compreensão do conceito de luz por cegos congênitos: um estudo

Transcrição

compreensão do conceito de luz por cegos congênitos: um estudo
COMPREENSÃO DO CONCEITO DE LUZ POR CEGOS CONGÊNITOS: UM ESTUDO
DA PERCEPÇÃO DE PROFESSORES EM FORMAÇÃO EM CIÊNCIAS DA NATUREZA
Estéfano Vizconde Veraszto1, Eder Pires de Camargo2, José Tarcísio Franco de Camargo3
1. Universidade Federal de São Carlos, Campus Araras. Depto. de Ciências da Natureza,
Matemática e Educação. Pós-doutorando em Educação para Ciências, Depto de Física e Química,
Faculdade de Engenharia, UNESP Ilha Solteira, email: [email protected]
2.Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho", Fac. de Engenharia, Depto. de Física e
Química, UNESP, Ilha Solteira-SP, email: [email protected]
3.Centro Regional Universitário de Espírito Santo do Pinhal, UNIPINHAL, email: [email protected]
Eixo 06:A formação de professores na perspectiva da inclusão
Resumo:
Este artigo objetiva analisar a concepção de professores em formação da área de ciências da
natureza acerca da percepção de cegos congênitos sobre a natureza da luz. A partir de um público
alvo de 53 alunos de cursos de licenciatura em Física, Química e Biologia de duas universidades
públicas do interior do Estado de São Paulo, foi empreendida análise estatística textual para
respostas à seguinte questão: "Acerca de uma pessoa totalmente cega de nascimento, reflita e
responda com toda tranquilidade e sinceridade: ela pode compreender a natureza da luz?
Explique". As respostas foram analisadas com o auxílio do software Iramuteq. Através do Método
da Classificação Hierárquica Descendente (CHD) as respostas dos alunos foram analisadas em
função dos respectivos vocabulários e as palavras repartidas em função da frequência. A partir de
matrizes cruzando segmentos de textos e palavras em repetidos testes de Qui-quadrado, o
método CHD obteve uma classificação estável do corpus analisado. O software analisou 53 textos,
69 segmentos de texto e 2136 palavras. Além disso, gerou 7 clusters. Os termos que compõe os
clusters, tais como “conceito”, “saber”, “assunto” e“possível”, mostram que relações entre essas
palavras sinalizam que os indivíduos pesquisados assumem que o cego congênito pode entender
o conceito (natureza da luz). O termo capacidade, evidenciado nas declarações, pode ser
entendido como a qualidade de alguém que está apto a lidar com determinada situação. Essas
evidências permitem inferir que os resultados apresentam indícios de que o processo inclusivo é
fundamental e que um indivíduo cego congênito não poderá desenvolver toda sua capacidade
cognitiva se não tiver apoio de mediadores sociais.
Palavras Chave: Educação Especial, Conceitualização em Ciências, Cegueira Congênita.
Abstract:
This paper intends to analise the conception of training teachers in the area of natural sciences
about the perception of congenital blind people regarding the nature of light. Starting from a target
population composed by 53 students from undergraduation courses of Physics, Chemistry and
Biology from two public universities in São Paulo State, it was realized a textual statistical analysis
for the answers to the following question: "Concerning a person completely blind since his birth,
think and answer calm and sincerely: does he can understand the nature of light? Explain". The
answers were analyzed with the software Iramuteq. Through the Method of Descending
Hierarchical Classification (DHC), students’ answers were analyzed concerning their vocabularies
and the words divided according to the frequency. From matrices crossing text segments and
words in repeated Chi-square tests, the CHD method achieved a stable classification of the
analyzed corpus. The software analized 53 texts, 69 text segments and 2136 words. Also,
generated 7 clusters. The terms that comprise the clusters, such as “concept”, “knowledge”,
“theme” and “possible”, shown among these words indicate that the surveyed individuals assume
that the congenitally blind people can understand this concept (nature of light). The word
"capacity", evidenced in the declarations, can be understood as the quality of someone who is able
to handle with a specific situation. These evidences allow us to infer that the results present
indications that the inclusive process is essential and a congenitally blind person can not develop
all his cognitive ability without the support of social mediators.
Key words:Special education. Conceptualization of science, Congenital blindness.
2118
Introdução
Atualmente, o atendimento das diferentes necessidades educacionais de alunos com e
sem deficiências, transtorno global de desenvolvimento e altas habilidades ou super
dotação, consolida-se como um dos mais importantes desafios da atividade docente
(RODRIGUES, 2003; VILELA-RIBEIRO; BENITE, 2010). A busca por uma didática
inclusiva é um desafio que precisa superar os tradicionais modelos pedagógicos,
consolidando a implantação de uma educação para todos. É preciso que, tanto
professores atuantes no ensino regular como aqueles que estão em processo de
formação, superem concepções pré-estabelecidas de que a deficiência é um fator
limitante e impeditivo no processo de ensino-aprendizagem (CAMARGO, 2012a, 2012b;
CAMARGO et al, 2009).
