais estão interessados em ganhar a liderança em alguns desses componentes, aumentando sua influência no “conselho diretor global” dirigido pelos Estados Unidos. Em terceiro lugar, os fatores geoeconômicos têm maior peso na determinação das estratégias dos estados nacionais, de suas coalizões e associações, do que os fatores políticos e militares tradicionais. Em quarto lugar, a crise global está associada à conclusão de um longo “ciclo Kondratiev” e caracteriza-se pelo lançamento de inúmeras tecnologias de ponta que irão definir a imagem da segunda e terceira décadas do século XXI. A liderança na criação e introdução dessas tecnologias no mercado, ao lado de um papel importante no funcionamento do sistema financeiro global, serão os principais fatores para definir a influência no “concerto” dos dominadores globais. Em quinto lugar, as relações entre os Estados Unidos e a China influenciam todo o quadro do desenvolvimento global. Hoje, essas relações caracterizam-se pelo seguinte: • profunda interligação econômica entre os dois países, com o consentimento dos Estados Unidos às enormes exportações chinesas em troca do financiamento do déficit da balança de pagamentos americana pela China; • a economia chinesa é profundamente dependente de impulsos tecnológicos (principalmente americanos) e de impulsos inovadores em geral, que são fortes elementos impulsionadores da dinâmica econômica chinesa; • a compreensão do fato de que a China promove um projeto global alternativo ao americano, do qual difere com novíssimos exemplos axiológicos e sociopolíticos; • a percepção crescente pelas elites dos dois países de que suas relações constituem uma rivalidade regulamentada com vista à dominação global; • a tensão crescente entre os Estados Unidos e a China, resultante do sentimento das elites americanas quanto à crescente vulnerabilidade de seu país, de um lado, e do rápido crescimento das ambições globais das elites chinesas, de outro. O peso das interrelações entre os Estados Unidos e a China sobre o desenvolvimento global resulta no fato de que essas relações serão projetadas sobre os processos de definição e negociação de seus interesses com outros protagonistas influentes. Além disso, o caráter mutável de suas relações influenciará todo o arranjo global. A crescente importância das relações entre os Estados Unidos e a China não significa que se ignorem as estreitas relações da América com o NAFTA, a União Europeia e o Japão. Veremos os Estados Unidos, a China e a Índia como os atoreschave, importantes para os interesses da Rússia e do Brasil. Neste caso, os Estados Unidos são vistos como o um todo, a despeito das nuances nos interesses de seus participantes particulares. Consideraremos a União Europeia não como os burocratas em Bruxelas, vendendo sua crescente (embora longe de essencial) importância, mas como o consenso dos interesses de seu “núcleo europeu”: Alemanha, França, Itália etc. O “núcleo europeu” definirá o foco dos interesses da União Europeia. Analisando os interesses dos principais protagonistas, agruparemos esses interesses em três círculos: • recuperação do sistema financeiro global danificado, criação do sistema renovado de instituições financeiras globais; • recuperação das economias nacionais, sem sérios golpes sóciopolíticos; • início da criação da estrutura renovada das economias nacionais, em conformidade com os desafios globais. Apesar do fato de que o primeiro e o segundo círculos de interesses estejam no centro das atenções atuais, devemos ter em mente que os protagonistas chave se concentrarão no terceiro círculo de problemas. Esses problemas definirão a agenda política e, respectivamente, o destino das principais potências políticas e, não menos importante, o destino de certos líderes. Supõe-se que a posição dos protagonistas na luta com a crise global será definida, em primeiro lugar, por suas ideias a respeito do montante de benefícios e prejuízos que resultarão das alterações em sua estrutura econômica após o encerramento da crise. Em cada país, as elites e lideranças responsáveis não querem que a estratégia adotada resulte em sua própria ruína econômica, mesmo que essa constituísse o preço a pagar pelo bem-estar global. Existem protagonistas supranacionais e nacionais – os beneficiários do desenvolvimento global - que tentam impor ou “vender” a correspondente estratégia aos governos nacionais. 