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Transcrição

258d4d74c1c918633b81ad9ccb4a37f1.3 Vozes da Distensão
Um dos fenômenos mais trágicos das
sociedades pós-modernas é a ausência
(ou perda) da memória, seja ela individual ou coletiva. É preciso salvar o
passado para servir o presente e o futuro, dizia Le Goff. Afinal, memória é
onde cresce a historia, que por sua vez
a alimenta. Sem memória não há historia. Este livro é uma contribuição da
Intercom à memória de um tempo de
intenso debate que marcou a distensão
e a transição democrática do Brasil.
Traz à presença o passado combativo da
entidade ao apresentar entrevistas e artigos de personalidades do ambiente academico, artistico e político publicados
em seu extinto Boletim Intercom (19781983) e no seu sucedaneo, a Revista Brasileira de Comunicação (1984-1989).
Na primeira parte, “Vozes da distensão
política” rememora discursos em defesa da liberdade e direito à expressão,
como os de Nelson Werneck Sodré e
Vargas Llosa; ou convocatórias à participação popular nas vozes de Dom
Thomas Balduino e Francisco Weffort.
E, claro, não faltaram os defensores da
democratização da comunicação como
Frei Clarêncio Neotti, Carlos Guilherme Mota e Alberto Dines.
Em “Diálogos da transição democrática”,
na segunda parte, entrevistas com pesquisadores e pensadores da área refletem
sobre a necessidade de uma comunicação para a transformação da sociedade.
É curioso ler esses textos a partir da
perspectiva histórica de um passado
recente que, para muitos, parece coisa
do século passado. É mais estranho ver
que muitas das reivindicações daqueles
tempos ainda não foram realizadas em
sua integridade. Há um longo caminho
para se conquistar a democracia plena.
Ao reproduzir textos esquecidos, a Intercom nos faz lembrar do antigo desejo de reduzir a desigualdade no país.
A memória trazida à lembrança aqui é
um recurso de libertação.
Nelia R. Del Bianco
Doutora em Comunicação pela USP,
professora da Faculdade de Comunicação da UnB e vice-presidente da Intercom (2008-2011).
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Apresentação
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Apresentação
Vozes da distensão e transição:
o debate político na sociedade
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Coleção Memória da INTERCOM
Direção de Osvando J. de Morais e Maria Cristina Gobbi
Vol. 1 – Vozes de Resistência e Combate: O Legado Crítico da Comunidade
Acadêmica – José Marques de Melo e Osvando J. de Morais, org. (2010)
Vol. 2 – Teoria da Comunicação: Antologia de Pensadores Brasileiros –
Maria Cristina Gobbi, org. (2010)
Vol. 3 – Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade –
José Marques de Melo e Osvando J. de Morais, org. (2011)
DIRETORIA GERAL DA INTERCOM 2008 – 2011
Presidente - Antonio Carlos Hohlfeldt
Vice - Presidente - Nélia Rodrigues Del Bianco
Diretor Editorial - Osvando José de Morais
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Direção Editorial
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(UNIFESP/UNISO)
José Marques de Melo (UMESP)
Osvando J. de Morais (UNISO)
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Sandra Reimão (USP)
Pedro Russi Duarte (UNB)
d’Aquila, Itália)
Marcio Guerra (UFJF)
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Sérgio Augusto Soares Mattos (UFRB)
Apresentação
Vozes da distensão e transição:
o debate político na sociedade
José Marques de Melo
Osvando J. de Morais
(organizadores)
Jovina Fonseca
(assistente editorial)
São Paulo
Intercom
2011
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Coleção Memórias da INTERCOM, série Documentos, n. 
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Copyright © 2011 dos autores dos textos, cedidos para esta edição à Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – INTERCOM
Direção
Osvando J. de Morais
Projeto Gráfico e Diagramação
Mariana Real
Capa
Mariana Real
Revisão
João Alvarenga
Ficha Catalográfica
V956
Vozes da distensão e transição : o debate político na sociedade /
Organizadores, José Marques de Melo, Osvando J. de Morais. –
São Paulo : INTERCOM, 2011.
395 p. - (Coleção memórias ; v. 3)
Inclui bibliografias.
ISBN 978-85-88537-83-5
1. Comunicação – Brasil - História. 2. Comunicação – Aspectos
políticos. 3. Censura - Brasil. I. Melo, José Marques de. II. Morais,
Osvando José de. III. Título.
CDD-302.2
Todos os direitos desta edição reservados à:
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – INTERCOM
Rua Joaquim Antunes, 705 – Pinheiros
CEP: 05415 - 012 - São Paulo - SP - Brasil - Tel: (11) 2574 - 8477 /
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http://www.intercom.org.br – E-mail: [email protected]
6
Apresentação
Sumário
Apresentação - Osvando J. de Morais.................... 11
I – Vozes da distensão política: 1978-1983
1. A opinião pública não existe!................................ 21
João Batista Figueiredo
2. Deixa o povo falar!............................................... 23
Caio Prado Júnior
3. É a crônica social um
arcaísmo burguês?.................................................... 29
Gilberto Freyre
4. As multinacionais cobiçam o
cinema brasileiro ..................................................... 31
Luis Carlos Barreto
5. As ‘patrulhas ideológicas’ restauram a nostalgia
inquisitorial.............................................................. 37
Samuel Wainer
7
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
6. O populismo que se alimenta exclusivamente na
propaganda é uma farsa!........................................... 39
Francisco Weffort
7. A censura é uma praga que assola
todos os países! ........................................................ 43
Vargas Llosa
8. O golpe de 64 só prosperou depois que os militares
foram contaminados pela engrenagem de propaganda
urdida pelo imperialismo. ........................................ 49
Nelson Werneck Sodré
9. O neopopulismo através da publicidade não tem
chance de sobreviver! .............................................. 55
Boris Fausto
10. Os latifundiários roubaram a voz do
trabalhador! ............................................................. 61
Dom Balduíno
11. O pânico da classe média desestabilizou o
governo Goulart!...................................................... 63
Helio Jaguaribe
12. A cultura como transgressão............................... 73
Eduardo Portela
13. É preciso estatizar para democratizar
os meios de comunicação!........................................ 79
Carlos Guilherme Mota
14. Entra em declínio a influência norte-americana
sobre a televisão brasileira........................................ 83
Joseph Straubhaar
15. A comunicação e as pessoas idosas..................... 87
Frei Joaquim da Rocha Maciel e pastor Jaci Maraschin
8
Apresentação
16. Pesquisas em tempo de eleições.......................... 99
Michel Thiollent
17. A derrota da farsa..............................................105
Carlos Alberto Medina, Maria Helena Khuner e
Marco Morel
18. A Igreja e a NOMIC.......................................123
Frei Clarêncio Neotti
19. Cinema e política .............................................133
Ligia Averbuck
20. 1984 - Big Brother e Big Press..........................139
Alberto Dines
II - Diálogos da transição democrática: 1984-1989
21. Peter Schulman: Cinema e fuzil........................149
Anamaria Fadul e Narciso Lobo
22. Leonardo Boff : Mídia e libertação...................169
Anamaria Fadul
23. Aluísio Pimenta: A burocracia cultural ............185
Ada Dencker e José Américo Ribeiro
24. Enzensberger: Poder e estética televisiva...........197
Antonio Hohlfeldt e Sergio Capparelli
25. Geraldo Pastana: Comunicação na selva..........213
Regina Festa
26. Bernardo Kucinski: Promiscuidade e
jornalismo...............................................................241
Dario Borelli e Glória Kreinz
9
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
27. Straubhaar: O estudo crítico da comunicação nos
Estados Unidos.......................................................271
Carlos Eduardo Lins da Silva e Glória Kreinz
28. Ada Dencker : Documentação
da comunicação.......................................................279
Glória Kreinz
29. Luiz Beltrão: Folkcomunicação e
classes sociais..........................................................287
José Marques de Melo, Carlos Eduardo Lins da Silva,
Rogério Cadengue e Martha Azevedo
30. Comunicação e relações culturais segundo Dario
Borelli e Virgilio Noya Pinto..................................307
Carlos R. Brandão
31. Marques de Melo: A trajetória da
INTERCOM.........................................................319
Dario Borelli e Fátima Feliciano
32. Humberto Pereira: A comunicação rural..........345
Dario Borelli
33. Carlos Eduardo Lins da Silva: A comunicação na
guerra fria................................................................367
José Marques de Melo, Dario Borelli, Glória Kreinz,
Carlos Chaparro e Fátima Feliciano
Quem é Quem .......................................................381
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APRESENTAÇÃO
Apresentação
Apresentação
Um recorte da ideologia na
comunicação do Brasil
Osvando J. de Morais
Coordenador do Mestrado em Comunicação e Cultura da
Universidade de Sorocaba- UNISO
Diretor Editorial - INTERCOM
Neste terceiro volume da coleção MEMÓRIAS DA
INTERCOM – Vozes da distensão e transição: o debate
político na sociedade, o professor José Marques de Melo
apresenta um panorama sobre a presença da ideologia na
comunicação, a partir de questionamentos importantes sobre os efeitos nocivos da Ditadura Militar, implantada no
Brasil a partir de 1º de abril de 1964, sobre os meios de
comunicação no país.
No livro, de maneira democrática, desfilam pensamentos antagônicos que abarcam um pouco da nossa história
recente sobre a comunicação no Brasil, desde o pragmatismo cínico, do então presidente da Repúblico do período militar, o general do Exército, João Batista Figueiredo,
passando pelo tom marxista de Caio Prado Júnior, até a
contundência da fala de Hélio Jaguaribe, apresentando um
time de pensadores que compõem um precioso mosaico sobre a transição política brasileira, desde o período ácido da
11
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
presença militar nos destinos do país até a abertura política.
Com um caráter quase que didático, posto que a linguagem é essencialmente clara, não se atendo ao ranço
do academicismo, mas voltada para a elucidação de um
momento extremamente importante para a nossa história,
Vozes da Distensão e transição é importante referência para
quem deseja entender um pouco mais sobre o contexto em
que o país esteve mergulhado durante o regime militar, e
como se deram as relações midiáticas, e mais, como atuou
a censura naquele período.
Construído a partir de vários recortes de entrevistas
concedidas aos principais jornais do país e aos boletins publicados pela INTERCOM, esta obra dá voz a políticos,
autoridades e aos principais pensadores do nosso país, a
destacar a fala truculenta de João Batista Figueiredo, quando diz: A opinião pública não existe, vocês (jornalistas) é que
a formam. Se vocês quiserem, vocês mudam a opinião pública.
(Folha, 5/4/78). Não menos provocativa é sua indagação:
... eu gostaria de saber o que é um intelectual. Um artista de rádio é intelectual? E um artista de teatro? E um artista plástico? Então, eu acabo perguntando: por que um artista de teatro,
que não fez maiores estudos sobre ciência política tem autoridade
para ditar regras e conceitos sobre política? Às vezes, eu acho que
eles pensam que têm mais autoridade que os militares.
No contraponto de um discurso sustentado pela castração da liberdade de expressão que tenta, de forma embrionária, desautorizar o poder de palavra da mídia, principalmente da mídia impressa naqueles ferrenhos anos de
censura militar, o professor José Marques de Melo recupera o pensamento de Caio Prado Júnior, que defendia,
12
Apresentação
abertamente, uma revisão do modelo político vigente, a
partir de uma remodelação do sistema de classes. A fala
desse importante intelectual brasileiro sustenta ser necessário que mudanças sociais no país fossem implementadas,
quando afirma, categoricamente, que é preciso transformar
os interesses de classes – que são muito diferentes dos interesses individuais – num pensamento político, econômico e social.
Algo que, obviamente, nunca foi feito no Brasil.
Para Caio Prado Júnior, há um baixo nível cultural brasileiro que se resume à imitação dos padrões europeus ou
norte-americanos e que isso não é saudável para o próprio
desenvolvimento do país. Sua crítica é ácida, porém, não
menos comprometida com a verdade e com os ideais de liberdade – no sentido mais amplo – no que se refere à produção cultural e também midiática. O historiador dispara,
na excelente entrevista que concedeu ao jornal “O Estado
de São Paulo” (11/6/78): O problema é que se coloca o Brasil
em quadros europeus e americanos que não tem a ver conosco.
Copiamos esses quadros. Entrevista esta que este volume fez
questão de recuperar para que as novas gerações possam
conhecer um pouco mais das ideias desse pensador.
Assim como faz com a reprodução de um artigo publicado na “Folha de São Paulo”, do escritor pernambucano
Gilberto Freyre, em que tece considerações sobre o valor
sociológico da crônica social no Brasil. No entender de
Freyre, esse gênero jornalístico, em decadência em alguns
dos grandes jornais metropolitanos, permanece vivo nos
pequenos jornais do interior, na maioria dos jornais editados nas capitais estaduais e, ainda, em alguns importantes
jornais metropolitanos. De maneira criteriosa, Freyre investiga aspectos que sustentam a presença da crônica social
13
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
e também aponta indícios para as razões de seu desaparecimento do cenário midiático na maioria dos grandes jornais do país. Nessa linha de raciocínio, indaga o escritor:
Será sempre a crônica social nefanda expressão de um mau elitismo? O texto em questão foi reproduzido pelo BOLETIM
INTERCOM nº06, em novembro de 1978.
Outro resgate que merece ser observado é uma histórica
entrevista que o produtor cinematográfico Luis Carlos
Barreto concedeu ao jornalista José Nêumanne Pinto, do
Jornal do Brasil, na qual dispara críticas a EMBRAFILME, na condução de verbas para a produção de filmes nacionais. Na entrevista, presente nesta obra, Barretão (como
era e é conhecido nos meios cinematográficos) defende a
tese de que: há uma aliança espúria entre os interesses das
grandes empresas multinacionais de cinema, de alguns exibidores inescrupulosos, habituais fraudadores da legislação, de
produtores e realizadores nacionais.
Não menos polêmico, porém, é o comentário de Samuel
Wainer, publicado na Folha de São Paulo, no dia 13 de
maio de 1979, quando faz uma crítica aguda às chamadas
patrulhas ideológicas no cenário midiático brasileiro. Na
mesma linha de ação, o professor Marques incluiu, neste livro, o ensaio do cientista político Francisco Weffort,
professor da USP e diretor do CEDEC-PUC, publicado na revista Isto É, do dia 8 de agosto de 1979. Nele, o
cientista denuncia o fato, a seu ver, que o fenômeno populista só frutifica, quando encontra sustentação popular,
não se alimentando exclusivamente de propaganda. Nesse
contexto, o eminente cientista apontava a farsa em torno
da manipulação da imagem do, então presidente, general
Figueiredo. No texto, o autor traça um agudo panorama
14
Apresentação
do populismo, no Brasil, sustentado, muitas vezes, pelos
próprios veículos de comunicação, de Getúlio Vargas, passando por Jânio Quadros e Ademar de Barros.
Há uma análise sobre o Golpe Militar de 1964, a partir da visão do pesquisador Nelson Werneck Sodré, para
quem a propaganda urdida pelo imperialismo norte-americano só fez ‘prosperar’ as ações de arrocho à censura no
país. Escreve Sodré: A intervenção dos militares, em 1964,
com sentido negativo, decorreu, a meu ver, de uma conjuntura
internacional que é conhecida como ‘Guerra Fria’ e, portanto,
da presença do imperialismo, nesse jogo da ‘Guerra Fria’, e de
uma conjuntura nacional de crise econômica e financeira, por
força, também, de intervenção do imperialismo, em âmbito interno, na economia brasileira. Para o esquema do imperialismo,
no grande painel internacional, trata-se, em relação ao Brasil,
de controlar a força militar que vinha sendo progressista, desde
as lutas do Clube Militar, e desde a frustração do golpe militar,
montado em 1955.
Também podem ser encontrados, entre muitas presenças importantes: Vargas Llosa, com uma abordagem sobre
a censura, que como uma praga, faz-se costumeira em vários países, não coincidentemente da América Latina; um
enfoque do historiador Boris Fausto sobre o neopopulismo
encontradiço na publicidade; um depoimento do cientista
político Hélio Jaguaribe concedido ao jornal O Estado de
São Paulo (18/5/80), em que dá a sua versão sobre o golpe
militar de 1964; um artigo do ex-ministro Eduardo Portela, publicado na Folha de São Paulo (23/12/80), quando
‘rasga o verbo’ em críticas à condução das ações de cultura
em nosso país, por parte dos órgãos ligados à cultura, atacando principalmente a burocracia estatal.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Já o historiador e professor da USP, Carlos Guilherme Mota, em entrevista concedida à Folha de São Paulo
(22/9/81), defende a tese de que é preciso estatizar para
democratizar os meios de comunicação. Em sua abordagem, admite, inclusive, a revisão de alguns conceitos de
seu livro Ideologia da Cultura Brasileira, sobretudo no que
se refere à valorização de intelectuais como Darci Ribeiro,
Anísio Teixeira, Hermes Lima e Santiago Dantas, sobre
quem não se dispunha, na época, de material de apoio.
Há, também, nesta obra, uma preocupação com o contexto da comunicação dirigida aos idosos. Essa preocupação vem pela fala do Frei Joaquim da Rocha Maciel e do
pastor Jaci Maraschin. Para esses autores, o ancião é relegado, na sociedade tecnológica de produção e consumo,
fato que acontece em larga escala, a acarretar a despersonalização do homem. Observam: O ser humano é apenas
uma peça de engrenagem. A acentuação do problema recai especialmente sobre os velhos, que se tornam mais dependentes e
marginalizados, uma vez que não há espaço de trabalho para
as pessoas de idade avançada. Isso tem provocado o isolamento
do idoso, porque não trabalhando, não produzindo, é considerado inútil à sociedade.
Desse modo, em suas 395 páginas, esse mosaico que
ora se apresenta é mais uma importante contribuição da
INTERCOM para a construção da cultura midiática de
nosso país, bem como do resgate documentado do que há
de mais importante em termos de pensamentos e pensadores, pesquisadores e cientistas que, mesmo em face do
que havia de mais acirrado em termos de censura, ousaram não só expor, mas defender suas ideias em favor de
uma democracia que priorizasse a liberdade de expressão.
16
Apresentação
Portanto, cremos ser a presente obra mais do que um
olhar memorialista para o passado, mas uma referência
inconteste dedicada às futuras gerações de pesquisadores
da área que poderão encontrar em suas páginas um pouco
mais de informação sobre o pensamento brasileiro.
17
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
18
Apresentação
•I•
Vozes da distensão política:
1978-1983
19
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
20
Vozes da distensão política: 1978-1983
1. A opinião pública não existe!1
João Batista Figueiredo
“A opinião pública não existe, vocês (jornalistas) é que
a formam. Se vocês quiserem, vocês mudam a opinião pública”. (Folha, 5/4/78).
[...] eu gostaria de saber o que é um intelectual.
Um artista de rádio é intelectual? E um artista de
teatro? E um artista plástico? Então, eu acabo perguntando: por que um artista de teatro, que não fez
maiores estudos sobre ciência política tem autoridade para ditar regras e conceitos sobre política?
Ás vezes, eu acho que eles pensam que têm mais
autoridade que os militares. Por que o Chico Buarque de Holanda, que é um compositor de quem
eu gosto e admiro, tem mais autoridade do que eu
para conversar sobre política? Acho que isso é um
1. BOLETIM INTERCOM nº01. São Paulo: Intercom, maio/1978.
p.10-11. Mensal
21
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
preconceito. Eu estudei mais política que ele, seguramente
[...] Eu estudei a fundo. Eu pergunto: o fato de
ter estudado Matemática não me daria também à
condição de intelectual? Diante disso, eu acho que
para ser um ideólogo político, para tentar convencer os outros, com ideias políticas, o cidadão de...
ou participar de política, ser um militante, ou ser
cientista social ou cientista político. Eu sei que a
maioria dos cientistas políticos hoje, no Brasil, tem
tendências esquerdistas. Não importa. É preciso
respeitá-los (Isto é, 5/4/78).
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Vozes da distensão política: 1978-1983
2. Deixa o povo falar!2
Caio Prado Júnior
Na excelente entrevista que concedeu ao jornal “O Estado de São Paulo” (11/6/78), o historiador Caio Prado
Júnior, um dos pioneiros da renovação dos estudos sociais,
no país, apresenta alguns pontos de vista sobre o Brasil, seu
povo e sua cultura, que convém registrar para uma reflexão
mais profunda.
Imitação, mal da burguesia e dos comunistas – “O
que significa um programa político? Significa transformar
os interesses de classes – que são muito diferentes dos interesses individuais – num pensamento político, econômico e social. No Brasil, nunca se fez isso. No caso da burguesia, por exemplo, afora certas reivindicações de mais
2. BOLETIM INTERCOM nº03. São Paulo: Intercom, agosto/1978. p.13-15. Mensal
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
créditos no Banco do Brasil, nunca houve um programa
político propriamente dito. Tudo isso corresponde a um
baixo nível de cultura e desenvolvimento político do país
como um todo. O problema é que se coloca o Brasil em
quadros europeus e americanos que não tem a ver conosco.
Copiamos esses quadros. O ministro Mário Henrique Simonsen fez, recentemente, um discurso, no qual descreve
a economia brasileira, que é uma coisa de rolar de rir. Ele
fala das coisas do Brasil como se fossemos os Estados Unidos, usando os mesmos conceitos. Tudo passa a ser igual.
Não sei até que ponto esses homens falam sinceramente
e até que ponto estão trapaceando. Isso não tem sentido,
mas é um vício brasileiro muito antigo. Como não criamos
uma ideologia nossa, aqui, simplesmente importamos as
coisas. [...] Os comunistas refletem a mentalidade geral do
país, que é a imitação, da falta de ideias próprias e da falta
de coragem de procurar coisas novas. Eles copiaram tudo
aquilo e, quando houve a reviravolta anti-istalinista, passaram a achar errado o que, antes, era tido como certo. Isso
não é algo específico ou exclusivo dos comunistas, mas do
Brasil em geral.”
Individualismo - “[...] Insisto na diferença entre o interesse individual e o interesse de classe. [...] Essa é uma
coisa esquecida muito frequentemente. A política brasileira está cheia de coisas assim, porque, não havendo um
pensamento político, são os interesses individuais que entram em cena. As pessoas vão de um lado para o outro,
guiadas pelo interesse pessoal sem ver o interesse coletivo
de sua classe. Elas não se sacrificam pela sua classe os seus
interesses individuais. Raramente são intérpretes dos inte24
Vozes da distensão política: 1978-1983
resses gerais. É no que dá, entre outras coisas, o baixo nível
cultural do país. A política brasileira é muito difícil de ser
analisada por causa disso”.
Conceito de cultura – “São os homens que criam a sociedade e o pensamento da sociedade. Cultura é a compreensão geral da teoria, e a teoria não é uma coisa abstrata que anda passeando por aí. É produto do pensamento
aplicado à análise dos fatos e resultante da compreensão
deles. É a derivação, a partir daí, das normas de comportamento: princípios, opiniões e ação. E isso não existe em
alto grau entre nós. [...] Um povo que tem a exata compreensão das coisas não julga pelo fato, mas pelo direito, ou
seja, o pior criminoso tem o direito de ser julgado. Essa é
uma lei geral que vai proteger a própria pessoa. Cultura é
isto: é uma comunidade de pensamento, numa sociedade,
em torno de princípios que se respeitam e estão acima dos
indivíduos, é a cultura social, a cultura do conjunto. A cultura propriamente individual é uma coisa artificial que não
tem efeito, afora o exibicionismo dos sabidos... e, talvez,
uma esperança para o futuro, nada mais”.
Como melhorar a cultura do povo brasileiro? – “O
caminho para que o Brasil progrida nesse sentido da cultura é o da elevação das condições da população. Esse é
o único caminho. Afinal, não podemos nos esquecer de
que a massa de nossa população saiu do regime da escravidão e derivados dela. A massa brasileira foi formada,
fundamentalmente, por africanos trazidos para cá como
escravos, quer dizer, como instrumentos de trabalho. Aqui,
eles perderam a cultura de origem e não ganharam nada,
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
porque o único contato que tinham com o que se pode
chamar de civilização era quando desembarcavam. Eram
alinhados e batizados em conjunto por um padre. Nunca
mais viam falar de coisa nenhum, nem de religião. Se pelo
menos tivessem tido uma educação religiosa, alguma coisa
teria ficado em termos de cultura. Mas não. Eram soltos
na senzala e trabalhavam como animais. A massa da população brasileira foi isso até bem próximo de nós. No Sul
do Brasil, a situação é diferente por causa da imigração.
Por tudo isso, o grande problema brasileiro é levantar o
nível dessa massa da população, porque cultura é um fato
coletivo e não individual. É preciso usar o máximo dos recursos do país para dar saúde e educação para essa massa.
E educar não significa apenas montar uma escola e mal
ensinar a ler e escrever, como faz o Mobral. Isso não adianta nada. De que adianta alfabetizar uma pessoa e soltá-la
por aí, em seguida, sem assistência, sem nada para ler? Vai
esquecer tudo.”
O papel do rádio e da TV – “Apesar de tudo o que se
passou, acho que houve um grande progresso no sentido
da compreensão dos fatos políticos. Mesmo essa televisão
e esse rádio medíocres que temos têm prestado um serviço
importante ao pôr o povo em contato com o mundo. O
brasileiro ignorava o que era o mundo e hoje não ignora
mais, porque a televisão e o rádio vão a todos os lares e isso
permite comparar o Brasil com o Exterior e, dessa forma,
aprender novas lições; esses meios de comunicação mostram o nível da civilização de nossos dias que não é da casa
grande e da senzala dos velhos tempos”.
26
Vozes da distensão política: 1978-1983
É preciso deixar o povo falar – “Se por obra e graça do
Espírito Santo, entregassem-me o país, a primeira coisa
que faria era deixar o Brasil todo falar e participar da vida
política. O povo, a massa da população brasileira, é que
precisa abrir a boca e dizer o que lhe falta. Se não é capaz
disso, como há quem alegue, então, não somos dignos de
ser um país civilizado. Somos primitivos, selvagens, pior
que isso, não somos racionais, humanos. Precisamos de tutores. Tutores bem remunerados, está visto, com as multinacionais na primeira linha... Em suma, a primeira coisa a
fazer seria convocar uma constituinte para o Brasil inteiro
pudesse falar e, assim, organizar-se livremente, estabelecer
um regime em que a massa da população possa, efetivamente, participar da vida pública do país. Haverá erros,
sem dúvida, haverá de tudo, mas não há outro caminho.
É andando que, em criança, aprendemos a andar e tombos fazem parte da aprendizagem. E certamente não serão
piores para a massa da população, que os atuais”.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
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Vozes da distensão política: 1978-1983
3. É a crônica social um
arcaísmo burguês?3
Gilberto Freyre
Crônica social reabilitada por Gilberto Freyre
Em artigo publicado, recentemente, na “Folha de São
Paulo”, o escritor pernambucano Gilberto Freyre tece considerações sobre o valor sociológico da crônica social no
Brasil. Esse gênero jornalístico, em decadência em alguns
dos grandes jornais metropolitanos, permanece vivo nos
pequenos jornais do interior, na maioria dos jornais editados nas capitais estaduais e, ainda, em alguns importantes
jornais metropolitanos. Por que esse fenômeno? Gilberto
Freyre assim examina a questão: “Será sempre a crônica
social nefanda expressão de um mau elitismo? De mau
burguesismo? Um arcaísmo em jornais que pretendam e
devam ser de todo modernos, atuais, jornalísticos, progressistas, populares? Sou dos que veem na crônica social
3. BOLETIM INTERCOM nº06. São Paulo: Intercom, novembro/1978. p.05-06. Mensal
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
um registro de fatos ou de ocorrências que constituem expressão de convívio humano, numa de suas formas mais
sutilmente significativas dentro de um contexto de vida
brasileira que, já sendo pós-burguês numas coisas, noutras
continua burguês. Pode ser o registro, por vezes, de uma
carícia à vaidade de convivas de todo frívolos. Mas, quem
nega ser próprio do ser humano, burguês ou pós-burguês,
o pecado da vaidade?
Nunca vi tantas medalhas a enfeitarem peitos de homens como nos generais russo-soviéticos que tenho conhecido. Quem não sofre da vaidade, ainda burguesa, de
ter noticiado, no Brasil de hoje, em jornal, o batizado de
um filho ou o noivado de uma filha, ou um jantar oferecido a amigo? São fatos que constituem um burguesismo
ramerrame, parte da história, da vida, do convívio de uma
comunidade do feitio da brasileira dos nossos dias, tanto
quanto dos dias de nossos pais e de nossas avós. O registro
de ocorrências elegantes quase sempre vai além do que nelas se considere mundano. Ou apenas society. Pode alcançar
artes, letras, vida intelectual, política, esporte, religião em
várias de suas expressões, sutilmente, ligadas ao convívio
social. A crônica social pode variar de qualidade: depende
do cronista. Mas, burguês ou pós-burguês, esse cronista é
sempre capaz de ir além dos assuntos meramente mundanos. [...] Aliás, esse é um aspecto sociológico do assunto
que, reconhecido, importe e vire crônica social nos jornais
ou até mesmo em revistas eróticas, no Brasil atual, valorizando a cultura, as artes, as letras. Fazendo as vezes de uma
crítica de arte que, institucionalizadas, quase desapareceram dos jornais brasileiros”.
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Vozes da distensão política: 1978-1983
4. As multinacionais cobiçam o
cinema brasileiro4
Luis Carlos Barreto
Nas últimas semanas, os jornais e revistas têm apresentado
uma série de denúncias conta a EMBRAFILMES, bem como
a defesa de seus dirigentes. Diante dessa série de lances, com
ataques e contra-ataques, o panorama permanece nebuloso
para o leitor comum. O que há por detrás dessa campanha,
aparentemente tão apetitosa para os grandes jornais? Em entrevista concedida a José Nêumanne Pinto, do Jornal do Brasil, o produtor Luis Carlos Barreto, defende o ponto de vista
de que há uma aliança espúria entre os interesses das grandes
empresas multinacionais de cinema, de alguns exibidores inescrupulosos, habituais fraudadores da legislação, de produtores
e realizadores nacionais, cujos filmes fracassem sempre. Eis alguns dos argumentos usados por Luis Carlos Barreto.
4. BOLETIM INTERCOM nº07. São Paulo: Intercom, dezembro/1978. p.19-21. Mensal
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Cinema, precedente perigoso a contrariar os interesses
multinacionais
“Não é mera coincidência que toda essa polêmica tenha surgido no memento em que a Embrafilmes pensa
em financiar a produção de séries cinematográficas para
a televisão. Tudo isso atinge profundamente os interesses
das empresas estrangeiras. O interesse comercial é até pequeno, diante do verdadeiro interesse que é o político e
o ideológico. As empresas multinacionais estão perdendo
em mídia, em colocação de sua mensagem. O cinema é um
problema altamente político. Li alguns relatórios do Banco
Mundial assinados pelo próprio Robert McNamarra, em
que se dá uma importância fundamental à dominação dos
meios audiovisuais pelas multinacionais. Esses relatórios
me foram mostrados pelo então ministro do planejamento, o senhor Hélio Beltrão. Agora, nosso problema não é
apenas de uma classe, a cinematográfica, mas de todo um
país, de toda uma nação. [...] o sistema de comunicação
social do Brasil já foi completamente invadido. Veja o que
ocorre com a música popular brasileira e o que fazem as
multinacionais do disco para massacrá-la. Saiba que, nos
países africanos de língua portuguesa, os livros brasileiros
são vendidos por empresas norte-americanas. Tudo isso
está em jogo, agora, que o cinema nacional provou que
isso existe, concretamente, no mercado interno, e invade
o mercado externo. Principalmente a America Latina e a
África. O cinema está sendo o mau exemplo para o rádio,
o disco, a televisão e outros setores da indústria cultural. As
multinacionais querem cortar o mal pela raiz”.
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Vozes da distensão política: 1978-1983
Pressões norte-americanas contra a
legislação protecionista
“O grande problema do Brasil é que hoje somos um país
produtor de cinema, mas a postura é de um país importador. A estrutura da produção e a geografia da distribuição são de um país importador típico. Os cinemas de São
Paulo estão concentrados nos jardins, bairros sofisticados
porque, nesses bairros, concentram-se os consumidores de
produtos estrangeiros. Por isso, não há cinemas nos bairros populares das grandes cidades brasileiras: lá se concentram o verdadeiro consumidor do produto cinematográfico nacional, que são as classes populares. Quando o Brasil
passou a produzir automóvel, houve uma reciclagem. Não
houve essa reciclagem no cinema. A indústria do cinema,
sem a lei do similar nacional, vive sob dumping. Nenhuma
indústria resistiria um mês nas condições em que estamos
sobrevivendo. Pergunte a um fabricante de eletrodoméstico se ele sobreviveria sem a lei do similar nacional.
[...] No ano passado, Jack Valenti, da Motion Pictures, veio ao Brasil para pressionar o Governo
contra a legislação protecionista do produto brasileiro e nos ameaçou a todos, dizendo que a legislação tinha chegado ao limite do suportável e
que, se ultrapassássemos aquele limite, as empresas
norte-americanas teriam condições de pressionar
nossa indústria cinematográfica. Ele se reuniu com
produtores, em Brasília, e isoladamente com Roberto Farias, no Rio, repetindo a ameaça.
33
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
[...] No mercado nacional, que deveria ser um patrimônio nacional do cinema brasileiro, nós passamos a ser o elemento de choque. Estava deflagrada
uma guerra feroz. E é, nesse cenário de guerra, que
se inserem essas discussões em torno da honestidade da Embrafilmes, pois não se discute, aqui, a
pessoa do senhor Roberto Farias, pois qualquer
um de nós que, por acaso, ocupasse a Presidência
dessa estatal, sofreria os mesmos ataques. Não quero desviar a discussão. Pode ser até que os grupos
que estão alimentando essa discussão o estejam
fazendo inconscientemente, porém, participamos
de algo muito importante, de uma grande disputa
de mercado de um produto cultural, nas salas de
cinema ou nas telas de televisão.
A expansão do cinema brasileiro
“Da estratégia de luta pelo mercado interno surgiu o incremento da produção nacional. Há quatro anos, fazíamos,
anualmente, de 40 a 45 filmes. Passamos para 80 e, agora,
fazemos de 100 a 120 filmes por ano. O Brasil é o terceiro
maior produtor de cinema do mundo ocidental, perdendo
apenas para os Estados Unidos e a Itália. Passo importante
para isso foi a criação da distribuidora da Embrafilmes,
hoje a maior, a que mais fatura e a mais bem estruturada
distribuidora em operação, no mercado nacional, a única
que se faz presente em nove regiões cinematográficas do
país, de Norte a Sul. Por isso, o filme nacional aumentou
a frequência em 75%, nos últimos três anos. O mercado
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Vozes da distensão política: 1978-1983
total caiu de 250 milhões para 210 milhões de espectadores, dos quais 30% veem filmes nacionais. O público de
filmes nacionais, mesmo caindo a frequência aos cinemas,
aumentou em mais de 20 milhões de expectadores anuais.
Aí se configura o quadro de solicitação do cinema brasileiro. As empresas estrangeiras estimulavam ou pouco se
incomodavam com a grande evasão de renda existente nas
bilheterias do cinema nacional. A Embrafilmes adotou um
controle de receita mais eficiente que diminuiu essa evasão
de 60% para 25%. E, semiconsolidado o mercado interno,
o cinema brasileiro partiu para conquistar o mercado externo, principalmente na América Latina e na África. Nos
últimos dois anos, o cinema nacional fez mais pela divulgação do Brasil, no exterior, do que a diplomacia brasileira
em toda sua história, com as semanas promocionais. Esse é
um projeto que não se destina a servir a qualquer Governo,
mas à nação. Exigimos e exigiremos de qualquer Governo
o respeito e a importância que a indústria cinematográfica
merece. Acabamos de vender mais de 20 filmes para a Argentina e vendemos 40 para o Paraguai que, de novembro
para cá, exibiu 21 semanas de cinema brasileiro”.
Ação da Embrafilme
“Os recursos da Embrafilme são da própria economia
cinematográfica. De um ano para cá, há dotações orçamentárias, mas elas são irrisórias, atingem a cifra de US$10
milhões por ano, o que significa um 1/3, por exemplo, do
que gastou Francis Ford Coppola em sua mais recente
produção, Apocalypse Now. A Embrafilme é sócia em quase
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
a metade da produção brasileira, com participação de 30%
e ganhou muito dinheiro com filmes como Dama da Lotação, Dona Flor ou Xica da Silva, Lições de Amor e outros.
Só, nesses três primeiros, ganhou mais de CR$ 30 milhões
(valores da época) em comissões de distribuição e participação como produtora. Além disso, a Embrafilme produz
filmes culturais, estimulando a produção dos chamados
‘curtas metragens’, que foram colocados, no mercado, em
centenas, depois de bloqueados e sem meios de distribuição e, agora, inicia o plano de produção de séries para a televisão. A legislação do mercado cinematográfico brasileiro é uma das mais modernas e perfeitas do mundo para a
criação de condições de produção para o cinema nacional.
Hoje, um produtor comercial competente não precisa da
Embrafilme, mas lhe basta a legislação. Aliás, nós, da classe cinematográfica, não somos favoráveis à estatização da
produção. Achamos que o Estado deve financiar e desenvolver a pesquisa cinematográfica, jogando em projetos de
risco, no estímulo aos filmes de curtas metragens, que são
muito significativos no treinamento de mão-de-obra, por
exemplo. Mas, achamos necessária a presença forte de uma
empresa estatal voltada para a política de comercialização”.
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Vozes da distensão política: 1978-1983
5. As ‘patrulhas ideológicas’
restauram a nostalgia inquisitorial5
Samuel Wainer
Em comentário publicado na “Folha de São Paulo”
(13/5/79), Samuel Wainer mostra que o fenômeno das patrulhas ideológicas, no Brasil, não passa de uma nostalgia
inquisitorial. Ele lembra que já, na década de 40, Gilberto
Freire, por exemplo, reclamava da sabotagem que sofria nos
jornais da cadeia associada, acusando os “comunistas que lá
estavam infiltrados”. Diz Wainer: “como se vê, a hoje dominante presença de ‘patrulhas ideológicas’, na imprensa brasileira, é a coisa muito antiga. Uns são por ela afetados, outros
não. Faça-se, nesse sentido, ao Sr. Roberto Marinho, dono de
O Globo, o mais insuspeito dos homens de direita no Brasil.
Roberto Marinho nunca permitiu que, em seu jornal, prevalecesse outro critério senão o profissional. Em 1945, pouco
5. BOLETIM INTERCOM nº11. São Paulo: Intercom, jun/1979.
p.19-20. Mensal.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
depois da anistia, ele reconduzia ao lugar de redator-chefe
de O Globo o jornalista Pedro Mota Lima, importante líder
comunista que, mais tarde, morreria, tragicamente, num
desastre de avião na Bulgária. Marinho sempre resistiu a
todas as pressões, o que fez com que constituísse uma das
mais fiéis equipes que um jornal já formara no Brasil. Esses dois episódios podem servir de advertência aos profissionais que se deixaram envolver, passionalmente, pelo
debate nascido da já famosa denúncia de Cacá Diegues.
Este comentarista, que conhece o grande cineasta brasileiro, desde sua adolescência, tem certeza de que sua frase
não tinha intenções provocativas. [...] infelizmente, entretanto, a expressão de Cacá, ‘patrulhas ideológicas’, acabou
por tomar proporções, certamente, acima das intenções do
autor da frase. E eis que caímos numa espécie de macarthismo de face dupla: tanto da esquerda quanto direita, o
patrulhismo começou a servir a vinganças pessoais, frustrações profissionais e até mesmo a chantagens, sem falar
no aventurismo de alguns pobres diabos que, de posse de
um pequeno espaço em qualquer jornal, origiram-se em
juízes do mundo.
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Vozes da distensão política: 1978-1983
6. O populismo que se alimenta
exclusivamente na propaganda
é uma farsa!6
Francisco Weffort
No ensaio que publicou em Isto é (nº137, 8/8/79), o
cientista político Francisco Weffort, professor da USP e
diretor do CEDEC-PUC, mostra que o fenômeno populista só frutifica quando encontra sustentação popular, não
se alimentando exclusivamente de propaganda. Essa segunda hipótese representaria uma bela farsa, como, aliás, ocorre
no atual momento político, com a manipulação da imagem
do general Figueiredo, por meio de uma bem orquestrada
campanha de comunicação. Vamos transcrever a argumentação daquele estudioso. “À parte das divergências teóricas, as
diversas formas concretas de populismo dependem sempre
da existência prévia de um processo de emergência popular.
6. BOLETIM INTERCOM nº13. São Paulo: Intercom, jul/
ago/1979. p.07-08. Mensal.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Expressando-se em reivindicações explícitas – como no
caso das reivindicações operarias de antes de 1930, absorvidas, a seu modo, por Getúlio Vargas, depois da Revolução – ou simplesmente em demandas difusas, ignorâncias,
a emergência popular acarreta, de um modo inevitável, em
pressões de baixo para cima sobre o sistema político. Se
uma liderança ou um argumento político decidem buscar respostas que satisfaçam, embora parcialmente, a estas
pressões, já se configura um processo posterior, do pano
da política, com possibilidade as mais diversas. O centro,
porém, é que, mesmo numa forma política tão autoritária
como o populismo, tratar as massas populares como absolutamente manipuláveis consiste simplesmente em grosseiros equívocos”.
[...] Num país como o nosso, de larga tradição populista, confunde-se, com muita frequência, o populismo com os seus aspectos mais exteriores. Tendo sido dominante como estilo político em época
muito recente, o populismo acabou impregnando
o estilo dos políticos em geral.
[...] Nesse sentido, claramente superficial, o fato de
que Figueiredo apareça em fotos fazendo ginástica
é tão sinal de populismo quanto às capas de Jânio ou os gestos de ‘familiaridade’ de Adhemar de
Barros. Note-se que, por mais que os comunicadores oficiais se esforcem, não conseguiram produzir,
para a imagem de Figueiredo, nada de parecido ao
que o velho DIP, com todo o seu atraso tecnológico, com o famoso sorriso de Getúlio. É que a simpatia pessoal de Getúlio – que não exibia caspas
e só permitia, em público, os trajes do protocolo
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Vozes da distensão política: 1978-1983
ou, às vezes, as bombachas da tradição gaúcha –
não era, a rigor, invenção de propaganda. Era um
resultado – certamente o menos importante – de
um período histórico que permitia a um oligarca
dissidente insinuar, em alguns de seus gestos, uma
relação de cumplicidade com as massas.
[...] Reconheça-se que a Secretaria de Comunicação da Presidência da República se esforça no que
pode. Mas, como em política nem tudo se resume
em fazer propaganda, as possíveis pretensões de
uma reciclagem populista do regime ficam ao desamparo. Um dos maiores equívocos das elites políticas e dos grupos dominantes tem sido o de ver
no populismo uma espécie de aberração da História, alimentada apenas pela propaganda e pela
capacidade de manipulação dos de cima, graças à
suposta estupidez dos de baixo. Seria tudo muito
simples – para as elites, evidentemente – se a realidade fosse esta. Mas, atrás dos populistas estavam
as massas populares em movimento, pressionando
e reivindicando; atendê-las, ainda que fosse da pior
maneira possível, nunca foi somente uma questão
de habilidade propagandista.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
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Vozes da distensão política: 1978-1983
7. A censura é uma praga que assola
todos os países!7
Vargas Llosa
Sobre sua obra: “É verdade que mudei. Nas duas últimas novelas que escrevi, o humor é muito importante
(“Pantaleão e as Visitadoras” e “Tia Julia e o Escrevinhador”), com elementos farsescos, de brincadeira, de desmesuramento. Sim, de absurdo, também, que não existiam nas
novelas anteriores. Foi uma mudança que me surpreendeu,
pois eu dissera antes que era alérgico ao humor na literatura. Eu pensava que para um escritor que tinha intenções
realistas, o humor distanciava demais as personagens e ele
parecia fazer caretas para o leitor [...] Descobri (depois de
Pantaleão e as Visitadoras) que o humor é um ingrediente
da realidade e que se negar a usá-lo correspondia a negar
uma experiência central da realidade, o que não deveria
7. BOLETIM INTERCOM nº13. São Paulo: Intercom, jul/
ago/1979. p.22-23. Mensal
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
fazer nenhum escritor nem nenhum artista, não é?”
Sobre o trabalho do artista e a censura: “Qualquer escritor, músico ou pintor, qualquer artista em geral, graças
à própria natureza do trabalho que realiza, tem que estar
particularmente ciente da enorme extensão de danos que
causa a uma sociedade a ação da censura. A censura é uma
organização cancerosa: quando se finca em um organismo
qualquer, em seguida, começa a crescer e a deformar todo
o corpo social em que se instalou. Não creio que a censura
apenas se limite a impedir que se digam muitas coisas, mas
pior ainda – e isso talvez seja o mais grave de tudo – faz
com que as coisas que se dizem fiquem ditas mal ou mal
entendidas. A censura faz com que se deformem todos os
valores e, nessa atmosfera asfixiante, os critérios da própria
cultura e civilização confundem-se. Olhe: creio que foi Albert Camus quem disse que a grande batalha do século XX
seria a batalha contra a censura, que iria surgir nos regimes
políticos mais diversos, nos lugares mais separados uns dos
outros na Terra. E vemos que ele tinha razão: é uma praga
da qual não está isento país algum hoje em dia”.
Sobre o escritor e a liberdade: “... uma das razões pela
qual se criou essa organização (o Pen Clube) mundial de
escritores foi precisamente com a ideia de defender os escritores que viessem a sofrer qualquer tipo de perseguição,
em qualquer país do mundo, e em qualquer regime político. Por isso, o Centro dos Escritores em Exílio é um centro
muito importante, mas devo corrigir a impressão que se
pudesse ter de que constitui um centro pequeno. Ao Brasil
é que veio apenas uma fração mínima desse grupo muito
numeroso. É interessante: durante os últimos três anos em
que estive na Presidência do Pen Clube, vi chegarem mais
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Vozes da distensão política: 1978-1983
e mais levas de escritores para esse comitê de exilados e,
alguns deles, restabelecidas as condições para seu regresso
ao país natal, voltaram, como os espanhóis já exilados, desde os tempos da República ou depois, durante a Ditadura
Franquista. Agora, cresce o número de escritores do Leste
europeu que vêm aderir ao Comitê de Escritores Exilados,
uma organização mantida pelos Estados Unidos ou só por
países capitalistas. Vários países socialistas fazem parte do
Pen: A RDA, a Polônia, a Iugoslávia, a Hungria, a Bulgária
e temos agora até um pedido oficial da China para integrar a fileira dos nossos membros. Então, como se poderia
sequer pensar em acusar-nos de sermos uma instituição ‘a
soldo da CIA’ conforme o chavão”.
Sobre literatura brasileira: “Você citou Guimarães
Rosa, é um escritor que eu admiro muito, que li com verdadeiro entusiasmo e deslumbramento. ‘Grande Sertão: veredas’ pareceu-me um livro que constitui uma verdadeira façanha linguística, creio que é uma das grandes experiências
formais da literatura de nosso tempo, indiscutivelmente.
Antes, eu lera com grande entusiasmo Machado de Assis
e, já nos tempos de universidade, uma das primeiras tentativas que fiz de ler em português foi justamente causada
pelo entusiasmo que tive ao descobrir Machado de Assis.
Depois, li outros escritores contemporâneos. Tenho uma
amiga brasileira a quem admiro muitíssimo, que é Nélida
Piñon. Li também Clarisse Lispector, que tive a sorte de
conhecer, há alguns anos, e agora estou lendo muitos autores brasileiros. Na verdade, isso faz parte de uma pesquisa
que, sem dúvida, é uma loucura, porque estou escrevendo
uma novela ambientada, no Nordeste brasileiro, no final
do século passado. É por isso que estive no Nordeste... Há
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
5 ou 6 anos, escrevi um roteiro para um cineasta brasileiro
que admiro muito, Rui Guerra. Ele queria fazer um filme
sobre o contexto da rebelião de Antonio Conselheiro, em
Canudos, matéria que trata ‘Os Sertões’, de Euclides da
Cunha, um dos livros que mais me impressionou ao longo
de toda minha vida de escritor. Ao lê-lo, tive uma sensação sísmica, como a que tive, quando li a primeira novena
de Faulkner, que caiu nas minhas mãos, quando li ‘Guerra e Paz’, de Tolstoi, foi uma impressão dessa categoria.
Fiquei absolutamente deslumbrado pelo livro e, também,
pelo mundo de ‘Os Sertões’. Depois, documentei-me com
a bibliografia que me dera Rui Guerra, para fazer o roteiro. Mas, terminado este, fiquei muito frustrado, porque o
cinema tinha limitações de tempo de entrega do material
escrito, e essa novela que, agora, estou tentando escrever,
ampliando o roteiro, é um desafio para mim, porque é a
primeira vez que abordo um assunto que só conheço de
maneira livresca, não é? Muito remota. Por isso, meu livro
não aspira a ser realista, nem sociológico, nem histórico, é
claro, mas estará baseado em uma realidade histórica...”
Sobre a produção literária: “Olhe, quando penso em
problemas sociais ou políticos relacionados ao meu país
ou com o resto do mundo, tento fazer uma aproximação
que seja basicamente, principalmente, moral, antes de ser
ideológica, pois os problemas morais me interessam muito mais do que ideológicos, dos quais desconfio bastante.
Quando me defronto com um problema literário, de criação, não parto nunca de premissas ideológicas nem morais, mas mais anedóticas. Eu escrevo uma história porque
há alguns tipos de personagens, cujas vidas eu gostaria de
desenvolver, descobrir, relatar ou porque há uma situação
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Vozes da distensão política: 1978-1983
que eu conheci e inventei; mas que, por razões misteriosas,
estimula-me sobremaneira, inspira-me uma grande curiosidade. Então, no meu entender, escrever é uma maneira
de descobrir o que está por trás dessa urgência. Uma vez
terminada a novela, é lógico, há nela implicações morais
e ideológicas, porém, fundamentalmente, acho que todo
livro de ficção visa contar uma experiência, uma vivência
humana. O autor é quem menos sabe interpretar seus livros. É um pouco como a pessoa se olhar no espelho: sou
bonito ou feio? Não sei quais são as ilações que um crítico,
por exemplo, pode tirar, simbólicas ou outras que compõemo texto, mas para mim, o autor, esse texto é inseparável
de um contexto pessoal”. (trechos extraídos do JT, 21//79).
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
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Vozes da distensão política: 1978-1983
8. O golpe de 64 só prosperou depois
que os militares foram contaminados
pela engrenagem de propaganda
urdida pelo imperialismo.8
Nelson Werneck Sodré
O Centro de Memória Social Brasileira, instituição
mantida pelo Centro Cultural “Candido Mendes”, está
documentando a história recente da vida política brasileira, através do registro de depoimentos de personagens
que estiverem envolvidos nos acontecimentos marcantes
da cena histórica. Helio Silva, coordenador daquele Centro, utilizou os “Cadernos Candido Mendes” para dar uma
mostra daquele documentário, dimensionando a “história
oral” da crise político-militar de 1964. Dentre os depoimentos gravados, há um do escritor e militar reformado,
Nelson Werneck Sodré, que permite compreender as relações entre os militares e a política brasileira e, também,
vislumbrar o papel desempenhado pela comunicação nas
8. BOLETIM INTERCOM nº15. São Paulo: Intercom, nov/1979.
p.20-22. Mensal
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
articulações político-militares que conduziram ao golpe de
31 de marco de 1964.
Pela significação desse depoimento, vamos transcrever
sua parte mais importante: “Ora, o que cumpre analisar,
agora, é por que houve a intervenção, em 64, e por que
ela foi negativa, esquecendo as outras intervenções, porque
seria nos alongarmos e perderia interesse esse alongamento do meu depoimento. A intervenção dos militares, em
1964, com sentido negativo, decorreu, a meu ver, de uma
conjuntura internacional que é conhecida como ‘Guerra
Fria’ e, portanto, da presença do imperialismo, nesse jogo
da ‘Guerra Fria’, e de uma conjuntura nacional de crise
econômica e financeira, por força, também, de intervenção
do imperialismo, em âmbito interno, na economia brasileira. Para o esquema do imperialismo, no grande painel
internacional, trata-se, em relação ao Brasil, de controlar a
força militar que vinha sendo progressista, desde as lutas
do Clube Militar, e desde a frustração do golpe militar,
montado em 1955, que essa atuação se fizesse no sentido
de impedir o desenvolvimento da posição imperialista, não
criar realmente, um problema sério para o imperialismo,
no Brasil, que não é um país pequeno, já é um país, cuja
mudança de posição, no conjunto internacional, pode desequilibrar a correlação de forças. Ora, se a formação do
Exército brasileiro era democrática, se o Exército brasileiro recrutava sua oficialidade na camada média, se nunca
houve possibilidade, no Brasil, por características que não
podemos analisar, porque demandaria tempo, nunca houve
possibilidade de privilegiar por remuneração o militar, havia
que encontrar uma solução que permitisse neutralizar a intervenção militar no sentido positivo. A forma encontrada
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Vozes da distensão política: 1978-1983
pelo imperialismo foi o controle da força armada, pelo controle: - em primeiro lugar, de comandos; - em segundo lugar,
as cadeiras de informações; - em terceiro lugar, das escolas.
Isto é, o que eles mais controlavam? Numa organização
hierárquica, aquilo que comanda. Numa organização que
opera por gravidade, quem está em cima. Então, o controle do comando permitiria, ou facilitava enormemente, o
controle de toda a força armada. O controle de toda a rede
de informações dava-lhes a segurança. E o controle das
escolas permitia-lhes afirmar e aprofundar a sua ideologia.
O segundo passo que imperialismo deu foi justapor à formação dos chefes militares e, ao controle do comando, o
empresariado, o empresariado ligado aos seus interesses. A
formação e o funcionamento da Escola Superior de Guerra representam isso: agremiar, numa mesma instituição de
difusão ideológica, o homem de empresa e o chefe militar.
E, evidentemente, complementar essa forma de atuação
com órgãos subsidiários, de que o mais destacado foi o
IPES, em São Paulo, órgão caracterizadamente destinado a utilizar vultosas verbas, em parte vindas do exterior,
em parte captadas no mercado interno de capitais, contribuições do empresariado ligado ao imperialismo, utilizar
para manter uma rede de militares ao seu serviço. Uma
das formas de que se revestiu essa ação de instituições do
tipo IPES, foi o chamado IBAD: uma intervenção por via
eleitoral. O que se derramou de dinheiro, nas eleições em
que o IBAD funcionou, foi uma coisa enorme. Não deram
aqueles resultados que seriam de se esperar, nem deram
aqueles resultados proporcionais ao vulto do investimento.
Mas, foi, realmente, uma forma organizada e sistemática de investir na vida política brasileira. Tratava-se, então,
51
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
para o imperialismo, em relação às forças armadas brasileiras, de armá-las, doutriná-las e montar as coisas. Nós
temos muitas lembranças das crises que foram, sucessivamente, montadas, aqui, antes da de 1964. Convém lembrar
a de 1954, sobre cuja eclosão já ter decorrido mais de vinte
anos. Em 1954, tendo o Presidente Vargas anunciado os
escândalos nas remessas de lucros das empresas estrangeiras estabelecidas, no Brasil, tiveram a sua sorte selada. E
foi montada uma crise, a crise de agosto de 1954, em que,
em três semanas apenas, reduziu-se o homem mais poderoso do país a um suicida. Quais as características da crise?
Em primeiro lugar, uma sistemática campanha de opinião,
pela utilização de todos os órgãos de publicidade, em torno de episódio secundário, da alçada do subdelegado e
transformar esse episódio secundário, mero acontecimento
policial, numa crise política, cujas proporções gigantescas
puderem ser aferidas, no momento em que o Presidente
Vargas teve que pôr fim à sua própria existência, no momento em que chegava ao fim, pela força, o seu governo.
Ora, a crise de 1964 seguiu o mesmo caminho ao item
1: a montagem de uma ampla campanha de publicidade,
utilizando, agora, um novo meio de propaganda – a televisão – para se somar aos demais, de sorte isolar completamente o governo em exercício, para obter as condições
para a sua deposição. E, no primeiro caso, da campanha de
publicidade preparatória da operação, a intervenção militar através de documentos assinados por chefes militares, desmoralizando a autoridade em chefe constitucional,
no caso, o Presidente Vargas. Na repetição do lance: uma
conspiração largamente montada, largamente financiada,
em que se destacava, inconfundivelmente, a figura do Co52
Vozes da distensão política: 1978-1983
ronel Vernon Walters, o único militar, em toda a história
militar mundial, que fez a maior guerra da História, utilizando, unicamente, a língua, e que deve ao seu papel, na
conspiração de 1964, a justíssima promoção que lhe coube
ao generalato e a função que hoje exerce, de segunda pessoa na Agência Central de Informações Americana.
Tratava-se, então, de impor um esquema de isolamento
do poder e de deposição daquele que exercia o poder. Essa
ação militar foi possível porque o imperialismo havia, através do que foi antes mencionado, adquirido as condições
para controlar a utilização política das forças armadas brasileira. Ora, isso significa o quê? Que padres ou militares
não são bons ou maus por si. Eles podem ser bons ou maus
conforme a utilização que deles é feita. Se as forças armadas brasileiras têm tido papel aparentemente contraditório,
ora positivo uns, ora negativos outros e, às vezes, a curtos
intervalos de tempo, é porque estão inseridas no processo
histórico e na realidade do país. De sorte que inculpá-los,
isoladamente, do que ocorreu, em 1964, e atirar uma nódoa de infâmia a toda força armada e a cada um de seus
componentes por isso, parece-me um erro palmar. Amanhã, ela poderá tornar a ter um papel positivo, na medida
em que a massa militar de formação democrática, premida
pelas circunstâncias e pela conjuntura, a internacional e a
nacional, for adquirindo consciência da realidade. “Veremos que aquilo que foi mau, num momento, pode vir a ser
bom noutro momento”.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
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Vozes da distensão política: 1978-1983
9. O neopopulismo através da
publicidade não tem chance
de sobreviver!9
Boris Fausto
Buscando oferecer contribuições para o debate sobre
populismo e comunicação que se travará, durante o III Ciclo de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, que a
INTERCOM vai promover em setembro, transcrevemos,
a seguir, o sugestivo artigo que o historiador Boris Fausto10
publicou, na edição dos 90 anos da nossa República, organizado pelo “Jornal da República” (16/11/79).
“É coisa mais ou menos sabida que o populismo como
recurso político tomou forma, no Brasil, nos últimos anos
do Estado Novo. Naquela época, a crise de poder, refletida
9. BOLETIM INTERCOM nº18. São Paulo: Intercom, março/1980. p.24-25. Mensal.
10. Boris Fausto é historiador, autor de A Revolução de 1930 e coordenador da História Geral da Civilização Brasileira, parte República.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
na perda da sustentação de Getúlio Vargas pelas Forças
Armadas, levou um Núcleo do governo a tentar uma aproximação com as massas urbanas. Desde então, o populismo, ou melhor, os populismos, dominaram a cena política.
Ao lado do populismo getulista – o mais sólido, o que teve
maior amplitude em escala de nação – surgiram o de Jânio,
de Adhemar, diferentes do primeiro não apenas pela base
regional, mas por sua composição social e sua trajetória
política. O janismo policlassista alcançou o Estado de fora
para dentro; o adhemarismo incorporou, com seu sentido
boçal, a classe média nascida da especulação e da guerra”.
Floriano, o tenente Vinhaes, os ferroviários, etc.
O populismo viveu seu grande período, a partir dos
anos 50, passando por momentos dramáticos como o suicídio de Getúlio, a renúncia de Jânio, com efeitos muito
diversos. Como lembra Francisco Weffort, o primeiro destes episódios deu-lhe uma sobrevida; o segundo marcou o
início de seu fim. O epílogo veio com o agravamento da situação econômica, o aguçamento das contradições de classe, que abriram caminho para o golpe de 1964. Tudo isso
é bastante conhecido, mas talvez seja menos conhecido o
fato de que o embrião do populismo nasceu com a própria
República, nos seus primeiros anos. Refiro-me à ação política de civis e militares que, em sua maioria, reuniram-se,
no Rio de Janeiro, em torno da figura de Floriano Peixoto,
gente como o Tenente Vinhaes, com prestígio entre os ferroviários da Central do Brasil e os portuários, organizador de
efêmeros ‘partidos operários’. Desses círculos representativos
56
Vozes da distensão política: 1978-1983
de uma parte do estamento do Estado, brotou a luta por
uma República vagamente nacionalista, autoritária, sustentada pelos trabalhadores. Quase não é possível lembrar
a inexistência de condições para a implantação de uma
aliança desse tipo. Para frustração de uns e enriquecimento de outros, até 1930, a República foi o que de um modo
simplista se convencionou chamar de República Oligárquica dos fazendeiros. Mas, o embrião populista, já agora
bem mais fortalecido, ressurgiu com a crise do sistema oligárquico, aberta pela Revolução de 1930. Seu espaço geográfico também se ampliou, abrangendo Rio de Janeiro e São
Paulo, que se convertera em um centro urbano importante.
O contexto político de ensaio populista, nas duas cidades, era bastante diverso. Em São Paulo, o populismo
serviu como instrumento da tentativa de desbaratar o núcleo mais forte da oligarquia republicana. Os interventores
tenentistas, o General Miguel Costa, com seu evocativo
Partido Popular Paulista, tentaram o apoio dos trabalhadores, sobretudo do setor têxtil, mobilizaram desempregados, como alternativa ao poder do PRP e do Partido
Democrático. A onda mais forte em São Paulo não era,
porém, o populismo, e a torrente regional arrastou para a
Revolução de 1932 o embrião populista. No Rio de Janeiro, ele não se associava à ideia de “terra conquistada”, não
acompanhava o “invasor”. Em parte, por isso, a experiência
mobilizadora, policlassista daqueles anos, que se concretizou no Partido Autonomista ....... e no prefeito Pedro
Ernesto, deitou algumas raízes.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
É possível hoje uma “luta do tostão contra o milhão”?
Se as duas experiências se deram em condições diversas,
tiveram algo em comum. Foram ambas ensaios regionais, ao
mesmo tempo alentados e limitados pelo núcleo que controlava o Estado nacional. Getúlio promoveu e desnorteou
o tenentismo em São Paulo; quanto a Pedro Ernesto, foi envolvido no episódio de novembro de 1935 e morreu pouco
depois. Quais as possibilidades de reaparição do populismo
nos dias de hoje? Como é sabido, o populismo se consolidou em uma situação histórica específica, caracterizada pela
rápida urbanização e pelo desenvolvimento industrial – momento de passagem do pólo de expansão capitalista do setor
rural para o industrial-financeiro. Socialmente, assentou-se
em uma sociedade pouco diferenciada, na qual o nível organizatório das massas populares era muito baixo. Os vários
populismos se corporificaram em uma liderança carismática
adequada, variável no seu estilo com a época; Getúlio podia
falar aos “humildes” de charuto na boca; Jânio empreendia a
“luta do tostão contra o milhão” com a vassoura nas mãos e
a caspa nos ombros; Jango – última figura do populismo em
crise – falava sem carisma e sem muita convicção aos trabalhadores organizados. Afinal, simplificadamente, o populismo, em seu apogeu, representou uma aliança desigual de
um núcleo do Estado com um contingente ponderável dos
trabalhadores urbanos, em um contexto histórico em que os
setores dominantes ligados ao desenvolvimento industrial
foram os grandes beneficiários. O populismo manipulou as
massas, encaixou-se bem ou mal na moldura do corporativismo; mas, deu-lhe alguns benefícios reais e estabeleceu
uma relação de proximidade entre liderança e liderados.
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Vozes da distensão política: 1978-1983
Morte certa?
O quadro que se desenha, em nossos dias, parece ser
outro. O nível de organização dos setores populares é
maior, assim como é crescente sua consciência de necessidade de autonomia diante do Estado. Por outro lado, vistas
as coisas do lado deste, não se constrói vínculos populistas apenas com técnicas publicitárias, por mais que sirvam
para dimensionar os traços convencionais da figura humana de um presidente. Vida, paixão e morte do populismo,
então? Não chegaria a tanto. O termo dirá até que ponto
a desigualdade regional do país, os limites da organização
das classes populares, mesmo nas áreas mais avançadas, os
impasses da formação de novos partidos, os grãos de redistribuição de renda contidas na ação governamental etc.
conduzem à ressurreição populista. De qualquer forma, a
morte do populismo tem um sentido figurado. É provável
que ele siga o destino do coronelismo, ou seja, deixe de ser
o recurso político básico do sistema de dominação, o que
não significa seu desaparecimento.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
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Vozes da distensão política: 1978-1983
10. Os latifundiários roubaram a voz
do trabalhador!11
Dom Balduíno
Na sua 18ª Assembleia Geral, a CNBB, órgão que reúne os bispos católicos brasileiros, aprovou o documento
“Igreja e Problemas da Terra”, através do qual adota uma
posição firme diante da Reforma Agrária, condenando
claramente o Capitalismo como modelo econômico capaz
de propiciar mudanças no campo. Os bispos acusam a penetração do Capitalismo, no meio rural, gerando as “terras de produção”, que expulsam os camponeses das suas
“terras de produção”. Afirmam os bispos que a terra não
deve ser um bem destinado à especulação e à exploração
do trabalho humano, mas deve ser possuída pelos que nela
trabalham. Tal posicionamento, que materializa a opção
preferencial pelos pobres, feita pela Igreja Católica, na
Conferência Latino-Americana de Puebla, irritou profun11. BOLETIM INTERCOM nº19. São Paulo: Intercom, abril/1980.
p.16. Mensal.
61
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
damente a Confederação Nacional da Agricultura. Essa
entidade é formada pelos grandes proprietários de terra
que, imediatamente, acusou a Igreja de pretender comunizar o Brasil, chavão que hoje não mais assusta ninguém.
