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258d4d74c1c918633b81ad9ccb4a37f1.3 Vozes da Distensão
Um dos fenômenos mais trágicos das sociedades pós-modernas é a ausência (ou perda) da memória, seja ela individual ou coletiva. É preciso salvar o passado para servir o presente e o futuro, dizia Le Goff. Afinal, memória é onde cresce a historia, que por sua vez a alimenta. Sem memória não há historia. Este livro é uma contribuição da Intercom à memória de um tempo de intenso debate que marcou a distensão e a transição democrática do Brasil. Traz à presença o passado combativo da entidade ao apresentar entrevistas e artigos de personalidades do ambiente academico, artistico e político publicados em seu extinto Boletim Intercom (19781983) e no seu sucedaneo, a Revista Brasileira de Comunicação (1984-1989). Na primeira parte, “Vozes da distensão política” rememora discursos em defesa da liberdade e direito à expressão, como os de Nelson Werneck Sodré e Vargas Llosa; ou convocatórias à participação popular nas vozes de Dom Thomas Balduino e Francisco Weffort. E, claro, não faltaram os defensores da democratização da comunicação como Frei Clarêncio Neotti, Carlos Guilherme Mota e Alberto Dines. Em “Diálogos da transição democrática”, na segunda parte, entrevistas com pesquisadores e pensadores da área refletem sobre a necessidade de uma comunicação para a transformação da sociedade. É curioso ler esses textos a partir da perspectiva histórica de um passado recente que, para muitos, parece coisa do século passado. É mais estranho ver que muitas das reivindicações daqueles tempos ainda não foram realizadas em sua integridade. Há um longo caminho para se conquistar a democracia plena. Ao reproduzir textos esquecidos, a Intercom nos faz lembrar do antigo desejo de reduzir a desigualdade no país. A memória trazida à lembrança aqui é um recurso de libertação. Nelia R. Del Bianco Doutora em Comunicação pela USP, professora da Faculdade de Comunicação da UnB e vice-presidente da Intercom (2008-2011). • • • • • • • • • • • • • • Apresentação • • • • • • • • • • 1 • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • • Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade • • • • • • • • • • • • • • • 2 • • • • • • • • • • • Apresentação Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 3 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Coleção Memória da INTERCOM Direção de Osvando J. de Morais e Maria Cristina Gobbi Vol. 1 – Vozes de Resistência e Combate: O Legado Crítico da Comunidade Acadêmica – José Marques de Melo e Osvando J. de Morais, org. (2010) Vol. 2 – Teoria da Comunicação: Antologia de Pensadores Brasileiros – Maria Cristina Gobbi, org. (2010) Vol. 3 – Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade – José Marques de Melo e Osvando J. de Morais, org. (2011) DIRETORIA GERAL DA INTERCOM 2008 – 2011 Presidente - Antonio Carlos Hohlfeldt Vice - Presidente - Nélia Rodrigues Del Bianco Diretor Editorial - Osvando José de Morais Diretor Financeiro - Fernando Ferreira de Almeida Diretor Administrativo - José Carlos Marques Diretor de Relações Internacionais - Edgard Rebouças Diretora Cultural - Rosa Maria Cardoso Dalla Costa Diretora de Documentação - Maria Cristina Gobbi Diretora de Projetos - Paula Casari Cundari Diretora Científica - Marialva Carlos Barbosa Direção Editorial Osvando J. de Morais Presidente: Raquel Paiva (UFRJ) Conselho Editorial - Intercom Alex Primo (UFRS) Margarida Maria Krohling Ana Sílvia Davi Lopes Médola Maria Teresa Quiroz (Universidade Christa Berger (UNISINOS) Marialva Barbosa (UFF) Alexandre Barbalho (UFCE) Kunsch(USP) (UNESP) de Lima/Felafacs) Cicilia M. Krohling Peruzzo (UMESP) Mohammed Elhajii (UFRJ) Erick Felinto (UERJ) Muniz Sodré (UFRJ) Etienne Samain (UNICAMP) Nélia R. Del Bianco (UNB) Giovandro Ferreira (UFBA) Norval Baitelo (PUC-SP) José Manuel Rebelo (ISCTE, Lisboa) Olgária Chain Féres Matos Jeronimo C. S. Braga (PUC-RS) (UNIFESP/UNISO) José Marques de Melo (UMESP) Osvando J. de Morais (UNISO) Juremir Machado da Silva (PUCRS) Luciano Arcella (Universidade Paulo B. C. Schettino (UNISO) Luiz C. Martino (UNB) Sandra Reimão (USP) Pedro Russi Duarte (UNB) d’Aquila, Itália) Marcio Guerra (UFJF) 4 Sérgio Augusto Soares Mattos (UFRB) Apresentação Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade José Marques de Melo Osvando J. de Morais (organizadores) Jovina Fonseca (assistente editorial) São Paulo Intercom 2011 5 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Coleção Memórias da INTERCOM, série Documentos, n. Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Copyright © 2011 dos autores dos textos, cedidos para esta edição à Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – INTERCOM Direção Osvando J. de Morais Projeto Gráfico e Diagramação Mariana Real Capa Mariana Real Revisão João Alvarenga Ficha Catalográfica V956 Vozes da distensão e transição : o debate político na sociedade / Organizadores, José Marques de Melo, Osvando J. de Morais. – São Paulo : INTERCOM, 2011. 395 p. - (Coleção memórias ; v. 3) Inclui bibliografias. ISBN 978-85-88537-83-5 1. Comunicação – Brasil - História. 2. Comunicação – Aspectos políticos. 3. Censura - Brasil. I. Melo, José Marques de. II. Morais, Osvando José de. III. Título. CDD-302.2 Todos os direitos desta edição reservados à: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – INTERCOM Rua Joaquim Antunes, 705 – Pinheiros CEP: 05415 - 012 - São Paulo - SP - Brasil - Tel: (11) 2574 - 8477 / 3596 - 4747 / 3384 - 0303 / 3596 - 9494 http://www.intercom.org.br – E-mail: [email protected] 6 Apresentação Sumário Apresentação - Osvando J. de Morais.................... 11 I – Vozes da distensão política: 1978-1983 1. A opinião pública não existe!................................ 21 João Batista Figueiredo 2. Deixa o povo falar!............................................... 23 Caio Prado Júnior 3. É a crônica social um arcaísmo burguês?.................................................... 29 Gilberto Freyre 4. As multinacionais cobiçam o cinema brasileiro ..................................................... 31 Luis Carlos Barreto 5. As ‘patrulhas ideológicas’ restauram a nostalgia inquisitorial.............................................................. 37 Samuel Wainer 7 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 6. O populismo que se alimenta exclusivamente na propaganda é uma farsa!........................................... 39 Francisco Weffort 7. A censura é uma praga que assola todos os países! ........................................................ 43 Vargas Llosa 8. O golpe de 64 só prosperou depois que os militares foram contaminados pela engrenagem de propaganda urdida pelo imperialismo. ........................................ 49 Nelson Werneck Sodré 9. O neopopulismo através da publicidade não tem chance de sobreviver! .............................................. 55 Boris Fausto 10. Os latifundiários roubaram a voz do trabalhador! ............................................................. 61 Dom Balduíno 11. O pânico da classe média desestabilizou o governo Goulart!...................................................... 63 Helio Jaguaribe 12. A cultura como transgressão............................... 73 Eduardo Portela 13. É preciso estatizar para democratizar os meios de comunicação!........................................ 79 Carlos Guilherme Mota 14. Entra em declínio a influência norte-americana sobre a televisão brasileira........................................ 83 Joseph Straubhaar 15. A comunicação e as pessoas idosas..................... 87 Frei Joaquim da Rocha Maciel e pastor Jaci Maraschin 8 Apresentação 16. Pesquisas em tempo de eleições.......................... 99 Michel Thiollent 17. A derrota da farsa..............................................105 Carlos Alberto Medina, Maria Helena Khuner e Marco Morel 18. A Igreja e a NOMIC.......................................123 Frei Clarêncio Neotti 19. Cinema e política .............................................133 Ligia Averbuck 20. 1984 - Big Brother e Big Press..........................139 Alberto Dines II - Diálogos da transição democrática: 1984-1989 21. Peter Schulman: Cinema e fuzil........................149 Anamaria Fadul e Narciso Lobo 22. Leonardo Boff : Mídia e libertação...................169 Anamaria Fadul 23. Aluísio Pimenta: A burocracia cultural ............185 Ada Dencker e José Américo Ribeiro 24. Enzensberger: Poder e estética televisiva...........197 Antonio Hohlfeldt e Sergio Capparelli 25. Geraldo Pastana: Comunicação na selva..........213 Regina Festa 26. Bernardo Kucinski: Promiscuidade e jornalismo...............................................................241 Dario Borelli e Glória Kreinz 9 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 27. Straubhaar: O estudo crítico da comunicação nos Estados Unidos.......................................................271 Carlos Eduardo Lins da Silva e Glória Kreinz 28. Ada Dencker : Documentação da comunicação.......................................................279 Glória Kreinz 29. Luiz Beltrão: Folkcomunicação e classes sociais..........................................................287 José Marques de Melo, Carlos Eduardo Lins da Silva, Rogério Cadengue e Martha Azevedo 30. Comunicação e relações culturais segundo Dario Borelli e Virgilio Noya Pinto..................................307 Carlos R. Brandão 31. Marques de Melo: A trajetória da INTERCOM.........................................................319 Dario Borelli e Fátima Feliciano 32. Humberto Pereira: A comunicação rural..........345 Dario Borelli 33. Carlos Eduardo Lins da Silva: A comunicação na guerra fria................................................................367 José Marques de Melo, Dario Borelli, Glória Kreinz, Carlos Chaparro e Fátima Feliciano Quem é Quem .......................................................381 10 APRESENTAÇÃO Apresentação Apresentação Um recorte da ideologia na comunicação do Brasil Osvando J. de Morais Coordenador do Mestrado em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba- UNISO Diretor Editorial - INTERCOM Neste terceiro volume da coleção MEMÓRIAS DA INTERCOM – Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade, o professor José Marques de Melo apresenta um panorama sobre a presença da ideologia na comunicação, a partir de questionamentos importantes sobre os efeitos nocivos da Ditadura Militar, implantada no Brasil a partir de 1º de abril de 1964, sobre os meios de comunicação no país. No livro, de maneira democrática, desfilam pensamentos antagônicos que abarcam um pouco da nossa história recente sobre a comunicação no Brasil, desde o pragmatismo cínico, do então presidente da Repúblico do período militar, o general do Exército, João Batista Figueiredo, passando pelo tom marxista de Caio Prado Júnior, até a contundência da fala de Hélio Jaguaribe, apresentando um time de pensadores que compõem um precioso mosaico sobre a transição política brasileira, desde o período ácido da 11 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade presença militar nos destinos do país até a abertura política. Com um caráter quase que didático, posto que a linguagem é essencialmente clara, não se atendo ao ranço do academicismo, mas voltada para a elucidação de um momento extremamente importante para a nossa história, Vozes da Distensão e transição é importante referência para quem deseja entender um pouco mais sobre o contexto em que o país esteve mergulhado durante o regime militar, e como se deram as relações midiáticas, e mais, como atuou a censura naquele período. Construído a partir de vários recortes de entrevistas concedidas aos principais jornais do país e aos boletins publicados pela INTERCOM, esta obra dá voz a políticos, autoridades e aos principais pensadores do nosso país, a destacar a fala truculenta de João Batista Figueiredo, quando diz: A opinião pública não existe, vocês (jornalistas) é que a formam. Se vocês quiserem, vocês mudam a opinião pública. (Folha, 5/4/78). Não menos provocativa é sua indagação: ... eu gostaria de saber o que é um intelectual. Um artista de rádio é intelectual? E um artista de teatro? E um artista plástico? Então, eu acabo perguntando: por que um artista de teatro, que não fez maiores estudos sobre ciência política tem autoridade para ditar regras e conceitos sobre política? Às vezes, eu acho que eles pensam que têm mais autoridade que os militares. No contraponto de um discurso sustentado pela castração da liberdade de expressão que tenta, de forma embrionária, desautorizar o poder de palavra da mídia, principalmente da mídia impressa naqueles ferrenhos anos de censura militar, o professor José Marques de Melo recupera o pensamento de Caio Prado Júnior, que defendia, 12 Apresentação abertamente, uma revisão do modelo político vigente, a partir de uma remodelação do sistema de classes. A fala desse importante intelectual brasileiro sustenta ser necessário que mudanças sociais no país fossem implementadas, quando afirma, categoricamente, que é preciso transformar os interesses de classes – que são muito diferentes dos interesses individuais – num pensamento político, econômico e social. Algo que, obviamente, nunca foi feito no Brasil. Para Caio Prado Júnior, há um baixo nível cultural brasileiro que se resume à imitação dos padrões europeus ou norte-americanos e que isso não é saudável para o próprio desenvolvimento do país. Sua crítica é ácida, porém, não menos comprometida com a verdade e com os ideais de liberdade – no sentido mais amplo – no que se refere à produção cultural e também midiática. O historiador dispara, na excelente entrevista que concedeu ao jornal “O Estado de São Paulo” (11/6/78): O problema é que se coloca o Brasil em quadros europeus e americanos que não tem a ver conosco. Copiamos esses quadros. Entrevista esta que este volume fez questão de recuperar para que as novas gerações possam conhecer um pouco mais das ideias desse pensador. Assim como faz com a reprodução de um artigo publicado na “Folha de São Paulo”, do escritor pernambucano Gilberto Freyre, em que tece considerações sobre o valor sociológico da crônica social no Brasil. No entender de Freyre, esse gênero jornalístico, em decadência em alguns dos grandes jornais metropolitanos, permanece vivo nos pequenos jornais do interior, na maioria dos jornais editados nas capitais estaduais e, ainda, em alguns importantes jornais metropolitanos. De maneira criteriosa, Freyre investiga aspectos que sustentam a presença da crônica social 13 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade e também aponta indícios para as razões de seu desaparecimento do cenário midiático na maioria dos grandes jornais do país. Nessa linha de raciocínio, indaga o escritor: Será sempre a crônica social nefanda expressão de um mau elitismo? O texto em questão foi reproduzido pelo BOLETIM INTERCOM nº06, em novembro de 1978. Outro resgate que merece ser observado é uma histórica entrevista que o produtor cinematográfico Luis Carlos Barreto concedeu ao jornalista José Nêumanne Pinto, do Jornal do Brasil, na qual dispara críticas a EMBRAFILME, na condução de verbas para a produção de filmes nacionais. Na entrevista, presente nesta obra, Barretão (como era e é conhecido nos meios cinematográficos) defende a tese de que: há uma aliança espúria entre os interesses das grandes empresas multinacionais de cinema, de alguns exibidores inescrupulosos, habituais fraudadores da legislação, de produtores e realizadores nacionais. Não menos polêmico, porém, é o comentário de Samuel Wainer, publicado na Folha de São Paulo, no dia 13 de maio de 1979, quando faz uma crítica aguda às chamadas patrulhas ideológicas no cenário midiático brasileiro. Na mesma linha de ação, o professor Marques incluiu, neste livro, o ensaio do cientista político Francisco Weffort, professor da USP e diretor do CEDEC-PUC, publicado na revista Isto É, do dia 8 de agosto de 1979. Nele, o cientista denuncia o fato, a seu ver, que o fenômeno populista só frutifica, quando encontra sustentação popular, não se alimentando exclusivamente de propaganda. Nesse contexto, o eminente cientista apontava a farsa em torno da manipulação da imagem do, então presidente, general Figueiredo. No texto, o autor traça um agudo panorama 14 Apresentação do populismo, no Brasil, sustentado, muitas vezes, pelos próprios veículos de comunicação, de Getúlio Vargas, passando por Jânio Quadros e Ademar de Barros. Há uma análise sobre o Golpe Militar de 1964, a partir da visão do pesquisador Nelson Werneck Sodré, para quem a propaganda urdida pelo imperialismo norte-americano só fez ‘prosperar’ as ações de arrocho à censura no país. Escreve Sodré: A intervenção dos militares, em 1964, com sentido negativo, decorreu, a meu ver, de uma conjuntura internacional que é conhecida como ‘Guerra Fria’ e, portanto, da presença do imperialismo, nesse jogo da ‘Guerra Fria’, e de uma conjuntura nacional de crise econômica e financeira, por força, também, de intervenção do imperialismo, em âmbito interno, na economia brasileira. Para o esquema do imperialismo, no grande painel internacional, trata-se, em relação ao Brasil, de controlar a força militar que vinha sendo progressista, desde as lutas do Clube Militar, e desde a frustração do golpe militar, montado em 1955. Também podem ser encontrados, entre muitas presenças importantes: Vargas Llosa, com uma abordagem sobre a censura, que como uma praga, faz-se costumeira em vários países, não coincidentemente da América Latina; um enfoque do historiador Boris Fausto sobre o neopopulismo encontradiço na publicidade; um depoimento do cientista político Hélio Jaguaribe concedido ao jornal O Estado de São Paulo (18/5/80), em que dá a sua versão sobre o golpe militar de 1964; um artigo do ex-ministro Eduardo Portela, publicado na Folha de São Paulo (23/12/80), quando ‘rasga o verbo’ em críticas à condução das ações de cultura em nosso país, por parte dos órgãos ligados à cultura, atacando principalmente a burocracia estatal. 15 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Já o historiador e professor da USP, Carlos Guilherme Mota, em entrevista concedida à Folha de São Paulo (22/9/81), defende a tese de que é preciso estatizar para democratizar os meios de comunicação. Em sua abordagem, admite, inclusive, a revisão de alguns conceitos de seu livro Ideologia da Cultura Brasileira, sobretudo no que se refere à valorização de intelectuais como Darci Ribeiro, Anísio Teixeira, Hermes Lima e Santiago Dantas, sobre quem não se dispunha, na época, de material de apoio. Há, também, nesta obra, uma preocupação com o contexto da comunicação dirigida aos idosos. Essa preocupação vem pela fala do Frei Joaquim da Rocha Maciel e do pastor Jaci Maraschin. Para esses autores, o ancião é relegado, na sociedade tecnológica de produção e consumo, fato que acontece em larga escala, a acarretar a despersonalização do homem. Observam: O ser humano é apenas uma peça de engrenagem. A acentuação do problema recai especialmente sobre os velhos, que se tornam mais dependentes e marginalizados, uma vez que não há espaço de trabalho para as pessoas de idade avançada. Isso tem provocado o isolamento do idoso, porque não trabalhando, não produzindo, é considerado inútil à sociedade. Desse modo, em suas 395 páginas, esse mosaico que ora se apresenta é mais uma importante contribuição da INTERCOM para a construção da cultura midiática de nosso país, bem como do resgate documentado do que há de mais importante em termos de pensamentos e pensadores, pesquisadores e cientistas que, mesmo em face do que havia de mais acirrado em termos de censura, ousaram não só expor, mas defender suas ideias em favor de uma democracia que priorizasse a liberdade de expressão. 16 Apresentação Portanto, cremos ser a presente obra mais do que um olhar memorialista para o passado, mas uma referência inconteste dedicada às futuras gerações de pesquisadores da área que poderão encontrar em suas páginas um pouco mais de informação sobre o pensamento brasileiro. 17 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 18 Apresentação •I• Vozes da distensão política: 1978-1983 19 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 20 Vozes da distensão política: 1978-1983 1. A opinião pública não existe!1 João Batista Figueiredo “A opinião pública não existe, vocês (jornalistas) é que a formam. Se vocês quiserem, vocês mudam a opinião pública”. (Folha, 5/4/78). [...] eu gostaria de saber o que é um intelectual. Um artista de rádio é intelectual? E um artista de teatro? E um artista plástico? Então, eu acabo perguntando: por que um artista de teatro, que não fez maiores estudos sobre ciência política tem autoridade para ditar regras e conceitos sobre política? Ás vezes, eu acho que eles pensam que têm mais autoridade que os militares. Por que o Chico Buarque de Holanda, que é um compositor de quem eu gosto e admiro, tem mais autoridade do que eu para conversar sobre política? Acho que isso é um 1. BOLETIM INTERCOM nº01. São Paulo: Intercom, maio/1978. p.10-11. Mensal 21 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade preconceito. Eu estudei mais política que ele, seguramente [...] Eu estudei a fundo. Eu pergunto: o fato de ter estudado Matemática não me daria também à condição de intelectual? Diante disso, eu acho que para ser um ideólogo político, para tentar convencer os outros, com ideias políticas, o cidadão de... ou participar de política, ser um militante, ou ser cientista social ou cientista político. Eu sei que a maioria dos cientistas políticos hoje, no Brasil, tem tendências esquerdistas. Não importa. É preciso respeitá-los (Isto é, 5/4/78). 22 Vozes da distensão política: 1978-1983 2. Deixa o povo falar!2 Caio Prado Júnior Na excelente entrevista que concedeu ao jornal “O Estado de São Paulo” (11/6/78), o historiador Caio Prado Júnior, um dos pioneiros da renovação dos estudos sociais, no país, apresenta alguns pontos de vista sobre o Brasil, seu povo e sua cultura, que convém registrar para uma reflexão mais profunda. Imitação, mal da burguesia e dos comunistas – “O que significa um programa político? Significa transformar os interesses de classes – que são muito diferentes dos interesses individuais – num pensamento político, econômico e social. No Brasil, nunca se fez isso. No caso da burguesia, por exemplo, afora certas reivindicações de mais 2. BOLETIM INTERCOM nº03. São Paulo: Intercom, agosto/1978. p.13-15. Mensal 23 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade créditos no Banco do Brasil, nunca houve um programa político propriamente dito. Tudo isso corresponde a um baixo nível de cultura e desenvolvimento político do país como um todo. O problema é que se coloca o Brasil em quadros europeus e americanos que não tem a ver conosco. Copiamos esses quadros. O ministro Mário Henrique Simonsen fez, recentemente, um discurso, no qual descreve a economia brasileira, que é uma coisa de rolar de rir. Ele fala das coisas do Brasil como se fossemos os Estados Unidos, usando os mesmos conceitos. Tudo passa a ser igual. Não sei até que ponto esses homens falam sinceramente e até que ponto estão trapaceando. Isso não tem sentido, mas é um vício brasileiro muito antigo. Como não criamos uma ideologia nossa, aqui, simplesmente importamos as coisas. [...] Os comunistas refletem a mentalidade geral do país, que é a imitação, da falta de ideias próprias e da falta de coragem de procurar coisas novas. Eles copiaram tudo aquilo e, quando houve a reviravolta anti-istalinista, passaram a achar errado o que, antes, era tido como certo. Isso não é algo específico ou exclusivo dos comunistas, mas do Brasil em geral.” Individualismo - “[...] Insisto na diferença entre o interesse individual e o interesse de classe. [...] Essa é uma coisa esquecida muito frequentemente. A política brasileira está cheia de coisas assim, porque, não havendo um pensamento político, são os interesses individuais que entram em cena. As pessoas vão de um lado para o outro, guiadas pelo interesse pessoal sem ver o interesse coletivo de sua classe. Elas não se sacrificam pela sua classe os seus interesses individuais. Raramente são intérpretes dos inte24 Vozes da distensão política: 1978-1983 resses gerais. É no que dá, entre outras coisas, o baixo nível cultural do país. A política brasileira é muito difícil de ser analisada por causa disso”. Conceito de cultura – “São os homens que criam a sociedade e o pensamento da sociedade. Cultura é a compreensão geral da teoria, e a teoria não é uma coisa abstrata que anda passeando por aí. É produto do pensamento aplicado à análise dos fatos e resultante da compreensão deles. É a derivação, a partir daí, das normas de comportamento: princípios, opiniões e ação. E isso não existe em alto grau entre nós. [...] Um povo que tem a exata compreensão das coisas não julga pelo fato, mas pelo direito, ou seja, o pior criminoso tem o direito de ser julgado. Essa é uma lei geral que vai proteger a própria pessoa. Cultura é isto: é uma comunidade de pensamento, numa sociedade, em torno de princípios que se respeitam e estão acima dos indivíduos, é a cultura social, a cultura do conjunto. A cultura propriamente individual é uma coisa artificial que não tem efeito, afora o exibicionismo dos sabidos... e, talvez, uma esperança para o futuro, nada mais”. Como melhorar a cultura do povo brasileiro? – “O caminho para que o Brasil progrida nesse sentido da cultura é o da elevação das condições da população. Esse é o único caminho. Afinal, não podemos nos esquecer de que a massa de nossa população saiu do regime da escravidão e derivados dela. A massa brasileira foi formada, fundamentalmente, por africanos trazidos para cá como escravos, quer dizer, como instrumentos de trabalho. Aqui, eles perderam a cultura de origem e não ganharam nada, 25 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade porque o único contato que tinham com o que se pode chamar de civilização era quando desembarcavam. Eram alinhados e batizados em conjunto por um padre. Nunca mais viam falar de coisa nenhum, nem de religião. Se pelo menos tivessem tido uma educação religiosa, alguma coisa teria ficado em termos de cultura. Mas não. Eram soltos na senzala e trabalhavam como animais. A massa da população brasileira foi isso até bem próximo de nós. No Sul do Brasil, a situação é diferente por causa da imigração. Por tudo isso, o grande problema brasileiro é levantar o nível dessa massa da população, porque cultura é um fato coletivo e não individual. É preciso usar o máximo dos recursos do país para dar saúde e educação para essa massa. E educar não significa apenas montar uma escola e mal ensinar a ler e escrever, como faz o Mobral. Isso não adianta nada. De que adianta alfabetizar uma pessoa e soltá-la por aí, em seguida, sem assistência, sem nada para ler? Vai esquecer tudo.” O papel do rádio e da TV – “Apesar de tudo o que se passou, acho que houve um grande progresso no sentido da compreensão dos fatos políticos. Mesmo essa televisão e esse rádio medíocres que temos têm prestado um serviço importante ao pôr o povo em contato com o mundo. O brasileiro ignorava o que era o mundo e hoje não ignora mais, porque a televisão e o rádio vão a todos os lares e isso permite comparar o Brasil com o Exterior e, dessa forma, aprender novas lições; esses meios de comunicação mostram o nível da civilização de nossos dias que não é da casa grande e da senzala dos velhos tempos”. 26 Vozes da distensão política: 1978-1983 É preciso deixar o povo falar – “Se por obra e graça do Espírito Santo, entregassem-me o país, a primeira coisa que faria era deixar o Brasil todo falar e participar da vida política. O povo, a massa da população brasileira, é que precisa abrir a boca e dizer o que lhe falta. Se não é capaz disso, como há quem alegue, então, não somos dignos de ser um país civilizado. Somos primitivos, selvagens, pior que isso, não somos racionais, humanos. Precisamos de tutores. Tutores bem remunerados, está visto, com as multinacionais na primeira linha... Em suma, a primeira coisa a fazer seria convocar uma constituinte para o Brasil inteiro pudesse falar e, assim, organizar-se livremente, estabelecer um regime em que a massa da população possa, efetivamente, participar da vida pública do país. Haverá erros, sem dúvida, haverá de tudo, mas não há outro caminho. É andando que, em criança, aprendemos a andar e tombos fazem parte da aprendizagem. E certamente não serão piores para a massa da população, que os atuais”. 27 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 28 Vozes da distensão política: 1978-1983 3. É a crônica social um arcaísmo burguês?3 Gilberto Freyre Crônica social reabilitada por Gilberto Freyre Em artigo publicado, recentemente, na “Folha de São Paulo”, o escritor pernambucano Gilberto Freyre tece considerações sobre o valor sociológico da crônica social no Brasil. Esse gênero jornalístico, em decadência em alguns dos grandes jornais metropolitanos, permanece vivo nos pequenos jornais do interior, na maioria dos jornais editados nas capitais estaduais e, ainda, em alguns importantes jornais metropolitanos. Por que esse fenômeno? Gilberto Freyre assim examina a questão: “Será sempre a crônica social nefanda expressão de um mau elitismo? De mau burguesismo? Um arcaísmo em jornais que pretendam e devam ser de todo modernos, atuais, jornalísticos, progressistas, populares? Sou dos que veem na crônica social 3. BOLETIM INTERCOM nº06. São Paulo: Intercom, novembro/1978. p.05-06. Mensal 29 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade um registro de fatos ou de ocorrências que constituem expressão de convívio humano, numa de suas formas mais sutilmente significativas dentro de um contexto de vida brasileira que, já sendo pós-burguês numas coisas, noutras continua burguês. Pode ser o registro, por vezes, de uma carícia à vaidade de convivas de todo frívolos. Mas, quem nega ser próprio do ser humano, burguês ou pós-burguês, o pecado da vaidade? Nunca vi tantas medalhas a enfeitarem peitos de homens como nos generais russo-soviéticos que tenho conhecido. Quem não sofre da vaidade, ainda burguesa, de ter noticiado, no Brasil de hoje, em jornal, o batizado de um filho ou o noivado de uma filha, ou um jantar oferecido a amigo? São fatos que constituem um burguesismo ramerrame, parte da história, da vida, do convívio de uma comunidade do feitio da brasileira dos nossos dias, tanto quanto dos dias de nossos pais e de nossas avós. O registro de ocorrências elegantes quase sempre vai além do que nelas se considere mundano. Ou apenas society. Pode alcançar artes, letras, vida intelectual, política, esporte, religião em várias de suas expressões, sutilmente, ligadas ao convívio social. A crônica social pode variar de qualidade: depende do cronista. Mas, burguês ou pós-burguês, esse cronista é sempre capaz de ir além dos assuntos meramente mundanos. [...] Aliás, esse é um aspecto sociológico do assunto que, reconhecido, importe e vire crônica social nos jornais ou até mesmo em revistas eróticas, no Brasil atual, valorizando a cultura, as artes, as letras. Fazendo as vezes de uma crítica de arte que, institucionalizadas, quase desapareceram dos jornais brasileiros”. 30 Vozes da distensão política: 1978-1983 4. As multinacionais cobiçam o cinema brasileiro4 Luis Carlos Barreto Nas últimas semanas, os jornais e revistas têm apresentado uma série de denúncias conta a EMBRAFILMES, bem como a defesa de seus dirigentes. Diante dessa série de lances, com ataques e contra-ataques, o panorama permanece nebuloso para o leitor comum. O que há por detrás dessa campanha, aparentemente tão apetitosa para os grandes jornais? Em entrevista concedida a José Nêumanne Pinto, do Jornal do Brasil, o produtor Luis Carlos Barreto, defende o ponto de vista de que há uma aliança espúria entre os interesses das grandes empresas multinacionais de cinema, de alguns exibidores inescrupulosos, habituais fraudadores da legislação, de produtores e realizadores nacionais, cujos filmes fracassem sempre. Eis alguns dos argumentos usados por Luis Carlos Barreto. 4. BOLETIM INTERCOM nº07. São Paulo: Intercom, dezembro/1978. p.19-21. Mensal 31 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Cinema, precedente perigoso a contrariar os interesses multinacionais “Não é mera coincidência que toda essa polêmica tenha surgido no memento em que a Embrafilmes pensa em financiar a produção de séries cinematográficas para a televisão. Tudo isso atinge profundamente os interesses das empresas estrangeiras. O interesse comercial é até pequeno, diante do verdadeiro interesse que é o político e o ideológico. As empresas multinacionais estão perdendo em mídia, em colocação de sua mensagem. O cinema é um problema altamente político. Li alguns relatórios do Banco Mundial assinados pelo próprio Robert McNamarra, em que se dá uma importância fundamental à dominação dos meios audiovisuais pelas multinacionais. Esses relatórios me foram mostrados pelo então ministro do planejamento, o senhor Hélio Beltrão. Agora, nosso problema não é apenas de uma classe, a cinematográfica, mas de todo um país, de toda uma nação. [...] o sistema de comunicação social do Brasil já foi completamente invadido. Veja o que ocorre com a música popular brasileira e o que fazem as multinacionais do disco para massacrá-la. Saiba que, nos países africanos de língua portuguesa, os livros brasileiros são vendidos por empresas norte-americanas. Tudo isso está em jogo, agora, que o cinema nacional provou que isso existe, concretamente, no mercado interno, e invade o mercado externo. Principalmente a America Latina e a África. O cinema está sendo o mau exemplo para o rádio, o disco, a televisão e outros setores da indústria cultural. As multinacionais querem cortar o mal pela raiz”. 32 Vozes da distensão política: 1978-1983 Pressões norte-americanas contra a legislação protecionista “O grande problema do Brasil é que hoje somos um país produtor de cinema, mas a postura é de um país importador. A estrutura da produção e a geografia da distribuição são de um país importador típico. Os cinemas de São Paulo estão concentrados nos jardins, bairros sofisticados porque, nesses bairros, concentram-se os consumidores de produtos estrangeiros. Por isso, não há cinemas nos bairros populares das grandes cidades brasileiras: lá se concentram o verdadeiro consumidor do produto cinematográfico nacional, que são as classes populares. Quando o Brasil passou a produzir automóvel, houve uma reciclagem. Não houve essa reciclagem no cinema. A indústria do cinema, sem a lei do similar nacional, vive sob dumping. Nenhuma indústria resistiria um mês nas condições em que estamos sobrevivendo. Pergunte a um fabricante de eletrodoméstico se ele sobreviveria sem a lei do similar nacional. [...] No ano passado, Jack Valenti, da Motion Pictures, veio ao Brasil para pressionar o Governo contra a legislação protecionista do produto brasileiro e nos ameaçou a todos, dizendo que a legislação tinha chegado ao limite do suportável e que, se ultrapassássemos aquele limite, as empresas norte-americanas teriam condições de pressionar nossa indústria cinematográfica. Ele se reuniu com produtores, em Brasília, e isoladamente com Roberto Farias, no Rio, repetindo a ameaça. 33 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade [...] No mercado nacional, que deveria ser um patrimônio nacional do cinema brasileiro, nós passamos a ser o elemento de choque. Estava deflagrada uma guerra feroz. E é, nesse cenário de guerra, que se inserem essas discussões em torno da honestidade da Embrafilmes, pois não se discute, aqui, a pessoa do senhor Roberto Farias, pois qualquer um de nós que, por acaso, ocupasse a Presidência dessa estatal, sofreria os mesmos ataques. Não quero desviar a discussão. Pode ser até que os grupos que estão alimentando essa discussão o estejam fazendo inconscientemente, porém, participamos de algo muito importante, de uma grande disputa de mercado de um produto cultural, nas salas de cinema ou nas telas de televisão. A expansão do cinema brasileiro “Da estratégia de luta pelo mercado interno surgiu o incremento da produção nacional. Há quatro anos, fazíamos, anualmente, de 40 a 45 filmes. Passamos para 80 e, agora, fazemos de 100 a 120 filmes por ano. O Brasil é o terceiro maior produtor de cinema do mundo ocidental, perdendo apenas para os Estados Unidos e a Itália. Passo importante para isso foi a criação da distribuidora da Embrafilmes, hoje a maior, a que mais fatura e a mais bem estruturada distribuidora em operação, no mercado nacional, a única que se faz presente em nove regiões cinematográficas do país, de Norte a Sul. Por isso, o filme nacional aumentou a frequência em 75%, nos últimos três anos. O mercado 34 Vozes da distensão política: 1978-1983 total caiu de 250 milhões para 210 milhões de espectadores, dos quais 30% veem filmes nacionais. O público de filmes nacionais, mesmo caindo a frequência aos cinemas, aumentou em mais de 20 milhões de expectadores anuais. Aí se configura o quadro de solicitação do cinema brasileiro. As empresas estrangeiras estimulavam ou pouco se incomodavam com a grande evasão de renda existente nas bilheterias do cinema nacional. A Embrafilmes adotou um controle de receita mais eficiente que diminuiu essa evasão de 60% para 25%. E, semiconsolidado o mercado interno, o cinema brasileiro partiu para conquistar o mercado externo, principalmente na América Latina e na África. Nos últimos dois anos, o cinema nacional fez mais pela divulgação do Brasil, no exterior, do que a diplomacia brasileira em toda sua história, com as semanas promocionais. Esse é um projeto que não se destina a servir a qualquer Governo, mas à nação. Exigimos e exigiremos de qualquer Governo o respeito e a importância que a indústria cinematográfica merece. Acabamos de vender mais de 20 filmes para a Argentina e vendemos 40 para o Paraguai que, de novembro para cá, exibiu 21 semanas de cinema brasileiro”. Ação da Embrafilme “Os recursos da Embrafilme são da própria economia cinematográfica. De um ano para cá, há dotações orçamentárias, mas elas são irrisórias, atingem a cifra de US$10 milhões por ano, o que significa um 1/3, por exemplo, do que gastou Francis Ford Coppola em sua mais recente produção, Apocalypse Now. A Embrafilme é sócia em quase 35 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade a metade da produção brasileira, com participação de 30% e ganhou muito dinheiro com filmes como Dama da Lotação, Dona Flor ou Xica da Silva, Lições de Amor e outros. Só, nesses três primeiros, ganhou mais de CR$ 30 milhões (valores da época) em comissões de distribuição e participação como produtora. Além disso, a Embrafilme produz filmes culturais, estimulando a produção dos chamados ‘curtas metragens’, que foram colocados, no mercado, em centenas, depois de bloqueados e sem meios de distribuição e, agora, inicia o plano de produção de séries para a televisão. A legislação do mercado cinematográfico brasileiro é uma das mais modernas e perfeitas do mundo para a criação de condições de produção para o cinema nacional. Hoje, um produtor comercial competente não precisa da Embrafilme, mas lhe basta a legislação. Aliás, nós, da classe cinematográfica, não somos favoráveis à estatização da produção. Achamos que o Estado deve financiar e desenvolver a pesquisa cinematográfica, jogando em projetos de risco, no estímulo aos filmes de curtas metragens, que são muito significativos no treinamento de mão-de-obra, por exemplo. Mas, achamos necessária a presença forte de uma empresa estatal voltada para a política de comercialização”. 36 Vozes da distensão política: 1978-1983 5. As ‘patrulhas ideológicas’ restauram a nostalgia inquisitorial5 Samuel Wainer Em comentário publicado na “Folha de São Paulo” (13/5/79), Samuel Wainer mostra que o fenômeno das patrulhas ideológicas, no Brasil, não passa de uma nostalgia inquisitorial. Ele lembra que já, na década de 40, Gilberto Freire, por exemplo, reclamava da sabotagem que sofria nos jornais da cadeia associada, acusando os “comunistas que lá estavam infiltrados”. Diz Wainer: “como se vê, a hoje dominante presença de ‘patrulhas ideológicas’, na imprensa brasileira, é a coisa muito antiga. Uns são por ela afetados, outros não. Faça-se, nesse sentido, ao Sr. Roberto Marinho, dono de O Globo, o mais insuspeito dos homens de direita no Brasil. Roberto Marinho nunca permitiu que, em seu jornal, prevalecesse outro critério senão o profissional. Em 1945, pouco 5. BOLETIM INTERCOM nº11. São Paulo: Intercom, jun/1979. p.19-20. Mensal. 37 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade depois da anistia, ele reconduzia ao lugar de redator-chefe de O Globo o jornalista Pedro Mota Lima, importante líder comunista que, mais tarde, morreria, tragicamente, num desastre de avião na Bulgária. Marinho sempre resistiu a todas as pressões, o que fez com que constituísse uma das mais fiéis equipes que um jornal já formara no Brasil. Esses dois episódios podem servir de advertência aos profissionais que se deixaram envolver, passionalmente, pelo debate nascido da já famosa denúncia de Cacá Diegues. Este comentarista, que conhece o grande cineasta brasileiro, desde sua adolescência, tem certeza de que sua frase não tinha intenções provocativas. [...] infelizmente, entretanto, a expressão de Cacá, ‘patrulhas ideológicas’, acabou por tomar proporções, certamente, acima das intenções do autor da frase. E eis que caímos numa espécie de macarthismo de face dupla: tanto da esquerda quanto direita, o patrulhismo começou a servir a vinganças pessoais, frustrações profissionais e até mesmo a chantagens, sem falar no aventurismo de alguns pobres diabos que, de posse de um pequeno espaço em qualquer jornal, origiram-se em juízes do mundo. 38 Vozes da distensão política: 1978-1983 6. O populismo que se alimenta exclusivamente na propaganda é uma farsa!6 Francisco Weffort No ensaio que publicou em Isto é (nº137, 8/8/79), o cientista político Francisco Weffort, professor da USP e diretor do CEDEC-PUC, mostra que o fenômeno populista só frutifica quando encontra sustentação popular, não se alimentando exclusivamente de propaganda. Essa segunda hipótese representaria uma bela farsa, como, aliás, ocorre no atual momento político, com a manipulação da imagem do general Figueiredo, por meio de uma bem orquestrada campanha de comunicação. Vamos transcrever a argumentação daquele estudioso. “À parte das divergências teóricas, as diversas formas concretas de populismo dependem sempre da existência prévia de um processo de emergência popular. 6. BOLETIM INTERCOM nº13. São Paulo: Intercom, jul/ ago/1979. p.07-08. Mensal. 39 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Expressando-se em reivindicações explícitas – como no caso das reivindicações operarias de antes de 1930, absorvidas, a seu modo, por Getúlio Vargas, depois da Revolução – ou simplesmente em demandas difusas, ignorâncias, a emergência popular acarreta, de um modo inevitável, em pressões de baixo para cima sobre o sistema político. Se uma liderança ou um argumento político decidem buscar respostas que satisfaçam, embora parcialmente, a estas pressões, já se configura um processo posterior, do pano da política, com possibilidade as mais diversas. O centro, porém, é que, mesmo numa forma política tão autoritária como o populismo, tratar as massas populares como absolutamente manipuláveis consiste simplesmente em grosseiros equívocos”. [...] Num país como o nosso, de larga tradição populista, confunde-se, com muita frequência, o populismo com os seus aspectos mais exteriores. Tendo sido dominante como estilo político em época muito recente, o populismo acabou impregnando o estilo dos políticos em geral. [...] Nesse sentido, claramente superficial, o fato de que Figueiredo apareça em fotos fazendo ginástica é tão sinal de populismo quanto às capas de Jânio ou os gestos de ‘familiaridade’ de Adhemar de Barros. Note-se que, por mais que os comunicadores oficiais se esforcem, não conseguiram produzir, para a imagem de Figueiredo, nada de parecido ao que o velho DIP, com todo o seu atraso tecnológico, com o famoso sorriso de Getúlio. É que a simpatia pessoal de Getúlio – que não exibia caspas e só permitia, em público, os trajes do protocolo 40 Vozes da distensão política: 1978-1983 ou, às vezes, as bombachas da tradição gaúcha – não era, a rigor, invenção de propaganda. Era um resultado – certamente o menos importante – de um período histórico que permitia a um oligarca dissidente insinuar, em alguns de seus gestos, uma relação de cumplicidade com as massas. [...] Reconheça-se que a Secretaria de Comunicação da Presidência da República se esforça no que pode. Mas, como em política nem tudo se resume em fazer propaganda, as possíveis pretensões de uma reciclagem populista do regime ficam ao desamparo. Um dos maiores equívocos das elites políticas e dos grupos dominantes tem sido o de ver no populismo uma espécie de aberração da História, alimentada apenas pela propaganda e pela capacidade de manipulação dos de cima, graças à suposta estupidez dos de baixo. Seria tudo muito simples – para as elites, evidentemente – se a realidade fosse esta. Mas, atrás dos populistas estavam as massas populares em movimento, pressionando e reivindicando; atendê-las, ainda que fosse da pior maneira possível, nunca foi somente uma questão de habilidade propagandista. 41 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 42 Vozes da distensão política: 1978-1983 7. A censura é uma praga que assola todos os países!7 Vargas Llosa Sobre sua obra: “É verdade que mudei. Nas duas últimas novelas que escrevi, o humor é muito importante (“Pantaleão e as Visitadoras” e “Tia Julia e o Escrevinhador”), com elementos farsescos, de brincadeira, de desmesuramento. Sim, de absurdo, também, que não existiam nas novelas anteriores. Foi uma mudança que me surpreendeu, pois eu dissera antes que era alérgico ao humor na literatura. Eu pensava que para um escritor que tinha intenções realistas, o humor distanciava demais as personagens e ele parecia fazer caretas para o leitor [...] Descobri (depois de Pantaleão e as Visitadoras) que o humor é um ingrediente da realidade e que se negar a usá-lo correspondia a negar uma experiência central da realidade, o que não deveria 7. BOLETIM INTERCOM nº13. São Paulo: Intercom, jul/ ago/1979. p.22-23. Mensal 43 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade fazer nenhum escritor nem nenhum artista, não é?” Sobre o trabalho do artista e a censura: “Qualquer escritor, músico ou pintor, qualquer artista em geral, graças à própria natureza do trabalho que realiza, tem que estar particularmente ciente da enorme extensão de danos que causa a uma sociedade a ação da censura. A censura é uma organização cancerosa: quando se finca em um organismo qualquer, em seguida, começa a crescer e a deformar todo o corpo social em que se instalou. Não creio que a censura apenas se limite a impedir que se digam muitas coisas, mas pior ainda – e isso talvez seja o mais grave de tudo – faz com que as coisas que se dizem fiquem ditas mal ou mal entendidas. A censura faz com que se deformem todos os valores e, nessa atmosfera asfixiante, os critérios da própria cultura e civilização confundem-se. Olhe: creio que foi Albert Camus quem disse que a grande batalha do século XX seria a batalha contra a censura, que iria surgir nos regimes políticos mais diversos, nos lugares mais separados uns dos outros na Terra. E vemos que ele tinha razão: é uma praga da qual não está isento país algum hoje em dia”. Sobre o escritor e a liberdade: “... uma das razões pela qual se criou essa organização (o Pen Clube) mundial de escritores foi precisamente com a ideia de defender os escritores que viessem a sofrer qualquer tipo de perseguição, em qualquer país do mundo, e em qualquer regime político. Por isso, o Centro dos Escritores em Exílio é um centro muito importante, mas devo corrigir a impressão que se pudesse ter de que constitui um centro pequeno. Ao Brasil é que veio apenas uma fração mínima desse grupo muito numeroso. É interessante: durante os últimos três anos em que estive na Presidência do Pen Clube, vi chegarem mais 44 Vozes da distensão política: 1978-1983 e mais levas de escritores para esse comitê de exilados e, alguns deles, restabelecidas as condições para seu regresso ao país natal, voltaram, como os espanhóis já exilados, desde os tempos da República ou depois, durante a Ditadura Franquista. Agora, cresce o número de escritores do Leste europeu que vêm aderir ao Comitê de Escritores Exilados, uma organização mantida pelos Estados Unidos ou só por países capitalistas. Vários países socialistas fazem parte do Pen: A RDA, a Polônia, a Iugoslávia, a Hungria, a Bulgária e temos agora até um pedido oficial da China para integrar a fileira dos nossos membros. Então, como se poderia sequer pensar em acusar-nos de sermos uma instituição ‘a soldo da CIA’ conforme o chavão”. Sobre literatura brasileira: “Você citou Guimarães Rosa, é um escritor que eu admiro muito, que li com verdadeiro entusiasmo e deslumbramento. ‘Grande Sertão: veredas’ pareceu-me um livro que constitui uma verdadeira façanha linguística, creio que é uma das grandes experiências formais da literatura de nosso tempo, indiscutivelmente. Antes, eu lera com grande entusiasmo Machado de Assis e, já nos tempos de universidade, uma das primeiras tentativas que fiz de ler em português foi justamente causada pelo entusiasmo que tive ao descobrir Machado de Assis. Depois, li outros escritores contemporâneos. Tenho uma amiga brasileira a quem admiro muitíssimo, que é Nélida Piñon. Li também Clarisse Lispector, que tive a sorte de conhecer, há alguns anos, e agora estou lendo muitos autores brasileiros. Na verdade, isso faz parte de uma pesquisa que, sem dúvida, é uma loucura, porque estou escrevendo uma novela ambientada, no Nordeste brasileiro, no final do século passado. É por isso que estive no Nordeste... Há 45 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 5 ou 6 anos, escrevi um roteiro para um cineasta brasileiro que admiro muito, Rui Guerra. Ele queria fazer um filme sobre o contexto da rebelião de Antonio Conselheiro, em Canudos, matéria que trata ‘Os Sertões’, de Euclides da Cunha, um dos livros que mais me impressionou ao longo de toda minha vida de escritor. Ao lê-lo, tive uma sensação sísmica, como a que tive, quando li a primeira novena de Faulkner, que caiu nas minhas mãos, quando li ‘Guerra e Paz’, de Tolstoi, foi uma impressão dessa categoria. Fiquei absolutamente deslumbrado pelo livro e, também, pelo mundo de ‘Os Sertões’. Depois, documentei-me com a bibliografia que me dera Rui Guerra, para fazer o roteiro. Mas, terminado este, fiquei muito frustrado, porque o cinema tinha limitações de tempo de entrega do material escrito, e essa novela que, agora, estou tentando escrever, ampliando o roteiro, é um desafio para mim, porque é a primeira vez que abordo um assunto que só conheço de maneira livresca, não é? Muito remota. Por isso, meu livro não aspira a ser realista, nem sociológico, nem histórico, é claro, mas estará baseado em uma realidade histórica...” Sobre a produção literária: “Olhe, quando penso em problemas sociais ou políticos relacionados ao meu país ou com o resto do mundo, tento fazer uma aproximação que seja basicamente, principalmente, moral, antes de ser ideológica, pois os problemas morais me interessam muito mais do que ideológicos, dos quais desconfio bastante. Quando me defronto com um problema literário, de criação, não parto nunca de premissas ideológicas nem morais, mas mais anedóticas. Eu escrevo uma história porque há alguns tipos de personagens, cujas vidas eu gostaria de desenvolver, descobrir, relatar ou porque há uma situação 46 Vozes da distensão política: 1978-1983 que eu conheci e inventei; mas que, por razões misteriosas, estimula-me sobremaneira, inspira-me uma grande curiosidade. Então, no meu entender, escrever é uma maneira de descobrir o que está por trás dessa urgência. Uma vez terminada a novela, é lógico, há nela implicações morais e ideológicas, porém, fundamentalmente, acho que todo livro de ficção visa contar uma experiência, uma vivência humana. O autor é quem menos sabe interpretar seus livros. É um pouco como a pessoa se olhar no espelho: sou bonito ou feio? Não sei quais são as ilações que um crítico, por exemplo, pode tirar, simbólicas ou outras que compõemo texto, mas para mim, o autor, esse texto é inseparável de um contexto pessoal”. (trechos extraídos do JT, 21//79). 47 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 48 Vozes da distensão política: 1978-1983 8. O golpe de 64 só prosperou depois que os militares foram contaminados pela engrenagem de propaganda urdida pelo imperialismo.8 Nelson Werneck Sodré O Centro de Memória Social Brasileira, instituição mantida pelo Centro Cultural “Candido Mendes”, está documentando a história recente da vida política brasileira, através do registro de depoimentos de personagens que estiverem envolvidos nos acontecimentos marcantes da cena histórica. Helio Silva, coordenador daquele Centro, utilizou os “Cadernos Candido Mendes” para dar uma mostra daquele documentário, dimensionando a “história oral” da crise político-militar de 1964. Dentre os depoimentos gravados, há um do escritor e militar reformado, Nelson Werneck Sodré, que permite compreender as relações entre os militares e a política brasileira e, também, vislumbrar o papel desempenhado pela comunicação nas 8. BOLETIM INTERCOM nº15. São Paulo: Intercom, nov/1979. p.20-22. Mensal 49 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade articulações político-militares que conduziram ao golpe de 31 de marco de 1964. Pela significação desse depoimento, vamos transcrever sua parte mais importante: “Ora, o que cumpre analisar, agora, é por que houve a intervenção, em 64, e por que ela foi negativa, esquecendo as outras intervenções, porque seria nos alongarmos e perderia interesse esse alongamento do meu depoimento. A intervenção dos militares, em 1964, com sentido negativo, decorreu, a meu ver, de uma conjuntura internacional que é conhecida como ‘Guerra Fria’ e, portanto, da presença do imperialismo, nesse jogo da ‘Guerra Fria’, e de uma conjuntura nacional de crise econômica e financeira, por força, também, de intervenção do imperialismo, em âmbito interno, na economia brasileira. Para o esquema do imperialismo, no grande painel internacional, trata-se, em relação ao Brasil, de controlar a força militar que vinha sendo progressista, desde as lutas do Clube Militar, e desde a frustração do golpe militar, montado em 1955, que essa atuação se fizesse no sentido de impedir o desenvolvimento da posição imperialista, não criar realmente, um problema sério para o imperialismo, no Brasil, que não é um país pequeno, já é um país, cuja mudança de posição, no conjunto internacional, pode desequilibrar a correlação de forças. Ora, se a formação do Exército brasileiro era democrática, se o Exército brasileiro recrutava sua oficialidade na camada média, se nunca houve possibilidade, no Brasil, por características que não podemos analisar, porque demandaria tempo, nunca houve possibilidade de privilegiar por remuneração o militar, havia que encontrar uma solução que permitisse neutralizar a intervenção militar no sentido positivo. A forma encontrada 50 Vozes da distensão política: 1978-1983 pelo imperialismo foi o controle da força armada, pelo controle: - em primeiro lugar, de comandos; - em segundo lugar, as cadeiras de informações; - em terceiro lugar, das escolas. Isto é, o que eles mais controlavam? Numa organização hierárquica, aquilo que comanda. Numa organização que opera por gravidade, quem está em cima. Então, o controle do comando permitiria, ou facilitava enormemente, o controle de toda a força armada. O controle de toda a rede de informações dava-lhes a segurança. E o controle das escolas permitia-lhes afirmar e aprofundar a sua ideologia. O segundo passo que imperialismo deu foi justapor à formação dos chefes militares e, ao controle do comando, o empresariado, o empresariado ligado aos seus interesses. A formação e o funcionamento da Escola Superior de Guerra representam isso: agremiar, numa mesma instituição de difusão ideológica, o homem de empresa e o chefe militar. E, evidentemente, complementar essa forma de atuação com órgãos subsidiários, de que o mais destacado foi o IPES, em São Paulo, órgão caracterizadamente destinado a utilizar vultosas verbas, em parte vindas do exterior, em parte captadas no mercado interno de capitais, contribuições do empresariado ligado ao imperialismo, utilizar para manter uma rede de militares ao seu serviço. Uma das formas de que se revestiu essa ação de instituições do tipo IPES, foi o chamado IBAD: uma intervenção por via eleitoral. O que se derramou de dinheiro, nas eleições em que o IBAD funcionou, foi uma coisa enorme. Não deram aqueles resultados que seriam de se esperar, nem deram aqueles resultados proporcionais ao vulto do investimento. Mas, foi, realmente, uma forma organizada e sistemática de investir na vida política brasileira. Tratava-se, então, 51 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade para o imperialismo, em relação às forças armadas brasileiras, de armá-las, doutriná-las e montar as coisas. Nós temos muitas lembranças das crises que foram, sucessivamente, montadas, aqui, antes da de 1964. Convém lembrar a de 1954, sobre cuja eclosão já ter decorrido mais de vinte anos. Em 1954, tendo o Presidente Vargas anunciado os escândalos nas remessas de lucros das empresas estrangeiras estabelecidas, no Brasil, tiveram a sua sorte selada. E foi montada uma crise, a crise de agosto de 1954, em que, em três semanas apenas, reduziu-se o homem mais poderoso do país a um suicida. Quais as características da crise? Em primeiro lugar, uma sistemática campanha de opinião, pela utilização de todos os órgãos de publicidade, em torno de episódio secundário, da alçada do subdelegado e transformar esse episódio secundário, mero acontecimento policial, numa crise política, cujas proporções gigantescas puderem ser aferidas, no momento em que o Presidente Vargas teve que pôr fim à sua própria existência, no momento em que chegava ao fim, pela força, o seu governo. Ora, a crise de 1964 seguiu o mesmo caminho ao item 1: a montagem de uma ampla campanha de publicidade, utilizando, agora, um novo meio de propaganda – a televisão – para se somar aos demais, de sorte isolar completamente o governo em exercício, para obter as condições para a sua deposição. E, no primeiro caso, da campanha de publicidade preparatória da operação, a intervenção militar através de documentos assinados por chefes militares, desmoralizando a autoridade em chefe constitucional, no caso, o Presidente Vargas. Na repetição do lance: uma conspiração largamente montada, largamente financiada, em que se destacava, inconfundivelmente, a figura do Co52 Vozes da distensão política: 1978-1983 ronel Vernon Walters, o único militar, em toda a história militar mundial, que fez a maior guerra da História, utilizando, unicamente, a língua, e que deve ao seu papel, na conspiração de 1964, a justíssima promoção que lhe coube ao generalato e a função que hoje exerce, de segunda pessoa na Agência Central de Informações Americana. Tratava-se, então, de impor um esquema de isolamento do poder e de deposição daquele que exercia o poder. Essa ação militar foi possível porque o imperialismo havia, através do que foi antes mencionado, adquirido as condições para controlar a utilização política das forças armadas brasileira. Ora, isso significa o quê? Que padres ou militares não são bons ou maus por si. Eles podem ser bons ou maus conforme a utilização que deles é feita. Se as forças armadas brasileiras têm tido papel aparentemente contraditório, ora positivo uns, ora negativos outros e, às vezes, a curtos intervalos de tempo, é porque estão inseridas no processo histórico e na realidade do país. De sorte que inculpá-los, isoladamente, do que ocorreu, em 1964, e atirar uma nódoa de infâmia a toda força armada e a cada um de seus componentes por isso, parece-me um erro palmar. Amanhã, ela poderá tornar a ter um papel positivo, na medida em que a massa militar de formação democrática, premida pelas circunstâncias e pela conjuntura, a internacional e a nacional, for adquirindo consciência da realidade. “Veremos que aquilo que foi mau, num momento, pode vir a ser bom noutro momento”. 53 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 54 Vozes da distensão política: 1978-1983 9. O neopopulismo através da publicidade não tem chance de sobreviver!9 Boris Fausto Buscando oferecer contribuições para o debate sobre populismo e comunicação que se travará, durante o III Ciclo de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, que a INTERCOM vai promover em setembro, transcrevemos, a seguir, o sugestivo artigo que o historiador Boris Fausto10 publicou, na edição dos 90 anos da nossa República, organizado pelo “Jornal da República” (16/11/79). “É coisa mais ou menos sabida que o populismo como recurso político tomou forma, no Brasil, nos últimos anos do Estado Novo. Naquela época, a crise de poder, refletida 9. BOLETIM INTERCOM nº18. São Paulo: Intercom, março/1980. p.24-25. Mensal. 10. Boris Fausto é historiador, autor de A Revolução de 1930 e coordenador da História Geral da Civilização Brasileira, parte República. 55 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade na perda da sustentação de Getúlio Vargas pelas Forças Armadas, levou um Núcleo do governo a tentar uma aproximação com as massas urbanas. Desde então, o populismo, ou melhor, os populismos, dominaram a cena política. Ao lado do populismo getulista – o mais sólido, o que teve maior amplitude em escala de nação – surgiram o de Jânio, de Adhemar, diferentes do primeiro não apenas pela base regional, mas por sua composição social e sua trajetória política. O janismo policlassista alcançou o Estado de fora para dentro; o adhemarismo incorporou, com seu sentido boçal, a classe média nascida da especulação e da guerra”. Floriano, o tenente Vinhaes, os ferroviários, etc. O populismo viveu seu grande período, a partir dos anos 50, passando por momentos dramáticos como o suicídio de Getúlio, a renúncia de Jânio, com efeitos muito diversos. Como lembra Francisco Weffort, o primeiro destes episódios deu-lhe uma sobrevida; o segundo marcou o início de seu fim. O epílogo veio com o agravamento da situação econômica, o aguçamento das contradições de classe, que abriram caminho para o golpe de 1964. Tudo isso é bastante conhecido, mas talvez seja menos conhecido o fato de que o embrião do populismo nasceu com a própria República, nos seus primeiros anos. Refiro-me à ação política de civis e militares que, em sua maioria, reuniram-se, no Rio de Janeiro, em torno da figura de Floriano Peixoto, gente como o Tenente Vinhaes, com prestígio entre os ferroviários da Central do Brasil e os portuários, organizador de efêmeros ‘partidos operários’. Desses círculos representativos 56 Vozes da distensão política: 1978-1983 de uma parte do estamento do Estado, brotou a luta por uma República vagamente nacionalista, autoritária, sustentada pelos trabalhadores. Quase não é possível lembrar a inexistência de condições para a implantação de uma aliança desse tipo. Para frustração de uns e enriquecimento de outros, até 1930, a República foi o que de um modo simplista se convencionou chamar de República Oligárquica dos fazendeiros. Mas, o embrião populista, já agora bem mais fortalecido, ressurgiu com a crise do sistema oligárquico, aberta pela Revolução de 1930. Seu espaço geográfico também se ampliou, abrangendo Rio de Janeiro e São Paulo, que se convertera em um centro urbano importante. O contexto político de ensaio populista, nas duas cidades, era bastante diverso. Em São Paulo, o populismo serviu como instrumento da tentativa de desbaratar o núcleo mais forte da oligarquia republicana. Os interventores tenentistas, o General Miguel Costa, com seu evocativo Partido Popular Paulista, tentaram o apoio dos trabalhadores, sobretudo do setor têxtil, mobilizaram desempregados, como alternativa ao poder do PRP e do Partido Democrático. A onda mais forte em São Paulo não era, porém, o populismo, e a torrente regional arrastou para a Revolução de 1932 o embrião populista. No Rio de Janeiro, ele não se associava à ideia de “terra conquistada”, não acompanhava o “invasor”. Em parte, por isso, a experiência mobilizadora, policlassista daqueles anos, que se concretizou no Partido Autonomista ....... e no prefeito Pedro Ernesto, deitou algumas raízes. 57 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade É possível hoje uma “luta do tostão contra o milhão”? Se as duas experiências se deram em condições diversas, tiveram algo em comum. Foram ambas ensaios regionais, ao mesmo tempo alentados e limitados pelo núcleo que controlava o Estado nacional. Getúlio promoveu e desnorteou o tenentismo em São Paulo; quanto a Pedro Ernesto, foi envolvido no episódio de novembro de 1935 e morreu pouco depois. Quais as possibilidades de reaparição do populismo nos dias de hoje? Como é sabido, o populismo se consolidou em uma situação histórica específica, caracterizada pela rápida urbanização e pelo desenvolvimento industrial – momento de passagem do pólo de expansão capitalista do setor rural para o industrial-financeiro. Socialmente, assentou-se em uma sociedade pouco diferenciada, na qual o nível organizatório das massas populares era muito baixo. Os vários populismos se corporificaram em uma liderança carismática adequada, variável no seu estilo com a época; Getúlio podia falar aos “humildes” de charuto na boca; Jânio empreendia a “luta do tostão contra o milhão” com a vassoura nas mãos e a caspa nos ombros; Jango – última figura do populismo em crise – falava sem carisma e sem muita convicção aos trabalhadores organizados. Afinal, simplificadamente, o populismo, em seu apogeu, representou uma aliança desigual de um núcleo do Estado com um contingente ponderável dos trabalhadores urbanos, em um contexto histórico em que os setores dominantes ligados ao desenvolvimento industrial foram os grandes beneficiários. O populismo manipulou as massas, encaixou-se bem ou mal na moldura do corporativismo; mas, deu-lhe alguns benefícios reais e estabeleceu uma relação de proximidade entre liderança e liderados. 58 Vozes da distensão política: 1978-1983 Morte certa? O quadro que se desenha, em nossos dias, parece ser outro. O nível de organização dos setores populares é maior, assim como é crescente sua consciência de necessidade de autonomia diante do Estado. Por outro lado, vistas as coisas do lado deste, não se constrói vínculos populistas apenas com técnicas publicitárias, por mais que sirvam para dimensionar os traços convencionais da figura humana de um presidente. Vida, paixão e morte do populismo, então? Não chegaria a tanto. O termo dirá até que ponto a desigualdade regional do país, os limites da organização das classes populares, mesmo nas áreas mais avançadas, os impasses da formação de novos partidos, os grãos de redistribuição de renda contidas na ação governamental etc. conduzem à ressurreição populista. De qualquer forma, a morte do populismo tem um sentido figurado. É provável que ele siga o destino do coronelismo, ou seja, deixe de ser o recurso político básico do sistema de dominação, o que não significa seu desaparecimento. 