1. Os interesses dos Estados Unidos Os interesses dos Estados Unidos, o protagonista de maior influência, são definidos, em grande medida, pelos seguintes fatores: • Intenção de manter sua dominação nos setores que propiciam altas margens: em primeiro lugar, nas indústrias de alta tecnologia e de entretenimento, e nos serviços financeiros. Os Estados Unidos se empenharão em manter a liderança em todos os setores com margens elevadas, pois isso pode garantir seu padrão de vida extra-alto. A perda das posições dominantes nesses setores levará à perda de influência global, à drástica redução do padrão de vida e, consequentemente, às mais sérias perturbações sócio-políticas. • Inadmissibilidade de se adiar a superação da crise global, pois ela reduz a demanda mundial pelos serviços dos setores de ponta americanos; reduz a possibilidade financeira de se apoiar sua reprodução e manter a dominação militar e tecnológica; abre “janelas de oportunidades” para rivais nesses setores de importância vital para os Estados Unidos. • Influência negativa das graves dificuldades orçamentárias, associadas ao apoio à componente de força do poder americano. A combinação da crise com a “síndrome Iraque” e o “atoleiro afegão” compromete seriamente os Estados Unidos no que se refere à sua representação de força nos pontos críticos de instabilidade global – uma condição necessária para manter seu papel de “polícia mundial”. Esse papel é necessário para que a América possa manter a chance de atrair investimentos do mundo. Sua perda resultará no aprofundamento da crise nacional e nas mais sérias consequências socioeconômicas e sociopolíticas. • Continuada influência divisiva da crise sobre a elite americana. A estratégia antirrecessiva de Barack Obama, ao lado de sua política social, é percebida em função de diferentes posturas axiológicas e ideológicas. Seu sucesso - ou sua derrota - será encarado como vitória dos liberais ou dos conservadores e de seus respectivos fundamentos radicais. A política antirrecessiva e o combate às consequências da crise conduzem a mudanças essenciais nas disposições da elite. Os esforços de Barack Obama destinam-se a desviar essa ameaça, mas as possibilidades estão desaparecendo rapidamente. Assim, os Estados Unidos estão interessados na possibilidade de que a crise chegue ao fim rapidamente, permitindo a manutenção da atual estrutura econômica americana e das posições do país no mundo. Isso, em particular, não deixará que a influência dos Estados Unidos sobre a formação de mecanismos de regulação financeira global após a crise fique enfraquecida. Retardar a superação das consequências da crise é arriscado demais e inaceitável para a América. É preciso dar continuidade ao “modo americano” no mundo pós-crise. É por isso que os Estados Unidos precisam do apoio do maior número possível de protagonistas mundiais. A questão principal é saber em que medida a América reflete sua vulnerabilidade. A resposta a essa questão influencia sua capacidade de pesar racionalmente a nova correlação de forças e, consequentemente, definir a extensão das sucessões do governo americano no caso de formação da nova coalizão global. Outro problema grave são os crescentes conflitos gerados por importantes decisões estratégicas americanas. O conflito com a China sobre a taxa de conversão do yuan é evidente. Surgirá conflito semelhante com a China e a Europa em consequência do início do processo de reindustrialização dos Estados Unidos, que levará de volta ao território nacional as capacidades produtivas geradoras de altas margens. Parece que Barack Obama, em virtude de sua carreira e de seu caráter, bem como das habilidades demonstradas no início do mandato, pode se tornar um líder capaz de se afastar dos estereótipos das políticas americanas. Ele poderá conseguir celebrar os acordos necessários com parceiros potenciais dos Estados Unidos a fim de ganhar seu apoio para construir a configuração global e atender aos interesses estratégicos americanos. É óbvio que ele está pronto para oferecer lugares no