Diante dessa acusação gratuita, o responsável pela Pastoral da Terra da CNBB, o bispo Dom Tomás Balduíno
(Goiás) respondeu com veemência, dizendo que a Igreja,
na verdade, faz-se um canal de comunicação dos pobres
camponeses, porque os latifundiários não apenas lhes roubam as propriedades; mas, sobretudo, cassam sua palavra,
tornando-os mudos. Eis o que disse Dom Balduíno: “os
latifundiários de toda espécie praticam um roubo não só
das terras, mas roubam do povo a condição de falar, de
decidir, de ter lugar, vez e voz, [...] O roubo praticado, ultimamente, vem sendo denunciado pela Igreja, que procura
sanar pela raiz, fazendo ouvir a voz desse povo, veiculando
da maneira mais pura possível os seus apelos, seus clamores, juntamente com suas propostas de solução para seus
problemas, que são dramáticos e que se avolumam dia a
dia no país”. (FSP, 30/3/80).
62
Vozes da distensão política: 1978-1983
11. O pânico da classe média
desestabilizou o governo Goulart!12
Helio Jaguaribe
No depoimento que concedeu ao jornal O Estado de
São Paulo (18/5/80), o cientista político Hélio Jaguaribe,
membro da equipe do ISEB (Instituto Superior de Estudos Brasileiros), dá a sua versão sobre a articulação entre
a burguesia nacional e o populismo e a crise que levou à
sua ruptura em 1964. Como se trata de documento de interesse dos participantes do III Ciclo de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, vamos transcrever os trechos
daquela entrevista que analisam a questão populista. “A
explicação da ruptura que levou à crise do populismo deve
ser iniciada com uma análise não predominantemente política, mas econômico-social. A meu ver, o que aconteceu
foi que o processo de desenvolvimento, que se inicia com
Vargas e se acelera, extraordinariamente, com Kubitschek,
12. BOLETIM INTERCOM nº21. São Paulo: Intercom, jun/
jul/1980. p.26-29. Bimestral.
63
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
foi muito mais um processo de modernização do que de
desenvolvimento – como acertadamente Celso Furtado
afirmou no depoimento dado a vocês – o qual afetou apenas uma parcela minoritária da população brasileira. O
Brasil sempre se caracterizou – e isso continua ocorrendo
em nossos dias – por ser uma sociedade profundamente
dualística, em que há uma massa marginal que constitui a
grande maioria da população, a qual não participa em nada
ou apenas, insignificantemente, dos benefícios de modernização e do desenvolvimento e, a seu lado, um setor mais
restrito que, esse sim, beneficia-se de todas as vantagens.
Essa situação teve e tem consequências, extraordinariamente, intensas em toda História brasileira. Com relação
ao populismo, parece-me que o aspecto fundamental dessa
dicotomia é o fato de que a democracia populista, embora
tivesse uma retórica um pouco estatizante e socializante,
na verdade, adotou práticas de um Capitalismo bastante
convencional, no qual o Estado só subsidiariamente interveio no processo produtivo, como regulador da atividade econômica. Foram criadas grandes empresas públicas,
naquele período, mas; na verdade, a ênfase do processo de
desenvolvimento foi dada ao setor privado, poderosamente
ajudado pelo BNDE. Foi o setor privado, com o apoio e o
estímulo do Estado, que teve a principal responsabilidade
pelo desenvolvimento industrial. Ora, o que aconteceu no
processo de desenvolvimento industrial no período populista?
Quando chegamos a um certo grau de complexidade
da industrialização, defrontamo-nos com a insuficiência
da demanda no mercado interno. Porque, embora no governo Kubitschek fôssemos um país de mais ou menos 80
milhões de habitantes, apenas um terço, ou um pouquinho
64
Vozes da distensão política: 1978-1983
mais do que isso, participava realmente do mercado. O restante formava uma grande massa marginal que tinha acesso apenas aos alimentos básicos, não participando do mercado industrial. Então, a industrialização que se fazia, na
base da substituição de importações para o atendimento
da demanda superior à da parcela da população, que participava, efetivamente, do mercado. Naquela época, o Brasil
ainda não tinha acesso ao mercado internacional. Era um
modesto exportador de matérias-primas e as nossas exportações estavam situadas em torno de 1,5 a 2 bilhões e dólares. Por outro lado, o Estado populista sempre sofreu de
incapacidade de extrair impostos suficientes da população,
porque os Congressos eram conservadores.
O populismo, na verdade, era apenas dos Executivos,
não dos Congressos. Por isso, o Parlamento sempre negou
as reformas fiscais solicitadas pelo Executivo. Assim, o Estado populista, numa inflação crescente, não tinha condições de substituir os investimentos que a iniciativa privada
não tinha coragem de fazer. Recordamos, porque esse é um
dado muito importante que, quando começa o populismo
com o governador Vargas, a arrecadação federal correspondia a 9% do Produto Nacional. Quando termina o populismo, na administração Goulart, a arrecadação federal
continuava a representar os mesmos 9% do Produto Nacional. Mas, paralelamente, a despesa federal representava
18%. Ou seja, as responsabilidades da União na administração da sociedade brasileira cresciam implacavelmente,
mas sem o respaldo de receitas correspondentes. Kubitschek tinha razão em dizer que, em sua administração, o
Brasil cresceu 50 anos em 5, o que foi uma coisa realmente
extraordinária.
65
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Mas, aí o modelo esgotou a capacidade de crescimento. E os governos que o sucederam não encontraram disponibilidades privadas para novos investimentos, porque
o mercado não os comportava, nem tinha facilidades de
investimentos pelo setor público, em que os déficits se
acumulavam. Houve, então, a estagnação do crescimento.
Nesse momento, a aliança entre a burguesia nacional e o
populismo, que estava baseada numa certa redistribuição
dos ganhos acarretados pelo crescimento do País e pelo aumento da produtividade, entrou em crise. A recessão econômica não permitia satisfazer as expectativas das massas.
E a aliança, consequentemente, rompeu-se. O populismo,
sob um certo aspecto, era uma retórica que prometia mais
do que dava, mas algo ele dava. Um pouco como acontece com as moedas nas relações de câmbio: para dez unidades de promessas, uma de realidade. A rigor, as massas
não foram mistificadas, tanto assim que os padrões reais
de vida da população brasileira subiram durante o período
populista. Mais nos centros urbanos e, infelizmente, muito
pouco no campo.
Quando, por causa dos elementos que mencionei, não
foi mais possível manter o processo de crescimento – a crise se dá entre 61 e 62 – a possibilidade de dar um cumprimento mínimo às promessas do populismo se esvaziaram.
Como, então, poderia o governo populista manter a sua
liderança, se não tinha mais riquezas novas para distribuir?
Só lhe restava o caminho de tentar distribuir a riqueza pré-existente. Daí, as reformas de base do governo Goulart,
que eram uma tentativa de redistribuir a riqueza pré-existente, por meio da Reforma Agrária, da Reforma Urbana
66
Vozes da distensão política: 1978-1983
etc., nesse momento, a classe média que, na verdade, foi
o fator determinante do processo, sentindo-se ameaçada
em seus privilégios, reuniu-se às forças da direita e levou
o Exército, que sempre foi tradicionalmente sua expressão,
a uma intervenção. Foi o medo – o pânico mesmo – por
parte da classe média brasileira, de que os mecanismos de
redistribuição (pressupostos pelas reformas de base) atingissem o seu status, que o levou a considerar que o governo
Goulart tinha enveredado pelo caminho da subversão e,
consequentemente, criou as condições que tornaram possível a intervenção militar.
O processo da industrialização brasileira, que começou
espontaneamente por causa da crise de 29, por meio da
tão conhecida substituição de importações, fez nascer uma
nova classe social – o proletariado industrial e, por consequência, uma subclasse nova – o empresariado industrial.
Surgiu, também, um outro setor que se foi diferenciando da classe média clássica, cartorial, de funcionários públicos, e que se constituiu numa classe média de gerentes,
administradores, técnicos. Dessas diversas classes, surgiram
duas coligações: a populista e a conservadora. A coligação
populista reunia o proletariado industrial, a classe média
progressista e setores da burguesia e setores da burguesia ligados à industrialização e a modernização. Essa coligação
tornou-se dominante nas eleições majoritárias, fazendo os
presidentes da República, durante o período que estamos
considerando, isto é, o do populismo. Quando a crise do
populismo, quando tive ocasião de indicar, lançou a classe
média para a direita e levou o empresariado a se reunir aos
setores mais conservadores, fundindo a burguesia industrial
com a mercantil, processou-se uma modificação significa67
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
tiva, substancial, na composição sociopolítica brasileira. Na
pirâmide social brasileira, as diversas classes sociais, apesar
de manterem, entre elas, conflitos de tipo clássico, tinham
sido levadas a um conglomerado multiclassista, surgindo,
embora de uma forma frouxa e cheia de contradições, uma
aliança operativa entre o proletariado industrial, a classe
média progressista e um setor dinâmico da burguesia. Essa
aliança se desfez e a subdivisão vertical foi substituída por uma
subdivisão horizontal.
As classes altas e a classe média, reunidas por meio
do sistema militar, reprimiram as demandas das massas,
imobilizaram o processo político, por via autoritária, e
passaram a dirigir o País por autodesignação, sem controle
popular. A classe média foi sempre uma participante um
pouco ambígua da aliança conservadora formada a partir
de 64. Ela foi profundamente motivada a apoiar a queda
de Goulart, quando entendeu que ele ia substituir a ordem estabelecida por uma vaga República Sindicalista,
que ninguém sabia o que significava; mas, na qual, ela via a
perda de seu automóvel “Volkswagen” e, provavelmente, de
seu apartamento. Diante dessa perspectiva de proletarização, por meio de uma redistribuição niveladora da riqueza
brasileira, com a perda de seus privilégios adquiridos, penosamente, ao longo de vários anos, a classe média aliou-se às forças mais reacionárias do País. Essa aliança cobre
todo o governo Castelo Branco e o começo do governo
Costa e Silva.
É difícil precisar o momento de sua inflexão. Entretanto, sem prejuízo de certos fatores externos que são também
extremamente importantes, pode-se indicar alguns elementos que colaboram para modifica a conduta da classe
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Vozes da distensão política: 1978-1983
média brasileira durante o período da Ditadura Militar.
Por outro lado, a classe média sempre viveu uma contradição entre sua crença na legitimidade democrática e a sua
opção por um governo autoritário, por razões de interesse, de ordem pragmática. A única forma pela qual conseguiu compatibilizar aquela convicção democrática com o
governo autoritário foi a da tese lacerdista do ‘governo de
emergência’: uma situação de emergência, na qual, depurar
o País de agentes subversivos e elementos corruptos, que
estavam distorcendo a vontade popular, tornava-se necessário um governo autoritário, de salvação nacional, que expurgaria aqueles germes nocivos, restauraria a sanidade do
corpo social, o qual passaria, então, a manifestar-se, democraticamente, dentro daquilo que a classe média considera
compatível com seus interesses e valores. Mas, a prática
mostrou que a contradição entre os seus valores e os seus
interesses, no governo Castelo Branco, era mais profunda
do que se pensava. De modo que a classe média foi conduzida a uma situação ideologicamente muito difícil, de má
consciência, na qual era obrigada, continuamente, a postergar
o processo de democratização, em virtude da permanência de
situações que ameaçavam severamente seus interesses.
Esse adiamento constante da volta à legalidade democrática, que era a única forma legítima de dirigir o País, foi
criando uma resistência moral e psicológica, que acabou
por se tornar muito importante. Creio que intervieram,
então, alguns fatores que aceleraram a mudança de postura
da classe média. O mais importante deles é que o Brasil é
um país de memória social curta. Explico-me. O grande
crescimento demográfico do nosso país faz com que tenhamos uma mobilidade social grande: enormes contingentes
69
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
provenientes da periferia da classe média ingressam, constantemente, nessa classe e, consequentemente, a sua memória dura pouco. Fizemos, há alguns anos atrás, na Universidade Cândido Mendes, uma pesquisa entre os rapazes que
estavam ingressando no Ensino Superior para saber até
onde ia sua memória política. Para confirmar nossa tese,
constatamos que eles não sabiam direito que eram Leonel Brizola e João Goulart, por exemplo. Por quê? Porque
eram pessoas que vinham de famílias que não havia participado do processo político, imediatamente anterior a 64;
mas que, em virtude de esforços próprios, tinham conseguido
acesso à universidade para seus filhos. Aquela juventude que
saia de um ambiente, em que a maioria daqueles fatos políticos não era muito forte, estava realizando a renovação do
estoque de cargos e papéis da classe média, 10 anos depois da
ocorrência daqueles fatos.
Quem são, hoje, os homens que estão desempenhando os
cargos e papéis da classe média? São rapazes que saíram da
universidade, há 10 ou 12 anos, e que trazem memórias diferentes das de seus pais. Os pais tinham medo de Brizola e
esses têm medo da polícia. Ao contrário de seus pais, eles têm
a experiência do conflito com a autoridade policial, com a repressão. Esse fato modificou, gradualmente, a concepção do
mundo da classe média. Por outro lado, é evidente que a incapacidade que teve o regime de lidar com a juventude, fazendo
com ela fosse, permanentemente, encarada como o seu inimigo número um, gerou uma série de conflitos e fez com que não
haja, hoje, praticamente, nenhuma família brasileira que não
tenha um filho, um parente, um amigo ou um conhecido que
não tenha sido vítima da brutalidade militar – assassinatos,
torturas e outros tipos de violência que ocorreram no País.
70
Vozes da distensão política: 1978-1983
Assim, a modificação da perspectiva da classe média,
advinda de tudo isso, tornou-se muito visível no governo de Geisel. Nesse momento, a renovação dos quadros
da classe média, em suas bases, a erosão da lembrança do
pânico do populismo e o surgimento de uma nova reivindicação – sempre reprimida, nunca eliminada – de um
sentido democrático de legitimidade, fizeram com que a
classe média não aceitasse mais a ideologia da segurança
nacional e contaminasse os quartéis com sua atitude. Da
mesma maneira que o receio que a classe média teve, entre
63 e 64, de ser expropriada por um golpe sindicalista, levou os militares a se identificarem com suas preocupações
e – ao lado de aspectos mais concretos relacionados à disciplina militar – a intervir no processo político, da mesma
maneira, repito, a generalização das expectativas de restauração do Estado de Direito contaminou os quartéis.
A meu ver, ficou bastante claro para o Presidente Geisel
que não havia mais condições de sustentação do regime
autoritário e da ideologia de segurança nacional, porque
as Forças Armadas estavam deixando de acreditar nisso.
Ele foi, assim, conduzido à decisão de promover a retirada
e, porque ainda dispunha de poder discricionário, fez isso
dentro das regras que ele próprio ditou, em lugar de ser
levado a um total esgarçamento do tecido militar e a uma
saída caótica, provocada por pressão popular incontrolável,
alguns anos mais tarde.
71
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
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Vozes da distensão política: 1978-1983
12. A cultura como transgressão13
Eduardo Portela
O ex-ministro Eduardo Portela, de quem Tristão de
Athayde (ver matéria na secção Gente) disse que “caiu
para subir”, realmente está dando um testemunho de que
experiência ministerial, longe de ter afetado a capacidade
de análise intelectual, aguçou-a, agregando aos seus conhecimentos anteriores a dimensão do poder por dentro.
Tanto assim que poucas semanas após sua “queda”, compareceu à imprensa, publicando artigo, no jornal Folha de
São Paulo (23/12/80), no qual oferecia seu conceito de
cultura, que diz conter implícita a noção de transgressão
e que, por isso, “não será jamais uma produção do Estado”.
Por aí se vê que Portela esteve “do outro lado do rio” sem,
na verdade, tê-lo atravessado inteiramente, o que de certo
13. BOLETIM INTERCOM nº27. São Paulo: Intercom, jan/
fev/1981. p.18-20. Bimestral
73
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
mais o afastou do que o aproximou do poder. Aquelas suas
primeiras impressões públicas do que fazer cultura, publicadas na FSP, constituem realmente matéria sugestiva para
a análise das relações entre a Cultura e o Estado, razão pela
qual vamos transcrevê-las, integralmente, para as reflexões
dos nossos leitores:
Certa vez, uma repórter muito participante, talvez a
mais participante do time de repórteres, e que tiveram o
privilégio de sonhar com os estudantes franceses dos idos
de maio de 68, perguntou-me se eu não era favorável à
ideia de um Ministério da Cultura que fosse autônomo,
um organismo capaz de gerir, sem ser tragado pela educação, os negócios “sempre preteridos” da cultura. E a
moça insistia, entre impaciente e nervosa: “como na França, como na França”. Tenho a impressão de que a desapontei, ao responder que se tratava de um problema, em si
mesmo, irrelevante. Tentei explicar-me, procurando reduzir a margem de desolação.
A cultura é a educação informal, assim como a educação é a cultura formalizada. Em termos pragmáticos, ou
até filosóficos, a articulação entre ambas, a identificação de
ambas, não apenas se justifica, mas se torna decididamente
indispensável. Logo, o principal deixa de ser o aparelho
burocrático, quando se levanta um tipo novo de mentalidade, capaz de desburocratizar ou reaparelhar as formas de
atuação cultural.
O importante é que, por cima desses mecanismos executivos, haja uma decisão de governo aberta e livre. A participação do Estado, em países por desenvolver-se, tem
pelo menos duas explicações. De um lado, o Estado vorazmente arrecadador não deve descarta-se sob pena de
74
Vozes da distensão política: 1978-1983
perder-se e negar-se – da sua função social, representada, criadoramente, no conjunto das práticas culturais. Do
outro, ela contrabalança ou equilibra a pressão externa. É
quando as multinacionais da cultura não só vendem o seu
produto, mas impõem o padrão cultural. Aí, emerge uma
espécie de ‘Capitalismo de Estado’ que, uma vez imune ao
paternalismo e ao dirigismo, pode desempenhar um papel
recuperador. Em nenhum instante, a cultura, pessoal e plebiscitária, abrirá mão de seu caráter essencialmente transgressor.
Transgredir significa instaurar, para além do código institucionalizado e sistematicamente protegido. Daí a condição litigiosa da cultura, a função prospectivas exercidas
em meio às mais diferentes modalidades de dominação e
violência. Até porque o novo nunca foi, no seu amanhecer,
um poder cooptado; antes, tem sido uma força solitária,
entregue ao seu próprio abandono. Por isso, não lhe é permitida a inércia. A cultura, mesmo a cultura que passou
– a que passou, ficando, sendo mais – jamais se confinará
como simples matéria de memória. O lugar do passado é
no futuro e as criações pretéritas, se preservadas como bens
patrimoniais, tombadas, imóveis, nunca deixarão de ser expressões agonizantes de um mundo cada vez mais morto.
O futuro é a mola propulsora do curso do tempo, por
vocação e por desempenho, um instaurador natural de
vida. O futuro é a transgressão, a juventude, o erro sem
a fatalidade, o acerto sem a canonização. É indispensável que o ‘Estado de Direito’ saiba entender o ‘Estado de
transgressão’ como lugar e garantia de criatividade. Nessa
hora, o peso das nomenclaturas oficiais cederá à força vital
das coisas reais.
75
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
A própria tradição, que oscila entre o repouso, ou a sua
forma pervertida, a inércia e a criação, ou seja, a releitura
produtiva, não se resume a uma certidão patrimonial que
possa ser usada, com o mesmo vigor e um único valor, nos
mais diversos recintos da nação. A tradição cresce e vive ao
amparo de energias vivificadoras, advindas, basicamente,
do presente e do futuro. Toda vez que reduzimos a tradição
à fotografia estática e, pretensamente fiel ao passado, estaremos simplesmente liquidando a História, bloqueando o
curso simultâneo do tempo. Os guardiães compulsivos da
tradição expõem à visitação pública, à curiosidade analítica, ou apenas à crônica policial, a estranha patologia dos
que matam por excesso de amor.
Por isso, a cultura não será jamais uma produção do Estado. Normativo, coercitivo e, frequentemente, coativo, o
Estado se caracteriza, por uma incapacidade criadora. Ao
Estado não foi permitido o direito ou a alegria da transgressão. Ele confunde seriedade com sisudez e, em nome
das virtudes da primeira, resvala na inutilidade retórica da
segunda. Daí, a sua vocação de censor. É quando o Estado,
ignorando o seu próprio sentido – a condição de mediador
social – hipertrofia e movimenta desinibidamente a sua
faceta policial. Sem de longe supor que, ao instalar-se na
censura, é ele quem sai censurado. E censurado pela comunidade, pela sociedade, pelo individuo social, os verdadeiros fluxos de legitimação de todo e qualquer ato do Estado.
A voracidade estatal esqueceu-se de que já não é possível estabelecer-se com a cultura uma relação de posse,
de apropriação usuária ou protetora. A cultura, enquanto
fazer-se contínuo, escapa a qualquer tipo de controle e, no
espaço interminável da liberdade, ela imprime a sua res76
Vozes da distensão política: 1978-1983
ponsabilidade ética e expressa, sem reservas, a dignidade
própria de uma pessoa. As relações, portanto, invertem-se. É a cultura que pode animar a caminhada criadora
do Estado, que evita o seu retorno à pura naturalidade e
impede a sua desnaturação. O atestado de saúde do Estado
pressupõe a medida correta da sua temperatura cultural.
Poderia chegar a um acordo com a jovem repórter (mesmo
que provisório) e, no plano comum das nossas saudáveis
e jamais perdidas ilusões: concordaria com o Ministério
da Cultura se fosse antes o ministério da transgressão. Na
verdade, a moça guardara consigo – inegociável arquétipo
invencível – o seu Ministério mitológico. Quem sabe um
dia, nos reencontraremos? FSP, 23/12/80.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
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Vozes da distensão política: 1978-1983
13. É preciso estatizar para
democratizar os meios de
comunicação!14
Carlos Guilherme Mota
Em entrevista concedida à Folha de São Paulo
(22/9/81), o historiador Carlos Guilherme Mota, professor da USP, admite a revisão de alguns conceitos de seu
livro Ideologia da Cultura Brasileira, sobretudo no que se
refere à valorização de intelectuais como Darci Ribeiro,
Anísio Teixeira, Hermes Lima e Santiago Dantas, sobre
os quais não se dispunha, na época, de material de apoio.
Contudo, Mota reafirma sua tese central: a de que se elaborou, no Brasil, dos anos 30 para cá, um conceito de cultura brasileira altamente dissolvente das contradições ao
nível ideológico, quando essas contradições sociais, políticas e econômicas afloravam. Trabalhamos, hoje, um conceito euforizante de cultura brasileira, que tende a sofismar a
14. BOLETIM INTERCOM nº33. São Paulo: Intercom, out/1981.
p.48. Mensal.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
questão da dependência. Ele critica, por exemplo, a omissão
dos partidos políticos de oposição quanto à questão da cultura,
dizendo que “talvez, com razão, estejam mais preocupados
em chegar até 82 do que discutir questões mais concretas,
como essas do ensino pago. É uma tragédia que eles não
estejam percebendo que um partido precisa ter estruturada uma noção combativa de cultura. O fato é que eles
não vêm conseguindo articular uma fala de contradições
às políticas culturais em vigência”.
Mota analisa também os equívocos que, em sua opinião, estão sendo cometidos em relação à - “cultura popular”. – “Às esquerdas, as oposições, engolem muito isso, talvez, por algum ranço populista. Quem faz cultura popular,
normalmente, não diz que está fazendo cultura popular.
Esse foi o equívoco dos anos 60 que, se repetido agora,
transforma-se numa farsa. Será que o ranço populista é
tão grande que, mesmo depois de 20 anos de experiência,
voltaremos à mesma tecla? Não será esse um dado trágico
da assim chamada cultura brasileira? Ou seja, no momento
que se teria de deslanchar, de alçar voo, vamos voltar ao
início da pista outra vez? O final da entrevista de Carlos Guilherme Mota é dedicado à questão nacionalista e
à saída para os meios de comunicação. Sua proposta é a
defesa de uma solução estatizante como alternativa viável para a democratização da produção cultural –“Como
diz Barbosa Lima Sobrinho, feliz ou infelizmente, teremos que passar por formas nacionalistas de organização
para atingirmos o socialismo. As experiências históricas,
felizmente, não repetem. Mas, creio que voltaremos a certos temas, como o da estatização, pensando, agora, de uma
proposta democratizante. Os meios de comunicação, por
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Vozes da distensão política: 1978-1983
exemplo. É preciso estatizá-los para democratizar. “Como
cidadão contribuinte, eu tenho muito mais instrumentos
para interferir numa TV estatal do que em qualquer desses
conglomerados existentes”.
81
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
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Vozes da distensão política: 1978-1983
14. Entra em declínio a influência
norte-americana sobre a
televisão brasileira15.
Joseph Straubhaar
O Brazilianst Joseph Straubhaar (sócio da Intercom)
defendeu, em meados deste ano, tese de doutoramento
junto à The Fletcher Scool of Law and Diplomacy, nos EUA.
A argumentação central de seu trabalho é a de que está
havendo um declínio da influência norte-americana sobre
a televisão brasileira. Transcrevemos, a seguir, uma síntese
daquela tese: “Tem havido significante influência norte-americana na indústria brasileira de televisão e, através
dela, na cultura brasileira. Essa influência avulta como um
exemplo de dependência cultural. Os anunciantes norte-americanos têm interferido na orientação comercial da
televisão brasileira.
15. BOLETIM INTERCOM nº34. São Paulo: Intercom, nov/
dez/1981. p.25-26. Bimestral.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Através de acordos financeiros e comerciais, no período
de 1962-1971, a empresa Time Life Television Inc. ajudou a criar a TV Globo, a rede de televisão dominante no
Brasil. Não obstante, tendo absorvido séculos de influência
estrangeira, a natureza comercial do sistema brasileiro de
comunicação de massa é bem anterior à influência norte-americana. Apesar da indústria de televisão ter desenvolvido uma forte e autônoma estrutura comercial, alguns
críticos continuam a afirmar que o sistema brasileiro e o
sistema de outros países em desenvolvimento são ainda estruturalmente dependentes. A evidência indica que tema
havido algumas influências indiretas da televisão norte-americana na produção de programas brasileiros.
Nas décadas de 50 e 60, os anunciantes americanos
ainda tinham participação direta na decisão sobre a programação da TV. Desde então, a radiodifusão brasileira
tem tomado emprestado da radiodifusão norte-americana
ideias de produção, temas desenvolvidos e técnicas de administração. Essas têm sido frequentemente transformadas para se adaptar às condições do mercado brasileiro
e, depois do começo da década de 70, não parecem atuar
como um importante canal de influência ou dependência.
Mais significativo do que isso, tem sido o impacto direto
dos programas de televisão importados dos EUA sobre o
público brasileiro. Entretanto, a mensuração da real proporção de horas de audiência dirigidas para os programas
importados indica ápice em 1971, com 48%, baixando
para 42% entre 1975-1977. Isto indica que o impacto dos
programas importados dos EUA, como canal de dependência cultural, tem declinado nos últimos anos. Em geral, a indústria brasileira de televisão ainda depende dos
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Vozes da distensão política: 1978-1983
anunciantes estrangeiros, juntamente com os anunciantes
privados e governamentais do próprio país. Esse dado, por
si só, justifica a alegação feita por muitos críticos de que a
indústria é limitada por uma forma dependente de desenvolvimento. Algumas empresas brasileiras de radiodifusão
dependem fortemente dos programas importados, nas áreas de entretenimento e noticiário, o que mantém aberto
o canal de influência direta da influência estrangeira na
cultura brasileira. Isso também é visto como uma evidência da dependência cultural. Contudo, redes brasileiras já
estão exportando seus programas para mais de 50 países,
numa mostra de interdependência. Os fatos levam à conclusão de que pelo menos a Rede Globo está se tornando
autônoma, tanto em termos de seu desenvolvimento técnico como de nacionalização da programação e de que a
indústria de televisão brasileira está superando a fase de
dependência para entrar na interdependência.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
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Vozes da distensão política: 1978-1983
15. A comunicação e as
pessoas idosas16.
Frei Joaquim da Rocha Maciel e
pastor Jaci Maraschin
O Dia Mundial das Comunicações Sociais foi instituído pela Igreja Católica, através do Decreto Conciliar
Inter Mirifica. Cada ano, a partir de 07 de maio de 1967,
o evento vem sendo comemorado, ocasião em que o Papa
dirige uma mensagem aos fiéis do mundo inteiro e a todos
os homens de boa vontade. Neste ano de 1982, a mensagem tem o seguinte título: As Comunicações Sociais e o
Problema dos Anciãos. Comemorado no dia 23 de maio,
o Dia Mundial ensejou reflexões, para as quais contribuiu
o documento editado pela Comissão Pontifícia para os
Meios de Comunicação Social. Apresentaremos, a seguir,
uma síntese daquele documento.
16. BOLETIM INTERCOM nº37. São Paulo: Intercom, Maio/
Jun/1982. p.22-27. Bimestral.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
A preocupação de João Paulo II
O tema aprovado pelo Papa João Paulo II para a celebração deste XVI Dia Mundial das Comunicações Sociais,
quer pôr a atenção para o problema dos anciãos. Pois, também, este ano, é dedicado aos anciãos pelos organismos
internacionais que tentam, desta forma, sensibilizar a opinião pública para os problemas cruciantes que atingem as
pessoas da terceira idade.
As palavras do Papa João Paulo II, na homilia pronunciada na Catedral de Mônaco, por ocasião de sua visita à
Alemanha, acentuam a importância da escolha do tema:
“O Papa se inclina com respeito diante da velhice e convida a todos a fazerem o mesmo com ele. A velhice é o
coroamento das etapas da vida. Ela reúne tudo o que se
aprendeu e foi vivido, quanto se fez e foi alcançado, o que
se sofreu e foi suportado. Como ao final de uma grande
(melodia) sinfonia, retornam os temas dominantes da vida
para uma potente síntese sonora. E esta ressonância conclusiva confere sabedoria..., bondade, paciência, compreensão e o precioso coroamento da velhice: o amor”. (19-11-80).
O Problema dos anciãos, mais do que social e econômico (embora também estes sejam de singular importância),
é um problema essencialmente humano, cuja solução é
confiada às forças morais e espirituais de toda a humanidade. A Igreja se empenha na consecução desses objetivos,
porque está convencida de que nenhuma sociedade poderá considerar-se desenvolvida e, mesmo respeitada, se não
respeita, protege, honra e dignifica a terceira idade.
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Vozes da distensão política: 1978-1983
A situação do idoso no contexto social
O ancião é relegado, na sociedade tecnológica de produção e consumo, na qual acontece, em larga escala, a despersonalização do homem. O ser humano é apenas uma
peça de engrenagem. A acentuação do problema recai
especialmente sobre os velhos, que se tornam mais dependentes e marginalizados, uma vez que não há espaço
de trabalho para as pessoas de idade avançada. Isso tem
provocado o isolamento do idoso, porque não trabalhando,
não produzindo, é considerado inútil à sociedade.
O Pontifício Conselho “Cor Unum”, num recente documento (“Algumas questões de ética relativas aos doentes
graves e aos moribundos” – Tip.Pol.Vat. – 1981) descreve
como a sociedade desenvolvida, de hoje, procura afastar
de si a velhice, a doença e a morte, por meio de uma fuga,
a ponto de levar o ancião e o moribundo a sentirem-se
culpados pelos incômodos que a própria decadência física
traz aos familiares. Esse fenômeno está em conexão com
a busca exagerada do bem-estar pessoal. Pergunta-se se os
Meios de Comunicação de Massa não contribuíram para
a criação de um modelo de sociedade hedonista e despersonalizada, em que os falsos valores do consumismo e do
exagerado bem-estar estão prestes a substituir a verdadeira
escola dos valores cristãos.
A mentalidade que considera o ancião um incômodo ou
supérfluo está invadindo não só a opinião pública corrente,
mas até a atividade legislativa e, ainda, o endereçamento
da estratégia das intervenções nos setores de produção.
Hoje, o idoso não tem mais lugar na família, a qual ele
mesmo construiu, e passa a ser um “estorvo” que atrapalha
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
a sua intimidade. Não se preserva a memória familiar e isso
faz com que as gerações futuras se esqueçam das constantes renúncias que o ancião fez para poder oferecer ao filho
uma boa educação, além de uma infância e adolescência
felizes. Frequentemente, hostilizado por toda a família, é
internado, ou ‘sepultado’, em asilos, onde é esquecido como
uma vergonha para os demais familiares. Esquece-se de
que a coisa mais importante que ele poderia oferecer aos
outros é aquela que não é valorizada: A Sabedoria.
Como abordar os problemas
É urgente que os problemas dos anciãos sejam abordados, contemplados e propostos em sua globalidade:
1. Suscitar em todas as gerações, a consciência e a compreensão do problema fundamental do envelhecimento como
um processo vital, sagrado e significativo;
2. Assegurar que os serviços sociais para os anciões tenham em conta não somente as suas necessidades físicas e
materiais, mas também as necessidades psicológicas e espirituais;
3. Individuar, por meio de investigação, programas educativos, antes e depois da aposentadoria, novas tarefas e
incumbências, iniciativas escolhidas e oportunas para os
anciãos, que lhes permitam uma melhor contribuição à
vida familiar e à comunidade, no contexto das mudanças
econômicas, sociais e culturais. (Síntese da Intervenção da
Declaração da Santa Sé, na 3ª Comissão da 36ª Assembleia Geral da ONU, no dia 13 de outubro de 1981.
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Vozes da distensão política: 1978-1983
Inauguração de uma nova mentalidade
Apresentar uma imagem do ancião, considerado como
pessoa. Que os responsáveis pela comunicação social intervenham em todos os níveis para restabelecer uma reconciliação entre os anciãos e a sociedade. Eles devem,
primeiramente, promover uma cultura do ancião, que considere a vida como um todo, num humanismo pleno, porque cristão, como confirma João Paulo II, na Redemptor
Homoninis, assinalando que é preciso recuperar o ancião, a
sua experiência, a sua presença, respeitando-o não só com
palavras, mas com fatos.
No clima desse respeito fundamental, os operadores
das Comunicações Sociais são convidados a “falar sobre
o ancião” e “saber falar com o ancião”, cônscios de que a
sua vida não é uma vida diminuída, mas uma forma de
plenitude específica, que pode permitir ainda muitas atividades, com riqueza da experiência adquirida. É necessário,
portanto, que os Meios de Comunicação Social deem uma
imagem mais positiva dos anciãos, pondo em evidência o
seu valor real e sua valiosa contribuição à família e à sociedade, sobretudo no que tange ao papel de transmissão
da cultura. Faz-se necessária, também, a produção de programas dirigidos e adaptados particularmente aos anciãos,
para ajudá-los a criar uma opinião positiva sobre si mesmos e suas tarefas específicas.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
O ancião na Sagrada Escritura
Em toda a Sagrada Escritura aparece a veneração à
velhice. Já o Povo de Israel considerava o “Conselho dos
Anciãos”, aqueles que permaneciam nas portas das cidades
para julgar e dar conselhos aos jovens. Algumas citações:
“Cada um de vós respeitará sua mãe e seu pai.” (Lev. 19.3).
“Quem amaldiçoar o seu pai ou a sua mãe deverá morrer.”
(Lev.20,9). “Não desprezes um homem, na sua velhice,
porque muitos de nós envelheceremos”. (Eclo. 8,6). “Não
te afastes do discurso dos anciãos, porque eles mesmos
aprenderam de seus pais e é deles que aprenderás o entendimento, para responderes no tempo oportuno” (Eclo.
8,9). “Honra teu pai e tua mãe, para que se prolonguem
os teus dias na terra que teu Deus te dá” (Ex. 20,12). “Levantar-te-ás diante de uma cabeça encanecida, honrarás
a pessoa do ancião e temerás o teu Deus.” (Lev. 19,32).
“Filho, cuida de teu pai, na velhice, não o desgostes em
vida. Mesmo se a sua inteligência faltar, sê indulgente com
ele, não o menosprezes, tu que estás em pleno vigor” (Eclo.
3,12-13). “Quem maltrata o pai e expulsa a mãe, é filho
indigno e infame”. (Prov. 19,26). “Como é bela a sabedoria
dos anciãos e nas pessoas honradas é reflexão e conselho.
A coroa dos anciãos é uma rica experiência; a sua glória, o
temor do Senhor” (Eclo. 25,5-6).
A veneração dos anciãos evidencia-se, ainda, em muitas
outras citações da Sagrada Escritura. Os jovens são chamados a beber da sabedoria acumulada pelos anos. São os
anciãos que podem narrar as maravilhas de Deus às gerações futuras.
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Vozes da distensão política: 1978-1983
Jaci C. Maraschin
Nossa sociedade capitalista dividiu o comunitário em
compartimentos. Separou os que deveriam estar juntos.
Instalou a incomunicação não apenas no espaço; mas, também, no tempo. Alguns, mais otimistas, falam no “triunfo
do individualismo”. Não se trata, na verdade, de nenhum
ganho. Trata-se, antes, da perda do que nos possibilita a
humanidade. Foi-se o sentido da comunhão, quando se
foi a comunidade. Assim, falamos, primordialmente, em
segmentos da sociedade como se pudessem ser compreendidos nesse isolamento. Falamos nas crianças, nos adolescentes, nos jovens, nos homens, nas mulheres e nos velhos.
Os mais conservadores levantam a questão da “importância da família” e se queixam de sua crescente desintegração.
Mas, de fato, o problema não é esse. A família, solidamente estruturada, não conseguiu, jamais, superar a solidão e a
divisão entre as pessoas. Mais fundamental do que isso é a
organização da sociedade a pesar sobre nós. Dessa organização depende o social, não apenas na sua forma, mas na
sua qualidade.
Fala-se, hoje, em sociedade participatória não em agregado de famílias. Mas, esse ‘novo’ conceito de sociedade
relaciona-se à maneira como os bens de consumo e a força de trabalho são estruturados. A ideia de uma sociedade fundamentada nas intrincadas relações interfamiliares
gerou o que temos testemunhado na nossa História: do
feudalismo ao consumismo competitivo. E a família nada
mais foi do que a farsa da família. A família sempre significou o “chefe da família” com seus poderes absolutistas
e o consequente esquema de segurança para a proteção da
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
propriedade privada. O sistema familiar capitalista que
engendrou a herança como um bem supremo tem sido o
responsável pela instituição dos compartimentos e pelo
isolamento dos indivíduos.
Nesse tipo de sociedade “familiar”, que engendra a herança e desenvolve comportamentos autoritários, nada
mais natural do que privilegiar a força de trabalho e desprezar a mão de obra pouco ou nada produtiva. Os valores
dessa “família” giram em torno da produtividade econômica e toda a força repressiva que se verifica sobre as crianças
e os jovens, nada mais é do que o resultado da ansiedade
causada pelo futuro incerto. Nesse cenário opressor, sobram os mais velhos, como aqueles que não têm mais força
de trabalho e nada mais podem produzir. A família os relega ao que de fato lhes cabe em tal sistema. Sua realidade
passar a ser “incômoda”, como sugere Simone de Beauvoir.
Incômoda para a mão de obra produtiva e incômoda, afinal, para eles mesmos.
Que lhes resta? Às vezes, um ou outro trabalhinho
marginal; mas, na verdade, quase nada. Desligados do comunitário, procuram, ansiosamente, pela comunidade que
lhes fora um dia prometida. Quem sabe, essa comunidade
perdida não poderia ser reencontrada na televisão? Muitos velhos me dizem que a televisão é a sua única fonte
de satisfação. Mas, não é bem assim. Eles esperam, quase sempre, que a televisão (“trabalho” improdutivo) venha
a ser o elo comunitário entre eles e o resto dos que vivem na mesma casa. Claro. Que outra linguagem poderia
aproximar aqueles que não ganham dinheiro, do resto das
pessoas que, afinal, demonstram a sua essência nas cifras?
Quem já não teve a experiência de ser solicitado a se sentar
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Vozes da distensão política: 1978-1983
do lado de uma pessoa de idade para ver um jornal, uma
novela, um filme? A televisão passa a ser uma espécie de
armadilha, que a pessoa idosa se utiliza para tentar estabelecer com os outros o elo perdido. Ela provê a nova linguagem da comunicação, dá-lhe o repertório para o diálogo,
e estabelece certa possibilidade de participação, embora
superficial e, até certo ponto, ilusória.
A maior satisfação que o idoso pode tirar dessa experiência é a de se igualar aos outros, numa atividade que lhe é
permitida pelo sistema e que, pelo menos por algumas horas, confunde-se com a atividade dos que não são velhos.
E, assim, mesmo em face da fragilidade de todos os outros
elos, espera-se uma certa recuperação do comunitário. Assim, a televisão só tem significado, na medida em que se
torna de meio de comunicação de massa que é, num meio
de comunicação grupal, num metameio, talvez se pudesse
dizer. Torna-se numa desculpa para a verdadeira satisfação
humana que não é mais o que se passa no pequeno vídeo,
mas para o que se passa no espaço, no qual alguém mais do
que o velho, também, afinal, se encontra. Dessa maneira,
diminui de importância o conteúdo do programa.
O idoso pode pretender gostar do que jamais gostou
apenas para estar ao lado dos que gostaria de amar. Senta-se na frente dos desenhos inanimados, vê baboseiras
infindas, acompanha os altos e baixos da economia sem
paixão. Sua paixão é tentar uma vez mais a experiência do
encontro humano, o qual lhe é negado, diariamente, por
causa da pressa e da ansiedade dos negócios e da corrida
selvagem em busca do “salve-se quem puder”.
Mas, no fundo, os idosos sabem que não há muito para
esperar. As pessoas que estão na sala vão se retirando aos
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
poucos. Vem o sono e com ele a insônia. Na solidão que se
torna imensa, no pequeno quarto, ainda lhe resta o radinho
de pilha que lhe traz alguma música e lhe povoa a noite de
companheiros substitutos.
O que estou querendo dizer é que, na sociedade individualista, cada um vê televisão, ouve rádio, lê jornal ou
revistas, folheia livros, segundo os seus interesses pessoais
e que, numa tal sociedade, nem poderia ser de outra maneira. É por isso que o idoso não gosta de olhar para o
aparelho de TV sozinho. Não tem muita paciência para
ler. Quando muito, vai ao jornal para tentar saber o que vai
pelo mundo e, quem sabe, num momento propício, arriscar
uma opinião. Liga o seu radinho como um consolo último.
Como consequência desse estado de coisas, em geral,
somos tentados a fazer o jogo do sistema, e perpetuar as
divisões que ele nos impõe. Uma vez que a estrutura individualista prevê o desenvolvimento do individualismo,
nada melhor do que levantar os muros das divisões e fortalecer os divididos. Assim, entre os resultados de tal política, começam a surgir os grupos individuados. Se os velhos
não nos interessam como seres humanos, improdutivos
que, em geral são, bem que poderíamos organizá-los em
comunidades separadas, de tal maneira, que nosso interesse parecesse a eles salutar e que não lhes soasse como
segregação. Na verdade, estamos nos livrando deles. E fazendo com que creiam que os estamos amando. Que tal
ampliar as muralhas e lhes inventar uma televisão “para a
terceira idade”?
Não acredito que se possa resolver a questão da vida
comunitária a partir de uma teoria da vida comunitária.
Nem que se resolva a difícil tarefa da integração do idoso,
96
Vozes da distensão política: 1978-1983
nessa nova sociedade, apenas modificando a programação
das tevês ou criando, digamos, uma imprensa do idoso.
Não que essas coisas não possam ter o seu lugar. Mas, não
para resolver o problema fundamental do individualismo.
A primeira coisa que se pode esperar é que as pessoas envolvidas com política comecem a se dar conta da necessidade da modificação das nossas estruturas sociais, políticas
e econômicas. Em que pese não termos experimentado
ainda a alegria de uma vida comunitária verdadeira, nada
nos impede de sonhar com ela, de tentar estruturar utopias
e, por fim, de fazer experiências que nos levem a arriscar
aquilo que ainda não conhecemos, historicamente; mas,
desconfiamos que seja viável na prática.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
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Vozes da distensão política: 1978-1983
16. Pesquisas em tempo de eleições17
Michel Thiollent
Com o fim do bipartidarismo, a complexidade do pleito
e o procedimento do voto vinculado, manifestam-se grandes expectativas a respeito da reação do eleitorado. Tal fato
está sendo acompanhado pela sistematização e a intensificação do papel da pesquisa de opinião. A pesquisa de
opinião não pode ser tratada como simples técnica de sondagem. Vem desempenhando uma acentuada função política dentro do mecanismo eleitoral e é indissociável das
práticas dos meios de comunicação de massa. A pesquisa
eleitoral funciona em dois níveis a serem distinguidos: a)
o do assessoramento particular dos candidatos ou partidos
e b) o da campanha eleitoral maciçamente “orquestrada”
pelo MCM antes da aplicação da Lei Falcão.
17. BOLETIM INTERCOM nº39. São Paulo: Intercom, set/
out/1982. p.05-07. Bimestral.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
No primeiro caso, a sistematização da pesquisa de opinião
opera como meio de afinar o marketing político. Os resultados
são utilizados, exclusivamente, pelos candidatos ou partidos,
clientes das empresas de pesquisa. O preço dessas pesquisas,
desproporcional aos seus intrínsecos méritos, chega a ser
exorbitante. Uma pesquisa para “candidato a governador
num Estado de porte médio” era estimada em 8 milhões
de cruzeiros em julho de 1982. Além disso, “recomendações e estratégias não saem por menos de 10 milhões”.
(Vejam o artigo de Célia CHAIM, “O grande negócio das
eleições”, in Gazeta Mercantil, Administração e Serviços,
nº 23, julho de 1982, p.8-12). Nota-se, de passagem, que
o faturamento das pesquisas de opinião, feitas em poucos
dias ou semanas supera, em muito, os orçamentos anuais
de fundamentais pesquisas em ciências sociais. Numa noite de Carnaval, gasta-se mais do que no restante do ano
em matéria de cultura popular. Numa véspera de eleição,
gasta-se mais do que no restante dos quadriênios em matéria de pesquisa social. Cada campo tem seus “bicheiros”.
As pesquisas de opinião não estão ao alcance de todos
os partidos de oposição ou de todos os candidatos. As pesquisas representam uma das despesas mais importantes na
campanha eleitoral. Segundo a mesma fonte citada acima:
na campanha, incluindo material promocional e viagens,
2 bilhões de cruzeiros são necessários para a eleição de um
governador, 1 bilhão para senador, 60 milhões para deputado
federal e 30 milhões para deputado estadual. A partir desses
números, vê-se que a prática do marketing político pode dificilmente ser considerado como instrumento de democracia.
No segundo contexto, o papel da pesquisa de opinião,
encaminhada por jornais ou entidades particulares, não
100
Vozes da distensão política: 1978-1983
deve ser considerado em si próprio, e sim, em estreita relação com a organização da campanha pelos meios de comunicação. É preciso destacar os debates entre candidatos na
televisão antes da aplicação da Lei Falcão (sobrevivência
do passado). A função de tais debates tem sido muito importante na formação das preferências nos diversos Estados. A publicação dos resultados de pesquisas-relâmpago,
administradas logo depois desses debates, desempenha um
papel na “corporificação das preferências. Em função de certas táticas eleitorais, os meios de informação podem destacar que x ou y “venceu o debate” ou tem maiores chances de
liderar a votação. Os resultados das perguntas sobre preferências podem ser “manipulados’ por meio de notícias, nas
quais não é destacado o número de indecisos ou o eventual
rebaixamento devido ao voto vinculado. Além do mais, a
representatividade das amostras de pesquisas-relâmpago,
feitas na hora, é mais precária do que a das amostras de
pesquisas mais abrangentes. As perguntas relativas ao fato
de saber “quem venceu o debate” são extremamente manipuláveis, tanto ao nível da situação da entrevista quanto
ao da interpretação dos resultados. A noção de “vencer o
debate” é vaga e sujeita a várias interpretações. Por isso, é
chave na administração dos efeitos de persuasão. Por parte
de certos grupos políticos influentes, na imprensa, a utilização das notícias sabre a questão do “quem venceu” está mais
relacionada a certas jogadas diretas, a fim de promover o candidato x, ou indiretas: promover, momentaneamente, o outsider z
para enfraquecer o principal adversário y do candidato x apoiado pelo grupo considerado.
Esse tipo de jogada tende a se desenvolver justamente
na nova conjuntura diferente do bipartidarismo. Com a
101
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
presença de cinco partidos, a pesquisa de opinião se torna
mais necessária para “dosar” as diversas operações táticas,
de modo a maximizar as chances. O problema é complexo,
na medida em que, entre os partidos de declarada oposição, existem algumas opções intermediárias que escapam
ao dilema situação/oposição.
Além do que precede, levando em conta a presença de
partidos novos, sem eleitorado pré-determinado, e muitos
jovens votando pela primeira vez, o sistema de pesquisa
e informação adquire uma função que não se limita à influência ou à transferência dos eleitores de um partido a
um outro, e sim à constituição do próprio eleitorado. Nesse intenso trabalho de formação das preferências, surgiu
um “novo” personagem: o “indeciso”. Podemos considerar
como sendo altamente positivo e melhor do que nas eleições anteriores, o fato dos meios de comunicação de massa terem destacado a grande proporção de indecisos em
setembro. Isso relativizava as afirmações sobre quem iria
vencer ou ser vencido. Agora, as pesquisas de circulação
restrita focalizam a questão de saber como “conquistar” ou
“seduzir” esses “indecisos”, dentro da prevalecente visão
mercadológica.
O mecanismo constituído pelo debate, na televisão, seguido pela pesquisa de opinião, cujos resultados são utilizados
corno instantâneo feedback das performances dos candidatos no vídeo, possui um potente fator de espetacularização da
vida política O verbo é ação sobre o eleitor e o cômputo das
vagas reações verbais de uma amostra às vagas retóricas dos
candidatos é utilizado a consolidar os efeitos comunicativos
em tendências. Tudo isso abre um campo de aplicação para
pesquisas especializadas em pragmática da comunicação.
102
Vozes da distensão política: 1978-1983
Além dos efeitos imediatos de promoção de candidatos, a pesquisa, no seu contexto comunicativo, exerce um
efeito de mais longo alcance ao nível da representação da
vida política. É muito conhecido e fato de que, na chamada “cultura de massa”, em particular aquela difundida
pela televisão, as pesquisas de audiência desempenharem
um papel conformizador na concepção dos programas e
contribuírem para rebaixar seu nível. Na cultura política, é
provável que haja um fenômeno semelhante. As pesquisas
feitas dentro da concepção do marketing político tendem a
rebaixar o nível da argumentação e a fazer depender as escolhas coletivas da capacidade verbal ou mímica dos candidatos, em vez de uma efetiva abordagem dos problemas
da coletividade e de sua mobilização.
Da mesma forma que as práticas ibopianas contribuem
para uniformizar as telenovelas, as práticas gallupianas podem tender a uniformizar a propaganda e outras práticas
eleitorais dos diversos partidos. Muita gente acha que toda
essa concepção é “moderna” e “progressista”; mas, no fundo, trata-se de uma simples extensão da “moral” do comércio ou da mercadoria no campo da política.
Alguns dizem que a pesquisa de opinião promove os
ideais da democracia ocidental. As decisões resultariam
da preferência da maioria. Segundo a Gazeta Mercantil,
Administração & Serviços: “Há 40 anos, o IBOPE ouve
pessoas de todas as classes sociais, fazendo com que elas
influam nas decisões” (número citado, paina 13). É preciso
desmistificar esse tipo de ilusão.
Devemos reconhecer que a representação mercadológica da vida política, em que vários partidos disputam os
eleitores com os mesmos métodos com que os fabricantes
103
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
de sabonetes disputam o mercado, pode ser julgada superior à representação monolítica e autoritária própria dos
regimes de força. No entanto, essa representação não deve
ser confundida com o que poderia ser uma realidade democrática. Isso constitui mais um importante problema a
ser estudado do ponto de vista da comunicação.
As pesquisas de opinião e sua exploração informativa
formam um círculo, no qual é constantemente “reciclada”
a opinião pública em que se propagam elementos daquela representação da vida política mais “democrática” que,
aparentemente, todo mundo tem vez nas decisões. Tal representação tende a minimizar a permanência dos mecanismos antidemocráticos e poder econômico-político das
pequenas minorias. Numa próxima campanha eleitoral, se
houver findada a Lei Falcão, todos os mecanismos aqui
apontados irão se desenvolver até o dia da eleição.
Existem alternativas? No sistema de pesquisa e informação vigente, os argumentos das lideranças são moldados e divulgados, a partir das opiniões das massas passadas
no nível da doxocracia num clima de bastante passividade.
Como alternativa, talvez, seja possível planejar, em escalas
mais limitadas, certas formas de pesquisa-ação associada
à propaganda político-partidária. O PT de Santos parece
ter experimentado algo nesse sentido. No futuro, com mais
preparo, talvez, sejam possíveis novas formas de intervenção.
104
Vozes da distensão política: 1978-1983
17. A derrota da farsa18
Carlos Alberto Medina,
Maria Helena Khuner e Marco Morel
Carlos Alberto Medina
Total silêncio nos MCMs quanto aos detalhes. Uma
informação superficial da ocorrência, uma efetiva incompreensão da reação popular numa campanha eleitoral, uma
autoconfiança imperialista da TV Globo.
Para compreendermos o fenômeno, temos de examinar
alguns fatos anteriores.
A propaganda da reunião da Quinta da Boa Vista foi
colocada na TV em época em que a Lei Falcão comandava o espetáculo. Seu anúncio, portanto, era de uma festa
popular, similar a outras que têm ocorrido, naquele local,
sempre com presença maciça de público. Havia, portanto,
18. BOLETIM INTERCOM nº40. São Paulo: Intercom, nov/
dez/1982. p.03-09. Bimestral.
105
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
uma manipulação não expressa, a de transformar aquela
reunião no comício final do PDS, no Rio, com a presença
do Presidente Figueiredo.
As tentativas de burlar a Lei Falcão, por parte do candidato do PDS ao governo, já eram notícias, como a publicidade de seu livro sobre o Rio, utilizando-se de imagens e
música de sua propaganda eleitoral. Esse aspecto de “burlar” já era do domínio público, junto com a enorme quantidade de dinheiro aplicada na campanha, com outdoors,
cartazes e outras parafernálias. Mas, a população pobre,
o chamado “povão”, já tinha se decidido, nas prévias eleitorais, pelo candidato da oposição que se expressava com
“credibilidade”.
A ocorrência da Quinta sem de ser vista dentro deste
contexto. A massa popular ali presente tinha o seu candidato e estava ali para participar de um espetáculo gratuito,
a que estava acostumada. No momento em que verificou
ser objeto de uma manipulação, reagiu com violência verbal em coro num comportamento estranho ao evento. Assim, usaram o lago ali existente para tomar banho – em um
dia de extremo calor – e para jogar água sobre os políticos
que ali se apresentaram para discursar.
Assim, as vaias e as frases lançadas contra a esposa do
Presidente, D. Dulce que, ao ser apresentada pelo locutor – membro da equipe do programa diário vespertino da
TVS –, “e agora a gatinha...”, foi chamada por nome que é
aplicado a mulheres que usam os homens procurando tirar
vantagens destes. E quando o Presidente e o candidato a
governador, pelo PDS, apresentaram-se, foram estrondosamente vaiados, tiveram suas mães xingadas e não conseguiram falar seus discursos, tal a força em que era gritado
106
Vozes da distensão política: 1978-1983
o nome do candidato adversário, Brizola.
A massa populacional presente bloqueou, também,
qualquer outra interpretação possível. Não há como organizar uma manifestação desse tipo – vaias ao Presidente
– com um número tão elevado de pessoas. Geralmente,
quando isso ocorre, são grupos pequenos, bem localizados,
que tentam tumultuar. A vaia da Quinta foi uma manifestação coletiva global. E não seria possível dizer ser ela obra
de “agitadores”.
A violência verbal foi de tal ordem que o silêncio se
impunha, silêncio este que é hoje de palavras e imagens.
Quando todos esperavam que a TV Globo mostrasse, no
“Fantástico”, as cenas do espetáculo da ‘Quinta’, o que se
viu foi menos de um minuto de transmissão de imagens
que, mesmo assim, burlaram a Lei Falcão, mostrando o
candidato a governador ao lado do Presidente.
Somente, no dia seguinte, é que os jornais noticiaram o
que havia ocorrido, obrigando a população a, novamente,
ficar a reboque dos fatos. Pois, um fato é certo hoje: a televisão tem a importância da comunicação imediata, colocando o espectador dentro do acontecimento, no momento mesmo em que este acontece ou imediatamente depois.
Por isso mesmo é um instrumento de comunicação altamente arriscado para o poder. A Democracia nos meios
de comunicação é um dos elementos a serem alcançados,
sob pena de vermos existir duas formas de exercício do
poder. Uma autoritária sobre a TV e a outra democrática,
em nível de material impresso, cujo ritmo de acesso é mais
barato e pluralista.
A festa da ‘Quinta’ era notícia. A vaia era material de
transmissão imediata. Mas, tornou-se segredo de Estado.
107
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Quem lá não esteve, não pôde participar com sua emoção
e seu sentimento, pôde apenas, no dia seguinte, usar sua
inteligência e razão. A força da TV está exatamente nesta
capacidade de pôr em ação o ser humano todo em seus
afetos e suas capacidades intelectuais. Como ocorreu nos
últimos dias de março de l964, no Brasil, ou na invasão
militar russa na Tchecoslováquia, em 1968, ou na primeira
descida do homem à Lua, ou quando do assassinato do
jornalista, na América Central, ou da guerra do Vietnã e
da fuga dos norte-americanos, em helicópteros, de Saigon
ocupada. O impacto da imagem, no momento da ocorrência, permite que cada pessoa forme sua opinião a respeito
do assunto, donde o surgimento de uma opinião pública
com domínio dos dados de fato.
A vaia na ‘Quinta’, se mostrada na TV, teria tal impacto
que, certamente, poderia modificar o rumo dos acontecimentos eleitorais. Mas, para nós, bem mais significativa da
discussão do instrumento de comunicação que é a televisão. No Brasil, estamos distantes das potencialidades dessa
tecnologia. Estamos ainda vivendo o domínio do sistema
da Rede Nacional, que é antidemocrática, mais ainda, pela
ênfase nas programações pré-elaboradas em vídeotape, em
que o controle das imagens fica a cargo de um grupo seleto. A TV a cabo, par exemplo, tem possibilidades democráticas de participação que podem romper o predomínio
das Redes. Mas, sobre isso não temos uma luta por uma
legislação adequada, nem vemos qualquer dos governadores eleitos se preocuparem com um problema de tal envergadura em suas declarações.
É sabido que a tecnologia eletrônica é o nosso futuro.
Mas, no Brasil, ainda vivemos uma realidade autoritária
108
Vozes da distensão política: 1978-1983
que quer gerar as imagens que considera convenientes para
o grupo no poder. Tem, entretanto, como resposta concreta, a vaia da ‘Quinta’, que mostra um povo que sabe o que
quer. E este povo pode ser considerado pelas autoridades
constituídas como não merecedoras de sua confiança.
Aqui, lembro-me de uma declaração de Brecht, em 1953:
“Aconselho ao Partido e ao Governo de se desembaraçar
desse povo e procurar um outro”. O povo da vaia da ‘Quinta’ é o exemplo de um povo que quer os seus direitos e suas
liberdades de expressão.
Maria Helena Khuner
Geral. De toda a população do Rio de Janeiro, que se
mobilizara ostensivamente na escolha de seus candidatos
e, agora, acompanhava, ansiosa, os resultados. Mas estes,
aos três dias de urna apuração que se previra acabar em
cinco ou seis, apresentavam apenas um quadro caótico,
com números, falas, interpretações e depoimentos desencontrados e contraditórios, que suscitavam uma visível e
generalizada inquietação.
O Tribunal Regional Eleitoral não liberara ainda nenhum boletim oficial; o Jornal do Brasil e a Rádio Jornal
do Brasil, que haviam montado seu próprio sistema de
apuração, anunciavam como vencedor Leonel Brizola, creditando-lhe 34,1% dos votos contra 29,5% do candidato
do Governo, Moreira Franco (o que confirmava as prévias
eleitorais e pesquisas feitas pelo IBOPE e o GALLUP);
os delegados e fiscais dos partidos, que acompanhavam as
apurações e iam registrando seus dados, confirmavam essa
109
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
vitória, que ia sendo reconhecida pelos demais partidos
(PMDB. PTB e PT) e divulgada por todas as emissoras
de rádio e TV (Rede Bandeirantes, Rádio Tupi etc.) o 3º
candidato, Miro Teixeira (PMDB), enviava telegrama a
Brizola: “Receba meus cumprimentos pela inequívoca vitória”.
No entanto... em toda a Rede Globo (TV Globo, jornal
O Globo e Rádio Globo) divulgavam-se, insistentemente,
boletins que davam a vitória ao candidato do Governo ou
mostravam um virtual empate que, se desse diferença pró-Brizola, seria apenas de 4 ou 5 mil votos; o 2º (?) colocado, Moreira Franco, declarava: “Ainda é cedo para fazer
previsões. Tudo indica que o resultado virá depois de uma
grande disputa”. E afirmava que “sairia vitorioso por uma
margem de 70 mil votos”; afirmação essa que coincidia
com projeções do âmbito do governo federal, que “ainda
consideravam possível a vitória de Moreira Franco... por
uma diferença de apenas 1% dos votos” (Coluna do Castello, JB, 19/11); ou com declarações do coronel Venturini,
em entrevista à rádio, no Dia da Bandeira, considerando o
Rio de Janeiro entre os estados em que o Governo ganharia a eleição.
Em quem acreditar?
O clima tornara-se mais tenso desde que a Assessoria
de Imprensa do PDT divulgara nota denunciado “irregularidades no lançamento dos resultados das apurações nos
mapas oficiais”, ao mesmo tempo em que os delegados
dos partidos reclamavam da “deficiência de informações”
e pediam “acesso às salas de totalização e ao computador”.
110
Vozes da distensão política: 1978-1983
Enquanto isso, na TV Globo, um juiz eleitoral negava a
presença de elementos armados, em trajes civis, nas salas
de apurações – fato presenciado por muitos e denunciado,
publicamente, por uma repórter. E Carlos Eduardo Novaes, com sua ironia, comentava: “Será que, além do voto, a
apuração agora também é secreta?”
À boca pequena, nas casas, nas ruas, em todos os lugares, cresciam os boatos e murmúrios: “Brizola ganha, mas
não leva... Os militares não vão deixar que tome posse”
etc... E o humor carioca não deixa de se fazer sentir: o
computador da Globo que teimava em apontar a dianteira
de Moreira Franco, contrariando todas as prévias, pesquisas, projeções e demais apurações, ganhou logo um apelido: “Moreirão”... Mas... seria cômico se não fosse sério. E a
seriedade desses fatos não escapava a ninguém, mantendo
a tensão que levou à fala do próprio Brizola: “Os boletins
divulgados por uma emissora de TV desmerecem o eleitor
do Rio de Janeiro. Peço serenidade a todos que nos acompanham. Que não se deixem inquietar pelas notícias que
estão sendo veiculadas porque, ao final, a vontade do povo
será soberana e respeitada”.
Reação: as denúncias
Com o desenrolar dos fatos, vai “clareando um panorama mais cheio de dúvidas políticas [...] que de dúvidas
reais” (Coluna do Castello, JB, 19/11). Brizola reúne a imprensa estrangeira, no Hotel Glória, e denuncia: “A essa
altura e com as avaliações que realizamos estamos confiantes que venceremos com diferença de mais de 2013 mil vo111
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
tos... Os indícios de irregularidades são muitos e verificamos que 25% dos mapas contêm imperfeições e vários são
preenchidos a lápis... Confiamos na lisura dos juízes; mas,
nesse clima tumultuado que se criou, no RJ, tememos que a
fraude venha a se desenvolver”. No mesmo dia, em entrevista à TV Globo, afirma: “Só a fraude ameaça nossa vitória”.
Sua denúncia provoca reações indignadas: “Não vi e
não li a entrevista [...], mas acho que Brizola é um incendiário” (Délio Jardim de Matos, Ministro da Aeronáutica): sua
denúncia é “impatriótica”, (Coronel Venturini); é “chantagem
sobre a opinião pública, o TRE e o próprio processo democrático... demonstração de desespero... Se tiver prova da fraude,
que venha a público e apresente (Moreira Franco, na TV Globo. Para ele, as apurações estão “em ritmo normal” e “é ainda
prematuro apontar o futuro governador fluminense”...).
No entanto, fatos novos, vindos à tona, vão permitindo
desmistificar tais afirmações: aos trabalhos de computação do JB somam-se os do grupo de professores da PUC,
contratados pela assessoria de Brizola para o mesmo fim,
com idênticos resultados; os partidos, PMDB, PDT e PT
pedem ao Presidente do TRE a realização de uma auditoria técnica na Proconsult – a empresa encarregada da
computação oficial – iniciando-se, assim, o processo que
culminaria com a descoberta de seu “erro técnico” – processo, cujos detalhes, cada vez mais surpreendentes, vão
comprovando o que toda opinião pública já suspeitava...
Em suma, em termos de fatos, a 21/11, tem já Brizola condições de assumir, publicamente, a condição de governador eleito do Estado do Rio de Janeiro, apesar dos
adjetivos – “carbonário”, “incendiário” – que lhe são seguidamente dirigidos por algumas fontes militares ou das
112
Vozes da distensão política: 1978-1983
declarações explícitas do General Euclydes Figueiredo”:
“A eleição de Leonel Brizola é um sapo que a gente engole, digere e na hora certa expele (?...). E, enquanto ainda
acompanhamos, entre estarrecidos e incrédulos, os detalhes sobre a Proconsult, a denúncia do Senador Roberto
Saturnino, na tribuna do Senado, vai permitindo entender
melhor o que se passou, especificamente, em termos da
Rede Globo e seu papel em todo esse processo.
A desinformação a serviço de...?