59 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 60 Vozes da distensão política: 1978-1983 10. Os latifundiários roubaram a voz do trabalhador!11 Dom Balduíno Na sua 18ª Assembleia Geral, a CNBB, órgão que reúne os bispos católicos brasileiros, aprovou o documento “Igreja e Problemas da Terra”, através do qual adota uma posição firme diante da Reforma Agrária, condenando claramente o Capitalismo como modelo econômico capaz de propiciar mudanças no campo. Os bispos acusam a penetração do Capitalismo, no meio rural, gerando as “terras de produção”, que expulsam os camponeses das suas “terras de produção”. Afirmam os bispos que a terra não deve ser um bem destinado à especulação e à exploração do trabalho humano, mas deve ser possuída pelos que nela trabalham. Tal posicionamento, que materializa a opção preferencial pelos pobres, feita pela Igreja Católica, na Conferência Latino-Americana de Puebla, irritou profun11. BOLETIM INTERCOM nº19. São Paulo: Intercom, abril/1980. p.16. Mensal. 61 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade damente a Confederação Nacional da Agricultura. Essa entidade é formada pelos grandes proprietários de terra que, imediatamente, acusou a Igreja de pretender comunizar o Brasil, chavão que hoje não mais assusta ninguém. Diante dessa acusação gratuita, o responsável pela Pastoral da Terra da CNBB, o bispo Dom Tomás Balduíno (Goiás) respondeu com veemência, dizendo que a Igreja, na verdade, faz-se um canal de comunicação dos pobres camponeses, porque os latifundiários não apenas lhes roubam as propriedades; mas, sobretudo, cassam sua palavra, tornando-os mudos. Eis o que disse Dom Balduíno: “os latifundiários de toda espécie praticam um roubo não só das terras, mas roubam do povo a condição de falar, de decidir, de ter lugar, vez e voz, [...] O roubo praticado, ultimamente, vem sendo denunciado pela Igreja, que procura sanar pela raiz, fazendo ouvir a voz desse povo, veiculando da maneira mais pura possível os seus apelos, seus clamores, juntamente com suas propostas de solução para seus problemas, que são dramáticos e que se avolumam dia a dia no país”. (FSP, 30/3/80). 62 Vozes da distensão política: 1978-1983 11. O pânico da classe média desestabilizou o governo Goulart!12 Helio Jaguaribe No depoimento que concedeu ao jornal O Estado de São Paulo (18/5/80), o cientista político Hélio Jaguaribe, membro da equipe do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), dá a sua versão sobre a articulação entre a burguesia nacional e o populismo e a crise que levou à sua ruptura em 1964. Como se trata de documento de interesse dos participantes do III Ciclo de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, vamos transcrever os trechos daquela entrevista que analisam a questão populista. “A explicação da ruptura que levou à crise do populismo deve ser iniciada com uma análise não predominantemente política, mas econômico-social. A meu ver, o que aconteceu foi que o processo de desenvolvimento, que se inicia com Vargas e se acelera, extraordinariamente, com Kubitschek, 12. BOLETIM INTERCOM nº21. São Paulo: Intercom, jun/ jul/1980. p.26-29. Bimestral. 63 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade foi muito mais um processo de modernização do que de desenvolvimento – como acertadamente Celso Furtado afirmou no depoimento dado a vocês – o qual afetou apenas uma parcela minoritária da população brasileira. O Brasil sempre se caracterizou – e isso continua ocorrendo em nossos dias – por ser uma sociedade profundamente dualística, em que há uma massa marginal que constitui a grande maioria da população, a qual não participa em nada ou apenas, insignificantemente, dos benefícios de modernização e do desenvolvimento e, a seu lado, um setor mais restrito que, esse sim, beneficia-se de todas as vantagens. Essa situação teve e tem consequências, extraordinariamente, intensas em toda História brasileira. Com relação ao populismo, parece-me que o aspecto fundamental dessa dicotomia é o fato de que a democracia populista, embora tivesse uma retórica um pouco estatizante e socializante, na verdade, adotou práticas de um Capitalismo bastante convencional, no qual o Estado só subsidiariamente interveio no processo produtivo, como regulador da atividade econômica. Foram criadas grandes empresas públicas, naquele período, mas; na verdade, a ênfase do processo de desenvolvimento foi dada ao setor privado, poderosamente ajudado pelo BNDE. Foi o setor privado, com o apoio e o estímulo do Estado, que teve a principal responsabilidade pelo desenvolvimento industrial. Ora, o que aconteceu no processo de desenvolvimento industrial no período populista? Quando chegamos a um certo grau de complexidade da industrialização, defrontamo-nos com a insuficiência da demanda no mercado interno. Porque, embora no governo Kubitschek fôssemos um país de mais ou menos 80 milhões de habitantes, apenas um terço, ou um pouquinho 64 Vozes da distensão política: 1978-1983 mais do que isso, participava realmente do mercado. O restante formava uma grande massa marginal que tinha acesso apenas aos alimentos básicos, não participando do mercado industrial. Então, a industrialização que se fazia, na base da substituição de importações para o atendimento da demanda superior à da parcela da população, que participava, efetivamente, do mercado. Naquela época, o Brasil ainda não tinha acesso ao mercado internacional. Era um modesto exportador de matérias-primas e as nossas exportações estavam situadas em torno de 1,5 a 2 bilhões e dólares. Por outro lado, o Estado populista sempre sofreu de incapacidade de extrair impostos suficientes da população, porque os Congressos eram conservadores. O populismo, na verdade, era apenas dos Executivos, não dos Congressos. Por isso, o Parlamento sempre negou as reformas fiscais solicitadas pelo Executivo. Assim, o Estado populista, numa inflação crescente, não tinha condições de substituir os investimentos que a iniciativa privada não tinha coragem de fazer. Recordamos, porque esse é um dado muito importante que, quando começa o populismo com o governador Vargas, a arrecadação federal correspondia a 9% do Produto Nacional. Quando termina o populismo, na administração Goulart, a arrecadação federal continuava a representar os mesmos 9% do Produto Nacional. Mas, paralelamente, a despesa federal representava 18%. Ou seja, as responsabilidades da União na administração da sociedade brasileira cresciam implacavelmente, mas sem o respaldo de receitas correspondentes. Kubitschek tinha razão em dizer que, em sua administração, o Brasil cresceu 50 anos em 5, o que foi uma coisa realmente extraordinária. 65 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Mas, aí o modelo esgotou a capacidade de crescimento. E os governos que o sucederam não encontraram disponibilidades privadas para novos investimentos, porque o mercado não os comportava, nem tinha facilidades de investimentos pelo setor público, em que os déficits se acumulavam. Houve, então, a estagnação do crescimento. Nesse momento, a aliança entre a burguesia nacional e o populismo, que estava baseada numa certa redistribuição dos ganhos acarretados pelo crescimento do País e pelo aumento da produtividade, entrou em crise. A recessão econômica não permitia satisfazer as expectativas das massas. E a aliança, consequentemente, rompeu-se. O populismo, sob um certo aspecto, era uma retórica que prometia mais do que dava, mas algo ele dava. Um pouco como acontece com as moedas nas relações de câmbio: para dez unidades de promessas, uma de realidade. A rigor, as massas não foram mistificadas, tanto assim que os padrões reais de vida da população brasileira subiram durante o período populista. Mais nos centros urbanos e, infelizmente, muito pouco no campo. Quando, por causa dos elementos que mencionei, não foi mais possível manter o processo de crescimento – a crise se dá entre 61 e 62 – a possibilidade de dar um cumprimento mínimo às promessas do populismo se esvaziaram. Como, então, poderia o governo populista manter a sua liderança, se não tinha mais riquezas novas para distribuir? Só lhe restava o caminho de tentar distribuir a riqueza pré-existente. Daí, as reformas de base do governo Goulart, que eram uma tentativa de redistribuir a riqueza pré-existente, por meio da Reforma Agrária, da Reforma Urbana 66 Vozes da distensão política: 1978-1983 etc., nesse momento, a classe média que, na verdade, foi o fator determinante do processo, sentindo-se ameaçada em seus privilégios, reuniu-se às forças da direita e levou o Exército, que sempre foi tradicionalmente sua expressão, a uma intervenção. Foi o medo – o pânico mesmo – por parte da classe média brasileira, de que os mecanismos de redistribuição (pressupostos pelas reformas de base) atingissem o seu status, que o levou a considerar que o governo Goulart tinha enveredado pelo caminho da subversão e, consequentemente, criou as condições que tornaram possível a intervenção militar. O processo da industrialização brasileira, que começou espontaneamente por causa da crise de 29, por meio da tão conhecida substituição de importações, fez nascer uma nova classe social – o proletariado industrial e, por consequência, uma subclasse nova – o empresariado industrial. Surgiu, também, um outro setor que se foi diferenciando da classe média clássica, cartorial, de funcionários públicos, e que se constituiu numa classe média de gerentes, administradores, técnicos. Dessas diversas classes, surgiram duas coligações: a populista e a conservadora. A coligação populista reunia o proletariado industrial, a classe média progressista e setores da burguesia e setores da burguesia ligados à industrialização e a modernização. Essa coligação tornou-se dominante nas eleições majoritárias, fazendo os presidentes da República, durante o período que estamos considerando, isto é, o do populismo. Quando a crise do populismo, quando tive ocasião de indicar, lançou a classe média para a direita e levou o empresariado a se reunir aos setores mais conservadores, fundindo a burguesia industrial com a mercantil, processou-se uma modificação significa67 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade tiva, substancial, na composição sociopolítica brasileira. Na pirâmide social brasileira, as diversas classes sociais, apesar de manterem, entre elas, conflitos de tipo clássico, tinham sido levadas a um conglomerado multiclassista, surgindo, embora de uma forma frouxa e cheia de contradições, uma aliança operativa entre o proletariado industrial, a classe média progressista e um setor dinâmico da burguesia. Essa aliança se desfez e a subdivisão vertical foi substituída por uma subdivisão horizontal. As classes altas e a classe média, reunidas por meio do sistema militar, reprimiram as demandas das massas, imobilizaram o processo político, por via autoritária, e passaram a dirigir o País por autodesignação, sem controle popular. A classe média foi sempre uma participante um pouco ambígua da aliança conservadora formada a partir de 64. Ela foi profundamente motivada a apoiar a queda de Goulart, quando entendeu que ele ia substituir a ordem estabelecida por uma vaga República Sindicalista, que ninguém sabia o que significava; mas, na qual, ela via a perda de seu automóvel “Volkswagen” e, provavelmente, de seu apartamento. Diante dessa perspectiva de proletarização, por meio de uma redistribuição niveladora da riqueza brasileira, com a perda de seus privilégios adquiridos, penosamente, ao longo de vários anos, a classe média aliou-se às forças mais reacionárias do País. Essa aliança cobre todo o governo Castelo Branco e o começo do governo Costa e Silva. É difícil precisar o momento de sua inflexão. Entretanto, sem prejuízo de certos fatores externos que são também extremamente importantes, pode-se indicar alguns elementos que colaboram para modifica a conduta da classe 68 Vozes da distensão política: 1978-1983 média brasileira durante o período da Ditadura Militar. Por outro lado, a classe média sempre viveu uma contradição entre sua crença na legitimidade democrática e a sua opção por um governo autoritário, por razões de interesse, de ordem pragmática. A única forma pela qual conseguiu compatibilizar aquela convicção democrática com o governo autoritário foi a da tese lacerdista do ‘governo de emergência’: uma situação de emergência, na qual, depurar o País de agentes subversivos e elementos corruptos, que estavam distorcendo a vontade popular, tornava-se necessário um governo autoritário, de salvação nacional, que expurgaria aqueles germes nocivos, restauraria a sanidade do corpo social, o qual passaria, então, a manifestar-se, democraticamente, dentro daquilo que a classe média considera compatível com seus interesses e valores. Mas, a prática mostrou que a contradição entre os seus valores e os seus interesses, no governo Castelo Branco, era mais profunda do que se pensava. De modo que a classe média foi conduzida a uma situação ideologicamente muito difícil, de má consciência, na qual era obrigada, continuamente, a postergar o processo de democratização, em virtude da permanência de situações que ameaçavam severamente seus interesses. Esse adiamento constante da volta à legalidade democrática, que era a única forma legítima de dirigir o País, foi criando uma resistência moral e psicológica, que acabou por se tornar muito importante. Creio que intervieram, então, alguns fatores que aceleraram a mudança de postura da classe média. O mais importante deles é que o Brasil é um país de memória social curta. Explico-me. O grande crescimento demográfico do nosso país faz com que tenhamos uma mobilidade social grande: enormes contingentes 69 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade provenientes da periferia da classe média ingressam, constantemente, nessa classe e, consequentemente, a sua memória dura pouco. Fizemos, há alguns anos atrás, na Universidade Cândido Mendes, uma pesquisa entre os rapazes que estavam ingressando no Ensino Superior para saber até onde ia sua memória política. Para confirmar nossa tese, constatamos que eles não sabiam direito que eram Leonel Brizola e João Goulart, por exemplo. Por quê? Porque eram pessoas que vinham de famílias que não havia participado do processo político, imediatamente anterior a 64; mas que, em virtude de esforços próprios, tinham conseguido acesso à universidade para seus filhos. Aquela juventude que saia de um ambiente, em que a maioria daqueles fatos políticos não era muito forte, estava realizando a renovação do estoque de cargos e papéis da classe média, 10 anos depois da ocorrência daqueles fatos. Quem são, hoje, os homens que estão desempenhando os cargos e papéis da classe média? São rapazes que saíram da universidade, há 10 ou 12 anos, e que trazem memórias diferentes das de seus pais. Os pais tinham medo de Brizola e esses têm medo da polícia. Ao contrário de seus pais, eles têm a experiência do conflito com a autoridade policial, com a repressão. Esse fato modificou, gradualmente, a concepção do mundo da classe média. Por outro lado, é evidente que a incapacidade que teve o regime de lidar com a juventude, fazendo com ela fosse, permanentemente, encarada como o seu inimigo número um, gerou uma série de conflitos e fez com que não haja, hoje, praticamente, nenhuma família brasileira que não tenha um filho, um parente, um amigo ou um conhecido que não tenha sido vítima da brutalidade militar – assassinatos, torturas e outros tipos de violência que ocorreram no País. 70 Vozes da distensão política: 1978-1983 Assim, a modificação da perspectiva da classe média, advinda de tudo isso, tornou-se muito visível no governo de Geisel. Nesse momento, a renovação dos quadros da classe média, em suas bases, a erosão da lembrança do pânico do populismo e o surgimento de uma nova reivindicação – sempre reprimida, nunca eliminada – de um sentido democrático de legitimidade, fizeram com que a classe média não aceitasse mais a ideologia da segurança nacional e contaminasse os quartéis com sua atitude. Da mesma maneira que o receio que a classe média teve, entre 63 e 64, de ser expropriada por um golpe sindicalista, levou os militares a se identificarem com suas preocupações e – ao lado de aspectos mais concretos relacionados à disciplina militar – a intervir no processo político, da mesma maneira, repito, a generalização das expectativas de restauração do Estado de Direito contaminou os quartéis. A meu ver, ficou bastante claro para o Presidente Geisel que não havia mais condições de sustentação do regime autoritário e da ideologia de segurança nacional, porque as Forças Armadas estavam deixando de acreditar nisso. Ele foi, assim, conduzido à decisão de promover a retirada e, porque ainda dispunha de poder discricionário, fez isso dentro das regras que ele próprio ditou, em lugar de ser levado a um total esgarçamento do tecido militar e a uma saída caótica, provocada por pressão popular incontrolável, alguns anos mais tarde. 71 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 72 Vozes da distensão política: 1978-1983 12. A cultura como transgressão13 Eduardo Portela O ex-ministro Eduardo Portela, de quem Tristão de Athayde (ver matéria na secção Gente) disse que “caiu para subir”, realmente está dando um testemunho de que experiência ministerial, longe de ter afetado a capacidade de análise intelectual, aguçou-a, agregando aos seus conhecimentos anteriores a dimensão do poder por dentro. Tanto assim que poucas semanas após sua “queda”, compareceu à imprensa, publicando artigo, no jornal Folha de São Paulo (23/12/80), no qual oferecia seu conceito de cultura, que diz conter implícita a noção de transgressão e que, por isso, “não será jamais uma produção do Estado”. Por aí se vê que Portela esteve “do outro lado do rio” sem, na verdade, tê-lo atravessado inteiramente, o que de certo 13. BOLETIM INTERCOM nº27. São Paulo: Intercom, jan/ fev/1981. p.18-20. Bimestral 73 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade mais o afastou do que o aproximou do poder. Aquelas suas primeiras impressões públicas do que fazer cultura, publicadas na FSP, constituem realmente matéria sugestiva para a análise das relações entre a Cultura e o Estado, razão pela qual vamos transcrevê-las, integralmente, para as reflexões dos nossos leitores: Certa vez, uma repórter muito participante, talvez a mais participante do time de repórteres, e que tiveram o privilégio de sonhar com os estudantes franceses dos idos de maio de 68, perguntou-me se eu não era favorável à ideia de um Ministério da Cultura que fosse autônomo, um organismo capaz de gerir, sem ser tragado pela educação, os negócios “sempre preteridos” da cultura. E a moça insistia, entre impaciente e nervosa: “como na França, como na França”. Tenho a impressão de que a desapontei, ao responder que se tratava de um problema, em si mesmo, irrelevante. Tentei explicar-me, procurando reduzir a margem de desolação. A cultura é a educação informal, assim como a educação é a cultura formalizada. Em termos pragmáticos, ou até filosóficos, a articulação entre ambas, a identificação de ambas, não apenas se justifica, mas se torna decididamente indispensável. Logo, o principal deixa de ser o aparelho burocrático, quando se levanta um tipo novo de mentalidade, capaz de desburocratizar ou reaparelhar as formas de atuação cultural. O importante é que, por cima desses mecanismos executivos, haja uma decisão de governo aberta e livre. A participação do Estado, em países por desenvolver-se, tem pelo menos duas explicações. De um lado, o Estado vorazmente arrecadador não deve descarta-se sob pena de 74 Vozes da distensão política: 1978-1983 perder-se e negar-se – da sua função social, representada, criadoramente, no conjunto das práticas culturais. Do outro, ela contrabalança ou equilibra a pressão externa. É quando as multinacionais da cultura não só vendem o seu produto, mas impõem o padrão cultural. Aí, emerge uma espécie de ‘Capitalismo de Estado’ que, uma vez imune ao paternalismo e ao dirigismo, pode desempenhar um papel recuperador. Em nenhum instante, a cultura, pessoal e plebiscitária, abrirá mão de seu caráter essencialmente transgressor. Transgredir significa instaurar, para além do código institucionalizado e sistematicamente protegido. Daí a condição litigiosa da cultura, a função prospectivas exercidas em meio às mais diferentes modalidades de dominação e violência. Até porque o novo nunca foi, no seu amanhecer, um poder cooptado; antes, tem sido uma força solitária, entregue ao seu próprio abandono. Por isso, não lhe é permitida a inércia. A cultura, mesmo a cultura que passou – a que passou, ficando, sendo mais – jamais se confinará como simples matéria de memória. O lugar do passado é no futuro e as criações pretéritas, se preservadas como bens patrimoniais, tombadas, imóveis, nunca deixarão de ser expressões agonizantes de um mundo cada vez mais morto. O futuro é a mola propulsora do curso do tempo, por vocação e por desempenho, um instaurador natural de vida. O futuro é a transgressão, a juventude, o erro sem a fatalidade, o acerto sem a canonização. É indispensável que o ‘Estado de Direito’ saiba entender o ‘Estado de transgressão’ como lugar e garantia de criatividade. Nessa hora, o peso das nomenclaturas oficiais cederá à força vital das coisas reais. 75 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade A própria tradição, que oscila entre o repouso, ou a sua forma pervertida, a inércia e a criação, ou seja, a releitura produtiva, não se resume a uma certidão patrimonial que possa ser usada, com o mesmo vigor e um único valor, nos mais diversos recintos da nação. A tradição cresce e vive ao amparo de energias vivificadoras, advindas, basicamente, do presente e do futuro. Toda vez que reduzimos a tradição à fotografia estática e, pretensamente fiel ao passado, estaremos simplesmente liquidando a História, bloqueando o curso simultâneo do tempo. Os guardiães compulsivos da tradição expõem à visitação pública, à curiosidade analítica, ou apenas à crônica policial, a estranha patologia dos que matam por excesso de amor. Por isso, a cultura não será jamais uma produção do Estado. Normativo, coercitivo e, frequentemente, coativo, o Estado se caracteriza, por uma incapacidade criadora. Ao Estado não foi permitido o direito ou a alegria da transgressão. Ele confunde seriedade com sisudez e, em nome das virtudes da primeira, resvala na inutilidade retórica da segunda. Daí, a sua vocação de censor. É quando o Estado, ignorando o seu próprio sentido – a condição de mediador social – hipertrofia e movimenta desinibidamente a sua faceta policial. Sem de longe supor que, ao instalar-se na censura, é ele quem sai censurado. E censurado pela comunidade, pela sociedade, pelo individuo social, os verdadeiros fluxos de legitimação de todo e qualquer ato do Estado. A voracidade estatal esqueceu-se de que já não é possível estabelecer-se com a cultura uma relação de posse, de apropriação usuária ou protetora. A cultura, enquanto fazer-se contínuo, escapa a qualquer tipo de controle e, no espaço interminável da liberdade, ela imprime a sua res76 Vozes da distensão política: 1978-1983 ponsabilidade ética e expressa, sem reservas, a dignidade própria de uma pessoa. As relações, portanto, invertem-se. É a cultura que pode animar a caminhada criadora do Estado, que evita o seu retorno à pura naturalidade e impede a sua desnaturação. O atestado de saúde do Estado pressupõe a medida correta da sua temperatura cultural. Poderia chegar a um acordo com a jovem repórter (mesmo que provisório) e, no plano comum das nossas saudáveis e jamais perdidas ilusões: concordaria com o Ministério da Cultura se fosse antes o ministério da transgressão. Na verdade, a moça guardara consigo – inegociável arquétipo invencível – o seu Ministério mitológico. Quem sabe um dia, nos reencontraremos? FSP, 23/12/80. 77 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 78 Vozes da distensão política: 1978-1983 13. É preciso estatizar para democratizar os meios de comunicação!14 Carlos Guilherme Mota Em entrevista concedida à Folha de São Paulo (22/9/81), o historiador Carlos Guilherme Mota, professor da USP, admite a revisão de alguns conceitos de seu livro Ideologia da Cultura Brasileira, sobretudo no que se refere à valorização de intelectuais como Darci Ribeiro, Anísio Teixeira, Hermes Lima e Santiago Dantas, sobre os quais não se dispunha, na época, de material de apoio. Contudo, Mota reafirma sua tese central: a de que se elaborou, no Brasil, dos anos 30 para cá, um conceito de cultura brasileira altamente dissolvente das contradições ao nível ideológico, quando essas contradições sociais, políticas e econômicas afloravam. Trabalhamos, hoje, um conceito euforizante de cultura brasileira, que tende a sofismar a 14. BOLETIM INTERCOM nº33. São Paulo: Intercom, out/1981. p.48. Mensal. 79 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade questão da dependência. Ele critica, por exemplo, a omissão dos partidos políticos de oposição quanto à questão da cultura, dizendo que “talvez, com razão, estejam mais preocupados em chegar até 82 do que discutir questões mais concretas, como essas do ensino pago. É uma tragédia que eles não estejam percebendo que um partido precisa ter estruturada uma noção combativa de cultura. O fato é que eles não vêm conseguindo articular uma fala de contradições às políticas culturais em vigência”. Mota analisa também os equívocos que, em sua opinião, estão sendo cometidos em relação à - “cultura popular”. – “Às esquerdas, as oposições, engolem muito isso, talvez, por algum ranço populista. Quem faz cultura popular, normalmente, não diz que está fazendo cultura popular. Esse foi o equívoco dos anos 60 que, se repetido agora, transforma-se numa farsa. Será que o ranço populista é tão grande que, mesmo depois de 20 anos de experiência, voltaremos à mesma tecla? Não será esse um dado trágico da assim chamada cultura brasileira? Ou seja, no momento que se teria de deslanchar, de alçar voo, vamos voltar ao início da pista outra vez? O final da entrevista de Carlos Guilherme Mota é dedicado à questão nacionalista e à saída para os meios de comunicação. Sua proposta é a defesa de uma solução estatizante como alternativa viável para a democratização da produção cultural –“Como diz Barbosa Lima Sobrinho, feliz ou infelizmente, teremos que passar por formas nacionalistas de organização para atingirmos o socialismo. As experiências históricas, felizmente, não repetem. Mas, creio que voltaremos a certos temas, como o da estatização, pensando, agora, de uma proposta democratizante. Os meios de comunicação, por 80 Vozes da distensão política: 1978-1983 exemplo. É preciso estatizá-los para democratizar. “Como cidadão contribuinte, eu tenho muito mais instrumentos para interferir numa TV estatal do que em qualquer desses conglomerados existentes”. 81 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 82 Vozes da distensão política: 1978-1983 14. Entra em declínio a influência norte-americana sobre a televisão brasileira15. Joseph Straubhaar O Brazilianst Joseph Straubhaar (sócio da Intercom) defendeu, em meados deste ano, tese de doutoramento junto à The Fletcher Scool of Law and Diplomacy, nos EUA. A argumentação central de seu trabalho é a de que está havendo um declínio da influência norte-americana sobre a televisão brasileira. Transcrevemos, a seguir, uma síntese daquela tese: “Tem havido significante influência norte-americana na indústria brasileira de televisão e, através dela, na cultura brasileira. Essa influência avulta como um exemplo de dependência cultural. Os anunciantes norte-americanos têm interferido na orientação comercial da televisão brasileira. 15. BOLETIM INTERCOM nº34. São Paulo: Intercom, nov/ dez/1981. p.25-26. Bimestral. 83 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Através de acordos financeiros e comerciais, no período de 1962-1971, a empresa Time Life Television Inc. ajudou a criar a TV Globo, a rede de televisão dominante no Brasil. Não obstante, tendo absorvido séculos de influência estrangeira, a natureza comercial do sistema brasileiro de comunicação de massa é bem anterior à influência norte-americana. Apesar da indústria de televisão ter desenvolvido uma forte e autônoma estrutura comercial, alguns críticos continuam a afirmar que o sistema brasileiro e o sistema de outros países em desenvolvimento são ainda estruturalmente dependentes. A evidência indica que tema havido algumas influências indiretas da televisão norte-americana na produção de programas brasileiros. Nas décadas de 50 e 60, os anunciantes americanos ainda tinham participação direta na decisão sobre a programação da TV. Desde então, a radiodifusão brasileira tem tomado emprestado da radiodifusão norte-americana ideias de produção, temas desenvolvidos e técnicas de administração. Essas têm sido frequentemente transformadas para se adaptar às condições do mercado brasileiro e, depois do começo da década de 70, não parecem atuar como um importante canal de influência ou dependência. Mais significativo do que isso, tem sido o impacto direto dos programas de televisão importados dos EUA sobre o público brasileiro. Entretanto, a mensuração da real proporção de horas de audiência dirigidas para os programas importados indica ápice em 1971, com 48%, baixando para 42% entre 1975-1977. Isto indica que o impacto dos programas importados dos EUA, como canal de dependência cultural, tem declinado nos últimos anos. Em geral, a indústria brasileira de televisão ainda depende dos 84 Vozes da distensão política: 1978-1983 anunciantes estrangeiros, juntamente com os anunciantes privados e governamentais do próprio país. Esse dado, por si só, justifica a alegação feita por muitos críticos de que a indústria é limitada por uma forma dependente de desenvolvimento. Algumas empresas brasileiras de radiodifusão dependem fortemente dos programas importados, nas áreas de entretenimento e noticiário, o que mantém aberto o canal de influência direta da influência estrangeira na cultura brasileira. Isso também é visto como uma evidência da dependência cultural. Contudo, redes brasileiras já estão exportando seus programas para mais de 50 países, numa mostra de interdependência. Os fatos levam à conclusão de que pelo menos a Rede Globo está se tornando autônoma, tanto em termos de seu desenvolvimento técnico como de nacionalização da programação e de que a indústria de televisão brasileira está superando a fase de dependência para entrar na interdependência. 85 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 86 Vozes da distensão política: 1978-1983 15. A comunicação e as pessoas idosas16. Frei Joaquim da Rocha Maciel e pastor Jaci Maraschin O Dia Mundial das Comunicações Sociais foi instituído pela Igreja Católica, através do Decreto Conciliar Inter Mirifica. Cada ano, a partir de 07 de maio de 1967, o evento vem sendo comemorado, ocasião em que o Papa dirige uma mensagem aos fiéis do mundo inteiro e a todos os homens de boa vontade. Neste ano de 1982, a mensagem tem o seguinte título: As Comunicações Sociais e o Problema dos Anciãos. Comemorado no dia 23 de maio, o Dia Mundial ensejou reflexões, para as quais contribuiu o documento editado pela Comissão Pontifícia para os Meios de Comunicação Social. Apresentaremos, a seguir, uma síntese daquele documento. 16. BOLETIM INTERCOM nº37. São Paulo: Intercom, Maio/ Jun/1982. p.22-27. Bimestral. 87 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade A preocupação de João Paulo II O tema aprovado pelo Papa João Paulo II para a celebração deste XVI Dia Mundial das Comunicações Sociais, quer pôr a atenção para o problema dos anciãos. Pois, também, este ano, é dedicado aos anciãos pelos organismos internacionais que tentam, desta forma, sensibilizar a opinião pública para os problemas cruciantes que atingem as pessoas da terceira idade. As palavras do Papa João Paulo II, na homilia pronunciada na Catedral de Mônaco, por ocasião de sua visita à Alemanha, acentuam a importância da escolha do tema: “O Papa se inclina com respeito diante da velhice e convida a todos a fazerem o mesmo com ele. A velhice é o coroamento das etapas da vida. Ela reúne tudo o que se aprendeu e foi vivido, quanto se fez e foi alcançado, o que se sofreu e foi suportado. Como ao final de uma grande (melodia) sinfonia, retornam os temas dominantes da vida para uma potente síntese sonora. E esta ressonância conclusiva confere sabedoria..., bondade, paciência, compreensão e o precioso coroamento da velhice: o amor”. (19-11-80). O Problema dos anciãos, mais do que social e econômico (embora também estes sejam de singular importância), é um problema essencialmente humano, cuja solução é confiada às forças morais e espirituais de toda a humanidade. A Igreja se empenha na consecução desses objetivos, porque está convencida de que nenhuma sociedade poderá considerar-se desenvolvida e, mesmo respeitada, se não respeita, protege, honra e dignifica a terceira idade. 88 Vozes da distensão política: 1978-1983 A situação do idoso no contexto social O ancião é relegado, na sociedade tecnológica de produção e consumo, na qual acontece, em larga escala, a despersonalização do homem. O ser humano é apenas uma peça de engrenagem. A acentuação do problema recai especialmente sobre os velhos, que se tornam mais dependentes e marginalizados, uma vez que não há espaço de trabalho para as pessoas de idade avançada. Isso tem provocado o isolamento do idoso, porque não trabalhando, não produzindo, é considerado inútil à sociedade. O Pontifício Conselho “Cor Unum”, num recente documento (“Algumas questões de ética relativas aos doentes graves e aos moribundos” – Tip.Pol.Vat. – 1981) descreve como a sociedade desenvolvida, de hoje, procura afastar de si a velhice, a doença e a morte, por meio de uma fuga, a ponto de levar o ancião e o moribundo a sentirem-se culpados pelos incômodos que a própria decadência física traz aos familiares. Esse fenômeno está em conexão com a busca exagerada do bem-estar pessoal. Pergunta-se se os Meios de Comunicação de Massa não contribuíram para a criação de um modelo de sociedade hedonista e despersonalizada, em que os falsos valores do consumismo e do exagerado bem-estar estão prestes a substituir a verdadeira escola dos valores cristãos. A mentalidade que considera o ancião um incômodo ou supérfluo está invadindo não só a opinião pública corrente, mas até a atividade legislativa e, ainda, o endereçamento da estratégia das intervenções nos setores de produção. Hoje, o idoso não tem mais lugar na família, a qual ele mesmo construiu, e passa a ser um “estorvo” que atrapalha 89 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade a sua intimidade. Não se preserva a memória familiar e isso faz com que as gerações futuras se esqueçam das constantes renúncias que o ancião fez para poder oferecer ao filho uma boa educação, além de uma infância e adolescência felizes. Frequentemente, hostilizado por toda a família, é internado, ou ‘sepultado’, em asilos, onde é esquecido como uma vergonha para os demais familiares. Esquece-se de que a coisa mais importante que ele poderia oferecer aos outros é aquela que não é valorizada: A Sabedoria. Como abordar os problemas É urgente que os problemas dos anciãos sejam abordados, contemplados e propostos em sua globalidade: 1. Suscitar em todas as gerações, a consciência e a compreensão do problema fundamental do envelhecimento como um processo vital, sagrado e significativo; 2. Assegurar que os serviços sociais para os anciões tenham em conta não somente as suas necessidades físicas e materiais, mas também as necessidades psicológicas e espirituais; 3. Individuar, por meio de investigação, programas educativos, antes e depois da aposentadoria, novas tarefas e incumbências, iniciativas escolhidas e oportunas para os anciãos, que lhes permitam uma melhor contribuição à vida familiar e à comunidade, no contexto das mudanças econômicas, sociais e culturais. (Síntese da Intervenção da Declaração da Santa Sé, na 3ª Comissão da 36ª Assembleia Geral da ONU, no dia 13 de outubro de 1981. 90 Vozes da distensão política: 1978-1983 Inauguração de uma nova mentalidade Apresentar uma imagem do ancião, considerado como pessoa. Que os responsáveis pela comunicação social intervenham em todos os níveis para restabelecer uma reconciliação entre os anciãos e a sociedade. Eles devem, primeiramente, promover uma cultura do ancião, que considere a vida como um todo, num humanismo pleno, porque cristão, como confirma João Paulo II, na Redemptor Homoninis, assinalando que é preciso recuperar o ancião, a sua experiência, a sua presença, respeitando-o não só com palavras, mas com fatos. No clima desse respeito fundamental, os operadores das Comunicações Sociais são convidados a “falar sobre o ancião” e “saber falar com o ancião”, cônscios de que a sua vida não é uma vida diminuída, mas uma forma de plenitude específica, que pode permitir ainda muitas atividades, com riqueza da experiência adquirida. É necessário, portanto, que os Meios de Comunicação Social deem uma imagem mais positiva dos anciãos, pondo em evidência o seu valor real e sua valiosa contribuição à família e à sociedade, sobretudo no que tange ao papel de transmissão da cultura. Faz-se necessária, também, a produção de programas dirigidos e adaptados particularmente aos anciãos, para ajudá-los a criar uma opinião positiva sobre si mesmos e suas tarefas específicas. 91 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade O ancião na Sagrada Escritura Em toda a Sagrada Escritura aparece a veneração à velhice. Já o Povo de Israel considerava o “Conselho dos Anciãos”, aqueles que permaneciam nas portas das cidades para julgar e dar conselhos aos jovens. Algumas citações: “Cada um de vós respeitará sua mãe e seu pai.” (Lev. 19.3). “Quem amaldiçoar o seu pai ou a sua mãe deverá morrer.” (Lev.20,9). “Não desprezes um homem, na sua velhice, porque muitos de nós envelheceremos”. (Eclo. 8,6). “Não te afastes do discurso dos anciãos, porque eles mesmos aprenderam de seus pais e é deles que aprenderás o entendimento, para responderes no tempo oportuno” (Eclo. 8,9). “Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem os teus dias na terra que teu Deus te dá” (Ex. 20,12). “Levantar-te-ás diante de uma cabeça encanecida, honrarás a pessoa do ancião e temerás o teu Deus.” (Lev. 19,32). “Filho, cuida de teu pai, na velhice, não o desgostes em vida. Mesmo se a sua inteligência faltar, sê indulgente com ele, não o menosprezes, tu que estás em pleno vigor” (Eclo. 3,12-13). “Quem maltrata o pai e expulsa a mãe, é filho indigno e infame”. (Prov. 19,26). “Como é bela a sabedoria dos anciãos e nas pessoas honradas é reflexão e conselho. A coroa dos anciãos é uma rica experiência; a sua glória, o temor do Senhor” (Eclo. 25,5-6). A veneração dos anciãos evidencia-se, ainda, em muitas outras citações da Sagrada Escritura. Os jovens são chamados a beber da sabedoria acumulada pelos anos. São os anciãos que podem narrar as maravilhas de Deus às gerações futuras. 92 Vozes da distensão política: 1978-1983 Jaci C. Maraschin Nossa sociedade capitalista dividiu o comunitário em compartimentos. Separou os que deveriam estar juntos. Instalou a incomunicação não apenas no espaço; mas, também, no tempo. Alguns, mais otimistas, falam no “triunfo do individualismo”. Não se trata, na verdade, de nenhum ganho. Trata-se, antes, da perda do que nos possibilita a humanidade. Foi-se o sentido da comunhão, quando se foi a comunidade. Assim, falamos, primordialmente, em segmentos da sociedade como se pudessem ser compreendidos nesse isolamento. Falamos nas crianças, nos adolescentes, nos jovens, nos homens, nas mulheres e nos velhos. Os mais conservadores levantam a questão da “importância da família” e se queixam de sua crescente desintegração. Mas, de fato, o problema não é esse. A família, solidamente estruturada, não conseguiu, jamais, superar a solidão e a divisão entre as pessoas. Mais fundamental do que isso é a organização da sociedade a pesar sobre nós. Dessa organização depende o social, não apenas na sua forma, mas na sua qualidade. Fala-se, hoje, em sociedade participatória não em agregado de famílias. Mas, esse ‘novo’ conceito de sociedade relaciona-se à maneira como os bens de consumo e a força de trabalho são estruturados. A ideia de uma sociedade fundamentada nas intrincadas relações interfamiliares gerou o que temos testemunhado na nossa História: do feudalismo ao consumismo competitivo. E a família nada mais foi do que a farsa da família. A família sempre significou o “chefe da família” com seus poderes absolutistas e o consequente esquema de segurança para a proteção da 93 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade propriedade privada. O sistema familiar capitalista que engendrou a herança como um bem supremo tem sido o responsável pela instituição dos compartimentos e pelo isolamento dos indivíduos. Nesse tipo de sociedade “familiar”, que engendra a herança e desenvolve comportamentos autoritários, nada mais natural do que privilegiar a força de trabalho e desprezar a mão de obra pouco ou nada produtiva. Os valores dessa “família” giram em torno da produtividade econômica e toda a força repressiva que se verifica sobre as crianças e os jovens, nada mais é do que o resultado da ansiedade causada pelo futuro incerto. Nesse cenário opressor, sobram os mais velhos, como aqueles que não têm mais força de trabalho e nada mais podem produzir. A família os relega ao que de fato lhes cabe em tal sistema. Sua realidade passar a ser “incômoda”, como sugere Simone de Beauvoir. Incômoda para a mão de obra produtiva e incômoda, afinal, para eles mesmos. Que lhes resta? Às vezes, um ou outro trabalhinho marginal; mas, na verdade, quase nada. Desligados do comunitário, procuram, ansiosamente, pela comunidade que lhes fora um dia prometida. Quem sabe, essa comunidade perdida não poderia ser reencontrada na televisão? Muitos velhos me dizem que a televisão é a sua única fonte de satisfação. Mas, não é bem assim. Eles esperam, quase sempre, que a televisão (“trabalho” improdutivo) venha a ser o elo comunitário entre eles e o resto dos que vivem na mesma casa. Claro. Que outra linguagem poderia aproximar aqueles que não ganham dinheiro, do resto das pessoas que, afinal, demonstram a sua essência nas cifras? Quem já não teve a experiência de ser solicitado a se sentar 94 Vozes da distensão política: 1978-1983 do lado de uma pessoa de idade para ver um jornal, uma novela, um filme? A televisão passa a ser uma espécie de armadilha, que a pessoa idosa se utiliza para tentar estabelecer com os outros o elo perdido. Ela provê a nova linguagem da comunicação, dá-lhe o repertório para o diálogo, e estabelece certa possibilidade de participação, embora superficial e, até certo ponto, ilusória. A maior satisfação que o idoso pode tirar dessa experiência é a de se igualar aos outros, numa atividade que lhe é permitida pelo sistema e que, pelo menos por algumas horas, confunde-se com a atividade dos que não são velhos. E, assim, mesmo em face da fragilidade de todos os outros elos, espera-se uma certa recuperação do comunitário. Assim, a televisão só tem significado, na medida em que se torna de meio de comunicação de massa que é, num meio de comunicação grupal, num metameio, talvez se pudesse dizer. Torna-se numa desculpa para a verdadeira satisfação humana que não é mais o que se passa no pequeno vídeo, mas para o que se passa no espaço, no qual alguém mais do que o velho, também, afinal, se encontra. Dessa maneira, diminui de importância o conteúdo do programa. O idoso pode pretender gostar do que jamais gostou apenas para estar ao lado dos que gostaria de amar. Senta-se na frente dos desenhos inanimados, vê baboseiras infindas, acompanha os altos e baixos da economia sem paixão. Sua paixão é tentar uma vez mais a experiência do encontro humano, o qual lhe é negado, diariamente, por causa da pressa e da ansiedade dos negócios e da corrida selvagem em busca do “salve-se quem puder”. Mas, no fundo, os idosos sabem que não há muito para esperar. As pessoas que estão na sala vão se retirando aos 95 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade poucos. Vem o sono e com ele a insônia. Na solidão que se torna imensa, no pequeno quarto, ainda lhe resta o radinho de pilha que lhe traz alguma música e lhe povoa a noite de companheiros substitutos. O que estou querendo dizer é que, na sociedade individualista, cada um vê televisão, ouve rádio, lê jornal ou revistas, folheia livros, segundo os seus interesses pessoais e que, numa tal sociedade, nem poderia ser de outra maneira. É por isso que o idoso não gosta de olhar para o aparelho de TV sozinho. Não tem muita paciência para ler. Quando muito, vai ao jornal para tentar saber o que vai pelo mundo e, quem sabe, num momento propício, arriscar uma opinião. Liga o seu radinho como um consolo último. Como consequência desse estado de coisas, em geral, somos tentados a fazer o jogo do sistema, e perpetuar as divisões que ele nos impõe. Uma vez que a estrutura individualista prevê o desenvolvimento do individualismo, nada melhor do que levantar os muros das divisões e fortalecer os divididos. Assim, entre os resultados de tal política, começam a surgir os grupos individuados. Se os velhos não nos interessam como seres humanos, improdutivos que, em geral são, bem que poderíamos organizá-los em comunidades separadas, de tal maneira, que nosso interesse parecesse a eles salutar e que não lhes soasse como segregação. Na verdade, estamos nos livrando deles. E fazendo com que creiam que os estamos amando. Que tal ampliar as muralhas e lhes inventar uma televisão “para a terceira idade”? Não acredito que se possa resolver a questão da vida comunitária a partir de uma teoria da vida comunitária. Nem que se resolva a difícil tarefa da integração do idoso, 96 Vozes da distensão política: 1978-1983 nessa nova sociedade, apenas modificando a programação das tevês ou criando, digamos, uma imprensa do idoso. Não que essas coisas não possam ter o seu lugar. Mas, não para resolver o problema fundamental do individualismo. A primeira coisa que se pode esperar é que as pessoas envolvidas com política comecem a se dar conta da necessidade da modificação das nossas estruturas sociais, políticas e econômicas. Em que pese não termos experimentado ainda a alegria de uma vida comunitária verdadeira, nada nos impede de sonhar com ela, de tentar estruturar utopias e, por fim, de fazer experiências que nos levem a arriscar aquilo que ainda não conhecemos, historicamente; mas, desconfiamos que seja viável na prática. 97 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 98 Vozes da distensão política: 1978-1983 16. Pesquisas em tempo de eleições17 Michel Thiollent Com o fim do bipartidarismo, a complexidade do pleito e o procedimento do voto vinculado, manifestam-se grandes expectativas a respeito da reação do eleitorado. Tal fato está sendo acompanhado pela sistematização e a intensificação do papel da pesquisa de opinião. A pesquisa de opinião não pode ser tratada como simples técnica de sondagem. Vem desempenhando uma acentuada função política dentro do mecanismo eleitoral e é indissociável das práticas dos meios de comunicação de massa. A pesquisa eleitoral funciona em dois níveis a serem distinguidos: a) o do assessoramento particular dos candidatos ou partidos e b) o da campanha eleitoral maciçamente “orquestrada” pelo MCM antes da aplicação da Lei Falcão. 17. BOLETIM INTERCOM nº39. São Paulo: Intercom, set/ out/1982. p.05-07. Bimestral. 99 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade No primeiro caso, a sistematização da pesquisa de opinião opera como meio de afinar o marketing político. Os resultados são utilizados, exclusivamente, pelos candidatos ou partidos, clientes das empresas de pesquisa. O preço dessas pesquisas, desproporcional aos seus intrínsecos méritos, chega a ser exorbitante. Uma pesquisa para “candidato a governador num Estado de porte médio” era estimada em 8 milhões de cruzeiros em julho de 1982. Além disso, “recomendações e estratégias não saem por menos de 10 milhões”. (Vejam o artigo de Célia CHAIM, “O grande negócio das eleições”, in Gazeta Mercantil, Administração e Serviços, nº 23, julho de 1982, p.8-12). Nota-se, de passagem, que o faturamento das pesquisas de opinião, feitas em poucos dias ou semanas supera, em muito, os orçamentos anuais de fundamentais pesquisas em ciências sociais. Numa noite de Carnaval, gasta-se mais do que no restante do ano em matéria de cultura popular. Numa véspera de eleição, gasta-se mais do que no restante dos quadriênios em matéria de pesquisa social. Cada campo tem seus “bicheiros”. As pesquisas de opinião não estão ao alcance de todos os partidos de oposição ou de todos os candidatos. As pesquisas representam uma das despesas mais importantes na campanha eleitoral. Segundo a mesma fonte citada acima: na campanha, incluindo material promocional e viagens, 2 bilhões de cruzeiros são necessários para a eleição de um governador, 1 bilhão para senador, 60 milhões para deputado federal e 30 milhões para deputado estadual. A partir desses números, vê-se que a prática do marketing político pode dificilmente ser considerado como instrumento de democracia. No segundo contexto, o papel da pesquisa de opinião, encaminhada por jornais ou entidades particulares, não 100 Vozes da distensão política: 1978-1983 deve ser considerado em si próprio, e sim, em estreita relação com a organização da campanha pelos meios de comunicação. É preciso destacar os debates entre candidatos na televisão antes da aplicação da Lei Falcão (sobrevivência do passado). A função de tais debates tem sido muito importante na formação das preferências nos diversos Estados. A publicação dos resultados de pesquisas-relâmpago, administradas logo depois desses debates, desempenha um papel na “corporificação das preferências. Em função de certas táticas eleitorais, os meios de informação podem destacar que x ou y “venceu o debate” ou tem maiores chances de liderar a votação. Os resultados das perguntas sobre preferências podem ser “manipulados’ por meio de notícias, nas quais não é destacado o número de indecisos ou o eventual rebaixamento devido ao voto vinculado. Além do mais, a representatividade das amostras de pesquisas-relâmpago, feitas na hora, é mais precária do que a das amostras de pesquisas mais abrangentes. As perguntas relativas ao fato de saber “quem venceu o debate” são extremamente manipuláveis, tanto ao nível da situação da entrevista quanto ao da interpretação dos resultados. A noção de “vencer o debate” é vaga e sujeita a várias interpretações. Por isso, é chave na administração dos efeitos de persuasão. Por parte de certos grupos políticos influentes, na imprensa, a utilização das notícias sabre a questão do “quem venceu” está mais relacionada a certas jogadas diretas, a fim de promover o candidato x, ou indiretas: promover, momentaneamente, o outsider z para enfraquecer o principal adversário y do candidato x apoiado pelo grupo considerado. Esse tipo de jogada tende a se desenvolver justamente na nova conjuntura diferente do bipartidarismo. Com a 101 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade presença de cinco partidos, a pesquisa de opinião se torna mais necessária para “dosar” as diversas operações táticas, de modo a maximizar as chances. O problema é complexo, na medida em que, entre os partidos de declarada oposição, existem algumas opções intermediárias que escapam ao dilema situação/oposição. Além do que precede, levando em conta a presença de partidos novos, sem eleitorado pré-determinado, e muitos jovens votando pela primeira vez, o sistema de pesquisa e informação adquire uma função que não se limita à influência ou à transferência dos eleitores de um partido a um outro, e sim à constituição do próprio eleitorado. Nesse intenso trabalho de formação das preferências, surgiu um “novo” personagem: o “indeciso”. Podemos considerar como sendo altamente positivo e melhor do que nas eleições anteriores, o fato dos meios de comunicação de massa terem destacado a grande proporção de indecisos em setembro. Isso relativizava as afirmações sobre quem iria vencer ou ser vencido. Agora, as pesquisas de circulação restrita focalizam a questão de saber como “conquistar” ou “seduzir” esses “indecisos”, dentro da prevalecente visão mercadológica. O mecanismo constituído pelo debate, na televisão, seguido pela pesquisa de opinião, cujos resultados são utilizados corno instantâneo feedback das performances dos candidatos no vídeo, possui um potente fator de espetacularização da vida política O verbo é ação sobre o eleitor e o cômputo das vagas reações verbais de uma amostra às vagas retóricas dos candidatos é utilizado a consolidar os efeitos comunicativos em tendências. Tudo isso abre um campo de aplicação para pesquisas especializadas em pragmática da comunicação. 102 Vozes da distensão política: 1978-1983 Além dos efeitos imediatos de promoção de candidatos, a pesquisa, no seu contexto comunicativo, exerce um efeito de mais longo alcance ao nível da representação da vida política. É muito conhecido e fato de que, na chamada “cultura de massa”, em particular aquela difundida pela televisão, as pesquisas de audiência desempenharem um papel conformizador na concepção dos programas e contribuírem para rebaixar seu nível. Na cultura política, é provável que haja um fenômeno semelhante. As pesquisas feitas dentro da concepção do marketing político tendem a rebaixar o nível da argumentação e a fazer depender as escolhas coletivas da capacidade verbal ou mímica dos candidatos, em vez de uma efetiva abordagem dos problemas da coletividade e de sua mobilização. Da mesma forma que as práticas ibopianas contribuem para uniformizar as telenovelas, as práticas gallupianas podem tender a uniformizar a propaganda e outras práticas eleitorais dos diversos partidos. Muita gente acha que toda essa concepção é “moderna” e “progressista”; mas, no fundo, trata-se de uma simples extensão da “moral” do comércio ou da mercadoria no campo da política. Alguns dizem que a pesquisa de opinião promove os ideais da democracia ocidental. As decisões resultariam da preferência da maioria. Segundo a Gazeta Mercantil, Administração & Serviços: “Há 40 anos, o IBOPE ouve pessoas de todas as classes sociais, fazendo com que elas influam nas decisões” (número citado, paina 13). É preciso desmistificar esse tipo de ilusão. Devemos reconhecer que a representação mercadológica da vida política, em que vários partidos disputam os eleitores com os mesmos métodos com que os fabricantes 103 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade de sabonetes disputam o mercado, pode ser julgada superior à representação monolítica e autoritária própria dos regimes de força. No entanto, essa representação não deve ser confundida com o que poderia ser uma realidade democrática. Isso constitui mais um importante problema a ser estudado do ponto de vista da comunicação. As pesquisas de opinião e sua exploração informativa formam um círculo, no qual é constantemente “reciclada” a opinião pública em que se propagam elementos daquela representação da vida política mais “democrática” que, aparentemente, todo mundo tem vez nas decisões. Tal representação tende a minimizar a permanência dos mecanismos antidemocráticos e poder econômico-político das pequenas minorias. Numa próxima campanha eleitoral, se houver findada a Lei Falcão, todos os mecanismos aqui apontados irão se desenvolver até o dia da eleição. Existem alternativas? No sistema de pesquisa e informação vigente, os argumentos das lideranças são moldados e divulgados, a partir das opiniões das massas passadas no nível da doxocracia num clima de bastante passividade. Como alternativa, talvez, seja possível planejar, em escalas mais limitadas, certas formas de pesquisa-ação associada à propaganda político-partidária. O PT de Santos parece ter experimentado algo nesse sentido. No futuro, com mais preparo, talvez, sejam possíveis novas formas de intervenção. 104 Vozes da distensão política: 1978-1983 17. A derrota da farsa18 Carlos Alberto Medina, Maria Helena Khuner e Marco Morel Carlos Alberto Medina Total silêncio nos MCMs quanto aos detalhes. Uma informação superficial da ocorrência, uma efetiva incompreensão da reação popular numa campanha eleitoral, uma autoconfiança imperialista da TV Globo. Para compreendermos o fenômeno, temos de examinar alguns fatos anteriores. A propaganda da reunião da Quinta da Boa Vista foi colocada na TV em época em que a Lei Falcão comandava o espetáculo. Seu anúncio, portanto, era de uma festa popular, similar a outras que têm ocorrido, naquele local, sempre com presença maciça de público. Havia, portanto, 18. BOLETIM INTERCOM nº40. São Paulo: Intercom, nov/ dez/1982. p.03-09. Bimestral. 105 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade uma manipulação não expressa, a de transformar aquela reunião no comício final do PDS, no Rio, com a presença do Presidente Figueiredo. As tentativas de burlar a Lei Falcão, por parte do candidato do PDS ao governo, já eram notícias, como a publicidade de seu livro sobre o Rio, utilizando-se de imagens e música de sua propaganda eleitoral. Esse aspecto de “burlar” já era do domínio público, junto com a enorme quantidade de dinheiro aplicada na campanha, com outdoors, cartazes e outras parafernálias. Mas, a população pobre, o chamado “povão”, já tinha se decidido, nas prévias eleitorais, pelo candidato da oposição que se expressava com “credibilidade”. A ocorrência da Quinta sem de ser vista dentro deste contexto. A massa popular ali presente tinha o seu candidato e estava ali para participar de um espetáculo gratuito, a que estava acostumada. No momento em que verificou ser objeto de uma manipulação, reagiu com violência verbal em coro num comportamento estranho ao evento. Assim, usaram o lago ali existente para tomar banho – em um dia de extremo calor – e para jogar água sobre os políticos que ali se apresentaram para discursar. Assim, as vaias e as frases lançadas contra a esposa do Presidente, D. Dulce que, ao ser apresentada pelo locutor – membro da equipe do programa diário vespertino da TVS –, “e agora a gatinha...”, foi chamada por nome que é aplicado a mulheres que usam os homens procurando tirar vantagens destes. E quando o Presidente e o candidato a governador, pelo PDS, apresentaram-se, foram estrondosamente vaiados, tiveram suas mães xingadas e não conseguiram falar seus discursos, tal a força em que era gritado 106 Vozes da distensão política: 1978-1983 o nome do candidato adversário, Brizola. A massa populacional presente bloqueou, também, qualquer outra interpretação possível. Não há como organizar uma manifestação desse tipo – vaias ao Presidente – com um número tão elevado de pessoas. Geralmente, quando isso ocorre, são grupos pequenos, bem localizados, que tentam tumultuar. A vaia da Quinta foi uma manifestação coletiva global. E não seria possível dizer ser ela obra de “agitadores”. A violência verbal foi de tal ordem que o silêncio se impunha, silêncio este que é hoje de palavras e imagens. Quando todos esperavam que a TV Globo mostrasse, no “Fantástico”, as cenas do espetáculo da ‘Quinta’, o que se viu foi menos de um minuto de transmissão de imagens que, mesmo assim, burlaram a Lei Falcão, mostrando o candidato a governador ao lado do Presidente. Somente, no dia seguinte, é que os jornais noticiaram o que havia ocorrido, obrigando a população a, novamente, ficar a reboque dos fatos. Pois, um fato é certo hoje: a televisão tem a importância da comunicação imediata, colocando o espectador dentro do acontecimento, no momento mesmo em que este acontece ou imediatamente depois. Por isso mesmo é um instrumento de comunicação altamente arriscado para o poder. A Democracia nos meios de comunicação é um dos elementos a serem alcançados, sob pena de vermos existir duas formas de exercício do poder. Uma autoritária sobre a TV e a outra democrática, em nível de material impresso, cujo ritmo de acesso é mais barato e pluralista. A festa da ‘Quinta’ era notícia. A vaia era material de transmissão imediata. Mas, tornou-se segredo de Estado. 107 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Quem lá não esteve, não pôde participar com sua emoção e seu sentimento, pôde apenas, no dia seguinte, usar sua inteligência e razão. A força da TV está exatamente nesta capacidade de pôr em ação o ser humano todo em seus afetos e suas capacidades intelectuais. Como ocorreu nos últimos dias de março de l964, no Brasil, ou na invasão militar russa na Tchecoslováquia, em 1968, ou na primeira descida do homem à Lua, ou quando do assassinato do jornalista, na América Central, ou da guerra do Vietnã e da fuga dos norte-americanos, em helicópteros, de Saigon ocupada. O impacto da imagem, no momento da ocorrência, permite que cada pessoa forme sua opinião a respeito do assunto, donde o surgimento de uma opinião pública com domínio dos dados de fato. A vaia na ‘Quinta’, se mostrada na TV, teria tal impacto que, certamente, poderia modificar o rumo dos acontecimentos eleitorais. Mas, para nós, bem mais significativa da discussão do instrumento de comunicação que é a televisão. No Brasil, estamos distantes das potencialidades dessa tecnologia. Estamos ainda vivendo o domínio do sistema da Rede Nacional, que é antidemocrática, mais ainda, pela ênfase nas programações pré-elaboradas em vídeotape, em que o controle das imagens fica a cargo de um grupo seleto. A TV a cabo, par exemplo, tem possibilidades democráticas de participação que podem romper o predomínio das Redes. Mas, sobre isso não temos uma luta por uma legislação adequada, nem vemos qualquer dos governadores eleitos se preocuparem com um problema de tal envergadura em suas declarações. É sabido que a tecnologia eletrônica é o nosso futuro. Mas, no Brasil, ainda vivemos uma realidade autoritária 108 Vozes da distensão política: 1978-1983 que quer gerar as imagens que considera convenientes para o grupo no poder. Tem, entretanto, como resposta concreta, a vaia da ‘Quinta’, que mostra um povo que sabe o que quer. E este povo pode ser considerado pelas autoridades constituídas como não merecedoras de sua confiança. Aqui, lembro-me de uma declaração de Brecht, em 1953: “Aconselho ao Partido e ao Governo de se desembaraçar desse povo e procurar um outro”. O povo da vaia da ‘Quinta’ é o exemplo de um povo que quer os seus direitos e suas liberdades de expressão. Maria Helena Khuner Geral. De toda a população do Rio de Janeiro, que se mobilizara ostensivamente na escolha de seus candidatos e, agora, acompanhava, ansiosa, os resultados. Mas estes, aos três dias de urna apuração que se previra acabar em cinco ou seis, apresentavam apenas um quadro caótico, com números, falas, interpretações e depoimentos desencontrados e contraditórios, que suscitavam uma visível e generalizada inquietação. O Tribunal Regional Eleitoral não liberara ainda nenhum boletim oficial; o Jornal do Brasil e a Rádio Jornal do Brasil, que haviam montado seu próprio sistema de apuração, anunciavam como vencedor Leonel Brizola, creditando-lhe 34,1% dos votos contra 29,5% do candidato do Governo, Moreira Franco (o que confirmava as prévias eleitorais e pesquisas feitas pelo IBOPE e o GALLUP); os delegados e fiscais dos partidos, que acompanhavam as apurações e iam registrando seus dados, confirmavam essa 109 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade vitória, que ia sendo reconhecida pelos demais partidos (PMDB. PTB e PT) e divulgada por todas as emissoras de rádio e TV (Rede Bandeirantes, Rádio Tupi etc.) o 3º candidato, Miro Teixeira (PMDB), enviava telegrama a Brizola: “Receba meus cumprimentos pela inequívoca vitória”. No entanto... em toda a Rede Globo (TV Globo, jornal O Globo e Rádio Globo) divulgavam-se, insistentemente, boletins que davam a vitória ao candidato do Governo ou mostravam um virtual empate que, se desse diferença pró-Brizola, seria apenas de 4 ou 5 mil votos; o 2º (?) colocado, Moreira Franco, declarava: “Ainda é cedo para fazer previsões. Tudo indica que o resultado virá depois de uma grande disputa”. E afirmava que “sairia vitorioso por uma margem de 70 mil votos”; afirmação essa que coincidia com projeções do âmbito do governo federal, que “ainda consideravam possível a vitória de Moreira Franco... por uma diferença de apenas 1% dos votos” (Coluna do Castello, JB, 19/11); ou com declarações do coronel Venturini, em entrevista à rádio, no Dia da Bandeira, considerando o Rio de Janeiro entre os estados em que o Governo ganharia a eleição. Em quem acreditar? O clima tornara-se mais tenso desde que a Assessoria de Imprensa do PDT divulgara nota denunciado “irregularidades no lançamento dos resultados das apurações nos mapas oficiais”, ao mesmo tempo em que os delegados dos partidos reclamavam da “deficiência de informações” e pediam “acesso às salas de totalização e ao computador”. 