conselho diretor da corporação global, mantendo a presidência e o controle acionário. De fato, Barack Obama apresenta mais uma versão do “novo rumo”. Na realidade, ela não tem escolha. No entanto, devemos entender que o preço do fracasso é muito alto tanto para a política interna dos Estados Unidos quanto para o mundo todo. 2. Os interesses europeus Os interesses europeus – ou, mais exatamente, do “núcleo europeu” – ao contrário da opinião vigente, diferem substancialmente dos interesses americanos. Para a Europa, o retorno à situação pré-crise significa a preservação do domínio financeiro e econômico americano; a continuação da transferência da capacidade ativa produtiva para os países que oferecem custos baixos, principalmente para a China; e a perda de empregos de pessoal qualificado, sem compensações, em detrimento do crescimento dos setores pós-industriais. Além disso, a recessão que agora termina e a restauração que se inicia apressarão este processo. Nichos nas áreas de serviços financeiros, alta tecnologia e entretenimento estão ocupados pelos Estados Unidos. A situação é ainda mais tensa nas novas tecnologias de ponta que estão surgindo. Assim, uma estratégia econômica realista da Europa requer uma elevação radical da concorrência com os Estados Unidos nos setores com margens potencialmente elevadas e, portanto, vitalmente importantes para esses dois protagonistas. O retorno ao sistema geoeconômico anterior representaria uma longa estagnação e a degradação tecnológica das economias europeias, conduzindo a uma grave crise sociopolítica. O retardo do processo de superação das consequências da crise pelas maiores economias europeias terá resultado semelhante. O recente declínio, com elevados gastos orçamentários na maioria dos estados europeus, induzido pelo apoio aos setores financeiros e real da economia, bem como a subversão das posições do euro, prejudicam todo o sistema sociopolítico europeu que foi construído nas últimas décadas. Existe um limite óbvio para a tensão que pode ser manejada pelo “núcleo europeu” sem gerar uma nova crise. Isto significa que a Europa está interessada não apenas em superar as consequências da crise financeira global, mas também em fazer grandes e importantes mudanças estruturais em suas próprias economias nacionais, fornecendo novas fontes de crescimento econômico e bem-estar. A realização da “estratégia de Lisboa”, com foco na reconstrução da economia da inovação, está encontrando dificuldades, e vem sendo realizada por métodos burocráticos. O sucesso financeiro da Europa é maior, mas não está claro se ela conseguirá manter suas conquistas na situação pós-crise. Deve-se compreender que, sem mudanças estruturais profundas, a estagnação europeia é quase inevitável. Tal compreensão da situação leva à conclusão de que é inevitável a escalada da disputa entre a União Europeia e os Estados Unidos pelos nichos na “nova economia” com altas margens de lucro. Ao mesmo tempo, a insuficiente atenção dada pela Europa, por seu “núcleo europeu”, à reflexão sobre seus interesses geoeconômicos estratégicos e o medo imaginário de demonstrar suas divergências com os interesses dos Estados Unidos complicam a compreensão da mudança de foco dos interesses correspondentes. É bastante óbvio que ambos os lados, os Estados Unidos regidos por Barack Obama, e a Europa, vão se esforçar para diminuir a tensão crescente. O euro pode ter seu papel aumentado no novo sistema financeiro global. Parece que o efeito agravador das consequências da crise levará os “grandes” da Europa a reconsiderar a base da estratégia europeia e, em primeiro lugar, a correlação entre a solidariedade euro-atlântica, de um lado, e os interesses do desenvolvimento econômico, de outro. Dentro dos parâmetros dessa luta, o “núcleo europeu” tentará usar recursos russos a fim de resolver seus interesses estratégicos. 