Nesse sentido, atender alunos com diferentes necessidades educacionais especiais
aumenta o desafio docente. Por um lado, propostas educacionais inclusivas têm sido
desenvolvidas de forma eficiente, mas por outro o sistema educacional brasileiro ainda
carece de profundas alterações, tanto em relação à infraestrutura adequada, quanto aos
aspectos atitudinais de professores e gestores que precisam aprender a lidar com
ambientes inclusivos. Assim, esse artigo foi concebido visando contribuir para melhorias a
partir do desenvolvimento de um trabalho voltado para a percepção de professores em
formação nas áreas de ciências da natureza acerca do processo de conceitualização em
ciências em cegos congênitos.
Objetivos
Este artigo tem como objetivo analisar concepção de professores em formação da área
de ciências Naturais - física, química e biologia - acerca da percepção de cegos
congênitos sobre a natureza da luz. A partir de um público alvo de cinquenta e três alunos
de graduação em cursos de licenciatura em Física, Química e Biologia de duas
universidades públicas do interior do Estado de São Paulo, foi empreendida análise
estatística textual para a resposta à seguinte questão: Acerca de uma pessoa totalmente
cega de nascimento reflita e responda com toda tranquilidade e sinceridade: ela pode
compreender a natureza da luz? Explique.
Quando empregamos a expressão “natureza da luz” estamos nos referindo ao modo da
ciência interpretar o fenômeno em foco. Isto se deve ao fato de que a ciência construiu
conhecimentos sobre a luz por meio de modelos e não do acesso direto à sua estrutura.
Ao longo da história, dois principais modelos foram aceitos para a explicação do que é a
2119
luz, o que a interpreta como onda e o que a compreende como partícula. O atual modelo
de explicação para a luz fundamenta-se em sua dupla natureza corpuscular-ondulatória,
ou seja, enquanto se propaga, a luz se comporta como uma onda eletromagnética e
quando interage com a matéria, como partícula (fóton).
Metodologia
As respostas dos alunos foram analisadas como o auxílio do software IRAMUTEQ
(Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires).
Através da aplicação do Método da Classificação Hierárquica Descendente (CHD), as
respostas dos alunos foram classificadas em função dos seus respectivos vocabulários e
as palavras repartidas em função da frequência (CAMARGO e JUSTO, 2013a, 2013b). A
partir de matrizes cruzando segmentos de textos e palavras em repetidos testes de Quiquadrado (X2), o método CHD possibilitou obter uma classificação estável do corpus
analisado (CAMARGO e JUSTO, 2013a).
Resultados
O software analisou 53 textos, 69 segmentos de texto, 2136 ocorrências (total de
palavras). Além disso, gerou 7 clusters. Os critérios para inclusão dos elementos nos
clusters são a frequência maior que a média de ocorrências no corpus e também a
associação com a classe determinada pelo valor de Χ2 igual ou superior a 3,841 tendo
em vista que o cálculo para este teste é definido segundo grau de liberdade 1 e
significância 95% 9 (COSTA, 205; LEVIN e FOX, 2004; SILVA, BOUSFIELD e
CARDOSO, 2013).
Inicialmente, cada cluster foi denominado a partir da interpretação permitida pelas
palavras que os compõem. Para cada cluster analisado, foram fornecidas as informações
estatísticas obtidas pelo IRAMUTEQ:
a) eff. st: número de segmentos de texto que contêm a palavra na classe;
b) f: (frequência) número de segmentos de texto no corpus que contém a palavra
citada ao menos uma vez;
c) Χ2: qui-quadrado de associação da palavra com a classe;
d) p: identifica o nível de significância da associação da palavra com a classe;
2120
Figura 1. Classificação Hierárquica Descendente
Cluster 1: Cognição e Percepção (representa 16,28% do corpus)
Este cluster apresenta palavras relacionadas com aspectos cognitivos e que envolvem
percepção, como: entender, pensar, compreender. Aparecem também palavras como
indivíduo e partícula. A partir destas palavras é possível inferir que o cluster apresenta
relações entre as opiniões dos indivíduos pesquisados que afirmam que a compreensão
e o entendimento da natureza da luz é possível para o cego congênito.