110 Vozes da distensão política: 1978-1983 Enquanto isso, na TV Globo, um juiz eleitoral negava a presença de elementos armados, em trajes civis, nas salas de apurações – fato presenciado por muitos e denunciado, publicamente, por uma repórter. E Carlos Eduardo Novaes, com sua ironia, comentava: “Será que, além do voto, a apuração agora também é secreta?” À boca pequena, nas casas, nas ruas, em todos os lugares, cresciam os boatos e murmúrios: “Brizola ganha, mas não leva... Os militares não vão deixar que tome posse” etc... E o humor carioca não deixa de se fazer sentir: o computador da Globo que teimava em apontar a dianteira de Moreira Franco, contrariando todas as prévias, pesquisas, projeções e demais apurações, ganhou logo um apelido: “Moreirão”... Mas... seria cômico se não fosse sério. E a seriedade desses fatos não escapava a ninguém, mantendo a tensão que levou à fala do próprio Brizola: “Os boletins divulgados por uma emissora de TV desmerecem o eleitor do Rio de Janeiro. Peço serenidade a todos que nos acompanham. Que não se deixem inquietar pelas notícias que estão sendo veiculadas porque, ao final, a vontade do povo será soberana e respeitada”. Reação: as denúncias Com o desenrolar dos fatos, vai “clareando um panorama mais cheio de dúvidas políticas [...] que de dúvidas reais” (Coluna do Castello, JB, 19/11). Brizola reúne a imprensa estrangeira, no Hotel Glória, e denuncia: “A essa altura e com as avaliações que realizamos estamos confiantes que venceremos com diferença de mais de 2013 mil vo111 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade tos... Os indícios de irregularidades são muitos e verificamos que 25% dos mapas contêm imperfeições e vários são preenchidos a lápis... Confiamos na lisura dos juízes; mas, nesse clima tumultuado que se criou, no RJ, tememos que a fraude venha a se desenvolver”. No mesmo dia, em entrevista à TV Globo, afirma: “Só a fraude ameaça nossa vitória”. Sua denúncia provoca reações indignadas: “Não vi e não li a entrevista [...], mas acho que Brizola é um incendiário” (Délio Jardim de Matos, Ministro da Aeronáutica): sua denúncia é “impatriótica”, (Coronel Venturini); é “chantagem sobre a opinião pública, o TRE e o próprio processo democrático... demonstração de desespero... Se tiver prova da fraude, que venha a público e apresente (Moreira Franco, na TV Globo. Para ele, as apurações estão “em ritmo normal” e “é ainda prematuro apontar o futuro governador fluminense”...). No entanto, fatos novos, vindos à tona, vão permitindo desmistificar tais afirmações: aos trabalhos de computação do JB somam-se os do grupo de professores da PUC, contratados pela assessoria de Brizola para o mesmo fim, com idênticos resultados; os partidos, PMDB, PDT e PT pedem ao Presidente do TRE a realização de uma auditoria técnica na Proconsult – a empresa encarregada da computação oficial – iniciando-se, assim, o processo que culminaria com a descoberta de seu “erro técnico” – processo, cujos detalhes, cada vez mais surpreendentes, vão comprovando o que toda opinião pública já suspeitava... Em suma, em termos de fatos, a 21/11, tem já Brizola condições de assumir, publicamente, a condição de governador eleito do Estado do Rio de Janeiro, apesar dos adjetivos – “carbonário”, “incendiário” – que lhe são seguidamente dirigidos por algumas fontes militares ou das 112 Vozes da distensão política: 1978-1983 declarações explícitas do General Euclydes Figueiredo”: “A eleição de Leonel Brizola é um sapo que a gente engole, digere e na hora certa expele (?...). E, enquanto ainda acompanhamos, entre estarrecidos e incrédulos, os detalhes sobre a Proconsult, a denúncia do Senador Roberto Saturnino, na tribuna do Senado, vai permitindo entender melhor o que se passou, especificamente, em termos da Rede Globo e seu papel em todo esse processo. A desinformação a serviço de...? Após comentar a declaração do General Figueiredo e relatar “a manipulação dos resultados” feita pela Rede Globo, o Senador Roberto Saturnino acrescenta: “Não há precedentes numa campanha de desinformação da opinião pública a respeito dos resultados da eleição como esta que foi feita pelo Sistema Globo. O que ele fez é uma vergonha para o jornalismo brasileiro; é uma vergonha porque computavam só os resultados que favoreciam aos candidatos do PDS e guardavam, nas gavetas, os boletins que favoreciam o candidato do PDT, para que o do PDS pudesse sempre ser apresentado na frente”. O que se passava fica claro, a partir de uma carta de Iram Frejat, Editor da ‘Cidade’ de O Globo, coordenador dos trabalhos de apuração das eleições para o jornal – carta em que se comprova a lisura (mas, também, uma certa ingenuidade...) dos profissionais empenhados nesse trabalho:”... A partir das 16h, oito horas após a abertura das urnas em todo o Estado, começamos a nos preocupar, seriamente, com a falta de boletins da Capital, em que 113 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade tínhamos Juntas Apuradoras a apenas dois quilômetros da sede do jornal... Às 19h, o Chefe da Redação, o Gerente do CPD e eu fomos convocados pelo Vice-Presidente do Globo, João Roberto Marinho, para explicar as razões do atraso dos boletins do Rio – a esta altura, por telefone, ônibus e aviões, chegavam dezenas e dezenas de boletins do interior ( – grifo nosso), dos mais próximos aos mais longínquos municípios do Estado... Ao que parece o próprio TRE recebeu os boletins da mesma forma, pois, desde seu primeiro boletim oficial, Moreira Franco está à frente para governador – (O Globo, 25/11). Ou seja, como assinalou o Senador Roberto Saturnino, aí se reconhece “uma certa incompetência na coleta dos dados que teria resultado naquela apresentação deformada”. E acrescenta aceitar que o Senhor lram Frejat tenha sido iludido por seus superiores, que lhe traziam aqueles dados; mas que, “não pode ter havido um simples equívoco, durante tanto tempo e, afinal de contas, cometido por equipe tão numerosa” (400 universitários do Grande Rio, 300 do interior, vários repórteres e redatores, 320 digitadores, segundo a mesma carta de Iram Frejat). E conclui: “Havia um propósito e, felizmente, esse propósito se frustrou. Eu não sei qual seria, não tenho a menor ideia e não quero especular sobre ele, mas havia, porque seria inconcebível tomar-se o que foi feito pelo Sistema Globo como mero equívoco ou algo que tenha ocorrido por uma coincidência”. Apesar de tudo, a Rede Globo manteve até domingo (21/11) tal conduta, mudando apenas quando todos os fatos, acima apontados, já não mais permitiam dúvidas e o escândalo da Proconsult e seu “lamentável erro” foram 114 Vozes da distensão política: 1978-1983 assumindo o papel de bode expiatório (ou cortina de fumaça?) de toda a questão. Revendo esse histórico, poderíamos concluir com Roberto Saturnino: “Estou convencido de que nada disso aconteceu por acaso. Nem os erros da Proconsult, nem a manipulação de dados efetuada pela organização Globo. Mas, por enquanto, ainda não quero avançar nada mais sobre a questão. Só posso dizer que vamos chegar a desvendar toda essa trama. É questão de tempo”. Mas, talvez, nem de tanto tempo assim... O que ocorre a todos é uma mesma pergunta: quem e o que estaria por trás de toda essa armação da Rede Globo e Proconsult? E, se no jornalismo brasileiro há os que se prestam a qualquer papel por interesse em servir ao poder, há, também, os que não só denunciam fatos, como não hesitam em dar nome aos bois, como o faz Carlos Castello Branco, em sua memorável coluna, no JB de 28/11: “Não há dúvida de que tudo isso configura a armação de uma tentativa de fraudar as eleições no Rio de Janeiro... Resta saber se houve, por trás dos erros técnicos, má fé ou dolo... Como se sabe, Governos da Revolução têm sido surpreendidos por ações terroristas oriundos de seus bolsões radicais. Na face do ex-presidente Geisel foram atirados dois cadáveres em São Paulo. E uma sucessão de bombas, cujo ponto crucial se localizou no Riocentro, tentou – desestabilizar o Governo Figueiredo. Ambos os presidentes souberam reagir à provocação e restabelecer suas autoridades nas áreas contaminadas. A tentativa de fraudar a eleição Rio de Janeiro é ação comparável e cabe à Justiça, e não propriamente ao Governo, diligenciar no sentido de investigar as denúncias...” 115 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Dos fatos, o aprendizado permanente Agora que as peças desse mosaico já nos permitem perceber mais, nitidamente, uma figura, tal percepção possibilita igualmente levantar algumas considerações: do ponto de vista político-social, as eleições já representaram, em si, uma ascensão do poder civil, reafirmando o projeto democrático de abertura por ele impulsionado; com os fatos vistos, comprova-se a fragmentação, cada vez maior, do radicalismo militar, confrontado com essa pressão ascendente; evidencia-se, também, cada vez mais, a importância dos grupos sociais de pressão: o esquema montado não se desarmou apenas pela iniciativa isolada de Leonel Brizola, mas por configurar-se uma autêntica reação popular, mobilizada a partir de vários setores representativos: os políticos e partidos – através de seu reconhecimento público da vitória e da atuação vigilante de seus delegados e fiscais; os técnicos, sobretudo ligados à informática e à comunicação, que compuseram os grupos de assessoria e não só identificaram os “erros” como mobilizaram a opinião pública para o que se passava; essa mesma opinião pública, que passou a manifestar-se não só em “cobranças” diretas à Rede Globo, como no descrédito de que passaram a ser alvo: no momento atual, a venda do jornal O Globo caiu em 14% e a do Jornal do Brasil subiu em 11%... Esses fatos revelam, por sua vez, a ascensão do próprio social e uma já inseparável ligação político-social: foi a própria base social que se manifestou, diretamente, através de seus grupos representativos, corroborando mais uma vez as atuais tendências à associação organizada e à participação – tendências que foram, aliás, apelos do próprio Brizola e estão entre os desafios de seu futuro governo. 116 Vozes da distensão política: 1978-1983 Do ponto de vista dos mecanismos de atuação, há que se refletir sobre a significação real implícita na atitude da Rede Globo: apurando e divulgando, de início, só votos do interior do Estado, onde Brizola perderia, preparariam a opinião pública para uma vitória de Moreira Franco, a ser legitimada através da manipulação de votos nulos e em branco pela Proconsult, para que os resultados finais computados garantissem o resultado visado. Atitude que evidencia, mais uma vez, o papel da informática e da comunicação como meios de “fazer a cabeça” de toda uma população: o “admirável mundo novo”, que estaria profetizado a existir, a partir de “1984”, mostra-se, assim, ameaçadoramente, possível. O que nos obriga a atentar para os fatos que estão apontando as formas mais eficientes de reagir a essa manipulação interessada e manipuladora: com uma ética da informação e da comunicação, de que deram expressivo exemplo, os profissionais que se empenharam em conhecer e divulgar a verdade dos fatos; com aquela ascensão do social e seu maior peso político; com o progressivo movimento de organização e participação pelos quais se expressa a reação popular; em suma, com um progressivo aprendizado político que vá dando consciência de que, como diz Carlos Castello Branco, “afinal, há responsabilidade a ser cobrada dos que venceram e dos que perderam a disputa eleitoral. É claro que venceram as forças que representam, em conjunto, 75% do eleitorado brasileiro. Mas, o poder continua nas mãos dos que obtiveram 25% dos votos”. 117 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Marco Morel O comportamento dos jornais diários, no Rio, em relação ao candidato a governador, vitorioso, Leonel Brizola, merece um pouco das atenções daqueles que se preocupam em pensar como os conflitos políticos se dão através da imprensa. Durante a campanha e na apuração, a “grande imprensa” carioca não só refletiu os diferentes matizes de comportamento das classes dominantes, como foi um importante instrumento de luta não só destas, mas de grande parte da população. Para elucidar, nada melhor que um resumido retrospecto. Campanha A campanha de Brizola só contou com um veículo próprio cerca de um mês antes das eleições: o tablóide Momento. E em termos de apoio declarado teve, ao seu lado, uma, digamos, facção do semanário Pasquim. O “surto brizolista”, surpreendendo inclusive os próprios correligionários, começou a se alastrar no velho estilo boca a boca. Mas, o momento deflagrador foi mesmo a participação de Brizola nos meios de comunicação de massa, basicamente nos debates pela televisão, o qual empolgou com seu jeitão irônico, emotivo, “carioca”, “flamenguista”... O sempre áulico O Globo, inicialmente, deu discreto, mas consistente apoio a Miro Teixeira, PMDB, e uma velada simpatia por Sandra Cavalcanti, PTB. E, na reta final, o Dr. Roberto Marinho soltou esfuziantes foguetes pró Moreira Franco, do PDS. Brizola e o PT mereceram omissão ou ataque deste órgão da imprensa. 118 Vozes da distensão política: 1978-1983 Quanto ao Jornal do Brasil, inicialmente, tinha comportamento semelhante ao seu “rival”. Ou seja, também apoiava Miro e sorria para Sandra. E, na reta final, deu destaque para os que estavam à frente nas pesquisas eleitorais: Moreira e Brizola. O comportamento do JB é, de um lado, o do dissidente que perdeu o canal de televisão e, de outro, o de setores das classes dominantes que apostam no projeto da ‘abertura’. Esse órgão conseguiu ainda a simpatia dos eleitores e do próprio governador eleito no Rio. O Dia, jornal de maior circulação diária no Rio, tido como aquele que “faz a cabeça do povão”, também teve seus altos e baixos. Alardeava com gosto e vontade a candidatura de Miro Teixeira, enquanto os demais candidatos eram omitidos ou escondidos entres as manchetes sangrentas e sexualizantes. Só que, na famigerada reta final, a briga político-ideológica entre os chaguistas e a chamada esquerda organizada, no PMDB, fez com que o governador Chagas Freitas retirasse o apoio do jornal para seu afilhado Miro. E abrindo espaço para Moreira Franco. O lance, como se diz, pegou mal e correu na boca do mesmo povão. O semanário Hora do Povo que, inicialmente fez coro com JB e O Globo, em favor de Miro Teixeira, acabou praticamente sozinho com este, acompanhado da outra facção do Pasquim. Na apuração, a atuação das “forças dissidentes”, basicamente Rádio e Jornal do Brasil, em dobradinha com o grupo Bandeirantes, foi importante. Mas, o que começou mesmo a deflagrar as denúncias contra o “Riocentro Eleitoral” foi, mais uma vez, a aparição de Brizola na TV Globo. Intrujão e surpreendente, Brizola trocou alfinetadas com jornalistas vinculados ao poder oficial. Para se ter 119 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade urna ideia de como se desenvolveu esse debate, através dos jornais diários, nada melhor que algumas citações: No dia 20 de novembro, quando os resultados já deviam estar apurados, a manchete do JB era: “Vantagem de Brizola é de 119 mil votos”, enquanto que O Globo ostentava duas chamadas na primeira página em relação ao caso. A primeira: “Délio diz que Brizola é incendiário”. A segunda trazia um lead longo e confuso (o que foge ao hábito deste jornal), misturando cifras do interior, capital e periferia, destacando percentagens de zonas eleitorais isoladas e não afirmando quem estava na frente. Nesse mesmo dia, numa notinha da página oito do mesmo O Globo, o candidato ao governo pelo PT, Lysâneas Maciel, dava seu recado: “o jornal O Globo, a TV Globo e a Rádio Globo insistem em mistificar a opinião pública através de evidente manipulação de resultados”. E, nesse incerto ritmo, a coisa foi indo. Até que no dia 26/11/82, o Jornal do Brasil destacou: “TRE admite que errou boletins e vai reprogramar computador”. Nesse mesmo dia, O Globo noticiou apenas fatos corriqueiros, enquanto O Dia, em letras garrafais: “2 Cadáveres no Carrinho de Mão”, para dizer, na página 10, que Brizola faria uma equipe de transição... No dia seguinte, 27/11, mais um pedaço da ponta do iceberg foi aparecendo, segundo o JB: “Proconsult pressionou apuração do JB”. A suspeita da empresa encarregada da computação dos votos, no Rio, tentou, ostensivamente, realizar pressões políticas e econômicas, querendo induzir a empresa jornalística a mudar o rumo de seus noticiários. A manchete de O Globo, nesse mesmo dia, beira o surrealismo: “TRE admite erros, mas diz que os números estão certos”. A Falha de São Paulo, do dia posterior, 28/11, era bem 120 Vozes da distensão política: 1978-1983 mais explícita, contendo um artigo intitulado “O Novo Riocentro”, em que se dizia que “Lancetado pela imprensa escrita, abriu-se, finalmente, o abscesso que começou a ser identificado tão logo começaram as apurações no Rio de Janeiro. Conclusões Os dois jornais de maior circulação, O Dia e O Globo, não tiveram seus candidatos eleitos. O Jornal do Brasil, bem comportado e, por vezes, irônico, porta-voz de setores burgueses, manteve, durante o referido período, postura constante: atacando a União Soviética, elogiando o Presidente Figueiredo e a “abertura” e se abstendo ou poupando Brizola de ataques. Este, por sua vez, constantemente elogiava o JB. São raros os casos, na América Latina, da utilização dos meios de comunicação de massas por grupos ou forças com algum caráter contestatório. E as escassas vitórias são conseguidas apesar de tudo. Ou, então, aqueles meios são colocados em parte a serviço de causas ou grupos que, eventualmente, conseguem algum poder. E nada melhor para uma reflexão sobre esSes aspectos do que a desconcertante vitória do governador Leonel Brizola, nas recentes eleições no Rio de Janeiro. E, aí, mais um fenômeno: apoiado, no momento eleitoral, pelo chamado “arco da sociedade”, desde significativos empresários, passando por largos setores de classe média e com forte penetração nas camadas populares cariocas, Brizola conseguiu, apesar da vontade dos proprietários dos grandes jornais, como que penetrar, romper e garantir o próprio espaço. E agora? O sapo será digerido? 121 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 122 Vozes da distensão política: 1978-1983 18. A Igreja e a NOMIC19 Frei Clarêncio Neotti Se há um campo científico moderno em que a Igreja procurou não se alhear, é o da Comunicação. A própria expressão “Comunicação Social” é criação da Igreja. Ela pode ser criticada por não usar adequadamente os MC, mas faríamos injustiça se não víssemos o grande interesse com que acompanhou o nascimento e o desenvolvimento dos modernos MC e das diferentes teorias, pesquisas e políticas em torno do fenômeno da Comunicação. Um dos 16 documentos do Concílio é todo sobre a Comunicação (1963), em que a Igreja acentua o direito à informação como um direito intrínseco à sociedade humana, tanto individual quanto comunitariamente (inter Mirifica, 5). A partir desse Documento, muitas Conferências 19. BOLETIM INTERCOM nº41. São Paulo: Intercom, jan/ fev/1983. p.44-49. Bimestral. 123 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Episcopais se detiveram sobre o tema da Comunicação, mesmo porque todo e qualquer tipo de comunicação está relacionada à missão primeira da Igreja, que é evangelizar; a Conferência Latino-Americana de Puebla disse com clareza: “Evangelizar é comunicação” (n.1063). E a Conferência de Medellín, em 1968, já apontava para o que, pouco mais tarde, seria o ponto central do movimento em torno da Nova Ordem Mundial da Informação: “Muitos desses meios (de comunicação) estão vinculados a grupos econômicos e políticos, nacionais e estrangeiros, interessados em manter o status quo social” (16,2). A Carta Magna da Igreja, no campo da Comunicação, é a Instrução Pastoral Communio et Progressio, elaborada pela Pontifícia Comissão para os Meios de Comunicação Social, criada por Paulo VI, por determinação do Concílio e publicada essa instrução em maio de 1971. Embora ainda não se use a terminologia da Nova Ordem Mundial da Comunicação, dentro dos princípios conciliares: - fala do acesso e da participação de todos os processos de comunicação (cf.n.34), apontando a contradição que há em falar em direito à informação e não permitir ao povo o acesso à diversidade das fontes da informação. - falar do direito que tem o receptor de proteger-se contra a comunicação manipulada, distorcida ou errônea (cf.n.41). - Discute o conceito de notícia (cf.n.17). - pede que as convenções internacionais procurem estabelecer uma comunicação equitativa, sem monopólios, para que “todos os povos tenham um lugar conveniente no diálogo universal” (cf.n.91). 124 Vozes da distensão política: 1978-1983 - pede um novo código – de normas positivas – “que regule todo o processo da comunicação social” (n.79). Em 1973, na reunião de Argel – quarta reunião dos Chefes de Estado não alinhados – declara-se que os países em vias de desenvolvimento devem empreender uma ação comum, no campo das comunicações, e assumir como uma das principais metas “a reorganização dos atuais canais de informação”, que foram qualificados como “legado de um passado colonial, que obstaculizam as comunicações livres, diretas e rápidas dos países entre si”. Dessa reunião em diante, o tema não mais saiu da pauta. Na América Latina, há uma longa história em torno da NOMIC. Volto ao meu tema específico. A União Católica Internacional de Imprensa – UCIP – órgão ligado à Secretaria de Estado do Vaticano, discutiu muito a NOMIC nos círculos de estudo, durante o Congresso Internacional de Viena, em outubro de 1977. Acompanhei de perto os debates, tanto os pontos de vista dos europeus quanto dos jornalistas católicos do Terceiro Mundo. Não havia clareza sobre o que pretendia a nova ordem. Faltava clareza política, clareza ética, clareza econômica, clareza de terminologia. Daí a decisão do Congresso em apenas fazer recomendações. E fez quatro: 1. A UCIP reafirma o apoio ao conjunto de preocupações da UNESCO, especialmente em torno da liberdade de informação, do direito à educação e à alfabetização. O congresso constata com viva satisfação a coincidência entre o propósito da UNESCO (expresso em Nairóbi) e a intenção da UCIP em revisar a atual ordem da informação. 125 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 2. O XI Congresso Mundial da UCIP pede a todos seus membros que se comprometam na pesquisa da nova ordem internacional da informação e mobilizem todas as forças da opinião pública nesse sentido. 3. O Congresso deseja que a UNESCO se beneficie da colaboração das Organizações não- governamentais, tanto internacionais quanto nacionais. 4. UCIP deseja associar-se ao grupo da UNESCO que pesquisa, nesse campo, sobretudo, deseja participar da Comissão Internacional encarregada pela Organização para estudar o conjunto de problemas da Comunicação em escala mundial. Em fevereiro de 1978, o Congresso da UCIP, reunido em Munique, agradecia à UNESCO por haver designado um membro do conselho para perito na Comissão Internacional de Estudos dos problemas da Comunicação e falava de um “recente e frutuoso encontro”, em Paris, do Secretário da Comissão Internacional com os dirigentes das Associações Católicas Internacionais dedicadas à Comunicação: UNDA, OCIC e UCIP. Nessa mesma reunião, o Conselho convocou todos os jornalistas católicos, tanto os que trabalham na chamada “imprensa católica” quanto os que trabalham na chamada “grande imprensa”, a pôr em evidência a necessidade de uma nova ordem internacional da informação (NOII) e pedia uma atenção especial e constante às notícias provenientes dos países em desenvolvimento, devendo receber o mesmo tratamento das notícias internacionais. Em novembro de 1979, é publicado o Relatório McBride, resultado da comissão criada em 1977, em consequência 126 Vozes da distensão política: 1978-1983 da reunião de Nairóbi, em novembro de 1976. Os debates se multiplicaram necessariamente. A UCIP preparava seu Congresso Mundial, em Roma, para fins de setembro de 1980. Os documentos preparatórios lembravam que UCIP devera definir uma posição, que não seria simplesmente assumir uma das tendências, mas abrir um caminho marcado pelo ideal cristão da justiça e da solidariedade. Antes, porém, do Congresso, em 2 de junho, o Papa João Paulo visitou a UNESCO e um tópico do longo discurso que pronunciou, disse textualmente: “Os MC não podem ser meios de dominação por parte dos que têm o poder político ou o grande poder econômico, que impõe seu programa e seu modelo. Os MC devem tornar-se o meio – e que meio importante! – de expressão da sociedade que deles ser serve e os mantém... eles não podem submeter-se ao critério dos interesses...” E, durante o Congresso mundial, em Roma, na audiência que o Papa concedeu aos jornalistas católicos, na Sala Clementina, foi ainda mais explícito: “Vós procurais uma nova ordem mundial da informação e da comunicação. A igreja deve participar dessa procura”. Nas conclusões do Congresso, afirma-se: “Continuando a reflexão começada no congresso de Viena, a UCIP afirma que a procura de uma nova ordem mundial da informação e da comunicação está em plena harmonia com a concepção cristã do homem. A NOMIC tem a ver com todos os países, seja qual for o seu sistema político, econômico ou social. Ela é um aspecto de uma ordem econômica internacional diferente, em que fica eliminada a relação dominador-dominado. Depois de elogiar as condições do Relatório McBride, sobretudo os parágrafos que dizem respeito à democratização 127 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade da Comunicação e sua integração no processo de desenvolvimento, a UCIP se diz independente, mas interessada em acompanhar com espírito crítico o desenrolar do processo de instauração da NOMIC, que seria discutido um mês depois em Belgrado. Creio que nenhum católico terá dificuldade em subscrever os 11 pontos sobre os quais se basearia uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação. Poderíamos passar continente por continente e veríamos que as Igrejas locais, através de seus organismos regionais, nacionais, continentais, foram tomando conhecimento do que significava ou poderia significar a NOMIC. A UNDA/AL, por exemplo, que é a Associação Católica Latino Americana para o Rádio e Televisão, já publicou seis números de revista Comunicación, todos eles dentro de um projeto explicitamente chamado “Igreja e Nova Ordem Internacional da Informação”. A UCLAP – União Católica Latino-Americana de Imprensa – no seu VII Congresso realizado, em Belo Horizonte, em maio de 1981, considerou a significação política e cultural do debate em torno da proposta de uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação e a grande controvérsia decorrente do Relatório McBride e resolveu assumir a liderança do aprofundamento do tema no seio da Igreja Latino-Americana, em grande parte aberta para o assunto em decorrência lógica do documento de Puebla. Atendendo às conclusões de Belo Horizonte, a UCLAP organizou e realizou um seminário em Quito, no Equador, para 42 especialistas Em comunicação, sobre a NOMIC e Direitos humanos. Começamos com uma afirmação: O centro das decisões para a nova ordem não pode ser o 128 Vozes da distensão política: 1978-1983 mesmo que sustenta e busca perpetuar a ordem atual, mas deve ser construído com os pobres e pelos pobres. Daí, ao mesmo tempo em que dizíamos que a nova ordem só é possível na medida em que se articule com a vigência plena dos direitos humanos, víamos na Comunicação alternativa – nascida do povo e para o povo – os fundamentos daquilo que, no futuro, pode ser a NOMIC. Isso porque: - ela altera a concepção de comunicação como uma simples emissão-recepção de mensagem. E, sendo dialógica, é instrumento para construção de sólidos veículos comunitários e de relações sociais participativas e democráticas. - rompe o modelo vertical de comunicação que reproduz o sistema de organização social no qual uma minoria apropriou-se do poder. - instaura um novo modelo de comunicação no qual as mensagens surgem e circulam como fruto de organização, embora incipiente, de protagonistas dialogantes. - rechaça o modelo que cria um conjunto atomizado de receptores, como objetos passivos da ação dos emissores. - ao favorecer o diálogo que se converte num fato educativo, estimula os processos de conscientização, permite a expressão da própria cultura e da realidade dos grupos e comunidades, promovendo sua união e sua solidariedade. Foi, a partir dessa posição, assumida pela UCLAP que fizemos varias recomendações, inclusive pedindo ao Departamento de Comunicação do Conselho Episcopal Latino-Americano que promova um encontro a nível continental para os bispos e coordenadores nacionais da 129 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade comunicação da Igreja, para debater o tema da NOMIC, tomando como base o Documento de Quito. E pedimos aos profissionais de Comunicação – sobretudo aos jornalistas católicos – que assumam uma atitude de compromisso frente às experiências da comunicação alternativa. Certamente o Documento de Quito, um documento elaborado por membros ativos da Igreja Católica Latino-Americana, a esta altura já traduzido para o alemão, francês e inglês e divulgado na Europa, será base para o Seminário que a UNDA/AL, OCIC, UCLAP, UCBC e Setor de Comunicação da CNBB realizaremos em São Paulo, de 8 a 12 de outubro próximo, precisamente sobre a NOMIC E IGREJA. A NOMIC interessa de perto à Igreja pós-conciliar não apenas como teoria, mas sobretudo pela coincidência ou aproximação de pontos que fundamentam a construção da nova sociedade que, a partir de Medellín, os Papas costumam chamar de civilização do amor. Cito alguns desses pontos (me servindo de Belgrado): - eliminação dos desequilíbrios e desigualdades entre os países e, dentro dos países, dos grupos sociais e/ou técnicos. - eliminação dos efeitos negativos de certos monopólios públicos ou privados. - supressão de obstáculos internos e externos que se opõem a uma livre circulação das ideias e informações. - liberdade de informar e ser informado, como a de educar e ser educado. - respeito pela identidade cultural e o direito de cada nação de informar sobre seus valores sociais e culturais e suas aspirações. 130 Vozes da distensão política: 1978-1983 - direito igual que todos têm de participar do desenvolvimento. - e isso porque, todos e cada um somos imagem e semelhança do mesmo Deus, nascidos da mesma raiz divina e destinados à mesma finalidade, portanto, necessariamente solidários na igualdade de direitos e obrigações. 131 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 132 Vozes da distensão política: 1978-1983 19. Cinema e política20 Ligia Averbuck Depois de sua conturbada estreia, com votos negativos do Conselho de Censura, Pra frente Brasil, de Roberto Frias, entrou no circuito regular de exibição, com algumas restrições da crítica. Se o público tem comparecido em massa às exibições do filme, que já está em cartaz, em São Paulo, há dois meses, isso não significa que ele tenha sido mais apreciado pelos espectadores mais exigentes. E não é preciso ser crítico radical (e nem mal-humorado), para ver que, embora oportuno e bem intencionado, o filme não atingiu o nível de profundidade que o assunto e o momento exigiriam. Depois dos duros anos de silêncio impostos pelo regime político brasileiro, com o soprar dos ventos da “abertura”, 20. BOLETIM INTERCOM nº42/43. São Paulo: Intercom, março/ jun/1983. p.23-25. Bimestral. 133 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade nada mais natural que o cinema começasse a procurar fazer o retrato dos anos da repressão, como a literatura já vem fazendo, há mais de dois anos, com a publicação de memórias de exilados, cassados e presos políticos. A documentação memorialística brasileira cresceu em volume e importância, não só pela palavra dos que antes não podiam falar, como pela das testemunhas de um tempo em que até falar em Democracia era um ato de extremo risco. Nesse sentido, o filme de Roberto Farias, ao trazer para o público, de hoje, a memória de fatos que marcaram um conturbadíssimo e silenciado período da vida brasileira, cumpre um papel importante: o registro da História é a colaboração que o cineasta comprometido com seu tempo pode dar. É exatamente ai, nessa leitura da História, vista não apenas na sua superfície, mas na verticalidade de suas relações, que Pra frente Brasil perde seu rumo e, de filme político que poderia ser, apresenta-se como um drama policial, certamente interessante, mas superficial na análise dos graves fatos políticos sobre os quais discorre. Trabalhando com bons atores e valendo-se de sua larga experiência de cineasta, Roberto Farias realizou, efetivamente, um filme para as grandes plateias, que seguem, interessadas, o fio de uma narrativa que tem todos os componentes dos seriados policiais, a isso se acrescentando o tempero do cenário brasileiro, dos fatos com o selo da História recente e, para completar, o pano de fundo do grande mito nacional, a luta pala Copa de 70. Tudo isso, em cores e em ritmo da marcha da Seleção Brasileira de futebol, dá ao filme a qualidade comercial que o garantem como programa obrigatório do espectador médio brasileiro, hoje, muito mais exigente em relação à qualidade técnica do ci134 Vozes da distensão política: 1978-1983 nema nacional. Se o desejo do diretor fosse somente este, não se teria dúvidas em afirmar que Pra frente Brasil foi um sucesso de realização. Mas, sabemos (ou supomos) que Roberto Farias pretendeu fazer um filme político. Tanto é verdade que a censura brasileira – ciosa de seus deveres – o entendeu como uma ameaça aos rumos da “segurança nacional”, confirmando sua habitual falta de largueza. Pra frente Brasil, que poderia esclarecer o público ao mostrar as relações entre diferentes segmentos do regime e os jogos de interesses que se cruzavam, naquele momento, em que uma parte da reação à Ditadura tentou se organizar pele luta armada, (com todos os seus equívocos e contradições), reduz a leitura da História aos acontecimentos aparentes, silenciando questões graves, caricaturando, a partir de situações pessoais que servem ao entrecho romanesco, mas não à História, a participação dos grupos que se envolveram na guerrilha urbana e transformando em personagens sem complexidade, figuras da vida real que estavam no poder naquele momento. Para ler a História, e narrá-la, se requer não somente tomar um determinado ponto de vista, mas também, saber iluminar pontos obscuros, estabelecer contrastes, mostrar que as relações não são estabelecidas (e definidas) pelas aparências do real, buscar nos fatos, à primeira vista mais insignificantes, os pontos que servem para costurar a trama. Contar uma história, em sua linearidade aparente, significa trair aos fatos, já que a História se faz nos meandros e nas contradições. Como mostra Lukács, no seu conhecidíssimo “Narrar ou descrever”, comparando os processos narrativos de Zola e Balzac, “a narração distingue e ordena. A descrição nivela todas as coisas.” Isso vale, também, para a 135 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade narrativa cinematográfica. Se, ao narrar os acontecimentos da História, o cineasta não fizer uma leitura que evidencie os nexos de cada acontecimento com o conjunto maior das relações, a verdade que ele pretende mostrar torna-se parcial e destituída de sentido político. Como escreveu o crítico, “se não se revelam traços humanos essenciais, se não se exprimem as relações orgânicas entre os homens e os acontecimentos, as relações entre os homens e o mundo exterior, as coisas, as forças naturais e as instituições sociais e, até mesmo, as aventuras mais extraordinárias tornam-se vazias e destituídas de conteúdo”. Ensaios sobre literatura Pode-se lembrar, neste caso, que até mesmo no documentário mais despojado pode o cinema apontar para os fatos e as articulações que se deve mostrar. A tradição dos bons documentários tem ricos exemplos nesse sentido, assim como a linha dos filmes políticos, europeus, em que Costa Gravas é um dos mestres. É possível que, como afirma Roberto Farias, se o filme tivesse avançado em outros níveis de fatos, sem o auxílio de um órgão como a Embrafilme, ele não estaria aí, hoje, para ser exibido. É certo, também, que sem o texto ambíguo (mistificador) que antecede sua projeção, a censura não o tivesse liberado. Tudo isso deve ser considerado. Para além dessas considerações, porém, permanece uma pergunta: se o que move um cineasta, ao fazer cinema, é mais do que o propósito de divertir, ou ‘distrair” o público para o qual se dirige, se o que ele tem como projeto é uma arte que busca 136 Vozes da distensão política: 1978-1983 a verdade e o compromisso com a História de seu tempo, valerão a pena as concessões? Afinal, pergunta-se, a quem acaba servindo este tipo de cinema? 137 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 138 Vozes da distensão política: 1978-1983 20. 1984 - Big Brother e Big Press21 Alberto Dines “Eu compreendo como; só não entendo por quê”. Assim Winston Smith, o personagem principal de “1984”, responde ao interrogador O´Brien, do Ministério da Verdade. A perplexidade de Winston se relacionava com o funcionamento do poderoso sistema de manipulação controlando a vida em Oceania, sob a égide do Grande Irmão. “Mas ele existe mesmo?”, pergunta o ex-contestador, agora reduzido a um monte de dúvidas. “Claro que existe”. Winston: “Mas existe do mesmo jeito que eu existo?”. O´Brien: “Você não existe”. Big Brother, de Orwel, é a personificação do Estado Totalitário, na mesma acepção em que Mussolini, aparentemente pela primeira vez (na enciclopédia italiana de 21. BOLETIM INTERCOM nº46. São Paulo: Intercom, jan/ fev/1984. p.15-18. Bimestral. 139 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 1932), autodesignou-se como “totalitário”. Ainda que todos os comentaristas identifiquem o ditador orweliano com Satlin, ele é, na realidade, um caudilho muito no estilo de Mussolini, que vive a fantasia do ‘Estado Perfeito’, em que é o único herói, capaz de incríveis façanhas, adorado pelas massas e temido pelos adversários. Mas, como o ‘Grande Irmão’ jamais se materializa, ao longo da trama, pode ser que seja uma das muitas metáforas engendradas por Orwel para simbolizar o sistema despersonalizador e burocrático imperante em Oceania. O ‘Grande Irmão’ de “1984” pode ser, também, a Grande Mentira, a Manipulação das Palavras, o Emasculador dos Significados. A toda ditadura correspondente um processo de adulteração de linguagem com o objetivo de justificá-la. O terror adota um sistema de signos destinado a camuflá-lo, capaz de torná-lo assimilável e que, frequentemente, sobrevive à sua extinção. O conjunto de mistificações da era stalinista mantém-se, até hoje, e não se pode legar que seja típico do Comunismo, porque o regime sob Lenin nem de longe se assemelhava ao do sucessor. Na Argentina, o terror foi deposto, mas a extirpação da mentira só começará a ocorrer, quando a justiça iniciar, efetivamente, a revisão do que acontece sob o regime militar tanto no campo da guerrilha quanto da repressão. A imprensa portenha, cúmplice da impostura – porque a censura jamais prospera onde não existe vocação para ser censurado – também terá que passar por um processo de revisão que, aliás, foi deslanchado no exato instante em que começou a pipocar a nova safra de publicações cheias de viço, descomprometidas com a omissão. Temos, em nosso cenário político, pelo menos, um par 140 Vozes da distensão política: 1978-1983 de candidatos à Big Brother, caudilhos em potencial, acalentando a fantasia messiânica de resgatar as massas. Mas o perigo não está neles – consiste na Grande Fraude que continua implantada, quase incólume, subvertendo valores, palavras e eventos. Nossa imprensa, apesar de ter sido a veiculadora da pressão da sociedade civil pela restituição das franquias democráticas, hoje, de uma maneira geral, continua comprometida com o jogo do poder, produzindo eventos falsos, em que nada ocorreu, ignorando acontecimentos relevantes para torná-los inexistentes – exatamente como O´Brien com Winston Smith. Legitimada pelos louros que ainda ostenta da campanha pela abertura política, nossa imprensa, voluntariamente, desempenhe um papel bem menos digno do que aquele do período da ditadura, justamente porque, hoje, não está sendo intimada a fazê-lo. Não se trata, aqui, de ecoar o costumeiro desespero do governador Brizola que, quando vê escancaradas pela imprensa, as deficiências de sua administração, arma-se de paus e pedras para punir os denunciadores. Trata-se, sim, de vocalizar os debates que, nos últimos meses, toma conta dos meios especializados, seja nas universidades como nas associações de classes. Jornal sensível, a “Folha” publicou, na última quarta-feira, pelo menos três comentários em diferentes áreas sobre a atual performance da imprensa – e não se deu conta de que é parte desse processo. Essa imagem de marasmo que a imprensa projeta de um País à beira do abismo não pode ser atribuída a um prematuro cafard de verão. É uma forma premeditada de desativar e desmobilizar uma sociedade triturada por uma série de crises concêntricas (a de 141 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade começar pela economia e acabando na de identidade) que deseja tomar em suas mais as decisões sobre seu destino. É inútil colocar em clave baixa o fascinante rol de ocorrência que nos chegam da Argentina, pretendendo estabelecer diferenças entre nós e eles. O leitor de jornais e revistas – cerca de 20 milhões multiplicadores de opinião – já percebeu que o que é bom para nosso vizinho deve ser bom para nós. Há um clamor embutido em cada cidadão informado em favor, não apenas de pleito direto, mas de um renascimento nacional, semelhante ao argentino. Essa exigência, no entanto, é filtrada sutil e tenazmente, chegando às páginas impressas, na melhor das hipóteses, apenas no tocante à escolha do futuro presidente, o que só irá ocorrer dentro de 1 ano. A sede de justiça provocada pela crescente corrupção foi habilmente reorientada e eis que os réus passaram a ser os marajás das estatais – alguns poucos, como Heitor de Aquino, vivendo realmente em fantásticas sinecuras – enquanto a gatunagem campeia solta nas mais altas rodas da República. E para que a constatação sobre a falência de nossa imprensa em vocalizar com fidelidade os anseios nacionais por mudanças imediatas não seja feita à base de impressões e sensação, convém examina evidências recentes: • O que aconteceu com os três assuntos que resultaram nos últimos prêmios Esso de Jornalismo, a saber: o caso Baumgarten, os escândalos do BNH e a apuração das últimas eleições do Rio pela Proconsult? Com exceção de algumas sequelas da Capemi, no episódio Baumgarten, o resto jaz enterrado. É evidente que ao governo não interessa que continuem sendo investi142 Vozes da distensão política: 1978-1983 gados. Mas, desde quando uma imprensa sadia e realmente independente deve curvar-se, obedientemente, à vontade imperial? • Em que ficou o atentado ao Estadão? Depois de 15 dias de libações promocionais, o assunto sumiu do próprio jornal-vítima. Num caso de irresponsabilidade, nossos jornais apresentaram o primeiro proprietário do carro-bomba como possível implicado, fazendo com que o sogro do indigitado morresse de desgosto e, até hoje, nem a acusação foi retirada, muito menos outras pistas oferecidas. • Por que levou tanto tempo para que se iniciasse um processo legal contra o ex-governador Maluf relativo ao desvio de dinheiro público? Simplesmente porque, há mais de dois meses, a Imprensa Oficial de São Paulo procura os jornais locais para dar cobertura às conclusões de um inquérito interno sobre malversação de fundos em beneficio da campanha eleitoral do ex-governador e estes jornais tergiversam. E, num incrível cinismo, tentam converter o denunciador em denunciado. Primeiro, começaram a discutir as mudanças gráficas operadas no Diário Oficial de São Paulo e, depois, quando o “escândalo” não pegou, passaram a denunciar um seminário realizado pela Imprensa Oficial para os funcionários de primeiro escalão num hotel de repouso. Como se esses fatos, irrelevantes, fossem mais importantes do que uma acusação concreta e comprovada contra um candidato à sucessão que, se realmente incriminado, torna-se inelegível para a chefia da Nação. Maluf está, hoje, realmente enrascado: o 143 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade homem não deixa impressões digitais, afinal, trabalhou com luvas. Mas isso já se sabia há dois meses. Os dois grandes jornais paulistas é que não quiseram tomar conhecimento. Por idiossincrastas, vá lá. • Enquanto os jornais discutem e tomam partido no caso do procurador Jefferson, que seria culpado pela morte do trombadinha Joilson, ninguém se lembra de que a psicose da violência e a histeria da justiça-pelas-próprias-mãos foi deflagrada pela própria imprensa. A orquestração para apresentar São Paulo como cidade entregue aos bandidos, muito bem urdida e executada por jornais que, antes jamais publicavam casos de polícia, em sua primeira página, é a responsável pela morte do menor – qualquer que tenha sido o agente que a tenha executado. • E o caso do apoio de Geisel às pretensões de Maluf ? Um repórter político de um matutino carioca (na ausência do titular da coluna) contou, pormenorizadamente, um fim-de-semana, tête-à-tête, entre o aspirante à Presidência e o ex-presidente. A notícia tão descabida fez com que Geisel abandonasse sua habitual linha de discrição, convocando uma entrevista coletiva para desmentir, categoricamente, as informações veiculadas. Por esta “Folha” ficamos sabendo que o repórter em questão não presenciou nenhum dos encontros do tal fim-de-semana, mas obteve as informações de seu diretor, privilegiado morador de Teresópolis. E, como se sabe, o jornal em questão ostentava, gloriosamente, o título de ser o único que não aceita as eleições diretas. Prefere as indiretas, já que tem dois bons clientes com 144 Vozes da distensão política: 1978-1983 os mesmos interesses. Big Brother lembra nome de roqueiro mas não é. Big Brother é um gigantesco e solerte movimento de defraudação. De tudo – do nosso apetite por mudanças, de nossa disposição de luta, da nossa capacidade de fazer justiça, de nosso discernimento para escolher – de bons autores a bons presidentes. Big Brother é um coronelismo informativo (expressão empregada pelo prof. José Marques de Melo em sua tese de livre-docência aproada com distinção há dias na USP). Big Brother é a alma danada de um regime que já morreu e não sabe, por isso, continua penando nos desvãos do poder em busca de privilégios. • Em “1984”, de Orwel, Big Brother tinha mãos limpas, não matava. Neste 1984, que para nós começa, há um Big Brother estropiando nossas vontades e percepções. Como funciona, percebe-se. Por que tem tanto êxito, continua incompreensível. Folha de São Paulo, (18/12/84) 145 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 146 Vozes da distensão política: 1978-1983 • II • Diálogos da transição democrática: 1984-1989 147 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 148 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 21. Peter Schulman: Cinema e fuzil Anamaria Fadul e Narciso Lobo22 Peter Schulman, alemão, é uma espécie de “americanist” do cinema, preocupado com o que ele chama de “cinema latino-americano”. Ele tem vários trabalhos de pesquisa sobre o cinema das Américas do Sul e Central. Um papo de uma hora entre Anamaria Fadul e Peter, que nos permitiu algumas reflexões: Muito interessante porque, Anamaria acabava de participar, pela segunda vez, do Festival do Novo Cinema Latino-americano, em Cuba e, na conversa, surge uma retrospectiva do cinema feito em diferentes pontos de uma América Latina unida pela língua – o espanhol como a principal – e as maneiras, às vezes, parecidas entre si, às vezes não, de cada povo injetar características próprias naquilo que faz. 22. BOLETIM INTERCOM nº46. São Paulo: Intercom, jan/ fev/1984. p.25-36. Bimestral. 149 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Peter, autor de dicionário, história, publicados em alemão, também realizou documentário sobre o “novo cinema latino-americano” (NCLA). Como não poderia deixar de ser, ele enfrenta a briga com cineastas do Brasil, que contestam o rótulo “cinema latino-americano”. Para a visão de fora, de quem apenas estuda aquela realidade, talvez haja a necessidade de generalização do objeto de pesquisa, embora, na realidade, trate-se de um “objeto” bastante múltiplo de convergências/divergências históricas. Fica, pois, a problematização que deixa a entrevista: existe um cinema brasileiro? E boliviano? Peruano? Venezuelano? Salvadorenho? Nicaraguense? O aceitar ou não aceitar a denominação de cinema latino-americano, boliviano, brasileiro etc., traz que implicações para a produção fílmica e para o clima da criação? A sinceridade, o interesse (de Peter), não sugere o americanist caçador de borboletas (apesar de ser inegável a importância destes), a visão estereotipada do pesquisador que vem dos chamados países centrais. Ele mais parece um militante, quando fala dos filmes pela América Latina. Saibam todos, por exemplo, que o cinema e o vídeo vêm sendo largamente usados nas frentes de luta das forças salvadorenhas, nicaraguenses, enfim, estão todos muito convencidos da importância tática da utilização de outras formas de expressão, que não estejam apenas no domínio da palavra. A entrevista dá conta disso. Estão todos lembrados, ainda, que foi, após serem mostradas, pela televisão americana, cenas documentais da guerra do Vietnã, que o povo norte-americano se colocou frontalmente contra o engajamento do seu país naquela “guerra suja”. O Brasil, por seu lado, tem a maior indústria 150 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 cinematográfica do bloco; mas, ao mesmo tempo, não domina seu mercado. Apesar de produzir perto de cem filmes por ano, o intrincado complexo distribuição-exibição faz com que filmes estrangeiros de baixa qualidade predominem na preferência do público. O movimento não se dá apenas no território do comercial e do não-comercial. Assim como estou filmando e gravando vídeos nas frentes de batalha (vide a importante produção salvadorenha nos três últimos anos), também, no Brasil, toma pé uma produção marginal que vai do super-8 (enfrentando sua maior crise) ao vídeo, passando pelo l6mm. Aurélio Michiles, aproveitando as condições locais favoráveis ao vídeo, elaborou dois importantes documentários sobre a nação saterá-maué, do Amazonas, um povo, segundo o mito, que nasceu do guaraná e, ao mesmo tempo, deu origem ao guaraná – sim, esse guaraná açucarado que virou refrigerante – e agora luta para preservar seu território invadido. Em São Bernardo do Campo, o Núcleo de Memória Popular do ABC produziu, sob a direção de Luiz Fernando Santoro, o documentário sobre a CUT. Até mesmo nas TVs comerciais começa um processo novo, interessante. Fruto até mesmo de uma crise. A TV Gazeta, por exemplo, uma estação deficitária (pelo menos em termos de público) deu origem a aluguéis, como o da ‘Abril Vídeo’ e, principalmente, o programa “23ª Hora”, aos sábados, que representa, em muitos momentos, a ruptura com a TV convencional, hegemônica. Bianchi, este ano, apresentou seu excelente documentário sobre a morte do líder indígena Cretã, filme que remete à reflexão sobre a própria construção dele, sem deixar de ser uma forte denúncia. Lendo, então, a conversa com Peter, fica 151 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade mais próxima de nós a outra América, a “Nuestra América”. O colonizador conseguiu, mesmo, nos separar. Nós, no Brasil, ainda entendemos um pouquinho o espanhol; mas, quem disse que um argentino ou um boliviano entendem uma palavra apenas em português? O papo fica mais fácil em francês ou inglês. Aí já é outro aspecto. O certo é que a Comunicação é como aquele cartaz que apresenta um fuzil ao lado de uma câmera: uma arma que, da mesma forma que o fuzil, possibilita o ataque e a defesa. Fuzil e câmara emparelhados. Felizmente, acabou-se a inocência dos tempos da neutralidade do jornalismo. Cada um tem possibilidade de interferir a seu modo ou trabalhar para o imobilismo. Esta parece ser uma visão positiva para o espírito de “latinoamerinid”: vê-la no seu conjunto. P – Como começou seu interesse pelo cinema latino-americano? R – Esta é uma longa história, mas que pode ser contada a partir de dois fatos. No ano de 1964, vi alguns filmes brasileiros no Festival de Cinema, de Berlim, como Os Fuzis, Vidas Secas, Selva Trágica, Deus e o Diabo na Terra do Sol, estas grandes obras-primas. Percebi que não havia nada escrito sobre o cinema brasileiro em nosso País. No mesmo ano, encontrei alguns artigos, entrevistas em revistas francesas e também conheci Nelson Pereira dos Santos, com quem pude conversar muito sobre o Cinema Brasileiro. Posteriormente, apareceram na Alemanha dois artigos sobre o cinema brasileiro, escrito por dois alemães que viveram ao Brasil. Tratei, então, de encontrar um dos autores 152 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 que morava perto de minha cidade. Conversamos e ele me contou muito mais do Brasil, da literatura e do cinema. Com o material da França, as informações e os filmes que vi, escrevi, em 1965, o primeiro ensaio cinematográfico sobre o Cinema Novo, para uma revista de Cinema de grande difusão chamada Cine. Alguns meses mais tarde, o diretor do Festival de Berlim, chamou-me para perguntar se queria organizar para ele uma primeira mostra de cinema brasileiro na Alemanha, mais exatamente do Cinema Novo. Gostei muito, porque foi a possibilidade de me dedicar mais ao assunto e montar o programa. O Itamaraty acabou por incluir filmes mais comerciais, fora do Cinema Novo, que não queríamos muito; mas, no final, foi um programa bastante interessante. Durante o Festival de Cannes, pude conhecer e conversar com Glauber Rocha. Era o ano de 1977, de Terra em Transe, que me impressionou muito. Com um amigo fizemos um roteiro dos diálogos, com a explicação dos planos, e reconstruímos o roteiro, plano a plano. Assim, apareceu o primeiro roteiro de um filme latino-americano. Nas discussões com Glauber, surgiu a ideia de fazer um filme documental sobre o Cinema Novo. Falei com o redator de uma revista de cinema que estava sendo criada e que havia espaço livre para experiências. Sua resposta: bom, quantos filmes, quantas partes de uma série querem fazer? Seis – disse eu. Ele respondeu: quatro. Fizemos um plano de trabalho e depois fomos tratar do financiamento para ir ao Brasil filmar. Meus primeiros documentários foram feitos em 68, sem conhecer de perto uma câmara ou ter outras experiências cinematográficas. Era uma tarefa muito difícil, mas ao mesmo tempo muito rica. Acredito que o resultado, para quem não estudou 153 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade cinema, era bastante aceitável. São quatro documentários: na primeira parte, apresenta-se a história cinematográfica, no Brasil, desde suas origens até Porto das Caixas; na segunda parte, analisei seis filmes distintos, em que mostramos somente sequências dos filmes mais importantes, para analisar a poética, a ideologia e a arte com intenção política. A terceira parte tratava das dificuldades vividas naquela época. Começa, por exemplo, com um futebol entre a equipe do cinema novo e uma equipe do ltamaraty. São situações metafóricas da realidade. Fizemos mesas-redondas, discussões entre os realizadores mais conhecidos do Rio e de São Paulo, e se descreveram as dificuldades econômicas e políticas da censura. A última parte falava das perspectivas dos novos filmes dos jovens realizadores do ano 68 e dos filmes desse ano, como Vida Provisória, Cara a Cara, de Bressane, e muitos outros. Assim, começou a minha relação como Cinema da América Latina. P – Até agora você só falou do cinema brasileiro. Com relação ao NCLA, em geral, como se deu concretamente seu envolvimento? R – Bem, esse foi também o momento em que apareceram em nossos Festivais filmes de outros realizadores latino-americanos como Jorge Sanjinés, Miguel Lettin etc. Para tornar esse cinema mais conhecido, falei com o Segundo Canal (da televisão alemã) sobre a realização de alguns documentários sobre o cinema da América Latina. No Festival de Berlim, em 1969, propus a realização de uma semana sobre o cinema jovem latino-americano. Com esse objetivo, preparei uma viagem pela América La154 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 tina para pesquisar, ver e selecionar filmes para a Semana e preparar as filmagens para 1970. Esse era o ano do II Festival de Viña del Mar, o segundo festival do Cinema Latino Americano (1969), uma possibilidade única para me informar. Um evento muito estimulante. Foi assim que preparei as filmagens de 70 e fiz um documentário sobre filme de ficção independente na América Latina, um pouco da história dos diferentes países da América Latina (México, Argentina, Chile, Brasil etc.). Ao mesmo tempo, fizemos um documentário de meia hora sobre os filmes “underground”, mais especificamente da Colômbia e Venezuela. Mais tarde, foram feitos, na Alemanha, retrospectivas mais completas. Além daquelas realizadas nos vários Festivais, a TV fez talvez a maior retrospectiva do Cinema Latino Americano. P – Seu livro sobre história do cinema latino-americano parece ser uma das únicas obras existentes sobre esse tema. O que o levou a escrevê-la? R – A história cinematográfica da América Latina sempre me preocupou. Mas, nos primeiros anos, foi muito difícil conseguir informações, pois as poucas existentes eram muito incompletas, e nos dicionários de cinema, em nível mundial, não existia praticamente nada. Assim, pesquisei, colecionei livros, falei com pessoas que tinham visto filmes clássicos mudos e sonoros, em diferentes países, porque esse processo havia realmente me interessado muito. No ano de 1966, acredito, perguntaram-me se não poderia escrever alguns artigos para um novo dicionário de cinema, 155 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade na Alemanha, incluindo a história do cinema em distintos países. Com esse objetivo, colecionei muito material, aproveitando agora os vários artigos sobre história do cinema, que finalmente apareceram nas revistas cinematográficas latino-americanas. Tinha, portanto, muito material em minhas mãos e tratei de escrever uma primeira história cinematográfica. Mas, as distintas fontes, suas orientações, ao mesmo tempo, suas qualidades historiográficas me fizeram sentir a falta de informações concretas, como escrever os títulos, os nomes etc. Cada livro tinha suas datas e suas formas de escrever os nomes. É claro que não podia viajar pela América Latina e me encerrar nos arquivos para realizar as pesquisas. Esse é um trabalho para os latino-americanos. Finalmente, terminei a pesquisa, que não se enquadrava na linha dos redatores desse dicionário, porque me disseram: sobre México faz dez páginas, sobre o Brasil duas, sobre os outros países meia página. Minha resposta: assim não se pode trabalhar; vou escrever 17 páginas sobre o México e 20 sobre o Brasil etc. Escrevi; mas, depois, eles resolveram cortar pela metade e, no final, ficaram os títulos e algumas reflexões minhas. Um fracasso total. Mas, no ano passado, preparamos uma retrospectiva muito grande do cinema latino-americano para o II Festival Sobre as Culturas Mundiais. O evento contou com teatro, música, literatura, artes plásticas etc. Dirigi a parte cinematográfica e selecionei filmes nos arquivos, na televisão, em nosso próprio arquivo e também recebemos filmes da América Latina. Tentei fazer uma retrospectiva balanceada, isto é, a primeira retrospectiva bastante completa, sistemática e representativa, desde os anos 60 até hoje, e com uma parte muito grande sobre cinema latino-americano, num total 156 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 de quase 100 filmes. Para mim, essa retrospectiva tão sistemática era a possibilidade de fazer uma documentação maior. Encerrei-me em casa por um período de oito semanas para reescrever a história da cinematografia latino-americana, tendo, portanto, o conhecimento de dez anos mais, experiências, pesquisas, um arquivo maior que antes. Ao mesmo tempo, com a colaboração de outro amigo, fiz uma documentação sobre os filmes, um dicionário dos realizadores e catálogo dos filmes latino-americanos dessa mostra na Alemanha. No final, lamentavelmente, faltava uma bibliografia, um índice etc., mas não tivemos tempo para incluir tudo isto. Meu último trabalho é o Manual do Cinema Latino Americano, em alemão, que estamos traduzindo para o espanhol, porque existe uma editora, na Argentina, que quer publicar a parte histórica e já existem trechos publicados em português. P – Seu relacionamento com a América Latina se inicia com suas pesquisas sobre o cinema desse continente. É ainda através desse meio de comunicação o que atualmente se dá sua aproximação com a cultura latino-americana? R – Nos primeiros anos, concentrei-me totalmente em cinema, porque era a época do boom do cinema latino-americano e, depois, a partir de minha primeira visita a Cuba, em 1974, interessei-me mais pelos processos culturais e fiz muitos programas pela rádio sobre a situação cultural em Cuba, por exemplo, a transformação cultural do Chile, durante o regime militar, assim como na Argentina 157 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade e no Uruguai; sobre a literatura brasileira, sobre a literatura nicaraguense e, também, sobre o processo cultural depois da vitória da Revolução na Nicarágua. Essas são as últimas coisas que fiz para o rádio, programas de uma hora. Fiz também um programa de duas horas sobre o teatro latino-americano. Atualmente, trabalho na Sociedade Liebnitz, entidade de intercâmbio cultural, que realiza exposições de arte latino-americana na Alemanha. P – É possível chegar a uma definição do NCLA? R – Tenho tido problemas e os latino-americanos também, em definir o que é o NCLA. Sempre defendi esse conceito de um Novo Cinema Latino Americano. Lamentavelmente, e de forma muito especial, aqui, no Brasil, existe uma tendência de destruir esse conceito, ou melhor, de não aceitá-lo como verdade. Muitos brasileiros preferem falar mais de um cinema boliviano, cubano, mexicano e, além disso, brasileiro. Esse é um nacionalismo distinto na América Latina, mas acredito que existem interesses, estruturas e intenções comuns, ao mesmo tempo em que diferenças culturais e políticas entre os muitos países latino-americanos. A diferença entre México e Argentina ou Venezuela e Bolívia é tão grande quanto à diferença entre os países ibero-americanos e o Brasil. Mas, a grande diferença é aquela histórica entre o Brasil e o resto da América Latina, uma vez que inclui a diferença cultural. Entretanto, os interesses fundamentais, cinematográficos, políticos, culturais, em perspectiva, são os mesmos. Assim, não vejo nenhuma necessidade dos brasileiros não acei158 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 tarem essa concepção do NCLA. Por quê? Porque, nos primeiros anos da difusão desse cinema, era importante encontrar um nome como a “Nouveile Vague”, o novo cinema alemão, o cinema livre da Inglaterra, o neo-realismo italiano etc. Todas essas ondas têm tido um nome, porque era muito mais fácil incluir nesse conceito, nesse título, muitas coisas, para defendê-lo e promovê-lo. Porque quem quer ver um filme boliviano, uruguaio, ou colombiano? Muito mais fácil fazer uma semana latino-americana de cinema que uma Semana de Cinema Boliviano, porque o cinema boliviano existiu em três filmes. Para a promoção do NCLA, essa concepção global era muito importante. Acredito que, até hoje, é importante. É claro que a produção brasileira, de 80 a 100 filmes, por ano, é mais ou menos a mesma quantidade do que fazem os outros países juntos, do México até a Argentina. Compreendo, mas não aceito. Os interesses políticos são muito claros. O NCLA é um cinema autêntico, no sentido de lutar para a mudança da situação sociopolítica em vários países e, por isso, parece-me importante esta concepção. Além disso, existe uma diferença entre o cinema comercial, as pornô-chanchadas e essas porcarias que se fazem em todos os países, especialmente Brasil, México, Argentina e, em certo ponto, na Colômbia. É um cinema de mau gosto, sem nenhum interesse social, com uma realização cinematográfica muito ruim, um cinema de imitação norte-americana. Esse não é o novo nem o autêntico cinema latino-americano. É claro que um filme comercial, uma pornô-chanchada pode expressar e refletir, à sua maneira, certos elementos sociais autênticos, sem constituir, entretanto, em um cinema autêntico. É a perspectiva, a posição política, e os elementos 159 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade estéticos de um filme que constituem sua autenticidade. P – Como você vê o atual desenvolvimento do NCLA? R – Apesar de não ser pessimista, vejo um desenvolvimento cinematográfico, na América Latina, que não me agrada, que está mais ou menos na mesma linha do cinema brasileiro. A única diferença é que os brasileiros não se preocupam muito com o resto do continente. Esta é outra questão. Mas, o que falta em todo o NCLA e, hoje, até mesmo no Brasil, é essa busca de expressar-se de uma maneira distinta, de uma maneira no to quadrada, não tão quadrada, não tão regular, de tocar temas de um interesse político mais concreto, que parece representar uma concepção política em toda a América Latina. Esse é um grande problema, depois do desaparecimento do movimento vanguardista revolucionário em todo o continente, com o fracasso das revoluções e rebeldias nos distintos países que, além de eliminar uma visão política, introduziram uma visão muito pessimista. É claro que as dificuldades existentes, neste momento, especialmente nos últimos três ou quatro anos, nos distintos países da América Latina, são dificuldades muito grandes e existenciais. A influência capitalista dos EUA e o boom capitalista na Venezuela, México, Brasil, Chile, levou a uma tematização excessiva das discussões no domínio das políticas econômicas. As críticas, a mais essa manifestação do imperialismo, levaram ao enfraquecimento dos debates políticos e culturais que existiram, antes, nesses países. Além disso, havia um desenvolvimento insignificante, uma mudança no NCLA. 160 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 No Brasil, na Venezuela, Argentina (até certo ponto), Colômbia, Peru, Chile e mesmo, em Cuba, faz-se, agora, um cinema muito mais popular que antes. O cinema brasileiro com seus grandes filmes, nos anos sessenta, nunca tivera um público tão massivo quanto nos anos setenta. Essa não é uma contradição, eu admiro muito que seja possível receber o público que faltava nos anos anteriores. Mas o que se passou? Durante todo esse processo político se sente a falta de uma busca revolucionária. Ao tocarem em temas que não apresentavam uma posição crítica radical, deixava-se um pouco de lado a pesquisa estética, porque não se pode expressar de uma maneira muito regular um filme realmente revolucionário. Poder, mas o conteúdo político e a posição política do realizador influem muito em sua estética. Assim, o cinema latino-americano, dos anos setenta, é politicamente muito mais regular, é um cinema social, crítico, mas não é um cinema revolucionário, com algumas exceções. Sua estética é uma estética muito quadrada, tradicional e até mesmo bastante conservadora. Essa é uma certa armadilha, um grande defeito desse cinema, sua grande contradição. P – Ao falar dos impasses e contradições do NCLA, você também aponta para a crise vivida pelo cinema em nosso continente. Tanto no último Festival quanto no anterior, falava-se muito em crise no NCLA, que era atribuída ora à falta de roteiristas, ora falta de maior cooperação entre os diferentes países, com a realização de coprodutores etc. Enfim, as interpretações eram as mais variadas. No último Festival, uma das coisas que se discutiu é se os princípios definidos em Viña del 161 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Mar, depois na Venezuela e em Mérida, não estariam atrapalhando um pouco. Será que não fomos muito mais historiadores, antropólogos, sociólogos, ao definir aqueles princípios, perguntava Ambrósio Fornet, um dos conferencistas no Seminário sobre Dramaturgia, realizado durante o IV Festival. Nosso cinema, em sua opinião, foi um cinema mais de análise social e um cinema menos preocupado com uma nova estética e com um novo conteúdo. A questão, levantada por esse ensaísta cubano: qual a relação desse novo cinema com seu público, o que seria uma dramaturgia efetivamente popular. Sua contribuição mais importante foi no sentido de propor uma revisão do que foi definido inicialmente, nas décadas de 60/70, para saber se essas definições não estão atrapalhando o NCLA, não estão sendo uma ‘camisa de força’, com princípios tão rígidos, quando, na realidade, talvez se tenha que ter maior flexibilidade. Como você vê essa questão colocada por Ambrósio Fornet, de que os princípios do NCLA poderiam estar amarrando esse cinema? R – O processo de popularização do cinema latino-americano resultou em uma coisa contraditória. Fazer um cinema mais popular significa mesclar-se muito mais nas estruturas do mercado. Debater muito mais com os distribuidores e falar também sobre a base econômica de seu trabalho. Os brasileiros começaram, nos anos sessenta, com essa discussão e acredito que esse modelo do cinema novo funcionou um pouco como modelo para toda