TCC – Nathália Larghi - Comunicação Social || UFF

Transcrição

TCC – Nathália Larghi - Comunicação Social || UFF
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
NATHÁLIA MEDEIROS FRAGA LARGHI
A REPRESENTAÇÃO DO HIP HOP NACIONAL NA MÍDIA
De estilo marginalizado à trilha sonora de telenovelas
Niterói
2015
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus por ter me iluminado e dado força nos momentos difíceis de toda
a trajetória, desde o vestibular até a reta final.
Agradeço à minha família pelo apoio incondicional: aos meus pais pela confiança
e por toda ajuda; aos meus avós pelo carinho e cuidado de sempre; à minha tia Érica por
ter sido minha mentora em todo o caminho da graduação. Aos demais tios e primos que
de alguma forma contribuíram para que essa conquista se tornasse real.
Ao meu irmão Enzo, por ser fonte de força e inspiração.
Ao Rômulo que foi meu porto seguro e esteve ao meu lado em todos os momentos.
Aos professores da graduação, que foram verdadeiros mestres e fizeram com que
eu chegasse à reta final me sentindo preparada para o que virá pela frente.
Ao professor orientador Marco Schneider que gostou da ideia do projeto e me deu
todo o suporte necessário para torná-lo real.
A todos que direta ou indiretamente fizeram com que esse trabalho fosse possível.
SUMÁRIO
Introdução
1
1. O surgimento do Hip Hop nacional
2
1.1. A chegada no Hip Hop no Brasil
2
1.2. O ambiente social em que o Hip Hop foi disseminado
8
1.3. Os principais grupos de rap e suas ideologias
9
1.3.1. Thaíde e DJ Hum – Música popular sobre e para a periferia 10
1.3.2. Racionais MC’s – O clima denso e as mensagens agressivas sobre o
Holocausto Urbano nas favelas
14
1.3.3. Sabotage – O Maestro do Canão invadiu as telas
18
1.3.4. Gabriel Pensador – o rap fora do movimento
19
2. A popularização do rap nacional da grande mídia
22
2.1. O interesse da mídia no rap nacional
22
2.2. A representação do Hip Hop na televisão
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2.3. As batalhas de Mcs e os eventos de Hip Hop
33
3. A comercialização da cultura Hip Hop
36
3.1. O interesse de marcas de roupas e acessórios no universo do Hip Hop 36
3.2. A geração de novos artistas
39
3.2.1. Emicida – A voz dos excluídos para todos: da internet para a televisão
41
3.2.2. Cone Crew Diretoria – A maior influência jovem para o morro e para
o asfalto
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4. Considerações Finais
46
5.Referências Bibliográficas
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Resumo
A presente pesquisa aborda a evolução da relação entre o movimento hip hop e a mídia
hegemônica e a forma como essa interação influencia a sociedade e os atores de ambos
elementos. O trabalho foi realizado com base na leitura e análise de textos acadêmicos
que avaliam a evolução dos meios de comunicação em massa e estudos a respeito do
comportamento humano e das formas de influência da mídia sobre a sociedade; além da
realização de entrevistas com pessoas imersas no movimento hip hop do eixo Rio-São
Paulo; e, por fim, na análise de eventos de distintas formas de organização que estejam
relacionados ao movimento.
Palavras-chave: Hip Hop, rap, televisão, rádio, novelas, periferia
Introdução
O objetivo deste trabalho é entender a evolução do interesse das mídias
hegemônicas, mais precisamente canais de televisão aberta, no movimento Hip Hop –
composto por quatro elementos: o rap, o DJ, o grafite e a dança break. Buscou-se também
compreender a visão dos artistas do movimento, procurando conhecer os motivos que os
levaram a estar presentes na mídia hegemônica, que havia sido evitada e criticada por
artistas respeitados do segmento durante a década de 1990. Este trabalho tenta, então,
esclarecer como se chegou à atual relação de parceria entre os dois atores, um movimento
de contracultura e a mídia hegemônica, que há uma década ainda eram divergentes, e
compreender quais os benefícios ideológicos e mercadológicos dessa relação para ambos
os lados.
O Hip Hop surgiu como uma forma de protesto feita com discursos políticos
rimados simetricamente em cima de uma base musical. No Brasil, o estilo chegou
primeiro nas periferias, onde foi evoluindo com o passar dos anos. O caráter principal das
letras manteve-se durante muito tempo, priorizando narrativas sobre o cotidiano das
comunidades e suas necessidades, o que fez do rap inicialmente um estilo musical
praticamente exclusivo das periferias.
De acordo como o Instituto Data Popular - que usou dados do Censo e da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios, calculados pelo IBGE, e do Instituto de Pesquisa
Econômica Aplicada (IPEA) –, em 2013 um total de 11,7 milhões de pessoas – o
equivalente a 6% da população do país – vivia em aglomerados subnormais, nome técnico
dado pelo IBGE para designar locais como favelas, invasões e comunidades com no
mínimo 51 domicílios. Partimos então da hipótese de que esse número é significativo o
suficiente para influenciar no que é veiculado na mídia, uma vez que essas pessoas
consomem produtos midiáticos populares e são espectadores assíduos de canais de
televisão abertos.
Segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), realizada
pelo IBGE em 2013, 63,3 milhões de domicílios no Brasil possuíam TVs naquele ano, o que
corresponde a 97,2% do total de domicílios do país. Em contrapartida, de acordo com a
mesma pesquisa, apenas 76% dos lares brasileiros possuíam aparelhos de rádio, números
1
que comprovam que a televisão ultrapassou o rádio como o principal canal de
entretenimento e informação dos brasileiros.
Uma das hipóteses trabalhadas partiu do princípio de que após anos sendo
influenciadores da massa, os canais de televisão foram apresentados por grupos de hip
hop atuantes como “vilões” opressores. Com a popularização espontânea do rap em meio
ao público de classes mais altas – fenômeno que teve mais força entre os anos de 2004 e
2010 com o boom da internet banda larga no Brasil, já que de acordo com dados do Ibope
Inteligência, em 2006 haviam 9,4 milhões de usuários únicos de banda larga domiciliar
no país – os canais de televisão buscaram se aproximar do estilo para apagar a imagem
das denúncias de racismo e manipulação. A questão mercadológica também foi avaliada,
já que Hip Hop movimenta uma indústria bilionária nos Estados Unidos e a indústria
fonográfica do país norte-americano tem forte influência no que tende a ser moda no
Brasil.
Em contrapartida, do outro lado da questão há a busca – e aceitação de convites dos rappers para figurarem em programas de grande audiência da televisão. Outra
hipótese investigada é de que, com a abertura dos canais de televisão ao estilo, a
visibilidade do hip hop se tornou maior. Assim, principalmente com a influência de
cantores norte-americanos como Kanye West e Jay-Z, marcas começaram a investir no
estilo de roupa e calçados do hip hop, o que tornou o estilo, até então restrito a algumas
classes, um modo de ser cool. A partir daí,,muitos artistas buscaram a forma do rap para
fazer suas músicas e ganhar visibilidade na mídia para construir uma carreira.
1. O surgimento do Hip Hop Nacional
1.1 A chegada do Hip Hop no Brasil
Os anos de 1970 marcam o começo da história do Hip Hop, um movimento
cultural de cunho ideológico que se manifesta através de quatro elementos: o break,
conhecido como dança de rua praticada pelos chamados b-boys; o grafite, arte feita com
tintas de spray ilustrando muros e paredes; o DJ, personagem que cria as batidas musicais
e coordena as músicas tocadas nas festas; e o mestre de cerimônia, vulgo MC, que
geralmente anima as festas, canta e compõe os raps, músicas de letras rimadas e que
geralmente abordam uma temática sociopolítica – o nome Rap é a sigla de rhythm and
2
poetry (ritmo e poesia na língua inglesa). No início da década de 1970, o movimento
começou a ganhar forma nos Estados Unidos. Ao final dela, o movimento teve força o
suficiente para ser exportado para o Brasil.
Nos anos de 1970 o panorama do Brasil era o de um país regido por uma ditadura
militar há pelo menos dez anos. A partir de 1974, com a crise do capitalismo, agravada
com o preço do petróleo, o regime começou a fraquejar. O governo de João Figueiredo,
iniciado em 1979, foi marcado por uma ampliação da abertura política e uma crise
econômica. Os festivais da canção já haviam sido extintos e os jovens, ansiosos – e
temerosos – pelo futuro, buscavam novos ídolos além da Jovem Guarda, sobretudo os
jovens da periferia. Neste mesmo contexto chegava ao Brasil o soul e o funk, músicas
provenientes do movimento negro dos Estados Unidos. Ironicamente, esses estilos,
considerados os precursores do movimento Hip Hop no país, começaram a ser trazidos
para o Brasil por pessoas da classe médica alta. Geralmente DJs que viajavam para o
exterior e reproduziam em danceterias dos bairros nobres de São Paulo músicas que eram
sucesso nos bailes da recém-criada Black music norte-americana.
Nos Estados Unidos, esses bailes foram os precursores do movimento Hip Hop.
Cantores da Black music exaltavam a cultura e os movimentos de resistência negra
inspirados por líderes como o pastor Martin Luther King Junior, que em um país marcado
pela forte segregação racial, liderou a Marcha para Washington que clamava pelos
direitos civis e melhores condições de vida para a população negra; além de Malcolm X,
que pregava a ideia de que a comunidade negra tinha o direito de se defender contra a
opressão da população branca.
A origem das festas da Black music norte-americana vem de uma cultura musical
jamaicana denominada raga, que misturava batuques africanos com jamaicanos.
Vendedores ambulantes nas ruas discursavam de maneira simétrica sobre o artista e a
música que estava sendo tocada no disco de raga, o que explica a origem do rap, que
chegou aos EUA no início da década de 1970. Pela origem jamaicana, o ritmo precursor
do movimento Hip Hop foi disseminado nas comunidades periféricas dos Estados Unidos,
principalmente de Nova York, como o Bronx, que recebia imigrantes de países
subdesenvolvidos do Caribe, caso da Jamaica. As festas black eram embaladas por um
estilo semelhante ao raga e imersas no contexto do movimento negro – que, com os
assassinatos de Luther King e Malcolm X, perderam parte crucial de sua
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representatividade –, em meio ao qual os jovens proclamavam discursos políticos rimados
sobre as bases eletrônicas. As disputas de dança dos b-boys dançarinos de break dance,
também tiveram papel importante na disseminação do Hip Hop na periferia norteamericana, uma vez que, para despistar os policiais que perseguiam as gangues de rua, as
batalhas de dança passaram a substituir as brigas de grupos rivais. (CONTIER, 2005)
Este contexto permite uma análise a partir do que foi dito por Stuart Hall (1992)
sobre a globalização, no início dos anos de 1970: ela conectou e aproximou comunidades
ao redor do mundo e também as áreas segregadas dentro de uma mesma comunidade. A
comunidade passa então a ser vista não mais como algo imutável, bem delimitado e prémoldado, e sim como algo em constante transformação. O autor nos exemplifica como
eram vistas as comunidades e o conceito de identidade cultural até então:
No mundo moderno, as culturas nacionais em que nascemos se
constituem em unir das principais fontes de identidade cultural.
Ao nos definirmos, algumas vezes dizemos que somos ingleses
ou galeses ou indianos ou jamaicanos. Obviamente, ao fazer isso
estamos falando de forma metafórica. Essas identidades não
estão literalmente impressas em nossos genes. Entretanto, nós
efetivamente pensamos nelas como se fossem parte de nossa
natureza essencial. (HALL, 1992, p. 45)
Com o processo de globalização as consequências apontadas por Hall na sociedade são:
As identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado
do crescimento da homogeneização cultural e do "pós-moderno
global". As identidades nacionais e outras identidades "locais" ou
particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à
globalização. As identidades nacionais estão em declínio, mas
novas identidades — híbridas — estão tomando seu lugar. (Hall,
1992, p. 66)
Ou seja, neste momento o sujeito buscava sua afirmação, frisar suas características
e preferências, que eram mutáveis e moldadas não necessariamente com base em seu país
de origem, mas sim no lugar em que vivia e no momento que aquele local passava.
Entende-se, portanto, que o período de integração entre imigrantes e seus descendentes e
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nova-iorquinos das periferias que possibilitou o início do movimento Hip Hop foi fruto
da globalização e da busca do sujeito por firmar sua “nova” identidade.
Coincidentemente, assim como nos Estados Unidos, o break também teve um
papel fundamental na criação e disseminação do Hip Hop brasileiro, uma vez que ele foi
primeiro elemento da cultura Hip Hop a se firmar no Brasil. No fim da década de 1970 já
havia um tímido despontar dos bailes black brasileiros, embalados por músicas de artistas
negros como o norte-americano James Brown, assim como artistas locais como Jorge
Benjor (que ainda se chamava Jorge Ben) e Tim Maia. Neste contexto, fora dos bailes, o
ponto de encontro dos dançarinos de break passou a ser a Estação São Bento do Metrô e
na Galeria 24 de março, em São Paulo. O episódio é narrado na música Nossa Sinfonia,
dos rappers Cabal e Rappin’ Hood:
Pro seu conhecimento / O primeiro movimento / Começou na rua / E
fez tremer a São Bento. / Não é o metrô / É o rap, chegou / Década de
80, SP começou. (Nossa Sinfonia – RAPPIN HOOD E CABAL 2006)
Simultaneamente, no Rio de Janeiro os bailes black também começaram a
acontecer e, inclusive, a chamar a atenção dos paulistanos que viajavam para a capital
fluminense para curtir os bailes e levar o que viam para São Paulo.
Os bailes black foram tema da canção Senhor Tempo Bom, da dupla Thaíde & DJ
Hum, uma das precursoras do Rap nacional:
Calça boca de sino, cabelo black da hora, / sapato era mocassim
ou salto plataforma. / Gerson Quincombo mandava mensagens
ao seus, / Toni Bizarro dizia com razão, vai com Deus, / Tim
Maia falava que só queria chocolate, / Toni Tornado respondia:
Podê Crê, / Lady Zu avisava, a noite vai chegar, / e com Totó
inventou o samba soul, / Jorge Ben entregava com Cosa Nostra,
e ainda tinha o toque dos Originais, / falador passa mal rapaz,
(Senhor Tempo Bom – THAÍDE E DJ HUM 1996).
Nesta época a mídia começou a reconhecer o movimento negro, principalmente
devido ao que era difundido nos Estados Unidos. Com o sucesso de filmes como
Flashdance, Beat Street e a fenomenal explosão de Michael Jackson, que usava elementos
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dos bailes black em suas coreografias, a cultura do break e seus adereços passaram a
figurar em programas de tevê, rádio e chegou aos bens de consumo desejados pelos jovens
das classes mais altas. Um exemplo disso é a abertura da novela Partido Alto, da Rede
Globo, em 1984, que tinha o b-boy Nelson Triunfo e seu grupo Funk & Cia dançando
com passistas de escola de samba.
