Trapos Vivos

Transcrição

Trapos Vivos
Trapos Vivos
por
Sara Farinha
2
I
Tudo tinha um fim. Sozinha, Maria observava os últimos raios de luz. Fixava a
linha que anunciava o passar do sol para o outro lado, de olhos pregados nos tons
rosados com que o horizonte se acobertava.
Fechou o punho sobre a frente do casaco branco de lã, apertando-o contra o
peito. Esperava, sentada num dos bancos de ripas de madeira, no caminho relvado
que rodeava a enorme casa. Entorpecida pelo frio, e pelo que fizera, desejava o fim de
mais um dia… de todos eles.
– Mamuska? Vamos para dentro? – soava a voz doce da senhora, que parecia
segui-la para todo o lado.
Maria manteve o olhar fixo no horizonte, apertando um pouco mais o protector de
lã contra si.
– Vem, querida. Está a ficar frio. – repetiu, enfiando a mão por baixo do braço de
Maria incentivando-a a levantar-se com um toque delicado.
– Uns minutos mais… – murmurou Maria, fazendo deslizar o braço da mão que a
tocava.
– Está bem, Mamuska. Já te venho buscar.
A mulher de rugas vincadas, cabelos grisalhos e olhos claros deitou um último
olhar sobre o horizonte e afastou-se. O uniforme de calças e camisa azul-claro
contrastava com a relva verdejante e o castanho das enormes árvores espalhadas
pela propriedade.
O céu escureceu, restando uma pequena faixa rosada que acompanhava a linha
da terra e, só nesse momento, é que Maria retirou os olhos do horizonte e procurou a
mulher que se afastava.
Com uma inspiração profunda, levantou-se, libertando o punhado de lã com o
tremor de um arrepio. Os olhos recaíram sobre as ripas de madeira, que haviam sido
pintadas com uma espessa camada de tinta verde escura, e sobre um pequeno borrão
branco que jazia tombado. Deitou a mão aos pedaços de tecido cosidos a pontos
escuros e largos. Entre os seus dedos, uma desengonçada boneca feita de retalhos
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brancos não se sustinha direita com o pouco enchimento. Endireitou-a, reparando nos
pequenos quadrados brancos unidos a linha escura, nos cabelos compridos feitos de
lã cinzenta, nos dois pontos que formavam os olhos e na ausência de uma boca que
formasse qualquer expressão. Estudou-a por uns instantes, enfiando-a no bolso do
casaco quando a voz meiga da senhora a arrancava da espera e do sítio onde
terminava todos os seus dias.
Maria sentou-se à beira da cama, puxou a boneca do bolso, depositando-a ao
seu lado. A colcha de malha, em vários tons de azul-escuro, era o contraste perfeito
para a brancura do pequeno corpo de trapos. Olhou-a por largos momentos. Afagoulhe os fios de lã que jorravam do topo da cabeça de pano. Combinavam com o louro
acinzentado dos seus cabelos. Tocava no pequeno corpo e os ossos dos seus dedos
formavam protuberâncias pontiagudas, como pequenos sacos esvaziados de carne, o
rosa pálido das unhas cortadas rente. Toda ela de uma palidez acinzentada,
encardida, oposta à brancura da boneca abandonada.
Apertou as pálpebras sentindo uma lágrima percorrer-lhe a bochecha. O
brinquedo de criança trazendo memórias, relembrando os passeios de menina pelas
bancas da feira onde, agarrada às saias de sua mãe, chorava por uma boneca de
trapos. Uma daquelas alinhadas em cima do pano da pequena banca de feira.
Durante toda a meninice desejara uma boneca de pano. Com vestidos feitos de
retalhos, largos sorrisos pintados e longos cabelos de lã de todas as cores. Desejaraas tanto que todos os anos, ao voltar à feira, derramava lágrimas por aquilo que não
podia ter.
A venda de trapos, que havia sido a vida da sua mãe, nunca produzia os cinco
tostões a mais que pagassem o objecto do seu desejo. E assim, todos os anos ficava
ali, de olhos muito abertos, bebendo todas as cores e contornos das pequenas
meninas feitas de tecido.
Passou um dedo pelos pespontos negros que uniam os quadrados de algodão
branco.
– O que tens aí, Mamuska? – perguntou a senhora de cabelo grisalho, enquanto
retirava as almofadas castanhas da cabeceira, ajeitando-as sobre a cadeira de
madeira ao lado da janela.