a América Latina. Por isso, compreendo os motivos de alguns brasileiros insistirem em seu cinema. Porque ali surgiram muitos elementos próximos do NCLA. O debate sobre a economia de mercado significou lutar contra o inimigo, as leis cinematográficas, contar o número das salas etc. Todo 162 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 esse debate surgiu aqui. Por isso, acredito que os brasileiros jogaram um papel vanguardista no NCLA. Não compreendo por que não querem aceitar essa definição de NCLA, afinal eles a prepararam. Essa tendência de cinema popular desenvolveu muitos elementos econômicos. Isso também é um certo perigo. É importante; mas, ao mesmo tempo, essa discussão econômica também influiu no diálogo estético e político. A grande esperança do NCLA são sempre suas mudanças. Com o surgimento de um novo cinema em países sem cinematografia, ou sem tradição cinematográfica, como Costa Rica, Panamá e, depois, Nicarágua, El Salvador, Equador, algumas ilhas do Caribe – onde se faz pouco, mas se faz – e especialmente, na América Central, inicia-se um processo cinematográfico muito novo, pois não se faz somente cinema, mas se trata de um cinema com uma base social popular. Na Costa Rica, surgiu um Departamento de Cinema ligado ao Ministério de Cultura e Esportes. Os cineastas fizeram um cinema puramente documental, mas com intenção social, surgindo muitos problemas com esse Ministério e com o governo etc. Hoje, a situação é bastante precária para esse Departamento, dificuldades financeiras, problemas políticos, mas foi possível fazer um cinema documental com muito boas intenções. No Panamá, ao mesmo tempo, surgiu em 73/74, dentro da Universidade, o Grupo Experimental de Cinema Universitário (GECU), com a mesma intenção e fazendo um cinema com apoio do governo Torrijos. Com as mudanças políticas posteriores, surgiram muitas dificuldades. Ali, faz-se uma das poucas revistas de cinema que sai poucas vezes por ano, mas existe. Além disso, esses dois países sem vinculação entre si, nos primeiros anos, trataram de distri163 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade buir esse cinema dentro de seus próprios países, especialmente entre os camponeses. As pressões de certas cadeias e sistemas de distribuição foram muitas. O trabalho realizado, nesses dois países, foi excelente. Cinematograficamente, não surgiu nada excepcional, mas politicamente esse cinema jogou e joga um papel importantíssimo. O que se passou depois, na Nicarágua, durante o processo revolucionário da luta armada, quando se filmou e documentou essa luta e, depois, com ajuda internacional, fizeram seus primeiros documentários, mostra a vitalidade dessa nova forma de expressão na região. Além disso, criou-se, nos primeiros momentos, depois da vitória da Revolução um Instituto Nicaraguense de Cinema – INCINE, que tem um pouco o modelo de cinema do ICAIC, mas isso é normal. Eu admiro muito tudo o que fizeram na Nicarágua, pois começaram do ponto zero, sem tradição, sem técnica, sem experiência, sem nada, do zero mesmo e com recursos mínimos. P – E com um público acostumado com os filmes norte-americanos? R – Claro. Fazem um noticiário mensal, às vezes menos, e poucos documentários, por falta de recursos. Esse é realmente um grande problema para eles, mas há que qualificar esse trabalho objetivamente. Os documentários feitos agora são muito melhores que, na primeira etapa, eles aprenderam muito, mas falta uma informação maior e uma visão estética cinematográfica. Isso é óbvio, e normal, porque nesse processo a luta diária para conseguir dinheiro, 164 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 para sobreviver, nesse país, para desenvolver o socialismo ai, é uma luta tão existencial, que a falta de uma visão cinematográfica não é nada. Ela existe, pois esse é também um elemento da qualificação objetiva. Vemos as dificuldades reais e não se pode esquecer, fala-se objetivamente, de examinar a qualidade desses filmes. Em El Salvador, passou-se algo distinto, mas muito interessante, porque eles estão em plena guerra e fazem um trabalho muito bom. Depois dos primeiros filmes de apoio internacional, começaram com suas próprias experiências. O grupo Zero à Esquerda fez um filme de curta metragem bastante experimental, mas antes havia feito um filme sobre a situação dos professores, um filme fantástico, mas não importa. Esse grupo começou com esse trabalho de documentar o desenvolvimento da luta política, nas zonas liberadas, em Morazán. Ao redor da rádio, Venceremos, surgiu um modelo, uma ideia de trabalhar com outros meios, o vídeo, o super-8 para captar a informação mais direta da luta armada. Esse é um trabalho realmente fantástico, porque o filme Carta de Morazén é um filme não somente sobre a orientação revolucionária, sobre a luta armada, como um dos poucos filmes da Frente dos Movimentos de Libertação Nacional (FMLN), em que se pode estudar essa luta. Como se trata os prisioneiros, as táticas humanas dessa luta armada, que não é somente uma tática, mas uma política humana, que essa frente de libertação fez. P – Parece-me que essa ideia de crise, como você disse, quando surge algo novo, quando as mudanças estão surgindo, representa uma perspectiva, uma esperança. Para terminar, eu queria 165 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade saber o que achou da presença do cinema argentino no Festival de Havana? Eles passaram quatro filmes de longa metragem, dois foram muito aplaudidos, assisti três, você viu os quatro. Tempo de Revanche, feito no começo de 81, foi uma grande surpresa, da mesma forma que Volver, de 82. Aristain está apresentando também um filme em Cannes. Li uma entrevista dele muito interessante em uma revista de Cinema da Colômbia, Comunicar-te, em que afirma que fazer cinema é contar uma boa história, e que ele tentou fazer isso em Tempo de Revanche. Esse é um filme muito político e violento e que passou porque ele havia feito alguns musicais antes, filmes sobre cantores. A junta militar não tinha, portanto, nenhuma desconfiança dele. Como você viu essa presença marcante do cinema argentino? R – É preciso dizer que os militares, nesses anos tristes, até 81, mais ou menos, fizeram tudo para destruir esse cinema argentino, não diretamente, mas por falta de apoio estatal, ao mesmo tempo em que os muitos realizadores saíram, emigraram, e os que ficaram viveram e sofreram em um sistema de medo. Ninguém tentou fazer algo realmente distinto, tocar a situação social, real, com a exceção, em 1979, de Mário Sábato, que fez um filme sobre a famosa novela de seu pai. Uma parte dessa novela se chama “O Poder das Trevas”, uma adaptação literária; mas que, ao mesmo tempo, explica, metaforicamente, o sistema da repressão, o medo que se sofre. Esse dois elementos, especialmente, podem ser estudados nesse filme de adaptação literária. Este é o primeiro exemplo. Normalmente, faz-se um cinema muito comercial, infantil, para sobreviver. É uma posição absolutamente respeitável, dentro de um regime militar, fazer um cinema 166 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 comercial. Depois, lentamente, com a mudança da situação interna, nos anos 80/81, e com uma certa abertura, faz-se um teatro aberto. Esse movimento foi uma experiência muito interessante. Depois, passaram a falar de um cinema aberto, de uma poesia aberta, uma música aberta. Essa conjuntura política favoreceu muito aos realizadores que tentaram fazer, finalmente, algo distinto. Assim, surgiu um filme, outra adaptação, Buenos Aires Misteriosa, de quatro episódios, com quatro realizadores, e mais dois ou três filmes de Aristarain. Há um outro filme Plata Dulce, que como filme não é nada, mas trata de um momento político social, que foi interessante. Teve muito êxito. Mas se, nos anos 81/82, a produção cinematográfica baixou até o ponto quase zero, no último ano, foram realizados, acredito, sete ou oito filmes. Essa é uma cifra da crise, pois é igual à cifra cinematográfica dos anos 30 quando, com a mudança do sistema cinematográfico, baixou toda a produção. Quarenta anos depois, a mesma cifra. Não foi somente o sistema de medo da repressão que praticamente eliminou o cinema argentino, mas também a catastrófica situação econômica que tornou dificílimo fazer algo ali. Mas, às vezes, é possível conquistar recursos para fazer cinema e fazer realmente coisas interessantes. Mas, se pode esperar algo diferente da Argentina, agora, pois o que falta é dinheiro. A situação no México era tão triste como na Argentina, pois os militares argentinos não destruíram o cinema argentino senão indiretamente. O governo mexicano de Lopes Portillo, ao contrário, realmente destruiu quase todo o cinema independente do México, por sua tonta política cinematográfica. O incêndio que destruiu a Cinemateca é um bom exemplo desse processo. O novo governo tem gente muito 167 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade capaz, com muito boa orientação, mas não tem dinheiro para renovar ou dar possibilidades de fazer filmes para os grandes realizadores de talento que tem esse país. P – Quais são as perspectivas do NCLA? R – É muito difícil falar desse tema, porque acredito que tudo depende de elementos, do desenvolvimento econômico – porque sem dinheiro não se pode fazer cinema – e do desenvolvimento político, com a mudança dos sistemas políticos. Estes são os dois elementos básicos que vão influir muito no desenvolvimento cinematográfico que, certamente virá, como sempre. Não sei o que vai sair, pois não conheço as perspectivas da América Latina. Ao mesmo tempo, estou seguro que este continente, na maior crise econômica de toda a sua história, pode sobreviver mais facilmente a essa crise, que os países capitalistas do velho mundo, porque manejar nosso sistema capitalista é muito mais difícil que sair das crises existenciais da América Latina. É, também, um problema cultural e político a longa tradição da decadência cultural de nossos países e a força que têm os países latino-americanos. Os latino-americanos, quando decretam atacar o sistema, fazer uma nova revolução, mostram a força interna deste Continente, onde se pode sobreviver muito mais que nos países europeus. 168 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 22. Leonardo Boff : Mídia e libertação Anamaria Fadul23 Ganhamos cada vez mais espaço nos meios de comunicação, a Teologia da Libertação ainda não encontrou uma forma de tratar os MC. Nesta entrevista Leonardo Boff diz o que pensa. CELSO: nos últimos meses, a Teologia da Libertação vem ganhando espaço nos jornais e nos meios de comunicação, em geral; mas, apesar disso, existem críticas que teóricos da comunicação vêm fazendo à Teologia da Libertação que falam da ausência, em sua teoria, do tratamento à comunicação. Frei Leonardo, como o senhor encara essa colocação? 23. BOLETIM INTERCOM nº51. São Paulo: Intercom, Nov/ dez/1984. p.30-37. Bimestral. 169 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade BOFF – Eu penso, fundamentalmente, que não há um tratamento específico feito pelos teóricos da Teologia da Libertação acerca da comunicação. O que eu vejo, sim, a comunicação em nível popular, dos grupos das comunidades, dos grupos de reflexão bíblica, enfim, aqueles grupos com os quais os teóricos têm contato e promovem uma reflexão na linha da libertação; nesses grupos, há toda uma ampla comunicação nova, libertária, democrática, criativa. Portanto, por isso não se faz uma reflexão específica, porque a teologia se ocupou de questões mais fundamentais em nível de povo, em nível econômico, de libertação da fome, do desemprego, dos direitos fundamentais da vida. Mas, eu penso que essa questão é importante, deverá ser tratada por pessoas que saibam articular bem o discurso da comunicação e o discurso da fé. FADUL – Eu queria perguntar para você como é que você encarou essa veiculação da Teologia da Libertação pelos meios de comunicação de massa. De certa forma, a posição da Igreja, com relação aos MCM, principalmente depois de Puebla, é uma posição um pouco maniqueísta. Os meios de massa representam a dominação, a veiculação da ideologia da classe dominante e os meios ditos grupais representariam, ao contrário, uma forma de comunicação que brotaria do povo. Como é que o senhor vê essa veiculação de seu discurso por meio de massa tão importante como foi a TV Globo, no Brasil? BOFF – Eu penso que esse tema da libertação é um tema que é mais forte da que a ideologia dominante. Os 170 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 níveis da dominação, da desestruturação da vida, são tão clamorosos que eles por si só são um evento da comunicação. Ocorre que a teologia, nos últimos vinte anos, e a Igreja elaboraram todo um discurso sobre essa temática, que foi um discurso polêmico dentro da Igreja e na sociedade. Dentro da Igreja porque obriga a própria Igreja a mudar sua forma de poder, de participação. Ao nível da sociedade, porque a Teologia da Libertação postula uma sociedade alternativa, uma democracia fundamental, coisa que é negada pelo atual sistema. Então, esse tema é de interesse mais global. Eu, pessoalmente, entendi isso como uma forma de veicular um grande tema, que é polêmico, que interessa desde o intelectual até a grande massa que se sente oprimida e elabora sua consciência. Por detrás, há interesses de ordem econômica e eu tentei articular isso no interesse da própria libertação dos oprimidos e dessa teologia que, como nunca, conseguiu audiência, uma difusão, que jamais conseguiria por seus próprios e internos de Igreja. FADUL – Existe aí certa contradição, Leonardo, porque a teologia sempre teve trânsito entre meios eclesiásticos, entre círculos de cristãos, através de livros. O livro foi o meio tradicional que a teologia encontrou. De certa forma, aquilo que emancipa, pois a palavra impressa sempre se associa à emancipação, e a imagem à manipulação. De repente, aquilo que, de certa forma, é o discurso da Igreja, essa recusa da imagem, volta-se contra esse próprio discurso. Ou seja, a popularização da Teologia, da temática vem exatamente através dos meios de massa. Essa me parece ser uma contradição que precisaria 171 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade ser efetivamente pensada: por que o espaço dado pelos meios à Teologia da Libertação, por que o espaço dado à sua ida a Roma? Os meios, de certa forma, visam ao lucro. É uma indústria. A indústria cultural é movida pelo lucro. Então, os setores progressistas sempre denunciaram isso – o mal da cultural é que ela visa ao lucro. Uma questão que eu levanto para você: é que o conteúdo oposicionista também dá lucro. Como é que você, a Igreja, pode conviver com essa questão, há uma ênfase, talvez excessiva, nos meios grupais, voltando às costas para essa grande contradição que aparece nos meios de comunicação? BOFF – Eu penso que essa questão dá lucro para os dois lados. Dá lucro para o sistema, lucro financeiro, de audiência e dá lucro para a Igreja e para os grupos interessados em libertação, na medida em que se abre uma brecha. Essa brecha é aproveitada, e se lança uma mensagem que é contraditória ao sistema, porque se quer reforçar o polo mais fraco do sistema e o polo que é crítico ao sistema, e quer ser também uma alternativa ao sistema. Então, eu penso que a atitude de segmentos da Igreja não pode ser maniqueístas face aos meios de comunicação. Tem que entender a mecânica interna, por ser um meio contraditório, como o Estado é contraditório, como a própria Igreja é contraditória. Tem que se estar atento para aproveitar essas brechas, no sentido de manter essa brecha aberta, moderar um pouco o discurso para não ser totalmente tolhido e poder dizer a sua mensagem que atinge, especialmente, àqueles mais interessados que são as imensas maiorias que estão buscando liberdade, pão e vida. 172 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 FADUL – Eu acho que esta pergunta que foi feita, inicialmente, para você sobre uma certa insuficiência no debate sobre a comunicação no domínio da Teologia da Libertação precisaria ser ampliada, no sentido de colocar essa demonização, que nós temos feito, eu, inclusive. Acho que esses setores progressistas da intelectualidade brasileira realmente identificam os meios de comunicação de massa com a dominação. É como se a dominação nascesse a partir da Rede Globo. A dominação não nasce na Rede Globo. Ela começa na fábrica, na escola, na família, no escritório, os meios vêm reforçar um processo de dominação existente. Então, essa demonização dos meios de comunicação é um discurso dominante. Não somente da Igreja, como também desses setores progressistas. O que eu te pergunto é o seguinte: como a gente pode trabalhar para a superação dessa importação de modelo teórico. Nós estamos aplicando, no Brasil, desde 1980, modelos teóricos que foram formulados nas décadas de 30, de 40, pela ‘Escola de Frankfurt’, tendo em vista uma situação específica, no caso da Alemanha e da ascensão do nazismo e, depois, quando esses alemães se exilam nos Estados Unidos, a questão da ‘indústria cultural’. Década de 40, nos Estados Unidos, e do surgimento de uma indústria cultural, cinema, rádio e assim por diante. Eu te pergunto: será que nós também não somos dependentes e esse é um tipo de dependência muito perigosa, porque é uma dependência teórica, de modelos importados. Nesse Congresso, eu ouvi já exposições baseadas, exclusivamente, nessa categoria da manipulação exercida pelos meios de comunicação de massa. A pergunta é essa: como a gente trabalha essa questão da importação de modelos teóricos? 173 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Eu penso fundamentalmente que não há tratamento específico feito pelos teóricos da Teologia da Libertação acerca dos meios de comunicação. BOFF - Inicialmente, há uma carência de análise. Isto é, fica-se mais preso aos referenciais importados do que ao acesso à realidade e procurar ser criativo, desvendar os mecanismos de funcionamento. Passando por esse caminho de análise, a pessoa se dá conta de que a dominação e a manipulação nunca são completas. Há sempre brechas, há sempre resistência, há sempre também a identidade do povo que permanece, apesar de todo esforço secular de desestruturação. Eu acho que devemos ver a realidade com dois olhos. Com o olho da classe dominante, que dispõe desses meios para veicular a dominação, introjetá-la dentro do povo. E também com o olho do povo, como ele resiste, como ele elabora sua cultura do silêncio, a sua forma de ver dentro da cultura dominante a sua própria identidade. Eu penso que é um desafio para os estudiosos latino-americanos como para nós, teólogos, foi um desafio criar categorias teológicas adequadas à nossa realidade, autóctones, que não inspiram simplesmente de modelos exteriores. Deixa-se ensinar, sim, pela grande tradição teológica, também atual hoje, da teologia norte-americana e européia; mas, fundamentalmente, faz uma filtragem a partir da experiência da realidade que é uma experiência sofrida e, a partir daí, elaborar o pensamento, que não será arquitetônico, será claudicante, mas será nosso pensamento e mordente, em cima da nossa realidade. 174 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 FADUL - Uma coisa que me interessa muito, enquanto pessoa interessada numa teoria crítica da comunicação é o percurso que a Teologia da Libertação fez na América Latina. Eu me lembro de varias posições suas e de outros teólogos, na qual se mostra que essa teologia não se constrói em função das discussões de obras teológicas. Ela não é um discurso com textos, mas um discurso construído a partir de práticas concretas. Em suma, ela nasce em função de uma história de um Continente oprimido. Será que não está havendo certa defasagem entre esse trabalho que a Teologia da Libertação fez na área da História, da Economia, da Política, enfim, ao pensar práticas religiosas, na América Latina, e questões da cultura? Eu sinto um pouco, no domínio da cultura, uma certa importação de modelos teóricos. A cultura deve ser pensada a partir de um outro lugar social e não a partir da cultura letrada. Eu acho que a Igreja, na medida em que é uma das mais antigas instituições, tem valores que são da cultura letrada. Na medida em que tem esses valores encara com muita desconfiança outros valores, uma cultura veiculada através das imagens e assim por diante. Então, eu acho muito difícil trabalhar na área da cultura. O grande desafio é a gente conseguir trabalhar, nesse mundo de valores, porque inclui uma dimensão que diz respeito à essência da vida humana. Eu acho que você fala de vida, de sentimentos, de morte, enfim, há todo um mundo de valores que penetra realmente esse universo. Então, a pergunta que eu te faço, bem concretamente, é a seguinte: será que não está havendo, no caso da cultura, uma certa defasagem com o trabalho que vocês fizeram, em outras áreas, por 175 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade exemplo análise das ciências sociais, da própria Igreja, a história da Igreja está sendo feita, a partir não mais de uma leitura da classe dominante, mas é a partir dos vencidos. Oscar D. tem-se dedicado a pensar a História a partir de um outro lugar social. Então, o que eu pergunto é o seguinte: será que nós estamos pensando a história da cultura a partir de um outro lugar social que é a não cultura do dominante, mas sim a cultura do dominado? BOFF – Na Teologia da Libertação, há uma vertente que procura pensar a Teologia a partir da cultura popular, especialmente um grupo forte argentino, uruguaio e colombiano. Ocorre que esses querem apresentar essa questão como alternativa à Teologia da Libertação. Eu creio que é injusto isso. Desde que tomarmos a cultura na sua compreensão mais profunda, que ela resulta de um jogo de relações econômicas, sociais políticas e religiosas e ela é, continuamente viva, porque é criada a partir dessas forças que estão por detrás da cultura e que a Teologia da Libertação mais analítica, que incorpora uma certa tradição marxista, procura ver aí, também, os conflitos que se dão nessas forças e que permitem entendermos que haja uma cultura dominante e uma cultura dominada, sincretismos culturais, muitas culturas, conforme se dá a diversidade das classes, das forças sociais em conflito. Então, aí há uma reflexão, embora para mim, seja muito idealista, porque não incorpora conflito. Não se dá conta de que a cultura é encobridora de conflitos que caberiam por desvendar e, aí creio que, uma certa sociologia do conflito seria útil para completar essa análise. Por outro lado, penso também que ao nível popular e de Igreja, penso também que está ha176 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 vendo uma nova valorização da cultura popular, de catolicismo popular. Porque temos o catolicismo oficial, letrado, dogmático, de iniciados e é controlado e produzido pelo clero. Existe um imenso catolicismo popular, que eu pessoalmente acho que é a maior criação da fé cristã na América Latina. Ele se faz em articulação com o catolicismo oficial, mas também livre dele, a maneira como o povo vê o Evangelho, o encontro com o Cristo, com a cruz, com os santos, ele mesmo criou as formulações, foi o sujeito da criação do capital simbólico, ele mesmo criou suas festas, controla as festas. Houve sempre, inicialmente, um desprezo a isso, porque se dizia um cristianismo sincrético, não-ortodoxo e até herético. Hoje, nós percebemos condição de estarmos dentro desse continente, que ele tem sua verdade, sua ortodoxia, que nem tudo vale, que a forma própria do povo, simbolicamente, captar e encarar o Cristianismo, e que só nós podemos entendê-lo com a condição de trocarmos de lugar social, entrarmos dentro daquele continente e entendermos, aí, como aprendizes dos verdadeiros sacerdotes do ‘catolicismo popular’, que são os próprios líderes carismáticos do povo. Esse processo está sendo feito com contradições, porque é absolutamente novo e, então, descobrimos como esse catolicismo popular foi um catolicismo de libertação, via resistência, via preservação da identidade de grupos como negros, como indígenas. A Igreja tem de valorizar isso como obra de Deus dentro do mundo. FADUL – Eu acho que essa colocação que você faz de uma ala da teologia, eu colocaria entre parênteses a libertação, porque na medida em que você trabalha com 177 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade categorias abstratas e idealizadas, como no caso de uma cultura argentina, como se fosse possível isso, sem entender as diferenças sociais, as diferenças de classe. Quer dizer, a cultura existe como uma coisa monolítica, ela existe numa sociedade em conflitos, numa sociedade em contradições. O que eu pergunto para você é o seguinte: será que nós temos que apresentar esta alternativa, a Teologia da Libertação, tal como ela é vista, a partir desses teólogos que estão comprometidos efetivamente com uma luta Tem que se estar atento para aproveitar as brechas. Moderar um pouco o discurso para não ser totalmente tolhido e deixar as brechas abertas do povo pela libertação e esses que, de certa forma, tentam escamotear o conflito. Será que existe alternativa ou, ao contrário, nós teremos que acrescentar a essa teologia preocupada com a libertação, com a emancipação, a dimensão do simbólico, a dimensão de culturas. Ou seja, a cultura, de certa forma, é minimizada, é vista assim como uma necessidade posterior àquelas necessidades básicas, que têm que ser satisfeitas, imediatamente, porque dizem respeito à própria subsistência. Então, eu colocaria que há uma hierarquia de necessidades e a cultura é sempre vista a posteriori. A pergunta é a seguinte: será que ela não tem que ser vista conjuntamente, ao mesmo tempo em que existem necessidades urgentes, econômicas, sociais, políticas, que têm que ser satisfeitas, a questão da cultura tem que estar junto com as outras questões? Se você separa, realmente, introduz uma dicotomia que não existe na prática. 178 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 BOFF – É, exatamente, nessa formulação, que eu vejo a questão. Eu penso que o simbólico, o cultural, não é uma derivação da infraestrutura econômica, nem dos relacionamentos políticos e sociais, mas é uma dimensão estrutural do ser humano, de tal maneira que, quando ele produz, ele faz dentro de um código cultural, dentro de uma significação, dentro de uma simbolização, ele ritualiza o comer, ritualiza o trabalho, ele carrega de intencionalidade as relações humanas, a natureza. O Sol não só brilha, ele é símbolo de toda uma vida. Então, eu acho que isso é muito vivido em nível de povo, eu penso que há uma insuficiência do marxismo, ao ter colocado a cultura com simples sobre-estrutura. Eu penso que as críticas que Raul Ricker faz ao marxismo, principalmente francês, em reconduzir o simbólico como infraestrutura, porque aparece especialmente humano, é o ser humano quem simboliza, coisa que o animal não o faz. E isso acompanha todas as manifestações da vida humana. Há extratos, segmentos da Teologia da Libertação que incorporam isso. Eu, pessoalmente, preocupo-me com essa realidade. Particularmente, grupos da Teologia da Libertação que trabalham com movimentos populares e indígenas são muito atentos a isso e vêm amparados por uma teoria mais complexas e crítica face à tradição marxista. FADUL – Como é que você vê essa questão que está sendo muito colocada, no Brasil, e em outros países, também, de uma certa resistência pelos setores progressistas da Igreja, a aceitar práticas populares da religião, ou seja, você aceita, mas não legitima essa religiosidade 179 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade popular, por exemplo as procissões, as idas às cidades-santuários, como é Juazeiro e Aparecida do Norte. Eu sinto uma certa intolerância por essas práticas. Isso não é dito, não é colocado. Seriam manifestações de uma consciência atrasada. Um povo que luta por sua emancipação não poderia ir a Aparecida do Norte, porque Aparecida do Norte representa uma outra face do Catolicismo, do Cristianismo. De certa forma, a gente retoma aquela velha polêmica do Padre Cícero, do Frei Damião, que a Igreja, de uma forma bastante intolerante, ignorou, marginalizou e que o povo aceitou, continua fazendo desses, como Padre Damião, que ainda está vivo, e que continua tendo uma penetração muito grande junto ao povo. Como é que você vê essa questão, como ela é vista pela Teologia da Libertação? BOFF – Houve, num primeiro momento, logo após o Concilio Vaticano II, 1965, em que houve uma grande purificação das Igrejas em termos de tirar as estatuas, simplificar os ritos, terminar com as festas populares. Após alguns anos, houve uma grande e profunda revisão. Damos-nos conta de que houve todo um processo iluminista, de sacerdotes que vêm de uma formação burguesa, acadêmica, universitária, que não entenderam o código popular, a partir do lugar do pobre, do próprio povo, mas entenderam, a partir do código mais progressistas, universitário, da cultura dominante. E, nesse sentido, está havendo um imenso processo de reformulação, de autocrítica dentro da Igreja. Também nos demos conta de que fechando o simbólico do povo, em termos das estatuas, dos ritos, nós estamos fechando as janelas da alma do povo. E que aqueles sacerdotes que 180 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 perduram, ainda nessa desconfiança, na verdade, atestam a sua falta de articulação e convivência com a alma do povo. É uma leitura exteriorista. Quando ‘entramos’ dentro do povo, percebemos que essa religião, absolutamente, não é alienante, que esses ritos e procissões são os lugares fortes, onde eles recarregam as baterias da vida, para aguentar a profunda pressão que sofrem, que são lugares de esperanças, onde eles se sentem filhos de Deus, têm um nome, são respeitados, onde eles mesmos são os donos da festa, produzindo a oração e, portanto, são ativos e não submetidos e atrelados a um esquema clerical. Nesse sentido, eu penso que há uma reflexão séria, de recuperação, de valorização e, também, um processo do povo mesmo purificar as suas festas, a partir de uma evangelização bíblica, dos círculos bíblicos, das comunidades, nas quais essa matriz popular religiosa é enriquecida com elementos mais críticos, no sentido de participação na sociedade, fazer a crítica aos sistemas de dominação é que torna essa religião mais funcional aos anseios libertários e de direitos humanos, de participação do povo, já que a perspectiva, antes mais devocional, antes sacralizada, criava um espaço interno de respiração, de libertação, mas sem articulá-lo com o processo mais da caminhada do povo. E, nesse sentido, há um trabalho de tentar enriquecer essa matriz a partir de dados mais de justiça. FADUL – Eu perguntaria para você como é que vocês, teólogos, estão vendo, eu diria que um renascimento, na periferia de São Paulo, dos terreiros de Candomblé, Umbanda, essa coisa toda. O que eu percebo, nesses terreiros, 181 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade é que se elimina a questão da vida material. Não é que se elimina, se dá justificativas, os deuses estão aqui e eles explicam tudo. De certa forma, há uma minimização das lutas concretas dessas pessoas, de grupos que vão a esses terreiros e que, de repente, encontram uma explicação para sua situação no transcendente. Existe alguma relação, por exemplo, entre essa laicização da religião, uma certa transformação do discurso religioso e um discurso terreno, um discurso mais preocupado com a luta do povo, e esse crescimento dessas seitas religiosas, eu citei as de origem africanas, mas há outras seitas, Moom e essas coisas, em que, realmente, tudo se explica, não a partir de lutas concretas, da terra, mas a partir do transcendente. O povo sabe escolher seus símbolos quase que por intuição, apesar da pressão do Catolicismo oficial para que o povo não crie a própria vida. BOFF – Eu vejo duas questões aí. Quando a opressão atinge limites insuportáveis e que impedem qualquer luta do povo, porque é logo reprimida, a religião se transforma no reduto dos oprimidos, no refúgio do vencidos. Então, é aquele pequeno espaço onde eles podem respirar, resistir, guardar o nome e ter uma fuga para cima, para o transcendente, porque a fuga para os lados, em termos da participação, é negada. Então, a religião, a partir do oprimido, ela significa libertação, embora libertação só espiritual, simbólica. O segundo elemento que me parece importante é o risco que o Cristianismo controlado pelos teólogos, pelo corpo sacerdotal, ele se transforma numa visão do mundo, 182 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 numa teologia conceitual e perde seu conteúdo simbólico. Finalmente, Deus não é dado como objeto, nós não vemos Deus, só temos acesso a ele mediante símbolos. E, no momento em que tiramos os símbolos da religião, nós matamos a religião. Ou ela fica algo para iniciados. Então, essa busca de símbolos revela uma crise dentro do Catolicismo, que ele se especializa e formaliza e, por isso, se elitiza, e outras instâncias preenchem esse vazio, uma simbólica muito grande e uma simbólica, às vezes, alienante, sem articular com toda a riqueza da vida. O que a gente percebe, nas comunidades de base, nos grupos já militantes, é que eles ritualizam a vida, celebram as conquistas, invertem símbolos e são altamente significativos, seja ao nível das comidas, das danças, dos cânticos, ao nível dos símbolos que eles oferecem. Então, o que mostra a experiência religiosa que se dá, na vida, consegue encontrar seus condutos de expressão e em símbolos que não são arbitrários, que são muito ligados à vida. Não é qualquer coisa que serve de símbolo, mas aquela que é significativa, de uma significação pura, não ambígua. O povo sabe escolher isso quase que por intuição. Eu penso que há um esforço muito grande em nível de Igreja, até com resistência, porque a pressão do Catolicismo oficial é muito grande, de permitir que o povo crie, celebre sua vida, popularize a liturgia, liturgifique a própria vida. 183 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 184 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 23. Aluísio Pimenta24: A burocracia cultural25 Ada Dencker e José Américo Ribeiro a cultura, no Brasil, tem sido relegada ao segundo plano”. A declaração é do atual ocupante da Pasta da Cultura, ministro Aluísio Pimenta. Nesta entrevista, ele fala sobre o ministério e adverte sobre o perigo da burocracia cultural. INTERCOM: Qual a sua opinião sobre os desdobramentos dos Ministérios da Educação e cultura e o da Ciência e Tecnologia? Aluísio Pimenta: Considero dois problemas distintos. O primeiro refere-se ao desdobramento do Ministério da Educação e a criação do Ministério da Cultura, que é um assunto polêmico, sobre o qual tenho meditado muito. Tenho considerado as vantagens e desvantagens desse 24. Entrevista concedida em 11-3-85. Nessa ocasião, Aluísio Pimenta era presidente da Fundação João Pinheiro, não ocupando ainda o cargo de ministro da Cultura do governo Sarney. O roteiro da entrevista foi fei- to por Ada F. D. Dencker e sua realização coube a José Américo Ribeiro. 25. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano VIII, nº52, jan/jun. 1985. p.36-41. 185 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade desdobramento, pois existem os dois lados da questão. Creio que, no Brasil, a cultura tem sido relegada ao segundo plano. Quando falamos em cultura, referimo-nos, em geral, a apenas a uma de duas dimensões, a artística, que embora seja, sem dúvida alguma, muito importante, é somente um dos seus aspectos. Entretanto, a cultura em sua dimensão antropológica, no sentido de nos voltarmos às aspirações do povo, em geral, no processo de desenvolvimento cultural da nação brasileira, tem sido esquecida. O Brasil possui raízes indígenas, africanas e europeias e, entretanto, observamos que não há, nas universidades, uma cadeira que se dedique ao estudo da cultura negra, existindo apenas iniciativas longínquas de uma ou outra universidade. A existência do Ministério da Cultura tem a vantagem de conferir presença, de mostrar a necessidade de nos dedicarmos mais aos problemas da cultura, em seu sentido mais amplo. É preciso, nos termos mesmo do que faz a Secretaria da Cultura do Ministério da Educação, dar mais forças, maior possibilidade de recursos e, consequentemente, como já dissemos, maior presença, uma visibilidade mais ampla, que se tornaria possível com a criação de um Ministério especificamente dedicado à Cultura. Por outro lado, um lado que poderíamos chamar de perverso, se é que é há um lado perverso, seria possibilitar uma excessiva intromissão do governo, na questão cultural, principalmente em nosso caso, na América Latina, onde existe esta tão lamentável tradição dos governos militares. Se tivéssemos um Ministério da Cultura nas mãos de uma ditadura, seria desastroso. Temos, como exemplo disso, o que ocorreu na Alemanha nazista. Felizmente, tenho esperanças, pois pessoalmente acho que, com a terceira República, estejamos 186 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 encerrando o ciclo dos governos militares no Brasil. Faço votos para isso, e não apenas votos, faço força para que isso aconteça e, efetivamente, não tenhamos mais nenhum ciclo de governos militares. Dessa forma, se colocarmos em uma balança, vantagens e desvantagens de um Ministério da Cultura, acredito que as vantagens superam as desvantagens. Outro aspecto que não deve ser esquecido e que, eventualmente, poderia ser catalogado como desvantagem, é o afastamento entre cultura e educação. Em um país de Terceiro Mundo, como o nosso, a base da educação tem que ser a base cultural. Caso o processo educativo brasileiro não se desenvolva dentro de nossa cultura, dando ênfase ao estudo da língua pátria, da nossa história. Corre-se o risco de pensar que cultura e educação são coisas distintas, quando de fato estão intimamente interligadas. Há muitos países que não possuem Ministério da Cultura, como, por exemplo, os Estados Unidos; mas, de acordo com um levantamento que fizemos, na Fundação João Pinheiro, sobretudo em países socialistas, existem países que possuem Ministérios da Cultura extremamente ativos. Pessoalmente, considero que devemos partir para essa experiência, sobretudo, com um homem de inteligência do Dr. José Aparecido de Oliveira, cujo trabalho na Secretaria de Cultura de Minas Gerais foi excelente. Diante disso e, usando uma expressão um pouco protocolar, eu diria “que vale a pena pagar pra ver”. O mais importante é nos precavermos contra a burocracia da cultura, pois se isso viesse a ocorrer, seria desastroso para todos nós. Espero que isso não ocorra e que possamos coordenar todos os setores ligados ao campo da cultura, as artes, as humanidades, a cultura popular, incluindo-se uma 187 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade coisa que é pouco comum, no Brasil, que o estudo da cultura das empresas, que poderá se constituir em um projeto para o futuro. Levando-se em consideração prós e contras, ainda considero, em termos gerais, a criação do Ministério da Cultura como uma experiência vantajosa. Quanto ao Ministério da Ciência e Tecnologia, as coisas são diferentes e muitas preocupações mais amplas. No Brasil, brindamos o setor da Ciência e Tecnologia, primeiro com o FINEP, financiador de projetos, no setor de empresas, temos a chamada STI – Secretaria de Tecnologia Industrial do Ministério da Indústria e do Comércio, somando-se a elas a Secretaria de Informática, subordinada, diretamente, à Presidência da República, enfim, uma série de órgãos, de diferentes subordinações e que deverão integrar o Ministério da Ciência e Tecnologia. Evidentemente, a coordenação desses órgãos será complexa, exigindo uma atuação equilibrada do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas que permita a essas atuais secretarias liberdade de atuação dentro de um planejamento comum, dentro de um critério harmônico, tornando positiva a criação do Ministério da Ciência e Tecnologia. A heterogeneidade dos órgãos citados poderá acarretar, em um primeiro momento, alguma dificuldade de relacionamento, mas a sua atuação, em separado, é sem dúvida alguma menos produtiva. Tenho uma grande esperança que a criação desse Ministério traga uma significativa contribuição para a Universidade Brasileira, que dela muito necessita. Também a Universidade, por seu lado, poderá contribuir, nesse campo, sobretudo, se quem vier a ser encarregado desse Ministério tiver a sensibilidade e a coragem de resistir ao colonialismo cultural, que existe tanto nesse setor quanto no da cultura. 188 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Acho vantajoso e tenho esperanças num Ministério da Ciência e Tecnologia, mas supondo-se que não dê certo, sempre podemos voltar, a menos que a burocracia tome conta de tudo e tenhamos mais um ‘cabide de empregos’, o que, certamente, seria um desastre. INTERCOM: A seu ver, qual o papel da cultura no novo pacto social? Aluísio Pimenta: Bem, eu acho que em um país em desenvolvimento, a cultura deveria permear todos os setores da administração e da política. Infelizmente, isso não acontece, talvez, devido àquele conceito de cultura como alguma coisa clássica, alguma coisa da elite, esquecendo-se de que a cultura se liga às classes menos favorecidas e ao seu trabalho, e aí que incluímos aquele conceito de cultura de empresa, a que nos referimos anteriormente. Essa cultura de empresa, a cultura da instituição, deve ser levada em consideração em termos do pacto social. Infelizmente, não temos tradição nessas coisas e nos baseamos, no momento, no caso espanhol. É preciso lembrar que o Brasil não se compara à Espanha, eu diria mesmo que até a nível de América Latina não existe nenhum país com as mesmas características do Brasil. As diferenças vão desde a tipologia universitária até todas as demais caracterizações. Nós somos outra cultura e, diante disso, tivemos que pensar um pacto social flexível, dentro de nossas condições, sem procurar impor nada, nem da parte do governo e empresários, nem da parte dos trabalhadores. Precisamos de um pacto dentro das nossas características 189 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade culturais para que o mesmo não resulte em um pacto que não dê forças ao empresário em detrimento do empregado, um pacto que simplesmente visasse à manutenção do status quo. O pacto social tem que ser um pacto para a mudança, dentro do entendimento. Precisamos de um pacto voltado para o operário, que está desempregado, ganhando pouco. É necessária, nesse momento, uma redistribuição de rendas, pois em essa redistribuição não há pacto social. E por que não há? Não há porque, o Brasil de hoje, é inviável no Capitalismo. Produção há, mas não existe quem compre. Visite os açougues, eles estão cheios de carne, mas os operários não podem comprá-la. Para que haja um pacto social, dentro de nossas características, é imprescindível uma mudança. Um pacto A Universidade perdeu a presença. Os reitores são verdadeiros síndicos encarregados de pequenas medidas. É preciso liberar a universidade. social que vise à manutenção de hegemonia do patrão sobre o empregado será como, há muito apregoada por aí, liberdade da raposa e da galinha: a raposa tem liberdade de comer a galinha e, a galinha tem a liberdade de ser comida. Isso não é pacto, não é consumo, é imposição. INTERCOM: diante disso, como é que ficam a sociedade civil e políticas culturais alternativas? Aluísio Pimenta: está aí outro assunto de maior importância. No Brasil, o grande problema é a educação para a 190 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 cidadania. Uma educação para que a pessoa possa ser crítica consigo mesma e com os direitos e deveres. Em uma importante reunião de educadores, aqui em Minas, de que participei, discutimos isso. O Brasil, não apenas nesses 20 anos, mas, sobretudo, nesses 20 anos, perdeu muito das características de nação brasileira. O colonialismo cultural foi enorme. Se você observa a Amazônia, boa parte dela nas mãos dos estrangeiros, havendo propriedade de dimensão igual ao do Estado de Sergipe e outros pequenos Estados do Nordeste. O colonialismo cultural atingiu a universidade e temos aí a universidade brasileira com tanta coisa mal copiada da americana. Quando ouvimos rádio, temos dificuldade de encontrar coisa brasileira. Não sou xenofobista nem contra os estrangeiros, mas é preciso ser nacionalista, ser mais brasileiro. É preciso enfatizar, no Ministério da Cultura a cidadania brasileira. Enfatizar a cidadania, enfatizar a cultura que seja à base do desenvolvimento do país. Não conheço nenhum país que se tenha desenvolvido sem uma base cultural. Não existe modelo de desenvolvimento desprovido de base cultural e é por isso que o modelo brasileiro não existe. O que temos é uma colcha de retalhos copiada de modelos americanos, ingleses, franceses e alemães. Temos que desenvolver estudos para fazer do modelo brasileiro a base de nossa sociedade. Um modelo a favor do Brasil e não contra o Brasil. O nosso modelo, que deverá considerar as diferenças regionais, as características culturais diferentes, conservando uma certa individualidade na diferença que todos nós temos. A busca da individualidade dentro da nossa cultura, para o que precisamos convocar toda a sociedade brasileira, a fim de que tenhamos uma evolução cultural com a participação ampla de todos. 191 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade INTERCOM: E o papel da universidade na atual conjuntura? Aluísio Pimenta: Acho fundamental. No Brasil, o governo ainda não se deu conta disso. Nos últimos 20 anos, as universidades tornaram-se católicas. A universidade brasileira está sob intervenção. Quando fui reitor, tinha autonomia para nomear professores, desenvolver programas próprios, criar unidades, naturalmente, dentro de uma legislação geral, que é necessária. Hoje, a universidade perdeu presença, os reitores atuam como se fossem síndicos encarregados de pequenas medidas, mas sem poder andar abertamente para desenvolver a universidade, indo de encontro aos reais problemas do Brasil. É preciso libertar a universidade, deixar que ela cometa alguns erros; mas, vamos livrá-la dentro de sua importante função social, dando um bom ensino, um ensino excelente. A universidade só será universidade se for excelente e, dentro dessa excelência, tem que se voltar aos problemas sociais e culturais. Ela tem que colaborar com a comunidade, assumir seu papel na cultura brasileira em seu sentido mais amplo, em seu sentido antropológico, cultura no sentido de cinema, rádio, televisão, das novas tecnologias que estão aí permeando. Nós acabamos de ter, aqui, o fenômeno dos Menudos que me preocupou profundamente. Por quê? Três ou quatro meninos, muito bons e tal, e que empolgam a meninice aqui e, na América Latina e, que até certo ponto, têm uma mensagem que eu não consigo ver. Eu não consigo ver, mas os meus netinhos eu não consegui segurar em casa. O filho de todo mundo estava lá. O fato é que setenta mil meninos encheram o Mineirão, talvez por falta de nós não termos mensagem, mensagem que esses meninos estão dando 192 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 e que nós não demos. Não adianta ser contra os Menudos porque os meninos passam em cima de nós e vão. Da mesma forma não adianta ser contra os joguinhos eletrônicos. O que temos que fazer é estabelecer opções, opções brasileiras com uma mensagem profunda, simples e boa que a meninada aceite. Dentro dos joguinhos eletrônicos, uma mensagem aproveitando nossa fauna, flora, nossa história. Para isso, é preciso capacidade, criatividade, sensibilidade. O grande desafio da universidade brasileira é o de voltar-se, sem perder qualidade, sem perder excelência, para os problemas brasileiros. Seu papel é fundamental, sobretudo, depois desses 20 anos de autoritarismo, pois as sequelas do governo autoritário e da ditadura são pires do que a própria ditadura e o próprio governo autoritário em si. É preciso impedir que as sequelas da ditadura distorçam a cultura brasileira, atuando, efetivamente, dentro desse campo. INTERCOM: E a crise econômica e sua saída pela cultura? Aluísio Pimenta: Acho que estamos distorcendo muita coisa, no Brasil, com relação à própria crise econômica. Tomemos como exemplo a nossa alimentação, que a meu ver poderia ser muito mais rica. Estive no Recife, a convite da Fundação Joaquim Nabuco, e fiquei alojado em uma hospedaria. Realmente, uma beleza, sendo que a comida me impressionou muito: cuscuz, um queijo especial de fabricação local delicioso, tapioca, enfim, uma alimentação de primeiríssima qualidade feita de coisas nossas e de custo muito mais baixo. E o que nós fazemos? Abandonamos tudo isso e passamos a consumir alimentos que não têm 193 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade nenhuma ligação com a nossa realidade e a nossa cultura, a um custo muito mais elevado. Então, agora, estamos falando no problema cultural e considero extremamente interessante todas essas perguntas. Realmente, o importante é olhar a questão cultural no seu sentido antropológico, em sentido totalizante que atinge todas as áreas. Tome a nossa arquitetura, como exemplo, e você verá que ela não se adéqua à nossa realidade. Temos nove meses por ano de Sol, mas fechamos tudo e instalamos luz artificial, enquanto a luz natural grita lá fora. Olhe o nosso vestuário, terno, gravata, totalmente inadequado para o nosso clima tropical. Até mesmo no setor farmacêutico que, atualmente, fatura cerca de dois bilhões de dólares, quando 80% de nossas doenças podem ser curadas com o chazinho caseiro, típico da nossa cultura, enquanto que somente as realmente graves necessitam de medicamentos. INTERCOM: E sobre a cultura e a Constituinte? Aluísio Pimenta: A Constituinte é fundamental do ponto de vista da educação, da economia, e, evidentemente, de tudo aquilo que engloba a cultura. É a grande saída nesse momento. Precisamos nos reunir e discutir todos esses aspectos, para podermos fazer frente a todos aqueles que estão se reunindo para impedir que possamos introduzir, na Constituição brasileira, artigos básicos que permitam o Brasil assumir uma posição de nação livre e soberana. É fundamental que tenhamos uma Constituição flexível; mas, ao mesmo tempo, muito corajosa, que impeça, por exemplo, 194 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 que os meios de comunicação estejam a serviço das forças antibrasileiras. É preciso impedir que a educação seja colocada a serviço da colonização do Brasil. Impedir que a arte brasileira e suas manifestações culturais se coloquem a serviço de forcas contrarias a comunidade. Não tenho nada contra a que os canais de televisão estejam a serviço das empresas; mas, ao lado disso, são necessários canais de televisão a serviço das universidades, dos centros culturais e das nossas diferentes etnias. A Constituinte é, nesse momento, a grande saída. E, para que ela atinja seus objetivos, é fundamental que nos reunamos com muita coragem, com muita inteligência e muita dedicação, para estarmos preparados para a defesa de uma Constituição que realmente seja a serviço do Brasil e não contra o Brasil. 195 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 196 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 24. Enzensberger: Poder e estética televisiva26 Antonio Hohlfeldt e Sergio Capparelli O poeta e ensaísta alemão, Hans Magnus Enzensberger, esteve recentemente, no Brasil, para lançamento de seus livros, Eu falo dos que não falam27 e Com raiva e paciência28. Enzensberger era, literalmente, pouco conhecido, no país, mas alguns de seus ensaios, especialmente sobre os meios de comunicação, há muitos anos, vinham sendo discutidos em Universidade. Um deles, Elementos para 26. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano VIII, nº53, jul./dez. 1985. p.05-11. 27. Enzensberger, Hans Magnus. Eu falo dos que não falam. São Paulo: Brasiliense, 1985. 28. __________. Com raiva e paciência. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. 197 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade uma teoria dos meios de comunicação29, aguilhoava a esquerda por ficar apenas em lamentações quanto ao uso dos meios massivos por grupos dominantes, sem, no entanto, nada fazer para construir uma teoria socialista desses meios. Esse texto apresentava uma visão otimista do jornal, rádio e televisão, mostrando suas potencialidades como propulsores de mudanças sociais e democratização da comunicação. Junto com esse texto, circulavam, nos meios universitários, traduções espanholas ou francesas do ensaio Indústria da consciência30, agora, traduzido e integrando o Com raiva e paciência. Essas reflexões foram, de certa forma, um pré-texto dos elementos para uma teoria das mídias. Mais tarde, em the television and the politics of liberation31, de1977, Enzensberger se torna menos otimista em relação aos meios de comunicação. Já se reflete um certo desencanto. O período entre os dois trabalhos foi marcado, é claro, por muitas mudanças. Basta lembrar que as primeiras reflexões acontecem, logo após 1968, com seus protestos estudantis e tentativas de alterações da estrutura social. Nessa entrevista, Sérgio Capparelli e Antonio Hohlfeldt, Enzensberger fala sobre as mudanças ocorridas no 29. __________. Elementos para uma teoria dos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977. 30. Enzensberger, Hans Magnus. “Le façonnement industriel des Esprits” in Culture ou mise em condition. Paris: Union Générale d´Editions, 1973. 31. __________. The television and the politics of liberation in the new television: aprivate art. Cambridge: MIT PRESS, 1977. 198 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 contexto político-econômico, transformações dos próprios meios de comunicação e, igualmente, no surgimento de uma nova estética televisiva. Capparelli – Do texto Elementos para uma teoria dos meios de comunicação a Televisão e a política de liberação vão alguns anos e uma grande mudança em relação aos meios de comunicação. Já se observa um certo desencanto nos seus textos. Pode falar sobre isso? Enzensberger – Passo por uma experiência bastante curiosa porque, aqui no Brasil, as pessoas me saúdam como um expert em comunicações. Consideram-me como um cientista da Comunicação. Em todas as universidades, há pessoas que estudam esse assunto e me consideram como um colega. Isso se deve puramente a uma casualidade, porque existem poucos textos meus traduzidos para o Português. Um desses textos se chama Elementos para a teoria da comunicação. Para mim, é uma parte muito parcial de minha atividade, porque realmente não sou um expert em nenhuma coisa. Não sou professor de nada. Então, não quero me apresentar como uma autoridade nesse assunto. Falo desse assunto como falo de outros problemas, sociais ou políticos. Ao mesmo tempo, é certo que tenho me ocupado muito com questões da Comunicação – a chamada ‘Indústria Cultural’ – e posso dizer por quê. Em primeiro lugar, não há um interesse acadêmico. Parto de uma experiência. A experiência é que os intelectuais, na divisão social do trabalho, dependem dessa ‘indústria’ e, por isso, para nós, não é uma questão puramente teórica, 199 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade mas um problema existencial de como nos comportamos em relação às pessoas a quem vendemos nossas ideias, nossos textos, nossa experiência no trabalho. E esse é o motivo por que não me ocupo das questões. Só depois, entrando no problema, concluo que não me basta uma contestação empírica. Começo a desenvolver certas ideias e, nesse caso, minha convicção é de que não se trata de um problema de categoria, mas de um fator determinante na estrutura da sociedade. E nisso, não sou independente, não sou um pioneiro, não sou o primeiro a chegar nesse problema, mas estou muito influenciado pelas ideias da chamada Escola de Frankfurt. Ou pela ideias de Brecht, por exemplo. Ele não foi só escritor e tinha também muitos trabalhos teóricos. Eu creio que ele se ocupou do problema pelos mesmos motivos que eu, talvez pelos conflitos que experimentou com essa ‘indústria’. Ele tem um texto importante sobre um filme, baseado na Ópera dos Três Vinténs, de sua autoria. Os direitos à utilização do argumento foram vendidos a uma empresa, o que lhe trouxe uma série de reflexões sobre essa relação intelectual/indústria cultural, além, é claro, do filme em si, como produto dessa indústria. Porém, para voltar à questão, é certo que essa preocupação com os meios de comunicação já tem uma certa história, porque é um problema com o qual trato há quase 25 anos. Num primeiro momento, tratei de examinar o jogo complicado que fazem, por um lado, os produtores, autores, diretores de teatro e a briga com essa ‘indústria’. Para mim, não se trata de um jogo unilateral. Um marxista clássico assume, normalmente, que há um jogo determinante nesse capital, que há um capitalista proprietário de um jornal, de uma emissora, e ele determina tudo e o intelectual seria, aproximadamente, 200 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 como o proletário dessa situação. Ele não tem nada o que dizer e deve fazer qualquer coisa para vender seu produto, sua força de trabalho. Esse é um amplo ponto de vista a cerca do conflito com o que me debato. No meu entender, há aqui uma dependência mútua, recíproca. O proprietário não pode rescindir das ideias e das coisas produzidas pelos intelectuais. De maneira que o intelectual também tem uma força nesse jogo. Essas ideias todas correspondem a uma primeira etapa de minhas preocupações em relação à Comunicação. Capparelli – na segunda etapa aparecem, então, as ideias dos Elementos para uma teoria dos meios de Comunicação. Enzensberger – Sim, os elementos estão nessa segunda etapa, que também corresponde a um momento determinado da história alemã, pelos anos 60, sobretudo 66, 67 e 68, quando havia um movimento muito grande de estudantes, um movimento social de grandes proporções. E, nesse momento, foi criada uma série de ideias utópicas, porque foi um movimento que quis atingir não só a superfície da sociedade, mas tinha aspirações e esperanças muito maiores. Nesse momento, chamou-me a atenção que a esquerda, sobretudo, tinha um certo temor dos novos meios de comunicação, especialmente dos mais massivos, eletrônicos, rádios e televisão, por um ataque de purismo. Era como se essa esquerda rechaçasse o jogo complicado para ficar com as mãos limpas: “com capitalistas não se trata. Eu não quero me vender”. Para mim, parecia uma atitude errônea e defensiva, de temor e falta de clareza de 201 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade sua própria capacidade. Então, foi de uma parte um ensaio polêmico contra essa atitude e, por outra parte, um exame das possibilidades inerentes aos outros meios de comunicação, como o rádio e a televisão. Admito que, nesse texto, havia uma carga utópica muito forte, mas que vinha sendo posta à prova. Isso porque havia toda uma série de rádios piratas, de cooperativas, de fazer filmes coletivos. Em todas as partes, surgiam tentativas de novas experiências. E experiências que não foram condenadas, porque havia muito potencial nisso. Depois, me dei conta também de que subvalorizava, em tudo isso, a estrutura do poder e suas formas de resistência. Sobretudo, na televisão, em que o capital é fator dominante. Eu pensava em uma espécie de autarquia dos meios, no sentido de que qualquer pessoa pode manejar uma câmera. Assim, eu pensava o discurso social levado a cabo pela maioria das pessoas. Que cada um podia utilizar essas coisas e provocar um grande diálogo democrático dentro da sociedade. O que se produziu, porém, foi algo muito diferente: a comercialização, sobretudo em televisão e a tendência ao monopolismo. E também o estabelecimento de um mercado mundial de televisão, passando pelos Estados Unidos. Há igualmente os custos da operação – cabos, satélites. Esses custos aumentaram, junto com o nível técnico, com a adoção da tevê em cores. A cada dia, surgem novas tecnologias e, a cada dia, essas tecnologias se fazem mais e mais caras. De maneira que há, agora, uma tendência não à descentralização do meio, mas à centralização em poucas mãos, a clássica concentração dos capitais. 202 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Hohlfeldt – E também a nível político... Enzensberger – E também a nível político. Depois de 68, o controle político da televisão aumentou consideravelmente. Na Alemanha, por exemplo, existe um sistema de televisão pública. Os canais não são estatais, nem privados. São ‘coisas’ públicas, teoricamente, por representantes das igrejas, de partidos, de grupos sociais, de sindicatos. Existe, portanto, uma representação teórica do povo. Mas, na verdade, são os políticos que controlam as grandes emissoras, na Alemanha, assim como nos demais países. Há uma divisão de controle entre o comercial, através da publicidade, e o político, por meio dos partidos políticos. De maneira que, muitos de nós, praticamente já não trabalhamos para a televisão, porque a filtragem é tão difícil e as somas necessárias para fazer um filme são tão grandes, que se transformam num jogo. Por exemplo, eu, quando quero fazer um filme, tenho que lutar por meio ano para ter dinheiro, condições e, depois trabalho, três meses para fazer o filme. Torna-se, assim, uma produção absurda que, para mim, não é mais interessante. E não se trata de um caso individual, mas de uma realidade. Reconheço os erros utópicos inerentes naquele ensaio, que podem valer para uma sociedade com uma estrutura distinta. Teoricamente, é possível uma coisa desse tipo. Na realidade, reconheço que isso não aconteceu e não creio que acontecerá – não foi produzido – e não será num futuro previsível. Por isso, tenho que retificar para não cair em ilusões. 203 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Capparelli – E para o rádio? Enzensberger – Para o rádio, o discurso é diferente, por ser um meio mais barato, mais simples, que exige menos investimentos, além de maior mobilidade. Eu continuo trabalhando para rádio porque não há esses bloqueios, filtragem, cesura do mesmo tipo. É mais acessível, além de não ser monopolista. Bom, esta é a parte político-econômica. Depois, repensei também a questão da estética da televisão. Nisso, também, mudei um pouco de ideia, porque há também uma história que não é a história material do meio, mas a história do desenvolvimento de uma estética televisiva. Nesse nível, penso que houve um desenvolvimento negativo porque, teoricamente, é um meio polivalente, no sentido da imagem, som, linguagem. Porém, a televisão existente é um meio, a cada dia, menos capaz de coerência, a cada dia, mais impaciente, mais neurótico, mais arbitrário na montagem, mais agressivo e, em certo sentido, mais terrorista. Existe um ataque sistemático, para não permitir ao espectador o mínimo de tempo necessário para entender uma coisa, para meditar. A pausa, por exemplo, não existe. Numa conversação normal entre duas pessoas há uma pausa, há a continuidade, há a paciência. Isso não existe na televisão. É também pelo fator da publicidade. Refiro-me, como exemplo, o terremoto do México, no noticiário, em que a pior coisa foi o anunciante vender seus produtos entre uma notícia e outra. Nesse sentido, a estética televisiva não tem possibilidades positivas e mais e mais entra num quase estado psicótico. Ela traz algo como a percepção do mundo vivido por um psicótico. 