Nelson Triunfo é um dos principais nomes do Hip Hop brasileiro, sendo um dos
b-boys precursores do movimento e em atividade até hoje. Em entrevista à autora deste
trabalho, Nelson conta que saiu de Triunfo, em Pernambuco, para estudar na Bahia e lá
já dançava ritmos como frevo e samba. Antes de vir para São Paulo, Triunfo morou em
Brasília, onde os bailes black também já aconteciam. No final da década de 1970, Nelson
já conhecia o americano James Brown e veio para São Paulo com a intenção de viver da
dança. O break norte-americano já estava forte na mídia, inclusive sendo exibido no
programa de Silvio Santos e servindo de inspiração para os b. boys brasileiros, como
conta Nelson, em um relato sobre o começo da história do Hip Hop no Brasil:
Em 1979 pintou o primeiro Rap na minha mão, a Sugar Hill Gang, do
grupo Rapper’s Delight. Aí começaram os meus primeiros passos no
Hip Hop. No Programa do Silvio Santos tinha um quadro em que eles
colocavam cenas dos caras dos Estados Unidos dançando. Aí eu
chamava o meu grupo para ver se a gente conseguia fazer igual a eles.
Com isso começamos a entrar na dança de rua sem nem perceber. No
início dos anos 80 eu levei a dança para a rua do mesmo jeito que já
faziam nos Estados Unidos. Assim começou tudo aqui (Entrevista para
a execução deste trabalho).
As festas black eram um alicerce para a reafirmação e exaltação da cultura negra.
Este alicerce serviu de base para o Hip Hop se fundamentar também como forma de
protesto. No início dos anos 1980, quando o boom dos bailes black começou a diminuir,
o trabalho das posses, entidades que trabalham os elementos da cultura Hip Hop em torno
de um posicionamento ideológico e de formação e intervenção cultural, e de organizações
do Movimento Negro, foram muito importantes para unir e conscientizar a população que
participava do movimento Hip Hop. (BASTOS, 2008). Nesta época, as festas começaram
a ser divididas por estilo, dos mais agressivos aos mais lúdicos. Esta divisão influenciou
tanto nas músicas tocadas quanto na vestimenta daqueles que frequentavam determinados
tipos de baile.
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O professor de história e filosofia Guilherme Botelho, diretor e idealizador do
documentário “Nos tempos da São Bento” – material que apresenta depoimentos sobre o
começo dos encontros no metrô São Bento, criando uma memória coletiva e apresentando
uma perspectiva interna da história do movimento no Brasil –, afirma que a indústria
cultural participou da primeira disseminação do Hip Hop no Brasil, porém de maneira
superficial e comercial. Guilherme conta que a parte “ideológica” não atingiu o público a
princípio.
No início, aqui em São Paulo, o Hip-Hop, principalmente o rap,
era somente mais um produto no mercado da cultura massificada.
Sendo assim, a parte ‘ideológica’, o sentido real da cultura hiphop não atingiu o público, o que atingiu foi o produto através da
força publicitária, a primeira assimilação foi mercado, consumo.
Só perceberam sua força como uma espécie de movimento
quando os artistas desviaram, para outro foco, as intenções
meramente mercadológicas. (Entrevista à autora deste trabalho)
Portanto, apesar deste reconhecimento e veiculação da mídia em relação ao break,
o rap ainda era elemento de menor difusão, com fraca projeção ideológica. De acordo
com o documentário “Nos tempos da São Bento”, os jovens começaram a fazer rimas
freestyle, não necessariamente com o teor político e social. Porém, ao tentar relacionar o
movimento do Brasil com o movimento norte-americano, alguns b-boys e MCs
começaram a traduzir letras e perceber a mensagem social disseminada nas letras dos raps
estadunidenses. Somado a isso, o sucesso do DJ Afrika Bambaataa e de sua ONG Zulu
Nation, que buscava resgatar jovens envolvidos com atividades criminais e tinha como
lema “Paz, unidade, amor e diversão (com responsabilidade)”, fez com que a mensagem
dos jovens brasileiros também passasse por uma mutação que fez com que o movimento
Hip Hop esboçasse o cenário que é visto até hoje. A partir desse contexto começaram a
surgir alguns dos principais grupos e nomes do Hip Hop – muitos deles estando em
atividade até os dias atuais (SILVA, 2013).
A dupla Thaíde e DJ Hum – pseudônimos de Altair Gonçalves e Humberto
Martins –, criada em 1987, foi uma das precursoras do movimento tal como ele é hoje
que obtiveram maior sucesso. A união de um rapper, no caso Thaíde, que compunha letras
sobre o cotidiano das favelas, a história do movimento – tal qual a letra “Senhor Tempo
Bom”, já citada anteriormente neste documento – e o momento político do país com um
DJ criando batidas inéditas serviu de inspiração para outros grupos serem criados. E,
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influenciados por Thaíde e Humberto, grupos como Racionais MC’s, RZO e Facção
Central surgiram, e mudaram os rumos da história do Rap nacional, sendo hoje admirados
por pessoas das mais diversas classes sociais e, mesmo com suas letras pesadas e
acusatórias, são solicitados para variados programas de televisão e rádio em canais
abertos.
1.2. O ambiente social em que o Hip Hop foi disseminado
Como foi contextualizado no tópico acima, o Hip Hop chegou ao Brasil em um
período de ditadura militar, o que fez com que os elementos do movimento fossem
inicialmente difundidos de maneira cautelosa. Os dançarinos de break constantemente
sofriam com ações de policiais que argumentavam que as reuniões eram “algazarras”
promovidas por jovens “vagabundos”.
Mesmo com o reconhecimento da mídia em relação ao fenômeno que foi o break
nos anos de 1980, a disseminação dos demais elementos do movimento só começou nos
bailes de Black Music, que aconteciam nas periferias. E foi nessas comunidades que Hip
Hop cresceu após o fim do boom desses bailes.
Favelas é um conceito que se refere basicamente à ilegalidade do uso de um
território urbano por pessoas de baixa renda, que, precisamente devido à situação de
irregularidade, por ocuparem terras sem registro de propriedade, não recebiam assistência
do governo. Ou seja, a infraestrutura necessária para se viver, como saneamento básico,
coleta de lixo e iluminação pública era ausente nestes locais. Devido à ausência de
comprovante de residência regular, os moradores destes locais tinham maiores
dificuldades em encontrar empregos formais. (MARICATO, 2001)
Atrelado a estas dificuldades de formalizar o modo de vida, as comunidades
passaram a ser palco de um cenário de violência. Com a ausência de policiamento e a
dificuldade dos moradores em se firmar em empregos regulares, cresceram as atividades
criminais, que posteriormente passaram a ser lideradas pelas atividades relacionadas ao
tráfico de drogas. A partir daí se iniciou uma guerra com os policiais militares, que
interviam nas favelas de maneira truculenta, agressiva e preconceituosa.
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As intervenções policiais em favelas e comunidades da periferia de São Paulo
foram tema do livro “Rota 66”, escrito pelo jornalista Caco Barcellos em 1992. O livro
reúne dezenas de histórias de assassinatos mal resolvidos de moradores de favelas – sendo
a maior parte das vítimas homens jovens negros ou pardos – cometidos por policiais que
foram investigadas de maneira independente pelo jornalista. E, como não podia deixar de
ser, a violência contra essa parte da população também foi tema de inúmeras letras de rap,
sendo a introdução da música “Capítulo 4, Versículo 3”, do grupo Racionais Mc’s, uma
das mais emblemáticas.
60% dos jovens de periferia sem antecedentes criminais já sofreram
violência policial. / A cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras
Nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros. / A
cada 4 horas, um jovem negro morre violentamente em São Paulo. /
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente. (Capítulo 4,
versículo 3 – RACIONAIS MC’S, 1997)
1.3. Os principais grupos de Rap e suas ideologias
O panorama atual do Hip Hop nacional conta com, pelo menos, quinze grandes
grupos ou músicos de vanguarda, que são apontados como precursores do movimento e
influências dos artistas que começaram suas carreiras há, no máximo, dez anos. Nessa
lista entram nomes como Thaíde e DJ Hum, Racionais Mc’s, RZO, Facção Central,
Pavilhão 9, Ndee Naldinho, Somos Nós a Justiça, Realidade Cruel, Rappin’ Hood,
Sabotage, Dexter, GOG, Quinto Andar, MV Bill e Gabriel, o Pensador. Dessa lista foram
selecionados quatro nomes – Thaíde e DJ Hum, Racionais Mc’s, Sabotage e Gabriel, o
Pensador –, segundo um critério de inovação no estilo aliado ao sucesso conquistado.
Analisando a história, vertente e trabalho desses quatro nomes, pode ser traçado um
panorama do cenário inicial do Hip Hop brasileiro, buscando evidenciar a temática das
letras e as ideologias mais frequentes desse estilo musical. A partir daí, pode-se
compreender a influência do Hip Hop no público e o tipo de relação que foi travado entre
esse movimento e a mídia com o passar dos anos.
1.3.1. Thaíde e DJ Hum – Música popular sobre e para a periferia
9
Como foi citado no tópico anterior, Thaíde e DJ Hum foram, dentre os grupos
precursores do Hip Hop, um dos mais influentes e que por mais tempo estiveram em
atividade. Thaíde nasceu em Cidade Ademar e foi criado na Vila Missionária, zona sul
de São Paulo, enquanto DJ Hum nasceu e foi criado em Ferraz de Vasconcelos, município
a 40 km do centro de São Paulo. A dupla foi formada em 1987 e se manteve ativa até
2001. Mesmo com o fim da dupla, os dois artistas continuaram ativos no movimento.
Um ano após a dupla ser formada, a gravadora Eldorado convocou alguns
frequentadores do São Bento a apontar os principais rappers do movimento para
participarem da gravação de um LP. Juntamente com nomes como Código 13 e MC Jack,
Thaíde e DJ Hum foram selecionados. A música apresentada por eles nessa ocasião foi
“Homens sem Lei”, que fala justamente sobre a relação conflituosa da polícia com a
população da periferia, denunciando situações de abusos cometidos por parte da PM
paulistana.
A polícia mata o povo e não vai para a prisão / São homens da Lei; reis
da zona sul. / Vestidos bonitinhos com o seu traje azul. / Somem
pessoas; onde enfiam eu não sei. / E não podemos dizer nada, pois não
somos da Lei. (Homens sem Lei – THAÍDE & DJ HUM, 1988)
O primeiro disco da dupla foi lançado em 1989 pela gravadora Eldorado, com o
nome de “Pergunte a Quem Conhece”. A temática das letras era bem diversa, mas com a
particularidade de que todas as narrativas se passavam na periferia, com suas gírias,
conflitos e comportamentos particulares. Em “Corpo Fechado”, era narrado um retrato
autobiográfico da criação e das escolhas de quem vive em uma favela; a descrição de
conflitos contra falsos amigos aparece em “Falsidade”, e a famosa “Eu Tive um Sonho”,
regravada por Marcelo D2 em seu disco acústico ao vivo em 2004, fala sobre a morte de
um amigo que, ao chegar ao céu, apresenta para os anjos e santos o estilo e elementos do
Hip Hop.
O disco seguinte, lançado em 1990, foi batizado de “Hip Hop na Veia”, e foi
lançado pela mesma gravadora, mas decepcionou nas vendas. “Luz Negra” era um dos
singles, que fala sobre a história de exploração e desigualdade da raça negra. “Por um
Triz” segue a mesma tendência e fala sobre a desigualdade dos moradores de periferia,
parafraseando a popular “Faroeste Caboclo”, da Legião Urbana, no trecho “Sentia que
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sentia que era mesmo diferente, dizia que dizia que não era o seu lugar”, mas mantendo
a abordagem da periferia.
Em 1992, já com a gravadora Independente TNT, a dupla lança o disco
“Humildade e Coragem São Nossas Armas pra Lutar”. As faixas mantiveram a mesma
temática da violência policial e o cotidiano da periferia. Apesar disso, Thaíde e DJ Hum
mantinham a particularidade de ter bases dançantes inspiradas nos bailes black, o que
fazia com que as músicas fossem veiculadas em festas e danceterias. Exemplo disso é a
faixa “Algo Vai Mudar”, cuja letra exaltava a raça negra e pregava uma revolução
comportamental dos afrodescendentes em cima de uma base lúdica e animada.
Em 1994 o disco “Brava Gente” exaltava o povo brasileiro. Neste disco as
denúncias contra a desigualdade racial e social seguem como temática, apesar do
sentimento de orgulho pelo povo brasileiro. A música “Soul do Hip Hop” conta parte da
história do Hip Hop e a evolução do reconhecimento que o movimento vinha ganhando
na mídia. Com o refrão emblemático que serviu de base e “grito de guerra” para músicas,
a faixa se tornou um hino do Hip Hop.
Quando eu me lembro dos tempos da São Bento / Vamos dizer no
começo do movimento / Lutamos de várias maneiras para conseguir
nosso espaço / Não acostumados ao fracasso / Mas preparados para
surpresas e avarezas / Nunca muito nem muito pouco / Mas saímos do
sufoco graças ao nosso esforço / Conseguimos jornais, rádios, revistas,
mas ainda é muito pouco / Essa história eu já contei uma vez / Mas eu
insisto em contar de novo pra vocês / Eu sou do Hip Hop / Soul do Hip
Hop / (SOUL DO Hip Hop – Thaíde & DJ Hum, 1994)
O disco “Preste atenção”, lançado em 1996 trouxe três faixas marcantes para a
história do Hip Hop nacional. Uma delas é a já citada “Senhor Tempo Bom”, que traz
lembranças da infância e adolescência de Thaíde durante as décadas de 1970 e 1980,
quando os bailes black eram a sensação da noite paulistana e carioca. Essa música acaba
sendo um produto metalinguístico, uma vez que narrava o cotidiano dos bailes e foi tocada
nos próprios bailes e festas. As outras músicas que marcaram esse disco foram “Desabafo
de um homem pobre” e “Malandragem dá um tempo”. As duas apresentam a dualidade
das alternativas de vida às quais o cidadão da periferia geralmente precisa escolher seguir.
Em “Desabafo”, Thaíde narra, em primeira pessoa, o dilema de um indivíduo entre seguir
a vida de maneira honesta, mas sem muitas oportunidades de melhorar sua condição
financeira, ou viver perigosamente uma vida no crime, mas com mais chances de
11
enriquecimento. Em “Malandragem”, Thaíde encarna um homem aconselhando seu
melhor amigo a sair da vida do crime. Nessa faixa o cotidiano dos moradores de periferia
é bem delineado, através das lembranças de infância e adolescência do eu lírico.