3. Os interesses da China Os interesses da China são definidos, em grande medida, por uma situação de transição que tem muitas facetas. A China está a meio caminho de muitas transições: • De um modelo econômico exportador dominante para uma estratégia mais equilibrada, com foco no mercado interno; • De uma economia baseada em inovações estrangeiras, principalmente americanas, para outra que depende de seus próprios recursos inovadores; • Transição para uma nova estrutura social. Camadas e grupos sociais modernizados ainda não se tornaram dominantes, ainda não chegaram a posições sociopolíticas estáveis. Com isso, os valores antigos e as normas da maioria tradicionalista têm sido seriamente abalados; • A mudança na liderança das elites chinesas ainda não foi finalizada. Os representantes das províncias litorâneas ainda não foram substituídos por novos grupos relacionados a novos marcos para o desenvolvimento. A crise e suas consequências ainda não controladas agravaram seriamente todas essas contradições. Atingiram as províncias litorâneas, até então bem-sucedidas, e as camadas modernizadas, criando uma importante crise de expectativas. A ameaça de perda da fé na liderança bem-sucedida do governo chinês e, consequentemente, no seu “mandato recebido do céu” determinou a forma de combate à crise escolhida por este governo. A crise foi “extinta” com dinheiro, na mesma extensão em que isso ocorreu nos países ocidentais. De acordo com os especialistas, os fundos foram gastos em projetos de infraestrutura e manufatura muitas vezes ineficientes e frequentemente supérfluos. Há uma séria preocupação com a possibilidade de que os bancos chineses estejam sobrecarregados com ativos tóxicos. A crise introduziu importantes mudanças na mentalidade do governo chinês. Foi entendido que o governo havia obtido um poder acionário de bloqueio quanto a todas as decisões envolvidas no processo de construção de um novo sistema global. Sentindo-se um “salvador” da economia global, o governo pode aumentar as taxas de juros e tentar conseguir o status de duúnviro no conselho de administração global. Uma lenta reconstrução da economia global cria os mais sérios riscos sociopolíticos para a China. O lento crescimento das importações nas economias desenvolvidas requer que se estimulem as manufaturas, mudando o foco para o mercado interno. Podemos observar os sinais de superaquecimento da economia, inflada com o súbito e descontrolado colapso associado à superprodução, deflação e recessão. A luta com esse superaquecimento é limitada pela necessidade de manter elevadas taxas de crescimento do PIB, acima de sete por cento. Deficiências fundamentais no arcabouço institucional e, acima de tudo, no sistema político da China, seu insuficiente dinamismo e distorções nos mecanismos de feedback inevitavelmente se manifestarão durante a luta pelo equilíbrio socioeconômico e político. A concorrência entre os grupos da elite aprofundará as atuais contradições entre províncias, setores econômicos e camadas sociais, e isso requer apoio. Os desentendimentos entre os grupos da elite são praticamente inevitáveis. De acordo com os cenários mais negativos, eles podem crescer e se transformar em cisões que adquiririam uma forma ideológica, provavelmente nacionalista. Os sinais de um conteúdo nacionalista e de preservação da forma ideológica comunista são óbvios. Simultaneamente, a memória histórica das discórdias civis ocorridas no início do século XX, bem como de embates análogos ocorridos nos diversos milhares de anos da história da China, dão base ao receio de um cenário de separatismo regional. Por um lado, esse medo mobiliza o governo, e, por outro, estimula as elites a se baterem pelos interesses de suas respectivas regiões e grupos sociais. A China tem que encontrar um novo rumo, um novo equilíbrio de interesses. Não se pode ter certeza de seu sucesso. A excessiva confiança do governo chinês, certo de que não admitirá o “absurdo de uma liderança Gorbachev”, não é a melhor garantia de sucesso. O curso seguido anteriormente levou ao sucesso, à prosperidade e à liderança global. A China não está pronta para lutar por essa liderança, e gostaria de esperar várias décadas. No entanto, o cronograma está encolhendo. Reconhecendo seus interesses e desafios, o governo chinês terá que enfrentar uma escolha difícil: o Continuar o curso anterior, a despeito de todos os riscos, baseando-se na economia orientada para o mercado interno durante a transição para recursos nacionais inovadores; o Ocupar temporariamente a posição pragmática extrema e entrar