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– Nada. – murmurou Maria, continuando a afagar a boneca.
– Vamos dormir, vá. – instigou, puxando a ponta da colcha de malha para que
Maria se deitasse.
Maria deslizou o corpo sob as mantas, levando a boneca de trapos consigo.
Aceitou o minúsculo copo transparente, tombando o conteúdo, e empurrou os
comprimidos com a água. Pousou a cabeça na almofada enquanto ela lhe
aconchegava o cobertor.
– Deixe acesa. – Maria pediu, ao vê-la debruçar-se sobre a mesa-de-cabeceira
em busca do interruptor, preso no fio do antigo candeeiro de loiça.
– Só por um bocado, Mamuska. Sim?
Ela acenou com a cabeça, sem levantar os olhos dos pontos negros que
formavam os olhos da boneca, enquanto a senhora saía do quarto. Com o indicador
afagou a cabeça de trapo. O risco do nariz era uma simples linha desenhada. A face
de pano não tinha boca, apenas a ausência da expressão feliz, que as bonecas que
povoavam as suas memórias de infância haviam tido. Para lá da porta entreaberta do
quarto, os barulhos aquietavam-se, os passos morriam com o fechar de portas, as
conversas sussurradas abatiam perante o descanso da noite.
– Porque me olhas assim? – um murmúrio assustado, numa voz de criança,
soou.
Sentou-se na cama e, de olhos muito abertos, procurou pelo quarto. Fitou a
nesga da porta entreaberta e as sombras perto da janela. Estava sozinha. Os seus
olhos azuis recaíram na pequena boneca de trapos.
– Pára de olhar para mim. – a voz de menina sussurrou.
Com um sobressalto, Maria abriu a mão, o corpo de trapos caindo desengonçado
sobre a manta azul. Aquilo que não tinha boca falava.
II
– Não estou! Não estou! – Maria deitou as mãos aos ouvidos. Sentada na beira
da cama, o corpo movia-se para trás e para a frente, num embalo curto e incessante.
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– Pronto, Mamuska. Pronto. – murmurava a senhora de cabelos grisalhos e
olhos azuis claros. Com um movimento rítmico, passava a mão pelas costas dela, não
parando de repetir as mesmas palavras.
Os minutos corriam e ela começou a abrandar o abanar compulsivo, os olhos
semicerrados e, por fim, colapsou sobre o ombro da mulher que a amparava. Com
gestos delicados, a senhora deitou-a na cama e voltou a entalar a manta em volta do
corpo.
– Descansa… – sussurrou. Observou-a por um bocado, notando o aprofundar da
respiração, enquanto Maria se escapava para a inconsciência.
Maria esperava, em pé, junto à janela. A cor cinzenta enchia o céu, as árvores
largavam folhas que rodopiavam no chão a cada passagem de vento. Lá fora, não se
via ninguém, os bancos vazios, os jardins desertos. Todos os outros estavam
concentrados nas salas comuns, a televisão berrava, e os que ali viviam amontoavamse nas mesas de jogos.
– Hoje não podes ir, Mamuska. – a mulher afirmou, parando ao lado dela.
– Vai chover. – assentiu Maria, mantendo os olhos na linha do horizonte.
– Queres o teu casaco?
Negou com um curto aceno de cabeça, as pontas dos cabelos loiros roçando os
ombros com o movimento. Gotas grossas aterravam nos vidros com um baque que se
ouvia pela sala. Grandes massas brancas viajavam sob a tela cinzenta escura que
cobria o seu precioso sol.
Ao longe, uma mancha clara contrastava com a tinta verde escura do banco.
Maria franziu a testa, aproximou a cara do vidro e esforçou os olhos a focar o borrão.
A confusão da noite anterior regressou, com uma dor pontiaguda nas frontes, levandoa a encostar os pulsos onde as picadas se adensavam. A boneca. A sua boneca de
trapos.
Rodou nos calcanhares e precipitou-se pela sala, percorreu o corredor, espreitou
a espaçosa entrada e, sem a presença da mulher que a perseguia para todo o lado,
abriu a pesada porta de madeira e saiu. Correu pelo caminho empedrado, os chinelos
de algodão branco esguichando água a cada passo, a camisola castanha escurecendo
sob as gotas fartas, e as finas calças de algodão ensopadas em segundos.