O último disco de estúdio da dupla foi lançado no ano 2000. Sua fama e
reconhecimento já eram grandes o bastante para que veículos da mídia hegemônica os
entrevistassem a respeito do novo trabalho. No dia 7 de agosto de 2000, o suplemento
“Folhateen”, do jornal Folha de S. Paulo publicou uma entrevista com os músicos, em
uma matéria intitulada “Thaíde e DJ Hum lançam cd zen”. Na reportagem, Thaíde conta
que em sua carreira sempre tentou lançar músicas com mensagens positivas para os jovens
da periferia. Apesar da matéria, a temática das letras do álbum não é tão diferentes das
que eram lançadas pela dupla até então. Thaíde e DJ Hum mantêm a mesma linhagem de
falar sobre a periferia e para a periferia, principalmente com mensagens e conselhos para
os jovens, o que Thaíde cita na entrevista como fundamental. É interessante perceber que
o texto de abertura da matéria cita que a dupla faz um Rap sem falar de “treta”, “crack” e
“teco”, como se fosse o tema principal dos demais rappers.
Após o reconhecimento de Thaíde e DJ Hum, que são artistas pioneiros, com um
discurso mais leve e bases dançantes, grupos como o Racionais Mc’s e o Facção Central
foram surgindo e ganhando notoriedade. Ambos se destacavam pelas letras agressivas,
com relatos explícitos de violência urbana, assim como as bases mais densas e menos
“comerciáveis”, fazendo com que estes não tivessem o mesmo reconhecimento da grande
mídia que Thaíde e DJ Hum tiveram.
A identificação da dupla com o público e a aceitação da dupla pela grande mídia
foi tão grande, que o rapper acumulou também a carreira de artista de televisão. No início
dos anos 2000, Thaíde apresentou o Yo! MTV Raps, na MTV Brasil. O programa
apresentava clipes e novidades do mundo do Hip Hop , mas era mais focado no
movimento norte-americano. Em 2006, Thaíde participou do seriado e posteriormente do
filme homônimo “Antonia” da Rede Globo. Em 2009 o rapper assumiu o comando do
programa “Manos e Minas”, da TV Cultura, e no ano seguinte passou a integrar a equipe
do programa “A Liga”, da Rede Bandeirantes, sendo esse um de seus primeiros trabalhos
fora do movimento Hip Hop . Já o DJ Hum continua fazendo remixes e bases para artistas
brasileiros – não só do Hip Hop –, além de tocar em festas e produzir discos e músicas de
rappers do movimento.
12
A conclusão que pode ser tirada a respeito do trabalho de Thaíde e DJ Hum deve
ser avaliada sob o contexto de que a dupla foi pioneira e inovadora, uma vez que eles
foram o primeiro grupo de Rap a ter visibilidade nacional e atingir comunidades de todo
o Brasil. As letras da dupla narravam de maneira simples o cotidiano e as histórias da
periferia.
O samba foi um gênero precursor na abordagem da periferia, porém grande parte
das letras continham duplo sentido e eufemismos. No Rap essa abordagem apareceu de
maneira mais agressiva e direta, e além de contar as histórias, os rappers se vestiam,
falavam e agiam como as personagens das músicas que cantavam. Stuart Hall (1992),
citando Scruton (1986), nos auxilia a entender o fenômeno, ao discorrer sobre a
necessidade de afirmação da identidade, que identificamos não só no trabalho de Thaíde
como também no dos Racionais e no de Sabotage:
A condição de homem (sic) exige que o indivíduo, embora exista
e aja como um ser autônomo, faça isso somente porque ele pode
primeiramente identificar a si mesmo como algo mais amplo —
como um membro de uma sociedade, grupo, classe, estado ou
nação, de algum arranjo, ao qual ele pode até não dar um nome,
mas que ele reconhece instintivamente como seu lar (Scruton,
apud Hall, 1997, p. 48)
Ou seja, os rappers buscavam ser os representantes de uma comunidade até então
não representada e se orgulhavam de serem os porta-vozes dessa massa se identificando
como parte dela. Thaíde e DJ Hum foram, então, os primeiros rappers a falar de maneira
direta sobre a periferia. Porém, eles mantiveram as levadas dos bailes blacks e o otimismo
em suas letras, que buscavam aconselhar os jovens e, também, servir de entretenimento,
com batidas populares que eram usadas também para animar as festas.
1.3.2. Racionais Mc’s – O clima denso e as mensagens agressivas sobre
Holocausto Urbano nas favelas
O Racionais Mc’s é o grupo de Rap mais influente no Brasil até hoje. Foi criado
em 1988 e é formado pelos rappers Pedro Paulo Soares Pereira, o Mano Brown; Adivaldo
Pereira Alves, o Edi Rock, e Paulo Eduardo Salvador, o Ice Blue, além do DJ Kleber
13
Geraldo Lelis Simões, o KL Jay. Em entrevista à Revista Fórum em 2014, o rapper Ice
Blue conta que era frequentador da estação São Bento do metrô e conhecia as pessoas
envolvidas no ambiente do Hip Hop , incluindo Thaíde, de quem era admirador. No
metrô, Ice Blue fez amizade com KL Jay e, por intermédio do DJ, conheceu Edi Rock e
Mano Brown. Na entrevista, Blue relata que esses encontros eram comuns, já que na
época o acesso à música era restrito:
Ali na São Bento era assim, o pessoal se encontrava para dançar e ouvir
música. Isso é uma coisa que o pessoal não sabe, mas para ouvir uma
boa música, naquela época, era difícil, tinha que saber quem tinha o
disco e onde o cara ia tocar. Hoje em dia, você só abre a internet e escuta
qualquer coisa. (Ice Blue em entrevista à Revista Fórum – Julho de
2014).
Diferente de Thaíde, os Racionais mostraram logo em seu disco de estreia que a
mensagem passada nas letras seria mais densa, agressiva e menos otimista.
Com o nome sugestivo de “Holocausto Urbano”, o disco de estreia foi lançado em
1990 e é considerado pela mídia especializada como um marco na história do rap nacional
por ser uma ferramenta de enfrentamento e resistência não só dos negros, como da
periferia. O “Holocausto” tinha seis faixas e com a exceção de “Mulheres Vulgares”,
todas tinham a temática da desigualdade e violência urbana. A música “Pânico na Zona
Sul” foi uma das mais populares desse disco e, antes mesmo do lançamento dele, a faixa
já havia sido comercializada na coletânea “Consciência Black Vol. 1” do selo Zimbabwe
Records, que era especializado em música negra. A letra fala sobre a violência nas
comunidades e a repressão policial. Mesmo com uma batida animada, a letra é densa e
mais explícita do que as de Thaíde.
O segundo trabalho dos Racionais foi o EP “Escolha seu caminho”, com as faixas
“Voz ativa”, que tinha três versões: baile, mais dançante; rádio, mais curta, e capella, com
instrumental mais leve; e “Negro limitado”. Ambas as letras exaltavam a negritude e
reforçavam a resistência e luta por direitos iguais da comunidade negra. Ao mesmo tempo
que “Voz Ativa” clamava pela vinda de um líder negro para recuperar o orgulho dos
afrodescendentes, “Negro limitado” soa como um conselho para um homem negro que
está no caminho errado e pode ter a chance de voltar atrás.
14
No ano seguinte os Racionais lançaram o disco “Raio X Brasil” e utilizaram pela
primeira vez bases da música popular brasileira nas canções de maior sucesso. “Fim de
semana no parque” é uma delas e foi feita com samples de músicas do cantor popular
Jorge Ben. A letra fala sobre um final de semana comum em um parque de São Paulo que
é comparado com o que acontece nas periferias da Zona Sul. A letra agressiva e triste é
um marco para o Rap nacional, que pela primeira vez ouve relatos cruéis e explícitos de
cenas cotidianas nas comunidades. Além disso, a música trouxe uma participação especial
do cantor Netinho, do grupo de pagode Negritude Junior, que é amigo de Mano Brown
desde a adolescência, quando frequentavam juntos os bailes black da Chic Show.
No último natal Papai Noel escondeu um brinquedo prateado, / Brilhava
no meio do mato / Um menininho de 10 anos achou o presente, / Era de
ferro com 12 balas no pente / E fim de ano foi melhor pra muita gente /
Eles também gostariam de ter bicicleta / De ver seu pai fazendo cooper
tipo atleta / Gostam de ir ao parque e se divertir / ê que alguém os
ensinasse a dirigir / Mas eles só querem paz e mesmo assim é um sonho
/ Fim de semana do Parque Santo Antônio. (FIM DE SEMANA NO
PARQUE – Racionais Mc’s 1993)
Em 1997 os Racionais lançaram o lendário disco “Sobrevivendo no Inferno”, que
tinha 12 faixas, das quais pelo menos cinco são tocadas até hoje. Mesmo lançado de
maneira independente – com o selo da gravadora dos rappers de nome “Cosa Nostra” –,
o sucesso do disco foi grande a ponto chegar a marca de 1,5 milhões de vendas, e sua
capa – com uma cruz dourada em um fundo preto, com o nome Racionais MC’s escrito
em vermelho e o trecho de um salmo da Bíblia em branco – virar estampa comum em
camisetas e agasalhos. As principais faixas desse disco foram “Capítulo 4, Versículo 3”;
“Diário de um Detento”, “Tô ouvindo alguém me chamar” e “Fórmula Mágica da Paz”.
Nesse disco os Racionais mantiveram seu discurso agressivo e letras pesadas, porém, na
visão de Ice Blue, o mais importante deste trabalho foi a possibilidade de mostrar que o
Rap poderia viver de maneira independente, mesmo que, com o sucesso, as grandes
gravadoras começassem a se interessar.
O Racionais sempre teve a mentalidade de ser independente. Pela
proposta musical e ideológica, não tinha como ser diferente. Se a gente
se entrega, mano, ia sofrer muita pressão das gravadoras para mudar
nosso discurso e isso não se vende. O caminho foi mais difícil? Foi.
Mas estamos aí, independentes e falando do que queremos. Fizemos
uma gravadora de preto crescer, mano. Tivemos propostas de contratos
milionários, de gravadoras grandes, mas recusamos mesmo, ideologia
não se vende, nosso compromisso sempre foi maior que isso. (Ice Blue
em entrevista à Revista Fórum – Julho de 2014).
15
O disco seguinte só foi lançado em 2002, com o nome de “Nada como um dia
após o outro dia”. No ano de 2013, o LP foi apontado pela edição brasileira da revista
Rolling Stones como o 14º melhor disco brasileiro em uma lista de 100 trabalhos. Ice
Blue conta que o grande diferencial desse disco foi a volta às origens. Após uma
sequência frenética de shows do “Sobrevivendo no Inferno”, os Racionais tiraram férias
e voltaram a conviver mais tempo com amigos e família na periferia e, a partir daí, saiu o
“Nada com um dia após o outro dia”, caracterizado por Blue como um álbum mais
“gangsta”.
Vamos dizer assim, ele é o mais “rua”. É um disco mais próximo da
linguagem da rua. Até nós tínhamos esse sentimento, nos outros discos,
que tínhamos que mostrar conhecimento da língua portuguesa. No
“Nada como um dia…” tem uma coisa louca: A gente estava fazendo
show do “Sobrevivendo no inferno”, aí um dia fizemos uma reunião no
camarim, estava todo mundo cansado e falamos: “Mano, isso aqui não
é mais o que queremos dizer. Quantos shows tem? Tanto. Vamos fazer
os shows vendidos e vamos parar por tempo indeterminado, quem tem
dinheiro, tem. Quem não tem, corre atrás”. Foi assim, porque a gente
precisava ficar mais próximo das nossas origens. Nesse tempo, a gente
viveu mais a várzea, mais os amigos de quebrada, mais os bares da
quebrada, até passava a ponte, mas era só pra algum compromisso
profissional e voltava. Sete anos depois, saiu um disco mais gangsta,
menos politizado, com ideias retas e diretas, com objetivos claros. (Ice
Blue em entrevista à Revista Fórum – Julho de 2014)
“Nego Drama”, “Jesus Chorou”, “Vida Loka I” e “Vida Loka II” foram algumas
das músicas mais tocadas desse CD, que teve na linguagem da rua seu ponto mais forte.
Devido ao sucesso desses discos e às parcerias firmadas entre membros do Racionais com
outros rappers e músicos de outras vertentes, o grupo só voltou aos estúdios em 2014 para
gravar o álbum “Cores e Valores”, que no mesmo ano venceu a eleição da revista Rolling
Stones de “Melhor Disco Brasileiro do Ano”.
O sexto álbum do Racionais MC’s tem letras mais metafóricas e com mensagens
mais otimistas em relação ao que era feito nos primeiros discos, além das músicas serem
mais curtas. Ice Blue atribui essa mudança à evolução na história não só dos integrantes
do grupo, mas como da sociedade.
Da evolução das ideias, as pessoas estão presas. O Racionais falou pra
você não ter vergonha de onde você mora, não ter vergonha da sua cor,
mas não falou pra você morrer no barraco. Você não tem que ter
vergonha disso, mas tem direito de sonhar e buscar sair disso. Querer
sair daquela situação, não é negar aquela situação. Nós falamos das
16
mesmas coisas, porém, não adianta querer me ver hoje como me via em
1998, ou 1989. Tudo mudou. Em 2014, o Ice Blue é outra pessoa, não
me prendi. (Ice Blue em entrevista à Revista Fórum – Julho de 2014)
Ao final do ano de 2014, Edi Rock também avaliou o momento do Racionais Mc’s
e constatou que essa é uma fase de reflexão, onde os músicos buscam avaliar o que foi
dito e feito até agora e como isso deve ser feito para que no futuro continue havendo essa
interação e influência positiva com o público.
Hoje, o nosso momento são cores e valores. Isso quer dizer que é um
momento de reflexão. É um momento de questionar valores. (...) A nova
geração está no caminho certo. Estão aprendendo a trabalhar com
organização. (...) Eu acho que o nosso som é acessível para qualquer
público. Não é necessário viver a realidade que estão nas nossas letras,
basta apenas sentir e entender. Acredito que a nossa mensagem está
chegando até as pessoas. Talvez alguns demorem um pouco mais para
entender essa nossa nova fase e digerir o disco. Isso é uma coisa normal.
(Edi Rock em entrevista à Revista Rolling Stones Brasil – Dezembro
de 2014)
Portanto, quase trinta anos depois de sua formação, as letras diretas e agressivas,
com relatos detalhados sobre o cotidiano da periferia, o preconceito e a violência, fizeram
do Racionais MC’s o grupo mais influente do Hip Hop nacional. Apesar de passarem por
uma fase mais branda e com letras mais cuidadosas, o Racionais ainda mantém seu posto,
devido a letras emblemáticas como “Capítulo 4, Versículo 3”, “Diário de um Detento” e
“Nego Drama”.
