Edição nº16
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Edição nº16
Asas da Palavra Revista do Curso de Letras Universidade da Amazônia Centro de Ciências Humanas e Educação Asas da Palavra ISSN 1415-7950 v.7 n.16 1 Asas da Palavra Copyright 2003, by UNAMA REVISTA DA GRADUAÇÃO EM LETRAS União de Ensino Superior do Pará Entidade Mantenedora da Universidade da Amazônia Conselho Diretor Presidente: Paulo Roberto Carvalho Batista Membros: Antonio Carvalho Vaz Pereira Édson Raymundo Pinheiro de Sousa Franco Etiane Arruda Marlene Coeli Vianna Ana Paula Mufarrej Asas da Palavra Revista da Graduação em Letras ISSN 1415-7950 Universidade da Amazônia A revista Asas da Palavra é uma publicação semestral da GRADUAÇÃO em LETRAS da UNAMA que se define como um espaço multidisciplinar para a divulgação de trabalhos científicos e críticos no âmbito de estudos da linguagem, com ênfase à cultura amazônica. Pretende, ainda, ser um fórum de discussão de questões relativas ao ensino de língua, literatura e tradução; e trazer, a cada número, uma seção especial , dedicada a um nome de expressão da Amazônia, qualquer que seja sua forma de linguagem para expressar a arte, com o intuito de incentivar a participação de alunos e professores na pesquisa e produção crítica. É um espaço aberto, também, para a divulgação de trabalhos desenvolvidos em cursos de graduação e pós-graduação, assim como textos de criação e tradução literária, a fim de dinamizar a circulação de informação relevante ao fazer acadêmico e, acima de tudo, colocar em pauta a expressão cultural do homem e da mulher da Amazônia. 2 Asas da Palavra Universidade da Amazônia Centro de Ciências Humanas e Educação Asas da Palavra Revista da Graduação em Letras Semestral v.7 • n.16 • Outubro 2003 - ISSN 1415-7950 Asas da Palavra Asas da Palavra Belém v.7 N.16 ISSN-1415-7950 p1-224 out.2003 3 EDIÇÃO COMEMORATIVA DE ANIVERSÁRIO Esta publicação foi elaborada por professores da Graduação em Letras da Universidade da Amazônia, UNAMA, com o patrocínio do Banco Itaú. Esta edição, que tem como tema o crítico e poeta MÁRIO FAUSTINO, comemora o 10º aniversário da UNAMA como universidade, e os 10 anos de lançamento do número 0 desta revista, em outubro de 1993. MÁRIO FAUSTINO, no Pomana College, em 1951, na Califórnia, onde estudou Língua e Literatura inglesas. Foto: acervo Benedito Nunes 4 Asas da Palavra Asas da Palavra 10 anos Asas da Palavra 5 Revista da Graduação em Letras v.7 n.16 outubro/2003 UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA Reitor Édson Raymundo Pinheiro de Sousa Franco Vice-Reitor Antônio de Carvalho Vaz Pereira Pró-Reitor de Ensino Mário Francisco Guzzo Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão Núbia Maria Vasconcelos Maciel Diretora do Centro de Ciências Humanas e Educação Ana Célia Bahia Silva Coordenadora do Curso de Letras Maria Célia Jacob Coordenadora da Interiorização em Letras Maria das Graças Alves Salim Asas da Palavra n. 16 Organização e Coordenação Editorial Célia Jacob e Rosa Assis Projeto Gráfico Célia Jacob Editoração Eletrônica Elailson Santos Captura de imagens Sue Anne Collares Impressão íCone Gráfica e Editora Distribuição /Assinaturas/ Intercâmbio Assessoria de Comunicação da Universidade da Amazônia Av. Alcindo Cacela, 287 • 66.060-902 • Belém-Pará Fone/Fax(91) 210-3058 http://www.unama.br [email protected] Asas da Palavra - revista da graduação em Letras Belém: Unama,v.7n.16,2003 Semestral ISSN 1415-7950 1.Literatura-Estudos críticos, artigos, ensaios, resenhas, tradução, poesia . Periódicos 2.Lingüística.I.UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA Curso de Letras 800 CDD 400 6 Asas da Palavra APRESENTAÇÃO V inte e um de outubro de 1993, um dia muito especial na história da educação da cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará : nascia a primeira universidade particular da região Norte — a Universidade da Amazônia. Dias depois, a UNAMA realizava, com a presença das mais altas personalidades do Estado, do mundo acadêmico local e de outras regiões brasileiras, Sessão Solene de instalação da sua nova condição como instituição de ensino. Na Galeria de Arte — UNAMARTE — inaugurada naqueles dias de festa e, integralmente, lotada, um grupo de professores do Curso de Letras da UNAMA, convidados para a festa, timidamente, quebrou o protocolo e iniciou a distribuição de uma pequena publicação. A capa, ilustrada com uma colagem feita pelo professor Paulo Nunes,trazia já o título dos poucos exemplares, editados em formato simples, quase artesanal, mas com produção acadêmica e recursos de alunos e professores do Curso. O tema: a cronista paraense Eneida de Moraes. Era o número 0, chamado de experimental, da Revista ASAS DA PALAVRA que aparecia de surpresa, como um desafio, uma saudável provocação. Sem recursos financeiros, sem crédito, ainda sem autorização para usar o nome da instituição, mas com uma grande vontade de entrar para a sua história. Na ultima folha, uma referência àquela data festiva, como que para registrar o início de um caminho. É impossível condensar, pelo pouco espaço reservado à apresentação, a trajetória de ASAS DA PALAVRA até este número, comemorativo de aniversário — 10 anos — junto com a Universidade que lhe permitiu a identificação institucional, ao acreditar na sua proposta editorial e no seu papel social e acadêmico. Mas é importante registrar o nome de pessoas que lutaram para garantir-lhe vida além do número zero: professora Dirce Koury, então Diretora do Centro de Ciências Humanas e Educação, que nos incentivava, não deixando esfriar nosso entusiasmo diante das dificuldades, e professor Paulo Batista, Presiden- Asas da Palavra 7 te do Conselho Diretor da UNAMA. A este creditamos o empenho para garantir patrocínio — e que se mantém até hoje — permitindo que a Revista desse continuidade a sua existência como periódico, que crescesse. Lembramo-nos bem quando ele foi, muito alegre, um pouco mais de um ano depois, até a quadra de esportes da UNAMA, onde fazíamos a confraternização de Natal, para nos dar a boa nova, o presente maior: tínhamos o patrocínio garantido do BANCO ITAÚ. ASAS DA PALAVRA número 1 podia sair. Foi o que aconteceu, tendo como tema o Maestro Waldemar Henrique. E vieram: Ruy Barata, Wilson Fonseca, 100 anos de Cinema no Pará, Dalcídio Jurandir, Bruno de Menezes, Eneida, Pastorinhas de Belém, Ferreira de Castro, Antonio Tavernard, Heranças da cultura lusitana na Amazônia, Max Martins, Belém da Memória, Haroldo Maranhão, Carlos Drummond de Andrade, Inglês de Sousa e, neste número 16, Mário Faustino. Esta é, portanto, uma edição comemorativa. E traz, como tema, um dos nomes mais representativos da poesia e da crítica brasileira que, embora nascido em Terezina-Piauí, aos 10 anos mudou-se para Belém, aqui estudou, cresceu e fez grandes amigos, antes de partir para muitas e longas viagens — até a definitiva — sempre buscando o aperfeiçoamento da mais bela expressão humana. Deixo que os ilustres colaboradores deste número falem melhor sobre Mário Faustino. O conjunto de textos coletados sobre ele e sua obra é grande. Alguns, inéditos; outros não, porém importantes de serem reeditados aqui, sobretudo aqueles publicados em livros esgotados, em revistas que já não circulam, ou de difícil acesso. Fotos, documentos pessoais formam um mosaico da curta, porém intensa, vida do homem, do poeta, das suas horas. A recuperação deste farto e valioso material, convocando traços da memória individual ou coletiva, foi um trabalho incansável da professora Doutora Rosa Assis, com o apoio do grande amigo de Mário Faustino, o filósofo Benedito Nunes, a quem agradecemos a confiança depositada nesta Revista. A todos os outros autores, não nomeados por falta de espaço, fica registrado o agradecimento da UNAMA pela presença constante, correta e amiga nestes 10 anos de ASAS da PALAVRA, e, dela própria, como Universidade. Célia Jacob Coordenadora do Curso de Letras da UNAMA 8 Asas da Palavra SUMÁRIO • O fragmento da juventude ........................................................................................................... 13 Benedito Nunes • Quem foi e o que fez Mário Faustino ( um poeta e seu mundo) .............................................................................................................. 25 Albeniza de Carvalho e Chaves • Mário Faustino e a paciência órfica (depoimento de um companheiro de geração) ......................................................................... 51 Haroldo de Campos • Mário Faustino- poeta sacrílego .................................................................................................. 71 Pedro P. de Assis • Para que serve um poema? ......................................................................................................... 111 Maria Lúcia Medeiros • Mário Faustino, poeta do meu Norte ....................................................................................... 117 Lília Silvestre Chaves • Mário Faustino: fazer poético: avanços e vacilações .............................................................. 131 Carlos Evandro Eulálio • Mário Faustino, um militante da poesia ................................................................................... 141 Elias Pinto • Lembrança ..................................................................................................................................... 157 Ivo Barroso • Mário Faustino: nosso cigano .................................................................................................... 163 Lúcio Flávio Pinto • Versos , imagens, recortes & colagens ...................................................................................... 167 Rosa Assis • À procura de sentidos em Mário Faustino: Sintaxe e Leitura .............................................. 183 Sérgio Sapucahy • Mário Faustino e a reconstrução olímpica do espírito pela palavra .................................... 191 Júlia Maués • O tempo da criação em O Homem e sua hora ............................................................................ 199 Benilton Cruz • Estratégias da demolição: a linguagem crítica de Mário Faustino ....................................... 209 Relivaldo de Oliveira • Breves notícias de um poema: suas horas e suas versões ...................................................... 221 João Carlos Pereira Asas da Palavra 9 “Quem fez esta manhã, quem penetrou À noite os labirintos do tesouro, Quem fez esta manhã predestinou Seus temas a paráfrase do touro, A traduções do cisne: fê-la para Abandonar-se a mitos essenciais Desflorada por ímpetos de rara Metamorfose alada, onde jamais Se exaure o deus que muda, que transvive Quem fez esta manhã fê-la por ser Um raio a fecundá-la, não por lívida Ausência sem pecado e fê-la ter Em si princípio e fim: ter entre aurora E meio dia um homem e sua hora.” 10 Asas da Palavra MÁRIO FAUSTINO Asas da Palavra 11 12 Asas da Palavra O FRAGMENTO DA JUVENTUDE Benedito Nunes Filósofo. Professor Titular Emérito da UFPA Asas da Palavra 13 J Muitas obras dos antigos acabaram como fragamentos. Muitas obras dos modernos já nascem assim. F. Schlegel Frag. A 24. ••• uventude a jusante a maré entrega tudo maravilha do vento soprando sobre a maravilha de estar vivo e capaz de sentir maravilhas no vento amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rastro maravilha de estar ensimesmado (a maravilha: vivo!), tragado pelo vento, assinalado nos pélagos do vento, recomposto nos pósteros do tempo, assassinado na pletora do vento maravilha de ser capaz, maravilha de estar a postos, maravilha de em paz sentir maravilhas no vento e apascentar o vento, encapelado vento mar à vista da ilha, eternidade à vista do tempo o tempo: sempre o sopro etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento, do monstruoso vento e a terna idade amarga juventude êxtase ao vivo, ergue-se o vento lívido, vento salgado, paz de sentinela maravilhada à vista de si mesma nas algas do tumultuoso vento, de seus restos na mágua do tumulário tempo, de seu pranto nas águas do mar justo maravilha de estar assinalado pelo vento repleto e pelo mar completo juventude a montante a maré apaga tudo .... 14 Asas da Palavra Esse “fragmento”, daqui por diante denominado Juventude, pertence à série de poemas curtos sem título, compostos entre 1959 e 1962, que Mário Faustino excepcionalizou como o início de um projeto de criação, preenchendo nova fase de sua poesia, para ele definitiva. Tratava-se de elaborar, enquanto vivesse, um único e longo poema tão só pela correlação mútua entre poemas curtos desse tipo, em número indefinido “pequenos poemas líricos”, dizia, heterogêneos na forma e na temática, mas escritos em verso e com a autonomia das composições tradicionais. Em vez de partes que se adicionassem para formar-lhe o todo, essas composições breves eram “fragmentos”, enquanto porções antecipatórias, exemplificativas, do único poema extenso, cuja idéia, contudo, também ideal norteando a experiência poética de que provinham, preexistia aos seus componentes, enquanto diretiva a eles comum. Únicos produtos finais, os “fragmentos”, identificados pelos pontos de suspensão (...) antes do início e depois do final, constituíam, ao mesmo tempo, momentos de paradoxal “obra em progresso”, sempre incompleta quanto mais avançassem, e da experiência do poeta que intermediavam. O existencial e o poético se complementariam dentro de tal projeto, que pretendeu unir vida e poesia. Por isso, atribuía Mário Faustino à escrita dos “fragmentos” num primeiro jato, versos ocasionais ou de circunstância, depois estruturados, reconstruídos,1 a função de reordenar a sua existência, feita “unidade múltipla”, à semelhança do almejado poema extenso a que tendia. Ao neutralizar a intenção psicológica desse projeto biográfico-artístico, em proveito da intencionalidade da Juventude, aqui analisado, numa leitura de compreensão, do ângulo de uma fenomenologia do poema, à busca de seu sentido, essa composição perde a excepcionalidade conferida à série, sem perder o caráter de “fragmento”, que deve à sua forma peculiar de “pequeno poema lírico”, e religa-se, juntamente com as suas congêneres, ao conjunto da obra realizada pelo poeta, de que todas são efetivamente partes, ao lado das poesias de O Homem e sua hora (1955) e dos textos experimentais (1956-1959) que as antecederam2 . No correr da análise, ficam patentes, a despeito das diferenças que as separam na forma e na concepção, os vínculos do “fragmento” escolhido com as primeiras e com os últimos, a começar pelo seu tema, a juventude, ai interligado às grandes oposições temáticas da lírica de Mário Faustino, amor e morte, tempo e eternidade. Mas como desencobrir o sentido desse poema envultante, de avassaladora sonoridade, que se propaga com o repetitivo bordão das duas palavras insistentes, “maravilha” e “vento”, aquela em posição anafórica, treze vezes reiterada, e a última quinze, no começo e no fim dos versos? O imediato efeito encantatório da iteração, envolvendo o leitor, parece dissolver as significações em “nadas aéreos”. Talvez estejamos diante de uma poesia aparentada àquela espécie, mencionada por Jorge Luis Borges, que “Não quer dizer nada e à maneira da música diz tudo”3 . Asas da Palavra 1 2 3 4 MF adotava terminologia cinematográfica inspirada por Eisenstein: os versos circunstanciais seriam takes e montagem o procedimento artístico posterior. Os concretistas difundiram, à época, o ensaio do cineasta russo relacionando montagem e ideograma (O princípio cinematográfico e o ideograma). A terminologia era, de certo modo, polêmica, na medida em que M.F., que tinha conservado o verso mesmo nos seus poemas experimentais, marcava a distância que o separou dos concretistas, utilizando teóricos e poetas que eles prezavam, sem esquecer, ainda Mallarmé e Pound, de cuja escrita poética se aproximaria a dos “fragmentos”, no entanto vinculada, quanto ao ideal do poema longo, à Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima. O Homem e sua hora, Livros de Portugal, Rio, 1955. Republicado com os esparsos e os inéditos, incluindo os “fragmentos”, in Poesia de Mário Faustino, Editora Civilização Brasileira, S/A, 1966 e Poesia Completa / Poesia traduzida , Editora Max Limonad, 1985. As citações seguem esta última edição. Jorge Luis Borges, La Cifra, Prólogo, pp. 11 e 12, Alianza Editorial, Madrid, 1981. Na conceituação de Roman Ingarden, o ritmo é imanente quando prescrito “por determinado conjunto fonemático-significativo”. A obra de arte literária, p. 67. Fundação Caloute Gulbenkian, Lisboa, 1965 15 5 A proporção crescente de poemas fragmentos a partir do começo do século XIX pode atribuir-se a “uma ênfase crescente do associacionismo lírico e uma ênfase decrescente do enredo dramático racionalmente desenvolvido...” ( “an increased emphasis upon lyrical associationism, and a decreased emphasis upon rationally extricated plot ...) – Keneth Burke, The philosophy of literary form, University of California Press Berkeley, Los Angeles, London, 1973. Aqui de fato o encantatório é musical; a iteração integra um ritmo cantabile , considerável e vigoroso estrato fônico das enunciações dos versos. Elas são rítmicas, de modo que não há significados que não sejam cantantes, na acepção melódica do termo. Inversamente, o rítmico é significativo, tanto do ponto de vista semântico quanto sintáxico. Nessas condições, pode aplicar-se a Juventude, sob a dependência da interconexão entre o fonemático e a significação das palavras que o caracteriza, a noção de ritmo em toda a sua latitude de fenômeno imanente4 . A repetição das mesmas palavras, antes assinalada, cuja função veremos adiante, é, sem dúvida, a figura mais exterior dos 36 versos paratáticos da composição de metros variados, regulares, como decassílabos, em geral heróicos, além dos de menor medida, e irregulares, com 13, 15 e 18 sílabas cujo ritmo ondulatório excede o simples compasso métrico pelo andamento, graças à diferença expressiva das variações de acento, combinadas com a recorrente incidência, verso a verso, das mesmas vogais (a-e-i-o). Mais lento nos versos de maior número de sílabas, mais rápido nos outros, o andamento, inseparável desses pontos de assonância, redobrados pelas profusas rimas internas (estar/amar/ vento/tempo/apascentar/mar/mágua/águas/repleto/completo)e aliterações (juventude/jusante/pélagos/pósteros/pletora/postos/ eternidade/etéreo/tumultuoso/tumulário), dá às enunciações uma nítida linha de entoação. Sob esse aspecto, é justificável o qualificativo, atribuído ao ritmo, de ondulatório, que tem a ver com a forma do “fragmento” diagramada na página seguinte: O traço formal mais ostensivo de Juventude parco em adjetivos utilizando freqüentemente o infinitivo pessoal do verbo estar (estar vivo/estar ensimesmado/estar a postos/estar assinalado) é o uso, do princípio ao fim, de uma pontuação os travessões nos finais de verso, doze ao todo quase exclusiva, não fosse a saliente função rítmica das vírgulas, como se constata no enjambement dos decassílabos 9, 10 e 11. Os travessões pontuam unindo o que separam e separando o que unem. Nesse duplo papel, assinalam tanto o recorte do “fragmento” seccionado à altura de cada um dos doze travessões quanto o entrelaçamento das três estrofes dístico, estância mediana e verso final isolado e dos versos entre si, distribuídos em dez unidades distintas de enunciação (indicadas pelos algarismos romanos do lado direito do texto), que não se interligam discursivamente. Onde o travessão aparece, a sintaxe discursiva se interrompe, substituída pela sintaxe rítmica. Assim, a forma singular desse “pequeno poema lírio”, enquanto “fragmento”, é a da continuidade na descontinuidade continuidade associativa do ritmo e das imagens5 , descontinuidade das enunciações. À luz de tal oposição interna, os travessões também funcionam para marcar pausas do ritmo, que se interrompe em cada unidade, recomeçando de novo, na seguinte. Nessas sucessivas interrupções e recomeços daí o movimento ondulatório do ritmo seu andamento ganha distintas entoações, que complementam as variações acentuais com as variações melódicas dos versos. 16 Asas da Palavra ... 1 2 3 4 5 Juventude A jusante a maré entrega tudo maravilha do vento soprando sobre a maravilha de estar vivo e capaz de sentir maravilhas no vento 6 amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rastro I II III 7 8 9 10 11 12 maravilha de estar ensimesmado (a maravilha: vivo!), tragado pelo vento, assinalado nos pélagos do vento, recomposto nos pósteros do tempo, assassinado na pletora do vento 13 14 15 16 17 18 maravilha de ser capaz, maravilha de estar a postos, maravilha de em paz sentir maravilhas no vento e apascentar o vento, encapelado vento 19 20 21 mar à vista da ilha, eternidade à vista do tempo VI 22 23 24 o tempo: sempre o sopro etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento, do monstruoso vento VII 25 26 27 28 29 30 31 32 33 e a terna idade amarga juventude êxtase ao vivo, ergue-se o vento lívido, vento salgado, paz de sentinela maravilha à vista de si mesma nas algas do tumultuoso vento de seus restos na mágua do tumulário tempo, de seu pranto nas águas do mar justo 34 35 36 maravilha de estar assinalado pelo vento repleto e pelo mar completo juventude IX 37 .... a montante e maré apaga tudo I Asas da Palavra IV V VIII 17 6 7 8 De acordo com a conhecida distinção de João Cabral de Melo Neto entre “poemas para serem lidos em silêncio”e “poemas que, menos que lidos, podem ser ouvidos”. Nota a duas águas, José Olympio Editora, Rio, 1956. “Além da escolha, do lugar e do encadeamento das palavras, é pois, sobretudo, a totalidade da configuração rítmica do dizer poético, que “exprime” o que se chama de sentido (Sinn)”. Heidegger, Hölderlin Hymnen, “Germanie” und “Der Rheine”, Gesamtausgabe, Band 39, p. 14, Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 1980. “Divisamos assim o adolescente, / a rir desnudo em praias impolutas...”, Divisamos assim o adolescente, p. 119 Rapaz, em minhas mãos cheias de areia / Conto os astros que faltam no horizonte / Da praia soluçante onde passeia / A espuma de teu fim, pranto sem fonte, / Ó juventude, um pálio de inocência / Jamais se estenderá sobre outra aurora...”, Onde paira a canção recomeçada, Sete sonetos de amor e morte, O Homem e sua hora, p. 175 “Lá onde um velho corpo desfraldava / As trêmulas imagens de seus anos; / onde imaturo corpo condenava / Ao canibal solar seus tenros anos; ... Nam Sibyllam, Sete sonetos de amor e morte, O Homem e sua hora, p. 172. O efeito encantatório antes destacado é, pois, o prolongamento da sedução do canto, em que as significações são musicais, e o cantabile, significativo. E a iteração de “vento” e “maravilha” introduz nesse cantabile a diferença de timbre das duas palavras refrões mais do que bordões que têm por função emprestar ao movimento ondulatório do ritmo uma altura enfática, altissonante, de recitativo oral. À semelhança de outros “fragmentos”, nosso poema, a despeito de incluir detalhes de escritura visual, entra na categoria dos textos poéticos de leitura em voz alta 6 . É recitativo por ser canto, e é canto pela sua configuração rítmica, como intercorrência dos elementos destacados: compasso ou cadência, andamento, variação melódica e timbre. Articula-se na configuração rítmica o sentimento preponderante no poema, que dá o tom ou a tonalidade de sua linguagem lírica. É aí, no ritmo, que traspassa as enunciações da segunda estrofe, que se pode desencobrir o sentido intencional, o dizer oblíquo de Juventude. 7 Enquanto nos sonetos de O Homem e sua hora, a juventude aparece no motivo incidental do amor a perturbadora atração amorosa pelo adolescente ou, ainda, o realce de seu viço físico em contraste com a velhice8 nesse “fragmento”ela é expressamente tematizada, em confronto com o amor e a morte, o tempo e a eternidade, como objeto de louvor. Assim Mário Faustino retoma um dos atos mais proeminentes da linguagem lírica o encômio, o elogio, base intencional de um gênero da Antiguidade, cujas formas, o hino e a ode, então codificadas, a tradição moderna estendeu, desde o Romantismo, às coisas da Natureza, aos estados e sentimentos humanos. Por ser contraparte da reverência, do respeito ou da admiração do sujeito a algo fora de si, a ato de louvor, que lhe manifesta a voz, guarda distância em relação ao que exalta, e que revive, de maneira exultante, numa ação celebratória. Porém, é só na segunda estrofe que o sujeito lírico louva a juventude, em atitude de abstrato distanciamento, favorecida pelo infinitivo impessoal, depois de havê-la invocado no começo do dístico: Juventude a jusante a maré entrega tudo maravilha do vento soprando sobre a maravilha de estar vivo e capaz de sentir maravilhas no vento amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rastro maravilha de estar ensimesmado (a maravilha: vivo!), 18 Asas da Palavra Sobre ser o único em primeira pessoa de toda a composição, e um dos poucos no indicativo presente, esse verso parentético é também o único que interrompe o distanciamento da voz, externando, num registro exclamativo solitário, o motivo de admiração do sujeito: o sentimento de viver. Eis a “maravilha”, 9 que o identifica à sua própria juventude e a torna louvável. Numa glosa ao conhecido conceito de Paul Valéry, pode-se dizer que o “pequeno poema lírico” de Mário Faustino é o “desenvolvimento” dessa exclamação10 . O sentimento de viver, estado intensivo de ânimo e origem da admiração que a motiva, constitui a tônica dos versos de louvor da segunda estrofe, exaltando a vida como juventude e a juventude como vida. Mas “dança de uma atitude”11 naquela tônica, a ação celebratória dramatiza essa exaltação do sentimento de viver dentro dos limites da cena marinha traçada conjuntamente pelo dístico e pelo verso isolado final, entre os quais a estrofe mediana se localiza. 9 Maravilha (de mirabilia, neutro plural de mirabilium do verbo mirare): o que causa assombro ou provoca admiração. 10 11 12 De fato, o dístico (I), que começa invocando a juventude, e do qual não há passagem sintático-discursiva para aquela, é o início de uma enunciação sentenciosa, não-celebratória, que se completa com a da última estrofe (I), a que está oposta, formando ambas, enquanto imagens contrárias do fluxo e do refluxo da maré, em correspondência simétrica, as partes complementares de um mesmo símile da juventude enquanto ciclo temporal: Juventude a jusante a maré entrega tudo a montante a maré apaga tudo 13 O espaço marinho do louvor aberto entre esses extremos, demarcados por duas locuções marítimo-fluviais, a jusante e a montante, indicando a posição altaneira de quem divisasse os dois movimentos contrários da mesma corrente líquida, é, como cena da celebração, um espaço metafórico. Muito embora se note a ausência, no “fragmento” de metáforas tópicas, abundantes nos poemas anteriores de Mário Faustino12 , os versos sentenciosos, que sobrepõem a imagem da maré ao estado juvenil, dão origem ao principal núcleo associativo do poema, nele disseminado como elemento fonemáticosignificativo: mar-av-ilha do vento soprando sobre a mar-av-ilha ................................................................................ a-mar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rastro Tanto “maravilha” quanto amar são anagramas de mar, e o mar é uma imagem obsessiva que passa das composições de O homem e sua hora às peças experimentais e aos “fragmentos”13 . Prolongado, por encontro eufônico num acidental adjetivo (amara ilha, Asas da Palavra “Le lyrisme est le développement d’une exclamation…” “Le genre de poésie qui suppose la voix en action la voix directement issue de ou provoquée par les choses que l’on voit et que l’on sent comme presentes”. Paul Valéry, Tel Quel I, p.179, Gallimard, Paris, 1941. “The symbolic act is the dance an attitude”. Cf. Kenethe Burke, op. cit. p. 9. Entendemos a ação celebratória como um tipo de ato simbólico. Bastaria referir, como exemplo, as de Nam Sybillam: “Lá onde um velho corpo desfraldava / As trêmulas imagens de seus anos; / Onde imaturo corpo condenava / Ao canibal solar seus tenros anos, ...”, p. 172. Veja-se, ainda: “E dobram sonhos na mal-estrelada / Memória arfante donde alguém que chamo / Para outros braços cardeais me nega / Restos de rosas entre lençóis de olvido”... Ego de Mona Kateudo, Sete sonetos de amor e morte, O Homem e sua hora, p. 176. “Apago a vela, enfuno as velas: planto / Um fruto verde no futuro, e parto / De escuna virgem navegante, e canto / Um mar de peixe e febre e estirpe farto ”, Viagem, p. 123 “... E até no atol do sexo triunfante / Do mar e da salsugem da agonia / Dormia um redentor ... , Agonistes ( O Homem e sua hora), p. 174. “... Cruel foi teu triunfo, torpe mar./ Celebrara-te tanto, te adorava / Do fundo atroz à superfície, altar / De seus deuses solares tanto amava / Teu dorso cavalgado de tortura! ...”, Balada (em memória de um poeta suicida), p. 116 “... E do salão o deslizar se ouvia / dos carros na rodovia, como se ouve / o mar outro, mais outro sobre as conchas atentas “, Ariazul p. 78 “... por que temes o mar; por que não temes / o carvão que ele forma; por que temes ?”, Marginal Poema 19, 19 p. 84 “... No sabuloso mar na salsa areia / alimento não cresce / cobras crescem / e nos impõe silêncio o bramir vero / do veado oceano...”, Cavossonante escudo nosso, p. 91 “... eu lutando com eros / idem idem com verbo / eu lutando com mar, com Circe e com / Migomesmo, guerreiro atribulado,,,”2210-1956, p. 96 “... O mar confrange amor confrange”, fragmento, p. 50 “... o mar sem remo tolda os horizontes, ... fragmento, 52 ”... O mar recebe o rio. O rio/ faustosamente corre para o mar / o rio-mar / um hino apologético do mundo. ...”fragmento, p.55 “... e experimenta-se a voracidade / do mar, do fundo / envenenado: ... cala-se alguém que não quis beber seu cálice, / alguém que não quis beber., / alguém que não quis / o mar, em vão e nada, o árduo mundo, / ... As algas dançam / no mar de vinho amargo... “fragmento, p. 63. 14 15 “E marcho contra o vento, sobre etéreos / Desertos sem retorno..., Soneto antigo, p. 126 “Oh vento que meu cérebro aleitaste / Tempo que meu destino ruminaste...”, Ego de Mona Kateudo, p. 176. Também se trata de uma imagem-símbolo, que ocorre no poema título O Homem e sua hora (“...Quando o coche / da noite detiveres, canção minha, / Retorna a mim, que passarei mil anos / A contemplar-te, ouvir-te, cogitar-te. ... Vênus fará de teu marfim fecunda / Carne que tomarei por fêmea, carne / Feita de verbo, cara carne, mãe / de Paphos, filho nosso, que outra ilha / Fundará, consagrada a tua música, / Ilha sonora e redolente...”, p. 188, no experimental 22-10-1956 (“... e pelágicos deuses / conspiram contra mim, jogam-me em ilhas...”p. 95) e num fragmento ( “Ao fundo a ilha, movediça e torta / de nossa infância... Ao fundo a ilha, semovente e morta, / as ânsias inocentes.”... p. 57) 20 amaro vento, amaro sopro), mais realçável pela leitura em vol alta, essa imagem forma o primeiro elo de uma cadeia de associações por semelhança. Assim, ao repetir-se “maravilha”, também se repetem as imagens do mar, da ilha e do vento, elementos do cenário marítimo a ela associadas. A outra palavra privilegiada, “vento”, refrão como a anterior, e metonímia do elemento aéreo e aligero da cena marinha, também se conjuga ao mar, porém, segundo se verá adiante, enquanto imagem-símbolo do ímpeto amoroso, erótico, da juventude14 . Acrescente-se a esse primeiro elo maré, maravilha, amar a ilha, mar à vista da ilha15 aqueles derivados da transposição de significados mediante similitude sonora entre os significantes (paronomásias), que integram, interligando os versos da segunda estrofe, o mesmo ritmo ondulatório que começou no dístico, e teremos a segunda cadeia associativa. A proliferação da semelhança paronomástica, próxima do trocadilho (capaz de sentir recomposto estar a postos ser capaz em paz sentir eternidade a terna idade paz de sentinela), em convergência com as rimas e aliterações, completa o espaço metafórico da ação celebratória, que encena, em dois momentos, retomando o tempo e a eternidade, já tematizados anteriormente pelo poeta, a dramática identificação da juventude com o sentimento de viver. O primeiro momento (3 a 18), que corresponde às quatro primeiras entoações (II,III, IV,V), é o da expansão oceânica, dionisíaca, da sensibilidade, arrebatada pelo próprio sentimento de viver. A longa pausa que o separa do decassílabo heróico do dístico (I), realça o lento andamento de 3 (15 sílabas), que, movendo-se na esteira das assonâncias, aumenta em 6 (17 sílabas), num largo maestoso, com apoio na repetição de amar, e sob o maior efeito de retardamento rítmico introduzido pelas vírgulas, dividindo o verso em quatro hemistíquios (amar a ilha / amar o vento / amar o sopro / o rasto), que finalizam por uma sílaba grave (rasto). Na quarta entoação, em contraste com a anterior pelo decassílabo com que se inicia, acelera-se o andamento, marcado por três rimas emparelhadas e pontuado por vírgulas, dos três outros decassílabos (9, 10 e 11) interligados, acompanhando a metamorfose do sentimento de viver em impulso amoroso, erótico (a imagem do vento), envolvente e violento, que extasia o sujeito: maravilha de estar ensimesmado (a maravilha: vivo!), tragado pelo vento, assinalado nos pélagos do vento, recomposto nos pósteros do tempo, assassinado na pletora do vento Asas da Palavra Já o hexassílabo final (na pletora do vento), em que arrefece a aceleração, entrosa-se aos versos de menor medida de entoação seguinte, octossilábicos, com tônicas na terceira e na oitava sílabas, e hexassilábicos, com variações acentuais na quarta, terceira e sexta sílabas, que assinalam o anti-clímax do arrebatamento, o sujeito pacificado retornando a si mesmo num estado de plenitude individual: maravilha de ser capaz, maravilha de estar a postos, maravilha de em paz sentir maravilhas no vento e apascentar o vento, encapelado vento As variações melódicas do andamento, em função das pausas e variações acentuais dos versos, e de todo o regime iterativo da composição, incluindo a esteira de assonâncias as aliterações e as rimas, mas sobretudo a repetição conjugada de “maravilha”e “vento”, principal fator de intensidade rítmica unem as quatro distintas unidades de enunciação, com suas diferentes entoações, numa só inflexão exultante, interrompida quando começa o intermezzo do “fragmento”, dividindo-o em duas metades: mar à vista da ilha, eternidade à vista do tempo o tempo: sempre o sopro etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento, do monstruoso vento No intermezzo de 19 a 24 ingressa o tempo como agente dramático, em concorrência com o “vento”, sua rima assoante no verso 10, e confrontado à eternidade, a que tende a exultação da vida, na mesma cadência dos últimos versos da anterior entoação interrompida. A eternidade, aí sugerida, é o hic et nunc da sensação, no espaço do presente instantâneo (mar à vista da ilha). Logo a imagem do tempo, associada à do “vento”, em 22, torna-se dominante, recebendo em 23 (13 sílabas) um registro de amplidão espacial, depois do que tem início o segundo momento da ação celebratória e a segunda metade do “fragmento”, continuação do louvor ao sentimento de viver, à sua expansão erótica, de novo metamorfoseada, mas sob diferente inflexão do mesmo ritmo: e a terna idade amarga juventude êxtase ao vivo, ergue-se o vento lívido, vento salgado, paz de sentinela maravilha à vista de si mesma nas algas do tumultuoso vento, Asas da Palavra 21 16 17 Cf. Alfredo Bosi. O ser e o tempo da poesia, p. 8, Cultrix, São Paulo, 1983. “...Sobre as nuvens / Defronte mãos escrevem numa estranha, / Antiqüíssima língua estas palavras/ Que afinal compreendo: toda vida/ é perfeita. E pungente, e raro, e breve / É o tempo que me dão para viver-me, / Achado e precioso. Mas saúdo / Em mim a minha paz final...” Parte final de A Reconstrução. Vide Poesia completa / Poesia traduzida, p. 107, Ed. Max Limonad. de seus restos na mágua do tumulário tempo, de seu pranto nas águas do m ar justo A conjunção inicial (e) marca um recomeço. Agora, porém, saindo do êxtase preponderante na primeira metade, a par e passo da exultação, e já aliviada a carga repetitiva do ritmo, rimas e aliterações reduzidas ao mínimo (mágua/águas tumultuoso/ tumulário), sem mais o acompanhamento intensificador de “maravilha, a “curva melódica”16 da entoação de VIII, traçada pela cadência em diminuendo de 25 a 32 versos de seis sílabas sucedendo os de doze e dez declina para o andamento vagaroso do adagio, enquanto, diante da metamorfose tanática do ímpeto amoroso, a exultação da primeira metade alia-se, dentro do contínuo rítmico da segunda estância, transportando a mesma tônica à inflexão lamentosa, elegíaca, deste segundo momento. O “vento” como tempo, metamorfose tanática do impulso amoroso, recebe conotações sombrias (lívido, tumulário), reincorporando a metáfora do mar (salgado), e a juventude, “terna idade amarga”, realçada no que tem de frágil, passageira e conflitiva oxímoro que é um calembour da eternidade assimila o acidental adjetivo do verso 6 (amar, amaro). Mas embora a celebração seja agora um rito lutuoso, o louvor à juventude e ao sentimento de viver, completamente identificados, não cessa. Em seu último ato, após o decassílabo heróico (33) do final da unidade VIII, a celebração, que encena o luto da juventude, sua imersão tanática no “mar justo”, repete de maneira modificada, em IX, a inflexão exultante de IV, inclusive na disposição emparelhada das rimas: maravilha de estar assinalado pelo vento repleto e pelo mar completo juventude Mas aqui também se fecha a enunciação sentenciosa iniciada no dístico, perfazendo-se, com o fim da celebração, o ciclo temporal da juventude, antevisto de maneira impessoal e distanciada pelo sujeito lírico, a cavaleiro de sua própria idade juvenil, de que antecipou, após o momento de expansão, quando tudo entrega (a jusante a maré entrega tudo), o momento de dissipação, de ruína e de morte, quando a montante a maré apaga tudo Vê-se, então, que o símile da juventude, que entrosou as duas imagens contrárias do fluxo e do refluxo, é uma concordia discors, uma concordância de opostos, do mesmo modo que o é o sentimento de viver em suas metamorfoses, cujo contraste, entre o arrebatamento dionisíaco, amoroso, e a morte, como entre exultação e lamento, o ritmo ondulatório mantém na celebração que o louva. E 22 Asas da Palavra assim a ação celebratória, que une as duas inflexões, a exultante do elogio e a lamentosa da elegia, num só louvor à juventude e ao sentimento de viver, equivale a um sim dado à vida contraditória e efêmera. Nessa afirmação trágica está o sentido intencional do “fragmento” o seu dizer oblíquo explicitado do ritmo cantante em que se articulou, aceitando e consagrando o amor fati que impregna, desde o começo, a lírica de Mário Faustino17 . Asas da Palavra 17 “...Sobre as nuvens / Defronte mãos escrevem numa estranha, / Antiqüíssima língua estas palavras/ Que afinal compreendo: toda vida/ é perfeita. E pungente, e raro, e breve / É o tempo que me dão para viver-me, / Achado e precioso. Mas saúdo / Em mim a minha paz final...” Parte final de A Reconstrução. Vide Poesia completa / Poesia traduzida, p. 107, Ed. Max Limonad. 23 24 Asas da Palavra QUEM FOI E O QUE FEZ MÁRIO FAUSTINO 1 (UM POETA E SEU MUNDO) Albeniza de Carvalho e Chaves Mestre em Teoria Literária, UFPa 1 Asas da Palavra Introdução da obra Tradição e modernidade em Mário Faustino. Gráfica e ed. UFPA, 1986. 25 N ovembro de 1962. Na madrugada do dia 27, o Boeing 707 – PPVJB, da VARIG, decolado do Galeão às 03:35’ que deveria chegar a Lima às 05:00 horas, explodiu no ar causando a morte de todos os seus tripulantes e passageiros, num total de 97 pessoas. As buscas logo promovidas por avião da Força Aérea Peruana atestaram sua queda nos Andes, em Cerro de Las Cruces, entre Otoctongo e Ciudad de Dios, a 32 quilômetros do sul de Lima, perto das ruínas de Pachacamac. Nenhum sinal de vida no aparelho destroçado. Entre seus passageiros, encontrava-se Mário Faustino, que se dirigia ao exterior a fim de escrever, para o Jornal do Brasil, uma série de reportagens sobre Cuba, México e Estados Unidos da América do Norte. Quem era ele? Um jovem poeta, crítico e jornalista, de 32 anos de idade, completados a 22 de outubro anterior, que já publicara, sete anos antes, seu único livro de poemas O Homem e sua hora (Livros de Portugal, Rio,1955). Nascido em Teresina (Piauí), em 1930, Mário Faustino dos Santos e Silva era um dos últimos da série de 20 filhos do casal Francisco dos Santos e Silva e Celsa Veras e Silva, ele forte comerciante na capital piauiense. Criado, porém, pelo mais velho dos irmãos e pela cunhada José Veras e Silva e Eurídice Mascarenhas Veras, dos quais era afilhado de batismo, considerava-os como seus verdadeiros pais. Todo o seu curso primário foi feito na cidade natal, em colégio público Escola Modelo “Artur Pedreira”, tendo como professora D. Nicola Burlamaqui. Muito cedo aprendeu a ler e a escrever. Familiares e amigos contam que gostava de brincar de escritor, tendo composto, entre 9 e 10 anos, um conto que a todos impressionou No Reino da Morte história em que os personagens, após alcançarem esse reino, lá morriam. Dominado, desde muito cedo e de forma quase obsessiva pela 26 Asas da Palavra paixão da leitura, ficava agarrado aos livros até altas horas na noite. Aos 9 anos iniciou o estudo do inglês, língua de sua predileção, em “que viria a escrever e falar impecavelmente, como um oxfordiano”, no dizer de Haroldo Maranhão, consagrado jornalista e escritor paraense, grande amigo de Mário Faustino. Em 1940, mudou-se para Belém do Pará, onde cursou todo o ginásio, os três primeiros anos no Colégio Nazaré, tradicional estabelecimento de ensino dirigido pelos Irmãos Maristas, e o último no Colégio Moderno, não menos tradicional mas de orientação leiga, e no qual, mais tarde, veio a ser professor de línguas estrangeiras. No Colégio Estadual Paes de Carvalho fez Curso Clássico, terminado em 1948. Já aos 16 anos iniciara o jornalismo militante, no matutino associado A Província do Pará, escrevendo crônicas sobre literatura e cinema, além de traduzir e reescrever telegramas nacionais e estrangeiros. Em 1949, transferiu-se para A Folha do Norte, cuja redação veio a chefiar, remodelando inteiramente o conhecido diário paraense. Ali trabalhou cerca de 7 anos, interrompidos por viagens. Desde 1948 colaborara com o Suplemento Literário do mesmo jornal, apresentando traduções de poetas franceses, espanhóis, ingleses e norte-americanos. Nesse mesmo Suplemento publicara poemas, demonstrando, já aos 16 anos, a profunda seriedade com que encarava a poesia, seriedade essa conservada ao longo de sua curta vida literária, rica de múltiplas atividades. A primeira notícia que então se teve sobre a poesia de Mário Faustino deve-se a Francisco Paulo do Nascimento Mendes, professor e ensaísta paraense, titular de Literatura Portuguesa no Centro de Letras e Artes da Universidade Federal do Pará, que em artigo intitulado – O poeta e a rosa – comentou longa e compreensivamente os poemas publicados. Ainda no ano de 1948, Mário Faustino, juntamente com Benedito Nunes e Haroldo Maranhão, dirigiu uma revista literária de vida efêmera – Encontro – e participou da instalação, em Belém, da Associação Brasileira de Escritores. Oficial do Exército pelo CPOR, ingressou, em 1949, na Faculdade de D ireito, freqüentando-a, acidentalmente, até o 3º ano. Em 1954, chegou a matricular-se no 4º, não realizando, porém, qualquer trabalho acadêmico. Pouco depois, abandonou a Faculdade, “ por falta de interesse” , conforme veio, mais tarde, a confessar. Em 1951, viajou pelo Estado Unidos da América do N orte, onde permaneceu dois anos, com bolsa de estudos para Língua e Literatura I nglesas, conquistada em concurso internacional promovido pelo Institute of International Education. Foram seus estudos realizados no Pomona College, em Covina, na Califórnia. Submeteu-se, nessa oportunidade, a uma espécie de estágio no Los Angeles Mirror e, a interesses jornalísticos, Asas da Palavra 27 visitou vários órgãos de imprensa de São Francisco, Chicago e Nova York. Regressando a Belém, com a perspectiva de uma viagem à Europa, o poeta, que já escrevia e falava, com perfeição, francês e inglês além de se expressar satisfatoriamente em espanhol e italiano, estudou, com afinco, o alemão, em aula diárias, ministradas em inglês, por ser muito precário o português do professor. Logo conseguiu desembaraçar-se bem em língua alemã, a ponto de poder usá-la na Europa onde, em 1953, integrando uma embaixada de acadêmicos de Direito, percorreu minuciosamente Portugal, visitando, a seguir, durante 11 meses, Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Dinamarca, Bélgica, Holanda, Áustria e Suíça. Suas andanças levaram-no, ainda, às Américas, especialmente Cuba, México, República Dominicana, Venezuela, Chile, Argentina e Uruguai. De volta da Europa, Mário Faustino desempenhou, durante dois anos, o importante cargo de Chefe do Setor de Coordenação e Divulgação da Superintendência da Valorização Econômica da Amazônia (SPVEA), hoje Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), ao tempo dirigida pelo historiador Artur César Ferreira Reis, seu primeiro Superintendente. Foi no interesse dessas funções que fez, no Rio de Janeiro, curso intensivo de Introdução à Administração Pública, Organização e Métodos e de Relações Públicas na Fundação Getúlio Vargas, para o qual veio, depois, a ser contratado como professor, o que o levou a deixar Belém em 1956. De 1956 a 1958, Mário Faustino foi, na Escola de Administração Pública, primeiramente professor-assistente, intérprete e tradutor num curso especial de Planejamento Regional, e depois assistente da cadeira de Sociologia e Filosofia Política e professor de inglês e francês. Por esse tempo, prestou serviços ao Conselho Nacional de Economia e ao Museu de Arte Moderna, como tradutor, intérprete e redator. Foi essa uma época de intensa atividade intelectual na vida de Mário Faustino. O poeta que, aos 25 anos, já publicara o livro O Homem e sua hora, com a transferência para o Rio aumentou sua produtividade literária no campo da poesia e da crítica, através do julgamento e interpretação de poetas nacionais e estrangeiros. Dirigiu, durante dois anos, a página Poesia-Experiência, do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, por ele iniciada, na qual, ao lado de estudos críticos, aparecem seus próprios poemas, ao tempo também publicados fora da página e no Correio da Manhã. A página, pelos novos caminhos que abriu, despertou profundo interesse, sacudindo o ambiente poético do momento. Em fevereiro de 1959, ingressou Mário Faustino no corpo redacional do Jornal do Brasil, galgando, três meses depois, em comissão, 28 Asas da Palavra o cargo de confiança de Coordenador de Opiniões. Em dezembro do mesmo ano, licenciou-se para voltar, novamente, aos Estado Unidos. Lá permaneceu durante todo o ano de 1960, trabalhando no Departamento de Informações Públicas da ONU, em Nova York, onde preparava os Press Releases. Voltou ao Rio em 1961, assumindo as funções de Diretor Adjunto do Centro de Informações da ONU no Brasil, nelas permanecendo até junho de 1962. No mês seguinte, retornou ao Jornal do Brasil já como Editorialista e Editor Chefe da Tribuna da Imprensa, cargo de que pediu demissão a 18 de julho, por incompatibilidade com a orientação redacional. Nos meses seguintes, nenhuma função exerceu. Preparava-se para uma nova viagem ao México, Cuba e Estados unidos, a fim de escrever uma série de reportagens sobre a atualidade política internacional, para o Jornal do Brasil, de cujo superintendente, Sr. Nascimento Brito, continuou amigo, apesar da ruptura com o matutino carioca. Durante esse tempo, Mário Faustino ficou fazendo o que mais desejava - lendo, escrevendo, ouvindo música e conversando com os amigos. Era propósito seu, declarado a Haroldo Maranhão e a Benedito Nunes, seus grandes amigos, acumular recursos que lhe permitissem desobrigar-se, pelo menos durante um ano, de encargos profissionais, a fim de dedicar-se inteiramente à obra que planejara e se constituíra verdadeira razão de ser de sua vida. A morte prematura não lhe permitiu realizar a obra tão sonhada; mas, a que Mário Faustino deixou é poesia alta e séria e, ao lado de sua crítica, provavelmente permanecerá, marco que é de uma renovação em tão boa hora aparecida nas letras nacionais Haroldo Maranhão, ao escrever sobre Mário Faustino, no Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo (9 de julho de 1966), longo artigo intitulado O poeta e sua vida, conta, a propósito da projetada última viagem do poeta ao exterior, passagem muito curiosa, que vai reproduzida com as palavras do próprio articulista: Asas da Palavra Depois, veio a saber-se que muito vacilou em empreender essa derradeira viagem. Várias vezes transferiu-a sem motivo aparente. E procedeu de forma estranhável, deixando com a mãe adotiva, no momento de embarcar finalmente, uma carta contendo instruções minuciosas de como deveria proceder na sua ausência e na eventualidade de alguma coisa acontecer-lhe. Tantas viagens realizara, sem que tivesse tido tal cautela. Uma coisa parece certa: assaltara o poeta a premonição da morte, que tanto celebrou em seus versos e que constitui um dos temas permanentes em sua obra. Singular episódio, verificado em sua 29 última viagem a Nova York, confirma isso certamente. Um amigo emprestara-lhe seu apartamento naquela cidade e, uma tarde, Mário Faustino abriu ao acaso o catálogo de telefones com o intuito de localizar a lavanderia mais próxima. Seu olhar colidiu em duas linhas: nome e direção de uma astróloga irlandesa. Como era espírito irrequieto, foi tomado pelo desejo de ouvir a voz da irlandesa, fazer-lhe perguntas, trocarem idéias; e telefonou-lhe. Antes que pudesse explicar o acaso, intimou-a a outra que fosse ter com ela, incontinenti, para uma entrevista absolutamente necessária, tomasse um táxi, ela o atenderia logo, apesar de estarem vários clientes à espera. Levado por pura curiosidade intelectual, e imaginando que se tratasse de uma pobre senhora em dificuldades financeiras, não se escusou Mário Faustino ao encontro. De fato, havia pessoas aguardando a palavra da frenóloga, como também se intitulava ela. E não obstante narrasse o episódio de modo divertido, rindo ele próprio da experiência excitante, deve ter ficado momentaneamente embaraçado: a astróloga, rápida e incisivamente, reconstituiu-lhe coisas acontecidas, de maneira fulminante e exata, revelando-lhe circunstâncias pessoais e muito íntimas, parecendo desnecessário ressalvar que Mário Faustino, pelo seu espírito vigilante e perspicaz, não poderia ser ludibriado assim como alguém desavisadamente pudesse supor. Em seguida, disse-lhe a irlandesa mais ou menos isto: O senhor está próximo de uma encruzilhada decisiva de seu destino. Poderá chegar às culminâncias da glória em sua pátria; ou um acontecimento cortará tudo de um golpe. Está no seu arbítrio contornar esse acontecimento. E encerrou a entrevista, recusando o pagamento oferecido, o que o poeta levou à conta, naturalmente, de um truque promocional. Mas a viagem, por várias vezes inexplicavelmente adiada, realizou-se, afinal, a 27 de novembro de 1962. Partindo do Galeão e destinado a Los Angeles, o Boeing 707 - PPVJB da VARIG, escalaria em Lima, Bogotá, Panamá e Cidade do México. Na última, Mário Faustino deveria desembarcar. Espatifado o avião em Cerro de Las Cruces, morreram as 97 pessoas que nele vinham. O corpo do poeta não foi identificado e, juntamente com outros despojos, irreconhecíveis todos, foi sepultado em mausoléu da capital peruana. Fim trágico, insuportável para os amigos, mas, no dizer de um deles – Paulo Francis - “rápido, brilhante e total como a imaginação do poeta”. 30 Quando o jato em que viajava bateu na montanha “tudo se desintegrou, terno, sapato, obturações, o anel. O poeta, o crítico e editorialista Mário Faustino morreu e não foi cadáver”. Assim se refe- Asas da Palavra riu à morte do artista o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues no Capítulo LVIII de suas Memórias, publicado no Correio da Manhã de 5 de maio de 1967. Ao apresentar, a 23 de setembro de 1956, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, a página Poesia-Experiência, por ele próprio concebida, orientada e dirigida, Mário Faustino assim se expressou: Trata-se de uma tribuna e de uma oficina, onde os poetas novos falarão ao público e, em particular, a outros poetas novos e onde, ao mesmo tempo, os jovens poetas e seus leitores procurarão reviver a boa poesia do passado, à medida que aprendem a fazer e a reconhecer a boa poesia do presente e do futuro. O lema de Poesia-Experiência (“Repetir para aprender, criar para renovar”) – parece exprimir as intenções da página. Através desta esperamos que o público – comparecendo, em última análise, como protagonista – possa ver, número após número, em pleno processo de elaboração, uma parte significativa da nova poesia brasileira. Aqueles que, como nós acreditam ser a poesia uma arte, e ser o poeta não uma prima donna e sim artesão honesto, competente músico e ser humano perigosamente vivo, procurando exprimir, da maneira mais bela, eficiente e durável possível, o sentimento de seu tempo e de seu mundo – esses encontrarão sempre abertas, para o debate e para a criação, as diversas seções de Poesia-Experiência, página que pretende ser veículo de comunicação do maior número possível dos interessados nos problemas da poesia. A página, publicada, com raras interrupções, ate 1° de novembro de 1958, como um suplemento dentro de outro, manteve-se fiel a seus propósitos iniciais, vivificando a poesia do passado como lição para o presente. A biblioteca de Mário Faustino, dizem os amigos, constituía-se, basicamente, de poetas, desde os clássicos grego-latinos Homero, Virgílio, Propércio, aos mais recentes autores nacionais e estrangeiros. Lia, com assiduidade, os Cancioneiros galaico-portugueses, sobretudo o Romanceiro de Garret, o moderno Fernando Pesssoa, os espanhóis Garcilaso, Gôngora, Lorca, os franceses Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Apollinaire, e St.John Perse, pelo último dos quais nutria enorme admiração. Em língua inglesa, voltavam-se suas predileções para Shakespeare, Keats, Browning, Yeats, Eliot, Dylan, Thomas e Pound, cujos Cantos e ensaios críticos anotou da primeira à última linha; entre os alemães, principalmente para Hölderlin, Novalis, Stephan George e Rilke. Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Jorge de Lima foram os brasileiros de sua leitura e estudo mais constantes. Daí o seu grande cabedal para apreciar a arte poética. Manter viva a poesia do passado, sem tirar os olhos do presente, Asas da Palavra 31 aproveitar para esta a experiência daquela, divulgar, enfim, os grandes poetas de todos os tempos, eis o que tentou Mário Faustino através da página Poesia-Experiência. A agudeza do crítico evidenciou-se ao lançar, nessa página, produções de jovens poetas ainda desconhecidos, nos quais sentira verdadeira vocação para a arte poética, além de vontade e capacidade de renovação. Assim, não foi Mário Faustino apenas o crítico de autores já consagrados, quer estrangeiros, quer nacionais, o que seria bem mais fácil, mas o descobridor de novos talentos, que a ele devem o seu aparecimento em público. Procurando agir sempre dentro de um critério da mais estrita justiça, acabou com algumas reputações poéticas que lhe pareceram infundadas, fazendo a revisão de outras mais ou menos fundamentadas. Valeu-lhe esse procedimento inimizades, não raro injustiça e injúrias do próprio meio literário do Rio de Janeiro da época. Sentiu-as o jornalista, o homem, de certo, mas o crítico não mudou sua atitude, ditada por uma concepção muito séria da literatura, fruto, ainda, de acurados estudos dessa arte superior – a arte poética – por ele próprio exercida com total devoção. Para Mário Faustino, o poeta deveria cumprir o tríplice preceito horaciano – ensinar, deleitar e comover (docere, delectare, movere). Crítico não historicista, Mário Faustino preocupou-se, sobretudo, em captar os aspectos essenciais do fenômeno poético, em todos os tempos, independentemente de escolas. A esse propósito teórico, acrescentou a finalidade pedagógica de ensinar poesia, já que, a seu ver, nenhum meio de comunicação ensinava tão profundamente e de modo tão inesquecível quanto a poesia (FAUSTINO, Mário. Para que poesia? In: Cinco ensaios sobre poesia, de Mário Faustino, 1964, p. 20). Publicando exemplares da melhor poesia do passado e do presente, e, ao mesmo tempo, divulgando poetas novos, cujas produções se apresentavam renovadoras, Poesia-Experiência, através de artigos, balanços reavaliadores e estudos da autoria do próprio organizador, “ajudou a impulsionar a poesia brasileira no momento de marasmo em que ele caíra, após a edição de obras como Claro enigma (1950), de Carlos Drummond de Andrade, Invenção de Orfeu (1952), de Jorge de Lima, Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles e Poemas reunidos (1954) de João Cabral de Melo Neto”. (NUNES, Benedito. Poesia de Mário Faustino. 