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Parou junto do banco onde jazia o montículo de pano. Esticou o braço, hesitando
por uns segundos, antes de lhe pegar. Os pequenos braços e pernas com uma
coloração mais escura do que o resto do tecido, o corpo amorfo da boneca de trapos,
agora mais pesado com a chuva.
– Maria! O que fazes cá fora? – a senhora corria, respirando com dificuldade.
Empunhava um chapéu-de-chuva e um casaco de lã.
– Nada. – ela respondeu, enfiando o pequeno monte de trapos na manga da
camisola.
– Assim vais adoecer, Mamuska! – alertou, puxando Maria para debaixo do
chapéu, e enrolando-a no tecido que carregava.
A senhora puxou a camisola de Maria, fazendo-a passar pela cabeça, e deixou-a
cair no chão com um barulho pesado. A testa enrugada contrariava a gentileza dos
seus olhos, enquanto a embrulhava em toalhas, esfregando a chuva e o frio da frágil
figura. Os ossos salientes sob a pele alva do pescoço, os finos braços pendidos sobre
o colo, as mãos esguias envolvendo um monte de trapos brancos pespontados a
negro.
– O que tens aí? Ah! Encontraste a tua boneca…
Maria acenou com a cabeça, olhando o pequeno corpo de trapos pela primeira
vez, desde que o apanhara no jardim.
– Está encharcada! Secamo-la com isto. – a mulher afirmou, bramindo o secador
de cabelo.
Maria permaneceu quieta, enquanto o ar quente lhe enxugava o cabelo e,
depois, a boneca. Observava a boneca, procurando recuperar aquilo que bailava nos
limites da sua consciência. Uma voz de menina… não estava sozinha. Sem encontrar
nexo nas memórias, assentiu a qualquer coisa que a senhora disse, apercebendo-se
que ela saía do quarto.
– Pára de olhar para mim!
A voz de criança trazia o medo de volta, e Maria atirou a boneca contra a parede,
levantando-se num pulo.
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– É o que fazes sempre, não é?! Magoas-me sempre. – a voz de menina
entrando na sua cabeça. Maria tapou os ouvidos com as mãos, começando a
murmurar uma canção de embalar, abanando o corpo para a frente e para trás.
– O que se passa, Mamuska? – a senhora de cabelos grisalhos perguntou.
Precipitou-se sobre Maria, tentando que ela baixasse os braços e se sentasse na
cama.
– Canta para mim. – a menina pediu, rindo.
O grito de Maria ecoou pela casa. Apertou mais as mãos sobre os ouvidos
continuando a entoar a canção de embalar, agora mais alto, enquanto se deixava cair
sobre os joelhos e se enrolava sobre si mesma.
III
– Ai! – queixou-se, chupando a pequena gota de sangue que brotava da ponta
do dedo indicador.
Maria espetava alfinetes no pequeno corpo de trapos brancos. A cada ponto
dado pela agulha podia libertar os pequenos espigões, enfiá-los na pregadeira em
forma de boneca, enquanto via a camisola ganhar forma. As pequenas flores cor-derosa, pontilhadas de verde e amarelo, cobriam o tecido de algodão creme. Um pingo
de sangue manchou o tecido. Largou-o de imediato, voltando a chupar o dedo.
Quando os seus olhos recaíram sobre o padrão colorido, este jazia embebido numa
poça de sangue, no seu colo.
Abriu os olhos para as sombras que avançavam pelo quarto. Sentou-se na cama,
apertando a manta de lã azul contra o peito. Os ruídos dos outros propagavam-se
através da porta entreaberta.
Alcançou o interruptor e empurrou o botão. Maria deu um pulo, com uma
inspiração rápida. Ali, encostada ao pé do candeeiro de loiça, os dois pontos negros
que eram os olhos da boneca de trapos brilhavam. Os membros eram cepos
cinzentos, o tecido cada vez mais escuro. A ausência de boca não permitia que ela
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tivesse uma expressão facial, mas os pontilhados negros formavam a imagem que
Maria imaginava. Lábios de cantos pendidos em tristeza… em dor.
– Brincas comigo? – a voz da sua menina soou aos ouvidos de Maria.
Maria abanou a cabeça em negação, fechando as pálpebras enquanto as
lágrimas escorriam pelas maçãs do rosto.
– Vamos brincar. – implorou, com um fungar que se transformou em riso.
– Não. – murmurou Maria, cobrindo a face com as mãos.
– Porque és má para mim?
– Vai-te embora! Sai daqui! – gritou.