1.3.3. Sabotage – O Maestro do Canão invadiu as telas
Mauro Mateus dos Santos, o Sabotage, é uma espécie de mártir do movimento
Hip Hop brasileiro. Associado à imagem de Tupac Shakur nos Estados Unidos, o rapper
brasileiro, nasceu na favela do Aeroporto, em São Paulo, que começava na Marginal
Pinheiros e se estendia até a Vila Santa Catarina, posteriormente conhecida como favela
do Canão.
A história de Sabotage se confunde com o que é retratado em suas letras – e nas
dos demais rappers -, que em alguns momentos são autobiográficas e em outros contam
histórias comuns do cotidiano das favelas. Por ter vivenciado tudo o que é narrado nas
letras de Rap – incluindo miséria, preconceito e criminalidade –, Sabotage acabou
17
tornando-se uma personificação do Rap nacional. E grande parte da popularização do
movimento é atribuída a ele, que foi um dos primeiros rappers a marcar presença no
cinema e televisão.
Aos 15 anos, o rapper começou a se envolver com o crime. Mesmo já se
interessando pelo ambiente dos bailes black – os quais frequentava apresentando o
documento do irmão mais velho – e se arriscando a escrever algumas rimas, Mauro se
deixou influenciar pela criminalidade.
Aos 16 anos, Sabotage foi preso pela primeira vez e, ao voltar à liberdade, ficou
um tempo afastado do universo Hip Hop. Ao voltar a frequentar os ambientes dos bailes
black, por volta de 1991, já com 18 anos, o rapper começou a se apresentar em concursos
de rap, em uma época em que grupos como Racionais Mc’s, RZO e Ndee Naldinho já
estavam estourados no cenário da periferia. Nos anos seguintes, Sabotage marcou
presença nas festas, fez amizade com os rappers Mano Brown, Edi Rock, Helião e
Sandrão do grupo RZO e Ndee Naldinho e começou a participar de faixas e discos desses
e de outros artistas do cenário. No ano 2000, já bastante conhecido em São Paulo e
começando a aparecer como um fenômeno em outras partes do Brasil, Sabotage gravou
seu único CD, denominado “Rap é Compromisso”. A fama de diferenciado do rapper
chamou a atenção de tal forma que o disco foi produzido pelos já reconhecidos músicos
Daniel Ganjaman e Zé Gonzalez, do Planet Hemp.
Diferentemente dos demais grupos, Sabotage misturava em suas letras narrações
de histórias – próprias ou não, sem se preocupar com possíveis julgamentos – com lições
de vida e pensamentos e opiniões próprias, dando um caráter mais metafórico nas
canções. O estilo diferenciado fez com que o rapper chamasse a atenção, por exemplo, do
grupo Charlie Brown Jr., que gravou com ele e com o grupo RZO a canção “A Banca”,
que saiu no terceiro álbum dos roqueiros, e outras duas canções denominadas “Cantando
para o Santo” e “Marginal Alado”.
Músicas como “Mum-Rá” – que narra pensamentos e histórias da vida do artista
e do seu relacionamento e atividade no Hip Hop –, “Cocaína” – que fala, particularmente
do antigo vício do artista e dos malefícios da droga –, e “Um bom lugar” – que fala do
comportamento de Sabotage e do que ele julgava correto para viver na periferia – se
tornaram hinos do Rap nacional com o característico refrão: “Um bom lugar / Se constrói
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com humildade / É bom lembrar / Aqui é o mano Sabotage / Vou seguir sem / pilantragem
/ Vou honrar, provar”/ (Um bom lugar – SABOTAGE, 2000).
O aparecimento de Sabotage na mídia hegemônica começou com a participação
do artista no filme “O Invasor”, do cineasta Beto Brant, adaptado do livro de Marçal
Aquino. Brant assistiu a um vídeo do RZO com Sabotage cantando e convidou o rapper
para uma entrevista. O artista foi apresentado a Paulo Miklos, músico do Titãs, a quem
Sabotage prestou uma verdadeira consultoria para o papel do malandro Anísio, além de
garantir uma ponta no filme, representando ele mesmo, e músicas na trilha sonora. Essa
foi a porta de entrada de Sabotage em programas da emissora Rede Globo, além de figurar
em outros canais, plataformas de mídia e até mesmo em outra produção de sucesso do
cinema brasileiro que foi o filme “Carandiru”. Com seu jeito extremamente característico,
histórico de vida e envolvimento com a criminalidade mal resolvidos – acredita-se que o
rapper, morto em 2003, foi assassinado devido a conflitos de facções rivais. Há quem
garanta que Sabotage nunca deixou de ter envolvimento com o tráfico de drogas –, e
carisma e facilidade para lidar com diversos públicos e trabalhos, Sabotage foi o retrato
do Rap brasileiro.
1.3.4. Gabriel, o pensador – Rap fora do movimento
Gabriel Contino, ou Gabriel, o Pensador, traz uma vertente totalmente diferente
dos demais artistas apresentados. Um garoto de classe média alta do Rio de Janeiro que
se tornou rapper e é inegavelmente responsável pela popularização do Hip Hop e abertura
de debates importantes que eram temas de suas letras. Em suas músicas, Gabriel levanta
debates como o racismo, miséria e violência, e também inova, em tom bem-humorado,
falando sobre temas pertinentes, mas pouco discutidos, como a alienação de alguns jovens
da classe média – com as clássicas Retrato de um Playboy parte I e parte II – e o uso da
beleza por parte de mulheres que fazem qualquer coisa para conseguir o que querem.
Gabriel nasceu no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, mas aos 12 anos se mudou
com a mãe para São Conrado, bairro nobre da cidade. No entanto, o músico se aproximou
de moradores da favela da Rocinha, comunidade que se estende entre os bairros da Gávea
e de São Conrado. Essa aproximação fez com que Gabriel conhecesse o ambiente do surf
e do skate. Apesar dessa convivência, sua aproximação com o Rap se deu através da mídia
relacionada aos artistas norte-americanos, principalmente os do break, incluindo o
fenômeno Michael Jackson. Porém, é válido ressaltar que contato com os amigos da
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Rocinha foi o que levou o artista a conhecer e conviver com outras realidades, que
posteriormente viraram temas de suas músicas, como explicou o artista em entrevista no
ano de 2012:
O que eu aprendi na Rocinha foi a humildade, que já vem de berço
também não é?! O jeito simples que não é só pela galera do Cantão
(Rocinha), de valorizar a vida, a simplicidade, a amizade. A
descontração da galera da favela, diferente da galera da escola que eram
os garotos da classe média pra cima. Eu nunca sofri preconceito lá. Mas
aprendi o que era preconceito, porque eu tinha melhores amigos negros
e pobres e a gente estava no shopping e o segurança vinha atrás. Eu
senti na pele coisas que eu demoraria mais a entender. (Gabriel, o
Pensador, em entrevista ao programa De Frente com Gabi, no SBT,
Julho de 2012).
Aos 15 anos, Gabriel se mudou para a Barra da Tijuca e se revoltou ao precisar
conviver com outras tribos, bem diferentes dos amigos da Rocinha. A partir daí o cantor
começou a escrever suas primeiras letras.
Em 1992 Gabriel gravou por conta própria a fita demo da música "Tô Feliz (Matei
o Presidente)", que criticava a atuação do então presidente Fernando Collor de Mello.
Cinco dias após ser levada às rádios, a música foi censurada pelo Ministério da Justiça
por incitação à violência. Porém, os cinco dias foram suficientes para que Gabriel e
tornasse conhecido e a canção um sucesso, fazendo com que o rapper fosse contratado
pela gravadora Sony.
O álbum de estreia, batizado com seu pseudônimo, foi lançado em 1993 e se
tornou um sucesso. Além das músicas "Lôraburra", "Retratos de um Playboy" e a própria
"Tô Feliz", Gabriel contou com a participação de Martinho da Vila, Toni Garrido do
Cidade Negra, Zeca Baleiro e Neguinho da Beija-Flor, o que fez com que o Rap chegasse
também ao público desses demais artistas. O disco venceu 350 mil cópias e garantiu a
Gabriel o 7o Prêmio da Música Brasileira como revelação masculina do ano na categoria
de pop rock.
Em 1995 o segundo disco foi lançado com o nome de "Ainda é só o Começo" e
levantava debates a respeito do sistema educacional brasileiro em "Estudo Errado" e do
comportamento de algumas seitas religiosas em "FDP".
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Em 1997 Gabriel lançou o disco "Quebra-Cabeça", com participações de Lulu
Santos, Barão Vermelho e Evandro Mesquita. O álbum tinha músicas com temas ainda
mais pertinentes como alcoolismo em "+ 1 Dose", desemprego em "Dança do
Desempregado", legalização da maconha em "Cachimbo da Paz" e abandono infantil em
"Pátria que me pariu". O disco vendeu um milhão e meio de cópias.
Em 1999 veio o "Nádegas a Declarar", que tinha canções falando um pouco de
sua vida pessoal, como "Cantão" que lembra sua fase de convivência na Rocinha – além
de relatos bem-humorados e irônicos de temas sociais, como em "Brazuca", que fala da
história de dois irmãos, um jogador de futebol que se dá bem e um trabalhador que se dá
mal; e "Astronauta", que tem a participação de Lulu Santos e fala sobre os problemas do
planeta Terra.
O álbum "Seja você mesmo (mas não seja sempre o mesmo" foi lançado em 2001,
também com participações especiais, dessa vez de Digão, guitarrista do Raimundos, e do
cantor Lenine. O sucesso do disco foi a música "Até Quando?", que clama pela maior
participação política e social dos brasileiros.
Em 2005 foi lançado o disco "Cavaleiro Andante", que contém trechos e versos
de famosas músicas populares brasileiras como "Pais e Filhos", do Legião Urbana em
"Palavras Repetidas"; "Garota de Ipanema", de Tom Jobim e Vinícius de Moraes em
"Bossa 9"; e "Que Beleza", de Tim Maia em "Rap do Feio". O disco também teve a
participação da rapper Negra Li, do grupo RZO, em "Deixa Rolar".
O último disco de estúdio foi lançado em 2012 com o nome "Sem crise". Músicas
como "Nunca Serão", inspirada do bordão do filme Tropa de Elite, e "Só tem Jogador",
foram sucesso deste disco.
Gabriel também lançou um álbum só para crianças e um disco que reunia suas
melhores músicas, que foi lançado em Portugal. O rapper é um dos artistas brasileiros de
maior sucesso em outros países de língua portuguesa. Ele conta com orgulho que foi um
dos responsáveis pela popularização do Hip Hop não só no Brasil, mas em países como
Portugal e Angola:
21
Sei que depois que vendi tantos discos o sucesso ajudou as gravadoras
e os donos das rádios a darem espaço para o rap. Digo isso sem
prepotência. Percebo essa importância quando ouço artistas falarem que
meu álbum foi o primeiro CD de Rap que eles ouviram. Em Angola e
Portugal o meu sucesso abriu espaço para o Rap feito em português
(Gabriel, o Pensador em entrevista ao Portal UOL 23/12/2012).
2. A popularização do Rap nacional na grande mídia
2.1. O interesse da mídia no Rap Nacional
Para Thompson (1998), o desenvolvimento dos meios de comunicação em massa
está atrelado ao capitalismo. A mídia é dominada pelo mercado, uma vez que estão
interligados pela relação mercadológica que há entre ambos – a maior parte da verba
arrecadada pelos veículos de comunicação vem dos anunciantes e patrocinadores.
A escolha de analisar o crescimento do Rap na televisão vem a partir da concepção
de Almeida (2003), de que a TV é a maior mídia no país, principalmente pela forte relação
deste veículo com a publicidade.
Ao se espalhar pelo país em quase toda sua extensão e pela sua
penetração nos lares brasileiros, torna-se a mídia mais usada pela
publicidade. Segundo Sério Mattos (1990), a TV já era a mídia de maior
verba desde meados da década de 60, quando se previa sua expansão e
suas potencialidades no país. Ela continua sendo o meio de maior
participação nas verbas publicitárias. (Almeida, 2003, p. 9 e 10)
A partir dessa concepção, Almeida destaca que a TV também molda os hábitos de
comportamento e de consumo dos brasileiros. “No jargão do meio, a TV facilita a criação
de "novos comportamentos", ou seja, novos hábitos de consumo e de atitudes do cotidiano
que impulsionam a compra e o uso de novos produtos” (ALMEIDA, 2003, p.11)
Essa relação pode explicar o recente interesse da mídia nas camadas populares onde se concentra grande parte do público do Hip Hop -, já que nos anos de 2007 a 2010
foi noticiada a ascensão de milhões de pessoas à Classe C, que segundo dados da
CPS/FGV, partindo de microdados da PNAD/IBGE, são aquelas famílias que arrecadam
entre R$ 1126 e R$ 4854 (BOMENY, 2011). O crescimento do número de pessoas com
maior poder aquisitivo mudou os padrões de consumo dessa parte da sociedade, que pode
dedicar parte de sua renda à compra de roupas, sapatos e acessórios. O consumismo pode
22
estar atrelados à venda de um estilo de vida, como é o caso do Hip Hop, com suas atitudes
moldadas sobre seus trajes característicos - os bonés de aba reta, tênis, calças largas e
camisas longas.
O sujeito pós-moderno, apresentado por Hall (1992), é fragmentado e composto
de várias identidades, às vezes contraditórias e que, necessariamente - mesmo que não
seja de maneira consciente -, este sujeito deseja romper com o passado, com a tradição.
Há uma necessidade de se destacar e diferenciar. Este sujeito também está vulnerável a
assumir diferentes identidades em diferentes momentos. A partir dessa concepção é
cabível imaginar que um sujeito contemporâneo que venha de uma camada privilegiada
da sociedade admire e se inspire em personagens "bem-sucedidos" vindo das periferias,
como os jogadores de futebol e os rappers, que rompem com o que lhes foi apresentado
como tradicional. Atitudes como essas são ainda mais frequentes entre jovens, que estão
em processo de formação de identidade. E, para a mídia hegemônica, representam uma
parcela significativa da população consumidora de bens acessórios.
Inacreditável, mas seu filho me imita / No
meio de vocês, ele é o mais esperto / Ginga
e fala gíria / Gíria, não! Dialeto
(Nego Drama - RACIONAIS MC'S 2002)
Assim como Thompson (1998), Hall (2003) também destaca a relação e influência
do capitalismo na cultura popular. O autor diz que o capital encontrou dificuldades em
fazer a população romper com sua cultura tradicional para se adaptar à lógica de mercado
que a nova tendência impunha. Portanto, a opção encontrada foi adaptar os gostos
populares – e a sua tradição – à lógica do mercado. Hall ainda comenta que o
“tradicionalismo” foi, por muitas vezes, mal interpretado e taxado de algo retrógrado e
conservador, para que as pessoas tivessem maior tendência a aceitar o novo. Para Hall, a
cultura popular atualmente está embasada no chamado imperialismo popular, que tem na
imprensa seu principal meio difusor. Com isso, o autor afirma que: “não há “cultura
popular” íntegra, autêntica e autônoma, situada fora do campo de força das relações de
poder e dominações culturais” (HALL, 2003, p. 254).