A denominação dessa categoria decorre dos termos "cognição", que está associado à
faculdade de se conhecer algo, e "percepção", que pode ser entendido como a
propriedade de adquirir conhecimentos através dos sentidos da inteligência. Moreira
(2000), ao trazer um dos princípios facilitadores do que ele denomina “aprendizagem
significativa crítica”, nos traz esclarecimentos acerca dessa temática.
O aprendiz é um perceptor/representador, isto é, ele percebe o mundo e
o representa. Quer dizer, tudo que o aluno recebe ele percebe. Portanto,
a discussão sobre a recepção é inócua, o importante é a percepção. E o
que se percebe é, em grande parte, função de percepções prévias [...] se
fosse possível isolar um único fator como o que mais influencia a
percepção, dir-se-ia que seria a percepção prévia. Em outras palavras, o
perceptor decide como representar em sua mente um objeto ou um
estado de coisas do mundo e toma essa decisão baseado naquilo que
sua experiência passada, isto é, percepções anteriores) sugere que irá
"funcionar" para ele [...] A ideia de percepção/representação nos traz a
noção de que o que "vemos" é produto do que acreditamos "estar lá" no
mundo. Vemos as coisas não como elas são, mas como nós somos.
Sempre que dissermos que uma coisa "é", ela não é”. (MOREIRA, 2000,
p.6).
2121
Cluster 2: Percepção visual (compensação) (representa 11,63% do corpus)
A denominação deste cluster decorre da palavra que o compõe: "enxergar".
A denominação também foi relacionada com o termo compensação por ter sido
recorrente na resposta dos alunos a ideia de que a falta da visão poderia ser
compensada por outros sentidos. É importante destacar que a interpretação da
compensação para indivíduos cegos compreenderem a natureza da luz é explicada pela
teoria biológica sobre a cegueira (VIGOTSKI, 1997). Tal modelo fundamenta-se em dados
empíricos sobre a agudeza tátil e super audição presentes em cegos congênitos.
Todavia, como indica Vigotski (1997), tais interpretações são equivocadas, quando
tratadas na perspectiva de que nos cegos ocorreria a substituição dos sentidos visuais
pelos sentidos do tato e da audição.
Cluster 3: Papel da Sociedade (representa 13,95% do corpus)
Este cluster apresenta palavras como saber e explicar. Tais termos apontam que a
compreensão de uma pessoa pode estar relacionada com a explicação de um professor.
Os resultados evidenciam que os respondentes consideram que a atividade científica
pode ser possível se o meio social cumprir seu papel na inclusão de indivíduos com
deficiências.
Cluster 4: Aprendizagem (representa 16,28% do corpus)
Esse cluster apresenta em seu conjunto o verbo "aprender" com alto índice de aderência
(X2 = 1,99). Outros termos que compõem o cluster são as palavras "limitação" e "visual".
Essas palavras podem estar relacionadas com a compreensão por parte dos alunos
pesquisados de que o cego tem limitação visual, mas aprende acerca da natureza da luz.
Cluster 5: Empowerment (representa 16,28% do corpus)
Empowerment significa o processo pelo qual pessoas usam seu poder individual inerente
à sua condição para tomar decisões, assumindo o controle de sua vida (SASSAKI, 2004).
A escolha do nome do cluster também está relacionada com outros termos nele
apresentados, como "acreditar", "conseguir", "crer". Esses verbos, associados à palavra
"cego" que também pertence ao cluster, dão indícios de que os alunos pesquisados
julgam que indivíduos cegos poderão vir a entender a natureza da luz desde que
acreditem que tal feito é possível.
2122
Cluster 6: Recursos de apoio (representa 13,95% do corpus)
Esse cluster, composto apenas pela palavra "experimento", foi denominado como
"Recursos de apoio" em função de que o termo experimento pode ser interpretado como
um recurso alternativo de apoio ao ensino de física para alunos com deficiência visual.
A denominação do cluster baseia-se em pesquisas anteriores de Camargo e Masini
(2014), que sugerem que os respondentes podem ter percebido a posição igualitária de
cegos e videntes em relação à natureza da luz. Considera-se que ambos podem observar
as representações da natureza da luz, seja através da visualização de modelos por
videntes, ou através da percepção tátil e/ou auditiva por parte de cegos congênitos. A
posição igualitária de cegos e videntes frente ao entendimento da natureza da luz é
possível pois, considerando tal natureza conforme justificativa apresentada no início do
trabalho (modelos de onda e partícula) requer-se o acesso a recursos geométricos,
fornecidos pelo tato e pela visão. Este tipo de conceito (geométrico) contem significados
da categoria semântico-sensorial “vinculados”, que não dependem esclusivamente da
percepção visual para acesso e representação (CAMARGO; MASINI, 2014).