– És tão má para mim… – o murmúrio da menina desfazendo-se no ar,
sobreposto pelo som da voz da senhora de cabelos grisalhos que repetia o seu nome.
– Tire-a daqui. – implorou Maria, recusando mostrar o rosto.
– Está bem, Mamuska. Levo-a comigo quando sair. – assentiu, enfiando a
boneca no bolso da farda azul clara.
Maria destapou os olhos, recusando ver para lá do rosto enrugado da senhora de
cabelos cinzentos.
– Porque está sempre aqui? Porque se preocupa comigo? – perguntou, vendo o
azul dos olhos dela brilhar.
– É o que eu faço. – retorquiu, ajeitando a manta que cobria Maria.
– Mas… porquê?
– Toma isto e descansa, Mamuska. Não te preocupes com nada. Eu cuido de ti.
– asseverou a mulher, entregando-lhe os medicamentos do costume.
Maria enfiou os comprimidos na boca, empurrando-os pela goela com meio copo
de água, e pousando-o em cima da mesa-de-cabeceira.
– Dorme. – murmurou, fazendo-lhe uma festa no rosto.
Maria fechou os olhos mas o sono não vinha… não enquanto o eco da voz da
menina permanecesse. Repetindo, sem cessar, “Vem brincar.”
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IV
Não queria brincar. Queria acordar, abrir os olhos, sair dali. Fugir das pequenas
mãos gélidas que lhe tocavam o rosto, da voz de menina que a cortava por dentro, do
peso daquele corpo sobre o peito, que a impedia de respirar… de gritar.
Estava presa, sem conseguir abrir os olhos, sem poder fugir, sem ar. Presa num
pesadelo real. Faltavam-lhe as forças, não conseguia esbracejar, afastar de si o que a
pressionava, o que a consumia. Desistia de se libertar quando o abanão a trouxe de
volta ao quarto.
A senhora dos cabelos grisalhos falava, mas Maria não entendia nada. A
respiração acelerada, o terror de querer acordar e não conseguir, a presença
constante da voz de criança. Cravou os dedos nos braços que se estendiam à sua
frente.
– Já passou, Mamuska. Estás segura. – a mulher murmurou, apertando-a contra
o peito.
Maria encostou o rosto à camisa azul clara do uniforme da senhora dos cabelos
grisalhos, não contendo os soluços.
– Já passou. Foi só um sonho. – repetiu, afagando-lhe o cabelo.
– Não, não passou. Nunca vai passar.
– Mamuska, acalma-te. Vou buscar uma coisa que te vai fazer sentir melhor. –
afirmou, levantando-se da cama e saindo do quarto a passos largos.
– Nunca vai passar. Nunca vai desaparecer. – Maria repetia, envolvendo o torso
nos próprios braços, embalando-se sem cessar.
– Tu sabes o que fizeste. – a menina relembrou.
– Eu sei o que fiz. Nunca vai desaparecer.
– Tu fizeste-me desaparecer, mas eu não quero desaparecer. – as palavras
soavam, numa voz carregada da doçura da infância.
– Não vais desaparecer. O que te fiz vai ficar comigo. – Maria confirmou.
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– Fico aqui contigo… Para sempre, mamã.
– Não! – gritou Maria.
A boneca de trapos estava deitada no seu colo. Os braços e as pernas eram
cepos enegrecidos, um negrume que se espalhava pelo torso. Os olhos eram os dois
pontos negros que reluziam.
Maria deitou a mão ao copo de água, estilhaçando-o na ponta da mesa-decabeceira. Agarrou um dos pedaços de vidro e espetou-o na boneca. Arrancou cada
pesponto negro que lhe prendia os membros. Rasgou cada linha que unia os bocados.
Desfê-la em tufos de algodão solto. Retalhou-a em pedaços, cada contorno, cada fio
de cabelo. E, no fim, arrancou-lhe os olhos, esquartejando-lhe a cara.
A enfermeira correu para onde o corpo jazia, curvado sobre as poças de sangue,
e gritou por socorro. A pele de Maria estava arruinada por inúmeros golpes indistintos,
bocados levantados do escalpe, o rosto desfigurado, os buracos ensanguentados no
sítio dos olhos. Numa mão, segurava o pedaço de vidro que usara para se retalhar.
Sentada, sobre a mesa-de-cabeceira, a pequena boneca de trapos brancos e
pontos em linha preta. Encostada ao candeeiro. As linhas, que formavam a boca,
desenhando um sorriso rasgado.
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