Ainda segundo o autor, não há como a sociedade não se deixar influenciar
minimamente por aquilo que é oferecido pela cultura dominante:
Afirmar que essas formas impostas não nos influenciam equivale
a dizer que a cultura do povo pode existir como um enclave
isolado, fora do circuito de distribuição do poder cultural e das
23
relações de força cultural. Não acredito nisso. Creio que há uma
luta contínua e necessariamente irregular e desigual, por parte da
cultura dominante, no sentido de desorganizar e reorganizar
constantemente a cultura popular; para cercá-la e confinar suas
definições e formas dentro de uma gama mais abrangente de
formas dominantes. Há pontos de resistência e também
momentos de superação. Esta é a dialética da luta cultural. Na
atualidade, essa luta é contínua e ocorre nas linhas complexas da
resistência e da aceitação, da recusa e da capitulação, que
transformam o campo da cultura em uma espécie de campo de
batalha permanente, onde não se obtêm vitórias definitivas, mas
onde há sempre posições estratégicas a serem conquistadas ou
perdidas. (HALL, 2003, p. 255)
Outro fator que deve ser levado em consideração é a influência direta da indústria
fonográfica dos EUA na mídia de outros países. A indústria norte-americana é, sem
dúvidas, uma das mais fortes do mundo. Ela é formada por 62 selos, mas três grandes
gravadoras detém alguns deles: a Columbia Records, a Universal Music e a Warner. A
Columbia Records é a responsável pelos selos Epic Records, Sony Nashville, Legacy
Recordings, Sony Wonder e Sony Classical, que detém a extensão brasileira Sony Music
do Brasil – responsável pelas trilhas sonoras de novelas da Rede Globo, cuja forte
influência sobre a população brasileira pode ser explicada pelo fato de a emissora liderar,
com vantagem, a audiência nacional desde os anos de 1970 (CORRÊA, 2006). A
importância desse dado pode ser corroborada uma vez que 97,2% das casas brasileiras
possuem pelo menos um aparelho de televisão, segundo dados do Ibope em 2015.
Relembrando o que foi dito por Herschmann e Kischinhevsky (2006), a força da
indústria fonográfica faz com que surja uma indústria ainda maior, com uma mídia
especializada. Um veículo que exemplifica essa força e exerce amplo domínio sobre a
indústria fonográfica mundial – inclusive no Brasil – é a revista norte-americana
Billboard. A publicação tem quase 120 anos e é lida em mais de 100 países. A revista
organiza rankings de acordo com dados da companhia Broadcast Data System, que
analisa quantas vezes uma canção foi executada nas rádios em um determinado período,
o que funciona como um termômetro do que faz sucesso e confere status ao artista.
Mesmo que pouco conhecida pelo público brasileiro, a Billboard é recebida por
quase todas as rádios brasileiras, o que evidencia sua influência, principalmente
assumindo que segundo um levantamento do Ibope Media, realizado em 2014, 90% da
população tem acesso ao rádio. A interferência da revista nas rádios e na indústria
fonográfica no Brasil pode ser medida pelo sucesso das músicas estrangeiras –
24
principalmente norte-americanas – no país. Desde 1980 até 1999, 624 das 970 músicas
estrangeiras mais tocadas no Brasil estavam nas listas da Billboard. (CORREA, 2013)
Outro fator determinante para essa influência foi o poder aquisitivo das grandes
gravadoras norte-americanas – que têm filiadas no Brasil. Essas companhias dispunham
de capital suficiente para pagar aos radialistas, diretores e donos de rádios brasileiras para
tocar canções de seus artistas. A prática é conhecida no meio midiático como “jabá”.
Essa constatação pode ser assumida como outra explicação para o interesse da
mídia brasileira no hip hop, partindo do pressuposto que o estilo é uma realidade rentável
nos EUA desde os anos de 1980, quando começou a se popularizar.
Nos anos de 1970 e 1980 os Estados Unidos passavam por uma forte onda de
consumo tecnológico, que incentivou e serviu de base para a difusão do hip hop. Isto
porque aparatos como toca-discos, amplificadores e aparelhos de mixagem eram os
principais instrumentos do estilo musical. (SOUSA, 2009)
Atualmente, o hip hop é uma indústria bilionária nos EUA. De acordo com a lista
dos vinte artistas mais bem pagos de 2014, divulgada pela revista Forbes, o rapper e
produtor Dr. Dree aparece na primeira colocação e o rapper e produtor Jay-Z e o rapper
Diddy aparecem empatados no 12º lugar, o que comprova a força do estilo musical nos
EUA.
Portanto, entende-se que a indústria norte-americana – que tem o hip hop como
um dos principais e mais rentáveis estilos – exerce forte influência na indústria musical
brasileira, através de suas gravadoras e publicações. Logo, artistas do hip hop norteamericano passaram a ser respeitados e admirados no Brasil e as gravadoras tenderam a
buscar representantes brasileiros do mesmo estilo, ou apadrinha-los de alguma maneira.
A lógica do mercado liga as gravadoras aos veículos midiáticos através de
propagandas, trilhas sonoras e de toda a indústria que o meio musical e os artistas
movimentam – como a de roupas e acessórios. Portanto, essa relação também pode
explicar o interesse da mídia hegemônica brasileira nos artistas e no movimento hip hop.
2.2 A representação do hip hop na televisão
25
Como visto anteriormente, o Hip Hop brasileiro começou a se consolidar no final
dos anos de 1980 e no início dos anos de 1990. Os estilos musicais mais tocados nas
rádios brasileiras nessa época eram o axé, pagode e o sertanejo, com eventuais sucessos
do pop-rock brasileiro e a aparição de músicas do rapper Gabriel, o Pensador entre as dez
músicas mais tocadas de 1993 (Lôraburra), 1997 (2345meia78), 1998 (Cachimbo da Paz)
e 1999 (Cachorrada).
Na mesma época o estilo já era uma realidade forte nas periferias e sucesso nos
Estados Unidos e a tendência do mercado fonográfico era de que o rap “popular” – sem
se basear na ideologia das críticas políticas e sociais – ganhasse força no Brasil nos anos
seguintes.
A emissora MTV Brasil, filiada ao grupo norte-americano, criou em 1990 o
programa Yo! MTV, programa em que eram exibidos clipes de rap. Porém, a atração era
apresentada por VJs da MTV e quase todo o tempo de programa era destinado aos artistas
norte-americanos. Em 1994, Primo Preto, que era assistente de produção na MTV e
produtor musical de grupos de rap, assumiu o comando da atração, aproximando a
produção ao público brasileiro e, principalmente, ao público do rap. O DJ KL Jay, do
Racionais, também chegou a apresentar o programa no ano de 1998, mas foi em 2001,
com a entrada de Thaíde, que a atração ganhou um novo formato. Sob o comando de
Thaíde, o Yo! exibia entrevistas e apresentações ao vivo, que começaram a trazer o Rap
e os rappers para dentro do ambiente televisivo.
A grande crítica por parte do público do Rap era de que a MTV não tinha um sinal
tão acessível quanto o de canais como a Rede Globo – que tinha a liderança absoluta no
Ibope entre os anos 1990 e 2000, com o dobro da audiência do vice-líder SBT –, Record,
Rede Manchete ou SBT, que estavam presentes na maioria das casas brasileiras, incluindo
as da periferia, onde estava grande parte do público do rap.
Após o sucesso do Yo!,Thaíde se tornou um dos representantes do Hip Hop mais
presentes na mídia nacional. O rapper apresentou o programa "Manos e Minas", da TV
Cultura, e atualmente faz parte do programa "A Liga", da TV Bandeirantes.
O "Manos e Minas" é uma das poucas atrações televisivas em que o Rap nacional
é apresentado e exaltado. O programa surgiu em 2008 e dá espaço para a chamada música
26
urbana e a cultura da periferia, com atrações de grupos de rap, reggae e até mesmo de
funk. Nomes como o dos rappers Rappin Hood, Max B.O e Emicida já estiveram no
comando da atração.
Pablo Nabarrete Bastos (2008) expõe o distanciamento existente entre as
comunidades periféricas e os outros meios de convívio. A partir da consciência desse
distanciamento, Bastos a noção política de cultura como disputa simbólica. Ao fazer uma
análise da maneira como falam, se vestem e se comportam os membros da comunidade
do Hip Hop, o autor conclui que se cria uma barreira imaginária entre "nós" e "eles". Este
comportamento característico é visto como uma forma de se afirmar como membro de
determinado grupo. Essa afirmação pode ser relacionada à necessidade da criação de
programas específicos de Rap, ao invés da introdução do gênero nas atrações já existentes.
Essa divisão, porém, é um movimento de duas vertentes. Os admiradores do Rap
de vanguarda se orgulham dos ídolos que se recusam a ir nos programas tradicionais da
TV e fazem críticas veementes aos artistas que aceitam convites de grandes emissoras. O
principal argumento desse grupo é que a ida à televisão representa uma mudança de
postura do rapper. As acusações são de que o artista adequou sua postura para poder
aparecer na TV – e seguir as regras que o veículo supostamente impõe – ou de que sua
participação tenha sido paga.
A participação do rapper Xis na segunda edição do reality show "A Casa dos
Artistas", da emissora SBT, aconteceu no ano de 2002 e iniciou um dos principais debates
para a questão dos representantes do Hip Hop na televisão. Doze anos depois, essa
discussão foi reaberta com a participação do rapper Slim Rimografia na 14ª edição do
reality show "Big Brother Brasil", da Rede Globo. Em entrevista ao site "Vai ser
Rimando", Xis comentou tanto a sua participação quanto a de Slim:
Oras, eu sempre critiquei a falta de negros na TV, em revistas,
jornais... O Brasil é um pais racista, então precisava ir (...) Meu
amor ao Hip Hop é incondicional e a ida de alguém à TV, seja
quem for, inclusive a minha, não vai mudar isso. Na verdade, a
ida de alguém como o Slim só fortalece, eles poderiam escolher
qualquer MC de internet, existem aos montes por aí. E digo mais,
não há quem fale por mim sobre Hip Hop, se existe alguém que
fale por você que está lendo isto, você está preso, você não é do
Hip Hop, somos livres, esta é a ideia. (Xis em entrevista ao site
Vai ser Rimando, Janeiro de 2014)
27
Duas das participações mais polêmicas dos últimos tempos foram a atuação do
rapper MV Bill na novela teen "Malhação", que aconteceu em 2010, e a ida de Edi Rock
ao programa "Caldeirão do Huck", em 2013, ambos atrações da Rede Globo. Essas
aparições foram incentivadoras do debate acerca da necessidade ou não do Rap estar
presente em atrações deste perfil.
MV Bill foi particularmente criticado por fazer referências claras à Rede Globo
em suas letras. Aplaudido pelos fãs de Rap ao cantar ao vivo os versos "Por que? / Pra
que? / Só tem Paquita loira / Aqui não tem preta como apresentadora / Novela de escravo
/ A emissora gosta / Mostra os pretos chibatados pelas costas" durante sua participação
no programa "Domingão do Faustão", na Rede Globo, em 2009, MV Bill foi acusado de
contradição ao aceitar integrar o elenco de "Malhação".
O rapper, entretanto, assume que sua postura com a TV mudou a partir do
momento em que viu situações mudando em seu cotidiano e a televisão acompanhando
partes dessa mudança:
(Minha postura em relação à TV mudou) quando a TV mudou comigo.
Sou muito crítico. Quando eu comecei a fazer a minha música, a TV era
muito menos plural. Falta muito ainda para ela enxergar a
multirracialidade que existe no Brasil, mas melhorou muito já. Esse
passado de pouca diversidade sempre me incomodou muito. Era uma
contradição. O Brasil é o país que mais tem gente preta, afro, fora da
África. E era todo mundo suíço na TV. Não pode ser tabu para a nossa
sociedade. Isso melhorou. Por causa dessas modificações, passei a ser
mais flexível. A gente precisa diversificar mais. O meu discurso
precisou mudar. Até nas músicas, que eu falava do jovem da periferia
que não come, não tem roupa, que andava descalço, sem perspectiva.
Com as transformações em algumas favelas, não em todas, mas
algumas, esse jovem continua sem comer, mas agora ele tem acesso a
internet, tem celular, dois brincos de diamante em cada orelha, ouve
outra música, não só aquelas que são da favela, quer ter uma casa do
caralho fora da comunidade, um carrão da hora. O perfil do jovem da
comunidade mudou, a minha música acompanha essa mudança, se não
ele não entende a linguagem, não entende o que eu quero passar. (MV
Bill em entrevista ao Portal Geledés, Instituto da Mulher Negra, Agosto
de 2013)
A participação de Edi Rock foi tão polêmica quanto a atuação de MV Bill. Porém,
o integrante do Racionais foi além na sua justificativa. Dias depois de aparecer no
"Caldeirão do Huck", o rapper se manifestou nas redes sociais dizendo que foi com o
intuito de divulgar seu trabalho solo sem deixar de manter suas convicções. Edi Rock
ainda fez questão de salientar que mesmo sendo integrante do Racionais, ele não fala pelo
grupo:
28
Nunca nada foi fácil, e nem será. O que eu estou fazendo é de
livre e espontânea vontade. O que quero com isso? Divulgar meu
trabalho, que por sinal é uma grande obra de 2013. Acho que o
mundo precisa saber! Quero resgatar o respeito da categoria e o
lugar que o Rap brasileiro merece e sempre mereceu estar, entre
os melhores. Não fiquem temerosos, não esqueci quem eu sou
nem de onde vim, pelo contrário, essa 'responsa' que assumo só
vem reforçar as minhas raízes e a minha convicção de tudo e
todos ao meu redor. Sou Racionais, mas não "O Racionais". Sou
Rap, mas não "O Rap nacional". Acredito que vivemos em um
país livre e por isso temos liberdade de escolhas. Escolhi ir onde
eu acho que devo ir, levar a minha mensagem e a minha música,
entrar onde eu for convidado e, principalmente, respeitado. E até
agora as únicas decepções que tive foram com pessoas e lugares
que eu menos imaginava. Então resumindo: relaxa! Sou o mesmo
Cocão de sempre onde quer que eu vá... A diferença é que estou
tentando trilhar um caminho profissional, de gente grande, não
quero mais a senzala, quero a casa grande. (Edi Rock em
postagem no Facebook, outubro de 2013)
As críticas de admiradores do Rap de vanguarda continuaram e no mês seguinte,
Edi Rock voltou a comentar o assunto em entrevista à revista Rolling Stones Brasil, dessa
vez lembrando que foi importante ter negado convites anteriores, para que o Racionais
mantivesse sua postura e respeito perante o público. Porém, o rapper voltou a destacar a
importância de estar presente nas grandes emissoras:
Muitos dos ‘nãos’ que nós dissemos ao longo desses anos foram
importantes para manter a solidez e o respeito que o grupo tem
hoje. Racionais é um grupo, eu sou eu, Edi Rock, do jeito que fui
e do jeito que sou, seguro a minha onda. Não preciso mais
mostrar nada para ninguém. A não ser meu trabalho, a minha
mensagem, sem fronteiras. Vou apavorar [na Globo] e será a
revolução do rap, tem que ir nela e em todas. A minha mensagem
não será vendida, estou indo para mostrar minha ideia, não sou
corruptível, não estou levando milhões. (Edi Rock em entrevista
à Revista Rolling Stones Brasil, Novembro de 2013)
Mesmo com as polêmicas a respeito das participações de rappers da vanguarda na
televisão, atualmente o cenário é diferente. Muitos fãs de músicos da nova geração – e
fãs de rap mais jovens, que tenham entre 15 e 20 anos – se manifestam positivamente nas
redes sociais ao assistirem apresentações de seus ídolos na TV.