1966, p.4). Mário Faustino, seguindo longa tradição que remonta à antigüidade clássica (basta lembrar Horácio) e continuada, mais recentemente, com Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Pound e Eliot, para só citar al32 Asas da Palavra guns dos mais importantes, alternou à sua experiência criadora de poeta à reflexiva de crítico. Por isso, toda a sua atividade intelectual, desde o livro O homem e sua hora, foi dedicada ao conhecimento e à elaboração da poesia. Não apenas pregou esse procedimento, mas viveu-o até o fim da vida, fazendo de sua poesia uma autêntica praxis. Sua teoria poética, deixou-a sintetizada, sobretudo, nos três ensaios – Para que poesia?, O poeta e seu mundo e Que é poesia? – escritos em forma dialogada, publicados primeiramente na página Poesia-Experiência e, após a morte do autor, reunidos em livro – Cinco ensaios sobre poesia de Mário Faustino com a seguinte nota explicativa: Dois poetas trabalham na oficina que compartilham. Nas horas de trégua, quando guardam fatigados o silêncio, discutem seu ofício. Não pretendem dizer-se novidades, nem um ao outro expor-se à admiração; querem somente esclarecer, fixar e trocar experiências. Daí o nome de Diálogos de oficina, pelo qual comumente é conhecida essa obra, verdadeira profissão de fé poética do autor, dos quais farei aqui uma síntese. O primeiro diálogo é todo o desenvolvimento ou a glosa da pergunta: Afinal de que serve a poesia? – feita por um dos poetas e à qual o outro responde fazendo, à maneira socrática, com que o próprio interlocutor vá encontrando a resposta. Esta, em síntese, atribui à poesia a tríplice missão de docere, movere et delectare, presa a conceito horaciano, mas já vista em ângulo moderno, pois essa tríplice ação se exerce, não apenas sobre o leitor, mas sobre o próprio artista, que se organiza através de sua obra. Ao lado dessa função pedagógica, há uma outra - a função catártica, purificadora – também duplamente exercida sobre o leitor e sobre o autor: “Enquanto o poeta purga e melhora o leitor ou ouvinte, fazendo-o ‘mudar de vida’ purga também e também melhora a si mesmo, mudando continuadamente de vida, até, se possível, fixar-se em formas definitivas de realização. Na poesia encontra o poeta, quando os deuses estão de seu lado, a sua unidade existencial”. (FAUSTINO, Mário.op.cit, p.21). O diálogo destaca, ainda, a utilidade social da poesia, encarada sob dois aspectos: o ativo e o passivo, o segundo dos quais dá testemunho da sociedade ao interpretá-la e registrar as diferentes fases, quer espacias, quer temporais, de sua evolução, tornando-se, assim, um documento vivo de certo povo em época e momento determinados. Como documento humano, é insuperável e isso basta justificar a sua existência perante a sociedade, “sem esquecer aquela sua outra utilidade como que ontológica: a simples beleza, a mera consciência da dignidade da espécie que um poema automaticamente comunica aos homens “(id. ibid., p. 25). Asas da Palavra 33 Graças a essa utilidade social, a poesia age sobre um povo, não individualmente e de maneira catártica, mas semelhante a um comício, um discurso, um editorial, levando-o a tomar consciência de si mesmo. É o seu aspecto ativo, que pode ser bem compreendido quando se atenta para a importância d’ Os Lusíadas para a nacionalidade portuguesa, ou da Ilíada e da Odisséia na formação de uma consciência helênica, capaz de unificar os fragmentados povos da Grécia antiga. Finalmente, o julgamento de um poema só pode ser feito segundo o diálogo, sob nível estético, sem qualquer vinculação ao ético. Se esteticamente bom, ele exerce um papel importantíssimo, ajudando a manter elevada a expressividade da língua, com o que presta um grande serviço à coletividade; caso contrário, se degrada a língua, provoca, também, a decadência da sociedade que a fala. Seguindo linha bem moderna, o poeta mostra no seu diálogo, que não há mais lugar para a poesia “ingênua, embaladora, inofensiva, que só serve de paliativo, enganando o povo que a lê, fazendo-o esquecer, por instante que seja, seus problemas, seus direitos, seus deveres”,(id.ibid., p.34) como um outro “ópio do povo”. O segundo diálogo - O poeta e seu mundo - responde a duas perguntas básicas: “Que posição deve assumir o poeta contemporâneo diante dos problemas de sua época?” e “Qual o seu papel perante a sociedade em que vive?” - questões complexas, de raízes profundas, para esclarecimento das quais surge uma nova: “Que vem a ser um poeta?”. E logo uma resposta breve: “um ser humano como os outros”, mas dotado de certa capacidade de percepção e de expressão, ambas verbais, que “o tornam especialmente apto para harmonizar - intrinsecamente e em relação ao outro – os dois universos: um tangível - natureza e sociedade – e outro intangível - o das palavras em todos os seus aspectos de som, idéia e imagem. O poeta seria, portanto, aquele homem que, (sic) capaz de receber os fenômenos naturais e sociais de modo especialmente sintético, e também capaz de exprimir em palavras organicamente relacionadas, essa visão totalizadora de um mundo e de uma época”. (FAUSTINO, Mário. O poeta e seu mundo. In Cinco... p.35-36). Antes da resposta às duas perguntas, há toda uma explanação sobre as condições necessárias a um bom poeta que acima de tudo, deve procurar aperfeiçoar a sua percepção do mundo todo, do universo, natural, social e individual. Seu papel é o de traço-de-união entre três elementos permanentemente agônicos: ele próprio, o universo (natural e social) e as palavras. Ao poeta cabe perceber o universo não apenas pelo sentimento, mas através da reflexão, do raciocínio, porque a poesia não é somente música e imagem, é, também, pensamento. 34 Poudiano, Mário Faustino não poderia esquecer a tríade do artista norte-americano: melopéia, fanopéia e logopéia, que constituem a estrutura do tecido poético, hoje qualificada de “fanologomelódica da qual depende o valor de um poema aquilatado mediante a eficácia de sua Asas da Palavra linguagem”(NUNES, Benedito. Introdução .In: FAUSTINO, Mário. Poesia-Experiência. 1977, p. 14). O verdadeiro poeta critica o universo e a sociedade porque os ama, e sobre eles procura agir, experimentando melhorá-los. Daí se interessar, ativamente, pela filosofia, ciências e política de sua época, das quais nos dá um retrato dinâmico, através da própria obra. O universo, em todos os seus aspectos, natural, social e individual, pode se constituir objeto, não apenas da percepção poética, mas, também, da expressão poética. Não há objetos, nem palavras, nem expressões impróprias à poesia, porque esta “é um pássaro versátil e bem pouco snob, capaz de fazer seu ninho em qualquer canto” (FAUSTINO , Mário. op. cit., p 41). Para Mário Faustino, a percepção poética deverá ser “omninclusiva” e “omninexclusiva” (neologismos do crítico”), isto é, o poeta deve ver a coisa integrada no universo, através de múltiplas relações de semelhança e dessemelhança e, ao mesmo tempo, individualizada de modo extremamente objetivo, independente, o máximo possível, da percepção por categoria. Os dois aspectos se interpenetram, completando-se. É importante, para ele, ver a coisa de modo inteiramente original e novo, como se nunca a tivesse visto ou ouvido, e, ao mesmo tempo, carregada de toda a experiência anterior, não só sua própria, como de todos os homens. Isto resultaria em uma percepção simultaneamente horizontal: a coisa no momento, agora, como novidade, considerada em abstrato; e vertical: a coisa em sua história, não só na sua própria ancestralidade, mas, ainda, na história do conhecimento que dela têm tido os homens, poetas, ou não. É a questão sincronia e diacronia, termos que o autor não emprega. Relacionam-se, de maneira íntima, o processo perceptivoexpressional da poesia e o processo criador da própria linguagem. Adequados os meios à matéria tratada, ajustada a dicção aos padrões próprios da poesia, ter-se-á o poema perfeito, cuja eficácia “está na razão direta de seu perfeito funcionamento, sem desgaste ou perda de significado”(NUNES, Benedito. op. cit., p.14) Se Shelley, na sua Defesa da poesia, considerou o poeta como legislador e profeta, Mário Faustino, comungando de opinião semelhante, julga-o, ainda mais, cientista, filósofo, juiz e líder, mas, acima de tudo, obrigado a ser “um bom poeta”. A esse primeiro mandamento, outros são impostos: a - ter uma visão de conjunto das coisas e das situações, munindo-se, para tanto, de conhecimentos filosóficos, sociais, políticos, noções de estética, intimidade com a prosa e com as outras artes, saber o que se passa no mundo exterior, ter autoconhecimento e conseqüente auto crítica; Asas da Palavra 35 b - perceber a mutabilidade das coisas e ser capaz de raciocinar “em projeção”, atentando para a transformação das situações atuais em situações futuras; c - provocar uma impressão de eternidade, própria da poesia verdadeira (seu caráter profético ou de vidente); d - retratar-se a si próprio, com fidelidade, de forma a fazer de sua poesia um documento humano fidedigno; e - expressar, também com igual fidelidade, sua época, seu povo e sua terra; f - agir sobre sua época através de uma poesia realmente participante, crítica e transformadora do mundo; e g - contribuir para o progresso de sua língua, dando-lhe mais flexibilidade e exatidão, ampliando-lhe, assim, a eficiência. Herdeiro de experiências ancestrais, quer no sentido moral quer no estético, modificando-as de acordo com a própria concepção artística, o poeta adquirirá sua experiência pessoal, sob certos aspectos dotada de originalidade, capaz de levá-lo a promover a transformação do mundo, um dos principais deveres de qualquer artista. Assim procedendo, colocar-se-á “não à margem, mas no centro móvel da corrente dos tempos” (FAUSTINO , Mário. op. cit., p.54) . Se assumir essa posição, o poeta deverá levar-nos, a “cosmos incessantemente renovados” (BACHELARD, Gaston. La Poétique de la Réverie. 1968, p.21), lembro eu, agora, associando o pensamento do poeta-crítico ao do filósofo-poeta que foi Gaston Bachelard. O terceiro e último diálogo - Que é poesia? Adverte, de início, que nenhum dos interlocutores pretende dar sobre isso um conceito definitivo, procurando, apenas, estabelecer o que representa, para eles, a Poesia, encarada, não no seu conceito vulgar e sim como arte poética, antes de tudo “uma maneira de ser da literatura, ou seja, da arte da palavra, da arte de exprimir percepções através de palavras, organizando estas em padrões lógicos, musicais e visuais” (FAUSTINO, Mário. Que é poesia? In :- Cinco. . . 1964, p.56)” Mostra-se Mário Faustino, mais uma vez, francamente poundiano nessa concepção. Ponto destacável do diálogo é a distinção entre prosa e poesia, comumente formal e quantitativa. Formal, porque referente apenas aos dados concretos que têm distinguido uma coisa da outra: aspecto exterior, gráfico, da página de prosa e do poema, variações rítmicas, etc. Quantitativo, porque todas as distinções formais até hoje apontadas têm servido apenas para mostrar a poesia como possuidora de um ritmo mais acentuado do que o da prosa, de uma linguagem mais concentrada do que a desta e de um metro mais preciso e mais fácil de identificar. 36 Tais distinções, na verdade, limitam-se a separar prosa e verso, quando o interessante é colocar em contraste duas linguagens, dois Asas da Palavra modos de expressão ou os dois extremos de uma só modalidade de expressão – a literatura, a arte verbal. É nesse nível que prosaico e poético se distinguem com suficiente nitidez, embora permaneça difícil decidir para sempre, e com exatidão, se determinada obra literária se encontra dentro dos limites do prosaico ou nas fronteiras do poético. Prosa e poesia distinguem-se apenas no campo formal, porque ao nível material, essencial, sempre o prosaico é encontrado na poesia e o poético na prosa. Por isso deve-se distinguir qualitativamente o prosaico e o poético, sem emprestar ao primeiro qualquer intenção pejorativa. Prosaico é “o arranjo de palavras em padrões (cuja forma gráfica e cujo ritmo, mais ou menos irregulares, não nos interessam ainda), que analisam, descrevem, ilustram, glosam, narram ou comentam o objeto; é prosaico o discurso sobre o objeto ( ser, coisa, ou idéia)”. É poético “o arranjo de palavras em padrões (cujo aspecto formal - auditivo ou visual – repito, ainda não entra em consideração) que sintetizam, suscitam, ressuscitam, apresentam, criam, recriam o objeto; é poético o canto, a celebração, a encantação, a nomeação do objeto”( id. ibid. p.58- 59). Noção muito importante a fixar: um trabalho não é melhor ou pior por ser poético ou prosaico. Linguagem poética é, antes de tudo criação ou recriação, enquanto a prosaica é mais comunicação, o que não implica na inexistência de comunicação no poético, nem de recriação no prosaico. Na verdade, não há prosa pura nem poesia pura. A genuína linguagem prosaica, comunicativa por excelência, não pode dispensar um máximo de clareza, de exatidão e de inconfundibilidade; a poética sempre poderá ser ambígua, mágica e misteriosa. O poético não precisaria ser compreendido e sim percebido, como um vaso, um edifício, uma dança, enquanto o prosaico perderia todo o sentido se não fosse perfeitamente entendido, pois nele o artista comenta o universo por meio de palavras cujo arranjo já está a sua disposição, tendo como fim capital comunicar. E o artista comenta o universo em benefício do ouvinte ou leitor. No poético, esse mesmo universo é recriado, graças às palavras-objetos, por ele doadas ao ouvinte ou leitor. Toda essa distinção está vinculada a discussões sobre a origem das línguas, a respeito da qual estudiosos como Vico e Croce sugeriram tenha sido a linguagem poética a original, já que a primeira nomeação de um objeto, por parte de um sujeito que o desconhecia, só pode ter sido feita através de sua recriação, de maneira verbal, por esse mesmo sujeito. Conclusão: o poético sempre precede, cronologicamente, o prosaico. Asas da Palavra 37 Em última análise, Poesia é toda a obra literária em que a nomeação ultrapassa em significativa proporção o relato dos objetos - “pouco importando a profundidade, a importância, a ‘beleza’ desses objetos, bem como pouco importando os padrões formais mais ou menos rítmicos, mais ou menos regulares adotados pelo autor”. Prosa - “toda obra literária em que o relato dos objetos ultrapassa em proporção substancial a nomeação dos mesmos: seres, coisas, idéias” ( id , ibid. ,p. 67- 68). Propondo uma distinção qualitativa entre prosa e poesia, Mário Faustino acompanha o pensamento de Sartre em Qu’est-ce que la littérature?, baseado nos dois usos diferentes das palavras e nas duas formas de percepção do mundo - o poético e o prosaico. O poeta compreendeu bem a responsabilidade de ser poeta e para ela chamou a atenção de outros poetas como Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Cecília Meireles, Jorge de Lima e Vinícius de Morais, em ensaio intitulado Concretismo e poesia brasileira (FAUSTINO, Mário. Concretismo e poesia brasileira. In: - Cinco. . .1964, p. 71- 83). Para Mário Faustino, ser poeta não era apenas escrever poesia de alto valor, como o fizeram os autores citados, mas, ainda, dedicar-se à tarefa do didatismo crítico, teorizar sobre poesia e, no caso especifico do Brasil, tentar uma solução eficiente para os inúmeros problemas da arte poética. Somente o grupo concretista de Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e Ferreira Gullar, saindo do nível do verso, tentara novos caminhos poéticos, constituindo “a única forma de vanguarda séria que há no Brasil de hoje”(id. ibid, p.80). Isso ficou bem provado quando da abertura, em 1957, da exposição de arte concreta, no Ministério da Educação. A experiência concretista, para Mário Faustino, salvaria a poesia brasileira do discursivo- sentimental, promovendo autêntica renovação da linguagem poética. Essa opinião foi, ao tempo, bastante válida. No último ensaio da Coletânea 2, Mário Faustino, que considera Stéphane Mallarmé o poeta mais poeta de todo um século, analisa-o tendo em vista as duas grandes tarefas por ele desempenhadas: a de criticar a tradição poética através do próprio ato de fazer poemas, aproveitando o vivo e desprezando o ultrapassado e morto, e a de criar poemas, senão totalmente novos, pelo menos renovados, e constituindo-se, a um só tempo, documento de auto crítica existencial e fundamentos para uma reforma da linguagem poética. O crítico chama atenção para o fato de Mallarmé, aparentando respeitar a sintaxe tradicional, fazer dela o que bem entende, associando 38 Asas da Palavra palavras à sua maneira, renovando a língua e criando objetos verbais. Comentários mais ou menos sucintos dos poemas Igitur e Um coup de dés, oferecidos apenas como pontos de referência e não com intenção interpretativa, ilustram o que teoricamente fora exposto, evidenciando o sólido conhecimento que Mário Faustino possuía da obra malarmeana. Justificam, também, o seu entusiasmo pelo poeta francês, promotor de uma renovação da linguagem poética” poeta imenso, para nós o mais importante e o menos incompleto (juntamente com Ezra Pound) de todo um século de poesia em experiência” ( id. ibid. p. 107). Se os Diálogos de oficina já nos dizem bastante sobre o pensamento do poeta e crítico Mário Faustino, é, no entanto, na página Poesia-Experiência que melhor pode ser apreciada a sua atividade crítica, exercida com largueza de vistas, excedendo as finalidades comuns do gênero, fugindo “as barreiras do bom-mocismo enmiástico, do aceno cordial ou do amadorismo alienado”(GRUNEWALD, José Lino. Mário Faustino: poeta e crítico. 1962). Na página aparece uma seção intitulada Poeta Novo, que seu organizador considerava a mais importante porque destinada a divulgar, após rigorosa seleção prévia, poemas de autores jovens capazes de concorrer para abrir novos caminhos à arte poética nacional. As demais divisões da página são: O melhor em português, com a publicação de clássicos de Portugal; È preciso conhecer, divulgando os poetas modernos estrangeiros através de traduções, algumas da autoria do autor da página; Clássicos Vivos, apresentando textos, também traduzidos, de poetas antigos de épocas e nacionalidades diversas; Subsídios de críticas, ou, Textos pretextos para discussão agrupando excertos de André Gide, Gaëtan Picon, Sartre, Benedetto Croce, Pound, Eliot, Hebert Read, Gertrude Stein e outros; e, ainda, uma antologia de trechos pequenos em versos, exemplificadores da linguagem poética de alto nível, intitulada Pedras de toque. Em uma outra seção, por ele própria escrita - Fontes e correntes da poesia contemporânea, Mário Faustino estudou, em ensaios de grande acuidade crítica, a atividade poética de Edgar Allan Poe, Théofhile Gauthier, Walt Whitman, Charles Baudelaire, Emily Dickinson, Arthur Rimbaud, Gerard Manley Hopkins, Stephan George, William Butler Yeats, Alfred Jarry, Tristan Coribièrie, Jules Laforgue e Ezra Pound. Nessa mesma seção, Futurismo, Cubismo e Dadaísmo mereceram, também, cuidadosa apreciação. Não ficou nisso o seu trabalho de divulgador da poesia universal. Traduziu textos teóricos de vários autores, antes pouco ou quase nada divulgados em nosso país: Gaëtan Picon, Michel Debrun, Hebert Read, Gertrude Stein, com os quais pretendia fornecer pretextos para discussão da arte poética. Asas da Palavra 39 Sem perder de vista uma longa tradição, traduziu poetas antigos, de épocas e nacionalidades diferentes, mostrando o que neles havia de vivo e capaz de servir de lição ao presente. Se as traduções não eram de sua autoria, o crítico, rigorosamente honesto, fazia constar o nome do tradutor, o que prova o quanto se mantinha em dia com o que era feito ou publicado, entre nós, a respeito de poesia. Tradutor, Mário Faustino foi, na linha de Augusto e Haroldo de Campos, mais um recriador, um intérprete, demonstrando sua superior sensibilidade na captação da poesia em língua estrangeira. Escapa às dimensões desta dissertação, a seus propósitos, também, um estudo detalhado de Mário Faustino tradutor de antigos ou modernos. Nem é possível falar com pormenores, de sua atividade de organizador de uma grande Antologia da Poesia Brasileira, antologia crítica, de nossas primeiras manifestações poéticas à fase contemporânea. Sobre esse último trabalho, do qual o incumbira Afrânio Coutinho e que deveria tomar- lhe pelo menos dois anos, assim falou em carta a Benedito Nunes: “Farei a coisa mais bem feita e séria e viva e útil e provocante de minha vida. Não respeitarei convenção nenhuma, a não ser ajudar e interessar o leitor, e fazer absoluta justiça aos poetas” (Carta procedente do Rio de Janeiro, 16.10.57). Dessa futura antologia, foram encontrados o pleno geral e mais uma seleção, bastante numerosa, de poemas de José de Anchieta, Gregório de Matos, Manuel Botelho de Oliveira, Bento Teixeira Pinto, Bernado Vieira Ravasco, Euzébio de Matos e Sebastião da Rocha Pita. No campo específico da literatura brasileira, procedeu a uma cuidadosa revisão da poesia de Jorge Lima, apresentada ao longo de sete ensaios intitulados Revendo Jorge de Lima, e apreciou sob o título geral de Evolução da poesia brasileira, poetas do passado como Anchieta, Bento Teixeira, Gregório de Matos, Botelho de Oliveira, Caldas Barbosa, Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, Silva Alvarenga, Souza Caldas, Basílio da Gama, de todos apresentando excertos das obras. Em outra seção - Poesia em dia - foram apresentados trechos de poetas contemporâneos como: Carlos Diegues, Jamir Firmino Pinto, José Paulo Moreira da Fonseca, Paulo Mendes Campos, Ruy Costa Duarte e Américo Facó. 40 Assim, como muito bem salienta Benedito Nunes, em PoesiaExperiência Mário Faustino destacou a continuidade entre o tradicional e o novo, colocando-os, lado a lado, para, segundo aquele crítico, obter a convergência estética de certos padrões criativos nos quais pudesse assentar uma renovação da linguagem poética (NUNES, Benedito.op.cit.p.10) Asas da Palavra Como as duas atividades mostram mais uma faceta do jovem poeta e crítico, não poderia deixar de mencioná-las. A crítica de Mário Faustino, que o ensaísta e professor paraense ressalta como “a primeira de caráter instrumental e didático entre nós”, é fruto imediato de sua superior atividade poética. Sentindo o sortilégio da poesia, “transformava-se tranqüilamente num ser poético integral” (AYALA, Walmir.23/05/ 64,5/jul./ 64), conforme confessa em carta a um de seus amigos: “Aliás, sinto-me cada vez mais poeta e cada vez menos crítico. E poeta, por oposição ao crítico, é aquele que Aceita tudo, a beleza e o pavor” (RILKE - Carta de Mário Faustino, de 21.03.60). Quando em setembro de 1957, a página Poesia-Experiência completou um ano, Mário Faustino fez uma espécie de relatório, de tomada de posição, de balanço, de autocrítica, enfim, das atividades nela desenvolvidas. Comentando suas diferentes seções, afirmou ser de todas elas a mais importante a intitulada O poeta novo, verdadeiro campo de experiência, o verdadeiro laboratório (atelier livre ) da página. A respeito desta seção, “alguém de muita responsabilidade afirmara ao poeta que, em apenas um ano, graças a ela muito se elevara o nível da poesia inédita em livro no Brasil”. Alguns dos poetas nela apresentados, embora já houvessem publicado um ou dois livros, declararam, por sua vez, que haviam mudado consideravelmente depois da participação ativa na página. José Lino Grunewald, um dos mais ativos colaboradores do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, atuante membro do movimento concretista, publicou seu primeiro poema (O Albatroz) no primeiro número de Poesia-Experiência e, como ele, vários outros, nela estreantes, passaram a colaborar normalmente no mesmo Suplemento. Ainda nesse número de autocrítica, Mário Faustino repete um pensamento de Confúcio, publicado no primeiro numero da página: “Se um homem sabe manter vivo o que é velho e reconhecer o que é novo, poderá um dia ensinar”. As palavras do sábio chinês aplicam-se, perfeitamente ao organizador da página Poesia- Experiência, que de sua arte soube fazer, mantendo vivo o velho e reconhecendo o novo, uma completa docência. Na mesma página de balanço-crítico, o poeta, cuja honestidade intelectual já ressaltei, esclarece sobre sua atividade de tradutor: Traduzir um poema ou um trecho de um poema, de não im- Asas da Palavra 41 porta qual poeta, não quer dizer que conheçamos (ou queiramos dar a entender que conhecemos) a obra inteira desse poeta. Muitas vezes extraímos poemas e trechos de poemas de antologias e de textos críticos. Por outro lado, só traduzimos diretamente do original os poemas em espanhol, francês, inglês, italiano e alemão e algumas vezes com o auxílio de outras traduções em outras línguas. Os textos em latim traduzimos sempre recorrendo, ao mesmo tempo, ao original e a outras traduções. Os textos em grego, - língua da qual sabemos pouquíssimo, quase nada - traduzimos sempre, exclusivamente, com o auxílio de outras traduções. Publicamos, às vezes, o original grego em caracteres latinos, precariamente, apenas a título de ilustração. Estes esclarecimentos têm como fim a destruição de mitos de que talvez sejamos em parte culpados - por descuido ou seja lá que for. Prestando informações sobre a seção Pedras de toque, declara ser a expressão traduzida de touchstone, usada por Mattew Arnold, e acrescenta: Para nós essas ‘pedras de toque’ - que a muitos hão de parecer resquícios ‘parnasianos’ de indevido amor à unidade ‘verso’ são muito importantes: definem nosso gosto, contribuem para a formação de um novo gosto entre nossos leitores mais jovens, servem de termos de comparação para o julgamento de outros poemas, estabelecem performance standards, i.é, padrões de realização e formam ao mesmo tempo, verdadeira antologia de fragmentos excelentes, a nosso ver, da poesia universal. Há, por outro lado, poetas que só subsistem por um ou alguns versos. Seria trair nossa posição estética publicar de qualquer deles um poema inteiro. A pedra de toque é, nesse caso, uma solução, uma opinião, uma atitude, mais o direito de lutar ferozmente para colocar em ação social esse gosto, essa opinião, essa atitude. Para Mário Faustino, a arte foi longa e a vida foi breve. Melancolicamente, o poeta chegou a perguntar “Que será da minha velhice? A esperança é que os amados dos deuses morrem cedo: que me amem os deuses (duvido muito)”( Carta – 21/03/60). Amaram- no, sim. Mário morreu cedo, aos 32 anos de idade. ••• A morte prematura não o impediu de desenvolver um tema único, confundido com a sua própria natureza e o seu entendimento pessoal das coisas humanas, o que, segundo Carlos Drummond de Andrade, é preocupação do verdadeiro poeta. Pelo tratamento dado a esse tema, oferece-nos o poeta uma visão 42 Asas da Palavra do mundo, resultado de uma luta constante com o universo, transformada na mais vã das lutas – a luta com as palavras, verdadeiro desafio que, mesmo acabando na derrota do artista, é “sempre de certo modo uma vitória” (FAUSTINO, Mário. op. cit., p.22). Se um sereno pacto final se estabelecer entre os dois mundos – exterior e interior – reconcilia-se o cosmos, graças ao logos poético. O tema único sofre um sem-número de variações. Exposto de diferentes maneiras, desdobrando- se, parece diverso, múltiplo. Esse desdobramento de uma mesma realidade implica na criação de um mundo rico de múltiplas facetas, universo verbalizado, em que a palavra é soberana única. Matéria prima, é através dela, do ato cosmogônico de escrever que se verifica “a passagem da desordem à ordem, da treva à luz, do caos ao cosmos” (SANTANA, Afonso Romano. Drummond, o guache no tempo. 1972, p. 212) . Graças a uma linguagem poética vivificada e de alto nível, Mário Faustino desvenda-nos sua cosmovisão, através do tema único Vida-Amor-Morte, a que se acham profundamente interligados outros, dele simples variações: Sexo-Carne-Espírito, Pureza-Impureza, Salvação-Perdição, Homem-Deus ou Humano-Divino. O tema, aqui considerado, não é sinônimo de assunto, e sim de obsessão constante que leva um autor a se fixar em torno de determinada realidade expressiva. É o tema no sentido bachelardiano, a que, de certa forma, se filiam os postulados ulteriores de Charles Mauron, JeanPaul Weber, Jean Rousset e Jean-Pierre Richard, o último dos quais considera tema “um princípio concreto de organização, um esquema ou um objeto fixos, em torno do qual tenderia a se constituir e a se desdobrar um mundo”(RICHARD, Jean- Pierre. L’Univers imaginaire de Mallarmé. 1961, p 24) Em Mário Faustino, o tema eterno e obsessivo Vida-Amor-Morte abrange os três elementos confundidos de tal modo que é quase impossível considerá-los isoladamente. Na realidade, constituem a experiência interna do poeta, depois valorizada sob revestimento verbal, mundo-íntimo que se torna palavra e só assim comunicável. A Vida é Vida em toda a sua plenitude, física, moral e intelectual e encontra no Amor a sua maior forma de realização. Ambos têm na Morte a síntese final, porque ela é Vida e Amor também. Esse tema, explorado pela atividade criadora do poietés se constitui um dos melhores elementos para apreender sua visão do mundo, baseada toda ela nessa relação triádica, em que o Amor, como Eros universal, é força criadora que rege o destino das coisas e dos homens, transformando- se na Morte, nova forma de Vida. Por sua vez, a linguagem, a única substancia que, no mundo de Mário Faustino”se manifesta através das coisas reduzidas à condição de metáforas” (NUNES, Benedito. Invenção, Revista de Arte de Vanguarda, jun.1963), confunde- se com a Vida, como se evidencia no poema Vida toda linguagem, em que os versos finais identificam Vida e Linguagem ao Asas da Palavra 43 perfeito e ao eterno Vida toda linguagem vida sempre perfeita, imperfeitos somente os vocábulos mortos com que o homem jovem, nos terraços do inverno, contra a chuva, tenta fazê-la eterna - como se lhe faltasse outra, imortal sintaxe à vida que é perfeita língua eterna. Vivendo uma vida toda linguagem, todos sabem conjugar três verbos - amar, fazer, destruir simples variações da trindade temática básica que assume, na poesia de Mário Faustino, um caráter realmente obsessivo. O artista, ao elaborar sua obra, promove a divinização do verbo e o seu mundo é para nós delineado pela linguagem, totalizado em forma e estrutura. Sexo-Carne-Espírito, outra relação triádica, constantemente invocada, não se desliga da anterior. O Sexo, encarado como princípio de vida, liga-se ao Amor; a Carne associada ao Espírito, vive em constante busca de libertação. A esses elementos vão, por sua vez, unir-se, intimamente, mais outros, os temas dualísticos da Pureza-Impureza e PerdiçãoSalvação. E onde eles se acham comprometidos, nada mais natural do que a procura de uma outra relação dualística – Homem-Deus ou Humano-Divino, coroamento de todo o processo metafórico, já que em Deus tudo se resume, na medida em que é Vida-Amor-Morte e Ressurreição, triunfo total do espírito sobre a matéria. Implicado com esses temas, importante também, está o do Tempo, encarado ora como eternidade, ora como momento fugaz, passagem, mistério que angustia e deixa perplexo o artista. E esse tempo é tempo no conceito heraclitiano, é a durée bergsoniana. Paradoxalmente efêmero e eterno, ilusão e realidade, é tempo devorador e escatológico, contra ele nada valendo, nem mesmo os versos do poeta (“verbos, dardos de falso eterno”), pois seu domínio se estende até “o morto que enterra os próprios mortos”(Sinto que o mês presente me assassina). Essa preocupação com o Tempo evidencia-se no próprio título do único livro publicado em vida do poeta - O homem e a sua hora - título também do poema que encerra a obra então editada. Todos esses temas, entrelaçados, confundidos e unificados, têm um elemento comum a ligá-los – a noção de vida agônica, de luta que não finda e rege o Amor, a Morte, o Sexo, a Carne, o Espírito, a Pureza, a Impureza, Deus e o Homem, enfim, tudo quanto, no mundo é capaz de gerar a angústia existencial, provocar perguntas, esperar respostas nem sempre encontradas. Nenhuma vitória completa, nem total derrota – luta do homem com o 44 Asas da Palavra mundo e do homem com o homem, luta do poeta com o cosmos e sua luta, maior ainda, com as palavras. Quando o escritor tenta transformar qualquer experiência ou ilusão em linguagem, sem dúvida o faz, não para dizer alguma coisa, mas para se dizer, para transformar-se, ele próprio, em linguagem. Fadado, como o Amante, a uma penosa agonia, resultante desse trabalho, o poeta, no caso Mário Faustino, confunde o caminho da salvação com o da perdição e, paradoxalmente, é por este levado àquele. “E é dos elementos impuros da existência – do atol do sexo triunfante ou da salsugem da agonia, que a pureza se desprende” (NUNES, Benedito.op.cit.p.6). Tal como na prosa da vida, amar, fazer, destruir são versos conjugados ao longo da poesia de Mário Faustino. Se o poeta, entrelaçado à figura do Amante e do Herói, chega a triunfar claro e dórico, pouco lhe adianta a vitória. Morre na luta, sem conseguir resolver o problema Vida-Morte, Eterno- Efêmero, simbolizado no enigma dos eclipses do sol, para o qual: ...não temos resposta. E a esfinge desdenha Devorar-nos na paz que a transfigura Após a fértil guerra pela inútil Coroa longeviva ( Vigília) Eneida, ao comentar o aparecimento de O homem e sua hora “livro de versos belíssimos”, refere-se a Mário Faustino “tão menino, tão jovem e já tão seguro da arte poética, tão forte nos mistérios e nos segredos do versejar” (ENEIDA. Diário de Notícias, nov.1955). É realmente impressionante, e percebeu-o bem a cronista, a capacidade do poeta de estruturar os poemas, vários dos quais, creio não exagerar, podem figurar como dos mais perfeitos da língua portuguesa. Artífice e artista, Mário Faustino maneja o verso com superior maestria, consciente do que realiza, tentando fazer da poesia, de acordo com a sua própria concepção teórica “o mais eficaz, o mais perene, o mais exato dos meios de comunicação” (FAUSTINO, Mário.op. cit., p.30). Para funcionar, é necessário que o poema “ viva em função do tempo, do espaço e do homem”- contra ou a favor, nunca indiferente, (id. ibid.p.31). Só assim poderá ser uma força respeitável em face das demais forças sociais. Impossível negar a atualidade dessas opiniões. Ora, o próprio tema central e único da poesia de Mário Faustino - Vida-Amor-Morte - e suas variantes, insere-se no contexto, não apenas poético, mas social da atualidade, já que a famosa tríade literária encontra sua correspondente em outra tríade biológica – Nascer-Crescer-Morrer, inseparável da própria condição humana em todos os tempos. À etapa intermediária – crescimento – corresponde o Amor, única forma de perpetuação do ser humano. No poema Vida toda linguagem, há estes Asas da Palavra 45 versos: Vida toda linguagem – como todos sabemos conjugar esses verbos, nomear esses nomes: amar, fazer, destruir, em que a relação triádica se enuncia em nova ordem, conservando, porém, o mesmo sentido. Não é apenas nos poemas de O homem e sua hora, nem nos Esparsos e Inéditos, reunidos na coletânea Poesia de Mário Faustino, publicação posterior à sua morte, que se encontram os temas referidos. Preocupação constante do poeta, estão presentes nas produções de sua juventude, esparsas em jornais da época, e nas posteriores aos livros editados, estas últimas conjunto a que ele próprio chamou obra-em-progresso convertida em poema-projeto do qual, em carta cujo trecho vale a pena transcrever, assim fala: com ele, poesia e vida minhas deverão seguir paralelas, até que a morte nos separe, till death doeth part us; o que publicarei, de tempos em tempos – digamos, segundo meu plano atual, de cinco em cinco anos, serão porções “montadas” à maneira cinematográfica, eisensteiniana. Essa montagem, ao mesmo tempo que dará ordem, harmonia, à minha poesia, organizará, de certo modo, minha vida, uma refletindo, ou melhor, reflexando a outra. A poesia será assim, um outro plano de vida que, agindo sobre e reagindo a, (sic) minha vida, me possibilitará – espero - o tipo de auto-realização a que aspiro”(Carta a Benedito Nunes, procedente de Nova York, 17. 09.60). A primeira tentativa de realização desse projeto aparece no poema O homem e sua hora, para mim ponto central da poesia de Mário Faustino, sintetizando, de certa maneira, as produções que lhe são, quer anteriores, quer posteriores. Partindo do estudo desse poema básico, tentei uma apresentação ampla da poesia de Mário Faustino, nela destacando a importância dos temas indicados como obsessivos, responsáveis por sua visão do mundo. Para atingir tal finalidade, o meio mais adequado pareceu-me a análise e interpretação de certos poemas, isolados, ou de conjunto de poemas, quando verificadas entre eles semelhanças temáticas ou formais, nexos de ligação e interdependências mais estreitas. 46 Asas da Palavra Além desse propósito maior, foi intenção minha evidenciar a sempre constante tradição renovada na poesia de Mário Faustino, de cuja presença o poema central é excelente exemplo, confirmando o lema da página Poesia-Experiência -“Repetir para aprender, criar para renovar”. Tentei ressaltar, ainda, a permanente conciliação dos postulados teóricos do artista com a sua praxis poética. É claro que, posteriormente, várias outras constatações foram sendo feitas, como, por exemplo, a predileção de Mário Faustino pela metáfora, seu gosto pela construção anafórica a insistência em valorizar substantivos e verbos e em economizar no uso dos adjetivos, mostrando com isso, uma contenção verbal das mais apuradas. Este não é um trabalho polêmico e muito menos uma tese. É uma leitura a que interessa, sobretudo, Mário Faustino poeta, renovador da linguagem artística através da assimilação dos melhores modelos das literaturas portuguesa e brasileira - Camões, Fernando Pessoa, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Jorge Lima, para só citar alguns - e da utilização, nunca servil, de autores estrangeiros, como Mallarmé, Pound, Eliot ou Cummings, que o impressionaram de maneira positiva. Como o poeta escolhido foi, também, um crítico cuidadoso e atuante, sendo impossível nele dissociar totalmente os dois aspectos, procurei fazer o estudo de sua poesia sem perder de vista as formulações do crítico. Teoria e praxis, na sua obra, são inseparáveis como as duas faces de uma mesma moeda. A maneira pessoal e criativa de Mário Faustino usar a linguagem artística, ligada a uma tradição incessantemente renovada, vai aparecendo aos poucos das análises feitas, que mostram, pelo menos assim pretendi, a sua contribuição de jovem poeta para o aperfeiçoamento da mais bela forma de expressão humana. Escrita há já bastante tempo, a dissertação sofreu modificações várias, decorrentes de leituras posteriores à sua defesa e da reformulação de certos pontos de vista, alguns sugeridos pelos próprios examinadores. Basicamente, porém, permanece a intenção original, bem como a divisão em três partes e uma Conclusão, precedidas desta Introdução e completadas por uma parte antológica (Apêndices) com textos do autor, não constantes do livro Poesia de Mário Faustino, e textos sobre o autor e sua obra, escritos por críticos e amigos seus, antes ou depois de sua morte. Resta uma palavra de esclarecimento sobre a abordagem dos poemas, que não foi feita em uma só linha, variando de acordo com a natureza deles, mas permanecendo principalmente estilística, sem desprezo de outros critérios, sempre que me pareceram mais adequados à revelação dos textos. Asas da Palavra 47 A leitura do livro (será que ele vai encontrar leitores?) dirá se foram ou não alcançados os fins pretendidos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AYALA,Walmir. Um depoimento de Mário Faustino: Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 23/05/1964; A Província do Pará, Belém, 5/ 06/1964. BACHELARD, Gaston. La Poétique de la rêverie. 4 eme. Ed. 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Edição comemorativa. 51 1 A expressão “aeromorte” recorda o poema “A Mário Faustino, aeromorto”, de Augusto de Campos, publicado no nº. 3, junho de 63, de Invenção; meudepoimento de 73 está reproduzido em Ivo Barbieri, Oficina da Palavra (Achiamé, R. Janeiro, 1979). C erca de dez anos após a “aeromorte” de Mário Faustino, prestei um depoimento a Mônica Rector e Roberto Pontual sobre o nosso encontro - encontro de poetas: Mário e o grupo “Noigrandes” de São Paulo – no momento marcante do lançamento nacional da “poesia concreta” e da militância de Mário (e através dele, nossa) no “suplemento “ cultural do Jornal do Brasil, em meados dos anos 50. Disse então: Mário Faustino, em todo o período em que participamos do Suplemento, teve uma atuação ímpar a de Crítico de formação poundina, seus trabalhos caracterizavam-se pelo agudo discernimento criativo e pela dinâmica instigação de idéias. Faustino fez o mais ágil e inteligente jornalismo literário que jamais vi entre nós. Como poeta, aberto ao novo, dotado de um manuseio dúctil e sutil das técnicas do poema em verso, capaz do fragmento e da ruptura, mostrou-se sempre generosamente sensível aos experimentos mais radicais da poesia concreta, embora, na sua produção pessoal, conservasse ainda certos elos com a tradição discursiva. É uma grande e inesquecível figura de intelectual e de homem, que não se pode deixar de evocar quando se fala nos anos de atividade do Suplemento do Jornal do Brasil, de quem ele foi um dos principais animadores e o mais constante traço de união entre a equipe do 1 Suplemento e nós outros, de Noigrandes”. Hoje, passados mais de dez anos desse depoimento (1973) e mais de 20 desde a morte de Mário, repetiria, nuclearmente, o mesmo testemunho quanto à grandeza do escritor e à generosidade do amigo, mas já posso distanciar-me o suficiente para emitir sobre Mário uma opinião mais circunstanciada. Diferentemente do meu irmão, Augusto de Campos (que foi, aliás, entre nós, o primeiro a estabelecer contacto pessoal com Mário, no Rio de Janeiro, numa reunião na casa de Mário Pedrosa, da qual nasceu o reconhecimento recíproco de “afinidades eletivas” e o convite para a colaboração no Suplemento em organização do Jornal do Brasil), diferentemente do Augusto, jamais escrevi um artigo sobre Mário. Ao inesquecível amigo e poeta dediquei, sim, um poema IN MEMORIAM, escrito ainda sob o impacto do desastre aéreo que o tirou brusca e inexplicavelmente de nosso convívio, poema hoje recolhido em meu livro A educação dos cinco sentidos (Brasiliense, 85). Esse poema, datado de 28 de novembro de 1962, foi estampado pela primeira vez, se bem me recordo, na mesma edição do Correio da Manhã do Rio de Janeiro, de 15.1.1967, que publicou a versão inicial (ainda com o titulo “Mário Faustino e o Nó Mallarmaico”) do estudo de Augusto, “Mário Faustino, o último Verse Maker”, posteriormente incluído em seu livro Poesia. 52 Asas da Palavra Antipoesia. Antropofagia (Cortez & Moraes, 1978). 2 MÁRIO FAUSTINO E O GRUPO “NOIGANDRES” As relações de Mário Faustino (e de sua poesia) com o movimento de poesia concreta (e em especial com o grupo Noigandres) têm sido enfocadas, quase necessariamente, do ponto de vista da coincidência e copresença no tempo da atividade poética faustiniana (O homem e sua hora, único livro editado em vida do poeta, é de 1955) e do momento de eclosão pública (1956) da poesia concreta (aliás, já anunciada desde 1953 com a série cromo-ideogramática do weberniano “poetamenos” de Augusto de Campos, estampada em Noigandres 2, fevereiro de 1955). Ora, esse movimento poético, perseguindo o seu programa de ultimação do projeto mallarméano de “sintaxe espacial” (Um Coup de Dés) e poundiano (linguagem ideogrâmica como corretivo da linguagem lógico-discursiva), tendeu a chegar ao “mínimo múltiplo comum” da linguagem (ao que, na terminologia da vanguarda plástica e musical, ficaria posteriormente conhecido como “mimimal art”). Evoluiu rapidamente de uma “fase orgânica” (mais complexa e mesmo labiríntica, em termos de “desconstrução” do verso e de multiplicidade de percursos de leitura, fase que vai de 1953 a 1956) para uma outra mais despojada, concentrada, construtivista, altamente sintética, a “fase geométrica” ou da “matemática da composição” (a fase representada no nº 4, de 1958, de Noigandres, que compreende poemas escritos entre 1956 e 1957). Pois bem: os poemas monadológicos (para usar a expressão benjaminiana, com as implicações que suscita), poemas-limite, escritos nessa “fase geométrica”, poemas onde o Oriente sintético-ideogrâmico se encontrava, nos extremos do possível, com uma linguagem ocidental, fonética, digital, analítico-discursiva, forçando-a a converter-se no seu oposto (e assim a reconciliar-se com o eidos não-discursivo da poesia, mesmo daquela 2 produzida na tradição do Ocidente) , foram esses poemas que ficaram como paradigmas da atividade poética dos poetas concretos no período (e mesmo, persistentemente, nos debates da crítica, nas escolhas de antologia, na representação para efeitos de recepção do eu se entendia e se entende pelo designativo “poesia concreta”). E não era para menos. Poemas que representavam uma experiência de limites, que levaram rente ao ponto “zerológico” do silêncio (“zero ao zênit” como me expressei fenomenologicamente à época) a posibilidade mesma de fazer poesia (como em pintura o quadrado branco inscrito no marco branco do quadro, de Maliévitch), e que, por outro lado, tendiam ao anonimato, ao livro coletivo (o Noigandres 4 é a “maquete” desse livro) e à comunicação instantâneo-simultânea, foram esses poemas que mais violentaram a expectativa do leitor brasileiro de poesia (condicionado pela retórica floral e restauradora da Geração de 45) e do usuário da língua (incapaz de desapegar-se da clausura normativa, lógico-discursiva – “logocêntrica” diria posteriormente Derrida – de 3 seu idioma fonético, em nosso caso o português) . Os poemas préconcretos (os poemas da “fase em verso”, escritos nos últimos anos da década de 40 e publicados em meu Auto do possesso, 1950; em O Asas da Palavra Veja-se, por exemplo, na Teoria da poesia concreta (Duas Cidades, S.Paulo, 1975, 2ª. ed.) o estudo de A. de Campos, “A moeda concreta da fala” (1957), focalizando, com apoio em Susanne Langer, a contradição entre a natureza não discursiva da poesia e o caráter discursivo da linguagem de uso literal. O problema foi desenvolvido e elaborado por mim em “Ideograma, anagrama, diagrama / Uma leitura de Fenollosa”, introdução a Ideograma (Lógica. Poesia. Linguagem), Cultrix, S. Paulo, 1977. 53 3 4 J. Derrida, em De la grammatologie, 1967, reconhee a contribuição pioneira do ensaio de Fenollosa sobre o ideograma para o “arrombamento” da “clausura da episteme” ocidental (referindo-se, ainda, no mesmo contexto, à “poética: irreditivelmente gráfica” de Ezra Pound, que, juntamente com a de Mallarmé, constituía “a primeira grande ruptura da mais profunda tradição ocidental”). Cf. Gramatologia, trad. de Miriam Schnaiderman e Renato Janini Ribeiro, Perspectiva, 1973. Sobre o dissídio que essa poesia de estréia representava em relação à “geração de 45”, ver a série de três artigos (“A difícil alvorada”, “Rito de outubro” e “Ritmo e compasso”) publicada por Sérgio Buarque de Holanda entre 27.5 e 12.6.51 no Diário Carioca e na Folha da Manhã de S. Paulo. 54 carrosel, de D. Pignatari, 1950, e em O rei menos o reino, 1951, de A. de 4 Campos, bem como aqueles constantes do nº 1, 1952, de Noigandres) , os pára-concretos ou já concretos da fase “orgânica” (incluídos nos nº. s 2, de 1955, e 3, de 1956, também de Noigandres) foram como que obliterados, “postos entre parênteses”. Sequer se imaginou que os poetas concretos poderiam ter (como o próprio Mário Faustino) poemas inéditos, não recolhidos em livro, anteriores àquele momento “geométrico” privilegiado para termo de comparação (e esses poemas existiam: alguns vieram à luz na Antologia Noigandres nº. 5, 1962, substitulada “do verso à poesia concreta”; outros só foram veiculados muito posteriormente nas antologias pessoais da tríade concreta: no meu Xadrez de estrelas, percurso textual 1949-1974, publicado em 76; no Poesia pois é poesia, 1950-75, de Décio Pignatari, que é de 77; e no Poesia 1949-1979 (VIVA VAIA de A. de Campos, 1979; outros ainda – no meu caso pelo menos – ficaram no limbo dos rascunhos e dos textos inconclusos...). Também não houve preocupação de se levar em conta, já que isto complicava os termos da comparação, os desdobramentos do movimento a partir de 58, que se caracterizaram por um progressivo descompromisso com aquela “fase geométrica” axial (a “fase áurea” ou ‘heróica” da poesia concreta, como entre nós costumávamos dizer) e com algumas estrituras mais programáticas do que operacionais do Plano piloto (síntese das teses do movimento, divulgada com o Noigandres 4, de 53). Ainda em vida de Mário Faustino, no II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, que teve lugar em Assis, Est. de S. Paulo, D. Pignatari relatou o tema “Situação atual da poesia no Brasil”, anunciando o “pulo da onça”: o “pulo conteudístico-semântico-participante” da “poesia concreta”. Do 1º. trimestre de 62 é o nº. 1 da revista Invenção, com a tese-relatório de Pignatari, e do mesmo ano sua “Estela cubana”, publicada com estardalhaço em página inteira do conspícuo, mas liberal, Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo (7.7.62). Em 62 publiquei também o meu “poemalivro” Servidão de passagem (escrito entre junho/julho 61). É do 2º. Trimestre de 62 o número “vermelho”, participante, de Invenção, com a “Estela Cubana” de Décio, fragmentos do Servidão e o agressivo “Cubagrama”, espécie de poema-de-agitação, agit-prop concretomaiakovskiano do Augusto (por sinal, minha primeira tradução de Maiakóvski, diretamente do russo, a do poema dedicado ao suicídio de Iessiênin, foi estampada no nº. duplo, 23-24, julho/dezembro de 61, da Revista do Livro...). A revisão do “poema longo” sousandradino, “Montagem: Sousândrade” (estudo crítico e seleção de textos), também remonta a esse período: desenvolveu-se por seis edições da página “Invenção” do Correio Paulistano, de 18.12.60 a 26.2.61. Não creio que a “poesia concreta”, enquanto atividade poética em progresso, tenha sido recebida nesses mesmos termos e dentro desse mesmo esquema redutor pela inteligência aguda e alerta de Mário Fuastino, um poeta profundamente atento ao antes e ao depois da poesia de seu momento. Muito pelo contrário. Quando se lê o ensaio “concretismo e poesia brasileira” (aliás, “A poesia ‘concerta’ e o momento poético brasileiro”), incluído em Cinco ensaios sobre poesia (Edições Asas da Palavra GRD, 1964), reproduzido em Poesia-Experiência (Perspectiva, 1977), fica evidente o motivo pelo qual o exigente poeta-crítico Mário Faustino considerava os promotores do movimento (o grupo “Noigandres” de S. Paulo por um lado e Ferreira Gullar por outro) como “antes do concretismo, os melhores poetas brasileiros aparecidos depois do Sr. João Cabral de Melo Neto” (sou obrigado a referir esse fato, à parte o que me toca, para poder expor o meu argumento e ficar fiel ao de Mário). O motivo fora explicitado parágrafos antes, a propósito do grupo paulista, mas o raciocínio aplicava-se, “mutatis mutandis”, a Ferreira Gullar: “Nos domínios do verso chegam todos três, rapidamente, ao nível do melhor que já se fizera antes deles no Brasil, freqüentemente, no detalhe, ultrapassando esse nível. Saem dos domínios do verso e tentam novos caminhos poéticos”. Quem se dispuser a ir mais adiante e pesquisar o texto de Mário na sua fonte, a 5ª página do 2º Caderno do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil de 10.2.57, que coincidia com a apresentação da “Exposição Nacional de Arte Concreta” no saguão do MEC-RJ, terá mais uma confirmação desse acurada atenção de Mário Faustino para com a “fase verso” dos poetas concretos que coexiste com o seu também proclamado desinteresse pessoal por uma integração no movimento concretista, apesar da defesa que faz do direito que reconhecia aos participantes da mostra – “e quiçá mesmo o dever, de serem extremistas, combativos, proselitistas, exclusivistas, etc.”). É que, acompanhando essa página, a contígua de nº. 4, com o título “Os poetas ‘concretos’ antes da ‘poesia concreta’’’ , trazia uma “Pequena antologia de poemas pré-concretos de D. Pignatari, H. de Campos, A. de Campos e F. Gullar, selecionada por Mário Faustino”. Adepto do método de “amostragem ideogrâmica” preconizado por Ezra Pound, é fora de dúvida que Faustino considerasse parte integrante do seu polêmico estudo sobre o “momento poético brasileiro” esse exemplário, no qual se ancoravam as premissas de sua desassombrada defesa do movimento que então se lançava (por isso mesmo, será desejável que, numa próxima reedição desse ensaio, o complemento antológico-demonstrativo seja reproduzido em anexo ao texto crítico). Da seleção constam, com as respectivas datas: “Bateau pas îvre” (março de 51) e “Move-se a brisa ao sol final” (fevereiro de 52) de Pignatari; trecho de “O sol por natural”(agosto de 51) e trecho de “Ad Augustum per Augusta” (junho de 52), de Augusto; os meus “Soneto de Bodas” (1949) e extrato de “Thálassa Thálassa” (agosto de 57); “A Sentinela” (trecho, dezembro de 5 52) e o soneto “Neste leito de ausência” (1950), de Gullar. Quando Faustino escreve, no “Relatório e Tomada de Posição” que abre o balanço de um ano da página Poesia-Experiência (SLJB, 6.10.57): “...acho e declaro que a experiência concretista, em sua própria direção, vai bem mais longe, e mais segura, que a minha. (...) Repito: o principal que nos separa somo nós mesmos, nossos seres, nossas condições. Repito: nossa formação muito nos aproxima. Hoje tomamos direções diferentes, a deles bem mais definida, a minha bem menos precisa, amanhã essas direções poderão encontrar-se”, revela um senso agudo da situação, das convergências e divergências que nos uniam e separavam, não num movimento brusco e definitivo, mas num plexo Asas da Palavra 5 Benedito Nunes, na “Introdução” à edição Perspectiva de PoesiaExperiência, por ele organizada, justifica a não reprodução das características da página de jornal no livro pela impossibilidade de uma edição facsimilada. No caso por mim indicado, parece-me que a transcrição do complemento antológico não acarretaria problemas de ordem tipográfica. É uma sugestão. 55 6 Cf. “Lance de Olhos sobre Um lance de dados” (com a tradução de dois fragmentos do poema), Jornal de Letras, R. Janeiro, agosto 58. “Orfeu e o discípulo” foi estampado em Habitat, nº 21, março/abril de 55. S. Paulo. 7 Conferência pronunciada em 28.5.85 e publicada pelo Conselho Estadual de Cultura, Belém-Pará, 1986. sutil de atrações e repulsões, de gradações táticas nas preferências e nas ênfases. A formação comum... Não apenas Pound e a moderna poesia de língua inglesa, não apenas Mallarmé ( cuja influência já se fazia, por exemplo, sentir na temática, no léxico e na espacialização do meu “Orfeu e o discípulo”, de 52, e cujo Coup de Dés eu já traduzira, numa 6 primeira versão, em 1958 , mas tantos outros liames de ostensividade não tão manifesta... Do elenco de poetas que Benedito Nunes refere em sua recente conferência “A obra poética e a crítica de Mário 7 Faustino” , estavam também presentes, no currículo de leitura formativa dos três poetas que em 1952 lançaram a revista-livro Noigandres, Baudelaire, Rimbaud (lembre-se o “Bateau pas îvres”, 51, de Pignatari); Rilke (estudei alemão, ainda aluno de Direito, para lê-lo e a Georg Trakl; encimei com uma epígrafe rilkeana sobre o poeta e o “dom de celebrar” meu “Auto do Processo” de 49); Lorca (quanto o lemos dos “romanceros” de gitano-andaluzes ao Poeta en Nueva York!); Fernando Pessoa (vejam-se, de Pignatari, o “Tosco dizer de coisas fluidas”, de 49, ou o “Eu sou contemporâneo de alguém”, 51); SaintJohn Perse (de que Décio traduziu um excerto de Exil no Suplemento do extinto Jornal de S. Paulo, no começo dos anos 50, e que foi o instigador de algumas das minhas primeiras tentativas de poema de mais fôlego, “A Cidade” e “Thálasa Thálassa”, em 51 e 52 respectivamente). Isto para não falar nos clássicos greco-latinos (“Rumo a Nausicaa” é o título do conjunto de poemas decianos, datados de 49 a 52, que figuram em Noigandres 1; meu “Vinha estéril”, de 49, traz uma epígrafe de Virgílio); em Dante (com Hoelderlin e Lautréamont, presenças explícitas em O rei menos o reino, poemas datados de 49 a 50, de Augusto); na tradição ibérica, em especial Camões e Sá de Miranda (para este último, bastaria mencionar o “O Sol por Natural”, 50-51, Noigandres 1, também do Augusto); na fonte bíblica e na mitológica (elementos constantes na minha primeira poesia, p. exemplo). A numeração, claro, não esgota o que Faustino, por uma lado, e nós outros, por outro, lemos em nosso período de formação e nos anos que precederam ao lançamento público da “poesia concreta”, mas é suficiente para tornar visível a rosácea das convergências... As nossas divergências... Havia sobretudo uma, fundamental. Faustino recusava-se, por motivos respeitabilíssimos de temperamento e vocação (mas nem por isso eximíveis de avaliação crítica, ele melhor do que ninguém o sabia), a submeter-se ao violento processo de “coletivização” e “anonimização” poética, a que nós, de Noigandres, nos sujeitamos voluntariamente. Estávamos persuadidos de que esse verdadeiro “tratamento de choque”, que implicava “dar por encerrado o ciclo histórico do verso”, era necessário para comensurar a poesia ao estágio evolutivo das outras artes (a música e as artes plásticas) e às instâncias da ciência (o espaço-tempo da física einsteiniana; os subsídios da “psicologia da Gestalt”, da cibernética e da teoria da informação, bem como da lingüística). Entendíamos que chegara o momento de reduzir 56 Asas da Palavra as nossas (muitas) diferenças individuais em prol da fundação de uma nova koiné, uma nova linguagem comum sintético-ideogrâmica, de validade nacional e universal, capaz de ultimar (no sentido evolutivo-processual, bem entendido, não no axiológico) o projeto mallarmaico delineado no Coup de Dés (onde a sintaxe é fraturada e o verso disseminado, mas onde o discurso ainda persiste espacejadamente...), projeto que remonta ao “poema universal progressivo” dos Românticos de Iena e, 8 assim, à própria “tradição da modernidade”... . Éramos, num certo sentido, Faustino e nós, além de experimentais, “tradicionalistas”. Púnhamos, porém, ênfases diferentes em cada um desses termos, só aparentemente antitéticos. Quando se fala da absorção de recursos concretistas pela poesia de Mário Faustino, sobretudo na fase “experimental” dos anos 56-59 e nos últimos “fragmentos” (técnicas visuais, caligrâmicas ou ideogrâmicas; jogos permutatórios de combinação lexical ou frasal; vertebrações em eixo como em “o movimento”, 1956, de Pignatari), está-se falando de um diálogo intertextual, de “oficina para oficina”, que os poemas faustinianos travavam sobretudo com poemas já decididamente experimentais da fase “pré-e-pára” concreta e com aqueles da “fase orgânica” do concretismo paulista (não é meu propósito aqui examinar o caso de F. Gullar), poemas onde o discurso era fragmentado, pluridivido, capilarizado, porém, não abolido nem controlado com rigor absoluto (“cronomicrome-tragem do acaso”); onde a metáfora era explodida, mas vigia ainda (veja-se o mellarmeano “O jogral e a prostituta negra” de Pignatari, que é de 49); onde a paronomásia, o trocadilho, a tmese, o recorte parentético minavam incessantemente o corpo, ainda não diamantizado em geometria monadológica, do discurso poético em verso. Onde a temática poderia ser lírica, existencial e até onto-fenomenológica, metafísica (considerem-se os meus poemas de “o â mago do ô mega ou a fenomenologia da composição”, de 55-56); essa “temática-do-ser”, aliás, permaneceu ainda, ao lado da lírico-erótica e da participante, mesmo no auge do momento geométrico de aparente dominância metalingüística: refiram-se, por exemplo, as verdadeiras “cosmogonias portáteis” que são o “terremoto”, 56, de Augusto, ou o meu “nascemorre”, de 58; o erotismo antropofágico do “hombre hambre hembra” deciano, de 57; a sátira engajada do “coca cola”, do mesmo ano, também do Décio, ou, em tom mais grave, a denúncia existencial-política 9 do “greve”, de Augusto, que é de 61 e saiu em Invenção 2 . Trata-se de um diálogo pelágico que a poesia de Faustino entretinha com as partes provisoriamente recessivas, submersas, de um “corpus” de escritura geracional e grupal, cujas cristas emersas (os “minimal poems” da etapa “geométrica” do concretismo) ele respeitava, mas considerava radicalizações extremistas; dessa ostensiva radicalização ele, mais moderado, mais apegado à grande tradição clássica do que à “tradição de ruptura” incessantemente vetoriada para o futuro (embora esta o fascinasse e lhe parecesse irrecusável a existência de uma “crise do verso”, 10 exponenciada pelo Coup de Dés), ele – Faustino – discrepava . Aí o “nó mallarmaico” em que observávamos fraternalmente, ele se enredava (imagem dialética que, se bem me recordo, não o desgostava de todo...). Pois Asas da Palavra 8 Enfoquei o problema e desenhei esse traçado em ensaio recentemente, publicado em duas partes: “Poesia e modernidade: da morte da arte à constelação” e “O poema pósutópico”, Folhetim, Folha de S.Paulo, nºs. 403 e 404, 7 e 14.10.84. 