Cluster 7: Capacidade (representa 11,63% do corpus)
Os termos que compõe o cluster, como conceito, saber, assunto, possível, mostram que
relações entre essas palavras sinalizam que os indivíduos pesquisados assumem que o
cego congênito pode entender o conceito (natureza da luz).
Nessa categoria, o termo capacidade pode ser entendido como a qualidade de alguém
que está apto a lidar com determinada situação.
Considerações finais
Sumariamente, relações entre os clusters são apresentadas.
O primeiro subcorpus relaciona aspectos individuais de cognição e percepção (cluster 1)
e percepção visual (cluster 2) com o papel da sociedade (cluster 3). O segundo
subcorpus novamente relaciona características individuais como capacidade (cluster 7),
aprendizagem (cluster 4) e empowerment (cluster 5) com características extrínsecas ao
indivíduo cego congênito, como recursos de apoio (cluster 6).
Essas evidências permitem inferir que ambos os subcorpus apresentam indícios de que o
processo inclusivo é fundamental. Nesse sentido, é possível apontar que um indivíduo
2123
cego congênito, não poderá desenvolver toda sua capacidade cognitiva se não tiver
apoio de mediadores sociais.
Os dados aqui analisados sugerem que, em relação à compreensão do conceito de luz
por cegos congênitos, dois grupos temáticos sejam investigados: (a) intrínseco ao aluno
cego: Cognição, Percepção, Compensação, Aprendizagem, Empowerment e capacidade;
(b) extrínseco ao aluno cego: Papel da Sociedade e Recursos de apoio.
É importante destacar que, considerando as dificuldades que os desafios de ensinar
física para cegos congênitos impõem, os esforços investigativos apresentados sinalizam
que pesquisas na área devem cada vez mais ser empreendidas com o intuito de diminuir
as barreiras entre o discurso teórico e as efetivas práticas escolares.
Referências
CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. Tutorial para uso do software de análise textual
IRAMUTEQ. Florianopolis-SC: Universidade Federal de Santa Catarina, 2013a. 18p.
CAMARGO, B. V.; JUSTO, A. M. IRAMUTEQ: Um software gratuito para análise de dados
textuais. Temas em Psicologia, 21(2), 2013b, p.513-518.
CAMARGO, E. P. Saberes docentes para a inclusão do aluno com deficiência visual
em aulas de Física. 1. ed. São Paulo: Unesp, 2012a. v. 1. 260p
CAMARGO, E. P. O Perceber e o Não Perceber: algumas reflexões acerca do que
conhecemos por meio de diferentes formas de percepção. In: Masini, Elcie F. Salzano
(org.). Perceber: raiz do conhecimento. São Paulo: Vetor, 2012b.
CAMARGO, E. P.; MASINI, E. A. F. S. Conceitos de Física em cegos congênitos. In: V
Encontro Nacional de Aprendizagem Significativa: V ENAS 2014, Belém-PA, 2014, v.4
COSTA, S. F. Introdução Ilustrada à Estatística. 4a. ed. São Paulo: Harbra, 2005.
LEVIN, J.; FOX, J. A. Estatística para Ciências Humanas. São Paulo: Prentice Hall,
2004.
MOREIRA, M. A. Aprendizagem significativa crítica. Atas do III Encontro Internacional
sobre Aprendizagem Significativa, Lisboa: Penich, 2000.
RODRIGUES, A.J. Contextos de Aprendizagem e Integração/Inclusão de Alunos com
Necessidades Educativas Especiais. In: Ribeiro, M.L.S. e Baumel, R.C.R. (Org).
Educação Especial - Do querer ao fazer. São Paulo: Avercamp, 2003, p. 13-26.
2124
SASSAKI, R. K. Vida independente: na era da sociedade inclusiva. São Paulo: RNR.
2004.
SILVA, J. P., BOUSFIELD, A. B. S., CARDOSO, L. H. A hipertensão arterial na mídia
impressa: análise da revista Veja. Psicologia e Saber Social, 2(2), p.191-203, 2013.
VERASZTO, E. V.; CAMARGO, E. P. Cegueira congênita e trabalho científico: um estudo
sobre a percepção de professores em formação em Ciências da Natureza. In: XXI
Simpósio Nacional de Ensino de Física, SNEF 2015, Uberlândia-MG. Anais, 2015. p.18.
VIGOTSKI, Lev S. Obras Escogidas: V Fundamentos de Defectología . Editora
Aprendizaje Visor. 2ª ed. Madrid, 1997, p.391.
VILELA-RIBEIRO, E.B.; BENITE, A.M.C. A educação inclusiva na percepção dos
professores de química. Ciência & Educação, v.16, n.3, p. 585-594, 2010.
2125

Documentos relacionados