Após comentar a declaração do General Figueiredo
e relatar “a manipulação dos resultados” feita pela Rede
Globo, o Senador Roberto Saturnino acrescenta: “Não há
precedentes numa campanha de desinformação da opinião
pública a respeito dos resultados da eleição como esta que
foi feita pelo Sistema Globo. O que ele fez é uma vergonha para o jornalismo brasileiro; é uma vergonha porque
computavam só os resultados que favoreciam aos candidatos do PDS e guardavam, nas gavetas, os boletins que favoreciam o candidato do PDT, para que o do PDS pudesse
sempre ser apresentado na frente”.
O que se passava fica claro, a partir de uma carta de
Iram Frejat, Editor da ‘Cidade’ de O Globo, coordenador dos trabalhos de apuração das eleições para o jornal
– carta em que se comprova a lisura (mas, também, uma
certa ingenuidade...) dos profissionais empenhados nesse
trabalho:”... A partir das 16h, oito horas após a abertura
das urnas em todo o Estado, começamos a nos preocupar,
seriamente, com a falta de boletins da Capital, em que
113
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
tínhamos Juntas Apuradoras a apenas dois quilômetros
da sede do jornal... Às 19h, o Chefe da Redação, o Gerente do CPD e eu fomos convocados pelo Vice-Presidente do Globo, João Roberto Marinho, para explicar as
razões do atraso dos boletins do Rio – a esta altura, por
telefone, ônibus e aviões, chegavam dezenas e dezenas de
boletins do interior ( – grifo nosso), dos mais próximos aos
mais longínquos municípios do Estado... Ao que parece o
próprio TRE recebeu os boletins da mesma forma, pois,
desde seu primeiro boletim oficial, Moreira Franco está à
frente para governador – (O Globo, 25/11).
Ou seja, como assinalou o Senador Roberto Saturnino,
aí se reconhece “uma certa incompetência na coleta dos
dados que teria resultado naquela apresentação deformada”. E acrescenta aceitar que o Senhor lram Frejat tenha
sido iludido por seus superiores, que lhe traziam aqueles
dados; mas que, “não pode ter havido um simples equívoco, durante tanto tempo e, afinal de contas, cometido
por equipe tão numerosa” (400 universitários do Grande
Rio, 300 do interior, vários repórteres e redatores, 320 digitadores, segundo a mesma carta de Iram Frejat). E conclui: “Havia um propósito e, felizmente, esse propósito se
frustrou. Eu não sei qual seria, não tenho a menor ideia
e não quero especular sobre ele, mas havia, porque seria
inconcebível tomar-se o que foi feito pelo Sistema Globo
como mero equívoco ou algo que tenha ocorrido por uma
coincidência”.
Apesar de tudo, a Rede Globo manteve até domingo
(21/11) tal conduta, mudando apenas quando todos os
fatos, acima apontados, já não mais permitiam dúvidas e
o escândalo da Proconsult e seu “lamentável erro” foram
114
Vozes da distensão política: 1978-1983
assumindo o papel de bode expiatório (ou cortina de fumaça?) de toda a questão.
Revendo esse histórico, poderíamos concluir com Roberto Saturnino: “Estou convencido de que nada disso
aconteceu por acaso. Nem os erros da Proconsult, nem a
manipulação de dados efetuada pela organização Globo.
Mas, por enquanto, ainda não quero avançar nada mais
sobre a questão. Só posso dizer que vamos chegar a desvendar toda essa trama. É questão de tempo”.
Mas, talvez, nem de tanto tempo assim... O que ocorre
a todos é uma mesma pergunta: quem e o que estaria por
trás de toda essa armação da Rede Globo e Proconsult? E,
se no jornalismo brasileiro há os que se prestam a qualquer papel por interesse em servir ao poder, há, também,
os que não só denunciam fatos, como não hesitam em dar
nome aos bois, como o faz Carlos Castello Branco, em
sua memorável coluna, no JB de 28/11: “Não há dúvida
de que tudo isso configura a armação de uma tentativa
de fraudar as eleições no Rio de Janeiro... Resta saber se
houve, por trás dos erros técnicos, má fé ou dolo... Como
se sabe, Governos da Revolução têm sido surpreendidos
por ações terroristas oriundos de seus bolsões radicais. Na
face do ex-presidente Geisel foram atirados dois cadáveres em São Paulo. E uma sucessão de bombas, cujo ponto
crucial se localizou no Riocentro, tentou – desestabilizar
o Governo Figueiredo. Ambos os presidentes souberam
reagir à provocação e restabelecer suas autoridades nas áreas contaminadas. A tentativa de fraudar a eleição Rio de
Janeiro é ação comparável e cabe à Justiça, e não propriamente ao Governo, diligenciar no sentido de investigar as
denúncias...”
115
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Dos fatos, o aprendizado permanente
Agora que as peças desse mosaico já nos permitem perceber mais, nitidamente, uma figura, tal percepção possibilita igualmente levantar algumas considerações: do ponto
de vista político-social, as eleições já representaram, em
si, uma ascensão do poder civil, reafirmando o projeto democrático de abertura por ele impulsionado; com os fatos
vistos, comprova-se a fragmentação, cada vez maior, do
radicalismo militar, confrontado com essa pressão ascendente; evidencia-se, também, cada vez mais, a importância
dos grupos sociais de pressão: o esquema montado não se
desarmou apenas pela iniciativa isolada de Leonel Brizola,
mas por configurar-se uma autêntica reação popular, mobilizada a partir de vários setores representativos: os políticos e partidos – através de seu reconhecimento público da
vitória e da atuação vigilante de seus delegados e fiscais; os
técnicos, sobretudo ligados à informática e à comunicação,
que compuseram os grupos de assessoria e não só identificaram os “erros” como mobilizaram a opinião pública para
o que se passava; essa mesma opinião pública, que passou a manifestar-se não só em “cobranças” diretas à Rede
Globo, como no descrédito de que passaram a ser alvo: no
momento atual, a venda do jornal O Globo caiu em 14% e
a do Jornal do Brasil subiu em 11%... Esses fatos revelam, por
sua vez, a ascensão do próprio social e uma já inseparável ligação político-social: foi a própria base social que se manifestou,
diretamente, através de seus grupos representativos, corroborando mais uma vez as atuais tendências à associação organizada e à participação – tendências que foram, aliás, apelos do
próprio Brizola e estão entre os desafios de seu futuro governo.
116
Vozes da distensão política: 1978-1983
Do ponto de vista dos mecanismos de atuação, há
que se refletir sobre a significação real implícita na atitude da Rede Globo: apurando e divulgando, de início,
só votos do interior do Estado, onde Brizola perderia,
preparariam a opinião pública para uma vitória de Moreira Franco, a ser legitimada através da manipulação
de votos nulos e em branco pela Proconsult, para que
os resultados finais computados garantissem o resultado visado. Atitude que evidencia, mais uma vez, o
papel da informática e da comunicação como meios de
“fazer a cabeça” de toda uma população: o “admirável
mundo novo”, que estaria profetizado a existir, a partir
de “1984”, mostra-se, assim, ameaçadoramente, possível. O que nos obriga a atentar para os fatos que estão
apontando as formas mais eficientes de reagir a essa
manipulação interessada e manipuladora: com uma
ética da informação e da comunicação, de que deram
expressivo exemplo, os profissionais que se empenharam em conhecer e divulgar a verdade dos fatos; com
aquela ascensão do social e seu maior peso político;
com o progressivo movimento de organização e participação pelos quais se expressa a reação popular; em
suma, com um progressivo aprendizado político que vá
dando consciência de que, como diz Carlos Castello
Branco, “afinal, há responsabilidade a ser cobrada dos
que venceram e dos que perderam a disputa eleitoral.
É claro que venceram as forças que representam, em
conjunto, 75% do eleitorado brasileiro. Mas, o poder
continua nas mãos dos que obtiveram 25% dos votos”.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Marco Morel
O comportamento dos jornais diários, no Rio, em relação ao candidato a governador, vitorioso, Leonel Brizola,
merece um pouco das atenções daqueles que se preocupam
em pensar como os conflitos políticos se dão através da imprensa. Durante a campanha e na apuração, a “grande imprensa”
carioca não só refletiu os diferentes matizes de comportamento
das classes dominantes, como foi um importante instrumento
de luta não só destas, mas de grande parte da população. Para
elucidar, nada melhor que um resumido retrospecto.
Campanha
A campanha de Brizola só contou com um veículo próprio cerca de um mês antes das eleições: o tablóide Momento. E em termos de apoio declarado teve, ao seu lado,
uma, digamos, facção do semanário Pasquim. O “surto brizolista”, surpreendendo inclusive os próprios correligionários, começou a se alastrar no velho estilo boca a boca.
Mas, o momento deflagrador foi mesmo a participação de
Brizola nos meios de comunicação de massa, basicamente
nos debates pela televisão, o qual empolgou com seu jeitão
irônico, emotivo, “carioca”, “flamenguista”...
O sempre áulico O Globo, inicialmente, deu discreto,
mas consistente apoio a Miro Teixeira, PMDB, e uma
velada simpatia por Sandra Cavalcanti, PTB. E, na reta
final, o Dr. Roberto Marinho soltou esfuziantes foguetes
pró Moreira Franco, do PDS. Brizola e o PT mereceram
omissão ou ataque deste órgão da imprensa.
118
Vozes da distensão política: 1978-1983
Quanto ao Jornal do Brasil, inicialmente, tinha comportamento semelhante ao seu “rival”. Ou seja, também
apoiava Miro e sorria para Sandra. E, na reta final, deu
destaque para os que estavam à frente nas pesquisas eleitorais: Moreira e Brizola. O comportamento do JB é, de
um lado, o do dissidente que perdeu o canal de televisão e,
de outro, o de setores das classes dominantes que apostam
no projeto da ‘abertura’. Esse órgão conseguiu ainda a simpatia dos eleitores e do próprio governador eleito no Rio.
O Dia, jornal de maior circulação diária no Rio, tido
como aquele que “faz a cabeça do povão”, também teve
seus altos e baixos. Alardeava com gosto e vontade a candidatura de Miro Teixeira, enquanto os demais candidatos
eram omitidos ou escondidos entres as manchetes sangrentas e sexualizantes. Só que, na famigerada reta final, a
briga político-ideológica entre os chaguistas e a chamada
esquerda organizada, no PMDB, fez com que o governador Chagas Freitas retirasse o apoio do jornal para seu
afilhado Miro. E abrindo espaço para Moreira Franco. O
lance, como se diz, pegou mal e correu na boca do mesmo povão. O semanário Hora do Povo que, inicialmente
fez coro com JB e O Globo, em favor de Miro Teixeira,
acabou praticamente sozinho com este, acompanhado da
outra facção do Pasquim.
Na apuração, a atuação das “forças dissidentes”, basicamente Rádio e Jornal do Brasil, em dobradinha com o
grupo Bandeirantes, foi importante. Mas, o que começou mesmo a deflagrar as denúncias contra o “Riocentro
Eleitoral” foi, mais uma vez, a aparição de Brizola na TV
Globo. Intrujão e surpreendente, Brizola trocou alfinetadas com jornalistas vinculados ao poder oficial. Para se ter
119
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
urna ideia de como se desenvolveu esse debate, através dos
jornais diários, nada melhor que algumas citações:
No dia 20 de novembro, quando os resultados já deviam
estar apurados, a manchete do JB era: “Vantagem de Brizola é de 119 mil votos”, enquanto que O Globo ostentava
duas chamadas na primeira página em relação ao caso. A
primeira: “Délio diz que Brizola é incendiário”. A segunda
trazia um lead longo e confuso (o que foge ao hábito deste
jornal), misturando cifras do interior, capital e periferia,
destacando percentagens de zonas eleitorais isoladas e não
afirmando quem estava na frente.
Nesse mesmo dia, numa notinha da página oito do
mesmo O Globo, o candidato ao governo pelo PT, Lysâneas
Maciel, dava seu recado: “o jornal O Globo, a TV Globo e a
Rádio Globo insistem em mistificar a opinião pública através de evidente manipulação de resultados”. E, nesse incerto
ritmo, a coisa foi indo. Até que no dia 26/11/82, o Jornal do
Brasil destacou: “TRE admite que errou boletins e vai reprogramar computador”. Nesse mesmo dia, O Globo noticiou
apenas fatos corriqueiros, enquanto O Dia, em letras garrafais:
“2 Cadáveres no Carrinho de Mão”, para dizer, na página 10,
que Brizola faria uma equipe de transição... No dia seguinte,
27/11, mais um pedaço da ponta do iceberg foi aparecendo,
segundo o JB: “Proconsult pressionou apuração do JB”.
A suspeita da empresa encarregada da computação dos
votos, no Rio, tentou, ostensivamente, realizar pressões políticas e econômicas, querendo induzir a empresa jornalística a mudar o rumo de seus noticiários. A manchete de O
Globo, nesse mesmo dia, beira o surrealismo: “TRE admite
erros, mas diz que os números estão certos”.
A Falha de São Paulo, do dia posterior, 28/11, era bem
120
Vozes da distensão política: 1978-1983
mais explícita, contendo um artigo intitulado “O Novo Riocentro”, em que se dizia que “Lancetado pela imprensa escrita,
abriu-se, finalmente, o abscesso que começou a ser identificado tão logo começaram as apurações no Rio de Janeiro.
Conclusões
Os dois jornais de maior circulação, O Dia e O Globo,
não tiveram seus candidatos eleitos. O Jornal do Brasil, bem
comportado e, por vezes, irônico, porta-voz de setores burgueses, manteve, durante o referido período, postura constante: atacando a União Soviética, elogiando o Presidente
Figueiredo e a “abertura” e se abstendo ou poupando Brizola
de ataques. Este, por sua vez, constantemente elogiava o JB.
São raros os casos, na América Latina, da utilização
dos meios de comunicação de massas por grupos ou forças com algum caráter contestatório. E as escassas vitórias
são conseguidas apesar de tudo. Ou, então, aqueles meios
são colocados em parte a serviço de causas ou grupos que,
eventualmente, conseguem algum poder. E nada melhor
para uma reflexão sobre esSes aspectos do que a desconcertante vitória do governador Leonel Brizola, nas recentes eleições no Rio de Janeiro. E, aí, mais um fenômeno:
apoiado, no momento eleitoral, pelo chamado “arco da
sociedade”, desde significativos empresários, passando por
largos setores de classe média e com forte penetração nas
camadas populares cariocas, Brizola conseguiu, apesar da
vontade dos proprietários dos grandes jornais, como que
penetrar, romper e garantir o próprio espaço. E agora? O
sapo será digerido?
121
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
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Vozes da distensão política: 1978-1983
18. A Igreja e a NOMIC19
Frei Clarêncio Neotti
Se há um campo científico moderno em que a Igreja
procurou não se alhear, é o da Comunicação. A própria
expressão “Comunicação Social” é criação da Igreja. Ela
pode ser criticada por não usar adequadamente os MC,
mas faríamos injustiça se não víssemos o grande interesse
com que acompanhou o nascimento e o desenvolvimento
dos modernos MC e das diferentes teorias, pesquisas e políticas em torno do fenômeno da Comunicação.
Um dos 16 documentos do Concílio é todo sobre a
Comunicação (1963), em que a Igreja acentua o direito à
informação como um direito intrínseco à sociedade humana, tanto individual quanto comunitariamente (inter Mirifica, 5). A partir desse Documento, muitas Conferências
19. BOLETIM INTERCOM nº41. São Paulo: Intercom, jan/
fev/1983. p.44-49. Bimestral.
123
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Episcopais se detiveram sobre o tema da Comunicação,
mesmo porque todo e qualquer tipo de comunicação está
relacionada à missão primeira da Igreja, que é evangelizar;
a Conferência Latino-Americana de Puebla disse com
clareza: “Evangelizar é comunicação” (n.1063). E a Conferência de Medellín, em 1968, já apontava para o que,
pouco mais tarde, seria o ponto central do movimento em
torno da Nova Ordem Mundial da Informação: “Muitos
desses meios (de comunicação) estão vinculados a grupos
econômicos e políticos, nacionais e estrangeiros, interessados em manter o status quo social” (16,2).
A Carta Magna da Igreja, no campo da Comunicação,
é a Instrução Pastoral Communio et Progressio, elaborada
pela Pontifícia Comissão para os Meios de Comunicação
Social, criada por Paulo VI, por determinação do Concílio
e publicada essa instrução em maio de 1971. Embora ainda não se use a terminologia da Nova Ordem Mundial da
Comunicação, dentro dos princípios conciliares:
- fala do acesso e da participação de todos os processos
de comunicação (cf.n.34), apontando a contradição que há
em falar em direito à informação e não permitir ao povo o
acesso à diversidade das fontes da informação.
- falar do direito que tem o receptor de proteger-se contra a
comunicação manipulada, distorcida ou errônea (cf.n.41).
- Discute o conceito de notícia (cf.n.17).
- pede que as convenções internacionais procurem estabelecer uma comunicação equitativa, sem monopólios, para
que “todos os povos tenham um lugar conveniente no diálogo universal” (cf.n.91).
124
Vozes da distensão política: 1978-1983
- pede um novo código – de normas positivas – “que regule
todo o processo da comunicação social” (n.79).
Em 1973, na reunião de Argel – quarta reunião dos
Chefes de Estado não alinhados – declara-se que os países
em vias de desenvolvimento devem empreender uma ação
comum, no campo das comunicações, e assumir como uma
das principais metas “a reorganização dos atuais canais de
informação”, que foram qualificados como “legado de um
passado colonial, que obstaculizam as comunicações livres,
diretas e rápidas dos países entre si”. Dessa reunião em
diante, o tema não mais saiu da pauta. Na América Latina,
há uma longa história em torno da NOMIC.
Volto ao meu tema específico. A União Católica Internacional de Imprensa – UCIP – órgão ligado à Secretaria de Estado do Vaticano, discutiu muito a NOMIC
nos círculos de estudo, durante o Congresso Internacional
de Viena, em outubro de 1977. Acompanhei de perto os
debates, tanto os pontos de vista dos europeus quanto dos
jornalistas católicos do Terceiro Mundo. Não havia clareza sobre o que pretendia a nova ordem. Faltava clareza
política, clareza ética, clareza econômica, clareza de terminologia. Daí a decisão do Congresso em apenas fazer
recomendações. E fez quatro:
1. A UCIP reafirma o apoio ao conjunto de preocupações
da UNESCO, especialmente em torno da liberdade de informação, do direito à educação e à alfabetização. O congresso constata com viva satisfação a coincidência entre o
propósito da UNESCO (expresso em Nairóbi) e a intenção da UCIP em revisar a atual ordem da informação.
125
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
2. O XI Congresso Mundial da UCIP pede a todos seus
membros que se comprometam na pesquisa da nova ordem internacional da informação e mobilizem todas as
forças da opinião pública nesse sentido.
3. O Congresso deseja que a UNESCO se beneficie da
colaboração das Organizações não- governamentais, tanto
internacionais quanto nacionais.
4. UCIP deseja associar-se ao grupo da UNESCO que
pesquisa, nesse campo, sobretudo, deseja participar da Comissão Internacional encarregada pela Organização para estudar o
conjunto de problemas da Comunicação em escala mundial.
Em fevereiro de 1978, o Congresso da UCIP, reunido
em Munique, agradecia à UNESCO por haver designado um membro do conselho para perito na Comissão Internacional de Estudos dos problemas da Comunicação e
falava de um “recente e frutuoso encontro”, em Paris, do
Secretário da Comissão Internacional com os dirigentes
das Associações Católicas Internacionais dedicadas à Comunicação: UNDA, OCIC e UCIP.
Nessa mesma reunião, o Conselho convocou todos os
jornalistas católicos, tanto os que trabalham na chamada
“imprensa católica” quanto os que trabalham na chamada
“grande imprensa”, a pôr em evidência a necessidade de
uma nova ordem internacional da informação (NOII) e
pedia uma atenção especial e constante às notícias provenientes dos países em desenvolvimento, devendo receber o
mesmo tratamento das notícias internacionais.
Em novembro de 1979, é publicado o Relatório McBride, resultado da comissão criada em 1977, em consequência
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Vozes da distensão política: 1978-1983
da reunião de Nairóbi, em novembro de 1976. Os debates se multiplicaram necessariamente. A UCIP preparava
seu Congresso Mundial, em Roma, para fins de setembro
de 1980. Os documentos preparatórios lembravam que
UCIP devera definir uma posição, que não seria simplesmente assumir uma das tendências, mas abrir um caminho
marcado pelo ideal cristão da justiça e da solidariedade.
Antes, porém, do Congresso, em 2 de junho, o Papa João
Paulo visitou a UNESCO e um tópico do longo discurso
que pronunciou, disse textualmente: “Os MC não podem
ser meios de dominação por parte dos que têm o poder
político ou o grande poder econômico, que impõe seu programa e seu modelo. Os MC devem tornar-se o meio – e
que meio importante! – de expressão da sociedade que deles ser serve e os mantém... eles não podem submeter-se
ao critério dos interesses...”
E, durante o Congresso mundial, em Roma, na audiência que o Papa concedeu aos jornalistas católicos, na Sala
Clementina, foi ainda mais explícito: “Vós procurais uma
nova ordem mundial da informação e da comunicação. A
igreja deve participar dessa procura”. Nas conclusões do
Congresso, afirma-se: “Continuando a reflexão começada
no congresso de Viena, a UCIP afirma que a procura de
uma nova ordem mundial da informação e da comunicação está em plena harmonia com a concepção cristã do homem. A NOMIC tem a ver com todos os países, seja qual
for o seu sistema político, econômico ou social. Ela é um
aspecto de uma ordem econômica internacional diferente,
em que fica eliminada a relação dominador-dominado.
Depois de elogiar as condições do Relatório McBride,
sobretudo os parágrafos que dizem respeito à democratização
127
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
da Comunicação e sua integração no processo de desenvolvimento, a UCIP se diz independente, mas interessada em
acompanhar com espírito crítico o desenrolar do processo
de instauração da NOMIC, que seria discutido um mês
depois em Belgrado. Creio que nenhum católico terá dificuldade em subscrever os 11 pontos sobre os quais se basearia uma Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação. Poderíamos passar continente por continente
e veríamos que as Igrejas locais, através de seus organismos
regionais, nacionais, continentais, foram tomando conhecimento do que significava ou poderia significar a NOMIC.
A UNDA/AL, por exemplo, que é a Associação Católica Latino Americana para o Rádio e Televisão, já publicou
seis números de revista Comunicación, todos eles dentro de
um projeto explicitamente chamado “Igreja e Nova Ordem Internacional da Informação”.
A UCLAP – União Católica Latino-Americana de
Imprensa – no seu VII Congresso realizado, em Belo Horizonte, em maio de 1981, considerou a significação política e cultural do debate em torno da proposta de uma
Nova Ordem Mundial da Informação e da Comunicação
e a grande controvérsia decorrente do Relatório McBride e resolveu assumir a liderança do aprofundamento do
tema no seio da Igreja Latino-Americana, em grande parte aberta para o assunto em decorrência lógica do documento de Puebla.
Atendendo às conclusões de Belo Horizonte, a UCLAP
organizou e realizou um seminário em Quito, no Equador,
para 42 especialistas Em comunicação, sobre a NOMIC
e Direitos humanos. Começamos com uma afirmação:
O centro das decisões para a nova ordem não pode ser o
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Vozes da distensão política: 1978-1983
mesmo que sustenta e busca perpetuar a ordem atual, mas
deve ser construído com os pobres e pelos pobres. Daí, ao
mesmo tempo em que dizíamos que a nova ordem só é
possível na medida em que se articule com a vigência plena
dos direitos humanos, víamos na Comunicação alternativa
– nascida do povo e para o povo – os fundamentos daquilo
que, no futuro, pode ser a NOMIC. Isso porque:
- ela altera a concepção de comunicação como uma simples emissão-recepção de mensagem. E, sendo dialógica, é
instrumento para construção de sólidos veículos comunitários e de relações sociais participativas e democráticas.
- rompe o modelo vertical de comunicação que reproduz o
sistema de organização social no qual uma minoria apropriou-se do poder.
- instaura um novo modelo de comunicação no qual as
mensagens surgem e circulam como fruto de organização,
embora incipiente, de protagonistas dialogantes.
- rechaça o modelo que cria um conjunto atomizado de
receptores, como objetos passivos da ação dos emissores.
- ao favorecer o diálogo que se converte num fato educativo, estimula os processos de conscientização, permite a
expressão da própria cultura e da realidade dos grupos e
comunidades, promovendo sua união e sua solidariedade.
Foi, a partir dessa posição, assumida pela UCLAP
que fizemos varias recomendações, inclusive pedindo ao
Departamento de Comunicação do Conselho Episcopal
Latino-Americano que promova um encontro a nível
continental para os bispos e coordenadores nacionais da
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
comunicação da Igreja, para debater o tema da NOMIC,
tomando como base o Documento de Quito. E pedimos
aos profissionais de Comunicação – sobretudo aos jornalistas católicos – que assumam uma atitude de compromisso frente às experiências da comunicação alternativa.
Certamente o Documento de Quito, um documento elaborado por membros ativos da Igreja Católica Latino-Americana, a esta altura já traduzido para o alemão, francês e inglês
e divulgado na Europa, será base para o Seminário que a
UNDA/AL, OCIC, UCLAP, UCBC e Setor de Comunicação da CNBB realizaremos em São Paulo, de 8 a 12 de outubro próximo, precisamente sobre a NOMIC E IGREJA.
A NOMIC interessa de perto à Igreja pós-conciliar
não apenas como teoria, mas sobretudo pela coincidência
ou aproximação de pontos que fundamentam a construção
da nova sociedade que, a partir de Medellín, os Papas costumam chamar de civilização do amor. Cito alguns desses
pontos (me servindo de Belgrado):
- eliminação dos desequilíbrios e desigualdades entre os
países e, dentro dos países, dos grupos sociais e/ou técnicos.
- eliminação dos efeitos negativos de certos monopólios
públicos ou privados.
- supressão de obstáculos internos e externos que se opõem
a uma livre circulação das ideias e informações.
- liberdade de informar e ser informado, como a de educar
e ser educado.
- respeito pela identidade cultural e o direito de cada nação de
informar sobre seus valores sociais e culturais e suas aspirações.
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Vozes da distensão política: 1978-1983
- direito igual que todos têm de participar do desenvolvimento.
- e isso porque, todos e cada um somos imagem e semelhança do mesmo Deus, nascidos da mesma raiz divina e
destinados à mesma finalidade, portanto, necessariamente
solidários na igualdade de direitos e obrigações.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
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Vozes da distensão política: 1978-1983
19. Cinema e política20
Ligia Averbuck
Depois de sua conturbada estreia, com votos negativos
do Conselho de Censura, Pra frente Brasil, de Roberto
Frias, entrou no circuito regular de exibição, com algumas
restrições da crítica. Se o público tem comparecido em
massa às exibições do filme, que já está em cartaz, em São
Paulo, há dois meses, isso não significa que ele tenha sido
mais apreciado pelos espectadores mais exigentes. E não
é preciso ser crítico radical (e nem mal-humorado), para
ver que, embora oportuno e bem intencionado, o filme não
atingiu o nível de profundidade que o assunto e o momento exigiriam.
Depois dos duros anos de silêncio impostos pelo regime
político brasileiro, com o soprar dos ventos da “abertura”,
20. BOLETIM INTERCOM nº42/43. São Paulo: Intercom, março/
jun/1983. p.23-25. Bimestral.
133
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
nada mais natural que o cinema começasse a procurar fazer o retrato dos anos da repressão, como a literatura já
vem fazendo, há mais de dois anos, com a publicação de
memórias de exilados, cassados e presos políticos. A documentação memorialística brasileira cresceu em volume e
importância, não só pela palavra dos que antes não podiam
falar, como pela das testemunhas de um tempo em que até
falar em Democracia era um ato de extremo risco. Nesse
sentido, o filme de Roberto Farias, ao trazer para o público,
de hoje, a memória de fatos que marcaram um conturbadíssimo e silenciado período da vida brasileira, cumpre um
papel importante: o registro da História é a colaboração
que o cineasta comprometido com seu tempo pode dar.
É exatamente ai, nessa leitura da História, vista não
apenas na sua superfície, mas na verticalidade de suas relações, que Pra frente Brasil perde seu rumo e, de filme
político que poderia ser, apresenta-se como um drama policial, certamente interessante, mas superficial na análise
dos graves fatos políticos sobre os quais discorre.
Trabalhando com bons atores e valendo-se de sua larga experiência de cineasta, Roberto Farias realizou, efetivamente, um filme para as grandes plateias, que seguem,
interessadas, o fio de uma narrativa que tem todos os componentes dos seriados policiais, a isso se acrescentando o
tempero do cenário brasileiro, dos fatos com o selo da História recente e, para completar, o pano de fundo do grande
mito nacional, a luta pala Copa de 70. Tudo isso, em cores
e em ritmo da marcha da Seleção Brasileira de futebol,
dá ao filme a qualidade comercial que o garantem como
programa obrigatório do espectador médio brasileiro, hoje,
muito mais exigente em relação à qualidade técnica do ci134
Vozes da distensão política: 1978-1983
nema nacional. Se o desejo do diretor fosse somente este,
não se teria dúvidas em afirmar que Pra frente Brasil foi
um sucesso de realização. Mas, sabemos (ou supomos) que
Roberto Farias pretendeu fazer um filme político. Tanto
é verdade que a censura brasileira – ciosa de seus deveres
– o entendeu como uma ameaça aos rumos da “segurança
nacional”, confirmando sua habitual falta de largueza. Pra
frente Brasil, que poderia esclarecer o público ao mostrar
as relações entre diferentes segmentos do regime e os jogos
de interesses que se cruzavam, naquele momento, em que
uma parte da reação à Ditadura tentou se organizar pele
luta armada, (com todos os seus equívocos e contradições),
reduz a leitura da História aos acontecimentos aparentes,
silenciando questões graves, caricaturando, a partir de situações pessoais que servem ao entrecho romanesco, mas
não à História, a participação dos grupos que se envolveram na guerrilha urbana e transformando em personagens
sem complexidade, figuras da vida real que estavam no poder naquele momento.
Para ler a História, e narrá-la, se requer não somente
tomar um determinado ponto de vista, mas também, saber
iluminar pontos obscuros, estabelecer contrastes, mostrar
que as relações não são estabelecidas (e definidas) pelas
aparências do real, buscar nos fatos, à primeira vista mais
insignificantes, os pontos que servem para costurar a trama.
Contar uma história, em sua linearidade aparente, significa
trair aos fatos, já que a História se faz nos meandros e nas
contradições. Como mostra Lukács, no seu conhecidíssimo “Narrar ou descrever”, comparando os processos narrativos de Zola e Balzac, “a narração distingue e ordena. A
descrição nivela todas as coisas.” Isso vale, também, para a
135
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
narrativa cinematográfica. Se, ao narrar os acontecimentos
da História, o cineasta não fizer uma leitura que evidencie
os nexos de cada acontecimento com o conjunto maior
das relações, a verdade que ele pretende mostrar torna-se
parcial e destituída de sentido político. Como escreveu o
crítico, “se não se revelam traços humanos essenciais, se
não se exprimem as relações orgânicas entre os homens e
os acontecimentos, as relações entre os homens e o mundo
exterior, as coisas, as forças naturais e as instituições sociais
e, até mesmo, as aventuras mais extraordinárias tornam-se
vazias e destituídas de conteúdo”.
Ensaios sobre literatura
Pode-se lembrar, neste caso, que até mesmo no documentário mais despojado pode o cinema apontar para os
fatos e as articulações que se deve mostrar. A tradição dos
bons documentários tem ricos exemplos nesse sentido, assim como a linha dos filmes políticos, europeus, em que
Costa Gravas é um dos mestres.
É possível que, como afirma Roberto Farias, se o filme
tivesse avançado em outros níveis de fatos, sem o auxílio de
um órgão como a Embrafilme, ele não estaria aí, hoje, para
ser exibido. É certo, também, que sem o texto ambíguo
(mistificador) que antecede sua projeção, a censura não o
tivesse liberado. Tudo isso deve ser considerado. Para além
dessas considerações, porém, permanece uma pergunta: se
o que move um cineasta, ao fazer cinema, é mais do que o
propósito de divertir, ou ‘distrair” o público para o qual se
dirige, se o que ele tem como projeto é uma arte que busca
136
Vozes da distensão política: 1978-1983
a verdade e o compromisso com a História de seu tempo,
valerão a pena as concessões? Afinal, pergunta-se, a quem
acaba servindo este tipo de cinema?
137
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
138
Vozes da distensão política: 1978-1983
20. 1984 - Big Brother e Big Press21
Alberto Dines
“Eu compreendo como; só não entendo por quê”. Assim Winston Smith, o personagem principal de “1984”,
responde ao interrogador O´Brien, do Ministério da Verdade. A perplexidade de Winston se relacionava com o
funcionamento do poderoso sistema de manipulação controlando a vida em Oceania, sob a égide do Grande Irmão. “Mas ele existe mesmo?”, pergunta o ex-contestador,
agora reduzido a um monte de dúvidas. “Claro que existe”. Winston: “Mas existe do mesmo jeito que eu existo?”.
O´Brien: “Você não existe”.
Big Brother, de Orwel, é a personificação do Estado
Totalitário, na mesma acepção em que Mussolini, aparentemente pela primeira vez (na enciclopédia italiana de
21. BOLETIM INTERCOM nº46. São Paulo: Intercom, jan/
fev/1984. p.15-18. Bimestral.
139
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
1932), autodesignou-se como “totalitário”. Ainda que todos
os comentaristas identifiquem o ditador orweliano com
Satlin, ele é, na realidade, um caudilho muito no estilo de
Mussolini, que vive a fantasia do ‘Estado Perfeito’, em que
é o único herói, capaz de incríveis façanhas, adorado pelas
massas e temido pelos adversários. Mas, como o ‘Grande Irmão’ jamais se materializa, ao longo da trama, pode
ser que seja uma das muitas metáforas engendradas por
Orwel para simbolizar o sistema despersonalizador e burocrático imperante em Oceania.
O ‘Grande Irmão’ de “1984” pode ser, também, a Grande Mentira, a Manipulação das Palavras, o Emasculador dos
Significados. A toda ditadura correspondente um processo
de adulteração de linguagem com o objetivo de justificá-la.
O terror adota um sistema de signos destinado a camuflá-lo, capaz de torná-lo assimilável e que, frequentemente,
sobrevive à sua extinção. O conjunto de mistificações da
era stalinista mantém-se, até hoje, e não se pode legar que
seja típico do Comunismo, porque o regime sob Lenin
nem de longe se assemelhava ao do sucessor. Na Argentina, o terror foi deposto, mas a extirpação da mentira só
começará a ocorrer, quando a justiça iniciar, efetivamente, a revisão do que acontece sob o regime militar tanto
no campo da guerrilha quanto da repressão. A imprensa
portenha, cúmplice da impostura – porque a censura jamais prospera onde não existe vocação para ser censurado
– também terá que passar por um processo de revisão que,
aliás, foi deslanchado no exato instante em que começou
a pipocar a nova safra de publicações cheias de viço, descomprometidas com a omissão.
Temos, em nosso cenário político, pelo menos, um par
140
Vozes da distensão política: 1978-1983
de candidatos à Big Brother, caudilhos em potencial, acalentando a fantasia messiânica de resgatar as massas. Mas
o perigo não está neles – consiste na Grande Fraude que
continua implantada, quase incólume, subvertendo valores, palavras e eventos.
Nossa imprensa, apesar de ter sido a veiculadora da
pressão da sociedade civil pela restituição das franquias
democráticas, hoje, de uma maneira geral, continua comprometida com o jogo do poder, produzindo eventos falsos, em que nada ocorreu, ignorando acontecimentos relevantes para torná-los inexistentes – exatamente como
O´Brien com Winston Smith.
Legitimada pelos louros que ainda ostenta da campanha pela abertura política, nossa imprensa, voluntariamente, desempenhe um papel bem menos digno do que
aquele do período da ditadura, justamente porque, hoje,
não está sendo intimada a fazê-lo. Não se trata, aqui, de
ecoar o costumeiro desespero do governador Brizola que,
quando vê escancaradas pela imprensa, as deficiências de
sua administração, arma-se de paus e pedras para punir os
denunciadores. Trata-se, sim, de vocalizar os debates que,
nos últimos meses, toma conta dos meios especializados,
seja nas universidades como nas associações de classes.
Jornal sensível, a “Folha” publicou, na última quarta-feira, pelo menos três comentários em diferentes áreas
sobre a atual performance da imprensa – e não se deu conta
de que é parte desse processo. Essa imagem de marasmo
que a imprensa projeta de um País à beira do abismo não
pode ser atribuída a um prematuro cafard de verão. É uma
forma premeditada de desativar e desmobilizar uma sociedade triturada por uma série de crises concêntricas (a de
141
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
começar pela economia e acabando na de identidade) que
deseja tomar em suas mais as decisões sobre seu destino.
É inútil colocar em clave baixa o fascinante rol de
ocorrência que nos chegam da Argentina, pretendendo estabelecer diferenças entre nós e eles. O leitor de jornais e
revistas – cerca de 20 milhões multiplicadores de opinião
– já percebeu que o que é bom para nosso vizinho deve
ser bom para nós. Há um clamor embutido em cada cidadão informado em favor, não apenas de pleito direto, mas
de um renascimento nacional, semelhante ao argentino.
Essa exigência, no entanto, é filtrada sutil e tenazmente,
chegando às páginas impressas, na melhor das hipóteses,
apenas no tocante à escolha do futuro presidente, o que só
irá ocorrer dentro de 1 ano. A sede de justiça provocada
pela crescente corrupção foi habilmente reorientada e eis
que os réus passaram a ser os marajás das estatais – alguns poucos, como Heitor de Aquino, vivendo realmente
em fantásticas sinecuras – enquanto a gatunagem campeia
solta nas mais altas rodas da República.
E para que a constatação sobre a falência de nossa imprensa em vocalizar com fidelidade os anseios nacionais
por mudanças imediatas não seja feita à base de impressões e sensação, convém examina evidências recentes:
• O que aconteceu com os três assuntos que resultaram
nos últimos prêmios Esso de Jornalismo, a saber: o
caso Baumgarten, os escândalos do BNH e a apuração das últimas eleições do Rio pela Proconsult? Com
exceção de algumas sequelas da Capemi, no episódio
Baumgarten, o resto jaz enterrado. É evidente que ao
governo não interessa que continuem sendo investi142
Vozes da distensão política: 1978-1983
gados. Mas, desde quando uma imprensa sadia e realmente independente deve curvar-se, obedientemente,
à vontade imperial?
• Em que ficou o atentado ao Estadão? Depois de 15
dias de libações promocionais, o assunto sumiu do
próprio jornal-vítima. Num caso de irresponsabilidade, nossos jornais apresentaram o primeiro proprietário do carro-bomba como possível implicado, fazendo
com que o sogro do indigitado morresse de desgosto
e, até hoje, nem a acusação foi retirada, muito menos
outras pistas oferecidas.
• Por que levou tanto tempo para que se iniciasse um
processo legal contra o ex-governador Maluf relativo
ao desvio de dinheiro público? Simplesmente porque, há mais de dois meses, a Imprensa Oficial de São
Paulo procura os jornais locais para dar cobertura às
conclusões de um inquérito interno sobre malversação de fundos em beneficio da campanha eleitoral
do ex-governador e estes jornais tergiversam. E, num
incrível cinismo, tentam converter o denunciador em
denunciado. Primeiro, começaram a discutir as mudanças gráficas operadas no Diário Oficial de São Paulo
e, depois, quando o “escândalo” não pegou, passaram a
denunciar um seminário realizado pela Imprensa Oficial para os funcionários de primeiro escalão num hotel de repouso. Como se esses fatos, irrelevantes, fossem mais importantes do que uma acusação concreta
e comprovada contra um candidato à sucessão que, se
realmente incriminado, torna-se inelegível para a chefia da Nação. Maluf está, hoje, realmente enrascado: o
143
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
homem não deixa impressões digitais, afinal, trabalhou
com luvas. Mas isso já se sabia há dois meses. Os dois
grandes jornais paulistas é que não quiseram tomar conhecimento. Por idiossincrastas, vá lá.
• Enquanto os jornais discutem e tomam partido no
caso do procurador Jefferson, que seria culpado pela
morte do trombadinha Joilson, ninguém se lembra de
que a psicose da violência e a histeria da justiça-pelas-próprias-mãos foi deflagrada pela própria imprensa. A
orquestração para apresentar São Paulo como cidade
entregue aos bandidos, muito bem urdida e executada
por jornais que, antes jamais publicavam casos de polícia, em sua primeira página, é a responsável pela morte
do menor – qualquer que tenha sido o agente que a
tenha executado.
• E o caso do apoio de Geisel às pretensões de Maluf ?
Um repórter político de um matutino carioca (na ausência do titular da coluna) contou, pormenorizadamente, um fim-de-semana, tête-à-tête, entre o aspirante
à Presidência e o ex-presidente. A notícia tão descabida fez com que Geisel abandonasse sua habitual linha
de discrição, convocando uma entrevista coletiva para
desmentir, categoricamente, as informações veiculadas.
Por esta “Folha” ficamos sabendo que o repórter em
questão não presenciou nenhum dos encontros do tal
fim-de-semana, mas obteve as informações de seu diretor, privilegiado morador de Teresópolis. E, como se
sabe, o jornal em questão ostentava, gloriosamente, o
título de ser o único que não aceita as eleições diretas.
Prefere as indiretas, já que tem dois bons clientes com
144
Vozes da distensão política: 1978-1983
os mesmos interesses. Big Brother lembra nome de roqueiro mas não é. Big Brother é um gigantesco e solerte
movimento de defraudação. De tudo – do nosso apetite por mudanças, de nossa disposição de luta, da nossa
capacidade de fazer justiça, de nosso discernimento
para escolher – de bons autores a bons presidentes.
Big Brother é um coronelismo informativo (expressão
empregada pelo prof. José Marques de Melo em sua
tese de livre-docência aproada com distinção há dias
na USP). Big Brother é a alma danada de um regime
que já morreu e não sabe, por isso, continua penando
nos desvãos do poder em busca de privilégios.
• Em “1984”, de Orwel, Big Brother tinha mãos limpas,
não matava. Neste 1984, que para nós começa, há um
Big Brother estropiando nossas vontades e percepções.
Como funciona, percebe-se. Por que tem tanto êxito,
continua incompreensível.
Folha de São Paulo, (18/12/84)
145
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
146
Vozes da distensão política: 1978-1983
• II •
Diálogos da transição democrática:
1984-1989
147
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
148
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
21. Peter Schulman: Cinema e fuzil
Anamaria Fadul e Narciso Lobo22
Peter Schulman, alemão, é uma espécie de “americanist”
do cinema, preocupado com o que ele chama de “cinema
latino-americano”. Ele tem vários trabalhos de pesquisa
sobre o cinema das Américas do Sul e Central. Um papo
de uma hora entre Anamaria Fadul e Peter, que nos permitiu algumas reflexões:
Muito interessante porque, Anamaria acabava de participar, pela segunda vez, do Festival do Novo Cinema
Latino-americano, em Cuba e, na conversa, surge uma retrospectiva do cinema feito em diferentes pontos de uma
América Latina unida pela língua – o espanhol como a
principal – e as maneiras, às vezes, parecidas entre si, às
vezes não, de cada povo injetar características próprias naquilo que faz.
22. BOLETIM INTERCOM nº46. São Paulo: Intercom, jan/
fev/1984. p.25-36. Bimestral.
149
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Peter, autor de dicionário, história, publicados em alemão, também realizou documentário sobre o “novo cinema
latino-americano” (NCLA). Como não poderia deixar de
ser, ele enfrenta a briga com cineastas do Brasil, que contestam o rótulo “cinema latino-americano”. Para a visão de
fora, de quem apenas estuda aquela realidade, talvez haja a
necessidade de generalização do objeto de pesquisa, embora, na realidade, trate-se de um “objeto” bastante múltiplo
de convergências/divergências históricas.
Fica, pois, a problematização que deixa a entrevista:
existe um cinema brasileiro? E boliviano? Peruano? Venezuelano? Salvadorenho? Nicaraguense? O aceitar ou não
aceitar a denominação de cinema latino-americano, boliviano, brasileiro etc., traz que implicações para a produção
fílmica e para o clima da criação?
A sinceridade, o interesse (de Peter), não sugere o americanist caçador de borboletas (apesar de ser inegável a
importância destes), a visão estereotipada do pesquisador
que vem dos chamados países centrais. Ele mais parece
um militante, quando fala dos filmes pela América Latina. Saibam todos, por exemplo, que o cinema e o vídeo
vêm sendo largamente usados nas frentes de luta das forças salvadorenhas, nicaraguenses, enfim, estão todos muito
convencidos da importância tática da utilização de outras
formas de expressão, que não estejam apenas no domínio
da palavra. A entrevista dá conta disso.
Estão todos lembrados, ainda, que foi, após serem mostradas, pela televisão americana, cenas documentais da
guerra do Vietnã, que o povo norte-americano se colocou
frontalmente contra o engajamento do seu país naquela
“guerra suja”. O Brasil, por seu lado, tem a maior indústria
150
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
cinematográfica do bloco; mas, ao mesmo tempo, não domina seu mercado. Apesar de produzir perto de cem filmes
por ano, o intrincado complexo distribuição-exibição faz
com que filmes estrangeiros de baixa qualidade predominem na preferência do público. O movimento não se dá
apenas no território do comercial e do não-comercial.
Assim como estou filmando e gravando vídeos nas
frentes de batalha (vide a importante produção salvadorenha nos três últimos anos), também, no Brasil, toma pé
uma produção marginal que vai do super-8 (enfrentando
sua maior crise) ao vídeo, passando pelo l6mm.
Aurélio Michiles, aproveitando as condições locais favoráveis ao vídeo, elaborou dois importantes documentários sobre a nação saterá-maué, do Amazonas, um povo,
segundo o mito, que nasceu do guaraná e, ao mesmo tempo, deu origem ao guaraná – sim, esse guaraná açucarado
que virou refrigerante – e agora luta para preservar seu território invadido. Em São Bernardo do Campo, o Núcleo
de Memória Popular do ABC produziu, sob a direção de
Luiz Fernando Santoro, o documentário sobre a CUT.
Até mesmo nas TVs comerciais começa um processo
novo, interessante. Fruto até mesmo de uma crise. A TV
Gazeta, por exemplo, uma estação deficitária (pelo menos
em termos de público) deu origem a aluguéis, como o da
‘Abril Vídeo’ e, principalmente, o programa “23ª Hora”,
aos sábados, que representa, em muitos momentos, a ruptura com a TV convencional, hegemônica.
Bianchi, este ano, apresentou seu excelente documentário sobre a morte do líder indígena Cretã, filme que remete
à reflexão sobre a própria construção dele, sem deixar de ser
uma forte denúncia. Lendo, então, a conversa com Peter, fica
151
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
mais próxima de nós a outra América, a “Nuestra América”. O colonizador conseguiu, mesmo, nos separar. Nós, no
Brasil, ainda entendemos um pouquinho o espanhol; mas,
quem disse que um argentino ou um boliviano entendem
uma palavra apenas em português? O papo fica mais fácil
em francês ou inglês. Aí já é outro aspecto.
O certo é que a Comunicação é como aquele cartaz que
apresenta um fuzil ao lado de uma câmera: uma arma que,
da mesma forma que o fuzil, possibilita o ataque e a defesa. Fuzil e câmara emparelhados. Felizmente, acabou-se a
inocência dos tempos da neutralidade do jornalismo. Cada
um tem possibilidade de interferir a seu modo ou trabalhar para o imobilismo. Esta parece ser uma visão positiva
para o espírito de “latinoamerinid”: vê-la no seu conjunto.
P – Como começou seu interesse pelo cinema
latino-americano?
R – Esta é uma longa história, mas que pode ser contada a partir de dois fatos. No ano de 1964, vi alguns filmes brasileiros no Festival de Cinema, de Berlim, como
Os Fuzis, Vidas Secas, Selva Trágica, Deus e o Diabo na Terra
do Sol, estas grandes obras-primas. Percebi que não havia
nada escrito sobre o cinema brasileiro em nosso País. No
mesmo ano, encontrei alguns artigos, entrevistas em revistas francesas e também conheci Nelson Pereira dos Santos,
com quem pude conversar muito sobre o Cinema Brasileiro. Posteriormente, apareceram na Alemanha dois artigos
sobre o cinema brasileiro, escrito por dois alemães que viveram ao Brasil. Tratei, então, de encontrar um dos autores
152
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
que morava perto de minha cidade. Conversamos e ele me
contou muito mais do Brasil, da literatura e do cinema.
Com o material da França, as informações e os filmes que
vi, escrevi, em 1965, o primeiro ensaio cinematográfico sobre o Cinema Novo, para uma revista de Cinema de grande
difusão chamada Cine. Alguns meses mais tarde, o diretor
do Festival de Berlim, chamou-me para perguntar se queria organizar para ele uma primeira mostra de cinema brasileiro na Alemanha, mais exatamente do Cinema Novo.
Gostei muito, porque foi a possibilidade de me dedicar
mais ao assunto e montar o programa. O Itamaraty acabou
por incluir filmes mais comerciais, fora do Cinema Novo,
que não queríamos muito; mas, no final, foi um programa bastante interessante. Durante o Festival de Cannes,
pude conhecer e conversar com Glauber Rocha. Era o ano
de 1977, de Terra em Transe, que me impressionou muito. Com um amigo fizemos um roteiro dos diálogos, com
a explicação dos planos, e reconstruímos o roteiro, plano
a plano. Assim, apareceu o primeiro roteiro de um filme
latino-americano. Nas discussões com Glauber, surgiu a
ideia de fazer um filme documental sobre o Cinema Novo.
Falei com o redator de uma revista de cinema que estava
sendo criada e que havia espaço livre para experiências.
Sua resposta: bom, quantos filmes, quantas partes de uma
série querem fazer? Seis – disse eu. Ele respondeu: quatro. Fizemos um plano de trabalho e depois fomos tratar
do financiamento para ir ao Brasil filmar. Meus primeiros
documentários foram feitos em 68, sem conhecer de perto
uma câmara ou ter outras experiências cinematográficas.
Era uma tarefa muito difícil, mas ao mesmo tempo muito rica. Acredito que o resultado, para quem não estudou
153
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
cinema, era bastante aceitável. São quatro documentários:
na primeira parte, apresenta-se a história cinematográfica, no Brasil, desde suas origens até Porto das Caixas; na
segunda parte, analisei seis filmes distintos, em que mostramos somente sequências dos filmes mais importantes,
para analisar a poética, a ideologia e a arte com intenção
política. A terceira parte tratava das dificuldades vividas
naquela época. Começa, por exemplo, com um futebol entre a equipe do cinema novo e uma equipe do ltamaraty.
São situações metafóricas da realidade. Fizemos mesas-redondas, discussões entre os realizadores mais conhecidos
do Rio e de São Paulo, e se descreveram as dificuldades
econômicas e políticas da censura. A última parte falava
das perspectivas dos novos filmes dos jovens realizadores
do ano 68 e dos filmes desse ano, como Vida Provisória,
Cara a Cara, de Bressane, e muitos outros. Assim, começou
a minha relação como Cinema da América Latina.
P – Até agora você só falou do cinema brasileiro. Com relação ao
NCLA, em geral, como se deu concretamente seu envolvimento?
R – Bem, esse foi também o momento em que apareceram em nossos Festivais filmes de outros realizadores
latino-americanos como Jorge Sanjinés, Miguel Lettin
etc. Para tornar esse cinema mais conhecido, falei com o
Segundo Canal (da televisão alemã) sobre a realização de
alguns documentários sobre o cinema da América Latina. No Festival de Berlim, em 1969, propus a realização
de uma semana sobre o cinema jovem latino-americano.
Com esse objetivo, preparei uma viagem pela América La154
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
tina para pesquisar, ver e selecionar filmes para a Semana
e preparar as filmagens para 1970. Esse era o ano do II
Festival de Viña del Mar, o segundo festival do Cinema
Latino Americano (1969), uma possibilidade única para
me informar. Um evento muito estimulante. Foi assim
que preparei as filmagens de 70 e fiz um documentário
sobre filme de ficção independente na América Latina, um
pouco da história dos diferentes países da América Latina
(México, Argentina, Chile, Brasil etc.). Ao mesmo tempo,
fizemos um documentário de meia hora sobre os filmes
“underground”, mais especificamente da Colômbia e Venezuela. Mais tarde, foram feitos, na Alemanha, retrospectivas mais completas. Além daquelas realizadas nos vários
Festivais, a TV fez talvez a maior retrospectiva do Cinema
Latino Americano.
P – Seu livro sobre história do cinema latino-americano
parece ser uma das únicas obras existentes sobre esse
tema. O que o levou a escrevê-la?
R – A história cinematográfica da América Latina sempre me preocupou. Mas, nos primeiros anos, foi muito difícil conseguir informações, pois as poucas existentes eram
muito incompletas, e nos dicionários de cinema, em nível
mundial, não existia praticamente nada. Assim, pesquisei,
colecionei livros, falei com pessoas que tinham visto filmes
clássicos mudos e sonoros, em diferentes países, porque
esse processo havia realmente me interessado muito. No
ano de 1966, acredito, perguntaram-me se não poderia escrever alguns artigos para um novo dicionário de cinema,
155
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
na Alemanha, incluindo a história do cinema em distintos
países. Com esse objetivo, colecionei muito material, aproveitando agora os vários artigos sobre história do cinema,
que finalmente apareceram nas revistas cinematográficas
latino-americanas. Tinha, portanto, muito material em
minhas mãos e tratei de escrever uma primeira história
cinematográfica. Mas, as distintas fontes, suas orientações,
ao mesmo tempo, suas qualidades historiográficas me fizeram sentir a falta de informações concretas, como escrever
os títulos, os nomes etc. Cada livro tinha suas datas e suas
formas de escrever os nomes. É claro que não podia viajar pela América Latina e me encerrar nos arquivos para
realizar as pesquisas. Esse é um trabalho para os latino-americanos. Finalmente, terminei a pesquisa, que não se
enquadrava na linha dos redatores desse dicionário, porque
me disseram: sobre México faz dez páginas, sobre o Brasil
duas, sobre os outros países meia página. Minha resposta:
assim não se pode trabalhar; vou escrever 17 páginas sobre
o México e 20 sobre o Brasil etc. Escrevi; mas, depois, eles
resolveram cortar pela metade e, no final, ficaram os títulos
e algumas reflexões minhas. Um fracasso total. Mas, no
ano passado, preparamos uma retrospectiva muito grande
do cinema latino-americano para o II Festival Sobre as
Culturas Mundiais. O evento contou com teatro, música,
literatura, artes plásticas etc. Dirigi a parte cinematográfica e selecionei filmes nos arquivos, na televisão, em nosso
próprio arquivo e também recebemos filmes da América
Latina. Tentei fazer uma retrospectiva balanceada, isto é,
a primeira retrospectiva bastante completa, sistemática e
representativa, desde os anos 60 até hoje, e com uma parte
muito grande sobre cinema latino-americano, num total
156
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
de quase 100 filmes. Para mim, essa retrospectiva tão sistemática era a possibilidade de fazer uma documentação
maior. Encerrei-me em casa por um período de oito semanas para reescrever a história da cinematografia latino-americana, tendo, portanto, o conhecimento de dez anos
mais, experiências, pesquisas, um arquivo maior que antes.
Ao mesmo tempo, com a colaboração de outro amigo, fiz
uma documentação sobre os filmes, um dicionário dos realizadores e catálogo dos filmes latino-americanos dessa
mostra na Alemanha. No final, lamentavelmente, faltava
uma bibliografia, um índice etc., mas não tivemos tempo
para incluir tudo isto. Meu último trabalho é o Manual
do Cinema Latino Americano, em alemão, que estamos
traduzindo para o espanhol, porque existe uma editora, na
Argentina, que quer publicar a parte histórica e já existem
trechos publicados em português.
P – Seu relacionamento com a América Latina se inicia
com suas pesquisas sobre o cinema desse continente. É
ainda através desse meio de comunicação o que atualmente se dá sua aproximação com a cultura latino-americana?
R – Nos primeiros anos, concentrei-me totalmente em
cinema, porque era a época do boom do cinema latino-americano e, depois, a partir de minha primeira visita a
Cuba, em 1974, interessei-me mais pelos processos culturais e fiz muitos programas pela rádio sobre a situação cultural em Cuba, por exemplo, a transformação cultural do
Chile, durante o regime militar, assim como na Argentina
157
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
e no Uruguai; sobre a literatura brasileira, sobre a literatura
nicaraguense e, também, sobre o processo cultural depois
da vitória da Revolução na Nicarágua. Essas são as últimas
coisas que fiz para o rádio, programas de uma hora. Fiz
também um programa de duas horas sobre o teatro latino-americano. Atualmente, trabalho na Sociedade Liebnitz,
entidade de intercâmbio cultural, que realiza exposições de
arte latino-americana na Alemanha.
P – É possível chegar a uma definição do NCLA?
R – Tenho tido problemas e os latino-americanos também, em definir o que é o NCLA. Sempre defendi esse
conceito de um Novo Cinema Latino Americano. Lamentavelmente, e de forma muito especial, aqui, no Brasil,
existe uma tendência de destruir esse conceito, ou melhor,
de não aceitá-lo como verdade. Muitos brasileiros preferem falar mais de um cinema boliviano, cubano, mexicano
e, além disso, brasileiro. Esse é um nacionalismo distinto
na América Latina, mas acredito que existem interesses,
estruturas e intenções comuns, ao mesmo tempo em que
diferenças culturais e políticas entre os muitos países latino-americanos. A diferença entre México e Argentina
ou Venezuela e Bolívia é tão grande quanto à diferença
entre os países ibero-americanos e o Brasil. Mas, a grande diferença é aquela histórica entre o Brasil e o resto da
América Latina, uma vez que inclui a diferença cultural.
Entretanto, os interesses fundamentais, cinematográficos,
políticos, culturais, em perspectiva, são os mesmos. Assim,
não vejo nenhuma necessidade dos brasileiros não acei158
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
tarem essa concepção do NCLA. Por quê? Porque, nos
primeiros anos da difusão desse cinema, era importante
encontrar um nome como a “Nouveile Vague”, o novo cinema alemão, o cinema livre da Inglaterra, o neo-realismo
italiano etc. Todas essas ondas têm tido um nome, porque era muito mais fácil incluir nesse conceito, nesse título, muitas coisas, para defendê-lo e promovê-lo. Porque
quem quer ver um filme boliviano, uruguaio, ou colombiano? Muito mais fácil fazer uma semana latino-americana
de cinema que uma Semana de Cinema Boliviano, porque o
cinema boliviano existiu em três filmes. Para a promoção
do NCLA, essa concepção global era muito importante.
Acredito que, até hoje, é importante. É claro que a produção brasileira, de 80 a 100 filmes, por ano, é mais ou menos
a mesma quantidade do que fazem os outros países juntos,
do México até a Argentina. Compreendo, mas não aceito.
Os interesses políticos são muito claros. O NCLA é um
cinema autêntico, no sentido de lutar para a mudança da
situação sociopolítica em vários países e, por isso, parece-me importante esta concepção. Além disso, existe uma
diferença entre o cinema comercial, as pornô-chanchadas
e essas porcarias que se fazem em todos os países, especialmente Brasil, México, Argentina e, em certo ponto, na
Colômbia. É um cinema de mau gosto, sem nenhum interesse social, com uma realização cinematográfica muito
ruim, um cinema de imitação norte-americana. Esse não é
o novo nem o autêntico cinema latino-americano. É claro
que um filme comercial, uma pornô-chanchada pode expressar e refletir, à sua maneira, certos elementos sociais
autênticos, sem constituir, entretanto, em um cinema autêntico. É a perspectiva, a posição política, e os elementos
159
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
estéticos de um filme que constituem sua autenticidade.
P – Como você vê o atual desenvolvimento do NCLA?
R – Apesar de não ser pessimista, vejo um desenvolvimento cinematográfico, na América Latina, que não me
agrada, que está mais ou menos na mesma linha do cinema brasileiro. A única diferença é que os brasileiros não
se preocupam muito com o resto do continente. Esta é
outra questão. Mas, o que falta em todo o NCLA e, hoje,
até mesmo no Brasil, é essa busca de expressar-se de uma
maneira distinta, de uma maneira no to quadrada, não
tão quadrada, não tão regular, de tocar temas de um interesse político mais concreto, que parece representar uma
concepção política em toda a América Latina. Esse é um
grande problema, depois do desaparecimento do movimento vanguardista revolucionário em todo o continente,
com o fracasso das revoluções e rebeldias nos distintos países que, além de eliminar uma visão política, introduziram
uma visão muito pessimista. É claro que as dificuldades
existentes, neste momento, especialmente nos últimos três
ou quatro anos, nos distintos países da América Latina,
são dificuldades muito grandes e existenciais. A influência capitalista dos EUA e o boom capitalista na Venezuela,
México, Brasil, Chile, levou a uma tematização excessiva
das discussões no domínio das políticas econômicas. As
críticas, a mais essa manifestação do imperialismo, levaram ao enfraquecimento dos debates políticos e culturais
que existiram, antes, nesses países. Além disso, havia um
desenvolvimento insignificante, uma mudança no NCLA.
160
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
No Brasil, na Venezuela, Argentina (até certo ponto), Colômbia, Peru, Chile e mesmo, em Cuba, faz-se, agora, um
cinema muito mais popular que antes. O cinema brasileiro
com seus grandes filmes, nos anos sessenta, nunca tivera um público tão massivo quanto nos anos setenta. Essa
não é uma contradição, eu admiro muito que seja possível receber o público que faltava nos anos anteriores. Mas
o que se passou? Durante todo esse processo político se
sente a falta de uma busca revolucionária. Ao tocarem em
temas que não apresentavam uma posição crítica radical,
deixava-se um pouco de lado a pesquisa estética, porque
não se pode expressar de uma maneira muito regular um
filme realmente revolucionário. Poder, mas o conteúdo político e a posição política do realizador influem muito em
sua estética. Assim, o cinema latino-americano, dos anos
setenta, é politicamente muito mais regular, é um cinema social, crítico, mas não é um cinema revolucionário,
com algumas exceções. Sua estética é uma estética muito
quadrada, tradicional e até mesmo bastante conservadora.
Essa é uma certa armadilha, um grande defeito desse cinema, sua grande contradição.
P – Ao falar dos impasses e contradições do NCLA, você também aponta para a crise vivida pelo cinema em nosso continente. Tanto no último Festival quanto no anterior, falava-se muito em crise no NCLA, que era atribuída ora à falta
de roteiristas, ora falta de maior cooperação entre os diferentes
países, com a realização de coprodutores etc. Enfim, as interpretações eram as mais variadas. No último Festival, uma das
coisas que se discutiu é se os princípios definidos em Viña del
161
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Mar, depois na Venezuela e em Mérida, não estariam atrapalhando um pouco. Será que não fomos muito mais historiadores, antropólogos, sociólogos, ao definir aqueles princípios,
perguntava Ambrósio Fornet, um dos conferencistas no Seminário sobre Dramaturgia, realizado durante o IV Festival.
Nosso cinema, em sua opinião, foi um cinema mais de análise
social e um cinema menos preocupado com uma nova estética e
com um novo conteúdo. A questão, levantada por esse ensaísta
cubano: qual a relação desse novo cinema com seu público, o que
seria uma dramaturgia efetivamente popular. Sua contribuição mais importante foi no sentido de propor uma revisão do
que foi definido inicialmente, nas décadas de 60/70, para saber
se essas definições não estão atrapalhando o NCLA, não estão
sendo uma ‘camisa de força’, com princípios tão rígidos, quando,
na realidade, talvez se tenha que ter maior flexibilidade. Como
você vê essa questão colocada por Ambrósio Fornet, de que os
princípios do NCLA poderiam estar amarrando esse cinema?
R – O processo de popularização do cinema latino-americano resultou em uma coisa contraditória. Fazer
um cinema mais popular significa mesclar-se muito mais
nas estruturas do mercado. Debater muito mais com os
distribuidores e falar também sobre a base econômica de
seu trabalho. Os brasileiros começaram, nos anos sessenta,
com essa discussão e acredito que esse modelo do cinema
novo funcionou um pouco como modelo para toda a América Latina. Por isso, compreendo os motivos de alguns
brasileiros insistirem em seu cinema. Porque ali surgiram
muitos elementos próximos do NCLA. O debate sobre a
economia de mercado significou lutar contra o inimigo, as
leis cinematográficas, contar o número das salas etc. Todo
162
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
esse debate surgiu aqui. Por isso, acredito que os brasileiros
jogaram um papel vanguardista no NCLA. Não compreendo por que não querem aceitar essa definição de NCLA,
afinal eles a prepararam. Essa tendência de cinema popular
desenvolveu muitos elementos econômicos. Isso também
é um certo perigo. É importante; mas, ao mesmo tempo,
essa discussão econômica também influiu no diálogo estético e político. A grande esperança do NCLA são sempre
suas mudanças. Com o surgimento de um novo cinema
em países sem cinematografia, ou sem tradição cinematográfica, como Costa Rica, Panamá e, depois, Nicarágua, El
Salvador, Equador, algumas ilhas do Caribe – onde se faz
pouco, mas se faz – e especialmente, na América Central,
inicia-se um processo cinematográfico muito novo, pois
não se faz somente cinema, mas se trata de um cinema
com uma base social popular. Na Costa Rica, surgiu um
Departamento de Cinema ligado ao Ministério de Cultura e Esportes. Os cineastas fizeram um cinema puramente documental, mas com intenção social, surgindo muitos
problemas com esse Ministério e com o governo etc. Hoje,
a situação é bastante precária para esse Departamento, dificuldades financeiras, problemas políticos, mas foi possível
fazer um cinema documental com muito boas intenções.