57 9 Em 1961, acrescentamos umPost-Scriptum ao “Plano Piloto” de 58: “Sem forma revolucionária não há arte revolucionária” (Maiakóvski); Faustino, em 14.7.57, criticando o recém-aparecido Canto claro e Poemas anteriores, de Geir Campos, posicionara-se com respeito à poesia dita “engajada”: “O poeta engagé tem de ser um poeta – e um profissional realizado. Só assim poderá cumprir suas obrigações: atacar, desmoralizar as classes dominantes, fornecer da sociedade em que vivemos um diagnóstico convincente e eloqüente, apresentar, reificar, poeticamente, os problemas populares e as idéias evolucionárias e revolucionárias, promover o inconformismo e, se possível ou necessário, a revolta dos leitores ou ouvinte contra o statu quo” (“Da ingenuidade engajada e do engajamento ingênuo”). 10 Não deixava, porém, de reconhecer o trabalho realizado, onde quer que o encontrasse. Assim, na súmula evolutiva da poesia brasileira com que remata sua série de estudos sobre Jorge de Lima (SDJB, 8.9.57), credita ao Grupo “Noigandres” e a F. Gullar “produtos acabados e de alta categoria”, tanto na fase “pré-concretista” como em “diversos poemas concretos das diferentes fases da experiência”. 58 bem: é esse colóquio “submarino”, esse intertexto nem sempre manifesto aos olhos do analista compreensivelmente desviados para seguir o percurso aguerrido da intervenção concretista em sua fase mais disruptora e polêmica, esse subtexto é que urge reconstituir e repensar de modo mais amplo, sobretudo, a essa altura, em que está por se completar um trintênio do lançamento da poesia concreta; em que a reconstituição da trama complexa das inter-relações já pode ocorrer, sem que a inteligibilidade do problema e a equação dos termos da comparação sejam anuviadas pela constatação da sua labilidade e riqueza. O POEMA LONGO E O IDEOGRAMA Faustino deixou consignado também, no mesmo balanço de um ano de sua página no SDJB: “...a experiência ideogrâmica de Pound me interessa, me serve, mais que a experiência ideogrâmica dos concretistas”. E, do seu ângulo tinha razão nessa preferência: não lhe interessava, como opção pessoal, o gesto radical de uma vanguarda empenhada na “abolição elocutória” do individualismo do eu em prol da ultimação do projeto anunciado no poema constelar mallarméano, projeto que envolvia a esperança utópica da fundação de uma nova linguagem comum e da restituição da função comunicativo-social do poeta na sociedade mais justa do futuro (essa preocupação ético-social Faustino também a possuía, porém a equacionava em outros termos). Tinha razão porque, mais comprometido com o passado do que com o futuro (com o presente todos nós o éramos), almejava conciliar a estrutura discursiva tradicional do verso com a sintaxe de montagem propiciada pelo “método ideogrâmico” de Pound e por ele praticada na construção do edifício dos Cantares (que, em 1955, com a publicação da Section: Rock-Drill/ Seção: perfuratriz de rochas, já haviam chegado ao nº. 95). Reação semelhante teve Octavio Paz, inspirada por análogos desígnos quando recebeu o impacto da “poesia concreta”, na segunda metade dos anos 60. Basta ler a carta extremamente significativa que me escreveu em 14.03.68, carta que constitui um roteiro da evolução de sua própria poesia até o seu encontro com a dos “concretos” brasileiros na antologia internacional (An Anthology of Concrete Poetry), publicada em Nova Iorque em 1967 pela Something Else Press, ou melhor, já antes mesmo, à época da redação do ensaio “Los signos em rotación”, de 1964, onde é central a presença do Mallarmé do Coup de Dés e do “espaço que a sua 11 palavra abre” . Nessa carta, pondera Octavio Paz: “Compreendendo que os senhores vejam em Pound um precursor. De toda maneira, assinalo que a poesia de Pound – fundamentalmente discursiva – não utiliza realmente ideogramas, porém descrições de ideogramas. Esta observação se estende ao empego, em certas passagens dos Cantos, de ideogramas chineses verdadeiros: são citações numa língua estrangeira que, para serem compreendidas, requerem tradução para a nossa linguagem discursiva. Nossos idiomas estão no extremo oposto do chinês, e o máximo que podemos fazer é o que os senhores (não Pound) fazem: inventar procedimentos plásticos e sintáticos que, mais do que imitação dos ideogramas, sejam suas metáforas, seus duplos analógicos. (...) A poesia moderna é dis-persão do curso: um novo dis-curso. A poesia Asas da Palavra 12 concreta é o fim desse curso e o grande re-curso contra esse fim. ”. Por outro lado havia a questão da quantidade, do “poema longo” (“Pessoalmente, sempre emprestei grande importância à quantidade em arte”; “... a min só interessa o poema longo”, escreve Faustino em outras passagens do seu Relatório e Tomada de Posição”). Ora, há poema longo e poema longo... Perante um “haicai” de Bashô ou um epigrama da Antologia Grega, ou mesmo diante do Mattina/ M’illumino d’immenso” do Ungaretti de L’Allegria, “The Raven” de Edgar Allan Poe (o advogado da forma breve, do “mimor poem”), com suas 8 estrofes de cinco versos de medida larga mais um refrão cada, não deixa de ser um poema longo... Comparados à Commedia de Dante, The Waste Land de Eliot e o Lance de dados de Mallarmé (aquele poeta a quem costumamos chamar “o Dante da Idade Industrial”), epos sintético em 11 páginas duplas, ambas essas composições, quantitativamente falando, poderiam ser designados por “minor poems” ou poemas breves... 11 12 Cf. Octavio Paz e Haroldo de Campos, Transblanco, Editora Guanabara, R. Janeiro, 1985. Ver, ainda, de O. Paz, Signos em rotação, Perspectiva, 1972. As questões levantadas por O. Paz já haviam sido, de certo modo, consideradas no âmbito da poesia concreta, conforme referi na nº . 5, p. 130, do Transblanco, cit., reportando-me a textos de 55, recolhidos na Teoria da poesia concreta. Por outro lado, também nós estávamos interessados no poema de maior fôlego, mais sustentado, no poema seqüencial. Tentativas, “sketches” nesse sentido são, por exemplo, em meu livro de estréia, “Sísifo” (poema coral, onde ressoa a influência “coloquial-irônica” de Eliot) e o esboço de poema-drama, em três cenas, “Auto do Possesso”. Prossegui experimentando com a forma menos breve, mais desenvolvida, em “A Cidade” e “Thálassa Thálassa” e depois em “Ciropédia ou a Educação do Príncipe” (52), prosapoema, introduzido por uma epígrafe de Joyce, que é o embrião de minhas Galáxias, cujo primeiro fragmento (“formante” inicial) data de 1963. Tinha razão Mário Faustino quando prenunciava: “amanhã essas direções poderão encontrar-se”... Mas esse possível (até que ponto?) reencontro, que a morte prematura de Mário não permitiu que de fato acontecesse, tinha de ser precedido por um momento crítico de afastamento, de desencontro. A radicalização evolutivo-processual da poesia concreta suspendeu provisoriamente essa pesquisa da forma longa ou menos breve (também insinuada, em certa medida, num poema de elaboração mais sustentada, como o “Rosa d’amigos”, do primeiro Pignatari, ou mesmo no poematítulo de seu livro de estreante, “O Carrossel”, datado de 1948; em Augusto, vislumbro-a na organização seqüencial de textos como “Ad Augustum” e “O sol por nautral”). Se bem que – diga-se entre parênteses – sempre nos preocupou o que poderia ser um “poema concreto” longo: o ‘poetamenos” do Augusto e o meu “o â mago do ô mega” são poemas-seqüências; comparado ao “velocidade”, de Ronaldo Azeredo, não seria longo o “cidade do Augusto, “mot total” aspirando ao infinito da frase? E que dizer de meu poema-livro servidão de passagem, na fase “engajada” de 61-62? Que dizer sobretudo da “Estela Cubana”, de Pignatari, cartaz épico, poema tipográfico-mural de múltipla e polissêmica leitura, que Fausto Cunha, à época (o poema foi publicado em julho de 62), considerou “mais antiburguês, mais revolucionário do que todos os Asas da Palavra 59 13 histerismos dirigidos dos meninos da UNE” . 13 Fausto Cunha, “Enxadas ou transistores?”, ensaio recolhido em A luta literária, Lidador, R. Janeiro, 1964. 14 Benedito Nunes, “O projeto de Mário Faustino”, Invenção nº. 3, junho de 63. Do mesmo autor, as introduções às duas edições póstumas da Poesia (Civilização Brasileira, R. Janeiro, 1966) e da Poesia completa/ Poesia traduzida (Max Limonad, S. Paulo, 1985). Mas Faustino estava assaltado do que eu chamaria “impaciência épica” ou, melhor dizendo, “órfica”. Estava empenhado em projetar, ainda que contra o espírito do tempo, um poema longo, quantitativamente voluminoso, à Camões, à Milton, à Dante; ou, mais proximadamente, à Pound. A última formulação desse seu projeto parece estar na carta de outubro de 58, em que anunciou a Banedito Nunes um “programa de trabalho a longo prazo”, cujo primeiro item consista exatamente em “conferir à poesia uma vasta medida, uma dignidade que lhe permita competir com as outras formas de cultura contemporâneas, principalmente a arqui14 tetura e a ciência” . Em 1959, em fins desse ano, como refere Benedito Nunes, “concebe que a obra em progresso deverá acompanhar a sua própria vida – till death doth part us – e constituir-se de fragmentos como os que então passou a escrever”. B. Nunes informa que recebeu os primeiros desses fragmentos (hoje, em sua mais completa recolha – num total de 18, mais o autógrafo “Fidel”, - incluídos na edição Max Limonad) de Nova Iorque, onde o poeta exerceu funções junto a ONU, de dezembro de 59 a junho de 62. Mário estava disposto a dá-los à estampa a cada cinco anos (é ainda o seu devotado crítico e estudioso quem nos ministra essa informação), um pouco à mineira do que fazia E.P. com os ‘drafts’ de seus Cantos. A IMINÊNCIA DO BARROCO E havia ainda o Barroco. O Barroco mediava a vocação de Mário Faustino para o poema longo. Mas este era um ponto que antes nos aproximava do que nos afastava. De fato, num dos textos, quase manifestos, que anunciaram o surgimento da poesia concreta, o meu “A obra de arte aberta” (publicado em 3.7.55 no Diário de S. Paulo e republicado em 28.4.56 no Correio da Manhã do Rio de Janeiro graças a Oliveira Bastos), depois de passar em revista o paideuma constituído por Mallarmé, Joyce, Pound e Cummings, eu concluía, citando uma conversa entre Pignatari e o compositor Pierre Boulez, por declarar-me em favor de um “barroco moderno”, que corresponderia talvez “às necessidades culturmorfológicas da expressão artística contemporânea”. Barroquizantes, do ponto de vista da exploração da metáfora e dos jogos fonoprosódicos, eram a maioria dos meus poemas da “fase verso” e mesmo aqueles da fase “orgânica” da poesia concreta (como o SILENCIO, de 1955, p. ex.); uma constatação semelhante se poderia fazer – creio – com relação a Pignatari, da “Rosa d’amigos” à “Estela Cubana”. Mesmo os poemas da fase “geométrica” foram, no aceso da polêmica entre concretos e a dissidência neoconcreta, acusados pejorativamente de “barroquistas”, por seu caráter cinético, de matriz aberta de leituras (atualizado em partituras por jovens músicos que colaboravam conosco), em contraste com a ascese e o purismo das composições equilibradas e mais estáticas do colançador internacional do movimento, o suíço Eugen Gomringer... 60 Asas da Palavra Mas Faustino entendia por Barroco não tanto a “obra aberta” como o estilo “polimórfico” e polifônico”, a “poesia recargada”, capaz de uma “densa polimorfia de temas de belleza”, para falar como Dámaso Alonso a propósito de Gôngora. Expandia o conceito, para nele abarcar retroativamente Camões ( e neste ponto acertava em cheio, pois o Camões épico “maneirista” que os estudos de Jorge de Sena, publicados entre nós no último quadrimestre de 61, revelava, tem mais a ver com o Brroco na sua acepção histórica do que com a imagem convencional da Renascença, ou, como o exprime tipologicamente Sena, “re15 sulta de uma emoção clássica e de uma expressão barroca”) O resgate da função mitopoética da metáfora, por um lado, e a aspiração à monumentalidade do poema longo, por outro, encontraram no Camões barroco e os n’Os Lusíadas um modelo instigante, que a tradição de nossa língua e de nossa literatura oferecia. Mas faltava encontrar algo mais, um nexo mais contemporâneo, que facilitasse a transição, no plano do presente de criação, da lição do Coup de Dés de Mallarmé e daquela haurida nos Cantos poundianos, do epos agônico e cosmogônico do homem em luta contra o acaso, para o périplo, a “plotless epic” poundiana. Mallarmé, o Mallarmé “obscuro”, era mais assimilável a Gôngora (tantas vezes, desde o simbolismo francês, foi ensaiada essa comparação). Já Ezra Pound, em nome da “claritas”, da “precise definition”, recusava Gôngora e o que entendia por linha turva do barroco (pelo menos em teoria; na prática dos Cantos – monumental ruína alegórica da Modernidade, é uma questão a discutir). Havia uma brecha, e esta não escapara à argúcia crítica de Faustino: no ensaio sobre Camões, constante de The Spirit of Romance, e que Faustino traduziu não por mera coincidência para o SDJB em 2.9.56, um ensaio geralmente negligenciado pelos camonólogos mas cheios de intuições surpreendentes, Pound referira-se ao poeta d’Os Lusíadas como “O Rubens do verso”, elogiando-lhe a “dicção” e a “técnica”, chamando-o “mestre de som e de linguagem”, frisando a “qualidade retórica” da “mente” camoniana, mas, ao mesmo tempo, descobrindo nele, em certas passagens, “simplicidade” e “diretidade”, além de destacar, como centro para o interesse moderno no poema, o episódio de Inês de Castro (que aliás glosa no Canto XXX). O “Rubens do verso”... É este designativo poundiano que Faustino vai recordar no IV dos sete artigos que dedicou a Jorge de Lima em sua página do SDJB (de 28. 6 a 8.9.57). 16 O Camões (e o Gôngora) à mão foram (hélas!) Jorge de Lima. 15 Jorge de Sena, “O Maneirismo de Camões” e “ainda o problema de Camões e os Maneiristas”, Diário de Notícias, R. Janeiro, 10.9.61 e 10.12.61. Vítor Manuel Pires de Aguiar e Silva, em Maneirismo e Barroco na poesia lírica portuguesa, Centro de Estudos Românicos, Coimbra, 1971, refere o livro do professor e investigador espanhol José Filgueira Valverde, onde, já em 58, estaria insinuado o caráter barroco da estética de Camões. Registra, ainda o pioneirismo de Jorge de Sena, que, em 1948, chama Camões “um magnífico Proust da Renascença, ou melhor, do Barroco, ou melhor ainda, do Maneirismo...” Faustino proclama a tese do Camões barroco em seus artigos de 57 (“Revendo Jorge de Lima”), o que lhe dá merecido relevo nesse conjunto de estudiosos. Assinale-se, finalmente, que o ensaio camoniano de Pound, incluído num livro cuja primeira edição é de 1910, toma explicitamente o Barroco, porém enquanto estilo arquitetônico, para enquadrar o seu tratamento de Os Lusíadas (“A corresponding study in architecture were a study of barocco”). Tenho para mim que a Invenção de Orfeu, nessa longa série de artigos que constitui a “revisão” de Jorge Lima, ficou sendo, antes de mais nada, uma “invenção” de Mário Faustino... Estou com Augusto de Campos quando afirma não poder concordar com a estima que Faustino devotava ao poeta e à sua Invenção de Orfeu. Expressando seu ponto de vista com desassombro faustiniano, uma vez qualquer outra atitude, no caso, como diria o próprio animador de “Poesia-Experiência”, incorreria em “farisaísmo”, Augusto classifica o poema de Jorge de Lima de “falso poema longo”, que peca pela “in- Asas da Palavra 61 16 17 Não deixa de ser curioso o fato de Faustino não dar sinal, em seu paideuma, de recepção a Sousândrade. O processo revisional do Guesa foi levado a efeito na página Invenção de dezembro de 60 a fevereiro de 61, período em que Faustino vivia em N. Iorque; mas o poeta mantinha contacto epistolar com amigos no Brasil. O Guesa, muito antes e muito mais do que a tumultuada jorgíada do Rapsodo alagoano, poderia ter servido de ponto de referência brasileiro para o projeto faustiniano. Vasto poema, poema-périplo, misturava o épico, o lírico e o dramático. Em sua dicção barroquizante, há registros de Camões, de Milton e mesmo de Dante. Não é uma das costumeiras “camoníadas” que, de quando em quando, atravancam o caminho de nossa literatura com passo de paquiderme, desde o duro Caramuru. Ao contrário. O Guesa, publicado em drafts desde 1868, acusando embora a vocação romântica para o poema-viagem, não é uma empreitada regressiva. Apesar de seus desníveis, de suas inegáveis descaídas, mostra-se mais arrojado na invenção da forma do que seu modelo byroniano. Nas secções infernais (“Tatuturema” e “O inferno de Wall Street”) chega a antecipar certas técnicas de montagem e citação polilingüe, bem como algo da temática usurofóbica do Inferno financeiro dos Cantos de Pound. “Se algum poema faz jus ao título de epopéia da América Latina, é este” (escreveu a respeito o resenhista de The Times Literary Supplement, Londres, 24.6.65). Cf. “Mário Faustino, o último Verse Maker”, cit. 62 consistência de organização e pela falta de rigor”, tachando-o de “sucessão mal-ajambrada de poemas subjetivos diluídos numa enxurrada 17 camoniana, com raras ilhas de poesia realmente nova. O próprio Faustino autorizaria em parte esse severo julgamento ( que, repito, é também o meu). Nunca Mário Faustino elogiou tanto um autor e nunca, talvez, pôs a nu, de um só autor, tantos defeitos. Percorrendo os juízos emitidos por Faustino a respeito de Jorge de Lima, encontramos expressões e trechos assim: D eixou a Invenção de Orfeu, que contém alguns dos mais altos e dos mais baixos momentos da língua poética lusobrasileira. O poema é uma mêlée péssimo-ótima (em “A poesia ‘Concreta’ e o momento poético brasileiro”); “Esse grande Jorge de Lima (...) único no Brasil a ter possuído o tom e a medida do epos, é para nós, com todos os seus pavorosos, arrepiantes defeitos, o maior nome de nossa poesia” (de “Revendo Jorge de Lima”, donde extrairei todas as citações seguintes); “Na primeira parte, por exemplo, entre coisas de incrível mau gosto...”(falando dos “trabalhos de adolescente” do poeta); “ No mais, trata-se apenas de longa série de poemas de todas as influências, embaraçados caminhos cruzados onde mal importa ao autor a construção da unidade poema, onde pouco se lhe dá emitir alguma linguagem poética” (sobre A túnica inconsútil ); Há no livro coisa insuportáveis, como a insistência em explorar temas bíblicos sem nem de longe igualar (muito menos acrescentar-lhes algo) as incomparáveis qualidades literárias de boa parte do Antigo e do Novo Testamento (...) ou como as fatigantes tentativas de mitificação da figura do poeta” (idem); “A obra inteira de Jorge de Lima, Invenção inclusive, talvez se explique pela insistência do poeta épico vocacional diante da provável impraticabilidade do gênero em nossa época”; “... as tenebrosas quedas de sempre...”; “Por toda parte, a necessidade de emprestar uma forma à massa amorfa que foi quase sempre – e continuaria a ser – a linguagem de Jorge de Lima”; “Em Jorge de Lima há o primado quase absoluto da criação sobre a organização. Pouco lhe interessa a estrutura de seu poema no todo ou em partes”; (o leitor) “verá os enormes erros e os enormes acertos de Jorge; notará, desgostoso, seu descuido, sua falta de rigor; mas, verá, afinal, que o poema, como boa coisa barroca, é um universo que justifica, pelo todo, os seus próprios monstros, as suas próprias aberrações”; “Os grandes versos quase sempre de mistura aos péssimos”; “... um desespero de mágico incapaz de fazer o coelho sair do chapéu...”; “ O XXIV é um emblema de toda a Invenção: ótimo – péssimo”; “...Péssimo verso, péssima prosa, nada de poesia. Ó diretor desse filme podia ser bom, os takes talvez tivessem sido bem tomados – mas a montagem falhou. Relaxamento, falta de rigor”; “Por altos e baixos, trancos e barrancos, sigamos adiante”; “O poema XXXII, o mais longo deste canto, é uma péssima salada. É difícil encontrar coisa séria, publicada, de tão ruim gosto, em português ou em qualquer outra língua”; “Tudo isso, note bem o leitor, de mistura ao que há de pior na língua”; “O poema XX deste canto é uma das piores coisas que já lemos – ou quase, que não lemos, de quase ilegível”; “E vem depois (VI) mais um desses longos poemas em que Jorge brinca de perde-e-ganha. Perde quase o tempo todo: ornatos, ornatos, ornatos, jogados sobre um vácuo de estrutu- Asas da Palavra ra. Barroco? Uma boa desculpa – que, à la longue, fatiga”; “Em XIX, Jorge homenageia Dante, com versos que fariam bocejar o esteta de De Vulgari Eloquio”; “Do Canto VII (“Audição de Orfeu”) em diante, decai sensivelmente a Invenção: acentuam-se as deficiências e diminui a eficácia do poema (...) Uma série de poemas à maneira de solilóquio dramático (...) simplesmente líricos, autobiográficos, auto-reflexivos, autoapologéticos, autopiedosos... mélange adultère de tout... Páginas e mais páginas de pouco interesse até para um psicanalista. E geralmente má dicção, gagueira, pé-quebrado, ruim versificação, incapacidade de desenvolver e sustentar a frase musical, o jogo metafórico, a seqüência lógica, a sintaxe geral...; “É o eterno perde-e-ganha jorgiano; a ausência de rigor; a falta de autocrítica; fobia desses preciosos utensílios literários que são a borracha-apagador, o lápis vermelho, o retrocesso das máquinas de escrever, a cesta de papéis”. A enumeração foi longa, mas precisava ser eloqüente. Faustino hesitava, avançava e recuava, dava lá e tomava cá. Sua consciência crítica, seu discrimen apurado tomavam distância de recusa diante da “massa amorfa” da poesia de Jorge de Lima. Contextualiza sua avaliação: “pelo menos neste momento de nossa própria evolução, é Jorge de Lima o maior, o mais alto, o mais vasto, o mais importante, o mais original dos poetas brasileiros de todos os tempos”. A desmesura do elogio (que antes kitichiza o objeto nomeado, do que o promove) o põe em guarda: ressalva que na arte há “muita coisa de lúdico, logo de esportivo”, assinala as virtudes provocativas da “emulação”. Mais adiante, salienta o caráter provisório de seu posicionamento: “Estabeleceremos, apenas, de saída, algumas posições, que ocupamos agora, mas que amanhã poderemos abandonar. Estamos sempre dispostos a mudar de idéia”. De fato, Jorge de Lima e a Invenção não sustentam as comparações armadas pela militância faustiniana; antes, ficam esmagados por elas (quando ele dá vantagem a Jorge de Lima sobre Drummond e João Cabral; quando ele o põe ao lado de Camões como “os dois pontos máximos da língua”; quando diz da Invenção que é “o melhor poema da língua, afinal de contas, melhor até mesmo talvez que Os Lusíadas”, quando eleva o poema jorgiano, com seu “vácuo estrutural”, ao nível de uma obra-prima, esta sim micrologicamente estruturada e sempre mantida no mais alto nível da invenção de linguagem, como o Grande sertão de Guimarães Rosa). O fato é que Mário Faustino precisava “reinventar” a Invenção de Orfeu, sabendo muito bem que esta sequer era um poema contemporâneo, moderno, mas antes um poema em regresso: “Pena é que Jorge, nesse e noutros poemas, tivesse de voltar atrás no tempo: não quis ou não pôde fazer uso de uma temática contemporânea. É um poema imitativo, se bem que numa linguagem poética atual e dele, Jorge o verso branco é de Milton, o espírito é de Virgílio, o todo é uma volta a Camões”. Capaz de desmistificar o “mito Neruda” (ver texto publicado no SDJB de 13.4.58, onde Faustino afirma: os Nerudas remanescentes de Residencia en la tierra, “em particular o do Canto General, sempre nos pareceram maneiras, pouco diversas entre si, do mesmo mau poeta”), não foi ca- Asas da Palavra 63 paz de fazer outro tanto com Jorge de Lima. E a Invenção de Orfeu, de 1952, outra coisa não é, a meu ver do que a variante brasileira do mesmo magna retórico que deu o Canto General nerudiano de 1950; ambos poemas cumulativos com mais desníveis que altitudes, desarticulados que jamais se propuseram a questão da estrutura base para quem quer que intente um epos ou mesmo um poema cosmogônico-órfico no mundo da modernidade “abandonado pelos deuses”: do Coup de Dés de Mallarmé, de 1897, a The Wast Land de Eliot ou aos Cantares de Pound, ou, nosso âmbito latino-americano, ao Altazor de Huidobro e ao mais recente Blanco de Octavio Paz; aliás, não foi por a caso que Murilo Mendes pensou em Canto Geral, como um dos possíveis títulos a dar ao voluminoso livro jorgiano, só o rejeitando uma vez que estava “prejudicado por um livro de igual nome, saído há pouco, de Pablo Neruda”. Mas Mário Faustino precisava do “poema longo” de Jorge, mais como fantasma, paradigma ideal, do que como texto real (já idealizara uma espécie de super-Pound brasileiro,18 feito da soma dos três Andrades: Mário, Oswald, Carlos Drummond) . Era a conditio sine qua non para sonhar o seu projeto de poema, vasto, de poema-vida (não é possível avaliá-lo, “presumir do futuro”, pelos poucos fragmentos que dele restaram, já que a morte o impediu de completar mesmo o primeiro lustro de sua safra; mas é lícito admitir que, num certo sentido, seria poundianamente intentado contra Jorge de Lima, pois Faustino era tão cioso da quantidade como da qualidade; perseguia ferozmente a coesão do seu caos em cosmo, prezava acima de tudo a competência e a eficiência do poeta sério e não temia a autocrítica e a cesta de papéis). Acredito que se tivesse sobrevivido; se os fados lhe houvesse concedido tempo; se houvesse podido desprender-se do fundo placentário de algumas obsessões e recorrências (fixações temáticas já quase estilêmicas; nostalgias de retorno); se lhe houvesse sido dado o prazo necessário para concatenar sua vontade arquitetônica de estrutura com sua voragem mitopoética de metáfora, poderia quiçá ter chegado, no plano do poema-vida, a alguma síntese original entre a vocação para o poema longo e o desejo de concentração da linguagem e da coisificação da palavra numa imagética resgatada “da fácil carnadura do discurso” (como me expressei em outro lugar). Algo, talvez, no gênero do Blanco de Octavio Paz, poema erótico e reflexivo, metalingüístico e mitogenesíaco, barroquizante e calculado. Mas esse prognóstico só seria verificável na “memória de Deus” (como diria rabinicamente o jovem Walter Benjamin), que é absoluta e onisciente. Não necessitamos, porém, dessa conjectura quase teológica para dizer da importância e da “sobrevida” da poesia de Mário Faustino. A OBRA “IN FIERI” E A OBRA FEITA De fato, não é preciso levar a cabo a tarefa impossível de concluir e arredondar o projeto inconcluso de Mário Faustino, nem é praticável referir-se axiologicamente à sua miragem, para apreciar e valorar a obra extante do autor de O homem e sua hora. 64 Asas da Palavra Observou judiciosamente Benedito Nunes, a quem todos devemos ensaios pioneiros, de devotamento e lúcida penetração, sobre o currículo faustiniano de “poesia-e-vida”: “... se não teve a poesia que quis e que podia fazer, conseguiu ter, a despeito da morte prematura, uma verdadeira obra poética, de valor incontestável”. E mais: “Não podemos e não devemos julgar o poeta Mário Faustino por aquele seu projeto, certamente grandioso, que cedo, muito cedo, interrompeu-se (...) O essencial é, precisamente, levar em conta aquilo que Mário Faustino acabou – a sua Obra concretizada e não a sua Obra sonhada” (trechos do Prefácio à edição Civilização Brasileira da Poesia, reiterados na introdução à edição Max Limonad, de 85). 18 Cf. Ivo Barbieri, o cit. Na nota 1: “Dando um balanço na situação geral da nossa poesia, chegou a sonhar com um Pound nacional que fosse os três Andrades ao mesmo tempo: Mário, Oswald, Carlos”. Augusto de Campos, imbuído de espírito crítico verdadeiramente faustiniano (“Faustino não toleraria o elogio fácil, como não aceitaria também (...) a piedade:’piedade que poupa tanta coisa vil’’’), já fez, com empenho de objetividade, um balanço do percurso e do legado poético desse inesquecível companheiro de geração, que foi “o vate, o bardo moderno, ávido de magia e profecia, esconjurando com metáforas os descaminhos do amor, da frustração e da morte” (expressões colhidas no ensaio “Mário Faustino, o último Verse Maker”). No essencial, subscrevo esse balanço. Sublinharei, apenas, de minha parte, que, em todas as etapas, Faustino deixou pontilhado seu percurso, que a morte bruscamente irrealizou, com realizações admiráveis. Desde os “Dois motivos da rosa”, de 1948, destacados com acerto por B. Nunes (ah o topos da “rosa”, que obsediou nossa geração em seus anos de juventude: o meu “rosa morta ao rés do sonho”, de 48; a “Rosa d’Amigos”, de 49, do Décio ainda na casa dos 20...); passando por aqueles “hits antológicos”, como os denomina Augusto (“Vida toda linguagem”, “Mito”, “Sinto que o mês presente me assassina”, “Inferno, eterno inverno”, “O Homem e sua Hora”); seguindo por vários exemplos de sua fase “experimental” dos anos 56/ 59 (onde repontam outros hits memoráveis, do porte de “Cavossonante escudo nosso”, “Ressuscitado pelo embate da ressaca” ou “Ariazul”), até os últimos fragmentos, cujos momentos-ápice estarão, talvez em “juventude” (como as suas recorrências de “mar” e “maravilha”, de “tempo” e “vento”, no entusiasmo do “estar vivo”) e “Espadarte em crista de vaga”, onde, como diz muito bem Ivo Barbieri, o poeta “aliou ao virtuosismo metafórico o equilíbrio arquitetônico da composição enfeixando na associação Cristo-Mar a ironia mística que afetou a últi19 ma parte da obra inacabada” “O Tempo” – escreve Borges no Prólogo à sua Nuevas Antología Personal – “acaba por editar antologias admiráveis”. E acrescenta: “nueve o diez páginas de Coleridge borran la gloriosa obra de Byron (y el resto de la obra de Coleridge)”. Alguém poderia continuar glosando: meia dúzia de sonetos sibilinos de Nerval minam para sempre o majestoso e imponente edifício da obra poética de (hélas!) Victor Hugo... Asas da Palavra 65 19 No caso de Mário Faustino, a morte prematura antecipou-se à tarefa antológica do tempo. Seu professado amor pela quantidade, pelo poema de “vasta medida”, foi inesperadamente “copidescado” pelo destino: sobrou, incorruptível, a qualidade, o vigor de sua poesia, rastilho de cintilações, ora nas peças isoladas que perfez, ora, esparsamente, em resgatados fragmentos interruptos. op. cit. Também com razão alerta-nos Benedito Nunes contra a “aparência de frustação” que a Morte precoce faria pesar sobre a obra de Mário. Aparência. Mera aparência. Afinal, bem examinadas, a completude, a perfeição, são nostalgias clássicas, substancialistas, de harmonia e reconciliação, num mundo como o nosso, laico e dilacerado, só habitado pelas alegóricas ruínas benjaminianas (traço insinuante da persistência moderna e contemporânea do Barroco...) Num certo sentido (num sentido admonitório, que conjura as veleidades e convida à reflexão), prefiro recapitular as palavras de Gottfried Benn, na sua conferência de 51, Probleme der Lyrik (Gottfried Benn, o nietzscheano poeta das Destillationen, fascinado plo “complexo ligúrico”, um poeta que partilhava com o nosso Faustino “uma amizade pelo azul” / eine Befreundung für Blau): “Nenhum, mesmo dentre os maiores líricos de nosso tempo, deixou mais do que seis a oito poemas perfeitos, os restantes podem ser interessantes do ponto de vista da biografia e da evolução do autor, mas aqueles que encerram em si mesmos e de si irradiam um fascínio plenamente duradouro são poucos – e no entanto, para esses seis poemas, trinta a cinqüenta anos de ascese, sofrimentos e luta”. S.Paulo, out./nov.86 Mito Os cães do sono ladram Mas dorme a caravana de meu ser; Ser em forma de pássaro, Sonora envergadura Ruflando asas de ferro sobre o fim Dos êxtases do espaço, Cantando um canto de aço nos pomares Onde o tempo não treme, Onde frutos mecânicos Rolam sobre sepulcros sem cadáver; E sonho outros planaltos Por mim sobrevoados na procela; E sonho outras legendas Em mim argamassadas pelo vento, Trabalhadas em mim por mãos sem tacto; E sonho o que foi parco Mas meu e por que raro foi perdido, 66 Asas da Palavra Vida Toda Linguagem Vida toda linguagem, frase perfeita sempre, talvez verso, geralmente sem qualquer adjetivo, coluna sem ornamento, geralmente partida. Vida toda linguagem, há entretanto um verbo, um verbo sempre e um nome aqui, ali, assegurando a perfeição eterna do período, talvez verso, talvez interjetivo, verso, verso. Vida toda linguagem, feto sugando em língua compassiva o sangue que criança espalhará – oh metáfora ativa! leite jorrado em fonte adolescente, sêmen de homens maduros, verbo, verbo. Vida toda linguagem, bem o conhecem velhos que repetem, contra negras janelas, cientilantes imagens que lhes estrelam turvas trajetórias. Vida toda linguagem – como todos sabemos conjugar esses verbos, nomear esses nomes: amar, fazer, destruir, homem, mulher e besta, diabo e anjo e deus talvez, e nada. Vida toda linguagem, vida sempre perfeita, imperfeitos somente os vocábulos mortos com que um homem jovem, nos terraços do inverno, contra a chuva, tenta fazê-la eterna – como se lhe faltasse outra, imortal sintaxe à vida que é perfeita língua eterna. Asas da Palavra 67 E sonho o que foi vasto Mas de alheio me pesa sobre os ombros, Globo de ásperos polos, Continentes de medo E mares onde o sangue é trilha e nódoa; Deitado no vitral Da noite intensa, exata, Assim um Fazedor empunha o cetro Ornado de serpentes; Assim refaz o que foi feito à sua Augusta semelhança Contrafacção de um gesto mais difícil Sonâmbulo e remoto – contundente; E enquanto nuvens quedam De incenso carregadas, de semente, Levanto-me e estrangulo O ato de nascer que me divide Em morna derrisão Disforme difidência de um presságio; O Fazedor anula O inferno que o refina E alçando-se ao poente mais seguro Mergulha na verdade Acesa que o derrota e reduz ao Dormente ser de vidro e cor que sonha; Os cães do sono calam E cai da caravana um corpo alado E o verbo ruge em plena Madrugada cruel de um albatroz Zombado pelo sol 68 Asas da Palavra Asas da Palavra 69 70 Asas da Palavra MÁRIO FAUSTINO POETA SACRÍLEGO Pedro P. de Assis Doutor em Poética, UFRJ Professor de Literatura, UFPA Asas da Palavra 71 N um desenvolvimento mais largo, digressivo, e evocativo, que me dei o azo e prazer de fazer, malgrado o pesar jacente, do Réquiem em prosa e verso para Chico Mendes que eu já antes publicara em preliminar versão para jornal (O Liberal, 10/01/2000, data-efeméride em que o velho mestre coroar-se-ia da auréola dos novent’anos de vida, e bem lida, ensinada e vivida poesia), mas que, tendo ficado o texto assim muito extenso para sair inteiro numa obra coletiva, tive de cortá-lo em grande parte na versão editada no belo livro-álbum O amigo Chico, fazedor de poetas (organizado por Benedito Nunes, Belém, Secult, 2001), álbum-monumento com o qual a Secretaria de Cultura do Estado do Pará homenageou e perpetuou a figura humana e intelectual do nosso grande professor de história das literaturas e da arte, havia eu então concebido e desenvolvido largamente, em sua memória e celebração ao lado dos vultos e das líricas lembranças de poetas amigos seus, também já mortos, imaginados a recepcioná-lo jubilosamente, lá no alto, no silêncio eterno desses espaços infinitos, como gostava ele de vislumbrar e pressentir , uma espécie de réquiem líterorecitativo, porém laico e elogioso, glorificante e não apenas lamentoso, e afinal transformado, digamos, numa alegórica e ampla fantasia funeral: tentando destarte compor, até de um certo modo ou arranjo musical em sete partes ou movimentos, à semelhança do gênero litúrgico-sinfônico imitado, uma longa homenagem póstuma, de conteúdo e um certo cunho estético-literários, para mais condizente e condignamente evocar a personalidade e a ação pedagógica do nosso grão-mestre da grande literatura e esteta completo ele-mesmo. Entremeando ali, desse modo, ao meu próprio e prosaico discurso evocativo de sua vida e de sua morte, e das cerimônias simples, mas significativas e tocantes, das suas exéquias (relembradas a partir do rito eclesiástico-acadêmico da solene e afetuosa missa de réquiem, do sétimo dia, celebrada por sua alma e seu espírito, em meio a hinos, odes, antífonas, epicédios, elegias, preces, cânticos, litanias e lamentos, de música e poesia, harmoniosamente), e por entre as recordações biográficas inseridas naquela pretensa partitura discursiva, toda uma tessitura de escolhidas citações e referências literárias, artísticas e filosóficas, dentre as suas grandes e altas predileções intelectuais. E intercalando em especial, como compassos maiores desse rememorativo concerto de imagens e palavras, o relato de um episódio esquecido ou despercebido, porém marcante do ato mesmo do seu sepultamento (como o recordaremos e interpretaremos) e, de entremeio a essa frisante recordação, uma antologia de versos lírica e dramaticamente incidentais ao nosso texto, colhidos na obra dos seus mais próximos amigos poetas já mortos (além de outros poetas de sua eletiva afinidade), todos eles, em maior ou menor escala de tempo, arrebatados prematuramente em relação à sua própria morte ora por nós em versos deles conjurada. O referido e recordado episódio, constituído por um insólito even72 Asas da Palavra to advindo em meio ao préstito comum do seu enterro, no meio do caminho de sua jornada última para a sepultura, envolveu, como aqui ao longo e ao final se verá, o último preito de admiração ou mesmo de sincera veneração, prestado por um grupo fraterno de alunas e amigas suas, todas igualmente consternadas e órfãs de sua partida, mas que ao templo do túmulo serenamente o levavam, e que, apesar de ali exalçarem-no, como veremos, ao alto empíreo, ao assento etéreo onde subira, dessa terrena e grande tristeza ficavam cá na terra sempre tristes. Foi recordando e assim melhor compreendendo aquele episódio insólito e simbólico, também lírico-dramático, da sua hora mortis (e foi recorrendo, em sua homenagem e memória, àquele comboio de cordas que nas calhas de roda / gira, a entreter a razão), que em nosso texto reconstitutivo e rememorativo, fazendo e deixando correr a recordação e a interpretação alegórica daquele também mágico-elegíaco gesto de homenagem que além disso decorreu a um só tempo de um certo impulso lírico e um certo ímpeto épico de exaltação, traduzindo-se imediata e diretamente, como se verá, na força moral e física dos braços e das mãos, daquelas boas e fortes amigas, a suportarem naquele ato e momento o muito pesar da alma e toda a dor do coração, num brado gestual eloqüente e incomum entre mulheres em nossa cultura e em tais e tão pesarosas ocasiões , pouco a pouco vieram então surgindo, em meio ao nosso discurso de requiem mas também de gloriam, como natural ressonância e vivas reminiscências no interior da evocação literária do velho amigo e professor, e a par e passo com aquelas imagens efetivamente reais, relembradas, poemas inteiros e versos especiais daqueles seus mais chegados e mais jovens amigos por ele mesmo de certo modo feitos e aclamados poetas (ele, o virtual e virtuose fazedor de poetas), os quais, como dissemos, bem antes da sua morte já eram mortos, e tivera ele por muito tempo de vê-los e revê-los (relê-los!) dolorosamente sepultos na palavra e na herma dos seus redivivos poemas. Poetas e amigos, assim, que lá nos jardins de outra arcádia mais amena, extraterrena, estavam e vinham juntos, magicamente, jubilosamente, na aura literária de nossa recordação e imaginação, a conclamá-lo (como os ouviremos pelas vivas vozes dos seus incidentes versos) para reunir-se a eles e imortalizar-se, transcendentalmente, na eterna irmandade dos poetas mortos. Estranhamente, ou antes, misteriosamente, daquele mysterium fidei ou mysterium verbi de que participa o mistério da poesia, fautora e enunciadora do sagrado (sobretudo o fogo sagrado do espírito, a sarça de fogo da palavra, fogo-flama roubado miticamente aos deuses, ao próprio Zeus, portanto e por excelência o sacrilégio original; fogo preservado e sempre reacendido, poeticamente mais do que prometeicamente, pelos homens enquanto lúcidos ou iluminados poetas: O som desta paixão acende o fogo / eterno que roubei, que te ilumina / a face zombeteira e me arruína), misteriosamente, pois, foi em meio ao diferente e vário ressoar daquelas vozes (não, sobrenaturais, mas super-reais: todas históricas, todas catárticas, todas patéticas, e todas poéticas, todas utópicas, todas melódicas, todas uníssonas) que de repente percebi e entendi claramente, isto é, ouvi, escutei e compreendi de um golpe, de modo heurístico, na própria gama verbal e semântica dos versos ou dos poemas de um só deles, como num heureka da lembrança e Asas da Palavra 73 da leitura, que uma daquelas vozes (já há pouco ouvida em sua risada zombeteira, sarcástica, sacrílega), precisamente a do mais jovem dos quatro poetas e amigos mortos, soava aos meus ouvidos e na própria consonância, na significância do texto voz especialmente ressoante naquele contexto funeral e cemiterial em que se evocava uma celebração ritual do sagrado em si, e eminente, que é a própria entidade e majestade da Morte , soava ali e reincidia, claramente, com um tom de agudo, profundo e marcante, deliriante sacrilégio, radicalmente poético, na sua expressão blasfema e bela, herética e cínica, sardônica e serena, de tudo aquilo que há ou possa haver de mais eminentemente sagrado na experiência humana: a sacralidade do próprio Homem, único ser a quem o Ser con-cerne, essencialmente implicados um com o outro. O que a tornava e torna, a essa voz rompente, rampante, e fundamentalmente heresíaca por conseguinte, como iremos ver e ouvir em algumas das suas mais fortes pronunciações, ainda mais autêntica e profundamente sacrílega, quer dizer: a própria e pura contra-dicção do sagrado, ir-rompendo a e da própria cristalização do espírito sacralizado. Tal voz assim, sonora e ousada, ressoante e irônica, já se percebe, era e só poderia mesmo ser a do poeta predestinado e fatalizado de O Homem e sua hora. 74 Com efeito, percebemos e verificamos, quanto mais versos seus ressurgiam e ressoavam na evocação do velho amigo e mestre, e com a imediata e seguida leitura ou releitura então feita desses e outros poemas seus, que se trata não só de um poeta malsinado pelas musas e pelos fados (como em tantos versos-vaticínios se auto-sentenciou ele), nem tão-só de uma poesia amaldiçoada ou mal-entendida em sua e nossa época (morto o autor das heresias e blasfêmias criminalizadas, a penalização recairia então sobre a própria obra, interdita, escoimada, “queimada” de certa forma, até certo ponto e até certo tempo, nos arraiais oficiais, nos meios ortodoxos ou acadêmicos mais conservadores), mas sim de um prototípico, inaudito e completo poeta sacrílego, num sentido essencial; e radical, isto é, que vai à raiz da questão, à raiz do sagrado na própria raiz da linguagem (sacri + legiu), para erradicar hereticamente (criticamente) o que possa haver de necrose do sentido em todo discurso sacralizado (mítico, religioso, poético, estético, político, filosófico etc.), de modo a restituir a força de sentido do sagrado à e na linguagem, até à raiz etimológica mais originária do sacrilégio, da palavra sacrílega, própria da poesia, naquele ínsito sentido mallarmaico de dar um sentido mais puro às palavras da tribo. Nesse sentido, toda verdadeira poesia é heresia, por natureza e definição, cada poema no seu grau próprio alcançado, uma vez que lhe cabe e compete (é da sua competência mesma, lingüística, poética e histórica) fazer a crítica das linguagens cristalizadas, sacralizadas, necrosadas, e assim a cada vez reativar a krísis da linguagem, fazer a haíresis interna do próprio discurso poético. Nosso poeta ele-mesmo, por sinal, já num dos assinalantes poemas iniciais de sua obra in fieri, aquele heráldico e hermético Brasão d’armas lúcidas e da rosa transfigurada, insculpiu em ouro e luz as suas infensas insígnias, a sua divisa crítica, o seu lema de luta, o desafio inerente e erístico de sua poesia: Nasce um verso rampante, um brado, um solo / de lira santa e brava minha lei. Essa a lei originária da linguagem, dura lex (legis); essa a lira órfica da poesia, que traz inscrita de origem na sua própria e brava palavra aquela Asas da Palavra santa ira, mítica e histórica, de todas as fúrias sagradas, todos os autênticos, radicais e legítimos sacrilégios. Mas não se trata, nem poderia tratar-se, de considerar Mário Faustino meramente um poeta herético, no sentido mais tradicional e comum do termo, como o foram todos os poetas ou escritores ou artistas réprobos, da nossa tradição, condenados ao fogo do inferno ou anatematizados pela língua de fogo de todas as santas inquisições, contudo a seu modo ou de algum modo “religiosos” quase todos, doutrinários ao contrário, crentes à rebours (ainda que depois arrependidos ou até retratados), que por isso mesmo sofreram no passado (ou eventualmente sofrem ainda) algum tipo de perseguição ou maldição religiosa e/ou política, ou literária até, como por exemplo, em nossa língua portuguesa, Bocage, Antônio José da Silva, Guerra Junqueiro, Gregório de Matos, Castro Alves, Sousândrade, Augusto dos Anjos, e decerto outros.Também não se trata de considerá-lo simplesmente um poeta satânico (embora à sua maneira o sendo num teor e num tom mais modernos), nem mesmo na grande e variada tradição do satanismo poético blakeano, byroniano, baudelaireano, lautréamontano, rimbaudiano etc. Tampouco, e muito menos, um simples poeta blasfemo nos termos puramente retóricos, não obstante ousados e ardorosos, de um Castro Alves, por exemplo; embora a blasfêmia em si, como forma e força da linguagem no poema, como palavra rebelada e procelária (heresia irrompendo em poesia, num certo rasgo de palavras conflagradas, numa certa flama verbal, ao mesmo tempo inflamada e infamante no seu fogo vivo: O som desta paixão esgota a seiva / que ferve ao pé do torso; abole o gesto / de amor que suscitava torre e gruta, / espada e chaga à luz do olhar blasfemo; ou quando, num giro eficaz de hipálage, a blasfêmia se investe na própria imagem, na própria linguagem do poema: ...corrente onde blasfemas / gaivotas provam peixes de milagre; tão conflagradas palavras, com sua inapagável flama castroalvina, que eu mesmo hypocrite lecteur, mon samblable, mon frère¾ me senti queimar e consumir nessa lavra insana, sagrada, na sarça ardente dessa palavra, mais do que blasfema, sacrílega palavra), embora não seja portanto, a blasfêmia em si, como forma e força de expressão sacrílega, um recurso ausente do seu verbo e da sua verve; que aliás não deixam de às vezes refletir, não certamente o tom grandíloquo e os altos raptos hiperbólicos, mas o timbre, a gama, o estro, o surto castroalvinos, em especial nas imagens marítimas ou talássicas mais vigorosas, mais bravas, mormente quando investidas no impulso e no ritmo do decassílabo heróico, tal aquele Espumejante herói de cem naufrágios! e outros versos mais; como em quase todo o antitético e metabólico Soneto Marginal, no qual lavra, de fio a pavio, a palavra bravia, escalavrada e conflagradora, de Castro Alves (ouçamo-la, vejamo-la, nesta super-imagem duplamente faustiana: O açor rebenta o azul e a pomba, espedaçada, / ensangüenta-me o rastro ...; sem falar naquele acusador cadáver ... hecatombado pela vaga, nem no igual condor sangrento que é ali o sol, troféu tripudiado), nosso mais precoce e mais forte precursor, a seu modo e no seu tempo coincidindo à distância com as bravuras (do lat. barbaru) sinfônicas, tremendas, do suprablasfemo Lautréamont , das distorções e contorcimentos, dos absurdos e cargas estético-temáticos do surrealismo e do expressionismo, a que se liga em boa parte a “tripudiada” linguagem poética de Mário Asas da Palavra 75 Faustino. 