204 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Hohlfeldt – credita que isso acontece também com os jornais? Pergunto por existir uma certa subordinação dos textos à diagramação e, também, pela imposição de textos cada vez mais curtos por problemas de espaço. Enzensberger – Claro, a tendência é quase universal. Mas, no caso jornal e televisão, é um pouco a relação entre o bife e o hambúrguer. Com tudo isso, para mim, há uma revalorização da coisa de Guttenberg. Havia um famoso McLuhan que decretava o fim do livro e está muito claro que não há um meio eletrônico capaz de substituir a imprensa. Por isso, nos jornais, esse processo tem limite inerente ao meio, creio. Porque, abolir completamente a informação, o argumento, o discursivo em um jornal é uma coisa bastante difícil. Há um ‘caso-limite’. O Bild Zeitung, da Alemanha, conseguiu a proeza de ser um jornal sem informação. Por incrível que pareça, é verdade. Penso que há uma dialética entre a televisão e o jornal. O poder de competência do jornal está justamente nas suas velhas virtudes. Isso se observa, também, nas sociedades que têm uma televisão muito forte. Os jornais sérios não sobrevivem e proliferam os do tipo Boulevard. Eu levanto a hipótese de que há uma sociedade, ou haverá uma sociedade, de classes em termos de informação. Falo de informação de classe. Há uma minoria que não dispõe de todas as informações e será capaz de entender certos processos e uma minoria, vítima de um analfabetismo de segundo grau. Por isso, a imprensa séria não desaparece; ao contrário, especializa-se, atingindo essa faixa da população. A divisão funciona, economicamente, porque não são essas pessoas que determinam os anúncios. A classe informada 205 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade não corresponde diretamente à classe econômica, por que há um fator de opção. Dificilmente posso optar por ser bilionário, mas posso tentar ingresso na classe informada. Muitas vezes, é hereditário. Os filhos dos informados serão informados. Então, nesse sentido, pode-se falar de classes. Hohlfeldt – Em Indústria da Consciência, você prossegue um caminho de Adorno, da Escola de Frankfurt, privilegiando a produção. Mas, naquele texto, nota-se igualmente uma ênfase ao receptor. Agora, mais recentemente – se entendi bem – você volta a privilegiar, de uma maneira quase exclusiva, a produção. Enzensberger – Interessa-me muito a parte do receptor por existir esse campo de eleição, de escolha, por essa opção, enfim. Interessa-me, politicamente, também, porque é uma questão muito importante na medida em que o receptor é uma vítima passiva, uma vítima e, em que medida, é também um cúmplice. Porque há uma margem de liberdade em tudo isso. E, no esquema clássico da práxis marxista, as massas aparecem como as vítimas piegas e inocentes. O argumento se repete, quando há a dependência, por exemplo, de um país como o Brasil. Há um fator de força, no qual o país é vítima de uma agressão, econômica, política e, muitas vezes, militar. Não nego isso. Não nego o imperialismo. Ao mesmo tempo, há algo de complacente em dizer: “Nós não podemos fazer nada porque eles são mais fortes. Nós somos vítimas inocentes de uma agressão”. Isso vale sobre um plano econômico, militar. Mas, sobre um plano cultural, já não é certo, porque há também uma aceitação voluntária. Isso também vale, quando se trata de 206 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 um telespectador ou de um ouvinte. O que falta, porém, em toda a análise, é um fator qualitativo da recepção, por ser algo pouco acessível à investigação científica. Com os testes imagináveis, com toda análise de mercado possível, toda a mensagem estética é polissêmica, portanto, admite leituras distintas. E, nesse sentido, não vejo uma teoria da recepção capaz de distinguir, de realmente averiguar o que sucede quando um texto e um leitor se encontram. Todas as experiências desse tipo demonstram que há textos que realmente mudam uma vida. Eu, pessoalmente, posso dizer que, em qualquer texto, há uma ação que, estatisticamente, não é comprovada, mas que, porém, pode mudar tudo. E também no sentido negativo. Havia um jovem, em Viena, em 1912, mais ou menos, que num antiquário encontraram alguns tratados sobre os hebreus, a franco-maçonaria, uma literatura muito trivial, de pouco preço e esse senhor, depois, descobriu-se, era Hitler. Na verdade, foi uma ação determinante para Hitler encontrar a grande conspiração dos hebreus e, com o resultado, foram assassinados seis milhões de pessoas na Europa Central. Esse é um mecanismo que escapa totalmente à teoria da recepção, porque é uma coisa imprevisível. Não importa quanto foi a tiragem do folheto, porque, às vezes, basta um. Outras vezes, com um milhão de exemplares, nada acontece. É muito relativo tudo isto. Eu prefiro, como autor, ver as coisas nos aspetos mais positivos. Gosto do aspecto anárquico da leitura. Não penso que seja justo insistir na interpretação justa de um texto, como fazem muitos professores. Para mim, não existe sentido, por que cada um, com sua experiência, com sua necessidade e seus interesses, faz uma leitura distinta que não é controlada pelo autor. E não se sabe o quê. 207 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Capparelli – Essa leitura própria, individual, não acontece com o noticiário da televisão? Enzensberger – Creio que devido à estrutura estética da apresentação, seria muito difícil fazer uma leitura coerente disso. Não é tanto a crítica ideológica do noticiário que me interessa – seus conteúdos pró-americanos, pró-capitalista, que é a preocupação das esquerdas. Não é essa a minha preocupação, mas sim por que nada se filtra, nada se transmite. Ou, então, transmite-se apenas a mensagem que faz reconhecer a marca de um chocolate, quando estou num supermercado. E isso é uma não-visão do mundo. São mensagens meio alienadas, no sentido psiquiátrico da palavra. É impossível entender o que se passa no mundo, não há o mínimo de coerência. Não será talvez o fim do mundo, porque as pessoas mantêm, em seu próprio mundo, experiências reais. Não existe uma pessoa para a qual todas as percepções lhe chegam pela televisão. Isso seria um caso clínico. Não creio em vitimismo e acredito que, muitas vezes, o nível inconsciente se dá conta de que a televisão é uma coisa e a realidade, outra. Capparelli – Neste aspecto estético, houve uma tentativa de renovação do discurso formal da reportagem. Até que ponto a retórica literária aplicada à reportagem escrita transforma a informação, por dotá-la de valores estéticos? Enzensberger – Essa é uma preocupação que tenho, há muito tempo, e pessoalmente fiz uma série de experiências entre o limite do ensaio e a reportagem. Penso que há muita coisa que se pode dizer nessa direção. Existe 208 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 o ensaio acadêmico que tem uma tese. É discursivo. Um tipo de ensaio que eu fiz, pelo menos no início. Porém, dava-me conta, depois, que nesse procedimento linear se perdia muito. E a parte mais importante do que se perde é que eu, sabendo antecipadamente o que quero ao final, privo-me da escrita, do escrever como método para descobrir coisas não conhecidas, antecipadamente, por mim ou pelos demais. E, nesse sentido, todas as técnicas literárias, têm um sentido cognitivo, porque são elementos também para conhecer as coisas. Se de uma parte existe um discurso filosófico, de outra parte, há uma narração, existe uma coisa inventada, existe o que me dizem os outros, há a citação, há a descrição. Tudo isso me leva a escrever um texto muito polivalente, contendo muitas facetas da realidade e não só coisas que não quero comprovar. O produto final pode, então, trazer todas as contradições que existem na realidade. Digamos São Paulo. Como se pode comprovar São Paulo? Fazer uma tese e depois concluir um discurso linear? E onde fica São Paulo em tudo isso? O ensaio, de certa maneira, reverte a suas origens. Os senhores Montaigne e Heine, para dar dois exemplos, sempre trabalham nesse sentido, porque admitiram, no contexto do ensaio, muitas coisas: narram histórias, contam conversações com outras pessoas, citam autores anteriores. Não se pode, então, determinar exatamente que gênero é este. Porque tem autobiografia, tem erudição, tem debates. E isso é muito mais rico. São coisas que correspondem mais à consistência, à configuração social. 209 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Hohlfeldt – Neste ponto do discurso, retorna-se a Platão, que tem os diálogos e que conta histórias. Enzensberger – Ainda que Platão tenha uma ideia muito certa do que quer provar como texto. E o método socrático tem sempre algo muito autoritário. Parece-me muito demagógico. Não é tanto um sábio. Seria mais um demagogo. Hohlfeldt – Voltando à televisão, como você vê o desenvolvimento desses meios de comunicação, complexos, sofisticados, num país de Terceiro Mundo, com contradições sérias, como é o caso do Brasil? Enzensberger – É realmente uma coisa que me chama muito a atenção. É uma coisa em que a teoria clássica denominava a burguesia nacional. Nesse sentido, o caso do Brasil é muito particular, principalmente se comparado com o Peru, onde uma classe parece incapaz de procurar uma infraestrutura mínima para o país entrar no século XX, com suas universidades, suas comunicações. No interior do país, seus jornais parecem, na maioria, jornais de 1890. No caso do Brasil, é muito diferente porque existe uma infraestrutura nos locais mais distantes do país. Nesse sentido, não é o terceiro mundo, porque tudo funciona, os correios, os telefones, as comunicações terrestres com os autos, com os ônibus... E, colocando isso no âmbito das estruturas das comunicações, existem muitas coisas desse tipo. O que é curioso é que não há um desenvolvimento com uma base modesta, dando os primeiros passos. Não, acontece tudo por saltos e faltam muitos passos intermediários. Aqui, existem dois níveis 210 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 que me parecem quase perigosos. Sempre há um risco de se dar o segundo passo antes do primeiro. Tem um sistema moderno de televisão, mas não tem o primeiro passo, que é uma rede de livrarias que, normalmente, ocorre antes da entrada na era eletrônica. Tem uma indústria editorial jovem e forte, mas falta uma rede de distribuição cuidada. Há, também, outro problema: as pessoas, nos meios de comunicação, são mal pagas. Em um prazo muito longo, isso não tem sentido, porque se o sistema adotado na exploração dos meios de comunicação é o capitalista, deve ser capitalista também no pagamento dos empregados. Nesse ponto, o capitalismo alemão, o capitalismo italiano não são muito mais metódicos. Se o empresário tem necessidade de quadros, é preciso pagar por isso. Não entendo o que acontece. Acredito que os capitalistas brasileiros são muito impacientes, querendo ter lucros imediatos. Hohlfeldt – No Brasil, como na Alemanha, a poesia experimenta muitas dificuldades e vive uma crise de público. Como vê esse procedimento, já que você deve ter interesse, como poeta, que suas ideias sejam postas em discussão e chegam a todas as pessoas? Enzensberger – Devo dizer que, nesse caso, o cálculo de público tem um papel muito secundário. Penso que de toda maneira estamos nos deparando com situações quase sempre de minorias. Penso que as minorias são uma parte importante no processo social. Na dinâmica da sociedade, apresentam-se quase sempre as minorias. Poderia dizer-se que as minorias são menos importantes. As minorias 211 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade criam um distúrbio produtivo, no interior de uma sociedade, e sempre está presente o proletariado. É a minoria que conta. E, no caso da literatura, sempre estamos em minoria de todas as maneiras. E dentro dessa minoria existe outra que lê poesia. Posso dizer que os próprios críticos e poetas não se dão conta desse potencial. Porém, quando se pensa um pouco na história da literatura, vê-se que os clássicos foram muito conscientes disso. No caso de Heine, por exemplo, sua poesia foi um meio massivo de comunicação. É uma cosia a que se deve prestar atenção, porque existe a poesia autolimitante, que é quase um discurso de uma certa vanguarda histórica, “onde tanto menos público, tanto melhor poesia”. É exatamente o contrário. Esse é um raciocínio totalmente absurdo, porque a poesia fala e por isso existe o aspecto da comunicação. Brecht é consciente disso e pude aprender com ele que é possível construir uma poesia acessível a uma pessoa de rua e, em outro nível, a uma pessoa que leu coisas. Devem-se considerar os níveis de acesso no interior de um poema. Esse é um meio de que gosto muito e o resultado seria uma poesia que não afasta nenhum público e para cada público tem uma mensagem, um nível diferente. Existe um pequeno livro de poesias minhas que atingiu mais de 100 mil exemplares e se explica não pela propaganda, mas pelo fator comunicativo do texto e, também, certas temáticas. Não sei! 212 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 25. Geraldo Pastana: Comunicação na selva32 Regina Festa I- Às Margens do Tapajós No dia em que for possível contar as histórias da colonização amazônica, ao longo dos anos 70, as sagas do ‘velho oeste’ norte-americano nos parecerão, infinitamente, menos heróicas e menos cruéis. Tudo começou durante o governo Médici. Era tempo de integrar a Amazônia. Com o slogan “Homem sem terra para terra sem homem”, brasileiros do campo, sobretudo do Rio Grande do Sul, foram escolhidos a dedo para povoar e cultivar as colônias agrícolas à beira das grandes estradas. Transportados de avião até Manaus e, depois, de ônibus até as estradas ou vicinais que cortavam o coração 32. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano IX, nº54, AN./JUN. 1986. p.05-16. 213 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade da selva – e era só o que havia: estradas – famílias inteiras, com uma promessa de propriedade da terra nas mãos e mochila às costas. Assim, com esse sonho, muitas famílias se mudaram para o interior da Amazônia. Parecia outro planeta, conta um trabalhador. Hoje em dia, ninguém se surpreende ao encontrar na Selva Amazônica homens e mulheres de tipo germânico: altos, fortes, loiros, olhos azuis, pele agora morena do Sol que torra, tomando mate nos fins de tarde. Para aqueles que testemunharam, o Brasil-brasileiro pulsa forte no coração amazônico: gente de todos os lados — do sertão, da caatinga, do agreste, dos pampas, os “paulistas” – ali compartilham, atualmente, a cultura, a rede, a farinha e o sal, o mate, o calor endiabrado, a falta de recursos mínimos, a poeira da Transamazônica, da Santarém-Cuiabá, que se estendem quilômetros adentro pela mata, as chuvas de inverno que só fazem aumentar o calor e, sobretudo, a esperança numa outra vida mais digna. A entrevista que se segue foi feita em Santarém, numa das muitas casas de madeira que se erguem próximas ao rio Tapajós. Da janela onde estávamos, podia-se ver, não muito distante da casa, a junção dos grandes rios: as águas límpidas, verdes do Tapajós fundindo-se à massa barrenta, vermelha e violenta do Amazonas. Podiam-se ver também o porto, as fileiras de barcos coloridos e ancorados, as redes penduradas no convés e o pessoal preparando-se para zarpar, levando os viajantes que chegam e partem até povoados à beira dos igarapés, adentro dos afluentes grandes e escondidos pela selva. Santarém está localizada no centro-sul do Pará, Estado cuja área territorial é 30 vezes maior do que a Suíça. 214 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 O Pará é o principal estado brasileiro em exploração de minério: ouro, ferro, cobre, manganês, cassiterita, calcário, chumbo, diamante, caulim, carvão, cromo, bauxita etc., extraídos principalmente na Serra dos Carajás. Além disso, exploram-se, no Pará: a pesca, extração de madeira, de borracha, produtos naturais, como a pimenta-do-reino, cacau, cravo, frutas etc., e é uma das áreas privilegiadas pelos projetos agropecuários por parte do capital internacional associado. É uma das regiões centrais de conflitos de terra. Éramos seis para a entrevista: Geraldo Pastana, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém, eleito pelas bases, dois delegados sindicais, dois membros da FASE — Federação de Órgãos de Assistência Social e Educação, entidade que apóia o Sindicato. O Sindicato tem sede física na cidade de Santarém. Mas, na verdade, ele espalha-se pela selva, onde estão as delegacias e os delegados sindicais. Seu raio de ação atinge todo o município de Santarém, uma área de aproximadamente 27 mil quilômetros quadrados, maior que a extensão territorial de El Salvador. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém é um dos núcleos mais avançados e combativos da área rural. Em nível nacional, é o Sindicato mais consciente a respeito de meios de comunicação, apropriação e uso de meios populares e alternativos. Com eles nos sentamos para discutir comunicação. II – A importância do rádio Na semana passada, num final de tarde lá na beira da Transamazônica, todo o pessoal estava ouvindo um programa na 215 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Rádio Rural, depois de um dia de trabalho no roçado. Eu perguntei que programa era aquele e um trabalhador me explicou por alto que era um programa da Rádio Nacional de Brasília. Vamos começar nossa conversa por aqui: o que é a Rádio Nacional de Brasília para vocês? A Rádio Nacional de Brasília é a mais ouvida na Amazônia. Tem programas especialmente para o Pará, Acre, Amazonas, toda essa extensão aqui. É a rádio mais ouvida que existe. Os programas são para a Amazônia, onde as colonizações estão sendo feitas de 1972 para cá, para as famílias que vêm entrando em toda essa região, onde tem grandes seringais, onde tem as grandes estradas como a Transamazônica, Santarém-Cuiabá, essa estrada, onde tem milhares de famílias que já estão aí e milhares que estão chegando. É urna rádio que faz a propaganda direta do governo e que tem a tendência de fazer com que o povo não se organize nas suas comunidades. É uma rádio que ultrapassa todas as outras. Desde quando ela existe para vocês? Ela entrou no ar de 73 para cá, que eu me lembre. Talvez, um pouquinho mais tarde, pelo seguinte: quando surgiu essa rádio, foi quando foi fundada a ‘Radiobrás’. Acho que foi no finalzinho do governo Médici e, uma das razões que eles deram, foi que, na região Amazônica, a penetração e a audiência das rádios estrangeiras, Cuba, Albânia, BBC e, até a rádio de Moscou, era muito grande. Mesmo porque não há defesa. Você pega numa onda fora do comum e 216 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 as emissoras nacionais não atingiam essa área. Então, começaram a se preocupar com isso. Eles disseram que as rádios estrangeiras tinham uma capacidade tão grande de cobrir o que estava acontecendo, no Vale do Araguaia, que se ouvia com uma perfeição muito grande. Daí, o governo incentivou a ‘Rádio Nacional’. No norte de Mato Grosso, não sei se vocês pegavam lá, no sul, em 1975/76, por exemplo, o pessoal ouvia muito a Rádio Brasil Central e a Rádio Marajoara, que tinham a programação como a da Rádio Nacional: música caipira, programa de mensagens que é tradição, nessa zona, tinha o ‘Trio Iracema’, quando estavam no começo. E a Rádio Nacional, ao fazer isso, agora com uma organização muito melhor, chega até nos seringais do Acre, consegue enviar notícias do INCRA, em Rondônia, para uma colônia em Cuiabá, manda notícias para todo lado e todo mundo ouve. Mas como é que ela funciona? Ela entra em cadeia em toda a Amazônia? Eles têm o estúdio, em Brasília, e têm toda a emissão direta para a zona rural por uma série de repetidoras. Então, em certas horas, ela entra em cadeia com as rádios locais e rádios rurais, no geral, orientadas pelo INCRA. Qual é para vocês o objetivo dessa rádio cobrindo toda a Amazônia? Bom, ela é uma rádio do sistema ‘Radiobrás’. O objetivo anunciado, no início, de fazer frente às rádios estrangeiras, 217 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade procede. Mas, o objetivo maior é fazer com que as comunidades mantenham suas esperanças voltadas para o Estado, que confiem nas decisões do Estado. É fazer com que as comunidades não se organizem, não procurem um futuro conquistado por elas próprias. Agora, ela presta alguns serviços para poder criar uma rede, uma clientela, que são os ‘recados’ para o garimpo, para os seringais, para as vilas distantes. Ela manda recados para todos os cantos do Amazonas, Pará, Maranhão, Macapá, Acre, Roraima, toda essa área. Então, o pessoal começa a ouvir seus nomes pela rádio, algumas vezes, atendendo a um pedido, e começam a sentir que estão sendo úteis de alguma forma. Como é que se enviam os recados através da rádio? As pessoas escrevem para a rádio, lá em Brasília. Por exemplo, se alguém está procurando algum parente, lá, em Boa Vista, escreve para a rádio, pedindo que se esse parente estiver em qualquer parte daquela área, ou em qualquer outro lugar, que mande avisar. Então, o pessoal começa a seguir o que acontece não só através do rádio, mas na região também. E é aí que a audiência prende. Gostaria que vocês contassem desse programa que os trabalhadores estavam ouvindo no final da tarde, lá na Transa. Era um programa de Edelson Moura e de Márcia Ferreira. É, esse programa é das 5 às 6 horas da tarde, em cadeia com todas as outras rádios. É um programa de perguntas e 218 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 respostas, de música, recados. Responde às perguntas que o pessoal faz, ou a quase todas, pois já mandamos perguntas que nunca foram respondidas. Só o que interessa eles respondem. Mas, respondem perguntas sobre seringais, quando vai passar o barco da assistência médica, qual a linha que o barco vai fazer. Respondem e informam sobre vacinação, como tirar documento, quando é que virá uma equipe tirar registro de nascimento, quando é que o Banco do Brasil vai fazer financiamento, como se faz sabão caseiro, como se trata de bicheira de bezerro, conta o que se deve dar quando o porco está com diarréia. Vocês acham que as respostas ajudam, que são dadas por gente que entende? Eles dizem que consultam especialistas, em Brasília, ou, então, dizem “o Instituto Nacional do Álcool nos deu essa resposta...” Mas, o principal que se nota tanto em Edelson Moura quanto em Márcia Ferreira, é que eles sabem falar muito bem, que eles se comunicam muito bem como pessoas de rádio. Além disso, o pessoal pede muito música e eles são cantores. Outra coisa que os dois fazem é que eles saem de região em região fazendo apresentação no circo. No nosso caso, acontecido aqui, nessa área da Transamazônica, em que a gente mora, os dois chegaram cinco dias antes de um Ato Público, que o pessoal estava preparando. Então, tinha um circo, aqui, em Rurópolis. Os dois chegaram e passaram a tarde jogando futebol com o pessoal e, à noite, se apresentaram no circo. Segundo informações que a gente tem, eles saíram daqui com um milhão de cruzeiros no 219 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade bolso, dinheiro dado pelos trabalhadores rurais. O INCRA colocou carro à disposição do pessoal e quem quisesse ir, foi. Levou muita gente mesmo. Essa apresentação deles, em Rurópolis, foi exclusivamente para esvaziar o Ato Público. O pessoal estava fazendo a mobilização, que estava sendo bem aceita pelos trabalhadores, e o INCRA estava tentando esvaziar, há muito tempo, mas não conseguia. Aí promoveu essa vinda deles e aproveitou para fazer entrega de títulos a todo o pessoal nesse dia. Entrega de título definitivo de propriedade de terra? Título definitivo, não. Título de ocupação, que é para arrumar terra ao pessoal. Edelson e Márcia entregaram os títulos? Não. Mas, foi aproveitando a vinda deles aqui, a mobilização. Então, já se aproveitou para fazer propaganda para as eleições de 82, feita por Edelson, Márcia e pelo pessoal do INCRA. E, afinal, eles conseguiram abarcar muita gente que ia ao Ato Público. E quanto gastava cada trabalhador para entrar, mais a passagem? Uns 400 cruzeiros cada um para entrar. A passagem, geralmente, era grátis para chegar. O INCRA dava. Mas, eles não fizeram o trabalho bem feito, pois levaram o pes220 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 soal; porém, na volta, tinham mais de mil pessoas, só de Rurópolis, sem condução para voltar. E isso deu uma revolta muito grande no pessoal e a gente aproveitou para fazer o nosso trabalho. Mesmo assim, eles conseguiram esvaziar bastante o Ato Público. Voltando ao programa dos dois na Rádio Nacional. Qual é o nome dele? É o “Pergunte o que quiser”. Mas, veja: uma vez escrevemos perguntando por que existem tantos conflitos de terra, aqui, no Estado do Pará, e por que o INCRA, que é o responsável pela Reforma Agrária, é quem está tomando a terra dos posseiros? Não foi respondido. Conhecendo a área como a gente conhece e a problemática que ela tem, é possível que cartas, como essa, sejam recebidas as centenas e, como a atitude da rádio é motivar a população a obedecer às determinações do Estado, ela nunca vai dar esse tipo de resposta. Eu acredito até que muitas das perguntas nem são feitas pelo próprio povo. Acho que muitas das perguntas são deles mesmos, lá em Brasília, porque, se numa área tão problemática, como esta, surgem perguntas no gênero desta: por que o INCRA atua em terra de posseiro? Todo trabalhador tem rádio? A maioria deles tem, as famílias têm. E o pessoal chega da roça lá, pelas 4 ou 4 e meia da tarde e é, bem nessa hora, às 5 da tarde, que começa o programa da Rádio Nacional. Nas casas, se vê prestar atenção, a maioria dos rádios de 221 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade pilha fica em cima de uma prateleira, perto da máquina de costura. III — A televisão Vamos falar de televisão. Por aqui ainda tem pouco aparelho de TV. É, ainda tem pouco. Mais é em Manaus, Belém. Só nas capitais? Não chega às cidades mais desenvolvidas onde tem energia elétrica? Chega, mas o maior problema aqui não é energia. É a potência da emissora local, porque, mesmo com energia, não pega e o pessoal precisa fazer ginástica com a antena. Quando a televisão chegou a Santarém? Em maio de 1979. Vocês sentem que houve mudança entre antes e depois de ter televisão em Santarém? Mudou a vida do pessoal, apesar da deficiência da TV nessa área? Eu me lembro, por exemplo, que na festa de São João, de 1978, no quarteirão em que a gente morava, rara era a casa que não tinha fogueira. Eram mais de 40 fogueiras. 222 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Naquele mesmo ano, a gente viu danças, as famílias dançavam o folclore, Bumba-meu-boi, a dança do Tico-tico. Era muito movimentado. Mas, aí chegou a televisão e, no ano seguinte, caiu tudo: havia 10 fogueiras, na época de São João, e se formava uma concentração em frente da casa para ver televisão. De lá para cá, vem diminuindo ainda mais. Acabaram-se as festas populares, é isso? Na rua, não se vê mais isso. Festa, agora, é no clube. De primeiro, tinha baile na sexta, sábado e domingo. Depois, passaram a fazer só aos sábados. A cidade tinha quatro cinemas. Dois fecharam, no começo de 80, porque, com a chegada da televisão, ninguém saía de casa. Mas, agora, estou começando a notar que, neste ano de 81, mais gente voltou a participar da festa de São João. No primeiro ano, quando o relógio marcava 8 horas, o pessoal estava todo esperando a novela Pai Herói. Se a gente fosse para rua e começasse a gritar, ninguém te socorria. Mas, a verdade é que as pessoas começaram a conhecer os artistas e o estrangeiro. Muito artista ficou famoso, por aqui, e nomes que apareciam na televisão viraram nome de casa comercial como o Marrom Glacê, Catucha... O problema é que a televisão, aqui, ainda só chega com um único canal. Qual é? A Globo, Canal 4, TV Tapajós. Desde 79 até hoje, tem um único canal, e eu acho que isso cansou um pouco o povo. 223 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade E a moda? O jeito de as pessoas falarem mudou? A moda nem tanto, porque as roupas que vêm para cá já vêm dos grandes centros do Sul. Não tem, aqui, em Santarém, nenhuma fábrica de confecções. Então, a moda chega, aqui, conforme os grandes centros. Agora, o que mudou muito foi o palavreado e alguns comportamentos. Apareceram frases que não se ouvia antes, termos de gíria “oi, gatinha”, “oi, gatão”, isso nunca tinha por aqui antes. As pessoas eram chamadas pelo nome. Não tinha esse tipo de coisa. Alguns, para definirem um cara bruto, um cara forte, agora, dizem “incrível Hulk”. E o pessoal da Transamazônica, das vicinais, das várzeas de corte de juta, vocês sentem que esse pessoal também está influenciado pela televisão? Estão um pouco, sim. É novidade. Tem muita gente que vem para cidade, na casa de algum parente e fica grudado na televisão. Muitos ainda nunca viram televisão. Na Transamazônica, aí que é uma área mais conscientizada, vocês sentem que a televisão está influenciando? A grande mudança é porque está chegando lá muita gente de fora. Toda hora está chegando gente do Ceará, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e outras bandas. Esse pessoal chega trazendo mudanças de sua terra. Então, a influência acaba sendo maior do que aqui, principalmente com o pessoal que vem do Sul, onde tem televisão por todo lado. 224 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 A televisão tem mobilizado os homens em torno dos jogos de futebol? Tem. Quase em todos os bares, restaurantes, sorveterias têm televisão, que absorve as pessoas a ponto de a própria comerciante virar telespectadora. Aí, os homens se reúnem para assistir ao futebol. Qual o horário em que a televisão entra no ar aqui em Santarém? Durante a semana, a partir das três da tarde e, aos domingos, às 10 horas da manhã. Mas, a televisão, ainda, é na base do vídeotape e chega com uma semana de atraso. O único programa direto é o Jornal Nacional. IV – Publicidade nas ruas E essas peruas que andam pela cidade? É o Som Guarani e a Naton Publicidade. O tempo todo eles circulam pela cidade? Como é isso? Sim, eles têm várias peruas que ficam andando. A Naton tem duas e o Guarani tem quatro. Mas, a Naton tem ainda um serviço de alto-falantes no centro da cidade. 225 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Como assim? É um serviço que faz propaganda, o dia inteiro, das lojas, toca música. É só pagar e colocar. Quanto custa a propaganda? Para alugar uma boca de som, dentro da loja, custa dois mil cruzeiros. A mensagem na praça está custando 200 cruzeiros. A perua está mil e 500 cruzeiros, por hora, para fazer a propaganda na rua. A propaganda que quiser. Mas, o que mais tem é propaganda de comércio ou, então, a chegada de um circo, as cartomantes. Elas anunciam “vem ver o seu futuro”. Ou “cirurgião-dentista, chegado da Capital, arrancará dentes, durante essa semana, em tal lugar. Para as pessoas carentes, tem preços especiais”. Anuncia, também, convocação de assembléias de clubes, atos públicos. Ato público? É, eles saem pelas ruas tocando o hino do Sindicato e distribuindo panfletos. Anunciaram o 1º de maio. Eles fazem de tudo. Pagou, anuncia. E o pessoal presta atenção? Dá resultado? Eles vão devagar, parando e tocando música que é para chamar a atenção. 226 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 E o pessoal se reúne para ouvir a propaganda? A criançada pára, quando toca música da onda discoteque, e eu acho que o pessoal sempre faz uma triagem do que interessa e do que não interessa. V – O Lamparina Bom, eu queria, agora, entrar na história do ‘Lamparina’, jornal do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém. Segundo estou informada, o jornal passou por algumas etapas. Mas, como é que surgiu o ‘Lamparina’? Qual é a história dele? O ‘Lamparina’ surgiu num grupo de trabalhadores do campo e esses trabalhadores do campo passaram a ter uma luta maior na área, e essa luta maior se tornou tão grande que chegou a um Sindicato e houve, então, uma proposta para o ‘Lamparina’ ser o porta-voz do Sindicato. Essa é a história geral. Mas, de fato, houve na delegacia sindical de Embuna – uma comunidade, que é uma delegacia sindical à beira de um igarapé – um grupo de trabalhadores que começou a discutir a possibilidade de lançar uma campanha eleitoral para tomar o Sindicato. Aí surgiu a ideia do jornal, que acabou sendo lançado por essa delegacia sindical. A primeira edição do ‘Lamparina’ teve 300 exemplares e aquela delegacia tinha 30 associados. Então, os jornais foram distribuídos, também, para outras delegacias. A partir daí, desse trabalho apoiado com o jornal, as delegacias sindicais foram se juntando e formaram a Corrente Sindical dos Trabalhadores Unidos. Então, começaram a surgir 227 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade as subdelegacias. As subdelegacias serviam de porta-voz da ‘Corrente’. Então, a campanha eleitoral tomou força e saiu vitoriosa. Depois, os trabalhadores das delegacias decidiram que o ‘Lamparina’ deveria ser o porta-voz do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém, que foi tomado pela ‘Corrente’. Qual é o significado do jornal para vocês? Mais importante do que o significado do jornal é o significado do que a grande maioria dos trabalhadores queria, ou seja, tomar o Sindicato pela base, Tanto o jornal quanto a ‘Corrente’ começaram com um número pequeno, mas foram aumentando, na medida em que as pessoas iam participando. Quanto tempo tem o ‘Lamparina’? O ‘Lamparina’ foi lançado em maio de 79. Na medida em que a ‘Corrente’ foi tomando mais corpo e passou a ser a Corrente Sindical dos Trabalhadores Unidos, então, o Sindicato mesmo confundia as coisas. Mas, é que a ‘Corrente’ todinha já estava dentro do Sindicato. Queria saber como é feito o jornal. Tem a participação direta dos trabalhadores? Na verdade, é preciso que se entenda uma coisa. O ‘Lamparina’ não surgiu com pretexto de ensinar os trabalhadores 228 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 a ler. Ele surgiu como a maioria desses meios de comunicação, como um jornal para os lavradores. Agora, não é um jornal feito para lavradores nos moldes dos que a gente vê por aí. Esse jornal foi feito por pessoas que vivem e trabalham junto com alguns lavradores, que convivem com as suas necessidades, portanto, ele fala a linguagem da realidade, do dia a dia. E é um jornal que leva em conta o lavrador com todo o seu universo de aspirações etc. Mesmo assim, é um jornal que contou, desde o início, com a participação dos trabalhadores rurais, desde a sua origem, a escolha do título etc. Bem antes de o grupo que o criou assumir a direção do Sindicato, esses trabalhadores já tinham liderança reconhecida pela maioria. Mas, eles não tinham ainda assumido uma postura clara de quem vai encabeçar uma campanha sindical. Na hora em que o grupo se decidiu partir para luta, surgiu o entendimento de que o jornal era um instrumento para ajudar muito. Mas, a ideia surgiu dos trabalhadores. A aceitação do ‘Lamparina’, pela maioria, é que deu forças para que se aumentasse depois a tiragem. Mas, isso aconteceu, justamente, quando o movimento estava se fortalecendo. E qual era a proposta da ‘Corrente’ para a campanha eleitoral do Sindicato de Santarém? Como o jornal anunciava? A proposta da ‘Corrente’ era para escapar à diretoria antiga, que não correspondia às aspirações, às lutas dos trabalhadores. Eles estavam ali para cumprir ordens dos órgãos oficiais, ordens extraordinárias, das autoridades. 229 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Então, buscava-se um sindicato dirigido pelos próprios trabalhadores e o jornal explicava essas ideias. Agora, o jornal não teria sido nada se os trabalhadores não saíssem com ele e o distribuíssem de mão em mão, se as comunidades não entendessem o que estava escrito. Tudo o que ocorria era amplamente comunicado. Vocês sentem que o ‘Lamparina’ serviu, de verdade, para mobilizar e organizar? Agora mesmo, para o Ato Público de lº de outubro, toda a mobilização foi feita com um número extra do ‘Lamparina’. Como é que vocês distribuem o jornal no meio da selva? O ‘Lamparina’ é distribuído por todo o município e por todas as delegacias. São quantas delegacias e subdelegacias? Ao todo são 53. Mas, o Sindicato assume a distribuição e coloca nas delegacias, de acordo com o número necessário. 30, 40, 50 jornais para cada uma. O jornal é vendido e custa 5 cruzeiros cada. A distribuição é feita através de caminhões, barcos. As linhas de caminhões e barcos que passam pelas comunidades que são delegacias sindicais. Geralmente, o delegado sindical também é uma pessoa conhecida por esses donos de barcos ou caminhões. Mas, 230 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 esse envio nem sempre é muito seguro. A maneira mais segura é colocar os pacotes nas mãos de companheiros que estão fazendo essa viagem. Tem acontecido de enviarmos o ‘Lamparina’ pelo dono do barco e ele não entregar, porque não está gostando da atuação do delegado sindical. Pode ser por outro tipo de pressão? Pode sim. Mas, de maneira geral, é assim que acontece. Onde é que se situam as Delegacias Sindicais para a gente entender melhor?... Situam-se dentro da área do município de Santarém, que é de 27 mil km2. Atinge a Transamazônica? Bem, o município inteiro pega oito áreas: Transamazônica, Rio Tapajós, Rio Irapurus, Lago Grande, a Várzea, Ituquim e o Planalto, que tem duas áreas: Planalto I e II. Cada região dessas tem um grupo de delegados sindicais regionais e uma equipe de delegados locais que visitam sempre as Delegacias Regionais. Então, o contato com as delegacias é feito entre delegados regionais e delegados locais. Cada região tem uma equipe de delegados. No caso do Ato Público, a distribuição do ‘Lamparina’ foi feita por mais de 1.500 pessoas que saíram visitando as delegacias e subdelegacias para levar o jornal e fazer a mobilização. 231 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Tinha área que o pessoal nem sabia que o Sindicato estava sendo processado. Então, o pessoal ia, fazia reunião, discutia com os trabalhadores, com os delegados, para evitar mal-entendido. Por que o Sindicato estava sendo processado? O jornal dizia como? O jornal contava o fato. Contava o fato que estava acontecendo. E chamava os trabalhadores para a mobilização do 1º de outubro, Dia Nacional de Luta, no qual seria denunciada toda a sacanagem contra o Sindicato. Para que essa questão não fosse mal-entendida pela Delegacia, era preciso discutir com o pessoal para que os trabalhadores soubessem o que viriam fazer aqui em Santarém, no dia 1º de outubro. Alguns de vocês participaram dessa mobilização diretamente nas Delegacias Sindicais, levando o ‘Lamparina’? Eu participei da mobilização em oito subdelegacias regionais da região do Planalto. Ali, as delegacias não eram sabedoras do fato. Sabiam que tinha um processo, sabiam que um possível processo estava sendo feito, mas isso não estava claro para o pessoal. Daí, eu contava que, desde que assumimos a direção do Sindicato, o jornal O Momento, de Santarém, tinha uma coluna que falava mal da atuação sindical nossa. Sempre denunciava a gente e mais o Geraldo, que é o presidente. Então, a gente contou que o Sindicado estava sendo processado por nossa atuação. E 232 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 que já era hora de responder a essas acusações. E não ia se responder, simplesmente, com o ‘Lamparina’. A gente ia responder com um Ato Público, no dia 1º de outubro, esse dia foi escolhido, em todo o Brasil, como Dia Nacional de Luta. Então, a gente colocava isso, os próprios delegados sindicais da área liam o ‘Lamparina’ extra e daí começava o debate. O delegado lia para a comunidade? Lia para todo o pessoal presente. Mas, é que não deu para mobilizar toda as delegacias, porque não deu tempo. Nós passamos em um dia por oito subdelegacias: de manhã, de tarde e de noite. E qual o seu meio de transporte para isso? De barco? Não, foi por terra, andando. Mas, às vezes, dá para ir de carro ou de bicicleta. Então, na delegacia que eu estive foi assim. O delegado lia o ‘Lamparina’ e a, partir daí, tinha uma discussão para que todos os trabalhadores entendessem o que estava escrito no jornal. Depois, todo mundo entendeu e achou que deveria vir para o Ato. Das delegacias que eu estive, vieram vários caminhões com 100, 150 pessoas. Já que estamos falando no assunto da leitura, gostaria de saber como é que se dá a leitura normal do jornal entre os trabalhadores. 233 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade As Delegacias Sindicais têm um dia de reunião para discutir o assunto do delegado, saber o que está acontecendo com o Sindicato, prestação de contas e ler o ‘Lamparina’, discutir algum assunto que saiu. Em outras delegacias, isso é feito nas próprias casas com a família. Aquela pessoa que sabe ler melhor faz a leitura do ‘Lamparina’ e se discute na família. Em alguns lugares, a leitura ocorre individualmente. Em geral, esse trabalhador, quando chega à tardinha, após tomar banho, senta na frente da casa, pega o ‘Lamparina’ e começa a ler. Qual é a tiragem do Lamparina? Três mil exemplares. Mas, não é tudo para as delegacias. A gente manda para fora. Ficam alguns para visitas. Geralmente, é um jornal por família e a criança que sabe ler, lê para os adultos. O pessoal tem uma mania de forrar a parede com o ‘Lamparina’. Fica como cartaz pregado na parede? É, eles forram a parede. E quantas pessoas chegam e quantas saibam ler leem. O pessoal faz uma espécie de mural. Outra coisa também é que o pessoal lê, em alguns cultos, nas capelas. Em alguns casos, o catequista também é delegado sindical, então, ele lê o ‘Lamparina’ no horário do culto, na capela. 234 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Depois de tudo o que foi contado, eu quero perguntar a vocês, camponeses presentes, se vocês acham certo que um jornal sindical como o ‘Lamparina’ não seja feito por trabalhador rural. Acho que a gente está dentro de um processo em que nós estamos caminhando para que o Sindicato e os camponeses assumam o seu veículo de comunicação. A ideia, no início, era ter um jornal para ajudar na campanha, apresentar a liderança. Desde o começo, os trabalhadores rurais participaram, se não em toda a elaboração do ‘Lamparina’, ao menos em parte dela. A gente acredita que tudo isso é um processo que precisa ser integralmente assumido pelos trabalhadores rurais. Agora, a gente não tem prazo. O mais breve possível. Mas, também, a gente tem que ver as dificuldades dos trabalhadores rurais, não só em termos de elaborar um jornal desses, mas a dificuldade em gastar tempo com coisas que a gente acha secundária. O que é coisa secundária? O jornal? Não. É colocar a letra direitinho, para sair certinho e bem bacana. É escrever. Uma coisa que a gente vê depois do jornal pronto e que, é importante, mas que gasta muito tempo para sair assim tudo perfeito. Coisas assim. – Bom, eu também acho que, como o Geraldo estava falando, na medida do possível, o trabalhador rural tem que assumir o jornal. Primeiro, eu vejo isso com seriedade porque, no nosso caso aqui, os companheiros que ajudam na elaboração do ‘Lamparina’ são companheiros que realmente colocam toda sua vida no trabalho. Mas, vai que mude? Que venha um pessoal ajudar e ter a ideia do outro 235 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade lado. Aí é que começa a preocupar a gente, porque eles podem bolar um jornal que é contra a nossa luta. Digo, porque isso já aconteceu em outros lados e pode acontecer aqui. Tem casos, por aí afora, em que os camponeses são levados a reboque. Isso preocupa a gente. Última pergunta para os trabalhadores rurais: qual vocês acham que é o melhor meio de comunicação para um sindicato rural como o de vocês? – O rádio. É o meio mais importante, porque a gente tem observado que a notícia chega ao mesmo tempo em todo lugar. Então, se a gente conseguisse um horário em que os trabalhadores rurais, já estão acostumados a ouvir rádio, é claro que não poderá ser melhor, e melhor do que o jornal. Agora, o meio eficiente, mais seguro, é através dos próprios trabalhadores, dos militantes que se empenham em ir até as comunidades. Não só porque a notícia chega até o trabalhador, mas porque ela é discutida. A grande riqueza que tem uma notícia levada pelo próprio trabalhador é que ela é discutida, enriquecida. – Como o Geraldo estava colocando, eu também vejo que é o rádio. Mas, só se fosse uma rádio do trabalhador, o que não é possível ainda. Mas, a luta deve ser para chegar lá. Agora, para nós, no nosso ponto de vista, por enquanto, os próprios trabalhadores devem assumir a caminhada, porque o que se fala, uma série de coisas que se fala, diretamente, não se poderia falar numa rádio. Essa é a primeira vantagem. A segunda é que nessa conversa direta, os inimigos não ficam sabendo o que a gente anda fazendo. 236 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Nós temos uma equipe de educação sindical com 85 companheiros que sentam, discutem, avaliam as mensagens, o trabalho sindical, as regiões, que depois saem discutindo com o pessoal das delegacias, levando a ideia do novo sindicato, a questão política. O trabalho é muito grande nessa linha. E, por enquanto, por mais que a gente ocupe uma rádio, não vamos poder dispensar o trabalho militante, que agora é mais seguro e mais correto. VI — Depois da entrevista A entrevista, acima, foi realizada no dia 4 de outubro de 1981. Estávamos na região com Paulo, companheiro da Equipe de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae, chamados pela diretoria do Sindicado dos Trabalhadores Rurais de Santarém. Chegamos lá como membros do CEPIS para a realização de um filme com os trabalhadores e delegados sindicais que, posteriormente, foi utilizado para a campanha eleitoral da nova diretoria do Sindicato. O filme chama-se Nossa força é nossa união e foi inteiramente discutido, filmado e produzido conjuntamente com os trabalhadores da região. Novamente, ganhou a Corrente Sindical, com 94% dos votos. O presidente eleito, Avelino Ganzer, é atualmente membro da coordenação da Central Única dos Trabalhadores. Além do jornal e do cinema – a que muitos trabalhadores tiveram acesso, pela primeira vez, – a organização dos camponeses levou a que se desenvolvessem técnicas nativas de produção e impressão de cartazes, afixados em árvores e cercas no interior da selva. Posteriormente, em 237 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade janeiro de 83, o Sindicato iniciou um programa semanal na Rádio Rural, de propriedade da Igreja, com espaço cedido pelo bispo de Santarém. O programa chama-se Informativo Sindical, com 15 minutos de duração, e é transmitido aos domingos, às 8 horas da manhã, logo depois da missa. Está dividido em três partes: a) informativo local e nacional, que trata da situação dos pescadores, apanhadores de juta, dos trabalhadores da região, além de informar acontecimentos importantes nas outras categorias sindicais do país; b) espaço musical, no qual se tocam músicas populares e c) espaço educativo, contando a história do sindicalismo, no Brasil, falando sobre a questão da terra etc. O programa tem dois locutores e, como o ‘Lamparina’, é feito com apoio da Equipe da Fase. Atinge praticamente todo o município de Santarém, com seus 27 mil km2. Quanto ao ‘Lamparina’, já em 83, o pessoal do Sindicato havia assumido inteiramente a produção do jornal. Mais, recentemente, uma equipe da Fase, do Rio de Janeiro, foi ao local para realizar pequenas novelas, em vídeo, para o trabalho do Sindicato com suas bases locais. Ou seja, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém, localizado no meio da selva, em resumo, é o primeiro sindicato brasileiro a adotar variadas técnicas de comunicação – jornal, cinema, rádio, vídeo, cartazes, música – no trabalho de conscientização, formação, organização e mobilização. Como mostra a história e como disse, na entrevista, o antigo presidente, Geraldo Pastana, tudo é parte de um processo que toma a dinâmica do crescimento da conscientização e da organização dos próprios trabalhadores. Os meios e, também, os conteúdos formam parte desse mesmo processo e, de maneira nenhuma, podem ser analisados fora dele. 238 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Efetivamente, este é um Sindicato com características especiais, geradas pelo antagonismo do próprio sistema. Ele está localizado numa das áreas críticas de conflito e exploração da terra, no Brasil, de luta intestina pela exploração das riquezas minerais e produtos agrícolas. Além disso, localiza-se numa das regiões onde estão os chamados pólos de desenvolvimento, ou colônias agrícolas. Para lá, foram levados, desde o início dos anos 70, migrantes, principalmente do Sul, repetindo o processo de imigração italiano-espanhol-portuguesa do começo do século. Só que, agora, eram brasileiros, pequenos agricultores do Sul, alfabetizados, com boa saúde, e algum conhecimento. Muitos foram pelo fascínio da posse da terra, dada pelo governo. Entretanto, a própria incapacidade do sistema em poder responder às exigências mínimas de populações entregues à Selva Amazônica, entregues aos antagonismos da produção e exploração da terra, sob controle do Estado e do capital associado, é que acelerou as contradições de classe, determinando a construção de um processo histórico criado sob circunstâncias, com as quais os trabalhadores tiveram que se defrontar diretamente. E que jamais buscaram construir. Outro elemento importante a resgatar, dessa experiência, é a participação direta de entidades de educação popular, atuando a partir das novas exigências, que o processo daqueles trabalhadores ia gerando. Nessa experiência, a Fase manteve uma pequena equipe permanentemente junto aos trabalhadores, vivendo aí o cotidiano e a formação de uma nova identidade política e cultural, ao mesmo tempo em que desempenhava a função de relacioná-los com outros grupos e com o plano maior do processo político de 239 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade transformação social da classe trabalhadora. Nessa linha, a educação popular não foi um projeto, mas um processo de criação coletiva criado, naquela região, a partir dos seus antagonismos e contradições, sem por isso perder a dimensão do processo maior, no qual o Sindicato encontra-se envolvido, sobretudo com a participação na CONCLAT na coordenação da CUT e no Partido dos Trabalhadores. 240 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 26. Bernardo Kucinski: Promiscuidade e jornalismo33 Dario Borelli e Glória Kreinz A Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA) contratou, recentemente, como Professor-Colaborador, o jornalista Bernardo Kucinski. A iniciativa faz parte do projeto do Departamento de Jornalismo e Editoração, no sentido de enfatizar a formação crítico-profissional dos futuros Jornalistas e Produtores Editoriais, cotando, para isso, com a colaboração docente de profissionais de competência reconhecida no mercado de trabalho. “Não estou dando ainda um curso de jornalismo” – esclarece Kucinski – “mas, participando do Jornal do Campus. Com muita segurança, transmito aos alunos aquilo que aprendi, na prática de fazer jornal, ou seja: as pautas, 33. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano IX, nº55, jul/dez, 1986. p.07-21. 241 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade as matérias e o fechamento. Aí, eu não titubeio. Estou me propondo a dar um curso, no próximo semestre, de fazer Jornalismo Econômico. Eu acho que, a partir disso, vai dar para sistematizar, não tanto o que aprendi sobre o Jornalismo, mas o que aprendi sobre Economia como jornalista” Nesta entrevista a Dario Luiz Borelli e Glória Kreinz, editores assistentes da INTERCOM – REVISTA BRASILEIRA DE COMUNICAÇÃO, Bernardo Kucinski fala da sua militância jornalística na imprensa alternativa e nos veículos convencionais. Conta sua experiência como correspondente estrangeiro e dá sua opinião sobre a questão do diploma de Jornalismo. Discorre sobre os meios de comunicação e a Constituinte, além de explicar sua avaliação do Jornalismo na Nova República. INTERCOM – Você iniciou suas atividades de imprensa, no decorrer do curso de Física, que fez na Universidade de São Paulo? Kucinski – Eu sempre tive uma queda para escrever e já, na Escola Técnica, antes da Física, fazia jornalzinho de parede, muitos jornais de movimentos políticos. Quando eu fazia Física, houve uma limpeza política no ITA, em 64, depois do golpe, e expulsaram vários alunos, entre eles, Raimundo Rodrigues Pereira. E o Raimundo veio para a Física, que recebeu essas pessoas e lá nos conhecemos. Então, eu comecei a participar de algumas coisas um pouco mais importantes. Fizemos o jornal do Grêmio e outras publicações de contracultura ou resistência política. Em geral, eram organizados por alguma coligação momentâ242 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 nea de partidos clandestinos e a gente fazia isso voluntariamente. Eu fazia pelo prazer de fazer Jornalismo e pelo prazer que sempre tive de ter uma participação política, sem estar engajado em nenhuma dessas organizações. Em 1967, se não me engano, fizemos o Amanhã, um jornal que já vendia em banca e que foi um excelente jornal alternativo, um dos melhores. Eu não era da equipe central, mas trazia o meu artigo. O Raimundo era o cara central, o Antonio Carlos Ferreira também já devia estar com o Raimundo naquela época. E foi, através do Raimundo, que eu fui trabalhar, antes de me formar ou, logo depois, não me lembro bem quando, na revista Máquinas e Metais. INTERCOM – Por que Máquinas e Metais? Kucinski – Na Escola Técnica, fiz que se chamava Construção de Máquinas e Motores. Então, eu tinha um certo conhecimento em metalurgia. Essa revista, que fazia parte de um grupo de revistas técnicas da ‘Editora Abril’ (Química e Derivados, Transportes Modernos, Máquinas e Metais, Médico Moderno, entre outras), era muito bem produzida. Tinha um alto nível de profissionalismo, superior ao que se fazia, no Brasil, na época, porque tratava de assuntos frios que precisavam ser trabalhados, jornalisticamente, com muito apuro. A gente realmente aprendia a escrever gostoso, a bolar títulos gostosos, tinha muita reportagem, você se dirigia às fábricas, aos congressos, aos seminários, você estudava. Uma redação de melhor clima que sempre houve, no Brasil, não havia competição entre as pessoas, isso eu nunca mais vi em nenhum outro lugar. Tanto assim, 243 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade que esse pessoal, até hoje, é muito amigo. O período das técnicas ninguém esquece. Eu já devia ter uns 24 ou 25 anos, quando terminei o curso de Física. Quer dizer, eu era um pouco mais velho que o restante da turma que se formou. Achei que nunca ia ser um grande físico, mas talvez pudesse ser um bom jornalista. Então, continuei no Jornalismo. Porém, fiz uma ou duas tentativas de me encaixar como físico e não fui bem aceito, apesar de não ter sido mau aluno. INTERCOM – Quer dizer que você decididamente se tornou um profissional de imprensa? Kucinski – Um ano e meio depois de trabalhar na ‘Máquinas e Metais’, foi criada a Revista Veja. Fizeram um enorme concurso nacional, um carnaval excessivo para as necessidades. E o Raimundo foi convidado pelo Mino Carta para fazer parte da equipe. Pouco tempo mais tarde, ele viu uma oportunidade de sair da área de Ciência, que cobria na revista, e entrar na de Política. Então, ele me chamou para ocupar seu lugar como editor-assistente de Ciência. Assim, eu saí da Máquinas e Metais e entrei direto na Veja, quer dizer, dei um salto muito grande. Na Veja, eu fiz uma carreira meteórica, essas típicas, no Brasil, que é você entrar como editor assistente e, logo depois de um ano, passar a ser um dos quatro editores. A Veja tinha a seguinte estrutura: um editor, que era o Mino Carta e dois redatores-chefes. Todas as matérias passavam por eles, antes de publicação. Mas, a função deles era supervisionar, dando uma espécie de garantia final. Quem mexia 244 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 muito mesmo eram os editores da área. Tinha o editor de Vida Moderna, Ciência, Cidade etc. Essa carreira meteórica se deu, também, numa ocupação de espaço meteórico, por parte dessa turma do Raimundo. Era uma época pesada, pois havia a guerrilha urbana, a repressão e tal. Nós fizemos, na época, várias reportagens sobre tortura, que tiveram muito impacto. Duas reportagens de capa, quando Médici assumiu e um dossiê nacional, também, sobre tortura, que foi quando a barra pesou, entendeu? A equipe teve que sair da revista, porque sentiu que não tinha mais condições. Cada um seguiu um rumo. INTERCOM – Qual foi a sua opção? Kucinski – Em 1970, minha mulher precisou fazer o doutoramento na Europa. Foi para a Inglaterra e eu fui atrás. O Raimundo saiu da Veja e entrou na Realidade, um tempinho só, até amadurecer outros planos. Na verdade, ele já tinha planos de criar o Opinião. E justamente, em Londres, eu conheci o Fernando Gasparian, e percebi que havia uma certa aproximação entre as suas ideias e as do Raimundo. Então, coloquei os dois em contato. Não participei das discussões que levaram ao Opinião, pois estava na Inglaterra. Mas, colaborei muito com artigos, logo nos primeiros números. INTERCOM – Porém, antes de você partir para a Inglaterra, concluiu algum trabalho? Kucinski – Quando nós saímos da Veja, tínhamos feito 245 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade aquele dossiê sobre tortura para usar nas matérias. Usamos, porém, muito pouco esse material. Então, eu tive a ideia de fazer um livro denunciando as torturas. Escrevi esse livro de maneira dolorosa, quer dizer, a gente fazia com medo de que, a qualquer hora, entrasse alguém, entende? A minha mulher já tinha ido para a Europa. Fiquei para escrever esse livro com o historiador Ítalo Tronca, que era um jornalista, e hoje é professor na Unicamp. Foi quando aconteceu o primeiro atrito entre eu e o Raimundo, que não quis saber do livro. Achei muito estranho. Foi, nesse momento, que se cortou o cordão umbilical. Tornei-me um ser independente jornalisticamente. Para mim, foi um grande desafio escrever Pau de Arara – A Violência Militar no Brasil (Editora Masperó, Paris, em Francês; Editora Siglo XX, México, em Espanhol. Não há edição em Português). Um jornalista muito conhecido do Jornal da Tarde, Luis Eduardo Merlino, ligado a um grupo trotskista, interessou-se por esse trabalho, dizendo que tinha ligação com a Masperó, que poderia publicar o livro. Eu combinei de me encontrar com o Merlino, no Café Cluny, em Paris, na noite de Natal. Na verdade, nós passamos muitas noites escrevendo esse livro. Depois, eu fui à Europa com o original, na mala, meio apavorado. Isso deve ter sido por volta de setembro ou outubro. Na noite de Natal, atravessei o Canal da Mancha, pela primeira vez, em minha vida. Encontrei o Merlino lá sentado. Quando ele voltou ao Brasil, foi preso e assassinado pela polícia, em algum lugar da Baixada Santista. O livro já estava publicado. Esse foi o primeiro livro sistemático que tentou analisar a questão da tortura e a denunciá-la. Nós fomos para trás até a Coluna Prestes, porque de lá surgiram tanto Filinto Milleu, 246 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 quanto Prestes. A gente analisava a evolução desse grupo, do grupo dos coronéis que conspiraram contra Goulart. O livro tenta fazer uma análise histórica do tema, mas é mais um livro de denúncias. Contém, inclusive, os primeiros documentos de presos políticos denunciando torturas. O pessoal trazia esse livro escondido no bolso. O atual correspondente da Folha de S. Paulo, em Buenos Aires, Flávio Tavares, que esteve exilado no México, gostou do livro e fez uma edição dele em Espanhol. Ficou excelente, melhor do que o nosso original, pois tem umas notas de rodapé boas, correções interessantes que ele acrescentou, enfim, ficou uma edição bonita e boa. Essas duas edições não foram publicadas no Brasil. Sofreram pelo fato de não terem assinatura. A gente não assinou, entende? Mas, nós deveríamos ter inventado um pseudônimo, o que garantiria as referências. INTERCOM – Trabalhou mais em algum lugar? Kucinski – Antes de viajar para Londres, eu também ajudei a fazer a revista Bondinho. Uma característica minha: sempre ajudar em publicações novas. Acho interessante, é como nascer uma criança. A turma do Bondinho era muito boa e isso me motivou também. O Sérgio de Souza, esse pessoal todo, era muito criativo na forma e no diálogo. O erro do Bondinho foi ter aparecido cedo demais. Hoje, seria a época boa para sair o Bondinho. Eu tinha a dose certa de convencionalismo e não-convencionalismo, quer dizer, uma revista formal, mas refrescante, diria inclusive que de vanguarda, naquele 247 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade campo, que queria cobrir, que era o da cidade de São Paulo, o lazer, enfim, como viver bem em São Paulo. Hoje, isso é uma questão central para os paulistanos. INTERCOM – Como foi a experiência de exercer funções de correspondente de jornal e revista brasileira em Londres? Kucinski – Indo para Londres, fui com os contatos do Bondinho e, também, conversei com o Mino Carta sobre a possibilidade de mandar um volume modesto de correspondência à Veja. Eu sempre fui meio modesto com esse negócio de dinheiro. Achei que 300 dólares por mês, para aquilo que eu me propunha fazer, era o suficiente. O começo em Londres foi um período muito duro, porque realmente não fui com nenhum emprego em mãos, mas tinha que fazer as matérias, mandar para o Brasil e ver se eles aceitavam. O Bondinho não tinha dinheiro para pagar as matérias. Havia o pessoal da Veja e, talvez o pessoal, das Técnicas. Londres oferecia um campo excepcional, todos os dias, chegavam grandes artistas, grandes políticos, pessoas na tua mão pra você entrevistar. A solidão lá era muito grande. Você não estava num ambiente de redação, tinha que fazer as coisas por conta para ver se dava certo. A cultura inglesa é totalmente oposta à nossa: nós vivemos nas ruas e eles nas casas, temos uma escala de valores e eles outra. Isso provoca um isolamento muito grande em qualquer brasileiro que vai viver num lugar como Londres. O que não aconteceria na Itália, Espanha, Portugal ou, em Nova Iorque, talvez. Eu trabalhava, corria atrás de assuntos, matérias e mandava para as revistas Técnicas e Veja. Fiz muitas 248 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 entrevistas interessantes naquela época: uma com Bernadett Devlin. Entrevistava artistas, escritores, políticos. Fiz também três viagens à Irlanda do Norte, região conflagrada, na época, e isso foi um dos assuntos que eu não usei na medida do material colhido. Eu tenho esse material, até hoje, em casa, que ainda não utilizei: entrevistas feitas com líderes guerrilheiros, feitas clandestinamente, entre outras. Eu trabalhava também na BBC de Londres, na qual, todo brasileiro que chega, dá uma encostadinha. Eu trabalhei de todas as maneiras na BBC, free lancer, contratado, temporário. Eu acho que só depois de estar um ano e meio, na Inglaterra, é que me senti um pouco melhor. Um grupo de ingleses que tinha criado uma agência de notícia, na América Latina, que não havia dado certo, passou a utilizar o material que tinha em mãos, para fazer um boletim sobre a América Latina. Um dos editores desse boletim escreveu um artigo idiota sobre o Brasil. Eu escrevi uma carta, meio raivosa, contestando e criticando a posição liberal dele. Então, a gente se conheceu através dessa briga. Depois, ele me convidou para escrever no boletim. Por indicação dele, fui convidado por uma entidade americana para fazer pesquisa, no Brasil, sobre o consumo de medicamentos. Era um projeto para investigar como as multinacionais americanas, da área de medicamentos e alimentos, abusavam do mercado em vários países latino-americanos. Então, eu fiz um trabalho brutal, meio pesado, quer dizer, você tinha todo um trabalho de campo baseado no padrão norte-americano, no qual tem que anotar tudo porque, depois o advogado pode te processar e você tinha que ter as provas e tal. Fazer entrevistas em profundidade, ficar cinco dias, numa cidade, e depois em outra, 249 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade além do levantando de fontes. Foi um negócio tão interessante que o material que eu tenho, ninguém tem. Doze anos depois, sabe? Não se fez isso no Brasil. Até por falta de condições econômicas, ninguém banca um cara para ficar um mês no trabalho. Os cientistas fazem isso, porque tem outro ritmo, outra preocupação, entende? Com os jornalistas, as coisas são diferentes. Dessa pesquisa, saíram muitos artigos interessantes no jornal Opinião. Saiu, em seguida, um livro que se chama Fome de Lucros, que é sobre a atuação das multinacionais de alimentos na America Latina. Esse livro, ao contrário dos outros sobre torturas, teve uma grande influência, na cabeça dos médicos e dos sociólogos da área de saúde. Depois, começaram a surgir outros trabalhos dos médicos sobre esses abusos, sobre a medicalização da Medicina. Esse livro, enfim, ficou sendo uma referência. Com isso, eu entrei na área da Saúde, da qual não saí até hoje, sempre escrevo sobre isso. Eu considero uma área fascinante, dramática, no Brasil, que reúne a possibilidade de você fazer um trabalho de campo com um pouco de interpretação, uma área que permite você falar com pessoas interessantes, o que, na área empresarial, por exemplo, quase não ocorre. Esse livro eu pesquisei aqui, no Brasil, e escrevi na Inglaterra. Quando eu comecei a escrever para o Boletim Latin America redigia em Inglês. O editor queria que eu escrevesse em Português e, depois ele traduziria, porque o meu Inglês era péssimo, só dava trabalho para ele. Mas, foi uma das decisões mais sábias que eu tomei, porque foi, através de tentar escrever em inglês, que eu fui escrevendo, escrevendo e acabei em Inglês mesmo. Esse texto, por exemplo, 250 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 da Fome de Lucros escrevi em Inglês e, hoje, quando o leio, percebo que já estava bom. Isso me valorizou no mercado de uma maneira extraordinária, quer dizer, hoje, um editor pode me telefonar de Londres, convidando para escrever alguma coisa e, até falar, na rádio que não tem problema. Eu reúno o domínio da língua com o conhecimento dos problemas do nosso território. Um produtor da BBC me convidou para participar de um documentário sobre a Transamazônica. Esse filme foi complicado, pois foi feito sob muitos desentendimentos. O diretor, na hora de filmar, virava outra pessoa e ficava intratável. Além do mais, o filme já estava na sua cabeça, antes mesmo de viajar para o Brasil. Eu viajei para o Brasil, duas vezes, a fim de fazer a pesquisa, localizar a área e tal. Mas, nada disso alterou o que já estava na cabeça dele. O meu papal era fazer pesquisa de campo, mas acabei redigindo todo o roteiro e diálogos e ele, num gesto bacana, deu-me créditos no script. A minha contribuição foi também complicar um pouco o filme. Eu sempre complico as coisas, isso é uma característica do trabalho que faço. Acredito que as questões são sempre mais complicadas do que parecem. Um detalhe interessante do filme: quando nós estávamos, em Marabá, fui abordado por um cara ligado à guerrilha que existia, na época, que poucos conheciam, no Brasil, somente o Estado de S. Paulo tinha notificado aquela guerrilha na Transamazônica. Com certos cuidados que tomei, acabou se propiciando um encontro. Nós íamos filmar o cara falando, mas não filmamos, porque o diretor achou que, se fosse filmá-lo, tinha que pagar uma multa à equipe por trabalho além de oito horas por dia, outra 251 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade multa ao sindicato, não sei por quê. E o diretor não topou. Mas, o filme fala da existência de uma guerrilha numa cena de revista de armas na estrada. Na época, escrevi, três matérias sobre a guerrilha para o Latin Americam Political Reporter: uma sobre o famoso líder Osvaldão, outra, quando eles soltaram um manifesto na região e, depois uma, quando ele acabou. INTERCOM – De volta ao Brasil, em 1974, você participou efetivamente, como diretor especial da criação do semanário Movimento, cuja experiência – os jornalistas mandarem na empresa que faz o jornal – de acordo com um dos membros do conselho editorial da época, não era nova, exótica ou vanguardista: “o Le Monde funciona assim de 1944”. Como caracteriza o momento? Kucinski – Movimento é o segundo capítulo do episódio que começou com o jornal Opinião. O jornal Opinião tinha um proprietário que era o Fernando Gasparini, da chamada burguesia nacional, progressista e tal. Ele queria fazer um jornal de resistência ao regime. O editor era o Raimundo Pereira; ele e outros editores faziam um jornalzinho engajado de alta qualidade, inclusive um padrão de jornal que, até hoje, é uma referência. As divergências entre a equipe e o dono foram se agravando, no decorrer do tempo, e se tornaram insuperáveis. Então, a equipe teve que sair do jornal e, para superar essa divergência (patrão-empregado), a ideia natural era de um novo jornal dos próprios jornalistas. Foi criado um sistema especial, porque a lei brasileira é tão burguesa que dificulta a sociedade 252 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 cooperativa. Você não pode fazer sociedade cooperativa, no Brasil, é quase proibido. Então, para você fazer um jornal cooperativo, tem que registrar no INCRA. Isso é só um exemplo das dificuldades que você tem até para organizar, formalmente, a sociedade em que o próprio trabalhador é dono. Mas, nós organizamos, vendemos cotas, as pessoas apoiaram e eu fui um dos fundadores. Nos últimos oito ou dez meses que permaneci em Londres, fui correspondente da Gazeta Mercantil e, por motivos que até hoje não estão claros para mim mesmo, achei que tinha uma obrigação moral de largar o emprego e participar do projeto, não apenas como um cara que vai lá, escreve e ajuda; mas, realmente, fazendo um sacrifício pessoal, financeiro, uma opção de carreira. Ou seja, interromper a carreira na imprensa burguesa convencional. Talvez, por acreditar que o pessoal do ‘Opinião’ já fazia isso, há muito tempo, e eu ficava apenas colaborando por fora. Mas, o jornal Movimento foi infeliz desde o começo. Aquelas coisas que quando você faz de novo é uma caricatura do que você fez antes. Ele era o oposto do Opinião em tudo: não tinha classe, era feio e, acima de tudo, já nasceu sob censura. O jornal Movimento, talvez seja o único jornal do mundo, cujo nº 0 foi censurado. Quando nós produzimos o nº 0, que eram duas páginas com matérias escritas, foi logo censurado. Era uma matéria sobre depredação de trens e outra sobre o negócio da Petrobrás com os contratos de risco. Até hoje, não sabemos se censuraram por causa dos contratos de risco ou da depredação dos trens. Eles alegaram a depredação, mas nós achamos que foi a outra. Devido, sobretudo, a essa ‘camisa de força’ da censura, o jornal Movimento já nasceu nas piores condições. 