No Panamá, ao mesmo tempo, surgiu em 73/74, dentro
da Universidade, o Grupo Experimental de Cinema Universitário (GECU), com a mesma intenção e fazendo um
cinema com apoio do governo Torrijos. Com as mudanças políticas posteriores, surgiram muitas dificuldades. Ali,
faz-se uma das poucas revistas de cinema que sai poucas
vezes por ano, mas existe. Além disso, esses dois países sem
vinculação entre si, nos primeiros anos, trataram de distri163
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
buir esse cinema dentro de seus próprios países, especialmente entre os camponeses. As pressões de certas cadeias
e sistemas de distribuição foram muitas. O trabalho realizado, nesses dois países, foi excelente. Cinematograficamente, não surgiu nada excepcional, mas politicamente
esse cinema jogou e joga um papel importantíssimo. O que
se passou depois, na Nicarágua, durante o processo revolucionário da luta armada, quando se filmou e documentou
essa luta e, depois, com ajuda internacional, fizeram seus
primeiros documentários, mostra a vitalidade dessa nova
forma de expressão na região. Além disso, criou-se, nos
primeiros momentos, depois da vitória da Revolução um
Instituto Nicaraguense de Cinema – INCINE, que tem
um pouco o modelo de cinema do ICAIC, mas isso é normal. Eu admiro muito tudo o que fizeram na Nicarágua,
pois começaram do ponto zero, sem tradição, sem técnica,
sem experiência, sem nada, do zero mesmo e com recursos
mínimos.
P – E com um público acostumado com os filmes norte-americanos?
R – Claro. Fazem um noticiário mensal, às vezes menos, e poucos documentários, por falta de recursos. Esse é
realmente um grande problema para eles, mas há que qualificar esse trabalho objetivamente. Os documentários feitos agora são muito melhores que, na primeira etapa, eles
aprenderam muito, mas falta uma informação maior e uma
visão estética cinematográfica. Isso é óbvio, e normal, porque nesse processo a luta diária para conseguir dinheiro,
164
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
para sobreviver, nesse país, para desenvolver o socialismo
ai, é uma luta tão existencial, que a falta de uma visão cinematográfica não é nada. Ela existe, pois esse é também um
elemento da qualificação objetiva. Vemos as dificuldades
reais e não se pode esquecer, fala-se objetivamente, de examinar a qualidade desses filmes. Em El Salvador, passou-se
algo distinto, mas muito interessante, porque eles estão em
plena guerra e fazem um trabalho muito bom. Depois dos
primeiros filmes de apoio internacional, começaram com
suas próprias experiências. O grupo Zero à Esquerda fez
um filme de curta metragem bastante experimental, mas
antes havia feito um filme sobre a situação dos professores,
um filme fantástico, mas não importa. Esse grupo começou com esse trabalho de documentar o desenvolvimento
da luta política, nas zonas liberadas, em Morazán. Ao redor da rádio, Venceremos, surgiu um modelo, uma ideia de
trabalhar com outros meios, o vídeo, o super-8 para captar
a informação mais direta da luta armada. Esse é um trabalho realmente fantástico, porque o filme Carta de Morazén
é um filme não somente sobre a orientação revolucionária,
sobre a luta armada, como um dos poucos filmes da Frente
dos Movimentos de Libertação Nacional (FMLN), em que
se pode estudar essa luta. Como se trata os prisioneiros,
as táticas humanas dessa luta armada, que não é somente
uma tática, mas uma política humana, que essa frente de
libertação fez.
P – Parece-me que essa ideia de crise, como você disse, quando
surge algo novo, quando as mudanças estão surgindo, representa uma perspectiva, uma esperança. Para terminar, eu queria
165
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
saber o que achou da presença do cinema argentino no Festival
de Havana? Eles passaram quatro filmes de longa metragem,
dois foram muito aplaudidos, assisti três, você viu os quatro.
Tempo de Revanche, feito no começo de 81, foi uma grande surpresa, da mesma forma que Volver, de 82. Aristain está apresentando também um filme em Cannes. Li uma entrevista dele
muito interessante em uma revista de Cinema da Colômbia,
Comunicar-te, em que afirma que fazer cinema é contar uma
boa história, e que ele tentou fazer isso em Tempo de Revanche.
Esse é um filme muito político e violento e que passou porque ele
havia feito alguns musicais antes, filmes sobre cantores. A junta
militar não tinha, portanto, nenhuma desconfiança dele. Como
você viu essa presença marcante do cinema argentino?
R – É preciso dizer que os militares, nesses anos tristes,
até 81, mais ou menos, fizeram tudo para destruir esse cinema argentino, não diretamente, mas por falta de apoio
estatal, ao mesmo tempo em que os muitos realizadores
saíram, emigraram, e os que ficaram viveram e sofreram
em um sistema de medo. Ninguém tentou fazer algo realmente distinto, tocar a situação social, real, com a exceção,
em 1979, de Mário Sábato, que fez um filme sobre a famosa novela de seu pai. Uma parte dessa novela se chama
“O Poder das Trevas”, uma adaptação literária; mas que,
ao mesmo tempo, explica, metaforicamente, o sistema
da repressão, o medo que se sofre. Esse dois elementos, especialmente, podem ser estudados nesse filme de
adaptação literária. Este é o primeiro exemplo. Normalmente, faz-se um cinema muito comercial, infantil,
para sobreviver. É uma posição absolutamente respeitável, dentro de um regime militar, fazer um cinema
166
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
comercial. Depois, lentamente, com a mudança da situação interna, nos anos 80/81, e com uma certa abertura,
faz-se um teatro aberto. Esse movimento foi uma experiência muito interessante. Depois, passaram a falar de um
cinema aberto, de uma poesia aberta, uma música aberta.
Essa conjuntura política favoreceu muito aos realizadores
que tentaram fazer, finalmente, algo distinto. Assim, surgiu
um filme, outra adaptação, Buenos Aires Misteriosa, de quatro episódios, com quatro realizadores, e mais dois ou três
filmes de Aristarain. Há um outro filme Plata Dulce, que
como filme não é nada, mas trata de um momento político
social, que foi interessante. Teve muito êxito. Mas se, nos
anos 81/82, a produção cinematográfica baixou até o ponto
quase zero, no último ano, foram realizados, acredito, sete
ou oito filmes. Essa é uma cifra da crise, pois é igual à cifra
cinematográfica dos anos 30 quando, com a mudança do
sistema cinematográfico, baixou toda a produção. Quarenta anos depois, a mesma cifra. Não foi somente o sistema
de medo da repressão que praticamente eliminou o cinema
argentino, mas também a catastrófica situação econômica
que tornou dificílimo fazer algo ali. Mas, às vezes, é possível conquistar recursos para fazer cinema e fazer realmente
coisas interessantes. Mas, se pode esperar algo diferente
da Argentina, agora, pois o que falta é dinheiro. A situação no México era tão triste como na Argentina, pois os
militares argentinos não destruíram o cinema argentino
senão indiretamente. O governo mexicano de Lopes Portillo, ao contrário, realmente destruiu quase todo o cinema
independente do México, por sua tonta política cinematográfica. O incêndio que destruiu a Cinemateca é um bom
exemplo desse processo. O novo governo tem gente muito
167
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
capaz, com muito boa orientação, mas não tem dinheiro
para renovar ou dar possibilidades de fazer filmes para os
grandes realizadores de talento que tem esse país.
P – Quais são as perspectivas do NCLA?
R – É muito difícil falar desse tema, porque acredito que tudo depende de elementos, do desenvolvimento
econômico – porque sem dinheiro não se pode fazer cinema – e do desenvolvimento político, com a mudança
dos sistemas políticos. Estes são os dois elementos básicos
que vão influir muito no desenvolvimento cinematográfico
que, certamente virá, como sempre. Não sei o que vai sair,
pois não conheço as perspectivas da América Latina. Ao
mesmo tempo, estou seguro que este continente, na maior
crise econômica de toda a sua história, pode sobreviver
mais facilmente a essa crise, que os países capitalistas do
velho mundo, porque manejar nosso sistema capitalista é
muito mais difícil que sair das crises existenciais da América Latina. É, também, um problema cultural e político a
longa tradição da decadência cultural de nossos países e a
força que têm os países latino-americanos. Os latino-americanos, quando decretam atacar o sistema, fazer uma nova
revolução, mostram a força interna deste Continente, onde
se pode sobreviver muito mais que nos países europeus.
168
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
22. Leonardo Boff : Mídia e
libertação
Anamaria Fadul23
Ganhamos cada vez mais espaço nos meios de comunicação, a Teologia da Libertação ainda não encontrou uma
forma de tratar os MC. Nesta entrevista Leonardo Boff
diz o que pensa.
CELSO: nos últimos meses, a Teologia da Libertação
vem ganhando espaço nos jornais e nos meios de comunicação, em geral; mas, apesar disso, existem críticas
que teóricos da comunicação vêm fazendo à Teologia da
Libertação que falam da ausência, em sua teoria, do tratamento à comunicação. Frei Leonardo, como o senhor
encara essa colocação?
23. BOLETIM INTERCOM nº51. São Paulo: Intercom, Nov/
dez/1984. p.30-37. Bimestral.
169
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
BOFF – Eu penso, fundamentalmente, que não há um
tratamento específico feito pelos teóricos da Teologia da
Libertação acerca da comunicação. O que eu vejo, sim, a
comunicação em nível popular, dos grupos das comunidades, dos grupos de reflexão bíblica, enfim, aqueles grupos
com os quais os teóricos têm contato e promovem uma
reflexão na linha da libertação; nesses grupos, há toda uma
ampla comunicação nova, libertária, democrática, criativa.
Portanto, por isso não se faz uma reflexão específica, porque a teologia se ocupou de questões mais fundamentais
em nível de povo, em nível econômico, de libertação da
fome, do desemprego, dos direitos fundamentais da vida.
Mas, eu penso que essa questão é importante, deverá ser
tratada por pessoas que saibam articular bem o discurso da
comunicação e o discurso da fé.
FADUL – Eu queria perguntar para você como é que
você encarou essa veiculação da Teologia da Libertação
pelos meios de comunicação de massa. De certa forma,
a posição da Igreja, com relação aos MCM, principalmente depois de Puebla, é uma posição um pouco maniqueísta. Os meios de massa representam a dominação, a
veiculação da ideologia da classe dominante e os meios
ditos grupais representariam, ao contrário, uma forma
de comunicação que brotaria do povo. Como é que o
senhor vê essa veiculação de seu discurso por meio de
massa tão importante como foi a TV Globo, no Brasil?
BOFF – Eu penso que esse tema da libertação é um
tema que é mais forte da que a ideologia dominante. Os
170
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
níveis da dominação, da desestruturação da vida, são tão
clamorosos que eles por si só são um evento da comunicação. Ocorre que a teologia, nos últimos vinte anos, e a
Igreja elaboraram todo um discurso sobre essa temática,
que foi um discurso polêmico dentro da Igreja e na sociedade. Dentro da Igreja porque obriga a própria Igreja
a mudar sua forma de poder, de participação. Ao nível da
sociedade, porque a Teologia da Libertação postula uma
sociedade alternativa, uma democracia fundamental, coisa
que é negada pelo atual sistema. Então, esse tema é de
interesse mais global. Eu, pessoalmente, entendi isso como
uma forma de veicular um grande tema, que é polêmico, que
interessa desde o intelectual até a grande massa que se sente
oprimida e elabora sua consciência. Por detrás, há interesses
de ordem econômica e eu tentei articular isso no interesse
da própria libertação dos oprimidos e dessa teologia que,
como nunca, conseguiu audiência, uma difusão, que jamais
conseguiria por seus próprios e internos de Igreja.
FADUL – Existe aí certa contradição, Leonardo, porque
a teologia sempre teve trânsito entre meios eclesiásticos, entre círculos de cristãos, através de livros. O livro
foi o meio tradicional que a teologia encontrou. De certa forma, aquilo que emancipa, pois a palavra impressa
sempre se associa à emancipação, e a imagem à manipulação. De repente, aquilo que, de certa forma, é o discurso da Igreja, essa recusa da imagem, volta-se contra esse
próprio discurso. Ou seja, a popularização da Teologia,
da temática vem exatamente através dos meios de massa. Essa me parece ser uma contradição que precisaria
171
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
ser efetivamente pensada: por que o espaço dado pelos
meios à Teologia da Libertação, por que o espaço dado à
sua ida a Roma? Os meios, de certa forma, visam ao lucro. É uma indústria. A indústria cultural é movida pelo
lucro. Então, os setores progressistas sempre denunciaram isso – o mal da cultural é que ela visa ao lucro. Uma
questão que eu levanto para você: é que o conteúdo oposicionista também dá lucro. Como é que você, a Igreja, pode
conviver com essa questão, há uma ênfase, talvez excessiva, nos meios grupais, voltando às costas para essa grande contradição que aparece nos meios de comunicação?
BOFF – Eu penso que essa questão dá lucro para os
dois lados. Dá lucro para o sistema, lucro financeiro, de
audiência e dá lucro para a Igreja e para os grupos interessados em libertação, na medida em que se abre uma brecha. Essa brecha é aproveitada, e se lança uma mensagem
que é contraditória ao sistema, porque se quer reforçar o
polo mais fraco do sistema e o polo que é crítico ao sistema, e quer ser também uma alternativa ao sistema. Então,
eu penso que a atitude de segmentos da Igreja não pode
ser maniqueístas face aos meios de comunicação. Tem que
entender a mecânica interna, por ser um meio contraditório, como o Estado é contraditório, como a própria Igreja é
contraditória. Tem que se estar atento para aproveitar essas
brechas, no sentido de manter essa brecha aberta, moderar um pouco o discurso para não ser totalmente tolhido
e poder dizer a sua mensagem que atinge, especialmente,
àqueles mais interessados que são as imensas maiorias que
estão buscando liberdade, pão e vida.
172
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
FADUL – Eu acho que esta pergunta que foi feita, inicialmente, para você sobre uma certa insuficiência no
debate sobre a comunicação no domínio da Teologia da
Libertação precisaria ser ampliada, no sentido de colocar
essa demonização, que nós temos feito, eu, inclusive. Acho
que esses setores progressistas da intelectualidade brasileira realmente identificam os meios de comunicação de
massa com a dominação. É como se a dominação nascesse
a partir da Rede Globo. A dominação não nasce na Rede
Globo. Ela começa na fábrica, na escola, na família, no
escritório, os meios vêm reforçar um processo de dominação existente. Então, essa demonização dos meios de
comunicação é um discurso dominante. Não somente da
Igreja, como também desses setores progressistas. O que
eu te pergunto é o seguinte: como a gente pode trabalhar
para a superação dessa importação de modelo teórico.
Nós estamos aplicando, no Brasil, desde 1980, modelos
teóricos que foram formulados nas décadas de 30, de 40,
pela ‘Escola de Frankfurt’, tendo em vista uma situação
específica, no caso da Alemanha e da ascensão do nazismo e, depois, quando esses alemães se exilam nos Estados
Unidos, a questão da ‘indústria cultural’. Década de 40,
nos Estados Unidos, e do surgimento de uma indústria
cultural, cinema, rádio e assim por diante. Eu te pergunto:
será que nós também não somos dependentes e esse é um
tipo de dependência muito perigosa, porque é uma dependência teórica, de modelos importados. Nesse Congresso, eu ouvi já exposições baseadas, exclusivamente,
nessa categoria da manipulação exercida pelos meios de
comunicação de massa. A pergunta é essa: como a gente
trabalha essa questão da importação de modelos teóricos?
173
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Eu penso fundamentalmente que não há tratamento específico feito pelos teóricos da Teologia
da Libertação acerca dos meios de comunicação.
BOFF - Inicialmente, há uma carência de análise. Isto
é, fica-se mais preso aos referenciais importados do que
ao acesso à realidade e procurar ser criativo, desvendar os
mecanismos de funcionamento. Passando por esse caminho de análise, a pessoa se dá conta de que a dominação e
a manipulação nunca são completas. Há sempre brechas,
há sempre resistência, há sempre também a identidade
do povo que permanece, apesar de todo esforço secular
de desestruturação. Eu acho que devemos ver a realidade com dois olhos. Com o olho da classe dominante, que
dispõe desses meios para veicular a dominação, introjetá-la dentro do povo. E também com o olho do povo, como
ele resiste, como ele elabora sua cultura do silêncio, a sua
forma de ver dentro da cultura dominante a sua própria
identidade. Eu penso que é um desafio para os estudiosos
latino-americanos como para nós, teólogos, foi um desafio criar categorias teológicas adequadas à nossa realidade,
autóctones, que não inspiram simplesmente de modelos
exteriores. Deixa-se ensinar, sim, pela grande tradição teológica, também atual hoje, da teologia norte-americana
e européia; mas, fundamentalmente, faz uma filtragem a
partir da experiência da realidade que é uma experiência
sofrida e, a partir daí, elaborar o pensamento, que não será
arquitetônico, será claudicante, mas será nosso pensamento e mordente, em cima da nossa realidade.
174
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
FADUL - Uma coisa que me interessa muito, enquanto pessoa interessada numa teoria crítica da comunicação é o percurso que a Teologia da Libertação fez na
América Latina. Eu me lembro de varias posições suas
e de outros teólogos, na qual se mostra que essa teologia não se constrói em função das discussões de obras
teológicas. Ela não é um discurso com textos, mas um
discurso construído a partir de práticas concretas. Em
suma, ela nasce em função de uma história de um Continente oprimido. Será que não está havendo certa defasagem entre esse trabalho que a Teologia da Libertação fez na área da História, da Economia, da Política,
enfim, ao pensar práticas religiosas, na América Latina,
e questões da cultura? Eu sinto um pouco, no domínio
da cultura, uma certa importação de modelos teóricos.
A cultura deve ser pensada a partir de um outro lugar
social e não a partir da cultura letrada. Eu acho que a
Igreja, na medida em que é uma das mais antigas instituições, tem valores que são da cultura letrada. Na medida em que tem esses valores encara com muita desconfiança outros valores, uma cultura veiculada através das
imagens e assim por diante. Então, eu acho muito difícil
trabalhar na área da cultura. O grande desafio é a gente conseguir trabalhar, nesse mundo de valores, porque
inclui uma dimensão que diz respeito à essência da vida
humana. Eu acho que você fala de vida, de sentimentos,
de morte, enfim, há todo um mundo de valores que penetra realmente esse universo. Então, a pergunta que eu
te faço, bem concretamente, é a seguinte: será que não
está havendo, no caso da cultura, uma certa defasagem
com o trabalho que vocês fizeram, em outras áreas, por
175
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
exemplo análise das ciências sociais, da própria Igreja, a
história da Igreja está sendo feita, a partir não mais de
uma leitura da classe dominante, mas é a partir dos vencidos. Oscar D. tem-se dedicado a pensar a História a
partir de um outro lugar social. Então, o que eu pergunto é o seguinte: será que nós estamos pensando a história
da cultura a partir de um outro lugar social que é a não
cultura do dominante, mas sim a cultura do dominado?
BOFF – Na Teologia da Libertação, há uma vertente
que procura pensar a Teologia a partir da cultura popular,
especialmente um grupo forte argentino, uruguaio e colombiano. Ocorre que esses querem apresentar essa questão como alternativa à Teologia da Libertação. Eu creio
que é injusto isso. Desde que tomarmos a cultura na sua
compreensão mais profunda, que ela resulta de um jogo de
relações econômicas, sociais políticas e religiosas e ela é,
continuamente viva, porque é criada a partir dessas forças
que estão por detrás da cultura e que a Teologia da Libertação mais analítica, que incorpora uma certa tradição
marxista, procura ver aí, também, os conflitos que se dão
nessas forças e que permitem entendermos que haja uma
cultura dominante e uma cultura dominada, sincretismos
culturais, muitas culturas, conforme se dá a diversidade das
classes, das forças sociais em conflito. Então, aí há uma
reflexão, embora para mim, seja muito idealista, porque
não incorpora conflito. Não se dá conta de que a cultura é
encobridora de conflitos que caberiam por desvendar e, aí
creio que, uma certa sociologia do conflito seria útil para
completar essa análise. Por outro lado, penso também que
ao nível popular e de Igreja, penso também que está ha176
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
vendo uma nova valorização da cultura popular, de catolicismo popular. Porque temos o catolicismo oficial, letrado,
dogmático, de iniciados e é controlado e produzido pelo
clero. Existe um imenso catolicismo popular, que eu pessoalmente acho que é a maior criação da fé cristã na América
Latina. Ele se faz em articulação com o catolicismo oficial,
mas também livre dele, a maneira como o povo vê o Evangelho, o encontro com o Cristo, com a cruz, com os santos,
ele mesmo criou as formulações, foi o sujeito da criação
do capital simbólico, ele mesmo criou suas festas, controla
as festas. Houve sempre, inicialmente, um desprezo a isso,
porque se dizia um cristianismo sincrético, não-ortodoxo e
até herético. Hoje, nós percebemos condição de estarmos
dentro desse continente, que ele tem sua verdade, sua ortodoxia, que nem tudo vale, que a forma própria do povo,
simbolicamente, captar e encarar o Cristianismo, e que só
nós podemos entendê-lo com a condição de trocarmos de
lugar social, entrarmos dentro daquele continente e entendermos, aí, como aprendizes dos verdadeiros sacerdotes
do ‘catolicismo popular’, que são os próprios líderes carismáticos do povo. Esse processo está sendo feito com
contradições, porque é absolutamente novo e, então, descobrimos como esse catolicismo popular foi um catolicismo
de libertação, via resistência, via preservação da identidade
de grupos como negros, como indígenas. A Igreja tem de
valorizar isso como obra de Deus dentro do mundo.
FADUL – Eu acho que essa colocação que você faz de
uma ala da teologia, eu colocaria entre parênteses a libertação, porque na medida em que você trabalha com
177
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
categorias abstratas e idealizadas, como no caso de uma
cultura argentina, como se fosse possível isso, sem entender as diferenças sociais, as diferenças de classe.
Quer dizer, a cultura existe como uma coisa monolítica,
ela existe numa sociedade em conflitos, numa sociedade
em contradições. O que eu pergunto para você é o seguinte: será que nós temos que apresentar esta alternativa, a Teologia da Libertação, tal como ela é vista, a partir desses teólogos que estão comprometidos efetivamente com uma luta
Tem que se estar atento para aproveitar as brechas. Moderar um pouco o discurso para não ser
totalmente tolhido e deixar as brechas abertas
do povo pela libertação e esses que, de certa forma, tentam escamotear o conflito. Será que existe alternativa ou,
ao contrário, nós teremos que acrescentar a essa teologia
preocupada com a libertação, com a emancipação, a dimensão do simbólico, a dimensão de culturas. Ou seja, a
cultura, de certa forma, é minimizada, é vista assim como
uma necessidade posterior àquelas necessidades básicas,
que têm que ser satisfeitas, imediatamente, porque dizem respeito à própria subsistência. Então, eu colocaria
que há uma hierarquia de necessidades e a cultura é sempre vista a posteriori. A pergunta é a seguinte: será que ela
não tem que ser vista conjuntamente, ao mesmo tempo
em que existem necessidades urgentes, econômicas, sociais, políticas, que têm que ser satisfeitas, a questão da
cultura tem que estar junto com as outras questões? Se
você separa, realmente, introduz uma dicotomia que não
existe na prática.
178
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
BOFF – É, exatamente, nessa formulação, que eu vejo
a questão. Eu penso que o simbólico, o cultural, não é uma
derivação da infraestrutura econômica, nem dos relacionamentos políticos e sociais, mas é uma dimensão estrutural
do ser humano, de tal maneira que, quando ele produz,
ele faz dentro de um código cultural, dentro de uma significação, dentro de uma simbolização, ele ritualiza o comer, ritualiza o trabalho, ele carrega de intencionalidade
as relações humanas, a natureza. O Sol não só brilha, ele é
símbolo de toda uma vida. Então, eu acho que isso é muito
vivido em nível de povo, eu penso que há uma insuficiência do marxismo, ao ter colocado a cultura com simples
sobre-estrutura. Eu penso que as críticas que Raul Ricker
faz ao marxismo, principalmente francês, em reconduzir
o simbólico como infraestrutura, porque aparece especialmente humano, é o ser humano quem simboliza, coisa que
o animal não o faz. E isso acompanha todas as manifestações da vida humana. Há extratos, segmentos da Teologia da Libertação que incorporam isso. Eu, pessoalmente,
preocupo-me com essa realidade. Particularmente, grupos
da Teologia da Libertação que trabalham com movimentos populares e indígenas são muito atentos a isso e vêm
amparados por uma teoria mais complexas e crítica face à
tradição marxista.
FADUL – Como é que você vê essa questão que está
sendo muito colocada, no Brasil, e em outros países,
também, de uma certa resistência pelos setores progressistas da Igreja, a aceitar práticas populares da religião,
ou seja, você aceita, mas não legitima essa religiosidade
179
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
popular, por exemplo as procissões, as idas às cidades-santuários, como é Juazeiro e Aparecida do Norte. Eu
sinto uma certa intolerância por essas práticas. Isso não
é dito, não é colocado. Seriam manifestações de uma
consciência atrasada. Um povo que luta por sua emancipação não poderia ir a Aparecida do Norte, porque Aparecida do Norte representa uma outra face do Catolicismo, do Cristianismo. De certa forma, a gente retoma
aquela velha polêmica do Padre Cícero, do Frei Damião,
que a Igreja, de uma forma bastante intolerante, ignorou, marginalizou e que o povo aceitou, continua fazendo desses, como Padre Damião, que ainda está vivo, e
que continua tendo uma penetração muito grande junto
ao povo. Como é que você vê essa questão, como ela é
vista pela Teologia da Libertação?
BOFF – Houve, num primeiro momento, logo após
o Concilio Vaticano II, 1965, em que houve uma grande
purificação das Igrejas em termos de tirar as estatuas, simplificar os ritos, terminar com as festas populares. Após alguns anos, houve uma grande e profunda revisão. Damos-nos conta de que houve todo um processo iluminista, de
sacerdotes que vêm de uma formação burguesa, acadêmica,
universitária, que não entenderam o código popular, a partir do lugar do pobre, do próprio povo, mas entenderam, a
partir do código mais progressistas, universitário, da cultura dominante. E, nesse sentido, está havendo um imenso
processo de reformulação, de autocrítica dentro da Igreja.
Também nos demos conta de que fechando o simbólico do
povo, em termos das estatuas, dos ritos, nós estamos fechando as janelas da alma do povo. E que aqueles sacerdotes que
180
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
perduram, ainda nessa desconfiança, na verdade, atestam a
sua falta de articulação e convivência com a alma do povo.
É uma leitura exteriorista. Quando ‘entramos’ dentro do
povo, percebemos que essa religião, absolutamente, não é
alienante, que esses ritos e procissões são os lugares fortes,
onde eles recarregam as baterias da vida, para aguentar a
profunda pressão que sofrem, que são lugares de esperanças, onde eles se sentem filhos de Deus, têm um nome,
são respeitados, onde eles mesmos são os donos da festa,
produzindo a oração e, portanto, são ativos e não submetidos e atrelados a um esquema clerical. Nesse sentido, eu
penso que há uma reflexão séria, de recuperação, de valorização e, também, um processo do povo mesmo purificar
as suas festas, a partir de uma evangelização bíblica, dos
círculos bíblicos, das comunidades, nas quais essa matriz
popular religiosa é enriquecida com elementos mais críticos, no sentido de participação na sociedade, fazer a crítica
aos sistemas de dominação é que torna essa religião mais
funcional aos anseios libertários e de direitos humanos,
de participação do povo, já que a perspectiva, antes mais
devocional, antes sacralizada, criava um espaço interno de
respiração, de libertação, mas sem articulá-lo com o processo mais da caminhada do povo. E, nesse sentido, há um
trabalho de tentar enriquecer essa matriz a partir de dados
mais de justiça.
FADUL – Eu perguntaria para você como é que vocês,
teólogos, estão vendo, eu diria que um renascimento, na
periferia de São Paulo, dos terreiros de Candomblé, Umbanda, essa coisa toda. O que eu percebo, nesses terreiros,
181
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
é que se elimina a questão da vida material. Não é que se
elimina, se dá justificativas, os deuses estão aqui e eles explicam tudo. De certa forma, há uma minimização das
lutas concretas dessas pessoas, de grupos que vão a esses
terreiros e que, de repente, encontram uma explicação
para sua situação no transcendente. Existe alguma relação, por exemplo, entre essa laicização da religião, uma
certa transformação do discurso religioso e um discurso terreno, um discurso mais preocupado com a luta do
povo, e esse crescimento dessas seitas religiosas, eu citei as de origem africanas, mas há outras seitas, Moom
e essas coisas, em que, realmente, tudo se explica, não a
partir de lutas concretas, da terra, mas a partir do transcendente.
O povo sabe escolher seus símbolos quase que
por intuição, apesar da pressão do Catolicismo
oficial para que o povo não crie a própria vida.
BOFF – Eu vejo duas questões aí. Quando a opressão
atinge limites insuportáveis e que impedem qualquer luta
do povo, porque é logo reprimida, a religião se transforma
no reduto dos oprimidos, no refúgio do vencidos. Então, é
aquele pequeno espaço onde eles podem respirar, resistir,
guardar o nome e ter uma fuga para cima, para o transcendente, porque a fuga para os lados, em termos da participação, é negada. Então, a religião, a partir do oprimido, ela
significa libertação, embora libertação só espiritual, simbólica. O segundo elemento que me parece importante é
o risco que o Cristianismo controlado pelos teólogos, pelo
corpo sacerdotal, ele se transforma numa visão do mundo,
182
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
numa teologia conceitual e perde seu conteúdo simbólico.
Finalmente, Deus não é dado como objeto, nós não vemos
Deus, só temos acesso a ele mediante símbolos. E, no momento em que tiramos os símbolos da religião, nós matamos a religião. Ou ela fica algo para iniciados. Então, essa
busca de símbolos revela uma crise dentro do Catolicismo,
que ele se especializa e formaliza e, por isso, se elitiza, e outras instâncias preenchem esse vazio, uma simbólica muito
grande e uma simbólica, às vezes, alienante, sem articular
com toda a riqueza da vida. O que a gente percebe, nas
comunidades de base, nos grupos já militantes, é que eles
ritualizam a vida, celebram as conquistas, invertem símbolos e são altamente significativos, seja ao nível das comidas, das danças, dos cânticos, ao nível dos símbolos que
eles oferecem. Então, o que mostra a experiência religiosa
que se dá, na vida, consegue encontrar seus condutos de
expressão e em símbolos que não são arbitrários, que são
muito ligados à vida. Não é qualquer coisa que serve de
símbolo, mas aquela que é significativa, de uma significação pura, não ambígua. O povo sabe escolher isso quase
que por intuição. Eu penso que há um esforço muito grande em nível de Igreja, até com resistência, porque a pressão
do Catolicismo oficial é muito grande, de permitir que o
povo crie, celebre sua vida, popularize a liturgia, liturgifique
a própria vida.
183
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
184
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
23. Aluísio Pimenta24:
A burocracia cultural25
Ada Dencker e José Américo Ribeiro
a cultura, no Brasil, tem sido relegada ao segundo plano”. A declaração é do atual ocupante
da Pasta da Cultura, ministro Aluísio Pimenta. Nesta entrevista, ele fala sobre o ministério
e adverte sobre o perigo da burocracia cultural.
INTERCOM: Qual a sua opinião sobre os desdobramentos dos
Ministérios da Educação e cultura e o da Ciência e Tecnologia?
Aluísio Pimenta: Considero dois problemas distintos.
O primeiro refere-se ao desdobramento do Ministério da
Educação e a criação do Ministério da Cultura, que é um
assunto polêmico, sobre o qual tenho meditado muito.
Tenho considerado as vantagens e desvantagens desse
24. Entrevista concedida em 11-3-85. Nessa ocasião, Aluísio Pimenta
era presidente da Fundação João Pinheiro, não ocupando ainda o cargo
de ministro da Cultura do governo Sarney. O roteiro da entrevista foi fei-
to por Ada F. D. Dencker e sua realização coube a José Américo Ribeiro.
25. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano VIII, nº52, jan/jun. 1985. p.36-41.
185
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
desdobramento, pois existem os dois lados da questão.
Creio que, no Brasil, a cultura tem sido relegada ao segundo plano. Quando falamos em cultura, referimo-nos,
em geral, a apenas a uma de duas dimensões, a artística,
que embora seja, sem dúvida alguma, muito importante,
é somente um dos seus aspectos. Entretanto, a cultura em
sua dimensão antropológica, no sentido de nos voltarmos
às aspirações do povo, em geral, no processo de desenvolvimento cultural da nação brasileira, tem sido esquecida. O
Brasil possui raízes indígenas, africanas e europeias e, entretanto, observamos que não há, nas universidades, uma
cadeira que se dedique ao estudo da cultura negra, existindo
apenas iniciativas longínquas de uma ou outra universidade.
A existência do Ministério da Cultura tem a vantagem
de conferir presença, de mostrar a necessidade de nos dedicarmos mais aos problemas da cultura, em seu sentido
mais amplo. É preciso, nos termos mesmo do que faz a Secretaria da Cultura do Ministério da Educação, dar mais
forças, maior possibilidade de recursos e, consequentemente, como já dissemos, maior presença, uma visibilidade
mais ampla, que se tornaria possível com a criação de um
Ministério especificamente dedicado à Cultura.
Por outro lado, um lado que poderíamos chamar de
perverso, se é que é há um lado perverso, seria possibilitar
uma excessiva intromissão do governo, na questão cultural,
principalmente em nosso caso, na América Latina, onde existe
esta tão lamentável tradição dos governos militares. Se tivéssemos um Ministério da Cultura nas mãos de uma ditadura,
seria desastroso. Temos, como exemplo disso, o que ocorreu
na Alemanha nazista. Felizmente, tenho esperanças, pois
pessoalmente acho que, com a terceira República, estejamos
186
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
encerrando o ciclo dos governos militares no Brasil. Faço
votos para isso, e não apenas votos, faço força para que
isso aconteça e, efetivamente, não tenhamos mais nenhum
ciclo de governos militares. Dessa forma, se colocarmos em
uma balança, vantagens e desvantagens de um Ministério da
Cultura, acredito que as vantagens superam as desvantagens.
Outro aspecto que não deve ser esquecido e que, eventualmente, poderia ser catalogado como desvantagem, é o
afastamento entre cultura e educação. Em um país de Terceiro Mundo, como o nosso, a base da educação tem que
ser a base cultural. Caso o processo educativo brasileiro
não se desenvolva dentro de nossa cultura, dando ênfase
ao estudo da língua pátria, da nossa história. Corre-se o
risco de pensar que cultura e educação são coisas distintas,
quando de fato estão intimamente interligadas.
Há muitos países que não possuem Ministério da Cultura, como, por exemplo, os Estados Unidos; mas, de acordo com um levantamento que fizemos, na Fundação João
Pinheiro, sobretudo em países socialistas, existem países
que possuem Ministérios da Cultura extremamente ativos.
Pessoalmente, considero que devemos partir para essa experiência, sobretudo, com um homem de inteligência do
Dr. José Aparecido de Oliveira, cujo trabalho na Secretaria
de Cultura de Minas Gerais foi excelente. Diante disso e,
usando uma expressão um pouco protocolar, eu diria “que
vale a pena pagar pra ver”.
O mais importante é nos precavermos contra a burocracia da cultura, pois se isso viesse a ocorrer, seria desastroso
para todos nós. Espero que isso não ocorra e que possamos
coordenar todos os setores ligados ao campo da cultura, as
artes, as humanidades, a cultura popular, incluindo-se uma
187
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
coisa que é pouco comum, no Brasil, que o estudo da cultura das empresas, que poderá se constituir em um projeto
para o futuro. Levando-se em consideração prós e contras,
ainda considero, em termos gerais, a criação do Ministério
da Cultura como uma experiência vantajosa.
Quanto ao Ministério da Ciência e Tecnologia, as coisas são diferentes e muitas preocupações mais amplas. No
Brasil, brindamos o setor da Ciência e Tecnologia, primeiro com o FINEP, financiador de projetos, no setor de empresas, temos a chamada STI – Secretaria de Tecnologia
Industrial do Ministério da Indústria e do Comércio, somando-se a elas a Secretaria de Informática, subordinada,
diretamente, à Presidência da República, enfim, uma série
de órgãos, de diferentes subordinações e que deverão integrar o Ministério da Ciência e Tecnologia.
Evidentemente, a coordenação desses órgãos será complexa, exigindo uma atuação equilibrada do Conselho Nacional
de Pesquisas Científicas que permita a essas atuais secretarias
liberdade de atuação dentro de um planejamento comum,
dentro de um critério harmônico, tornando positiva a criação
do Ministério da Ciência e Tecnologia. A heterogeneidade
dos órgãos citados poderá acarretar, em um primeiro momento, alguma dificuldade de relacionamento, mas a sua atuação,
em separado, é sem dúvida alguma menos produtiva.
Tenho uma grande esperança que a criação desse Ministério traga uma significativa contribuição para a Universidade Brasileira, que dela muito necessita. Também a
Universidade, por seu lado, poderá contribuir, nesse campo,
sobretudo, se quem vier a ser encarregado desse Ministério
tiver a sensibilidade e a coragem de resistir ao colonialismo
cultural, que existe tanto nesse setor quanto no da cultura.
188
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Acho vantajoso e tenho esperanças num Ministério da
Ciência e Tecnologia, mas supondo-se que não dê certo,
sempre podemos voltar, a menos que a burocracia tome
conta de tudo e tenhamos mais um ‘cabide de empregos’, o
que, certamente, seria um desastre.
INTERCOM: A seu ver, qual o papel da cultura no novo
pacto social?
Aluísio Pimenta: Bem, eu acho que em um país em desenvolvimento, a cultura deveria permear todos os setores da administração e da política. Infelizmente, isso não
acontece, talvez, devido àquele conceito de cultura como
alguma coisa clássica, alguma coisa da elite, esquecendo-se
de que a cultura se liga às classes menos favorecidas e ao
seu trabalho, e aí que incluímos aquele conceito de cultura
de empresa, a que nos referimos anteriormente. Essa cultura de empresa, a cultura da instituição, deve ser levada
em consideração em termos do pacto social.
Infelizmente, não temos tradição nessas coisas e nos
baseamos, no momento, no caso espanhol. É preciso lembrar que o Brasil não se compara à Espanha, eu diria mesmo que até a nível de América Latina não existe nenhum
país com as mesmas características do Brasil. As diferenças vão desde a tipologia universitária até todas as demais
caracterizações. Nós somos outra cultura e, diante disso,
tivemos que pensar um pacto social flexível, dentro de nossas condições, sem procurar impor nada, nem da parte do
governo e empresários, nem da parte dos trabalhadores.
Precisamos de um pacto dentro das nossas características
189
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
culturais para que o mesmo não resulte em um pacto que não
dê forças ao empresário em detrimento do empregado, um
pacto que simplesmente visasse à manutenção do status quo.
O pacto social tem que ser um pacto para a mudança,
dentro do entendimento. Precisamos de um pacto voltado
para o operário, que está desempregado, ganhando pouco.
É necessária, nesse momento, uma redistribuição de rendas, pois em essa redistribuição não há pacto social. E por
que não há? Não há porque, o Brasil de hoje, é inviável no
Capitalismo. Produção há, mas não existe quem compre.
Visite os açougues, eles estão cheios de carne, mas os operários não podem comprá-la. Para que haja um pacto social, dentro de nossas características, é imprescindível uma
mudança. Um pacto
A Universidade perdeu a presença. Os reitores
são verdadeiros síndicos encarregados de pequenas medidas. É preciso liberar a universidade.
social que vise à manutenção de hegemonia do patrão sobre o empregado será como, há muito apregoada por aí,
liberdade da raposa e da galinha: a raposa tem liberdade de
comer a galinha e, a galinha tem a liberdade de ser comida.
Isso não é pacto, não é consumo, é imposição.
INTERCOM: diante disso, como é que ficam a sociedade civil
e políticas culturais alternativas?
Aluísio Pimenta: está aí outro assunto de maior importância. No Brasil, o grande problema é a educação para a
190
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
cidadania. Uma educação para que a pessoa possa ser crítica consigo mesma e com os direitos e deveres. Em uma
importante reunião de educadores, aqui em Minas, de que
participei, discutimos isso. O Brasil, não apenas nesses 20
anos, mas, sobretudo, nesses 20 anos, perdeu muito das características de nação brasileira. O colonialismo cultural foi
enorme. Se você observa a Amazônia, boa parte dela nas
mãos dos estrangeiros, havendo propriedade de dimensão
igual ao do Estado de Sergipe e outros pequenos Estados
do Nordeste. O colonialismo cultural atingiu a universidade e temos aí a universidade brasileira com tanta coisa mal
copiada da americana. Quando ouvimos rádio, temos dificuldade de encontrar coisa brasileira. Não sou xenofobista
nem contra os estrangeiros, mas é preciso ser nacionalista,
ser mais brasileiro. É preciso enfatizar, no Ministério da
Cultura a cidadania brasileira. Enfatizar a cidadania, enfatizar a cultura que seja à base do desenvolvimento do país.
Não conheço nenhum país que se tenha desenvolvido
sem uma base cultural. Não existe modelo de desenvolvimento desprovido de base cultural e é por isso que o modelo brasileiro não existe. O que temos é uma colcha de
retalhos copiada de modelos americanos, ingleses, franceses
e alemães. Temos que desenvolver estudos para fazer do
modelo brasileiro a base de nossa sociedade. Um modelo a
favor do Brasil e não contra o Brasil. O nosso modelo, que
deverá considerar as diferenças regionais, as características
culturais diferentes, conservando uma certa individualidade na diferença que todos nós temos. A busca da individualidade dentro da nossa cultura, para o que precisamos
convocar toda a sociedade brasileira, a fim de que tenhamos
uma evolução cultural com a participação ampla de todos.
191
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
INTERCOM: E o papel da universidade na atual conjuntura?
Aluísio Pimenta: Acho fundamental. No Brasil, o governo ainda não se deu conta disso. Nos últimos 20 anos,
as universidades tornaram-se católicas. A universidade
brasileira está sob intervenção. Quando fui reitor, tinha
autonomia para nomear professores, desenvolver programas próprios, criar unidades, naturalmente, dentro de uma
legislação geral, que é necessária. Hoje, a universidade perdeu presença, os reitores atuam como se fossem síndicos
encarregados de pequenas medidas, mas sem poder andar
abertamente para desenvolver a universidade, indo de encontro aos reais problemas do Brasil. É preciso libertar a
universidade, deixar que ela cometa alguns erros; mas, vamos livrá-la dentro de sua importante função social, dando
um bom ensino, um ensino excelente. A universidade só
será universidade se for excelente e, dentro dessa excelência, tem que se voltar aos problemas sociais e culturais. Ela
tem que colaborar com a comunidade, assumir seu papel
na cultura brasileira em seu sentido mais amplo, em seu
sentido antropológico, cultura no sentido de cinema, rádio,
televisão, das novas tecnologias que estão aí permeando.
Nós acabamos de ter, aqui, o fenômeno dos Menudos que
me preocupou profundamente. Por quê? Três ou quatro
meninos, muito bons e tal, e que empolgam a meninice
aqui e, na América Latina e, que até certo ponto, têm uma
mensagem que eu não consigo ver. Eu não consigo ver,
mas os meus netinhos eu não consegui segurar em casa. O
filho de todo mundo estava lá. O fato é que setenta mil meninos encheram o Mineirão, talvez por falta de nós não termos mensagem, mensagem que esses meninos estão dando
192
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
e que nós não demos. Não adianta ser contra os Menudos
porque os meninos passam em cima de nós e vão. Da mesma forma não adianta ser contra os joguinhos eletrônicos.
O que temos que fazer é estabelecer opções, opções brasileiras com uma mensagem profunda, simples e boa que
a meninada aceite. Dentro dos joguinhos eletrônicos, uma
mensagem aproveitando nossa fauna, flora, nossa história.
Para isso, é preciso capacidade, criatividade, sensibilidade.
O grande desafio da universidade brasileira é o de voltar-se, sem perder qualidade, sem perder excelência, para os
problemas brasileiros. Seu papel é fundamental, sobretudo,
depois desses 20 anos de autoritarismo, pois as sequelas do
governo autoritário e da ditadura são pires do que a própria
ditadura e o próprio governo autoritário em si. É preciso
impedir que as sequelas da ditadura distorçam a cultura
brasileira, atuando, efetivamente, dentro desse campo.
INTERCOM: E a crise econômica e sua saída pela cultura?
Aluísio Pimenta: Acho que estamos distorcendo muita coisa, no Brasil, com relação à própria crise econômica.
Tomemos como exemplo a nossa alimentação, que a meu
ver poderia ser muito mais rica. Estive no Recife, a convite
da Fundação Joaquim Nabuco, e fiquei alojado em uma hospedaria. Realmente, uma beleza, sendo que a comida me
impressionou muito: cuscuz, um queijo especial de fabricação local delicioso, tapioca, enfim, uma alimentação de
primeiríssima qualidade feita de coisas nossas e de custo
muito mais baixo. E o que nós fazemos? Abandonamos
tudo isso e passamos a consumir alimentos que não têm
193
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
nenhuma ligação com a nossa realidade e a nossa cultura,
a um custo muito mais elevado.
Então, agora, estamos falando no problema cultural
e considero extremamente interessante todas essas perguntas. Realmente, o importante é olhar a questão cultural no seu sentido antropológico, em sentido totalizante
que atinge todas as áreas. Tome a nossa arquitetura, como
exemplo, e você verá que ela não se adéqua à nossa realidade. Temos nove meses por ano de Sol, mas fechamos
tudo e instalamos luz artificial, enquanto a luz natural grita
lá fora. Olhe o nosso vestuário, terno, gravata, totalmente
inadequado para o nosso clima tropical. Até mesmo no
setor farmacêutico que, atualmente, fatura cerca de dois
bilhões de dólares, quando 80% de nossas doenças podem
ser curadas com o chazinho caseiro, típico da nossa cultura,
enquanto que somente as realmente graves necessitam de
medicamentos.
INTERCOM: E sobre a cultura e a Constituinte?
Aluísio Pimenta: A Constituinte é fundamental do
ponto de vista da educação, da economia, e, evidentemente,
de tudo aquilo que engloba a cultura. É a grande saída nesse momento. Precisamos nos reunir e discutir todos esses
aspectos, para podermos fazer frente a todos aqueles que
estão se reunindo para impedir que possamos introduzir,
na Constituição brasileira, artigos básicos que permitam
o Brasil assumir uma posição de nação livre e soberana. É
fundamental que tenhamos uma Constituição flexível; mas,
ao mesmo tempo, muito corajosa, que impeça, por exemplo,
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
que os meios de comunicação estejam a serviço das forças
antibrasileiras. É preciso impedir que a educação seja colocada a serviço da colonização do Brasil. Impedir que a
arte brasileira e suas manifestações culturais se coloquem
a serviço de forcas contrarias a comunidade. Não tenho
nada contra a que os canais de televisão estejam a serviço
das empresas; mas, ao lado disso, são necessários canais de
televisão a serviço das universidades, dos centros culturais
e das nossas diferentes etnias.
A Constituinte é, nesse momento, a grande saída. E,
para que ela atinja seus objetivos, é fundamental que nos
reunamos com muita coragem, com muita inteligência e
muita dedicação, para estarmos preparados para a defesa
de uma Constituição que realmente seja a serviço do Brasil e não contra o Brasil.
195
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
196
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
24. Enzensberger: Poder e
estética televisiva26
Antonio Hohlfeldt e Sergio Capparelli
O poeta e ensaísta alemão, Hans Magnus Enzensberger, esteve recentemente, no Brasil, para lançamento de
seus livros, Eu falo dos que não falam27 e Com raiva e paciência28. Enzensberger era, literalmente, pouco conhecido,
no país, mas alguns de seus ensaios, especialmente sobre
os meios de comunicação, há muitos anos, vinham sendo discutidos em Universidade. Um deles, Elementos para
26. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano VIII, nº53, jul./dez. 1985. p.05-11.
27. Enzensberger, Hans Magnus. Eu falo dos que não falam. São Paulo: Brasiliense, 1985.
28. __________. Com raiva e paciência. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1985.
197
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
uma teoria dos meios de comunicação29, aguilhoava a esquerda
por ficar apenas em lamentações quanto ao uso dos meios
massivos por grupos dominantes, sem, no entanto, nada fazer para construir uma teoria socialista desses meios. Esse
texto apresentava uma visão otimista do jornal, rádio e televisão, mostrando suas potencialidades como propulsores
de mudanças sociais e democratização da comunicação.
Junto com esse texto, circulavam, nos meios universitários,
traduções espanholas ou francesas do ensaio Indústria da
consciência30, agora, traduzido e integrando o Com raiva e
paciência. Essas reflexões foram, de certa forma, um pré-texto dos elementos para uma teoria das mídias.
Mais tarde, em the television and the politics of liberation31, de1977, Enzensberger se torna menos otimista em
relação aos meios de comunicação. Já se reflete um certo
desencanto. O período entre os dois trabalhos foi marcado, é claro, por muitas mudanças. Basta lembrar que as
primeiras reflexões acontecem, logo após 1968, com seus
protestos estudantis e tentativas de alterações da estrutura
social. Nessa entrevista, Sérgio Capparelli e Antonio Hohlfeldt, Enzensberger fala sobre as mudanças ocorridas no
29. __________. Elementos para uma teoria dos meios de comunicação. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1977.
30. Enzensberger, Hans Magnus. “Le façonnement industriel des
Esprits” in Culture ou mise em condition. Paris: Union Générale
d´Editions, 1973.
31. __________. The television and the politics of liberation in the
new television: aprivate art. Cambridge: MIT PRESS, 1977.
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
contexto político-econômico, transformações dos próprios
meios de comunicação e, igualmente, no surgimento de
uma nova estética televisiva.
Capparelli – Do texto Elementos para uma teoria dos meios
de comunicação a Televisão e a política de liberação vão alguns
anos e uma grande mudança em relação aos meios de comunicação. Já se observa um certo desencanto nos seus textos. Pode
falar sobre isso?
Enzensberger – Passo por uma experiência bastante curiosa porque, aqui no Brasil, as pessoas me saúdam
como um expert em comunicações. Consideram-me como
um cientista da Comunicação. Em todas as universidades,
há pessoas que estudam esse assunto e me consideram
como um colega. Isso se deve puramente a uma casualidade, porque existem poucos textos meus traduzidos para
o Português. Um desses textos se chama Elementos para a
teoria da comunicação. Para mim, é uma parte muito parcial
de minha atividade, porque realmente não sou um expert
em nenhuma coisa. Não sou professor de nada. Então, não
quero me apresentar como uma autoridade nesse assunto.
Falo desse assunto como falo de outros problemas, sociais
ou políticos. Ao mesmo tempo, é certo que tenho me ocupado muito com questões da Comunicação – a chamada
‘Indústria Cultural’ – e posso dizer por quê.
Em primeiro lugar, não há um interesse acadêmico. Parto de uma experiência. A experiência é que os intelectuais,
na divisão social do trabalho, dependem dessa ‘indústria’ e,
por isso, para nós, não é uma questão puramente teórica,
199
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
mas um problema existencial de como nos comportamos
em relação às pessoas a quem vendemos nossas ideias, nossos textos, nossa experiência no trabalho. E esse é o motivo
por que não me ocupo das questões. Só depois, entrando
no problema, concluo que não me basta uma contestação
empírica. Começo a desenvolver certas ideias e, nesse caso,
minha convicção é de que não se trata de um problema
de categoria, mas de um fator determinante na estrutura
da sociedade. E nisso, não sou independente, não sou um
pioneiro, não sou o primeiro a chegar nesse problema, mas
estou muito influenciado pelas ideias da chamada Escola de
Frankfurt. Ou pela ideias de Brecht, por exemplo. Ele não
foi só escritor e tinha também muitos trabalhos teóricos.
Eu creio que ele se ocupou do problema pelos mesmos motivos que eu, talvez pelos conflitos que experimentou com
essa ‘indústria’. Ele tem um texto importante sobre um filme, baseado na Ópera dos Três Vinténs, de sua autoria. Os
direitos à utilização do argumento foram vendidos a uma
empresa, o que lhe trouxe uma série de reflexões sobre essa
relação intelectual/indústria cultural, além, é claro, do filme em si, como produto dessa indústria. Porém, para voltar
à questão, é certo que essa preocupação com os meios de
comunicação já tem uma certa história, porque é um problema com o qual trato há quase 25 anos. Num primeiro
momento, tratei de examinar o jogo complicado que fazem,
por um lado, os produtores, autores, diretores de teatro e
a briga com essa ‘indústria’. Para mim, não se trata de um
jogo unilateral. Um marxista clássico assume, normalmente, que há um jogo determinante nesse capital, que há um
capitalista proprietário de um jornal, de uma emissora, e
ele determina tudo e o intelectual seria, aproximadamente,
200
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
como o proletário dessa situação. Ele não tem nada o que
dizer e deve fazer qualquer coisa para vender seu produto,
sua força de trabalho. Esse é um amplo ponto de vista a
cerca do conflito com o que me debato. No meu entender,
há aqui uma dependência mútua, recíproca. O proprietário
não pode rescindir das ideias e das coisas produzidas pelos intelectuais. De maneira que o intelectual também tem
uma força nesse jogo. Essas ideias todas correspondem a
uma primeira etapa de minhas preocupações em relação à
Comunicação.
Capparelli – na segunda etapa aparecem, então, as ideias dos
Elementos para uma teoria dos meios de Comunicação.
Enzensberger – Sim, os elementos estão nessa segunda
etapa, que também corresponde a um momento determinado da história alemã, pelos anos 60, sobretudo 66, 67 e
68, quando havia um movimento muito grande de estudantes, um movimento social de grandes proporções. E,
nesse momento, foi criada uma série de ideias utópicas,
porque foi um movimento que quis atingir não só a superfície da sociedade, mas tinha aspirações e esperanças
muito maiores. Nesse momento, chamou-me a atenção
que a esquerda, sobretudo, tinha um certo temor dos novos
meios de comunicação, especialmente dos mais massivos,
eletrônicos, rádios e televisão, por um ataque de purismo.
Era como se essa esquerda rechaçasse o jogo complicado
para ficar com as mãos limpas: “com capitalistas não se
trata. Eu não quero me vender”. Para mim, parecia uma
atitude errônea e defensiva, de temor e falta de clareza de
201
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
sua própria capacidade. Então, foi de uma parte um ensaio
polêmico contra essa atitude e, por outra parte, um exame
das possibilidades inerentes aos outros meios de comunicação, como o rádio e a televisão. Admito que, nesse texto,
havia uma carga utópica muito forte, mas que vinha sendo posta à prova. Isso porque havia toda uma série de rádios piratas, de cooperativas, de fazer filmes coletivos. Em
todas as partes, surgiam tentativas de novas experiências.
E experiências que não foram condenadas, porque havia
muito potencial nisso. Depois, me dei conta também de
que subvalorizava, em tudo isso, a estrutura do poder e
suas formas de resistência. Sobretudo, na televisão, em que
o capital é fator dominante. Eu pensava em uma espécie
de autarquia dos meios, no sentido de que qualquer pessoa
pode manejar uma câmera. Assim, eu pensava o discurso
social levado a cabo pela maioria das pessoas. Que cada
um podia utilizar essas coisas e provocar um grande diálogo democrático dentro da sociedade. O que se produziu,
porém, foi algo muito diferente: a comercialização, sobretudo em televisão e a tendência ao monopolismo. E também
o estabelecimento de um mercado mundial de televisão,
passando pelos Estados Unidos. Há igualmente os custos
da operação – cabos, satélites. Esses custos aumentaram,
junto com o nível técnico, com a adoção da tevê em cores.
A cada dia, surgem novas tecnologias e, a cada dia, essas
tecnologias se fazem mais e mais caras. De maneira que
há, agora, uma tendência não à descentralização do meio,
mas à centralização em poucas mãos, a clássica concentração dos capitais.
202
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Hohlfeldt – E também a nível político...
Enzensberger – E também a nível político. Depois de
68, o controle político da televisão aumentou consideravelmente. Na Alemanha, por exemplo, existe um sistema
de televisão pública. Os canais não são estatais, nem privados. São ‘coisas’ públicas, teoricamente, por representantes das igrejas, de partidos, de grupos sociais, de sindicatos. Existe, portanto, uma representação teórica do povo.
Mas, na verdade, são os políticos que controlam as grandes
emissoras, na Alemanha, assim como nos demais países.
Há uma divisão de controle entre o comercial, através da
publicidade, e o político, por meio dos partidos políticos.
De maneira que, muitos de nós, praticamente já não trabalhamos para a televisão, porque a filtragem é tão difícil e
as somas necessárias para fazer um filme são tão grandes,
que se transformam num jogo. Por exemplo, eu, quando
quero fazer um filme, tenho que lutar por meio ano para
ter dinheiro, condições e, depois trabalho, três meses para
fazer o filme. Torna-se, assim, uma produção absurda que,
para mim, não é mais interessante. E não se trata de um
caso individual, mas de uma realidade. Reconheço os erros
utópicos inerentes naquele ensaio, que podem valer para
uma sociedade com uma estrutura distinta. Teoricamente,
é possível uma coisa desse tipo. Na realidade, reconheço
que isso não aconteceu e não creio que acontecerá – não
foi produzido – e não será num futuro previsível. Por isso,
tenho que retificar para não cair em ilusões.
203
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Capparelli – E para o rádio?
Enzensberger – Para o rádio, o discurso é diferente, por
ser um meio mais barato, mais simples, que exige menos
investimentos, além de maior mobilidade. Eu continuo
trabalhando para rádio porque não há esses bloqueios, filtragem, cesura do mesmo tipo. É mais acessível, além de
não ser monopolista. Bom, esta é a parte político-econômica. Depois, repensei também a questão da estética da televisão. Nisso, também, mudei um pouco de ideia, porque
há também uma história que não é a história material do
meio, mas a história do desenvolvimento de uma estética
televisiva. Nesse nível, penso que houve um desenvolvimento negativo porque, teoricamente, é um meio polivalente, no sentido da imagem, som, linguagem. Porém,
a televisão existente é um meio, a cada dia, menos capaz
de coerência, a cada dia, mais impaciente, mais neurótico,
mais arbitrário na montagem, mais agressivo e, em certo
sentido, mais terrorista. Existe um ataque sistemático, para
não permitir ao espectador o mínimo de tempo necessário para entender uma coisa, para meditar. A pausa, por
exemplo, não existe. Numa conversação normal entre duas
pessoas há uma pausa, há a continuidade, há a paciência.
Isso não existe na televisão. É também pelo fator da publicidade. Refiro-me, como exemplo, o terremoto do México,
no noticiário, em que a pior coisa foi o anunciante vender
seus produtos entre uma notícia e outra. Nesse sentido, a
estética televisiva não tem possibilidades positivas e mais e
mais entra num quase estado psicótico. Ela traz algo como
a percepção do mundo vivido por um psicótico.
204
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Hohlfeldt – credita que isso acontece também com os jornais?
Pergunto por existir uma certa subordinação dos textos à diagramação e, também, pela imposição de textos cada vez mais
curtos por problemas de espaço.
Enzensberger – Claro, a tendência é quase universal.
Mas, no caso jornal e televisão, é um pouco a relação entre
o bife e o hambúrguer. Com tudo isso, para mim, há uma
revalorização da coisa de Guttenberg. Havia um famoso
McLuhan que decretava o fim do livro e está muito claro que não há um meio eletrônico capaz de substituir a
imprensa. Por isso, nos jornais, esse processo tem limite
inerente ao meio, creio. Porque, abolir completamente a
informação, o argumento, o discursivo em um jornal é uma
coisa bastante difícil. Há um ‘caso-limite’. O Bild Zeitung,
da Alemanha, conseguiu a proeza de ser um jornal sem
informação. Por incrível que pareça, é verdade.
Penso que há uma dialética entre a televisão e o jornal. O poder de competência do jornal está justamente
nas suas velhas virtudes. Isso se observa, também, nas sociedades que têm uma televisão muito forte. Os jornais
sérios não sobrevivem e proliferam os do tipo Boulevard.
Eu levanto a hipótese de que há uma sociedade, ou haverá
uma sociedade, de classes em termos de informação. Falo
de informação de classe. Há uma minoria que não dispõe
de todas as informações e será capaz de entender certos
processos e uma minoria, vítima de um analfabetismo de
segundo grau. Por isso, a imprensa séria não desaparece; ao
contrário, especializa-se, atingindo essa faixa da população.
A divisão funciona, economicamente, porque não são essas
pessoas que determinam os anúncios. A classe informada
205
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
não corresponde diretamente à classe econômica, por que
há um fator de opção. Dificilmente posso optar por ser
bilionário, mas posso tentar ingresso na classe informada.
Muitas vezes, é hereditário. Os filhos dos informados serão
informados. Então, nesse sentido, pode-se falar de classes.
Hohlfeldt – Em Indústria da Consciência, você prossegue um
caminho de Adorno, da Escola de Frankfurt, privilegiando a
produção. Mas, naquele texto, nota-se igualmente uma ênfase ao
receptor. Agora, mais recentemente – se entendi bem – você volta
a privilegiar, de uma maneira quase exclusiva, a produção.
Enzensberger – Interessa-me muito a parte do receptor por existir esse campo de eleição, de escolha, por
essa opção, enfim. Interessa-me, politicamente, também,
porque é uma questão muito importante na medida em
que o receptor é uma vítima passiva, uma vítima e, em que
medida, é também um cúmplice. Porque há uma margem
de liberdade em tudo isso. E, no esquema clássico da práxis marxista, as massas aparecem como as vítimas piegas e
inocentes. O argumento se repete, quando há a dependência, por exemplo, de um país como o Brasil. Há um fator de
força, no qual o país é vítima de uma agressão, econômica,
política e, muitas vezes, militar. Não nego isso. Não nego o
imperialismo. Ao mesmo tempo, há algo de complacente
em dizer: “Nós não podemos fazer nada porque eles são
mais fortes. Nós somos vítimas inocentes de uma agressão”.
Isso vale sobre um plano econômico, militar. Mas, sobre
um plano cultural, já não é certo, porque há também uma
aceitação voluntária. Isso também vale, quando se trata de
206
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
um telespectador ou de um ouvinte. O que falta, porém,
em toda a análise, é um fator qualitativo da recepção, por
ser algo pouco acessível à investigação científica. Com os
testes imagináveis, com toda análise de mercado possível,
toda a mensagem estética é polissêmica, portanto, admite
leituras distintas. E, nesse sentido, não vejo uma teoria da
recepção capaz de distinguir, de realmente averiguar o que
sucede quando um texto e um leitor se encontram. Todas
as experiências desse tipo demonstram que há textos que
realmente mudam uma vida. Eu, pessoalmente, posso dizer
que, em qualquer texto, há uma ação que, estatisticamente,
não é comprovada, mas que, porém, pode mudar tudo. E
também no sentido negativo. Havia um jovem, em Viena,
em 1912, mais ou menos, que num antiquário encontraram alguns tratados sobre os hebreus, a franco-maçonaria,
uma literatura muito trivial, de pouco preço e esse senhor,
depois, descobriu-se, era Hitler. Na verdade, foi uma ação
determinante para Hitler encontrar a grande conspiração
dos hebreus e, com o resultado, foram assassinados seis milhões de pessoas na Europa Central. Esse é um mecanismo que escapa totalmente à teoria da recepção, porque é
uma coisa imprevisível. Não importa quanto foi a tiragem
do folheto, porque, às vezes, basta um. Outras vezes, com
um milhão de exemplares, nada acontece. É muito relativo
tudo isto. Eu prefiro, como autor, ver as coisas nos aspetos
mais positivos. Gosto do aspecto anárquico da leitura. Não
penso que seja justo insistir na interpretação justa de um
texto, como fazem muitos professores. Para mim, não existe
sentido, por que cada um, com sua experiência, com sua
necessidade e seus interesses, faz uma leitura distinta que
não é controlada pelo autor. E não se sabe o quê.
207
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Capparelli – Essa leitura própria, individual, não acontece
com o noticiário da televisão?
Enzensberger – Creio que devido à estrutura estética
da apresentação, seria muito difícil fazer uma leitura coerente disso. Não é tanto a crítica ideológica do noticiário
que me interessa – seus conteúdos pró-americanos, pró-capitalista, que é a preocupação das esquerdas. Não é essa
a minha preocupação, mas sim por que nada se filtra, nada
se transmite. Ou, então, transmite-se apenas a mensagem
que faz reconhecer a marca de um chocolate, quando estou num supermercado. E isso é uma não-visão do mundo.
São mensagens meio alienadas, no sentido psiquiátrico da
palavra. É impossível entender o que se passa no mundo,
não há o mínimo de coerência. Não será talvez o fim do
mundo, porque as pessoas mantêm, em seu próprio mundo, experiências reais. Não existe uma pessoa para a qual
todas as percepções lhe chegam pela televisão. Isso seria
um caso clínico. Não creio em vitimismo e acredito que,
muitas vezes, o nível inconsciente se dá conta de que a
televisão é uma coisa e a realidade, outra.
Capparelli – Neste aspecto estético, houve uma tentativa de
renovação do discurso formal da reportagem. Até que ponto a
retórica literária aplicada à reportagem escrita transforma a
informação, por dotá-la de valores estéticos?