76 Por outro lado, embora não se restrinja a este conceito mais caracteristicamente romântico-simbolista, Mário Faustino pode sem dúvida, até por afinidades poéticas (temáticas e formais), ser religado à linhagem verlainiana dos poètes maudits (Baudelaire, Lautréamont, Corbière, Rimbaud, Mallarmé, e outros, anteriores e posteriores). Como é sabido, já desde a antiga República de Platão e, em particular, no mundo burguês moderno dos filisteus da cultura (antípodas dos mecenas aristocráticos do Renascimento), denunciados em pleno Romantismo pelo Stello, de Alfred de Vigny, quando a tendência ou mania do mal do século agravou ainda mais a situação, até se chegar, depois do processo de Baudelaire por causa das suas despetaladas e ameaçadoras Flores do Mal, aos protestos e denúncias de Verlaine em favor dos novos poetas incompreendidos e discriminados (e em função também de suas próprias atribulações pessoais, embora não tanto de sua musical e suave poesia, em geral bem aceita), sempre os artistas e os poetas em especial, por sua visão crítica e sua natureza visionária, sua linguagem desviante e contraditante, a-normal, anômala (desobedecendo e modificando, ou mudando radicalmente as normas, as regras, os códigos consolidados, estabelecidos), têm sido alvo de desconfiança, discriminação, mesmo incriminação, ou pura e simples maldição: são eles “a raça maldita” por sua própria condição de insatisfeitos, inadaptados, diferentes, por isso rejeitados, marginalizados, ou banidos e condenados para sempre pelos que detêm o poder neste mundo, os supostos donos ou dominadores do mundo, os poderosos ou superpotentes senhores do Céu e da Terra, do Sol e l’altre stelle (inclusive os poderes acadêmicos dos sistemas literários e universitários). Em outras palavras, ainda mais frisantes da ingênita maldição da raça: poetas malditos, no duplo sentido fundamental, ligado à própria forma e acepção dessas palavras, de serem ao mesmo tempo precitos e proscritos da ordem social, da “norma culta”, da “gramática normativa” da sociedade, justamente por sua anormalidade ou anomalia de pensamento e de linguagem. Neste sentido, tivemos e temos na história da literatura brasileira toda uma “plêiade”, quero dizer, toda uma súcia ou malta de poetas malditos: a começar pelo mesmo ob-scenu e desbocadoGregório de Matos, sintomaticamente cognominado nada mais nada menos que o “Boca do Inferno”. Em seguida, os poetas inconfidentes, denominação em si mesma indicativa, que foram presos, segregados, degredados, proscritos. Entre os românticos, os mais boêmios e rebeldes: Álvares de Azevedo, o notívago das tavernas, o mais byroniano e blasé dos nossos românticos; Fagundes Varela, o bêbado dos arrabaldes, oscilando a pobre lira entre os cantos do ermo e da cidade; o Castro Alves dos teatros e dos comícios, dos vastos mares e dos infinitos céus, da mocidade e morte, dos amores sensuais, de Eros contra Thánatos (Oh! Eu quero viver, beber perfumes ... No seio da mulher há tanto aroma ... Quero boiar à tona das espumas ...), o lírico erótico, liberado, não mais tímido e casto, das formosas mulheres banhadas no pranto das alvoradas, e que foi também, acima de tudo e de todos, o nosso mais tempestuoso e intempestivo poeta blasfemo, das apóstrofes catastróficas e retumbantes (irrompentes e rompantes!), não raro até maldorrorescas em sua cósmica revolta, vazada em hecatombes e diatribes; e ainda, já a meio caminho do Asas da Palavra simbolismo, o próprio Sousândrade, um caso à parte, desterrado do seu próprio tempo, o grande errante, das harpas selvagens e dos valores indígenas, dos novos ventos políticos e das inovadoras formas futuras. Entre os simbolistas, mais esteticistas e nefelibatas, recolhidos em sua torre de marfim, somente Cruz e Sousa, o cisne negro das formas alvas, o emparedado na sua própria pele, tantalizado na dor e na maldição da raça, crucificado no seu próprio nome e na sua própria desgraça, social, física e espiritual; e, de novo, o também herético e blasfemo Augusto dos Anjos (cujo próprio nome aliás, suma ironia, é uma excelsa blasfêmia por si, ou uma heresia batismal), poeta do pessimismo cósmico absoluto e da linguagem absolutamente esdrúxula, de inaudito acento proparoxítono (antes quase interdito à poesia) e contorcidamente expressionista avant la lettre. Já entre os modernistas, os nomes seriam quase todos (que quase todos foram durante muito tempo rejeitados, repelidos, malfalados, mal-afamados, enfim, mal-ditos), mas vamos citar apenas os mais denegridos e apedrejados, os três Andrades: Mário desvairado e macunaímico, Oswald canibal experimental, e Carlos gauche na vida, deambulador do tempo e do mundo, lutador corpo a corpo com as palavras, pastor sem paz da memória e minerador tenaz da morte e do amor, sem redenção. Por fim, dentre os pós-modernistas, além do próprio Mário Faustino, maldito até no clube da poesia, quanto mais no grande público, citaríamos: João Cabral, da anti-lira, da anti-ode, da poesia-fezes, da palavra-pedra; Ferreira Gullar, habitante do vento, poeta da luta corporal com a palavra, como Drummond, do poema sujo, das muitas vozes e barulhos verbais; (não cito aqui os chamados poetas concretos porque eles não são e nunca foram poetas malditos, antes benditos, bem-vindos, bem editados, apesar de toda a sua briga com o verso e a prosa, e não obstante os seus reformadores projetos ideogramáticos, jazidos na teoria e no programa, tendo os seus esquemas ou diagramas verbivocovisuais, na verdade equivocados poeticamente, sido bem acatados, absorvidos e aproveitados quase completamente pelas (malas, ou mídias) artes industriais, comerciais, comunicacionais e publicitárias do sistema dominante, que logo transformou a pretensa poesia concreta numa bem dominada e eficiente tecnologia lingüística uma espécie de técnica ídeo-picto-cali-tipo-gráfica das palavras, dispostas no espaço impresso, baseada nas análises da ciência estrutural da linguagem e nos princípios e conceitos das teorias da forma, da informação, da comunicação, da cibernética, da semiótica, e de outros aportes científicos recentes, inclusive da lógica, da matemática, da glossemática, e das “filosofias”gestáltica, analítica e fenomenológica para produção em série, sob o signo de uma super-reprodutibilidade técnica, de textos eficazes de comunicação de massa, ou seja: a própria anti-poesia, se considerarmos o sentido primordial e estrito da poesia como experiência existencial, como forma de existência nas formas da linguagem, de conteúdo lírico, épico ou dramático, ou os três integrados; por onde se vê que a chamada poesia concreta é na verdade uma poesia abstrata, isto é, que se abstrai e subtrai do conteúdo poético essencial para tornar-se quase um mero jogo formal de palavras, ou às vezes nem isso: de pedaços, estilhaços de palavras, sílabas, letras, simples grafemas, ou meros traços distintivos combinados ou contrapostos, sem maior significado, à semelhança dos literais e vazios exercícios de análise combinatória que são os palíndromos antigos e me- Asas da Palavra 77 78 dievais e sobretudo os labirintos barrocos, todos destituídos de qualquer conteúdo significativo: é o famoso e curioso niilismo temático do barroco academicista, ou, como diríamos em linguagem mais atual, é a significação zero, que todavia não tem nada a ver (mas sim a dever) com o grau zero barthesiano da escritura; como se vê também, por tudo isso, o concretismo não poderia mesmo, apesar dos seus desforços críticos, técnicos e combativos, até mesmo iconoclásticos em relação às artes do verso e do discurso, gerar nenhum poeta maldito, propriamente dito, nem, muito menos, produzir verdadeiramente uma poesia sacrílega, no sentido aqui adotado, porquanto as suas formas de despersonalização do ego lírico e dessacralização da linguagem poética, a começar pelas con-sagradas estruturas do verso, da estrofe e mesmo do poema, sobretudo do poema longo, não passavam exatamente desse nível formal, dessa mera arte poética ou puro ritual litúrgico-semiótico da então “sacrossanta” palavraobjeto de culto, isto é, de uma simples estrutura de superfície, não indo nunca, por falta de maior substancialidade temática, aos conteúdos sacramentais maiores, e muito menos aos mais profundos, a serem interrogados, derrogados, conjurados, ou mesmo exorcizados, sob o signo de um autêntico e radical sacrilégio poético; pode-se então concluir que, neste contexto histórico-literário e sócio-cultural, nossos competentes e aguerridos poetas concretos (ortodoxos!), não tendo sido heréticos nem malditos, blasfemos nem sacrílegos, nem o poderiam ser, foram apenas, e há muito não mais são, os iconoclastas da literatura, destruidores de ícones, cânones e molduras literárias não de estruturas, pois nem o verso nem o discurso conseguiram nem poderiam conseguir abolir; e ainda bem, senão, não mais teríamos canções nem poemas, somente ideogramas e grafemas; não obstante isso, ou por tudo isso mesmo, nossos abstratos concretistas deixaram um bom saldo técnico em termos de renovação de recursos formais, sobretudo gráfico-visuais, e novas matrizes de composição do texto poético sintético; eis pois, também, alguns motivos básicos por que Mário Faustino, embora reconhecendo e assimilando os renovadores recursos do concretismo, não aderiu ao movimento, mantendo-se numa distância crítica; e, quando e quanto mais se aproximou, mais prejudicou ou desnaturou, a meu ver, a sua própria índole, a sua própria têmpera, o seu próprio modo de ser e existir como poeta, e até a sua maneira mais verdadeira e própria de fazer poesia: ele que se dizia e era por natureza um fazedor, de mão- cheia, mão na massa, no barro e no limo das palavras, no fluxo e no ritmo dos versos, na forma e na força das imagens, das metáforas, e não um rigoroso e meticuloso designer, um desenhador de textos, esquadrinhando a página para melhor distribuir, diagramar, decompor, pulverizar o universo temático e sinfônico do poema; afinal, poema, coisa redonda, não pode ser só esquema, diagrama, gráfico de linhas, traços, letras, sílabas contrapostas, ainda que se monte isso tudo num pequeno “panorama”, ou suposto “cosmorama”); e, entre nós, the last but not the least, o paraense Max Martins, certamente um poeta maldito, na acepção mais atual da pecha, e malmente lido em geral, não tanto por suas serenas heresias irreligiosas, ou estranhas e peregrinas religiosidades não-ortodoxas, ou heterodoxias do pensamento e da linguagem, do ser e do não-ser hermeneuticamente fundidos, con-fundidos, da fala e da cala no dizer poético, até às lindes do indizível, enfim, da falta e da fenda, do Asas da Palavra hífen, do hímen, no inter-dito do poema, nos interstícios da escrita, na significância e na di-ferência do(s) sentido(s), até o oco do mundo, até o vazio do silêncio, mas sim ou principalmente por seus hermetismos eróticoerísticos da palavra, sua escrita hiper-gráfica, mas também hipo-grífica, sua mística e erótica indissoluvelmente poéticas, sua linguagem erógena, orgiástica, sua letra viva, sua lavra impura: abracadabra, galamalga, ovo filosófico, fala entre parênteses, risco subscrito. Não é, pois, somente naquele verlainiano sentido da maldição social do poeta, e do seu auto-isolamento (depressivo ou agressivo) como rejeitado, malvisto, maldito, marginalizado, que se deve entender o autor de Haceldama como autêntico e radical poeta sacrílego. Não obstante o peso do conceito, da expressão e da tradição que carrega, seria ainda muito pouco para sopesar, para aquilatar a densidade, a profundidade e o alcance mitopoético e metafísico desse teor de sacrilégio, da sua palavra sacrílega ao pé da letra. Na verdade, sua poesia clássico-barroca-românticomoderna, feita ao mesmo tempo de tradição e renovação, incorpora e reintegra todos os aspectos do embate crítico do poeta com o sagrado: o mítico, o mágico, o alquímico, o satânico, o místico, o erótico, o herético, o blasfemo, o anagógico, o teúrgico, o demiúrgico, o escatológico, e mais o que se possa dizer ou descobrir. Ligando e considerando tudo isso, é que se compreende o que estou aqui chamando de poeta sacrílego, até o âmago etimológico do termo e até o cúmulo heterodoxo do sacrilegium poético. Todavia, sacrílego não por mero espírito anti-religioso do poeta, nem por simples arrivismo ateístico e iconoclástico (outra forma invertida de fanatismo religioso, ou também político), mas sim para liberar-se de todo dogmatismo e sacramentalismo, e experimentar, usando e abusando amistosamente das linguagens sacralizadas, e mesmo das escrituras sagradas, uma nova, profunda, individual e livre experiência do sagrado, da consubstanciação existencial, imanente, do humano e do divino, envolvendo imanência e transcendência no próprio curso e discurso da experiência poética. Diríamos ainda, a propósito, dando um toque de atualidade ao tema e à questão, precisamente no que toca à problemática religiosa em nossa época (ou melhor: a intolerância religiosa que ressurge com os fundamentalismos dogmáticos e fanáticos de todas as partes, de todos os credos, e politicamente instalados ou implementados), que se pode aqui aproveitar e aplicar o que recentemente disse no Brasil o escritor angloindiano Salman Rushdie, em tranqüila e lúcida entrevista ao semanário Veja (nr. 1802, 14/05/2003). Como se sabe, trata-se de um escritor que foi em 1989 pronunciado maldito pelo regime fundamentalista islâmico do Irã, que lhe cominou sentença de morte, sob a acusação de que teria ele blasfemado contra o islamismo no seu romance Os Versos Satânicos (título diretamente incidente em nossa temática e, como indicamos, num aspecto importante da poética faustiniana). Procurado e perseguido, escondido e protegido internacionalmente por dez anos, ele conseguiu, mercê dos deuses e das musas (com o apoio da Interpol, naturalmente), atravessar incólume “o túnel do medo”, como se auto-referiu, até que, sob pressão Asas da Palavra 79 80 mundial, o governo iraniano em 1998 suspendeu a condenação. Como era de esperar de um escritor agora livre do fantasma de sua própria sombra e ainda mais cônscio da liberdade inalienável de ser, pensar, sentir, dizer, escrever, ele voltou a falar abertamente contra, digamos, as “santas alianças” entre religião e poder, igrejas e estados, em suma, toda uma e única hierarquia, eclesiástica e burocrática, dois aparelhos de estado num só, compondo e impondo uma só instituição dogmática, se não, tirânica, do Poder. Em certos casos atuais, ressurgidos ou remanescentes, o que se vê é que há de fato uma nova teocracia instalada (e não exclusivamente de religiões reveladas, mas também de uma espécie de religião velada por trás de alguma ideologia autoritária, e totalitária, isto é, absolutista) ou parcial e disfarçadamente implementada, mesmo no caso de tradicionais democracias, por meio de manipulações periódicas e estratégicas do discurso religioso. De tal modo que, em qualquer desses casos, são regimes e discursos político-sociais de dominação, relativa ou absoluta, que procuram investir-se ou justirficar-se com os dogmas e apotegmas do discurso do Absoluto, para impedir ou reprimir (em nome de Deus, ou das Leis divinas, como outrora o direito divino de reinar, da Monarquia Absoluta) as idéias e formas renovadoras, os novos projetos, o desejo de mudança dos indivíduos e da sociedade. Eis aí o motivo e a origem do próprio e legítimo sacrilégio: gesto e palavra hereticamente assumidos (isto é, por outra e nova escolha e atitude, ou nova heresia, outra seita, secta, outro partido tomado, seguido) na justa luta dos dicursos, na santa guerra das linguagens, em face e no campo da própria linguagem consolidada, sacramentada, em busca de outros modos do sagrado. No exato sentido, portanto, em que o nosso assim definido e único poeta sacrílego, plenamente (e provavelmente em todo o cosmos e todo o logos da língua portuguesa, todo o mundo da nossa língua e literaturas, ou seja, essencialmente, todo o nosso templum da linguagem, casa do Ser), convoca, desde a primeira e inaugural Mensagem de sua poesia, dirigida a todos os deuses, desaparecidos ou porvindouros, e sobretudo a todos os homens ainda de boa vontade, convoca e impele o seu próprio discurso, o seu verso ele-mesmo alado ou de ímpeto divino, a que o leve em demanda de outras formas do sagrado: Em marcha, heróico, alado pé de verso, / busca-me o gral onde sangrei meus deuses (...). E já no indicativo poema-prefácio do seu mesmo e único livro publicado em vida, antecipara ele sua visão potencialmente ou intencionalmente sacrílega, ab initio, de que a experiência poética (não, positiva) do sagrado é uma permanente ex-periência, uma constante demanda, uma sempre busca ou contínua renovação (uma re-volução, re-ligação, re-ligo, re-ligio, re-ligionem) permanente e, decorrentemente, um contínuo dis-curso sacrílego da poesia; ou o sacrilégio poético em essência, em sendo, não como ato isolado e estanque, mas sim um processo em curso, sempre renovado, em demanda de, em contenda com todas as formas de sacralização cristalizadas, que a cruzada incessante da poesia, sempre o dizer, em transe, do sagrado (que é combate agônico, não estado extático, de inter-ação recíproca, no horizonte do Aberto e do Incontornável, em sentido heideggeriano, entre a terra e o céu, o humano e divino, o ser e o tempo imbricadamente), tem de combater e enfrentar com suas armas simbólicas, sem cessar, de uma forma que não pode ser outra senão, a fundo, e sempre, sacrilegamente, que é o mote mesmo, a própria voz e o desafio da Asas da Palavra poesia: O som desta paixão desmente o verbo / mais santo e mais preciso (...) E de tal maneira, também, que o divino só é eterno em sendo e permanecendo (et maniat semper) sagrado, sagrando-se, constantemente (e não, fixando-se, consagrado, para sempre), pois só não morrem os deuses que se transformam, se transmutam, os entes divinos que se metamorfoseiam continuamente, poieticamente, inclusive os poetas verdadeiros, como seres mortais que se imortalizam, que se divinizam pela poesia: Quem fez esta manhã (...) fê-la para / abandonar-se a mitos essenciais, / desflorada por ímpetos de rara / metamorfose alada, onde jamais / se exaure o deus que muda, que transvive. Voltemos então à entrevista de Salman Rushdie, para quem, literalmente: “blasfêmias são importantes, pois é graças a elas que o mundo avança”. E ele assim explica e justifica: Sócrates, o próprio Jesus e Galileu foram considerados blasfemos; os filósofos e escritores do Iluminismo (Voltaire, Rousseau, Diderot) usavam da blasfêmia, aberta blasfêmia (reforcemos, como aliás já em si diz e pede a própria embocadura da palavra) como tática deliberada para obter maior liberdade intelectual, cujo grande inimigo, para eles, não era o Estado mas a Igreja; e mais, enfatiza o escritor: blasfemar com alegria era para eles um modo e um meio de dizer (uma forma de linguagem, uma figura de estilo, digamos, um tipo de sacri-légio no e do próprio discurso, conforme estamos aqui empregando o conceito e o termo) que não aceitavam mais os limites que a religião impunha ao pensamento. Ora, é precisamente esse “blasfemar com alegria”, na feliz e franca expressão do romancista maldito, que captamos e quase sorvemos na linguagem teúrgica e demiúrgica (deuses, santos, anjos, musas, ninfas, mitos, heróis, oráculos, mistérios, milagres, promessas, belezas, graças, gozos, dores, agonias, êxtases, porém misturando voluptuosamente o sagrado e o profano, o divino e o humano, matéria e espírito, carne e verbo, amor e morte, céu e inferno, mundo e linguagem, tempo e eternidade, enfim, poder-se-ia resumir numa cinematográfica blasfêmia: Deus e o diabo na terra do sol), linguagem investida e marcada de todo o fervor irreligioso que há no autêntico e radical sacrilégio, é pois esse “blasfemar com alegria”, sem soberba nem rancor, mas sem culpa e sem medo, que a nosso ver perpassa a obra poética inteira e inacabada de Mário Faustino, embora existam nela momentos de bem maior densidade e intensidade da expressão sacrílega, como sobretudo no poema-título do livro e em alguns mais típicos dos disjecta membra e dos esparsos, como alguns já citamos e outros citaremos. Feita esta espécie de “ouverture” teórica e temática, ou introdução histórica e conceitual ao tema específico do nosso título, vamos passar à leitura (se assim o desejarem) de alguns largos trechos da pretensa fantasia funeral (como a chamamos) em que de um modo algo mítico e mágico rememoramos a morte e celebramos a memória do velho Chico dos nossos rios de alunos e alunas, dos cursos e discursos literários, artísticos, filosóficos e estéticos em geral, colegiais e universitários, e dos diversificados e tantos círculos, simpósios, conferências, exposições, encontros e debates culturais da nossa velha cidade, numa grande roda e num Asas da Palavra 81 redemoinho de amigos e admiradores, ao longo e ao largo de quase todo esse estuário de correntes e tendências do século XX, que ele viveu e acompanhou até o fim, ou quase viu nascer e morrer com ele. Queremos lembrar, entretanto, que nessa evocação ampla da sua figura e personalidade intelectual, ora restrita aos trechos aqui editados, atém-se este nosso texto àquele episódio inusitado do seu sepultamento, que iremos relatar, descrever e interpretar alegoricamente, e, em preâmbulo e de entremeio a ele, até o final, a evocação e a invocação sucessivas e simultâneas dos nomes e dos poemas ou versos dos seus aludidos amigos poetas, mortos precocemente a ele, os quais nos reaparecem assim, poeticamente, como em tertúlia imaginária e transcendente, conclamando-o e recepcionandoo no Olimpo celeste dos deuses e das musas, por força e pela voz mesma dos seus versos incidentalmente invocativos e convocativos. É de dizer também que, dentre eles, sobressairá a figura, ou o vulto metafórico, e sobretudo a fala virtual dos versos re-citados e transcritos, do mais jovem (daquela jubilosa e estuante juventude, quando a jusante a maré entrega tudo) e o mais teatral ou contracenante dos seus amigos poetas mortos o do primeiríssimo e inaugural Primeiro Poema, já então dedicado ao amigo, o virginal poeta recém-nado ainda em sonho com sua voz de anjo que acordou; o que veio por sobre as ondas, trazendo a paz e as distâncias, e tendo na boca ... mundos e nos olhos palavras; o dos poemas do anjo e dos dois motivos da rosa, o que se sentira o encantador do mundo! e que morrera deste belo sofrimento / de ser maravilhoso!; o de voz multiplicada, aquele que é o Ressuscitado pelo embate da ressaca. 82 Lembraríamos, ainda, que os versos re-citados em função e em abono do nosso tema-título não serão objeto de análise para demonstrar ou explicar a definição do autor como poeta sacrílego; mas sim, apenas, invocados para mostrarem e frisarem por si mesmos tal definição, uma vez que não se trata de um estudo analítico, rigoroso, minucioso (que todavia pode ser perfeitamente levado a efeito, pois a obra poética de Mário Faustino está pontuada e pontilhada de uma visão e expressões efetivamente sacrílegas, no sentido afirmativo do sacrilégio, aqui adotado). Porém se trata sim, como de início anunciamos, e assim é que a entendemos, pretendemos, e escrevemos, precisamente de uma fantasia: não uma fantasia exata, exegética, rigorosa e objetivamente construída nos seus suportes teóricos e metódicos de análise minuciosa e explicitativa do objeto, decompondo-o, pormenorizando-o, dissecando-o em estruturas e elementos, disssolvendo-o em aspectos e significações, ou seja, destruindo-o na sua inteireza e beleza de objeto poético ou estético para reconstruí-lo intelectualmente num constructo interpretativo, demonstrativo e clarificador, como é o árduo trabalho e o prêmio incerto da boa crítica fenomenológico-hermenêutica, em qualquer das suas direções ou preferências de enfoque (histórico-cultural, sociológico, psicológico, psicanalítico, semiológico, estético-estilístico, ou todas de envolta, conforme o estofo intelectual e a paleta sensível do crítico); mas sim, e simplesmente, uma prazerosa, subjetiva, livre, pretensa fantasia musical, feita de vária leitura recitativa e evocativa dos poemas e dos poetas, dotada de uma certa forma ou nota interpretativa; não exaustiva, pois, mas tão-somente perceptiva e apresentativa: em primeira mão ou audição, digamos, até num Asas da Palavra certo e simples sentido musical da execução, portanto com um certo e próprio toque de interpretação dos poemas lidos, re-citados. Desse modo, o que se quer e se vai apresentar (sem analisar) por meio de uma quase aleatória (ao sabor da memória e da leitura) rapsódia de versos e/ou de imagens poéticas, de diferentes poetas e de diferentes épocas ou estilos (além dos quatro preferenciais), inserida em nossa imaginada e pretendida fantasia funeral, de póstuma homenagem (bem mais ampla, aliás, no todo completo do nosso discurso fúnebre, com seus sete e encadeados movimentos compositivos, do que as partes ou trechos a seguir apresentados), forma e configura uma espécie de prolongado e intermitente recitativo de versos líricos e sacros, estes não canônicos nem ortodoxos: posto que sacrílegos, muitos deles, na sua própria e herética ou heteróclita expressão sacral, tal como os consideramos e adiante os recitaremos (alguns já acima citados de antemão, prenunciando o tom dominante da evocação mais ampla do tema, e do clima fantástico-elegíaco, a se tentar criar ou sugerir). Recitativo, pois, que iremos entremear, parentética e interpretantemente, ao texto geral do fúnebre recordo narrativo e descritivo, ou alegórico ricercare em que relembramos e também interpretamos a cena cemiterial aludida. Não quer dizer, porém, que não haja um certo jogo ou às vezes um certo giro interpretativo, também, na escolha, na colocação e nos comentários das citações ou recitações evocativas. De modo que, no conjunto, ou mesmo no detalhe, o que a seguir se lerá é um discurso de cunho evocativo-interpretativo, mas sem pretensões rigorosas de análise e exegese, sem maiores preocupações teóricas e nenhuma preocupação metodológica formal; donde, não se recorrer diretamente a determinada bibliografia nem se fazerem quaisquer referências bibliográficas, a não ser as inevitáveis (dadas no corpo do texto, de forma direta ou indireta) e as que automaticamente se colam aos próprios versos, poemas ou livros citados. Vamos, pois, aos trechos específicos desentranhados do longo réquiem em prosa e verso que reescrevemos para lembrar e celebrar, com algum engenho, arte, música e poesia, o nosso grão-mestre e bel-amigo, tornado mito. E de entremeio aos quais eclodirão alguns dos versos satânicos, heréticos, ou mesmo blasfemos, do nosso talvez único efetivamente poeta sacrílego no sentido essencial e radical. —— xxxx —— A justeza e a beleza conceituais dessa configuração idealizante do retrato intelectual do nosso notável mestre, sob a égide e a efígie estéticoreligiosas da figura hegeliana da bela alma (die schöne Seele), ressaltam imediatamente e se ajustam com perfeição à sua pessoa e ao seu espírito. E tanto mais completamente quanto se sabe que a figura histórica e artística na qual Hegel terá inspirado os traços finais dessa encarnação estéticofilosófica e ético-religiosa do espírito subjetivo, definindo-se tal figura sobretudo pelo caráter contemplativo, e com um duplo nexo de sensibilidade e misticismo, estesia e êxtase, foi a de Novalis, poeta romântico por excelência, do qual o nosso retratado prezava e até certo ponto partilhava Asas da Palavra 83 84 a visão mística, nostálgica e noturna (não a melancolia nem a obsessão da morte, contudo; embora partilhasse com o poeta alemão uma simbólica e melancólica desdita biográfica: a dolorosa perda de sua primeira e única noiva e ele talvez por isso nunca mais de novo noivaria nem jamais se casaria , precocemente falecida antes que houvessem e convolassem núpcias; de modo que ele teve também a sua perdida Sofia, ou mais simbolicamente, a sua embalsamada Ofélia, e cultuou longamente na lembrança a imagem poética de sua Ismália quiçá indício do seu grande afeiçoamento ao musical lirismo espiritualizante do nosso mais suave poeta simbolista , de sua flutuante e longínqua infante defunte, talvez, sempre liricamente ressurgindo-lhe, envolta nos mantos diáfanos da poesia; fato, e mito pessoal, que sem dúvida terá influenciado na sua perseverante identificação com a poesia lírica de Novalis, repassada de místicas associações de amor e morte, da nebulosa noite e suas fantásticas visões, nas quais o nosso mestre solitário bem poderia ver, quem sabe, evocando também os versos visionários do seu amigo Ruy, que ele decerto sempre relia ou relembrava, o vulto e a sombra da amada escurecida, como se também ele desejasse adormecer sobre a grande noite / da amada escurecida, ou se deixasse ficar como o que espera as visões da grande madrugada, como o que permanece com os olhos abertos compassivamente / para o grande retorno da amada escurecida); o mesmo e contemplativo Novalis, portanto, que foi também, como poeta e pensador romântico, um dos grandes prediletos do nosso mestre, que talvez só o tenha postergado, como poeta místico-metafísico, na absoluta predileção que manifestava pela poesia pós-simbolista de Rilke, o dos Sonetos a Orfeu e das Elegias de Duíno, igualmente obcecado pela temática unitária do amor e da morte, porém numa visão e numa expressão modernas, que melhor traduzem a compreensão poético-existencial a que chegara o nosso preclaro mestre e clarividente amigo. Tanto assim que, fiel a essa devoção poética, ele organizou e prefaciou com especial dedicação e diligência a edição póstuma de toda a poesia, concluída, esparsa, inacabada, e traduzida, de um dileto amigo seu e poeta nosso dos melhores, o já antes evocado Paulo Plínio Abreu, que tão cedo nos deixou, e que foi eminentemente um rilkeano, tendo inclusive traduzido, além de alguns outros poemas, as completas dez Elegias, em colaboração com Peter Paul Hilbert, talvez a primeira tradução integral do ciclo feita no Brasil; ousada e boa tradução, que o nosso devotado mestre incluiu e referiu na sua cuidadosa edição com tanto entusiasmo, e uma certa e sincera ternura de admirador e amigo; e que ao ainda jovem poeta e tradutor, prematuramente desaparecido (e quiçá premonitoriamente interessado em traduzir versos não raro dirigidos aos que sabem e conseguem estar a postos e arderem na plenitude do coração, perseveradamente, quando essa mesma e ardente sedução do florescer, no auge da juventude, assim como a brisa noturna mais suave / lhes toca a mocidade da boca, toca-lhes as pálpebras: aos que souberem como soube ele, Plínio, glorificar o pleno florescer, viva e direta imagem que o poeta colhe da grande metáfora genésica da figueira, de sua premente floração em busca da ventura maior dos frutos maduros, e da qual seus versos meditantes recolhem, por magnífica e simples metamorfose poética, a seiva e o sentido de nosso fruto final, em cujo âmago e segredo... traídos penetramos; versos assim precipuamente dirigidos aos heróis, talvez, e aos destinados ao desaparecimento prematuro, a todos esses trágicos predestina- Asas da Palavra dos, aos quais a morte jardineira de modo diferente torce as veias), e que ao ainda jovem poeta e tradutor, por conseguinte, revelam-se poemas e versos que, mais do que traduzidos, interpretados e incorporados são, assimilados ao mais íntimo de sua individualidade humana e artística, e que a ele, pois, tão prematuramente levado a provar desse fruto final, reenviamos aqui de volta, em póstuma e justa remissão a si mesmo, à sua experiência lírica da vida e da morte, sorvidas num mesmo fruto dadivoso; referência, ou antes, pura reminiscência que ainda queremos completar em especial com este outro verso da mesma elegia sexta, verso também tão simples e sensivelmente vertido, e tão simbólico de sua pressentida e lamentada morte, como a ele o remeteria por certo, em elegíaca reflexão, o sentido pensamento do amigo: Estranhamente perto está o herói dos que morreram jovens. E ainda mais diretamente lhe reenviaríamos, pelas recordações escritas do velho amigo, o seu próprio verso tão comoventemente invocativo, que o mesmo e impressionado amigo destacou no aludido prefácio como sendo “de pura descendência rilkeana”, e que, nestas páginas rememorativas, de fato especialmente assim ressoa: Tu que vestes os mortos com o que cai do coração dos vivos. Enfim, podemos então reafirmar e proclamar, agora com todo o rigor e todo o valor histórico-filosófico da expressão — entronizando este seu perfeito retrato intelectual, segundo o vemos, posto em rica e nobre moldura estético-metafísica, entre os excelsos nomes de uma galeria transcendental — que o nosso mestre foi não só um grande espírito mas um alto espírito, que o nosso amigo foi não apenas uma grande alma, porém, rigorosamente, uma bela alma. Diria então, fazendo ainda neste ponto uma homenagem ao seu gosto poético e estético da vida, e pela vida em si, a vida mesma e mínima que fosse, pelo simples gosto vital, ou mesmo mortal, de viver (viver ou vivenciar algo tão intensamente até morrer, como se diz: um morrer de viver, paroxismo da própria vida!), o que era já em si um repúdio a qualquer anseio de morte, real ou imaginário, e um gosto intenso de viver que nele se revelava até numa certa volúpia com que buscava não só o sabor do vivo mas o próprio e vívido sabor das palavras, como tantas vezes o vimos tentando como que palpá-las, sorvê-las, degustá-las poeticamente (ou desdobrando tudo isso num digressivo parêntese: era aquela vida mínima, essencial, a que ele se apegava, como em Drummond — a vida: captada em sua forma irredutível, / já sem ornato ou comentário melódico, / vida a que aspiramos como paz no cansaço ... (Não a morte, contudo); e ainda: Não o morto nem o eterno ou o divino, / apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente / e solitário vivo — isso, como o poeta, ele ainda e avidamente buscava e queria; não a morte, repita-se). E o queria e buscava, no seu afã de viver, no seu elã vital, sem alimentar ilusões nem fantasias metafísicas, ou meramente metafóricas, românticas ou não, acerca dos profundos nexos essenciais, ou absurdos e absolutos amplexos, do amor e da morte em conjunção, fantasticamente envolvendo-se e entrelaçando-se, como numa dança macabra, frenética ou suspirosamente entrelaçados, sob a atração fatal da Inexorável. Não, sob este aspecto, ele sem dúvida experienciava a fatalidade da morte de maneira adversa à do jovem e ardoroso poeta que ele mesmo descobriu e que se tornou, não apenas por força do próprio nome, o seu faustiano Asas da Palavra 85 86 amigo. Também não, certamente, o poeta infernal dos Sete Sonetos de Amor e Morte, trespassado pelas sete setas satânicas, prazerosamente martirizantes, da linguagem e da vida envolvidamente implicadas na sua experiência radical da poesia e da existência, de uma existência poética desatada, ou dessa Vida toda linguagem, vida sempre perfeita, como ele a entendeu e viveu, toda uma vida selada em signos, vazada em címbalos e símbolos, como ele mesmo a cantou e transfundiu, tentando dar-lhe outra, imortal sintaxe / à vida que é perfeita / língua / eterna. Adverso não, pois, a esse órfico, fáustico, infernal poeta, ao mesmo tempo angelical e demoníaco, arcanjo e facínora, inocente e satânico simultanemanete, na mesma medida, ou numa só e funda dimensão poético-existencial, que ao mestre e amigo tanto surpreendia, assustava, e fascinava. Nem o poeta que, também ele, fez abrasadoramente a sua estação infernal, a sua breve prova de fogo, a sua talvez mais forte e intensa do que Une Saison en Enfer, ao largo e ao longo, à brasa ardente e ao fogo vivo de sua mortal e vital poesia — Inferno, eterno inverno, quero dar / Teu nome à dor sem nome deste dia / Sem sol, céu sem furor, praia sem mar, / Escuma de alma à beira da agonia. / Inferno, eterno inverno, quero olhar / De frente a gorja em fogo da elegia —, e que, também iluminado poeta estelar, constelar, produziu em versos de luz e rimas lampejantes as suas próprias Illuminations, como verdadeiras iluminuras líricas e alucinatórias, tão intensamente alumbradoras para o seu mesmo amigo tão confessadamente rimbaudiano; o qual aliás, ao seu próprio e discreto modo, soubera também vogar e banhar-se embriagadoramente no mar do poema, como bateau perdu sous les cheveux des anses. Adverso pois, não ao argonáutico poeta das grandes viagens imaginárias, visionárias, singrando sem rumo, à vela de ouro da palavra, ao sabor dos velhos temas, os mares já sempre e nunca dantes navegados da linguagem, da grande aventura mítica, rítmica, marítima, epo-lírica, agônica e talássica, da sua herói-trágica poesia. Mas sim adverso, em matéria de amor e morte, ao simplesmente lírico e onírico poeta da falsa balada Romance, tão melodioso e insinuante poemeto que não tinha talvez outra razão de ser a não ser essa valsa envolvente e as puras razões da férvida imaginação, de envolta com as formas alegóricas da mais dançante e lúdica e alegre expressão, naquelas rigorosas redondilhas maiores do seu mais sedutor romance poético, ao ali cantar com todo o celeste enlevo que soube dar às Festas da Agonia as amorosas e dúbias seduções do Anjo fatal (e da Besta feroz), cantando-as, com certo acento neo-romântico, ao modo antigo de um nostálgico e celestial vilancete, ou dançante vilancico, e como que tangendo um risonho e trovadoresco alaúde, num tom sutilmente irônico, mas não o suficiente para quebrar o encanto de tão volteantes versos, na última e mais envolvente volta dos quais deixa ouvir no entanto, com estridente estardalhaço qual gargalhada satânica, fantástica e sarcástica, tal qual em vida sabia dá-las e soltá-las à larga pelas salas o seu mais desconcertante e súbito descante: Não morri de mala sorte, / Morri de amor pela Morte. Porquanto, ou porque no entretanto da humana lida e condição, ao contrário da alucinante valsa desse amor fatal, oniricamente celebrado, na verdade e no final das contas, isto é, na efetiva realidade da vida (e da morte), à luz real da existência a mais verdadeira e autêntica, sem alegorias nem metáforas sedutoras, mesmo da existência a mais poética e dramaticamente levada, não se pode mais hoje, com a consciência onto-tanatológica do Asas da Palavra nosso tempo (após Ser e Tempo), superada a fase das grandes ilusões e obsessões românticas, e a não ser justamente por uma irônica tirada neoromântica (tal aquela estalada gargalhada, literal e literária), sequer dizer ou sonhar morrer de amor pela morte: salvo, é claro, num sentido de ironia trágica. Porém o que se pode, sim, é ter e manter a consciência da unidade dialética e dramática, ou hermenêntica, fundamental, da vida e da morte em todos os transes da existência, que era por certo como pensava e experienciava o nosso muito cônscio e até o fim lúcido mestre. Contrariando aliás também, nesse particular, a visão inicial, quase juvenil, e ainda mais tipicamente neo-romântica na sua obsessão poética da morte, embora de uma forte expressão moderna, do seu outro queridíssimo amigo e poeta, o das visões sobrenaturais de Anjo dos Abismos, livro literalmente obsidiado pelo mar e a noite, o amor e a morte, quatro temas aí confluentes em quase todos os poemas, ou que em geral ressoam juntos fantasticamente, como no largo poema que começa, já desde o título, por esse vagalhão rítmico de um longo verso, em onda larga, que é a própria imagem daquela envolvente, mortal obsessão: Meu Deus (...) É a morte que vai chegar da imensidão dos mares. Temática, e poética, tão envolventemente obsessivas, nesse poeta que então a si próprio se definiu romântico e transcendente, que ele chega a expressar o desejo do encontro fatal com as delícias da morte, aliás bem à semelhança do outro e amigo, para o qual tão celeste foi a Festa, como vimos, dos prazeres sobrenaturais da morte, nos eróticos, orgiásticos volteios daquele amoroso romance relembrado. O mesmo seu querido poeta e amigo Ruy, porém, que no segundo livro, muito menos tantalizado pela visão neo-romântica (embora ainda aí considere o sobrenatural a grande vocação), muito mais despojado na expressão, duas vezes invoca nominalmente o fraterno amigo: a primeira, muito significativamente, no centro de um poema natalício, seu próprio, em que o então ainda jovem poeta se autoanalisa afetivamente, sob o signo desse dia especial em que o poema devasta mais que o aniversário, e em meio a cujos versos brancos e soltos, de uma outra e nova roupagem poética, e de um novo lirismo pessoal, de franca auto-interpretação, nosso homenageado mestre é o único e fiel amigo invocado diretamente pelo afetivo nome, e de uma forma taxativa: O amigo fiel chama-se Chico; e a segunda vez, muito mais direta, reiterada, e ainda mais significativa, é todo um poema-carta em que um emocionado e ansiosoo poeta se dirige abertamente ao amigo, clamando por sua presença, num apelo quase patético por sua companhia, para que venha co-participar no afã de viver intenso do poeta, contra a solidão, o cansaço e o tédio da própria existência, dos próprios livros, pois que a poesia não resolve nada; poema no qual, todavia, com todo esse desejo de viver, esse afã de existência, de esgotar a taça do prazer, do fruir a vida, o sedento e angustiado poeta, mesmo assim, ainda admite a eventualidade de desejar a morte. Esse mesmo fatídico e antes tantálico desejo que o outro aludido amigo e já evocado lírico do amor e da morte, num insólito soneto mais lúcido talvez do que aquele lúdico e irônico vilancete, saberia afinal melhor avaliar, constatar e definir, tão francamente, que não é senão o desumano / desejo de morrer. Bem diferente, pois, e bem mais existencialmente plausível, mais humanamente aceitável, compreensível, o pensamento desse poema tanto mais se lido no contexto da desesperada necessidade de amar, de amar e de ser, necessidade imperiosa de um ser Asas da Palavra 87 88 amado, que o mesmo soneto expressa tão sôfrego e arfante do que aquele pretenso, e falso, morrer de amor pela morte, da fantasia neo-romântica e trágico-irônica de que partimos. É que em outras expressões menos lúdicas de sua tanatologia erótica (ou vice-versa), na linha desse mesmo soneto citado, o nosso jovem e impávido poeta mais claramente assume a unidade dialética e dramática fundamental da vida e da morte, na realidade efetiva da existência humana, do homem como ser-no-mundo-para-amorte, unidade a que antes nos referíamos sobretudo em termos hermenêuticos (da fenomenologia hermenêutica de Heidegger), como de fato ele a expressaria lapidarmente gravada em verdadeira pedra tumular, ou no grifo lapidar de um autêntico poema-túmulo no dístico final, terminante e categórico, de um dos labirínticos “fragmentos” que deixou, na verdade um dos seus últimos poemas “completos” em si, composto a partir da contraposição de três palavras-símbolos do enigma do homem e do ciclo existencial, túnel, pedra, tonel: túnel do tempo, túnel sem fim, tonel sem fundo, pedra inaugural, pedra tumular; palavras que se ampliam e se transfundem, imagens que se complementam no texto, encerrando no contexto do poema (contudo fragmentário) o curso do tempo, a prosa do mundo, a lida da vida, a roda da sorte, os fados do homem, tudo de tal modo transfundido que o poema arremata e sela afinal, em fecho duplo, a única e insuperável contradição, numa só e redobrada fórmula, epitáfio-epigrama, irrefutavelmente lapidar: Lida, caixão e sorte, / vida, paixão e morte. Eis assim, posta em simples e claros termos, inteiramente despojada de qualquer romântica fantasia ou moderna mistificação, antes colocada com lucidez e poesia no estrito senso da realidade comum, a nossa fundamental questão. Como aliás rigorosamente pensava o nosso mestre, em perfeita conformidade com o que serenamente ensinara, pelo menos desde o seu magistral e modelar Claro Enigma, o nosso mais completo, mais complexo, mais moderno e realmente sábio pensador poético do paradoxo existencial da morteamor, ou do amoremorte, se preferirem (que aliás soa e grafa bem, calha na pauta, rola muito bem, na fala e na página, no correr da pena, no próprio rolar da escritura, literalmente imprimindo na escrita aquele eterno-retorno verbal de versiprosa, ou versivida e vice-versa, que já antes referi e a que costumo referir-me para designar a arte drummondiana de escreviver). E conforme longamente o ensinou o nosso grande e maior poeta, como sabemos, não por simples ou imaginária ou abstrata experiência poético-pensante, mas por meio daquele sumo e bom saber de experiências feito, que conhecemos, ou seja, pela experiência concreta e viva, profunda e contínua — na própria vida, na própria carne, no próprio cerne do coração e do sentimento, da consciência e do pensamento, e no próprio âmago vivencial e artístico de sua poesia, de sua experiência poética — desse antropológico, histórico e cultural, autêntico e exclusivo fenômeno humano por excelência que é o da conjunção originária, existenciária, de Éros e Thánatos. Bastando ler, para crer, a vida e obra ou versivida, e vice-versa como eu disse, do nosso experientíssimo poeta de tantos anos e tantos livros de versiprosa, inseparavelmente como ele a entendia e escrevia (sobretudo a efetiva prosa do mundo e da vida, conteúdo essencial e constante do seu verso-universo), e conforme ele a fundo a si mesmo e ao Outro (minerador do Outro) interpretou e compreendeu, se entrentendeu, e se reuniu, em texto e teste- Asas da Palavra munho; e aí constatar, segundo explicara ele próprio, e já bem vivido, relendo a vida passada a limpo, e num rigoroso oxímoro hermenêutico, indestrinçável, indecidível, no qual ele mesmo pergunta e responde, para nosso governo, ou ainda maior desconcerto, sobre as implicações reais entre o vivido e o inventado: Tudo vivido? Nada. / Nada vivido? Tudo. Inclusive, obviamente, a vivência essencial e antecipatória da morte; porém ainda, e sempre, nos próprios modos de encarnação e exaltação da vida: jamais a morte pela morte, como jamais a arte pela arte. E tal como, por seu turno, exatamente pensava e ensinava o nosso convicto mestre, que sempre oficiou, aliás, como bem me lembro, no mosteiro neobarroco e moderníssimo de Drummond. Diria eu então, fechando esse amplo e digressivo parêntese, entrecortado de outros coniventes trechos parentéticos, e retomando o fio principal do discurso, agora recorrendo a outro dos poetas mais admirados e prediletos do nosso emérito professor de literatura portuguesa, que ele se achava por fim, em verdade, num singular e sensível estado de espírito, difícil de denominar em português, e que melhor se define e apreende pelo título e o conteúdo imagístico e psicológico de um aqui bem-vindo e bem apropositado soneto que o seu dileto e aludido ou por enquanto aqui eludido poeta, sentindo talvez o mesmo difícil mood e a mesma dificuldade de dizê-lo em nosso idioma, disse-o precisa e melodiosamente, e desencantadamente, em inglês: Despondency. Tudo isso, claro está, são ainda poucos ramalhetes literários que trazemos para depor (ou antes, para repor, já que foi ele quem primeiro nos mostrou e nos deu tais finos discernimentos, mais do que simples conhecimentos) junto à modesta sepultura do velho mestre e verdadeiro preceptor que a todos esteticamente nos educou, edificou, no seu perfeito amor à arte e à literatura. É verdade: uma sepultura modesta, humilde mesmo, no seu despojamento e no sentido humífero, telúrico, mais profundo do termo; mas para nós, que a ele evocamos, alcatifada em poesia, como sua lídima e natural alfombra, feita de folhas de relva e folhas caídas, a imarcescível hera, as verdes h’eras, e gramas raras; e, naturalmente, muitas flores, todas as pétalas de flores: desde as simples flores do verde pinho, do verde ramo, tão naturais e ingênuas, e que por isso tanto o encantavam, até as mais luxuriantes e estranhas flores da poesia contemporânea, além de outras muitas e nobres florações poéticas, inclusive (por que não?!) as vívidas, mórbidas, satânicas, edênicas, simbólicas flores do mal, que tanto o seduziam poeticamente. E também, é claro, as melhores folhagens da chamada poesia cemiterial ou tumular, romântica ou pós-romântica, desde as noturnas e longínquas soledades de Young e suas adjacências, que ele em vida amplamente visitou, às alusivas meditações e metamorfoses poéticas do Cemitério marinho de Paul Valéry, grande poema contemporâneo, ontotanatológico, e outra de suas grandes admirações literárias. Sem esquecermos, naturalmente, os nossos poetas paraenses modernos, com seus diferenciados traços neo-românticos ou neo-simbolistas, e que são também de algum modo poetas noctâmbulos e cemiteriais, ao mesmo tempo morituros e amorosos, poetas que oniricamente vagueiam pelos noturnos caminhos, pelos sinistros caminhos, levados pela estranha mensagem, pela sonâmbula miragem, marcados que são pela temática da noite e da morte, pelos Asas da Palavra 89 90 símbolos fatídicos dos sudários e sepulcros, dos cemitérios e calvários, defuntos e cadáveres em rara metamorfose; e atraídos obsessionalmente pelos mortíferos mares, pelos fatais amores, pelos funestos fados, os signos suicidas, as mortais ardências, o clamor das madrugadas, não hesitando mesmo em inscrever na sua linguagem o tronco dos ciprestes, nem o canto dos sepulcros, as urzes, as cruzes, e as flores sepulcrais; seduzidos todos, cada um ao seu modo e à sua maneira de expressão, pela aurora fecundante dos sepulcros, pela flor sangrenta que brota nas origens / com haste de cristal e pétalas de fogo; pelas florestas escuras, / as águas turvas dos rios martirizados; enfim, pelas fanadas solidões / e as perdidas auroras / como dobres de sinos sobre os mares. Todos, assim, visionariamente expostos aos perenes horrores e à soturna beleza, medusados, como na terrível lenda, pelo grande olhar da morte escuro e frio, mas fascinados, cegamente, pelo fogo-fátuo que acende a eternidade / ao banquete dos vermes e à poeira dos mortos. Em suma, capazes de explorar simbolicamente todos os elementos do verbo, até os mais dissolventes e letais, e todos poetas nossos já falecidos, que lhe foram muito próximos, e seus diletos amigos: Ruy, Mário, Plínio, Cauby — convoquemo-los de além-túmulo, nominalmente, do fundo sagrado da tumba ou sanctu sepulcro de seu nome, para usarmos aqui, ou antes, para exumar do próprio terreno verbal e simbólico de sua poesia, dos mais singulares e profundos elementos do verbo, em que se transmutaram, graças à sua peculiar e forte alquimia do verbo, que ao nosso mestre tanto enfeitiçava, imagens poéticas radicais dos dois primeiros invocados, os quais em vida e de forma explícita a si mesmos inumaram-se poeticamente no solo essencial da linguagem, no signo e na sina de seu próprio nome, pois que a essência é o nome, como a todos, com sua consciência e experiência essenciais de poeta, ensinara o grãomestre Drummond. E porque, afinal, a luta do poeta não é / com o anjo (o anjo ou a besta, o amor ou a morte) mas com o verbo, / que dissolve em poesia, como soube tão simples e claramente discernir e dizer o terceiro e mais sereno entre eles, nesse tão breve poema que é quase só e puro pensamento (meta)poético, ou melhor, um autêntico e límpido aforismo poético-pensante, sobre a essência mesma da poesia. E o último deles nomeado, embora menos afeito às obcecações da temática e da imagística da morte e seus motivos sepulcrais, foi também no entanto capaz de clamar, no mesmo patético diapasão: Salta, Arcanjo, / cujo grito anunciando meu fim / eu mesmo gero, eu mesmo fabrico. E os quais juntamente, aqui de novo reunidos por obra e graça da poesia, na mesma paisagem irreal de um cemitério, onde agora jaz, hic et nunc, nunc et semper, o velho amigo enfim transformado e reintegrado em telúrio, memória e palavra, ressurgem pois como que redivivos no seio da grande noite, a noite imemorável, (...) Noite herdada / de noites ancestrais, áurea cadeia / de lua entrelaçada a lua, estrela / amalgamada a estrela (...) E ressurgem trazendo-nos à lembrança novamente aquele mesmo anseio da noite, do mar e da morte, que os aproximara na mesma lírica expectativa, como o que espera as visões da grande madrugada, como o que escuta longamente aquela estranha voz cair no mar da madrugada, perscrutando no silêncio o ruflo do pássaro noturno, ambíguo e misterioso — grande cisne das trevas encantado e noturno — com seu dúplice e irredimível canto de amor e morte, de morte amorosa, daquele amor de mor amor de amor talhado, como cantou em sisofrendo e sisofrido o nosso mesmo nativo poeta, vidente viandante das ruas, dos rios, e dos vastos abismos. Ou Asas da Palavra ainda, trazendo-nos juntos aquela fantástica visão que se solta das trevas como a madrugada, ou que brota subitamente dessas madrugadas de um estranho encanto, como de todos eles o mais plácido e suave poeta cantou, aquele que tão docemente, por uns termos em si tão concertados, soube anunciar morte, desolação, naufrágio, amor, aquele que soube imaginar e seguir o anjo verde dos caminhos, e buscou tão calmamente a estranha amada, a estranha amada das regiões perdidas, o mesmo que tão cedo já deixara, como que para o túmulo do amigo preparada, a imagem da flor exposta ao orvalho da morte, ou lhe reservara o sonho das estrelas / na rosa morta pela madrugada. E para completar assim a tertúlia cemiterial dos poetas-amigos mortos, em póstuma convocação, de novo unidos e reunidos poeticamente para receber o velho amigo recém-chegado à pátria da Poesia, como a vislumbrara num poema o mais visionário deles, lembremos ainda os versos perversivamente mortuários do outro e mais agônico dos quatro, o mais premonitório da própria morte (Sinto que o mês presente me assassina), o mais profundamente envolvido com seus defuntos mais revoltos, revolvendo no vazio da palavra sepulcros sem cadáver, e fadado pelas Musas e pelas Moiras a deixar-se atrair, como ele mesmo vatidicamente predisse, ao beco de agonia onde me espreita / a morte espacial que me ilumina. E o qual, no centro e no ato mesmo de sua poesia, de sua concepção e criação, numa de suas autênticas vigílias poéticas (ou, mais do que isso, metapoéticas), à luz mortiça de um círio fértil, vela o cadáver da palavra, à espera de outro verbo, para assim celebrar o sacrifício incruento do poema, onde o belo devora e gera o belo. Pois afinal, conforme ele próprio essencialmente concebe e consagra a arte, o poder e o mistério da poesia, esta é capaz, por sua palavra reveladora, re-criadora, de superar transcendentalmente a morte, como o declara ele e celebra noutro candente soneto: — a própria morte hoje defloro / e vida eterna engendro: gero, adoro. Enfim, todos esses signos funéreos, ou ecos cemiteriais, provindos da poesia dos seus quatro amigos que muito antes se foram, vêm ressoar profundamente junto à singela sepultura do imorredouro mestre, alcatifando-a com a força viva de suas metáforas, suas poéticas metamorfoses. É como se o mais velho amigo sobrevivente — o Chico sempre tão querido e chamado: Vamos Chico / não me negues a graça da presença (...) Vamos Chico, / esta noite floresce na legenda que é tua (...) Anda Chico / toma o teu anjo e vem (...) leva-me nas asas do teu anjo; (...) quero ver de novo o mar / nosso rumo é o absoluto / onde iremos descansar (...) —, é como se esse tão fascinante Chico, que a todos longamente sobreviveu, fazendo agora retumbarem no tempo, ecoando da poesia do outro e mais brando amigo, os mesmos leves passos que acordarão os amigos mortos, a todos por sua vez despertasse e reencontrasse nessas estranhas terras, onde ele agora pode ver enfim das trevas surgir a eterna claridade. Sem mais ouvir, contudo, como as escutara angustiadamente o seu mais fraterno amigo poeta — aquele então o mais jovem e exaltado cantor da amada escurecida, o que desejara adormecer sobre a grande noite, e para sempre sepultar o (seu) canto nas paredes eternas, mas que também clamou num verso desarvorado: — eu o jamais sepultável dos poemas —, sem mais ouvir ele, portanto, nem mais sentir-se metafisicamente angustiar pelo sopro fatal das trombetas aladas. Assim, e agora, não mais anseios de absoluto, ou de infinito, ou de eterno, nem mais angústias apocalípticas; somente, ao fim de tudo, a paz transcendental dos cemitérios, em que o velho amigo aos amigos mortos se reúne, se reintegra, na dimensão es- Asas da Palavra 91 sencial, incomensurável, do tempo. Pois o tempo mistério inigualável, como antes mesmo do chamado último Heidegger já o meditara a fundo e poeticamente Drummond, em especial num curto e arguto poemeto jocosério, do sempre surpreendente Claro Enigma, fazendo de brincadeira sérias e graves perguntas em forma de cavalo marinho, sobre o homem, o ser, o tempo, e terminando sem resposta, sob um tom heraclitiano: Que metro serve / para medir-nos? (...) Contemos algo? / Somos contidos? (...) Que relembramos? / Onde jazemos? // (Nunca se finda / nem se criara. / Mistério é o tempo / inigualável.); e como também refletiu, com antecipadora visão heideggeriana, mas pós-drummondiana, o nosso faustiniano poeta, o tempo, repitamos e recitemos com ele, para arrematar o tema da morte, e a tumular evocação, com outro dístico seu, duplamente lapidar: o tempo na verdade tem domínio / sobre o morto que enterra os próprios mortos. —— xxxx —— Retornando assim ao pé do singelo mas poetizado e belo túmulo do mestre, todo alcatifado de folhas, flores, memórias, metáforas, em suma, tapizado de relva e poesia, com efeito se nos afigura aí, dessa forma poética, e como acima o descrevíamos, ou melhor, o reinscrevíamos na própria origem, no húmus do sentido, em terra e palavra (dizendo-o novamente com a linguagem árqueo e criptográfica de Drummond), um modesto, singelo, humilde até, mas perfeito jazigo, no qual de fato possa jazer e repousar em paz e beleza a sua bela alma. Todavia, intervém aqui ainda, e à outrance, ecoando d’outre-tombe em nosso discurso fúnebre, uma voz de novo sepulcral e sardônica, embora amiga, ironizando e desdizendo a piedosa, estética e lírica idéia de alma: Alma que foste minha, / desprendida de meu corpo e de meu espírito, / leque de palma sem raízes, sem tormentas, / (...) sem cravos e sem espinhos; e em seguida lançando a reiterada e desarvorada apóstrofe, sem apelação: que trigo milenar te mata a fome / divina / que pirâmide encerra tua essência / nudíssima / que corpo te defende de ti mesma / do espaço / que idade, quantas eras, contra o tempo / alma anárquica (...) apoética, absurda / como chamar-te alma, de quê, quando, / para quê, alma de morto, para onde? Eis assim, cética e hereticamente, como do fundo ou do sem-fundo metafísico do poema, ou póstumo anátema, repto sacrílego, a si mesma questiona e interroga, sem propor nem esperar resposta, desdenhando crenças e saberes, signos e dogmas, mitos e musas (camoniana inclusa), a mente mefistofélica do mesmo revel poeta e amigo seu, estremecido, afinal como que rindo fausticamente das ilusórias certezas, rindo derrisoriamente da própria alma e da própria morte, depois de morto, ou faustamente libertando-se das seculares prisões temporais, como o rio / faustosamente corre para o mar / o rio-mar da sua própria vida desvivida e do seu próprio nome revertido, contradito, anagramado. Mas, não obstante essas memórias e ironias póstumas, de um outro e mais drástico Brás Cubas, contudo bem recebidas e até compartidas pelo espírito crente mas crítico do lúcido mestre, voltemos a imaginar, a idealizar o seu perfeito e perpétuo jazigo, como dizíamos, imaginavelmente situado numa tranqüila e amena paragem, como a que o nosso também moderno e grande sonetista, por seu turno, e à sua 92 Asas da Palavra maneira mineira, inscreve harmoniosamente entre Fraga e Sombra (e Solombra!... em eco relembro, ainda, os seus cecilianos encantos, e alumbramentos, com os mágicos poemas de Cecília, como os claros mistérios de Clarice, que o fascinavam). Paragem aquela imaginariamente onde, ante a falange / das nuvens esquecidas de passar, de longe um sino tange, enquanto baixa, severa, a luz crepuscular, e tudo enfim se resume em silêncio e ausência, envolvendo-se em música breve, noite longa, como evocativamente se relê nesse plácido e lânguido soneto citado: outro sibilino mas translúcido e harmonioso soneto de amor e morte (como vários outros, aliás, da mesma lavra e teor, que ele muito apreciava), feito de leve imagem e suave música, essencializante, que emana e soa também (e tão bem! qual se a ouvíssemos numa pequena e silente igreja) como a terna e serena sonoridade de um órgão, tocando em surdina, bachianamente, o mais leve andante da mais suave e plangente oferenda musical. E que ao nosso melômano mestre e amigo, igualmente da música essencial da poesia e da boa música de câmara, aqui reoferecemos, em elegíaca e musical lembrança... Feito esse último circunlóquio lírico-filosófico, de meditação ontotanatológica — designemos assim, com alta reverência na expressão — em torno ao túmulo daquele que tudo isso e mais nos ensinou, voltemos à evocação mais direta e chã do dia e do ato em si do seu enterro. Assim, no pesaroso rito do seu sepultamento, que todos acompanhávamos contristados e silentes, um fato concreto e eloqüente aconteceu, um fato inesperado e inédito, que veio cobrir de um sentido mítico e poético o momento derradeiro e dramático do funeral — aquele momento último, inapelável e triste, de efetivamente enterrar o morto. Que é sempre, deploradamente, como todos sabemos e sentimos, um momento patético, além de um ato em si mesmo lúgubre e grotesco: ver o corpo morto de uma criatura humana, de um ente querido, fechado num caixão, literalmente encaixotado, baixar à cova funda, com palmos medida, a dita cova de sete palmos, tão esconjurada e tão temida; e vê-lo depois ser lacrado, sacramentado, e definitivamente arrematado (com aquela argamassa de cimento e lágrimas) e ficar assim hermeticamente (hermeneuticamente, conforme aludimos) fechado embaixo da terra, sepultado, soterrado — segundo ecoa da antiga poesia cemiterial — sob a lájea fria; e por fim ser recoberto, palmo a palmo, pá sobre pá, de terra e barro, e mais nada. E em cima da terra, ironicamente, só restos de flores, murchas e mortas, só lamento e lamúria, e soluço apenas, sem mais palavras. E depois de tudo, enfim, pateticamente ao fim de tudo, as pessoas se despedindo e se retirando, mortificadas e mudas, saindo em silêncio, uma a uma, passo a passo, entristecidamente, deixando ali sepultada uma afeição, uma amizade, deixando ali, naquela pedra, naquela perda, uma eterna saudade petrificada. Tudo isso torna, de fato, o momento derradeiro do enterro propriamente dito, isto é, o ato bruto em si de enterrar, de deixar para sempre embaixo da terra o corpo de um ser humano, de um ente admirado e querido, um momento (reiteremos sem forçar a nota, sem fazer humor negro) que é por natureza, ou contra-natura, além de doloroso e dramáti- Asas da Palavra 93 co, algo de grotesco e macabro, tétrico e lúgubre, terrivelmente. Ou dizendo-o de outro modo, mais dentro do nosso contexto específico de referência: é o que há de mais brutalmente prosaico sem verso ou rima que o possa lenir nem remir nesta nossa rude prosa da vida. Por isso mesmo, o fato real e simbólico a que me reporto, recordando-o com um misto ainda de surpresa e reflexão, fato que ocorreu de repente, de forma espontânea e impulsiva, revestiu-se, naquela infausta circunstância, de um significado profundamente afetivo e poético ao mesmo tempo, dando àquele funesto evento um certo selo, diria eu, de lirismo dramático, por isso mesmo eloqüente: rompendo a paisagem desoladora dos cemitérios, quebrando aquela rotina triste dos enterros, enfim, aliviando o peso do absurdo rito, e dando um cunho menos pesadamente lutuoso, menos consternadoramente fúnebre, e sim mais celebratoriamente litúrgico, ao nosso coletivo e solidário acompanhamento do saudoso amigo e mestre à sua última e humilde morada (litúrgico, no sentido mais amplo e mais livre em que estou neste réquiem considerando a liturgia, como função cultual pública, não apenas religiosa, mas também profana, isto é, realizada do lado de fora, no adro exterior que se antepõe ao fano, ao lugar sagrado, ou santificado, portanto fora do recinto e dos cânones do templo, da Igreja; não esqueçamos que a palavra vem do grego leitourgía, com todas as significações históricas e culturais aí envolvidas: de serviço e sacrifício, de sagrado e profano, culto e orgia, no sentido original deste último termo; embora, no caso, estejamos principalmente aproveitando a tradição ritual católica, ainda que de forma não-canônica nem ortodoxa em relação aos ritos, imagens e símbolos aproveitados). Um fato, pois, inesperado, surpreendente, mesmo comovente, e, todavia, pouco notado ou até despercebido na sua discreta cena e no seu tácito significado, talvez em razão do confrangedor momento para todos que ali seguiam, consternados e abstraídos. Porém que a mim em particular, que estava bem no meio da cena, que vinha também carregando com muito pesar aquele para todos nós tão mais pesado caixão, a mim aquele súbito embora discreto fato me tocou tão de perto e fortemente, que não me passou inócuo, não se apagou da minha lembrança, e não posso deixar de relembrá-lo e alegoricamente interpretá-lo, incorporrando-o, como já disse, ao texto e ao contexto litúrgico-ritualístico deste réquiem, nãocanônico, reitero, mas que nem por isso rejeita o teor sacro e eclesiástico do gênero; antes ao contrário, procurando absorver-lhe o sentido conjuntamente religioso e estético, ou estético-religioso, segundo a formação e o espírito, conforme vimos, do nosso egrégio mestre aqui celebrado. 