como um membro da coalizão global, dirigida pelos Estados Unidos, para a rápida superação das consequências da crise e restauração do antigo sistema financeiro e econômico global, benéfico para a China; o Usar a crise global para fazer mudanças essenciais no sistema financeiro e econômico global, para aumentar rapidamente o papel global da China e promover o projeto global chinês; o Agir como um líder do projeto geopolítico “oriental”, incluindo o Japão, a Coreia e, possivelmente, a ASEAN. No primeiro caso, dar apoio aos esforços dos Estados Unidos será a maneira mais eficaz de usar as reservas financeiras. A aliança tática, fortalecendo a profunda integração econômica, financeira e tecnológica existente entre os Estados Unidos e a China, pode avançar para uma parceria política estratégica, denotando o surgimento de uma dominação global duopolista. O fantasma da Chimérica está vagando pelo mundo todo. Sem dúvida, a escolha a favor do duopólio mundial encontrará a oposição da elite chinesa, criada dentro do espírito de antagonismo aos Estados Unidos, orientada pelos valores tradicionais chineses, apoiada pela nova mentalidade pós-crise. As elites novas, prontas para uma reviravolta tão radical, ainda não ascenderam nos degraus da hierarquia. Uma alternativa seria a rápida conclusão da reorientação para o mercado interno, para os recursos tecnológicos próprios e a manutenção de uma expansão externa ativa. Esse caminho requer a existência de unidade política no governo da China, a habilidade para resistir a incidentes locais e regionais. Um problema adicional é a ainda precária inclinação global das elites chinesas. O mais provável é que o governo da China evite uma escolha clara e lute para manobrar no espaço entre essas alternativas. No entanto, em caso de agravamento da crise econômica interna e de ameaças à estabilidade política, o governo da China dificilmente manterá uma posição de observador passivo. A escolha que conduza à redução dos riscos imediatos é a mais provável, bem como uma tentativa de firmar um compromisso com os Estados Unidos e conseguir a posição de membro temporário do conselho de administração global, como o parceiro mais novo. Este cenário resulta na diminuição substancial do papel de outros protagonistas no concerto global. 4. Os interesses da Índia Os interesses da Índia estão definidos por sua posição econômica, suas tarefas atuais nesta área e seus marcos geopolíticos. A crise demonstrou que a economia Indiana é bastante estável diante de sua influência. Seu desenvolvimento econômico já está focado no mercado interno, menos influenciado pela crise. As exportações indianas sofreram, mas isso resultou numa diminuição apenas ligeira das taxas de crescimento. A influência sociopolítica da crise manifestou-se na profunda reflexão das elites sobre os interesses nacionais e regionais do país. A compreensão da rapidez com que cresce a influência econômica indiana ficou mais clara. A Índia está interessada na reforma do sistema financeiro mundial, pois as novas condições lhe permitirão aumentar sua influência, bem como intensificar a entrada de tecnologias e investimentos, mantendo taxas de desenvolvimento elevadas e estáveis. A expectativa de uma influência positiva da crise materializou-se, pois a crise forneceu um ímpeto para aumentar a capacidade competitiva em muitas áreas. Retardar a superação das consequências da crise levaria na direção contrária: ao declínio na entrada de recursos externos para o desenvolvimento econômico, inclusive nas receitas de exportação. Os marcos geopolíticos da Índia estão associados a uma acentuada preocupação quanto às intenções da China. A China é uma velha aliada do Paquistão. As bases navais chinesas no Paquistão e em Mianmar, próximas da Índia, estão deixando nervosos os indianos e são percebidas como elementos da “armadilha estratégica contra a Índia”. Este fator define a intenção do governo indiano de manter a cooperação estratégica com os Estados Unidos, enquanto compete com a China. Este fator também determina as flutuações nas relações com a Rússia, que, na opinião de especialistas indianos, coopera estreitamente com a China. E a cooperação da Rússia e da China é um argumento importante