Enzensberger – Essa é uma preocupação que tenho,
há muito tempo, e pessoalmente fiz uma série de experiências entre o limite do ensaio e a reportagem. Penso
que há muita coisa que se pode dizer nessa direção. Existe
208
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
o ensaio acadêmico que tem uma tese. É discursivo. Um
tipo de ensaio que eu fiz, pelo menos no início. Porém,
dava-me conta, depois, que nesse procedimento linear se
perdia muito. E a parte mais importante do que se perde
é que eu, sabendo antecipadamente o que quero ao final,
privo-me da escrita, do escrever como método para descobrir coisas não conhecidas, antecipadamente, por mim ou
pelos demais. E, nesse sentido, todas as técnicas literárias,
têm um sentido cognitivo, porque são elementos também
para conhecer as coisas. Se de uma parte existe um discurso filosófico, de outra parte, há uma narração, existe uma
coisa inventada, existe o que me dizem os outros, há a citação, há a descrição. Tudo isso me leva a escrever um texto
muito polivalente, contendo muitas facetas da realidade e
não só coisas que não quero comprovar. O produto final
pode, então, trazer todas as contradições que existem na
realidade. Digamos São Paulo. Como se pode comprovar
São Paulo? Fazer uma tese e depois concluir um discurso
linear? E onde fica São Paulo em tudo isso? O ensaio, de
certa maneira, reverte a suas origens. Os senhores Montaigne e Heine, para dar dois exemplos, sempre trabalham
nesse sentido, porque admitiram, no contexto do ensaio,
muitas coisas: narram histórias, contam conversações com
outras pessoas, citam autores anteriores. Não se pode, então, determinar exatamente que gênero é este. Porque tem
autobiografia, tem erudição, tem debates. E isso é muito
mais rico. São coisas que correspondem mais à consistência, à configuração social.
209
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Hohlfeldt – Neste ponto do discurso, retorna-se a Platão, que
tem os diálogos e que conta histórias.
Enzensberger – Ainda que Platão tenha uma ideia
muito certa do que quer provar como texto. E o método
socrático tem sempre algo muito autoritário. Parece-me
muito demagógico. Não é tanto um sábio. Seria mais um
demagogo.
Hohlfeldt – Voltando à televisão, como você vê o desenvolvimento desses meios de comunicação, complexos, sofisticados,
num país de Terceiro Mundo, com contradições sérias, como é o
caso do Brasil?
Enzensberger – É realmente uma coisa que me chama muito a atenção. É uma coisa em que a teoria clássica
denominava a burguesia nacional. Nesse sentido, o caso do
Brasil é muito particular, principalmente se comparado
com o Peru, onde uma classe parece incapaz de procurar
uma infraestrutura mínima para o país entrar no século
XX, com suas universidades, suas comunicações. No interior do país, seus jornais parecem, na maioria, jornais de
1890. No caso do Brasil, é muito diferente porque existe uma
infraestrutura nos locais mais distantes do país. Nesse sentido, não é o terceiro mundo, porque tudo funciona, os correios,
os telefones, as comunicações terrestres com os autos, com os
ônibus... E, colocando isso no âmbito das estruturas das comunicações, existem muitas coisas desse tipo. O que é curioso
é que não há um desenvolvimento com uma base modesta,
dando os primeiros passos. Não, acontece tudo por saltos e faltam muitos passos intermediários. Aqui, existem dois níveis
210
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
que me parecem quase perigosos. Sempre há um risco de
se dar o segundo passo antes do primeiro. Tem um sistema moderno de televisão, mas não tem o primeiro passo,
que é uma rede de livrarias que, normalmente, ocorre antes
da entrada na era eletrônica. Tem uma indústria editorial
jovem e forte, mas falta uma rede de distribuição cuidada.
Há, também, outro problema: as pessoas, nos meios de comunicação, são mal pagas. Em um prazo muito longo, isso
não tem sentido, porque se o sistema adotado na exploração dos meios de comunicação é o capitalista, deve ser
capitalista também no pagamento dos empregados. Nesse
ponto, o capitalismo alemão, o capitalismo italiano não são
muito mais metódicos. Se o empresário tem necessidade
de quadros, é preciso pagar por isso. Não entendo o que
acontece. Acredito que os capitalistas brasileiros são muito
impacientes, querendo ter lucros imediatos.
Hohlfeldt – No Brasil, como na Alemanha, a poesia experimenta muitas dificuldades e vive uma crise de público. Como
vê esse procedimento, já que você deve ter interesse, como poeta,
que suas ideias sejam postas em discussão e chegam a todas as
pessoas?
Enzensberger – Devo dizer que, nesse caso, o cálculo
de público tem um papel muito secundário. Penso que de
toda maneira estamos nos deparando com situações quase
sempre de minorias. Penso que as minorias são uma parte
importante no processo social. Na dinâmica da sociedade,
apresentam-se quase sempre as minorias. Poderia dizer-se que as minorias são menos importantes. As minorias
211
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
criam um distúrbio produtivo, no interior de uma sociedade, e sempre está presente o proletariado. É a minoria que
conta. E, no caso da literatura, sempre estamos em minoria de todas as maneiras. E dentro dessa minoria existe
outra que lê poesia. Posso dizer que os próprios críticos e
poetas não se dão conta desse potencial. Porém, quando
se pensa um pouco na história da literatura, vê-se que os
clássicos foram muito conscientes disso. No caso de Heine, por exemplo, sua poesia foi um meio massivo de comunicação. É uma cosia a que se deve prestar atenção, porque
existe a poesia autolimitante, que é quase um discurso de
uma certa vanguarda histórica, “onde tanto menos público,
tanto melhor poesia”. É exatamente o contrário. Esse é
um raciocínio totalmente absurdo, porque a poesia fala e
por isso existe o aspecto da comunicação. Brecht é consciente disso e pude aprender com ele que é possível construir uma poesia acessível a uma pessoa de rua e, em outro
nível, a uma pessoa que leu coisas. Devem-se considerar os
níveis de acesso no interior de um poema. Esse é um meio
de que gosto muito e o resultado seria uma poesia que não
afasta nenhum público e para cada público tem uma mensagem, um nível diferente. Existe um pequeno livro de poesias minhas que atingiu mais de 100 mil exemplares e se
explica não pela propaganda, mas pelo fator comunicativo
do texto e, também, certas temáticas. Não sei!
212
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
25. Geraldo Pastana:
Comunicação na selva32
Regina Festa
I- Às Margens do Tapajós
No dia em que for possível contar as histórias da colonização amazônica, ao longo dos anos 70, as sagas do ‘velho oeste’ norte-americano nos parecerão, infinitamente,
menos heróicas e menos cruéis.
Tudo começou durante o governo Médici. Era tempo
de integrar a Amazônia. Com o slogan “Homem sem terra para terra sem homem”, brasileiros do campo, sobretudo do Rio Grande do Sul, foram escolhidos a dedo para
povoar e cultivar as colônias agrícolas à beira das grandes
estradas. Transportados de avião até Manaus e, depois, de
ônibus até as estradas ou vicinais que cortavam o coração
32. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano IX, nº54, AN./JUN. 1986. p.05-16.
213
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
da selva – e era só o que havia: estradas – famílias inteiras,
com uma promessa de propriedade da terra nas mãos e
mochila às costas. Assim, com esse sonho, muitas famílias
se mudaram para o interior da Amazônia. Parecia outro
planeta, conta um trabalhador.
Hoje em dia, ninguém se surpreende ao encontrar na
Selva Amazônica homens e mulheres de tipo germânico:
altos, fortes, loiros, olhos azuis, pele agora morena do Sol
que torra, tomando mate nos fins de tarde.
Para aqueles que testemunharam, o Brasil-brasileiro
pulsa forte no coração amazônico: gente de todos os lados
— do sertão, da caatinga, do agreste, dos pampas, os “paulistas” – ali compartilham, atualmente, a cultura, a rede, a
farinha e o sal, o mate, o calor endiabrado, a falta de recursos mínimos, a poeira da Transamazônica, da Santarém-Cuiabá, que se estendem quilômetros adentro pela mata,
as chuvas de inverno que só fazem aumentar o calor e,
sobretudo, a esperança numa outra vida mais digna.
A entrevista que se segue foi feita em Santarém, numa
das muitas casas de madeira que se erguem próximas ao
rio Tapajós. Da janela onde estávamos, podia-se ver, não
muito distante da casa, a junção dos grandes rios: as águas
límpidas, verdes do Tapajós fundindo-se à massa barrenta,
vermelha e violenta do Amazonas. Podiam-se ver também
o porto, as fileiras de barcos coloridos e ancorados, as redes penduradas no convés e o pessoal preparando-se para
zarpar, levando os viajantes que chegam e partem até povoados à beira dos igarapés, adentro dos afluentes grandes
e escondidos pela selva.
Santarém está localizada no centro-sul do Pará, Estado cuja área territorial é 30 vezes maior do que a Suíça.
214
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
O Pará é o principal estado brasileiro em exploração de
minério: ouro, ferro, cobre, manganês, cassiterita, calcário,
chumbo, diamante, caulim, carvão, cromo, bauxita etc.,
extraídos principalmente na Serra dos Carajás. Além disso, exploram-se, no Pará: a pesca, extração de madeira, de
borracha, produtos naturais, como a pimenta-do-reino, cacau, cravo, frutas etc., e é uma das áreas privilegiadas pelos
projetos agropecuários por parte do capital internacional
associado. É uma das regiões centrais de conflitos de terra.
Éramos seis para a entrevista: Geraldo Pastana, presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém,
eleito pelas bases, dois delegados sindicais, dois membros
da FASE — Federação de Órgãos de Assistência Social e
Educação, entidade que apóia o Sindicato.
O Sindicato tem sede física na cidade de Santarém.
Mas, na verdade, ele espalha-se pela selva, onde estão as
delegacias e os delegados sindicais. Seu raio de ação atinge
todo o município de Santarém, uma área de aproximadamente 27 mil quilômetros quadrados, maior que a extensão
territorial de El Salvador. O Sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Santarém é um dos núcleos mais avançados e
combativos da área rural. Em nível nacional, é o Sindicato
mais consciente a respeito de meios de comunicação, apropriação e uso de meios populares e alternativos. Com eles
nos sentamos para discutir comunicação.
II – A importância do rádio
Na semana passada, num final de tarde lá na beira da Transamazônica, todo o pessoal estava ouvindo um programa na
215
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Rádio Rural, depois de um dia de trabalho no roçado. Eu
perguntei que programa era aquele e um trabalhador me
explicou por alto que era um programa da Rádio Nacional
de Brasília. Vamos começar nossa conversa por aqui: o que é
a Rádio Nacional de Brasília para vocês?
A Rádio Nacional de Brasília é a mais ouvida na Amazônia. Tem programas especialmente para o Pará, Acre,
Amazonas, toda essa extensão aqui. É a rádio mais ouvida que existe. Os programas são para a Amazônia, onde
as colonizações estão sendo feitas de 1972 para cá, para
as famílias que vêm entrando em toda essa região, onde
tem grandes seringais, onde tem as grandes estradas como
a Transamazônica, Santarém-Cuiabá, essa estrada, onde
tem milhares de famílias que já estão aí e milhares que
estão chegando. É urna rádio que faz a propaganda direta
do governo e que tem a tendência de fazer com que o povo
não se organize nas suas comunidades. É uma rádio que
ultrapassa todas as outras.
Desde quando ela existe para vocês?
Ela entrou no ar de 73 para cá, que eu me lembre. Talvez, um pouquinho mais tarde, pelo seguinte: quando surgiu essa rádio, foi quando foi fundada a ‘Radiobrás’. Acho
que foi no finalzinho do governo Médici e, uma das razões
que eles deram, foi que, na região Amazônica, a penetração
e a audiência das rádios estrangeiras, Cuba, Albânia, BBC
e, até a rádio de Moscou, era muito grande. Mesmo porque
não há defesa. Você pega numa onda fora do comum e
216
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
as emissoras nacionais não atingiam essa área. Então, começaram a se preocupar com isso. Eles disseram que as
rádios estrangeiras tinham uma capacidade tão grande de
cobrir o que estava acontecendo, no Vale do Araguaia, que
se ouvia com uma perfeição muito grande. Daí, o governo
incentivou a ‘Rádio Nacional’. No norte de Mato Grosso, não sei se vocês pegavam lá, no sul, em 1975/76, por
exemplo, o pessoal ouvia muito a Rádio Brasil Central e
a Rádio Marajoara, que tinham a programação como a da
Rádio Nacional: música caipira, programa de mensagens
que é tradição, nessa zona, tinha o ‘Trio Iracema’, quando estavam no começo. E a Rádio Nacional, ao fazer isso,
agora com uma organização muito melhor, chega até nos
seringais do Acre, consegue enviar notícias do INCRA,
em Rondônia, para uma colônia em Cuiabá, manda notícias para todo lado e todo mundo ouve.
Mas como é que ela funciona? Ela entra em cadeia em toda
a Amazônia?
Eles têm o estúdio, em Brasília, e têm toda a emissão
direta para a zona rural por uma série de repetidoras. Então, em certas horas, ela entra em cadeia com as rádios
locais e rádios rurais, no geral, orientadas pelo INCRA.
Qual é para vocês o objetivo dessa rádio cobrindo toda a
Amazônia?
Bom, ela é uma rádio do sistema ‘Radiobrás’. O objetivo
anunciado, no início, de fazer frente às rádios estrangeiras,
217
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
procede. Mas, o objetivo maior é fazer com que as comunidades mantenham suas esperanças voltadas para o Estado,
que confiem nas decisões do Estado. É fazer com que as
comunidades não se organizem, não procurem um futuro conquistado por elas próprias. Agora, ela presta alguns
serviços para poder criar uma rede, uma clientela, que são
os ‘recados’ para o garimpo, para os seringais, para as vilas distantes. Ela manda recados para todos os cantos do
Amazonas, Pará, Maranhão, Macapá, Acre, Roraima, toda
essa área. Então, o pessoal começa a ouvir seus nomes pela
rádio, algumas vezes, atendendo a um pedido, e começam
a sentir que estão sendo úteis de alguma forma.
Como é que se enviam os recados através da rádio?
As pessoas escrevem para a rádio, lá em Brasília. Por
exemplo, se alguém está procurando algum parente, lá, em
Boa Vista, escreve para a rádio, pedindo que se esse parente estiver em qualquer parte daquela área, ou em qualquer
outro lugar, que mande avisar. Então, o pessoal começa a
seguir o que acontece não só através do rádio, mas na região também. E é aí que a audiência prende.
Gostaria que vocês contassem desse programa que os trabalhadores estavam ouvindo no final da tarde, lá na Transa.
Era um programa de Edelson Moura e de Márcia Ferreira.
É, esse programa é das 5 às 6 horas da tarde, em cadeia
com todas as outras rádios. É um programa de perguntas e
218
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
respostas, de música, recados. Responde às perguntas que
o pessoal faz, ou a quase todas, pois já mandamos perguntas que nunca foram respondidas. Só o que interessa eles
respondem. Mas, respondem perguntas sobre seringais,
quando vai passar o barco da assistência médica, qual a
linha que o barco vai fazer. Respondem e informam sobre
vacinação, como tirar documento, quando é que virá uma
equipe tirar registro de nascimento, quando é que o Banco
do Brasil vai fazer financiamento, como se faz sabão caseiro, como se trata de bicheira de bezerro, conta o que se
deve dar quando o porco está com diarréia.
Vocês acham que as respostas ajudam, que são dadas por gente que entende?
Eles dizem que consultam especialistas, em Brasília, ou,
então, dizem “o Instituto Nacional do Álcool nos deu essa
resposta...” Mas, o principal que se nota tanto em Edelson
Moura quanto em Márcia Ferreira, é que eles sabem falar
muito bem, que eles se comunicam muito bem como pessoas de rádio. Além disso, o pessoal pede muito música e
eles são cantores. Outra coisa que os dois fazem é que eles
saem de região em região fazendo apresentação no circo.
No nosso caso, acontecido aqui, nessa área da Transamazônica, em que a gente mora, os dois chegaram cinco dias
antes de um Ato Público, que o pessoal estava preparando.
Então, tinha um circo, aqui, em Rurópolis. Os dois chegaram e passaram a tarde jogando futebol com o pessoal e, à
noite, se apresentaram no circo. Segundo informações que a
gente tem, eles saíram daqui com um milhão de cruzeiros no
219
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
bolso, dinheiro dado pelos trabalhadores rurais. O INCRA
colocou carro à disposição do pessoal e quem quisesse ir,
foi. Levou muita gente mesmo. Essa apresentação deles,
em Rurópolis, foi exclusivamente para esvaziar o Ato Público. O pessoal estava fazendo a mobilização, que estava
sendo bem aceita pelos trabalhadores, e o INCRA estava
tentando esvaziar, há muito tempo, mas não conseguia. Aí
promoveu essa vinda deles e aproveitou para fazer entrega
de títulos a todo o pessoal nesse dia.
Entrega de título definitivo de propriedade de terra?
Título definitivo, não. Título de ocupação, que é para
arrumar terra ao pessoal.
Edelson e Márcia entregaram os títulos?
Não. Mas, foi aproveitando a vinda deles aqui, a mobilização. Então, já se aproveitou para fazer propaganda para
as eleições de 82, feita por Edelson, Márcia e pelo pessoal
do INCRA. E, afinal, eles conseguiram abarcar muita gente que ia ao Ato Público.
E quanto gastava cada trabalhador para entrar, mais a
passagem?
Uns 400 cruzeiros cada um para entrar. A passagem,
geralmente, era grátis para chegar. O INCRA dava. Mas,
eles não fizeram o trabalho bem feito, pois levaram o pes220
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
soal; porém, na volta, tinham mais de mil pessoas, só de
Rurópolis, sem condução para voltar. E isso deu uma revolta muito grande no pessoal e a gente aproveitou para
fazer o nosso trabalho. Mesmo assim, eles conseguiram
esvaziar bastante o Ato Público.
Voltando ao programa dos dois na Rádio Nacional. Qual é o
nome dele?
É o “Pergunte o que quiser”. Mas, veja: uma vez escrevemos perguntando por que existem tantos conflitos de
terra, aqui, no Estado do Pará, e por que o INCRA, que é
o responsável pela Reforma Agrária, é quem está tomando
a terra dos posseiros? Não foi respondido. Conhecendo a
área como a gente conhece e a problemática que ela tem, é
possível que cartas, como essa, sejam recebidas as centenas
e, como a atitude da rádio é motivar a população a obedecer às determinações do Estado, ela nunca vai dar esse tipo
de resposta. Eu acredito até que muitas das perguntas nem
são feitas pelo próprio povo. Acho que muitas das perguntas são deles mesmos, lá em Brasília, porque, se numa área
tão problemática, como esta, surgem perguntas no gênero
desta: por que o INCRA atua em terra de posseiro?
Todo trabalhador tem rádio?
A maioria deles tem, as famílias têm. E o pessoal chega
da roça lá, pelas 4 ou 4 e meia da tarde e é, bem nessa hora,
às 5 da tarde, que começa o programa da Rádio Nacional.
Nas casas, se vê prestar atenção, a maioria dos rádios de
221
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
pilha fica em cima de uma prateleira, perto da máquina de
costura.
III — A televisão
Vamos falar de televisão. Por aqui ainda tem pouco aparelho
de TV.
É, ainda tem pouco. Mais é em Manaus, Belém.
Só nas capitais? Não chega às cidades mais desenvolvidas
onde tem energia elétrica?
Chega, mas o maior problema aqui não é energia. É a
potência da emissora local, porque, mesmo com energia,
não pega e o pessoal precisa fazer ginástica com a antena.
Quando a televisão chegou a Santarém?
Em maio de 1979.
Vocês sentem que houve mudança entre antes e depois de ter
televisão em Santarém? Mudou a vida do pessoal, apesar da
deficiência da TV nessa área?
Eu me lembro, por exemplo, que na festa de São João,
de 1978, no quarteirão em que a gente morava, rara era a
casa que não tinha fogueira. Eram mais de 40 fogueiras.
222
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Naquele mesmo ano, a gente viu danças, as famílias dançavam o folclore, Bumba-meu-boi, a dança do Tico-tico. Era
muito movimentado. Mas, aí chegou a televisão e, no ano
seguinte, caiu tudo: havia 10 fogueiras, na época de São
João, e se formava uma concentração em frente da casa para
ver televisão. De lá para cá, vem diminuindo ainda mais.
Acabaram-se as festas populares, é isso?
Na rua, não se vê mais isso. Festa, agora, é no clube. De
primeiro, tinha baile na sexta, sábado e domingo. Depois,
passaram a fazer só aos sábados. A cidade tinha quatro
cinemas. Dois fecharam, no começo de 80, porque, com
a chegada da televisão, ninguém saía de casa. Mas, agora,
estou começando a notar que, neste ano de 81, mais gente
voltou a participar da festa de São João. No primeiro ano,
quando o relógio marcava 8 horas, o pessoal estava todo
esperando a novela Pai Herói. Se a gente fosse para rua e
começasse a gritar, ninguém te socorria. Mas, a verdade é
que as pessoas começaram a conhecer os artistas e o estrangeiro. Muito artista ficou famoso, por aqui, e nomes
que apareciam na televisão viraram nome de casa comercial como o Marrom Glacê, Catucha... O problema é que a
televisão, aqui, ainda só chega com um único canal.
Qual é?
A Globo, Canal 4, TV Tapajós. Desde 79 até hoje, tem
um único canal, e eu acho que isso cansou um pouco o povo.
223
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
E a moda? O jeito de as pessoas falarem mudou?
A moda nem tanto, porque as roupas que vêm para
cá já vêm dos grandes centros do Sul. Não tem, aqui, em
Santarém, nenhuma fábrica de confecções. Então, a moda
chega, aqui, conforme os grandes centros. Agora, o que
mudou muito foi o palavreado e alguns comportamentos.
Apareceram frases que não se ouvia antes, termos de gíria
“oi, gatinha”, “oi, gatão”, isso nunca tinha por aqui antes.
As pessoas eram chamadas pelo nome. Não tinha esse tipo
de coisa. Alguns, para definirem um cara bruto, um cara
forte, agora, dizem “incrível Hulk”.
E o pessoal da Transamazônica, das vicinais, das várzeas
de corte de juta, vocês sentem que esse pessoal também está
influenciado pela televisão?
Estão um pouco, sim. É novidade. Tem muita gente que
vem para cidade, na casa de algum parente e fica grudado
na televisão. Muitos ainda nunca viram televisão.
Na Transamazônica, aí que é uma área mais conscientizada, vocês sentem que a televisão está influenciando?
A grande mudança é porque está chegando lá muita gente de fora. Toda hora está chegando gente do Ceará, Santa
Catarina, Rio Grande do Sul e outras bandas. Esse pessoal
chega trazendo mudanças de sua terra. Então, a influência
acaba sendo maior do que aqui, principalmente com o pessoal que vem do Sul, onde tem televisão por todo lado.
224
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
A televisão tem mobilizado os homens em torno dos jogos de
futebol?
Tem. Quase em todos os bares, restaurantes, sorveterias
têm televisão, que absorve as pessoas a ponto de a própria
comerciante virar telespectadora. Aí, os homens se reúnem
para assistir ao futebol.
Qual o horário em que a televisão entra no ar aqui em
Santarém?
Durante a semana, a partir das três da tarde e, aos domingos, às 10 horas da manhã. Mas, a televisão, ainda, é na
base do vídeotape e chega com uma semana de atraso. O
único programa direto é o Jornal Nacional.
IV – Publicidade nas ruas
E essas peruas que andam pela cidade?
É o Som Guarani e a Naton Publicidade.
O tempo todo eles circulam pela cidade? Como é isso?
Sim, eles têm várias peruas que ficam andando. A Naton tem duas e o Guarani tem quatro. Mas, a Naton tem
ainda um serviço de alto-falantes no centro da cidade.
225
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Como assim?
É um serviço que faz propaganda, o dia inteiro, das lojas, toca música. É só pagar e colocar.
Quanto custa a propaganda?
Para alugar uma boca de som, dentro da loja, custa dois
mil cruzeiros. A mensagem na praça está custando 200
cruzeiros. A perua está mil e 500 cruzeiros, por hora, para
fazer a propaganda na rua. A propaganda que quiser. Mas,
o que mais tem é propaganda de comércio ou, então, a chegada de um circo, as cartomantes. Elas anunciam “vem ver
o seu futuro”. Ou “cirurgião-dentista, chegado da Capital,
arrancará dentes, durante essa semana, em tal lugar. Para as
pessoas carentes, tem preços especiais”. Anuncia, também,
convocação de assembléias de clubes, atos públicos.
Ato público?
É, eles saem pelas ruas tocando o hino do Sindicato
e distribuindo panfletos. Anunciaram o 1º de maio. Eles
fazem de tudo. Pagou, anuncia.
E o pessoal presta atenção? Dá resultado?
Eles vão devagar, parando e tocando música que é para
chamar a atenção.
226
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
E o pessoal se reúne para ouvir a propaganda?
A criançada pára, quando toca música da onda discoteque, e eu acho que o pessoal sempre faz uma triagem do
que interessa e do que não interessa.
V – O Lamparina
Bom, eu queria, agora, entrar na história do ‘Lamparina’,
jornal do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém.
Segundo estou informada, o jornal passou por algumas etapas. Mas, como é que surgiu o ‘Lamparina’? Qual é a história dele?
O ‘Lamparina’ surgiu num grupo de trabalhadores do
campo e esses trabalhadores do campo passaram a ter uma
luta maior na área, e essa luta maior se tornou tão grande
que chegou a um Sindicato e houve, então, uma proposta
para o ‘Lamparina’ ser o porta-voz do Sindicato. Essa é a
história geral. Mas, de fato, houve na delegacia sindical de
Embuna – uma comunidade, que é uma delegacia sindical
à beira de um igarapé – um grupo de trabalhadores que
começou a discutir a possibilidade de lançar uma campanha eleitoral para tomar o Sindicato. Aí surgiu a ideia do
jornal, que acabou sendo lançado por essa delegacia sindical. A primeira edição do ‘Lamparina’ teve 300 exemplares
e aquela delegacia tinha 30 associados. Então, os jornais
foram distribuídos, também, para outras delegacias. A partir daí, desse trabalho apoiado com o jornal, as delegacias
sindicais foram se juntando e formaram a Corrente Sindical dos Trabalhadores Unidos. Então, começaram a surgir
227
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
as subdelegacias. As subdelegacias serviam de porta-voz da
‘Corrente’. Então, a campanha eleitoral tomou força e saiu
vitoriosa. Depois, os trabalhadores das delegacias decidiram que o ‘Lamparina’ deveria ser o porta-voz do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém, que foi tomado
pela ‘Corrente’.
Qual é o significado do jornal para vocês?
Mais importante do que o significado do jornal é o significado do que a grande maioria dos trabalhadores queria, ou seja, tomar o Sindicato pela base, Tanto o jornal
quanto a ‘Corrente’ começaram com um número pequeno,
mas foram aumentando, na medida em que as pessoas iam
participando.
Quanto tempo tem o ‘Lamparina’?
O ‘Lamparina’ foi lançado em maio de 79. Na medida
em que a ‘Corrente’ foi tomando mais corpo e passou a ser
a Corrente Sindical dos Trabalhadores Unidos, então, o
Sindicato mesmo confundia as coisas. Mas, é que a ‘Corrente’ todinha já estava dentro do Sindicato.
Queria saber como é feito o jornal. Tem a participação direta
dos trabalhadores?
Na verdade, é preciso que se entenda uma coisa. O ‘Lamparina’ não surgiu com pretexto de ensinar os trabalhadores
228
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
a ler. Ele surgiu como a maioria desses meios de comunicação, como um jornal para os lavradores. Agora, não
é um jornal feito para lavradores nos moldes dos que a
gente vê por aí. Esse jornal foi feito por pessoas que vivem
e trabalham junto com alguns lavradores, que convivem
com as suas necessidades, portanto, ele fala a linguagem da
realidade, do dia a dia. E é um jornal que leva em conta o
lavrador com todo o seu universo de aspirações etc. Mesmo assim, é um jornal que contou, desde o início, com a
participação dos trabalhadores rurais, desde a sua origem,
a escolha do título etc.
Bem antes de o grupo que o criou assumir a direção
do Sindicato, esses trabalhadores já tinham liderança reconhecida pela maioria. Mas, eles não tinham ainda assumido uma postura clara de quem vai encabeçar uma
campanha sindical. Na hora em que o grupo se decidiu
partir para luta, surgiu o entendimento de que o jornal era
um instrumento para ajudar muito. Mas, a ideia surgiu dos
trabalhadores. A aceitação do ‘Lamparina’, pela maioria, é
que deu forças para que se aumentasse depois a tiragem.
Mas, isso aconteceu, justamente, quando o movimento estava se fortalecendo.
E qual era a proposta da ‘Corrente’ para a campanha eleitoral do Sindicato de Santarém? Como o jornal anunciava?
A proposta da ‘Corrente’ era para escapar à diretoria
antiga, que não correspondia às aspirações, às lutas dos
trabalhadores. Eles estavam ali para cumprir ordens dos
órgãos oficiais, ordens extraordinárias, das autoridades.
229
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Então, buscava-se um sindicato dirigido pelos próprios
trabalhadores e o jornal explicava essas ideias. Agora, o
jornal não teria sido nada se os trabalhadores não saíssem
com ele e o distribuíssem de mão em mão, se as comunidades não entendessem o que estava escrito. Tudo o que
ocorria era amplamente comunicado.
Vocês sentem que o ‘Lamparina’ serviu, de verdade, para
mobilizar e organizar?
Agora mesmo, para o Ato Público de lº de outubro,
toda a mobilização foi feita com um número extra do
‘Lamparina’.
Como é que vocês distribuem o jornal no meio da selva?
O ‘Lamparina’ é distribuído por todo o município e por
todas as delegacias.
São quantas delegacias e subdelegacias?
Ao todo são 53. Mas, o Sindicato assume a distribuição
e coloca nas delegacias, de acordo com o número necessário. 30, 40, 50 jornais para cada uma. O jornal é vendido
e custa 5 cruzeiros cada. A distribuição é feita através de
caminhões, barcos. As linhas de caminhões e barcos que
passam pelas comunidades que são delegacias sindicais.
Geralmente, o delegado sindical também é uma pessoa
conhecida por esses donos de barcos ou caminhões. Mas,
230
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
esse envio nem sempre é muito seguro. A maneira mais
segura é colocar os pacotes nas mãos de companheiros que
estão fazendo essa viagem. Tem acontecido de enviarmos o
‘Lamparina’ pelo dono do barco e ele não entregar, porque
não está gostando da atuação do delegado sindical.
Pode ser por outro tipo de pressão?
Pode sim. Mas, de maneira geral, é assim que acontece.
Onde é que se situam as Delegacias Sindicais para a gente
entender melhor?...
Situam-se dentro da área do município de Santarém,
que é de 27 mil km2.
Atinge a Transamazônica?
Bem, o município inteiro pega oito áreas: Transamazônica, Rio Tapajós, Rio Irapurus, Lago Grande, a Várzea,
Ituquim e o Planalto, que tem duas áreas: Planalto I e II.
Cada região dessas tem um grupo de delegados sindicais
regionais e uma equipe de delegados locais que visitam
sempre as Delegacias Regionais. Então, o contato com as
delegacias é feito entre delegados regionais e delegados locais. Cada região tem uma equipe de delegados. No caso
do Ato Público, a distribuição do ‘Lamparina’ foi feita por
mais de 1.500 pessoas que saíram visitando as delegacias
e subdelegacias para levar o jornal e fazer a mobilização.
231
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Tinha área que o pessoal nem sabia que o Sindicato estava
sendo processado. Então, o pessoal ia, fazia reunião, discutia com os trabalhadores, com os delegados, para evitar
mal-entendido.
Por que o Sindicato estava sendo processado? O jornal dizia
como?
O jornal contava o fato. Contava o fato que estava
acontecendo. E chamava os trabalhadores para a mobilização do 1º de outubro, Dia Nacional de Luta, no qual seria
denunciada toda a sacanagem contra o Sindicato. Para que
essa questão não fosse mal-entendida pela Delegacia, era
preciso discutir com o pessoal para que os trabalhadores
soubessem o que viriam fazer aqui em Santarém, no dia
1º de outubro.
Alguns de vocês participaram dessa mobilização diretamente nas Delegacias Sindicais, levando o ‘Lamparina’?
Eu participei da mobilização em oito subdelegacias regionais da região do Planalto. Ali, as delegacias não eram
sabedoras do fato. Sabiam que tinha um processo, sabiam
que um possível processo estava sendo feito, mas isso não
estava claro para o pessoal. Daí, eu contava que, desde que
assumimos a direção do Sindicato, o jornal O Momento,
de Santarém, tinha uma coluna que falava mal da atuação sindical nossa. Sempre denunciava a gente e mais o
Geraldo, que é o presidente. Então, a gente contou que o
Sindicado estava sendo processado por nossa atuação. E
232
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
que já era hora de responder a essas acusações. E não ia se
responder, simplesmente, com o ‘Lamparina’. A gente ia
responder com um Ato Público, no dia 1º de outubro, esse
dia foi escolhido, em todo o Brasil, como Dia Nacional de
Luta. Então, a gente colocava isso, os próprios delegados
sindicais da área liam o ‘Lamparina’ extra e daí começava
o debate.
O delegado lia para a comunidade?
Lia para todo o pessoal presente. Mas, é que não deu
para mobilizar toda as delegacias, porque não deu tempo.
Nós passamos em um dia por oito subdelegacias: de manhã, de tarde e de noite.
E qual o seu meio de transporte para isso? De barco?
Não, foi por terra, andando. Mas, às vezes, dá para ir de
carro ou de bicicleta. Então, na delegacia que eu estive foi
assim. O delegado lia o ‘Lamparina’ e a, partir daí, tinha
uma discussão para que todos os trabalhadores entendessem o que estava escrito no jornal. Depois, todo mundo
entendeu e achou que deveria vir para o Ato. Das delegacias que eu estive, vieram vários caminhões com 100, 150
pessoas.
Já que estamos falando no assunto da leitura, gostaria de
saber como é que se dá a leitura normal do jornal entre os
trabalhadores.
233
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
As Delegacias Sindicais têm um dia de reunião para
discutir o assunto do delegado, saber o que está acontecendo com o Sindicato, prestação de contas e ler o ‘Lamparina’, discutir algum assunto que saiu. Em outras delegacias,
isso é feito nas próprias casas com a família. Aquela pessoa
que sabe ler melhor faz a leitura do ‘Lamparina’ e se discute na família. Em alguns lugares, a leitura ocorre individualmente. Em geral, esse trabalhador, quando chega à
tardinha, após tomar banho, senta na frente da casa, pega o
‘Lamparina’ e começa a ler.
Qual é a tiragem do Lamparina?
Três mil exemplares. Mas, não é tudo para as delegacias. A gente manda para fora. Ficam alguns para visitas.
Geralmente, é um jornal por família e a criança que sabe
ler, lê para os adultos. O pessoal tem uma mania de forrar
a parede com o ‘Lamparina’.
Fica como cartaz pregado na parede?
É, eles forram a parede. E quantas pessoas chegam e
quantas saibam ler leem. O pessoal faz uma espécie de
mural. Outra coisa também é que o pessoal lê, em alguns
cultos, nas capelas. Em alguns casos, o catequista também
é delegado sindical, então, ele lê o ‘Lamparina’ no horário
do culto, na capela.
234
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Depois de tudo o que foi contado, eu quero perguntar a vocês,
camponeses presentes, se vocês acham certo que um jornal sindical como o ‘Lamparina’ não seja feito por trabalhador rural.
Acho que a gente está dentro de um processo em que
nós estamos caminhando para que o Sindicato e os camponeses assumam o seu veículo de comunicação. A ideia,
no início, era ter um jornal para ajudar na campanha, apresentar a liderança. Desde o começo, os trabalhadores rurais
participaram, se não em toda a elaboração do ‘Lamparina’,
ao menos em parte dela. A gente acredita que tudo isso é
um processo que precisa ser integralmente assumido pelos trabalhadores rurais. Agora, a gente não tem prazo. O
mais breve possível. Mas, também, a gente tem que ver as
dificuldades dos trabalhadores rurais, não só em termos
de elaborar um jornal desses, mas a dificuldade em gastar
tempo com coisas que a gente acha secundária.
O que é coisa secundária? O jornal?
Não. É colocar a letra direitinho, para sair certinho e
bem bacana. É escrever. Uma coisa que a gente vê depois
do jornal pronto e que, é importante, mas que gasta muito
tempo para sair assim tudo perfeito. Coisas assim.
– Bom, eu também acho que, como o Geraldo estava
falando, na medida do possível, o trabalhador rural tem
que assumir o jornal. Primeiro, eu vejo isso com seriedade
porque, no nosso caso aqui, os companheiros que ajudam
na elaboração do ‘Lamparina’ são companheiros que realmente colocam toda sua vida no trabalho. Mas, vai que
mude? Que venha um pessoal ajudar e ter a ideia do outro
235
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
lado. Aí é que começa a preocupar a gente, porque eles
podem bolar um jornal que é contra a nossa luta. Digo,
porque isso já aconteceu em outros lados e pode acontecer
aqui. Tem casos, por aí afora, em que os camponeses são
levados a reboque. Isso preocupa a gente.
Última pergunta para os trabalhadores rurais: qual vocês
acham que é o melhor meio de comunicação para um sindicato rural como o de vocês?
– O rádio. É o meio mais importante, porque a gente
tem observado que a notícia chega ao mesmo tempo em
todo lugar. Então, se a gente conseguisse um horário em
que os trabalhadores rurais, já estão acostumados a ouvir
rádio, é claro que não poderá ser melhor, e melhor do que
o jornal. Agora, o meio eficiente, mais seguro, é através dos
próprios trabalhadores, dos militantes que se empenham
em ir até as comunidades. Não só porque a notícia chega
até o trabalhador, mas porque ela é discutida. A grande
riqueza que tem uma notícia levada pelo próprio trabalhador é que ela é discutida, enriquecida.
– Como o Geraldo estava colocando, eu também vejo
que é o rádio. Mas, só se fosse uma rádio do trabalhador, o
que não é possível ainda. Mas, a luta deve ser para chegar
lá. Agora, para nós, no nosso ponto de vista, por enquanto, os próprios trabalhadores devem assumir a caminhada,
porque o que se fala, uma série de coisas que se fala, diretamente, não se poderia falar numa rádio. Essa é a primeira vantagem. A segunda é que nessa conversa direta, os
inimigos não ficam sabendo o que a gente anda fazendo.
236
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Nós temos uma equipe de educação sindical com 85 companheiros que sentam, discutem, avaliam as mensagens, o
trabalho sindical, as regiões, que depois saem discutindo
com o pessoal das delegacias, levando a ideia do novo sindicato, a questão política. O trabalho é muito grande nessa
linha. E, por enquanto, por mais que a gente ocupe uma
rádio, não vamos poder dispensar o trabalho militante, que
agora é mais seguro e mais correto.
VI — Depois da entrevista
A entrevista, acima, foi realizada no dia 4 de outubro
de 1981. Estávamos na região com Paulo, companheiro da
Equipe de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae,
chamados pela diretoria do Sindicado dos Trabalhadores
Rurais de Santarém. Chegamos lá como membros do CEPIS para a realização de um filme com os trabalhadores e
delegados sindicais que, posteriormente, foi utilizado para
a campanha eleitoral da nova diretoria do Sindicato. O
filme chama-se Nossa força é nossa união e foi inteiramente discutido, filmado e produzido conjuntamente com os
trabalhadores da região. Novamente, ganhou a Corrente
Sindical, com 94% dos votos. O presidente eleito, Avelino
Ganzer, é atualmente membro da coordenação da Central
Única dos Trabalhadores.
Além do jornal e do cinema – a que muitos trabalhadores tiveram acesso, pela primeira vez, – a organização
dos camponeses levou a que se desenvolvessem técnicas
nativas de produção e impressão de cartazes, afixados em
árvores e cercas no interior da selva. Posteriormente, em
237
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
janeiro de 83, o Sindicato iniciou um programa semanal
na Rádio Rural, de propriedade da Igreja, com espaço cedido pelo bispo de Santarém. O programa chama-se Informativo Sindical, com 15 minutos de duração, e é transmitido aos domingos, às 8 horas da manhã, logo depois da
missa. Está dividido em três partes: a) informativo local e
nacional, que trata da situação dos pescadores, apanhadores de juta, dos trabalhadores da região, além de informar
acontecimentos importantes nas outras categorias sindicais do país; b) espaço musical, no qual se tocam músicas
populares e c) espaço educativo, contando a história do
sindicalismo, no Brasil, falando sobre a questão da terra
etc. O programa tem dois locutores e, como o ‘Lamparina’,
é feito com apoio da Equipe da Fase. Atinge praticamente todo o município de Santarém, com seus 27 mil km2.
Quanto ao ‘Lamparina’, já em 83, o pessoal do Sindicato
havia assumido inteiramente a produção do jornal.
Mais, recentemente, uma equipe da Fase, do Rio de Janeiro, foi ao local para realizar pequenas novelas, em vídeo,
para o trabalho do Sindicato com suas bases locais. Ou
seja, o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém,
localizado no meio da selva, em resumo, é o primeiro sindicato brasileiro a adotar variadas técnicas de comunicação
– jornal, cinema, rádio, vídeo, cartazes, música – no trabalho
de conscientização, formação, organização e mobilização.
Como mostra a história e como disse, na entrevista, o antigo presidente, Geraldo Pastana, tudo é parte de um processo que toma a dinâmica do crescimento da conscientização
e da organização dos próprios trabalhadores. Os meios e,
também, os conteúdos formam parte desse mesmo processo e, de maneira nenhuma, podem ser analisados fora dele.
238
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Efetivamente, este é um Sindicato com características
especiais, geradas pelo antagonismo do próprio sistema.
Ele está localizado numa das áreas críticas de conflito e
exploração da terra, no Brasil, de luta intestina pela exploração das riquezas minerais e produtos agrícolas. Além
disso, localiza-se numa das regiões onde estão os chamados pólos de desenvolvimento, ou colônias agrícolas. Para
lá, foram levados, desde o início dos anos 70, migrantes,
principalmente do Sul, repetindo o processo de imigração italiano-espanhol-portuguesa do começo do século.
Só que, agora, eram brasileiros, pequenos agricultores do
Sul, alfabetizados, com boa saúde, e algum conhecimento.
Muitos foram pelo fascínio da posse da terra, dada pelo
governo. Entretanto, a própria incapacidade do sistema
em poder responder às exigências mínimas de populações
entregues à Selva Amazônica, entregues aos antagonismos
da produção e exploração da terra, sob controle do Estado
e do capital associado, é que acelerou as contradições de
classe, determinando a construção de um processo histórico criado sob circunstâncias, com as quais os trabalhadores
tiveram que se defrontar diretamente. E que jamais buscaram construir.
Outro elemento importante a resgatar, dessa experiência, é a participação direta de entidades de educação popular, atuando a partir das novas exigências, que o processo daqueles trabalhadores ia gerando. Nessa experiência,
a Fase manteve uma pequena equipe permanentemente
junto aos trabalhadores, vivendo aí o cotidiano e a formação de uma nova identidade política e cultural, ao mesmo
tempo em que desempenhava a função de relacioná-los com
outros grupos e com o plano maior do processo político de
239
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
transformação social da classe trabalhadora.
Nessa linha, a educação popular não foi um projeto,
mas um processo de criação coletiva criado, naquela região,
a partir dos seus antagonismos e contradições, sem por isso
perder a dimensão do processo maior, no qual o Sindicato
encontra-se envolvido, sobretudo com a participação na
CONCLAT na coordenação da CUT e no Partido dos
Trabalhadores.
240
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
26. Bernardo Kucinski:
Promiscuidade e jornalismo33
Dario Borelli e Glória Kreinz
A Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA) contratou, recentemente, como
Professor-Colaborador, o jornalista Bernardo Kucinski. A
iniciativa faz parte do projeto do Departamento de Jornalismo e Editoração, no sentido de enfatizar a formação
crítico-profissional dos futuros Jornalistas e Produtores
Editoriais, cotando, para isso, com a colaboração docente
de profissionais de competência reconhecida no mercado
de trabalho.
“Não estou dando ainda um curso de jornalismo” – esclarece Kucinski – “mas, participando do Jornal do Campus. Com muita segurança, transmito aos alunos aquilo
que aprendi, na prática de fazer jornal, ou seja: as pautas,
33. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano IX, nº55, jul/dez, 1986. p.07-21.
241
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
as matérias e o fechamento. Aí, eu não titubeio. Estou me
propondo a dar um curso, no próximo semestre, de fazer
Jornalismo Econômico. Eu acho que, a partir disso, vai dar
para sistematizar, não tanto o que aprendi sobre o Jornalismo, mas o que aprendi sobre Economia como jornalista”
Nesta entrevista a Dario Luiz Borelli e Glória Kreinz,
editores assistentes da INTERCOM – REVISTA BRASILEIRA DE COMUNICAÇÃO, Bernardo Kucinski
fala da sua militância jornalística na imprensa alternativa
e nos veículos convencionais. Conta sua experiência como
correspondente estrangeiro e dá sua opinião sobre a questão do diploma de Jornalismo. Discorre sobre os meios de
comunicação e a Constituinte, além de explicar sua avaliação do Jornalismo na Nova República.
INTERCOM – Você iniciou suas atividades de imprensa,
no decorrer do curso de Física, que fez na Universidade de
São Paulo?
Kucinski – Eu sempre tive uma queda para escrever e
já, na Escola Técnica, antes da Física, fazia jornalzinho de
parede, muitos jornais de movimentos políticos. Quando
eu fazia Física, houve uma limpeza política no ITA, em
64, depois do golpe, e expulsaram vários alunos, entre eles,
Raimundo Rodrigues Pereira. E o Raimundo veio para a
Física, que recebeu essas pessoas e lá nos conhecemos. Então, eu comecei a participar de algumas coisas um pouco
mais importantes. Fizemos o jornal do Grêmio e outras
publicações de contracultura ou resistência política. Em
geral, eram organizados por alguma coligação momentâ242
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
nea de partidos clandestinos e a gente fazia isso voluntariamente. Eu fazia pelo prazer de fazer Jornalismo e pelo
prazer que sempre tive de ter uma participação política,
sem estar engajado em nenhuma dessas organizações.
Em 1967, se não me engano, fizemos o Amanhã, um
jornal que já vendia em banca e que foi um excelente jornal
alternativo, um dos melhores. Eu não era da equipe central, mas trazia o meu artigo. O Raimundo era o cara central, o Antonio Carlos Ferreira também já devia estar com
o Raimundo naquela época. E foi, através do Raimundo,
que eu fui trabalhar, antes de me formar ou, logo depois,
não me lembro bem quando, na revista Máquinas e Metais.
INTERCOM – Por que Máquinas e Metais?
Kucinski – Na Escola Técnica, fiz que se chamava Construção de Máquinas e Motores. Então, eu tinha um certo conhecimento em metalurgia. Essa revista, que fazia parte de
um grupo de revistas técnicas da ‘Editora Abril’ (Química
e Derivados, Transportes Modernos, Máquinas e Metais,
Médico Moderno, entre outras), era muito bem produzida.
Tinha um alto nível de profissionalismo, superior ao que
se fazia, no Brasil, na época, porque tratava de assuntos
frios que precisavam ser trabalhados, jornalisticamente,
com muito apuro. A gente realmente aprendia a escrever
gostoso, a bolar títulos gostosos, tinha muita reportagem,
você se dirigia às fábricas, aos congressos, aos seminários,
você estudava. Uma redação de melhor clima que sempre
houve, no Brasil, não havia competição entre as pessoas,
isso eu nunca mais vi em nenhum outro lugar. Tanto assim,
243
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
que esse pessoal, até hoje, é muito amigo. O período das
técnicas ninguém esquece.
Eu já devia ter uns 24 ou 25 anos, quando terminei o
curso de Física. Quer dizer, eu era um pouco mais velho
que o restante da turma que se formou. Achei que nunca ia
ser um grande físico, mas talvez pudesse ser um bom jornalista. Então, continuei no Jornalismo. Porém, fiz uma ou
duas tentativas de me encaixar como físico e não fui bem
aceito, apesar de não ter sido mau aluno.
INTERCOM – Quer dizer que você decididamente se tornou um profissional de imprensa?
Kucinski – Um ano e meio depois de trabalhar na ‘Máquinas e Metais’, foi criada a Revista Veja. Fizeram um
enorme concurso nacional, um carnaval excessivo para as
necessidades. E o Raimundo foi convidado pelo Mino
Carta para fazer parte da equipe. Pouco tempo mais tarde, ele viu uma oportunidade de sair da área de Ciência,
que cobria na revista, e entrar na de Política. Então, ele
me chamou para ocupar seu lugar como editor-assistente
de Ciência. Assim, eu saí da Máquinas e Metais e entrei
direto na Veja, quer dizer, dei um salto muito grande. Na
Veja, eu fiz uma carreira meteórica, essas típicas, no Brasil,
que é você entrar como editor assistente e, logo depois de
um ano, passar a ser um dos quatro editores. A Veja tinha a seguinte estrutura: um editor, que era o Mino Carta
e dois redatores-chefes. Todas as matérias passavam por
eles, antes de publicação. Mas, a função deles era supervisionar, dando uma espécie de garantia final. Quem mexia
244
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
muito mesmo eram os editores da área. Tinha o editor de
Vida Moderna, Ciência, Cidade etc. Essa carreira meteórica se deu, também, numa ocupação de espaço meteórico,
por parte dessa turma do Raimundo. Era uma época pesada, pois havia a guerrilha urbana, a repressão e tal. Nós
fizemos, na época, várias reportagens sobre tortura, que
tiveram muito impacto. Duas reportagens de capa, quando Médici assumiu e um dossiê nacional, também, sobre
tortura, que foi quando a barra pesou, entendeu? A equipe
teve que sair da revista, porque sentiu que não tinha mais
condições. Cada um seguiu um rumo.
INTERCOM – Qual foi a sua opção?
Kucinski – Em 1970, minha mulher precisou fazer o
doutoramento na Europa. Foi para a Inglaterra e eu fui
atrás. O Raimundo saiu da Veja e entrou na Realidade, um
tempinho só, até amadurecer outros planos. Na verdade,
ele já tinha planos de criar o Opinião. E justamente, em
Londres, eu conheci o Fernando Gasparian, e percebi que
havia uma certa aproximação entre as suas ideias e as do
Raimundo. Então, coloquei os dois em contato. Não participei das discussões que levaram ao Opinião, pois estava
na Inglaterra. Mas, colaborei muito com artigos, logo nos
primeiros números.
INTERCOM – Porém, antes de você partir para a Inglaterra, concluiu algum trabalho?
Kucinski – Quando nós saímos da Veja, tínhamos feito
245
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
aquele dossiê sobre tortura para usar nas matérias. Usamos,
porém, muito pouco esse material. Então, eu tive a ideia
de fazer um livro denunciando as torturas. Escrevi esse
livro de maneira dolorosa, quer dizer, a gente fazia com
medo de que, a qualquer hora, entrasse alguém, entende?
A minha mulher já tinha ido para a Europa. Fiquei para
escrever esse livro com o historiador Ítalo Tronca, que era
um jornalista, e hoje é professor na Unicamp. Foi quando
aconteceu o primeiro atrito entre eu e o Raimundo, que
não quis saber do livro. Achei muito estranho. Foi, nesse momento, que se cortou o cordão umbilical. Tornei-me
um ser independente jornalisticamente. Para mim, foi um
grande desafio escrever Pau de Arara – A Violência Militar no Brasil (Editora Masperó, Paris, em Francês; Editora
Siglo XX, México, em Espanhol. Não há edição em Português). Um jornalista muito conhecido do Jornal da Tarde, Luis Eduardo Merlino, ligado a um grupo trotskista,
interessou-se por esse trabalho, dizendo que tinha ligação
com a Masperó, que poderia publicar o livro. Eu combinei de me encontrar com o Merlino, no Café Cluny, em
Paris, na noite de Natal. Na verdade, nós passamos muitas
noites escrevendo esse livro. Depois, eu fui à Europa com
o original, na mala, meio apavorado. Isso deve ter sido por
volta de setembro ou outubro. Na noite de Natal, atravessei o Canal da Mancha, pela primeira vez, em minha vida.
Encontrei o Merlino lá sentado. Quando ele voltou ao
Brasil, foi preso e assassinado pela polícia, em algum lugar
da Baixada Santista. O livro já estava publicado. Esse foi
o primeiro livro sistemático que tentou analisar a questão
da tortura e a denunciá-la. Nós fomos para trás até a Coluna Prestes, porque de lá surgiram tanto Filinto Milleu,
246
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
quanto Prestes. A gente analisava a evolução desse grupo,
do grupo dos coronéis que conspiraram contra Goulart. O
livro tenta fazer uma análise histórica do tema, mas é mais
um livro de denúncias. Contém, inclusive, os primeiros
documentos de presos políticos denunciando torturas. O
pessoal trazia esse livro escondido no bolso. O atual correspondente da Folha de S. Paulo, em Buenos Aires, Flávio
Tavares, que esteve exilado no México, gostou do livro e
fez uma edição dele em Espanhol. Ficou excelente, melhor
do que o nosso original, pois tem umas notas de rodapé
boas, correções interessantes que ele acrescentou, enfim,
ficou uma edição bonita e boa. Essas duas edições não foram publicadas no Brasil. Sofreram pelo fato de não terem
assinatura. A gente não assinou, entende? Mas, nós deveríamos ter inventado um pseudônimo, o que garantiria as
referências.
INTERCOM – Trabalhou mais em algum lugar?
Kucinski – Antes de viajar para Londres, eu também
ajudei a fazer a revista Bondinho.
Uma característica minha: sempre ajudar em publicações novas. Acho interessante, é como nascer uma criança.
A turma do Bondinho era muito boa e isso me motivou
também. O Sérgio de Souza, esse pessoal todo, era muito
criativo na forma e no diálogo. O erro do Bondinho foi ter
aparecido cedo demais. Hoje, seria a época boa para sair
o Bondinho. Eu tinha a dose certa de convencionalismo
e não-convencionalismo, quer dizer, uma revista formal,
mas refrescante, diria inclusive que de vanguarda, naquele
247
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
campo, que queria cobrir, que era o da cidade de São Paulo,
o lazer, enfim, como viver bem em São Paulo. Hoje, isso é
uma questão central para os paulistanos.
INTERCOM – Como foi a experiência de exercer funções
de correspondente de jornal e revista brasileira em Londres?
Kucinski – Indo para Londres, fui com os contatos do
Bondinho e, também, conversei com o Mino Carta sobre a
possibilidade de mandar um volume modesto de correspondência à Veja. Eu sempre fui meio modesto com esse
negócio de dinheiro. Achei que 300 dólares por mês, para
aquilo que eu me propunha fazer, era o suficiente. O começo
em Londres foi um período muito duro, porque realmente
não fui com nenhum emprego em mãos, mas tinha que fazer as matérias, mandar para o Brasil e ver se eles aceitavam.
O Bondinho não tinha dinheiro para pagar as matérias. Havia o pessoal da Veja e, talvez o pessoal, das Técnicas.
Londres oferecia um campo excepcional, todos os dias,
chegavam grandes artistas, grandes políticos, pessoas na
tua mão pra você entrevistar. A solidão lá era muito grande. Você não estava num ambiente de redação, tinha que
fazer as coisas por conta para ver se dava certo. A cultura
inglesa é totalmente oposta à nossa: nós vivemos nas ruas
e eles nas casas, temos uma escala de valores e eles outra.
Isso provoca um isolamento muito grande em qualquer
brasileiro que vai viver num lugar como Londres. O que
não aconteceria na Itália, Espanha, Portugal ou, em Nova
Iorque, talvez. Eu trabalhava, corria atrás de assuntos, matérias e mandava para as revistas Técnicas e Veja. Fiz muitas
248
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
entrevistas interessantes naquela época: uma com Bernadett Devlin. Entrevistava artistas, escritores, políticos. Fiz
também três viagens à Irlanda do Norte, região conflagrada, na época, e isso foi um dos assuntos que eu não usei na
medida do material colhido. Eu tenho esse material, até
hoje, em casa, que ainda não utilizei: entrevistas feitas com
líderes guerrilheiros, feitas clandestinamente, entre outras.
Eu trabalhava também na BBC de Londres, na qual, todo
brasileiro que chega, dá uma encostadinha. Eu trabalhei
de todas as maneiras na BBC, free lancer, contratado, temporário. Eu acho que só depois de estar um ano e meio, na
Inglaterra, é que me senti um pouco melhor.
Um grupo de ingleses que tinha criado uma agência
de notícia, na América Latina, que não havia dado certo,
passou a utilizar o material que tinha em mãos, para fazer um boletim sobre a América Latina. Um dos editores
desse boletim escreveu um artigo idiota sobre o Brasil. Eu
escrevi uma carta, meio raivosa, contestando e criticando
a posição liberal dele. Então, a gente se conheceu através
dessa briga. Depois, ele me convidou para escrever no boletim. Por indicação dele, fui convidado por uma entidade
americana para fazer pesquisa, no Brasil, sobre o consumo
de medicamentos. Era um projeto para investigar como
as multinacionais americanas, da área de medicamentos e
alimentos, abusavam do mercado em vários países latino-americanos. Então, eu fiz um trabalho brutal, meio pesado, quer dizer, você tinha todo um trabalho de campo baseado no padrão norte-americano, no qual tem que anotar
tudo porque, depois o advogado pode te processar e você
tinha que ter as provas e tal. Fazer entrevistas em profundidade, ficar cinco dias, numa cidade, e depois em outra,
249
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
além do levantando de fontes. Foi um negócio tão interessante que o material que eu tenho, ninguém tem. Doze
anos depois, sabe? Não se fez isso no Brasil. Até por falta
de condições econômicas, ninguém banca um cara para
ficar um mês no trabalho. Os cientistas fazem isso, porque tem outro ritmo, outra preocupação, entende? Com os
jornalistas, as coisas são diferentes. Dessa pesquisa, saíram
muitos artigos interessantes no jornal Opinião. Saiu, em
seguida, um livro que se chama Fome de Lucros, que é sobre a atuação das multinacionais de alimentos na America
Latina. Esse livro, ao contrário dos outros sobre torturas,
teve uma grande influência, na cabeça dos médicos e dos
sociólogos da área de saúde. Depois, começaram a surgir
outros trabalhos dos médicos sobre esses abusos, sobre a
medicalização da Medicina. Esse livro, enfim, ficou sendo
uma referência.
Com isso, eu entrei na área da Saúde, da qual não saí
até hoje, sempre escrevo sobre isso. Eu considero uma área
fascinante, dramática, no Brasil, que reúne a possibilidade
de você fazer um trabalho de campo com um pouco de
interpretação, uma área que permite você falar com pessoas interessantes, o que, na área empresarial, por exemplo,
quase não ocorre. Esse livro eu pesquisei aqui, no Brasil, e
escrevi na Inglaterra.
Quando eu comecei a escrever para o Boletim Latin
America redigia em Inglês. O editor queria que eu escrevesse em Português e, depois ele traduziria, porque o meu
Inglês era péssimo, só dava trabalho para ele. Mas, foi uma
das decisões mais sábias que eu tomei, porque foi, através
de tentar escrever em inglês, que eu fui escrevendo, escrevendo e acabei em Inglês mesmo. Esse texto, por exemplo,
250
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
da Fome de Lucros escrevi em Inglês e, hoje, quando o leio,
percebo que já estava bom. Isso me valorizou no mercado
de uma maneira extraordinária, quer dizer, hoje, um editor
pode me telefonar de Londres, convidando para escrever
alguma coisa e, até falar, na rádio que não tem problema.
Eu reúno o domínio da língua com o conhecimento dos
problemas do nosso território.
Um produtor da BBC me convidou para participar de
um documentário sobre a Transamazônica. Esse filme foi
complicado, pois foi feito sob muitos desentendimentos.
O diretor, na hora de filmar, virava outra pessoa e ficava
intratável. Além do mais, o filme já estava na sua cabeça,
antes mesmo de viajar para o Brasil. Eu viajei para o Brasil,
duas vezes, a fim de fazer a pesquisa, localizar a área e tal.
Mas, nada disso alterou o que já estava na cabeça dele. O
meu papal era fazer pesquisa de campo, mas acabei redigindo todo o roteiro e diálogos e ele, num gesto bacana,
deu-me créditos no script. A minha contribuição foi também complicar um pouco o filme. Eu sempre complico
as coisas, isso é uma característica do trabalho que faço.
Acredito que as questões são sempre mais complicadas do
que parecem.
Um detalhe interessante do filme: quando nós estávamos, em Marabá, fui abordado por um cara ligado à
guerrilha que existia, na época, que poucos conheciam,
no Brasil, somente o Estado de S. Paulo tinha notificado
aquela guerrilha na Transamazônica. Com certos cuidados
que tomei, acabou se propiciando um encontro. Nós íamos
filmar o cara falando, mas não filmamos, porque o diretor
achou que, se fosse filmá-lo, tinha que pagar uma multa
à equipe por trabalho além de oito horas por dia, outra
251
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
multa ao sindicato, não sei por quê. E o diretor não topou. Mas, o filme fala da existência de uma guerrilha numa
cena de revista de armas na estrada. Na época, escrevi, três
matérias sobre a guerrilha para o Latin Americam Political
Reporter: uma sobre o famoso líder Osvaldão, outra, quando eles soltaram um manifesto na região e, depois uma,
quando ele acabou.
INTERCOM – De volta ao Brasil, em 1974, você participou efetivamente, como diretor especial da criação do semanário Movimento, cuja experiência – os jornalistas mandarem na empresa que faz o jornal – de acordo com um dos
membros do conselho editorial da época, não era nova, exótica ou vanguardista: “o Le Monde funciona assim de 1944”.
Como caracteriza o momento?
Kucinski – Movimento é o segundo capítulo do episódio que começou com o jornal Opinião. O jornal Opinião
tinha um proprietário que era o Fernando Gasparini, da
chamada burguesia nacional, progressista e tal. Ele queria
fazer um jornal de resistência ao regime. O editor era o
Raimundo Pereira; ele e outros editores faziam um jornalzinho engajado de alta qualidade, inclusive um padrão
de jornal que, até hoje, é uma referência. As divergências
entre a equipe e o dono foram se agravando, no decorrer
do tempo, e se tornaram insuperáveis. Então, a equipe teve
que sair do jornal e, para superar essa divergência (patrão-empregado), a ideia natural era de um novo jornal dos
próprios jornalistas. Foi criado um sistema especial, porque a lei brasileira é tão burguesa que dificulta a sociedade
252
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
cooperativa. Você não pode fazer sociedade cooperativa,
no Brasil, é quase proibido. Então, para você fazer um jornal cooperativo, tem que registrar no INCRA. Isso é só um
exemplo das dificuldades que você tem até para organizar,
formalmente, a sociedade em que o próprio trabalhador é
dono. Mas, nós organizamos, vendemos cotas, as pessoas
apoiaram e eu fui um dos fundadores.
Nos últimos oito ou dez meses que permaneci em
Londres, fui correspondente da Gazeta Mercantil e, por
motivos que até hoje não estão claros para mim mesmo,
achei que tinha uma obrigação moral de largar o emprego e participar do projeto, não apenas como um cara que
vai lá, escreve e ajuda; mas, realmente, fazendo um sacrifício pessoal, financeiro, uma opção de carreira. Ou seja,
interromper a carreira na imprensa burguesa convencional.
Talvez, por acreditar que o pessoal do ‘Opinião’ já fazia
isso, há muito tempo, e eu ficava apenas colaborando por
fora. Mas, o jornal Movimento foi infeliz desde o começo.
Aquelas coisas que quando você faz de novo é uma caricatura do que você fez antes. Ele era o oposto do Opinião em
tudo: não tinha classe, era feio e, acima de tudo, já nasceu
sob censura. O jornal Movimento, talvez seja o único jornal
do mundo, cujo nº 0 foi censurado. Quando nós produzimos o nº 0, que eram duas páginas com matérias escritas,
foi logo censurado. Era uma matéria sobre depredação de
trens e outra sobre o negócio da Petrobrás com os contratos de risco. Até hoje, não sabemos se censuraram por
causa dos contratos de risco ou da depredação dos trens.
Eles alegaram a depredação, mas nós achamos que foi a
outra. Devido, sobretudo, a essa ‘camisa de força’ da censura, o jornal Movimento já nasceu nas piores condições.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
As pessoas, até hoje, não entendem o que é um jornal sair
regularmente sob censura. É um jornal que você não sabe
qual vai ser a capa, não sabe se essa matéria vai sair ou não.
É um jornal em que você produz seis, sete vezes mais do
que se precisa e, depois, edita com os restos que sobraram
da censura. Vai a Brasília e volta. É, por isso, que os donos
dos outros jornais faziam de tudo para não cair nesse sistema. Então, instalou-se a autocensura que é a censura preventiva do próprio dono. Ele fazia tudo para não cair nesse
sistema porque, do contrário, está estrepado. O Movimento
sofreu muito com isso. Eu escrevi muitas matérias sobre
indústria farmacêutica, que foram censuradas. Escrevi uma
que foi censurada três vezes. No Movimento, era uma coisa
terrível. Então, saiu feio, sob censura e canhestro. Não foi
muito bem aceito pelo público. Isso aí não foi nada. Era
apenas o começo.
Depois de algum tempo, eu e outras pessoas fomos
percebendo que havia coisas estranhas no jornal. Então,
começaram as divergências sobre a linha política do jornal. Divergências que o editor não conseguia resolver. Por
exemplo, ele escrevia editoriais que se chamavam ensaios
populares, cuja linha era nitidamente maoísta. Recém-chegado da Europa, eu tinha a convicção de que o maoísmo
era a degeneração brutal do radicalismo de esquerda. O
maoísmo estava ligado às forças mais reacionárias. Aliado,
por exemplo, à CIA, em Angola. Essa foi a primeira divergência. Quando o MPIA ganhou a revolução, em Angola,
eu cheguei ao jornal, todos estavam contentes. Nisso, falei
vamos dar um splash, quer dizer, vamos fazer um carnaval e tal. Então, todo mundo me olhou com cara feia. Eu
não entendi. Eles não conheciam nada de Angola, apenas
254
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
achavam que a MPIA não representava as forças que deveriam ser apoiadas porque tinha apoio soviético e tal. Forças
boas eram as dos outros caras que tinham o apoio chinês.