94 Evoco-o e dou aqui, portanto, a tão marcante e significativo fato, a interpretação simbólica que na ocasião mal lhe pude dar, ou somente vislumbrei, ao comentá-lo automaticamente no ato, para mim mesmo, em breve murmúrio, apenas esboçando ou insinuando naquele instante, por simples associação de imagens, o seu mais profundo e completo sentido, que adiante irei explicitar. Mas já extraindo ali naquele relance, como depois melhor analisei e agora aqui recordo e reinterpreto mais amplamente, todo um sentido mítico e poético, ou inseparavelmente mitopoético, daquele derradeiro acontecimento biográfico (posto que a morte por fatal con- Asas da Palavra tradição é o último evento fundamental da vida) e de toda uma existência, inteira e íntegra, que sempre fora devotada ao ideal poético, ao projeto lírico do mundo, e que ali, recolhida naquele esquife, ainda por um instante existia e subsistia malgrado inerte de alma aberta, e de corpo presente. O inusitado episódio aconteceu por assim dizer no auge do rito fúnebre do enterro, quando o préstito já demandava o locus sanctus para o sepultamento. A certa altura do silencioso cortejo, propício a largas reflexões em torno à culta figura do morto, digamos que já pela metade do final percurso, ou de novo com Dante dizendo, no meio do caminho desta vida breve a sepultura (aquela bruta e áspera selva oscura), nós que íamos carregando com penoso esforço o seu tão leve esquife, todos amigos homens, como é de praxe, fomos de repente e com certo espanto surpreendidos, e mesmo comovidos, por um ato insólito, um fato inédito entre nós ao que se saiba: algumas ex-alunas, amigas e admiradoras do falecido mestre (segundo me lembro: Amarílis Tupiassu, Ângela Maroja, Dina Oliveira, Juruema Bastos, Maria Lúcia Medeiros, e talvez alguma outra, não me lembro bem), que vinham acompanhando o triste préstito ao nosso lado ou logo atrás, em dado momento, num espontâneo impulso e iniciativa de não sei qual ou quais delas, chegaram-se a nós e sem pedir nem hesitar foram tomando em suas mãos as alças da urna funerária (para elas talvez ainda mais efetiva e afetivamente pesada), desse modo direto e forte demonstrando, mais do que dizendo, que queriam também carregar o caixão, suportar o peso daquela dor, daquela perda, como de fato a partir dali o tomaram e carregaram e suportaram, sem parar nem tremer, até o fim. Prestando assim de forma concreta e ativa, de corpo e alma, com o seu nobre gesto, com as suas próprias mãos e todo o sentimento nelas colocado, o seu último preito de admiração, de amor, puro amor, sua última e eloqüente homenagem ao admirado e amado mestre, ao seu mestre querido. A princípio relutamos um pouco em ceder-lhes àquele impulso, achando que o peso e o percurso eram demais para elas, e tentando prosseguir cumprindo com pesar o nosso ritual ofício e sacrifício. Mas de nada adiantou nem adiantaria: estavam determinadas a cumprirem elas mesmas, com suas próprias forças, o seu dramático rito de admiração e despedida. Insistiram pois na decisão, foram nos afastando com delicadeza, mas com determinação, pegaram firme as alças do ataúde e, emocionadas e decididas, o carregaram daí em diante sozinhas, solidárias, pateticamente refortalecidas pelas forças maiores do sentimento e da emoção. E assim ungidas e compungidas, no exato e coeso sentido dos termos, elas próprias como que transportadas pela tristeza e a dor, e como se caminhassem ao ritmo interior de um andante lamentoso, conduziram-no em lenta e silente marcha fúnebre, consternadamente, até o limiar do túmulo, até ao pé da sepultura, ou para o dizer como de fato se diz, em forma direta e crua perante a crueza do fim: até à beira da cova para além do tempo, irreversivelmente. Foi, com efeito, um episódio incomum, quase inacreditável na Asas da Palavra 95 tradição normal das nossas práticas funerárias, porém que aconteceu efetivamente e marcou de um cunho singular e enobrecedor o modesto funeral, o humilde enterro do nosso grande amigo e mestre maior. Fiquei, quanto a mim, extremamente impressionado com aquele gesto: mais do que um gesto, de amor e dor, simultaneamente, uma atitude de alto respeito e honraria da mulher à grandeza de espírito do homem, a essa hombridade moral e espiritual superior, que faz de um homenzinho pequeno e franzino, como o nosso Chico Mendes, um portento de humanidade! E que as mulheres, por sua própria natureza em geral mais afetuosa e generosa, também mais francamente reconhecem e glorificam. E são até mesmo capazes, como no caso espontaneamente o foram, de carregar-lhe o corpo morto, alçando-lhe o ataúde, não em simples sinal de luto, ou de honras fúnebres, mas em real e paradoxal triunfo, pois triunfo quiçá sobre a própria morte: Mors stupebit et natura / cum ressurget creatura. 96 Uma atitude, portanto, espontânea e simples, inesperada e despretensiosa, que entretanto se tornou, naquele contexto, uma excelsa atitude, mais do que inédita, inaudita e augusta perante a majestade da morte, e a dignidade do morto. E que a meu ver, naquele momento sensível, não só adquiriu uma dimensão algo sublime, ou que superou o lúgubre e o grotesco naturais ao drama real do enterro, impondo o valor ideal do gesto sublime, mas também, simultaneamente, infundiu àquele ato prosaico, rotineiro e triste, um sentido gloriosamente simbólico, de caráter mítico e poético, em função da analogia cultural (e cultual) que despertou. Assim, lembro que, logo depois de passar a uma delas (Maria Lúcia) a alça que eu segurava, e notando então que era todo um grupo feminino envolvido e empenhado naquela ação conjunta, um grupo unido e como que impelido por um só e repentino impulso emotivo, automaticamente murmurei para mim mesmo, em tom meio jocoso, num misto de susto e riso contido, mas de nenhum modo irônico (a não ser pela ironia trágica inerente à própria morte, ali patente), uma frase que me brotou naturalmente, ou quase inconscientemente, diante daquela inesperada cena (quem sabe por que junguianos caminhos do inconsciente coletivo!?), frase precisa e incisiva, trazendo à tona uma instantânea e exata associação mitológica: — São as mênades furiosas! — sussurrei brincando e sorrindo, quase só para mim, ou de mim para comigo, em curto e certo comentário. [E abrindo um amplo e longo parêntese, que todo entrecortado será, para frisar aqui, de um friso dórico, a incidental e helênica citação, recitemos na seqüência, ressalvada a romana adaptação, ainda um belo verso alusivo ao mito dionisíaco: E nos irados olhos das bacantes — qual cantara, tão ritmada e melodiosamente, como em grego e tírio ditirambo, o nosso jovem e contemporâneo Píndaro, que foi o seu já lembrado grande amigo e poeta não menos grande, tão prematura e tragicamente desaparecido, como já antes relembramos no contexto fúnebre deste réquiem, e com todo o pesar que restou contido em tantos versos seus, espantosamente premonitórios, como se arautos fossem da brutal tragédia; e cuja morte assim tão trágica e tão traumática ainda hoje horripilante na sua fatalidade e contundência, e não de todo expungida de nossa memória social e literária, na qual para sempre ficará inscrita como um enigma e um estigma da poesia brasileira cabe ainda ser resgatada no seu patético sentido, exorcizada do horror que se seguiu ao seu impacto, ao ser Asas da Palavra agora e aqui rememorada poeticamente em meio aos tributos líricos prestados e oferecidos na branda morte do velho amigo, certamente um dos que mais sentiu e sofreu aquele golpe brutal, aquela abrupta hecatombe. Mas prossigamos na funesta recordação todavia dramaticamente poética em sua insólita significação, uma verdadeira contra-dicção poética em si mesma, no seu estranho prenúncio ou absurdo predizer da infausta hora ¾ ainda compelidos sob o acicate fatídico da mitológica evocação: um predestinado jovem, um malsinado poeta, sem dúvida, que haveria de ser literalmente despedaçado, ou, dir-se-ia, estraçalhado pelas Erínias em sua terrível e desgrenhada ira, que ele tanto e a fundo provocara e fustigara com as mais desafiadoras palavras; infernais Erínias como que atiçadas também pelas fatais Moiras, que lhe haviam por sinal (mau sinal) mais de uma vez nos seus próprios versos, nos seus próprios ditos inauditos de poeta, preanunciado a fatal desdita, inclusive, conforme vimos já, enviando-lhe em sonho e fantasia celestial aquele Anjo satânico, e sardonicamente apocalíptico, de vulto tão belo / em (seu) cavalo amarelo; o mesmo poeta assim radical do amor e da morte, que soube cantar de amor tão mortalmente, e que com esse leitmotif crucial, e cruciante, ou mesmo crucificante (com os próprios cravos dos seus versos de autoflagelação lírica) da sua própria existência e da sua existencial poesia, quer dizer, da sua real e vital experiência poética tornou-se indiscutivelmente, com sua linguagem ao mesmo tempo e escandalosamente orgiástica e litúrgica, numa só e promíscua expressão (naquele originário e forte sentido de liturgia a que antes nos referimos), no fausto verbal e na luxuriante imagética, o nosso poeta por excelência não só dos faustosos versos, volutuosos, capazes de explorar e de exprimir todas as volutas da linguagem, todas as volúpias da expressão (Vida toda linguagem, reinvoquemos-lhe o poético apotegma), mas sim também dos mais fáusticos decassílabos sáficos; e heróicos, igualmente, inclusive o heróico quebrado, como no límpido e desesperado Soneto que eu chamaria o patético soneto do Necessitado, de um absoluto necessitado: de ser e de amar; soneto que é tão claramente a expressão crua, e a urgente revelação, do seu árdego desejo amoroso, daquele outro e mesmo amor de que falou Drummond, em claro enigma envolvendo-o, e resgatando-o desde o belo mito de Ganimedes, em belíssimos decassílabos clássicos, debruados em retorcida e insinuante sintaxe neobarroca, rigorosamente heróicos no metro e no ritmo, porém essencialmente sáficos no amoroso tema, como bem denotam estes rompentes versos iniciais: Se uma águia fende os ares e arrebata / esse que é forma pura e que é suspiro / de terrenas delícias combinadas (...) ; ao que por sua vez, e não por acaso, responderia depois em contemplante soneto o nosso ledo fauno das praias imaginárias, ferindo o mesmo mito e no mesmo ritmo: Divisamos assim o adolescente, / a rir, desnudo, em praias impolutas (...) E loucos e ladrões acalentavam / seu sono suave, até que um deus fendia / o céu, buscando arrebatá-lo, enquanto / durasse ainda aquele breve encanto. Aspecto marcante e forte da experiência existencial e poética de Mário Faustino, que não terá sido talvez indiferente ao nosso tão sensível mestre: pois sua grande atração ao mesmo tempo literária e afetiva pelo jovem amigo, que ele descobriu e revelou como poeta de raro talento, e certamente admirou como radiante e belo efebo que era (segundo salientam os que lhe conheceram pessoalmente a verve e o charme), não terá ficado quiçá imune a uma possível e surda afeição verlainiana, sublimada na admiração e na amizade, mas que talvez no fundo o ligasse com mais Asas da Palavra 97 98 vivo afeto, ainda que platonicamente, sob um ersatz poético, à fascinante figura a todos os títulos rimbaudiana do jovem poeta e amigo próximo (enigmaticamente, aliás, et pour cause, hélas!... relembro ainda com um misto de surpresa e de estranheza, que, ao visitar espontaneamente o velho mestre algumas semanas antes de sua morte, eu que já há algum tempo não o via, surpeendi-me e mesmo espantei-me ao encontrá-lo de barba inteiramente crescida e cerrada, e não era de todo branca apesar de sua idade avançada, ele que em quarenta anos de convivência eu jamais vira barbado, pois que estava sempre de barba feita e bigode bem recortado, barbeava-se diária e religiosamente, apesar do sacrifício, e esta era por certo uma visível marca da sua aparência e do seu estilo elegante de ser e de viver; no entanto, naquele preciso dia, ali estava ele meio desalinhado e muito barbado, barbudo mesmo, como eu jamais o vira antes, e, além disso, um tanto abatido, amargurado e triste; também eu contristei-me em vê-lo daquele modo, e acheio-o então estranhamente parecido com algum artista famoso, decerto um pintor, que eu conhecia de fotografia e ao qual era ele muito afeito, mas não consegui então definir bem qual seria; primeiro pensei em Monet, mas logo vi que não era bem o caso; depois pareceu-me mais plausível que fosse a figura do Douanier Rousseau que ele assim lembrava, e cheguei até a comentar essa impressão com alguns amigos comuns; porém, muito mais tarde, e daí vem aquela confusa estranheza, quando alguns meses depois de sua morte estava eu escrevendo este réquiem, ao me recordar daquele surpreendente encontro final, de fato a última vez que o vi em vida, lembreime de repente com toda a clareza, quase uma clarividência, e então convenci-me absolutamente, que naquele infausto dia o seu rosto me impressionara tanto porque, naquela ambígua e simbólica ir-realidade, ele parecia-se muito e exatamente era com a figura barbuda e sofrida, não de um pintor, mas sim de um marcado poeta que ele também muito lera e admirara: Paul Verlaine; e logo surgiu-me à lembrança, em conjunto e em contraste, também muito simbolicamente, o retrato juvenil e fascinante de Rimbaud, que sem dúvida tinha sido para ele, muito mais do que o enfant gâté da poesia, o seu igualmente amado Satan adolescent, poeta muito jovem e prodígio, que ele tanto citava, recitava, e sublimemente amava, sempre a lembrá-lo com especial fascínio em aulas e nas rodas literárias; pauvre Lelian, pobre Chico Mendes! que terá quem-sabe desejado ou imaginado viver no fim da vida, melancolicamente, na sua própria figura e desventura a também desditosa figura verlainiana...); o qual jovem poeta e auto-poetificado amante, como se sabe, lancinantemente experimentou no seu próprio ser conflituado, supliciado, crucificado no seu próprio anseio de ser, contra o lenho absurdo de não ser (o lenho de teu signo suicida?), como o confessa ele e clama, sem fingimento poético nem real, no referido e quebrado e sincero Soneto (Necessito de um ser sendo ao meu lado / Um ser profundo e aberto, um ser amado) aquele aguilhão supino da carne e da alma, simultaneamente, com que a natureza imprime, segundo a mesma isenta e serena meditação drummondiana, ... dobrando-lhe o amargor, outra forma de amar no acerbo amor. Poeta ávido, arfante, e insofrido pois, como se revela ele, Mário Faustino, nos sôfregos versos do citado e singular soneto, ante os apelos contraditórios do ser e do não-ser, do desejo e da falta, do amor e da morte, da vida e da poesia envolvidamente, sob o dominante impulso de Eros, buscando a fundo um ser humano, um ser amado, ansiando a sós, à noite, ao pé do desumano / desejo de morrer (aqui é mais Asas da Palavra pateticamente humana a sua visão da morte), e quebrando assim direta e formalmente o verso heróico, para quebrar ao mesmo tempo, de um só golpe duplamente anti-heróico e profundamente irônico e auto-irônico, as duas velhas falácias poéticas: a do heroísmo estóico ante a condição trágica da existência e a do rigorismo formal, da rígida regularidade métrica, artificialmente controlada e obedecida, pretensamente reveladora de uma atitude lírica impassível, do jugo ou do gelo da razão sobre as flamas e os clamores da paixão, sobretudo em nossa mais tradicional e estereotipada forma, ou fôrma poética, a do velho e persistente soneto, como forma fixa e inflexível, por isso mesmo quebrável; rigidez que o nosso revel poeta, contudo, partiu completamente ao meio, e em sete versos quebrados espedaçou; e ainda em outro e mais quebrantado, desconstruído, como que espatifado Soneto, e talvez por intencional ironia assim de novo e simplesmente intitulado, ele de todo estilhaçaria em fragmentos métricos e verbais diversos: despedaçados versos, palavras em bronze e brasa dilapidadas, para dizerem e galvanizarem, a ferro e fogo, num auge poético e orgástico dos sentidos, em árduas sinestesias, as mais vivas lacerações de amor e morte, verbalmente resolvidas; desconstruindo assim o rigor e a rigidez da forma pelo vigor e a força irrompentes da significação, da significância, como diz com mais precisão a moderna semiologia literária. Sedento e angustiado poeta, enfim, autosupliciando-se como que sáfica e sàdicamenteno no próprio jogo e gozo íntimo de sua poesia, mártir sangrento de sua própria palavra, escalavrada e viva (... fecunda / carne que tomarei por fêmea, carne / feita de verbo, cara carne ...), vivendo assim no seu próprio ser o suplício da expressão, na busca, na angústia de exprimir o inexprimível, o indizível, o inaudito, o interdito dizer que lhe cala n’alma profunda, atormentada, torturada e livre no cárcere do próprio corpo verbal do poema, disjungido, desmantelado, disjecta membra na vida e nos versos, homologicamente; o qual jovem e revel poeta, além disso, ou melhor, por tudo disso, foi decerto na literatura brasileira contemporânea, ou de qualquer época, o nosso único e autêntico, além de herético e satânico, em confronto crítico com todas as doutrinas codificadas e estabelecidas, inclusive e principalmente as da literatura e artes poéticas tradicionais e mesmo as modernas, e além de um novo tipo de poeta maldito, rigorosa e vigorosamente o que podemos chamar um poeta sacrílego, no sentido etimológico e eminente da expressão; e isso já desde a ousada e explícita Mensagem com que abre a primeira seção do seu primeiro e único livro publicado em vida, onde se lêem estes que, muito mais do que versos satânicos, malditos ou blasfemos, são intrínseca e abertamente versos sacrílegos, sem contestação nem condenação possíveis: Em marcha, heróico, alado pé de verso, / busca-me o gral onde sangrei meus deuses (...) Dize a eles (...) que desçam sobre a urna deste olvido / e engendrem rosas rubras / do estrume em que tornei seus dons de trigo e vinho); poeta sacrílego, portanto, em todo o étimo e o peso da expressão, e no sentido mais puro, mais originário (naquele exato senso mallarméano de donner un sens plus pur aux mots de la tribu), sentido ao mesmo tempo o mais próprio do termo e ao contrário da acepção atual: portanto, o puro sacrilégio ao reverso, em sentido positivo, afirmativo do sagrado que é correlato-intrínseco ao profano e mundano da experiência humana, em especial a profunda e radical experiência poética (poiética) da existência e do mundo (do ser-no-mundo e ser-para-a-morte, inseparavelmente); sacrilégio que assim significa em si, etimologicamente, em primeira e última instância, Asas da Palavra 99 100 linguagem sagrada, discurso do sagrado, ou legislação sagrada (os próprios mandamentos, mistérios, oráculos, escrituras, dogmas, apotegmas de fé, em suma, a santa Palavra de um deus ou dos deuses, revelada ou transmitida aos homens para a entenderem, seguirem e cultivarem), ou ainda, o conjunto coligido, codificado em bíblias, códices e breviários, das leis, ditos, versos, preces, cultos, cantos, ritos, gestos, sinais e símbolos sagrados, enfim, todas as normas e formas sacras professadas pelas diferentes religiões e seitas; mas que, na realidade, ou na atualidade da significação comum, por contradição interna e inerente à própria linguagem, que não raro se desdiz e contradiz a si mesma (pois são históricas as línguas, as culturas, e não eternas ou naturais), quer dizer hoje em geral, na fala cotidiana ou linguagem comum, exatamente o contrário de tudo isso, isto é, quer fazer sentido a contrariu sensu: significando, precisa e opostamente, a infração das leis e a infamação das palavras e escrituras sagradas, ou a profanação das coisas e formas sacras, e, por extensão, a profanação dos lugares santos e o uso profano de objetos sacros, a começar pelo furto de tais objetos, que teria dado origem ao vocábulo novilatino sacrilegus (ladrão do sagrado, amaldiçoados nome e homem, não obstante o belo perfil sacrossanto do termo nominal, ambivalência que talvez explique o peso mais leve, mais venial, ou menos negativo do cognato sacrilegium, que, segundo o nosso velho e bom etimologista Antenor Nascentes, viria lá, ou já, de Horácio, Sátiras, I, 3, v.117: qui nocturnus sacra divum legerit; daí é que posteriormente se teria criado, agravado e generalizado o termo execratório); e, por fim, passando a designar todo e qualquer tipo de profanação religiosa , ou inclusive de alvo não religioso, ou seja, em última análise, o infringir de todas as tábuas da Lei, das leis maiores ou supremas, de todas as escrituras sagradas, todos os discursos instalados, repetidos, estabelecidos, incluídos os das artes poéticas tradicionais e consagradas, enfim, profanação da linguagem sagrada pela (mesma) linguagem profana, dos códigos rígidos pelo livre-discurso, ou, numa palavra, do discurso mítico pelo discurso poético; ou ainda, e em vista do nosso fim específico: o profanar da linguagem por si mesma, poeticamente, profanando no seu próprio espaço de expressão, de enunciado e enunciação, as próprias normas, formas e fórmulas cristalizadas, con-sagradas, da própria linguagem e da própria poesia, como também as do mito e da religião, de todos os discursos consolidados, codificados; profanação, afinal, do templo da linguagem (casa do Ser, lembremos) pelo duplo sacrilégio-e-sortilégio da poesia, o que aparentemente seria uma contradição nos termos, se não se tratasse do próprio contra-dizer que é o da poesia; porém é que o sacrilégio significa finalmente isso: um contradizer-se da palavra, dos termos, denegando-se, desdizendo-se, desfazendo-se o sagrado das linguagens com a própria linguagem do sagrado; portanto, num processo interno e moderno, inédito e inaudito, de dessacralização geral dos conteúdos e dos discursos, em prol de uma renovação mais pura e mais crua do sagrado, da experiência e expressão humano-divina do sagrado em si, esssencial (para além ou aquém do mistério religioso), de que a verdadeira e grande poesia é portadora e privilegiada enunciadora (e vejam aí também, na mesma pauta etimológica, o privilegium); donde a força eloqüente, heterodoxa, e o impacto chocante, herético, blasfemo, do discurso sacrílego, tipicamente sacrílego, que diz o sagrado ao reverso, per-verso, desdizendo-lhe o sentido consagrado, mas sem necessariamente acoimar nem macular o discurso religioso, Asas da Palavra nem ofender as religiões, antes cultivando-as (embora não cultuando-as) no sentido mais puro e profundo do culto, da cultura religiosa e lítúrgica, poética in nuce, ou ab ovo; e esse contradizer-se da linguagem, em termos de sacrilégio, falando contra si mesma, a contrapelo, para melhor reafirmar-se, ressignificar-se, é precisamente um privilégio, e às vezes também um sortilégio, verbal (alquimia do Verbo, da palavra interdita), próprio do discurso poético, afeito não só aos sentidos opostos e à harmonia dos contrários, mas ao próprio contra-senso e mesmo ao puro nonsense dos termos e dos sentidos; pois o contraditório e o paradoxal, como sabemos, são matéria e forma essenciais de poesia (e nosso mestre bem que nos dizia), os elementos mesmos em que se movem e se fazem o pensamento e o discurso poéticos maiores (não esqueçamos, a propósito, que a poesia mais rica / é um sinal de menos, como antitética e até matematicamente equacionou o problema, em fórmula tão sábia quanto simples, o nosso poeta maior). Templo da linguagem, pois, recinto de deuses e de mitos, de nomes e mistérios, sentidos e segredos, sinais e signos do sagrado, todos os címbalos e símbolos, enfim, reduto eminente da poesia, onde o nosso órfico e fáustico poeta celebra sacrilegamente o seu ofício, o sacrifício da palavra, do verbo que se faz carne poeticamente, cara carne, conforme o vimos e ouvimos proferir, em nova forma instituindo e enunciando os seus oráculos, délficos, apolíneos, dionisíacos, talmúdicos, querigmáticos, eucarísticos (só não soteriológicos, evidentemente, pois um tal poeta, sacrílego e descrente por condição e convicção, obviamente não acreditava em qualquer promessa oracular, qualquer que fosse, de salvação beatífica do homem, nem terrena nem extraterrena, nem temporal nem eterna, a não ser aquela, paradoxal, e sarcástica, de inebriante e delirante dançar a valsa da vida com a morte, sem pensar nem cessar). Nesse templo é que, em contra-senso, em controversa forma, ele sangra impiamente os seus deuses, pagãos e cristãos, como o decantado e danteano deus do Amor, destituído de seu antigo vigor de ser: Amor represo em ritos e remorsos, / Eros defunto e desalado. Eros! / Eras tão belo enquanto não pregavam / No cume do obelisco de teu falo / Uma cruz, um talento de ouro, um preço, / Um prêmio, uma sanção... À própria encarnação do deus cristão, deus de amor, redentor, feito homem para nos salvar (segundo a sagrada palavra dos santos evangelhos), ele interpela com a mais franca e sacrílega ironia: A noite tomba, Iésus, e no céu / Da tarde, onde os revôos de mil pombas / Sôltas pelo desejo de teu reino? E dirigindo-se ao ente universal do Homem, depois de negar-lhe todo reinado antropocêntrico no mundo e de apontarlhe a extrema fragilidade (débil cana) do seu pretenso cetro, entretanto retoma a defesa de nossa inalienável humanidade com o ainda mais sacrílego teor desta invectiva, que chega a profanar a figura do Santo Sepulcro: Nosso inimigo toma nosso aspecto / Para zombar da nobre nossa espécie: / E quem nos erguerá deste sepulcro? Enfim, convocando de todos os pios templos todos os novos e modernos sacerdotes, que são sobretudo os pensadores, artistas e poetas verdadeiros, ele comete-lhes a inédita e inaudita missão de permanentemente proferirem o mais contundente e explícito dos sacrilégios, porquanto eles, poética e profeticamente a um só tempo, como os conclama: Repetirão a cada aurora (hrodo, / Hrododáktulos Eos, brododáktulos!) / Que Santo, Santo, Santo é o Ser Humano — Flecha partindo atrás de flecha eterna — Agora e sempre, sempre, nunc et semper... Nada mais expressa e abertamente sacrílego, sem dúvida; porém de um puro e demiúrgico sacrilégio, como o consideramos. Asas da Palavra 101 102 Tudo isso, portanto, sem fazer-se nunca, este nosso único poeta verdadeiramente sacrílego, e talvez mesmo de todas as literaturas em língua portuguesa, um mero poeta iconoclasta (que destes os houve muitos, e maus poetas, sobretudo os anticlericais, declarados e desabusados): a iconoclastia do nosso poeta revel, e blasfemo, mas sempre ligado à amorosa memória dos deuses (... jogral verde / que outrora celebrou seus milagres fecundos), é antes contra os ícones calcificados da própria poesia ou da linguagem poética sacralizada, cristalizada, mumificada (e, claro, as correspondentes ladainhas e jaculatórias, verbais e não-verbais, do discurso religioso petrificado, bem como de todas as mitologias ideológicas ou ideologias mitológicas, mistificadoras), que ele se empenhava em derruir, derrogar, sem todavia querer apenas destroçar, destruir, qual tresloucado iconoclasta, numa espécie de terrorismo cultual e cultural, já ultrapassado ou quase desaparecido no Ocidente, embora hoje recrudescido num certo Oriente (afinal, é bom para o homem, e é agradável aos deuses e aos santos, aos semideuses e heróis, coligir ou colecionar, colher, eleger, selecionar, reunir ou arranjar, e até mesmo obter furtivamente, pois tudo isso vem da mesma raiz lingüística, elementos, documentos e objetos sacros, de todos os credos ou crenças naturalmente, sem preconceitos, e sim toda uma politéica e variada iconografia mítico-artística, mágico-religiosa, formando assim um verdaeiro florilegium de textos, coisas e formas sagradas, ou todo um collegium eletivo, um collegium aureum de figuras sacras superiores, uma ampla e alta coletânea ecumênica de um certo universo do sagrado, ou simplesmente, como se costuma dizer, uma col-lecção de santos, e de coisas santas ou objetos de igreja, conforme a antiga e exata grafia portuguesa remanescente da etimologia latina, paradigmática, de lego, legere, legi, lectum, lex, legis, lecte, lectus, lectio, lectionis, lector, lectoris, et alii et coetera). Porém, em sua escrita convictamente herética — e portanto crítica, sectária no sentido próprio das suas escolhas ou selecções pessoais, preferenciais, de pensamento e linguagem —, nada de cismáticas, fanáticas, enfáticas blasfêmias, apóstrofes destemperadas, anátemas laicos de santa ira ou de anticlericalismo rancoroso, do mais odiento ateísmo iluminista e positivista, iconoclastas, ultrapassados, que de nada adiantam e nada mudam a fundo, nem neste nem noutro mundo; antes tenderam e tendem ainda, em certos focos recalcitrantes, no seu materialismo raso e obtuso, reducionista, a rebaixar e apoucar a complexidade da natureza humana, pretendendo negar ou eliminarlhe a fome do divino, do sobrenatural, do supra-sensível, enfim, do extraordinário e do maravilhoso que alimentam a essência do humano pensamento e imaginação, e cuja busca inesgotável se manifesta e descarrega justamente nas criações e recriações do mito, da religião, da arte e da filosofia (não-positivista, logicamente; ou até mesmo nos interstícios metafísicos e analíticos do positivismo lógico, onde, afinal, todo um tractatus logicophilosophicus vai resolver-se musicalmente, e poeticamente, num constructo místico do mundo como linguagem, ou como o mundo da linguagem, totalidade incontornável e intransponível, e depois na concepção dos jogos de linguagem como forma de vida). Mas sim, como íamos dizer, uma profunda e respeitosa, ou até mesmo reverente, consciência irreligiosa, que reassimila e reinterpreta heterodoxamente, é claro, expressões fundamentais do discurso mitopoético e querigmático das grandes religiões, em especial do paganismo antigo e do cristianismo tradicional, em toda a sua tradição judaicocristã, unindo assim profundamente na temática de sua poesia e sobretudo Asas da Palavra na sua linguagem poética, linguagem que é em si mesma também florilegium uma bela e farta colheita, coletânea (col-lectanea) antológica, de flores poéticas, míticas, retóricas, litúrgicas, perfeitamente colhidas e arranjadas em pequenas e grandes guirlandas poemáticas, ou em mais livres e largas grinaldas, espacializadas, ou simples ramalhetes-fragmentos de versos, metros diversos, inteiros, quebrados, desdobrados, disjecta membra, esparsos, dispersos ritmos e estrofes canônicas ou heterotróficas, em tudo isso perpassando literária e etimologicamente o também sortilegium poético, tão rico e intenso (até por vezes em excesso ou raiando ao artifício) nesse poeta de tão elaborada e enfeitiçante linguagem (quase a incorrer num certo fetichismo do verbo, da palavra pela palavra, puro jogo verbal, aquela palavra: panacéia que ele mesmo auscultou e esconjurou, no soante búzio verbivocovisual, de um sabuloso mar, que é o seu fenomenal poema do Cavossonante escudo nosso, mas sem conseguir, talvez, completamente abolir e conjurar dos lances últimos de sua poesia), e ambas as duas formas paronomásticas diretamente convergindo e rimando com sacrilegium; e isso não apenas em sua morfologia externa mas a fundo lingüisticamente, ou poeticament se quisermos, pois todas afinal provêm etimológica e analogicamente de lego, legiu, legis, de legein, em última análise, de logos, quer dizer: da própria linguagem essencial, originária, que é a linguagem primordial da poesia, ou a própria linguagem como poesia primordial, o dizer poético inicial, primacial, fundador, que está na base de todos os discursos. Desse modo ainda mais integradamente unindo e religando, pois, nosso demiúrgico e sacrílego poeta, no cerne de sua poética, de sua dicção poética, o divino e o humano, o sagrado e o profano, o eterno e o efêmero, a carne e o espírito, a graça e o pecado, a bendição e a maldição, o sacrifício e a deleitação, o banimento e a redenção, em suma, o bem e o mal, o amor e a morte. Em especial, por conseguinte, no tratamento poético, lírico-dramático, ou mesmo trágico-patético, do tema preferencial e ambíguo do amor-e-morte, vital e crucial paradoxo, puro oxímoro, que está no centro mesmo de sua poética e sua erótica inseparáveis como experiência dúplice e una, liricamente mágica e algo mí(s)tica em seu êxtase e agonia, orgiastikós sobretudo no caso exemplar e antológico, autêntico florilégio sacrílego, embora não o mais blasfemo, que é a poliantéia clássicomoderna das sete setas satânicas e sublimes que o “arcanjo incendiado” (Estava lá o arcanjo incendiado / Sentado aos pés de quem desafiara) contra si mesmo desfere seguidamente, obsidentemente, na incruenta e supliciante coroa poemática dos Sete Sonetos de Amor e Morte , e tudo isso no preciso e contudo ambíguo sentido da concepção antropológico-filosófica do Erotismo num Georges Bataille, por exemplo, com sua irredimível dialética do interdito e da transgressão: o mesmo poeta-pensador heterológico, aliás, de A Experiência interior, de La Part maudite, de A Literatura e o mal, em suma e afinal, de La Somme athéologique, e que ainda iria até às Lágrimas de Eros; aliás, outra grande afinidade poético-religiosa (ou de uma visão poética da religião, neste laico e largo sentido) do nosso mui religioso mestre mas também nada ortodoxo no seu conceito e prática da experiência religiosa; e que por isso mesmo, isto é, também por essa afinidade profunda com o pensamento e a experiência de Bataille, foi tão, digamos assim, pecaminosamente fascinado (a velha atração irresistível da árvore da sabedoria e do fruto proibido) pela tão sacrílega poesia do seu faustiano e predestinado amigo; o qual, como lembramos, por uma fatalidade atroz retomemos o trauma de Asas da Palavra 103 104 sua morte com os versos bruscos de Castro Alves dessas que descem do Além, morreria tão prematura e violentamente, como é sabido, num fragoroso desastre aéreo, no mesmo ano em que morreu Bataille. Ele, poeta dos infaustos signos (muito mais pressagos do que os sinais dos tempos), que antevira premonitoriamente nas imagens verbais de sua poesia infiltraremse aziagos os passos virtuais, fatídicos, da morte pressentida, quase esperada (e ainda aí sacrilegamente falando: Sinto que o mês presente me assassina, / Corro despido atrás de um cristo preso, / Cavalheiro gentil que me abomina / E atrai-me ao despudor da luz esquerda, / Ao beco de agonia onde me espreita / A morte espacial que me ilumina. E acentuando ainda mais as cores negras do presságio, de mistura com imagens eclesiais, sacrílegas, da santa sina, do fatal destino: Sinto que o mês presente me assassina. / Há luto nas rosáceas desta aurora. / Há sinos de ironia em cada hora. Ou como, já desde o prólogo poético de sua obra, tão profeticamente sentenciara e traçara: ... entre aurora / e meio-dia um homem e sua hora. Ou quando, em cristológica alusão, rejeitando o corpo morto que nele mesmo jaz, deseja entregar-se ao vivo que nele estua: Ao que, se a Morte chama ao longe: Mário!, / Me abraça estremecendo em meu sudário. Ou ainda quando, maldizendo o revés da própria sina, pressente, preliba, e deplora a noite festiva, tanática, mas frustrante, que estranhamente lhe adia a sorte: ...Dura sorte, / ter de deixar para outra noite a morte), e cujo efetivo desaparecimento, ou antes, brutal e súbito arrebatamento, prematuro e trágico logo tornando-se dolorosamente simbólico em si, como um holocausto nos (dos) céus, despedaçada a asa ao rapto da heresia, crestado no mesmo fogo o prometeico e renovado sacrilégio, perpetrado no ar o cruento sacrifício o poeta hecatombado vivo, em clamor e chamas consumido, consumatum est, no malsinado e fatídico Cerro de las Cruces o homem em sua hora crucificado e no seu próprio verbo transverberado, incandescido, carbonizado: Cimo de cerro / no imo do ermo / rasteja o erro , talvez fosse um dos motivos, ainda que subliminar ou subconsciente, por que o traumatizado e estremecido amigo, associando talvez, por simples associação de imagens, a aérea circunstância e a brusca violência daquela morte com as coincidentes imagens finais do poema que a seguir citaremos, tanto gostasse de recitar (não raro só para si), como diversas vezes o vi e ouvi fazer, e assinalar-lhes a beleza, os dois versos que fecham outro grande soneto de Drummond, os quais dizia ele serem versos que trazem aquela centelha do que considerava como sendo essencialmente o poético; versos, pois, que ora aqui incidem e ressoam como um dísticoepicédio, rememorando e transfigurando liricamente a morte dramática do jovem amigo seu: o qual foi não apenas um assinalado, iluminado poeta, mas era sim um ser alado: Ser em forma de pássaro, / sonora envergadura / ruflando asas de ferro sobre o fim / dos êxtases do espaço (...), por conseguinte um verdadeiro e predestinado... Anjo dos Abismos, que vivia de arremeter-se, poeticamente arriscar-se nas asas da palavra, nessas asas largas, livres, da palavra Albatroz! Albatroz! dá-me estas asas..., qual antecipa o metapoético, célebre e ruflante verso castroalvino a bela imagem do verbo faustiniano que ruge em plena / madrugada cruel de um albatroz / zombado pelo sol e que ainda responde em igual diapasão: Fonte de fogo — dá-me essa Glória / Sarça de fogo — dá-me o Poder (...), como pede e clama ele no seu haceldamático poema, o qual se lança largamente em dois inteiros dodecálogos de alexandrinos, formando simbolicamente todo um amplo campo, por assim dizer, funéreo-semântico-sangüíneo, alegoricamentee configurado, campo santo, campo de san- Asas da Palavra gue e campo de sentido, da culpa e desencantamento, do auto-suplício e remordimento; poeta, enfim, desarvorado, que um dia efetivamente voou longe e alto para os Andes e, de novo castroalvinamente — condor sem rumo, errante, lançado ao vento da desgraça — repentinamente sumiu no céu e desapareceu; e quiçá ainda por suma ironia das temíveis Moiras e das terríveis Erínias, anticristãs, desapareceu e sumiu, como simbólico e real crucificado, por fatal coincidência, como pressentira, no inesperado calvário daquele Cerro de las Cruces!; restando assim, como aludíamos, do jovem amigo perdido no tempo, desaparecido no espaço, apenas a sua aérea e alegórica lembrança, gravada nos versos drummondianos que o velho amigo saudoso gostava tanto de recitar: Salvo aquele pássaro vinha azul e doido que se esfacelou na asa do avião. Ou ainda, para o admirador e amigo que desolado nesta terra ficou, o fantástico e alado poeta, que tanto o fascinara, bem poderia ser invocado e saudado, no próprio sentido da vida e no transe da morte, que tensamente viveu e que bruscamente o arrebatou, pela simples e bela imagem daquele outro e rilkeano amigo comum de ambos, que um dia exclamara: Ó grande anjo azul das noites tenebrosas!] Fechando enfim o extenso e evocativo excurso parentético (estendido em toda uma chave, de intercalados parênteses) e retomando agora o fio principal do discurso: um comentário, dissera eu, curto e certo ( São as mênades furiosas! mas furiosas da ira divina, da fúria poética), salientando assim, com a referência mitológica, o empenho e o impulso afetivo, com seu quê de patético, daquelas mulheres tocadas de sentimento, imbuídas de emoção e respeito no momento do enterro do grande homem, do pequeno herói, do velho mestre e amigo. Mas sem ali insinuar e nem sequer haver eu percebido, naquele instante e naquele rápido comentário, a incidental conexão paronomástica dos dois nomes casualmente aproximados: o nome grego da mitologia, das antigas ninfas dionisíacas, e o sobrenome pessoal mais apropriado e conhecido, pelo qual e com o qual sempre fora em vida identificado, reconhecido e reverenciado, o nosso incomparável e inconfundível Professor Mendes. —— xxxx —— Recordando agora, em toda a sua dimensão e sentido, aquela inaudita e eloqüente atitude, melhor a interpreto e compreendo, e acrescento, pois, esta explicação àquela frases, convencido e emocionado do que digo: eram ali em verdade, não as antigas mênades furiosas, mas, análoga e homonimicamente, as nossas Men(a)des fervorosas (com proparoxítona pronúncia e significação, é claro): mulheres, naquele momento, além de sinceramente amigas e admiradoras, profundamente movidas e comovidas, mais do que por sincero apreço, por um apego de morte (um pathos de amor e morte, realmente) ao mestre querido, ao modelo perdido, em suma, ao ídolo desaparecido ¾ porém o mito ali redivivo e soerguido. E assim, trazendo também elas naquele préstito os seus ramalhetes de folhas e flores nas mãos, como se fora o tirso dionisíaco, ornado de hera e pâmpanos, pude analogamente por um instante, num simples relance entre lírico e onírico do olhar, imaginariamente vê-las naquele momento (como de fato o vi para mim a olhos vistos e o disse a mim, naquela Asas da Palavra 105 instantânea enunciação da mimética e mágica palavra, deflagrada pelo imaginante olhar: São as mênades... furiosas), todas elas em grupo, vindo juntas e unidas, reunidas, compungidas pela mesma coita e paixão, virtualmente correndo empós do seu deus, ou humilde semideus, o seu mestre muito amado, o mestre estremecido. E de repente, como num ato extraordinário, um súbito ímpeto, vi-as arrebatarem-lhe o corpo inerte, um corpo ali real e simbólico, para restituí-lo às forças telúricas, profundas, sagradas da terra, da Tellus Mater, de divinas e femininas entranhas, que maternalmente o receberam como depois, nos brandos céus iluminados, seria o seu belo espírito recebido, num misto de algazarra e heresia, pela irmandade dos seus amigos poetas mortos. Desse modo assim alto e sublimado, mítico e poético, portanto metaforicamente, e até diria meta-fisicamente, carregaram elas e conduziram em silêncio e calada emoção o seu divino e humano Dioniso até à beira do túmulo (como que à imagem e semelhança do TEANTROPO faustiniano de Ariazul, onde aliás, traindo e contraindo verbalmente a memória dos célebres versos castroalvinos e torcendo-lhes o pescoço da retórica patriótica e versificatória, sem temer o incurso noutro sacrilégio, diretamente contra a sacrossanta linguagem de um poeta-mito da nossa mais celebrada e consagrada tradição de poesia nacional, o revel e sacrílego poeta de novo retoma e quebra o metro canônico do decassílabo, contra-proferindo: traído pela brisa / mastro / mestre / abandona a bandeira da balança); ou antes — investidas que estavam, nominalmente, de força e poder mitológicos —, até o alto empíreo, o assento etéreo, aonde em espírito e em glória o elevaram. Transformando destarte, simbolicamente, e de um modo ainda mais eloqüentemente litúrgico, aquele modesto e simples enterro, não em um rotineiro e triste périplo até à última morada, mas sim num glorioso préstito, um ascensional e excelso Caminho da Glória, aquele celeste, límpido caminho, que não vislumbramos (e quão estranhos roseirais nele florescem!...), por onde passam... trêmulos, sonhando na heterodoxa e hermética visão soteriológica do poeta os seres virginais que vêm da Terra — tal nosso mestre assinalado pelos órficos arcanos da fé e da poesia —, ensangüentados da tremenda guerra, embebedados do sinistro vinho (sinistramente ébrios decassílabos, cruz-e-sousianos, que aliás ressoam em certos versos faustinianos). E dessarte transformaram também, alegoricamente falando-se, aquele simples e modesto esquife num autêntico, heróico, mítico féretro (com todo o peso, toda a imagem e todo o étimo da palavra), como se carregassem em paradoxal triunfo os despojos mortais do seu grande herói, do seu titã imbatível, seu invencível, inesquecível Agonistes: que somente na saga final, e no fatal lance, vencido foi pelo Inelutável aquele apocalíptico e ambíguo cavaleiro andante do destino, igualmente paladino do amor, que anelantemente demanda, por desertos, por sóis, por noite escura, o inatingível, o inenarrável, o ilusório palácio encantado da Ventura; o mesmo sublime cavaleiro que estranhamente, cruzando regiões sagradas, provindo inimaginavelmente das altas estrelas, vestido de armadura reluzente, desde a origem dos cosmos e dos tempos cavalga formidável, sem temor e sem 106 Asas da Palavra rumo, o mais fero e desarvorado corcel negro tenebroso e sublime que terrível passa inexoravelmente a galope, da noite nas fantásticas estradas, a estremecer-lhe não sei que horror nas crinas agitadas! — do qual nos fala, e dramática e oniricamente nos pinta, em eqüestre e sombrio painel, outro assombroso soneto de Antero, o indeslindável Mors-Amor (oxímoro vital e verbal in nuce), que o nosso anteriano mestre quantas vezes a fundo terá meditado e contemplado, perplexamente, ante a parelha inseparável e eterna do amor e da morte, jungidos num só vulto de trágica figura e sentido insuperável contradição. Por conseguinte, por obra e graça do nome, na simplicidade e sortilégio de sua pura nomeação, e sem ter nem pretender as loas e os louros de maior renome, nosso proverbialmente modesto professor tornava-se ali, no ato mesmo e simples do seu sepultamento, ainda mais significativa e definitivamente consagrado como insigne mestre: em ritual cortejo carregado por fiéis discípulas e conduzido in aeternum a um túmulo, ou templo, paradoxalmente celestial como quem é levado em glorificador triunfo, não propriamente ao pé da tumba, pois arrebatado foi simbolicamente, mas a um pedestal transcendental, pelas mãos amorosas das melhores alunas, e alçado ao amplexo espiritual não das almas (pois as almas são incomunicáveis, como ele manuelinamente sabia) mas dos versos imortais de seus diletos amigos poetas mortos, reunindo-se com eles para sempre em perfeita confraria poética, no mais sublime panteão de honra e glória, que é de amizade e saudade construído, erigido no campo-santo mais celeste, infinito, no profundo e eterno azul, etérea ariazul, dos brandos céus iluminados. Asas da Palavra 107 108 Asas da Palavra Asas da Palavra 109 110 Asas da Palavra PARA QUE SERVE UM POEMA? Maria Lúcia Medeiros Escritora Asas da Palavra 111 M il novecentos e sessenta e dois... corria o ano. Minha turma na Faculdade de Filosofia lá da Generalíssimo incluía um pequeno grande grupo de jovens estudantes, uns acabados de entrar, outros no meio do curso, outros quase a “se formar”, a viver um tempo em que quase nada era permitido além do compromisso de lutar pelo seu país,. Por que, ao pensar nesse tempo, penso nos grandes planos de Antonioni? Íamos ao cinema, namorávamos, odiávamos os americanos, nos revoltávamos com o leite que eles mandavam para as crianças do Nordeste, através do vergonhoso programa Aliança para o Progresso. Vivíamos. Como eram as tardes de Belém? Ah! mais belas impossível, caindo lá pelos lados da Sorveteria Santa Marta, rendilhando de sombras os ainda paralelepípedos da rua. E vejo alguns rostos queridos parados à calçada ou em volta do chafariz: Valter Bandeira, Roberto Cortez, Isidoro Alves, Mariano Klautau, Alberto Uchôa, Roberta Braga, Judith Bastos, Ana Maria Verbicaro, Graça Landeira, Marlene Viana, Vera Bastos, Celina, Raimunda Moy, Angélica, Heraldo Maués, Maria Alice Cordeiro, Ana Francisca, Pedro Pinho e tantos outros “do nosso tempo”. Eu fazia parte do grupo de calouros, mas todos se conheciam. Época de muito charme ou no cigarro que quase todos fumavam ou nos blasers usados por nossos colegas e professores. Roberta Braga dirigia uma Rural Willys, Mariano Klautau calçava elegantes sapatos esportivos tchecos, Leda era nossa colega católica mais politizada e Benedito Nunes, Ruy Barata, Roberto Santos, José Maria Alves Cunha, Orlando Costa e Carlos Coimbra, nossos intelectuais de ponta, professores, jovens professores a quem admirávamos, de quem bebíamos ensinamentos nas disciplinas Introdução à Filosofia, Introdução à Sociologia, Introdução à Educação, Introdução à Psicologia, Literatura Brasileira. Os de Letras estudavam grego e latim, mas todos sabiam do Brasil e contribuíam de um jeito ou de outro para que as mudanças sociais acontecessem. 112 Foi nesse ano, 1962, que morreu, em acidente aéreo, o poeta Mário Faustino. A notícia alcançou-nos na esquina e veio como um golpe seco. Eu não o conhecia e o que ouvíamos a respeito dele era o melhor: um grande poeta em ascensão, uma promessa nas letras brasileiras, bom crítico, bom jornalista, bom tradutor, amigo querido. Asas da Palavra Em meio à trágica notícia alguns versos premonitórios: Sinto que o mês presente me assassina Não morri de mala sorte Morri de amor pela morte Envolta nesse tom guardei para mim esses versos. Muito tempo passou. O ano de 1964 trouxe meu primeiro filho e um golpe militar. Prisões, invasões, torturas, fugas, exílios, a juventude dispersa, o fim daquelas belas tardes da Generalíssimo. Lá se vão quase 40 anos. Agora é a revista Asas da Palavra, da Unama, que dedica um número em homenagem ao poeta Mário Faustino. Convidada pela amiga Rosa Assis a escrever um texto sobre Mário me vêm à memória três poemas que seriam imprescindíveis em uma seleção com vistas a uma antologia amorosa. Falo de Balatetta, Quando chegares ao aeroporto e Carpe diem que, na minha simples opinião de leitora de poesia, compõem a mais tocante expressão da poesia amorosa de Mário Faustino. Em todos eles é o poeta a tentar inscrever o tempo amoroso no tempo da memória em movimentos que vão da euforia pelo reconhecimento da plenitude amorosa até o desalento, o esvaziamento, a morte do amor. Decido-me entre eles, no entanto, por Carpe diem que tem me desafiado pela vida pela riqueza das inúmeras possibilidades de vozes dentro do poema a cada leitura feita. CARPE DIEM Que faço deste dia, que me adora? Pegá-lo pela cauda, antes da hora Vermelha de furtar-se ao meu festim? Ou colocá-lo em música, em palavra, Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra? Força é guardá-lo em mim, que um dia assim Tremenda noite deixa se ela ao leito Da noite precedente o leva, feito Escravo dessa fêmea a quem fugira Por mim, por minha voz e minha lira. (Mas já de sombras vejo que se cobre Tão surdo ao sonho de ficar – tão nobre. Já nele a luz da lua – a morte – mora, De traição foi feito: vai-se embora.) Asas da Palavra 113 O que me seduz neste poema é a luta pela permanência das coisas, o desespero diante da efemeridade, da morte da beleza. O que, de impacto, ainda me comove neste poema é o apelo dramático para que a expressão criadora possa salvar o instante. A plenitude do dia, o arroubo narcísico presente no primeiro verso que inicia o poema já traz o conflito que será desdobrado no correr dos versos seguintes. “Que faço deste dia, que me adora?” põe a questão dramática que se desenvolve em meio a dúvidas (Faço isto ou aquilo?) O ser amoroso na poesia de MF, diante do passar das horas, diante do tempo que levará embora o momento de plenitude da paixão, transfigura amor e amante em luz, em sol, em dia e, em oposição, faz da noite a inimiga, a que pode roubar-lhe o amante encerrando-o na escuridão das trevas. Neste poema, os primeiros cinco versos deflagram o drama amoroso e, em seguida, apresentam as alternativas para a possível solução buscada pelo poeta. No entanto, antes de escolher imortalizar, perenizar o instante, o dia, está expresso o desejo de posse, de subjugálo pela força, à maneira animal (“Pegá-lo pela cauda, antes da hora / vermelha de furtar-se ao meu festim?”) mas em seguida escolhe (“Ou colocá-lo em música, em palavra, ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?”) já se entendendo aí a salvação pela arte, a expressão criadora abrigando o instante amoroso. O verso força é guardá-lo em mim mostra a impotência do poeta diante da grandeza da paixão amorosa. Em seguida, abre o cenário do drama: leito, fêmea, escravo, fuga, traição, todos os elementos da intriga amorosa, postos agora de maneira mais passional, mais trágica. A utilização do pronome pessoal feminino, ela, ao mesmo tempo que parece apenas posto para nomear corretamente a noite, a fêmea, configura também o amante masculino o sol, o dia em oposição à natureza feminina da lua, cuja luz prenuncia a morada da morte. Ele, o dia, é o amante roubado pela noite, engolido pela noite, esvaziado de sua luz (de vida) em detrimento da luz da lua, onde mora a morte. Ele, o dia (“que me adora”) “vai-se embora”, “surdo ao sonho (tão nobre) de ficar” roubado pela noite, “vejo-o já coberto de sombras”, “de traição foi feito”. O esforço do poeta para segurar o instante lutando pela permanência, tentando salvá-lo, imobilizá-lo, perenizá-lo pela arte, também nasce do desejo de segurá-lo pela cauda, domá-lo, submetê-lo à força física, animal, instintiva. 114 Asas da Palavra Ao mesmo tempo que o poema nos provoca a vivenciar toda a paixão amorosa levando-nos da euforia ao desalento, comuns ao sentimento e, de certa forma, comuns à poesia amorosa de MF, mais uma vez é o elogio do amor, a nota mais funda, mais marcante da obra de Mário. Em Carpem diem o ser amoroso é o mesmo “ser aberto, humano” a buscar e cantar o mesmo amor “acima de qualquer fosso de sexo / acima de qualquer muro de credo”. Este ser amoroso, aberto, luminoso, em Carpe diem é o próprio dia. É o amante, é o amor tragado, engolido pela noite transfigurada em traição e traidora, ela, a noite que rouba o dia e deixa o poeta (amante) em desalento. Duas estrofes, dois momentos, dois tons do sentimento amoroso a euforia e o desalento este último tom como um lamento, um murmúrio, entre parênteses está o gemido, sufocado. Lembro Emily Dickinson: Prefiro recordar um pôr-de-sol a possuir um sol nascente porque na partida existe um drama que a permanência nunca pode dar. E apercebo-me da poesia animando a natureza para trazer mais perto, traduzir melhor o instante amoroso, compará-lo, amplificá-lo, confundi-lo com a força da natureza, tudo tentativa de segurar, de reter o tempo que passa, transforma e passa. Inexorável. Mário Faustino, a poesia, o tempo amoroso... Eu comecei lembrando o Tempo da Faculdade e o fim daquelas belas tardes na Generalíssimo. Enfim, para que serve um poema? Asas da Palavra 115 116 Asas da Palavra MÁRIO FAUSTINO POETA DO MEU NORTE Lília Silvestre Chaves Mestre em Teoria Literária, UFPA, e doutoranda em Literatura Comparada, UFMG Asas da Palavra 117 “É inacreditável que a perspectiva de ter um biógrafo não tenha feito ninguém renunciar a ter uma vida” (tradução minha). 1 2 Cf. MALLARMÉ, Stéphane. Quelques médaillons et portraits en pied. In: ____. Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1945, p. 481. 3 4 5 Versos finais do “Primeiro poema”. 21 fev. 1948. Do “Primeiro poema”. Do poema “Auto-retrato”. 25 abr. 1948. “P Il est incroyable que la perspective d’avoir un biographe 1 n’ait fait renoncer personne à avoir une vie. Cioran rimeiro poema” Ao F. Paulo Mendes, amigo. Por que vos espantais se eu venho sobre as ondas? Trago a paz e as distâncias vêm comigo na boca tenho mundos e nos olhos palavras. Ouvi-me. Sabe-se o que é escrever poesia? Uma antiga e muito vaga mas ciumenta prática, na qual jaz o mistério do coração, responderia Mallarmé. É como se nada existisse e repentinamente alguém ousasse lançar-se a este jogo insensato de escrever, arrojar-se, como o reflexo de uma divindade esparsa, perseguindo a virtude de uma dúvida – com um dever de tudo recriar, com reminiscências e surpresas, na lenta apreensão de uma certeza. Perceber a anterioridade da criação, uma somação do mundo e, “sur le papier blême de tant d’audace” (“sobre o papel lívido de tanta audá2 cia”), retrucar, entre atônito e vaidoso: “Mas eu não sou Senhor / embora venham comigo a Música e o Poema / Por que vos ajoelhais se eu vim por sobre as ondas / e só3 tenho palavras? / Ouvi minha voz de anjo que acordou: / Sou Poeta”. Teria sido anjo ou demônio – como diria Lorca – a inspirar Mário Faustino na gestação lírica de palavras, incitando-o a libertar-se das cadeias da prosa, iniciando-o na profecia poética, impregnando-o de vestígios românticos e apontando-lhe a direção ambiciosa do vidente e do arauto do novo? E que outro anjo surpreso e vaidoso acordava naquele início de 1948, em Belém, cidade diluída – pela chuva, pela distância que a separa do Sul do Brasil, ou ainda pelo fantasma acalentado do reflexo de Paris? Ao retornar do impossível para si mesmo, o primeiro espanto foi do próprio Mário, que ofereceu suas palavras àquele que provocou nele o aflorar da poesia. O poema inicial ilustra esse misto de surpresa e de deslumbramento por sentir-se poeta, como se descobrisse pela primeira vez o verdadeiro sentido das palavras: “Minhas palavras. / Antigas porém há pou4 co descobertas”. Talvez pudéssemos repetir as palavras de Gide, segundo o qual a influência nada cria, apenas desperta. E então desponta um mundo aberto ao infinito, onde não há antes, nem depois, e sim a obra eterna: “Também há quantos séculos eu não escrevo poemas? / Há 5 miríades de séculos, meu irmão”, escreveu Mário sobre o poeta que existia nele e que acabara de emergir. Datado de 21 de fevereiro de 1948, datilografado em papel 118 Asas da Palavra 6 timbrado da Alfândega de Belém, trazendo, escritas à mão, na diagonal, as palavras “Para o Mendes não tomar o porre prometido” e a assinatura de Mário Faustino, o “Primeiro Poema” foi entregue, triunfantemente, a Francisco Paulo Mendes, no salão do Café Central. O “não”, grifado por Mário, deixa-nos ouvir a voz de Mendes que, no tom sedutor do desafio, prometeu embriagar-se caso um poema transbordasse naquele início de ano. As palavras refletem a alegria de Mário ao responder aos anseios do amigo, a quem dedica orgulhosamente o seu primeiro poema, desobrigando-o da promessa. 