usado pelos Estados Unidos em suas tentativas de estabelecer relações novas e “especiais” com a Índia. Em certa medida, a crise sustou ou, pelo menos, retardou a reorientação da Índia no sentido de uma maior proximidade com os Estados Unidos. As elites indianas estão nervosas devido ao provável surgimento da Chimérica e lamentam que estejam diminuindo as possibilidades de a Rússia resolver os problemas mais cruciais da Índia. Além disso, os principais especialistas notam a imprecisão da política externa russa, seu insuficiente grau de consistência quando se trata de realizar suas prioridades expressas. Entende-se que a parceria estratégica com a Rússia é um importante recurso da política externa indiana. Como resultado, os círculos dominantes na Índia estão se concentrando na multipolaridade de sua política externa. A entrada no G-8 ampliado (G-8+3) e no BRIC é considerada um instrumento para a realização dessa política. O BRIC admite que, dentro da moldura deste grupo, as consultas representam uma boa possibilidade de limitar “a liberdade das mãos chinesas”. Basicamente, a Índia tentará entrar no “conselho de administração global”. A formação de uma aliança estratégica entre os Estados Unidos e a China, ou mesmo uma significativa abordagem militar e política da questão, será vista pela Índia como uma ameaça mortal. Sem dúvida, essas considerações geopolíticas terão mais peso do que cálculos econômicos. Um fator importante que determina os interesses estratégicos da Índia, no que se refere a seus próprios recursos de inovação e tecnológicos, é a busca de uma fonte estável de transferência tecnológica. Antigas tradições nacionalistas indianas e a inércia de alianças estratégicas anteriores impedem que o país tenha uma orientação bem definida com relação a suas fontes americanas. A aliança tecnológica com a Europa também não funcionou. Existem antigas relações cientificas e técnicas com a Rússia, basicamente na esfera militar e técnica, mas estão longe do nível que possa influenciar o desenvolvimento econômico da Índia. Em consequência da crise e das alterações correspondentes na economia mundial, o governo indiano compreenderá a interligação entre o caráter do desenvolvimento econômico do país e seus marcos geopolíticos, proporcionando a efetiva transferência tecnológica. Isso significa que a Índia se verá envolvida na configuração das transferências globais de inovações e de tecnologias, e isso, por sua vez, influenciará substancialmente os marcos geoeconômicos indianos. Exemplos de tal transferência são os acordos com a Rússia sobre a criação conjunta da quinta geração de aviões de combate, projetados para a Força Aérea indiana, e a cooperação no setor de energia nuclear. *** As consequências e lições da crise criam o pano de fundo para o cenário de médio prazo – aumento da subjetividade global da Rússia e do Brasil. Vale a pena estar ciente do fato de que a formação do duopólio global americano e chinês não deixa espaço para que a Rússia e o Brasil sejam protagonistas globais significativos. Ao mesmo tempo, a criação de uma coalizão mais ampla e, portanto, mais leve, encabeçada pelos Estados Unidos, mesmo no caso da elevação do status chinês no “conselho diretor global”, cria um campo mais amplo de manobra para a Rússia e o Brasil. Existe uma variedade de cenários que podem ser escolhidos, desde entrar diretamente nessa coalizão global até a expansão das relações de parceria com os membros influentes da coalizão, em primeiro lugar a China e a Europa, que, em virtude de suas posições, terão alguma liberdade de manobra. Isso define nosso interesse comum no desenvolvimento da institucionalização do BRIC, na intensificação de consultas dentro do arcabouço deste grupo. Individualmente, a Rússia, a Índia e o Brasil carecem de influência que lhes permita consolidar a posição do BRIC. A China não concordará em deixar o triangulo BRI “sem atenção”, pois esse poderia se transformar num centro independente de influência global. Em consequência desse entrelaçamento de interesses, todos os membros do BRIC têm um grave motivo para buscar posições coordenadas em relação à reforma global. Caso o BRIC chegue a tais posições, ninguém correrá o risco de