Eles não sabiam que Agostinho Neto era o grande líder de
Angola e o movimento dele era representativo dentro de
Angola, apesar de alguns problemas tribais. E o outro cara
era apoiado pela CIA, qualquer um sabia disso, entende? E
começou por aí. Mas, o pior não eram as divergências. O por
é que elas não se resolviam. A gente até propôs que os ensaios populares fossem assinados pelo editor. Quer dizer, ele
tinha um direito privilegiado no jornal porque, de fato, era
o líder, mas que assinasse em baixo. E ele se recusava a isso.
Então, ficava um jornal em que a opinião não era a nossa.
O fato real é que o jornal era dirigido pelo PC do B. e
alguns dos ensaios populares eram escritos por um líder
desse partido, que estava na cadeia. O editor comentou o
erro de misturar as coisas, entendeu? Você não pode por
em risco a legitimidade de uma democracia interna, em
nome de uma linha partidária ou da hipótese de que você
está resistindo ao regime. Ninguém está querendo tirar o
espaço das pessoas, elas que escrevam o que bem entender, desde que assinem, inclusive com pseudônimo, se for
necessário. A democracia interna foi violada, uma coisa
parecida com o que aconteceu com o PT, nesse episódio
do assalto ao banco da Bahia, quer dizer, o sujeito dirige o
seu jornal, clandestinamente, e ainda se arroga o direito de
não permitir que você discuta o assunto, porque pode ter
alguém escutando e vai denunciá-lo à polícia. O PT, agora,
está discutindo como é que faz para esses caras saírem do
Partido, sem que seja preciso entregá-los a Policia, quem é
do PB do B quem não é, entendeu? Assim fica difícil.
255
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
O Movimento terminou em racha. O racha que, na
verdade, é o da esquerda brasileira, de hoje, ou seja, o racha dos que acreditam que o caminho do Brasil, rumo ao
socialismo, passa por uma aliança com a burguesia. Mas,
há outra ala que acha que não, acha que as coisas passam
por um caminho de ruptura. Jornalisticamente, o Movimento conseguiu dar uma contribuição, foi o único jornal
que criticou o acordo nuclear, por exemplo, quando ele foi
anunciado. O nº 1 do Movimento trazia a pergunta: “Você
é a favor do acordo atômico?” Nós, pelo menos, fazíamos
a pergunta, tanto à oposição quanto à situação. Ele deu,
também, contribuição em vários campos, como no da ‘dívida externa’, depois teve uma fase em que estreou esse
pessoal do Miltainho do Hafma e outros. Ele teve uma
boa cobertura da crise, no meio militar, já na época do Euler Bentes, se bem que ele cobriu isso com uma determinação de ótica.
INTERCOM – Em seguida, você participa de outro projeto
muito importante de imprensa alternativa. Poderia comentar essa passagem?
Kucinski – Do racha do Movimento surgiu o jornal Em
Tempo, que representa – a esquerda que hoje se identifica
com o PT. Eu, inclusive, fui editor e fiz o projeto do jornal
Em Tempo. Esse jornal viveu uma crise das mais violentas
que se possa imaginar. A primeira característica dele, é não
sofrer mais censura prévia, pois a situação estava mudando,
rapidamente, era visível a mudança, no quadro político, só
as pessoas mais raivosas é que não viam e eu achei que não
256
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
tinha mais condições de o governo impor censura prévia.
Achei, também, que o jornal tinha que ter um formato
grande, a fim de trabalhar um pouco mais o espaço e tal.
Porém, ele saiu feio, canhestro, mas causou um certo impacto, porque nós saímos com umas manchetes avançando
o tratamento da notícia. Por exemplo, as primeiras manchetes eram assim: “Está em formação o Partido Socialista.” Todo mundo sabia que fulano tinha ido a Lisboa, que
Brizola, que o Chico Pinto mantinham intensas conversas, mas ninguém achava que isso era notícia, entendeu?
Quando um movimento de esquerda é clandestino, sem
a menor chance de influir nos acontecimentos, ele não é
notícia, claro! A notícia é a do estabelecimento. Eu estava
percebendo que aquilo era notícia, que era importante saber que, quando abrisse, ia surgir um Partido assim, assado.
A crise, no meio militar, também era manchete. Isso tudo
chamou a atenção da imprensa convencional e eles começaram a perceber que realmente tinham que avançar. Então, ele teve um pouco essa contribuição. Nós pegamos as
primeiras grandes greves no ABC; também eu me lembro
de que fiz uma grande entrevista com o Almir Pazzianoto,
uma página inteira sobre a origem da primeira greve. Mas,
o jornal quase foi destruído pela Libelu. Nós pegamos,
nessa época, o surto da Libelu, que tinha um aspecto positivo que era o democratismo e tinha o aspecto negativo que
era esse próprio democratismo. Quer dizer, eu era o editor
e não podia editar, porque tudo tinha que ser discutido.
Então, um dia, eu descobri qual era o segredo: cheguei à
assembleia e falei: ‘olha eu também quero meu espaço’.
Algumas meninas choraram, e aí eles me deixaram editar.
Mas, era aquele jornal que, às vezes, punha manchete de
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
cabeça para baixo, fazia umas coisas todas loucas, não-criativas. Era uma loucura meio desengonçada. Formalmente,
era um jornal feio.
Ideologicamente, foi pouco importante porque não deu
uma contribuição ideológico-cultural significativa. O Em
Tempo era construído por um bando de radicais. Um dia,
eu cheguei e tinham puxado o tapete, igual no Movimento.
E o jornal acabou caindo nas mãos do grupo que é o da
Social Democracia,os trotiskistas. Depois, esse grupo ficou
com o jornal e, até hoje, é deles.
INTERCOM – Aonde você foi trabalhar em seguida?
Kucinski – Aí, eu fui trabalhar na revista Exame. Trabalhava no Boletim Análise, que era ligado à Editora Abril.
Ao mesmo tempo em que eu trabalhava no jornal Em
Tempo, fazia matérias de economia, finanças e tal. Era um
trabalho bastante regular e intenso. Depois, eu fiz para eles
uma ou duas edições do Brasil Exame, que é um anuário
econômico. Então, fui convidado para trabalhar na revista
Exame e aceitei. Continuei fazendo esses anuários e matérias na revista Exame, saiu muito boa, uma coisa caprichada em termos de metodologia e acabamento. O segundo já
não ficou tão bom. Mas, eles tinham um recurso vastíssimo, o que contribuiu para eu fazer matérias especiais sobre
acordo nuclear, sobre agricultura etc.
INTERCOM – O seu livro Abertura, história de uma crise
(Editora Brasil Debates) surgiu nessa época?
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Kucinski – Esse livro nasceu de um pedido de uma editora engajada, lá na Inglaterra, chamada Latina American
Bureau, que faz livrinhos muito bons, alguns são verdadeiras teses de mestrado sobre a Bolívia, Paraguai e outros
países. Então, eles queriam um sobre o Brasil. Eu comecei a escrever, novamente, com o Ítalo Tronca, com quem
eu havia feito aquele livro sobre tortura. Esse historiador
fez uma parte introdutória sobre o movimento operário e,
depois, eu fiz o resto. Isso foi publicado na Inglaterra. Eu
resolvi, então, aproveitar a parte detalhada minha e publiquei, aqui, sob essa forma. Aliás, eu comecei a escrever isso
quando eu estava trabalhando na revista Exame.
Aliás, esse livro é resultado da cobertura jornalística que
eu fiz, durante muito tempo, para o Latin American Newsletter. Eu acompanhava o meio político, militar, tinha ideias
sobre como as coisas aconteciam e tinha uma certa mania de
procurar sempre uma relação de casualidade para os fatos.
INTERCOM – Como que surgiu para você a oportunidade
de ingressar como professor-colaborador na ECA-USP?
Kucinski – Essa ideia surgiu quase que por desespero,
entendeu? Aliás, o sujeito só trabalha, aqui, pelo salário,
que recebe por um elemento de desespero também. Eu
fui trabalhar na Ciência Hoje, na qual eu já havia escrito
muitos artigos com sucesso, inclusive aquele sobre Cubatão. Mas, acabei brigando. A Ciência Hoje tem um projeto
autoritário, no sentido de que você é usado para o projeto
político e não como parte do projeto político. É sempre a
mesma história, entendeu? Fiz uma matéria para o Instituto
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Butantã, que mostrava que a falta de soro era problema da
decadência do próprio Instituto. Mas, os cientistas, nos seus
discursos consagrados, diziam que a culpa é do governo,
principalmente do governo passado. Meteram a mão na minha matéria e eu briguei e foi por isso que eu acabei saindo.
Eu estava precisando de espaço, no qual pudesse me
realizar como editor, porque o meu potencial, hoje, é de
editor. Estou um pouco cansado de escrever matérias. Eu
tenho uma grande confiança em mim mesmo como editor,
entende? Mas, para fazer o projeto e editar, você precisa
ser dirigente – e para isso eu não sirvo. A oportunidade,
na ECA-USP, surgiu não como um lugar, onde eu pudesse
editar, mas um lugar, no qual eu posso fazer aquilo que o
editor faz, que é transmitir experiências. Eu achei que era
uma boa e estou satisfeito, pois acho que está dando certo;
os alunos, com aquele entusiasmo típico, estão gostando
também e eu sinto que eles estão crescendo no Jornal do
Campus. O trabalho está sendo interessante.
INTERCOM – O que é o jornalismo para Bernardo
Kucinski?
Kucinski – O que eu falo, é resultado da minha prática, que foi principalmente de um jornalismo engajado, no
sentido de que era um jornalismo de oposição ao sistema
vigente. Não era um jornalismo partidário, mas uma ideia
de se opor ao sistema de opressão vigente. Eu fiquei muito
marcado por esse tipo de atitude desde que entrei no Jornalismo. Apesar de trabalhar muitos períodos, na imprensa
convencional, eu sempre procurei ver onde estavam as coisas
260
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
erradas e tal, até com uma insistência excessiva.
Outra fonte de inspiração para mim foi, quando eu
estava, na Inglaterra, e se deu o Watergate. Depois, eu li
um livro sobre o Watergate, um outro que eu, também, li
e aquilo lá foi para mim uma grande escola, de como é
que tem que ser uma reportagem investigativa, como é
que tem que ser o Jornalismo. Quer dizer, o Jornalismo,
quando se defronta com a mentira, tem que cair de pau.
O caso Watergate, por meio do jornalismo, derrubou o sistema vigente, que era um sistema moralmente podre e o
jornalismo foi expondo essa podridão toda. O que existe
de engraçado e gosto, em ser jornalista, é isto: justamente
ser um ‘Dom Quixote’, poder ter esse direito único de ficar
procurando as coisas erradas e denunciar. E não só as coisas erradas que o governo faz, mas apontar também paras
tendências novas que as pessoas ainda não perceberam, de
revelar personalidades importantes que as pessoas não sabiam que eram importantes e descobrir coisas interessantes, de informar uma descoberta maravilhosa qualquer que
não havia sido informada. Mas, sempre dentro do espírito
de não fazer parte de um sistema de opressão, de dominação, de convencionalismo. E o que está acontecendo com
o Jornalismo, no Brasil, é que ele é parte de um sistema de
informação massificado e promíscuo. Hoje, você vai cobrir
um departamento do governo, alguma empresa tem lá o
jornalista para receber você. Formou-se uma promiscuidade que levou a um mascaramento da função do jornalista.
A informação passou a ser uma atividade técnica. Você vai
cobrir uma empresa que faz um projeto, ela organiza uma
coletiva, um almoço e os jornalistas vão lá e aquilo é apresentado e, no outro dia, sai tudo nos jornais. Mas, ninguém
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
tenta descobrir se esse projeto é socialmente bom, se os incentivos fiscais não são escandalosos ou qual é a mutreta
que está por trás disso ou se não há mutreta nenhuma. Fica
só naquilo e isso só para falar do campo da economia.
Por outro lado, há dificuldades objetivas, quer dizer,
o país é tão avançado, tão desmoralizado, que aqui, por
exemplo, o Watergate é um negócio que não pega. Os Estados Unidos também é uma sociedade selvagem, mas em
outros termos. Digamos, para simplificar, que lá convivem
um sistema civilizado com um sistema selvagem. O que eu
quero dizer é o seguinte: nos Estados Unidos levar 100 mil
dólares, num saco de papel, para entregar não sei aonde ou
que tinha pedido para uns agentes arrombarem as portas
da sede de outro partido, visando descobrir o que estava
falando, ocorre a sua queda. Agora, no Brasil, nada disso
levaria a queda de um Presidente. Aqui, você tem, o tempo
todo, situações desse tipo como se fosse parte normal da
vida. Então, isso desarma muito o jornalismo de denúncia,
pois as pessoas estão carecas de ver isso. Uma coisa que
mais me escandalizou, recentemente, foram esses assassinatos de líderes rurais vários deles era membros do PT.
A imprensa quase não noticiou porque virou rotina. Quer
dizer, assassinar um Presidente de Sindicato Rural não sei
aonde, com um tiro na cara, é uma rotina. Como é rotina
assassinar pessoas que se pensam ser bandidos ou a polícia
assassinar menores, tudo é rotina. Quando eu trabalhava
na Gazeta Mercantil, dizia o seguinte: a grande manchete
de jornal, hoje em dia, é uma manchete sobre a estrada que
foi construída no tempo certo, passou pelos lugares que tinha que passar e ninguém levou grana para construir. Quer
dizer, a notícia de uma coisa que foi feita simplesmente do
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
jeitinho que tinha que ser feita.
Esse tipo de jornalismo de você ficar denunciando poderes, ir atrás do que está errado, não tem espaço, porque
está tudo podre, compreendeu? O Caso Baumgarten, por
exemplo, não foi para frente por causa disso. Os outros
casos que os jornalistas tentaram carregar também não foram para frente. É isso aí.
INTERCOM – E sobre imprensa e a Nova Constituinte?
Kucinski – Bom, eu acho, nesse caso, que a gente tinha
que tentar de novo, é uma tarefa quase impossível: democratizar os meios de comunicação através da Constituinte.
Eu acho que nós deveríamos lutar pela criação de mecanismos que permitam a democratização dos meios de comunicação. Primeiro, que limitem a ação dos monopólios
como existe em outros países; leis que proíbam a um único grupo econômico ser proprietário de mais do que um
certo número de veículos, leis que proíbam a vinculação
de grupos econômicos e financeiros com proprietários de
veículos, enfim, quebrar o monopólio. Isso seria uma coisa
factível numa Constituinte.
Há outra coisa: os mecanismos que assegurassem a
democracia nas redações. Primeiro, as garantias do trabalhador de redação de não ser demitido, a garantia de ter
os seus conselhos, a garantia de participar da direção das
empresas. Tudo isso democratiza muito a imprensa. A garantia, também, do direito à sua liberdade de expressão,
enquanto é trabalhador no veículo.
E um terceiro capítulo de coisas que poderiam ser feitas
263
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
é o seguinte: seria a criação de estímulos ao surgimento de
órgãos de imprensa alternativa, na linha desse projeto, que
o Celso Furtado quer fazer de estímulo para a cultura. Eu
acho, inclusive, que ele já deveria ter colocado isso. Quer
dizer, você é estimulado a ter meios de comunicação como
indivíduo, entidade, associações de classes, as pessoas são
estimuladas para que proliferem os meios de comunicação.
Principalmente, no campo da televisão, eu acho que isso
deveria ser compulsório. Eu acho que deveria ser compulsória a existência de canais alternativos. Toda a cidade
brasileira deveria ser obrigada a ter um canal com horários
abertos a grupos alternativos e coisas desse tipo. Há país
que têm isso. Eu acho que estas sãs as principais tarefas.
INTRCOM – O que você considera imprensa alternativa?
Kucinski – Eu chamo alternativa, hoje, não aquilo que
se chamava naquela época. Hoje, eu chamo alternativa,
simplesment,e veículos que ampliam o espectro ideológico e cultural, que dê uma visão alternativa do que se passa.
Porque, hoje, você só tem veículos de direita, as variações,
em torno da direita, do conservadorismo, dos interesses
das classes dominantes, dos poderosos. Para mim, se surgir, amanhã, um projeto empresarial, mas que tenha uma
proposta cultural ou ideológica à esquerda, para mim já é
alternativa. Há esse projeto do ‘Retrato do Brasil’, do Raimundo Pereira, que é um projeto alternativo, nesse sentido
que eu digo. Curiosamente, ele tem um grande apoio institucional, porque está sendo apoiado por parte do governo.
Em parte, é uma reprodução do que aconteceu, na época
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
do Getúlio, – Getúlio já eleito e não-ditador – quando ele
tinha toda a imprensa contra e, então, estimulou a criação
de Última Hora. Eu vejo essa similaridade. O Pasquim é
um jornal, espiritualmente, morto. Não avançou no tempo.
Tem esse Planeta Diário, que eu acho um jornal interessante, bem dentro do espírito da imprensa alternativa, quer
dizer, uma coisa pequena, combativa, não tem medo de
impor seus próprios valores, seus próprios preceitos. Eu,
pessoalmente, não acho que tenha um grande futuro, é
mais uma coisa de momento, entendeu? Depois, eu não
vejo mais nada de alternativo por aí.
INTERCOM – Você acredita que a não obrigatoriedade do
diploma para exercer a profissão de jornalista beneficia o
jornalismo? Ou não? Por quê?
Do jeito que você colocou a pergunta, eu não gostaria
de responder, entendeu? Eu não sei se o fim do diploma
vai beneficiar o Jornalismo, isto é uma questão de profecia.
Ele pode desorganizar tanto a profissão que acaba não beneficiando. Mas, o diploma não tem nada a ver com isso.
Ele foi apenas uma maneira de organizar a profissão e sua
retirada é uma maneira de desorganizar. Eu sempre vi o
diploma como uma aberração, mas não sob essa ótica. Eu
sempre achei que o diploma não é necessário do ponto de
vista da capacitação cultural do profissional de Jornalismo.
Eu estou vendo pelos currículos que as escolas de Comunicação estão monopolizando a cabeça do aluno, durante
quatro ou cinco anos, sem colocar, lá dentro, um conteúdo
que precisaria colocar para ele ser jornalista. Nos outros
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
cursos, os alunos estão recebendo uma carga de conhecimento histórico e cultural. O aluno, para ser jornalista, tem
que aprender um pouco da História Contemporânea, tem
que ter cadeiras básicas de Economia, de Filosofia, de uma
Língua Estrangeira e outras coisas. Isso ao nível universitário. Os outros alunos têm e ele não, pois fica aprendendo,
aqui, coisas de Semiótica, a Teoria disso ou daquilo. São
teorizações sobre o Jornalismo, mas ele não sai, daqui, com
uma carga cultural, política, sociológica, filosófica de nível
universitário. Eu acho que é urgente a reformulação do currículo. E as matérias que nós estamos pautando, agora, no Jornal
do Campus, visam a isso, ou seja, estamos pautando matérias
de Economia para o aluno já começar a entrar nessa área. Não
só materinhas que ensinam a técnica de fazer reportagem, mas
que já obriguem o aluno a estudar aquela questão um pouco.
Eu sou da opinião de que essa questão do diploma
está sendo colocada de maneira desonesta, com segundas
intenções, pelos proprietários dos grandes órgãos de imprensa. Estou absolutamente convencido de que eles estão
colocando isso, agora, como um exercício de diversionismo
para atrair, sugar, esgotar todas as energias dos jornalistas em cima dessa questão do diploma, além de que isso
divide a categoria e eles estão tendo um grande sucesso
nisso. Tanto é assim que a minha tese é que isso deveria ser
discutido por nós. Deveríamos jogar essa discussão: como
democratizar os meios de comunicação. Dento disso, pode
até se colocar a questão do diploma. Eu estou convencido
de que os donos de jornais jogaram essa discussão, agora, como jogam um pedaço de carne ao cachorro, quando
querem assaltar uma casa. E nós fomos correndo naquele
pedaço de carne.
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
INTERCOM – Você acha que fizemos isso por que os jornalistas estão avançando nas suas reivindicações de melhoria
das condições de trabalho?
Kucinski – Talvez existam pessoas que achem que não
é só por causa do medo da Constituinte que eles jogaram isso. Mas, também, que eles querem rebaixar salários,
desorganizar a categoria. Eu não estou muito convencido
disso. Você tem editores de jornais ganhando 20 mil cruzados por mês, mas a massa dos jornalistas não ganha isso.
Em segundo lugar, se você traduzisse isso em dólares, nem
os salários dos editores são altos. Porque 20 mil cruzados,
hoje em dia, no câmbio paralelo, são mil dólares, que é
um salário baixíssimo para um editor. São salários baixos
porque, historicamente, os salários, no Brasil, estão deprimidos, estão arrasados. Hoje, no Brasil, nós vivemos num
regime de superexploração da força de trabalho, inclusive da
força de trabalho intelectual. Os patrões podem aguentar
esses salários, tranquilamente, e eu tenho a impressão de
que a viabilidade econômica dos órgãos de imprensa não
passa pela questão salarial, mas por outras questões, entendeu? Talvez, passe pela questão da modernização, do uso
dos meios eletrônicos.
INTERCOM – O uso dos meios eletrônicos, nos jornais, é
uma das transformações que você distingue na imprensa
brasileira atualmente?
Kucinski – Essa nova tecnologia de você compor sua matéria, no canal eletrônico, que tem memória e que, também,
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
diretamente com as máquinas de composição e tal, eu acho
que é realmente uma revolução. Eu trabalho com uma maquininha dessa já faz quase um ano. Sinto essa revolução
porque, se a minha máquina quebrar estou frito. O Aguinaldo Silva fez um anúncio correto: a relação sua com o
aparelho fica sendo uma relação lúdica. Você brinca com
o aparelho. Você constrói o pensamento, ao mesmo tempo
em que constrói a frase, você vai modificando o pensamento, muda de ideias, desloca, depois você imprime. E
a máquina de escrever comparando com esse processo, é
a mesma coisa que o arado puxado a boi e a colheitadeira
que já colhe o trigo e já ensaca. Não tem comparação: a
mente fica livre, a imaginação desata, começa a voar numa
maquininha dessas, porque você está brincando, pensando
e compondo, entende? Enquanto que, na máquina comum,
você fica preso às palavras que já datilografou.
INTERCOM – Você está tendo a oportunidade de sistematizar os conhecimentos e experiências adquiridos, na prática
jornalística, e transmiti-los aos estudantes de jornalismo da
ECA-USP?
Kucinski – Não estou dando um curso de Jornalismo,
mas participei do Jornal do campus. Estou transmitindo,
com muita segurança, aquilo que eu acumulei na prática de fazer jornal: as pautas, as matérias e o fechamento.
Nessas áreas, eu não titubeio. Eu estou me propondo a dar
um curso, no segundo semestre, na ECA, de Jornalismo
Econômico. Então, eu acho que vai dar para sistematizar
não tanto o que eu aprendi sobre jornalismo, mas o que
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
aprendi sobre economia sendo jornalista. Foi o que eu
mais aprendi: os vários aspectos da economia do país sobre
os quais escrevi e sobre os quais li bastante. Houve três ou
quatro campos que eu acabei me semiespecializando, mas eu
considero o da economia o mais importante, pois eu tive
sorte de estar, em Londres, numa época de proliferação de
literatura de divulgação econômica de bom nível.
INTERCOM – Há algum projeto em desenvolvimento?
Kucinski – Eu faço o Boletim do PT que fecho, uma
vez por mês, o que me toma mais ou menos uma semana
por mês. Aliás, mais do que deveria tomar. Trabalho aqui,
na ECA, duas vezes por semana, um trabalho que é bastante exaustivo e faço correspondência para o estrangeiro,
na qual realmente ganho o meu dinheirinho.
Eu estou escrevendo um livro sobre a dívida externa.
Está um pouco atrasado, tem que ficar pronto até agosto.
Vai sair pela Brasiliense, aqui no Brasil, e nós não sabemos
ainda, lá fora, por qual editora ele vai sair. Eu estou escrevendo esse livro juntamente com a jornalista inglesa Sue
Branford. Então, quero terminar o livro até agosto, já está
na metade escrito, metade não, para, em setembro, começar esse curso de Jornalismo Econômico.
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
27. Straubhaar: O estudo crítico da
comunicação nos Estados Unidos34
Carlos Eduardo Lins da Silva e
Glória Kreinz
O professor norte-americano Joseph Straubhaar esteve, no Brasil, em agosto de 1986, visitando várias cidades
e universidades. Na Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo, fez uma palestra sobre o tema
“Sistema norte-americano de comunicação”. Compareceram ao encontro alunos e professores das áreas de Jornalismo, Rádio e TV, interessados na questão da atuação dos
meios de comunicação de massa nos Estados Unidos.
Antes da palestra realizada, no auditório do Departamento de Jornalismo e Editoração da ECA-USP,
Straubhaar concedeu entrevista à INTERCOM – Revista
Brasileira de Comunicação. A equipe de entrevistadores foi
constituída pelo jornalista Carlos Eduardo Lins da Silva e a
34. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano X, nº56, jan/jun, 1987. p.09-12.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
editora-assistente de INTERCOM – RBC, Glória Kreinz.
A conversa centralizou-se nos rumos atuais da pesquisa em
comunicação nos Estados Unidos.
Para o entrevistado, a postura funcionalista predominante “no pensamento norte-americano” coexiste com
grupos de críticos voltados para o “estudo das mediações
entre a parte e o todo, situação típica dos franceses; mas,
genericamente, europeia. Os latino-americanos engrossam
essa ala mais crítica”, que valoriza os elementos mediadores e
são reconhecidos pelas experiências práticas que têm realizado.
Recentemente, Straubhaar apresentou tese de doutoramento junto à Fletcher Scehool of Law and Diplomacy,
em Boston, sobre pesquisa feita, no Brasil, durante os quatro anos que aqui viveu, de 1976 a 1979. Seu trabalho de
doutoramento chama-se “Transformação da Dependência
Cultural: o declínio da influência norte-americana na indústria cultural brasileira”. O meio focalizado é a televisão,
com ênfase especial nos programas de auditórios, telenovelas, programas de entrevistas e noticiários.
INTERCOM – Que trabalhos você desenvolve atualmente? Depois de suas pesquisas sobre telenovelas brasileiras,
você continua interessado no Brasil?
J. Straubhaar – Eu comecei estudando a influência
norte-americana, no Brasil, também nas telenovelas, porque quando cheguei, em 1976, notei uma tendência quase
automática na aplicação da teoria da dependência cultural
para tudo aqui. Continuo esse trabalho, mas agora estou
pesquisando o relacionamento político televisivo. O caso,
272
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
por exemplo, da atuação da televisão na Nova República, e a
abertura política, porém, esse é um trabalho em fase inicial.
INTERCOM – Apenas a televisão continua o núcleo de seu
interesse na indústria de comunicação massiva?
J. Straubhaar – Estou fazendo uma pesquisa comparando vários países latino-americanos em termos de videocassete. É interessante porque o Brasil tem menos vídeos
que a maioria dos países latino-americanos. O preço do
vídeo é muito alto em relação aos preços da Argentina,
Venezuela e Colômbia. Mesmo que o preço fosse igual,
acredito que haveria menos interesse pelo vídeo, porque,
aqui, o sistema de televisão é mais diversificado, quer dizer,
um pouco mais sofisticado do que em outros países.
Na Venezuela, por exemplo, a combinação de vídeo, filme e televisão, está criando urna conjuntura de indústria
cultural monopolista, que concentra o poder em duas ou
três empresas, as quais fazem a produção de programas e a
distribuição de filmes e de fitas cassetes.
INTERCOM – Felix Gatari, pesquisador francês, declarou
que a televisão contribui para a “poluição da sensibilidade
coletiva”. Você concorda?
J. Straubhaar – Tenho várias reações. Temos, primeiro,
que trabalhar a televisão como veículo, pensar o que pode
ser feito com ela. Tem uma tendência massificadora, mas
não é possível, hoje em dia, tirar dela essa tendência. Então, tenta-se um trabalho com a televisão no sentido de
273
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
preservação, mas também de diversificação da cultura.
Numa situação concreta, como pai, por exemplo, de
uma menina de seis anos, um filho de três e outro de um,
reajo, às vezes, muito fortemente contra a televisão, contra os programas para as crianças, que eu acho péssimos,
de forma geral, nos Estados Unidos. Existe a alternativa da televisão não-comercial, especialmente na linha de
programação infantil. Hoje em dia, metade da população
norte-americana tem televisão a cabo, o que permite uma
diversificação muito maior.
INTERCOM – Você conhece novas metodologias de pesquisa na área de Jornalismo Impresso, ou continuam as mesmas
pesquisas tradicionais de análise de conteúdo?
J. Straubhaar – A pergunta é oportuna, porque a análise de conteúdo continua em prática, não só para o Jornalismo Impresso, mas também para o Jornalismo Televisivo.
Inclusive eu também a pratico. Acabei, recentemente, um
estudo comparando o noticiário da televisão em oito países. Nós decidimos incluir a União Soviética, nesse estudo,
e só conseguimos porque se tratava de uma pesquisa de
conteúdo. É proibido fazer outros tipos de pesquisa lá.
INTERCOM – Então, a análise de conteúdo predomina
como método?
J. Straubhaar – Não é bem isso. Às vezes, as condições
de pesquisa se limitam à análise de conteúdo, o que não é
muito recomendável. Esse tipo de pesquisa está ainda em
274
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
moda nos Estados Unidos. Também está em moda à análise do papel e atuação do jornalista, o que já demonstra
um avanço em outro sentido metodológico.
INTERCOM – Em que consiste, basicamente, essa análise
do papel e atuação do jornalista?
J. Straubhaar – Consiste na análise da formação e das condições de trabalho dos jornalistas norte-americanos. O efeito
de várias estruturas empresariais sobre os jornalistas tem sido
pesquisado. A meu ver, isso é um bom exemplo da combinação da ala funcionalista com a ala crítica, porque tem algumas
que reúnem técnicas de entrevista, juntando também dados
estruturais. Um exemplo é como atua a imprensa e como atuam as estruturas das empresas em que os jornalistas trabalham.
INTERCOM – Já que você mencionou a formação dos jornalistas norte-americanos, continua havendo grande procura
de cursos de jornalismo nos Estados Unidos?
J. Straubhaar – Sim, continua.
INTERCOM – Na década de 70, houve a primeira grande
leva de estudantes ao profissionalismo, devido ao caso Watergate, a figura heróica do jornalista. Isso continua influenciando ou há outros motivos de ordem econômica e ideológica?
J. Straubhaar – O fato é que o Jornalismo já não é tão
procurado como antes, embora haja procura. A Propaganda
275
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
e as Telecomunicações têm crescido muito. O Jornalismo
perde um pouco de fôlego, porque muitas pessoas formadas
ainda não tiveram oportunidade de emprego. O mercado
está um pouco limitado.
INTERCOM – Você diria que o mercado de trabalho está
limitado por que é aberto a todo mundo?
J. Straubhaar – Exatamente. Lá, não temos a regulamentação como aqui, que precisa ser formado em Jornalismo para exercer a profissão.
INTERCOM – Que porcentagem dos que trabalham na redação são jornalistas formados?
J. Straubhaar – Não tenho dados exatos, mas creio que
somente a metade é formada em Jornalismo. Tem muitas
pessoas que conheço, no ramo, que julgam o seguinte: para
ser jornalista tem que escrever bem, analisar bem e ter um
texto conciso. Tem muita gente que se forma em Inglês e
atua como jornalista porque escreve corretamente.
INTERCOM – Qual a diferença entre um profissional formado em Inglês e um formado em Jornalismo nos Estados Unidos?
J. Straubhaar – O estudante de Jornalismo tem um limite máximo de cursos, na área técnica, mas ele deve fazer,
também, Ciência Política, Economia e outras matérias que
lhe proporcionem uma visão ampla da realidade. O que
276
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
não acontece com um estudante de Letras. Não é necessário o requisito do diploma, mas uma credencial de Jornalismo de uma escola conceituada ajuda muito e oferece
vantagens no mercado de trabalho.
INTERCOM – As escolas de comunicação, nos Estados
Unidos, dão espaço para a discussão de correntes teóricas europeias ou latino-americanas?
J. Straubhaar – Depende da escola. Lá, a tendência
predominante continua sendo a norte-americana, marcadamente funcionalista. Porém, já temos uma dúzia de programas voltados completamente para a ala crítica, com o
pensamento francês, italiano e até latino-americano.
Os programas mais críticos, hoje em dia, seriam no Texas, Universidade de Washington e alguns departamentos
da Michigan States. O Departamento de Comunicação é
completamente funcionalista, mas o Departamento de Telecomunicações é dividido entre criticismo e funcionalismo.
INTERCOM – Dependendo da escola, a ênfase do método
de pesquisa se desloca?
J. Straubhaar – Sim, há muitas diferenças entre os métodos de ensino das escolas norte-americanas. A ideia de
pesquisa de opinião pública tem muita aceitação. Para se
citar um exemplo concreto, no nosso mestrado em jornalismo, há um curso específico, no qual todos devem aprender a interpretar pesquisas, porque isso é importante, hoje
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
em dia, nos Estados Unidos, sobretudo, no que diz respeito ao processo de informar ao leitor. Qualquer repórter,
e ainda mais o político, terá que trabalhar com pesquisa
de opinião. Nem sempre é fácil interpretar urna pesquisa. E, pelo que se nota, os gráficos e pesquisas tendem a
marcar época, no Jornalismo atual, não só americano, mas
como uma tendência internacional. Acho que isso pode se
verificar aqui mesmo, no Brasil, nos maiores jornais impressos ou televisivos. De qualquer forma, perigoso seria
apresentar dados de forma apenas teórica, sem respaldo na
pesquisa empírica.
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
28. Ada Dencker : Documentação
da comunicação35
Glória Kreinz
Ada de Freitas Maneti Dencker, coordenadora do
PORT-COM – Centro de Documentação da Comunicação nos Países de Língua Portuguesa – órgão complementar da INTERCOM, viajou para a Europa, nos meses
de setembro/outubro de 1986, e lá travou contatos de extrema importância para esse setor, inclusive sedimentando
os contatos com Portugal em termos de intercâmbio de
pesquisas. Na Espanha, iniciou as bases para a integração
do PORT-COM a UNESCO.
Formada em Ciências Sociais, Ada Dencker chefiou,
durante sete anos, o Setor de Pesquisa e o Departamento de Cadastro em Documentação da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Foi a primeira pessoa a
35. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano X, nº56, jan/jun, 1987. p.13-16.
279
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
iniciar a hemeroteca da Federação das Indústrias, quando
nada existia nesse sentido.
Publicou, no ano passado, entre outros artigos, “Imprensa e Capitalismo”, na Revista da ECA-USP, e participou
do “Relatório sobre AIDS”, editado pela professora Sarah
Chucid da Viá, que ganhou o prêmio de melhor pesquisa da Revista Mercado. No Congresso INTERCOM/85,
Ada Dencker foi uma das responsáveis pela organização
do “Simpósio sobre Comunicação à Distância”.
Em entrevista concedida à INTERCOM – Revista
Brasileira de Comunicação, Ada Dencker comenta com a
entrevistadora Glória Kreinz alguns aspectos importantes
de sua viagem ao exterior.
INTERCOM – O PORT-COM, Centro de Documentação
da Comunicação nos Países de Língua Portuguesa, liga-se à
INTERCOM de que modo?
Dencker – É um órgão complementar da INTERCOM. Foram fundados pela mesma pessoa, o prof. José
Marques de Melo. O PORT-COM começou em 1977,
quando o prof. Marques fez a primeira Bibliografia Brasileira de Comunicação que, na realidade, foi uma reprodução do seu acervo particular. Não tem abstract, somente
indica as obras. Segundo ele, “foi uma socialização das fichas”. Depois, o trabalho foi adquirindo um vulto maior,
com a colaboração da Metodista. Quando o prof. Marques
voltou à ECA, depois da anistia de 1979, a bibliografia
teve a colaboração dos alunos do Departamento de Jornalismo.
280
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
INTERCOM – Agora, o PORT-COM cresceu tanto que
trava contato com o exterior. Como você explica isso?
Ada Dencker – Vamos por fases. Esse contato com o exterior foi feito, agora, em 1986, segundo semestre, quando
eu fui à Europa participar de um Congresso da Hochtief,
que ocorre de dois em dois anos. Quando viajei, uni duas
coisas: viagem particular e os interesses do PORT-COM.
INTERCOM – Essa foi, então, sua primeira viagem internacional como representante da PORT-COM. Você esteve onde?
Ada Dencker – Eu estive em diversos centros de documentação europeus, mas em caráter oficial em Portugal e
Espanha. Aliás, no caso de Portugal, fui mesmo retribuir
a visita que nos tinha feito o representante do Centro de
Documentação de Portugal, Dr. Sebastião José Dinis, por
ocasião do II ENDOCOM. Naquela ocasião, o Dr. Dinis
nos trouxe um Tesaurus de Comunicação Social que, por
coincidência, já possuíamos na INTERCOM. Antes de
mim, Anamaria Fadul esteve em contato com esse Centro
de Pesquisa português; aliás, foi ela que iniciou o intercâmbio. Em julho deste ano, também o prof. Marques de
Melo esteve lá, em visita. Falou com o Ministro das Comunicações e conseguiu que fosse enviado um representante para nosso II ENDOCOM.
INTERCOM – Sabe-se que, após sua entrada, o PORT-COM foi bastante dinamizado. Quando ocorreu isso?
281
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Ada Dencker – Eu entrei no fim de 1984. Mas, o
PORT-COM já era bastante dinâmico anteriormente, sobretudo com a participação da pesquisadora Maria
Cristina Barbosa, chefe da biblioteca ECA/USP. Na época que ela passou para outro departamento, aqui da USP,
houve os problemas normais de transição. Não havia definições sobre quem assumiria que tipo de trabalho. Então,
a Anamaria Fadul, ex-presidente da INTERCOM, resolveu o problema de forma satisfatória. Para que o Centro
de Documentação continuasse funcionando, ela solicitou
uma bolsa do CNPq para pesquisa e, junto com o diretor
científico, Marques de Melo, acharam que eu era a pessoa indicada para ocupar o cargo. Na verdade, eu já estava
lidando com os arquivos de documentação, por interesse
próprio mesmo. O que ocorreu, de fato, é que o PORT-COM passou a funcionar mais dentro da INTERCOM
que na Biblioteca da ECA.
INTERCOM – Então, foi esse representante que veio
para o Congresso INTERCOM/86, quando se realizou o
II ENDOCOM?
Ada Dencker – Foi. E nós conversamos a respeito das
possibilidades de formarmos um centro de documentação
em comunicação englobando todos os países de língua
portuguesa, inclusive os da África. Então, ficou mais ou
menos resolvido, durante esse encontro, tendo em vista
as facilidades diplomáticas e o acesso que Portugal tem
diante dos países africanos, que tentaríamos colocar esse
projeto em prática.
282
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
INTERCOM – Como é a relação de Portugal com os países
africanos?
Ada Dencker – O pessoal da África pede muita informação, assessoria e há muitos estudantes africanos em Portugal.
Assim, o Dr. Dinis se encarregaria de fazer a recuperação da
documentação dos países africanos e faríamos uma troca.
INTERCOM – E sua ida a Portugal trouxe algum avanço
nesse sentido?
Ada Dencker – Trouxe. Dr. Dinis me disse que falou
com o Ministro das Comunicações e como o Centro de
Documentação não é um órgão ligado à Universidade, não
houve necessidade de entraves burocráticos. Ele já está se
ocupando em fazer um levantamento da documentação na
África. Nós continuamos com o nosso trabalho no Brasil.
INTERCOM – Você visitou outro Centro de Documentação,
na Europa, como representante do PORT-COM. Qual é ele?
Acta Dencker – Foi na Espanha, e esse centro é o
IBERCOM, chefiado pelo prof. Gutierrez. Em julho, o
prof. Marques passou por Madrid, mas não encontrou o
chefe do IBERCOM. Então, fiz nessa viagem o primeiro
contato com ele. É preciso que se saiba que o prof. Gutierrez é também o consultor técnico da UNESCO para
a Rede Internacional de Centros de Documentação. Ele
faz a avaliação técnica dos projetos, enquanto a UNESCO
avalia a nível administrativo.
283
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
INTERCOM – Qual a contribuição do prol. Gutierrez
para a área de Comunicação?
Acta Dencker – O prof. Gutierrez é especialista em
Documentação, na área da Comunicação. Tem um trabalho pioneiro, pois elaborou o primeiro Tesaurus da Comunicação Social, em Língua Espanhola. É uma obra que se
destina aos países de língua latina. Essa obra não é uma
adaptação do trabalho da UNESCO, mas representa a
pesquisa própria do autor.
INTERCOM – Como o seu contato com ele vai influir no
PORT-COM?
Ada Dencker – Influirá de forma altamente positiva.
Estive com ele para ver as condições técnicas que deveria utilizar para organizar o trabalho do PORT-COM, a
fim de integrá-lo à Rede Internacional de Documentação
da UNESCO. Adquiri a base teórica e, quando o pedido for avaliado, já contará, como explicarei, com o aval do
IBERCOM. Consegui queimar etapas e já tenho o aparato metodológico-teórico sem o qual teria que refazer fases
do trabalho.
INTERCOM – Você poderia falar um pouco sobre essas
questões técnicas?
Ada Dencker – De forma bem simplificada, pode-se
dizer o seguinte: tem de haver uma pesquisa, verificar os
temas mais frequentes e, a partir daí, efetivar uma seleção.
284
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Por exemplo: temos 1.800 teses e 1.800 periódicos cadastrados. Há, ainda, a bibliografia corrente em comunicação.
A partir daí, há um corpus suficiente para definir os elementos mais frequentes, ou seja, os assuntos preponderantes. Há, ainda, a necessidade de se escolher três línguas
oficiais para se fazer a versão dos textos. Sobre esse aspecto
ainda não discutimos nada no PORT-COM.
INTERCOM – Há alguns dados sobre esses Centros de Documentação que você gostaria de mencionar?
Ada Dencker – Há diferenças entre eles. O IBERCOM
está localizado em Madrid, no prédio da Faculdade de Ciências da Informação, em sua Biblioteca, no piso superior. É
uma sala difícil de ser encontrada e até me diverti um pouco, sentindo-me nos labirintos medievais. Mas, está dentro
da Faculdade, e é consultado por universitários. O Centro de
Documentação em Portugal é um órgão governamental, fora
da estrutura universitária. Fica em Lisboa, no palácio da Foz.
Tem mesmo uma conotação um pouco turística. Não houve,
até agora, nenhuma preocupação em documentar a Comunicação como ciência. Essa foi uma das inovações que o PORT-COM propôs, e que passa a existir a partir de agora.
INTERCOM – Extraoficialmente, você fez algumas observações em outros centros de documentação?
Ada Dencker – Eu me detive mais na Alemanha. Há
pouca coisa nesse sentido, porque lá a Comunicação surge
como apêndice da Sociologia.
285
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
INTERCOM – Haveria algum recado para os nossos leitores que você queira registrar?
Ada Dencker – Sim, Gostaria de dizer que no XXI
ENDOCOM, de 1987, contaremos com a participação
do prof. Gutierrez e isso é de extrema importância para a
pesquisa documentacional brasileira.
286
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
29. Luiz Beltrão: Folkcomunicação e
classes sociais36
José Marques de Melo,
Carlos Eduardo Lins da Silva,
Rogério Cadengue e
Martha Azevedo
Em 1980, Luiz Beltrão veio a São Paulo participar do
Congresso da UCBC e lançar o seu livro Folkcomunicação, a comunicação dos marginalizados (Cortez Editora).
As atividades do congresso se realizaram em São Bernardo do Campo, tendo como tema central: comunicação e
educação popular, e foram sediadas no Instituto Metodista
de Ensino Superior. Naquela ocasião, a equipe responsável
pelo, então Boletim Intercom, programou uma entrevista sobre a formação intelectual, a produção científica e a
obra jornalística de Luiz Beltrão. A entrevista foi realizada pelas seguintes pessoas: José Marques de Melo, Carlos
Eduardo Lins da Silva, Rogério Bastos Cadengue e Marta
Alves D´azevedo, tendo sido gravada nos estúdios da rádio
36. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano X, nº57, jul/dez, 1987. p.05-15.
287
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
do IMS. Lamentavelmente, as fitas gravadas foram extraviadas e não houve oportunidade de sua publicação.
Depois do falecimento de Luiz Beltrão, fato que ocorreu,
em Brasília, no dia 24 de outubro de 1986, a fita da entrevista foi localizada. Feita a transcrição e a edição do texto, pelo
repórter Dario Luiz Borelli, os editores da INTERCOM –
Revista Brasileira de Comunicação – decidiram publicá-la
como uma homenagem póstuma ao emérito pesquisador,
que abriu a trilha do estudo científico da comunicação no
Brasil. Mesmo incompleto, trata-se de um depoimento fecundo, capaz de proporcionar elementos biográficos e históricos que reconstituirão a trajetória de Luiz Beltrão no
ensino e na pesquisa de Comunicação, desde os seus tempos
como jornalista, em Pernambuco, até a sua projeção como
escritor e acadêmico reconhecido no país e no exterior.
INTERCOM – Prof Luiz Beltrão, como se deu sua iniciação intelectual? Ela começou no Seminário de Olinda e
depois foi continuada na Faculdade de Direito do Recife.
Quais as reminiscências que o senhor guarda desse período?
Prof. Luiz Beltrão – Minha formação cultural teve início, efetivamente, no Seminário de Olinda. Ali, principiei
a estudar e a escrever. Nessa época de Seminário, eu escrevi
num caderno um romance chamado O Aimoré. Era uma
réplica de O Guarani, de José de Alencar. Saindo do seminário, eu fui procurar o Colégio Estadual de Pernambuco.
Ele não tinha esse nome, chamava-se Ginásio Estadual
Pernambucano. Era famoso por ser uma escola avançada
em matéria de métodos educacionais. Não era uma escola
288
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
fechada. Após frequentar o Ginásio, entrei na escola de
Direito. Naquela época, não havia muitas opções, apenas
três escolas de nível superior em Pernambuco: a Escola
de Medicina, a Escola de Direito e a de Engenharia. Fora
isso, não havia mais nada.
Antes de entrar na faculdade, houve alguma coisa que
influenciou nessa minha formação. Foi a existência, naquela época, dos chamados Centros de Cultura ou Grêmios Literários. Cada cidade tinha seu Centro de Cultura,
como hoje, quase toda cidade tem sua a Academia de Letras. Eu não fui somente sócio-fundador, como também
presidente do chamado Centro de Cultura ‘Humberto de
Campos’, em Olinda. Esse Centro estava, naturalmente, sob a égide de um jornalista, pois a minha geração foi
influenciada por ‘Humberto de Campos’ como jornalista
e cronista. Foi, nesse Centro de Cultura, que conheci algumas pessoas que, de certo modo, destacaram-se nas letras brasileiras ou na política. Foi, ali, que eu conheci, por
exemplo, o famoso líder das Ligas Camponesas, Francisco
Julião. Ele foi meu companheiro na adolescência e o tenho
como amigo até hoje. Ali, também, conheci Ledo Ivo, poeta e homem das letras. Aquele Centro promovia debates
com escritores, havia, ali, um início de vida literária, movido pelo bom interesse pelas letras. Aí, eu entrei para a Faculdade de Direito, que o meu entrevistador bem conhece,
pois ali também estudou.
INTERCOM – Que influências a Faculdade de Direito do
Recife exerceu na sua maneira de ver o mundo, já que ela
sempre se caracterizou por um espírito libertário?
289
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Prof. Luiz Beltrão – A Faculdade de Direito do Recife
não eram as aulas. A Faculdade de Direito do Recife não
eram os professores. A Faculdade de Direito do Recife,
para mim, eram os corredores onde havia os famosos bancos de madeira e ferro que jamais o calouro podia sentar
no encosto, onde a gente botava os pés. Naquela época,
o país estava vivendo a ditadura do Estado Novo e, por
coincidência, na turma, havia pessoas que, mais tarde, celebrizaram-se na vida política do país. Por exemplo: Osvaldo
Lima Filho, Ministro do Trabalho de Jango. E, também,
gente do governo, como Paulo Germano de Magalhães,
filho do interventor federal em Pernambuco, Agamenon
Magalhães. Enfim, era uma turma interessada nos problemas e fazia política possível à época.
INTERCOM – A sua época, na Faculdade, foi a época de
Demócrito de Souza Filho, que se tornaria o mártir da redemocratização em Pernambuco?
Prof. Luiz Beltrão – Não, eu sou um pouco anterior a
Demócrito. Quando ele entrou, nós já estávamos saindo.
Nós saímos da Faculdade em 1943. Creio que, naquela
época, o Demócrito ainda não tinha entrado. Ele ia entrar,
em 1944, e morreria no conflito de 1946. A nossa rebeldia,
já que não podia se voltar para uma ditadura tão ferrenha,
como era a do Estado Novo, ela se voltava contra a política interna da Faculdade. Nós combatíamos o diretório,
simplesmente. Esse combate ao diretório representava,
assim, uma projeção ou uma tomada de posição. Praticamente toda a turma era a favor da campanha “O Petróleo
290
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
é nosso”. Então, nós íamos pros morros e lá explicávamos
para o povo o que era a campanha do petróleo e tal. Isso
era uma outra maneira de, na época, de se combater a ditadura, porque a ditadura evitava de todo modo a exploração
do petróleo.
INTERCOM – Como é que se deu sua presença no Jornalismo? Como foi o início de sua carreira no Jornalismo?
Prof. Luiz Beltrão – Eu comecei minha vida profissional no “Diário de Pernambuco”, isto é, eu entrei como revisor. Mas, dois dias depois de ter entrado como revisor, fui
promovido: passei de revisor a arquivista de clichê, que era
organizar clichês. Depois de algum tempo, eu passei a tradutor de telegrama. E de tradutor de telegrama a repórter.
O que eu consegui, no “Diário de Pernambuco”, foi chegar
a ser repórter. A minha ascensão de revisor para arquivista
de clichê está baseada numa reportagem que escrevi sobre
qualquer assunto lá que já não me recordo bem. Só sei
que entreguei muito, solenemente, ao diretor como texto
de autoria de Luiz Beltrão. E o diretor, depois de passar
oito dias com a reportagem nas mãos, ele me devolveu o
original cheio de riscos azuis. Eu começava a aprender o
estilo jornalístico com um dos grandes mestres da imprensa pernambucana, que foi Aníbal Fernandes. Nesse jornal, trabalhava, entre outros, Gomes Maranhão e Odorico
Costa. O Rubem Braga dirigia a “Folha do Povo”, jornal
comunista, e era repórter de polícia dos Associados. Como
diretor de jornal comunista, ele combatia o diretor do “Diário de Pernambuco”. O Rubem era realmente um homem
291
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
de grande capacidade, de grande sentimento lírico e tal.
Mas, é tremendamente combativo quando quer.
A reportagem sobre a qual me referi, depois de entregue pelo diretor do jornal, ela foi para mim reescrita. Depois de uns 15 dias, foi publicada sem o meu nome. A
primeira coisa que o indivíduo aprende no Jornalismo é
o anonimato que, hoje, é pouco explorado, sobretudo na
televisão, na qual, às vezes, aparece um mero locutor se
passando por jornalista.
INTERCOM – O senhor começou no Jornalismo já sobrevivendo ou o Jornalismo era um mero acessório de sua carreira?
Prof. Luiz Beltrão – Em 15 de dezembro de 1936, eu
entrei no Jornalismo. Nessa época, o Jornalismo não era
uma profissão, mas um “gancho” como nós o chamávamos. A pessoa tinha um emprego e trabalhava num jornal.
Muitas vezes, trabalhava no jornal para melhorar o nome
no emprego. No meu caso, por exemplo, eu tinha entrado no Instituto de Previdência dos Serviços do Estado de
Pernambuco e utilizava, de certo modo, o jornal – após me
firmar mais ali – para fazer um jogo: difundir as coisas do
Instituto, no jornal, que eram difíceis de serem difundidas
porque, naquela época, era a época da ditadura do Estado
Novo. Então, os jornais publicavam tudo o que saísse de
qualquer repartição do governo.
INTERCOM – O senhor trabalhou muito tempo nos jornais de Pernambuco?
292
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Prof. Luiz Beltrão – Eu trabalhei mais de 25 anos.
Quando eu saí do “Diário de Pernambuco”, fui trabalhar
no “Diário da Manhã”, que pertencia ao Agamenon Magalhães. Nesse jornal, cheguei até redator-chefe. Só, nesse
jornal, eu trabalhei 17 anos. Depois, eu trabalhei nas agências noticiosas France Press e Asa Press. Fui correspondente de agências jornalísticas nacionais e internacionais em
Pernambuco.
INTERCOM – Em algum momento o senhor viveu única e
exclusivamente do Jornalismo?
Prof. Luiz Beltrão – Na minha época não era possível. Não creio que houvesse alguém que vivesse exclusivamente do Jornalismo. Eu pelo menos não conheço. Um
belo dia, o Aníbal Fernandes, diretor do jornal, apareceu,
na redação, com um livro de cor cinza, em francês, que se
chamava Como fazer um jornal. Eu nunca tinha imaginado,
na minha vida, que se pudesse aprender a fazer Jornalismo
de outro modo, senão fazendo o próprio jornal. Esse momento marcou demais a minha vida porque, daí em diante, eu passei a querer organizar uma biblioteca também.
Eu comecei a perceber que era preciso estudar Jornalismo
para poder fazer Jornalismo. Esse foi o princípio do meu
interesse pelo ensino de Jornalismo.
INTERCOM – Há um aspecto na sua vida que é a sua atuação como líder sindical. O senhor não se limitou a apenas
ao exercício profissional do Jornalismo, mas se destacou em
Pernambuco como líder da categoria. O senhor poderia nos
293
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
dar algumas informações sobre essa sua passagem pela vida
sindical brasileira?
Prof. Luiz Beltrão – Pois não, vamos a ela. Em Pernambuco, não havia Sindicato de Jornalistas Profissionais.
Havia uma Associação de Imprensa que reunia patrões
e empregados, como todas as outras Associações de Imprensa do Brasil. Eu me filiei à Associação de Imprensa
de Pernambuco e, no ano de 1951, fui eleito presidente em
três mandatos consecutivos. Se não me engano, foram nos
anos de 1951, 1953 e 1955. O mandato era bienal. Nesse
ínterim, nós fomentamos a criação, dentro da própria Associação, do Sindicato dos Jornalistas Profissionais. Criado
o Sindicato e eleita a sua primeira diretoria, fui indicado
representante junto ao Conselho da Federação Nacional
de Jornalista. Então, eu fui participar de uma eleição, no
Rio de Janeiro, e chegando, lá, fui surpreendido com a notícia de que estava eleito presidente da Federação Nacional de Jornalistas. Saía da Presidência da Federação, o caro
amigo Freitas Nobre. Só que eu não podia ser presidente,
porque eu havia me comprometido com um candidato de
Belo Horizonte, Marcelo Tavares, que depois assumiu o
cargo. Eu me recusei, terminantemente, devido ao fato de
ter recebido uma delegação do sindicato. Então, eu teria
que votar nele.
Durante esse tempo, militei muito em congressos jornalísticos e congressos promovidos pela União Brasileira
de Escritores. Em 1950, eu tinha entrado nas letras com
a publicação do meu romance chamado Os Senhores do
Mundo. Nessa época, eu era repórter, não policial, mas de
informações gerais. Eu convivia muito com o povo das
294
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
chamadas classes subalternas e Os Senhores do Mundo eram
aquelas pessoas que viviam marginalizadas da sociedade e
que eram de fato marginais. O livro se ocupa dessas pessoas. O romance regional era o estilo da época. Mais do que
regional, local. Foi editado pelo meu jornal em 1950.
INTERCOM – O senhor declarou que com o livro ‘Como
Fazer um Jornal’ começou a aparecer o estudioso Luiz Beltrão, que encarou o Jornalismo como matéria que, evidentemente, deveria ser ensinada para os que desejassem se tornar
profissionais de imprensa. Mas, como surgiu, efetivamente,
o professor Luiz Beltrão ensinando aluno de Jornalismo?
Prof. Luiz Beltrão – Em 1951, eu participei do 5º Congresso Nacional de Jornalistas, realizado em Curitiba. Eu
já estava convencido, na época, de que não somente era
possível aprender Jornalismo, como devia se aprender, devia se prestigiar os curso de Jornalismo, e como se devia até
não permitir que continuassem jornalistas sem uma formação superior. Nem naquela época, nem hoje, eu acredito
na necessidade de formação específica de um indivíduo
numa profissão de comunicação. Eu acho que o indivíduo
deve ter curso superior, porque, na universidade, é onde se
pesquisa, é onde se faz experiência. Quem ganha o Prêmio Nobel do mundo são professores de universidades que
fazem experiência dentro da própria universidade. Quer
dizer, é necessário existir cursos específicos de formação de
jornalistas; mas, mais necessária ainda, é a formação universitária do aluno de Jornalismo e o jornalista, naquela
época, não tinha essa formação superior.
295
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Então, nesse Congresso, eu apresentei uma tese. Eu
me lembro do momento da discussão da tese. Ela caiu nas
mãos de um jornalista comunista para ele dar o seu parecer. Então, esse jornalista puxou a brasa para a sardinha
dele, porque eu falava que, na União Soviética, como nos
Estados Unidos, na Alemanha e na França, havia cursos de
Jornalismo. Eu mostrava que cada país defendia a sua concepção de liberdade, de acordo com a formação cultural
que tinha. Houve, então, um levante contra a minha tese,
ou melhor, não contra a minha tese, mas contra o parecer
daquele jornalista comunista.
INTERCOM – E quem era esse jornalista?
Prof. Luiz Beltrão – Olha, sabe que eu não me lembro
mais! Era um rapaz da Bahia, cujo nome não me recordo. Esse rapaz puxou a brasa, dizendo: “Porque não União
Soviética e tal...” Aí, chegou a tal ponto, que começou um
tumulto, que eu disse à minha mulher: “É uma pena porque tive tanto trabalho para elaborar a tese e, agora, ela vai
passar em brancas nuvens”.
INTERCOM – Quer dizer que essa preocupação com os
cursos de Jornalismo como subversivos já é muito antiga?
Prof. Luiz Beltrão – Ah, muito antiga, é claro! Essa é a
mais antiga delas. Hoje, ainda, é pior porque eles são os mesmos subversivos, quer dizer, eles estão subvertendo, porque
não devem nem podem deixar de subverter toda essa ideia de
que jornal pode ser feito como era feito no princípio do século.
296
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Então, eu fui obrigado a ir à tribuna, onde me perguntaram qual era o meu ideário político e essa coisa toda.
Eu vou dizer o seguinte: quando assumi a tribuna para
falar, eu ia dizer que aquilo era o parecer do jornalista e
que a minha tese era assim, assim... No momento, o Congresso todo fazia um combate ao atestado que o Ministério do Trabalho exigia, chamado “atestado ideológico”.
Um daqueles mais exaltados perguntou assim: “O senhor
é comunista?” eu respondi: “Recuso passar um atestado de
ideologia, eu não posso porque este Congresso é contrário
a qualquer tipo de atestado ideológico. Agora, o senhor lê
a minha tese e vê o que é que eu sou, entendeu? Ainda se
o senhor perguntar o que é que eu sou, politicamente, vou
lhe dizer que, quando havia um partido, chamado Social
Democrático, eu costumava dizer que era Democrata Social”. Isso para ninguém me confundir com o PSD.
INTERCOM – E hoje?
Prof. Luiz Beltrão – Hoje, como eu quero que ninguém
me confunda com os Democratas Sociais, passei a ser Social Democrata. Eu, hoje, sou um homem de ideias sociais
democráticas, mas não confundir com o antigo PSD e
nem com o democrata social como o de hoje, o PDS.
Do ponto de vista político, eu não posso deixar de considerar a profunda injustiça da sociedade atual, que beneficia, demasiadamente, e deixa grande maioria em situações
de penúria intelectual, cultural, social, econômica e moral.
É necessário que haja uma abertura socializante, não socialista exatamente, mas socializante, a fim de que essas
297
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
classes possam participar e ter os benefícios do desenvolvimento. Esse é o meu pensamento político não extremado,
pois não sou um homem de extremos. Não acho que seja a
solução. Compartilho da posição daqueles que acreditam
que o indivíduo deve ser doutrinado. Por outro lado, acho
que deve haver um acesso maior aos meios de comunicação, por parte do povo, de todas as camadas de opinião, a
fim de que se possa debater livremente os temas.
INTERCOM – Que ideia o senhor tem, hoje, da liberdade
de imprensa e que limites o senhor ver no exercício profissional do Jornalismo para, de um lado, respeitar essa liberdade
de imprensa e, do outro, garantir que ela se exerça?
Prof. Luiz Beltrão – Para mim, a liberdade de imprensa
deve ser consubstanciada no respeito que o indivíduo deve
ter à pessoa que objeto da matéria em pauta. Não é o fato
de a lei dizer que não se deve caluniar, não se deve injuriar,
mas não pode, entende? Então, as coisas que ofendem ou
quebrem esse respeito representam o limite da liberdade. A
liberdade de imprensa se confunde um pouco com a doutrina do amor, quer dizer, eu não posso injuriar, ofender a
quem amo. Eu devo respeitar a personalidade do indivíduo
com amor. Eu acho perfeitamente possível essa liberdade.
Na prática, porém, a imprensa está dominada por grupos
econômicos e, em outras áreas, pelo próprio Estado. Então,
os limites da liberdade ficam difíceis de serem precisados.
Já se tentou de várias formas a distribuição de jornais
impressos a determinadas categorias de trabalhadores
para que utilizassem esses jornais. Talvez, esse sistema de
298
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
distribuição de jornais por categorias ou classes não seja
realmente democrático, porque uma classe talvez não entenda os problemas das outras, pois elas estão sempre em
defesa dos seus interesses exclusivamente. Eu penso que
não é ainda esse o caminho. Somente através de um estudo, de discussões e de debates de uma teoria e princípios
firmados, anteriormente, poderemos alcançar melhores
resultados. E somente dentro das universidades é possível
chegarmos a isso. Por isso, é que defendo a universidade.
Mas, também, aí nós vamos entrar na questão da universidade brasileira, tão distanciada do povo. Temos que deselitizar a universidade brasileira e torná-la popular. Não é
fácil numa entrevista definir a cosia com muita exatidão.
INTERCOM – Pernambucano convicto, o senhor deixou
seu Estado pelo Planalto Central. O que motivou esse seu
abandono de Olinda?
Prof. Luiz Beltrão – A luta pela vida. Aliás, não é bem a
luta pela vida. Eu vou ser mais sincero. Em 1965, tive uma
grande oportunidade. A Universidade de Brasília (UnB)
sofreu uma crise, pois lá havia um reitor que resolveu, de
uma hora pra outra, botar para fora da Universidade 265
professores de uma só vez. A UnB ficou vazia. Eu dirigia
o curso de Jornalismo da Universidade Católica de Pernambuco, quando fui convidado pelo meu amigo e, então,
secretário de Imprensa do Governo Castelo Branco, José
Vamberto Assunção, para reorganizar a Faculdade de Comunicação de Massa da Universidade de Brasília. Com a
seguinte condição: não se falar com comunicação de massa
299
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
porque era subversivo. Agora, como eu sempre achei que
o meu trabalho poderia ser ampliado, caso eu estivesse
num organismo federal e não num estadual, além de estadual, secretário, pois era católico mesmo, aceitei a minha
transferência para Brasília. Lá, verifiquei que o plano da
Faculdade de Comunicação de Massa feito por Pompeu
de Souza era realmente muito bom. O que eu tinha que
fazer era só tirar o nome e afastar um pouco as coisas que
não tinha condições de realizar. Por exemplo: o curso de
Cinema. Não tínhamos condições de continuar fazendo
Cinema lá, pois o número de professores de Cinema, no
Brasil, era muito restrito. Todos eles tinham saído.
Então, eu organizei a Faculdade de Comunicação da
Universidade de Brasília, mas isso só foi durante um ano
e pouco que funcionou, porque, logo depois, tive que sair
devido a conflitos com o próprio reitor que havia me convidado. Com isso, eu fui ensinar no Centro Universitário
de Brasília, lutando sempre pelo estudo da comunicação
das classes marginalizadas, ou melhor, dos grupos marginalizados, pois não quero falar em classes.
INTERCOM – Quando o senhor chegou a Brasília, trazia
já uma pesquisa que logo recebeu uma forma acadêmica e foi
apresentada como tese de Doutoramento na UnB. Trata-se
de seu estudo sobre Folkcomunicação. Que tipo de motivação
o levou – sendo um homem Social Democrata, como o senhor
já se definiu antes, e um homem que militou sempre na imprensa, fazendo não apenas jornalismo, mas, também, um
pouco de relações públicas, na medida em que fazia intermediação com o governo e a imprensa – a se preocupar com os
300
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
grupos marginalizados da sociedade brasileira?
Prof. Luiz Beltrão – Bom, eu já expliquei que o meu primeiro romance foi sobre esse pessoal. Eu realmente me dava
com esses grupos. Em segundo lugar, eu sou filho de funcionário, um dentista e a minha mãe era “artes domésticas”,
como se dizia na época. Nós nunca fomos esnobes, sabe?
Cada um procurava fazer sua vida com muito trabalho.
Eu sempre tive uma forte ligação com meu grupo, o
grupo a que pertencia. Não era proprietário de nada, não
era proprietário nem do jornal em que eu servia. Como
presidente da Associação de Imprensa de Pernambuco, fiz
boas relações entre patrões e empregados. No momento
em que os jornalistas precisavam de mim, eu estava lá para
defendê-los, porque eu achava que era necessária uma colaboração. Eu sou um Social Democrata e, como tal, não
podia ficar alheio a um problema do trabalhador. Eu convivia nas associações de classes com operários mesmo, com
gente das camadas mais apartadas da sociedade, com o indivíduo que jogava futebol e era gráfico do jornal. Eu fui
secretário de jornal, trabalhando nas oficinas, paginando
o jornal com os gráficos. Muitas vezes, comi da feijoada
deles em cima da mesa de composição cheia de papel de
jornal e a feijoada de feijão misturada com farinha para
gente comer.