6 7 8 O sr. Mascarenhas, avô de Mário, trabalhava na Receita Federal e Mário gostava muito de papéis timbrados... Do poema “1º motivo do anjo”, 8 abr. 1948. “Eu sou o dia, eu sou o orvalho. [...] Eu sou o que começa” (tradução minha). No dia 2 de abril, Mário correu à casa de Mendes, no meio da noite, dessa vez com um pedaço de papel em que datilografara, na frente, um poema e, no verso, tal um outro poema, a dedicatória: Mário escreveu dias depois o “2º motivo da rosa” (8 de abril). Mas, antes de compor esses dois “Motivos”, dos seus poemas os primeiros a serem publicados, ele tinha escrito, além do “Primeiro poema” (21 de fevereiro), o “Poema de amor” (23 de fevereiro), um “Auto-retrato” (25 de fevereiro), uma “Elegia” (6 de março, com a mesma dedicatória do primeiro: “Ao F. Paulo Mendes, amigo”) e uma “Ode” (7 de março). Ora românticos, pelo sopro de sonho que os banha, ora impressionistas, pela fugacidade do traço, esses textos são a efusão de uma alma sensível e contemplativa que descobre um mundo intermediário entre a vida e o sonho: “Donde esta paz o sono o sonho a sombra? / Apenas leves dedos sobre os olhos / somente a mão do anjo sobre o 7 ombro”. O leitmotiv da rosa e o do anjo exalam o tom de Rilke, tanto na efusividade do início – “Je suis le jour, je suis la rosée, [...] Moi: je suis ce qui 8 commence” –, quanto na ânsia de mudar quando a fonte se exaure, o que, para Mário, só acontecerá alguns anos depois, quando viajou para estudar nos Estados Unidos. As datas contêm um mundo de informações não somente relativas ao tempo, elas dizem de gestos, revelam espaços e sentimentos, amizades, influências. As datas cravam as palavras no instante vivido, fazem parte do poema e com ele incorporam-se ao texto da biografia. Em novembro de 1947, Mário tinha sido apresentado a Francisco Paulo Mendes; em fevereiro de 1948, Mário escreve poesia. Essa aproximação foi o acontecimento mais importante desse período da vida de Mário Asas da Palavra 119 9 MENDES, Francisco Paulo. O poeta e a rosa, primeira notícia sobre a poesia de Mário Faustino. Folha do Norte, Belém, 25 abr. 1948. Suplemento Arte-Literatura, n. 761, p. 1-3. 10 Cf. NUNES, Benedito. Entrevista filmada em sua casa. Belém, 30 set. 2000. Faustino e desencadeou uma profunda amizade que durou, em uma espécie de encanto, por volta de cinco anos. Naquelas reuniões do Café Central, Mário Faustino passou a levar os poemas para o Mendes ver. Este exultava com os poemas do Mário, enquanto os outros do grupo, apesar de enciumados, não podiam deixar de admirar também o poeta que surgia: “Nada mudou, apenas eu transbordo”, escrevia o poeta. “Todo poeta novo é um novo profeta: anuncia uma nova idade. E é na palavra dele que nós depositamos a nossa esperança”: na mesma edição de domingo, os leitores da Folha do Norte foram surpreendidos duplamente. Além de encontrarem uma página inteira do “Suplemento, arte e literatura”, dedicada a um poeta novo, com dois poemas – “Dois motivos da rosa” – e a ilustração romântica de duas rosas, decalcada de uma das revistas européias assinadas por Francisco Paulo Mendes, os leitores depararam-se, na página seguinte, com uma longa e entusiasmada crítica de um dos intelectuais mais eminentes da sociedade paraense: 9 “O poeta e a rosa, primeira notícia sobre a poesia de Mário Faustino”. Dois anos depois da crítica de Francisco Paulo Mendes, que diz respeito a poemas de Mário que precedem O Homem e sua hora e que não foram incluídos nesse livro, em 31 de dezembro de 1951, ainda no “Suplemento” da Folha, um segundo comentário sobre o poeta foi feito por um Sr. João Afonso que se dizia crítico literário de passagem pela cidade e que, tendo lido e se interessado pela antologia dos “Dez poetas paraenses” publicada no “Suplemento” do domingo anterior, tomava a liberdade de mandar para o jornal algumas observações que a leitura lhe tinha sugerido. E passava a comentar, impiedosamente, um a um, todos os dez poetas, Mário Faustino entre eles. O artigo causou um alvoroço inesperado e provocou indignação entre os poetas criticados, indo atingir Haroldo Maranhão, o diretor do “Suplemento” (ele mesmo um dos poetas) no seu descanso, em Fortaleza, onde Mário Faustino também se encontrava. Tendo concluído que o artigo era de autoria de Francisco Paulo Mendes, Haroldo escreveu, imediatamente, um artigo combatendo a crítica mordaz do tal João Afonso que pretendia publicar no “Suplemento”, à guisa de resposta. 120 O autor da “crítica mordaz” sorriu. Depois de tanto tempo – por volta de cinqüenta anos passados –, Benedito Nunes (que revelou, no “Suplemento” seguinte, ser ele o misterioso João Afonso) lembra-se perfeitamente do episódio: foi tudo uma idéia do Ruy Barata, que tinha ficado responsável pelo “Suplemento” durante as férias de Haroldo 10 Maranhão. Esse episódio revela a força e a importância do “Suplemento” de arte e literatura da Folha do Norte (local, mas de amplitude nacional), naquele pequeno mundo da cidade provinciana, em que os leitores se constituíam, na sua maioria, dos próprios colaboradores do jornal, compostos pelos dois grupos que atuavam na vida intelectual da terra: as gerações velha e nova que se entrechocavam, uma desdenhando de certa maneira a outra. A brincadeira no jornal custou aos amigos alguns mal-entendidos, mas forneceu motivo para muitas risadas posteriores e animou e enriqueceu o “Suplemento” dominical da Folha, na- Asas da Palavra quela virada de ano. Mesmo se tratando de uma simulação, o crítico que usou o pseudônimo de João Afonso esboçava com segurança as suas idéias sobre os primeiros passos de um poeta de cuja obra, mais tarde, seria o maior e mais fiel divulgador. Na verdade, essa foi a primeira vez que Benedito Nunes escreveu sobre Mário Faustino. Depois da edição de O Homem e sua hora, em 1955, momento em que Mário Faustino “entra vitoriosamente para o grupo dos melhores poetas brasileiros”, segundo a referência de Eneida de Moraes na sua 11 coluna “Encontro Matinal”, do Diário de Notícias, muitas notas em jornais e revistas do Brasil fazem menção à obra. Destaco um comentário de Mário Chamie, que vê nos versos do poeta estreante “um novo padrão de 12 13 sensibilidade estética”, e uma longa análise crítica de Benedito Nunes, cujo gesto de promover a obra do poeta de O Homem e sua hora repetir-seá várias vezes no futuro. Em cada publicação póstuma, Benedito será o organizador, apresentando, analisando, difundindo a poesia de Mário Faustino. Hoje, no panorama da literatura brasileira, os autores que citam o poeta piauiense situam-no ao lado daqueles que tomaram uma direção diversa da chamada geração de 45. No prefácio de Poesia de Mário Faustino, Benedito Nunes considera a “arte da composição utilizada por Mário Faustino em O Homem e sua hora, liberta do dualismo matéria/ 14 forma” que preocupou a geração de15 45. Walmir Ayala e Manuel Bandeira, na Antologia dos poetas brasileiros, falam de Mário Faustino como pertencente a “um grupo, menos que uma geração de 55 (ou 56?) [...] marcada por um lirismo metafísico [...], absolutamente autônomo na resolução de uma experiência pessoal”, porém sempre ligado aos acontecimentos artísticos de sua época. Assis Brasil, em A nova Literatura 16 Brasileira, situa Mário Faustino, poeta sempre em busca de novos padrões da linguagem (na tradição de Mallarmé e Pound), entre a geração pós-modernista de 45 e as experiências de vanguarda. Ao lado de João Cabral e Ferreira Gullar, Mário Faustino seria, ainda segundo Assis Brasil, o poeta que antecipou e promoveu a experiência concretista. José Guilherme Merquior, no ensaio “Musa morena moça: notas sobre a 17 nova poesia brasileira”, em O fantasma romântico e outros ensaios, referese a ele (junto com Ferreira Gullar e Mário Chamie) como representante de um novo estilo, emergente nos anos de 1950, mais radical, mais próximo das técnicas de expressão do modernismo mais novo, brasileiro ou ocidental. Para o Merquior de O elixir do apocalipse, Mário Faustino é “um neovanguardista autocolocado na confluência de Jorge de Lima e 18 19 Ezra Pound”. Na História da literatura brasileira, Massaud Moisés cita Mário Faustino, cuja obra poética foi produzida nos anos áureos da vanguarda, como um poeta que procurava novos experimentos e buscava a tradição na modernidade “para além do humor e do prosaísmo cultivados pelos de 22”, diferenciando-se do clima de 45 “pela desejada metamorfose do verso”. Pedro Lyra, por sua vez, concentra na figura de Mário Faustino todos os requisitos fundadores do que ele chama de 20 Geração-60. Asas da Palavra 11 MORAES, Eneida de. Poesia e livros. Diário de Notícias, Rio de Janeiro, 14 nov. 1955, Encontro Matinal. 12 13 14 15 16 17 18 19 CHAMIE, Mário. O Homem e sua hora (Mário Faustino). Diálogo, São Paulo, nº 3, p. 121-122, mar. 1956. NUNES, Benedito. O Homem e sua hora. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 5 e 12 ago. 1956, Livro de Ensaio, caderno 2, Suplemento Dominical, p. 10 e 6. NUNES, Benedito. Introdução. In: ____ (Org.). Poesia de Mário Faustino. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira S.A., 1966, p. 12. AYALA, Walmir; BANDEIRA, Manuel. Antologia dos poetas brasileiros: Poesia da fase moderna, v. II. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1967, p. 129. ASSIS BRASIL. Mário Faustino. In: ____. A nova Literatura Brasileira. v. II. Rio de Janeiro: Companhia Editora Americana/MEC, Brasília-INL, 1975. MERQUIOR, José Guilherme. O fantasma romântico e outros ensaios. Rio de Janeiro: Vozes, 1980. MERQUIOR, José Guilherme. O elixir do apocalipse. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p. 131. MOISÉS, Massaud. História da literatura brasileira. Modernismo. 4ª ed. São Paulo: Cultrix, 1989. 121 20 LYRA, Pedro (Org.). Sincretismo: a poesia da geração 60. Introdução e Antologia. Rio de Janeiro: Topbooks, 1995, p. 92. 21 CAMPOS, Augusto de. Depoimento a Eliston Altman. O Estado de S. Paulo, São Paulo, Suplemento Literário. 22 23 24 CAMPOS, Haroldo de. Mário Faustino ou a impaciência órfica. In: ____ Metalinguagem e outras metas. São Paulo: Perspectiva, 1992, p. 189. NUNES, Benedito. Crítica literária no Brasil, ontem e hoje. In: MARTINS, Maria Helena (Org.). Rumos da crítica. São Paulo: SENAC São Paulo: Itaú Cultural, 2000b, p.51-79. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994. BARBIERI, Ivo. Oficina da palavra. Rio de Janeiro: Achiamé Ltda., 1979. 25 26 CHAVES, Albeniza. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Belém: Universidade Federal do Pará, 1986. SILVA, Antônio Manoel dos Santos. Poesia e poética de Mário Faustino. 2 tomos. 1979. 447 f.. Tese (Livre-docência em Literatura Brasileira) Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), São Paulo, 1979. 27 MÜLLER, Luciana Martins. Tensões de crítica e de poesia em Mário Faustino. 2000. 173 f.. Tese (Doutorado em Filosofia) USP, São Paulo, 2000. 28 29 TERRA em transe. Direção: Glauber Rocha. Produção: Zelito Viana. Roteiro: D. Felipe Vieira (José Lewgoy) vai assinar sua renúncia diante do quadro político constrangedor que vive Eldorado. Paulo Martins (Jardel Filho) tenta dissuadi-lo. Não consegue. Quando está indo embora é ferido mortalmente por policiais. Antes de morrer, declama pateticamente um poema, contando a história de Eldorado. A história de uma terra em transe, com suas contendas políticas, suas arbitrariedades, suas misérias, seus crimes. Intérpretes: Jardel Filho; Paulo Autran; José Lewgoy; Glauce Rocha; Paulo Gracindo e outros. Estúdio de som Herbert Richers; 122 Último verse maker competente da sua geração, Faustino estaria preso ao nó mallarmaico, na opinião de Augusto de Campos, que con21 siderava sua crítica pragmática, ideogrâmica e criativa. Para Haroldo de Campos, Faustino era um poeta aberto ao novo, “dotado de um manuseio dúctil e sutil das técnicas do poema em verso, capaz do fragmento e da ruptura, sempre sensível aos experimentos da poesia concreta, embora, na sua produção pessoal, conservasse ainda certos elos 22 com a tradição discursiva”. Em “Crítica 23literária no Brasil, ontem e hoje”, palestra publicada em Rumos da crítica, Benedito Nunes, comentando a participação dos poetas-críticos no debate da crítica sobre a linguagem poética, une o nome de Mário Faustino, que defende a harmonia entre o novo e o tradicional, aos de Décio Pignatari, Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Ferreira Gullar e Mário Chamie. Há alguns traços biográficos de Mário Faustino e comentários 24 críticos sobre sua obra na História concisa da literatura brasileira, de Alfredo Bosi. Ivo Barbieri dedica-lhe um livro inteiro de crítica, Oficina da pala25 vra, em que procede a uma leitura intertextual e intratextual de sua poesia, e Albeniza Chaves publica sua tese Tradição e modernidade em Má26 rio Faustino, resultado de uma leitura de O Homem e sua hora. Também surgidas na academia, duas teses sobre Mário Faustino devem ser citadas: a de livre-docência de Antônio Manoel dos Santos, Poesia e poética de 27 Mário Faustino, e a de doutorado de Luciana Martins Müller,29Tensões de 28 crítica e de poesia em Mário Faustino. No seu filme Terra em transe, Glauber Rocha põe na boca de Jardel Filho versos de Mário Faustino e Italo Moriconi inclui “Balada” (Em memória de um poeta suicida) entre Os 30 cem melhores poemas brasileiros do século. As vozes que cito não são as únicas que dizem sobre ele, nos livros, revistas e jornais. Há outras referências em volumes de história da literatura e da crítica brasileira, em artigos disponíveis na Internet, 31 em coletâneas de seus poemas e mesmo em uma antologia escolar. Notícias e comentários críticos nos jornais sempre acompanharam as publicações de seus livros. Sem qualquer pretensão de ter sido exaustiva nessa revisão, percebi que a crítica biográfica que tornaria mais tênues os limites entre a obra e a vida desse poeta ainda estava por se fazer. No doutorado em Literatura Comparada, ao pensar novamente na questão da crítica de poesia e desejando voltar-me para outros rumos no encalço dessa crítica nova, cuja bússola aponta para uma crítica da literatura (reunindo teoria e história) que dissolve os limites antes traçados entre obra literária e vida pessoal, foi em Mário Faustino que pensei. Mário, poeta do meu Norte; Mário, sem biografia; Mário, de obra e vida fragmentadas. Um certo mistério que cerca seu nome animou minha decisão: se Mário Faustino fez o mais ágil e inteligente jornalismo literário do Brasil, se foi um dos nossos maiores críticos literários militantes, se o lançamento de seu livro O Homem e sua hora tornou-se um dos principais acontecimentos da poesia brasileira dos anos 50, por que havia tão pouca referência à sua vida? Asas da Palavra Decidi preencher essa lacuna e escrever (como tese de doutorado) uma biografia literária de Mário Faustino. Partindo do princípio de que Mário Faustino concebeu a vida construindo a sua maneira de ser e de ser visto, como se vivesse em ritmo de (auto)biografia, empreendi fazer da obra e da vida o assunto de uma biografia, como um todo, inserindo a questão do gênero biográfico na esfera da ficção e da crítica. Além de contrafazer a vida do poeta, recriando-a com base nos pólos distintos de uma experiência vivida e imaginada, tentei unir à sua vida, não apenas a poesia, mas também toda a sua produção literária, teórico-crítica e extraliterária, inserindo-as em uma história política, cultural e artística. Laboratório Líder Cinematográfica, 1966/ 1967. 1 filme (115 min., son., preto e branco, 35 mm). MORICONI, Ítalo (Org.). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 217. 30 31 REBELO, Marques. Antologia escolar brasileira. Belo Horizonte: MEC, 1967. A história de Mário Faustino dos Santos e Silva iniciou-se no Piauí, no dia 22 de outubro de 1930. Mas, se em Teresina Mário Faustino chorou pela primeira vez, foi em Belém que ele atingiu a idade da consciência e iniciou a invenção de si mesmo. A poesia encontrou-o em Belém. Muitos escritores o citam entre os poetas do Pará – mesmo nascido no Piauí, Mário Faustino era paraense. Quando Mário Faustino morreu, vários artigos, com homenagens e despedidas, foram publicados nos jornais. A morte de um jovem poeta, crítico e jornalista, aos 32 anos de idade, completados no mês anterior, com um livro de poemas publicado oito anos antes e tendo assinado em jornais de Belém e do Rio de Janeiro, teve alguma repercussão. Para Mário Faustino, a morte representava o início da vida, e a sua biografia não poderia deixar de começar por uma espécie de tanatografia:– a grafia para a morte e a morte como grafia. Projetando o fim sobre o começo, depois de contada a morte, volto-me para o nascimento de Mário Faustino e continuo a história no ritmo sugerido pelo curso do tempo. Obedeço, dessa maneira, simultaneamente, à circularidade da ilusão biográfica (em uma biografia narra-se uma vida da qual já se sabe o fim) e à aceitação sensual dos instantes de que nos fala Sartre. Para que o olhar pudesse enlaçar as várias direções, foi preciso alargar em torno do biografado o número de pessoas e movimentos, reconstruir seu meio, fazer reviver outros que o cercavam. Daí a tentativa de recriar a Belém de Mário Faustino, com o seu espaço social, o mundo da arte, os artistas de sucesso na época. A vida intelectual e social na província, os saraus e salões – que contribuem para estruturar o campo literário (como farão, em outra escala, as revistas, os jornais e os editores) –, os cafés de encontro – o Café Central, espécie de salão cultural, que não existe mais e do qual nem uma fotografia foi ainda encontrada. Sua amizade com Francisco Paulo Mendes e com Benedito Nunes. O seu lugar de trabalho. O jornal. A vida da juventude intelectual de Belém, seus projetos e leituras: o grupo dos “novos”. As reuniões na “casa das tias”, a referência a cada uma delas – a Mimita em especial – com epítetos carinhosos. O início da vida de universitário, a rota de um poeta, desde os primeiros poemas, a primeira crítica, a temporada nos Estados Unidos e a viagem à Europa. De volta a Belém, o encontro com Robert Stock, poeta norte-americano, no Bairro da Matinha. E a trajetória social que se anuncia, as calçadas, os trajes – os Asas da Palavra 123 passeios a pé, as roupas, a elegância, a escolha das gravatas, a moda: o dandy que era Mário Faustino. Depois, o abandono do curso de Direito, a mudança para o Rio de Janeiro, a capital do Brasil, fervilhando de novidades, a publicação e a recepção do seu livro de poesia, a renovação do “Suplemento” do Jornal do Brasil, a sua atividade crítica na página “Poesia-Experiência” – incomparável no jornalismo literário nacional –, as exposições de Artes Plásticas e o movimento Noigandres (os mesmos passos trilhados para chegar a poéticas diferentes). Sua fase dita experimental. A influência da arquitetura da época nas outras artes. A atmosfera de liberdade e de desenvolvimento no país, com a eleição de Juscelino. A praia, o sol e o cuidado com o corpo que Mário Faustino cultivava. Sua homossexualidade e o pioneirismo de seus versos homoeróticos na poesia brasileira. Os amigos do Sul, os novos poetas, a angústia da evolução poética. A enorme experiência que adquiriu com a vida em Nova York e o trabalho na ONU, o amor de Oswaldo, a lenta e agônica escrita dos poemas-fragmentos destinados à composição do grande poema que sonhava publicar e que deixou inacabado. A volta ao Brasil e a viagem final – de tantas viagens na curta vida, a mais acabada de todas. Escrever a vivência, tornar o vivido palavra é tarefa silenciosa e lenta, que se dá no avesso da poesia, como o recolhimento do ser na invenção da reminiscência. Como não há lembrança sem esquecimento, religar a biografia individual às características estruturais globais da situação histórica (datada e vivida) torna-se um processo vivo de recuperação da memória e de transmissão dos fatos passados às gerações contemporâneas e futuras. A vida e a obra de Mário Faustino oferecem uma interpretação e uma recriação crítica de nossa cultura. O desafio é diluir a poesia e a teoria na grafia da vida e encontrar métodos críticos que se mesclem ao enredo e concorram para a interpretação de um mito que faço meu. Essa é a proposta que me fascina, a de uma crítica que se situa entre a teoria e a ficção, entre o documento e a literatura, entre o referente biográfico e a arte, uma crítica que faz da vida, texto. O ato biográfico põe em jogo inúmeros problemas, como os da viabilização da memória de outros, os da construção de uma personalidade, os da análise de textos, os do tom da narração. O biógrafo, ao tomar para si informações autobiográficas veiculadas em cartas, ao reproduzir fragmentos de declarações do biografado sobre si mesmo, funde, em seu texto, registros diversos como o da biografia, do testemunho (de amigos íntimos) e da autobiografia (em cartas e poemas). A biografia apresenta-se também como um texto crítico-literário. Roland Barthes, ao sugerir a um possível biógrafo: “Se eu fosse escritor e morto, como eu gostaria que minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo amistoso e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas 32 inflexões, digamos: ‘biografemas’...”, contradiz, de certa forma, as palavras de Cioran, citadas na epígrafe deste texto, no que diz respeito à reação de alguém diante da possibilidade de ser biografado. 124 Asas da Palavra Não se trata, para mim, nem de partir da interioridade de um autor, nem da posição do leitor, nem, como biógrafa, de modificar os cânones de um gênero. Trata-se de contar a vida de alguém que se exprime através de palavras, que se delineia em fragmentos de escritos, cartas, ensaios críticos; que se mostra nas escolhas poéticas de temas e palavras, nos poemas em geral; que se entrega à visão, nos recortes retangulares de fotografias. O segredo talvez seja fazer dessa biografia algo que pertença mais ao leitor do que a quem a cria, singular em si, mas plural enquanto relator das lembranças de outrem. Enquanto crítica, ao empreender esta reescritura, sinto-me submetida a uma aventura de reconhecimento, pois o que existe no mundo sobre o biografado e o que está na obra à l’insu de l’écrivain (“insabido pelo escritor”) e que seduz o leitor, tudo isso é uma espécie de ilusão compartilhada. 32 33 BARTHES, Roland. Sades, Fourier, Loyola. Paris: Éditions du Seuil, 1971, p. 14. MALCOLM, Janet. A mulher calada: Sylvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. Hoje a biografia traz um outro sujeito para o texto: o biógrafo. Quem reinventa a história participa desta nova escrita. Malcolm refere-se mesmo à natureza transgressora do biógrafo, que não conhece limites ao penetrar nos mais íntimos detalhes da vida pesquisada, além de relatar as suas próprias experiências no papel de 33 investigador. Para atingir os objetivos traçados, precisei recolher os rastros que Mário Faustino deixou, seguir suas pegadas em solos e papéis, pisar nelas, recriá-las. Precisei voltar o olhar para o autor e para os bastidores da sua criação. Tocar seus rascunhos, suas anotações de leitura, frases abandonadas e riscos distraídos: seus vestígios pessoais e/ou autorais. Além de folhear febrilmente os livros de Mário Faustino, fui à busca das palavras fechadas nos arquivos (internos e externos) de outros escritores, concebendo a literatura como um arquivo maior, constituído das mais diversas fontes documentais, das mais diferentes culturas. Nesse rumo, outros livros acrescentaramse ao meu percurso teórico. Livros ligados à memória e ao esquecimento e, talvez, também à amnésia (para usar a idéia de Silviano Santiago). Os lugares de memória de Mário Faustino, em Belém do Pará, encontram-se reunidos, principalmente, em vários recantos da casa de Maria Sylvia e Benedito Nunes, na antiga Travessa da Estrela “(trav. da Estrela: cheiro de lama, capim, sapo, cachorro, livro, tudo mixed 34 up)”. Assim como os arcontes foram os primeiros guardiões dos documentos da lei, Benedito Nunes tornou-se não somente o guardião dos papéis de (e referentes a) Mário Faustino, como também a autoridade publicamente reconhecida no que diz respeito ao espólio do poeta. Um desses recantos é a estante repleta com os livros que pertenceram ao poeta, na biblioteca situada no mezanino da torre cujo primeiro andar serve de escritório ao filósofo Benedito Nunes. Outro fica em uma dependência da mesma biblioteca, uma pequena construção anexada à casa, e consta de um arquivo propriamente dito, composto por pastas cheias dos papéis deixados pelo poeta. O arranjo do material pode ser tão significativo quanto o próprio ma- Asas da Palavra 125 34 35 Carta a Benedito Nunes. Rio de Janeiro, 4 set. 1956. Do poema “O Homem e sua hora” (O Homem e sua hora). terial. Aqui os papéis foram colecionados sem o aparato técnico de que hoje dispõem as bibliotecas públicas. O arquivo privado de Mário Faustino tornou-se parte do arquivo privado de Benedito Nunes. À escrita fragmentária de Mário correspondem pastas classificadas por datas obedecendo ao princípio de respeito à ordem original. Há escritos de caráter público, entrevistas publicadas, depoimentos, poemas recortados dos jornais, páginas do “Suplemento” do Jornal do Brasil, e escritos mais pessoais, que dizem respeito ao processo de construção da identidade, entre eles grande parte de sua correspondência, rascunhos e cópias de poemas, e apontamentos sobre uma antologia que ficou inacabada. O arquivo de Mário Faustino está guardado em uma enorme gaveta de um desses móveis de ferro, aberta para mim por Benedito Nunes. A imagem de um túmulo onde jazem os papéis e a memória do poeta, na casa da Estrela, recupera a vontade do pai-irmão de Mário, de um enterro simbólico, mas verdadeiro. As pastas enfileiram-se, catalogadas. Amareladas realmente, muito antigas, tanto quanto os papéis que guardam, elas não jazem inutilmente. Várias vozes encontravam-se ali, à espera de que eu profanasse aquele solo: “E quem nos 35 erguerá deste sepulcro? Duas metáforas misturam-se na linguagem faustiniana que se podem referir ao arquivo: a do corpo e a do solo. Atadas à idéia de semeação, ambas conciliam vida e morte, idéia impressa em cada gesto ou palavra esboçados por Mário Faustino, desejados por ele ou pelo olhar daquele a quem coube interpretar esses momentos de início e fim da sua existência e de sua obra, fragmentadas e breves. O sêmen é a linguagem aguardando a descoberta e a interpretação. O terreno semeado é o mesmo solo em que se enterram os despojos, pedaços do corpo agora letra e imagem e, mais do que nunca, palavra e gesto. Voltei-me para aquele móvel nada sofisticado, um arquivo comum de escritório usado para facilitar aquilo que o dicionário chama simplesmente de “a guarda sistemática de documentos ou papéis”. E repentinamente tudo se animou. A sala encheu-se de uma imensa e palpitante espera; o silêncio, que não é perturbado por nenhum sussurro de leitores irrequietos, carregou-se de mil forças, como se a pequena biblioteca se tornasse o palco no qual uma ação deveria desenrolar-se. A espera, infinita, sempre em curso, sem horizonte acessível, a impaciên36 cia absoluta de um desejo de memória, predita nos versos de Mário Faustino – “o resto – silêncio! / sabereis quando nascer / o fruto cujo 37 sêmen planto agora / na boca duma noite contraurora” –, atingia um de seus fins. Eu não tinha sido a única a tocar aquele corpo, mas, para mim, a história começava naquele momento. Desdobrei jornais que registraram fatos públicos da história de Mário que, de tão comprimidos entre tantos papéis, pareciam destina- 126 Asas da Palavra dos a permanecer dobrados para sempre – ao abri-los, corre-se o risco de danificar papel e momentos de vida. Encontrei as cópias de suas crônicas da “Vida Social” publicadas em A Província do Pará (de 1947 a 1949); os “Suplementos Literários” da Folha do Norte (com os primeiros poemas); algumas das crônicas “Cartas americanas” que durante algum tempo Mário enviou dos Estados Unidos; artigos de crítica de cinema; ensaios críticos, comentários, traduções e resenhas publicados no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, em que ele assinou por pouco mais de dois anos a página inteira de crítica de poesia (de 23/9/1956 a 1/11/58). Além de poemas esparsos publicados em vários jornais e que só foram editados em livros depois de sua morte, há também notas sobre o lançamento do seu primeiro livro de poesia, comentários críticos sobre sua poética e vários artigos sobre sua morte trágica. Algumas revistas da época, com poemas e contos de Mário Faustino, completam o acervo relativo à sua obra na imprensa. 36 37 Cf. DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Tradução de Cláudia de Moraes Rego. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001, p. 9. Do poema “22-10-1956”. Os fragmentos da obra que ele deixou e o nada a que seu corpo foi reduzido acabaram por se reunir em um corpus único (Benedito Nunes insiste na unidade e na suficiência do seu arquivo). Abrigados e dissimulados (o mistério permanece em torno de alguns papéis), articulando-se metonimicamente em antigas pastas de papel pardo, na primeira gaveta de um móvel cinzento e pesado. Esse arquivo instituiu-se a partir da morte do poeta, mas vinha se preparando passo a passo durante a sua vida, fragmentado pelas datas das cartas de mão única, as vozes que responderam para sempre emudecidas, não tendo sido arquivadas pelo poeta. Aos papéis colecionados por Benedito Nunes foi acrescentado o conteúdo da caixa que Mário Faustino deixou com sua mãe, rascunhos, manuscritos de poemas, alguns inacabados, projetos poéticos. Vários amigos do poeta enviaram o que haviam guardado. Cópias de poemas e uma foto dedicada vieram de Francisco Paulo Mendes. Sobre o móvel, encontram-se dois álbuns de fotografias. Não são muitas as fotos de Mário Faustino reunidas no arquivo de Benedito Nunes. Trinta e dois anos em dois pequenos álbuns. Um deles conserva ainda o manuseio da família nas ranhuras, na capa gasta, nas folhas descosidas e no amarelo do papel de seda: o álbum de família, com fotos da sua infância, em Teresina e em Belém, misturadas a personagens desconhecidos e, mais particularmente, com fotos da irmã-sobrinha – Maria Júlia. O outro álbum, novo, coleciona as fotos que o dono do arquivo recebeu ou recolheu. São fotos de Mário Faustino, entre 20 e 25 anos, umas tiradas em Belém, outras em viagens no exterior, duas ou três no Rio, instantâneos que, ao prescindir de seus autores, adquirem vida própria, tornam-se independentes para constituir a desordem do mundo previsto, fragmentado e imaginado. A crítica biográfica, ao escolher tanto a produção ficcional quanto a documental do autor – correspondência, depoimentos, ensaios, crítica – desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expan- Asas da Palavra 127 38 38 Cf. SOUZA, Eneida Maria de. Notas sobre a crítica biográfica. In: ____. Crítica cult. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2002, p. 111. de o feixe de relações culturais. A idéia é escrever de maneira que o arquivo se confunda com o texto, tornando-se parte viva da própria narrativa – procedendo a uma espécie de metamorfose do arquivo em história de vida. A projeção escrita cria um espaço-tempo que se vai compondo de acordo com as folhas de papel – a vida vista numa superfície e tornada palavra; o tempo encontrado não se superpõe, como em Proust, ao tempo perdido, e é outro o sujeito que o descobre para reencontrá-lo. Se a vida vivida é um borrão, é preciso que outras mãos a risquem, a corrijam e a exponham. Esse é o mistério do arquivo – túmulo que se pode abrir, guardando a possibilidade de despertar o seu conteúdo de um sono profundo, para se transformar no seu contrário: berço ou fonte novamente libertada. A pesquisa provocou em mim o desejo de ir além do arquivo, de transcendê-lo, no sentido de procurar outros registros peculiares – trechos de obras, citações, transcrições de pensamentos, fatos relatados ou adivinhados da sua vida. Para analisar o processo de re-construção de uma existência, seria preciso partir de uma nova coleção, ou melhor, seria necessário re-colecionar o logos fragmentário de Mário Faustino (a expressão é de Foucault) transmitido pela leitura não apenas de seus escritos, mas também de suas máscaras, de suas meditações, de seus silêncios, usando-o como um meio para o estabelecimento de uma relação com o meu próprio exercício pessoal de escrita. 128 Em relação ao desenvolvimento do meu texto, o período que se estende de 1930, ano do nascimento de Mário Faustino, a 1950, ano em que ele inicia sua correspondência com Benedito Nunes, baseia-se em lacônicas informações biográficas colhidas nos poucos livros que falam de sua infância, em fotos eloqüentes, em raras impressões da infância esparsas em cartas e em algumas histórias repetidas por Mário aos seus amigos e que ficaram, vagas, na memória desses últimos. A partir de 1950, data da primeira carta constante no arquivo, são as cartas de Mário Faustino que vão dar o rumo à minha narração durante todo esse ensaio. Mas tanto a sua obra crítico-literária (as crônicas, os poemas, os textos críticos, as traduções), quanto os depoimentos que colecionei (recordações de seus contemporâneos) afloram ao longo do meu texto, sugerindo situações e referindo-se às suas leituras ou ao seus afazeres profissionais, nas diferentes fases da sua vida. Ao contar a morte, por exemplo, além dos versos de Mário (em que a morte e o amor são temas constantes de louvor e premonição), são as manchetes e os artigos dos jornais da época – letras que substituem imagens impossíveis – que pontuam a narração posterior ao acidente que provocou a sua morte e a repercussão dessa morte no Brasil. Quanto às fotos de Mário Faustino, elas se colam ao texto para contar de sua infância e de sua adolescência até por volta de 1956, quando ele vai definitivamente morar no Rio de Janeiro. Haverá trechos de silêncio na produção poética, quando vamos ouvir os seus ensaios que unem a reflexão e a prática crítica. É dessa maneira, seguindo a corrente natural dos anos, que faço das lembranças Asas da Palavra dos outros (torno-me outra), das cartas (instantâneos em que fito uma alma) e das fotos (imagens que transformo em letras), o meu itinerário para contar seus passos irrequietos pelas cidades que o conheceram, em sua vida tão curta e tão rica. Uma “Vida toda linguagem”. Asas da Palavra 129 130 Asas da Palavra MÁRIO FAUSTINO FAZER POÉTICO: AVANÇOS E VACILAÇÕES Carlos Evandro Eulálio Professor de Teoria Literária da Fundação Universidade do Piauí Asas da Palavra 131 1 2 3 4 HABERMAS, Jürgen. “Modalidade Versus PósModernismo”, Arte em Revista, CEAC, ano V, nº 7, São Paulo, 1975, p. 86. Idem, op. cit. p. 86. PAZ, Octávio. “A tradição da ruptura”, em Os Filhos do Barro, Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1984, p.18. ROSEMBERG, Haroldo. A tradição do novo, Perspectiva, São Paulo (prefácio à segunda edição), 1974. A o empreendermos o estudo da obra de Mário Faustino, concebendo-o como mediador entre dois pólos estilísticos, constatamos como primeiro empecilho a necessidade de apreender melhor o sentido que os termos vanguarda e tradição, vistos de uma perspectiva mais ampla, assumem não só em específico no corpo da poesia do autor mas também, por extensão, no contexto cultural brasileiro, mais precisamente nas suas expressivas fases de renovação literária, a partir principalmente do modernismo de 22. A palavra moderno, na sua acepção latina, modernus, historiada por 1 Hans Robert Jauss , teria surgido em fins do século V, para distinguir o presente, que se tornou oficialmente cristão, em relação à tradição romana e pagã. O termo moderno, como resultado de uma transição do velho para o novo, é também retomado por Habermas que o apresenta como sinônimo de vanguarda e, conforme ainda alguns autores, quando limitam o conceito de modernidade à Renascença, na medida em que se forma a consciência de uma nova época, mediante renovada relação com a antiguidade. Mesmo referindo-se ao modernismo – o mais recente – Habermas acrescenta que este movimento “estabelece simplesmente uma oposição abstrata entre a tradição e o presente; e de certa forma, ainda permanecemos contemporâneos daquela espécie de modernidade estética 2 surgida em meados do século XIX” . Octavio Paz, ao partilhar das reflexões de Baudelaire – em L´Art romantique – assevera que desde os princípios do século passado é atribuído à modernidade o caráter tradicional. Ampliando seu ponto de vista, acrescenta que, neste caso, está diante de uma outra tradição que se manifesta num sentido polêmico: A modernidade é uma tradição polêmica e que desaloja a tradição imperante, qualquer que seja esta; porém desaloja-a para um instante após, ceder lugar a outra tradição que, por sua vez, é outra manifestação momentânea da atualidade. A 3 modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra. 132 Este aspecto de outridade moderna é também implícito nas 4 colocações de Haroldo Rosemberg quando este confere ao novo o caráter de entidade auto-suficiente, uma vez que, a cada surgimento, o novo funda a sua própria tradição, embora nutrido de contradições e paradoxos, como no caso da poesia ocidental, cujos princípios estéti- Asas da Palavra cos oscilam entre as preferências que consistem na imitação dos antigos e entre predileções que exaltam a novidade e o inesperado. No âmbito da poesia brasileira, não vemos, então, de forma inteiramente lícita, considerar o modernismo de 22 como um “fato literário autônomo, desvinculado das linhas gerais de desenvolvimento do pro5 cesso de nossa cultura”. É a partir deste pressuposto que Affonso Ávila aponta como descaso dos estudiosos no assunto o propósito de insistirem apenas em ressaltar o aspecto radical da ruptura modernista, negligenciando, em contrapartida, as transformações cumulativas verificáveis no passo criativo do artista, ao longo dos tempos, vinculado portanto ao meio cultural em que vive. Dessa forma, Affonso Ávila constata nítida integração evolutiva desde o modernismo, divisando-o em seqüência, ou por extensão, como desdobramento de outros estilos, a exemplo do Barroco e do Romantismo, numa outra etapa maior e ciclicamente definida. Daí que, ao pensar o Projeto “Literatura Brasileira”, dentro de um raio de maior abrangência crítica, o autor surpreende em cada um destes movimentos citados uma série-chave de elementos de estrutura aos níveis lingüístico e temático, que de maneira constante e/ou intermitente, atuam em seu processo de evolução. 5 Ver ensaio de Affonso Ávila, “Do barroco ao modernismo: o desenvolvimento cíclico do projeto literário brasileiro”, em O Modernismo, Perspectiva, coleção Stylus, org. Affonso Ávila, São Paulo, 1985, p.29. 6 ÀVILA, Affonso: op. cit., p.36. Embora alguns acreditem que o ciclo do modernismo tenha chegado ao fim, face à revolução vanguardista contemporânea, que promove o rompimento com a estrutura discursiva e dá ênfase ao emprego do elemento não-verbal, o crítico conclui as suas considerações afirmando: Da lição modernista há de prevalecer, todavia, a radicalidade prospectiva, aquele ver com olhos novos, ver com olhos livres que transmitindo como a grande herança de 22, fez há pouco 6 artistas da geração moça reescrever. Mário Faustino, por sua impulsiva, porém moderada postura poética, pertenceu de fato a uma geração que reclamava o novo, exatamente num momento de inquietações, num momento em que outros contemporâneos seus insistiam em promover mudanças experimentalmente radicais em relação a uma tradição e a um presente vivos ainda na consciência criadora do poeta, preservando, por outro lado, aquilo que para ele representava o melhor em matéria de escritura poemática. Assim, Mário Faustino colocava-se numa situação paradoxal: obstinadamente acolhia o novo, mas consciente de que as novas experiências devessem também contribuir com seu tributo ao passado literário mais autêntico. Nesse sentido, afirmou: Como a minha poesia tende a ser mais comprometida com o passado e o presente que com o futuro, (embora inúmeras experiências muito me interessem e também procure sempre make it new), tento progredir sem abandonar, um momento que seja, Asas da Palavra 133 7 8 9 FAUSTINO, Mário. “Poesia-Experiência”, em Poesia-Experiência, org. Benedito Nunes, Perspectiva, São Paulo, 1977, p.280. No capítulo “A Redescoberta da Utopia”, Pierre Furter distingue rigorosamente o utopismo, que é uma maneira de sonhar o futuro (ou de um passado a reconquistar) do pensamento utópico que se preocupa em descobrir no presente os pontos de apoio para o futuro desejado. Pierre Furter em Dialética da Esperança, Paz e Terra, Rio, 1974, p.149. FURTER, Pierre: op. cit., p.146. toda a tradição a preceder-me e procurando revivificá-la e 7 aproveitá-la, adaptando-a novas experiências. Foi a partir precisamente deste seu propósito que nos animou questionar os possíveis avanços de natureza poemático-construtiva verificáveis em sua obra poética e, se possível avaliar ainda o grau de radicalidade adotado pelo poeta, em relação à poesia de seu tempo. Ao destacar inicialmente o seu discreto, porém inegável desejo de participar com os Concretistas do processo de renovação poética, mas de forma a não abrir mão dos vínculos com o passado mais fértil, fomos buscar nas entrelinhas de suas afirmações o sentido talvez errante de suas palavras, possivelmente movido de acentuado sentimento utópico, consubstanciado no princípio da esperança que porventura pudesse alimentar o seu ambicioso projeto. Atentando-se pois para as contradições “fazer poesia comprometida com o passado / fazer poesia adaptando-a a novas necessidades” vemos então daí emergir este sentimento utópico, entendido aqui na forma como o poeta deixa entrever a sua vontade de inovar, fato impossível de se concretizar sem que se considerem novas perspectivas. Assim, se estabelecermos relações entre a práxis poética de Faustino e 8 as três funções do pensamento utópico de que nos fala Pierre Furter , ao interpretar as idéias de Ernst Bloch, melhor explicitaríamos nosso ponto de vista. A primeira função do pensamento utópico consistiria em favo9 recer a crítica da realidade , exercendo neste nível uma tensão dialética, permitindo manifestar aos outros a existência do possível, através do real. Com respeito a este aspecto, julgamos a poesia de Mário Faustino exponencial; basta citar o poema Brasão, mediante o qual o poeta tece a sua crítica, atentando em especial para a realidade literária de sua época: Nasce do solo sono uma armadilha Das feras do irreal para as do ser - Unicórnios investem contra o Rei. Nasce do solo sono um facho fulvo Transfigurando a rosa e as armas lúcidas Do campo de harmonia que plantei. Nasce do solo sono um sobressalto. Nasce o guerreiro. A torre. Os amarelos Corcéis da fuga de outro que implorei. E nasceu nu do sono um desafio. Nasce um verso rampante, em brado, um solo De lira santa e brava – minha lei 134 Até que nasça a luz e tombe o sonho, Asas da Palavra O monstro de aventura que eu amei. 10 Albeniza Chaves chama-nos a atenção para os termos “solo/ sono” que respectivamente designariam “o momento poético brasileiro e a esterilidade que o marcava, salvo raras e honrosas exceções (Drummond e Cabral, principalmente) quando do aparecimento de “O 11 Homem e sua Hora” . A segunda função do pensamento utópico permitiria à inteligência visualizar o real, de modo a descobrir as perspectivas de sua transformação. Conforme Bloch, “a utopia não somente indica aos outros a existência dos possíveis além do real, mas também é um instrumento de trabalho que permite a exploração sistemática de 12 todas as possibilidades concretas existentes no real” .Neste sentido, o pensamento utópico, na sua crítica do atual, apóia-se nas tendências fundamentais do presente que têm as suas raízes no passado e irrompem para o futuro. No poema de Mário Faustino aprendemos também a noção do trabalho poético como possibilidade de explorar as potencialidades criadoras, de modo sempre a permitir o surgimento do novo: 10 FAUSTINO, Mário. “Brasão” – em O homem e sua hora – Poesia de Mário Faustino, Civ. Brasileira, 1966, p.45. 11 12 13 14 CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e Modernidade em Mário Faustino.Dissertação de mestrado, USP, São Paulo, 1975. p.58. (já publicada em 1986) BLOCH, Ernst: apud cit. Pierre Furter, op. cit., p.146. FAUSTINO, Mário. Op. cit., p. 45. CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Op. cit., p.58. E nasce nu do sono um desafio. ....................................................... até que nasça a luz e tombe o sonho, 13 O monstro de aventura que eu amei. Conforme ainda Albeniza chaves, a obra de Faustino, “nascida da nudez ou da aridez do momento, se constituiu um desafio corajoso do 14 poeta à situação que pretendia renovar” . E a confirmação desse papel renovador seria reconhecida pelo poeta como poderosa aventura diante das circunstâncias do momento. Finalmente, a terceira função do pensamento utópico de que nos fala Bloch diz respeito à possibilidade de “introduzir a exigência da radicalidade”. Apontando para uma realidade possível de transformação, o pensamento utópico nutre-se de entusiasmo e de fé, visando alcançar o “novo possível”. Desse ângulo ocorre-nos chamar a atenção para a existência na poesia de Mário Faustino desse ímpeto que o impele a uma tomada de atitude radical. Essa radicalidade traduzir-se-ia como uma definição de procedimento artístico em relação aos parâmetros poéticos vigentes no seu tempo e ainda em relação às novas propostas que surgiam. Assim, das suas contradições, vemos despontar de modo muito nítido o compromisso também com o futuro da poesia brasileira. E esse compromisso representaria então o seu avanço maior. Embora aceitasse a experiência do concretismo, como forma de superar a crise do verso, acreditava, por outro lado, com o mesmo entusiasmo dos concretistas, vencer estes empecilhos mediante a reificação do próprio verso, dado que o concebia (mesmo em crise) ainda como importante meio de co- Asas da Palavra 135 15 16 17 FAUSTINO, Mário. Poesia-Experiência, op. cit., p. 276. BARBIERI, Ivo. Ensaio intertextual, em Oficina da Palavra, Achiamé, Rio, 1979, p.20. CAMPOS, Augusto de. “Mário Faustino, o último verse-maker’”, em Poesia Antipoesia Antropofagia, Cortez & Moraes, São Paulo, 1978, p.40. municação poética. A esse respeito pronunciou-se: Há, por toda parte, uma crise do verso, mas que, em toda parte, ainda se faz, e pode-se fazer melhor ainda bom verso. A tradição continua, retifica-se e continua, não se perde um bom instrumento só porque outro foi inventado, ou se está inventando – sobretudo se ainda não está provada a maior eficiência do 15 mais novo em relação ao mais velho. Renovar a linguagem poética para Faustino seria portanto um ato não apenas inventivo, mas um gesto também produto da apropriação estilística dos mais representativos modelos da tradição literária de todos os tempos. A propósito, este aspecto é melhor desenvolvido por Ivo Barbieri, ao ressaltar que “fazer o novo na experiência poética de Mário Faustino está condicionado à disposição e ordenamento dos fatos do passado. Daí entrarem leitura e criação, como atividades integradas, no campo de experiências do poeta. Selecionar e criar, nesse labo16 ratório, são modalidades, reciprocamente solidárias, da práxis poética.” O projeto de Mário Faustino, estando pois atrelado a uma proposta experimental em termos verbais, era apoiado sobretudo na manutenção do verso, adaptação, conforme o poeta, às exigências contemporâneas. Era necessário no entanto ajustá-lo à prática do método ideogrâmico, isto é, não linear, não discursivo, semelhante à montagem eisensteiniana. Se a poesia faustiniana não surge inovadora num sentido imediatamente revolucionário, não podemos negar, por outro lado, que a exemplo dos melhores poetas brasileiros desse período, Mário Faustino buscou, com a sua obra inicial, responder aos desafios de seu tempo, lançados aos poetas do pós-45. Atento então às necessidades de renovação, Mário Faustino, sem desdenhar os avanços experimentais no plano não-verbal, promovidos pelas vanguardas, ou sem insurgir-se contra elas, ligou-se, de início, mais às raízes literárias da tradição, conforme depoimento de Haroldo de Campos: “Faustino fez o mais ágil e inteligente jornalismo literário que jamais vi entre nós. Como poeta, aberto ao novo, dotado de um manuseio dúctil e sutil das técnicas do poema em verso, capaz do fragmento e da ruptura, mostrou-se sempre generosamente sensível aos experimentos mais radicais da poesia concreta, embora na sua produção pes17 soal, conservasse ainda certos elos com a tradição discursiva”. É nesse sentido ainda que Augusto de Campos, mesmo em resistência ao caráter, para si não tão inovador da poesia de Faustino, quando do surgimento de O homem e sua hora, distingue o poeta “por sua formação diversa, muito mais poundiana que eliotina, e por um certo alento barroco, aberto à experimentação e à rebeldia, que sempre faltou às aspira18 ções mais classicizantes daquela época literária” 136 Asas da Palavra A radicalidade de Mário Faustino decorreria por certo de uma produção poética irmanada à reflexão crítica, prática tão freqüente entre os poetas de sua geração, de cuja postura dialógica – aliada a outros temas, assomaria o desejo de inovar a poesia brasileira pela sublimação do verbal. É por essa razão que veríamos nos seus poemas, sobretudo nos da primeira fase, a preocupação implícita de resgatar o prestígio do verso. Essa preocupação transpareceria, então, nos poemas metalingüísticos, em torno dos quais o poeta questiona a sua arte verbal como uma das possíveis linhas e força da moderna poesia brasileira. Por essa razão, inscreve-se como poema-projeto ou matriz geradora dos poemas subseqüentes o texto Prefácio, já analisado dentro dessa perspectiva por Albeniza Chaves. 18 19 20 BARTHES, Roland. “Existe uma escritura poética?”, em O grau zero da Escritura, Cultrix, São Paulo, 1974, p.144. FAUSTINO, Mário. “Mensagem”, em O homem e sua hora, op. cit., p.43. NUNES, Benedito. Os melhores poemas de Mário Faustino, seleção de Benedito Nunes, Global, São Paulo, 1985, p.8. É importante acrescentar que a experiência de Mário Faustino, coletânea à dos concretistas, embora trilhasse outras vias, nutria-se, como já frisamos, do mesmo entusiasmo daqueles poetas. A poesia de Mário Faustino, revelando entre outras virtudes as marcas decorrentes da lenta assimilação dos melhores padrões da linguagem poética tradicional, afasta-se porém, progressivamente, daquela arte consagradora de expressão de formas estereotipadas neoparnasianas e se aproxima cada vez mais da arte de invenção em que, conforme Barthes, “cada palavra poética constitui assim um objeto inesperado, uma caixa de Pandora de onde escapam todas as virtualidades da linguagem: ela é portanto produzida e consumida com uma curiosidade particular, uma espécie de 19 gulodice sagrada”. Na condição de poeta irmanado a essa modalidade de escritura, Mário Faustino reivindica para si o direito de inventar, criar a palavra poética geradora de novos e inusitados significados. No poema Mensagem, por exemplo, destacamos os seguintes versos: Em marcha, heróico, alado pé de verso, busca-me o gral onde sangrei meus deuses: ............................................................. Dize a eles que tombam 20 como chuvas de sêmen sobre campos de sal. A sublimação do verbal para Mário Faustino não consistia, portanto, numa poesia engendrada de simples prosa decorada de ornamentos, mas num desafio que se lhe apresentava, de modo contínuo e nunca vencido, por seu caráter perene de busca. Nesse sentido Benedito Nunes o considera poeta da poesia – o poeta que pensa – para quem a criação verbal, encadeamento de vida e linguagem, constituísse numa forma simbólica de percepção e de concepção das coisas, inseparável de mui21 tas polaridades existenciais” . Assim, para o filósofo e crítico, a experiência vivida e o enigma de sua própria linguagem permeiam toda a poesia de Mário Faustino. É dessa forma que vemos a tradição comparecer no verso do poeta; por sua natureza auto-reflexiva e por uma contida forma de ex- Asas da Palavra 137 21 22 23 24 25 Vide ensaio de Mário Faustino “Que é Poesia?”, em Poesia-Experiência, op. cit., p.62. Idem, p.62. Idem, ibidem, p.62. FAUSTINO, Mário. Poesia-Experiência, op. cit., p.277/278. Vide entrevista de Mário Faustino concedida à jornalista Ruth Silver, do Jornal do Brasil (SDJB), em 16.12.56, em resposta à pergunta: “E de sua própria poesia, que me diz? Que está escrevendo agora?” pressão. Os avanços faustinianos possivelmente na tentativa de revigorar o verso, com o arranjo de palavras mediante as quais pudesse, conforme o próprio poeta, “sintetizar, suscitar, ressuscitar, apresentar, criar, 22 recriar o objeto” .Para Mário Faustino, “é poético o canto, a celebra23 ção, a encantação, a nomeação do objeto” . E o poema Mensagem, objeto de nossa ilustração, ratifica o propósito do poeta: minar os campos de sal com palavras onde as deixa cair no chão túmido, para que do caos surja o novo – NU – para despontar em nosso meio um trabalho poético inventivo, reutilizando o verbal capaz de instaurar novas possibilidades criadoras e recriadoras, para “atender às necessidades metafísicas, místicas e míticas do ser humano”, num momento em que outras “tais necessidades ainda são prementes e em que outras formas 24 de satisfazê-las encontram-se em evidente decadência” . Concluímos, portanto, reafirmando nosso ponto de vista, advindo paradoxalmente das colocações de Faustino: entre o presente e o passado, com os quais ele se dizia mais comprometido, vemos implícito também o compromisso com o futuro de nossa poesia, conforme suas próprias palavras: “tudo que faço, por enquanto, tem um sentido de experimentação, tanto ao nível ético, metafísico, psicológico, quanto no plano estético. Quero ser, ainda por muito tempo, um poeta em formação e em transformação: um dia, quando estiver mais realizado, como homem e como artista, então começarei minha verdadeira obra, que espero sirva de alguma coisa como documento humano e como contribuição para a transformação da sociedade, da língua e da poesia 25 do Brasil”. Juventude Juventude – a jusante a maré entrega tudo – maravilha do vento soprando sobre a maravilha de estar vivo e capaz de sentir maravilhas no vento – amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rasto – maravilha de estar ensimesmado (a maravilha: vivo!), tragado pelo vento, assinalado nos pélagos do vento, recomposto nos pósteros do tempo, assassinado na pletora do vento – maravilha de ser capaz, maravilha de estar a postos, maravilha de em paz sentir maravilhas no vento, e apascentar o vento, encapelado vento – mar à vista da ilha, 138 Asas da Palavra eternidade à vista do tempo – o tempo: sempre o sopro etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento, do montuoso vento – e a terna idade amarga – juventude – êxtase ao vivo, ergue-se o vento lívido, vento salgado, paz de sentinela maravilhada à vista de si mesma nas algas do tumultuoso vento, de seus restos na mágua do tumulário tempo, de seu pranto nas águas do mar justo – maravilha de estar assimilado pelo vento repleto e pelo mar completo – juventude – a montante a maré apaga tudo – Asas da Palavra 139 Ao lado, fac-simite da página Poesia- Experiência, editada por Faustino durante quase três anos no Jornal do Brasil, onde abriu espaço para o Concretismo, movimento do qual acabou se afastando e que, por ironia, prosperou caoticamente após sua morte prematura 140 Asas da Palavra MÁRIO FAUSTINO UM MILITANTE DA POESIA1 Elias Pinto Jornalista 1 Asas da Palavra Entrevista publicada no Diário do Pará, nos dias 9, 16 e 23 de março de 1997 141 2 (Hoje já publicados os dois primeiros volumes) N o primeiro semestre do ano passado, Maria Eugenia Boaventura, professora do Departamento de Teoria Literária da Universidade de Campinas, passou uma semana em Belém, com o propósito de levantar nos jornais locais os escritos do poeta Mário Faustino publicados nas décadas de 40 e 50. Era também importante conhecer a cidade, decisiva na formação pessoal e intelectual do autor de O homem e sua hora, palco de suas amizades mais queridas. Como a que teve com Benedito Nunes, parceria intelectual fértil e provocadora. Na casa de Benedito, principal intérprete da obra deixada por Mário, ali, na Rua da Estrela, Maria Eugenia – ao consultar os arquivos pessoais do professor, incluindo livros, manuscritos e cartas de Mário Faustino – abriu “novos horizontes” para o avanço de seu projeto. Afinal, autora de elogiada biografia do escritor paulista Oswald de Andrade, O salão e a selva (Editoras Ex Libris/Unicamp), a professora da Unicamp é responsável pelo projeto de edição da obra completa de Mário Faustino, com a orientação de Benedito Nunes e colaboração do escritor paraense Haroldo Maranhão, a ser publicada pela Unicamp. Esta entrevista é inédita. Era destinada ao jornal O Estado de S. Paulo, conforme previamente acertado com a editoria de Cultura daquele jornal. Eu é que nunca mandei a entrevista. Minha intenção era enviá-la 2 quando da publicação dos primeiros volumes da série em projeto, aproveitando então a convergência de interesses, o momento oportuno de divulgar o nome de Mário. Como o cronograma do projeto não pôde ser cumprido conforme o previsto, retive a entrevista que agora ofereço aos leitores do Diário, e que terá continuidade nos próximos domingos em relação ao original que seria remetido ao Estadão, a diferença é que voltei a incluir nomes familiares ao belenense mais ou menos informado, mas que nada diriam ao leitor paulistano. Verdade é que a entrevista, no que diz respeito, digamos, à parte “executiva” do projeto da edição permanece atual, uma vez que nenhum dos volumes previstos veio à luz até o momento. No mais, a exemplo da perenidade da poesia de Mário, depoimentos sobre sua obra permanecerão sempre atuais. Além de Benedito Nunes e Maria Eugenia Boaventura, em torno da mesa onde se deu a entrevista, na casa de Benedito, estavam presentes, e eventualmente participando da conversa, Max Martins, Francisco Paulo Mendes, hoje já falecido, e a professora Angelita Silva, já falecida. E é à Angelina que ofereço esta entrevista, ao lado de quem, nas poucas vezes em que convivemos, respirei tranqüilidade, bem-estar e delicadeza no trato pessoal. P. Qual a importância de sua visita a Belém no contexto do projeto de 142 Asas da Palavra publicação das obras completas de Mário Faustino? Maria Eugenia Boaventura – A visita a Belém faz parte desse projeto de publicar uma edição a mais abrangente possível. Eu li coisas aqui na casa do Benedito Nunes que me abriram novos horizontes. Pude comprovar também que, nas décadas de 40 e 50, em Belém havia um núcleo de debates, uma efervescência cultural. Aliás, a cidade de Belém, os amigos, a convivência, o bate-papo, tudo isso foi decisivo na formação de Mário Faustino. P. Os jornais daquelas décadas, de 40, 50, onde Mário publicou seus escritos, foram sua principal fonte de pesquisa? MEB – Eu fiquei impressionada com a qualidade dos suplementos literários daqui; não ficavam nada a dever aos do Rio e de São Paulo. Inclusive, Álvaro Lins, Manuel Bandeira, Marques Rebelo, eram alguns dos colaboradores, ao lado das pessoas de Belém. Até James Joyce já era traduzido por aqui, e isso em 1948. Quanto ao Mário Faustino, anotamos mais de 700 crônicas dele. P. Você chegou ao primeiro texto do Mário publicado na imprensa? MEB – Ele começou publicando traduções de poemas de Pablo Neruda, Paul Eluard, Henry Michaux, Rafael Alberti, T. S. Eliot, e isso numa configuração moderna, com apresentação bilíngüe. P. Professor Benedito de onde vem esse domínio que o Mário tinha, de conhecer várias línguas? Ele foi autodidata? Benedito Nunes – Ele aprendeu inglês no ginasial, no tempo, é claro, em que os cursos ginasiais eram bem melhores. E ele deve ter tido professores particulares. Para entender a personalidade do Mário, lembro de um episódio até engraçado, até gozávamos dele por isso. Numa carta de recomendação, redigida pelo próprio Mário e destinada ao meu sogro, que era desembargador e precisava de alguém com conhecimento de inglês, o Mário escreveu sobre si próprio: “Tem perfeito conhecimento de vários idiomas. Conhece o inglês como a sua própria língua”. E conhecia mesmo. P. Aproveitando a deixa, como se deu seu primeiro encontro com Mário Faustino? BN – Deu-se em 1947, numa reunião preparatória da ABDE, Associação Brasileira de Escritores, convocada pelo Haroldo Maranhão, que era muito ligado ao pessoal do Sul pelo fato de dirigir o suplemento literário da Folha do Norte. A reunião foi convocada para a Assembléia Paraense. Compareceram Raimundo Moura, Ernesto Cruz, Levy Hall de Moura, Machado Coelho, Francisco Paulo Mendes, Ruy Barata e os mais novos: eu, Cauby Cruz e Mário Faustino, que vinha da Província do Pará mas estava mais ligado ao suplemento do Haroldo. Foi nessa dita reunião que se deu a nossa ligação com ele. Tanto que depois formou-se uma “embaiº xada” para participar do 1 Congresso Brasileiro de Escritores, presidido pelo Graciliano Ramos, no Rio Grande do Sul. Fomos eu, Ruy Barata, Haroldo Maranhão e Benedicto Monteiro. Asas da Palavra 143 P. Quais as afinidades literárias que surgiram desse primeiro encontro, e que depois perdurariam ao longo da estreita amizade que ligou o senhor ao Mário Faustino? BN – Ah, os pontos em comum apareceram logo, imediatamente. Lia-se Baudelaire, lia-se Valéry, Mallarmé, Rilke. Cada qual ia descobrindo o seu autor. Lia-se muito Kafka nessa época, em 47, 48, em traduções francesas: América, O Processo, Colônia Penitenciária. Os primeiros Kierkegaard, também. Depois o poeta Paulo Plínio Abreu se interessou particularmente pelo Rilke e passou a traduzi-lo. Antes disso, o Ruy Barata aprendeu francês com o propósito de ler Baudelaire. P. E autores brasileiros, o que se lia então? BN – Lia-se Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge de Lima... Em 52, houve o grande impacto, a publicação de Claro Enigma, do Drummond. De modo que não nos afetou muito a Geração de 45. O que os poetas da Geração de 45 apresentavam tinha sido realizado muito melhor pelo Drummond em 52, no Claro Enigma. P. Bem, Maria Eugenia, quais os critérios que orientarão a edição da obra completa do Mário? Em quantos volumes ela será publicada? MEB – Do ponto de vista editorial e visando o interesse do leitor, é preferível publicar volumes separados da tradução, da crítica, da poesia, e não uma obra completa em edição única, tipo da Aguilar [N. R.: Editora Nova Aguilar]. A princípio estavam programados seis volumes, mas a partir das crônicas recolhidas em Belém é possível que seja editado um sétimo volume. P. Mas de que forma vai se dar essa divisão? MEB – O primeiro volume trará a poesia do Mário, enquanto no segundo virão suas traduções. Um partipris que a gente adotou foi este: separar a poesia, que é criação dele, do exercício crítico-reflexivo que é a tradução. Acho que a grande plataforma do Mário era, primeiro, divulgar a boa poesia, catequizar as pessoas para ler a boa poesia, tanto a nacional quanto a estrangeira, e depois fazer um pequeno ensaio, uma reflexão sobre essa poesia. Havia um ideário estético por trás disso: o desejo de informar e formar. Era uma militância, tanto que o projeto dessa edição se chama “Mário Faustino, um militante da poesia”. Acho que sintetiza o espírito do trabalho dele, e isso vem sendo confirmado à medida que vou lendo suas cartas, ouvindo depoimentos sobre ele. P. E quanto aos demais volumes? 