ignorá-las. Esses cenários e ameaças definem o interesse estratégico da Rússia e do Brasil, tanto no que se refere à correção significativa do sistema financeiro e econômico global quanto ao modelo de globalização. Seu interesse na criação de uma coalizão global para fazer tal correção é ainda maior. A participação em tal coalizão não significa enfrentar os Estados Unidos. Ao contrário, certas correções do sistema financeiro mundial e do modelo de globalização são interessantes para a economia americana. Com o apoio de tal coalizão, interessada na preservação de múltiplos centros de influência, é possível criar a coalizão global, reduzindo a probabilidade da aliança política local entre os Estados Unidos e a China. Essa coalizão pode incluir os países interessados em mudar as regras globais e em promover sérias mudanças estruturais em suas próprias economias: o “núcleo europeu” da União Europeia, Índia, Rússia, Brasil e, provavelmente, a China, caso escolha seguir a estratégia correspondente. Todos esses países querem ganhar seu lugar no “centro tecnológico global” e aumentar o componente de inovação de suas economias. Apesar da concorrência entre eles, estão cada vez mais envolvidos na concorrência com a América pelos nichos que oferecem altas margens, principalmente no que se refere às novas tecnologias de base do ciclo tecnológico que se inicia (veja acima). Além disso, todos os países estão interessados em sustar a absorção do fluxo principal de recursos financeiros do mundo pela América, que os usa para refinanciar seus déficits comercial, orçamentário e de pagamentos. A participação da Rússia nesta coalizão, reconhecendo as oportunidades que se abrem, dá a ela uma chance de fazer as mudanças estruturais necessárias para promover o crescimento econômico sobre uma base inovadora. Estimando as possibilidades de tal estratégia, dever-se-ia levar em conta que a Rússia e o Brasil podem se tornar os elementos de equilíbrio, os mediadores no âmbito da coalizão de interesses discutidos. Com frequência, o elemento de equilíbrio não é o país mais forte, mas aquele que ajuda a criar um equilíbrio estável de interesses, a reconfigurar os interesses de forma positiva. 3. EVOLUÇÃO DA AGENDA Uma nova estrutura de formação de interesses e as coalizões globais criam molduras bastante rígidas para a agenda nacional. A análise dessas molduras é necessária para o sucesso e, principalmente, para reduzir os riscos irrecuperáveis que poderiam comprometer o desenvolvimento nacional. A clara compreensão da nova situação mundial é uma condição importante, mas não é suficiente para seu sucesso. O uso de novas possibilidades para o desenvolvimento só é possível se os governos da Rússia e do Brasil conseguirem cumprir o percurso estratégico completo, respeitando os interesses fundamentais nacionais. Isto não é apenas uma suposição, a julgar pelas lições da crise. • Marcos estratégicos do desenvolvimento na nova configuração de interesses. Um dos desafios mais importantes, neste contexto, é a construção da estrutura da nova economia que se antecipa. Essa estrutura proporcionará o crescimento contínuo do bem-estar por um longo prazo. Quanto aos instrumentos, pressupõem o uso de vantagens competitivas dos países a fim de que possam ocupar os nichos confortáveis existentes nos setores econômicos, proporcionando uma margem relativamente elevada para seus bens e serviços no mercado mundial. A detenção de uma parcela significativa dos setores com alta margem de lucro é um suposto para a reprodução da liderança tecnológica e para o crescimento do bem-estar – que são, por sua vez, supostos para o desenvolvimento sustentado no longo prazo. A disponibilidade de tais setores cria condições para o crescimento da renda dos trabalhadores no setor de alta tecnologia, receitas orçamentárias, permitindo o financiamento dos setores sociais cujo desenvolvimento é necessário para manter o desenvolvimento no longo prazo. A fim de se estimar o valor dos setores de alta tecnologia para o desenvolvimento no longo prazo, é necessário levar em conta que o crescimento da concorrência global reduz o nível das margens para os bens de produção em massa – principalmente no setor de consumo. O desenvolvimento