253 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade As pessoas, até hoje, não entendem o que é um jornal sair regularmente sob censura. É um jornal que você não sabe qual vai ser a capa, não sabe se essa matéria vai sair ou não. É um jornal em que você produz seis, sete vezes mais do que se precisa e, depois, edita com os restos que sobraram da censura. Vai a Brasília e volta. É, por isso, que os donos dos outros jornais faziam de tudo para não cair nesse sistema. Então, instalou-se a autocensura que é a censura preventiva do próprio dono. Ele fazia tudo para não cair nesse sistema porque, do contrário, está estrepado. O Movimento sofreu muito com isso. Eu escrevi muitas matérias sobre indústria farmacêutica, que foram censuradas. Escrevi uma que foi censurada três vezes. No Movimento, era uma coisa terrível. Então, saiu feio, sob censura e canhestro. Não foi muito bem aceito pelo público. Isso aí não foi nada. Era apenas o começo. Depois de algum tempo, eu e outras pessoas fomos percebendo que havia coisas estranhas no jornal. Então, começaram as divergências sobre a linha política do jornal. Divergências que o editor não conseguia resolver. Por exemplo, ele escrevia editoriais que se chamavam ensaios populares, cuja linha era nitidamente maoísta. Recém-chegado da Europa, eu tinha a convicção de que o maoísmo era a degeneração brutal do radicalismo de esquerda. O maoísmo estava ligado às forças mais reacionárias. Aliado, por exemplo, à CIA, em Angola. Essa foi a primeira divergência. Quando o MPIA ganhou a revolução, em Angola, eu cheguei ao jornal, todos estavam contentes. Nisso, falei vamos dar um splash, quer dizer, vamos fazer um carnaval e tal. Então, todo mundo me olhou com cara feia. Eu não entendi. Eles não conheciam nada de Angola, apenas 254 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 achavam que a MPIA não representava as forças que deveriam ser apoiadas porque tinha apoio soviético e tal. Forças boas eram as dos outros caras que tinham o apoio chinês. Eles não sabiam que Agostinho Neto era o grande líder de Angola e o movimento dele era representativo dentro de Angola, apesar de alguns problemas tribais. E o outro cara era apoiado pela CIA, qualquer um sabia disso, entende? E começou por aí. Mas, o pior não eram as divergências. O por é que elas não se resolviam. A gente até propôs que os ensaios populares fossem assinados pelo editor. Quer dizer, ele tinha um direito privilegiado no jornal porque, de fato, era o líder, mas que assinasse em baixo. E ele se recusava a isso. Então, ficava um jornal em que a opinião não era a nossa. O fato real é que o jornal era dirigido pelo PC do B. e alguns dos ensaios populares eram escritos por um líder desse partido, que estava na cadeia. O editor comentou o erro de misturar as coisas, entendeu? Você não pode por em risco a legitimidade de uma democracia interna, em nome de uma linha partidária ou da hipótese de que você está resistindo ao regime. Ninguém está querendo tirar o espaço das pessoas, elas que escrevam o que bem entender, desde que assinem, inclusive com pseudônimo, se for necessário. A democracia interna foi violada, uma coisa parecida com o que aconteceu com o PT, nesse episódio do assalto ao banco da Bahia, quer dizer, o sujeito dirige o seu jornal, clandestinamente, e ainda se arroga o direito de não permitir que você discuta o assunto, porque pode ter alguém escutando e vai denunciá-lo à polícia. O PT, agora, está discutindo como é que faz para esses caras saírem do Partido, sem que seja preciso entregá-los a Policia, quem é do PB do B quem não é, entendeu? Assim fica difícil. 255 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade O Movimento terminou em racha. O racha que, na verdade, é o da esquerda brasileira, de hoje, ou seja, o racha dos que acreditam que o caminho do Brasil, rumo ao socialismo, passa por uma aliança com a burguesia. Mas, há outra ala que acha que não, acha que as coisas passam por um caminho de ruptura. Jornalisticamente, o Movimento conseguiu dar uma contribuição, foi o único jornal que criticou o acordo nuclear, por exemplo, quando ele foi anunciado. O nº 1 do Movimento trazia a pergunta: “Você é a favor do acordo atômico?” Nós, pelo menos, fazíamos a pergunta, tanto à oposição quanto à situação. Ele deu, também, contribuição em vários campos, como no da ‘dívida externa’, depois teve uma fase em que estreou esse pessoal do Miltainho do Hafma e outros. Ele teve uma boa cobertura da crise, no meio militar, já na época do Euler Bentes, se bem que ele cobriu isso com uma determinação de ótica. INTERCOM – Em seguida, você participa de outro projeto muito importante de imprensa alternativa. Poderia comentar essa passagem? Kucinski – Do racha do Movimento surgiu o jornal Em Tempo, que representa – a esquerda que hoje se identifica com o PT. Eu, inclusive, fui editor e fiz o projeto do jornal Em Tempo. Esse jornal viveu uma crise das mais violentas que se possa imaginar. A primeira característica dele, é não sofrer mais censura prévia, pois a situação estava mudando, rapidamente, era visível a mudança, no quadro político, só as pessoas mais raivosas é que não viam e eu achei que não 256 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 tinha mais condições de o governo impor censura prévia. Achei, também, que o jornal tinha que ter um formato grande, a fim de trabalhar um pouco mais o espaço e tal. Porém, ele saiu feio, canhestro, mas causou um certo impacto, porque nós saímos com umas manchetes avançando o tratamento da notícia. Por exemplo, as primeiras manchetes eram assim: “Está em formação o Partido Socialista.” Todo mundo sabia que fulano tinha ido a Lisboa, que Brizola, que o Chico Pinto mantinham intensas conversas, mas ninguém achava que isso era notícia, entendeu? Quando um movimento de esquerda é clandestino, sem a menor chance de influir nos acontecimentos, ele não é notícia, claro! A notícia é a do estabelecimento. Eu estava percebendo que aquilo era notícia, que era importante saber que, quando abrisse, ia surgir um Partido assim, assado. A crise, no meio militar, também era manchete. Isso tudo chamou a atenção da imprensa convencional e eles começaram a perceber que realmente tinham que avançar. Então, ele teve um pouco essa contribuição. Nós pegamos as primeiras grandes greves no ABC; também eu me lembro de que fiz uma grande entrevista com o Almir Pazzianoto, uma página inteira sobre a origem da primeira greve. Mas, o jornal quase foi destruído pela Libelu. Nós pegamos, nessa época, o surto da Libelu, que tinha um aspecto positivo que era o democratismo e tinha o aspecto negativo que era esse próprio democratismo. Quer dizer, eu era o editor e não podia editar, porque tudo tinha que ser discutido. Então, um dia, eu descobri qual era o segredo: cheguei à assembleia e falei: ‘olha eu também quero meu espaço’. Algumas meninas choraram, e aí eles me deixaram editar. Mas, era aquele jornal que, às vezes, punha manchete de 257 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade cabeça para baixo, fazia umas coisas todas loucas, não-criativas. Era uma loucura meio desengonçada. Formalmente, era um jornal feio. Ideologicamente, foi pouco importante porque não deu uma contribuição ideológico-cultural significativa. O Em Tempo era construído por um bando de radicais. Um dia, eu cheguei e tinham puxado o tapete, igual no Movimento. E o jornal acabou caindo nas mãos do grupo que é o da Social Democracia,os trotiskistas. Depois, esse grupo ficou com o jornal e, até hoje, é deles. INTERCOM – Aonde você foi trabalhar em seguida? Kucinski – Aí, eu fui trabalhar na revista Exame. Trabalhava no Boletim Análise, que era ligado à Editora Abril. Ao mesmo tempo em que eu trabalhava no jornal Em Tempo, fazia matérias de economia, finanças e tal. Era um trabalho bastante regular e intenso. Depois, eu fiz para eles uma ou duas edições do Brasil Exame, que é um anuário econômico. Então, fui convidado para trabalhar na revista Exame e aceitei. Continuei fazendo esses anuários e matérias na revista Exame, saiu muito boa, uma coisa caprichada em termos de metodologia e acabamento. O segundo já não ficou tão bom. Mas, eles tinham um recurso vastíssimo, o que contribuiu para eu fazer matérias especiais sobre acordo nuclear, sobre agricultura etc. INTERCOM – O seu livro Abertura, história de uma crise (Editora Brasil Debates) surgiu nessa época? 258 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Kucinski – Esse livro nasceu de um pedido de uma editora engajada, lá na Inglaterra, chamada Latina American Bureau, que faz livrinhos muito bons, alguns são verdadeiras teses de mestrado sobre a Bolívia, Paraguai e outros países. Então, eles queriam um sobre o Brasil. Eu comecei a escrever, novamente, com o Ítalo Tronca, com quem eu havia feito aquele livro sobre tortura. Esse historiador fez uma parte introdutória sobre o movimento operário e, depois, eu fiz o resto. Isso foi publicado na Inglaterra. Eu resolvi, então, aproveitar a parte detalhada minha e publiquei, aqui, sob essa forma. Aliás, eu comecei a escrever isso quando eu estava trabalhando na revista Exame. Aliás, esse livro é resultado da cobertura jornalística que eu fiz, durante muito tempo, para o Latin American Newsletter. Eu acompanhava o meio político, militar, tinha ideias sobre como as coisas aconteciam e tinha uma certa mania de procurar sempre uma relação de casualidade para os fatos. INTERCOM – Como que surgiu para você a oportunidade de ingressar como professor-colaborador na ECA-USP? Kucinski – Essa ideia surgiu quase que por desespero, entendeu? Aliás, o sujeito só trabalha, aqui, pelo salário, que recebe por um elemento de desespero também. Eu fui trabalhar na Ciência Hoje, na qual eu já havia escrito muitos artigos com sucesso, inclusive aquele sobre Cubatão. Mas, acabei brigando. A Ciência Hoje tem um projeto autoritário, no sentido de que você é usado para o projeto político e não como parte do projeto político. É sempre a mesma história, entendeu? Fiz uma matéria para o Instituto 259 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Butantã, que mostrava que a falta de soro era problema da decadência do próprio Instituto. Mas, os cientistas, nos seus discursos consagrados, diziam que a culpa é do governo, principalmente do governo passado. Meteram a mão na minha matéria e eu briguei e foi por isso que eu acabei saindo. Eu estava precisando de espaço, no qual pudesse me realizar como editor, porque o meu potencial, hoje, é de editor. Estou um pouco cansado de escrever matérias. Eu tenho uma grande confiança em mim mesmo como editor, entende? Mas, para fazer o projeto e editar, você precisa ser dirigente – e para isso eu não sirvo. A oportunidade, na ECA-USP, surgiu não como um lugar, onde eu pudesse editar, mas um lugar, no qual eu posso fazer aquilo que o editor faz, que é transmitir experiências. Eu achei que era uma boa e estou satisfeito, pois acho que está dando certo; os alunos, com aquele entusiasmo típico, estão gostando também e eu sinto que eles estão crescendo no Jornal do Campus. O trabalho está sendo interessante. INTERCOM – O que é o jornalismo para Bernardo Kucinski? Kucinski – O que eu falo, é resultado da minha prática, que foi principalmente de um jornalismo engajado, no sentido de que era um jornalismo de oposição ao sistema vigente. Não era um jornalismo partidário, mas uma ideia de se opor ao sistema de opressão vigente. Eu fiquei muito marcado por esse tipo de atitude desde que entrei no Jornalismo. Apesar de trabalhar muitos períodos, na imprensa convencional, eu sempre procurei ver onde estavam as coisas 260 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 erradas e tal, até com uma insistência excessiva. Outra fonte de inspiração para mim foi, quando eu estava, na Inglaterra, e se deu o Watergate. Depois, eu li um livro sobre o Watergate, um outro que eu, também, li e aquilo lá foi para mim uma grande escola, de como é que tem que ser uma reportagem investigativa, como é que tem que ser o Jornalismo. Quer dizer, o Jornalismo, quando se defronta com a mentira, tem que cair de pau. O caso Watergate, por meio do jornalismo, derrubou o sistema vigente, que era um sistema moralmente podre e o jornalismo foi expondo essa podridão toda. O que existe de engraçado e gosto, em ser jornalista, é isto: justamente ser um ‘Dom Quixote’, poder ter esse direito único de ficar procurando as coisas erradas e denunciar. E não só as coisas erradas que o governo faz, mas apontar também paras tendências novas que as pessoas ainda não perceberam, de revelar personalidades importantes que as pessoas não sabiam que eram importantes e descobrir coisas interessantes, de informar uma descoberta maravilhosa qualquer que não havia sido informada. Mas, sempre dentro do espírito de não fazer parte de um sistema de opressão, de dominação, de convencionalismo. E o que está acontecendo com o Jornalismo, no Brasil, é que ele é parte de um sistema de informação massificado e promíscuo. Hoje, você vai cobrir um departamento do governo, alguma empresa tem lá o jornalista para receber você. Formou-se uma promiscuidade que levou a um mascaramento da função do jornalista. A informação passou a ser uma atividade técnica. Você vai cobrir uma empresa que faz um projeto, ela organiza uma coletiva, um almoço e os jornalistas vão lá e aquilo é apresentado e, no outro dia, sai tudo nos jornais. Mas, ninguém 261 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade tenta descobrir se esse projeto é socialmente bom, se os incentivos fiscais não são escandalosos ou qual é a mutreta que está por trás disso ou se não há mutreta nenhuma. Fica só naquilo e isso só para falar do campo da economia. Por outro lado, há dificuldades objetivas, quer dizer, o país é tão avançado, tão desmoralizado, que aqui, por exemplo, o Watergate é um negócio que não pega. Os Estados Unidos também é uma sociedade selvagem, mas em outros termos. Digamos, para simplificar, que lá convivem um sistema civilizado com um sistema selvagem. O que eu quero dizer é o seguinte: nos Estados Unidos levar 100 mil dólares, num saco de papel, para entregar não sei aonde ou que tinha pedido para uns agentes arrombarem as portas da sede de outro partido, visando descobrir o que estava falando, ocorre a sua queda. Agora, no Brasil, nada disso levaria a queda de um Presidente. Aqui, você tem, o tempo todo, situações desse tipo como se fosse parte normal da vida. Então, isso desarma muito o jornalismo de denúncia, pois as pessoas estão carecas de ver isso. Uma coisa que mais me escandalizou, recentemente, foram esses assassinatos de líderes rurais vários deles era membros do PT. A imprensa quase não noticiou porque virou rotina. Quer dizer, assassinar um Presidente de Sindicato Rural não sei aonde, com um tiro na cara, é uma rotina. Como é rotina assassinar pessoas que se pensam ser bandidos ou a polícia assassinar menores, tudo é rotina. Quando eu trabalhava na Gazeta Mercantil, dizia o seguinte: a grande manchete de jornal, hoje em dia, é uma manchete sobre a estrada que foi construída no tempo certo, passou pelos lugares que tinha que passar e ninguém levou grana para construir. Quer dizer, a notícia de uma coisa que foi feita simplesmente do 262 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 jeitinho que tinha que ser feita. Esse tipo de jornalismo de você ficar denunciando poderes, ir atrás do que está errado, não tem espaço, porque está tudo podre, compreendeu? O Caso Baumgarten, por exemplo, não foi para frente por causa disso. Os outros casos que os jornalistas tentaram carregar também não foram para frente. É isso aí. INTERCOM – E sobre imprensa e a Nova Constituinte? Kucinski – Bom, eu acho, nesse caso, que a gente tinha que tentar de novo, é uma tarefa quase impossível: democratizar os meios de comunicação através da Constituinte. Eu acho que nós deveríamos lutar pela criação de mecanismos que permitam a democratização dos meios de comunicação. Primeiro, que limitem a ação dos monopólios como existe em outros países; leis que proíbam a um único grupo econômico ser proprietário de mais do que um certo número de veículos, leis que proíbam a vinculação de grupos econômicos e financeiros com proprietários de veículos, enfim, quebrar o monopólio. Isso seria uma coisa factível numa Constituinte. Há outra coisa: os mecanismos que assegurassem a democracia nas redações. Primeiro, as garantias do trabalhador de redação de não ser demitido, a garantia de ter os seus conselhos, a garantia de participar da direção das empresas. Tudo isso democratiza muito a imprensa. A garantia, também, do direito à sua liberdade de expressão, enquanto é trabalhador no veículo. E um terceiro capítulo de coisas que poderiam ser feitas 263 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade é o seguinte: seria a criação de estímulos ao surgimento de órgãos de imprensa alternativa, na linha desse projeto, que o Celso Furtado quer fazer de estímulo para a cultura. Eu acho, inclusive, que ele já deveria ter colocado isso. Quer dizer, você é estimulado a ter meios de comunicação como indivíduo, entidade, associações de classes, as pessoas são estimuladas para que proliferem os meios de comunicação. Principalmente, no campo da televisão, eu acho que isso deveria ser compulsório. Eu acho que deveria ser compulsória a existência de canais alternativos. Toda a cidade brasileira deveria ser obrigada a ter um canal com horários abertos a grupos alternativos e coisas desse tipo. Há país que têm isso. Eu acho que estas sãs as principais tarefas. INTRCOM – O que você considera imprensa alternativa? Kucinski – Eu chamo alternativa, hoje, não aquilo que se chamava naquela época. Hoje, eu chamo alternativa, simplesment,e veículos que ampliam o espectro ideológico e cultural, que dê uma visão alternativa do que se passa. Porque, hoje, você só tem veículos de direita, as variações, em torno da direita, do conservadorismo, dos interesses das classes dominantes, dos poderosos. Para mim, se surgir, amanhã, um projeto empresarial, mas que tenha uma proposta cultural ou ideológica à esquerda, para mim já é alternativa. Há esse projeto do ‘Retrato do Brasil’, do Raimundo Pereira, que é um projeto alternativo, nesse sentido que eu digo. Curiosamente, ele tem um grande apoio institucional, porque está sendo apoiado por parte do governo. Em parte, é uma reprodução do que aconteceu, na época 264 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 do Getúlio, – Getúlio já eleito e não-ditador – quando ele tinha toda a imprensa contra e, então, estimulou a criação de Última Hora. Eu vejo essa similaridade. O Pasquim é um jornal, espiritualmente, morto. Não avançou no tempo. Tem esse Planeta Diário, que eu acho um jornal interessante, bem dentro do espírito da imprensa alternativa, quer dizer, uma coisa pequena, combativa, não tem medo de impor seus próprios valores, seus próprios preceitos. Eu, pessoalmente, não acho que tenha um grande futuro, é mais uma coisa de momento, entendeu? Depois, eu não vejo mais nada de alternativo por aí. INTERCOM – Você acredita que a não obrigatoriedade do diploma para exercer a profissão de jornalista beneficia o jornalismo? Ou não? Por quê? Do jeito que você colocou a pergunta, eu não gostaria de responder, entendeu? Eu não sei se o fim do diploma vai beneficiar o Jornalismo, isto é uma questão de profecia. Ele pode desorganizar tanto a profissão que acaba não beneficiando. Mas, o diploma não tem nada a ver com isso. Ele foi apenas uma maneira de organizar a profissão e sua retirada é uma maneira de desorganizar. Eu sempre vi o diploma como uma aberração, mas não sob essa ótica. Eu sempre achei que o diploma não é necessário do ponto de vista da capacitação cultural do profissional de Jornalismo. Eu estou vendo pelos currículos que as escolas de Comunicação estão monopolizando a cabeça do aluno, durante quatro ou cinco anos, sem colocar, lá dentro, um conteúdo que precisaria colocar para ele ser jornalista. Nos outros 265 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade cursos, os alunos estão recebendo uma carga de conhecimento histórico e cultural. O aluno, para ser jornalista, tem que aprender um pouco da História Contemporânea, tem que ter cadeiras básicas de Economia, de Filosofia, de uma Língua Estrangeira e outras coisas. Isso ao nível universitário. Os outros alunos têm e ele não, pois fica aprendendo, aqui, coisas de Semiótica, a Teoria disso ou daquilo. São teorizações sobre o Jornalismo, mas ele não sai, daqui, com uma carga cultural, política, sociológica, filosófica de nível universitário. Eu acho que é urgente a reformulação do currículo. E as matérias que nós estamos pautando, agora, no Jornal do Campus, visam a isso, ou seja, estamos pautando matérias de Economia para o aluno já começar a entrar nessa área. Não só materinhas que ensinam a técnica de fazer reportagem, mas que já obriguem o aluno a estudar aquela questão um pouco. Eu sou da opinião de que essa questão do diploma está sendo colocada de maneira desonesta, com segundas intenções, pelos proprietários dos grandes órgãos de imprensa. Estou absolutamente convencido de que eles estão colocando isso, agora, como um exercício de diversionismo para atrair, sugar, esgotar todas as energias dos jornalistas em cima dessa questão do diploma, além de que isso divide a categoria e eles estão tendo um grande sucesso nisso. Tanto é assim que a minha tese é que isso deveria ser discutido por nós. Deveríamos jogar essa discussão: como democratizar os meios de comunicação. Dento disso, pode até se colocar a questão do diploma. Eu estou convencido de que os donos de jornais jogaram essa discussão, agora, como jogam um pedaço de carne ao cachorro, quando querem assaltar uma casa. E nós fomos correndo naquele pedaço de carne. 266 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 INTERCOM – Você acha que fizemos isso por que os jornalistas estão avançando nas suas reivindicações de melhoria das condições de trabalho? Kucinski – Talvez existam pessoas que achem que não é só por causa do medo da Constituinte que eles jogaram isso. Mas, também, que eles querem rebaixar salários, desorganizar a categoria. Eu não estou muito convencido disso. Você tem editores de jornais ganhando 20 mil cruzados por mês, mas a massa dos jornalistas não ganha isso. Em segundo lugar, se você traduzisse isso em dólares, nem os salários dos editores são altos. Porque 20 mil cruzados, hoje em dia, no câmbio paralelo, são mil dólares, que é um salário baixíssimo para um editor. São salários baixos porque, historicamente, os salários, no Brasil, estão deprimidos, estão arrasados. Hoje, no Brasil, nós vivemos num regime de superexploração da força de trabalho, inclusive da força de trabalho intelectual. Os patrões podem aguentar esses salários, tranquilamente, e eu tenho a impressão de que a viabilidade econômica dos órgãos de imprensa não passa pela questão salarial, mas por outras questões, entendeu? Talvez, passe pela questão da modernização, do uso dos meios eletrônicos. INTERCOM – O uso dos meios eletrônicos, nos jornais, é uma das transformações que você distingue na imprensa brasileira atualmente? Kucinski – Essa nova tecnologia de você compor sua matéria, no canal eletrônico, que tem memória e que, também, 267 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade diretamente com as máquinas de composição e tal, eu acho que é realmente uma revolução. Eu trabalho com uma maquininha dessa já faz quase um ano. Sinto essa revolução porque, se a minha máquina quebrar estou frito. O Aguinaldo Silva fez um anúncio correto: a relação sua com o aparelho fica sendo uma relação lúdica. Você brinca com o aparelho. Você constrói o pensamento, ao mesmo tempo em que constrói a frase, você vai modificando o pensamento, muda de ideias, desloca, depois você imprime. E a máquina de escrever comparando com esse processo, é a mesma coisa que o arado puxado a boi e a colheitadeira que já colhe o trigo e já ensaca. Não tem comparação: a mente fica livre, a imaginação desata, começa a voar numa maquininha dessas, porque você está brincando, pensando e compondo, entende? Enquanto que, na máquina comum, você fica preso às palavras que já datilografou. INTERCOM – Você está tendo a oportunidade de sistematizar os conhecimentos e experiências adquiridos, na prática jornalística, e transmiti-los aos estudantes de jornalismo da ECA-USP? Kucinski – Não estou dando um curso de Jornalismo, mas participei do Jornal do campus. Estou transmitindo, com muita segurança, aquilo que eu acumulei na prática de fazer jornal: as pautas, as matérias e o fechamento. Nessas áreas, eu não titubeio. Eu estou me propondo a dar um curso, no segundo semestre, na ECA, de Jornalismo Econômico. Então, eu acho que vai dar para sistematizar não tanto o que eu aprendi sobre jornalismo, mas o que 268 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 aprendi sobre economia sendo jornalista. Foi o que eu mais aprendi: os vários aspectos da economia do país sobre os quais escrevi e sobre os quais li bastante. Houve três ou quatro campos que eu acabei me semiespecializando, mas eu considero o da economia o mais importante, pois eu tive sorte de estar, em Londres, numa época de proliferação de literatura de divulgação econômica de bom nível. INTERCOM – Há algum projeto em desenvolvimento? Kucinski – Eu faço o Boletim do PT que fecho, uma vez por mês, o que me toma mais ou menos uma semana por mês. Aliás, mais do que deveria tomar. Trabalho aqui, na ECA, duas vezes por semana, um trabalho que é bastante exaustivo e faço correspondência para o estrangeiro, na qual realmente ganho o meu dinheirinho. Eu estou escrevendo um livro sobre a dívida externa. Está um pouco atrasado, tem que ficar pronto até agosto. Vai sair pela Brasiliense, aqui no Brasil, e nós não sabemos ainda, lá fora, por qual editora ele vai sair. Eu estou escrevendo esse livro juntamente com a jornalista inglesa Sue Branford. Então, quero terminar o livro até agosto, já está na metade escrito, metade não, para, em setembro, começar esse curso de Jornalismo Econômico. 269 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 270 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 27. Straubhaar: O estudo crítico da comunicação nos Estados Unidos34 Carlos Eduardo Lins da Silva e Glória Kreinz O professor norte-americano Joseph Straubhaar esteve, no Brasil, em agosto de 1986, visitando várias cidades e universidades. Na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, fez uma palestra sobre o tema “Sistema norte-americano de comunicação”. Compareceram ao encontro alunos e professores das áreas de Jornalismo, Rádio e TV, interessados na questão da atuação dos meios de comunicação de massa nos Estados Unidos. Antes da palestra realizada, no auditório do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP, Straubhaar concedeu entrevista à INTERCOM – Revista Brasileira de Comunicação. A equipe de entrevistadores foi constituída pelo jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva e a 34. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano X, nº56, jan/jun, 1987. p.09-12. 271 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade editora-assistente de INTERCOM – RBC, Glória Kreinz. A conversa centralizou-se nos rumos atuais da pesquisa em comunicação nos Estados Unidos. Para o entrevistado, a postura funcionalista predominante “no pensamento norte-americano” coexiste com grupos de críticos voltados para o “estudo das mediações entre a parte e o todo, situação típica dos franceses; mas, genericamente, europeia. Os latino-americanos engrossam essa ala mais crítica”, que valoriza os elementos mediadores e são reconhecidos pelas experiências práticas que têm realizado. Recentemente, Straubhaar apresentou tese de doutoramento junto à Fletcher Scehool of Law and Diplomacy, em Boston, sobre pesquisa feita, no Brasil, durante os quatro anos que aqui viveu, de 1976 a 1979. Seu trabalho de doutoramento chama-se “Transformação da Dependência Cultural: o declínio da influência norte-americana na indústria cultural brasileira”. O meio focalizado é a televisão, com ênfase especial nos programas de auditórios, telenovelas, programas de entrevistas e noticiários. INTERCOM – Que trabalhos você desenvolve atualmente? Depois de suas pesquisas sobre telenovelas brasileiras, você continua interessado no Brasil? J. Straubhaar – Eu comecei estudando a influência norte-americana, no Brasil, também nas telenovelas, porque quando cheguei, em 1976, notei uma tendência quase automática na aplicação da teoria da dependência cultural para tudo aqui. Continuo esse trabalho, mas agora estou pesquisando o relacionamento político televisivo. O caso, 272 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 por exemplo, da atuação da televisão na Nova República, e a abertura política, porém, esse é um trabalho em fase inicial. INTERCOM – Apenas a televisão continua o núcleo de seu interesse na indústria de comunicação massiva? J. Straubhaar – Estou fazendo uma pesquisa comparando vários países latino-americanos em termos de videocassete. É interessante porque o Brasil tem menos vídeos que a maioria dos países latino-americanos. O preço do vídeo é muito alto em relação aos preços da Argentina, Venezuela e Colômbia. Mesmo que o preço fosse igual, acredito que haveria menos interesse pelo vídeo, porque, aqui, o sistema de televisão é mais diversificado, quer dizer, um pouco mais sofisticado do que em outros países. Na Venezuela, por exemplo, a combinação de vídeo, filme e televisão, está criando urna conjuntura de indústria cultural monopolista, que concentra o poder em duas ou três empresas, as quais fazem a produção de programas e a distribuição de filmes e de fitas cassetes. INTERCOM – Felix Gatari, pesquisador francês, declarou que a televisão contribui para a “poluição da sensibilidade coletiva”. Você concorda? J. Straubhaar – Tenho várias reações. Temos, primeiro, que trabalhar a televisão como veículo, pensar o que pode ser feito com ela. Tem uma tendência massificadora, mas não é possível, hoje em dia, tirar dela essa tendência. Então, tenta-se um trabalho com a televisão no sentido de 273 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade preservação, mas também de diversificação da cultura. Numa situação concreta, como pai, por exemplo, de uma menina de seis anos, um filho de três e outro de um, reajo, às vezes, muito fortemente contra a televisão, contra os programas para as crianças, que eu acho péssimos, de forma geral, nos Estados Unidos. Existe a alternativa da televisão não-comercial, especialmente na linha de programação infantil. Hoje em dia, metade da população norte-americana tem televisão a cabo, o que permite uma diversificação muito maior. INTERCOM – Você conhece novas metodologias de pesquisa na área de Jornalismo Impresso, ou continuam as mesmas pesquisas tradicionais de análise de conteúdo? J. Straubhaar – A pergunta é oportuna, porque a análise de conteúdo continua em prática, não só para o Jornalismo Impresso, mas também para o Jornalismo Televisivo. Inclusive eu também a pratico. Acabei, recentemente, um estudo comparando o noticiário da televisão em oito países. Nós decidimos incluir a União Soviética, nesse estudo, e só conseguimos porque se tratava de uma pesquisa de conteúdo. É proibido fazer outros tipos de pesquisa lá. INTERCOM – Então, a análise de conteúdo predomina como método? J. Straubhaar – Não é bem isso. Às vezes, as condições de pesquisa se limitam à análise de conteúdo, o que não é muito recomendável. Esse tipo de pesquisa está ainda em 274 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 moda nos Estados Unidos. Também está em moda à análise do papel e atuação do jornalista, o que já demonstra um avanço em outro sentido metodológico. INTERCOM – Em que consiste, basicamente, essa análise do papel e atuação do jornalista? J. Straubhaar – Consiste na análise da formação e das condições de trabalho dos jornalistas norte-americanos. O efeito de várias estruturas empresariais sobre os jornalistas tem sido pesquisado. A meu ver, isso é um bom exemplo da combinação da ala funcionalista com a ala crítica, porque tem algumas que reúnem técnicas de entrevista, juntando também dados estruturais. Um exemplo é como atua a imprensa e como atuam as estruturas das empresas em que os jornalistas trabalham. INTERCOM – Já que você mencionou a formação dos jornalistas norte-americanos, continua havendo grande procura de cursos de jornalismo nos Estados Unidos? J. Straubhaar – Sim, continua. INTERCOM – Na década de 70, houve a primeira grande leva de estudantes ao profissionalismo, devido ao caso Watergate, a figura heróica do jornalista. Isso continua influenciando ou há outros motivos de ordem econômica e ideológica? J. Straubhaar – O fato é que o Jornalismo já não é tão procurado como antes, embora haja procura. A Propaganda 275 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade e as Telecomunicações têm crescido muito. O Jornalismo perde um pouco de fôlego, porque muitas pessoas formadas ainda não tiveram oportunidade de emprego. O mercado está um pouco limitado. INTERCOM – Você diria que o mercado de trabalho está limitado por que é aberto a todo mundo? J. Straubhaar – Exatamente. Lá, não temos a regulamentação como aqui, que precisa ser formado em Jornalismo para exercer a profissão. INTERCOM – Que porcentagem dos que trabalham na redação são jornalistas formados? J. Straubhaar – Não tenho dados exatos, mas creio que somente a metade é formada em Jornalismo. Tem muitas pessoas que conheço, no ramo, que julgam o seguinte: para ser jornalista tem que escrever bem, analisar bem e ter um texto conciso. Tem muita gente que se forma em Inglês e atua como jornalista porque escreve corretamente. INTERCOM – Qual a diferença entre um profissional formado em Inglês e um formado em Jornalismo nos Estados Unidos? J. Straubhaar – O estudante de Jornalismo tem um limite máximo de cursos, na área técnica, mas ele deve fazer, também, Ciência Política, Economia e outras matérias que lhe proporcionem uma visão ampla da realidade. O que 276 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 não acontece com um estudante de Letras. Não é necessário o requisito do diploma, mas uma credencial de Jornalismo de uma escola conceituada ajuda muito e oferece vantagens no mercado de trabalho. INTERCOM – As escolas de comunicação, nos Estados Unidos, dão espaço para a discussão de correntes teóricas europeias ou latino-americanas? J. Straubhaar – Depende da escola. Lá, a tendência predominante continua sendo a norte-americana, marcadamente funcionalista. Porém, já temos uma dúzia de programas voltados completamente para a ala crítica, com o pensamento francês, italiano e até latino-americano. Os programas mais críticos, hoje em dia, seriam no Texas, Universidade de Washington e alguns departamentos da Michigan States. O Departamento de Comunicação é completamente funcionalista, mas o Departamento de Telecomunicações é dividido entre criticismo e funcionalismo. INTERCOM – Dependendo da escola, a ênfase do método de pesquisa se desloca? J. Straubhaar – Sim, há muitas diferenças entre os métodos de ensino das escolas norte-americanas. A ideia de pesquisa de opinião pública tem muita aceitação. Para se citar um exemplo concreto, no nosso mestrado em jornalismo, há um curso específico, no qual todos devem aprender a interpretar pesquisas, porque isso é importante, hoje 277 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade em dia, nos Estados Unidos, sobretudo, no que diz respeito ao processo de informar ao leitor. Qualquer repórter, e ainda mais o político, terá que trabalhar com pesquisa de opinião. Nem sempre é fácil interpretar urna pesquisa. E, pelo que se nota, os gráficos e pesquisas tendem a marcar época, no Jornalismo atual, não só americano, mas como uma tendência internacional. Acho que isso pode se verificar aqui mesmo, no Brasil, nos maiores jornais impressos ou televisivos. De qualquer forma, perigoso seria apresentar dados de forma apenas teórica, sem respaldo na pesquisa empírica. 278 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 28. Ada Dencker : Documentação da comunicação35 Glória Kreinz Ada de Freitas Maneti Dencker, coordenadora do PORT-COM – Centro de Documentação da Comunicação nos Países de Língua Portuguesa – órgão complementar da INTERCOM, viajou para a Europa, nos meses de setembro/outubro de 1986, e lá travou contatos de extrema importância para esse setor, inclusive sedimentando os contatos com Portugal em termos de intercâmbio de pesquisas. Na Espanha, iniciou as bases para a integração do PORT-COM a UNESCO. Formada em Ciências Sociais, Ada Dencker chefiou, durante sete anos, o Setor de Pesquisa e o Departamento de Cadastro em Documentação da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Foi a primeira pessoa a 35. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano X, nº56, jan/jun, 1987. p.13-16. 279 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade iniciar a hemeroteca da Federação das Indústrias, quando nada existia nesse sentido. Publicou, no ano passado, entre outros artigos, “Imprensa e Capitalismo”, na Revista da ECA-USP, e participou do “Relatório sobre AIDS”, editado pela professora Sarah Chucid da Viá, que ganhou o prêmio de melhor pesquisa da Revista Mercado. No Congresso INTERCOM/85, Ada Dencker foi uma das responsáveis pela organização do “Simpósio sobre Comunicação à Distância”. Em entrevista concedida à INTERCOM – Revista Brasileira de Comunicação, Ada Dencker comenta com a entrevistadora Glória Kreinz alguns aspectos importantes de sua viagem ao exterior. INTERCOM – O PORT-COM, Centro de Documentação da Comunicação nos Países de Língua Portuguesa, liga-se à INTERCOM de que modo? Dencker – É um órgão complementar da INTERCOM. Foram fundados pela mesma pessoa, o prof. José Marques de Melo. O PORT-COM começou em 1977, quando o prof. Marques fez a primeira Bibliografia Brasileira de Comunicação que, na realidade, foi uma reprodução do seu acervo particular. Não tem abstract, somente indica as obras. Segundo ele, “foi uma socialização das fichas”. Depois, o trabalho foi adquirindo um vulto maior, com a colaboração da Metodista. Quando o prof. Marques voltou à ECA, depois da anistia de 1979, a bibliografia teve a colaboração dos alunos do Departamento de Jornalismo. 280 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 INTERCOM – Agora, o PORT-COM cresceu tanto que trava contato com o exterior. Como você explica isso? Ada Dencker – Vamos por fases. Esse contato com o exterior foi feito, agora, em 1986, segundo semestre, quando eu fui à Europa participar de um Congresso da Hochtief, que ocorre de dois em dois anos. Quando viajei, uni duas coisas: viagem particular e os interesses do PORT-COM. INTERCOM – Essa foi, então, sua primeira viagem internacional como representante da PORT-COM. Você esteve onde? Ada Dencker – Eu estive em diversos centros de documentação europeus, mas em caráter oficial em Portugal e Espanha. Aliás, no caso de Portugal, fui mesmo retribuir a visita que nos tinha feito o representante do Centro de Documentação de Portugal, Dr. Sebastião José Dinis, por ocasião do II ENDOCOM. Naquela ocasião, o Dr. Dinis nos trouxe um Tesaurus de Comunicação Social que, por coincidência, já possuíamos na INTERCOM. Antes de mim, Anamaria Fadul esteve em contato com esse Centro de Pesquisa português; aliás, foi ela que iniciou o intercâmbio. Em julho deste ano, também o prof. Marques de Melo esteve lá, em visita. Falou com o Ministro das Comunicações e conseguiu que fosse enviado um representante para nosso II ENDOCOM. INTERCOM – Sabe-se que, após sua entrada, o PORT-COM foi bastante dinamizado. Quando ocorreu isso? 281 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Ada Dencker – Eu entrei no fim de 1984. Mas, o PORT-COM já era bastante dinâmico anteriormente, sobretudo com a participação da pesquisadora Maria Cristina Barbosa, chefe da biblioteca ECA/USP. Na época que ela passou para outro departamento, aqui da USP, houve os problemas normais de transição. Não havia definições sobre quem assumiria que tipo de trabalho. Então, a Anamaria Fadul, ex-presidente da INTERCOM, resolveu o problema de forma satisfatória. Para que o Centro de Documentação continuasse funcionando, ela solicitou uma bolsa do CNPq para pesquisa e, junto com o diretor científico, Marques de Melo, acharam que eu era a pessoa indicada para ocupar o cargo. Na verdade, eu já estava lidando com os arquivos de documentação, por interesse próprio mesmo. O que ocorreu, de fato, é que o PORT-COM passou a funcionar mais dentro da INTERCOM que na Biblioteca da ECA. INTERCOM – Então, foi esse representante que veio para o Congresso INTERCOM/86, quando se realizou o II ENDOCOM? Ada Dencker – Foi. E nós conversamos a respeito das possibilidades de formarmos um centro de documentação em comunicação englobando todos os países de língua portuguesa, inclusive os da África. Então, ficou mais ou menos resolvido, durante esse encontro, tendo em vista as facilidades diplomáticas e o acesso que Portugal tem diante dos países africanos, que tentaríamos colocar esse projeto em prática. 282 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 INTERCOM – Como é a relação de Portugal com os países africanos? Ada Dencker – O pessoal da África pede muita informação, assessoria e há muitos estudantes africanos em Portugal. Assim, o Dr. Dinis se encarregaria de fazer a recuperação da documentação dos países africanos e faríamos uma troca. INTERCOM – E sua ida a Portugal trouxe algum avanço nesse sentido? Ada Dencker – Trouxe. Dr. Dinis me disse que falou com o Ministro das Comunicações e como o Centro de Documentação não é um órgão ligado à Universidade, não houve necessidade de entraves burocráticos. Ele já está se ocupando em fazer um levantamento da documentação na África. Nós continuamos com o nosso trabalho no Brasil. INTERCOM – Você visitou outro Centro de Documentação, na Europa, como representante do PORT-COM. Qual é ele? Acta Dencker – Foi na Espanha, e esse centro é o IBERCOM, chefiado pelo prof. Gutierrez. Em julho, o prof. Marques passou por Madrid, mas não encontrou o chefe do IBERCOM. Então, fiz nessa viagem o primeiro contato com ele. É preciso que se saiba que o prof. Gutierrez é também o consultor técnico da UNESCO para a Rede Internacional de Centros de Documentação. Ele faz a avaliação técnica dos projetos, enquanto a UNESCO avalia a nível administrativo. 283 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade INTERCOM – Qual a contribuição do prol. Gutierrez para a área de Comunicação? Acta Dencker – O prof. Gutierrez é especialista em Documentação, na área da Comunicação. Tem um trabalho pioneiro, pois elaborou o primeiro Tesaurus da Comunicação Social, em Língua Espanhola. É uma obra que se destina aos países de língua latina. Essa obra não é uma adaptação do trabalho da UNESCO, mas representa a pesquisa própria do autor. INTERCOM – Como o seu contato com ele vai influir no PORT-COM? Ada Dencker – Influirá de forma altamente positiva. Estive com ele para ver as condições técnicas que deveria utilizar para organizar o trabalho do PORT-COM, a fim de integrá-lo à Rede Internacional de Documentação da UNESCO. Adquiri a base teórica e, quando o pedido for avaliado, já contará, como explicarei, com o aval do IBERCOM. Consegui queimar etapas e já tenho o aparato metodológico-teórico sem o qual teria que refazer fases do trabalho. INTERCOM – Você poderia falar um pouco sobre essas questões técnicas? Ada Dencker – De forma bem simplificada, pode-se dizer o seguinte: tem de haver uma pesquisa, verificar os temas mais frequentes e, a partir daí, efetivar uma seleção. 284 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Por exemplo: temos 1.800 teses e 1.800 periódicos cadastrados. Há, ainda, a bibliografia corrente em comunicação. A partir daí, há um corpus suficiente para definir os elementos mais frequentes, ou seja, os assuntos preponderantes. Há, ainda, a necessidade de se escolher três línguas oficiais para se fazer a versão dos textos. Sobre esse aspecto ainda não discutimos nada no PORT-COM. INTERCOM – Há alguns dados sobre esses Centros de Documentação que você gostaria de mencionar? Ada Dencker – Há diferenças entre eles. O IBERCOM está localizado em Madrid, no prédio da Faculdade de Ciências da Informação, em sua Biblioteca, no piso superior. É uma sala difícil de ser encontrada e até me diverti um pouco, sentindo-me nos labirintos medievais. Mas, está dentro da Faculdade, e é consultado por universitários. O Centro de Documentação em Portugal é um órgão governamental, fora da estrutura universitária. Fica em Lisboa, no palácio da Foz. Tem mesmo uma conotação um pouco turística. Não houve, até agora, nenhuma preocupação em documentar a Comunicação como ciência. Essa foi uma das inovações que o PORT-COM propôs, e que passa a existir a partir de agora. INTERCOM – Extraoficialmente, você fez algumas observações em outros centros de documentação? Ada Dencker – Eu me detive mais na Alemanha. Há pouca coisa nesse sentido, porque lá a Comunicação surge como apêndice da Sociologia. 285 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade INTERCOM – Haveria algum recado para os nossos leitores que você queira registrar? Ada Dencker – Sim, Gostaria de dizer que no XXI ENDOCOM, de 1987, contaremos com a participação do prof. Gutierrez e isso é de extrema importância para a pesquisa documentacional brasileira. 286 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 29. Luiz Beltrão: Folkcomunicação e classes sociais36 José Marques de Melo, Carlos Eduardo Lins da Silva, Rogério Cadengue e Martha Azevedo Em 1980, Luiz Beltrão veio a São Paulo participar do Congresso da UCBC e lançar o seu livro Folkcomunicação, a comunicação dos marginalizados (Cortez Editora). As atividades do congresso se realizaram em São Bernardo do Campo, tendo como tema central: comunicação e educação popular, e foram sediadas no Instituto Metodista de Ensino Superior. Naquela ocasião, a equipe responsável pelo, então Boletim Intercom, programou uma entrevista sobre a formação intelectual, a produção científica e a obra jornalística de Luiz Beltrão. A entrevista foi realizada pelas seguintes pessoas: José Marques de Melo, Carlos Eduardo Lins da Silva, Rogério Bastos Cadengue e Marta Alves D´azevedo, tendo sido gravada nos estúdios da rádio 36. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano X, nº57, jul/dez, 1987. p.05-15. 287 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade do IMS. Lamentavelmente, as fitas gravadas foram extraviadas e não houve oportunidade de sua publicação. Depois do falecimento de Luiz Beltrão, fato que ocorreu, em Brasília, no dia 24 de outubro de 1986, a fita da entrevista foi localizada. Feita a transcrição e a edição do texto, pelo repórter Dario Luiz Borelli, os editores da INTERCOM – Revista Brasileira de Comunicação – decidiram publicá-la como uma homenagem póstuma ao emérito pesquisador, que abriu a trilha do estudo científico da comunicação no Brasil. Mesmo incompleto, trata-se de um depoimento fecundo, capaz de proporcionar elementos biográficos e históricos que reconstituirão a trajetória de Luiz Beltrão no ensino e na pesquisa de Comunicação, desde os seus tempos como jornalista, em Pernambuco, até a sua projeção como escritor e acadêmico reconhecido no país e no exterior. INTERCOM – Prof Luiz Beltrão, como se deu sua iniciação intelectual? Ela começou no Seminário de Olinda e depois foi continuada na Faculdade de Direito do Recife. Quais as reminiscências que o senhor guarda desse período? Prof. Luiz Beltrão – Minha formação cultural teve início, efetivamente, no Seminário de Olinda. Ali, principiei a estudar e a escrever. Nessa época de Seminário, eu escrevi num caderno um romance chamado O Aimoré. Era uma réplica de O Guarani, de José de Alencar. Saindo do seminário, eu fui procurar o Colégio Estadual de Pernambuco. Ele não tinha esse nome, chamava-se Ginásio Estadual Pernambucano. Era famoso por ser uma escola avançada em matéria de métodos educacionais. Não era uma escola 288 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 fechada. Após frequentar o Ginásio, entrei na escola de Direito. Naquela época, não havia muitas opções, apenas três escolas de nível superior em Pernambuco: a Escola de Medicina, a Escola de Direito e a de Engenharia. Fora isso, não havia mais nada. Antes de entrar na faculdade, houve alguma coisa que influenciou nessa minha formação. Foi a existência, naquela época, dos chamados Centros de Cultura ou Grêmios Literários. Cada cidade tinha seu Centro de Cultura, como hoje, quase toda cidade tem sua a Academia de Letras. Eu não fui somente sócio-fundador, como também presidente do chamado Centro de Cultura ‘Humberto de Campos’, em Olinda. Esse Centro estava, naturalmente, sob a égide de um jornalista, pois a minha geração foi influenciada por ‘Humberto de Campos’ como jornalista e cronista. Foi, nesse Centro de Cultura, que conheci algumas pessoas que, de certo modo, destacaram-se nas letras brasileiras ou na política. Foi, ali, que eu conheci, por exemplo, o famoso líder das Ligas Camponesas, Francisco Julião. Ele foi meu companheiro na adolescência e o tenho como amigo até hoje. Ali, também, conheci Ledo Ivo, poeta e homem das letras. Aquele Centro promovia debates com escritores, havia, ali, um início de vida literária, movido pelo bom interesse pelas letras. Aí, eu entrei para a Faculdade de Direito, que o meu entrevistador bem conhece, pois ali também estudou. INTERCOM – Que influências a Faculdade de Direito do Recife exerceu na sua maneira de ver o mundo, já que ela sempre se caracterizou por um espírito libertário? 289 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Prof. Luiz Beltrão – A Faculdade de Direito do Recife não eram as aulas. A Faculdade de Direito do Recife não eram os professores. A Faculdade de Direito do Recife, para mim, eram os corredores onde havia os famosos bancos de madeira e ferro que jamais o calouro podia sentar no encosto, onde a gente botava os pés. Naquela época, o país estava vivendo a ditadura do Estado Novo e, por coincidência, na turma, havia pessoas que, mais tarde, celebrizaram-se na vida política do país. Por exemplo: Osvaldo Lima Filho, Ministro do Trabalho de Jango. E, também, gente do governo, como Paulo Germano de Magalhães, filho do interventor federal em Pernambuco, Agamenon Magalhães. Enfim, era uma turma interessada nos problemas e fazia política possível à época. INTERCOM – A sua época, na Faculdade, foi a época de Demócrito de Souza Filho, que se tornaria o mártir da redemocratização em Pernambuco? Prof. Luiz Beltrão – Não, eu sou um pouco anterior a Demócrito. Quando ele entrou, nós já estávamos saindo. Nós saímos da Faculdade em 1943. Creio que, naquela época, o Demócrito ainda não tinha entrado. Ele ia entrar, em 1944, e morreria no conflito de 1946. A nossa rebeldia, já que não podia se voltar para uma ditadura tão ferrenha, como era a do Estado Novo, ela se voltava contra a política interna da Faculdade. Nós combatíamos o diretório, simplesmente. Esse combate ao diretório representava, assim, uma projeção ou uma tomada de posição. Praticamente toda a turma era a favor da campanha “O Petróleo 290 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 é nosso”. Então, nós íamos pros morros e lá explicávamos para o povo o que era a campanha do petróleo e tal. Isso era uma outra maneira de, na época, de se combater a ditadura, porque a ditadura evitava de todo modo a exploração do petróleo. INTERCOM – Como é que se deu sua presença no Jornalismo? Como foi o início de sua carreira no Jornalismo? Prof. Luiz Beltrão – Eu comecei minha vida profissional no “Diário de Pernambuco”, isto é, eu entrei como revisor. Mas, dois dias depois de ter entrado como revisor, fui promovido: passei de revisor a arquivista de clichê, que era organizar clichês. Depois de algum tempo, eu passei a tradutor de telegrama. E de tradutor de telegrama a repórter. O que eu consegui, no “Diário de Pernambuco”, foi chegar a ser repórter. A minha ascensão de revisor para arquivista de clichê está baseada numa reportagem que escrevi sobre qualquer assunto lá que já não me recordo bem. Só sei que entreguei muito, solenemente, ao diretor como texto de autoria de Luiz Beltrão. E o diretor, depois de passar oito dias com a reportagem nas mãos, ele me devolveu o original cheio de riscos azuis. Eu começava a aprender o estilo jornalístico com um dos grandes mestres da imprensa pernambucana, que foi Aníbal Fernandes. Nesse jornal, trabalhava, entre outros, Gomes Maranhão e Odorico Costa. O Rubem Braga dirigia a “Folha do Povo”, jornal comunista, e era repórter de polícia dos Associados. Como diretor de jornal comunista, ele combatia o diretor do “Diário de Pernambuco”. O Rubem era realmente um homem 291 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade de grande capacidade, de grande sentimento lírico e tal. Mas, é tremendamente combativo quando quer. A reportagem sobre a qual me referi, depois de entregue pelo diretor do jornal, ela foi para mim reescrita. Depois de uns 15 dias, foi publicada sem o meu nome. A primeira coisa que o indivíduo aprende no Jornalismo é o anonimato que, hoje, é pouco explorado, sobretudo na televisão, na qual, às vezes, aparece um mero locutor se passando por jornalista. INTERCOM – O senhor começou no Jornalismo já sobrevivendo ou o Jornalismo era um mero acessório de sua carreira? Prof. Luiz Beltrão – Em 15 de dezembro de 1936, eu entrei no Jornalismo. Nessa época, o Jornalismo não era uma profissão, mas um “gancho” como nós o chamávamos. A pessoa tinha um emprego e trabalhava num jornal. Muitas vezes, trabalhava no jornal para melhorar o nome no emprego. No meu caso, por exemplo, eu tinha entrado no Instituto de Previdência dos Serviços do Estado de Pernambuco e utilizava, de certo modo, o jornal – após me firmar mais ali – para fazer um jogo: difundir as coisas do Instituto, no jornal, que eram difíceis de serem difundidas porque, naquela época, era a época da ditadura do Estado Novo. Então, os jornais publicavam tudo o que saísse de qualquer repartição do governo. INTERCOM – O senhor trabalhou muito tempo nos jornais de Pernambuco? 292 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Prof. Luiz Beltrão – Eu trabalhei mais de 25 anos. Quando eu saí do “Diário de Pernambuco”, fui trabalhar no “Diário da Manhã”, que pertencia ao Agamenon Magalhães. Nesse jornal, cheguei até redator-chefe. Só, nesse jornal, eu trabalhei 17 anos. Depois, eu trabalhei nas agências noticiosas France Press e Asa Press. Fui correspondente de agências jornalísticas nacionais e internacionais em Pernambuco. INTERCOM – Em algum momento o senhor viveu única e exclusivamente do Jornalismo? Prof. Luiz Beltrão – Na minha época não era possível. Não creio que houvesse alguém que vivesse exclusivamente do Jornalismo. Eu pelo menos não conheço. Um belo dia, o Aníbal Fernandes, diretor do jornal, apareceu, na redação, com um livro de cor cinza, em francês, que se chamava Como fazer um jornal. Eu nunca tinha imaginado, na minha vida, que se pudesse aprender a fazer Jornalismo de outro modo, senão fazendo o próprio jornal. Esse momento marcou demais a minha vida porque, daí em diante, eu passei a querer organizar uma biblioteca também. Eu comecei a perceber que era preciso estudar Jornalismo para poder fazer Jornalismo. Esse foi o princípio do meu interesse pelo ensino de Jornalismo. INTERCOM – Há um aspecto na sua vida que é a sua atuação como líder sindical. O senhor não se limitou a apenas ao exercício profissional do Jornalismo, mas se destacou em Pernambuco como líder da categoria. O senhor poderia nos 293 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade dar algumas informações sobre essa sua passagem pela vida sindical brasileira? Prof. Luiz Beltrão – Pois não, vamos a ela. Em Pernambuco, não havia Sindicato de Jornalistas Profissionais. Havia uma Associação de Imprensa que reunia patrões e empregados, como todas as outras Associações de Imprensa do Brasil. Eu me filiei à Associação de Imprensa de Pernambuco e, no ano de 1951, fui eleito presidente em três mandatos consecutivos. Se não me engano, foram nos anos de 1951, 1953 e 1955. O mandato era bienal. Nesse ínterim, nós fomentamos a criação, dentro da própria Associação, do Sindicato dos Jornalistas Profissionais. Criado o Sindicato e eleita a sua primeira diretoria, fui indicado representante junto ao Conselho da Federação Nacional de Jornalista. Então, eu fui participar de uma eleição, no Rio de Janeiro, e chegando, lá, fui surpreendido com a notícia de que estava eleito presidente da Federação Nacional de Jornalistas. Saía da Presidência da Federação, o caro amigo Freitas Nobre. Só que eu não podia ser presidente, porque eu havia me comprometido com um candidato de Belo Horizonte, Marcelo Tavares, que depois assumiu o cargo. Eu me recusei, terminantemente, devido ao fato de ter recebido uma delegação do sindicato. Então, eu teria que votar nele. Durante esse tempo, militei muito em congressos jornalísticos e congressos promovidos pela União Brasileira de Escritores. Em 1950, eu tinha entrado nas letras com a publicação do meu romance chamado Os Senhores do Mundo. Nessa época, eu era repórter, não policial, mas de informações gerais. Eu convivia muito com o povo das 294 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 chamadas classes subalternas e Os Senhores do Mundo eram aquelas pessoas que viviam marginalizadas da sociedade e que eram de fato marginais. O livro se ocupa dessas pessoas. O romance regional era o estilo da época. Mais do que regional, local. Foi editado pelo meu jornal em 1950. INTERCOM – O senhor declarou que com o livro ‘Como Fazer um Jornal’ começou a aparecer o estudioso Luiz Beltrão, que encarou o Jornalismo como matéria que, evidentemente, deveria ser ensinada para os que desejassem se tornar profissionais de imprensa. Mas, como surgiu, efetivamente, o professor Luiz Beltrão ensinando aluno de Jornalismo? Prof. Luiz Beltrão – Em 1951, eu participei do 5º Congresso Nacional de Jornalistas, realizado em Curitiba. Eu já estava convencido, na época, de que não somente era possível aprender Jornalismo, como devia se aprender, devia se prestigiar os curso de Jornalismo, e como se devia até não permitir que continuassem jornalistas sem uma formação superior. Nem naquela época, nem hoje, eu acredito na necessidade de formação específica de um indivíduo numa profissão de comunicação. Eu acho que o indivíduo deve ter curso superior, porque, na universidade, é onde se pesquisa, é onde se faz experiência. Quem ganha o Prêmio Nobel do mundo são professores de universidades que fazem experiência dentro da própria universidade. Quer dizer, é necessário existir cursos específicos de formação de jornalistas; mas, mais necessária ainda, é a formação universitária do aluno de Jornalismo e o jornalista, naquela época, não tinha essa formação superior. 295 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Então, nesse Congresso, eu apresentei uma tese. Eu me lembro do momento da discussão da tese. Ela caiu nas mãos de um jornalista comunista para ele dar o seu parecer. Então, esse jornalista puxou a brasa para a sardinha dele, porque eu falava que, na União Soviética, como nos Estados Unidos, na Alemanha e na França, havia cursos de Jornalismo. Eu mostrava que cada país defendia a sua concepção de liberdade, de acordo com a formação cultural que tinha. Houve, então, um levante contra a minha tese, ou melhor, não contra a minha tese, mas contra o parecer daquele jornalista comunista. INTERCOM – E quem era esse jornalista? Prof. Luiz Beltrão – Olha, sabe que eu não me lembro mais! Era um rapaz da Bahia, cujo nome não me recordo. Esse rapaz puxou a brasa, dizendo: “Porque não União Soviética e tal...” Aí, chegou a tal ponto, que começou um tumulto, que eu disse à minha mulher: “É uma pena porque tive tanto trabalho para elaborar a tese e, agora, ela vai passar em brancas nuvens”. INTERCOM – Quer dizer que essa preocupação com os cursos de Jornalismo como subversivos já é muito antiga? Prof. Luiz Beltrão – Ah, muito antiga, é claro! Essa é a mais antiga delas. Hoje, ainda, é pior porque eles são os mesmos subversivos, quer dizer, eles estão subvertendo, porque não devem nem podem deixar de subverter toda essa ideia de que jornal pode ser feito como era feito no princípio do século. 296 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Então, eu fui obrigado a ir à tribuna, onde me perguntaram qual era o meu ideário político e essa coisa toda. Eu vou dizer o seguinte: quando assumi a tribuna para falar, eu ia dizer que aquilo era o parecer do jornalista e que a minha tese era assim, assim... No momento, o Congresso todo fazia um combate ao atestado que o Ministério do Trabalho exigia, chamado “atestado ideológico”. Um daqueles mais exaltados perguntou assim: “O senhor é comunista?” eu respondi: “Recuso passar um atestado de ideologia, eu não posso porque este Congresso é contrário a qualquer tipo de atestado ideológico. Agora, o senhor lê a minha tese e vê o que é que eu sou, entendeu? Ainda se o senhor perguntar o que é que eu sou, politicamente, vou lhe dizer que, quando havia um partido, chamado Social Democrático, eu costumava dizer que era Democrata Social”. Isso para ninguém me confundir com o PSD. INTERCOM – E hoje? Prof. Luiz Beltrão – Hoje, como eu quero que ninguém me confunda com os Democratas Sociais, passei a ser Social Democrata. Eu, hoje, sou um homem de ideias sociais democráticas, mas não confundir com o antigo PSD e nem com o democrata social como o de hoje, o PDS. Do ponto de vista político, eu não posso deixar de considerar a profunda injustiça da sociedade atual, que beneficia, demasiadamente, e deixa grande maioria em situações de penúria intelectual, cultural, social, econômica e moral. É necessário que haja uma abertura socializante, não socialista exatamente, mas socializante, a fim de que essas 297 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade classes possam participar e ter os benefícios do desenvolvimento. Esse é o meu pensamento político não extremado, pois não sou um homem de extremos. Não acho que seja a solução. Compartilho da posição daqueles que acreditam que o indivíduo deve ser doutrinado. Por outro lado, acho que deve haver um acesso maior aos meios de comunicação, por parte do povo, de todas as camadas de opinião, a fim de que se possa debater livremente os temas. INTERCOM – Que ideia o senhor tem, hoje, da liberdade de imprensa e que limites o senhor ver no exercício profissional do Jornalismo para, de um lado, respeitar essa liberdade de imprensa e, do outro, garantir que ela se exerça? Prof. Luiz Beltrão – Para mim, a liberdade de imprensa deve ser consubstanciada no respeito que o indivíduo deve ter à pessoa que objeto da matéria em pauta. Não é o fato de a lei dizer que não se deve caluniar, não se deve injuriar, mas não pode, entende? Então, as coisas que ofendem ou quebrem esse respeito representam o limite da liberdade. A liberdade de imprensa se confunde um pouco com a doutrina do amor, quer dizer, eu não posso injuriar, ofender a quem amo. Eu devo respeitar a personalidade do indivíduo com amor. Eu acho perfeitamente possível essa liberdade. Na prática, porém, a imprensa está dominada por grupos econômicos e, em outras áreas, pelo próprio Estado. Então, os limites da liberdade ficam difíceis de serem precisados. Já se tentou de várias formas a distribuição de jornais impressos a determinadas categorias de trabalhadores para que utilizassem esses jornais. Talvez, esse sistema de 298 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 distribuição de jornais por categorias ou classes não seja realmente democrático, porque uma classe talvez não entenda os problemas das outras, pois elas estão sempre em defesa dos seus interesses exclusivamente. Eu penso que não é ainda esse o caminho. Somente através de um estudo, de discussões e de debates de uma teoria e princípios firmados, anteriormente, poderemos alcançar melhores resultados. E somente dentro das universidades é possível chegarmos a isso. Por isso, é que defendo a universidade. Mas, também, aí nós vamos entrar na questão da universidade brasileira, tão distanciada do povo. Temos que deselitizar a universidade brasileira e torná-la popular. Não é fácil numa entrevista definir a cosia com muita exatidão. INTERCOM – Pernambucano convicto, o senhor deixou seu Estado pelo Planalto Central. O que motivou esse seu abandono de Olinda? Prof. Luiz Beltrão – A luta pela vida. Aliás, não é bem a luta pela vida. Eu vou ser mais sincero. Em 1965, tive uma grande oportunidade. A Universidade de Brasília (UnB) sofreu uma crise, pois lá havia um reitor que resolveu, de uma hora pra outra, botar para fora da Universidade 265 professores de uma só vez. A UnB ficou vazia. Eu dirigia o curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco, quando fui convidado pelo meu amigo e, então, secretário de Imprensa do Governo Castelo Branco, José Vamberto Assunção, para reorganizar a Faculdade de Comunicação de Massa da Universidade de Brasília. Com a seguinte condição: não se falar com comunicação de massa 299 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade porque era subversivo. Agora, como eu sempre achei que o meu trabalho poderia ser ampliado, caso eu estivesse num organismo federal e não num estadual, além de estadual, secretário, pois era católico mesmo, aceitei a minha transferência para Brasília. Lá, verifiquei que o plano da Faculdade de Comunicação de Massa feito por Pompeu de Souza era realmente muito bom. O que eu tinha que fazer era só tirar o nome e afastar um pouco as coisas que não tinha condições de realizar. Por exemplo: o curso de Cinema. Não tínhamos condições de continuar fazendo Cinema lá, pois o número de professores de Cinema, no Brasil, era muito restrito. Todos eles tinham saído. Então, eu organizei a Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília, mas isso só foi durante um ano e pouco que funcionou, porque, logo depois, tive que sair devido a conflitos com o próprio reitor que havia me convidado. Com isso, eu fui ensinar no Centro Universitário de Brasília, lutando sempre pelo estudo da comunicação das classes marginalizadas, ou melhor, dos grupos marginalizados, pois não quero falar em classes. INTERCOM – Quando o senhor chegou a Brasília, trazia já uma pesquisa que logo recebeu uma forma acadêmica e foi apresentada como tese de Doutoramento na UnB. Trata-se de seu estudo sobre Folkcomunicação. Que tipo de motivação o levou – sendo um homem Social Democrata, como o senhor já se definiu antes, e um homem que militou sempre na imprensa, fazendo não apenas jornalismo, mas, também, um pouco de relações públicas, na medida em que fazia intermediação com o governo e a imprensa – a se preocupar com os 300 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 grupos marginalizados da sociedade brasileira? Prof. Luiz Beltrão – Bom, eu já expliquei que o meu primeiro romance foi sobre esse pessoal. Eu realmente me dava com esses grupos. Em segundo lugar, eu sou filho de funcionário, um dentista e a minha mãe era “artes domésticas”, como se dizia na época. Nós nunca fomos esnobes, sabe? Cada um procurava fazer sua vida com muito trabalho. Eu sempre tive uma forte ligação com meu grupo, o grupo a que pertencia. Não era proprietário de nada, não era proprietário nem do jornal em que eu servia. Como presidente da Associação de Imprensa de Pernambuco, fiz boas relações entre patrões e empregados. No momento em que os jornalistas precisavam de mim, eu estava lá para defendê-los, porque eu achava que era necessária uma colaboração. Eu sou um Social Democrata e, como tal, não podia ficar alheio a um problema do trabalhador. Eu convivia nas associações de classes com operários mesmo, com gente das camadas mais apartadas da sociedade, com o indivíduo que jogava futebol e era gráfico do jornal. Eu fui secretário de jornal, trabalhando nas oficinas, paginando o jornal com os gráficos. Muitas vezes, comi da feijoada deles em cima da mesa de composição cheia de papel de jornal e a feijoada de feijão misturada com farinha para gente comer. Então, eu convivia com eles, sentia os seus problemas e isso me levou, aos poucos, a entender certas linguagens, cetros modismos, certas expressões que, talvez, escapassem a outro desprevenido. O que significa o frevo, por exemplo? O que significa o samba? O que significa uma procissão? E a Capela dos Milagres, onde são depositados 301 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade os ex-votos? Seria só Deus, religião ou seria, também, uma dose de desespero e protesto? Isso aí me levou a um estudo mais circunstanciado. INTERCOM - Eu tenho uma pergunta ambivalente para lhe fazer. A primeira parte está ligada ao método e a segunda às ideias e conclusões. Com a evolução do seu trabalho intelectual, hoje, o que é que o senhor reveria quanto ao método de trabalho e quanto às ideias que o senhor formulou? Prof. Luiz Beltrão – Do ponto de vista de método, a pesquisa social é um campo que uma pessoa como eu não tinha muitas chances de realizá-la ordenadamente. Houve muito empirismo em tudo quanto fiz, naquela época, e talvez ainda haja atualmente. A pesquisa exige, hoje, um financiamento e é muito mais fácil um camarada fazer uma pesquisa, quando ela é financiada do que quando ele tem que lutar com as próprias linhas, ou seja, aproveitar todos os momentos e as oportunidades para colher os dados necessários. Então, eu acho que teria tido muito mais possibilidades de desenvolvimento, caso recebesse um financiamento e uma formação teórica adequada. Eu acho que isso responde a sua primeira pergunta. Em relação à sua segunda pergunta, eu diria que houve uma evolução porque, quando estudei Jornalismo, procurei fazer do estudo do Jornalismo ponto de partida. O que era para mim o Jornalismo? O meu primeiro livro Iniciação à Filosofia do Jornalismo, expressa o meu conhecimento do Jornalismo em profundidade. Com meu primeiro livro, surgido em 1959, que recebeu o Prêmio ‘Orlando Dantas’ 302 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 e o segundo, A Imprensa Informativa, publicado em 1964, e depois O Jornalismo Interpretativo que, há dois anos, estava saindo a 2ª edição pela Sulina e, agora, o Jornalismo Opinativo, eu tinha terminado toda a estrutura teórica e de orientação de Jornalismo. Mas, quando terminei o primeiro, um fenômeno me apresentou curioso: se o indivíduo é analfabeto, como é que ele se forma? Se ele não vai ao cinema e se ele não tem televisão, como é que ele intercambia opinião? Daí, eu me lembrei dos meus companheiros gráficos, lembrei-me de um que era presidente do Lenhador do Recife, clube de frevo, lembrei-me da história de Lampião, de Antonio Silvino e de todos os bandoleiros de Pernambuco, eu tinha contato com os coronéis, eu vi, por outro lado, as multinacionais substituindo os coronéis com a mesma voracidade que os usineiros substituíram os senhores de engenho na indústria do açúcar. Aí, então, eu comecei a reconsiderar tudo isso e comecei a apanhar esses dados. Eu ainda estava impressionado com a informação puramente. Desse modo, eu chamei isso de folkcomunicação jornalística. O interessante é que eu achava que um dos maiores homens do folclore de todos os tempos, Edson Carneiro, era uma espécie de homem maldito. Edson Carneiro foi o único homem que percebeu que o folclore não era estático, o folclore não era uma coisa parada no tempo, mas uma coisa dinâmica. Aí, então, ele diz que o folclore é dinâmico e tem o seu livro A Dinâmica do Folclore, que apresenta essa tese aprovada internacionalmente. Esse livro teve uma grande influência para mim, pois verifiquei que qualquer manifestação popular estava ligada ao povo, porque o povo não tinha meios, ele utilizava esses meios que lhe davam. 