Então, eu convivia com eles, sentia os seus problemas
e isso me levou, aos poucos, a entender certas linguagens,
cetros modismos, certas expressões que, talvez, escapassem a outro desprevenido. O que significa o frevo, por
exemplo? O que significa o samba? O que significa uma
procissão? E a Capela dos Milagres, onde são depositados
301
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
os ex-votos? Seria só Deus, religião ou seria, também, uma
dose de desespero e protesto? Isso aí me levou a um estudo
mais circunstanciado.
INTERCOM - Eu tenho uma pergunta ambivalente para
lhe fazer. A primeira parte está ligada ao método e a segunda às ideias e conclusões. Com a evolução do seu trabalho intelectual, hoje, o que é que o senhor reveria quanto ao método
de trabalho e quanto às ideias que o senhor formulou?
Prof. Luiz Beltrão – Do ponto de vista de método, a
pesquisa social é um campo que uma pessoa como eu não
tinha muitas chances de realizá-la ordenadamente. Houve muito empirismo em tudo quanto fiz, naquela época, e
talvez ainda haja atualmente. A pesquisa exige, hoje, um
financiamento e é muito mais fácil um camarada fazer
uma pesquisa, quando ela é financiada do que quando ele
tem que lutar com as próprias linhas, ou seja, aproveitar
todos os momentos e as oportunidades para colher os dados necessários. Então, eu acho que teria tido muito mais
possibilidades de desenvolvimento, caso recebesse um financiamento e uma formação teórica adequada. Eu acho
que isso responde a sua primeira pergunta.
Em relação à sua segunda pergunta, eu diria que houve
uma evolução porque, quando estudei Jornalismo, procurei
fazer do estudo do Jornalismo ponto de partida. O que
era para mim o Jornalismo? O meu primeiro livro Iniciação à Filosofia do Jornalismo, expressa o meu conhecimento
do Jornalismo em profundidade. Com meu primeiro livro,
surgido em 1959, que recebeu o Prêmio ‘Orlando Dantas’
302
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
e o segundo, A Imprensa Informativa, publicado em 1964,
e depois O Jornalismo Interpretativo que, há dois anos, estava saindo a 2ª edição pela Sulina e, agora, o Jornalismo
Opinativo, eu tinha terminado toda a estrutura teórica e
de orientação de Jornalismo. Mas, quando terminei o primeiro, um fenômeno me apresentou curioso: se o indivíduo é analfabeto, como é que ele se forma? Se ele não vai
ao cinema e se ele não tem televisão, como é que ele intercambia opinião? Daí, eu me lembrei dos meus companheiros gráficos, lembrei-me de um que era presidente do
Lenhador do Recife, clube de frevo, lembrei-me da história
de Lampião, de Antonio Silvino e de todos os bandoleiros
de Pernambuco, eu tinha contato com os coronéis, eu vi,
por outro lado, as multinacionais substituindo os coronéis
com a mesma voracidade que os usineiros substituíram os
senhores de engenho na indústria do açúcar. Aí, então, eu
comecei a reconsiderar tudo isso e comecei a apanhar esses
dados. Eu ainda estava impressionado com a informação
puramente. Desse modo, eu chamei isso de folkcomunicação
jornalística.
O interessante é que eu achava que um dos maiores
homens do folclore de todos os tempos, Edson Carneiro,
era uma espécie de homem maldito. Edson Carneiro foi o
único homem que percebeu que o folclore não era estático,
o folclore não era uma coisa parada no tempo, mas uma
coisa dinâmica. Aí, então, ele diz que o folclore é dinâmico
e tem o seu livro A Dinâmica do Folclore, que apresenta
essa tese aprovada internacionalmente. Esse livro teve uma
grande influência para mim, pois verifiquei que qualquer
manifestação popular estava ligada ao povo, porque o povo
não tinha meios, ele utilizava esses meios que lhe davam.
303
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Posteriormente, houve uma modificação. Aconteceu
que eu vi que a função da Comunicação não estava tão
somente em informar ou orientar, estava também em educar, havia uma função educativa, uma função de diversão
e havia uma função promocional. Então, eu comecei a
aprofundar esses estudos e o resultado é que o conceito de
folkcomunicação foi ampliado para não dar somente a ideia
de que o povo utiliza a folkcomunicação para trocar notícias,
mas sim para se educar. Dizer o que ele quer dizer, promover-se e entreter-se, divertir-se do mesmo modo que nós
usamos o sistema estabelecido, o qual chamei de ‘comunicação social’ para fazer uma diferenciação da ‘comunicação
folclórica’.
INTERCOM – Onde é que estão os limites entre o folclore e
a folkcomunicação?
Prof. Luiz Beltrão – Olha, eu costumo dizer que quando o indivíduo me chama de folclorista, eu digo não, sou
um aproveitador do folclorista. Na verdade, eu não sou um
folclorista, mas um homem que aproveita a pesquisa feita
pelo folclorista.
O folclore é uma manifestação da sabedoria do povo,
quer dizer, o povo faz o folclore. Na folkcomunicação, o que
a gente procura é a mensagem real, atual, escondida naquela manifestação antiquada. É preciso analisar isso em
profundidade, não ficar nas aparências. Vou dar um pequeno exemplo: se você aprecia a dança do frevo, você levanta
a sua história e descobre que é uma dança que nasceu da
304
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
capoeira. Capoeira é um jogo violento. A dança do frevo é
violenta. Então, você não diz o povo está brincando o carnaval, mas fervendo. O frevo vem de fervendo. Está brincando carnaval, mas também está transmitindo uma mensagem. Essa mensagem, por sua vez, não é uma mensagem
pacífica, não é uma mensagem do brasileiro bonzinho, é
uma mensagem do bravo, do valente que saía lutando capoeira, às vezes, com a navalha e a peixeira para defender
as suas reivindicações. E, então, se você ficar somente na
interpretação semiológica de um passo de dança, você ficou na metade do caminho. Agora, se você tiver coragem
e avançar mais, vai colher outros dados. Faça por exemplo,
uma espécie de folkcomunicação comparada. Compare a
dança do frevo com a dança das turbas francesas, em torno
da guilhotina, enquanto as cabeças dos nobres caiam. Você
vai ver que o brasileiro não é tão bonzinho e tão pacífico
como se fala e, talvez, não seja tão paciente como se pensa.
Pelo menos dois nunca foram tão pacientes: os gaúchos e
os pernambucanos.
INTERCOM – Com relação às suas ideias, que aspecto o
senhor considera pouco trabalhado? Para onde é que o senhor
vai em termos de pesquisa e o que lhe parece mais necessário
ainda de ser elaborado?
Prof. Luiz Beltrão – Olha, eu ando muito preocupado
com a folkcomunicação. Eu costumo dizer que o meu trabalho tem sido todo abrindo picadas para que outros aqueçam
o caminho. Eu, por exemplo, preciso de muito mais elementos para uma teoria da folkcomunicação. Aliás, eu acho
305
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
que nós estamos precisando de muito mais elementos para
uma teoria da própria Comunicação, que ainda não tem
os elementos suficientes para isso. Mas, da folkcomunicação,
realmente precisamos de muito mais estudos. No livro que
eu vou editar, agora, delineio os elementos teóricos e, em
seguida, passo a mostrar certos caminhos. Esse livro ainda
não me satisfaz em certas coisas. Por exemplo: às vezes, me
vem a ideia de que a pessoa pode confundir a folkcomunicação com uma ‘comunicação classista.’ Mas, ela não é uma
comunicação classista. Nesse livro, eu estudei alguns grupos
que utilizam a folkcomunicação, isto é, meios não-formais
de comunicação ligados direta ou indiretamente ao folclore. Eu não vi que alguns desses grupos têm capacidade de
integração na sociedade, apenas não concordam com essa
sociedade. Os grupos a que me refiro são os culturalmente
marginalizados, contestam a cultura dominante. Eles contestam, por exemplo, as crenças dominantes, na sociedade,
e as religiões estabelecidas. O grupo erótico-pornográfico
não aceita, por exemplo, a moral dominante.
306
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
30. Comunicação e relações
culturais segund Dario Borelli e
Virgilio Noya Pinto37
Carlos R. Brandão
Carlos Rodrigues Brandão: a influência da comunicação se dá no interior de complexas redes de relações culturais entre sujeitos sociais
Dario Borelli; Virgílio Noya Pinto
Temos a satisfação de apresentar aos pesquisadores e
agentes sociais da comunicação da América Latina, presentes ao X Ciclo de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, que a INTERCOM estará promovendo de 4 a 10
de setembro de 87, em Campinas (SP), uma abordagem
antropológica do trinômio Democracia, Comunicação e
37. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano X, nº57, jul/dez, 1987. p.16-21.
307
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Cultura, elaborada por Carlos Rodrigues Brandão, professor do Departamento de Ciências Sociais da UNICAMP.
Atualmente, o antropólogo e educador Carlos Rodrigues
Brandão divide o seu tempo de trabalho entre o estudo, a
pesquisa e a docência de Antropologia Social; mas, desde
1963, nunca deixou de participar do debate extrauniversitário dos movimentos e experiências de educação e cultura
popular. Após se formar psicólogo, pela PUC do Rio de Janeiro, ele fez o mestrado em Antropologia Social, na Universidade de Brasília, e o doutorado em Ciências Sociais, na
Universidade de São Paulo. Diz que tudo o que escreveu, até
hoje, “fora a poesia que me persegue, desde a adolescência”,
são os seus relatórios de pesquisas de Antropologia ou os
livros entre a didática e a militância, dirigidos a educadores.
Publicou, entre outras, as seguintes obras: Cavalhadas
de Pirenópolis, Mão de Obra, Os Objetos do Dia, Peões Pretos e Congos, por editoras de Goiânia. O Divino, o Santo
e a Senhora, Plantar, Colher e Comer, As Folias de Reis de
Mossâmedes, Lutar com a Palavra, Sacerdotes de Viola, publicadas por editoras do Rio de Janeiro. Por editoras do
estado de São Paulo publicou: Os Deuses do Povo, Diário de
Campo, O Que é Educação, O Que é Método Paulo Freire, O
Que é Folclore, O Ardil da Ordem, Casa de Escola, Educação
como Cultura e, mais recentemente, Identidade & Etnia. E
coordenou as edições de: A Questão Política da Educação
Popular, Pesquisa Participante e O Educador – Vida e Morte.
INTERCOM – A que resultados chegou com relação à cultura brasileira, após sua jornada pelo campo da psicologia,
da educação e, mais recentemente, da antropologia?
308
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Prof. Carlos R. Brandão – Eu seria menos desonesto
se dissesse que, ainda, não cheguei propriamente a “resultados”, após tantas andanças e por tantos caminhos. Na
verdade, creio ter chegado a algumas suspeitas, a algumas
zonas de compreensão um pouco mais transparentes, mas
não creio ter, agora, ideias mais definitivas a respeito da
questão da cultura, da cultura brasileira ou a respeito de
qualquer outro assunto que toque o homem, sua história,
mistérios, símbolos e experiências de vida. De resto, não
me sinto muito contra a corrente mais atual da própria
Antropologia. Faz muito tempo nós nos livramos, coletivamente, da certeza ilusória e, ao mesmo tempo, da obrigação de considerarmos os mistérios do homem, da sociedade e da cultura, definitivamente subordinados a leis de
origem, de transformação e de sentido.
Cada vez mais, ideias como “leis”, “princípios” e “determinantes” são palavras e assuntos do museu da Antropologia. Sabemos que o campo que exploramos é bastante mais
complexo, polissêmico e diferenciado do que imaginavam
os nossos “pais fundadores”. De algum modo, aprendemos
a pensar a própria realidade da cultura como uma coisa
que se abre a várias interpretações e, a seu modo, cada uma
delas torna mais clara, mais compreensível, uma região
obscura e inteligível da própria experiência do homem
com os seus símbolos e significados.
A própria ideia de cultura brasileira presta-se muito
bem a pensar isso. Faz algum tempo, havíamos erigido
algo como “a cultura brasileira” como alguma coisa, cuja
realidade seria indiscutível, cuja unidade seria inquestionável e cuja absoluta peculiaridade deveria ser motivo de
uma espécie de orgulho nacional que não imaginávamos
309
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
tão imenso entre outros povos, em outras culturas. Pois,
agora, temos uma compreensão, ao mesmo tempo, mais
rica e muito mais humilde de alguma coisa a que é difícil,
agora, dar o mesmo nome de “cultura brasileira”.
Uma visão classista, resultado de uma leitura apressada
de como as coisas deveriam ser, mais do que são, na realidade, permitiu que, em um momento seguinte, fizéssemos
uma divisão arbitrária entre uma cultura erudita (dominante, hegemônica, das elites etc.) e uma cultura popular
(dominada, das classes trabalhadoras, dos subalternos, do
povo etc.). Eu mesmo escrevi assim, muito. Não me arrependo, porque correspondeu ao tempo em que foi escrito.
Mas, não o faria do mesmo modo, outra vez.
Porque, agora, sabemos que, em primeiro lugar, a experiência humana e social da cultura não corresponde exatamente a territórios nacionais e, possivelmente, uma de suas
maiores grandezas seja justamente essa possibilidade de
permanentemente transpor e transgredir os territórios políticos e nacionais em que a querem encerrar. Em segundo
lugar, a própria polaridade erudito X popular, tão útil para
tantas explicações, na verdade, dissolve-se na realidade de
múltiplas culturas, tantas e tão diferenciadas quantas são
as possibilidades de experiência da vida e de significação
da vida, por parte de segmentos da vida social brasileira. Primeiro, descobrimos – sem a ingenuidade escolar de
nossos antecessores – que existem diferenças regionais e,
mais importantes do que elas, diferenças étnicas, de grupos
socioculturais e de subgrupos, dentro deles. Descobrimos,
uma vez mais, por exemplo, a cultura indígena que, sendo
no Brasil, recusa-se a ser brasileira. Depois, redescobrimos
as diferenças entre culturas gê e culturas tupi. Depois, ainda,
310
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
redescobrimos a peculiaridade da experiência cultural de
cada grupo específico, de cada tribo. Isso vale mais para os
segmentos não-indígenas de nossa sociedade. As múltiplas
culturas e diferenças culturais dos povos camponeses e demais povos rurais do país. Aquelas a que damos com frequência o nome de ‘culturas tradicionais’. Depois, a nova e
riquíssima experiência de cultura e culturas que, hoje, são
criadas e recriadas na periferia das cidades. Algo que tem
sido cada vez, com mais frequência, estudado entre nós: as
culturas dos movimentos sociais, dos movimentos populares. Aquilo que eles acrescentam, como símbolo e significados, ao repertório de nomes e palavras, mas também de
gestos e cantos com que contamos para, afinal, sabermos
por nós próprios quem somos e o valor do que fazemos.
INTERCOM – Existe uma personalidade padrão do
brasileiro?
Prof. Carlos R. Brandão – A ideia de personalidade
padrão foi muito comum, na Sociologia e na Psicologia
do passado. Hoje em dia, ela tem sido muito posta em
questão. O que se sabe – e há inúmeras investigações de
psicólogos e antropólogos abordando isso – é que certos
padrões básicos de relações primárias, entre pais e filhos,
por exemplo, podem constituir certos modos coletivos de
se ser, como uma pessoa social. Mas, entre isso e a afirmação de que existe uma espécie de personalidade padrão do
brasileiro, que o tornaria diferente tanto de vizinhos, como
os argentinos, quanto de distantes, como os tailandeses,
há uma perigosa distância. Aqui, mesmo no Brasil, convi311
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
vemos com várias e diferentes tendências de conduta e de
compreensão da realidade. Seriam várias “personalidades
de brasileiros”. Mas, a grande questão é que esse problema,
sem dúvida alguma, tão generosamente fascinante quanto
difícil e controvertido, tem sido mais objeto de preconceitos e gratuidades do que de pesquisas de fato consistentes.
Há, por exemplo, entre nós, um preconceito bastante difundido contra o carioca. Ele seria o sujeito pouco dado ao
trabalho, amigo de praia, cerveja e prazer. Pois bem, uma séria pesquisa demonstrou, faz pouco tempo, que o operariado
carioca possui uma rotina de trabalho em nada diferente à do
paulista e, sob certos pontos de vista, mais fatigante e produtiva do que a de operários norte-americanos e europeus.
Hoje em dia, voltamos à questão da “personalidade de
base” com conceitos e teorias muito mais refinados. Por
exemplo, toda a fértil discussão sobre a identidade, a identidade social e a identidade étnica na Antropologia, na
Sociologia e na Psicologia. Aqui, mesmo no Brasil, uma
ainda pequena, mas fértil nova produção de pesquisas e escritos sobre a identidade, sobre o ethos de diferentes grupos
e categorias de sujeitos culturais, no Brasil, tem renovado
bastante a própria visão que temos do assunto.
Mas, para não deixar a pergunta sem uma resposta, eu
diria que, em absoluto, não existe, cientificamente, uma
“personalidade padrão do brasileiro”. Existem várias, diferentes e até contrastantes disposições de conduta, de
orientação do sentido da vida, de representação simbólica
da realidade, que poderiam configurar diferentes “maneiras de ser”, se quisermos, diversas identidades de segmentos sociais e culturais de brasileiros e de outras pessoas, no
Brasil, como os nossos indígenas.
312
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
INTERCOM – Como é que “elas” (as diversas identidades
de segmentos sociais e culturais de brasileiros) vêm se modificando com a presença dos meios de comunicação?
Prof. Carlos R. Brandão – Acho que essa pergunta poderia ser respondida mais facilmente por vocês, especialistas em Comunicação, do que por mim. O que eu poderia
dizer, com base em minhas próprias experiências de vida
e de pesquisa, e com base em leituras e estudos, é que a
presença e o incremento dos meios de comunicação, sem
dúvida alguma, exercem alguma influência psicológica e
cultural sobre as pessoas e sobre os grupos sociais. Quem
seríamos e como seríamos sem a televisão em nossas vidas? Mas, o que importa é que, em si mesmos, os meios de
comunicação pouco “mudam”. O que muda é aquilo que
se transforma, no bojo das redes, as tramas de relações sociais e simbólicas, entre pessoas, entre grupos de pessoas,
entre classes e outros segmentos etários, sociais e étnicos.
A influência dos meios de comunicação se dá no interior
de tais complexas redes de relações culturais entre sujeitos
sociais, se dá através disso. Uma maneira simples de dizer
isto é afirmar que as pessoas de uma comunidade rural
mudam mais através do que falam e como se comunicam,
após a TV começar a chegar em suas casas e vidas, do que
através da influência pura e simples de seus programas.
De resto, parece que pequenos grupos espalhados, por
todo o país, possuem um poder bastante maior de “fazer
a cabeça” do que os meios de comunicação. Nas comunidades rurais de Goiás, Minas e São Paulo, onde pesquiso
desde 1968, pequenos grupos de “crentes” pentecostais produzem mais modificações de fato significativas, no modo
313
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
de ser, de se conduzir e de se representar, como pessoas e
sujeitos sociais, do que todos os meios de comunicação.
Se alguma coisa muda em “nós”, há de ser também por
causa dos meios de comunicação. Mas, nada é, antropologicamente, mais indevido e errado do que isolá-los ou,
pior ainda, isolar um de tais meios, e procurar determinar
os efeitos diretos deles ou dele sobre as mudanças culturais no país. Porque eles são, também, parte das redes de
relações que mudam e se modificam. Que os transformam,
continuamente, para que eles, por causa disso, possam participar do complexíssimo jogo simbólico do que “muda” e do
que “permanece” em cada um de nós, em nossas culturas.
INTERCOM – Qual é o destino da cultura popular diante
da ‘indústria cultural’?
Prof. Carlos R. Brandão – Acho que, em boa medida,
a resposta à pergunta anterior poderia caber aqui também.
Sem dúvida alguma, os meios e, principalmente, o poder
dos meios de significação e de comunicação e as estratégias da ‘indústria cultural’ exercem influência sobre a cultura popular. Uma área que, desde muitos anos, interessa-me, particularmente, a da música sertaneja, o demonstra
claramente. Faz algum tempo, os cantores das “duplas sertanejas” cantavam para os seus iguais, para os seus santos,
para o seu público direto, as pessoas de suas e de outras
comunidades rurais semelhantes. Hoje e cada vez mais,
eles cantam nas emissoras de rádio, para as gravadoras e
com os olhos no “Som Brasil”. Mas, isso não quer dizer
que o importante, em tal tipo de música, não esteja sendo
314
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
preservado. Por outro lado, isso não significa que, por causa de tais novos meios de comunicação, novos padrões e
novas possibilidades de trabalho cultural e artístico, não
estejam sendo mais e mais explorados. Não sejamos ingênuos. O fato é que, tal como em minha resposta anterior, é
necessário, em primeiro lugar, considerar o próprio “meio
de comunicação” como um componente da cultura, tanto
quanto a própria “indústria cultural” – que não será mais
do que uma dimensão, contemporaneamente, necessária
e depravada – para, então, analisar o seu efeito. Curioso
que os produtores populares de cultura com quem me relaciono, faz anos, lidam com os meios e mundos da ‘indústria cultural’ com uma naturalidade aparentemente muito
maior do que a nossa. Mais ameaçados, parece que a temem menos.
Em síntese, não é possível prever um destino único para
a cultura popular face à indústria cultural, justamente porque não há uma única, mas uma multiplicidade de formas
de culturas populares e, do mesmo modo, existem várias e
diferentes possibilidades de relacionamento entre elas e as
indústrias culturais.
INTEECOM – A democracia, no Brasil, sobretudo na perspectiva de uma Nova Constituição, terá possibilidade de
resguardar e resgatar uma cultura brasileira?
Prof. Carlos R. Brandão – Tenho dificuldade de compreender com segurança o que seja hoje, no Brasil, uma
democracia e uma experiência cultural democrática. Creio
que vivemos um processo de “abertura” parcelar das alternativas
315
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
políticas, sociais e culturais da vida, mas ainda estamos longe
de vivermos uma experiência democrática. Veja você o próprio
caso da informação. Pobres do sentido político e pessoal
da cidadania, ainda consideramos a comunicação de massas e a informação como um benefício, como uma dádiva
que o governo autoriza existir (mas, que ele pode censurar,
quando quiser) e que certas empresas especializadas realizam e nos ofertam, gratuitamente. Lidamos com o “Jornal
Nacional” como uma dádiva e, por isso, temos uma dificuldade muito grande em compreendermos que a informação
é um direito da cidadania e que, portanto, todos nós somos
responsáveis pelo seu “destino” e pela sua qualidade.
Não creio que constituições e constituintes tenham o
poder de fazer isto ou aquilo com a cultura, de que elas
próprias são uma parte e um momento, e que é muito mais
dinâmica e, historicamente, muito mais poderosa do que
elas. Mas, como verdadeira ou ilusória realização da vontade social e do contrato “de todos entre todos”, uma constituinte pode e deve levar em conta questões relativas à cultura – como processo, como poder, como instituição, como
símbolo, como patrimônio – e deve procurar estabelecer
princípios não tanto de “salvaguarda”, mas de realização
da cultura com uma experiência participada, aberta, enfim,
verdadeiramente democrática.
INTERCOM – Até que ponto a Comunicação, compreendida, aqui, desde o simples contato entre os indivíduos até os
mais sofisticados meios eletrônicos, é um processo impulsionador na evolução cultural?
316
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Prof. Carlos R. Brandão – Creio poder responder isso
de uma maneira muito simples. Até pouco tempo atrás,
a cultura da humanidade, a de cada povo, a de cada tribo, era basicamente como aquilo que os homens faziam
e transformavam ao se relacionar com a natureza. Hoje
em dia, uma compreensão mais atual da cultura, prefere
vê-la muito mais como símbolos e relações entre homens,
através de símbolos, do que como objetos e produções dos
homens sobre a natureza. Afinal, sabemos, hoje, que a cultura é menos o que os homens fazem e mais o que eles se
dizem. Ora, isso não é outra coisa senão Comunicação.
INTERCOM – Em suas pesquisas atuais sobre a cultura
brasileira, os problemas decorrentes da Comunicação estão
sendo considerados?
Prof. Carlos R. Brandão – De alguma maneira sim.
Minha última pesquisa entre camponeses tradicionais de
São Luis do Paraitinga, em São Paulo, abordou a questão
da reprodução do saber. Isso é, eu quis compreender como
as pessoas dali transmitem umas as outras, no trabalho,
em casa, fora dela e, até na escola, diferentes modalidades
de conhecimento necessário. Ora, sem estar propriamente
investigando meios de comunicação, eu estive todo o tempo pesquisando modos de comunicação. Espero que até
o fim do ano, o primeiro de uma série de três trabalhos,
dessa pesquisa, seja publicado pela Brasiliense. Ele aborda
a questão das relações entre a cultura camponesa e a escola
rural e seu nome, provavelmente, será: O Trabalho de Saber.
317
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
318
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
31. Marques de Melo: A trajetória da
INTERCOM38
Dario Borelli e Fátima Feliciano
Tendo em vista os 10 anos de fundação da INTERCOM, a ser comemorado, no dia 12 de dezembro de 1987,
durante o Simpósio “A Pesquisa Brasileira de Comunicação
nos Anos 80” (ver programa na seção noticiário), os editores de INTERCOM – Revista Brasileira de Comunicação
– decidiram publicar, nesta edição, entrevistas com os quatro
primeiros presidentes da entidade: José Marques de Meio,
Anamaria Fadul, Gaudêncio Torquato e Margarida Kunsch.
Dessa forma, prestamos uma justa homenagem a quem,
no decorrer deste 1º decênio, não mediu esforços para que
a INTERCOM se tornasse uma associação representativa
no panorama da pesquisa em Comunicação no Brasil.
38. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano XI, nº58, jan/jun, 1988. p.05-20.
319
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
INTERCOM – Quais as reminiscências que o senhor mantém viva em sua memória por ocasião do dia 12 de dezembro
de 1977, data de fundação da INTERCOM?
Prof. José Marques de Melo – As minhas reminiscências sobre o dia 12 de dezembro de 1977 me reconduzem
ao edifício da Fundação ‘Cásper Libero’, na Avenida Paulista, em São Paulo, onde, numa reunião simples de vários
pesquisadores que atuavam na USP, na própria ‘Cásper
Libero’, na Metodista, na FAAP e, em outras Escolas da
cidade de São Paulo, a INTERCOM foi fundada. É preciso deixar claro que a ideia de fundação da INTERCOM
emerge algum tempo antes dessa data. Na verdade, eu
pessoalmente já vinha me preocupando com a ausência de
uma sociedade científica que congregasse os pesquisadores
da Comunicação e esse sentimento veio à tona, em julho
de 1977, quando foi realizada, em São Paulo, a Reunião
Anual da SBPC. Foi urna reunião muito tumultuada, polêmica, porque, inicialmente, prevista para se realizar em
Fortaleza, ela foi, de algum modo, coibida pelo governo
federal e terminou sendo acolhida pela PUC-SP. Vários
pesquisadores da nossa área estiveram presentes àquele
evento. Constatamos que outras áreas do conhecimento
estavam aglutinadas, organizadas, já haviam criado um
certo sprit de corps, que estimulava a pesquisa e, ao mesmo
tempo, o avanço científico. Na área de Comunicação, nós
não tínhamos praticamente nada, ou melhor, apenas algumas pequenas iniciativas atomizadas, sem coordenação e
sem projeção das outras áreas de conhecimento.
Desde então, eu comecei a motivar alguns pesquisadores que colaboravam comigo, alguns colegas com os quais
320
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
eu me relacionava, alguns estudantes de pós-graduação, e
discuti com eles a conveniência de criarmos uma sociedade
científica nos moldes das outras entidades que existiam, no
Brasil, nas áreas da Física, Antropologia, História, Sociologia e assim por diante. E foi o conjunto de diálogos que
desenvolvi, no período de julho a dezembro de 1977, que
nos levou à reunião do dia 12 de dezembro na Fundação ‘Cásper Líbero’. Foi urna reunião simples, na qual discutimos um
anteprojeto de fundação da entidade e, assim, reunimos aquele
pequeno grupo que deu origem à INTERCOM.
Naquele momento, visualizamos algumas das linhas de
atuação da INTERCOM, entre as quais, o pluralismo. A
INTERCOM nasce com um sentimento de pluralismo,
de abrigar pessoas e correntes de opiniões diferentes. Em
segundo lugar, a ideia de integração nacional, pois nós tínhamos consciência de que éramos um grupo trabalhando,
em São Paulo, e deveríamos, com a pujança que São Paulo
tem, animar o restante dos colegas que atuavam em outras
regiões. E, em terceiro lugar, havia a preocupação de nos
mantermos sintonizados com o panorama internacional da
pesquisa em Comunicação. Nós não tínhamos a intenção
de criar uma entidade que tivesse caráter xenófobo ou que
assumisse atitudes provincianas. A nossa principal preocupação era ter, desde o começo, uma sociedade científica
que demonstrasse, publicamente, a significação da área de
Comunicação no país.
Essas são as reminiscências que me vêm à memória neste momento. A título afetivo, eu queria lembrar a
presença, naquela reunião, de uma figura humana que foi
importante para a INTERCOM. Trata-se do nosso falecido colega, aqui da USP, Francisco Morel, pesquisador da
321
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
área de Publicidade e Propaganda que, com sua formação
jurídica, elaborou o estatuto da INTERCOM. Foi ele o
responsável pela preparação do documento que deu substância formal à INTERCOM.
INTERCOM – O senhor concorda plenamente com a opinião, segundo a qual, a INTERCOM completa 10 anos de
existência graças ao desempenho profissional e acadêmico do
sócio-fundador José Marques de Melo?
Prof. José Marques de Meto – Entendo que aí há muita generosidade de sua parte, quando faz essa descrição
da vida da INTERCOM vinculada a uma a única pessoa.
Não quero incorrer em falsa modéstia, dizendo que não
tive participação decisiva para a construção da INTERCOM. Efetivamente, eu me dediquei, durante todos esses 10 anos, à solidificação da entidade, mas não concordo
plenamente que ela tenha dependido apenas da pessoa de
seu fundador e primeiro Presidente. Se eu não tivesse contado com a colaboração, o apoio, a participação e o entusiasmo de muitos outros colegas, a INTERCOM não seria
o que é hoje.
Todo o trabalho realizado se fez, basicamente, em
equipe, tivemos, desde o início, um caráter coletivo, as
decisões na INTERCOM são tomadas colegiadamente.
Parece-me que o sucesso e o êxito da INTERCOM devem ser creditados ao conjunto de pessoas que levaram a
ideia adiante e trabalharam em conjunto. Há outras pessoas que tiveram uma importância no desenvolvimento da
INTERCOM, como por exemplo, Carlos Eduarda Lins da
322
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Silva, Anarnaria Fadul, José Salvador Faro, Luis Fernando
Santoro e vários outros. Eu não quero prosseguir na lista
para não ser injusto. As pessoas envolvidas contribuíram
com o que puderam, com renúncia pessoal e procuraram,
sobretudo, trabalhar num espírito não-competitivo, adotaram um comportamento de colaboração mútua, deram
ajuda um ao outro e procuraram atrair as vocações jovens.
Quer dizer, os jovens pesquisadores que despontavam, no
universo brasileiro, e que não tinham muitas oportunidades. Porque nós temos toda urna tradição que eu chamaria
de oligárquica no campo intelectual. De um modo geral,
as oligarquias procuram criar espaços para si, não facilitando muito à emergência de lideranças jovens e nós ternos,
hoje, na comunidade científica, uma presença marcante de
jovens pesquisadores e todos têm sido valorizados.
INTERCOM – Como o senhor avalia, hoje, a influência exercida pela INTERCOM na pesquisa em comunicação no país?
Prof. José Marques de Melo – Sem dúvida alguma, a
INTERCOM teve uma influência muito grande na pesquisa em Comunicação no país. Eu vou tratar de lembrar,
aqui, de duas vertentes principais.
Uma delas diz respeito à influência exercida pela INTERCOM na legitimização da pesquisa junto às instâncias oficiais, como agências de financiamento, órgãos
governamentais e, também, junto às entidades representativas da sociedade civil. Porque, até então, nós éramos
uma área que não tinha o devido reconhecimento científico. Éramos mais valorizados e reconhecidos pela atuação
323
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
profissional de alguns pesquisadores, mas nem tanto pela
nossa competência científica. E a INTERCOM desenvolveu um trabalho incessante, nos primeiros tempos, exatamente para criar um espaço próprio dentro do sistema
nacional de ciência e tecnologia. Nós conseguimos, a duras
penas, convencer órgãos como o CNPq, CAPES, FINEP,
FAPESP, INEP e, inclusive a SBPC, da maturidade que
as pesquisas em Comunicação vinham atingindo, no país,
e esse trabalho deve ser creditado à INTERCOM. A INTERCOM trabalhou sempre com a perspectiva global e
pluralista, sem procurar beneficiar esse grupo ou aquela
universidade, mas tendo em conta, principalmente, a dimensão acadêmica da pesquisa em Comunicação.
A segunda influência da INTERCOM foi, no sentido
de fazer avançar os estudos de Comunicação em direções
que, até então, eram negadas, omitidas ou marginalizadas.
Eu diria que, na década de 60, houve uma preocupação
muito grande pela pesquisa em Comunicação, no Brasil,
e a INTERCOM foi responsável, em grande parte, pelo
resgate de certos temas e variáveis minimizadas, nas décadas anteriores, como por exemplo, a variável política, a
preocupação com a comunicação não-hegemônica com a
comunicação das classes subalternas. A INTERCOM se
empenhou em fazer da pesquisa uma alavanca para as soluções do país. Nós enfrentamos, no período de transição
democrática, inúmeras dificuldades e houve uma tentativa
constante em fazer com que a pesquisa em Comunicação
estivesse sintonizada com o conhecimento da realidade. A
linha de conduta da INTERCOM foi trabalhar no sentido de democratizar a Comunicação, no país, e por meio
da pesquisa mostrar que o nosso sistema de comunicação
324
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
é monopolista, um sistema que tende a marginalizar as
grandes maiorias do conhecimento do cotidiano e, efetivamente, contribuir para a democratização desse sistema.
INTERCOM – O senhor teve uma participação efetiva, durante a implantação do Centro de Documentação da
Comunicação nos Países de Língua Portuguesa – PORT/
COM – órgão complementar da INTERCOM. Como caracteriza o momento?
Prof. José Marques de Meto – O PORT/COM nasce praticamente com a INTERCOM. Ao se criar a INTERCOM, nós já desenvolvíamos uma linha de trabalho
relacionada com a documentação. Como pesquisador da
área, eu sentia a grande dificuldade de trabalhar sem fontes, sem tomar contacto com o conhecimento acumulado.
Isso só a documentação pode proporcionar. Então, os primeiros Boletins INTERCOM já traziam os indicadores
bibliográficos e a INTERCOM, no seu segundo ano de
existência, publica a primeira Bibliografia Brasileira de
Comunicação. Essa foi uma tentativa de fazer com que a
pesquisa se realize de forma orgânica e acumulada, e não
ocorra uma trajetória de pesquisa desarticulada, na qual os
pesquisadores produzem “conhecimento novo” que repete
conhecimentos já produzidos anteriormente.
Houve, então, a disposição de criar O PORT/COM
para ajudar os pesquisadores brasileiros. Mas, o PORT/
COM tinha, como continua tendo, uma outra motivação,
qual seja, a de articular a produção científica nos países de língua portuguesa. Portanto, ele já nasce com essa vocação não
325
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
apenas brasileira, mas também de sistematizar o conhecimento sobre os avanços da Comunicação nos países de língua portuguesa. Em função disso, nós temos tentado uma articulação
com Portugal e os países de língua portuguesa da África.
Durante alguns anos, eu realizei as tarefas do Centro de
Documentação – não diria sozinho, mas, em grande parte,
com o meu esforço pessoal, contando apenas com a ajuda
de alguns alunos. Nos últimos anos, o PORT/COM vem
sendo coordenado pela pesquisadora Ada Dencker, pós-graduanda na ECA-USP, que procura, com o maior entusiasmo, levar adiante essa ideia. O PORT/COM inicia,
agora, uma fase importante em sua vida, que é a de crescimento internacional. Nós acabamos de realizar entendimentos com o IBERCOM – Centro de Documentação
em Comunicação dos Países Iberoamericanos – e no mês
de dezembro, virá ao Brasil o Prof. Dr. Antonio García
Gutiérrez, da Universidade Complutense de Madri, Espanha, e um dos consultores da UNESCO na área de documentação. E depois dos contactos realizados com o Prof.
Sebastião Diniz, do Centro de Documentação do Governo Português, eu tenho a impressão de que o PORT/
COM poderá, efetivamente, sedimentar-se no panorama
internacional, ocupando o espaço que deve ser atribuído
aos países de língua portuguesa.
Neste momento, o PORT/COM enfrenta dificuldades
de natureza financeira. Nós não logramos, ainda, receber
o apoio que merecíamos dos órgãos de financiamento
à pesquisa no país. No entanto, a atual diretoria da INTERCOM tem procurado realizar entendimentos com o
CNPq/IBICT para lograr esse apoio, que, sem dúvida, virá
oportunamente.
326
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
INTERCOM – Atualmente, além de integrar o Conselho Fiscal
da INTERCOM, o sr. é o editor-responsável de INTERCOM
– Revista Brasileira de Comunicação. Quais os principais desafios que ela enfrenta para cumprir sua missão de divulgadora de
trabalhos inéditos e originais sobre comunicação?
Prof. José Marques de Melo – Na minha maneira de
ver, a INTERCOM – Revista Brasileira de Comunicação
– é o principal instrumento de que dispõe a INTERCOM
para se comunicar com os seus sócios, a comunidade científica e mostrar publicamente os avanços que ocorrem em
nossa área.
Eu quero lembrar, neste momento, que a existência da
Revista deve ser creditada a duas pessoas que se empenharam para a sua existência e sobrevivência. Em primeiro
lugar, Carlos Eduardo Lins da Silva que, quando eu era
presidente da INTERCOM, colaborou, intensamente, comigo para manter o, então, Boletim INTERCOM. Graças
ao seu desempenho e entusiasmo, tivemos uma linha de
atuação de alto nível e, ao mesmo tempo, não-academicista.
E a segunda pessoa que eu quero lembrar é a Profa. Anamaria Fadul, que quando Presidente da INTERCOM,
lutou para transformar o Boletim em Revista, na medida
em que o Boletim já assumia características de uma publicação menos informativa e mais analítico-interpretativa.
Ela, então, tomou essa iniciativa. Há dois anos, a convite
da nova diretoria da INTERCOM, então presidida pelo
Prof. Gaudêncio Torquato, eu assumi a sua edição e tenho procurado dar-lhe um status de publicação acadêmica
reconhecida por toda a comunidade. Essa tarefa tem sido
gratificante, porque podemos manter a divulgação de trabalho
327
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
dos pesquisadores mais amadurecidos e reconhecidos profissional e academicamente. Eu também tenho tido a preocupação de abrir espaço às novas vocações, pois sem criarmos
condições de estímulos para os jovens pesquisadores, a
pesquisa não avança.
Quero reconhecer que ela ainda enfrenta desafios,
como fiz questão de chamar atenção em editorial publicado na edição n.° 56. O problema principal é, ainda, a
produtividade reduzida dos pesquisadores brasileiros de
Comunicação. Há muita gente atuando na área, mas são
poucos aqueles que conseguem dar forma final ao produto
de sua investigação. E, muitas vezes, nós temos dificuldades de fazer uma seleção rigorosa do material encaminhado, justamente por falta de trabalhos. Eu tenho procurado,
pessoalmente, e através da equipe que edita a Revista, da
qual você, Dario, participa, estimular e pedir colaborações
de várias fontes, mas, ainda, é pequeno o número de pessoas que atendem a essas solicitações. Acredito que, com
o aumento da pesquisa que, atualmente, ocorre no país,
nós vamos melhorar cada vez mais. A tarefa que vem para
os anos seguintes é fazer uma seleção mais rigorosa pela
qualidade e competência dos pesquisadores. Nem sempre
isso é possível, por um lado, pela pequena quantidade de
material enviado e, por outro, pela necessidade que nós
temos de dar oportunidades aos jovens, que nem sempre
atingiram aquele nível de excelência que nós gostaríamos.
INTERCOM – Como e quando a senhora, inicia atividades
junto à INTERCOM?
328
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Profa. Anamaria Fadul – Chegou-se à ideia de criação
de uma sociedade de pesquisa em Comunicação, durante
uma Reunião Anual da SBPC, realizada em São Paulo. Eu
não estava, no Brasil, naquele momento. Não Participei realmente da criação nem das reuniões que levaram à criação
da INTERCOM. Eu só entro, no final do ano, em 1977, a
convite do Professor José Marques de Melo. Mas, naquele
momento, eu estava com problemas de saúde e só entrei,
formalmente, para o grupo, sem uma participação mais
ativa. Foi, somente em fins de 1978, que começaria a participar da INTERCOM e, de lá para cá, tenho participado
sempre, até chegar à Presidência. Fui do Conselho Fiscal,
Participei como Vice-Presidente, depois, fui Presidente.
Eu acho que, durante todo esse período, tive um trabalho efetivo junto à entidade, tanto em nível de organização
quanto em nível dos compromissos relativos à instituição.
Também fui bastante ligada ao Boletim INTERCOM. O
Boletim era aquilo que nos unia em torno de um projeto.
O Boletim, que foi dirigido primeiro pelo Prof. José Marques de Melo, passou por uma série de pessoas, chegou ao
Carlos Eduardo Lins da Silva e do Carlos para mim.
Fui eleita Presidente em 1983 e, ao ser eleita, coloquei
como prioridade a transformação do Boletim em Revista,
o que efetivamente aconteceu, em 1984, já então, com um
novo formato, projeto gráfico, enfim, mudanças bastante
significativas. Outro item que me preocupava era a falta de
agilidade da INTERCOM, por estar sempre sediada em
instituições de ensino como a Fundação ‘Cásper Líbero’,
Metodista e ECA-USP. Eu sentia a falta de infraestrutura: telefone próprio, a questão da distância, enfim, uma
série de entraves que, na minha opinião, atrapalhavam um
329
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
pouco o andamento de uma instituição. Foi, então, que se
decidiu alugar uma sede, o que aconteceu, em março de
1984, e que vai até o momento em que eu deixo a Presidência da INTERCOM, em 1986, quando ela volta para a
Universidade de São Paulo.
INTERCOM – Qual o balanço que a senhora faria sobre
sua gestão como Presidente da INTERCOM?
Profa. Anamaria Fadul – Eu acho que a INTERCOM
produziu muito, durante o período do Marques; mas, na
minha opinião, era uma instituição que tinha muito pouca
base institucional. Faltava uma secretaria organizada, enfim, faltava consolidar a entidade. Por outro lado, também,
faltava organizar melhor o relacionamento da instituição
com as agências de financiamento. Acho que isso eu consegui. Pela primeira vez, nós conseguimos auxílio da FINEP, auxílio da FAPESP, conseguimos, também, auxílio
para organizar um seminário no Chile, do qual a INTERCOM participou, via IDRC, do Canadá. Conseguimos
diversificar as fontes de recursos, pois, quando assumi a
INTERCOM, contava apenas com auxílios do CNPq e
do Canadá. Nós ampliamos o circuito com a FINEP e a
FAPESP.
INTERCOM – Como a senhora avaliaria os eventos promovidos pela INTERCOM durante sua gestão?
Profa. Anamaria Fadul – Na minha opinião, o evento
de maior impacto, que teve a maior repercussão na impren330
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
sa, foi o Seminário de Novas Tecnologias de Comunicação. Eu
participei como coordenadora, promovemos o debate, na
Folha, publicou-se muita coisa. Nesse Seminário, nós tivemos a presença de 19 conferencistas estrangeiros, dos
quais só pagamos uma passagem, já que os outros 18 vieram por conta própria. Esse foi um Seminário, como disse
anteriormente, de muito impacto, além de ter, sem dúvida, servido para divulgar o que era a INTERCOM. Para
esse Seminário, vieram sete pessoas que sequer sabiam que
a INTERCOM existia e, a partir daí, começaram a ter
contactos com a instituição. Esse Seminário, depois, deu
origem a um livro, que, parece, teve boa aceitação.
Em outros eventos, por estar bastante envolvida na administração da INTERCOM, não pude participar diretamente. A coordenação dos Ciclos Comunicação, Estado e
Sociedade Civil no Brasil e Comunicação e Educação ficou a
cargo do Prof. Marques de Melo. De certa forma, participei
nos dois Ciclos INTERCOM, embora muito mais na parte administrativa, em busca de financiamentos, enfim, mais
no tocante à estrutura para que eles pudessem se realizar.
Um outro Seminário que coordenei foi o da UNESCO: Estratégias para um melhor uso dos meios de comunicação para as populações desfavorecidas: a participação dos
receptores, a pedido da OREALC, e escritório regional da
UNESCO. Esse foi, segundo o próprio Arturo Matuck,
o Seminário de melhor nível, da série de três, realizados
na América do Sul e América Central. Eu acho que esses
foram os eventos mais importantes, além de cursos que
foram promovidos na minha gestão, na sede da Vila Mariana, dos quais participei fornecendo infraestrutura.
331
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
INTERCOM – Como foi conduzido o programa editorial
em sua gestão?
Profa. Anamaria Fadul – Eu creio que, em termos de
publicações, conseguimos uma vitória significativa na medida em que conseguimos o apoio do CNPq para editar a
Revista. Foi uma luta muito intensa, pois ela tinha que ser
reconhecida como revista científica.
Depois, foram publicados dois livros com o apoio da
FAPESF, o de Novas Tecnologias de Comunicação e o Obsceno. Em seguida, e sob a responsabilidade do Prof. José
Marques de Melo, publicamos o Inventário Brasileiro de
Comunicação que é a maior bibliografia que nós temos. E
mais três Bibliografias Brasileiras de Comunicação editadas,
também, com muita luta em termos de apoio financeiro.
Dos outros livros editados, na minha gestão, posso dizer
que não participei diretamente. Tanto Comunicação e Transição Democrática quanto Comunicação e Educação: Caminhos
Cruzados, publicados em convênios com empresas comerciais, foram responsabilidade do Prof. Marques de Melo.
Um outro aspecto que acho importante colocar foi em
relação ao financiamento do Banco Mundial, por meio da
PADCT, ao Seminário de Novas Tecnologias de Comunicação. Eu acho que foi o reconhecimento do trabalho que a
INTERCOM vem realizando. Foi bastante difícil entrar
no PADCT, mas creio que o projeto que fizemos, realmente, foi bastante positivo.
Outro projeto que iniciei, mas que não houve tempo
para terminar foi o de um Centro de Documentação em Novas Tecnologias de Comunicação. Eu creio que, agora, talvez,
a Margarida dê continuidade a esse trabalho. Eu já havia
332
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
mantido contatos com o responsável por esse setor e ele
havia se comprometido a financiar o projeto que havíamos
apresentado. Só há a necessidade de fazer algumas correções para que ele possa ser financiado.
INTERCOM – Qual é a sua opinião a respeito dos Ciclos de
Estudos da INTEECOM promove anualmente?
Profa Anamaria Fadul – Os Ciclos INTERCOM têm
vindo num crescendo. Eu acho que um Ciclo que, talvez
possamos considerar abaixo das expectativas, foi Comunicação e Sociedade Civil, realizado na PUC-SP. Foi um
evento que, não sei por que motivos, teve uma baixa participação dos associados, apesar do bom nível dos debates e dos excelentes trabalhos apresentados. Aquele Ciclo,
efetivamente, não contou com uma participação massiva,
como tem acontecido nos últimos anos. A partir de 1983,
a participação nos Ciclos aumentou bastante, cerca de 200
participantes, e eles têm mantido essa média. Eu creio que
os Ciclos têm se constituído em importantes momentos
de discussão sobre a pesquisa, sobre os trabalhos que estão
sendo realizados pelos pesquisadores do Brasil.
INTERCOM – Trace um paralelo entre o momento inicial
da INTERCOM e a situação atual.
Profa. Anamaria Fadul – Eu acho que começar é
muito mais difícil do que continuar. Acho que o mérito da
INTERCOM deve ser creditado ao Prof. José Marques de
Melo, que tornou realidade uma associação de pesquisadores
333
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
da Comunicação no Brasil. Ele tentou mudar essa mentalidade tão individualista, de cada um trabalhar por si, sem
comunicação com os outros. Eu creio que o início foi muito difícil e que algumas coisas foram conseguidas, principalmente o Boletim e o Quem é Quem, com esforços muito
grandes, no sentido de buscar essa comunicação entre os
pesquisadores.
Eu acho que a fase atual é de consolidação e que pode,
efetivamente, levar à maturidade da instituição, já que ela
completa 10 anos este ano. Eu acho também que a INTERCOM tem muita coisa ainda para realizar, um caminho muito longo para percorrer e muita contribuição a dar
à pesquisa em Comunicação no Brasil.
INTERCOM – A senhora gostaria de acrescentar algum
outro dado significativo?
Profa. Anamaria Fadul – Eu gostaria de falar das dificuldades de se levar adiante uma instituição de pesquisa
no país. Acho que a INTERCOM consegue, com muito
esforço e com muito sacrifício, manter-se atuante.
Contudo, eu considero que ainda é necessário um esforço muito maior, pois, às vezes, sinto falta de se assumir
conjuntamente, coletivamente, a instituição. É claro que se
tivéssemos mais dinheiro, seria facílimo levar uma instituição como a INTERCOM. Mas, em face da falta de recursos com que se lida, a INTERCOM é quase um milagre no
panorama das associações de comunicação. É muito difícil
manter um congresso anual, revistas, livros etc. Acho que,
diante desse quadro, a INTERCOM produz muito mais
334
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
do que poderia. Ela está muito além das possibilidades.
INTERCOM – Quando e como o senhor inicia atividades
junto à INTERCOM?
Prof. Gaudêncio Torquato – Eu lecionava na Fundação ‘Casper Libero’, onde o Prof. José Marques de Melo
trabalhava. Por conta dos contactos que nós fizemos, na
época, tudo aconteceu. De fato, havia um vazio a ser preenchido, na área de pesquisa em Comunicação, no Brasil.
Tornei-me, então, fundador da INTERCOM, juntamente
com um grupo de cerca de nove ou dez pesquisadores.
INTERCOM – Qual o balanço que o senhor faria sobre
sua gestão como Presidente da INTERCOM no biênio
1985/1987?
Prof. Gaudêncio Torquato – Eu me considero um
Presidente de transição, na medida em que assumi a INTERCOM num momento crítico, pois sentia que muitos
sócios estavam desinteressados em relação à entidade, sentia que a entidade precisava de uma estrutura mais sólida,
em termos de apoio administrativo, secretaria, administração de cursos. Somente aceitei a Presidência, no momento
em que houve o compromisso de que cada membro da
diretoria assumiria as suas tarefas individualmente. Tentei
inaugurar um modelo de gestão em que o presidente fosse
apenas um membro a mais da diretoria, não sendo, exatamente, a estrela principal. Procurei repartir funções, dividir tarefas, fazendo, assim, com que cada um assumisse as
335
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
suas responsabilidades. Preocupei-me, fundamentalmente,
em criar condições financeiras saudáveis, para a entidade,
deixando-a em condições de cumprir seus compromissos,
como por exemplo, a Revista, os Congressos, os cursos, enfim, realizar seus projetos sem interrupção. Agimos com
muito rigor nos controles das contas. Gostaria de dizer
que o meu tesoureiro, Edvaldo, foi uma pessoa rigorosa e
preocupada em controlar cada tostão. Por meio de algumas
“mágicas” de contabilidade, deixamos a INTERCOM em
condições extremamente saudáveis.
Como Presidente de transição, de alguma forma, dei
início a uma nova fase: adotamos um estilo gerencial misto e de cogestão. Durante a minha gestão, a INTERCOM
mudou sua sede, podendo, com isso, contratar uma secretária executiva, altamente eficiente, que teve uma boa performance na área de organização de cursos (3 a 4 ao mês).
A INTERCOM, na minha gestão, caracterizou-se pela
tentativa de uma organização mais interna, organização
de sistemas, processos e apoio administrativo, enquanto
outras gestões foram mais voltadas para fora, no sentido
político, no relacionamento com entidades internacionais.
INTERCOM – Como o senhor avaliaria os eventos e as
demais atividades promovidas pela INTERCOM durante
sua gestão?
Prof Gaudêncio Torquato – O mais recente Congresso
Anual da INTERCOM, apesar de alguns problemas, na
área organizacional, pareceu-me que atingiu um maior
número de participantes entre pesquisadores, professores,
336
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
estudantes de comunicação, porque o tema, sem dúvida,
era bastante relevante dentro do contexto institucional em
que se estava vivendo. De certa forma, acho que os dois
Congressos realizados, na minha gestão, atingiram plenamente os seus objetivos. Em ambos tivemos a presença de
convidados da América. No de 86, essa presença foi mais
expressiva que a deste ano, mas, a participação deste ano
foi melhor. Parece-me que os cursos atingiram resultados
mais que satisfatórios. Eu diria até que ultrapassaram as
metas programadas, pois a frequência foi bastante expressiva, atendendo não somente aos profissionais de Comunicação, como também a professores e alunos de cursos de
iniciação. A Revista teve a sua continuidade garantida e os
livros referentes aos Congressos também têm sido editados, basta ver o Comunicação e Educação, organizado pela
Professora Margarida Kunsch.
Em resumo, as atividades de cursos, Congressos, projetos
de comunicação e os contactos intersócios, além da parte
institucional da INTERCOM, foram expressivas, marcando a continuidade dos trabalhos, que têm cada vez
mais merecido admiração e respeito de toda a comunidade
acadêmica. No aspecto de relacionamento institucional,
eu ressalto, por exemplo, a presença da INTERCOM na
realização do Comunitech 87, a se realizar em novembro
deste ano, em Recife, com a presença de mais de 100 especialistas de Comunicação, do mundo inteiro, para discutir
questões relacionadas à difusão de novas tecnologias. A
participação da INTERCOM tem sido considerada pela
organização brasileira Embrater-DF e Emater-PE como
de fundamental importância para o fechamento da agenda.
337
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
INTERCOM – Em que condições a senhora assume a Presidência da INTERCOM?
Profa. Margarida Kunsch – A INTERCOM completa, no próximo dia 12 de dezembro, 10 anos de existência.
Nesse período, ocupou amplo espaço na área de Comunicação, ganhando notoriedade nacional e internacional,
graças ao desempenho de seu corpo de associados e à gestão de suas diretorias. Nesse contexto, não posso deixar de
destacar alguém que tem funcionado como baluarte, como
acionador e animador, que é o professor José Marques de
Melo, que não tem medido esforços para tornar nossa entidade cada vez mais dinâmica, produtiva e em crescente expansão.
Todo trabalho desenvolvido pelos ex-presidentes que
me antecederam, José Marques de Melo, Anamaria Fadul
e Gaudêncio Torquato, com os quais tenho convivido, nos
últimos anos, possibilita dar continuidade, sem rupturas,
ao que a INTERCOM se propõe a fazer e ao que determina sua razão de existir.
Assumir a Presidência da INTERCOM, nesse momento,
é, ao mesmo tempo, desafio e satisfação. Desafio pela responsabilidade que comporta estar à frente da entidade, na função
diretiva, conduzindo seu futuro e dando prosseguimento a
essa caminhada em busca de maior consolidação do campo da
Comunicação junto à comunidade científica. Satisfação pelo
fato de ter oportunidade de poder contribuir, de forma mais
participativa, nas causas da Comunicação Social, que considero da maior relevância no contexto do sistema social global.
E por ser a INTERCOM uma entidade representativa no
campo interdisciplinar da Comunicação, pelas suas inúmeras
realizações culturais e científicas.
338
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
INTERCOM – Quais as principais atividades que a senhora pretende desenvolver na INTERCOM?
Profa. Margarida Kunsch – Antes de colocar tudo
aquilo que a atual diretoria pretende desenvolver, faço
questão de ressaltar a necessidade fundamental de que todos os sócios participem, efetivamente, da entidade, conjugando esforços juntamente com os integrantes da corpo
diretivo. Há que se fazer um trabalho de equipe para que
as propostas, a seguir, sejam realmente realizadas. Abriremos o ano comemorativo, de dezembro de 1987 a dezembro de 1988, com um simpósio sobre “A Pesquisa da
Comunicação dos Anos 80”, a ser realizado de 11 a 13 de
dezembro próximo, em Embu, São Paulo, e pretendemos
estendê-lo, no decorrer de 88, em nível nacional, realizando-o em conjunto com Departamentos de Comunicação
Social das Universidades Federais. Já estamos ultimando
contatos com pesquisadores e professores desses departamentos para levarmos à consecução tal iniciativa. Estando, por enquanto, previsto o primeiro, no mês de abril, a
ser realizado em Recife, congregando todos os Estados do
Nordeste. Em junho, em Vitória, com representantes dos
Estados do Centro-Oeste e Sudeste. Curitiba sediará os
Estados do Sul, em outubro, e talvez Maranhão ou Pará,
os Estados do Norte, por volta de dezembro.
Esses simpósios regionais visam fomentar o debate e o
incentivo da pesquisa em Comunicação Social em todas
as realidades brasileiras. Enquanto estudiosos da Comunicação, não podemos deixar de salientar a necessidade de
termos visão muito mais macro de nossa atuação. Temos
que estar engajados com o mundo que nos rodeia, levando em
339
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
conta suas variáveis políticas, econômicas, sociais, culturais, legais e ecológicas, que nos permitirão enxergar muito
mais longe qual o papel que a Comunicação poderá desempenhar na sociedade contemporânea.
Tencionamos, também, nesse mesmo ano, lançar o Prêmio INTERCOM de Comunicação, dirigido a estudantes
de graduação pós-graduação em Comunicação Social, por
meio de concurso de monografias/ensaios com temas relacionados a todas as habilitações dessa área.
Um dos projetos em andamento é a ampliação da linha
de publicações. Além do livro anual, de bibliografias de
comunicação, da revista e dos cadernos, pretendemos fazer
publicações específicas de temas dos últimos eventos paralelos do Congresso 86/87, como, por exemplo, Divulgação
Cientifica, Comunicação Rural, Metodologia da Pesquisa em
Comunicação, Documentação etc.
Reafirmando nossas propostas já delineadas por ocasião do processo eleitoral, faço questão de reproduzi-las,
aqui, uma vez que, juntamente com os meus colegas de diretoria, assumimos compromissos com os associados. Por
isso, além das atividades normais, já conhecidas que, tradicionalmente, a INTERCOM desenvolve, é nossa intenção
levar a efeito as seguintes:
- Criação de um Centro de Estudos Avançados da Comunicação – CEAC, mediante a instalação de comissões setoriais permanentes no quadro associativo da INTERCOM;
- Desenvolver seminários e colóquios dirigidos às linhas de
pesquisa prevalecentes entre os Sócios da INTERCOM e
cujo objetivo é o debate de experiências e a atualização de
temas, além do congresso anual;
340
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
- Estabelecer convênios com entidades internacionais, por
meio de troca de experiências entre pesquisadores de Comunicação, no Brasil, com pesquisadores de outros países. Já
estamos ultimando contatos com o México que, provavelmente, será com quem primeiro efetivaremos tal proposta;
- Promover uma maior abertura da INTERCOM junto
aos órgãos de divulgação. Isto é, fazer com que nossa entidade seja conhecida no meio da grande imprensa, propiciando a presença dos sócios nos programas de debates das
questões nacionais inerentes ao mundo interdisciplinar da
Comunicação;
- Criar relações mais estreitas com as áreas afins da Comunicação e seus órgãos de classe representativos das diversas áreas ( Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Relações
Públicas, Radialismo, Cinema e Produção Editorial);
- Proceder à atualização e reformulação do atual Estatuto,
adaptando-o ao crescimento de nossa entidade, nesses 10
anos, e às exigências dos novos tempos;
- Reativação das Seções Estaduais, incluindo-as, no futuro
Estatuto, compondo, por conseguinte, o quadro diretivo
da entidade, bem como promovendo encontros regionais
dos sócios sobre temas de interesse local/regional, como
cursos, seminários e simpósios
- Fazer com que o Boletim Notícias INTERCOM tenha
uma periodicidade certa (bimestral) e seja o elo de integração dos sócios, dependendo é claro, da contribuição dos
mesmos, mediante o envio de informes sobre suas atuações e pesquisas;
341
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Agora, para que a INTERCOM possa cumprir, com eficiência, seus objetivos e sua programação, é preciso que os
associados se engajem no esforço da entidade, participando
dos seus eventos, oferecendo sugestões e se fazendo presente,
no contexto da intensa participação, pela reconstrução e aperfeiçoamento da ordem institucional e democrática do país.
INTERCOM – Atualmente, a INTERCOM conta, aproximadamente, com cerca de 600 associados. Há alguma coisa
sendo feita para ampliar esse número?
Profa. Margarida Kunsch – É nossa intenção abrir a
INTERCOM o máximo possível. Para isso, temos que nos
organizar e começar por um trabalho de pesquisa, fazendo
um levantamento completo de professores, pesquisadores
e profissionais de Comunicação e de outras áreas de conhecimento que se preocupam de forma interdisciplinar
com as questões emergentes da Comunicação.
Está sendo planejada a elaboração da futura publicação do
Quem é Quem na Pesquisa em Comunicação no Brasil, e será um
meio utilíssimo para ampliarmos o quadro associativo.
Temos que desenvolver um trabalho de recuperação de
sócios antigos para que voltem a contribuir com sua reintegração. Estamos também enviando correspondências
para todas as Escolas de Comunicação do Brasil, solicitando a relação de professores, a fim de convidá-los a se
filiar à entidade. E em encontros pessoais que tenho tido
em universidades, seminários, palestras, tenho me dirigido aos colegas, mostrando a importância de sua participação e filiação.
342
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Evidente, trabalho dessa natureza não pode se limitar
apenas à diretoria. Cada sócio deve, proselitivamente, no
seu dia a dia, cooperar nesse sentido. Só, assim, teremos
condições de fazer algo significativo em termos de ampliar o número de associados. A diretoria de uma entidade
deve funcionar como ponto convergente, que tem sob seus
ombros o ônus de administrá-la, a eficácia de suas ações
e a dedicação, a abnegação de muitas horas de convívio
familiar, de lazer e das atividades profissionais dos seus
membros, que só quem participa ativamente dos órgãos
de classe sabe. As atividades encontrarão eco se todos os
sócios realmente participarem da organização. A INTERCOM deve ser todos nós.
343
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
344
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
32. Humberto Pereira:
A comunicação rural39
Dario Borelli
O editor-chefe do programa “Globo Rural”, jornalista Humberto Pereira, diz estar fazendo Jornalismo para o
agricultor brasileiro, sem discriminar o seu universo cultural ou tradicional. Depois que o “Globo Rural” foi ao ar,
pela primeira vez, no dia 6 de janeiro de 1980, diz Humberto Pereira que o agricultor passou a ver a si mesmo na
televisão como personagem principal de um programa jornalístico, ainda que num horário marginal. “Não é o horário do ‘Jornal Nacional’, da novela das oito, mas, ainda que
seja num horário marginal, há um espaço para o agricultor
na Rede Globo”, afirma.
O programa é exibido, nacionalmente, aos domingos,
a partir das 8h e tem de 45 a 50 minutos de duração, em
39. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano XI, nº59, jul/dez, 1988. p.05-16.
345
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
média, apresenta diferenças importantes em relação a outros programas jornalísticos da televisão brasileira. Uma de
suas características é buscar a participação dos telespectadores através da seção de cartas, as quais são respondidas
por meio de matérias gravadas in loco com técnicos ligados
às instituições estatais de ensino, pesquisa e extensão rural. A reportagem especial sobre alguma questão, acontecimento, atividade ou serviço relacionado ao meio rural, é
veiculada sempre ao final de cada programa. Em 1983, a
equipe do “Globo Rural” recebeu do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico – CNPq – o Prêmio José
Reis de Divulgação Científica.
Além da proposta do programa “Globo Rural”, são assuntos da entrevista de Humberto Pereira a televisão como
veículo de comunicação, o 1ançamento da Revista Globo
Rural, no final do ano de 1985, a produção de estudos específicos sobre o programa “Globo Rural” e a formação de
profissionais para a imprensa agrícola.
INTERCOM – Por que o programa “Globo Rural” é considerado, hoje, uma fonte de informação agropecuária indispensável para o homem do campo?
Humberto Pereira – Eu não tenho certeza que o programa “Globo Rural” seja uma fonte de informação agropecuária, não tenho certeza se ele é indispensável para o
homem do campo, porque isso tudo é muito imponderável. Não sei se o nosso programa é de informação agropecuária, porque há outros tipos de informação, de abordagem de assuntos que são tratados dentro do programa.
346
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Na verdade, o que nós pretendemos estar fazendo é um
programa para o agricultor brasileiro e não um programa
sobre agricultura ou pecuária. E eu tenho certeza que nós
não chegamos aos agricultores brasileiros, do ponto de vista quantitativo, pelo menos.
O nosso programa é um programa que abriga tecnologia, que abriga problemas de ordem agronômica, biológica,
mas também problemas de ordem econômica, de ordem
sociológica, de ordem cultural. O fato de fazermos uma
matéria sobre onça ou jacaré não traz nenhum aumento
de produtividade de feijão ou de arroz, além de não curar
doença de vaca no Brasil. No entanto, são assuntos que, de
uma forma ou de outra, interessam, fazem parte do universo cultural desse homem que vive, no interior, ou de
muitos que já foram tangidos do interior para a cidade.
Então, pretendemos, cada vez mais, conhecer e entender esse universo, o mundo do agricultor com tudo o que
ele tem de cultural e tradicional. Fazer um programa apenas técnico em televisão, para esse homem do campo, seria
fazer um programa que, talvez corresse o risco de ser um
pouco enfadonho, de discriminar partes da sua vida, interesses que ele tem, interesses que não são propriamente
dele, mas de sua mulher. Quando fazemos, por exemplo,
uma receita nova de um prato de mandioca ou de milho, para que possa interessar à mulher do agricultor, isso
não tem nada a ver com a produção de feijão ou de arroz.