144 MEB – Bem, um terceiro contemplará a parte da crítica nacional, que mostra um panorama literário da década de 50 no Brasil, período em que ele divulgou jovens autores, os livros que estavam saindo, que estavam rompendo com os padrões da época. Teremos ainda um outro volume para a crítica a autores estrangeiros, um outro só sobre cinema e mais um que seria uma pequena fobiografia, com a parte mais pessoal, a correspondência. Como resultado dessa semana de pesquisa em Belém, pretendemos acrescentar a este último volume mencionado um roteiro lírico-cultural- Asas da Palavra sentimental da cidade, na medida em que Belém exerceu papel fundamental na formação do Mário. E ainda poderemos ter o sétimo, que seria o da reunião de suas crônicas. P. No projeto está previsto um perfil, uma apresentação biográfica geral de Mário Faustino? MEB – Para cada volume está previsto uma introdução crítica pertinente ao livro. Mas é bem possível que já no primeiro volume haja uma apresentação biográfica do Mário, até para permitir aos que desconhecem o poeta um primeiro contato com o homem e sua obra. P. Já existem nomes escolhidos para escrever o prefácio de cada volume? MEB – De preferência uma pessoa competente, que tenha afinidade com a obra de Mário Faustino. P. E quais os críticos que teriam esta afinidade? BN – Alfredo Bosi, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, João Alexandre Barbosa, Luiz Costa Lima ... MEB – Silviano Santiago... P. A intenção é lançar uma nova luz sobra a obra de Mário Faustino? BN – A finalidade é esta. P. Já em 1977, por ocasião do lançamento de um livro sobre Mário, o autor, Ivo Barbieri, se queixava da escassez de dados críticos e biográficos a respeito do poeta, bem como da dificuldade para o estudioso em sair à cata de periódicos dispersos a fim de juntar as peças que faltavam no que já havia sido editado. O que mudou, desde então? BN – Nós esquecemos de incluir o Ivo Barbieri entre os possíveis prefaciadores, e ele está na nossa lista. MEB – De lá para cá não mudou muito. Precisa é procurar, pesquisar. Ainda falta, por exemplo, quarenta por cento do que Mário publicou no Jornal do Brasil ser editado em livro. P. Em relação ao conjunto do que já foi publicado, o que esta nova edição trará quanto a inéditos? MEB – Pelo menos cinqüenta por cento não foi publicado antes em livro. Poesia é pouca coisa, a não ser que as pessoas daqui abram as caixas, os envelopes, não é Max? A dificuldade, como o Ivo Barbieri falou, é que pesquisa no Brasil é muito difícil. É preciso ter muita paciência para recolher, os arquivos são muito precários. É quase uma atividade braçal. Asas da Palavra 145 BN – Em relação à poesia, temos pouca coisa inédita. É mais prosa. As crônicas de cinema, as crônicas diárias da vida social que saíam na Província. P. Do que ele tratava nessas crônicas? MEB – Era tipo crônica de Rubem Braga. P. Esse Mário Faustino é desconhecido. BN – Não havia, na época, crônica social como conhecemos hoje. O que se chamava de vida social era uma crônica sobre os fatos da vida diária, como Rubem Braga fazia, Paulo Mendes Campos, e depois vinham às chamadas notas mundanas: registro de aniversários, casamentos, batizados... Não era a crônica social como depois viemos a conhecer, uma parte representativa dos jornais, que começa no final dos anos 50 no Rio de Janeiro, com o Jacinto de Thormes, aquele outro, o Ibrahim Sued, e depois os derivados regionais. P. Do que o Mário tratava nessas crônicas? BN – Ele falava sobre um mundo de coisas, um fato que ele viu naquele dia. São deliciosas. O poeta, o homem e sua hora (II) P. Como era Mário Faustino na intimidade? Angelita Silva – Era uma pessoa extremamente atraente. Uma vez, eu não esqueço nunca, ele estava contando uma história, e todo mundo passou a prestar atenção nele, e aí ele fala: Spot on me, spot on me. Eu respondi: “Não precisa, porque você já tem a sua luz própria, intensa”. Ele ria muito, era uma pessoa encantadora. P. Mas ele, às vezes, tinha um comportamento ensimesmado, ou era sempre essa pessoa alegre? BN – Era sempre alegre. Tinha naturalmente suas crises, como todos têm. P. Ele era um homem livresco? BN – Ele era um leitor voraz. Fazia tudo muito depressa. Lia e escrevia muito depressa. Por acaso, na última fase – antes dele morrer –, ele morava defronte à SPVEA, onde trabalhávamos. Eu chefiava o setor de divulgação e coordenação, e o Mário trabalhava no setor de imprensa. Como ele morava defronte, de vez em quando vinha e dizia para mim: “Olha, toma. O material já está todo feito e eu vou para casa escrever um poema, já, já”. Ia embora e não voltava mais. Ele aprontava tudo o mais rapidamente possível e o mais perfeitamente possível, também. A rapidez de execução era uma coisa notável. Ele podia fazer várias versões muito boas do mesmo poema. 146 Asas da Palavra P. O poeta foi para o Rio de Janeiro em que ano? BN – Em 1956. Antes, ele foi ao Rio para cuidar da edição de seu livro, O homem e sua hora, em 1955. Retornou a Belém e depois seguiu para o Rio já com um cargo na Fundação Getúlio Vargas, passando também a colaborar no “Jornal do Brasil”. P. Por sinal, em relação à página de Mário no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, o poeta e crítico Haroldo de Campos já disse que Mário Faustino fez o mais ágil e inteligente jornalismo literário, jamais feito no país. Esta afirmação, ainda hoje, às vésperas da edição de sua obra completa, permanece atual? MEB – Eu acho que sim, sobretudo porque os suplementos literários atuais são chatinhos. BN – E o jornalismo literário acabou, da mesma forma que a crítica nos jornais. As duas coisas acabaram ao mesmo tempo. P. O que caracteriza o fim dessa crítica e o fim do jornalismo literário que se fazia, por exemplo, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e no Suplemento Literário do Estado de S. Paulo? As imposições do mercado atual? BN – Primeiro é a mudança interna nos jornais por causa da questão mercadológica, do consumo. E dessa concepção falsa de que o leitor de hoje não precisa de certas coisas. Imagine se hoje iam publicar aqueles enormes artigos que você encontra no “Suplemento Literário do Estado de São Paulo”. P. Nos anos 60... BN – Artigos do Otto Maria Carpeaux, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena... Mas concomitantemente a isso, os cursos de letras começaram a se desenvolver no Brasil. E começou a aparecer um novo gênero de trabalho intrauniversitário: as revistas, com periodicidade muito incerta. Essa crítica universitária, ela já surge fora do jornal. Morreu uma, a outra estava nascendo. Os jornais se tornaram muito mais instrumentos de informação rápida, como conseqüência de uma hierarquia das mídias: a mídia mais rápida vai condicionando a outra que é menos rápida, e assim por diante. P. Quando se fala no Carpeaux, no Álvaro Lins, no próprio Mário Faustino, é preciso observar que eles tinham um conhecimento amplo, variado, humanista, e sabiam transmitir esse conhecimento num texto claro, articulado, vivo, que envolve o leitor. Já os textos de hoje – e continuam sendo publicados textos de maior fôlego – não têm a mesma qualidade, vamos dizer, de comunicação. O conhecimento é muito mais especializado, restrito. BN – Exatamente, existe isso. Há coisas que se publicam em jornal que ficariam melhor em livro. São textos enfadonhos. E há coisas que se publicam em jornal que são tão supérfluas, mesquinhas, do ponto de vista de idéias. Asas da Palavra 147 P. O leitor que não conhece Mário Faustino, que tipo de impacto literário ele terá ao tomar contato com a obra do poeta e crítico? MEB – O leitor vai se surpreender primeiro pela variedade, pela dimensão polimorfa da produção dele, pelo interesse vasto e também pela qualidade. Ele tocava em assuntos que ainda hoje não são tocados no Brasil, ou são comentados num ambiente restrito. BN – O Mário, aliás, teve diversos e variados leitores, como o Wally Salomão; o pessoal da música baiana daquela época, Caetano Veloso; Torquato Neto, o próprio Gláuber Rocha. MEB – O Mário aparece no filme “Terra em Transe”, do Gláuber. BN – Aparece o poema do Mário, “Balada”, principalmente o verso, “Tanta violência, mas tanta ternura”. P. Bem, o Mário Faustino, por seu exercício crítico rigoroso, ao analisar poetas nacionais, livros recém-lançados, ao avaliar medalhões da poesia brasileira, por certo ganhou muitas inimizades, não? BN – Ah, sim. Hoje essas inimizades já devem estar desfeitas, embotadas pelo tempo. Foram inimizades principalmente com aquela turma da chamada Geração de 45, o Geir Campos. Houve um que ele atingiu muito, mas que não revidou, um homem de dignidade muito grande: José Paulo Moreira da Fonseca. P. Isso pode ser levantado em sua pesquisa, os problemas que Mário enfrentou com os poetas daquele período, as desavenças com seus contemporâneos? MEB – A situação do Mário, com as devidas proporções, é um pouco a coisa do Oswald de Andrade. Esse pessoal da Geração de 45, alguns, não todos, eles hostilizaram muito os modernistas, sobretudo o Oswald de Andrade. Eu tive problemas quando editei alguns volumes da obra de Oswald, sobretudo as entrevistas, que mexiam com as feridas da época. Pode-se fazer um paralelo com a obra de Mário Faustino. A obra de muitos poetas da Geração de 45 desapareceu, enquanto o Mário Faustino está aí, despertando interesse, sendo reeditado. BN – É até artificioso esse uso de “geração” – e eles usavam o termo geração como bandeira. Geracional é um conceito periodológico. Há uma parte da Geração de 45 – que ainda está viva – que pratica a necrofilia. Eles se comem. Continuam cultuando a própria bandeira, que é a da geração, simplesmente. Publicam coisas medíocres, repetitivas. P. Aliás, e por falar em bandeira (vai o trocadilho), o Manuel Bandeira parece que andou tomando as dores de um poeta da Geração de 45 criticado pelo Mário? 148 BN – Foi o Geir Campos. Asas da Palavra P. O Bandeira escreveu contra o Mário Faustino? BN – Ele fez uns versinhos, que eu não conheço. MEB – Quem tem não mostra. Ele parte para a coisa pessoal. BN – Eu sei que isso está na Casa Rui Barbosa. MEB – Se tiver lá é acessível. Vou tentar procurar. P. Em relação às traduções feitas pelo Mário, que merecerão um volume à parte, elas podem ser tomadas como um produto acabado, ou devem ser vistas como forma de complemento ao trabalho crítico por ele desenvolvido na página do Suplemento? Do ponto de vista atual, em que a tradução em si e a teoria da tradução já se encontram mais desenvolvidas, mais aprimoradas, as traduções do Mário podem ser consideradas da boa qualidade? MEB – Há várias atitudes quanto ao aspecto da tradução. Eu acho que as traduções do Mário representam uma dessas atitudes. Podem não estar filiadas à vertente das traduções mais criativas. Ele se impôs uma missão: divulgar, informar, educar. Eu acho que o projeto do Mário é um projeto didático, ele quer formar o leitor, estabelecer um padrão. E as traduções dele, de um modo geral – considerando o veículo em que formam publicadas –, elas foram determinadas pela rapidez deste veículo. P. O próprio Mário não deixou de ressaltar este aspecto. MEB – Claro. É diferente você ser convidado a fazer uma edição bilíngüe bem cuidada, com notas, tempo suficiente. Ele fazia traduções para resultado imediato, para o público ler no outro dia. O jornal tem um alcance rápido, passageiro. P. O livro O homem e sua hora, publicado em 1955, surge logo depois de A Luta Corporal, de Ferreira Gullar, publicado em 1952, e de Duas Águas, publicado em 1954, de João Cabral de Melo Neto, sem esquecer Claro Enigma (51), de Drummond, Invenção de Orfeu (52), de Jorge Lima, e o Cancioneiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. Como podemos situar o aparecimento do livro do Mário naquele momento poético? Que tipo de recepção crítica o livro mereceu? BN – Foi considerado uma coisa muito nova, original, uma poesia muito forte para os padrões da época, e já de relevância. Ficava à altura da boa poesia que se fazia na época. Havia uma relação com Claro Enigma. Nenhuma com A Luta Corporal. Havia ligações muito mais com Cecília Meireles, com Jorge de Lima e com Carlos Drummond de Andrade. Com este último compartilhava uma certa sobriedade na expressão. A aspereza do verso. Não tem nada a ver com a poesia de João Cabral de Melo Neto. Aliás, nunca teve nada a ver com a poesia de João Cabral. A poesia de Mário Faustino passou imune à poesia de João Cabral. P. O homem e sua hora teve ressonância entre os então nascentes po- Asas da Palavra 149 etas concetos? Eles leram o livro pela época de seu lançamento? BN – Eles leram. Acho que era muito mais o tipo de mentalidade poética que o Mário representava do que propriamente a poesia. Ambos já vinham realizando, publicando, e se encontraram no caminho. P. Os livros Invenção de Orfeu, de Jorge Lima, e Os Cantos, do poeta norteamericano Ezra Pound, parecem ter influenciado, orientado a poesia de Mário Faustino. Estes dois vastos poemas cortam, se entrecruzam ao longo da obra faustiniana. Aliás, Invenção de Orfeu, sob o ponto de vista do crítico Mário Faustino, às vezes parece ser Invenção de Mário Faustino, e não de Jorge de Lima. Qual a influência desses dois poetas na obra de Mário? BN – O Mário é um poeta de poetas, mas sem a “angústia da influência”, sabendo extrair de cada qual o que precisava e passando adiante. Quanto mais você vê que é grande a influência da crítica de Pound nele, menor é a dos poemas de Pound. Até um certo momento – você pega “A Reconstrução” –, ele quis ir no sentido de uma épica, mas quando ele parte para os “fragmentos”, aí eu acho que ele estava escrevendo de encontro, e não ao encontro, às influências maiores que ele recebia. Os “fragmentos” podem lembrar certo Jorge de Lima descarnado, mas não tem nada com o Pound. P. 38 Quais os pontos de interseção, de convergências – e de divergências – entre Mário Faustino e as vanguardas da época, os concretistas principalmente? Mário, por sinal, recusava a idéia de “movimento”, de pertencer a movimentos, de compartilhar do processo de “coletivização” das vanguardas, de se unir em torno de uma bandeira... MEB – Na poesia eu acho que tem poucos pontos em comum. Agora, no projeto de Mário Faustino de buscar o novo, a fuga a cânones, isso ele vai buscar nas vanguardas. Na série que ele faz sobre o cubismo, sobre o futurismo. Nos textos que ele escreve sobre Blaise Cendrars, poeta que agora é que está sendo reavaliado. A série também sobre Apollinaire. São pontos de ruptura para a atualização, para a dinamização da poesia. Da mesma forma que ele vai buscar, também, nos clássicos. BN – A maior identidade com os concretistas é na crítica. Apreciavam os mesmos autores, os mesmos críticos. Apreciavam os críticos-poetas ou poetas-críticos. O Paideuma dos concretistas pressupõe a superação do verso. O Mário, por sua vez, também fala sobre a crise do verso, mas jamais aceita abandonar o verso. Pelo contrário. O Mário concordava: o verso está em crise em toda a parte. Escrevem-se péssimos versos, etc. Mas ele dizia que era preciso usar o verso de outro modo. A propósito, o José Lino Grünewald, que também colaborava no Suplemento do Jornal do Brasil, dizia: “Mário, desfaz o nó mallarmaico. Estás preso ao nó mallarmaico”. O Mário debochava. 150 P. O movimento concreto pregava que a poesia devia acompanhar a evolução da ciência, até mesmo tornar-se científica. Esse era um momento de divergência com o Mário, não? Asas da Palavra BN – Ele dizia o seguinte: a poesia deve ter uma dignidade tão grande quanto à ciência, mas não que devia ser igual, o que é diferente. Devia ombrear-se com a ciência. Nas suas cartas, ele falava que os concretistas faziam coisas interessantes, mas sempre minipoemas, nunca poemas. O apóstolo Mário Faustino (final) P. O projeto de Mário Faustino de escrever um longo poema, projeto malogrado, em parte, devido sua morte precoce, esse desaparecimento prematuro não acabou por impedir que brotasse uma contrapartida poética à concisão pregada pelas vanguardas e que, de certa forma, desaguou nesta poesia atual, lacônica, esteticista, minimalista e, muitas vezes, insossa? Não teria sido saudável para a poesia brasileira o contraste que ofereceria o pleno desenvolvimento da obra faustiniana? BN – Eu acredito que sim. Não que ele fosse realizar um poema longo. Ele sempre faria um poema longo feito de pequenos poemas. P. Que ele iria dando à publicação ao longo do tempo? BN – Mas mesmo esses minipoemas, dos quais os “fragmentos” são uma prova, jamais eram insossos. Um poema como “Juventude”, como “Inês, Inês...”, são diferentes dos anteriores. Indicam uma variação nas intenções dele dentro de uma mesma concepção. P. Mas Mário Faustino ainda hoje entre nós, não teria sido outro o caminho seguido pela poesia brasileira? BN – Na tendência que acabou predominando, o Mário, hoje, seria uma grande voz, mas uma voz isolada. MEB – Com a ausência de Mário faltou uma voz, uma autoridade crítica. O que me espanta em Mário é essa coragem, a sinceridade, a objetividade crítica com os amigos. BN – Hoje nós temos uma ausência de crítica. P. Não existe mais crítica no Brasil, é isso? BN – Está-se dominado – e eu particularmente também sofro disso – por um tal ceticismo que já não se aplicam mais os critérios da maneira rigorosa como o Mário Faustino aplicava. O Mário era apóstolo, tinha fé naquilo que pregava, acreditava no que pregava. Nós já não acreditamos muito. P. Nos seus “Diálogos da Oficina”, ele chega a ser, digamos, tão religioso em sua doutrina poética que, às vezes, parece ingênuo, pelo menos visto na perspectiva de hoje. Asas da Palavra 151 BN – A poesia deve ter também um certo empenho metafísico, está dito lá. MEB – Uma poesia empenhada socialmente. BN – Metafisicamente também. Lutando pelo homem mas também exprimindo a sua situação no universo. Nós estamos sofrendo mal do relativismo, do qual não nos livramos e não sabemos como é que vamos nos livrar. Por exemplo: tudo pode ser interpretado. Até a má poesia pode traduzir um certo estado da sociedade. P. Quase trinta e cinco anos depois da morte de Mário Faustino, o interesse pela sua obra vem crescendo? MEB – Vem sim, apesar da dificuldade de se encontrar a obra dele nas livrarias. Apesar disso, ele vem ganhando novos leitores. P. O Mário deixou herdeiros? MEB – Acho que os irmãos são os herdeiros universais. P. Não, eu digo herdeiros na poesia (risos). MEB – Bem, então vamos botar a memória para funcionar...Acho que, infelizmente, não. BN – Não podemos esquecer que, pela função didática que ele exerceu, diversos poetas surgiram por intermédio de sua página no Suplemento do Jornal do Brasil. Ele não deixou herdeiros, mas abriu caminho aos mais variados poetas. MEB – E nenhum poeta tinha feito isso já há muito tempo, a não ser o Mário de Andrade, embora num outro nível, numa outra circunstância. P. Pode-se dizer que Mário Faustino é um poeta paraense? MEB – Cada vez mais estou convencida disso. A convivência com os amigos paraenses, acho que isso foi bom para o Mário. BN – Mas poeta paraense no sentido de restrito a um meio cultural periférico? P. No sentido de que metade de sua vida, dezesseis anos, seus anos de formação intelectual, foram passados em Belém. BN – Quanto a isso, certamente. P. Sem, é claro, que isso dê a entender ter sido poeta restrito a uma condição provinciana, poeta municipal. Eu queria voltar ao que a Maria Eugênia falou, sobre estar cada vez mais convencida do fato de Mário ser um poeta paraense. O que a leva certifica-se disso? MEB – A minha ignorância até então em relação ao Pará. A minha estadia aqui 152 Asas da Palavra vai ajudar a compreender o trabalho do Mário. Eu não sabia desse grau de intimidade intelectual, de discussão, de debate. Não avaliava o grau disso na formação de Mário. P. Max, aproveitando sua presença, até agora calada, fale sobre sua convivência com o Mário? Max Martins – A minha convivência não foi muito estreita com o Mário. Até por timidez, o acompanhava de longe. Aprendi muito lendo a poesia do Mário. Naquela ocasião eu estava descobrindo poetas como Dylan Thomas, Hart Crane, William Carlos Williams, dos quais Mário também recebeu influência. Há um poeta que representa uma espécie de encontro poético entre mim e o Mário, revelado para mim e o Mário, revelado para mim pelo Robert Stock, que é o Dylan Thomas, inclusive pela leitura das traduções do Mário. P. É curiosa e praticamente desconhecida a presença desse poeta norteamericano, Robert Stock, na biografia de Mário Faustino. BN – Ele foi, para todos nós, uma espécie de catalisador. P. Ele já tinha livros publicados quando veio para Belém? BN – Somente uns poucos poemas publicados em pequenas revistas acadêmicas dos Estados Unidos. P. Mas estava atualizado com os poetas contemporâneos, muitos dos quais apresentou a vocês. BN – Bob Stock foi um homem de grande generosidade intelectual. Conversava de igual para igual com o Mário Faustino. Os dois se fecundavam mutuamente, tanto que o Mário traduziu poemas dele e o Bob alguns do Mário. O encontro de ambos se deu em 1952, quando o Mário voltou de sua primeira viagem aos Estados Unidos e topou com o Bob por aqui. P. Os contrastes que formam – e informam – a poesia de Mário Faustino, contrastes espirituais, éticos, religiosos, eróticos, que confluem para uma espécie de configuração alegórica que busca se expressar na criação de um novo repertório poético, conciliando o mito e o passado a novas técnicas experimentais, as vanguardas de então. A par disso, o que a morte interrompeu pode ser dado como concluído, como tendo alcançado uma unidade poética, feito Rimbaud, que não precisou da morte para se encerrar enquanto poeta, ou a frustração da incompletude, da forma fragmentada dos últimos poemas, pesará sempre a obra de Mário Faustino? BN – Acho que ele se completou na incompletude. É claro que ele visou muito mais além, mas isso não quer dizer que ele precisaria viver mais alguns anos para realizar o seu dom. Acho que a própria busca já era uma realização. P. Então ele deixou uma unidade poética? Asas da Palavra 153 BN – Quando você examina hoje, é possível observar uma relação muito grande entre os “fragmentos” e os poemas de O homem e sua hora. E até buscando as vanguardas. Aquele aparato da retórica de vanguarda, você vê as mesmas imagens, os mesmos símbolos, as mesmas alegorias, para usar a sua expressão. P. Sabemos que o Rimbaud decidiu não mais escrever poesia. Deixou uma obra pronta e acabada. Mas o Mário, sua morte prematura não deixou de interromper um curso poético, ainda que possamos dizer que toda e qualquer morte interrompe toda e qualquer atividade. Mas o que quero ressaltar é o desaparecimento repentino, prematuro, do poeta quando jovem, e não em idade madura, com obra já considerável. BN – Evidente que ele esperava fazer mais. Mas, paradoxalmente, o que ele fez foi uma realização, do ponto de vista disso que ele estava procurando. A própria diversidade tem uma unidade. O fragmentarismo, ele caminhava para isso mesmo. Diante do concretismo, a solução dele foi recuar não a uma forma preliminar de expressão poética que abolisse o verso, mas buscar uma outra forma de verso, que chegasse ao refinamento do verso que ele fazia antes. Cada fragmento tem a unidade do poema formalmente considerado, uma unidade temática, sua autonomia estética. P. No ensaio Mocidade e morte, Otto Maria Carpeaux fala de um certo “estilo da velhice”, que acometeria poetas novos, mas somente aqueles que morreram moços. Segundo Carpeaux, pressentido a morte prematura, este poeta anteciparia experiências fora do tempo, transcendentais, expressando-se num tom enigmático, sombrio, atemporal. Esse estilo da velhice estaria ligado não ao tempo civil, mas à iminência da morte, e distinguiria os gênios malogrados daqueles outros gênios, celebridades falsas. É possível, nesses termos, falar em estilo da velhice a respeito de Mário Faustino? BN – A velhice aí é como a consumação. Seria antecipar sua própria experiência da idade madura. Num outro aspecto, o Hermann Broch usa esta expressão de Carpeaux. O estilo da velhice é aquele que não é mais um estilo direto, mas traz uma certa complexidade. Dá até o James Joyce, entre outros como exemplo de estilo da velhice. Aí já existe uma noção de cultura por trás, culturas jovens, culturas velhas. Mas, nesse sentido, antecipatório, é possível concordar com Carpeaux. Num certo sentido, Mário é um poeta juvenil – não é a juvenilidade auriverde. Ao publicar O homem e sua hora, ele já é um poeta maduro. MEB – Ele não se compara com nenhum desses modelos de poeta de morte precoce. P. Que é o caso de alguns dos nossos poetas, poetas que morreram jovens, mas que não alcançaram o estilo da velhice: Casimiro de Abreu, Álvares de Azevedo... Eles foram somente juvenis, ainda que talentosos. MEB – Me parece que o Mário fala disso, que sua poesia é a de um homem de 40 anos. P. 60 É problemático falar quando já temos o conhecimento do fato consumado, da morte violenta, brutal, repentina, precoce, que não deixa sequer o corpo. Já falamos sobre o ritmo acelerado que Mário impri154 Asas da Palavra miu a sua vida, parecendo até sinal de premonição da vida breve. Com uma leitura, digamos, viciada pelo conhecimento da morte trágica, alguns de seus versos chegam a soar premonitórios. Ele fazia comentários sobre isso, falava a respeito da morte, deu sinais do que viria a lhe acontecer? BN – Eu não quero falar em premonição; sou muito cético. Acho que ele tinha uma preocupação constante com a morte, mas na poesia. E, verdade, também, às vezes, no dia-a-dia. Lembro de uma coisa muito curiosa. Uma vez, ele estava deitado e umas moscas vieram e pousaram nele, e ele disse: Oh, not yet, not yet (risos). P. 61 Ainda não era a hora. MEB – A idéia da morte é um dos motivos principais da poesia de Mário. P. Você não conheceu o homem Mário Faustino, mas ao ler o poeta, ao editá-lo, você o vive, de certa forma; busca conhecer a pessoa, sua biografia. Nesse levantamento feito em Belém, ao estar aqui, ao lado das pessoas com as quais Mário conviveu, dá para formar uma opinião, ter uma impressão do homem atrás da obra? MEB – A minha presença nesse projeto editorial talvez venha trazer uma outra parte às pessoas que conviveram com ele, Benedito, Max Martins, Haroldo Maranhão. Para mim, a poesia do Mário é um objeto específico, uma coisa fria que eu vou dissecar, vou procurar conhecer tudo. Mesmo assim eu fiquei espantada com o meu envolvimento nessa semana passada em Belém, afetivamente, pela leitura das cartas, a surpresa desse mundo aqui, que eu desconhecia. O Mário era ao mesmo tempo um homem que vivia freneticamente, um homem moderno, mas que tinha esse lado melancólico, meio saudosista. E isso era importante: a saudade do Pará e dos amigos. Ele jamais despreza o Pará e os amigos. Isso eu percebi aqui, nessa semana, que para mim foi uma universidade em período intensivo. P. O que a poesia e a crítica de poesia ganham com este retorno a Mário Faustino, que a reedição ampliada de sua obra propicia? BN – A poesia ganha poesia e a crítica ganha crítica (risos). MEB – Eu acho que a crítica ganha um parâmetro de objetividade, que falta hoje em dia. Ganha a dissecação da obra, dizer por que é boa, por que é ruim, e em que padrões se está julgando essa poesia. A crítica vai ganhar muito. Asas da Palavra 155 156 Asas da Palavra LEMBRANÇA * Ivo Barroso Tradutor * Asas da Palavra Publicado originalmente na Revista Palavra. abril/2000 157 A final de que serve a poesia? Que papel deve assumir o poeta contemporâneo diante dos problemas de sua época? O que é a poesia? Estas e outras perguntas, um jovem poeta procurou responder aos 26 anos. Seu nome: Mário Faustino, cuja vida precoce foi seguida de uma precoce morte, aos 32 anos, em um acidente de avião em Cerro de la Cruz, nas imediações de Lima, capital do Peru. Seu corpo não foi identificado. Mário Faustino deixou um único livro, O homem e sua hora. Mas o seu trabalho de poeta, crítico e tradutor permanece com um dos momentos mais instigantes da nossa poesia. Os jovens leitores de hoje, que vêem emagrecer de dia para dia o espaço dos jornais destinado aos assuntos literários, estão longe de imaginar o que era o “Suplemento Dominical” do “Jornal do Brasil” nos últimos anos da década de 50: um caderno especial de 12 páginas, formato grande (60 cm x 40 cm), com paginação sofisticada, onde poemas inteiros eram transcritos com ilustrações e espaços em branco largamente utilizados em benefício da composição estética. Seu diretor, Reynaldo Jardim, inovador da feitura gráfica, paginador de vanguarda, estava aos poucos transformando um compósito de artigos sobre “artes” num conjunto homogêneo de assuntos literários. Pouco a pouco foram sendo devidamente “aposentadas” decrépitas seções de balé e crítica teatral, conselhos domésticos e notícias literárias, cujos velhos colaboradores iam se queixar furiosos à condessa Pereira Carneiro da intromissão “desses jovens” nas searas em que vinham respingando (e ruminando) havia décadas. Mas o genro da condessa, Nascimento Brito, desejoso da remodelação do jornal, deu respaldo à turma do “Suplemento”. Foi nesse espaço que apareceu, a 23/09/56, a página inteira denominada Poesia-Experiência, sob a assinatura de Mário Faustino, jovem poeta paraense, logo em seguida transformado num dos maiores críticos literários do país. Se o Suplemento Dominical já era para os jovens poetas de minha geração leitura semanal obrigatória (para torná-lo ainda mais sui generis, o dominical saía aos sábados), com o aparecimento de Mário Faustino, a folha transformou-se em motivo de cult. Isso porque ele representava para nós tudo aquilo por que vínhamos ansiando: o mestre capaz de nos fornecer, da maneira mais atraente e dinâmica possível, as teorias de que necessitávamos e que não poderíamos adquirir fosse por falta de recursos financeiros, fosse por desconhecimento de suas fontes originais. Faustino ensinava Poesia, matéria que não estava nos tratados legíveis, e dela nos dava exemplos (exhibits, em sua linguagem) que abrangiam desde os tempos clássicos greco-romanos ou mesmo de literaturas 158 Asas da Palavra mais remotas como a chinesa, até as grandes vozes do presente (Rilke, Pound, Eliot) sobre as quais ouvíamos falar mas sem haver ouvido (ou visto) o que diziam. Seus Diálogos de oficina eram conversas imaginárias entre mestre e discípulo, ou entre dois interlocutores cultos, sobre a conceituação do ser e do fazer poéticos, expressos numa linguagem acessível, mas sempre elevada. A seção O melhor em português antologiava e comentava os clássicos portugueses, e o É preciso conhecer, os grandes poetas estrangeiros em tradução. Havia ainda os “Subsídios de Crítica”, com trechos selecionados de mestres do gênero, principalmente os de língua inglesa, e a seção “O Poeta Novo”, a que mais interesse despertava entre nós, pois Faustino convocava democraticamente os inéditos a colaborar, submetendo-os no entanto a uma seleção impiedosa. Vítima de timidez aguda, estive várias vezes para lhe mandar minha colaboração, mas só me arrisquei quando Faustino passou a publicar e analisar alguns poemas traduzidos. Enviei-lhe o soneto 3 da primeira parte dos Sonetos a Orfeu, de Rainer Maria Rilke (Ein Gott vermags), efiquei abismado e confuso quando, na semana seguinte, abrindo o suplemento, dei com o original e a tradução em O poeta novo, tendo embaixo a seguinte nota: “O poeta novo da semana apresenta-se com uma tradução. Alguns leitores poderão estranhá-lo. Nós, porém, somos dos que pensam poder haver tanta criação poética – ou mais – em uma tradução quanto num poema original. Algumas das obas mais importantes das maiores literaturas do mundo têm sido traduções...” Diante de tal acolhimento, ganhei coragem e fui visitar a redação do Jornal do Brasil, àquela época na avenida Rio Branco. Lá encontrei Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Oliveira Bastos e Assis Brasil, mas Faustino não estava presente, só ia ao jornal uma vez por semana levar a página de Poesia-Experiência. Poucos leitores o conheciam; na entrevista que deu a Ruth Silver para o mesmo Suplemento, em vez de se deixar fotografar, preferiu copiar a mão uns versos de Camões e de Pessoa. Devia ser um velho sistemático, mas queria de qualquer forma agradecer-lhe a “promoção”. Reynaldo aconselhou-me a procurá-lo na Fundação Getúlio Vargas, onde trabalhava num departamento da ONU, e aconteceu que um dia resolvi lá ir. Recebeu-me um colega dele; fiquei à espera junto à mesa em que havia um paletó e um bilhete escrito em francês: “Voltarei dentro de alguns minutos. Mário”. Logo chegou, muito jovem (eu esperava um senhor quarentão, Mário tinha apenas 26 anos, um ano mais novo do que eu), nada alto, rosto redondo, perfeitamente escanhoado, cabelo à West Point, fisionomia rosada de esportista, olhar vivo e brilhante, gestos um tanto nervosos – enfim, o inverso do que ser convencionou ser o “tipo intelectual”. A conversa começou meio amarrada da minha parte, não conseguindo repetir o ensaiado discurso de agradecimento. Mário cortou curto. Não lhe devia agradecer. Não havia ne- Asas da Palavra 159 nhuma concessão em sua escolha. Perguntou-me se conhecia um verso de Pound: “A piedade matou minhas Ninfas” e falou-me algo sobre a honestidade na crítica de arte. Percebendo minha atitude de acólito, tratou de anular a impressão de que gostava de ser mestre. Estava procurando aguçar em todos nós o senso crítico através do conhecimento. Mas o gosto artístico, ou saber distinguir em arte, deveria ser a conquista de cada um com os recursos de que dispusesse. Pediu para ver outros trabalhos meus. Mostrei-lhe a tradução que tentava fazer da Ode a uma urna grega, de Keats, e Mário tomou o papel onde escrevera o bilhete em francês, e nele anotou um remanejamento do verso Beauty is truth and truth is beauty, dizendo que a frase se tornara proverbial em inglês e era portanto necessário conseguir uma forma de traduzi-la com o mesmo pique em português. Saí levando comigo o papel, que ainda guardo. No ano seguinte, encontrei Mário novamente, desta vez na redação do jornal. Sabendo da importância que dava às traduções, queria mostrarlhe algumas dos sonetos de Shakespeare, que ele imediatamente publicou (27/10/57), também com uma nota: “Ivo Barroso é, a nosso ver, um dos maiores tradutores para a língua portuguesa em ação atualmente: os leitores desta página hão de estar lembrados de seu comparecimento à seção ‘O Poeta Novo”, traduzindo um dos ‘Sonetos a Orfeu’ de Rilke. Volta agora Barroso com três sonetos de Shakespeare, todos surpreendentemente traduzidos, a ponto de superarem, em nossa opinião, as traduções (em alexandrinos), já por nós elogiadas, de Jerônimo de Aguiar (Editora Melhoramentos). Ivo Barroso estará dentro de algumas semanas em ‘Poesia em Dia’, com página de traduções do inglês, do italiano, do alemão, etc.” Mas sem esperar pelas semanas vindouras, pediu a Reynaldo que me acolhesse entre os colaboradores do Suplemento e me vi, de um momento para outro, fazendo parte da equipe. 160 Nesse mesmo ano de 1957, o Suplemento passaria por um momento histórico com sua adesão ao concretismo, teorizado pelos irmãos Campos e Décio Pignatari, de S. Paulo, e encampado, no Rio, por Jardim e Gullar, que lhes abriram as portas para a publicação de manifestos e poemas. O Suplemento passou a estampar versos “espaciais” que causavam exasperação entre os conservadores e pedidos veementes à condessa “para que pusesse um paradeiro ao descalabro”. Nós, poetas novos, prontamente aderimos. Eu próprio tive alguns poemas concretos publicados, entre eles o SAPO PULA/ PAUL PULULA, e o ÉPOCA/ ÉPICO, reproduzidos com grande destaque. Mário não aderiu de primeira hora nem de corpo inteiro ao movimento, embora respeitasse a cultura e probidade de seus mentores. Mas escreveu um artigo de página inteira, A poesia concreta e o momento poético brasileiro, que situava o movimento vis-à-vis da atuação dos grandes poetas da época, e que, pela sua coragem e agudeza de análise, permanece, até hoje, significativamente como um dos mais avançados patamares de crítica literária objetiva. Como Manuel Bandeira, não deixou também de fazer, em seus poemas subseqüentes, algumas incursões pelos “recursos espaciais” concretistas, mas, entre nós, confessava Asas da Palavra não acreditar na “morte do verso”. Muitas outras vezes estive e falei com Mário, e dele recebi conselhos e orientações, sempre dados de maneira informal e sugestiva. Lembrome de quando achou estranho que eu tivesse traduzido para o Suplemento uma série de artigos do crítico literário norte-americano R. P. Blackmur contrários a Ezra Pound, que era um de seus ídolos intocáveis. Como houvesse um endeusamento permanente de Pound nas páginas do Suplemento, Reynaldo achou que era oportuno mostrar também “a outra face”, e eu concordei em traduzir os artigos. “Blackmur é sério, mas eu prefiro Pound, que é espiroqueta”, ainda o ouço dizendo: “Os críticos teorizam, mas só os gênios criam”. Em dezembro de 1959, Mário ausentou-se do Brasil para exercer um cargo na ONU em Nova York, só regressando em 62, como editorialista do Jornal do Brasil e da Tribuna da Imprensa, que estava sendo adquirida pelo primeiro. A Tribuna passava por grandes transformações e entre seus redatores estava Paulo Francis, com quem eu já trabalhara na revista “Senhor”, e que me convidou para traduzir um folhetim, Os ladrões de corpos, para aquele jornal. Lá encontrei um dia Mário Faustino, que passara a dirigir o órgão e se mostrava naquele dia extremamente agitado. O jornal publicara ou ia publicar uma entrevista com Luís Carlos Prestes, e havia reações de toda espécie. Mário disse-me que a vida política brasileira estava muito conturbada e estava ficando muito difícil exercer o papel de orientador da opinião pública. Preferia aceitar uma oferta do jornal para fazer uma série de artigos e reportagens sobre Cuba, México e Estados Unidos. Perguntou, como sempre atencioso, pelos meus trabalhos e mostrei-lhe os “33 Sonetos de Abraxas”, em que vinha trabalhando. “Merece um prefácio”, disse-me com afeição que não pude esquecer. Dei-lhe a pasta com os sonetos. No dia 27 de novembro daquele ano, Mário embarcou para nova York para não mais voltar. Os jovens poetas de minha geração tudo devem a Mário Faustino: foi ele quem nos ensinou a encarar a poesia como algo sério e comprometedor. A ter como um dos instrumentos do poeta o conhecimento de línguas e literaturas estrangeiras. A desenvolver avaliação crítica sem a qual nunca iríamos passar de diluidores. Não consegui nunca, em vida, agradecer-lhe por isso. Mas em 1991, quando publiquei a antologia de traduções O torso e o gato, nela inscrevi seu nome, in memorian, como um singelo tributo. Asas da Palavra 161 162 Asas da Palavra MÁRIO FAUSTINO NOSSO CIGANO Lúcio Flávio Pinto Jornalista Asas da Palavra 163 Q uando li pela primeira vez Mário Faustino, mais de 35 anos atrás, já conhecia – e amava – Federico Garcia Lorca. Foi impossível não fazer comparações e associações. Eram surpreendentemente parecidos. Primeiro fisicamente: homens morenos, de traços fortes e firmes, suavemente bonitos. Nas personalidades também: ambos eram homossexuais. A homossexualidade, como não podia deixar de ser, era um elemento forte dos seus modos de ser, sobretudo em suas terras natais (ou adotivas). Algo importante para dentro dos dois poetas. Eles nunca assumiram essa sexualidade subversiva, mas também não a negavam. O mais importante, porém, é que mesmo se desviando do comportamento padrão (e sancionado) e não escondendo essa atitude, sua homossexualidade era um componente harmonioso neles. Ninguém a notava, nem a acusava. Exceto, no caso de Lorca, quando a guerra civil espanhola, em sua fase mais furiosa, a tomou como combustível para um dos seus mais odiosos atos de brutalidade: a execução sumária do poeta. Mário e Federico eram poetas sensíveis e almas superiores, mas nunca tiraram os pés da terra. Envolveram-se nos dramas dos seus países e tentaram usar suas inteligências a serviço de causas nobres, dando-lhes aplicação coletiva, social. Circularam com a mesma desenvoltura pelo universo das simbolizações e pelo mundo dos homens. Essa rara combinação de vida literária com vida social é o traço que mais me agrada ao lembrar, como muita gente fez, a memória de Mário Faustino dos Santos e Silva, nos 40 anos de sua morte, ocorrida em acidente aéreo, no dia 27 de novembro de 1962. Podia-se escolher uma data mais festiva: os 70 anos do seu nascimento, que se deu no Piauí, em 22 de outubro de 1930. Vê-se, pelo confronto das duas datas, que Mário esteve entre nós por apenas 32 anos. Mas fez muito, imensamente. Como parecia ter a premonição da vida breve, uma marca de grandes artistas que morreram jovens, tudo que fez tem intensidade, paixão, urgência. Assim como Guimarães Rosa tremia diante do desafio de ter que assumir a cadeira que o esperava havia anos na Academia Brasileira de Letras (morreu logo depois da solenidade de posse), Mário vivia transferindo a viagem que faria aos Estados Unidos. Quando não mais pôde protelá-la, assumiu o destino: seu corpo estava entre os restos carbonizados do jato da Varig que bateu numa montanha, no Peru. Por vários dos seus poemas perpassa o hálito da morte, indesejado, mas inevitavelmente precoce. 164 Asas da Palavra A obra deixada por Mário não se exaure nos seus versos, que são relativamente pouco numerosos, mas carregados de significados, densos de intenções e conquistas. Estudante em Belém, Mário teve uma carreira incomum. Num dos seus últimos anos, tirou 10 em todas as disciplinas. Expressava-se em seis línguas, escrevendo e falando fluentemente em inglês e francês (mas lia e conversava também em espanhol, italiano e alemão). Enquanto uma perna demandava as criações intelectuais puras, a outra caminhava por terreno mais imediato e pragmático. Aos 16 anos começou a trabalhar, como noticiarista de A Província do Pará. Com 19 anos passou para a Folha do Norte, jornal que chegou a secretariar, imprimindo sua marca pessoal na excelência da publicação. Durante dois anos, chefiando a Seção de Divulgação da SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia, antecessora da SUDAM), patrocinou a publicação, em formato ágil, de alguns dos mais expressivos trabalhos sobre a região. Em 1956, depois de dois anos nos Estados Unidos e 11 meses na Europa, ele transferiu seus apetrechos para a capital da república. Em seis anos de Rio de Janeiro atraiu interesses, catalisou energias e despejou anátemas e canonizações à vontade, com ou sem razão. Em todas as situações, porém, fez presença com sua inquietação, criando um campo magnético próprio. Mas a terra ficara estreita. Mário precisava se alargar.Daí a decisão de ir mais além, para os Estados Unidos, subindo na carreira que havia iniciado no Brasil, como diretor-adjunto da ONU. Se tivesse conseguido chegar a Nova York outra vez, o que faria Mário Faustino desta vez? A pergunta ficará sem resposta para sempre. É possível que, com a reedição de sua obra pela Companhia das Letras e a publicação da sua vasta produção inédita, de crítica e jornalismo, quem poderemos nos aproximar de uma resposta mais satisfatória do que o silêncio atual se apresenta, não deixando que a poeira estrelar do poeta se reduza a pó de arquivo. Mário Faustino merece muito mais pelo que fez e nos deixou. Este jornal, incorporando-se ao revival, republica o fac-símile do manuscrito de Mário do poema “Ego de Mona Kateda”, datado de 1955, que dedicou ao seu maior amigo, Benedito Nunes. Fica a letra que deu forma à inventiva do poeta, que morreu para nunca mais morrer. Asas da Palavra 165 166 Asas da Palavra VERSOS, IMAGENS, RECORTES & COLAGENS Rosa Assis Doutora em Língua Portuguesa, UFRJ Professora da UNAMA Asas da Palavra 167 Q 1 Os caracteres maiúsculos ou minúsculos, em negrito, indicam os primeiros versos de poemas da obra de Mário Faustino uem fez esta manhã, quem penetrou Em marcha, heróico, alado pé de verso, Nasce do solo sono uma armadilha Nem uma só verdade resplandece Triunfo de herói morto – claro, dórico No princípio Para as Festas da Agonia Vida toda linguagem, Estrela roxa, Alma que foste minha, Náusea – Os cães do sono ladram Sinto que o mês presente me assassina Meu desespero é fonte onde as lágrimas bóiam O mundo que venci deu-me um amor, Lá onde um velho corpo desfraldava Inferno, eterno inverno, quero dar Dormia um redentor no sol que ardia Onde paira a canção recomeçada Dor, de dor de minha alma, é madrugada estava lá Aquiles, que abraçava ... Et in saecula saeculorum: mas Cambiante floresta, rios, jóias, o eixo: a envergadura:a tempestade: o todo – Entorne-se o mel do tempo: Espadarte em crista de vaga, Forma: pira distante. Ao fundo a ilha, a movediça e torta, Gaivota, vais e voltas, / gestos de amor fizeram-se – Inês, Inês, quem sobrevive, quem, Juventude – O mar recebe o rio. O rio meninada apostando corrida com chuva Neste momento as sombras Recesso de água entre rochedos turvos, Trabalha: Traição, traição, onde encontrar azul Trancadas portas, quietos lilases, dados lançados – Túnel, pedra, tonel. Seixo Item: Amar é jogo difícil. Não conseguiu firmar o nobre pacto Por não ter esperança de beijá-lo Só ardem neste sono Deixo a quem quer que seja Divisamos assim o adolescente, Vai meu canto, Naquela face redonda e cálida, Os grandes ventos passam Não quero amar o braço descarnado Tremenda fortaleza traz consigo Subo meu monte mágico meu monte O servo novo ao som de cada lira Necessito de um ser, um ser humano Esse estoque de amor que acumulei E quando a luz e o vento me deixaram, Em cinza de derrota nos deitamos, Três artesãs me olharam Tira uma pena da asa de Gabriel Apago a vela, enfuno as velas: planto Teu hálito quebrado entre teus lábios Em Nova York diabólica, de madrugada Mão invisível levanta a balança O céu azula a poça Raiz de serra em honra dum ar de colina; Bronze e brasa na treva:diamantes Cavossonante escudo nosso Ressuscitado pelo embate da ressaca, E sonhou a mulher que se cumprira. Noite, noite, após noite, uma outra noite O som desta paixão esgota a seiva Ah, possuir-te a alma Que faço deste dia, que me adora? As vozes frias Trago-lhe a marca mais tensa O olhar recebe a forma e esquece a essência O que eu sou, quero dizer a mim mesmo Tudo o que importa é ser maravilhoso. Por que vos espantais se eu venho sobre as ondas? Quem como tu sem ser percebida O mar reza por mim Ela existia misteriosa e oculta “Esta manhã o ar estava cheio de anjos” Da rosa somente a pétala inconsútil A rosa adormecida sonha sonha e sonha aquele cujo nome traçaram os vagalumes Oh não passar somente sugerido! Ontem vieram as orações esquecidas Em rosa pura e lírio Sereno ele retorna do impossível 168 1 Asas da Palavra CERTIDÃO DE NASCIMENTO Asas da Palavra 169 2 Esta foto me foi cedida pelos amigos em comum Maria Sylvia e Benedito Nunes Há risos tristes, o do Mário era alegre. Dentes perfeitos, sobrancelhas fartas, olhos vivos-mortos, boca sorridente, por isso seu riso era mais riso, seu riso ria. Há gargalhadas surdas, a do Mário era uma sonora gargalhada, continua, até hoje, gargalhando nos ouvidos de seus amigos.Era amigo de meus pais: Celina e Machado Coelho.Gostava muito de minha mãe NY, 14 de setembro, à noite Meu querido Bené “ .... De volta à casa, escrevi uma carta ao Machado, contando-lhe da passagem do filho. Aliás, no mesmo dia em que aqui chegou o JF passei um Western ao pai dele, tranqüilizando a família. Isso com um olho, sobretudo,na pobre e maravilhosa D. Celina, a quem quero muito bem e que imaginei preocupadíssima ... (Trecho da carta de Mário Faustino a Benedito Nunes) Guardo na memória, não o poeta da estrela roxa, mas o Mário, aquele, de quando menina, em minha casa ouvia a sua alegria. O 2 Mário menino, esse aí ao lado. Não sabia eu, àquela altura, quem era Mário, soube, um dia, quis ele ser padrinho de minha irmã mais nova. Avoado, risonho, porque alegre e descontraído, mas de repente, o seu riso se fez pranto. Seus amigos choraram. Mas ficou O Homem e sua hora. Os recortes que se seguem são apenas ‘pedaços’ que foram guardados e retirados dos tantos que ainda tenho. São muitos como Muito é o Mário, mas só colei estes. 170 Asas da Palavra Suplemento Literário 24 de dezembro, 1950 Mário-paraense na ‘galeria’ dos dez poetas com sua elegia, seu anjo e sua rosa Asas da Palavra 171 Poeta Tradutor 172 Asas da Palavra 1948 CRONISTA Mario Faustino: M.F. Asas da Palavra 173 O crítico cinematográfico W 1949 174 Asas da Palavra Poesia-Experiência Jornal do Brasil 1956-1958 Crítico-literário-solto Passar pelos olhos de Mário era um querer-temer de muitos poetas, em especial os novos, pois sabiam que a crítica era implacável, justa, coerente. A franqueza de Mário Faustino atraiu inúmeros poetas que almejavam ter seus livros crivados por seu olhar atento... (BOAVENTURA, Maria Eugênia, p. 35) Asas da Palavra 175 O VAIVÉM DO CORREIO Mário no Mundo Drummond / Mário Prezado Mario Faustino Deixo-lhe aqui a separata, e mais os números de uma revista Argentina de poesia, cujo pessoal deseja estabelecer contato com os nossos poetas novos. Se V acha que vale a pena, mande o seu livro para eles. Deixo também alguns endereços de pessoas interessadas em poesia, e que certamente gostariam de conhecer o seu livro................. (trecho de Carta de Carlos Drummond de Andrade a Mário Faustino / 9. XI.55) 176 Asas da Palavra Mário / Drummond Asas da Palavra 177 Mais Paulo Francis 16 de jul./ 1996 O Diário Ribeirão Preto Conselho de Cultura 20/08/85 A Província do Pará Folha de São Paulo, 30/06/1985 178 Asas da Palavra Cartas Americanas 3 SAPOS E ESTRELAS 3 4 Tenho lido com grande encanto – o encanto das páginas bem escritas, – as crônicas de Mário Faustino, esse moço que depois de Colombo anda agora a descobrir a América. 4 Publicadas na Folha do Norte Publicadas em A Província do Pará Gosto imenso desse Mário, tão inteligente e tão menino! Quando converso com ele saio também convencido de que a beleza da vida não reside na sabedoria da velhice, mas nos erros da juventude. Feliz a mocidade, que não precisa dos óculos de Pangloss para ver o mundo cor de rosa. Depois, que entusiasmo, que pletora, que euforia, nesse Mário das “Cartas Americanas”. Sente-se que o rapaz está admirado, fascinado, mais ainda, arrebatado no carro de fogo do deslumbramento. ............................................................... Pelo amor de Deus, não despertem de seu sono ou de seu sonho o meu querido Mário Faustino. Quanto não sofreu, de certo, o Eça ao verificar que “há mais civilização num beco de Paris do que em toda a vasta Nova York”! E depois quem sabe se a América não é mesmo como as pérolas argentinas?! “Perlas Ecla – imitación – pero más solidas, más lindas y mejores que las verdaderas”. Asas da Palavra 179 Sem comentários Folha do Norte Belém-Pará Quarta-feira 28 de novembro, 1962 Seres e estrelas brotam de meus lábios ... e morro deste belo sofrimento de ser maravilhoso! ( Solilóquio) Suplemento Literário da Folha do Norte 20/11/49 180 Asas da Palavra Fontes Suplemento Literário Folha do Norte, 01 de janeiro de 1949. Belém-Pará. Suplemento Literário Folha do Norte, 20 de novembro de 1949. Belém-Pará. Suplemento Literário Folha do Norte, 24 de dezembro de 1950. Belém-Pará. A Província do Pará, 17 de janeiro de 1948. Belém-Pará. A Província do Pará, 07 de fevereiro de 1948. Belém-Pará. A Província do Pará, 25 de dezembro de 1949. Belém-Pará. FAUSTINO, Mário. Poesia de Mário Faustino, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966. FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo, Companhia das Letras, 2002. (Org. Maria Eugênia Boaventura). FAUSTINO, Mário. De Anchieta aos concretos. São Paulo, Companhia das Letras, 2003. (Org. Maria Eugênia Boaventura) CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino. Universidade Federal do Pará, 1986. Folha do Norte, 26 de novembro de 1962. Belém-Pará. Folha do Norte, 1949. Belém-Pará. O Liberal, 23 de maio de 1985. Belém-Pará. Folha de São Paulo, 30 de junho de 1895. São Paulo. O Diário, Ribeirão Preto, 16 de julho de 1966. Minas. Asas da Palavra 181 182 Asas da Palavra À PROCURA DE SENTIDO EM MÁRIO FAUSTINO SINTAXE E LEITURA Sérgio Sapucahy Mestre em Teoria Literária Professor da UNAMA e da UEPA Asas da Palavra 183 E stava lá Aquiles, que abraçava Estava lá Aquiles, que abraçava Enfim Heitor, secreto personagem Do sonho que na tenda o torturava; Estava lá Saul, tendo por pajem David, Que ao som da cítara cantava; E estava lá seteiros que pensavam Sebastião e as chagas que o mataram. Nesse jardim, quantos as mãos deixavam Levar aos lábios que os atraiçoaram! Era a cidade exata, aberta, clara: Estava lá o arcanjo incendiado Sentado aos pés de quem desafiara. E estava lá um deus crucificado Beijando uma vez mais o enforcado. Mário Faustino. Os Melhores Poemas. 