303 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Posteriormente, houve uma modificação. Aconteceu que eu vi que a função da Comunicação não estava tão somente em informar ou orientar, estava também em educar, havia uma função educativa, uma função de diversão e havia uma função promocional. Então, eu comecei a aprofundar esses estudos e o resultado é que o conceito de folkcomunicação foi ampliado para não dar somente a ideia de que o povo utiliza a folkcomunicação para trocar notícias, mas sim para se educar. Dizer o que ele quer dizer, promover-se e entreter-se, divertir-se do mesmo modo que nós usamos o sistema estabelecido, o qual chamei de ‘comunicação social’ para fazer uma diferenciação da ‘comunicação folclórica’. INTERCOM – Onde é que estão os limites entre o folclore e a folkcomunicação? Prof. Luiz Beltrão – Olha, eu costumo dizer que quando o indivíduo me chama de folclorista, eu digo não, sou um aproveitador do folclorista. Na verdade, eu não sou um folclorista, mas um homem que aproveita a pesquisa feita pelo folclorista. O folclore é uma manifestação da sabedoria do povo, quer dizer, o povo faz o folclore. Na folkcomunicação, o que a gente procura é a mensagem real, atual, escondida naquela manifestação antiquada. É preciso analisar isso em profundidade, não ficar nas aparências. Vou dar um pequeno exemplo: se você aprecia a dança do frevo, você levanta a sua história e descobre que é uma dança que nasceu da 304 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 capoeira. Capoeira é um jogo violento. A dança do frevo é violenta. Então, você não diz o povo está brincando o carnaval, mas fervendo. O frevo vem de fervendo. Está brincando carnaval, mas também está transmitindo uma mensagem. Essa mensagem, por sua vez, não é uma mensagem pacífica, não é uma mensagem do brasileiro bonzinho, é uma mensagem do bravo, do valente que saía lutando capoeira, às vezes, com a navalha e a peixeira para defender as suas reivindicações. E, então, se você ficar somente na interpretação semiológica de um passo de dança, você ficou na metade do caminho. Agora, se você tiver coragem e avançar mais, vai colher outros dados. Faça por exemplo, uma espécie de folkcomunicação comparada. Compare a dança do frevo com a dança das turbas francesas, em torno da guilhotina, enquanto as cabeças dos nobres caiam. Você vai ver que o brasileiro não é tão bonzinho e tão pacífico como se fala e, talvez, não seja tão paciente como se pensa. Pelo menos dois nunca foram tão pacientes: os gaúchos e os pernambucanos. INTERCOM – Com relação às suas ideias, que aspecto o senhor considera pouco trabalhado? Para onde é que o senhor vai em termos de pesquisa e o que lhe parece mais necessário ainda de ser elaborado? Prof. Luiz Beltrão – Olha, eu ando muito preocupado com a folkcomunicação. Eu costumo dizer que o meu trabalho tem sido todo abrindo picadas para que outros aqueçam o caminho. Eu, por exemplo, preciso de muito mais elementos para uma teoria da folkcomunicação. Aliás, eu acho 305 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade que nós estamos precisando de muito mais elementos para uma teoria da própria Comunicação, que ainda não tem os elementos suficientes para isso. Mas, da folkcomunicação, realmente precisamos de muito mais estudos. No livro que eu vou editar, agora, delineio os elementos teóricos e, em seguida, passo a mostrar certos caminhos. Esse livro ainda não me satisfaz em certas coisas. Por exemplo: às vezes, me vem a ideia de que a pessoa pode confundir a folkcomunicação com uma ‘comunicação classista.’ Mas, ela não é uma comunicação classista. Nesse livro, eu estudei alguns grupos que utilizam a folkcomunicação, isto é, meios não-formais de comunicação ligados direta ou indiretamente ao folclore. Eu não vi que alguns desses grupos têm capacidade de integração na sociedade, apenas não concordam com essa sociedade. Os grupos a que me refiro são os culturalmente marginalizados, contestam a cultura dominante. Eles contestam, por exemplo, as crenças dominantes, na sociedade, e as religiões estabelecidas. O grupo erótico-pornográfico não aceita, por exemplo, a moral dominante. 306 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 30. Comunicação e relações culturais segund Dario Borelli e Virgilio Noya Pinto37 Carlos R. Brandão Carlos Rodrigues Brandão: a influência da comunicação se dá no interior de complexas redes de relações culturais entre sujeitos sociais Dario Borelli; Virgílio Noya Pinto Temos a satisfação de apresentar aos pesquisadores e agentes sociais da comunicação da América Latina, presentes ao X Ciclo de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, que a INTERCOM estará promovendo de 4 a 10 de setembro de 87, em Campinas (SP), uma abordagem antropológica do trinômio Democracia, Comunicação e 37. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano X, nº57, jul/dez, 1987. p.16-21. 307 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Cultura, elaborada por Carlos Rodrigues Brandão, professor do Departamento de Ciências Sociais da UNICAMP. Atualmente, o antropólogo e educador Carlos Rodrigues Brandão divide o seu tempo de trabalho entre o estudo, a pesquisa e a docência de Antropologia Social; mas, desde 1963, nunca deixou de participar do debate extrauniversitário dos movimentos e experiências de educação e cultura popular. Após se formar psicólogo, pela PUC do Rio de Janeiro, ele fez o mestrado em Antropologia Social, na Universidade de Brasília, e o doutorado em Ciências Sociais, na Universidade de São Paulo. Diz que tudo o que escreveu, até hoje, “fora a poesia que me persegue, desde a adolescência”, são os seus relatórios de pesquisas de Antropologia ou os livros entre a didática e a militância, dirigidos a educadores. Publicou, entre outras, as seguintes obras: Cavalhadas de Pirenópolis, Mão de Obra, Os Objetos do Dia, Peões Pretos e Congos, por editoras de Goiânia. O Divino, o Santo e a Senhora, Plantar, Colher e Comer, As Folias de Reis de Mossâmedes, Lutar com a Palavra, Sacerdotes de Viola, publicadas por editoras do Rio de Janeiro. Por editoras do estado de São Paulo publicou: Os Deuses do Povo, Diário de Campo, O Que é Educação, O Que é Método Paulo Freire, O Que é Folclore, O Ardil da Ordem, Casa de Escola, Educação como Cultura e, mais recentemente, Identidade & Etnia. E coordenou as edições de: A Questão Política da Educação Popular, Pesquisa Participante e O Educador – Vida e Morte. INTERCOM – A que resultados chegou com relação à cultura brasileira, após sua jornada pelo campo da psicologia, da educação e, mais recentemente, da antropologia? 308 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Prof. Carlos R. Brandão – Eu seria menos desonesto se dissesse que, ainda, não cheguei propriamente a “resultados”, após tantas andanças e por tantos caminhos. Na verdade, creio ter chegado a algumas suspeitas, a algumas zonas de compreensão um pouco mais transparentes, mas não creio ter, agora, ideias mais definitivas a respeito da questão da cultura, da cultura brasileira ou a respeito de qualquer outro assunto que toque o homem, sua história, mistérios, símbolos e experiências de vida. De resto, não me sinto muito contra a corrente mais atual da própria Antropologia. Faz muito tempo nós nos livramos, coletivamente, da certeza ilusória e, ao mesmo tempo, da obrigação de considerarmos os mistérios do homem, da sociedade e da cultura, definitivamente subordinados a leis de origem, de transformação e de sentido. Cada vez mais, ideias como “leis”, “princípios” e “determinantes” são palavras e assuntos do museu da Antropologia. Sabemos que o campo que exploramos é bastante mais complexo, polissêmico e diferenciado do que imaginavam os nossos “pais fundadores”. De algum modo, aprendemos a pensar a própria realidade da cultura como uma coisa que se abre a várias interpretações e, a seu modo, cada uma delas torna mais clara, mais compreensível, uma região obscura e inteligível da própria experiência do homem com os seus símbolos e significados. A própria ideia de cultura brasileira presta-se muito bem a pensar isso. Faz algum tempo, havíamos erigido algo como “a cultura brasileira” como alguma coisa, cuja realidade seria indiscutível, cuja unidade seria inquestionável e cuja absoluta peculiaridade deveria ser motivo de uma espécie de orgulho nacional que não imaginávamos 309 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade tão imenso entre outros povos, em outras culturas. Pois, agora, temos uma compreensão, ao mesmo tempo, mais rica e muito mais humilde de alguma coisa a que é difícil, agora, dar o mesmo nome de “cultura brasileira”. Uma visão classista, resultado de uma leitura apressada de como as coisas deveriam ser, mais do que são, na realidade, permitiu que, em um momento seguinte, fizéssemos uma divisão arbitrária entre uma cultura erudita (dominante, hegemônica, das elites etc.) e uma cultura popular (dominada, das classes trabalhadoras, dos subalternos, do povo etc.). Eu mesmo escrevi assim, muito. Não me arrependo, porque correspondeu ao tempo em que foi escrito. Mas, não o faria do mesmo modo, outra vez. Porque, agora, sabemos que, em primeiro lugar, a experiência humana e social da cultura não corresponde exatamente a territórios nacionais e, possivelmente, uma de suas maiores grandezas seja justamente essa possibilidade de permanentemente transpor e transgredir os territórios políticos e nacionais em que a querem encerrar. Em segundo lugar, a própria polaridade erudito X popular, tão útil para tantas explicações, na verdade, dissolve-se na realidade de múltiplas culturas, tantas e tão diferenciadas quantas são as possibilidades de experiência da vida e de significação da vida, por parte de segmentos da vida social brasileira. Primeiro, descobrimos – sem a ingenuidade escolar de nossos antecessores – que existem diferenças regionais e, mais importantes do que elas, diferenças étnicas, de grupos socioculturais e de subgrupos, dentro deles. Descobrimos, uma vez mais, por exemplo, a cultura indígena que, sendo no Brasil, recusa-se a ser brasileira. Depois, redescobrimos as diferenças entre culturas gê e culturas tupi. Depois, ainda, 310 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 redescobrimos a peculiaridade da experiência cultural de cada grupo específico, de cada tribo. Isso vale mais para os segmentos não-indígenas de nossa sociedade. As múltiplas culturas e diferenças culturais dos povos camponeses e demais povos rurais do país. Aquelas a que damos com frequência o nome de ‘culturas tradicionais’. Depois, a nova e riquíssima experiência de cultura e culturas que, hoje, são criadas e recriadas na periferia das cidades. Algo que tem sido cada vez, com mais frequência, estudado entre nós: as culturas dos movimentos sociais, dos movimentos populares. Aquilo que eles acrescentam, como símbolo e significados, ao repertório de nomes e palavras, mas também de gestos e cantos com que contamos para, afinal, sabermos por nós próprios quem somos e o valor do que fazemos. INTERCOM – Existe uma personalidade padrão do brasileiro? Prof. Carlos R. Brandão – A ideia de personalidade padrão foi muito comum, na Sociologia e na Psicologia do passado. Hoje em dia, ela tem sido muito posta em questão. O que se sabe – e há inúmeras investigações de psicólogos e antropólogos abordando isso – é que certos padrões básicos de relações primárias, entre pais e filhos, por exemplo, podem constituir certos modos coletivos de se ser, como uma pessoa social. Mas, entre isso e a afirmação de que existe uma espécie de personalidade padrão do brasileiro, que o tornaria diferente tanto de vizinhos, como os argentinos, quanto de distantes, como os tailandeses, há uma perigosa distância. Aqui, mesmo no Brasil, convi311 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade vemos com várias e diferentes tendências de conduta e de compreensão da realidade. Seriam várias “personalidades de brasileiros”. Mas, a grande questão é que esse problema, sem dúvida alguma, tão generosamente fascinante quanto difícil e controvertido, tem sido mais objeto de preconceitos e gratuidades do que de pesquisas de fato consistentes. Há, por exemplo, entre nós, um preconceito bastante difundido contra o carioca. Ele seria o sujeito pouco dado ao trabalho, amigo de praia, cerveja e prazer. Pois bem, uma séria pesquisa demonstrou, faz pouco tempo, que o operariado carioca possui uma rotina de trabalho em nada diferente à do paulista e, sob certos pontos de vista, mais fatigante e produtiva do que a de operários norte-americanos e europeus. Hoje em dia, voltamos à questão da “personalidade de base” com conceitos e teorias muito mais refinados. Por exemplo, toda a fértil discussão sobre a identidade, a identidade social e a identidade étnica na Antropologia, na Sociologia e na Psicologia. Aqui, mesmo no Brasil, uma ainda pequena, mas fértil nova produção de pesquisas e escritos sobre a identidade, sobre o ethos de diferentes grupos e categorias de sujeitos culturais, no Brasil, tem renovado bastante a própria visão que temos do assunto. Mas, para não deixar a pergunta sem uma resposta, eu diria que, em absoluto, não existe, cientificamente, uma “personalidade padrão do brasileiro”. Existem várias, diferentes e até contrastantes disposições de conduta, de orientação do sentido da vida, de representação simbólica da realidade, que poderiam configurar diferentes “maneiras de ser”, se quisermos, diversas identidades de segmentos sociais e culturais de brasileiros e de outras pessoas, no Brasil, como os nossos indígenas. 312 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 INTERCOM – Como é que “elas” (as diversas identidades de segmentos sociais e culturais de brasileiros) vêm se modificando com a presença dos meios de comunicação? Prof. Carlos R. Brandão – Acho que essa pergunta poderia ser respondida mais facilmente por vocês, especialistas em Comunicação, do que por mim. O que eu poderia dizer, com base em minhas próprias experiências de vida e de pesquisa, e com base em leituras e estudos, é que a presença e o incremento dos meios de comunicação, sem dúvida alguma, exercem alguma influência psicológica e cultural sobre as pessoas e sobre os grupos sociais. Quem seríamos e como seríamos sem a televisão em nossas vidas? Mas, o que importa é que, em si mesmos, os meios de comunicação pouco “mudam”. O que muda é aquilo que se transforma, no bojo das redes, as tramas de relações sociais e simbólicas, entre pessoas, entre grupos de pessoas, entre classes e outros segmentos etários, sociais e étnicos. A influência dos meios de comunicação se dá no interior de tais complexas redes de relações culturais entre sujeitos sociais, se dá através disso. Uma maneira simples de dizer isto é afirmar que as pessoas de uma comunidade rural mudam mais através do que falam e como se comunicam, após a TV começar a chegar em suas casas e vidas, do que através da influência pura e simples de seus programas. De resto, parece que pequenos grupos espalhados, por todo o país, possuem um poder bastante maior de “fazer a cabeça” do que os meios de comunicação. Nas comunidades rurais de Goiás, Minas e São Paulo, onde pesquiso desde 1968, pequenos grupos de “crentes” pentecostais produzem mais modificações de fato significativas, no modo 313 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade de ser, de se conduzir e de se representar, como pessoas e sujeitos sociais, do que todos os meios de comunicação. Se alguma coisa muda em “nós”, há de ser também por causa dos meios de comunicação. Mas, nada é, antropologicamente, mais indevido e errado do que isolá-los ou, pior ainda, isolar um de tais meios, e procurar determinar os efeitos diretos deles ou dele sobre as mudanças culturais no país. Porque eles são, também, parte das redes de relações que mudam e se modificam. Que os transformam, continuamente, para que eles, por causa disso, possam participar do complexíssimo jogo simbólico do que “muda” e do que “permanece” em cada um de nós, em nossas culturas. INTERCOM – Qual é o destino da cultura popular diante da ‘indústria cultural’? Prof. Carlos R. Brandão – Acho que, em boa medida, a resposta à pergunta anterior poderia caber aqui também. Sem dúvida alguma, os meios e, principalmente, o poder dos meios de significação e de comunicação e as estratégias da ‘indústria cultural’ exercem influência sobre a cultura popular. Uma área que, desde muitos anos, interessa-me, particularmente, a da música sertaneja, o demonstra claramente. Faz algum tempo, os cantores das “duplas sertanejas” cantavam para os seus iguais, para os seus santos, para o seu público direto, as pessoas de suas e de outras comunidades rurais semelhantes. Hoje e cada vez mais, eles cantam nas emissoras de rádio, para as gravadoras e com os olhos no “Som Brasil”. Mas, isso não quer dizer que o importante, em tal tipo de música, não esteja sendo 314 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 preservado. Por outro lado, isso não significa que, por causa de tais novos meios de comunicação, novos padrões e novas possibilidades de trabalho cultural e artístico, não estejam sendo mais e mais explorados. Não sejamos ingênuos. O fato é que, tal como em minha resposta anterior, é necessário, em primeiro lugar, considerar o próprio “meio de comunicação” como um componente da cultura, tanto quanto a própria “indústria cultural” – que não será mais do que uma dimensão, contemporaneamente, necessária e depravada – para, então, analisar o seu efeito. Curioso que os produtores populares de cultura com quem me relaciono, faz anos, lidam com os meios e mundos da ‘indústria cultural’ com uma naturalidade aparentemente muito maior do que a nossa. Mais ameaçados, parece que a temem menos. Em síntese, não é possível prever um destino único para a cultura popular face à indústria cultural, justamente porque não há uma única, mas uma multiplicidade de formas de culturas populares e, do mesmo modo, existem várias e diferentes possibilidades de relacionamento entre elas e as indústrias culturais. INTEECOM – A democracia, no Brasil, sobretudo na perspectiva de uma Nova Constituição, terá possibilidade de resguardar e resgatar uma cultura brasileira? Prof. Carlos R. Brandão – Tenho dificuldade de compreender com segurança o que seja hoje, no Brasil, uma democracia e uma experiência cultural democrática. Creio que vivemos um processo de “abertura” parcelar das alternativas 315 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade políticas, sociais e culturais da vida, mas ainda estamos longe de vivermos uma experiência democrática. Veja você o próprio caso da informação. Pobres do sentido político e pessoal da cidadania, ainda consideramos a comunicação de massas e a informação como um benefício, como uma dádiva que o governo autoriza existir (mas, que ele pode censurar, quando quiser) e que certas empresas especializadas realizam e nos ofertam, gratuitamente. Lidamos com o “Jornal Nacional” como uma dádiva e, por isso, temos uma dificuldade muito grande em compreendermos que a informação é um direito da cidadania e que, portanto, todos nós somos responsáveis pelo seu “destino” e pela sua qualidade. Não creio que constituições e constituintes tenham o poder de fazer isto ou aquilo com a cultura, de que elas próprias são uma parte e um momento, e que é muito mais dinâmica e, historicamente, muito mais poderosa do que elas. Mas, como verdadeira ou ilusória realização da vontade social e do contrato “de todos entre todos”, uma constituinte pode e deve levar em conta questões relativas à cultura – como processo, como poder, como instituição, como símbolo, como patrimônio – e deve procurar estabelecer princípios não tanto de “salvaguarda”, mas de realização da cultura com uma experiência participada, aberta, enfim, verdadeiramente democrática. INTERCOM – Até que ponto a Comunicação, compreendida, aqui, desde o simples contato entre os indivíduos até os mais sofisticados meios eletrônicos, é um processo impulsionador na evolução cultural? 316 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Prof. Carlos R. Brandão – Creio poder responder isso de uma maneira muito simples. Até pouco tempo atrás, a cultura da humanidade, a de cada povo, a de cada tribo, era basicamente como aquilo que os homens faziam e transformavam ao se relacionar com a natureza. Hoje em dia, uma compreensão mais atual da cultura, prefere vê-la muito mais como símbolos e relações entre homens, através de símbolos, do que como objetos e produções dos homens sobre a natureza. Afinal, sabemos, hoje, que a cultura é menos o que os homens fazem e mais o que eles se dizem. Ora, isso não é outra coisa senão Comunicação. INTERCOM – Em suas pesquisas atuais sobre a cultura brasileira, os problemas decorrentes da Comunicação estão sendo considerados? Prof. Carlos R. Brandão – De alguma maneira sim. Minha última pesquisa entre camponeses tradicionais de São Luis do Paraitinga, em São Paulo, abordou a questão da reprodução do saber. Isso é, eu quis compreender como as pessoas dali transmitem umas as outras, no trabalho, em casa, fora dela e, até na escola, diferentes modalidades de conhecimento necessário. Ora, sem estar propriamente investigando meios de comunicação, eu estive todo o tempo pesquisando modos de comunicação. Espero que até o fim do ano, o primeiro de uma série de três trabalhos, dessa pesquisa, seja publicado pela Brasiliense. Ele aborda a questão das relações entre a cultura camponesa e a escola rural e seu nome, provavelmente, será: O Trabalho de Saber. 317 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 318 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 31. Marques de Melo: A trajetória da INTERCOM38 Dario Borelli e Fátima Feliciano Tendo em vista os 10 anos de fundação da INTERCOM, a ser comemorado, no dia 12 de dezembro de 1987, durante o Simpósio “A Pesquisa Brasileira de Comunicação nos Anos 80” (ver programa na seção noticiário), os editores de INTERCOM – Revista Brasileira de Comunicação – decidiram publicar, nesta edição, entrevistas com os quatro primeiros presidentes da entidade: José Marques de Meio, Anamaria Fadul, Gaudêncio Torquato e Margarida Kunsch. Dessa forma, prestamos uma justa homenagem a quem, no decorrer deste 1º decênio, não mediu esforços para que a INTERCOM se tornasse uma associação representativa no panorama da pesquisa em Comunicação no Brasil. 38. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano XI, nº58, jan/jun, 1988. p.05-20. 319 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade INTERCOM – Quais as reminiscências que o senhor mantém viva em sua memória por ocasião do dia 12 de dezembro de 1977, data de fundação da INTERCOM? Prof. José Marques de Melo – As minhas reminiscências sobre o dia 12 de dezembro de 1977 me reconduzem ao edifício da Fundação ‘Cásper Libero’, na Avenida Paulista, em São Paulo, onde, numa reunião simples de vários pesquisadores que atuavam na USP, na própria ‘Cásper Libero’, na Metodista, na FAAP e, em outras Escolas da cidade de São Paulo, a INTERCOM foi fundada. É preciso deixar claro que a ideia de fundação da INTERCOM emerge algum tempo antes dessa data. Na verdade, eu pessoalmente já vinha me preocupando com a ausência de uma sociedade científica que congregasse os pesquisadores da Comunicação e esse sentimento veio à tona, em julho de 1977, quando foi realizada, em São Paulo, a Reunião Anual da SBPC. Foi urna reunião muito tumultuada, polêmica, porque, inicialmente, prevista para se realizar em Fortaleza, ela foi, de algum modo, coibida pelo governo federal e terminou sendo acolhida pela PUC-SP. Vários pesquisadores da nossa área estiveram presentes àquele evento. Constatamos que outras áreas do conhecimento estavam aglutinadas, organizadas, já haviam criado um certo sprit de corps, que estimulava a pesquisa e, ao mesmo tempo, o avanço científico. Na área de Comunicação, nós não tínhamos praticamente nada, ou melhor, apenas algumas pequenas iniciativas atomizadas, sem coordenação e sem projeção das outras áreas de conhecimento. Desde então, eu comecei a motivar alguns pesquisadores que colaboravam comigo, alguns colegas com os quais 320 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 eu me relacionava, alguns estudantes de pós-graduação, e discuti com eles a conveniência de criarmos uma sociedade científica nos moldes das outras entidades que existiam, no Brasil, nas áreas da Física, Antropologia, História, Sociologia e assim por diante. E foi o conjunto de diálogos que desenvolvi, no período de julho a dezembro de 1977, que nos levou à reunião do dia 12 de dezembro na Fundação ‘Cásper Líbero’. Foi urna reunião simples, na qual discutimos um anteprojeto de fundação da entidade e, assim, reunimos aquele pequeno grupo que deu origem à INTERCOM. Naquele momento, visualizamos algumas das linhas de atuação da INTERCOM, entre as quais, o pluralismo. A INTERCOM nasce com um sentimento de pluralismo, de abrigar pessoas e correntes de opiniões diferentes. Em segundo lugar, a ideia de integração nacional, pois nós tínhamos consciência de que éramos um grupo trabalhando, em São Paulo, e deveríamos, com a pujança que São Paulo tem, animar o restante dos colegas que atuavam em outras regiões. E, em terceiro lugar, havia a preocupação de nos mantermos sintonizados com o panorama internacional da pesquisa em Comunicação. Nós não tínhamos a intenção de criar uma entidade que tivesse caráter xenófobo ou que assumisse atitudes provincianas. A nossa principal preocupação era ter, desde o começo, uma sociedade científica que demonstrasse, publicamente, a significação da área de Comunicação no país. Essas são as reminiscências que me vêm à memória neste momento. A título afetivo, eu queria lembrar a presença, naquela reunião, de uma figura humana que foi importante para a INTERCOM. Trata-se do nosso falecido colega, aqui da USP, Francisco Morel, pesquisador da 321 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade área de Publicidade e Propaganda que, com sua formação jurídica, elaborou o estatuto da INTERCOM. Foi ele o responsável pela preparação do documento que deu substância formal à INTERCOM. INTERCOM – O senhor concorda plenamente com a opinião, segundo a qual, a INTERCOM completa 10 anos de existência graças ao desempenho profissional e acadêmico do sócio-fundador José Marques de Melo? Prof. José Marques de Meto – Entendo que aí há muita generosidade de sua parte, quando faz essa descrição da vida da INTERCOM vinculada a uma a única pessoa. Não quero incorrer em falsa modéstia, dizendo que não tive participação decisiva para a construção da INTERCOM. Efetivamente, eu me dediquei, durante todos esses 10 anos, à solidificação da entidade, mas não concordo plenamente que ela tenha dependido apenas da pessoa de seu fundador e primeiro Presidente. Se eu não tivesse contado com a colaboração, o apoio, a participação e o entusiasmo de muitos outros colegas, a INTERCOM não seria o que é hoje. Todo o trabalho realizado se fez, basicamente, em equipe, tivemos, desde o início, um caráter coletivo, as decisões na INTERCOM são tomadas colegiadamente. Parece-me que o sucesso e o êxito da INTERCOM devem ser creditados ao conjunto de pessoas que levaram a ideia adiante e trabalharam em conjunto. Há outras pessoas que tiveram uma importância no desenvolvimento da INTERCOM, como por exemplo, Carlos Eduarda Lins da 322 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Silva, Anarnaria Fadul, José Salvador Faro, Luis Fernando Santoro e vários outros. Eu não quero prosseguir na lista para não ser injusto. As pessoas envolvidas contribuíram com o que puderam, com renúncia pessoal e procuraram, sobretudo, trabalhar num espírito não-competitivo, adotaram um comportamento de colaboração mútua, deram ajuda um ao outro e procuraram atrair as vocações jovens. Quer dizer, os jovens pesquisadores que despontavam, no universo brasileiro, e que não tinham muitas oportunidades. Porque nós temos toda urna tradição que eu chamaria de oligárquica no campo intelectual. De um modo geral, as oligarquias procuram criar espaços para si, não facilitando muito à emergência de lideranças jovens e nós ternos, hoje, na comunidade científica, uma presença marcante de jovens pesquisadores e todos têm sido valorizados. INTERCOM – Como o senhor avalia, hoje, a influência exercida pela INTERCOM na pesquisa em comunicação no país? Prof. José Marques de Melo – Sem dúvida alguma, a INTERCOM teve uma influência muito grande na pesquisa em Comunicação no país. Eu vou tratar de lembrar, aqui, de duas vertentes principais. Uma delas diz respeito à influência exercida pela INTERCOM na legitimização da pesquisa junto às instâncias oficiais, como agências de financiamento, órgãos governamentais e, também, junto às entidades representativas da sociedade civil. Porque, até então, nós éramos uma área que não tinha o devido reconhecimento científico. Éramos mais valorizados e reconhecidos pela atuação 323 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade profissional de alguns pesquisadores, mas nem tanto pela nossa competência científica. E a INTERCOM desenvolveu um trabalho incessante, nos primeiros tempos, exatamente para criar um espaço próprio dentro do sistema nacional de ciência e tecnologia. Nós conseguimos, a duras penas, convencer órgãos como o CNPq, CAPES, FINEP, FAPESP, INEP e, inclusive a SBPC, da maturidade que as pesquisas em Comunicação vinham atingindo, no país, e esse trabalho deve ser creditado à INTERCOM. A INTERCOM trabalhou sempre com a perspectiva global e pluralista, sem procurar beneficiar esse grupo ou aquela universidade, mas tendo em conta, principalmente, a dimensão acadêmica da pesquisa em Comunicação. A segunda influência da INTERCOM foi, no sentido de fazer avançar os estudos de Comunicação em direções que, até então, eram negadas, omitidas ou marginalizadas. Eu diria que, na década de 60, houve uma preocupação muito grande pela pesquisa em Comunicação, no Brasil, e a INTERCOM foi responsável, em grande parte, pelo resgate de certos temas e variáveis minimizadas, nas décadas anteriores, como por exemplo, a variável política, a preocupação com a comunicação não-hegemônica com a comunicação das classes subalternas. A INTERCOM se empenhou em fazer da pesquisa uma alavanca para as soluções do país. Nós enfrentamos, no período de transição democrática, inúmeras dificuldades e houve uma tentativa constante em fazer com que a pesquisa em Comunicação estivesse sintonizada com o conhecimento da realidade. A linha de conduta da INTERCOM foi trabalhar no sentido de democratizar a Comunicação, no país, e por meio da pesquisa mostrar que o nosso sistema de comunicação 324 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 é monopolista, um sistema que tende a marginalizar as grandes maiorias do conhecimento do cotidiano e, efetivamente, contribuir para a democratização desse sistema. INTERCOM – O senhor teve uma participação efetiva, durante a implantação do Centro de Documentação da Comunicação nos Países de Língua Portuguesa – PORT/ COM – órgão complementar da INTERCOM. Como caracteriza o momento? Prof. José Marques de Meto – O PORT/COM nasce praticamente com a INTERCOM. Ao se criar a INTERCOM, nós já desenvolvíamos uma linha de trabalho relacionada com a documentação. Como pesquisador da área, eu sentia a grande dificuldade de trabalhar sem fontes, sem tomar contacto com o conhecimento acumulado. Isso só a documentação pode proporcionar. Então, os primeiros Boletins INTERCOM já traziam os indicadores bibliográficos e a INTERCOM, no seu segundo ano de existência, publica a primeira Bibliografia Brasileira de Comunicação. Essa foi uma tentativa de fazer com que a pesquisa se realize de forma orgânica e acumulada, e não ocorra uma trajetória de pesquisa desarticulada, na qual os pesquisadores produzem “conhecimento novo” que repete conhecimentos já produzidos anteriormente. Houve, então, a disposição de criar O PORT/COM para ajudar os pesquisadores brasileiros. Mas, o PORT/ COM tinha, como continua tendo, uma outra motivação, qual seja, a de articular a produção científica nos países de língua portuguesa. Portanto, ele já nasce com essa vocação não 325 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade apenas brasileira, mas também de sistematizar o conhecimento sobre os avanços da Comunicação nos países de língua portuguesa. Em função disso, nós temos tentado uma articulação com Portugal e os países de língua portuguesa da África. Durante alguns anos, eu realizei as tarefas do Centro de Documentação – não diria sozinho, mas, em grande parte, com o meu esforço pessoal, contando apenas com a ajuda de alguns alunos. Nos últimos anos, o PORT/COM vem sendo coordenado pela pesquisadora Ada Dencker, pós-graduanda na ECA-USP, que procura, com o maior entusiasmo, levar adiante essa ideia. O PORT/COM inicia, agora, uma fase importante em sua vida, que é a de crescimento internacional. Nós acabamos de realizar entendimentos com o IBERCOM – Centro de Documentação em Comunicação dos Países Iberoamericanos – e no mês de dezembro, virá ao Brasil o Prof. Dr. Antonio García Gutiérrez, da Universidade Complutense de Madri, Espanha, e um dos consultores da UNESCO na área de documentação. E depois dos contactos realizados com o Prof. Sebastião Diniz, do Centro de Documentação do Governo Português, eu tenho a impressão de que o PORT/ COM poderá, efetivamente, sedimentar-se no panorama internacional, ocupando o espaço que deve ser atribuído aos países de língua portuguesa. Neste momento, o PORT/COM enfrenta dificuldades de natureza financeira. Nós não logramos, ainda, receber o apoio que merecíamos dos órgãos de financiamento à pesquisa no país. No entanto, a atual diretoria da INTERCOM tem procurado realizar entendimentos com o CNPq/IBICT para lograr esse apoio, que, sem dúvida, virá oportunamente. 326 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 INTERCOM – Atualmente, além de integrar o Conselho Fiscal da INTERCOM, o sr. é o editor-responsável de INTERCOM – Revista Brasileira de Comunicação. Quais os principais desafios que ela enfrenta para cumprir sua missão de divulgadora de trabalhos inéditos e originais sobre comunicação? Prof. José Marques de Melo – Na minha maneira de ver, a INTERCOM – Revista Brasileira de Comunicação – é o principal instrumento de que dispõe a INTERCOM para se comunicar com os seus sócios, a comunidade científica e mostrar publicamente os avanços que ocorrem em nossa área. Eu quero lembrar, neste momento, que a existência da Revista deve ser creditada a duas pessoas que se empenharam para a sua existência e sobrevivência. Em primeiro lugar, Carlos Eduardo Lins da Silva que, quando eu era presidente da INTERCOM, colaborou, intensamente, comigo para manter o, então, Boletim INTERCOM. Graças ao seu desempenho e entusiasmo, tivemos uma linha de atuação de alto nível e, ao mesmo tempo, não-academicista. E a segunda pessoa que eu quero lembrar é a Profa. Anamaria Fadul, que quando Presidente da INTERCOM, lutou para transformar o Boletim em Revista, na medida em que o Boletim já assumia características de uma publicação menos informativa e mais analítico-interpretativa. Ela, então, tomou essa iniciativa. Há dois anos, a convite da nova diretoria da INTERCOM, então presidida pelo Prof. Gaudêncio Torquato, eu assumi a sua edição e tenho procurado dar-lhe um status de publicação acadêmica reconhecida por toda a comunidade. Essa tarefa tem sido gratificante, porque podemos manter a divulgação de trabalho 327 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade dos pesquisadores mais amadurecidos e reconhecidos profissional e academicamente. Eu também tenho tido a preocupação de abrir espaço às novas vocações, pois sem criarmos condições de estímulos para os jovens pesquisadores, a pesquisa não avança. Quero reconhecer que ela ainda enfrenta desafios, como fiz questão de chamar atenção em editorial publicado na edição n.° 56. O problema principal é, ainda, a produtividade reduzida dos pesquisadores brasileiros de Comunicação. Há muita gente atuando na área, mas são poucos aqueles que conseguem dar forma final ao produto de sua investigação. E, muitas vezes, nós temos dificuldades de fazer uma seleção rigorosa do material encaminhado, justamente por falta de trabalhos. Eu tenho procurado, pessoalmente, e através da equipe que edita a Revista, da qual você, Dario, participa, estimular e pedir colaborações de várias fontes, mas, ainda, é pequeno o número de pessoas que atendem a essas solicitações. Acredito que, com o aumento da pesquisa que, atualmente, ocorre no país, nós vamos melhorar cada vez mais. A tarefa que vem para os anos seguintes é fazer uma seleção mais rigorosa pela qualidade e competência dos pesquisadores. Nem sempre isso é possível, por um lado, pela pequena quantidade de material enviado e, por outro, pela necessidade que nós temos de dar oportunidades aos jovens, que nem sempre atingiram aquele nível de excelência que nós gostaríamos. INTERCOM – Como e quando a senhora, inicia atividades junto à INTERCOM? 328 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Profa. Anamaria Fadul – Chegou-se à ideia de criação de uma sociedade de pesquisa em Comunicação, durante uma Reunião Anual da SBPC, realizada em São Paulo. Eu não estava, no Brasil, naquele momento. Não Participei realmente da criação nem das reuniões que levaram à criação da INTERCOM. Eu só entro, no final do ano, em 1977, a convite do Professor José Marques de Melo. Mas, naquele momento, eu estava com problemas de saúde e só entrei, formalmente, para o grupo, sem uma participação mais ativa. Foi, somente em fins de 1978, que começaria a participar da INTERCOM e, de lá para cá, tenho participado sempre, até chegar à Presidência. Fui do Conselho Fiscal, Participei como Vice-Presidente, depois, fui Presidente. Eu acho que, durante todo esse período, tive um trabalho efetivo junto à entidade, tanto em nível de organização quanto em nível dos compromissos relativos à instituição. Também fui bastante ligada ao Boletim INTERCOM. O Boletim era aquilo que nos unia em torno de um projeto. O Boletim, que foi dirigido primeiro pelo Prof. José Marques de Melo, passou por uma série de pessoas, chegou ao Carlos Eduardo Lins da Silva e do Carlos para mim. Fui eleita Presidente em 1983 e, ao ser eleita, coloquei como prioridade a transformação do Boletim em Revista, o que efetivamente aconteceu, em 1984, já então, com um novo formato, projeto gráfico, enfim, mudanças bastante significativas. Outro item que me preocupava era a falta de agilidade da INTERCOM, por estar sempre sediada em instituições de ensino como a Fundação ‘Cásper Líbero’, Metodista e ECA-USP. Eu sentia a falta de infraestrutura: telefone próprio, a questão da distância, enfim, uma série de entraves que, na minha opinião, atrapalhavam um 329 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade pouco o andamento de uma instituição. Foi, então, que se decidiu alugar uma sede, o que aconteceu, em março de 1984, e que vai até o momento em que eu deixo a Presidência da INTERCOM, em 1986, quando ela volta para a Universidade de São Paulo. INTERCOM – Qual o balanço que a senhora faria sobre sua gestão como Presidente da INTERCOM? Profa. Anamaria Fadul – Eu acho que a INTERCOM produziu muito, durante o período do Marques; mas, na minha opinião, era uma instituição que tinha muito pouca base institucional. Faltava uma secretaria organizada, enfim, faltava consolidar a entidade. Por outro lado, também, faltava organizar melhor o relacionamento da instituição com as agências de financiamento. Acho que isso eu consegui. Pela primeira vez, nós conseguimos auxílio da FINEP, auxílio da FAPESP, conseguimos, também, auxílio para organizar um seminário no Chile, do qual a INTERCOM participou, via IDRC, do Canadá. Conseguimos diversificar as fontes de recursos, pois, quando assumi a INTERCOM, contava apenas com auxílios do CNPq e do Canadá. Nós ampliamos o circuito com a FINEP e a FAPESP. INTERCOM – Como a senhora avaliaria os eventos promovidos pela INTERCOM durante sua gestão? Profa. Anamaria Fadul – Na minha opinião, o evento de maior impacto, que teve a maior repercussão na impren330 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 sa, foi o Seminário de Novas Tecnologias de Comunicação. Eu participei como coordenadora, promovemos o debate, na Folha, publicou-se muita coisa. Nesse Seminário, nós tivemos a presença de 19 conferencistas estrangeiros, dos quais só pagamos uma passagem, já que os outros 18 vieram por conta própria. Esse foi um Seminário, como disse anteriormente, de muito impacto, além de ter, sem dúvida, servido para divulgar o que era a INTERCOM. Para esse Seminário, vieram sete pessoas que sequer sabiam que a INTERCOM existia e, a partir daí, começaram a ter contactos com a instituição. Esse Seminário, depois, deu origem a um livro, que, parece, teve boa aceitação. Em outros eventos, por estar bastante envolvida na administração da INTERCOM, não pude participar diretamente. A coordenação dos Ciclos Comunicação, Estado e Sociedade Civil no Brasil e Comunicação e Educação ficou a cargo do Prof. Marques de Melo. De certa forma, participei nos dois Ciclos INTERCOM, embora muito mais na parte administrativa, em busca de financiamentos, enfim, mais no tocante à estrutura para que eles pudessem se realizar. Um outro Seminário que coordenei foi o da UNESCO: Estratégias para um melhor uso dos meios de comunicação para as populações desfavorecidas: a participação dos receptores, a pedido da OREALC, e escritório regional da UNESCO. Esse foi, segundo o próprio Arturo Matuck, o Seminário de melhor nível, da série de três, realizados na América do Sul e América Central. Eu acho que esses foram os eventos mais importantes, além de cursos que foram promovidos na minha gestão, na sede da Vila Mariana, dos quais participei fornecendo infraestrutura. 331 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade INTERCOM – Como foi conduzido o programa editorial em sua gestão? Profa. Anamaria Fadul – Eu creio que, em termos de publicações, conseguimos uma vitória significativa na medida em que conseguimos o apoio do CNPq para editar a Revista. Foi uma luta muito intensa, pois ela tinha que ser reconhecida como revista científica. Depois, foram publicados dois livros com o apoio da FAPESF, o de Novas Tecnologias de Comunicação e o Obsceno. Em seguida, e sob a responsabilidade do Prof. José Marques de Melo, publicamos o Inventário Brasileiro de Comunicação que é a maior bibliografia que nós temos. E mais três Bibliografias Brasileiras de Comunicação editadas, também, com muita luta em termos de apoio financeiro. Dos outros livros editados, na minha gestão, posso dizer que não participei diretamente. Tanto Comunicação e Transição Democrática quanto Comunicação e Educação: Caminhos Cruzados, publicados em convênios com empresas comerciais, foram responsabilidade do Prof. Marques de Melo. Um outro aspecto que acho importante colocar foi em relação ao financiamento do Banco Mundial, por meio da PADCT, ao Seminário de Novas Tecnologias de Comunicação. Eu acho que foi o reconhecimento do trabalho que a INTERCOM vem realizando. Foi bastante difícil entrar no PADCT, mas creio que o projeto que fizemos, realmente, foi bastante positivo. Outro projeto que iniciei, mas que não houve tempo para terminar foi o de um Centro de Documentação em Novas Tecnologias de Comunicação. Eu creio que, agora, talvez, a Margarida dê continuidade a esse trabalho. Eu já havia 332 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 mantido contatos com o responsável por esse setor e ele havia se comprometido a financiar o projeto que havíamos apresentado. Só há a necessidade de fazer algumas correções para que ele possa ser financiado. INTERCOM – Qual é a sua opinião a respeito dos Ciclos de Estudos da INTEECOM promove anualmente? Profa Anamaria Fadul – Os Ciclos INTERCOM têm vindo num crescendo. Eu acho que um Ciclo que, talvez possamos considerar abaixo das expectativas, foi Comunicação e Sociedade Civil, realizado na PUC-SP. Foi um evento que, não sei por que motivos, teve uma baixa participação dos associados, apesar do bom nível dos debates e dos excelentes trabalhos apresentados. Aquele Ciclo, efetivamente, não contou com uma participação massiva, como tem acontecido nos últimos anos. A partir de 1983, a participação nos Ciclos aumentou bastante, cerca de 200 participantes, e eles têm mantido essa média. Eu creio que os Ciclos têm se constituído em importantes momentos de discussão sobre a pesquisa, sobre os trabalhos que estão sendo realizados pelos pesquisadores do Brasil. INTERCOM – Trace um paralelo entre o momento inicial da INTERCOM e a situação atual. Profa. Anamaria Fadul – Eu acho que começar é muito mais difícil do que continuar. Acho que o mérito da INTERCOM deve ser creditado ao Prof. José Marques de Melo, que tornou realidade uma associação de pesquisadores 333 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade da Comunicação no Brasil. Ele tentou mudar essa mentalidade tão individualista, de cada um trabalhar por si, sem comunicação com os outros. Eu creio que o início foi muito difícil e que algumas coisas foram conseguidas, principalmente o Boletim e o Quem é Quem, com esforços muito grandes, no sentido de buscar essa comunicação entre os pesquisadores. Eu acho que a fase atual é de consolidação e que pode, efetivamente, levar à maturidade da instituição, já que ela completa 10 anos este ano. Eu acho também que a INTERCOM tem muita coisa ainda para realizar, um caminho muito longo para percorrer e muita contribuição a dar à pesquisa em Comunicação no Brasil. INTERCOM – A senhora gostaria de acrescentar algum outro dado significativo? Profa. Anamaria Fadul – Eu gostaria de falar das dificuldades de se levar adiante uma instituição de pesquisa no país. Acho que a INTERCOM consegue, com muito esforço e com muito sacrifício, manter-se atuante. Contudo, eu considero que ainda é necessário um esforço muito maior, pois, às vezes, sinto falta de se assumir conjuntamente, coletivamente, a instituição. É claro que se tivéssemos mais dinheiro, seria facílimo levar uma instituição como a INTERCOM. Mas, em face da falta de recursos com que se lida, a INTERCOM é quase um milagre no panorama das associações de comunicação. É muito difícil manter um congresso anual, revistas, livros etc. Acho que, diante desse quadro, a INTERCOM produz muito mais 334 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 do que poderia. Ela está muito além das possibilidades. INTERCOM – Quando e como o senhor inicia atividades junto à INTERCOM? Prof. Gaudêncio Torquato – Eu lecionava na Fundação ‘Casper Libero’, onde o Prof. José Marques de Melo trabalhava. Por conta dos contactos que nós fizemos, na época, tudo aconteceu. De fato, havia um vazio a ser preenchido, na área de pesquisa em Comunicação, no Brasil. Tornei-me, então, fundador da INTERCOM, juntamente com um grupo de cerca de nove ou dez pesquisadores. INTERCOM – Qual o balanço que o senhor faria sobre sua gestão como Presidente da INTERCOM no biênio 1985/1987? Prof. Gaudêncio Torquato – Eu me considero um Presidente de transição, na medida em que assumi a INTERCOM num momento crítico, pois sentia que muitos sócios estavam desinteressados em relação à entidade, sentia que a entidade precisava de uma estrutura mais sólida, em termos de apoio administrativo, secretaria, administração de cursos. Somente aceitei a Presidência, no momento em que houve o compromisso de que cada membro da diretoria assumiria as suas tarefas individualmente. Tentei inaugurar um modelo de gestão em que o presidente fosse apenas um membro a mais da diretoria, não sendo, exatamente, a estrela principal. Procurei repartir funções, dividir tarefas, fazendo, assim, com que cada um assumisse as 335 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade suas responsabilidades. Preocupei-me, fundamentalmente, em criar condições financeiras saudáveis, para a entidade, deixando-a em condições de cumprir seus compromissos, como por exemplo, a Revista, os Congressos, os cursos, enfim, realizar seus projetos sem interrupção. Agimos com muito rigor nos controles das contas. Gostaria de dizer que o meu tesoureiro, Edvaldo, foi uma pessoa rigorosa e preocupada em controlar cada tostão. Por meio de algumas “mágicas” de contabilidade, deixamos a INTERCOM em condições extremamente saudáveis. Como Presidente de transição, de alguma forma, dei início a uma nova fase: adotamos um estilo gerencial misto e de cogestão. Durante a minha gestão, a INTERCOM mudou sua sede, podendo, com isso, contratar uma secretária executiva, altamente eficiente, que teve uma boa performance na área de organização de cursos (3 a 4 ao mês). A INTERCOM, na minha gestão, caracterizou-se pela tentativa de uma organização mais interna, organização de sistemas, processos e apoio administrativo, enquanto outras gestões foram mais voltadas para fora, no sentido político, no relacionamento com entidades internacionais. INTERCOM – Como o senhor avaliaria os eventos e as demais atividades promovidas pela INTERCOM durante sua gestão? Prof Gaudêncio Torquato – O mais recente Congresso Anual da INTERCOM, apesar de alguns problemas, na área organizacional, pareceu-me que atingiu um maior número de participantes entre pesquisadores, professores, 336 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 estudantes de comunicação, porque o tema, sem dúvida, era bastante relevante dentro do contexto institucional em que se estava vivendo. De certa forma, acho que os dois Congressos realizados, na minha gestão, atingiram plenamente os seus objetivos. Em ambos tivemos a presença de convidados da América. No de 86, essa presença foi mais expressiva que a deste ano, mas, a participação deste ano foi melhor. Parece-me que os cursos atingiram resultados mais que satisfatórios. Eu diria até que ultrapassaram as metas programadas, pois a frequência foi bastante expressiva, atendendo não somente aos profissionais de Comunicação, como também a professores e alunos de cursos de iniciação. A Revista teve a sua continuidade garantida e os livros referentes aos Congressos também têm sido editados, basta ver o Comunicação e Educação, organizado pela Professora Margarida Kunsch. Em resumo, as atividades de cursos, Congressos, projetos de comunicação e os contactos intersócios, além da parte institucional da INTERCOM, foram expressivas, marcando a continuidade dos trabalhos, que têm cada vez mais merecido admiração e respeito de toda a comunidade acadêmica. No aspecto de relacionamento institucional, eu ressalto, por exemplo, a presença da INTERCOM na realização do Comunitech 87, a se realizar em novembro deste ano, em Recife, com a presença de mais de 100 especialistas de Comunicação, do mundo inteiro, para discutir questões relacionadas à difusão de novas tecnologias. A participação da INTERCOM tem sido considerada pela organização brasileira Embrater-DF e Emater-PE como de fundamental importância para o fechamento da agenda. 337 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade INTERCOM – Em que condições a senhora assume a Presidência da INTERCOM? Profa. Margarida Kunsch – A INTERCOM completa, no próximo dia 12 de dezembro, 10 anos de existência. Nesse período, ocupou amplo espaço na área de Comunicação, ganhando notoriedade nacional e internacional, graças ao desempenho de seu corpo de associados e à gestão de suas diretorias. Nesse contexto, não posso deixar de destacar alguém que tem funcionado como baluarte, como acionador e animador, que é o professor José Marques de Melo, que não tem medido esforços para tornar nossa entidade cada vez mais dinâmica, produtiva e em crescente expansão. Todo trabalho desenvolvido pelos ex-presidentes que me antecederam, José Marques de Melo, Anamaria Fadul e Gaudêncio Torquato, com os quais tenho convivido, nos últimos anos, possibilita dar continuidade, sem rupturas, ao que a INTERCOM se propõe a fazer e ao que determina sua razão de existir. Assumir a Presidência da INTERCOM, nesse momento, é, ao mesmo tempo, desafio e satisfação. Desafio pela responsabilidade que comporta estar à frente da entidade, na função diretiva, conduzindo seu futuro e dando prosseguimento a essa caminhada em busca de maior consolidação do campo da Comunicação junto à comunidade científica. Satisfação pelo fato de ter oportunidade de poder contribuir, de forma mais participativa, nas causas da Comunicação Social, que considero da maior relevância no contexto do sistema social global. E por ser a INTERCOM uma entidade representativa no campo interdisciplinar da Comunicação, pelas suas inúmeras realizações culturais e científicas. 338 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 INTERCOM – Quais as principais atividades que a senhora pretende desenvolver na INTERCOM? Profa. Margarida Kunsch – Antes de colocar tudo aquilo que a atual diretoria pretende desenvolver, faço questão de ressaltar a necessidade fundamental de que todos os sócios participem, efetivamente, da entidade, conjugando esforços juntamente com os integrantes da corpo diretivo. Há que se fazer um trabalho de equipe para que as propostas, a seguir, sejam realmente realizadas. Abriremos o ano comemorativo, de dezembro de 1987 a dezembro de 1988, com um simpósio sobre “A Pesquisa da Comunicação dos Anos 80”, a ser realizado de 11 a 13 de dezembro próximo, em Embu, São Paulo, e pretendemos estendê-lo, no decorrer de 88, em nível nacional, realizando-o em conjunto com Departamentos de Comunicação Social das Universidades Federais. Já estamos ultimando contatos com pesquisadores e professores desses departamentos para levarmos à consecução tal iniciativa. Estando, por enquanto, previsto o primeiro, no mês de abril, a ser realizado em Recife, congregando todos os Estados do Nordeste. Em junho, em Vitória, com representantes dos Estados do Centro-Oeste e Sudeste. Curitiba sediará os Estados do Sul, em outubro, e talvez Maranhão ou Pará, os Estados do Norte, por volta de dezembro. Esses simpósios regionais visam fomentar o debate e o incentivo da pesquisa em Comunicação Social em todas as realidades brasileiras. Enquanto estudiosos da Comunicação, não podemos deixar de salientar a necessidade de termos visão muito mais macro de nossa atuação. Temos que estar engajados com o mundo que nos rodeia, levando em 339 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade conta suas variáveis políticas, econômicas, sociais, culturais, legais e ecológicas, que nos permitirão enxergar muito mais longe qual o papel que a Comunicação poderá desempenhar na sociedade contemporânea. Tencionamos, também, nesse mesmo ano, lançar o Prêmio INTERCOM de Comunicação, dirigido a estudantes de graduação pós-graduação em Comunicação Social, por meio de concurso de monografias/ensaios com temas relacionados a todas as habilitações dessa área. Um dos projetos em andamento é a ampliação da linha de publicações. Além do livro anual, de bibliografias de comunicação, da revista e dos cadernos, pretendemos fazer publicações específicas de temas dos últimos eventos paralelos do Congresso 86/87, como, por exemplo, Divulgação Cientifica, Comunicação Rural, Metodologia da Pesquisa em Comunicação, Documentação etc. Reafirmando nossas propostas já delineadas por ocasião do processo eleitoral, faço questão de reproduzi-las, aqui, uma vez que, juntamente com os meus colegas de diretoria, assumimos compromissos com os associados. Por isso, além das atividades normais, já conhecidas que, tradicionalmente, a INTERCOM desenvolve, é nossa intenção levar a efeito as seguintes: - Criação de um Centro de Estudos Avançados da Comunicação – CEAC, mediante a instalação de comissões setoriais permanentes no quadro associativo da INTERCOM; - Desenvolver seminários e colóquios dirigidos às linhas de pesquisa prevalecentes entre os Sócios da INTERCOM e cujo objetivo é o debate de experiências e a atualização de temas, além do congresso anual; 340 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 - Estabelecer convênios com entidades internacionais, por meio de troca de experiências entre pesquisadores de Comunicação, no Brasil, com pesquisadores de outros países. Já estamos ultimando contatos com o México que, provavelmente, será com quem primeiro efetivaremos tal proposta; - Promover uma maior abertura da INTERCOM junto aos órgãos de divulgação. Isto é, fazer com que nossa entidade seja conhecida no meio da grande imprensa, propiciando a presença dos sócios nos programas de debates das questões nacionais inerentes ao mundo interdisciplinar da Comunicação; - Criar relações mais estreitas com as áreas afins da Comunicação e seus órgãos de classe representativos das diversas áreas ( Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Relações Públicas, Radialismo, Cinema e Produção Editorial); - Proceder à atualização e reformulação do atual Estatuto, adaptando-o ao crescimento de nossa entidade, nesses 10 anos, e às exigências dos novos tempos; - Reativação das Seções Estaduais, incluindo-as, no futuro Estatuto, compondo, por conseguinte, o quadro diretivo da entidade, bem como promovendo encontros regionais dos sócios sobre temas de interesse local/regional, como cursos, seminários e simpósios - Fazer com que o Boletim Notícias INTERCOM tenha uma periodicidade certa (bimestral) e seja o elo de integração dos sócios, dependendo é claro, da contribuição dos mesmos, mediante o envio de informes sobre suas atuações e pesquisas; 341 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Agora, para que a INTERCOM possa cumprir, com eficiência, seus objetivos e sua programação, é preciso que os associados se engajem no esforço da entidade, participando dos seus eventos, oferecendo sugestões e se fazendo presente, no contexto da intensa participação, pela reconstrução e aperfeiçoamento da ordem institucional e democrática do país. INTERCOM – Atualmente, a INTERCOM conta, aproximadamente, com cerca de 600 associados. Há alguma coisa sendo feita para ampliar esse número? Profa. Margarida Kunsch – É nossa intenção abrir a INTERCOM o máximo possível. Para isso, temos que nos organizar e começar por um trabalho de pesquisa, fazendo um levantamento completo de professores, pesquisadores e profissionais de Comunicação e de outras áreas de conhecimento que se preocupam de forma interdisciplinar com as questões emergentes da Comunicação. Está sendo planejada a elaboração da futura publicação do Quem é Quem na Pesquisa em Comunicação no Brasil, e será um meio utilíssimo para ampliarmos o quadro associativo. Temos que desenvolver um trabalho de recuperação de sócios antigos para que voltem a contribuir com sua reintegração. Estamos também enviando correspondências para todas as Escolas de Comunicação do Brasil, solicitando a relação de professores, a fim de convidá-los a se filiar à entidade. E em encontros pessoais que tenho tido em universidades, seminários, palestras, tenho me dirigido aos colegas, mostrando a importância de sua participação e filiação. 342 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Evidente, trabalho dessa natureza não pode se limitar apenas à diretoria. Cada sócio deve, proselitivamente, no seu dia a dia, cooperar nesse sentido. Só, assim, teremos condições de fazer algo significativo em termos de ampliar o número de associados. A diretoria de uma entidade deve funcionar como ponto convergente, que tem sob seus ombros o ônus de administrá-la, a eficácia de suas ações e a dedicação, a abnegação de muitas horas de convívio familiar, de lazer e das atividades profissionais dos seus membros, que só quem participa ativamente dos órgãos de classe sabe. As atividades encontrarão eco se todos os sócios realmente participarem da organização. A INTERCOM deve ser todos nós. 343 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 344 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 32. Humberto Pereira: A comunicação rural39 Dario Borelli O editor-chefe do programa “Globo Rural”, jornalista Humberto Pereira, diz estar fazendo Jornalismo para o agricultor brasileiro, sem discriminar o seu universo cultural ou tradicional. Depois que o “Globo Rural” foi ao ar, pela primeira vez, no dia 6 de janeiro de 1980, diz Humberto Pereira que o agricultor passou a ver a si mesmo na televisão como personagem principal de um programa jornalístico, ainda que num horário marginal. “Não é o horário do ‘Jornal Nacional’, da novela das oito, mas, ainda que seja num horário marginal, há um espaço para o agricultor na Rede Globo”, afirma. O programa é exibido, nacionalmente, aos domingos, a partir das 8h e tem de 45 a 50 minutos de duração, em 39. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano XI, nº59, jul/dez, 1988. p.05-16. 345 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade média, apresenta diferenças importantes em relação a outros programas jornalísticos da televisão brasileira. Uma de suas características é buscar a participação dos telespectadores através da seção de cartas, as quais são respondidas por meio de matérias gravadas in loco com técnicos ligados às instituições estatais de ensino, pesquisa e extensão rural. A reportagem especial sobre alguma questão, acontecimento, atividade ou serviço relacionado ao meio rural, é veiculada sempre ao final de cada programa. Em 1983, a equipe do “Globo Rural” recebeu do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico – CNPq – o Prêmio José Reis de Divulgação Científica. Além da proposta do programa “Globo Rural”, são assuntos da entrevista de Humberto Pereira a televisão como veículo de comunicação, o 1ançamento da Revista Globo Rural, no final do ano de 1985, a produção de estudos específicos sobre o programa “Globo Rural” e a formação de profissionais para a imprensa agrícola. INTERCOM – Por que o programa “Globo Rural” é considerado, hoje, uma fonte de informação agropecuária indispensável para o homem do campo? Humberto Pereira – Eu não tenho certeza que o programa “Globo Rural” seja uma fonte de informação agropecuária, não tenho certeza se ele é indispensável para o homem do campo, porque isso tudo é muito imponderável. Não sei se o nosso programa é de informação agropecuária, porque há outros tipos de informação, de abordagem de assuntos que são tratados dentro do programa. 