Devido a esse retorno positivo, inclusive, a presença do Rap nas emissoras
tradicionais tem sido cada vez mais constante. Exemplo disso é o programa “Encontro
com Fátima Bernardes”. O programa é exibido diariamente, de segunda à sexta-feira, no
horário da manhã e leva ao palco atores e cantores, que juntamente com especialistas e
pessoas da plateia, debatem temas sobre comportamento.
29
Desde que estreou, o programa já recebeu artistas como Marcelo D2, RZO Rashid,
Projota, Emicida, RAPadura, entre outros. No dia 12 de julho de 2013, um ano após a
estreia da atração, o programa teve como tema o Hip Hop e contou com a presença de
artistas como Rappin' Hood, Conexão Baixada – que, na época, tinha a música "Na Selva
de Pedra" fazendo parte da trilha sonora de uma das novelas das 21h da Rede Globo,
"Amor à Vida" –, além de Lurdez da Luz. Na ocasião, a atração apresentou também
alguns grafiteiros, b-boys e desfiles com roupas e acessórios típicos do movimento.
Atualmente, além do programa "Encontro", o "Esquenta", apresentado por Regina
Casé, também na TV Globo, dá espaço aos rappers. A atração estreou em janeiro de 2011
e tem a proposta de fazer um programa popular no qual artistas de gêneros tradicionais
da periferia – como samba, pagode e funk, que tinha pouco espaço na TV brasileira –
participassem. O rap é um dos estilos que costuma estar presente na atração. Artistas
como De Leve, Rael da Rima, Flora Mattos e os já destacados Projota, Emicida, Marcelo
D2 e Rappin Hood – dentre vários outros – já se apresentaram no programa.
Segundo Muniz Sodré (1990), atualmente vive-se a era da interatividade na mídia.
Para o autor, o narcisismo faz parte desse conceito, uma vez que o desejo popular é ver e
ser visto, sentir-se parte de um todo em evidência. Outro tópico importante da mesma
obra de Sodré é o fato de o autor reconhecer que, mesmo a televisão influenciando a
sociedade, ela não é a única a exercer essa função, há outras instituições sociais que
desempenham o mesmo papel, como é o caso da família.
Deste modo, é possível afirmar que a busca da TV por artistas ativistas das
periferias – como é o caso de muitos rappers, que assumem papeis de coordenadores e
incentivadores de projetos sociais dentro de suas comunidades e consequentemente se
tornam fortes influências para a população desse ambiente – é algo vantajoso para a
emissora, que a aproxima ainda mais da sociedade, que, por sua vez, se vê representada
por aquele personagem naquele veículo.
Assim como o indivíduo identifica-se com sua imagem especular (mito
de Narciso), é também suscetível de se identificar (horizontalmente)
com o semelhante a si no “espelho” televisivo. Mais ainda: identificarse (verticalmente) com ideias e modelos (SODRÉ, 1990, p.51)
O crescimento da representação do Hip Hop na TV e no cinema nos últimos cinco
anos pode ser exemplificado por um dado simples, mas objetivo: o uso do rap nas trilhas
sonoras das telenovelas da Rede Globo. Nos últimos três anos, pelo menos oito novelas
30
tiveram em suas trilhas sonoras uma ou mais músicas de rap – são os casos de Cheias de
Charme (2012), com a música "Só Marcando meu Nome", de Marcelo D2 e Stephan;
Lado a Lado (2012/2013), com “Samba de Primeira”, de Marcelo D2; Guerra dos Sexos
(2012/2013), com "Chuva de Novembro", de Projota; Amor à Vida (2013/2014), com
"Selva de Pedra", do grupo Conexão Baixada; Geração Brasil (2014), com o tema de
abertura "País do Futebol", de MC Guimê e Emicida; e Babilônia (2015), com "Rap Du
Bom Parte II", de Rappin Hood e Caetano Veloso. O título "Sangue Bom", que foi ao ar
em 2013 no horário das 19h, teve as músicas "Zoião", de Emicida, e "Vagalumes", do
grupo Pollo, compondo sua trilha. A novela "I love Paraisópolis", no ar atualmente
também às 19h, também tem dois raps na trilha sonora, sendo "Elas gostam assim", de
Projota e Marcelo D2, e "Aqueles Olhos", do jovem Dom M.
Além das novelas tradicionais, a série "Malhação" também vem apresentando
músicas do gênero em sua trilha sonora, principalmente dos grupos mais jovens que
atendem ao público adolescente – mesmo telespectador da novela teen. Flora Mattos,
Cone Crew Diretoria, Emicida e Rael da Rima são alguns dos exemplos mais recentes de
rappers que tiveram suas músicas tocadas em "Malhação".
Segundo dados oficiais da Associação Brasileira dos Produtores de Disco, as
trilhas sonoras de maior venda da década de 2000 foram as das novelas "Laços de
Família" (2000), "Estrela Guia" (2001), "Um anjo caiu do Céu" (2001), "O Clone" (2002),
"Celebridade" (2003), "Mulheres Apaixonadas" (2003), "Malhação" (2003), "Da cor do
Pecado" (2004), "América" (2005), "Páginas da Vida" (2006) e "Paraíso Tropical"
(2007). Porém, nenhuma dessas novelas teve um rap em sua trilha sonora. Mas é
importante destacar que Gabriel, o Pensador, emplacou músicas nas novelas “Negócio da
China” (2008), “Caminho das Índias” (2009), e “Malhação” (2005).
As novelas funcionam como medidor do que se torna sucesso por serem as
responsáveis por grande parte da audiência da TV brasileira. Segundo dados do Instituto
Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (Ibope), dentre as três maiores audiências da
história da televisão no Brasil, duas foram em capítulos de novelas – O capítulo 152 de
“Selva de Pedra” em 1972, na primeira colocação, e o capítulo final de “América”,
exibida em 2005, em terceiro lugar. O jogo entre Brasil x Turquia pela semifinal da Copa
do Mundo de 2002, completa o ranking.
A partir dessa comparação, é possível concluir que a presença do rap nas trilhas
sonoras das novelas é, portanto, fruto da recente popularização do estilo de maneira
independente – com o crescimento das batalhas e o avanço da divulgação via internet.
31
Nos anos de 2006 e 2007, a Rede Globo exibiu a série "Antonia", baseada no filme
homônimo de Tata Amaral, que contava a história de um grupo de rap formado por
mulheres na comunidade da Brasilândia, em São Paulo. A exibição da série pode ser
explicada pela popularização do estilo e pela teoria de Sodré (1990) sobre o narcisismo
da sociedade atual. Segundo essa perspectiva, houve uma necessidade de a TV suprir a
expectativa da população por se identificar no que assistia.
A série era estrelada pelas cantoras Negra Li – já consolidada no cenário Hip Hop
por fazer parte do grupo RZO e, posteriormente, por seus trabalhos com Helião e solo;
Quelynah; Cynthia Mendes e a atriz e cantora Leilah Moreno, que fazia parte do coro da
banda do programa "Altas Horas", além de Thaíde. De acordo com o site Planeta TV, o
Ibope/SP registrou audiência de 20 pontos para a atração, o que foi considerado um
resultado satisfatório. A série foi indicada ao Prêmios Emmy Internacional, na categoria
Melhor Telefime/ Minissérie, e ao Prêmio Qualidade Brasil, na categoria de Melhor
Projeto Especial, além das indicações de Thaíde, Negra Li e Sandra de Sá em Melhor
Ator Revelação.
Segundo a diretora do filme, a intenção era retratar de forma mais fiel possível o
panorama da periferia:
"Antonia" é um filme que fala de jovens negros da periferia e
músicos. Eu sou uma pessoa de meia-idade, classe média, branca
e cineasta. Então, é um universo que eu desconheço, e eu busquei
trazer a verdade dele, através das histórias que eu pesquisei
durante um tempo. Escrevi o roteiro com o Roberto Moreira,
depois passamos por um processo de improvisação com aquele
roteiro, de tal maneira que os atores, os rappers, se apropriaram
dele, fizeram sugestões, mudaram e fizeram todos os diálogos.
Eu queria muito a verdade. Eu não queria que fosse uma coisa
"empacotada", um filme empacotado por alguém de fora do
movimento... Então, apesar de eu ser de fora, acho que a gente
conseguiu essa verdade, essa urgência no filme. (Tata Amaral em
entrevista ao portal UOL Cinema, novembro de 2006)
Por ser veiculado na principal emissora de canal aberto do Brasil, o seriado, além
de chamar a atenção do público cativo do Hip Hop, também apresentou um retrato mais
profundo do movimento àqueles que eram leigos. Porém, o foco da série ainda era voltado
para a luta de mulheres negras em conquistar um espaço predominantemente ocupado por
homens. Mesmo que apresentasse o universo musical dentro das comunidades, a série fez
uma passagem superficial sobre o movimento Hip Hop. A mensagem final da série é a
lição de que com caráter e persistência as pessoas podem alcançar seus objetivos, mesmo
32
diante de adversidades, ou seja, é uma mensagem universal, situada em um cenário
periférico.
2.3. As Batalhas de MCs e os eventos de Hip Hop
O marco do início das batalhas de MCs no Rio de Janeiro foi em 2003, no bairro
boêmio da Lapa. O filme norte-americano "8miles", lançado em 2002 e estrelado pelo
rapper Eminem, teve sua parcela de influência no surgimento desses eventos no Rio. A
narrativa se passa em Detroit e fala sobre um jovem rapper que sonha em fazer sucesso e
participa de batalhas. Esses eventos já eram frequentes em São Paulo e já tinham um
público cativo. Por já acontecerem há muito tempo – desde os encontros na estação São
Bento –, as batalhas paulistas deram origens a grandes eventos do Hip Hop, como foi o
caso do Festival Dulôco, que aconteceu em agosto de 1999. O Dulôco reuniu debates com
grandes nomes do Hip Hop , como o Dj Afrika Bambaataa, Thaíde e DJ Hum, e promoveu
atividades como oficinas de break dance e batalhas de MCs. Porém, no Rio de Janeiro,
este tipo de encontro só começou a atrair um grande público no começo dos anos 2000.
Segundo o MC Aori, um dos criadores da Batalha do Real – a principal batalha de
MCs do Rio de Janeiro, o começo do evento foi bastante despretensioso, mas tomou
grandes proporções de maneira rápida:
Na primeira semana tinha isso. Na segunda, tinham 30 pessoas. Na
terceira, 50. Na quarta, 100. A parada começou a repercutir. Era, tipo,
maio daquele ano. Foram uns três, quatro meses em que a parada ficou
louca.(...)Isso porque nós inventamos essa regra de que cada um dos
MCs dava R$ 1,00 e quem ganhasse levava o bolinho.
(MC Aori em entrevistra ao site Sobre Música - Dezembro de 2006).
Segundo Aori, três ou quatro meses depois a batalha já recebia uma média de 200
a 300 pessoas. Posteriormente os organizadores passaram a convidar artistas mais
famosos
para participar do evento,
como
Marcelo
D2,
BNegão e Xis.
Em 2005 membros da Batalha do Real foram convidados a participar do festival Humaitá
Pra Peixe, que reunia outros estilos musicais, o que Aori considerou uma ajuda para
chamar a atenção de outros públicos para o Hip Hop . A partir daí a Batalha começou a
fazer parte de vários outros eventos, como abertura de shows para o Racionais MCs,
presença em boates da zona sul carioca etc.
33
Boa parte dessa popularização também se deve ao boom da internet no Brasil. A
partir do ano de 2004, a internet via banda larga começou a se tornar acessível no país,
tanto nas residências da parte da população com maior poder aquisitivo, quanto nas lan
houses e cybercafés, também presentes na periferia. Com a propagação do uso da internet
e o sucesso das batalhas de MCs – e a interação de ambas, com a divulgação de eventos,
vídeos e músicas de artistas independentes na rede –, o Hip Hop começou a ganhar força
no cenário nacional. A partir daí os rappers se tornaram mais conhecidos em diferentes
meios e os eventos começaram a receber públicos mais variados.
Os shows de grupos já consolidados de rap, inclusive, também passaram por
mudanças advindas dessas transformações. Não somente os shows, quanto o
comportamento nos palcos – com novos discursos político-sociais, voltados para novos
"alvos", como analisa o crítico musical Jobatê Medeiros, repórter do jornal O Estado de
S. Paulo:
Aos poucos, o hip hop estabeleceu não apenas uma nova linguagem no
trato com o antigo “recado musical”, mas também mudou a elaboração
intelectual, passando tudo por outros filtros, outras decantações, uma
forma menos metafórica e mais direta de abordar os temas. Também
parou de alardear ideais de “pureza” de princípios e de ideais,
assumindo como seus filhos bastardos de todas as correntes, como o
Charlie Brown Jr. (com a morte do vocalista Chorão, diversos astros do
hip hop vieram em defesa do legado do cantor santista, cujo
mélange musical trazia no DNA os elementos da cultura hip hop) (...).
Politicamente, a virada do hip hop não implica numa tentativa de
“aliviar”, mas de identificar novos alvos de sua dissensão, de sua
militância – para que não seja engolida pela contradição.