Quando tratamos, por exemplo, das condições de vida do
agricultor, sejam as condições sociais de vida, como carteira de trabalho assinada, salários, greve de trabalhador
rural, situação de boia-fria ou, quando tratamos de problemas que são de ordem de saúde pessoal, como água, as
347
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
endemias rurais etc., nós estamos tratando de problemas
que dizem respeito ao homem que trabalha na agricultura
e não apenas a atividade técnico-agrícola ou do seu negócio. Preocupamos-nos com esse homem total; pelo menos,
temos nos pautado assim, e a receita do “Globo Rural” é
nessa linha.
É por isso que a nossa informação não é apenas agropecuária. Ela é agropecuária, mas vai além disso. Quanto ao
fato de ser ou não indispensável, é uma outra pergunta que
eu me faço. Eu acho o seguinte: o programa “Globo Rural”
está sendo feito na Rede Globo de Televisão. O agricultor que está vendo esse programa tem televisão em casa,
senão não estaria vendo, é óbvio. Então, é um programa
para quem tem televisão em casa, no vizinho, no salão paroquial, no clube, enfim, em qualquer lugar existe um aparelho de televisão. Ora, esse mesmo aparelho de televisão
– é normal que e suponha – capta não só a Rede Globo,
mas também o Silvio Santos, a Bandeirantes, a Manchete,
qualquer outra rede ou a televisão local. Portanto, supomos que o agricultor esteja vendo, também, o “Fantástico”,
as novelas, os outros programas jornalísticos, filmes, documentários estrangeiros, enfim, ele vê tudo que passa na
televisão. O que acontece em relação ao “Globo Rural” é
que ele é especializadamente e, pioneiramente, o primeiro
espaço dedicado, na televisão brasileira, ao agricultor, não
só em relação a sua atividade, mas ao agricultor como personagem de um programa jornalístico de televisão.
O agricultor está acostumado a ver, na televisão, problemas de buraco de rua da cidade mais próxima, problemas
políticos, problemas de ensino, problemas urbanos em geral. E, a partir do “Globo Rural”, ele passou a ver, também,
348
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
a si mesmo dentro da televisão, ainda que num horário
marginal. Não é o horário do “Jornal Nacional”, da novela
das oito; mas, ainda que seja horário marginal, há um espaço para o agricultor dentro da Rede Globo.
Mas, a televisão como veículo, é muito limitada. Ela
não vai modificar sozinha a realidade do agricultor. A
televisão não tem força para implantar o capitalismo no
sistema feudal que ainda existe no campo. Pela sua natureza, a televisão não tem a virtude, em si mesma, nem
de implantar o sistema capitalista onde existe o sistema
feudal, pré-capitalista, que é o interior do Brasil, nem de
fazer uma reforma agrária no País. Nem neste país, nem
em país nenhum.
Essa televisão broadcasting é muito efêmera, extremamente sugestiva, insinuante. Tem, ao contrário de um milagre eletrônico, e dentro do seu processo, um sistema de
comunicação que é o mais primitivo de todos: o oral e o
visual. Independe da pessoa saber ler e escrever para entender o que a televisão está mostrando. Esta, talvez, seja
uma das suas virtudes. Mas, na verdade, a televisão não
passa de uma mágica extraordinária do nosso século.
Muitas vezes, as pessoas falam: “Com o prestígio do
‘Globo Rural’, por que vocês não fazem a reforma agrária
via ‘Globo Rural’?” Isso é uma utopia. Ainda que se quisesse fazer, seria impossível. Você não faz reforma agrária
nem pela televisão, nem pelo rádio ou pela jornal. O poder
de transformação da realidade é muito menor do que se
pensa. E eu acho que temos que fazer um esforço enorme
no sentido de sermos humildes, de reconhecer muito mais
as limitações do nosso programa do que propriamente a
sua força.
349
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Às vezes, a televisão induz o profissional que nela trabalha a ficar um pouquinho encantado. Mas, esse profissional
acaba “dançando”. Felizmente, a equipe do “Globo Rural”,
até pela sua idade média, é constituída de gente que não
precisa provar mais nada profissionalmente. Quer dizer,
ela tem essa humildade de reconhecer que está atuando
dentro de um veículo muito limitado em termos de comunicação. Nós achamos que, teoricamente, só se progredirá
em termos de comunicação rural, no Brasil, – pelo menos
no caso da televisão – na medida em que se entender bem
os seus limites e as suas fronteiras em relação à realidade.
As pessoas acham que a Rede Globo muda o Brasil. Ao
contrário, a Rede Globo é fruto do Brasil. Tem gente que
acha que a televisão é ruim no Brasil. Ela é pior em outros
países. Não existe uma televisão independente, seja de um
governo, seja de uma ideologia, seja de um esquema comercial capitalista. Não existe em nenhum lugar do mundo. Se você for aos Estados Unidos ou à União Soviética, e
tentar dizer o que pensa, não vai conseguir. Como aqui, no
Brasil, também. Vai tentar dizer as coisas que você, eventualmente, possa ter dentro do seu coração em qualquer uma
das redes de televisão. Não existe isso, é uma utopia. Mas,
não é um defeito do veículo ou da rede. É uma conjuntura
que até agora é inevitável. O que se vai fazer? E pode até
estar dependendo de muitas coisas; mas, certamente, não
depende dos profissionais que trabalham em cada um desses lugares. Disso você pode ter a mais absoluta certeza.
INTERCOM – Você concorda plenamente que o programa
“Globo Rural”, desde janeiro de 1980, quando foi ao ar pela
350
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
primeira vez, tem se constituído em importante fator de integração do empresariado rural com o complexo agropecuário, em
reforço à penetração do modo capitalista no campo? Por quê?
Humberto Pereira – Quando você fala em complexo
agropecuário, certamente está se referindo à indústria, à comercialização, eu diria, até, a uma era histórica da agricultura,
que é cada vez mais tecnificada, no mundo inteiro, ou seja, a
tecnologia que chega de uma maneira industrializada ao campo. Tudo isso eu acho que teria que ser muito bem definido.
O empresariado rural, no Brasil, é extremamente incipiente; não existe algo para chamá-lo assim. As lideranças
são divididas. Você vê, por exemplo, três tipos de liderança.
Um tipo de liderança é aquele que vive de dialogar constantemente com o governo, a fim de obter melhores condições de
subsídios para o que fazem, ou dê créditos, ou de uma política
agrícola para tocar o negócio chamado agricultura. Que, no
fundo, vem a ser agricultura de grãos e, no caso de produção
de proteínas, o boi, o porco e o frango, resumidamente.
O segundo tipo de liderança está extremamente polarizado por uma ideologia que consiste em preservar a
propriedade rural, em evitar o que eles acham que seja o
“demônio” da reforma agrária. Esse tipo, por sua vez, contrasta-se com o terceiro tipo de liderança, que realmente
saiu do estado feudal para cair no estado capitalista moderno. Mas, essa é apenas uma parte do empresariado.
Coincidentemente, esse tipo de empresário não precisa
do nosso programa. Um Olacir de Morais, por exemplo,
que tem a Fazenda Itamarati e uma equipe de agrônomos,
de médicos veterinários etc., ou o Grupo Cotia, da família Brito, dispensam um programa como o “Globo Rural”
351
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
para tocar os seus negócios. Eles até assistem e respeitam
o programa, como fonte de informação, mas os seus negócios independem, completamente, não só do nosso programa, como de qualquer outro programa jornalístico.
INTERCOM – Neste caso, atribuímos, então, ao programa
“Globo Rural” um poder que ele não tem?
Humberto Pereira – Vocês atribuem à televisão um poder que, na verdade, ela não tem. É inegável que ela tem um
poder enorme; mas, de repente, parece que a televisão é o
grande demônio no Brasil. Não é. E tem mais: a televisão,
no Brasil, é muito boa se comparada tom outras televisões.
Vamos detalhar melhor os problemas e as virtudes da
televisão brasileira, no caso específico do “Globo Rural”. É
um programa de rede. Então, dizem: “A Rede Globo, ou
o programa ‘Globo Rural’, está massificando o agricultor
brasileiro, está dando um reforço à penetração do modo
capitalista no campo”. Muito bem. Do ponto de vista jornalístico – eu só estou respondendo pela parte editorial do
programa – nós temos uma equipe volante que talvez, hoje,
já esteja com oito anos. Trata-se da equipe de jornalismo
com a maior quilometragem dentro do País. Do Acre ao
Rio Grande do Sul. Nós vamos a cada rincão, deste país,
vamos a cada estado, a cada região. Nessas reportagens,
quem fala é o agricultor, é o técnico, é o fazendeiro, é o
boia-fria, lá, daquela tal região. Ele tanto entra no nosso
programa com o sotaque nordestino, como entra com sotaque meio polonês, meio ucraniano, do Paraná, como entra com o sotaque gaúcho, com o sotaque singelo do meu
352
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Estado, que é Minas Gerais, o programa “Globo Rural”
tem, dentro de si, todos os sotaques do Brasil.
Caberia perguntar então: nós estamos impondo o quê? Estamos impondo o sotaque gaúcho ao nordestino ou estamos
impondo o sotaque nordestino ao mineiro? Nós não estamos
fazendo um programa de São Paulo para o resto do País. Nós
estamos fazendo um programa, no qual nós vamos aos próprios lugares. Com o maior respeito e a maior alegria, colocamos no programa todos os sotaques. Então, veja o seguinte:
quem entra no programa é o Brasil todo. Eu não sei se outro
programa, outra proposta de “Globo Rural” teria condições de
assegurar e respeitar isso. A nossa maneira de respeitar o Brasil inteiro é essa. Poderíamos, se quiséssemos, fazer um programa sem sair do Estado de São Paulo, que interessasse ao
Brasil todo, do ponto de vista técnico. São Paulo é um Estado
onde você tem búfalo, tem soja, tem trigo, seringueira, como
na Amazônia, cacau no Vale da Ribeira, tem todos os climas e
todos os produtos, e produtos muito bem cultivados, com alta
tecnologia, modelo até para o resto do País. O búfalo de Araçatuba, por exemplo, dá de 10 no búfalo da Ilha de Marajó. No
entanto, a primeira vez que fomos “fazer” búfalo, nós fomos à
Ilha de Marajó “fazer” o búfalo de lá. Quer dizer, esse respeito é preciso ter. E mais: a empresa Rede Globo de Televisão,
nos tem dado condições de honrar essa diversificação de gente,
de pessoas, de sotaques que entram no programa. Hoje, por
exemplo, eu estou com uma equipe no Maranhão.
INTERCOM – Quer dizer, então, que a equipe do “Globo
Rural” tem autonomia jornalística para decidir aonde ir e o
que fazer?
353
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Humberto Pereira – Quem diz aonde a nossa equipe
vai, somos nós aqui. Nós é que decidimos aonde ir e o que
fazer.
INTERCOM – Não existe nenhum tipo de imposição, norma preestabelecida?
Humberto Pereira – Sim, existe. A imposição que temos é a seguinte: nós estamos trabalhando dentro da Central Globo de Jornalismo, que tem uma ética que nem é
dela, mas do próprio Jornalismo. Nós não fazemos merchandising nas matérias. No dia em que aparece um trator
dentro de uma matéria nossa, aparece porque o trator estava lá. Nós não fomos procurar aquele trator e depois cobrar
a fábrica porque ele entrou no programa. Isso o jornalismo
da Globo não fatura. Nós, também, não mencionamos nenhuma marca de produto dentro do nosso espaço jornalístico. Quando se trata de um produto que temos que dizer
o nome, damos apenas o seu princípio ativo e não a sua
marca comercial.
Em assuntos controversos, nós procuramos ouvir as
versões existentes a respeito. Eu não posso ser militante
dentro do jornalismo que faço. Vou dar um exemplo. A
questão mais apaixonante que existe, hoje, do ponto de
vista da discussão e do debate entre ideologias, no Brasil
é, sem dúvida, a reforma agrária. Agora, se eu estou fazendo um jornalismo honesto, tenho que refletir dentro desse
jornalismo o que acontece em relação à reforma agrária
no país em que estou. Eu não posso criar ou forçar, jornalisticamente, a realidade. Se eu vou, por exemplo, em uma
354
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
experiência de reforma agrária de uma fazenda e ela tem
defeitos, tenho que criticar esses defeitos, ainda que isso
doa aos partidos de esquerda. Eu vou, nesse lugar, ainda
que doa ao senhor Ronaldo Caiado, ouvir essa experiência.
De outro lado, coloco o senhor Ronaldo Caiado dando
uma opinião sobre uma determinada lei da Constituinte
ou sobre um momento difícil dos agricultores. Eu tenho
que refletir, honestamente, a realidade do País.
Dentro dessa ética, procuramos evitar qualquer lobby
que possa ser feito em cima do programa. Por exemplo,
nós damos cotação de preços, que é uma das informações
básicas dentro do programa. Antes do “Globo Rural”,
qualquer caminhão chegava à porta de um sitiozinho do
interior mais remoto e comprava uma vaca, um bezerro
pelo preço que o chofer do caminhão queria. O dono daquela pequena propriedade não tinha a mínima ideia de
quanto andava o preço da arroba do boi. Com uma televisãozinha às movida à bateria, ele tem, todos os domingos,
informação dos preços vigentes no mercado do boi. “Evidentemente, o preço do boi que ele vai vender, na porta do
seu sítio, é menor que o preço dado pelo ‘Globo Rural”,
mas ele já sabe fazer esse referencial. Esse tipo de informação, em relação a todos os produtos, tem evitado que o
agricultor, principalmente o pequeno, perca muito do seu
lucro nas mãos dos intermediários. Uma das maiores pragas que existem em relação à agricultura não é o agricultor;
mas, sim, o atravessador. O atravessador é o cidadão que
não plantou, não sofreu com o clima adverso, não sofreu
com uma política agrícola, às vezes incongruente, e chega à
porta do sítio e compra o produto prontinho. Tantas sacas
de arroz, 10 sacas de feijão, 210 de milho. Ele, sim, é quem
355
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
lucra, sem prejuízo nenhum. Portanto, esse tipo de informação que damos está ajudando o agricultor a conservar
um pouco mais a sua poupança. Isso nós fazemos a título
de informação. Não influímos no preço nem para baixo,
nem para os lados, nem para cima. Estamos apenas dando
ao pequeno, médio e, até mesmo, ao grande agricultor, o
insumo fundamental que a sociedade urbana tem chamado de informação. E uma informação ligada diretamente
à sua atividade. Se você é jornalista ou está fazendo Jornalismo, isso é uma coisa da mais alta importância para qualquer agricultor do mundo. Pois, não podemos nos esquecer
de que a figura do atravessador é universal.
Eu também não posso negar um outro dado básico: a
nossa economia é uma economia capitalista, é uma economia de mercado. Tutelada, vigiada ou não, é esta que está
ai. Então, eu tenho que evitar que esse agricultor perca
demais. Ele não tinha esse tipo de informação constante,
seriada, todos os domingos, até o “Globo Rural” aparecer
em 1980. O que é isso? Isso aí sou eu, o programa reforçar
a penetração do modo capitalista no campo? Esta é uma
pergunta que vem envenenada por um preconceito muito
forte contra a Rede Globo e contra o trabalho que nós
fazemos.
INTERCOM – Você acredita que o programa “Globo Rural” inspira solidariedade aos produtores rurais, na medida
em que encaminha e consolida suas reivindicações?
Humberto Pereira – Eu acho que essa solidariedade
tem vários aspectos que podemos lembrar. Em primeiro
356
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
lugar, as reivindicações dos agricultores. É muito importante o fato de esses agricultores terem um canal para reclamar, da mesma maneira que a mãe reclama do custo da
escola, no Rio de Janeiro, e da mesma maneira que a favelada de São Paulo reclama do serviço precário de saúde
que o Estado de São Paulo e a União lhe dão. Quer dizer,
poder falar, colocar suas broncas no ar, é uma coisa importante. Brasília ouve, as pessoas que são direta ou indiretamente responsáveis por essa situação ouvem. Então, você
dá uma dimensão a essa reclamação ou a essa reivindicação
que elas merecem.
Um outro aspecto que eu acho muito importante dessa solidariedade é o seguinte: a cidade, em geral, não tem
muita ideia dessa atividade do homem do campo, embora seja a maior beneficiária de tudo o que o homem do
campo faz. Quer dizer, você diariamente, ou pelo menos
de manhã, na hora do almoço ou na hora do jantar, está
sobrevivendo às custas daquilo que o nosso agricultor produz. Todo mundo. Os políticos de Brasília, o pessoal da
UDR, o pessoal do PT, o pessoal do PDS, o pessoal do
Partido Verde, todo mundo, neste ponto, é igual. Come
feijão, come arroz, come bife, come ovo, alguma coisa eles
estão comendo e bebendo. Isso é fruto do trabalho no
campo. Agora, quem apenas come e bebe, pois já recebe
pronto no prato, em restaurantes e lanchonetes, não tem
muito conhecimento de tudo o que está por trás daquele
ovo, daquela polenta ou daquele franguinho à passarinho.
Então, eu acho que, na medida em que você mostra esse
universo dentro da televisão, o homem da cidade passa a
ter conhecimento dessas atividades importantíssimas para
todos nós.
357
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Alimentação, saúde, transporte e educação são quatro
coisas básicas. Agora, a alimentação tem um universo por
trás muito maior do que o do transporte ou do que o da
educação. Você pode viver sem ir a uma escola, mas não
pode viver sem comer, sem beber. A alimentação é o mais
básico de todos. É preciso, portanto, que o homem da cidade se solidarize com a fonte do seu alimento, que é feita
por seres chamados agricultores, pecuaristas, boias-frias e
outros. Aliás, tem mais: hoje em dia, a pessoa que anda de
carro, na cidade, está andando em carro movido a álcool,
que é feito de cana colhida por boia-fria. Você, por exemplo, está aí vestido com uma calça jeans e uma camiseta,
ambos de algodão. Esse algodão também vem da lã, sabia?
Quer dizer, você come, veste-se e anda de carro às custas
da agricultura brasileira.
INTERCOM – Em que medida o lançamento da Revista Globo Rural, no final do ano de 1985, propiciou uma maior eficácia
para as informações geradas pelo programa “Globo Rural”?
Humberto Pereira – Olha, isso aí é uma coisa que vem
ao encontro do que eu dizia antes, ou seja, a televisão é
muito limitada. Há uma frase de um agricultor que exprime muito bem isso: “Na televisão, as reportagens são
boas, é tudo muito importante, mas muito passageiro”.
Isso quer dizer o seguinte: a televisão, assim como o rádio, é um veículo que está atrelado ao tempo. Tem uma
hora de entrar no ar, tem uma duração determinada e uma
hora para sair do ar. O dia só tem 24 horas, é inelástico. O
tempo é inelástico, implacavelmente inelástico. Então, toda
358
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
a informação que você consegue colocar dentro daquele
tempo, daquela duração, é limitada. Além de ser limitada,
tem esse caráter de efemeridade, isto é, passa, se esvai na
medida em que acabou de passar. Essa é a maior limitação dos veículos eletrônicos. Mesmo essa exuberância da
imagem, essa facilidade comunicação oral não conseguem
suprir essa limitação.
Então, houve inúmeras, milhares de cartas, desde o começo do programa, pedindo que publicássemos aquilo que
estava indo ao ar. Por quê? Porque, uma vez publicado, em
forma de jornal, boletim ou revista, o cliente, as pessoas
que se interessam pelos temas veiculados, na televisão, teriam, num veículo que não é temporal, mas sim espacial,
a possibilidade de recorrer, a qualquer hora, de ler aquela
reportagem mais de uma vez, de voltar atrás. Não podendo
ler, hoje, deixa para ler amanhã ou depois de amanhã, ou
para daqui a um mês ou no ano que vem, quando ele vai
plantar novamente. Isso tudo, que de uma maneira muito
singela, era pedido, trata-se daquela coisa dos multimeios
complementares, da mídia que se complementa de veículo
de comunicação de natureza diferente.
Então, a Revista, que tem quase trinta por cento de material comum que aparece na televisão e nela mesma, vem
complementar essa deficiência da televisão, sendo que não
se trata apenas, no caso da Revista Globo Rural, de uma cópia daquilo que vai para a televisão. Trata-se, exatamente,
de uma abordagem que aprofunda muito mais informações porque, ao contrário da televisão, ela é elástica. Se eu
tenho, por exemplo, um assunto que precisa de mais dez
páginas, posso aumentar indefinidamente a edição, dentro
de uma equação econômica da própria Revista.
359
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Mas, então, trata-se esses assuntos de uma maneira diferente, de urna maneira própria desse veículo. E nós estamos, brevemente, dentro de uns dois ou três meses, para
lançar num outro veículo, que é o rádio, um “Globo Rural
Rádio”. Esse programa viria suprir uma outra deficiência
que não pode ser complementada nem pela Revista nem
pela televisão. A Revista é mensal, a televisão é semanal. Há
uma série de informações que acontecem, hoje, são importantes hoje, e que eu deveria dá-las hoje para o agricultor.
Só com um tipo de veículo que tem a agilidade do rádio
é que eu posso fazer isso. Então, um programa de rádio
me permitiria, por exemplo, dar informação meteorológica,
coisa que eu não posso fazer, hoje, num programa semanal
e muito menos numa revista mensal. As cotações são tão
importantes que precisariam ser acompanhadas diariamente. Cotações de todos os preços. As decisões políticas, de
Brasília, teriam, também, que ser comentadas, diariamente, principalmente aquelas que dizem respeito ao setor. No
caso de Brasília, temos inúmeros ministérios – Ministério
da Indústria e Comércio, Ministério da Agricultura, Ministério da Fazenda – que tratam de agricultura. Álcool e
café estão no Ministério da Indústria e Comércio. Decisões
econômicas estão no Ministério da Fazenda. Um surto de
febre amarela, por exemplo, está no Ministério da Saúde.
Precisaríamos do rádio para suprir isso. Então, faríamos um
tripé de multimídia que nos ajudaria a ser um pouco mais
eficazes, conforme você alude em sua pergunta.
INTERCOM – Qual a relevância da produção de estudos
específicos sobre o programa “Globo Rural”?
360
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Humberto Pereira – Quando um engenheiro agrônomo ou um pesquisador da Comunicação faz um estudo
sobre o nosso programa, ele nos obriga a pensar, nos obriga
a checar aquilo que nós estamos fazendo, nos obriga a reavaliar o nosso trabalho. Ou ele nos dá insegurança a respeito
de uma coisa ou de outra, ou reafirma certezas e até nos propõe caminhos novos. Eu acho isso da maior importância.
E é curioso que entre toda a programação da televisão brasileira, de um tempo para cá, justamente o “Globo
Rural” tenha merecido tantos estudos. No momento, nós
estamos com um pedido de estágio de uma professora de
Viçosa, que está desenvolvendo uma tese. Já houve outros
da Universidade de Viçosa. Lavras já fez trabalho sobre o
‘Globo Rural’. Gosto muito de dialogar com os pesquisadores, ainda que tenhamos debates calorosos a respeito de
vários itens.
INTERCOM – Você tem sugestões a dar sobre a formação profissional de repórteres e redatores para a imprensa agrícola?
Humberto Pereira – Eu poderia responder a isso numa
única frase: “O jornalista agrícola para ser um bom jornalista agrícola tem que ser um bom jornalista”. Ele será um
bom setorista na medida em que desenvolver suas ferramentas profissionais jornalísticas. O bom profissional sabe
que se ele entra em um setor, tem que enterrar mesmo a
cabeça dentro desse setor.
O jornalista de esporte, por exemplo, não é obrigado a
saber a diferença entre gramínea e leguminosa. Chega uma
hora em que o jornalista que vai mexer com agropecuária
361
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
tem que saber isso, senão ele sair do setor. Como jornalista
agropecuário, ele não é obrigado a saber, com muita precisão, a diferença entre o meio-armador e o volante, o que é
um, o que é outro dentro do campo.
De toda forma existe o seguinte: o jornalista que trabalha com agropecuária, dentro desse setor rural – eu prefiro
chamar de rural ao invés de agropecuário, pois o rural engloba tudo –, tem que se informar muito sobre esse mundo
com o qual vai trabalhar. O jornalista que talvez seja filho
de um fazendeiro não é, necessariamente, o melhor jornalista agropecuário. O jornalista que tem um sítio também
não é necessariamente o melhor profissional. O melhor
jornalista rural é, simplesmente, o melhor jornalista.
Há uma outra coisa que está por trás disso que eu contesto muito: comunicação rural. Eu sei que existe uma associação de comunicação rural. O mundo inteiro se preocupa, cada vez mais, em se comunicar com o homem do
campo. Eu disse que estou dentro de um canal de televisão
que já tem outros programas que o agricultor vê todos os
dias. Então, na verdade, para eu chegar bem até ele, tenho
que desenvolver a minha capacidade de comunicação, sem
adjetivo, entendendo de elementos que são básicos, fundamentais dentro da comunicação de televisão. Procurar
falar numa linguagem linear, ordem direta. As palavras
devem ser bem pronunciadas. Se eu puder evitar o microfone melhor. Usamos muito microfone sem fio, microfone
direcional. O que eu quero dizer é que bê-á-bá da comunicação serve tanto para se fazer comunicação quanto para
se fazer comunicação esportiva, científica e qualquer outra.
O que deve ser desenvolvido é a comunicação. Você
quer um bom comunicador na área rural? Trabalhe naquela
362
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
linha que estava lhe dizendo há Pouco. Se for, em televisão,
procure conhecer os seus limites. ‘Conhecendo bem esses
limites, você vai se desenvolver, vai conseguir ultrapassar as
pedras que aparecem no caminho.
Evidentemente, o conhecimento da realidade rural é
fundamental. Não adianta você passar três, quatro anos
dentro de uma escola, em São Paulo ou em Belo Horizonte, se você nunca viu uma vaca, nunca entrou numa
cooperativa, nunca entrou sequer numa loja de produtos
agropecuários, aqui na cidade, nunca viu uma reunião de
um sindicato de trabalhadores rurais ou de um sindicato
rural, e não lê o que se publica a respeito desse setor.
INTERCOM – Você acha que as escolas de Jornalismo podem dar uma contribuição no sentido de incentivar os alunos a procurar este tipo de informação?
Humberto Pereira – Essa é uma discussão a respeito
da universidade brasileira, que é aquela coisa que, às vezes, da raiva, sabe? Eu acho que ela está conseguindo ser
pior do que o jornalismo brasileiro. Eu aceito as críticas
ao jornalismo brasileiro, inclusive as críticas oriundas da
universidade. Mas, infelizmente, o nosso país, num estado
tal de desagregação, que a universidade, hoje, está numa
situação precaríssima. Você sai da faculdade hoje, de mãos
vazias, sem ferramentas para trabalhar.
Escolas de Jornalismo podem dar uma contribuição
nesse sentido. Mas, será que elas têm condições de dar esse
instrumental aos estudantes? Por um acaso elas estão atentas a isso? Então, a formação efetiva do profissional acaba
363
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
acontecendo, via sua determinação em adotar o Jornalismo como profissão. Há um problema sério aí: o Jornalismo não pode ser emprego. Jornalismo é uma profissão. O
que se procura é um profissional do Jornalismo. No fundo,
você tem que abraçar essa profissão quase que vocacionado
mesmo. Eu acho que é necessário ter vocação para ser jornalista. É lógico que não estou falando, aqui, do cara que
quer aparecer como jornalista, indo trabalhar à televisão
para o conforto e a massagem do próprio ego, ou do cara
que quer exercer o poder como jornalista. Não, o jornalista
só é jornalista, quando trabalha em benefício da comunidade. O jorna1ista lida com um insumo que é a notícia, a
informação que não tem nada a ver com ele, é uma coisa
que ele busca, onde está escondida, e revela isso através
dos meios de comunicação para toda a comunidade. O
jornalista que entra no ramo rural não escapa disso. Ele
vai ser tanto melhor jornalista quanto conseguir exercer
isso. Aquela coisa que eu estava lhe falando: por que nós
vamos ao interior de Pernambuco ouvir o cara, que está lá
numa frente de trabalho durante uma seca? Em 1982-8384, nós cansamos de fazer isso. Por quê? Tecnicamente,
eticamente, o modo de nos comunicarmos melhor com o
Brasil é esse. Isso é exercício de jornalismo simplesmente.
Jornalismo é uma profissão sem adjetivo.
Quando falamos de jornalismo rural, não raras vezes,
ouço o seguinte raciocínio: “Bom, o homem do campo é
um ser especial. Ele é analfabeto, não entende bem as coisas como a gente entende”. Ou seja, é um ser inferior. O
que é isso? Isso é uma atitude paternalista, ruim, em relação ao agricultor. Quando nós fizemos a Revista Globo Rural, algumas pessoas de fora disseram: “Uma revista rural
364
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
pode ser feita em papel-jornal”. Eu disse: “Não, nós vamos
fazer a Revista Globo Rural em papel cuchê. O agricultor é
um cidadão igualzinho ao cidadão da cidade. Por que a
revista Veja, a revista Manchete, todas as revistas são em
papel cuchê e a do agricultor vai ser em papel-jornal? Por
quê? Agora, eu pergunto: por que é necessário comunicação rural? O agricultor tem que ter comunicação e jornalismo
para ele, sem adjetivos.
Eu mesmo não pretendo estar fazendo comunicação
rural, mas sim estar falando para o agricultor como um
homem completo. E, quanto mais eu falo ao agricultor,
mais eu atinjo o pessoal da cidade, porque estou fazendo
uma comunicação que é direcionada, mas não é preconceituosa. Quando faço uma matéria sobre a onça, que é uma
matéria de ecologia, o “Globo Repórter” utiliza, também, a
mesma matéria. Eu fiz pensando no agricultor, que precisa
preservar a onça brasileira.
365
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
366
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
33. Carlos Eduardo Lins da Silva: A
comunicação na guerra fria40
José Marques de Melo,
Dario Borelli,
Glória Kreinz,
Carlos Chaparro e
Fátima Feliciano
Uma abordagem jornalística que apreende as semelhanças e contrastes existentes, nos dias de hoje, entre os
meios de comunicação nos Estados Unidos e na União
Soviética. Assim, pode ser definida a entrevista de Carlos
Eduardo Lins da Silva à INTERCOM — Revista Brasileira de Comunicação, sobre o tema “A comunicação nos
EUA e URSS”.
Atualmente, Carlos Eduardo Lins da Silva divide seu
tempo de trabalho entre a Folha de S. Paulo, em que exerce a função de editor-adjunto de redação, e a docência de
Jornalismo para alunos de graduação e pós da ECA-USP.
Após se formar jornalista, na Faculdade ‘Casper Libero’, fez
mestrado em Comunicação, na Michigan State University,
40. Intercom - Revista Brasileira de Comunicação. São Paulo: Intercom, ano XII, nº61, jul/dez, 1989. p.05-12.
367
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
doutorado em Comunicação, na Universidade de São Paulo, e pós-doutorado em Jornalismo no Woodrow Wilson
Center. Publicou Muito Além do Jardim Botânico (São Paulo, Summus Editorial, 1985, 163 pp.) e Mil Dias – Os Bastidores de um Grande Jornal (São Paulo, Trajetória Cultural,
1988, 218 pp.), além de artigos e ensaios em revistas de
comunicação e cultura, da América Latina e dos Estados
Unidos.
José Marques de Melo – Sua recente viagem à União Soviética e aos Estados Unidos permitiu uma visão comparativa
das duas sociedades e dos respectivos sistemas de comunicação
de massa. Que perfis você traçaria dos dois países nesta conjuntura: a URSS de Gorbatchev e os EUA pós-Reagan, tendo
como variável determinante a questão dos mass media?
Carlos Eduardo Lins da Silva – Acho que existe um
processo de aproximação sem precedentes entre EUA e
URSS. Em termos de comércio, entendimento político e
filosofia de governo. É evidente que tal processo, na medida em que se aprofunda, envolve os meios de comunicação
de massa. No ano de 1987, pela primeira vez na História,
programas jornalísticos de debates foram transmitidos, ao
vivo nos dois países, com tradução simultânea. O responsável pela iniciativa foi o jornalista Ted Koppel, da rede
ABC de televisão, dos EUA. Ele transmitiu de Nova York
e de Moscou, simultaneamente, com a participação de parlamentares e jornalistas americanos e soviéticos, debates,
nos quais foram discutidas, com absoluta franqueza, temas
considerados tabus, para os soviéticos, como a questão dos
368
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
direitos humanos e das liberdades individuais. As audiências, nos dois países, acompanharam com enorme interesse. Em novembro de 1987, o líder Mikhail Gorbatchev
foi entrevistado, no Kremlin, pelo jornalista Tom Brokaw,
da rede NBC dos EUA. Brokaw interrogou Gorbatchev
no melhor estilo de agressividade e independência do jornalismo americano. A entrevista foi transmitida na íntegra, exceto por um pequeno corte numa questão relativa
ao papel de Raísa Gorbatchev, nas decisões de Mikhail,
na TV soviética. Essa aproximação deve se intensificar,
com as vantagens evidentes para as duas sociedades. Creio
que, com o correr dos anos, se esse processo for mantido,
a tendência é a dos meios de comunicação soviéticos se
“ocidentalizarem”, no sentido de se tornarem mais liberais, voltados para o interesse do consumidor. Acredito que
será, no campo dos media, o que vem ocorrendo no setor
da economia e da política. A administração Gorbatchev
está levando a URSS para o Ocidente, como o fizera Pedro, o Grande, há 300 anos. A única dúvida é se o processo
se mantém. Por enquanto, ainda há enormes diferenças,
em especial, no que se refere à retórica. Mas, as indicações
todas são de que o caminho aponta para a aproximação,
dentro dos moldes do modelo ocidental.
Dario Luis Borelli – Qual o meio de comunicação que maior
influência exerce sobre os americanos e russos, no tocante a
decisões políticas: o rádio, a imprensa ou a televisão?
Carlos Eduardo Lins da Silva – Sem dúvida, a TV é o
meio de comunicação mais importante tanto para americanos
369
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
quanto para soviéticos. A presença de aparelhos de TV em
quase todos os domicílios, nos dois países, e a facilidade de
consumo, fazem dela o meio mais influente. Nos EUA, as
campanhas políticas são centradas na exposição dos candidatos à TV, e a administração Reagan foi voltada para o
seu desempenho na tela. Na URSS, há uma tradição sem
similar, no Ocidente, de programas políticos na TV. Como
não há preocupação com a audiência, a rede estatal pode
dar todo o espaço que julgar conveniente para os programas políticos, e é isso o que vem ocorrendo com intensidade nos últimos anos. Embora os soviéticos também
tenham uma tradição histórica de grande consumo de jornais, a TV é, hoje, o mais decisivo meio de comunicação
em todos os sentidos também lá.
Glória Kreinz – Estatísticas ocidentais dão conta de que
90°/o dos domicílios soviéticos estão equipados com aparelhos de TV. Quais os principais agentes de sedução para este
público televisivo?
Carlos Eduardo Lins da Silva – Nos dias atuais, a denúncia de escândalos é o principal chamariz de audiência
para os soviéticos. O programa “Olhar”, que se especializou nesse assunto, é o principal sucesso da TV na URSS.
As pessoas têm verdadeiro prazer de saber das falcatruas
da nomenklatura, dos abusos dos privilegiados do governo.
Acho que Collor de Mello poderia se estabelecer, na URSS,
com grandes chances de êxito político, com seu discurso moralista. Além desse programa, os debates e o telejornal têm
grande audiência. Filmes soviéticos, espetáculos de dança e
370
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
música eruditas são os principais itens da programação de
entretenimento. A impressão que se tem da TV soviética é
de dureza, rigidez, contenção.
Manual Carlos Chaparro – Sob o ponto de vista tecnológico
(informatização, infraestrutura de comunicação, sistemas
de impressão etc.), como está a imprensa da União Soviética
em relação aos padrões norte-americanos e brasileiros?
Carlos Eduardo Lins da Silva – Os soviéticos estão, na
Idade da Pedra, em termos de tecnologia. Um dos grandes
setores em que o Brasil tem interesse de agir, no comércio
com a URSS, é o da Informática. Lá, eles estão muito atrás
do Brasil. As redações, ainda, estão no tempo das máquinas de escrever. Não há perspectiva de informatizá-las tão
cedo. Os jornais são feios, maçudos, carregados. Os sistemas de composição e impressão são os mesmos do início
do século. Não há termos de comparação nesse setor.
José Marques de Melo – À “perestroika” de Gorbatchev, foi
antecedida da “glasnost”, o que significa que o líder soviético procurou se valer da abertura, nos meios de comunicação,
para corresponder aos sentimentos de mudança da população e conquistar apoio para o seu projeto de transformações
econômicas e políticas. Como avançou a “glasnost” e quais os
indicadores perceptíveis para o visitante estrangeiro, no tocante ao pluralismo informativo e à liberdade de imprensa?
Carlos Eduardo Lins da Silva – Acho que, no início
do processo, Gorbatchev resolveu se utilizar dos meios de
371
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
comunicação da mesma forma que seus antecessores. De
1985 até o início de 1987, não houve qualquer alteração
significativa no sistema de controle do Estado e do Partido
sobre os meios. A censura se manteve rígida e os veículos
eram utilizadas como instrumentos de agitação política
em favor da linha hegemônica do PC, sob a liderança de
Gorbatchev. Os jornais, rádios e TVs exaltavam a figura
do líder e suas orientações nos setores da economia e da
política. Foi o fracasso da política econômica, nos dois primeiros anos de governo, que levou Gorbatchev a abrir os
meios de comunicação. Ele chegou à conclusão de que não
era mais possível iludir a população com propagandas. As
pessoas viam que a oferta de produtos diminuía a cada dia.
Num esperto golpe político, Gorbatchev resolveu incentivar a discussão política como forma de implementar a
“perestroika”. A “glasnost”, portanto, é decorrência do malogro inicial da “perestroika”. Os jornais passaram a gozar
de maior liberdade de ação. A censura foi relaxada, mas
não abolida. Os programas de TV passaram a gozar de espaço para a exposição de críticas diretas ao governo. Surgiram semanários de oposição ostensiva. Ainda há situações
escandalosas. Há poucos meses, toda uma edição de um
semanário foi queimada pela polícia por conter um conto de Solzhenitzin, autor proibido, na URSS, ainda hoje.
Pode-se falar o que quiser de Stalin, Brehznev, Andropov,
Chernenko e até de Gorbatchev, mas ninguém pode questionar o pensamento de Lenin e de Marx. O aparato da
censura está menos atuante, mas não foi desmobilizado. A
figura do censor, nas redações dos jornais, desapareceu, mas
pode voltar a qualquer instante. O visitante estrangeiro tem
grandes dificuldades de perceber qualquer coisa devido às
372
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
barreiras da língua. Há mais de 150 línguas diferentes e 7
alfabetos na URSS. O único jornal a que o estrangeiro tem
acesso é o Moscow News, que é dos mais independentes
e críticos. Mas, do relato que se ouve dos que vivem, na
URSS, não há precedentes, nos últimos 70 anos, de tanta
liberdade de informação e diversidade de pensamento nos
meios de comunicação.
Glória Kreinz – Se as revistas estrangeiras são de difícil obtenção pela classe média da URSS, as revistas de circulação
interna suprem as necessidades de consumo neste setor? São
bem feitas?
Carlos Eduardo Lins da Silva – A maior parte das
revistas soviéticas são em forma de jornal. São os semanários, em formato tablóide, sem cores, papel-jornal. Há
poucas revistas no estilo ocidental e parecem pobres e mal
acabadas. Até aqui, pelo menos, a impressão que se tem é
de que o público soviético não está muito preocupado com
a forma, pelo menos nos padrões ocidentais, e sim com o
conteúdo dos meios de comunicação. As revistas estrangeiras são muito disputadas entre os intelectuais soviéticos,
mas sua circulação é controlada.
Fátima Feliciano – Walery Pisarek, em texto publicado recentemente pela INTERCOM – REVISTA BRASILEIRA
DE COMUNICAÇÃO, referiu-se ao fato de que jornais
soviéticos, especialmente o Moscow News, tecem, com frequência, comentários críticos ao que ele chamou de “jornalismo soviético de velho estilo”, questionando o princípio da
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
dependência paternalista em relação ao Estado. O que você
constatou nesse sentido na URSS?
Carlos Eduardo Lins da Silva – Moscow News é um
dos dois jornais mais avançados da URSS atual. Avançado em termos de aproximação com o estilo e a filosofia
de jornalismo do Ocidente. O próprio fato de ser escrito
em Inglês, mostra como é grande a identificação dos seus
jornalistas com os EUA. Toda a crítica aos princípios tradicionais do papel do Jornalismo, na sociedade soviética,
parte das premissas do jornalismo liberal americano, O
Moscow Netos é a vanguarda desse processo. Ele defende
o papel de “cão-de-guarda” (watchdog role) do jornalismo, por exemplo. Há muitas queixas contra a manutenção do monopólio estatal sobre a distribuição do papel de
imprensa. Mesmo na era Gorbatchev, vários jornais têm
tido suas edições prejudicadas pela distribuição de quotas de papel de acordo com critérios políticos. É bom não
esquecer que o domínio de Gorbatchev sobre o aparelho
ideológico do Partido não é absoluto. Muitas decisões
antiliberais têm sido tomadas pelo Politburo, durante as
ausências de Gorbatchev de Moscou, que são frequentes.
Dos 13 votos do Politburo, Gorbatchev só tem, com segurança, quatro, inclusive o seu mesmo. Assim, quando ele e
Edward Shervandze estão fora, é frequente que o Politburo
decida questões contra a orientação de Gorbatchev.
Manuel Carlos Chaparro – Que tipo de perfil profissional
você traça do jornalista soviético? Como ele lida com a questão da liberdade de informar?
374
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Carlos Eduardo Lins da Silva – É difícil generalizar,
a partir do conhecimento precário que tive de 15 jornalistas soviéticos, com quem tive a oportunidade de conversar.
Mas, parece existir entre os perestroikistas um enorme desejo de tornar o jornalismo soviético mais independente do
Estado e de colocá-lo a serviço da sociedade. O jornalista
da velha guarda, é claro, está descontente com esse processo de mudança e acredita que o jornalismo soviético está
se afastando do modelo revolucionário fixado por Lenin.
O ultraperestroikista está insatisfeito por achar que as mudanças em direção do modelo ocidental são lentas demais.
José Marques de Melo – Enfocando, agora, a problemática
norte-americana que você conhece mais profundamente, já
que ali residiu em dois momentos diferentes da vida daquele
país (décadas de 70 e 80), quero fazer uma pergunta sobre
o fascínio que a atividade jornalística exerce sobre as novas
gerações. Eu estava realizando uma pesquisa, nos EUA, durante o episódio Watergate, e observei que as escolas de Jornalismo passaram a receber contingentes maiores de candidatos
para as vagas disponíveis, atraídos pelo protagonismo da dupla de repórteres do Washington Post que desencadeou a crise
da renúncia de Nixon. Essa onda passou? Ou os jovens ainda
continuam a procurar as carreiras da comunicação de massa
nas universidades com a mesma intensidade dos anos 70?
Carlos Eduardo Lins da Silva – Acho que a grande onda
de entusiasmo provocada pelo caso Watergate está superada.
Não disponho de números, mas eu também morei, nos EUA,
nos meados da década de 70, e percebi o mesmo fascínio.
375
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Voltei a viver nos EUA, em 1987 e 1988, e constatei que
esse fascínio já não existia mais. O jornalismo americano
está numa fase que considero excelente, em especial o de
TV. Muito do que hoje se tem se deve a Watergate. Mas,
houve um período, logo após o caso Watergate, em que o
jornalista médio americano resvalou para a irresponsabilidade. Hoje, há um meio-termo que considero saudável.
Surpreendeu-me muito verificar, agora, nos anos 80, como
a TV ganhou independência em relação há dez anos antes.
A cobertura do conflito do Oriente Médio, por exemplo,
tem sido de imparcialidade rigorosa, apesar do enorme poder de pressão que têm os anunciantes de origem judaica
nos EUA. A cobertura do acidente com o petroleiro Waldez da Exxon, no Canadá, também, apesar do conhecido
potencial que tem a Exxon como veiculadora de publicidade. O bate-boca entre Dan Rather e o vice-presidente
George Bush, em pleno “CBS Evening News”, na fase
final da campanha presidencial, é um exemplo raro de independência jornalística diante do Estado. Mas, a responsabilidade a que eu me referia antes, revelou-se, nos meses
seguintes, a esse incidente, quando Rather, apesar de se
ter envolvido numa disputa pessoal com Bush, foi capaz de
manter uma postura de imparcialidade, diante da vitória e dos
primeiros meses da administração do ex-vice-presidente.
Manuel Carlos Chaparro – Quais as diferenças de organização de uma redação entre os principais jornais dos Estados
Unidos e da União Soviética?
Carlos Eduardo Lins da Silva – A primeira grande
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
diferença é o número de pessoas. Na URSS, há um exagero evidente de pessoas na redação. Não há preocupação
com gastos, despesas de pessoal. Outra diferença é o ritmo, muito menos frenético nas redações soviéticas que nas
americanas. As decisões são muito mais centralizadas nos
jornais da URSS do que nos dos EUA.
Glória Kreinz – Você traçaria um rápido perfil do New York
Times e do Pravda, enfatizando o que mais lhe agrada e desagrada em cada um desses jornais?
Carlos Eduardo Lins da Silva – É muito difícil eu traçar um perfil do Pravda, pelo bom motivo de que eu nunca
o consegui ler por não entender russo. A aparência, para o
padrão ocidental, é péssima. Mas, não ousaria arriscar uma
definição sobre um jornal que não li.
Dario Luis Borelli – O USA Today consolidou a sua posição
entre os leitores norte-americanos e já está apresentando lucros? Às técnicas por ele empregadas chegaram a influenciar
os demais órgãos da imprensa do país, a ponto de alterar suas
diretrizes?
Carlos Eduardo Lins da Silva – O USA Today ainda
dá prejuízo. Teve um trimestre de lucro, em 1987, mas fechou no vermelho nos anos de 87 e 88. Sua influência é
evidente, inegável. Creio que as grandes linhas de seu projeto editorial passariam a vigir, nos principais diários americanos, se tivesse ele existido ou não. Mas, o fato é que ele
foi o primeiro veículo a colocá-las em prática. Depois dele,
377
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
todos, sem exceção, as vêm adotando. The New York Times,
The Washington Post, The Wall Street Journal já têm, em suas
edições, ou estão prontos para ter as vigas-mestras do projeto USA Today: ênfase em gráficos, quadros e tabelas, uso
de cor, pautas sobre TV, assuntos de interesse empático do
leitor, exploração das chamadas “matérias de interesse humano”, modulação gráfica. Claro que cada jornal se adapta
a essas características, dentro de seu ritmo, e respeitando
suas idiossincrasias e peculiaridades. Mas, não há dúvidas
de que todos caminham nessa direção.
Fátima Feliciano – Quais são as questões emergentes em termos de teoria da comunicação nos EUA? Qual a influência real
ainda exercida pelos teóricos funcionalistas/behavioristas?
Carlos Eduardo Lins da Silva – Os principais pesquisadores jovens, nos EUA, hoje, estão muito interessados
em história dentro de uma metodologia de análise crítica.
Todd Gitlin e Michael Schudson, dois expoentes dessa
tendência, são responsáveis pelos mais instigantes livros
sobre Jornalismo editados, nos EUA, na década. Acho que
a influência dos behavioristas ainda é enorme, em especial,
nos setores conservadores, mas entre os formadores de
tendências, ela está em decadência.
José Marques de Melo – A era pós-Nixon caracteriza, na
vida acadêmica norte-americana, uma redução do interesse pelos temas e questões da América Latina. Nos últimos
tempos, observa-se uma recuperação dessa problemática na
pesquisa universitária. Quais os indícios da retomada do
378
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
interesse dos estudiosos norte-americanos pela comunicação
latino-americana? É possível identificar os principais núcleos voltados para a pesquisa sobre comunicação, na América Latina, particularmente, no Brasil?
Carlos Eduardo Lins da Silva – Creio que ainda são os
tradicionais: Universidade do Texas, em Austin, Universidade da Flórida. Há um crescimento enorme desse setor,
na Universidade de Maryland, e na Universidade Estadual de Michigan. O Woodrow Wilson Center for Foreign
Scholars está em decadência no seu setor latino-americano, após o afastamento de Richard Morse da coordenação
do programa.
Fátima Feliciano – Em termos teóricos, os estudiosos dos
meios de comunicação, na URSS, referem-se criticamente
à visão socialista ortodoxa dos meios de comunicação – uma
visão instrumental, como uso econômico, social, cultural.
Você vê alguma possibilidade de mudança, a curto prazo,
nesse quadro?
Carlos Eduardo Lins da Silva – Essa questão está
parcialmente respondida numa questão colocada anteriormente. Acho, para completar, que todo o processo de “ocidentalização” do jornalismo soviético será lento, complicado e cheio de idas e vindas. Não vai ser um processo linear
e coerente. Vai esbarrar em múltiplas contradições, como
já vem acontecendo. Haverá momentos, em que se terá a
impressão de que o retrocesso foi absoluto. Mas, enquanto
Gorbatchev estiver no comando do governo, creio que ele
é irreversível.
379
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Manuel Carlos Chaparro – Que tipo de perfil profissional
você traçaria do jornalista soviético? Como ele lida com a
questão da liberdade de informar?
Carlos Eduardo Lins da Silva – Já foi respondida.
Dario Luis Borelli – Existe ainda, nos EUA, a imprensa
sensacionalista, nas mesmas linhas da antiga cadeia Hearst?
Ela tem grande número de leitores?
Carlos Eduardo Lins da Silva – Sim, sem dúvida. Os
jornais tablóides de Nova York e as revistas de supermercado mantêm a tradição do jornalismo sensacionalista, nos
EUA, com tanto vigor quanto sempre. São milhões de
exemplares vendidos e o público parece mais ávido do que
nunca pelas grandes histórias de crime e de fofocas sobre
as vidas das personalidades.
José Marques de Melo – Que outras observações você gostaria de
fazer sobre os sistemas de comunicação na URSS ou nos EUA?
Carlos Eduardo Lins da Silva – A grande observação
é a que registrei na primeira resposta: creio que os dois
sistemas se aproximam, como nunca no passado.
380
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Quem é Quem
Ada Dencker
Graduada em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1965), Mestre em Ciências
da Comunicação pela Universidade de São Paulo (1989)
e Doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (2000). Foi Professora Titular da Universidade Paulista e da Universidade Anhmbi-Morumbi.
Atualmente, é membro do Conselho Fiscal da Sociedade
Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação.
Alberto Dines
Jornalista que impulsionou a crítica à mídia, no Brasil, através de colunas publicadas no semanário O Pasquim,
jornal Folha de S. Paulo e revistas Imprensa. Teve papel
destacado na modernização da imprensa brasileira, editando o Jornal do Brasil (anos 60) e publicando a revista
Cadernos de Jornalismo. Participou como conferencista de
381
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
vários congressos da INTERCOM, intervindo, inicialmente, no debate sobre contrainformação (1981). Dirige,
atualmente, o portal Observatório da Imprensa.
Aluisio Pimenta
Professor mineiro, foi reitor da Universidade Federal de
Minas Gerais e Ministro da Cultura no governo Sarney.
Anamaria Fadul
Graduada em Filosofia, pela Universidade de São Paulo
(1967), Mestre em Filosofia pela Universidade de São Paulo
(1972), Doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1980) e Pós-doutora pela Università degli studi di Roma
Tre (1990). Professora Titular da Universidade de São Paulo,
também colaborou com a UMESP e a UNIMAR, depois de
sua aposentadoria no serviço público. Ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, integra, atualmente, o Conselho Curador da entidade.
Antonio Hohlfeldt
Atual presidente da INTERCOM, incorporou-se plenamente à entidade, na passagem do século, embora participe das nossas atividades desde os tempos de sua constituição. Paralelamente ao exercício do jornalismo e da
literatura, desenvolveu carreira na política, primeiro como
vereador de Porto Alegre e, depois, como vice-governador
do Estado do Rio Grande do Sul. Exerce, atualmente, a
382
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Presidência da Federação Lusófona de Ciências da Comunicação – LUSOCOM.
Bernardo Kucinski
Jornalista que militou na imprensa alternativa dos anos
70, depois de seu reconhecimento como profissional competente na imprensa especializada de âmbito nacional.
Optando pela carreira acadêmica, fez doutorado na USP,
onde alcançou o grau de professor titular. Notabilizou-se
pelas Cartas Ácidas sobre a atualidade brasileira, dirigidas
a Lula, que o convidou para assessorá-lo, quando se tornou
presidente da República. Professor aposentado do Departamento de Jornalismo da USP, publicou obra relevante
sobre mídia e política.
Boris Fausto
Historiador de renome nacional, foi professor da USP,
publicando livros marcantes sobre a História do Brasil,
que se tornaram referência no mundo acadêmico. Comparece, regularmente, aos espaços de opinião dos jornais de
prestígio nacional, comentado os acontecimentos da atualidade que possuem dimensão histórica.
Caio Prado Junior
Historiador paradigmático, consagrou-se como pioneiro no uso crítico do referencial marxista para explicar a realidade brasileira. Dirigiu a Revista Brasiliense, um marco
no debate político do período que precedeu o golpe militar
383
Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
de 1964. Fundou e comandou a Editora Brasiliense, valorizando os escritores nacionais e difundindo literatura
engajada na defesa da soberania nacional.
Carlos Alberto Medina
Sociólogo carioca que se dedicou ao estudo da cultura
brasileira, atuando como pesquisador dos temas latino-americanos, especialmente aqueles relacionados à religiosidade e à comunicação.
Carlos Eduardo Lins da Silva
Doutor e Livre-docente em Comunicação, pela USP,
exerceu o cargo de diretor de relações institucionais da
Patri Relações Governamentais & Políticas Públicas. Foi repórter, editor, secretário de Redação, diretor-adjunto de
Redação, correspondente em Washington e ombudsman
da Folha de S. Paulo. Autor de “Muito Além do Jardim
Botânico” e “O Adiantado da Hora”, entre outros livros,
foi também diretor-adjunto de Redação do jornal Valor
Econômico. Sócio-fundador e grande animador das nossas
atividades, pertence, atualmente, ao Conselho Consultivo
da INTERCOM.
Carlos Guilherme Mota
Professor do Departamento de História da USP, conquistou notoriedade acadêmica com a publicação do seu
polêmico ensaio “Ideologia da Cultura Brasileira”. Colabo384
Diálogos da transição democrática: 1984-1989
ra regularmente com a imprensa nacional, analisando fatos
do cotidiano político-cultural.
Carlos Rodrigues Brandão
Antropólogo reconhecido, intelectualmente, pela sua
contribuição valiosa para o estudo da cultura popular. Fez
carreira acadêmica na UNICAMP.
Clarêncio Neotti
Clérigo pertencente à ordem franciscana, exerceu papel relevante, no período de resistência ao autoritarismo,
dirigindo a Revista de Cultura Vozes e liderando associações católicas de comunicação, no país e no exterior. Viveu
muitos anos em Roma, tendo regressado ao Brasil para
dirigir o convento franciscano do Rio de Janeiro.
Dario Borelli
Bacharel em Jornalismo, pela PUC de Campinas
(1982-1985), e Mestre em Jornalismo e Editoração, pela
Escola de Comunicações e Artes da USP (1986-1990).
Exerceu a função de editor-adjunto da Revista Brasileira
de Comunicação (Intercom), de junho de 1986 a janeiro de
1990, free-lance e repórter do jornal Folha de São Paulo, de
março de 1992 a julho de 1995; atualmente, é editor-assistente da revista Estudos Avançados (Instituto de Estudos
Avançados da USP) e docente do curso de Comunicação
Social das Faculdades Integradas Rio Branco, desde julho
de 2001.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Eduardo Portela
Professor de Literatura Brasileira, fundou a Revista e a
Editora Tempo Brasileiro, exercendo os cargos de Ministro
da Educação do Brasil e Diretor Adjunto da UNESCO
em Paris.
Enzensberger, Hans Magnus
Intelectual alemão, célebre por sua reflexão frankfurtiana sobre a sociedade de massas, especialmente sobre o
papel político da mídia, visitou o Brasil em várias ocasiões,
dialogando sobre os meios de comunicação como “indústrias da consciência”.
Fátima Feliciano
Jornalista diplomada pela USP, na qual fez doutorado
sobre Luiz Beltrão, como teórico do Jornalismo. Trabalhou como pesquisadora no jornal O Estado de São Paulo,
atuando como docente em universidades paulistas e mineiras. Integrou a diretoria da INTERCOM, colaborando
em projetos editoriais e investigativos.
Francisco Weffort
Sociólogo diplomado pela USP, onde fez carreira acadêmica; exerceu o cargo de Ministro da Cultura no governo FHC.
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Geraldo Pastana
Líder sindical, foi presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém (PA).
Gilberto Freyre
Intelectual pernambucano, pioneiro das Ciências Sociais, no Brasil, participou intensamente da nossa vida cultual, no século XX, tendo fundado e dirigido a ‘Fundação
Joaquim Nabuco’ e conquistado prestígio internacional
pela obra vanguardista e pela heterodoxia das suas ideias.
Glória Kreinz
Graduada em Letras Neolatinas, pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1976), e em Jornalismo, pela
‘Faculdade Casper Líbero’ (1981), fez mestrado em Literatura Brasileira, pela Universidade de São Paulo (1980) e
doutorado em Ciências da Comunicação pela Universidade
de São Paulo (1990). Atua como pesquisadora voluntária do
‘Núcleo José Reis de Divulgação Científica’ da ECA/USP.
Helio Jaguaribe
Sociólogo e historiador, vem ocupando papel decisivo,
no debate político nacional, em diferentes conjunturas.
Pertence à corrente dos intelectuais desenvolvimentistas,
tendo sido um dos fundadores do ISEB, nos idos de 60.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Humberto Pereira
Jornalista que exerceu o cargo de editor-chefe do programa Globo Rural, sendo agraciado com o Prêmio José
Reis de Divulgação Científica.
Jaci Maraschin
Bacharel em Teologia, pelo Seminário Teológico da
Igreja Episcopal do Brasil (1953), e em Filosofia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1963), Licenciado em Filosofia, pelas Faculdades Anchieta (1971), Mestre
em Teologia pela The General Theological Seminary (1956) e
Docteur em Sciences Religieuses pela Universite de Strasbourg
I (1966) . Até o seu recente falecimento, foi professor titular da Universidade Metodista de São Paulo. Participou do
primeiro congresso nacional da INTERCOM (1978).
João Batista Figueiredo
Ex-Presidente da República, foi o último ocupante do
cargo, durante o ciclo autoritário, instaurado pelo golpe
militar de 1964. Exerceu o mandato presidencial de 1979 a
1985. Antes, foi secretário Geral do Conselho de Segurança Nacional, durante o governo de Jânio Quadros, chefe
da agência do SNI (Serviço Nacional de Informações), no
Rio de Janeiro (1964-1966), comandante da Força Pública
de São Paulo (1966-1967), do 1º Regimento de Cavalaria
de Guardas - Dragões da Independência (1967-1969) e
chefe do estado-maior do 3º Exército (1969).
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Joaquim da Rocha Maciel
Clérigo português da ordem carmelita, fez mestrado em
Comunicação na Universidade Metodista de São Paulo.
José Américo Ribeiro
Cineasta, professor titular aposentado do Departamento
de Fotografia e Cinema da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG). Doutor em
Artes (Cinema), pela Escola de Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Artes (Produção Cinematográfica) pelo Department of Photografy and
Cinema, The Ohio State University, Collumbus, Ohio, EUA.
José Marques de Melo
Professor fundador da ECA-USP, idealizou e presidiu a
INTERCOM, atuando, hoje, como Catedrático UNESCO
na Universidade Metodista de São Paulo.
Joseph Straubhaar
Pesquisador norte-americano, dedica-se ao estudo da
mídia, no Brasil, desde os seus tempos de doutorado. Vem
participando dos congressos nacionais da INTERCOM a
partir dos anos 80.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Leonardo Boff
Clérigo pertencente à ordem franciscana, foi o principal ideólogo da Teologia da Libertação. Punido pela hierarquia romana, abandou a vida eclesial, dedicando-se ao
movimento ecológico humanista.
Ligia Averbuck
Professora de Literatura Brasileira, foi presidente do
Instituto Estadual do Livro no Rio Grande do Sul. Faleceu, precocemente, nos anos 80, período em que participou de modo intensivo da vida da INTERCOM.
Luis Carlos Barreto
Cineasta e empresário cinematográfico, defensor do
apoio do Estado ao desenvolvimento do cinema nacional.
Luiz Beltrão
Pioneiro das ciências da Comunicação, no Brasil, atuou
como docente e pesquisador em universidades pernambucanas e brasilienses. Deixou um legado de mais de 20
livros sobre temas variados. Participou ativamente dos debates promovidos pela INTERCOM na década de 80.
Manuel Carlos Chaparro
Graduado em Jornalismo, pela Universidade de São
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Paulo (1982), Mestre em Ciências da Comunicação, pela
Universidade de São Paulo (1987), Doutor em Ciências
da Comunicação, pela Universidade de São Paulo (1993)
e Pós-doutor pela Universidade Nova de Lisboa (1996).
Atualmente, é Professor Aposentado da Universidade de
São Paulo, dedicando-se à produção do Blog O Xis da
Questão, tendo publicado vários livros sobre Jornalismo no
Brasil e Portugal. Exerceu a Presidência da INTERCOM,
integrando, atualmente, seu Conselho Curador.
Marco Morel
Graduado em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1985), Mestre em História Social, pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1990),
Mestre em História - Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne) (1992) e Doutor em História - Université Paris
1 (Panthéon-Sorbonne) (1995). Atualmente, é professor
adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
e pesquisador associado - Université Paris 1 (Panthéon-Sorbonne). Participou, ativamente, da vida da INTERCOM, durante sua formação acadêmica, dedicando-se
ao estudo da imprensa.
Maria Helena Khuner
Intelectual carioca que manteve coluna periódica, no
Jornal do Brasil, sobre questões culturais.
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
Marta Azevedo
Professora gaúcha pertencente ao quadro docente da
faculdade de comunicação da UFRGS. Doutorou-se pela
USP, tendo vários livros e opúsculos sobre Relações Públicas no Brasil.
Michel Thiollent
Pesquisador francês que se instalou, no Rio de Janeiro, onde vive, até hoje, atuando como interlocutor entre a
academia e os movimentos sociais. Desenvolveu uma metodologia de pesquisa que contempla o equilíbrio entre os
métodos quantitativos e qualitativos no estudo dos fenômenos eleitorais.
Narciso Lobo
Pesquisador amazonense, diplomou-se em Jornalismo
pela UFF, realizou estudos de mestrado e doutorado na
USP. Falecido, precocemente, sua obra focalizou o cinema
e a televisão na região amazônica.
Nelson Werneck Sodré
Historiador marxista que deixou um legado apreciável
sobre imprensa, literatura e outros temas comunicacionais.
Muito lido e debatido, no período pré-64, ficou esquecido pela intelectualidade brasileira. Ao aproximar-se o seu
centenário (2011), sua obra volta a ser valorizada.
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Osvando J. de Morais
Doutor em Ciências da Comunicação, pela Escola de
Comunicações e Artes – ECA, da Universidade de São
Paulo – USP. Mestre em Literatura Brasileira e graduado
em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo – USP.
É pesquisador e professor titular da Universidade de Sorocaba (graduação e pós-graduação – Lato e Stricto Sensu) e coordenador do Programa de Pós-Graduação, nível
Mestrado, em Comunicação e Cultura – UNISO. É líder
do grupo de Pesquisa de Teorias da Comunicação e da
Cultura, desenvolvendo pesquisas que discutem as relações entre ideologia e cultura de massa nos grandes meios
de comunicação.
Peter Schulman
Cineasta alemão, especialista em cinematografia latino-americana.
Regina Festa
Doutora em Comunicação pela USP, vem atuando
como consultora internacional em assuntos de comunicação popular. Participou intensamente das atividades da
INTERCOM nos idos de 80.
Rogerio Cadengue
Jornalista potiguar, iniciou estudos de pós-graduação,
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Vozes da distensão e transição: o debate político na sociedade
em São Paulo, ocasião em que participou das atividades da
INTERCOM. Retornando à universidade que o patrocinou, foi surpreendido pela morte prematura.
Samuel Wainer
Jornalista que renovou a imprensa diária brasileira, conquistando a classe média pela sintonia com as demandas
populares evidentes na agenda da sua cadeia nacional –
Última Hora. Repórter polêmico, marcou época, no país,
fazendo do Jornalismo uma forma de pressionar o Estado.
Sergio Capparelli
Graduado em Jornalismo, pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul (1970), e doutorado em Ciências da
Comunicação pela Université de Paris II (1980). Pós-doutor
pela Université de Grenoble (1987-1988) e pela Université
de Paris VI (2001-2002). Professor aposentado do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (Mestrado e Doutorado),
que ajudou a criar. De 2005 a 2007, trabalhou em Pequim,
China, numa agência de notícias. Nos últimos anos, vem
se dedicando exclusivamente à literatura infantil e juvenil.
Tomas Balduino
Bispo da Igreja Católica que se dedicou à “Pastoral da
Terra e da Moradia”, sem deixar de refletir sobre os rumos
da vida eclesial.
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Diálogos da transição democrática: 1984-1989
Vargas Llosa
Escritor peruano que vive, na Europa, e acaba de ser
agraciado com o Premio Nobel de Literatura. Crítico do
populismo latino-americano, já escreveu um livro sobre o
messianismo de Canudos – “A guerra do fim do mundo”.
Virgilio Noya Pinto
Professor fundador da ECA-USP, recentemente falecido, teve participação intelectual na vida da INTERCOM
nos anos 80-90. Dedicou-se à História da Comunicação,
pesquisa cujos resultados foram apresentados em congressos e seminários da nossa associação.
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