346 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Na verdade, o que nós pretendemos estar fazendo é um programa para o agricultor brasileiro e não um programa sobre agricultura ou pecuária. E eu tenho certeza que nós não chegamos aos agricultores brasileiros, do ponto de vista quantitativo, pelo menos. O nosso programa é um programa que abriga tecnologia, que abriga problemas de ordem agronômica, biológica, mas também problemas de ordem econômica, de ordem sociológica, de ordem cultural. O fato de fazermos uma matéria sobre onça ou jacaré não traz nenhum aumento de produtividade de feijão ou de arroz, além de não curar doença de vaca no Brasil. No entanto, são assuntos que, de uma forma ou de outra, interessam, fazem parte do universo cultural desse homem que vive, no interior, ou de muitos que já foram tangidos do interior para a cidade. Então, pretendemos, cada vez mais, conhecer e entender esse universo, o mundo do agricultor com tudo o que ele tem de cultural e tradicional. Fazer um programa apenas técnico em televisão, para esse homem do campo, seria fazer um programa que, talvez corresse o risco de ser um pouco enfadonho, de discriminar partes da sua vida, interesses que ele tem, interesses que não são propriamente dele, mas de sua mulher. Quando fazemos, por exemplo, uma receita nova de um prato de mandioca ou de milho, para que possa interessar à mulher do agricultor, isso não tem nada a ver com a produção de feijão ou de arroz. Quando tratamos, por exemplo, das condições de vida do agricultor, sejam as condições sociais de vida, como carteira de trabalho assinada, salários, greve de trabalhador rural, situação de boia-fria ou, quando tratamos de problemas que são de ordem de saúde pessoal, como água, as 347 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade endemias rurais etc., nós estamos tratando de problemas que dizem respeito ao homem que trabalha na agricultura e não apenas a atividade técnico-agrícola ou do seu negócio. Preocupamos-nos com esse homem total; pelo menos, temos nos pautado assim, e a receita do “Globo Rural” é nessa linha. É por isso que a nossa informação não é apenas agropecuária. Ela é agropecuária, mas vai além disso. Quanto ao fato de ser ou não indispensável, é uma outra pergunta que eu me faço. Eu acho o seguinte: o programa “Globo Rural” está sendo feito na Rede Globo de Televisão. O agricultor que está vendo esse programa tem televisão em casa, senão não estaria vendo, é óbvio. Então, é um programa para quem tem televisão em casa, no vizinho, no salão paroquial, no clube, enfim, em qualquer lugar existe um aparelho de televisão. Ora, esse mesmo aparelho de televisão – é normal que e suponha – capta não só a Rede Globo, mas também o Silvio Santos, a Bandeirantes, a Manchete, qualquer outra rede ou a televisão local. Portanto, supomos que o agricultor esteja vendo, também, o “Fantástico”, as novelas, os outros programas jornalísticos, filmes, documentários estrangeiros, enfim, ele vê tudo que passa na televisão. O que acontece em relação ao “Globo Rural” é que ele é especializadamente e, pioneiramente, o primeiro espaço dedicado, na televisão brasileira, ao agricultor, não só em relação a sua atividade, mas ao agricultor como personagem de um programa jornalístico de televisão. O agricultor está acostumado a ver, na televisão, problemas de buraco de rua da cidade mais próxima, problemas políticos, problemas de ensino, problemas urbanos em geral. E, a partir do “Globo Rural”, ele passou a ver, também, 348 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 a si mesmo dentro da televisão, ainda que num horário marginal. Não é o horário do “Jornal Nacional”, da novela das oito; mas, ainda que seja horário marginal, há um espaço para o agricultor dentro da Rede Globo. Mas, a televisão como veículo, é muito limitada. Ela não vai modificar sozinha a realidade do agricultor. A televisão não tem força para implantar o capitalismo no sistema feudal que ainda existe no campo. Pela sua natureza, a televisão não tem a virtude, em si mesma, nem de implantar o sistema capitalista onde existe o sistema feudal, pré-capitalista, que é o interior do Brasil, nem de fazer uma reforma agrária no País. Nem neste país, nem em país nenhum. Essa televisão broadcasting é muito efêmera, extremamente sugestiva, insinuante. Tem, ao contrário de um milagre eletrônico, e dentro do seu processo, um sistema de comunicação que é o mais primitivo de todos: o oral e o visual. Independe da pessoa saber ler e escrever para entender o que a televisão está mostrando. Esta, talvez, seja uma das suas virtudes. Mas, na verdade, a televisão não passa de uma mágica extraordinária do nosso século. Muitas vezes, as pessoas falam: “Com o prestígio do ‘Globo Rural’, por que vocês não fazem a reforma agrária via ‘Globo Rural’?” Isso é uma utopia. Ainda que se quisesse fazer, seria impossível. Você não faz reforma agrária nem pela televisão, nem pelo rádio ou pela jornal. O poder de transformação da realidade é muito menor do que se pensa. E eu acho que temos que fazer um esforço enorme no sentido de sermos humildes, de reconhecer muito mais as limitações do nosso programa do que propriamente a sua força. 349 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Às vezes, a televisão induz o profissional que nela trabalha a ficar um pouquinho encantado. Mas, esse profissional acaba “dançando”. Felizmente, a equipe do “Globo Rural”, até pela sua idade média, é constituída de gente que não precisa provar mais nada profissionalmente. Quer dizer, ela tem essa humildade de reconhecer que está atuando dentro de um veículo muito limitado em termos de comunicação. Nós achamos que, teoricamente, só se progredirá em termos de comunicação rural, no Brasil, – pelo menos no caso da televisão – na medida em que se entender bem os seus limites e as suas fronteiras em relação à realidade. As pessoas acham que a Rede Globo muda o Brasil. Ao contrário, a Rede Globo é fruto do Brasil. Tem gente que acha que a televisão é ruim no Brasil. Ela é pior em outros países. Não existe uma televisão independente, seja de um governo, seja de uma ideologia, seja de um esquema comercial capitalista. Não existe em nenhum lugar do mundo. Se você for aos Estados Unidos ou à União Soviética, e tentar dizer o que pensa, não vai conseguir. Como aqui, no Brasil, também. Vai tentar dizer as coisas que você, eventualmente, possa ter dentro do seu coração em qualquer uma das redes de televisão. Não existe isso, é uma utopia. Mas, não é um defeito do veículo ou da rede. É uma conjuntura que até agora é inevitável. O que se vai fazer? E pode até estar dependendo de muitas coisas; mas, certamente, não depende dos profissionais que trabalham em cada um desses lugares. Disso você pode ter a mais absoluta certeza. INTERCOM – Você concorda plenamente que o programa “Globo Rural”, desde janeiro de 1980, quando foi ao ar pela 350 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 primeira vez, tem se constituído em importante fator de integração do empresariado rural com o complexo agropecuário, em reforço à penetração do modo capitalista no campo? Por quê? Humberto Pereira – Quando você fala em complexo agropecuário, certamente está se referindo à indústria, à comercialização, eu diria, até, a uma era histórica da agricultura, que é cada vez mais tecnificada, no mundo inteiro, ou seja, a tecnologia que chega de uma maneira industrializada ao campo. Tudo isso eu acho que teria que ser muito bem definido. O empresariado rural, no Brasil, é extremamente incipiente; não existe algo para chamá-lo assim. As lideranças são divididas. Você vê, por exemplo, três tipos de liderança. Um tipo de liderança é aquele que vive de dialogar constantemente com o governo, a fim de obter melhores condições de subsídios para o que fazem, ou dê créditos, ou de uma política agrícola para tocar o negócio chamado agricultura. Que, no fundo, vem a ser agricultura de grãos e, no caso de produção de proteínas, o boi, o porco e o frango, resumidamente. O segundo tipo de liderança está extremamente polarizado por uma ideologia que consiste em preservar a propriedade rural, em evitar o que eles acham que seja o “demônio” da reforma agrária. Esse tipo, por sua vez, contrasta-se com o terceiro tipo de liderança, que realmente saiu do estado feudal para cair no estado capitalista moderno. Mas, essa é apenas uma parte do empresariado. Coincidentemente, esse tipo de empresário não precisa do nosso programa. Um Olacir de Morais, por exemplo, que tem a Fazenda Itamarati e uma equipe de agrônomos, de médicos veterinários etc., ou o Grupo Cotia, da família Brito, dispensam um programa como o “Globo Rural” 351 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade para tocar os seus negócios. Eles até assistem e respeitam o programa, como fonte de informação, mas os seus negócios independem, completamente, não só do nosso programa, como de qualquer outro programa jornalístico. INTERCOM – Neste caso, atribuímos, então, ao programa “Globo Rural” um poder que ele não tem? Humberto Pereira – Vocês atribuem à televisão um poder que, na verdade, ela não tem. É inegável que ela tem um poder enorme; mas, de repente, parece que a televisão é o grande demônio no Brasil. Não é. E tem mais: a televisão, no Brasil, é muito boa se comparada tom outras televisões. Vamos detalhar melhor os problemas e as virtudes da televisão brasileira, no caso específico do “Globo Rural”. É um programa de rede. Então, dizem: “A Rede Globo, ou o programa ‘Globo Rural’, está massificando o agricultor brasileiro, está dando um reforço à penetração do modo capitalista no campo”. Muito bem. Do ponto de vista jornalístico – eu só estou respondendo pela parte editorial do programa – nós temos uma equipe volante que talvez, hoje, já esteja com oito anos. Trata-se da equipe de jornalismo com a maior quilometragem dentro do País. Do Acre ao Rio Grande do Sul. Nós vamos a cada rincão, deste país, vamos a cada estado, a cada região. Nessas reportagens, quem fala é o agricultor, é o técnico, é o fazendeiro, é o boia-fria, lá, daquela tal região. Ele tanto entra no nosso programa com o sotaque nordestino, como entra com sotaque meio polonês, meio ucraniano, do Paraná, como entra com o sotaque gaúcho, com o sotaque singelo do meu 352 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Estado, que é Minas Gerais, o programa “Globo Rural” tem, dentro de si, todos os sotaques do Brasil. Caberia perguntar então: nós estamos impondo o quê? Estamos impondo o sotaque gaúcho ao nordestino ou estamos impondo o sotaque nordestino ao mineiro? Nós não estamos fazendo um programa de São Paulo para o resto do País. Nós estamos fazendo um programa, no qual nós vamos aos próprios lugares. Com o maior respeito e a maior alegria, colocamos no programa todos os sotaques. Então, veja o seguinte: quem entra no programa é o Brasil todo. Eu não sei se outro programa, outra proposta de “Globo Rural” teria condições de assegurar e respeitar isso. A nossa maneira de respeitar o Brasil inteiro é essa. Poderíamos, se quiséssemos, fazer um programa sem sair do Estado de São Paulo, que interessasse ao Brasil todo, do ponto de vista técnico. São Paulo é um Estado onde você tem búfalo, tem soja, tem trigo, seringueira, como na Amazônia, cacau no Vale da Ribeira, tem todos os climas e todos os produtos, e produtos muito bem cultivados, com alta tecnologia, modelo até para o resto do País. O búfalo de Araçatuba, por exemplo, dá de 10 no búfalo da Ilha de Marajó. No entanto, a primeira vez que fomos “fazer” búfalo, nós fomos à Ilha de Marajó “fazer” o búfalo de lá. Quer dizer, esse respeito é preciso ter. E mais: a empresa Rede Globo de Televisão, nos tem dado condições de honrar essa diversificação de gente, de pessoas, de sotaques que entram no programa. Hoje, por exemplo, eu estou com uma equipe no Maranhão. INTERCOM – Quer dizer, então, que a equipe do “Globo Rural” tem autonomia jornalística para decidir aonde ir e o que fazer? 353 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Humberto Pereira – Quem diz aonde a nossa equipe vai, somos nós aqui. Nós é que decidimos aonde ir e o que fazer. INTERCOM – Não existe nenhum tipo de imposição, norma preestabelecida? Humberto Pereira – Sim, existe. A imposição que temos é a seguinte: nós estamos trabalhando dentro da Central Globo de Jornalismo, que tem uma ética que nem é dela, mas do próprio Jornalismo. Nós não fazemos merchandising nas matérias. No dia em que aparece um trator dentro de uma matéria nossa, aparece porque o trator estava lá. Nós não fomos procurar aquele trator e depois cobrar a fábrica porque ele entrou no programa. Isso o jornalismo da Globo não fatura. Nós, também, não mencionamos nenhuma marca de produto dentro do nosso espaço jornalístico. Quando se trata de um produto que temos que dizer o nome, damos apenas o seu princípio ativo e não a sua marca comercial. Em assuntos controversos, nós procuramos ouvir as versões existentes a respeito. Eu não posso ser militante dentro do jornalismo que faço. Vou dar um exemplo. A questão mais apaixonante que existe, hoje, do ponto de vista da discussão e do debate entre ideologias, no Brasil é, sem dúvida, a reforma agrária. Agora, se eu estou fazendo um jornalismo honesto, tenho que refletir dentro desse jornalismo o que acontece em relação à reforma agrária no país em que estou. Eu não posso criar ou forçar, jornalisticamente, a realidade. Se eu vou, por exemplo, em uma 354 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 experiência de reforma agrária de uma fazenda e ela tem defeitos, tenho que criticar esses defeitos, ainda que isso doa aos partidos de esquerda. Eu vou, nesse lugar, ainda que doa ao senhor Ronaldo Caiado, ouvir essa experiência. De outro lado, coloco o senhor Ronaldo Caiado dando uma opinião sobre uma determinada lei da Constituinte ou sobre um momento difícil dos agricultores. Eu tenho que refletir, honestamente, a realidade do País. Dentro dessa ética, procuramos evitar qualquer lobby que possa ser feito em cima do programa. Por exemplo, nós damos cotação de preços, que é uma das informações básicas dentro do programa. Antes do “Globo Rural”, qualquer caminhão chegava à porta de um sitiozinho do interior mais remoto e comprava uma vaca, um bezerro pelo preço que o chofer do caminhão queria. O dono daquela pequena propriedade não tinha a mínima ideia de quanto andava o preço da arroba do boi. Com uma televisãozinha às movida à bateria, ele tem, todos os domingos, informação dos preços vigentes no mercado do boi. “Evidentemente, o preço do boi que ele vai vender, na porta do seu sítio, é menor que o preço dado pelo ‘Globo Rural”, mas ele já sabe fazer esse referencial. Esse tipo de informação, em relação a todos os produtos, tem evitado que o agricultor, principalmente o pequeno, perca muito do seu lucro nas mãos dos intermediários. Uma das maiores pragas que existem em relação à agricultura não é o agricultor; mas, sim, o atravessador. O atravessador é o cidadão que não plantou, não sofreu com o clima adverso, não sofreu com uma política agrícola, às vezes incongruente, e chega à porta do sítio e compra o produto prontinho. Tantas sacas de arroz, 10 sacas de feijão, 210 de milho. Ele, sim, é quem 355 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade lucra, sem prejuízo nenhum. Portanto, esse tipo de informação que damos está ajudando o agricultor a conservar um pouco mais a sua poupança. Isso nós fazemos a título de informação. Não influímos no preço nem para baixo, nem para os lados, nem para cima. Estamos apenas dando ao pequeno, médio e, até mesmo, ao grande agricultor, o insumo fundamental que a sociedade urbana tem chamado de informação. E uma informação ligada diretamente à sua atividade. Se você é jornalista ou está fazendo Jornalismo, isso é uma coisa da mais alta importância para qualquer agricultor do mundo. Pois, não podemos nos esquecer de que a figura do atravessador é universal. Eu também não posso negar um outro dado básico: a nossa economia é uma economia capitalista, é uma economia de mercado. Tutelada, vigiada ou não, é esta que está ai. Então, eu tenho que evitar que esse agricultor perca demais. Ele não tinha esse tipo de informação constante, seriada, todos os domingos, até o “Globo Rural” aparecer em 1980. O que é isso? Isso aí sou eu, o programa reforçar a penetração do modo capitalista no campo? Esta é uma pergunta que vem envenenada por um preconceito muito forte contra a Rede Globo e contra o trabalho que nós fazemos. INTERCOM – Você acredita que o programa “Globo Rural” inspira solidariedade aos produtores rurais, na medida em que encaminha e consolida suas reivindicações? Humberto Pereira – Eu acho que essa solidariedade tem vários aspectos que podemos lembrar. Em primeiro 356 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 lugar, as reivindicações dos agricultores. É muito importante o fato de esses agricultores terem um canal para reclamar, da mesma maneira que a mãe reclama do custo da escola, no Rio de Janeiro, e da mesma maneira que a favelada de São Paulo reclama do serviço precário de saúde que o Estado de São Paulo e a União lhe dão. Quer dizer, poder falar, colocar suas broncas no ar, é uma coisa importante. Brasília ouve, as pessoas que são direta ou indiretamente responsáveis por essa situação ouvem. Então, você dá uma dimensão a essa reclamação ou a essa reivindicação que elas merecem. Um outro aspecto que eu acho muito importante dessa solidariedade é o seguinte: a cidade, em geral, não tem muita ideia dessa atividade do homem do campo, embora seja a maior beneficiária de tudo o que o homem do campo faz. Quer dizer, você diariamente, ou pelo menos de manhã, na hora do almoço ou na hora do jantar, está sobrevivendo às custas daquilo que o nosso agricultor produz. Todo mundo. Os políticos de Brasília, o pessoal da UDR, o pessoal do PT, o pessoal do PDS, o pessoal do Partido Verde, todo mundo, neste ponto, é igual. Come feijão, come arroz, come bife, come ovo, alguma coisa eles estão comendo e bebendo. Isso é fruto do trabalho no campo. Agora, quem apenas come e bebe, pois já recebe pronto no prato, em restaurantes e lanchonetes, não tem muito conhecimento de tudo o que está por trás daquele ovo, daquela polenta ou daquele franguinho à passarinho. Então, eu acho que, na medida em que você mostra esse universo dentro da televisão, o homem da cidade passa a ter conhecimento dessas atividades importantíssimas para todos nós. 357 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Alimentação, saúde, transporte e educação são quatro coisas básicas. Agora, a alimentação tem um universo por trás muito maior do que o do transporte ou do que o da educação. Você pode viver sem ir a uma escola, mas não pode viver sem comer, sem beber. A alimentação é o mais básico de todos. É preciso, portanto, que o homem da cidade se solidarize com a fonte do seu alimento, que é feita por seres chamados agricultores, pecuaristas, boias-frias e outros. Aliás, tem mais: hoje em dia, a pessoa que anda de carro, na cidade, está andando em carro movido a álcool, que é feito de cana colhida por boia-fria. Você, por exemplo, está aí vestido com uma calça jeans e uma camiseta, ambos de algodão. Esse algodão também vem da lã, sabia? Quer dizer, você come, veste-se e anda de carro às custas da agricultura brasileira. INTERCOM – Em que medida o lançamento da Revista Globo Rural, no final do ano de 1985, propiciou uma maior eficácia para as informações geradas pelo programa “Globo Rural”? Humberto Pereira – Olha, isso aí é uma coisa que vem ao encontro do que eu dizia antes, ou seja, a televisão é muito limitada. Há uma frase de um agricultor que exprime muito bem isso: “Na televisão, as reportagens são boas, é tudo muito importante, mas muito passageiro”. Isso quer dizer o seguinte: a televisão, assim como o rádio, é um veículo que está atrelado ao tempo. Tem uma hora de entrar no ar, tem uma duração determinada e uma hora para sair do ar. O dia só tem 24 horas, é inelástico. O tempo é inelástico, implacavelmente inelástico. Então, toda 358 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 a informação que você consegue colocar dentro daquele tempo, daquela duração, é limitada. Além de ser limitada, tem esse caráter de efemeridade, isto é, passa, se esvai na medida em que acabou de passar. Essa é a maior limitação dos veículos eletrônicos. Mesmo essa exuberância da imagem, essa facilidade comunicação oral não conseguem suprir essa limitação. Então, houve inúmeras, milhares de cartas, desde o começo do programa, pedindo que publicássemos aquilo que estava indo ao ar. Por quê? Porque, uma vez publicado, em forma de jornal, boletim ou revista, o cliente, as pessoas que se interessam pelos temas veiculados, na televisão, teriam, num veículo que não é temporal, mas sim espacial, a possibilidade de recorrer, a qualquer hora, de ler aquela reportagem mais de uma vez, de voltar atrás. Não podendo ler, hoje, deixa para ler amanhã ou depois de amanhã, ou para daqui a um mês ou no ano que vem, quando ele vai plantar novamente. Isso tudo, que de uma maneira muito singela, era pedido, trata-se daquela coisa dos multimeios complementares, da mídia que se complementa de veículo de comunicação de natureza diferente. Então, a Revista, que tem quase trinta por cento de material comum que aparece na televisão e nela mesma, vem complementar essa deficiência da televisão, sendo que não se trata apenas, no caso da Revista Globo Rural, de uma cópia daquilo que vai para a televisão. Trata-se, exatamente, de uma abordagem que aprofunda muito mais informações porque, ao contrário da televisão, ela é elástica. Se eu tenho, por exemplo, um assunto que precisa de mais dez páginas, posso aumentar indefinidamente a edição, dentro de uma equação econômica da própria Revista. 359 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Mas, então, trata-se esses assuntos de uma maneira diferente, de urna maneira própria desse veículo. E nós estamos, brevemente, dentro de uns dois ou três meses, para lançar num outro veículo, que é o rádio, um “Globo Rural Rádio”. Esse programa viria suprir uma outra deficiência que não pode ser complementada nem pela Revista nem pela televisão. A Revista é mensal, a televisão é semanal. Há uma série de informações que acontecem, hoje, são importantes hoje, e que eu deveria dá-las hoje para o agricultor. Só com um tipo de veículo que tem a agilidade do rádio é que eu posso fazer isso. Então, um programa de rádio me permitiria, por exemplo, dar informação meteorológica, coisa que eu não posso fazer, hoje, num programa semanal e muito menos numa revista mensal. As cotações são tão importantes que precisariam ser acompanhadas diariamente. Cotações de todos os preços. As decisões políticas, de Brasília, teriam, também, que ser comentadas, diariamente, principalmente aquelas que dizem respeito ao setor. No caso de Brasília, temos inúmeros ministérios – Ministério da Indústria e Comércio, Ministério da Agricultura, Ministério da Fazenda – que tratam de agricultura. Álcool e café estão no Ministério da Indústria e Comércio. Decisões econômicas estão no Ministério da Fazenda. Um surto de febre amarela, por exemplo, está no Ministério da Saúde. Precisaríamos do rádio para suprir isso. Então, faríamos um tripé de multimídia que nos ajudaria a ser um pouco mais eficazes, conforme você alude em sua pergunta. INTERCOM – Qual a relevância da produção de estudos específicos sobre o programa “Globo Rural”? 360 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Humberto Pereira – Quando um engenheiro agrônomo ou um pesquisador da Comunicação faz um estudo sobre o nosso programa, ele nos obriga a pensar, nos obriga a checar aquilo que nós estamos fazendo, nos obriga a reavaliar o nosso trabalho. Ou ele nos dá insegurança a respeito de uma coisa ou de outra, ou reafirma certezas e até nos propõe caminhos novos. Eu acho isso da maior importância. E é curioso que entre toda a programação da televisão brasileira, de um tempo para cá, justamente o “Globo Rural” tenha merecido tantos estudos. No momento, nós estamos com um pedido de estágio de uma professora de Viçosa, que está desenvolvendo uma tese. Já houve outros da Universidade de Viçosa. Lavras já fez trabalho sobre o ‘Globo Rural’. Gosto muito de dialogar com os pesquisadores, ainda que tenhamos debates calorosos a respeito de vários itens. INTERCOM – Você tem sugestões a dar sobre a formação profissional de repórteres e redatores para a imprensa agrícola? Humberto Pereira – Eu poderia responder a isso numa única frase: “O jornalista agrícola para ser um bom jornalista agrícola tem que ser um bom jornalista”. Ele será um bom setorista na medida em que desenvolver suas ferramentas profissionais jornalísticas. O bom profissional sabe que se ele entra em um setor, tem que enterrar mesmo a cabeça dentro desse setor. O jornalista de esporte, por exemplo, não é obrigado a saber a diferença entre gramínea e leguminosa. Chega uma hora em que o jornalista que vai mexer com agropecuária 361 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade tem que saber isso, senão ele sair do setor. Como jornalista agropecuário, ele não é obrigado a saber, com muita precisão, a diferença entre o meio-armador e o volante, o que é um, o que é outro dentro do campo. De toda forma existe o seguinte: o jornalista que trabalha com agropecuária, dentro desse setor rural – eu prefiro chamar de rural ao invés de agropecuário, pois o rural engloba tudo –, tem que se informar muito sobre esse mundo com o qual vai trabalhar. O jornalista que talvez seja filho de um fazendeiro não é, necessariamente, o melhor jornalista agropecuário. O jornalista que tem um sítio também não é necessariamente o melhor profissional. O melhor jornalista rural é, simplesmente, o melhor jornalista. Há uma outra coisa que está por trás disso que eu contesto muito: comunicação rural. Eu sei que existe uma associação de comunicação rural. O mundo inteiro se preocupa, cada vez mais, em se comunicar com o homem do campo. Eu disse que estou dentro de um canal de televisão que já tem outros programas que o agricultor vê todos os dias. Então, na verdade, para eu chegar bem até ele, tenho que desenvolver a minha capacidade de comunicação, sem adjetivo, entendendo de elementos que são básicos, fundamentais dentro da comunicação de televisão. Procurar falar numa linguagem linear, ordem direta. As palavras devem ser bem pronunciadas. Se eu puder evitar o microfone melhor. Usamos muito microfone sem fio, microfone direcional. O que eu quero dizer é que bê-á-bá da comunicação serve tanto para se fazer comunicação quanto para se fazer comunicação esportiva, científica e qualquer outra. O que deve ser desenvolvido é a comunicação. Você quer um bom comunicador na área rural? Trabalhe naquela 362 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 linha que estava lhe dizendo há Pouco. Se for, em televisão, procure conhecer os seus limites. ‘Conhecendo bem esses limites, você vai se desenvolver, vai conseguir ultrapassar as pedras que aparecem no caminho. Evidentemente, o conhecimento da realidade rural é fundamental. Não adianta você passar três, quatro anos dentro de uma escola, em São Paulo ou em Belo Horizonte, se você nunca viu uma vaca, nunca entrou numa cooperativa, nunca entrou sequer numa loja de produtos agropecuários, aqui na cidade, nunca viu uma reunião de um sindicato de trabalhadores rurais ou de um sindicato rural, e não lê o que se publica a respeito desse setor. INTERCOM – Você acha que as escolas de Jornalismo podem dar uma contribuição no sentido de incentivar os alunos a procurar este tipo de informação? Humberto Pereira – Essa é uma discussão a respeito da universidade brasileira, que é aquela coisa que, às vezes, da raiva, sabe? Eu acho que ela está conseguindo ser pior do que o jornalismo brasileiro. Eu aceito as críticas ao jornalismo brasileiro, inclusive as críticas oriundas da universidade. Mas, infelizmente, o nosso país, num estado tal de desagregação, que a universidade, hoje, está numa situação precaríssima. Você sai da faculdade hoje, de mãos vazias, sem ferramentas para trabalhar. Escolas de Jornalismo podem dar uma contribuição nesse sentido. Mas, será que elas têm condições de dar esse instrumental aos estudantes? Por um acaso elas estão atentas a isso? Então, a formação efetiva do profissional acaba 363 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade acontecendo, via sua determinação em adotar o Jornalismo como profissão. Há um problema sério aí: o Jornalismo não pode ser emprego. Jornalismo é uma profissão. O que se procura é um profissional do Jornalismo. No fundo, você tem que abraçar essa profissão quase que vocacionado mesmo. Eu acho que é necessário ter vocação para ser jornalista. É lógico que não estou falando, aqui, do cara que quer aparecer como jornalista, indo trabalhar à televisão para o conforto e a massagem do próprio ego, ou do cara que quer exercer o poder como jornalista. Não, o jornalista só é jornalista, quando trabalha em benefício da comunidade. O jorna1ista lida com um insumo que é a notícia, a informação que não tem nada a ver com ele, é uma coisa que ele busca, onde está escondida, e revela isso através dos meios de comunicação para toda a comunidade. O jornalista que entra no ramo rural não escapa disso. Ele vai ser tanto melhor jornalista quanto conseguir exercer isso. Aquela coisa que eu estava lhe falando: por que nós vamos ao interior de Pernambuco ouvir o cara, que está lá numa frente de trabalho durante uma seca? Em 1982-8384, nós cansamos de fazer isso. Por quê? Tecnicamente, eticamente, o modo de nos comunicarmos melhor com o Brasil é esse. Isso é exercício de jornalismo simplesmente. Jornalismo é uma profissão sem adjetivo. Quando falamos de jornalismo rural, não raras vezes, ouço o seguinte raciocínio: “Bom, o homem do campo é um ser especial. Ele é analfabeto, não entende bem as coisas como a gente entende”. Ou seja, é um ser inferior. O que é isso? Isso é uma atitude paternalista, ruim, em relação ao agricultor. Quando nós fizemos a Revista Globo Rural, algumas pessoas de fora disseram: “Uma revista rural 364 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 pode ser feita em papel-jornal”. Eu disse: “Não, nós vamos fazer a Revista Globo Rural em papel cuchê. O agricultor é um cidadão igualzinho ao cidadão da cidade. Por que a revista Veja, a revista Manchete, todas as revistas são em papel cuchê e a do agricultor vai ser em papel-jornal? Por quê? Agora, eu pergunto: por que é necessário comunicação rural? O agricultor tem que ter comunicação e jornalismo para ele, sem adjetivos. Eu mesmo não pretendo estar fazendo comunicação rural, mas sim estar falando para o agricultor como um homem completo. E, quanto mais eu falo ao agricultor, mais eu atinjo o pessoal da cidade, porque estou fazendo uma comunicação que é direcionada, mas não é preconceituosa. Quando faço uma matéria sobre a onça, que é uma matéria de ecologia, o “Globo Repórter” utiliza, também, a mesma matéria. Eu fiz pensando no agricultor, que precisa preservar a onça brasileira. 365 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade 366 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 33. Carlos Eduardo Lins da Silva: A comunicação na guerra fria40 José Marques de Melo, Dario Borelli, Glória Kreinz, Carlos Chaparro e Fátima Feliciano Uma abordagem jornalística que apreende as semelhanças e contrastes existentes, nos dias de hoje, entre os meios de comunicação nos Estados Unidos e na União Soviética. Assim, pode ser definida a entrevista de Carlos Eduardo Lins da Silva à INTERCOM — Revista Brasileira de Comunicação, sobre o tema “A comunicação nos EUA e URSS”. Atualmente, Carlos Eduardo Lins da Silva divide seu tempo de trabalho entre a Folha de S. Paulo, em que exerce a função de editor-adjunto de redação, e a docência de Jornalismo para alunos de graduação e pós da ECA-USP. Após se formar jornalista, na Faculdade ‘Casper Libero’, fez mestrado em Comunicação, na Michigan State University, 40. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano XII, nº61, jul/dez, 1989. p.05-12. 367 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade doutorado em Comunicação, na Universidade de São Paulo, e pós-doutorado em Jornalismo no Woodrow Wilson Center. Publicou Muito Além do Jardim Botânico (São Paulo, Summus Editorial, 1985, 163 pp.) e Mil Dias – Os Bastidores de um Grande Jornal (São Paulo, Trajetória Cultural, 1988, 218 pp.), além de artigos e ensaios em revistas de comunicação e cultura, da América Latina e dos Estados Unidos. José Marques de Melo – Sua recente viagem à União Soviética e aos Estados Unidos permitiu uma visão comparativa das duas sociedades e dos respectivos sistemas de comunicação de massa. Que perfis você traçaria dos dois países nesta conjuntura: a URSS de Gorbatchev e os EUA pós-Reagan, tendo como variável determinante a questão dos mass media? Carlos Eduardo Lins da Silva – Acho que existe um processo de aproximação sem precedentes entre EUA e URSS. Em termos de comércio, entendimento político e filosofia de governo. É evidente que tal processo, na medida em que se aprofunda, envolve os meios de comunicação de massa. No ano de 1987, pela primeira vez na História, programas jornalísticos de debates foram transmitidos, ao vivo nos dois países, com tradução simultânea. O responsável pela iniciativa foi o jornalista Ted Koppel, da rede ABC de televisão, dos EUA. Ele transmitiu de Nova York e de Moscou, simultaneamente, com a participação de parlamentares e jornalistas americanos e soviéticos, debates, nos quais foram discutidas, com absoluta franqueza, temas considerados tabus, para os soviéticos, como a questão dos 368 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 direitos humanos e das liberdades individuais. As audiências, nos dois países, acompanharam com enorme interesse. Em novembro de 1987, o líder Mikhail Gorbatchev foi entrevistado, no Kremlin, pelo jornalista Tom Brokaw, da rede NBC dos EUA. Brokaw interrogou Gorbatchev no melhor estilo de agressividade e independência do jornalismo americano. A entrevista foi transmitida na íntegra, exceto por um pequeno corte numa questão relativa ao papel de Raísa Gorbatchev, nas decisões de Mikhail, na TV soviética. Essa aproximação deve se intensificar, com as vantagens evidentes para as duas sociedades. Creio que, com o correr dos anos, se esse processo for mantido, a tendência é a dos meios de comunicação soviéticos se “ocidentalizarem”, no sentido de se tornarem mais liberais, voltados para o interesse do consumidor. Acredito que será, no campo dos media, o que vem ocorrendo no setor da economia e da política. A administração Gorbatchev está levando a URSS para o Ocidente, como o fizera Pedro, o Grande, há 300 anos. A única dúvida é se o processo se mantém. Por enquanto, ainda há enormes diferenças, em especial, no que se refere à retórica. Mas, as indicações todas são de que o caminho aponta para a aproximação, dentro dos moldes do modelo ocidental. Dario Luis Borelli – Qual o meio de comunicação que maior influência exerce sobre os americanos e russos, no tocante a decisões políticas: o rádio, a imprensa ou a televisão? Carlos Eduardo Lins da Silva – Sem dúvida, a TV é o meio de comunicação mais importante tanto para americanos 369 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade quanto para soviéticos. A presença de aparelhos de TV em quase todos os domicílios, nos dois países, e a facilidade de consumo, fazem dela o meio mais influente. Nos EUA, as campanhas políticas são centradas na exposição dos candidatos à TV, e a administração Reagan foi voltada para o seu desempenho na tela. Na URSS, há uma tradição sem similar, no Ocidente, de programas políticos na TV. Como não há preocupação com a audiência, a rede estatal pode dar todo o espaço que julgar conveniente para os programas políticos, e é isso o que vem ocorrendo com intensidade nos últimos anos. Embora os soviéticos também tenham uma tradição histórica de grande consumo de jornais, a TV é, hoje, o mais decisivo meio de comunicação em todos os sentidos também lá. Glória Kreinz – Estatísticas ocidentais dão conta de que 90°/o dos domicílios soviéticos estão equipados com aparelhos de TV. Quais os principais agentes de sedução para este público televisivo? Carlos Eduardo Lins da Silva – Nos dias atuais, a denúncia de escândalos é o principal chamariz de audiência para os soviéticos. O programa “Olhar”, que se especializou nesse assunto, é o principal sucesso da TV na URSS. As pessoas têm verdadeiro prazer de saber das falcatruas da nomenklatura, dos abusos dos privilegiados do governo. Acho que Collor de Mello poderia se estabelecer, na URSS, com grandes chances de êxito político, com seu discurso moralista. Além desse programa, os debates e o telejornal têm grande audiência. Filmes soviéticos, espetáculos de dança e 370 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 música eruditas são os principais itens da programação de entretenimento. A impressão que se tem da TV soviética é de dureza, rigidez, contenção. Manual Carlos Chaparro – Sob o ponto de vista tecnológico (informatização, infraestrutura de comunicação, sistemas de impressão etc.), como está a imprensa da União Soviética em relação aos padrões norte-americanos e brasileiros? Carlos Eduardo Lins da Silva – Os soviéticos estão, na Idade da Pedra, em termos de tecnologia. Um dos grandes setores em que o Brasil tem interesse de agir, no comércio com a URSS, é o da Informática. Lá, eles estão muito atrás do Brasil. As redações, ainda, estão no tempo das máquinas de escrever. Não há perspectiva de informatizá-las tão cedo. Os jornais são feios, maçudos, carregados. Os sistemas de composição e impressão são os mesmos do início do século. Não há termos de comparação nesse setor. José Marques de Melo – À “perestroika” de Gorbatchev, foi antecedida da “glasnost”, o que significa que o líder soviético procurou se valer da abertura, nos meios de comunicação, para corresponder aos sentimentos de mudança da população e conquistar apoio para o seu projeto de transformações econômicas e políticas. Como avançou a “glasnost” e quais os indicadores perceptíveis para o visitante estrangeiro, no tocante ao pluralismo informativo e à liberdade de imprensa? Carlos Eduardo Lins da Silva – Acho que, no início do processo, Gorbatchev resolveu se utilizar dos meios de 371 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade comunicação da mesma forma que seus antecessores. De 1985 até o início de 1987, não houve qualquer alteração significativa no sistema de controle do Estado e do Partido sobre os meios. A censura se manteve rígida e os veículos eram utilizadas como instrumentos de agitação política em favor da linha hegemônica do PC, sob a liderança de Gorbatchev. Os jornais, rádios e TVs exaltavam a figura do líder e suas orientações nos setores da economia e da política. Foi o fracasso da política econômica, nos dois primeiros anos de governo, que levou Gorbatchev a abrir os meios de comunicação. Ele chegou à conclusão de que não era mais possível iludir a população com propagandas. As pessoas viam que a oferta de produtos diminuía a cada dia. Num esperto golpe político, Gorbatchev resolveu incentivar a discussão política como forma de implementar a “perestroika”. A “glasnost”, portanto, é decorrência do malogro inicial da “perestroika”. Os jornais passaram a gozar de maior liberdade de ação. A censura foi relaxada, mas não abolida. Os programas de TV passaram a gozar de espaço para a exposição de críticas diretas ao governo. Surgiram semanários de oposição ostensiva. Ainda há situações escandalosas. Há poucos meses, toda uma edição de um semanário foi queimada pela polícia por conter um conto de Solzhenitzin, autor proibido, na URSS, ainda hoje. Pode-se falar o que quiser de Stalin, Brehznev, Andropov, Chernenko e até de Gorbatchev, mas ninguém pode questionar o pensamento de Lenin e de Marx. O aparato da censura está menos atuante, mas não foi desmobilizado. A figura do censor, nas redações dos jornais, desapareceu, mas pode voltar a qualquer instante. O visitante estrangeiro tem grandes dificuldades de perceber qualquer coisa devido às 372 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 barreiras da língua. Há mais de 150 línguas diferentes e 7 alfabetos na URSS. O único jornal a que o estrangeiro tem acesso é o Moscow News, que é dos mais independentes e críticos. Mas, do relato que se ouve dos que vivem, na URSS, não há precedentes, nos últimos 70 anos, de tanta liberdade de informação e diversidade de pensamento nos meios de comunicação. Glória Kreinz – Se as revistas estrangeiras são de difícil obtenção pela classe média da URSS, as revistas de circulação interna suprem as necessidades de consumo neste setor? São bem feitas? Carlos Eduardo Lins da Silva – A maior parte das revistas soviéticas são em forma de jornal. São os semanários, em formato tablóide, sem cores, papel-jornal. Há poucas revistas no estilo ocidental e parecem pobres e mal acabadas. Até aqui, pelo menos, a impressão que se tem é de que o público soviético não está muito preocupado com a forma, pelo menos nos padrões ocidentais, e sim com o conteúdo dos meios de comunicação. As revistas estrangeiras são muito disputadas entre os intelectuais soviéticos, mas sua circulação é controlada. Fátima Feliciano – Walery Pisarek, em texto publicado recentemente pela INTERCOM – REVISTA BRASILEIRA DE COMUNICAÇÃO, referiu-se ao fato de que jornais soviéticos, especialmente o Moscow News, tecem, com frequência, comentários críticos ao que ele chamou de “jornalismo soviético de velho estilo”, questionando o princípio da 373 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade dependência paternalista em relação ao Estado. O que você constatou nesse sentido na URSS? Carlos Eduardo Lins da Silva – Moscow News é um dos dois jornais mais avançados da URSS atual. Avançado em termos de aproximação com o estilo e a filosofia de jornalismo do Ocidente. O próprio fato de ser escrito em Inglês, mostra como é grande a identificação dos seus jornalistas com os EUA. Toda a crítica aos princípios tradicionais do papel do Jornalismo, na sociedade soviética, parte das premissas do jornalismo liberal americano, O Moscow Netos é a vanguarda desse processo. Ele defende o papel de “cão-de-guarda” (watchdog role) do jornalismo, por exemplo. Há muitas queixas contra a manutenção do monopólio estatal sobre a distribuição do papel de imprensa. Mesmo na era Gorbatchev, vários jornais têm tido suas edições prejudicadas pela distribuição de quotas de papel de acordo com critérios políticos. É bom não esquecer que o domínio de Gorbatchev sobre o aparelho ideológico do Partido não é absoluto. Muitas decisões antiliberais têm sido tomadas pelo Politburo, durante as ausências de Gorbatchev de Moscou, que são frequentes. Dos 13 votos do Politburo, Gorbatchev só tem, com segurança, quatro, inclusive o seu mesmo. Assim, quando ele e Edward Shervandze estão fora, é frequente que o Politburo decida questões contra a orientação de Gorbatchev. Manuel Carlos Chaparro – Que tipo de perfil profissional você traça do jornalista soviético? Como ele lida com a questão da liberdade de informar? 374 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Carlos Eduardo Lins da Silva – É difícil generalizar, a partir do conhecimento precário que tive de 15 jornalistas soviéticos, com quem tive a oportunidade de conversar. Mas, parece existir entre os perestroikistas um enorme desejo de tornar o jornalismo soviético mais independente do Estado e de colocá-lo a serviço da sociedade. O jornalista da velha guarda, é claro, está descontente com esse processo de mudança e acredita que o jornalismo soviético está se afastando do modelo revolucionário fixado por Lenin. O ultraperestroikista está insatisfeito por achar que as mudanças em direção do modelo ocidental são lentas demais. José Marques de Melo – Enfocando, agora, a problemática norte-americana que você conhece mais profundamente, já que ali residiu em dois momentos diferentes da vida daquele país (décadas de 70 e 80), quero fazer uma pergunta sobre o fascínio que a atividade jornalística exerce sobre as novas gerações. Eu estava realizando uma pesquisa, nos EUA, durante o episódio Watergate, e observei que as escolas de Jornalismo passaram a receber contingentes maiores de candidatos para as vagas disponíveis, atraídos pelo protagonismo da dupla de repórteres do Washington Post que desencadeou a crise da renúncia de Nixon. Essa onda passou? Ou os jovens ainda continuam a procurar as carreiras da comunicação de massa nas universidades com a mesma intensidade dos anos 70? Carlos Eduardo Lins da Silva – Acho que a grande onda de entusiasmo provocada pelo caso Watergate está superada. Não disponho de números, mas eu também morei, nos EUA, nos meados da década de 70, e percebi o mesmo fascínio. 375 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Voltei a viver nos EUA, em 1987 e 1988, e constatei que esse fascínio já não existia mais. O jornalismo americano está numa fase que considero excelente, em especial o de TV. Muito do que hoje se tem se deve a Watergate. Mas, houve um período, logo após o caso Watergate, em que o jornalista médio americano resvalou para a irresponsabilidade. Hoje, há um meio-termo que considero saudável. Surpreendeu-me muito verificar, agora, nos anos 80, como a TV ganhou independência em relação há dez anos antes. A cobertura do conflito do Oriente Médio, por exemplo, tem sido de imparcialidade rigorosa, apesar do enorme poder de pressão que têm os anunciantes de origem judaica nos EUA. A cobertura do acidente com o petroleiro Waldez da Exxon, no Canadá, também, apesar do conhecido potencial que tem a Exxon como veiculadora de publicidade. O bate-boca entre Dan Rather e o vice-presidente George Bush, em pleno “CBS Evening News”, na fase final da campanha presidencial, é um exemplo raro de independência jornalística diante do Estado. Mas, a responsabilidade a que eu me referia antes, revelou-se, nos meses seguintes, a esse incidente, quando Rather, apesar de se ter envolvido numa disputa pessoal com Bush, foi capaz de manter uma postura de imparcialidade, diante da vitória e dos primeiros meses da administração do ex-vice-presidente. Manuel Carlos Chaparro – Quais as diferenças de organização de uma redação entre os principais jornais dos Estados Unidos e da União Soviética? Carlos Eduardo Lins da Silva – A primeira grande 376 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 diferença é o número de pessoas. Na URSS, há um exagero evidente de pessoas na redação. Não há preocupação com gastos, despesas de pessoal. Outra diferença é o ritmo, muito menos frenético nas redações soviéticas que nas americanas. As decisões são muito mais centralizadas nos jornais da URSS do que nos dos EUA. Glória Kreinz – Você traçaria um rápido perfil do New York Times e do Pravda, enfatizando o que mais lhe agrada e desagrada em cada um desses jornais? Carlos Eduardo Lins da Silva – É muito difícil eu traçar um perfil do Pravda, pelo bom motivo de que eu nunca o consegui ler por não entender russo. A aparência, para o padrão ocidental, é péssima. Mas, não ousaria arriscar uma definição sobre um jornal que não li. Dario Luis Borelli – O USA Today consolidou a sua posição entre os leitores norte-americanos e já está apresentando lucros? Às técnicas por ele empregadas chegaram a influenciar os demais órgãos da imprensa do país, a ponto de alterar suas diretrizes? Carlos Eduardo Lins da Silva – O USA Today ainda dá prejuízo. Teve um trimestre de lucro, em 1987, mas fechou no vermelho nos anos de 87 e 88. Sua influência é evidente, inegável. Creio que as grandes linhas de seu projeto editorial passariam a vigir, nos principais diários americanos, se tivesse ele existido ou não. Mas, o fato é que ele foi o primeiro veículo a colocá-las em prática. Depois dele, 377 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade todos, sem exceção, as vêm adotando. The New York Times, The Washington Post, The Wall Street Journal já têm, em suas edições, ou estão prontos para ter as vigas-mestras do projeto USA Today: ênfase em gráficos, quadros e tabelas, uso de cor, pautas sobre TV, assuntos de interesse empático do leitor, exploração das chamadas “matérias de interesse humano”, modulação gráfica. Claro que cada jornal se adapta a essas características, dentro de seu ritmo, e respeitando suas idiossincrasias e peculiaridades. Mas, não há dúvidas de que todos caminham nessa direção. Fátima Feliciano – Quais são as questões emergentes em termos de teoria da comunicação nos EUA? Qual a influência real ainda exercida pelos teóricos funcionalistas/behavioristas? Carlos Eduardo Lins da Silva – Os principais pesquisadores jovens, nos EUA, hoje, estão muito interessados em história dentro de uma metodologia de análise crítica. Todd Gitlin e Michael Schudson, dois expoentes dessa tendência, são responsáveis pelos mais instigantes livros sobre Jornalismo editados, nos EUA, na década. Acho que a influência dos behavioristas ainda é enorme, em especial, nos setores conservadores, mas entre os formadores de tendências, ela está em decadência. José Marques de Melo – A era pós-Nixon caracteriza, na vida acadêmica norte-americana, uma redução do interesse pelos temas e questões da América Latina. Nos últimos tempos, observa-se uma recuperação dessa problemática na pesquisa universitária. Quais os indícios da retomada do 378 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 interesse dos estudiosos norte-americanos pela comunicação latino-americana? É possível identificar os principais núcleos voltados para a pesquisa sobre comunicação, na América Latina, particularmente, no Brasil? Carlos Eduardo Lins da Silva – Creio que ainda são os tradicionais: Universidade do Texas, em Austin, Universidade da Flórida. Há um crescimento enorme desse setor, na Universidade de Maryland, e na Universidade Estadual de Michigan. O Woodrow Wilson Center for Foreign Scholars está em decadência no seu setor latino-americano, após o afastamento de Richard Morse da coordenação do programa. Fátima Feliciano – Em termos teóricos, os estudiosos dos meios de comunicação, na URSS, referem-se criticamente à visão socialista ortodoxa dos meios de comunicação – uma visão instrumental, como uso econômico, social, cultural. Você vê alguma possibilidade de mudança, a curto prazo, nesse quadro? Carlos Eduardo Lins da Silva – Essa questão está parcialmente respondida numa questão colocada anteriormente. Acho, para completar, que todo o processo de “ocidentalização” do jornalismo soviético será lento, complicado e cheio de idas e vindas. Não vai ser um processo linear e coerente. Vai esbarrar em múltiplas contradições, como já vem acontecendo. Haverá momentos, em que se terá a impressão de que o retrocesso foi absoluto. Mas, enquanto Gorbatchev estiver no comando do governo, creio que ele é irreversível. 379 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Manuel Carlos Chaparro – Que tipo de perfil profissional você traçaria do jornalista soviético? Como ele lida com a questão da liberdade de informar? Carlos Eduardo Lins da Silva – Já foi respondida. Dario Luis Borelli – Existe ainda, nos EUA, a imprensa sensacionalista, nas mesmas linhas da antiga cadeia Hearst? Ela tem grande número de leitores? Carlos Eduardo Lins da Silva – Sim, sem dúvida. Os jornais tablóides de Nova York e as revistas de supermercado mantêm a tradição do jornalismo sensacionalista, nos EUA, com tanto vigor quanto sempre. São milhões de exemplares vendidos e o público parece mais ávido do que nunca pelas grandes histórias de crime e de fofocas sobre as vidas das personalidades. José Marques de Melo – Que outras observações você gostaria de fazer sobre os sistemas de comunicação na URSS ou nos EUA? Carlos Eduardo Lins da Silva – A grande observação é a que registrei na primeira resposta: creio que os dois sistemas se aproximam, como nunca no passado. 380 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Quem é Quem Ada Dencker Graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1965), Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (1989) e Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2000). Foi Professora Titular da Universidade Paulista e da Universidade Anhmbi-Morumbi. Atualmente, é membro do Conselho Fiscal da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação. Alberto Dines Jornalista que impulsionou a crítica à mídia, no Brasil, através de colunas publicadas no semanário O Pasquim, jornal Folha de S. Paulo e revistas Imprensa. Teve papel destacado na modernização da imprensa brasileira, editando o Jornal do Brasil (anos 60) e publicando a revista Cadernos de Jornalismo. Participou como conferencista de 381 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade vários congressos da INTERCOM, intervindo, inicialmente, no debate sobre contrainformação (1981). Dirige, atualmente, o portal Observatório da Imprensa. Aluisio Pimenta Professor mineiro, foi reitor da Universidade Federal de Minas Gerais e Ministro da Cultura no governo Sarney. Anamaria Fadul Graduada em Filosofia, pela Universidade de São Paulo (1967), Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1972), Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1980) e Pós-doutora pela Università degli studi di Roma Tre (1990). Professora Titular da Universidade de São Paulo, também colaborou com a UMESP e a UNIMAR, depois de sua aposentadoria no serviço público. Ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, integra, atualmente, o Conselho Curador da entidade. Antonio Hohlfeldt Atual presidente da INTERCOM, incorporou-se plenamente à entidade, na passagem do século, embora participe das nossas atividades desde os tempos de sua constituição. Paralelamente ao exercício do jornalismo e da literatura, desenvolveu carreira na política, primeiro como vereador de Porto Alegre e, depois, como vice-governador do Estado do Rio Grande do Sul. Exerce, atualmente, a 382 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Presidência da Federação Lusófona de Ciências da Comunicação – LUSOCOM. Bernardo Kucinski Jornalista que militou na imprensa alternativa dos anos 70, depois de seu reconhecimento como profissional competente na imprensa especializada de âmbito nacional. Optando pela carreira acadêmica, fez doutorado na USP, onde alcançou o grau de professor titular. Notabilizou-se pelas Cartas Ácidas sobre a atualidade brasileira, dirigidas a Lula, que o convidou para assessorá-lo, quando se tornou presidente da República. Professor aposentado do Departamento de Jornalismo da USP, publicou obra relevante sobre mídia e política. Boris Fausto Historiador de renome nacional, foi professor da USP, publicando livros marcantes sobre a História do Brasil, que se tornaram referência no mundo acadêmico. Comparece, regularmente, aos espaços de opinião dos jornais de prestígio nacional, comentado os acontecimentos da atualidade que possuem dimensão histórica. Caio Prado Junior Historiador paradigmático, consagrou-se como pioneiro no uso crítico do referencial marxista para explicar a realidade brasileira. Dirigiu a Revista Brasiliense, um marco no debate político do período que precedeu o golpe militar 383 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade de 1964. Fundou e comandou a Editora Brasiliense, valorizando os escritores nacionais e difundindo literatura engajada na defesa da soberania nacional. Carlos Alberto Medina Sociólogo carioca que se dedicou ao estudo da cultura brasileira, atuando como pesquisador dos temas latino-americanos, especialmente aqueles relacionados à religiosidade e à comunicação. Carlos Eduardo Lins da Silva Doutor e Livre-docente em Comunicação, pela USP, exerceu o cargo de diretor de relações institucionais da Patri Relações Governamentais & Políticas Públicas. Foi repórter, editor, secretário de Redação, diretor-adjunto de Redação, correspondente em Washington e ombudsman da Folha de S. Paulo. Autor de “Muito Além do Jardim Botânico” e “O Adiantado da Hora”, entre outros livros, foi também diretor-adjunto de Redação do jornal Valor Econômico. Sócio-fundador e grande animador das nossas atividades, pertence, atualmente, ao Conselho Consultivo da INTERCOM. Carlos Guilherme Mota Professor do Departamento de História da USP, conquistou notoriedade acadêmica com a publicação do seu polêmico ensaio “Ideologia da Cultura Brasileira”. Colabo384 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 ra regularmente com a imprensa nacional, analisando fatos do cotidiano político-cultural. Carlos Rodrigues Brandão Antropólogo reconhecido, intelectualmente, pela sua contribuição valiosa para o estudo da cultura popular. Fez carreira acadêmica na UNICAMP. Clarêncio Neotti Clérigo pertencente à ordem franciscana, exerceu papel relevante, no período de resistência ao autoritarismo, dirigindo a Revista de Cultura Vozes e liderando associações católicas de comunicação, no país e no exterior. Viveu muitos anos em Roma, tendo regressado ao Brasil para dirigir o convento franciscano do Rio de Janeiro. Dario Borelli Bacharel em Jornalismo, pela PUC de Campinas (1982-1985), e Mestre em Jornalismo e Editoração, pela Escola de Comunicações e Artes da USP (1986-1990). Exerceu a função de editor-adjunto da Revista Brasileira de Comunicação (Intercom), de junho de 1986 a janeiro de 1990, free-lance e repórter do jornal Folha de São Paulo, de março de 1992 a julho de 1995; atualmente, é editor-assistente da revista Estudos Avançados (Instituto de Estudos Avançados da USP) e docente do curso de Comunicação Social das Faculdades Integradas Rio Branco, desde julho de 2001. 385 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Eduardo Portela Professor de Literatura Brasileira, fundou a Revista e a Editora Tempo Brasileiro, exercendo os cargos de Ministro da Educação do Brasil e Diretor Adjunto da UNESCO em Paris. Enzensberger, Hans Magnus Intelectual alemão, célebre por sua reflexão frankfurtiana sobre a sociedade de massas, especialmente sobre o papel político da mídia, visitou o Brasil em várias ocasiões, dialogando sobre os meios de comunicação como “indústrias da consciência”. Fátima Feliciano Jornalista diplomada pela USP, na qual fez doutorado sobre Luiz Beltrão, como teórico do Jornalismo. Trabalhou como pesquisadora no jornal O Estado de São Paulo, atuando como docente em universidades paulistas e mineiras. Integrou a diretoria da INTERCOM, colaborando em projetos editoriais e investigativos. Francisco Weffort Sociólogo diplomado pela USP, onde fez carreira acadêmica; exerceu o cargo de Ministro da Cultura no governo FHC. 386 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Geraldo Pastana Líder sindical, foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém (PA). Gilberto Freyre Intelectual pernambucano, pioneiro das Ciências Sociais, no Brasil, participou intensamente da nossa vida cultual, no século XX, tendo fundado e dirigido a ‘Fundação Joaquim Nabuco’ e conquistado prestígio internacional pela obra vanguardista e pela heterodoxia das suas ideias. Glória Kreinz Graduada em Letras Neolatinas, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1976), e em Jornalismo, pela ‘Faculdade Casper Líbero’ (1981), fez mestrado em Literatura Brasileira, pela Universidade de São Paulo (1980) e doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (1990). Atua como pesquisadora voluntária do ‘Núcleo José Reis de Divulgação Científica’ da ECA/USP. Helio Jaguaribe Sociólogo e historiador, vem ocupando papel decisivo, no debate político nacional, em diferentes conjunturas. Pertence à corrente dos intelectuais desenvolvimentistas, tendo sido um dos fundadores do ISEB, nos idos de 60. 387 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Humberto Pereira Jornalista que exerceu o cargo de editor-chefe do programa Globo Rural, sendo agraciado com o Prêmio José Reis de Divulgação Científica. Jaci Maraschin Bacharel em Teologia, pelo Seminário Teológico da Igreja Episcopal do Brasil (1953), e em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1963), Licenciado em Filosofia, pelas Faculdades Anchieta (1971), Mestre em Teologia pela The General Theological Seminary (1956) e Docteur em Sciences Religieuses pela Universite de Strasbourg I (1966) . Até o seu recente falecimento, foi professor titular da Universidade Metodista de São Paulo. Participou do primeiro congresso nacional da INTERCOM (1978). João Batista Figueiredo Ex-Presidente da República, foi o último ocupante do cargo, durante o ciclo autoritário, instaurado pelo golpe militar de 1964. Exerceu o mandato presidencial de 1979 a 1985. Antes, foi secretário Geral do Conselho de Segurança Nacional, durante o governo de Jânio Quadros, chefe da agência do SNI (Serviço Nacional de Informações), no Rio de Janeiro (1964-1966), comandante da Força Pública de São Paulo (1966-1967), do 1º Regimento de Cavalaria de Guardas - Dragões da Independência (1967-1969) e chefe do estado-maior do 3º Exército (1969). 388 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Joaquim da Rocha Maciel Clérigo português da ordem carmelita, fez mestrado em Comunicação na Universidade Metodista de São Paulo. José Américo Ribeiro Cineasta, professor titular aposentado do Departamento de Fotografia e Cinema da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG). Doutor em Artes (Cinema), pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Artes (Produção Cinematográfica) pelo Department of Photografy and Cinema, The Ohio State University, Collumbus, Ohio, EUA. José Marques de Melo Professor fundador da ECA-USP, idealizou e presidiu a INTERCOM, atuando, hoje, como Catedrático UNESCO na Universidade Metodista de São Paulo. Joseph Straubhaar Pesquisador norte-americano, dedica-se ao estudo da mídia, no Brasil, desde os seus tempos de doutorado. Vem participando dos congressos nacionais da INTERCOM a partir dos anos 80. 389 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Leonardo Boff Clérigo pertencente à ordem franciscana, foi o principal ideólogo da Teologia da Libertação. Punido pela hierarquia romana, abandou a vida eclesial, dedicando-se ao movimento ecológico humanista. Ligia Averbuck Professora de Literatura Brasileira, foi presidente do Instituto Estadual do Livro no Rio Grande do Sul. Faleceu, precocemente, nos anos 80, período em que participou de modo intensivo da vida da INTERCOM. Luis Carlos Barreto Cineasta e empresário cinematográfico, defensor do apoio do Estado ao desenvolvimento do cinema nacional. Luiz Beltrão Pioneiro das ciências da Comunicação, no Brasil, atuou como docente e pesquisador em universidades pernambucanas e brasilienses. Deixou um legado de mais de 20 livros sobre temas variados. Participou ativamente dos debates promovidos pela INTERCOM na década de 80. Manuel Carlos Chaparro Graduado em Jornalismo, pela Universidade de São 390 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Paulo (1982), Mestre em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo (1987), Doutor em Ciências da Comunicação, pela Universidade de São Paulo (1993) e Pós-doutor pela Universidade Nova de Lisboa (1996). Atualmente, é Professor Aposentado da Universidade de São Paulo, dedicando-se à produção do Blog O Xis da Questão, tendo publicado vários livros sobre Jornalismo no Brasil e Portugal. Exerceu a Presidência da INTERCOM, integrando, atualmente, seu Conselho Curador. Marco Morel Graduado em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), Mestre em História Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1990), Mestre em História - Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) (1992) e Doutor em História - Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) (1995). Atualmente, é professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e pesquisador associado - Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Participou, ativamente, da vida da INTERCOM, durante sua formação acadêmica, dedicando-se ao estudo da imprensa. Maria Helena Khuner Intelectual carioca que manteve coluna periódica, no Jornal do Brasil, sobre questões culturais. 391 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade Marta Azevedo Professora gaúcha pertencente ao quadro docente da faculdade de comunicação da UFRGS. Doutorou-se pela USP, tendo vários livros e opúsculos sobre Relações Públicas no Brasil. Michel Thiollent Pesquisador francês que se instalou, no Rio de Janeiro, onde vive, até hoje, atuando como interlocutor entre a academia e os movimentos sociais. Desenvolveu uma metodologia de pesquisa que contempla o equilíbrio entre os métodos quantitativos e qualitativos no estudo dos fenômenos eleitorais. Narciso Lobo Pesquisador amazonense, diplomou-se em Jornalismo pela UFF, realizou estudos de mestrado e doutorado na USP. Falecido, precocemente, sua obra focalizou o cinema e a televisão na região amazônica. Nelson Werneck Sodré Historiador marxista que deixou um legado apreciável sobre imprensa, literatura e outros temas comunicacionais. Muito lido e debatido, no período pré-64, ficou esquecido pela intelectualidade brasileira. Ao aproximar-se o seu centenário (2011), sua obra volta a ser valorizada. 392 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Osvando J. de Morais Doutor em Ciências da Comunicação, pela Escola de Comunicações e Artes – ECA, da Universidade de São Paulo – USP. Mestre em Literatura Brasileira e graduado em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo – USP. É pesquisador e professor titular da Universidade de Sorocaba (graduação e pós-graduação – Lato e Stricto Sensu) e coordenador do Programa de Pós-Graduação, nível Mestrado, em Comunicação e Cultura – UNISO. É líder do grupo de Pesquisa de Teorias da Comunicação e da Cultura, desenvolvendo pesquisas que discutem as relações entre ideologia e cultura de massa nos grandes meios de comunicação. Peter Schulman Cineasta alemão, especialista em cinematografia latino-americana. Regina Festa Doutora em Comunicação pela USP, vem atuando como consultora internacional em assuntos de comunicação popular. Participou intensamente das atividades da INTERCOM nos idos de 80. Rogerio Cadengue Jornalista potiguar, iniciou estudos de pós-graduação, 393 Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade em São Paulo, ocasião em que participou das atividades da INTERCOM. Retornando à universidade que o patrocinou, foi surpreendido pela morte prematura. Samuel Wainer Jornalista que renovou a imprensa diária brasileira, conquistando a classe média pela sintonia com as demandas populares evidentes na agenda da sua cadeia nacional – Última Hora. Repórter polêmico, marcou época, no país, fazendo do Jornalismo uma forma de pressionar o Estado. Sergio Capparelli Graduado em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1970), e doutorado em Ciências da Comunicação pela Université de Paris II (1980). Pós-doutor pela Université de Grenoble (1987-1988) e pela Université de Paris VI (2001-2002). Professor aposentado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Mestrado e Doutorado), que ajudou a criar. De 2005 a 2007, trabalhou em Pequim, China, numa agência de notícias. Nos últimos anos, vem se dedicando exclusivamente à literatura infantil e juvenil. Tomas Balduino Bispo da Igreja Católica que se dedicou à “Pastoral da Terra e da Moradia”, sem deixar de refletir sobre os rumos da vida eclesial. 394 Diálogos da transição democrática: 1984-1989 Vargas Llosa Escritor peruano que vive, na Europa, e acaba de ser agraciado com o Premio Nobel de Literatura. Crítico do populismo latino-americano, já escreveu um livro sobre o messianismo de Canudos – “A guerra do fim do mundo”. Virgilio Noya Pinto Professor fundador da ECA-USP, recentemente falecido, teve participação intelectual na vida da INTERCOM nos anos 80-90. Dedicou-se à História da Comunicação, pesquisa cujos resultados foram apresentados em congressos e seminários da nossa associação. 395 • • • • • • • • • • Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade • • • • • • • • • • • • • • 396 • • • • • • • • • • • •