(Jobatê Medeiros, em artigo para a Revista Cult, edição 183)
Em 2006, a revista Ilustrada, do jornal Folha de S. Paulo dedicou uma matéria
para noticiar uma, até então, rara apresentação do Racionais MC's fora da periferia. Na
ocasião, o evento em questão era um tributo ao rapper norte-americano Tupac Shakur,
que contaria com uma apresentação de Moprene Shakur, irmão do artista falecido. O
evento em questão aconteceu na Tom Maior e os ingressos custavam entre R$ 30 (para
estudantes) e R$ 60. A matéria ainda contou com aspas dos membros do grupo em tom
de explicação:
Quando o Primo Preto [um dos organizadores] resolveu fazer o show
disse "se vocês não tocarem, não dá para fazer". Como também ia ter a
participação do irmão do Tupac, aí então nós resolvemos aceitar (Ice
Blue em entrevista à Folha de S. Paulo – Agosto de 2006)
34
Sete anos depois, no mês de setembro, o mesmo jornal noticiava que os Racionais
MC's fizeram um show na Royal Club, casa noturna tradicional da classe alta paulistana,
localizada na Vila Olímpia. Segundo a reportagem da Folha, os ingressos eram vendidos
a R$100 para o público masculino e R$ 50 para o feminino. Já os camarotes da casa
custavam R$3500, com capacidade para dez pessoas. A reportagem da Folha fez questão
de citar que até o final dos anos 1990 os Racionais tocavam apenas em festas de
comunidades.
Dois meses após o show – e a matéria da Folha – os Racionais estamparam a capa
da edição de aniversário da revista Rolling Stones Brasil. E na entrevista, Mano Brown
justificou seus shows em casas noturnas da classe média alta:
Ele [Marcus Buaiz, dono da boate] não pagou pau pra mim e eu
não paguei pau pra ele. Estávamos ali para fazer negócio (...)
quem tem mais paga um pouco mais para nos ver cantar; quem
tem menos paga menos ou nada (Mano Brown em entrevista à
Revista Rolling Stones Brasil – Novembro de 2013)
Porém, essa divulgação do Hip Hop para outras classes sociais também se deve
ao trabalho do rapper Sabotage. Suas participações nos premiados filmes “O Invasor” e
“Carandiru” lhe garantiram não só a amizade de artistas conceituados como os cineastas
Beto Brant, Hector Babenco e o músico Paulo Miklos, mas também a participação em
programas de televisão e entrevistas a jornais impressos tradicionais. Porém, a morte
precoce no ano de 2003 – e no auge do sucesso – impediram o rapper de seguir mais longe
e adiaram a consolidação do Hip Hop na mídia hegemônica.
Assim como Sabotage, o rapper Gabriel, o Pensador também merece destaque.
Porém, por não propagar o estilo de vida do Hip Hop – com falas características,
vestimentas e trejeitos – nem abordar temas e mensagens características dos demais –
como o cotidiano das favelas –, Gabriel deve ser considerado divulgador do rap, e não do
movimento.
3. A comercialização da cultura Hip Hop
3.1. O interesse em marcas de roupas e acessórios no universo Hip Hop
35
Como foi citado anteriormente, o interesse da mídia do Rap nacional pode ter um
embasamento mercadológico, em vista que o gênero começou a se popularizar e agradar
não só às classes de menor renda, como os adolescentes e jovens de maior poder
aquisitivo.
Além disso, o aumento do poder de compra da classe C – público-alvo inicial do
Rap e de onde vieram e vêm a maioria dos artistas consolidados no gênero – fez com que
o Hip Hop se tornasse não só um movimento, mas uma indústria.
Como sugeriu Nabarrete Bastos (2008), a utilização de uma linguagem e
vestimentas específicas é uma artimanha dos membros do Hip Hop para se reconhecerem
e se destacarem dos demais, reafirmando sua identidade. Porém, com o recente prestígio
adquirido pelo movimento devido à atenção da mídia, a identidade visual do Hip Hop
também se popularizou.
Muitos artistas conceituados do gênero falam de seu estilo característico em suas
letras. Caso da música "Mais do que Pegadas", do rapper Projota, que coloca a vestimenta
como peça fundamental do incentivo para criar músicas, como se os trajes fossem além
da caracterização do membro do movimento:
Se Deus me deu caneta, eu devolvi poesia / Passei a decorar todos os
rap que eu ouvia / E um dia, comprei uma corrente que tinha cor de
prata / Mas não era de prata, reciclagem de lata / Comprei “duas
camiseta” GG e a calça mais larga que a loja podia vender / Me senti
mais vivo, funcionava como incentivo / Mais um motivo pra eu acalmar
meu lado agressivo (Mais do que pegadas – PROJOTA, 2011)
Ao mesmo tempo em que os trajes característicos são exaltados e difundidos,
letras de Rap tradicionais lembram o movimento inverso, com histórias de jovens da
periferia que sonhavam em usar roupas e acessórios de marca e não podiam.
Deixa eu falar “procê”, / Tudo, tudo, tudo vai, / Tudo é fase irmão, /
Logo mais vamos arrebentar no mundão, / De cordão de elite, 18
quilate, / Põe no pulso um Breitling / Que tal, tá bom?! (...) / Uma loja
de tênis, / O olhar do parceiro, / Feliz de poder comprar, / O azul, o
vermelho, / O balcão, o espelho, / O estoque, a modelo / Não importa,
Dinheiro é puta e abre as portas, / Dos castelos de areia que quiser (Vida
LokaParte II, RACIONAIS MC'S, 2002)
Sob a perspectiva de Isherwood e Douglas (2009), o indivíduo usa o consumo para
dizer algo sobre si. Os autores sugerem que os bens são meios de competitividade e
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exibição, uma vez que geram avaliações iniciais e definem status a respeito do indivíduo
que os possui. Analisando por essa perspectiva, em meados dos anos de 1990 e 2000, no
qual o Brasil se recuperava de grave recessão econômica, o poder de compra da maior
parte da população era baixo e as perspectivas de um jovem de periferia poder adquirir
um tênis das marcas Nike ou Adidas – sucesso entre os rappers americanos – eram
pequenas.
A partir do ano de 2007, no entanto, esse quadro começou a mudar, como sugere
Bomeny (2011). Com o aumento do poder de consumo do brasileiro e a ascensão da
Classe C, esses jovens passaram a ter mais oportunidades de adquirir os modelos da moda,
que começaram a ser usados não somente pelos ídolos do Hip Hop mas por artistas de
outros meios, atletas e, até mesmo, pelo chamado "playboy" – gíria que se refere aos
jovens de classe média alta. Os jovens de classe alta também passaram a se espelhar nos
ícones de sucesso da periferia e atualmente é comum ver jovens moradores de bairros
nobres do Rio de Janeiro, como Leblon e Ipanema, vestindo camisas largas que estampam
o rosto de ídolos como o norte-americano Tupac.
Uma das marcas em maior ascensão no mercado atual é a brasileira Sumemo. Com
o nome derivado das palavras "Isso Mesmo", a marca foi criada pelo skatista paulistano
Alex Poisé, após morar por uma década em Los Angeles e perceber a força do estilo
skatista urbano nas ruas da cidade. O estilo da marca mistura conceitos do rock'nroll, do
skate e do próprio Hip Hop, com quem a marca tem mais identificação. Com preços de
camisetas e agasalhos variando entre R$ 60 e R$ 400, a marca é usada por artistas como
os influentes rappers Mano Brown e Marcelo D2, fazendo sucesso entre os jovens e os
fãs de hip hop.
A ascensão dos elementos do Hip Hop na vestimenta também atingiram ao público
feminino e, recentemente, uma ação de destaque foi a união da marca carioca Farm –
popular entre as meninas com perfil “descolado” da classe alta – e a marca alemã Adidas.
As duas empresas se juntaram e produziram as populares jaquetas, tênis e camisetas da
marca esportiva com estampas da grife carioca. O resultado foram peças de streetwear –
jaquetas largas, tênis com solado baixo e camisetas largas, típicas do movimento Hip Hop
– com estilo feminino. As propagandas da campanha exibiam meninas jovens, bonitas e
magras usando as jaquetas, camisetas, tênis e bonés em cenas como passeios de skate nos
cenários cariocas.
Ações como a da Farm com a Adidas aproximam duas realidades diferentes. Elas
mostram meninas de classe média alta vestindo o que é moda entre pessoas do movimento
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Hip Hop – a exemplo do que é usado pelos influentes artistas do movimento norteamericano como Kanye West e Nicki Minaj – e, desta forma, rompendo com o que seria
tradicional entre a elite, como roupas mais refinadas e recatadas. Ao mesmo tempo, essa
moda é também aderida por meninas das comunidades que almejavam vestir o mesmo
que as jovens ricas e agora o fazem sem perder o estilo considerado “descolado”.
Pode-se dizer que há uma dualidade dividida em dois períodos na relação dos
adeptos do movimento hip hop brasileiro com as grandes marcas. Nos anos de 1990,
quando o poder de consumo dos brasileiros era menor e a influência da moda para os
habitantes dos guetos vinha dos personagens do hip hop e do movimentos negro norteamericano, havia uma certa tensão em relação às grifes como Adidas e Nike. Elas
representavam aquilo que os jovens da periferia queriam ter e não podiam. Muitas
coleções, lançadas inicialmente nos EUA, eram feitas para jovens como eles e os mesmos
não podiam consumir. Era como uma representação real da desigualdade econômica no
Brasil. A partir dos anos 2000 essa relação foi se modificando devido ao maior poder de
compra e à popularização do crédito. Nos anos de 2010 essa relação evoluiu a ponto de
os representantes de sucesso das periferias brasileiras tornarem-se modelos dessas
marcas, atribuindo seus nomes a esses personagens.
Um dos casos mais polêmicos envolvendo uma grande marca com um ícone da
periferia aconteceu em 2012 e envolveu o rapper Mano Brown e a marca Nike. A grife
usou sem autorização a imagem do artista na propaganda de lançamento de um tênis. Esse
caso evidencia o grande interesse em gigantes do mercado nos artistas – e,
consequentemente, no público – da periferia. Com a popularização do Hip Hop fora das
comunidades, esse interesse tem se tornado ainda mais frequente.
Segundo reportagem do site Vestiario.org, escrita pela jornalista Mônica Alves
em 2015, a também jornalista Vanessa Germanovix, especialista em moda que estuda a
apropriação do conceito do hip hop nas vestimentas, analisa o uso de peças típicas de
rappers como um atributo de expressão e identificação que deseja passar a mensagem de
rompimento e crítica a determinados padrões sociais. A conclusão da especialista pode
ser atribuída ao que foi exposto por Hall (1992) a respeito da formação da identidade do
sujeito pós-moderno, que mistura diversas identidades e deseja romper com o tradicional
para se reafirmar como algo único e, ao mesmo tempo, parte de um grupo.
3.2. A geração de novos artistas
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Após a popularização do Rap e a diversificação dos públicos, artistas vindos de
diferentes realidades também começaram a fazer parte do cenário Hip Hop, compondo a
nova geração do Rap brasileiro, que fugiu da temática da realidade nas ruas e favelas e
das letras contendo principalmente críticas sociais – geralmente direcionadas apenas aos
governantes e grandes empresários. Atualmente, letras românticas, irônicas, festivas –
mesmo que com críticas sociais – e com a chamada "ostentação" – em que exaltam suas
conquistas econômicas, como carros, roupas e festas caras – também figuram entre os
principais temas. Neste documento foi feita uma análise do trabalho de artistas que têm
se destacado entre a nova geração e influenciado os modos de vida e consumo dos jovens.
Um deles é o rapper paulista Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, autor do
emblema "A Rua é Nóis", que é apontado pela maior parte da mídia especializada como
o responsável pela abertura do Rap na mídia hegemônica. Além do trabalho de Emicida,
também foi analisado o grupo carioca Cone Crew Diretoria, formado no Recreio dos
Bandeirantes, pelos rappers Rany Money, Ari, Batoré, Cert e Maomé, e pelo produtor
Papatinho.
Esses dois exemplos de artistas começaram a fazer sucesso há menos de dez anos,
por volta de 2005, 2006, quando a internet via banda larga começou a se tornar popular
no Brasil, tanto nas residências quanto nas lan houses e cybercafés, também presentes nas
periferias. Essa popularização da rede possibilitou que esses artistas, que já eram
conhecidos do público cativo de batalhas de MCs, lançassem seus trabalhos gravados de
forma caseira na rede. Tanto Emicida quanto a Cone Crew Diretoria tiveram suas músicas
espalhadas de maneira viral pela internet, tanto pelo talento quanto pelo estilo inovador –
ambos rompem com a tradicional escola de Rap ao não se apresentarem como
representantes das comunidades. Essa separação, que fez com que ambos assumissem
apenas o perfil de rapper, sem um compromisso inflexível com qualquer temática,
apresentando em suas canções suas opiniões e vivências, os aproximou do público e
ajudou a influenciar os jovens em sua maneira de vestir e comportar.
No trabalho de Micael Herschmann e Marcelo Kischinhevsky (2006) é feita uma
análise da indústria da música brasileira atualmente, sob a perspectiva da economia
política da comunicação e dos estudos culturais. Um dos pontos interessantes deste
trabalho é feito com base no que foi dito por Keith Negus em 2005, de que não só a
indústria produz cultura, mas também a cultura produz indústria, que é o que vemos com
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a comercialização do estilo e lifestyle do rap. Portanto, é um movimento de duas mãos.
A partir do momento em que a indústria lança seus artistas e ícones musicais que criam
tendências a ser seguidas, há também o movimento contrário. Atualmente, há a presença
forte de marcas de roupas, baseadas na cultura Hip Hop, que vende uma imagem
descolada, que os jovens – com opiniões e gostos ainda em formação – desejam ter,
rompendo com o que lhes foi apresentado tradicionalmente pela família ou por pessoas
mais velhas, ação que Hall (1992) sugere que seja comum.
3.2.1. Emicida – A voz dos excluídos para todos: da internet para a televisão
Leandro Roque de Olveira, o Emicida, nascido em São Paulo, no bairro de Jardim
Fonteles, é um dos principais rappers da nova geração. Apontado por artistas de
vanguarda como um "traidor do movimento" por aceitar de bom grado a todos os convites
feitos pela grande mídia – aqueles que, nos anos de 1990 e 2000 eram veemente negados
pelos Racionais MC's –, Emicida foi um dos grandes responsáveis pela popularização do
Rap no cenário atual entre os jovens, não só da periferia quanto os de classes mais altas.
Filho de um ex-DJ dos bailes de black music e presença frequente nas batalhas de
mcs de São Paulo – sendo campeão diversas vezes da batalha de Santa Cruz e da Rinha
de MC –, Emicida surgiu no cenário nacional com trabalhos independentes. Em 2008
lançou o single "Triunfo", que funciona como um desabafo no qual o artista se intitula
"embaixador da rua", que tem a missão de fazer Rap para contar o que vê por ela. O single
foi um sucesso de vendas e de visualizações na internet, incluindo seu videoclipe,
assistido mais de seis milhões de vezes no site YouTube. No ano seguinte Emicida
conseguiu lançar sua mixtape de estreia, intitulada "Pra quem já mordeu um cachorro por
comida, até que eu cheguei longe", que contava com 25 faixas. O trabalho fala sobre o
que o artista se propôs a fazer em "Triunfo", falar da rua com a voz – e gírias – da rua.