da produção manufatureira em massa resolve o problema do emprego, mas limita o desejado crescimento do bem-estar. O aumento de salários resulta na falência dessas manufaturas. O destino que tiveram na Europa é um claro sinal disso. A experiência demonstra que o alto nível de bem-estar na economia moderna não pode se basear apenas na produção em massa de bens de consumo. Isso significa que o crescimento da renda, necessária para o desenvolvimento de longo prazo, pode ser propiciado pelos setores e nichos com margens elevadas. A busca de setores e nichos com margens elevadas e a execução dos projetos estratégicos para sua ocupação e retenção é um marco prioritário para o desenvolvimento em perspectiva. As inovações e a criação de novos produtos e tecnologias de ponta não são um fim em si, mas meios eficazes para solucionar os objetivos estratégicos do desenvolvimento. • Onde encontrar as margens? Uma nova configuração global de interesses e as perspectivas de reforma do sistema financeiro mundial abrem novas possibilidades para a busca dos setores e nichos de altos retornos para as economias da Rússia e do Brasil. Acima de tudo, esta é uma correção das ideias existentes sobre as possibilidades dos setores de materiais. Sua desvantagem óbvia é a alta exigência de capital e a volatilidade do ambiente global. No entanto, a capacidade de dispor de capital não é uma limitação hoje. Sempre existe dinheiro para projetos atraentes. Os principais especialistas do mundo reconhecem que o crescimento da economia global estimulará a demanda primária e gerará déficits de alguns tipos de matérias-primas. A perspectiva de realizar os principais projetos fica comprometida pelas previsões de alta volatilidade dos preços causada pelas “bolhas”, por distorções especulativas do sistema financeiro mundial como um todo. Caso a reforma tenha sucesso e o apetite dos especuladores internacionais seja mitigado, a atratividade do setor primário crescerá significativamente. Isso deve ser levado em conta agora. Outro lado atraente do setor primário é seu potencial para estimular a demanda por inovações tecnológicas. O setor primário moderno é um grande consumidor de altas tecnologias. São usadas super tecnologias em todos os estágios da produção primária, desde a geofísica e explorações geológicas até a manufatura de bens finais. O nível de despesas e a magnitude das margens, respectivamente, são o alvo das mudanças estruturais e dependem do uso efetivo de tais tecnologias. Existe um grande mercado de equipamentos de alta tecnologia e perspectivas de inovações nesses setores. Um dos principais campos de batalha que se antecipa nos mercados de margens elevadas será a questão da energia. O crescimento do consumo de energia e os limitados recursos de hidrocarbonetos estimularão a criação de novas tecnologias, tanto a nuclear quanto a que use matérias-primas de eficiência enérgica relativamente baixa (biorrecursos, carvão preto e marrom, turfa etc.). Deve-se compreender que o encantamento dos países desenvolvidos com as ecotecnologias será duramente cerceado pelo endurecimento da concorrência global nos mercados de energia. No entanto, o mercado de capacidades energéticas e de fabricação de equipamentos de energia permanecerá com altas margens num cenário de médio prazo. Isso cria os pressupostos para a participação de nossos países na competição de tecnologias, proporcionando novos retornos com recursos energéticos que haviam sido “deixados de lado”. Existem reservas para isso. A crise global da produção de alimentos cria boas perspectivas para a agricultura russa e brasileira. Outro setor com margem elevada e que tem sido subestimado é a produção pesqueira. O crescimento econômico da Ásia Oriental, onde os pescados estão em alta demanda, cria condições favoráveis para o crescimento da renda dos pescadores e dos processadores de frutos do mar. Esse setor passou a ser um dos impulsionadores do crescimento. A questão é saber se a Rússia e o Brasil serão capazes de conseguir suas fatias legais do bolo dos mercados com altas margens. A situação global pós-crise representa um sério desafio e uma chance para a Rússia e o Brasil. Sua clara compreensão é meio caminho andado para o sucesso.