Na mixtape aparecem histórias cotidianas, misturadas aos pensamentos e opiniões do
artista. Temas como desabafos melancólicos sobre solidão – na faixa "Sozim", produzida
pelo MC Marechal, figura conhecida nas batalhas cariocas e famoso por manter uma
carreira sólida no Rap mesmo sem ter lançado nenhum disco –, histórias de mortes
repentinas por assaltos ou acidentes – na faixa "Por Deus, por favor" –, histórias de amor
– presentes em faixas como "Sei Lá", "Ela diz", "Fica mais um pouco, amor". Sua relação
com o Hip Hop também é citada em algumas canções, como é o caso de "Hey, Rap".
40
Em 2010, Emicida lançou seu segundo single, denominado "Besouro". A letra da
canção fala sobre os objetivos de vida do artista – principalmente no Rap – e a maneira
como ele age para que eles sejam atingidos. Em seguida, o rapper lançou sua segunda
mixtape com o nome de "Sua Mina Ouve Meu Rap Também", em alusão à música "Sua
mina ouve meu rap", de seu colega MC Marechal. Com apenas seis faixas, a segunda
mixtape segue falando de amor, Rap e objetivos. No mesmo ano, Emicida lançou seu
terceiro single, com o título de Emicídio, que narra os percalços que ele passou para
chegar aonde estava. Emicídio posteriormente virou o nome de sua terceira mixtape, que
contava também com a emblemática canção Rua Augusta, uma das mais famosas do
artista, que narrava o cotidiano de prostitutas.
No ano de 2010 o reconhecimento do rapper já era grande e suas participações em
programas de televisão eram frequentes. Em 2011 os produtores norte-americanos KSalaam e Beatnick produziram o EP Doozicabraba e a Revolução Silenciosa, que foi
disponibilizado na internet para downloads. O trabalho tinha nove faixas e contava com
a participação de nomes como MV Bill e Rael da Rima.
O primeiro álbum de estúdio saiu em 2013, com o nome de "O glorioso retorno
de quem nunca esteve aqui". Com participações de artistas como a roqueira Pitty, a
cantora de MPB Tulipa Ruiz e o funkeiro MC Guimê, o álbum teve como principais
singles as músicas "Hoje Cedo", a polêmica "Trepadeira" – que conta a história de um
rapaz que criticava o comportamento da ex-namorada, que supostamente saía com muitos
homens –, "Sol de Giz de Cera", "Gueto" e "Zóião", que foi trilha da novela da Rede
Globo "Sangue Bom".
Essa aproximação do artista com a grande mídia e suas declarações diretas a
respeito do tema fizeram de Emicida o principal representante da nova geração que
apresenta, portanto, um novo comportamento. Uma das atitudes do artista que foi
questionada pelos vanguardistas foi sua participação em uma música da banda
adolescente NX Zero. A respeito do episódio, o rapper foi categórico e sincero:
Podem achar que traí o rap, mas eu gosto do NX Zero, eles me
convidaram, qual o problema? Gravar com eles ampliou meu
público, eu quero ser conhecido. Eu penso estrategicamente, não
tenho culpa se os caras do Rap não fazem isso. A gente tem três
músicas de periferia hoje no Brasil: o rap, o funk e o tecnobrega
do Pará. Um dia vai ter que unificar tudo isso, porque é tudo a
41
mesma coisa, música de periferia. (Emicida em entrevista à
Revista Trip - Abril de 2011)
Posteriormente a isso, Emicida se tornou ainda mais conhecido por gravar a
música "País do Futebol" com MC Guimê, um dos principais funkeiros do estilo
"ostentação". A música se tornou um dos temas da Copa do Mundo de 2014, além de ter
sido o tema de abertura da novela "Geração Brasil", que passava no horário das 19h na
Rede Globo.
Sempre demonstrando sinceridade, Emicida criticou a postura de alguns grupos
ao se fecharem totalmente para a mídia. Citando diretamente os Racionais, o artista disse
que não merece ser criticado por aparecer na grande mídia já que, para ele, levar a
mensagem do Rap a outros públicos pode ser uma forte ferramenta de mudança:
O Rap nacional nunca teve um boom comercial porque não tem
um grupo de Rap que seja autêntico e ao mesmo tempo seja
comercialmente viável pras gravadoras. O único cara que foi
longe foi o Marcelo D2. São Paulo é a terra do Rap no Brasil,
mas tirando Racionais não tem um grupo de expressão
monstruosa. Os rappers que têm uma disseminação maior são
todos do Rio, D2, Gabriel o Pensador, MV Bill. Um amigo da
minha mãe falou: “O que eu gosto do seu Rap é que ele foge
desses racionaisismos”. Ele fala como se fosse uma religião, o
“racionaisismo”. Os Racionais têm um peso ideológico foda pra
nós, é a nossa história, mas até hoje o argumento mais forte deles
é que não vão na mídia. E eu, cada vez que vou, sou apedrejado,
como se eu fosse o Mano Brown, como se eu tivesse dito as
coisas que ele diz. Nas favelas a regra é essa, os caras me
cobravam: “Mas não tem o pacto dos rappers de não ir na
mídia?”. Que pacto, mano? Porra, lógico (que os rappers tem que
ir à mídia), cara. Você tem que ir onde tem respeito, onde as
pessoas falam com você. Tipo, sou preto de favela, quero mudar
essa situação e não vou lá falar com as pessoas do outro lado, vou
ficar aqui reclamando? Nem fodendo.(Emicida em entrevista à
Revista Trip – Abril de 2011)
Mesmo que a temática de suas letras se assemelhe a outros rappers - contando
histórias do dia-a-dia das ruas e falando sobre sua trajetória – o rapper assumiu uma
postura diferente dos demais por declarar abertamente o que acha a respeito da relação
dos artistas do movimento com a grande mídia. Pode-se entender, portanto, que as
atitudes – e principalmente, as declarações – de Emicida deram aval para que novos
artistas do Hip Hop se relacionassem melhor com a grande mídia, não limitando sua
participação a apresentações musicais, como participando de debates e entrevistas.
42
Apesar de Gabriel, o Pensador, Sabotage e Thaíde aparecerem em canais de
televisão e darem entrevistas a grandes revistas e jornais, o boicote do Racionais – o
principal grupo de Hip Hop do Brasil, que sustentou uma carreira sólida mesmo sem a
mídia – durante os anos 1990 e 2000, ainda gerava insegurança por parte de outros artistas
sobre como se relacionar com veículos como, por exemplo, a Rede Globo. O rapper MV
Bill, por exemplo, como vimos, foi duramente criticado por parte dos rappers
vanguardistas e dos fãs e ativistas mais antigos do movimento Hip Hop por ter participado
da novela adolescente "Malhação", da Rede Globo, na temporada de 2010. Emicida
quebrou esse tabu por dialogar abertamente sobre isso, e, principalmente, por ter fãs de
gerações mais novas.
3.2.2. Cone Crew Diretoria – A maior influência jovem para o morro e para
o asfalto
O grupo carioca Cone Crew Diretoria, formado pelos rappers Ari (Adriano),
Batoré (Rafael), Cert (André), Maomé (Pedro), Papatinho (Tiago) e Rany Money (Rany
Gabriel) surgiu em 2006. Os membros moravam no bairro carioca do Recreio dos
Bandeirantes e costumavam andar de skate juntos. Adriano já tinha uma banda chamada
C.O.N.E., abreviação de "Com os Neurônios Evoluindo", que tinha a ajuda de Papatinho
na produção de batidas. Em encontros na casa de um dos membros, eles começaram a
escrever juntos e formaram o grupo. Em 2007, eles lançaram um demo tape denominado
"Ataque Lírico", que continha 17 faixas. A principal temática desse trabalho inicial era o
debate sobre a legalização da maconha – e também sobre as "devaneios" proporcionadas
pelo uso da droga. O single que dá nome a demo fala, de maneira agressiva, sobre a
vivência dos rappers, incluindo críticas ao governo e àqueles que eles não consideravam
verdadeiros.
Ralo pra caralho, ralo quando tem fardado / Paro, quando tem mulher
enrolo um baseado / Fato que eu já tô alucinado / Vivo no meu fuso
horário / Calo quem tem que ser calado / Falo quando necessário, não
mato / Apesar de viver como um rato / Mas não viro lixo à procura de
um agrado / Um galo, cato, parto, saio, gasto / Mas no dia seguinte vou
ter que ser salvo / Não quero grana, fama, gana, cana, lancha e sim
minha janta / O mantra, os pela saco nós banda / ConeCrew, minha
demanda (Ataque Lírico - Cone Crew Diretoria, 2007)
Com a repercussão do disco na internet, o grupo começou a ficar cada vez mais
conhecido e sair do cenário carioca para todo o Brasil. Nos anos de 2008 e 2009, a Cone
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Crew lançou videoclipes das músicas "Fênix" e "Lá Pra Lapa", que juntas somaram mais
de 4 milhões de acessos no YouTube.
Em 2011 veio o primeiro álbum de estúdio do grupo, intitulado "Com os
Neurônios Evoluindo" e tendo como carro chefe o single "Chama Os Mulekes", que teve
seu videoclipe assistido mais de 15 milhões de vezes no YouTube. O clipe teve a
participação de artistas polêmicos, como Marcelo D2, rapper e ex-integrante da banda
Planet Hemp, famosa por ser um dos primeiros grupos musicais brasileiros a levantar a
bandeira em defesa da legalização da maconha; além do rockeiro líder da banda
Detonautas, Tico Santa Cruz e do funkeiro Mr Catra. Com uma letra divertida sobre pra
onde, por quem e como os rapazes querem ser chamados.
A temática das letras da banda, nesse segundo trabalho, continuava girando em
torno das vivências, estilo de vida e opiniões dos jovens cariocas. Com o estilo direto e
desbocado, a Cone Crew conquistou o título de principal grupo de Rap da atualidade, com
o público composto principalmente por jovens e adolescentes.
Três anos depois, a Cone Crew lançou o disco "Bonde da Madrugada Parte 1".
Com letras provocativas em relação a outros estilos musicais – em resposta aos críticos
que diziam que a banda era apenas um grupo da moda, como fizeram na faixa "Quazy",
que ironizava os artistas sertanejos – e mais desabafos e críticas sociais, o Cone Crew
conquistou de vez não só o público jovem, como também os veículos midiáticos, fazendo
aparições em programas de televisão e até mesmo um reality show do extinto canal MTV
Brasil chamado "Família MTV", que foi ao ar em 2013.
A Cone Crew é apontada por alguns críticos musicais como o grupo que
aproximou as classes mais altas do Hip Hop. Mesmo que o rapper Gabriel, o Pensador
também faça essa ponte, Gabriel nunca se vestiu ou se comportou – com trejeitos e gírias
– como os jovens da periferia. Já a Cone Crew aderiu ao estilo dos rappers – que interage
com o estilo de outros nichos como o dos skatistas –, com calças largas e bonés de aba
reta, influenciando toda uma geração, já que representam os meninos descolados e livres
de um bairro nobre do Rio de Janeiro sem levantar bandeira de nenhum lugar de origem,
apenas rompendo com o tradicional.
4. Considerações Finais
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A popularização do Hip Hop nacional é uma realidade que pode ser facilmente
identificada nos programas de televisão, trilha sonoras de novelas e nos padrões de
consumo da sociedade, principalmente dos jovens. A ascensão econômica das classes C,
D e E, potenciais consumidoras e ativistas do movimento; as pressões sociais que fizeram
com que a mídia hegemônica se aproximasse do público maciço brasileiro e colocasse
representantes dessa maioria da população nas representações midiáticas – considerando
que dados da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (Abep) divulgados em
dezembro de 2014 apontavam que 68% dos brasileiros compõem as classes C, D e E ; a
altíssima receita econômica gerada pelo Hip Hop norte-americano e a influência do
mercado estadunidense no mercado brasileiro podem ser apontadas como motivações
para essa popularização.
Porém, a principal questão é a existência da necessidade do movimento em
estreitar relações com a mídia hegemônica. O Hip Hop no Brasil é uma manifestação
cultural que se aproxima das questões sociais, como projetos e ações voltadas para as
comunidades da periferia. Dessa forma o movimento “sobreviveu” de maneira
independente de aparições ou citações na mídia. Do mesmo modo, artistas do Hip Hop
brasileiro também conseguiram reconhecimento e respeito do público. Portanto, há o
questionamento do porquê de artistas de um movimento inicialmente típico da
contracultura e que, por muitas vezes, criticavam o comportamento manipulador da
televisão, se aliarem a esse veículo atualmente, já que o Hip Hop se fundou e se fortaleceu
sem o apoio desta. Alguns adeptos do movimento acreditam que aparições frequentes na
televisão podem distorcer a imagem total dos valores, questionamentos e ideais que são
difundidos nas letras, já que a televisão pode usar de recortes, edições e até mesmo de
instruções diretas aos artistas, empresários e produtores, que podem selecionar o que vai
ser dito e cantado.
Porém, a grandeza e os anos de existência do Hip Hop brasileiro não permitem
com que ele seja unificado ou padronizado. Com a evolução e crescimento do movimento,
a disseminação em outras áreas e estados além do eixo Rio-São Paulo e a aparição de
outras manifestações que se misturaram ao rap – como alguns casos do Funk –, surgiram
inúmeras vertentes do Hip Hop brasileiro. A geração de novos artistas confirma essa
diversificação, que faz com que existam vertentes que precisem da divulgação da
televisão.
A questão mercadológica exemplifica casos em que é necessário ao artista a
exposição na mídia. Partindo do princípio que aponta a televisão como a principal mídia
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do Brasil, para gravadoras que visam lançar um rapper cujo comportamento é mais
comercial e as músicas são mais acessíveis – é o caso de artistas que se vestem de maneira
chamativa, com fortes elementos da moda e que cantam canções com temáticas mais
leves, como romances e festas, mais fáceis de serem divulgadas e apreciadas do que
músicas que têm como temática a violência – o apoio da mídia é fundamental.
Há também a questão do tipo de veículo e produto midiático em que o artista está
se apresentando. Alguns rappers defendem que seja importante levar à mídia hegemônica
notícias sobre os projetos sociais que eles participam ou que acontecem em suas
comunidades, para que essas ações ganhem mais visibilidade e apoio. Assim como existe
uma vertente do Hip Hop que defende que as mensagens “reais” de violência, abandono
e preconceito – presentes em grande parte das músicas – seja levada à televisão para que
a população ouça depoimentos reais do que acontece nas comunidades e, desse modo,
procure formas de ajudar.
Portanto, um movimento com diversas vertentes e áreas de atuação não deve ser
abordado de maneira linear, principalmente tratando-se de sua relação com um elemento
tão complexo e diverso quanto a mídia. Existem inúmeras motivações e abordagens
diferentes que podem explicar, contextualizar e principalmente legitimar a relação que
existe entre ambos, que têm se estreitado cada vez mais.
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