1. Justificando Este é mais um exercício analítico a que vimos nos dedicando em nossas aulas, com o objetivo da valorização do conhecimento gramatical, sobretudo o morfossintático, nesses tempos em que docentes e discentes, por vezes, questionam sua necessidade. Para desenvolvê-lo, retomamos as lições de Maria Luiza Ramos em Fenomenologia da Obra Poética, sobre a integração dos estratos ótico, fônico, morfossintático e retórico na construção dos poemas . Associamo-las àquelas, inesquecíveis, de Albeniza de Carvalho e Chaves, em um curso de Estilística, nos anos setenta quando, por meio do soneto “Estava lá Aquiles, que abraçava”, ocorreu nosso primeiro contato com a obra poética de Mário Faustino. Para isso, submetemos o texto selecionado a uma leitura analítica a partir do estrato morfossintático com a expectativa da revelação de sentidos que enriquecem ainda mais sua plurissignificação. 2. O Estrato Morfossintático 184 Assim apresentado, na seqüência ininterrupta de seus quatorze versos, o soneto se deixa ler com mais extensão e profundidade, evidenciando sua camada sintática. Focalizando nela o nosso olhar, após a Asas da Palavra leitura de contato, podemos encontrar a primeira grande unidade de sentido do poema, desenvolvida nos sete primeiros versos, interrompida pela intercalação da segunda grande unidade, do oitavo ao décimo verso, e prosseguindo até o derradeiro: a união dos contrários e o espaço ideal. Essa ‘fôrma’ sintática que acolhe e harmoniza os contrários ( Aquiles/ Heitor /, Saul / David; Seteiros / Sebastião, Lúcifer / Deus; Jesus / Judas), ora explícitos ora metaforizados, molda-se com notável paralelismo sintático, a partir do enunciado que se manifesta no título, inicia o primeiro verso e se retoma anaforicamente quatro vezes, uma para cada um dos pares-personagem do poema. O poeta que afirmara ser a “Vida toda linguagem frase perfeita sempre, talvez verso, geralmente sem qualquer adjetivo, coluna sem ornamento, geralmente partida.(...)” não pode prescindir da adjetivação para a especificação de cada um dos pares eleitos por ele. Por isso a ‘fôrma’ se faz e se refaz com a precisão das formas paralelas, a repetir a mesma estrutura em que se destaca a topicalização do verbo predicador na oração matricial: “Estava lá Áquiles, que”. Pode-se visualizar a estrutura O1 SV V Mod SN N Mod O2 Estava lá Aquiles que... cujo conhecimento sintático do leitor recupera, imediatamente, como ordem direta: Asas da Palavra 185 O1 SV N Mod SN V Mod O2 Aquiles que... estava lá Esse mesmo conhecimento permite fruir da adjetivação analítica, desenvolvida como em “...que abraçava..., ...que na tenda o torturava...”; reduzida como em “...tendo por pajem David..., ...Beijando uma vez mais o enforcado.” A ‘fôrma’ se revela como precisa arquitetura sintática, constituída de períodos com estrutura regularíssima, manifestada por meio de períodos coordenados justapostos, separados quase sempre pela pausa mista do ponto e vírgula, para não interromper, de todo, o fluxo da leitura. Essa ´forma´ é manifestação da face clássica da poética de Mário Faustino, estrutura necessária à harmonia entre os contrários que o poema e o poeta desejam. Mas a primeira unidade de sentido evidenciada por essa leitura não se restringe à apresentação dos contrários. Ela também propõe, desde o início do poema, o elo com o espaço ideal, a segunda unidade: “Estava lá...” Como nos ensina AZEREDO, 2000: “... há boas razões para considerar que há apenas um verbo estar (intransitivo), e que as diferenças convencionalmente estabelecidas não dizem respeito ao verbo, mas ao constituinte que o complementa.” Com essa concepção, o verbo ‘estar’ significa, e muito, no poema. Todos estavam lá. Topicalizado, de pronto modificado pela forma adverbial, flexionado no passado inconcluso, ele se torna a porta de entrada para as camadas significativas mais profundas do texto. “Estava lá” não só traduz a localização dos pares-personagens como também sinaliza para o feito de colocá-los lá: um desejo do eu-lírico narrador. 186 Nota-se que o advérbio pronominal ‘lá’ aparentemente situa as personagens distante do eu-narrador e do tu-narratário (leitor), ambos ficcionais. Entretanto, esse mesmo ‘lá’ instaura o jogo da interlocução dentro e fora do texto. Conduz o leitor ao desejo também do poeta, ou Asas da Palavra seja, da relação ficcional narrador / narratário à histórica, autor / leitor. Aberta a porta, encaminhamo-nos a uma re-leitura da segunda grande unidade de sentido: “(...) Nesse jardim, quantos as mãos deixavam Levar aos lábios que os atraiçoaram. Era a cidade exata, aberta, clara: (...)” O ‘lá’ se explicita: jardim, cidade. Sintaticamente, dois períodos, um complexo e um simples. O primeiro, analítico, vale-se ainda de recursos mais elaborados como a topicalização do modificador adverbial. Recurso preciso, porque esse é o tema do qual , nesse momento, o poema quer falar: jardim, espaço privilegiado. O sujeito, “quantos”, quantificador genérico, apenas reitera a explicitação anterior( Aquiles, Heitor, seteiros...), ao mesmo tempo que amplia a possibilidade numérica da população desse paraíso sonhado pelo eu-narrador: ‘quantos’, uma multidão, talvez. Mas a subordinação adjetiva destaca o antagonismo histórico: “...que os atraiçoara”. E o jardim se torna um macrocosmo: “Era a cidade exata, aberta, clara.” O espaço ideal se configura na síntese, depois de ter sido desvelado pelo eu-narrador. A adjetivação ternária define-o: exata, aberta, clara. Precisão, liberdade, transparência. A ‘fôrma’ sintática, por meio da qual lemos o poema até aqui, pode ser vista numa conclusiva configuração geométrica: Contrários Espaço Ideal Contrários A figura nos permite visualizar os contrários convergindo para o espaço ideal: jardim, cidade, um éden que só a ficção possibilita ao eunarrador. 3. O Estrato Semântico É importante ressaltar, mesmo sob o risco da redundância, que o texto é tecido de muitas tramas e separar uma ou outra somente se justifica quando a finalidade é destacar de que modo elas concorrem para a construção de sentidos. Em se tratando de textos literários, a maior participação dessa ou daquela, posta em relevo, gera preciosos efeitos de sentido. Cabe também reiterar que o ato de ler será tanto ou mais proficiente quanto mais extensos forem os conhecimentos lingüísticos e de mundo, concretizadores da leitura. Isso posto, observemos como o estrato semântico preenche a Asas da Palavra 187 ‘fôrma’ sintática já apreciada na sua construção clássica, harmoniosa, geométrica. Como leitor, impomo-nos, então, o desafio de encontrar o(s) sentido(s) maior(es) latentes nas camadas profundas do poema. No caso específico de “Estava lá Aquiles, que abraçava”, pertencente ao conjunto “Sete Sonetos de Amor e Morte”, é momento de recordar o já referido primeiro contato com o obra do poeta piauiense / paraense. Estávamos em 1978, em uma das salas de aula da UFPA. Mestra Albeniza propõe àquela primeira turma da Pós-Graduação Lato Sensu do Curso de Letras o desafio de apontar o tema do soneto. Após leituras de contato e reflexão, as respostas choveram: Perdão, Amor, Reconciliação, Contraste, Paraíso... Todas recusadas pela mestra, ainda que conferisse a elas a categoria de subtemas. Néscio, desconhecia as pesquisas de Albeniza Chaves sobre a obra de Mário Faustino. Além de néscio, leitor ingênuo. Leiamos, agora, a partir dos recursos sintáticos levantados: paralelismo sintático, com a insistente retomada anafórica, construtor da primeira unidade de sentido – os contrários; adjetivação oracional analítica e sintética; topicalização do predicador; intercalação da segunda unidade de sentido – o espaço ideal, a receber os contrários e a iluminar todo o poema. Evidente a união dos aparentes contrários no espaço edênico. Focalizemos esses contrários, sujeitos dos enunciados. Ódio e inveja construíram suas relações. Por que, então, o eu-lírico os reconcilia? Que traços têm em comum? As respostas a essas indagações remetem a uma interpretação, algo freudiana, da íntima relação entre ódio e inveja, e da fragilíssima fronteira entre o ódio e o amor. Só se odeia e se quer destruir aquilo que, inconscientemente, se deseja. Beleza, virilidade, grandeza são objetos de desejo presentes na relação histórica entre os componentes de cada um dos pares-personagem. Mesmo os seteiros, legionários romanos, viris como Sebastião, encantam-se com a quase impossível união entre beleza e virilidade do Santo Cristão indiferente ao sofrimento. É preciso reconciliá-los. O poeta o faz, rompendo a barreira que separa o amor do ódio (“E estava lá um deus crucificado / Beijando uma vez mais o enforcado”). Historicamente, o beijo-traição de Judas se transforma no beijo-perdão de Jesus. 188 E por que os reconcilia? Talvez fosse suficiente como resposta, a beleza plástica verbalizada no poema por meio das personagens. Exemplo disso a metáfora do “arcanjo incendiado”. Mas pode-se ir além, Asas da Palavra apropriando-se do conhecimento de Benedito Nunes, contemporâneo, amigo e crítico da obra de Mário Faustino. O filósofo e crítico literário acentua a visão heraclitiana de mundo do poeta: “Tudo que é contrário se concilia e das coisas mais diferentes nasce a mais bela harmonia, pois tudo se engendra por via de contrastes. Melhor é a harmonia oculta do que a aparente (Nunes, 1966)” A união dos contrários no espaço ideal concebido pelo poeta se dá, evidentemente, pelo amor. Mas um amor singular, interiorizado / negado, para cuja realização plena somente restava o espaço utópico. “... a cidade exata, clara, aberta.” Esse amor singular emerge das camadas profundas de “Estava lá Aquiles que abraçava” assim como em “O mundo que venci deu-me um amor.” “(...) Amor feito de insulto e pranto e riso, Amor que força as portas dos internos, Amor que galga o cume ao paraíso. Amor que dorme e treme. Que desperta E torna contra mim, e me devora E me rumina em cantos de vitória...” O amor singular, ou o “amor que não ousa dizer seu nome” é o amor entre os iguais que, pelas veredas da poesia, une os iguais e o euficcional no espaço do poema, também este exato, claro, aberto. Conclui-se a leitura desenvolvida com a ilusória separação entre forma e conteúdo e com a pretensão de afirmar, nesses tempos de tantas inquietações lingüísticas, a relevância do conhecimento gramatical para o enriquecimento do conhecimento de mundo. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos de Gramática do Português. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000. CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e Modernidade em Mário Faustino. Belém, GEU – UFPA, 1986. FAUSTINO, Mário. Os Melhores Poemas. São Paulo, Global. s/d. NUNES, Benedito. Introdução. In. Poesia de Mário Faustino. 1966, pp. 8 e 9. Asas da Palavra 189 190 Asas da Palavra MÁRIO FAUSTINO E A RECONSTRUÇÃO OLÍMPICA DO ESPÍRITO PELA PALAVRA Júlia Maués Mestre em Teoria Literária Professora da UNAMA e do CEFET Asas da Palavra 191 I ntrodução Mário Faustino alimentava projeto de escrever um poema em larga escala , uma escrita do Poema que converteria em linguagem, desejo quase missão para que ... “poesia e vida” seguissem paralelas (Cf. Nunes: 1963) . A poesia seria a sua própria vida em processo, tarefa existencial, como ação “no sentido autêntico, do pensar verdadeiramente, e trabalhar sem o risco de alienação” (Nunes:1963, Cf. Chaves, Albeniza, 1986). Com essa escolha de vida, segundo ainda Benedito Nunes, MF jogava um lance decisivo. Um lance de dados como Mallarmé no poema “Um Coup de Dés”, no sentido de acatar que sua poesia seria parte do Livro – instrumento espiritual -, do qual o poeta participa com sua aventura poética-existencial, equilibrando-se no fio (“arame” para Max Martins), nexo relacional de toda poesia seguindo a idéia de que “Tout devient suspens, disposition fragmentaire, avec alternance et vis-a-vis ...”. A variedade dos livros desenha um único livro: cada livro é único e singular, mas também a repetição do livro único. Todos os livros estão a escrever um só livro. Para Benedito Nunes, MF manteria uma afinidade eletiva com Mallarmé, sem que essa afinidade esgotasse o alcance do seu projeto poético-existencial: a existência do poeta em situação, ao mesmo tempo circunstancial de suas experiências literárias, culturais e históricas, aliadas aos temas do amor da morte do sexo e da conquista de si mesmo, que adquiririam uma feição épica, tal qual os “Cantos” de Ezra Pound. Apesar de o alcance do projeto de MF não ter se exaurido na aproximação com a poética de Mallarmé, gostaria de me deter nessa afinidade eletiva, uma das opções desse projeto, como o foram Pound, Jorge de Lima e Einsestein, naquilo que for tangencialmente pertinente no ideal de vida perfeita x linguagem imperfeita, tematizado no poema “Vida Toda Linguagem” de Mário Faustino, aqui reproduzido. Vida toda linguagem, Frase sempre perfeita, talvez verso, Geralmente sem qualquer adjetivo, Coluna sem ornamento, geralmente partida. 192 Vida toda linguagem, Há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome Asas da Palavra Aqui, ali, assegurando a perfeição Eterna do período, talvez verso, Talvez interjetivo verso Vida toda linguagem, Feto sugando em língua compassiva O sangue que criança espalhará – oh metáforas ativa! Leite jorrando em fonte adolescente, Sêmen de homens maduros, verbo, verbo.” Vida toda linguagem – Como todos sabemos Conjugar esses verbos, nomear esses nomes: Amar fazer, destruir, homem, mulher e besta, diabo e anjo e deus talvez, e nada. Vida toda linguagem Vida sempre perfeita, Imperfeitos somente os vocábulos mortos Com que um homem jovem, nos terraços do inverno, contra a chuva, Tenta faze-la eterna – como se lhe faltasse Outra imortal sintaxe À vida que é perfeita Língua Eterna. MALLARMÉ E A LÍRICA MODERNA Situada no desafio de se fazer linguagem e romper a ausência da palavra que nos nomeie, a lírica moderna reduz ao máximo a presença do eu da emoção que tenha uma origem no sujeito, suprimindo essa presença como o próprio Mallarmé afirma em “A crise do Verso”: “a obra pura implica o desaparecimento da elocução no poeta, que cede a iniciativa às palavras pelo encontro de suas singularidades mobilizadas, elas se iluminam com os reflexos recíprocos como um rastro de sobre o fôlego lírico ou a dicção pessoal entusiasta da frase”. Assim os poetas tornam-se aqueles que estariam a escrever um livro completo que recuaria de seu poder de palavras para presentificar o seu poder de silêncio, como se a poesia não devesse tudo dizer, mas evocar e sugerir, sem, contudo, deixar de lado a consciência da plenitude da linguagem na poesia, pois “no poema, há o isolamento da palavra de sua comunicação prosaica”. Das palavras isoladas o poeta faz uma “palavra total, nova, estranha”, com um poder encantatório no mesmo sentido latino de sedução. O verso, portanto, deve reduzir-se a uma única palavra que tenha poder encantatório. Ao fato de o poeta situar-se não como o eu próprio, mas como um um-outro traduz, segundo Hugo Friedrich, uma das vertentes mais abrangentes da lírica moderna, também caracterizada como Asas da Palavra 193 desumanização. Esse princípio traduz em Mallarmé o mais radical abandono da lírica baseada na vivência e na confissão, ao mesmo tempo, comporta algo distinto do entusiasmo e do delírio – antes “uma elaboração precisa das palavras a fim de que se torne uma voz que oculte tanto o poeta quanto o leitor” (Friedrich, Hugo: 1973, Cf. 111). Isso pode ser obser vado em “ Igitur” (1869), na cena dialogada de “Herodiade” (1864) e nos poemas cujo tema primordial é o amor e a morte “em que a palavra só descobre seu destino de ser logos no limite do silêncio, mas que também nele comprova sua insuficiência” (p.112). Assim Mallarmé conduz o processo que, desde o inicio do século XIX, rejeita e reage contra o mundo comercializado e o desejo de decifração cientifica do mistério do universo. Como disse Mário Faustino, “a um mundo infame, como ainda é, o Rimbaud que o rejeitava, reagiu rejeitando também a própria poesia. Mallarmé que o rejeitava, reage, refugiando-se na poesia” (Coletânea, 2, 1964). Este refúgio, porém, é representado pelo mais tenaz trabalho que rejeita a inspiração subjetiva, prejudicial, em nome de uma vigilância técnica do poeta, que, afinal, cada vez mais, reativa o poder mágico da linguagem. O paroxismo desse trabalho, levado às últimas conseqüências aparece no poema “Un Coup de Dés” (1897), quando Mallarmé atinge os objetivos prenunciados no poema “Salut” que serve de introdução ao seu volume de poesia, a partir das três forças fundamentais de sua lírica e de seu pensamento: ”solidão (a situação principal do poema moderno), recife (contra o qual naufraga), e estrela (a idealidade inacessível que é a causa de tudo)” (Friedrich, Hugo, p.119). Essas forças aparecendo como temas ou motivos, obedecem ao esquema ontológico da obra de Mallarmé, cuja linguagem tem o poder de aniquilar objetivamente os objetos da realidade empírica para reconstruí-los na poesia onde recebem a existência espiritual. A linguagem, porém, eternamente inferior enquanto nomeação ordinária e, infinitamente superior uma vez disposta poeticamente, impede, mesmo assim, que o homem chegue à perfeição ou a reconstrução olímpica do seu espírito. Em “Un Coup de Dés”, a temática – que ultrapassa a de “Igitur” - é o fato de que nem mesmo o nada é alcançado, porquanto o pensamento não pode escapar aos acidentes (da linguagem e do tempo)” (id., p.131). Trata-se de um tipo de aspiração que contém um apelo ascendente à meta suprema da poesia através da possibilidade da criação. Em seguida, porém “o arco desce”, a obra, consciente dessa possibilidade, atesta a impossibilidade desse alcance – permutando assim a “consciência dolorosa de que aquela terra existe (a terra da idealidade), e obrigará sempre a poesia a elevar-se até ela, mas também, a levará sempre ao fracasso -, com a vantagem de que no próprio fracasso está garantida a existência invisível da idealidade” (ibid., p.131). 194 Para Otávio Paz, “Un Coup de Dés” é a condenação da poesia Asas da Palavra idealista, como “Une Saison en Enfer” de Rimbaud teria sido da materialista “(1982, trad. P.110). Essa condenação, porém, abre um período na poesia moderna cujo modelo nos é oferecido na forma do poema com a originalidade que convém ao fato de ser ele um poema crítico, ou seja, “aquele poema que contém a sua própria negação e que faz desta o ponto de partida do canto, a igual distância da afirmação e da negação” (id., p.111). A poesia, nesse sentido, é a única possibilidade de identificação com o absoluto, e, no entanto, fracassa por não conseguir abolir o acaso – e salva-se, se o poema é, ao mesmo tempo, crítica dessa tentativa, uma vez que o poema apresenta, apesar da negação, uma exaltação jubilosa do ato poético. Não nega o acaso, mas o neutraliza, pois “todo pensamento emite um lance de dados” (toute la pensée émet un coup de dés). Essa possibilidade completa-se a partir de cada poema ou lance de dados que possa atingir um ponto absoluto – “qualquer ponto único que o sagre” (qualqui point dernier que le sacre). Otávio Paz assinala que esse ponto pode ser “o de cada leitor” ou mais exatamente de cada leitor (comte total en formation), lembrando que no ensaio “Le Livre a Venir” (1959) Maurice Blanchot escreve que “Un Coup de Dés” contém a sua própria leitura – e que, portanto, a noção de um poema crítico implica a noção de uma leitura: “os brancos, os parênteses, a construção sintática tanto quanto a disposição tipográfica e, principalmente o si comportam um possibilidade de reflexão das palavras e das frases entre si mesmas” (Paz, Otávio, op. cit. p.113) que, ao afirmar a impotência da palavra diante do silêncio absoluto afirma também a plena soberania dessa mesma palavra. A partir daí não se pode falar na poesia que contenha uma idéia ou uma aventura absolutamente real porque Mallarmé compreendeu que a única palavra verdadeira, e talvez e a única realidade do mundo, se chama possibilidade infinita” (id., p.114). “Un Coup de Dés” é a forma de uma possibilidade, um poema fechado ao mundo, mas aberto ao espaço sem nome. Por outro lado, Mallarmé previu a incorporação pela poesia moderna dos processos utilizados pelo jornalismo, pela publicidade, pelo cinema e por outros meios de reprodução visual que vêm transformando a escrita e a disposição visual da palavra no papel. A página, a partir daí, não é senão a representação do espaço real onde se estende a palavra, convertendo-se em “uma extensão animada, em perpétua comunicação com o ritmo do poema” (id. Ib, p.119). O espaço em branco que representa o silêncio diz algo que os signos não dizem. MÁRIO FAUSTINO E MALLARMÉ: VIDAS VERBALIZADAS Mário Faustino não só compreendeu Mallarmé como assumiu o desafio de retomar o nexo relacional da Poesia a escrever o único Livro, com a missão de fazer o novo a partir do compromisso tão bem estabelecido no poema “Vida Toda Linguagem”, cujos “traços materiais do agônico trabalho de criação verbal” ou “vestígios do labor criativo” do espólio literário de MF, foi publicado e comentado por Benedito Nunes junta- Asas da Palavra 195 1 Faustino, Mário; pesquisa e organização de Maria Eugênia Boaventura, São Paulo: Companhia das Letras, 2002.comentado por Benedito Nunes, 1 mente com os antecedentes do poema “Romance”, no artigo “A poesia do meu amigo Mário” que precede a leitura dos poemas de “O Homem e sua Hora e outros poemas”, organizados por Maria Eugênia Boaventura, 1 em 2002. No artigo, Benedito Nunes comenta a identidade entre vida e linguagem ou entre a vida e a palavra (verbo) existente no poema como “o ciclo da mesma metáfora da recíproca entre vida e linguagem, que individualiza a forma definitiva desse elogio à vida potência do Verbo seminal, poético” (idem, p. 61). Como na aventura épica de Riobaldo em “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa, que repete como um refrão “viver é muito perigoso”, esse elogio é anaforizado no poema “Vida toda linguagem” com um verso semelhante, garantindo bem mais que uma combinação estilística - uma ressonância poética -, repercussão intermitente, ritmada a reunir em si um aforismo ontológico, que condiz com a nossa relação vida/morte/beleza/perfeição. Essa repetição ressoa intermitente, latejante na recepção estética do poema, cujo ritmo peculiar imprime um eco definitivo da presentificação em nossa existência da linguagem, cuja poeticidade é dada àqueles que fazem da poesia seu próprio ato de viver. Dada a poucos que chegam ao limiar da possibilidade de outro lance de dados, que fisgue o acaso e o recoloque na linha espiral do nexo poético da vida. E se para Mallarmé as palavras não eram o nada, mas a Idéia, o signo puro que deixou de apontar para as coisas e que não é nem o ser nem o não-ser, algo não mais ligado à emoção, contendo assim em seus primado algo de mortífero, uma negação que faz sofrer, e que sugere um certo tipo de loucura, há o recolocar em outra instância essa emoção perdida e só reencontrada no ritmo grave e suave ao mesmo tempo que nos embala e nos remete fortemente à procura do realinhamento de nossa passagem, tangenciamento ou inserção no “arame” que dê sentido a nossa aventura existência - com um beleza que, felizmente, apesar de trágica nos recompõe, nos convida a ser o que somos. É assim que título/verso de “Vida toda linguagem” apresenta o desejo de experienciar o verbo/convite para que participemos do universo único, circular e caleidoscópico da linguagem universal, circunscrito na resposta/poema de MF, uma forma de celebração, quase êxtase religioso que nos resgata a vida de sua banalidade diária. O poema atesta o desejo de encontro do homem com ele mesmo, consciente de que a linguagem é uma forma possível de fazer essa aproximação, embora possa correr o risco de nada alcançar, de nada ver, de nada conseguir a não ser a afirmação de uma elocução mágica, estranha e irresistível. 196 Confirma-se assim o tipo de dificuldade com que a poesia mo- Asas da Palavra derna confronta o leitor, segundo Otávio Paz que: “não se origina tanto de sua complexidade (Rimbaud é mais simples do que Gôngora). Quanto do fato de que, como o misticismo ou o amor, ela exige entrega total (e também uma vigilância total) ... É uma experiência que implica a negação do mundo exterior (embora essa negação possa ter caráter provisório, como ocorre na reflexão filosófica ... É, de uma só vez, a destruição e a criação de palavras e significados, o reino do silêncio, mas ao mesmo tempo é também uma busca: palavras buscando a Palavra”. (Otávio Paz: 1973, p. 5) O poeta escolhe as palavras para se fazer linguagem diante da vida. Mas palavras são a face anversa da realidade, assim sendo porque, segundo ainda Otávio Paz, “a atividade poética nasce do desespero diante da onipotência da palavra e finaliza com o reconhecimento da onipotência do silêncio”. O poeta faz com que o problema da linguagem seja, na verdade, o problema ontológico da vida da qual consegue avizinhar-se pela crença no poder paradoxal das palavras. E assim ele nos reinventa e nos deixa participar de sua aventura, pela existência de uma vida convertida em poesia pura – resquício, herança, da magia das palavras no homem. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHAVES, Albeniza de Carvalho. Tradição e Modernidade em Mário Faustino. Belém: Universidade Federal do Pará, 1986. FAUSTINO, Mário. O Homem e sua Hora e outros poemas, Pesquisa e organização de Maria Eugênia Boaventura, São Paulo: Companhia das Letras, 2002. CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio & CAMPOS, Haroldo de. Mallarmè, São Paulo: Perspectiva, 1974.(Signos, v.2). MALLARMÈ, Stéphane. Poésis. Preface d’Yves Bonnefoy. Paris: Éditions Gallimard, 1992. FRIEDRICH, Hugo. A Estrutura da Lírica Moderna.trad. Marise M.Curiani. São Paulo: Duas Cidades, 1978. PAZ. Otávio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1982. Asas da Palavra 197 198 Asas da Palavra O TEMPO DA CRIAÇÃO EM O HOMEM E SUA HORA1 Benilton Cruz Professor da UFPA, do Curso de Letras, CUBT - Abaetetuba 1 Asas da Palavra Este artigo faz parte da pesquisa “Uma Poética da Voz: Aspectos do romancero medieval em García Lorca e Mário Faustino” subvencionada pelo PROINT da UFPA, e conta com os bolsistas João Rosemildo e Ivonice Gonçalves, ambos estudantes de Abaetetuba. 199 Preocupa-te apenas com estas poucas coisas e dispense o resto. Não te esqueças de que cada um só vive o momento presente, um momento infinitamente pequeno. Fora isso, já foi vivido ou é duvidoso. Assim, de pouca coisa vive o homem. Apenas desse canto de terra onde mora. Pouca coisa, a glória póstuma, mesmo que duradoura, já que depende de criaturas miseráveis, que breve morrerão, e nem a si mesmas conhecem bem, quanto mais ao que há muito já se foi. MARCO AURÉLIO, Meditações. O 2 Os poemas citados neste artigo foram tirados de O Homem e sua Hora e outros poemas. Pesquisa e organização: Maria Eugênia Boaventura. São Paulo : Companhia das Letras.2002. 3 Ver o interessante livro GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo. Dos Mitos de Criação ao Big Bang. São Paulo : Companhia das Letras, 1997, p. 276. tempo, o questionamento mais vital da metafísica, será analisado em alguns poemas de Mário Faustino em seu livro O Homem e sua Hora2 , na difícil pretensão de dizer mais sobre o tempo do poema e menos sobre o tempo em si. Embora seja necessário ver as posições clássicas acerca do tempo como o absoluto-newtoniano, ou o relativo-einsteiniano, ou o histórico ou o metafísico em sua menor hipótese, o nosso objetivo é mostrar que o tempo, enquanto matéria da poesia nem sempre é uma medida, um movimento, um princípio, uma ordem ou uma duração. A pergunta é: seria o tempo do poema o tempo da criação? Um tempo próprio? Constatação do momento criativo, captação suprema do instante criador? O instante em si, talvez a única realidade temporal? Outra pergunta que ficaria à parte, mesmo porque não será respondida aqui é: o tempo conjuga com a realidade verbal da linguagem humana? Vamos ver que a poesia nos dá algumas brechas para estacionarmos no momento, o instante da criação, esse tempo do poema para fixarmos o mais difícil ainda, o relâmpago da temporalidade. Sim, ainda bem que o tempo não é a maior questão, pois a morte, a que marcamos com um nome e uma data, assusta um pouco mais. Menos assustador, e, entretanto, mais enigmático é ver em um poema como “ Sinto que o mês presente me assassina” a junção desses dois enigmas, o tempo e a morte, ainda sem uma análise mais detalhada desse encontro. Voltando para a questão do tempo, uma das novidades, ref ere-se à teoria do matemático lituano H er mann M inkowski, a que f unde tempo e espaço em uma realidade quadridimensional, o espaço-tempo, ou seja, uma dimensão para o tempo e três para o espa3 ço . É como se o movimento, a unidade referencial tempo-espaço, fosse um trem em que cada comboio tivesse um vagão para o tempo, e o espaço três. Ora, se o tempo-espaço pode ser quadridimensional, será que ele não pode ser penta-, hexa-, hepta-, octa-, enea- decadimensional? Não vamos dilatar esse trem em questões mais polêmicas, uma vez que ainda existem os intervalos entre os vagões. “E o tempo na verdade tem domínio”. Será que só na poesia? Na obra poética de Mário Faustino, o tempo é uma das recorrências mais evidentes, e no seu livro não são poucas. Do primeiro 200 Asas da Palavra ao último poema, claro que não necessariamente em todos, há passagens sobre marcações temporais: Quem fez esta manhã, quem penetrou À noite os labirintos do tesouro, Quem fez esta manhã predestinou Seus temas a paráfrases do touro, As traduções do cisne: fê-la para Abandonar-se a mitos essenciais, Desflorada por ímpetos de rara Metamorfose alada, onde jamais Se exaure o deus que muda, que transvive. Quem fez esta manhã fê-la por ser Um raio a fecundá-la, não por lívida Ausência sem pecado, e fê-la Ter Em si princípio e fim: ter entre aurora E meio-dia um homem e sua hora. (Prefácio, p. 71) “Manhã”, “noite”, “aurora”, “meio-dia”, “hora”, são palavras que, no poema faustiano, assim como em nosso cotidiano, nos remetem à idéia da noção temporal advinda da observação de acontecimentos sucessivos. Essa forma temporal é a que predomina, como a mais elementar, a mais visível, a partir do convívio do homem com a natureza, por isso a noção, no início referida, como a mais vital das questões, pois o que está em jogo são os afazeres, o trabalho, a lida e a luta do homem no seu dia a dia, e isso repete-se no poema. Entretanto, essa noção do tempo é ampliada, nos poemas de Mário Faustino, para o Tempo da Criação, uma forma de domínio do tempo para que se manifeste o estado permanente da poesia. Sabemos que, essencialmente, é o movimento dos astros que dá a medida do tempo. Isso aprendemos principalmente a partir Isaac Newton, quando, por exemplo, ouvíamos do professor de geografia “a rotação da Terra determina o dia, e a rotação da Terra ao redor do Sol determina o ano”. Sim, essa determinação, esse absoluto, não deixava muita questão em uma época em que se andava de carruagem e de navio à vela. Com Albert Einstein, na Era Atômica, e do foguete, o espaço é curvo e o tempo é relativo. Sim. Mas ambos, tanto Newton, como Einstein, referem-se ao movimento. As duas teorias são, em sua essência, absolutas. Agora abordando algo mais complexo, a eternidade, esta foi tomada como o primeiro arquétipo do tempo. Isto assinalaria uma dimensão temporal do tamanho do universo. Como se tempo e universo fossem de um mesmo tamanho: o do infinito. Platão, não menos ficto que Plotino, impôs mobilidade à imagem da eternidade, e a esse movimento chamou de tempo. Essas duas hipóteses formam nossa idéia mais comum sobre o tempo e ajudaram a converter o tempo em uma convenção de princípio e fim, talvez a mais impressionante de todas as conven- Asas da Palavra 201 ções, a que foi muito bem aproveitada pelo Cristianismo. Faustino corrobora com essa noção, só que mais plástica e não menos diferente: “No princípio Houve treva bastante para o espírito Mover-se livremente à flor do sol” (Legenda, p. 79) Assinalar um princípio, como um tempo determinado, uma ordenação, revelaria e justificaria o ato criador. Essa conjunção é permitida na religião. Talvez esteja aí uma das forças da religião? Ela explicaria melhor e mais convincente que a ciência ou a filosofia? Tomando dois pensadores para uma breve comparação, constata-se que nem sempre foi assim: em Heráclito a força poderosa do rio não cessa uma pausa para o princípio ou para o fim; para Santo Agostinho, ao usar o temo “eternidade”, há uma pausa,” nada é sucessivo, tudo é presente”. Parece que a dialética de Heráclito, tão bonita e tão poética, sai perdendo para a força expressiva da palavra “eternidade” de Agostinho. Como aproveitar a eternidade? Parece que o Verbo tem esse papel. Quem fecunda, essencialmente para Santo Agostinho, é a Palavra, e o poeta confirma: Há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome Aqui, ali, assegurando a perfeição Eterna do período, talvez verso, Talvez interjetivo, verso, verso. Vida toda linguagem, Feto sugando em língua compassiva O sangue que criança espalhará – oh metáfora ativa! Leite jorrado em fonte adolescente, Sêmen de homens maduros, verbo, verbo (Vida toda linguagem, p.82) A Palavra foi dita para criar o mundo, o tempo, as imagens... e a Palavra (com P maiúsculo) deve ser “plantada”, “germinada” – a Palavra, então, seria a semente de Deus. Aí se explica até o celibatarismo de padres e freiras. Mas, comenta o bispo de Hipona, quase reconhecendo que palavra e tempo teriam realidades diferentes, basta conferir XI capítulo do livro XI das suas Confissões. Desta maneira, como aproximar o tempo da Palavra ou da palavra? 202 Fazer referência a Santo Agostinho quando o assunto é tempo, aqui, pode ser até banal, mas foram os cristãos, os primeiros a imporem linearidade no tempo. “Para o cristão, o primeiro segundo do tempo coincide com o primeiro segundo da Criação”, é o comentário de Borges na História da Eternidade, principalmente ao se referir a Swedenborg, mais do que a Santo Agostinho. Interessa à lógica do princípio, a lógica Asas da Palavra da ordem o que justificaria a lógica da criação. Agora, um drama se manifesta na poesia de Mário Faustino: Como congelar, como suspender, uma imagem fugidia na linearidade do tempo? Parar o tempo, como? O Verbo que planta e germina pode assegurar o momento? Não vou me alongar mais: treze séculos depois das Confissões, um judeu errante e perseguido pelos próprios judeus, que sabia a Bíblia de cor, pensaria que o tempo seria a maneira da imaginação tentar medir a duração. Neste caso, o tempo restringir-se-ia à imaginação que atua no tempo presente, daí ser sempre presente, por outro lado, a eternidade seria o “não-tempo”, onde a existência e a essência se encontrariam. Portanto, para Spinosa, a eternidade seria imóvel. Para que serve essa imobilidade? Onde a encontramos? Fixar o relâmpago. A eternidade spinosiana, a imóvel, assim, aplacaria a terrível sucessividade do tempo. Não esse desenrolar histórico, tão afeito aos românticos, não justifica o poema, mas sua capacidade de reter a mobilidade do sucessivo, isso sim interessa ao poeta. Em si princípio e fim: ter entre aurora E meio-dia um homem e sua hora. Sendo a criação, o poema, a obra ou mesmo a morte (em parte uma libertação), interessa ao poeta, em seu apogeu (o meio-dia) revelar ao homem a sua hora (a derradeira duração, a que lhe assegura a supressão do terror da sucessividade e a própria glória do instante). Noutro poema, Mensagem, o fazer poético aponta um caminho para essa eternidade Em marcha, heróico, alado pé de verso Busca-me o gral onde sangrei meus deuses: ...................................................................... Dize a eles que vinham Tecer silentes minha eternidade (Mensagem, p. 74) O título é sugestivo, e nesse poema opera-se a Palavra como o “templo justo”, a Palavra que ressurge da extrema purificação pela água, relembrando uma cena genesíaca, o Dilúvio, um princípio ordenador e purificador: Asas da Palavra Apanha estas palavras do chão túmido Onde as deixo cair, findo o dilúvio: Forma delas um palco, um absoluto Onde possa dançar de novo, nu Contra o peso do mundo e a pureza dos anjos, Até que a lucidez venha construir Um templo justo, exato, onde cantemos. (Mensagem, p. 74) 203 É possível renovar o que foi dito e o por dizer porque a palavra é esse palco, ou seja, ação, “um absoluto”, o que é a própria militância poética de Mário Faustino. No caso, a ação, a que removerá todas as impurezas do discurso, para a dança do corpo nu recomeçar, mas desta vez, com bastante lucidez, aliás essa é a poética de Mário Faustino: o trabalho extensivo do fazer poético com muita disciplina e lucidez. No poema “Noturno” mostra-se visivelmente a estagnação a que se encontra o mundo, a arte, a poesia... e até mesmo a verdade salvadora 4 O tempo do poema é bem analisado no trabalho de Leonardo Martinelli, em seu ensaio, Ferreira Gullar e o tempo do poema na revista Inimigo Rumor, nº3, setdez, 1997. Nem uma só verdade resplandece Neste verão sonhado por abutres, O ano inteiro, o outro ano, e o outro, Mentido pela mímica de um bufo, Contam falsas proezas de funâmbulo. E os saltos já não podem mais traçar O mito que exercemos, a parábola. Alardes, fugas, flâmulas. Palmeiras Partilhando o resgate da beleza Das nuvens criadoras de uma estrela, De nada mais que uma. O saltimbanco, Mirando-se nas poças, rejubila. E ressoa na flauta de anteontem O repouso de um pântano... Quanto foste traído! O luar torto Raiva no campo aberto onde esta noite Um profeta estremece no seu túmulo. Talvez um dos mais autobiográficos de seus poemas. Escrito, com certeza, em um momento em que se abate o lutador por reconhecer extremamente árdua a sua militância com os versos. A consciência de um tempo bom, quente, talvez a sua juventude, o “verão”, entregue às carniças, os tormentos do mundo e não os do labor da poesia. Esse poema é sobe o cansaço, e mostra que a poesia é a mais humana das humanas artes. Aí, o tempo parece não ter fim: “O ano inteiro, o outro ano, e o outro”. 204 Vê-se, nos poemas que completam o livro, referências ao tempo de criação, o tempo intelectivo4 , sentimental e essencialmente um tempo épico-lírico, talvez aqui a melhor parte deste artigo, típico dos grandes poetas do século 20 como, Fernando Pessoa, em Mensagem, García Lorca, no Romancero Gitano, Yeats, no Sailing to Byzantium, apenas para exemplificar. Et in saecula saeculorum: mas Que século, este século – que ano Mais-que-bissexto, este – Ai, estações – Esta estação não é das chuvas, quando Asas da Palavra Os frutos se preparam, nem das secas, Quando os pomos preclaros se oferecem. (Nem podemos chamá-la primavera, Verão, outono, inverno, coisas que Profundamente, Herói, desconhecemos....) Esta é outra estação, é quando os frutos Apodrecem e com eles quem os come. Eis a quinta estação, quando um mês tomba, O décimo-terceiro, o Mais-que-Agosto, Como este dia é mais que sexta-feira E a hora mais do que Sexta e roxa. Aqui, .................................................................. (O Homem e sua hora, p. 106.) Um quase épico, mas essencialmente um poema lírico, Faustino, com isso, como todo grande poeta, faz do tempo sempre um tempo do momento (para não dizer do presente, como muitas vezes fez Drummond e Bandeira) tanto em sua obra poética como crítica. Dominar o tempo para estabelecer a ordem e a criação: não é tempo de chuvas e nem de secas, a quinta-estação, o décimo-terceiro mês (que nome teria: poesia? eternidade? O espaço entre os vagões na teoria de Minkowski? Melhor deixar inominável para a criação pensar). Agora negar o tempo e suas medidas limitadas tem um preço: a constante presença da morte por perto. A morte não é inimiga do poeta, é sua confissão. Um de seus poemas mostra isso “Sinto que o mês presente me assassina”, da célebre frase “E o tempo na verdade tem domínio“, este que a meu ver, é um dos mais ousados da poesia escrita na língua portuguesa. Apenas para lembrá-lo, e já terminando este artigo (que continurá em uma segunda parte exclusivamente mostrando no poema Romance a herança dos Romanceros por via de um García Lorca) ninguém, no Brasil, fez o que Mário Faustino fez. Em tão pouco tempo sua militância poética foi responsável por algo nunca antes visto na nossa poesia: a abolição total das amarras cronológicas, ou seja, a melhor poesia de todos os tempos é a poesia do tempo todo, e não necessariamente do presente. Ninguém foi mais moderno, no jornalismo literário, do que Mário Faustino. A democratização da poesia no jornal nunca antes havia sido concretizada. E a testemunha ocular de tudo isso foi nada menos que o Jornal do Brasil. Isso, claro, a professora Maria Eugênia explica melhor do que eu na série de oito volumes que a Companhia das Letras pretende publicar sobre o nosso poeta. Só queria lembrar que Mário fez do jornalismo crítico-literário aquilo que o poeta faz no poema: respeitar o tempo da criação, anular as barreiras que impedem a criação. Asas da Palavra 205 O TEMPO DA DESTRUIÇÃO Ao procurar o tempo da criação, o poeta se depara com o tempo da destruição. Ao mergulhar no tempo, uma realidade que nem sempre coincide com a da palavra, o poeta paga um preço muito alto. Volto a falar do seu mais assustador poema Sinto que o mês presente me assassina, As aves atuais nasceram mudas E o tempo na verdade tem domínio Sobre homens nus aos sol de luas curvas, Sinto que o mês presente me assassina, Corro despido atrás de um cristo preso, Cavalheiro gentil que me abomina E atrai-me ao despudor da luz esquerda Ao beco de agonia onde me espreita A morte espacial que me ilumina ................................................................. (Sinto que o mês presente me assassina, p. 92-93) Nem Ars Poetica, nem Ars Patética. E quando se descasca a linguagem começamos a ver coisas, a terrível nudez do tempo pode muito bem se assemelhar à terrível nudez da beleza. Mas vou negar aqui o sentido de vidência neste poema, que muitos defendem. A linguagem nem sempre representa a realidade. O poema é a prova disso, ele é capaz de cortar os nexos espacios-temporais, e talvez anular o tempo em todos os seus sentidos, e simplesmente resumir: o tempo não existe, o que existe é o momento. Para ser mais contudente: a linguagem não pode servir-se apenas à realidade ou à língua, serve-se à criação. A linguagem tem que servir à criação que é ela mesma um lugar do homem no mundo, o seu momento. O resto se aproxima do suicídio ou da morte, daí também o tempo ser bem-vindo para enforcar os falsos poetas. Há de se precisar do tempo para separar o que não foi engolido injustamente por ele, já que ele a todos corrói. Assim, o poeta tem o poder de enfrentar o tempo. Tem um segredo da divindade, o da inteligência de dominar o tempo. Mário Faustino como ser humano temeu a morte e como poeta fez essa confissão: o tempo de criação é também o tempo da destruição, e isso está dentro, no ser, condição do ente, onde nasce a morte, conforme lembra a citação de Ferreira Gullar, que abre este artigo. Qual a segurança que nos permite a palavra diante da sua fragilidade verbal? Ainda mais diante da volátil condição cronológica. Nossa única vitória seria esse instante, o do poema, a vitória sobre a morte, por isso Mário Faustino, constantemente, recebia esses avisos, não necessariamente presságios, mas o prêmio pela afronta 206 “Como ia morrer, foi-lhe dado o aviso Na carne, como sempre ocorre aos seres vivos; Asas da Palavra Um aviso, um sinal, que não lhe veio de fora Mas do fundo do corpo, onde a morte mora” FERREIRA GULLAR, Nova concepção da morte. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. por: Pietro Nassetti São Paulo : Martin Claret, 2002. AURÉLIO, Marco. Meditações. Trad. por: Alex Marins. 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E I xiste uma dimensão da obra de Mário Faustino a ser analisada. Trata-se de sua crítica. Essa afirmação apenas pode ser entendida se concebermos que sua poética já teve os fundamentos elucidados por Benedito Nunes, restando apenas observar as características que podem ainda ser entendidas como epifenômenos da explicação maior. O próprio ensaísta já explicitou alguns dos fundamentos sobre a obra crítica do poeta piauiense-paraensecarioca-cosmopolita e esses, em sua maioria, já são conhecidos e já foram discutidos por outros estudiosos. O que de novo, então, temos agora? Temos a publicação de sua crítica em um exemplar que é parte das edições que estão sendo lançadas referentes ao trabalho do autor de O homem e sua hora. De Anchieta aos concretos: poesia brasileira no jornal traz à tona a, em grande parte inédita, produção que o escritor realizou no suplemento dominical do Jornal do Brasil, na página Poesia-Experiência, entre 1956 e 1958. A obra é composta dos textos críticos sobre a poesia brasileira, do período colonial, como o próprio título explicita, ao tempo do surgimento da chamada vanguarda concretista, em fins dos anos 50. Os textos são parte fundamental do material necessário para uma análise mais completa e profunda da linguagem crítica de Mário Faustino. Linguagem crítica porque o autor é adepto de um método de crítica, o que, se não o diferencia de outros, inscreve sua crítica em um lugar de destaque na produção literária brasileira. Este trabalho pretende ser uma leitura de sua crítica, observando nela os seus fundamentos, em essência, aqueles provenientes de Ezra Pound – o que não o impediu de criar os seus próprios. Fundamentos em geral apontados, mas nem sempre explicitados e comparados com sua crítica. Faustino foi uma espécie de crítico-artesão que tomou a obra a ser analisada como um organismo, para subverter, na maioria das vezes, o suposto artesão que nela existia. Desconstrução. Desconstruir, para construir, ou, se quisermos, de acordo com o lema, que serviu como frontispício de sua página: “repetir para aprender, criar para renovar”. II 210 Asas da Palavra Sem deixar ao largo as outras influências do autor, influências importantes como T.S Eliot para ficarmos no âmbito da crítica, o grande lastro da crítica de Mário Faustino é Ezra Pound (1885-1972). A partir dos conceitos do escritor norte-americano – notadamente no ABC to Reading (1934) (ABC da Literatura); esse sendo a obra mais citada por Mário Faustino nos textos aqui estudados – é que seu método crítico será fundamentado, “O método adequado para o estudo da poesia – diz Ponud – e da literatura é o método dos biologistas contemporâneos, a saber, exame cuidadoso e direto da matéria e contínua COMPARAÇÃO de uma ‘lâmina’ou espécie com outra” (Pound, 2001, p. 23). Tal metodologia pode ser observada, progressivamente, se tomarmos a definição de Pound para grande literatura, que seria “simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo possível”, conceituação simbolizada pelo verbo alemão “Dichten”, concentração, correspondente ao substantivo “Dichtung”, poesia; “a mais condensada forma de expressão verbal” (Pound, 2001, p. 40). As palavras podem ser carregadas de significado segundo a classificação em “fanopéia, melopéia, logopéia. Usamos uma palavra para lançar uma imagem visual na imaginação do leitor ou a saturamos de um som ou usamos grupos de palavras para obter esse efeito” (Pound, 2001, p. 41). Nesse método deve ser incluída a classificação das três classes de pessoas que criam a literatura: Inventores, “homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo”; Mestres, “homens que descobriram um certo número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os inventores”; Diluidores, “Homens que vieram depois das duas primeiras espécies de escritor e não foram capazes de realizar tão bom trabalho” (Pound, 2001, pp. 42-43), e existem ainda os Bons escritores sem qualidades salientes, Beletristas e Lançadores de moda. Compare-se os pressupostos do método poundiano com a explicação do autor para as pretensões da página Poesisa-Experiência: Asas da Palavra Pretende-se mostrar. Mais vale uma só visão da coisa que 37 discursos sobre ela. Aqui se mostra poesia. Poesia de ontem, de hoje, até aquilo que talvez seja a poesia de amanhã. Mostrandoa, se possível, de maneira crítica, demolindo e promovendo, procura-se manter viva a poesia do passado. Exibindo-a, do mesmo modo, procura-se reconhecer a poesia nova: Make it new [...] Irrita-se para manter vivo o ambiente cultural [...] Insiste-se na superioridade da invenção sobre a imitação, por mais que incerta aquela e perfeita esta. Na maior importância do perito em relação ao amador. No fato de que a verdadeira poesia é feita com palavras vivas, como palavras coisas, e não apenas, e muito menos com conceitos, impressões, confissões... Insiste-se na importância da linguagem como utensílio único e como terreno de cultivo da atividade poética, e como ‘requisito indispensável ao desen- 211 volvimento da cultura como um todo’( Faustino, 2003, pp. 485486). As inter-relações metodológicas são perceptíveis: a inovação como uma das preocupações de Pound que Faustino ratifica, inovação baseada na experiência, na tradição, no que já foi escrito; a valorização da observação direta do objeto; a superioridade da invenção, Inovadores e Mestres; a instigação crítica, outro pressuposto poundiano que afirma que o crítico não deveria ser um chato; a importância do perito; da palavra (máximo de significado, “Dichten”) e da linguagem para a cultura, essa última característica podendo ser entendida de acordo com a afirmação de Pound de que “uma nação que negligencia as percepções de seus artistas entra em declínio. Depois de um certo tempo ela cessa de agir e apenas sobrevive” (Pound, 2001, p. 78). Literatura de Colônia Primeiro autor analisado por Mário Faustino, o jesuíta José da Anchieta, seria “o primeiro poeta dentre os muitos, jesuítas ou não, que, até Gregório de Matos, escreveu no Brasil ou sobre o Brasil” (Faustino, 2003, p. 44 e 50). Classificação atribuída tanto pela realização da influência estrangeira (pioneirismo), como pela incorporação da língua indígena (temas nacionais). Anchieta, então poderia ser classificado como um diluidor, com potencial técnico demonstrado na longa citação feita por Faustino – incorporação do método da análise, através da apreciação direta do objeto. Diferindo de Bento Teixeira, que com a Prosopopéia apenas “imita” Camões de Os Lusíadas, afirma o autor. Se Anchieta é um diluidor competente e Bento Teixeira um diluidor menor, Gregório de Matos, “o ‘boca do inferno’ é o primeiro poeta de verdade que se pode, sem hesitação, chamar brasileiro” (Faustino, 2003, p. 60). Tal classificação, é efetuada pela relevância pessoal, enquanto escritor, pela incorporação de temas nacionais (lundus, modinhas) e pela sua qualidade técnica. O crítico faz questão de enfatizar como Gregório se configurou em poeta social, especialmente pela sua poesia satírica, considerada, por nosso autor como o melhor de sua obra: “visão de mundo e ação sobre o mundo, expressão individual e crítica social” (Faustino, 2003, p. 61), um dos preceitos do método faustiniano-poudiano, relativos à importância da linguagem, da literatura, da arte, para uma nação. Gregório reuniria, desse modo, muitas das qualidades relevantes na Poesia para Mário Faustino; a competência técnica nos vários estilos, (emprego da palavra exata, concentração, “richten”, e participação social (escrita inscrita no mundo). Destaca-se entre esses autores do período colonial Antônio Pereira de Souza Caldas, esse relevante por uma dos fundamentos críticos de Pound que Faustino assimila, a tradução – característica que mais tarde será retomada pelos concretistas, influenciados igualmente por Pound: 212 Asas da Palavra Uma das marcas de nossa deficiência cultural – diz Faustino – é a tendência a somente levar em consideração, no julgamento dos poetas, a sua obra original, passando-se ao largo as traduções; ora, é preciso reconhecer encontrar-se na tradução, na paráfrase, na “homenagem” (à maneira de Pound), na paródia mesmo, um dos terrenos mais fortes – e indispensáveis – do trabalho poético (Faustino, 2003, p. 153). Modernistas revisados Na parte do livro que denomina-se modernismo, o método de crítica desenvolvido na análise dos autores continua a ser aquele por nós já descrito. Enganam-se os que imaginam de que pelo fato da maioria dos autores criticados estarem vivos e, também em sua maioria, já serem consagrados, Mário Faustino se furtaria da crítica dentro de seu estilo e pressupostos. Um dos seus princípios, é movimentar o ambiente literário em questão, fazer círculos na água, na expressão de Paulo Francis, um de seus amigos na Tribuna na Imprensa; na água de fonte que se encontrava em crise, como depois iria constatar Mário. E foi a partir deste postulado, como um de seus fundamentos, que o autor analisou a publicação do livro Canções de Cecília Meireles. Sobre um dos aspectos da poesia da autora , o crítico diz: “essas coisas, em seu melhor, são apenas cacoetes femininos, iguais aos de Bette Davis ou aos de Morineu. Em seu pior são vulgaridades, efeitos baratos, bric-àbrac indigno de quem escreveu, em Romanceiro da inconfidência e em Mar absoluto, alguns dos maiores versos da língua”(Faustino, 2003, p. 183). A afirmação, cremos, não deve ser interpretada literalmente, como se Mário restringisse sua literatura apenas por características de gênero – e hoje já se fala em literatura gay, acreditem; atomismo de pós-modernistas deslumbrados. A crítica, em grande parte, está de acordo aos pressupostos do método faustiniano; está muito mais ligada ao conceito de concentração (Richten) adotado por Mário Faustino e ao pressuposto da palavra que se deve ligar à coisa. Pressuposto ratificado na afirmação contida no texto sobre Cecília – bastaria esta para explicar a crítica de Faustino – de que “o pior defeito das mulheres-poetas é pensarem – como aliás, muito homem também pensa – que palavras bonitas, relembrando ao leitor coisas bonitas, ‘palavras que fazem suspirar’, é pensarem que essas palavras, nelas mesmas, já são poesia” (Faustino, 2003, p. 184) De qualquer forma, alguns críticos divergiram de Faustino (Cf. Boaventura. In: Faustino, 2003, p. 28). E o que não dizermos da afirmação totalizante – não vai aí nenhuma depreciação – de Alcides Villaça sobre a mulher, poeta e intelectual Cecília: “a bela dialética – diz o crítico – entre a ação positiva da mulher e da intelectual e o recolhimento lírico mais assombrado, no qual declinam-se e declinam altivamente (paradoxo Ciciliano?) as aspirações essenciais” (Apud Gouvêa, p. 43). O que diria Mário Faustino? Talvez, que era melhor ir direto ao objeto (poesia, poema) e comparálo, observando suas qualidades ou defeitos próprios. Eis a diferença Asas da Palavra 213 de metodologias. O texto referente a Cassiano Ricardo é ainda mais explícito quanto à metodologia (linguagem, com leis e códigos) crítica de Faustino. Inicia citando, diretamente, Pound e sua classificação dos escritores, conforme está no início deste texto, para classificar Cassiano como um diluidor. Vale citar o crítico Wilson Martins, coevo de Mário Faustino na Folha do Norte: “numa das suas impulsivas simplificações polêmicas, Mário Faustino afirmou que, até ‘João Torto’ e ‘O arranha-céu de vidro’, ele [Cassiano Ricardo] ‘não era grande coisa’, assim eliminando da sua e da história literária do Brasil o livro [trata-se de Martim Cererê] em que, precisamente, ele foi uma grande coisa” (Martins, 5 abr, 2003, p. 4). Essa afirmação de Faustino consta no texto em que ele faz um balanço do momento poético brasileiro nos fins dos anos 50 (Cf. Faustino, 2003, p. 474); a ressalva de Martins dá uma idéia do estilo do jovem crítico. Na essência do texto que trata sobre a poesia de Drummond, Faustino enumera uma série de qualidades; dentre as quais estão a de documento crítico do país que poderia muito bem representar o “Geist” (espírito) de uma época, “Zeitgeist”, com mais propriedade que as variadas ciências que se dedicam a isso. Nesse aspecto, Drummond seria aquilo que Pound afirmou sobre os artistas: as antenas da raça (Cf. Pound, 2001 p. 77); podendo captar os sentimentos do mundo de maneira superexcitada, indicando o espírito que sobre ela paira e, ao mesmo tempo, característica mais enfatizada por Faustino, agindo sobre ela através de sua arte. Mesmo cobrando veementemente de Drummond uma maior participação nas linhas de frente em prol da cultura do país (Cf, Faustino, 2003, p. 215), no domínio poético, Faustino, seguindo a metodologia poundiana, considerava Drummond um Inventor; por trazer contribuições originais ao desenvolvimento da poesia e um Mestre; por aplicar tais criações em sua poesia, sendo “o primeiro escritor (embora em verso) do Brasil a conseguir, depois de Machado de Assis, um alto padrão daquilo que se chama em inglês diction, isto é, adequação das palavras utilizadas ao objeto expresso” (Faustino, 2003, p. 212). As relações entre a crítica e a poesia de Mário Faustino já foram comentadas, especialmente por Benedito Nunes. A concepção de poesia, ou do que ela deveria ser, do autor de O homem e sua hora, seus pressupostos críticos, podem ser entendidos como “um prolongamento reflexivo” (Nunes, 1986, p. 34) de seu único livro de poesia lançado em 1955. A importância fundamental que Faustino atribuía à linguagem, tanto em sua obra poética, simbolizado no poema “Vida toda linguagem” de O homem..., e que é perceptível em seus trabalho crítico permanecerá indelével na sua forma de conceber a literatura, a poesia. É nessa seara da linguagem que todos os textos críticos, como não poderiam deixar de ser, estão enquadrados. Menos, talvez, detalha214 Asas da Palavra Asas da Palavra 215 dos do que a revisão que Faustino realizou de Jorge de Lima. “Para nós, todavia – diz Faustino –, pelo menos neste momento de nossa própria evolução, é Jorge de Lima o maior, o mais alto, o mais vasto, o mais importante, o mais original dos poetas brasileiros de todos os tempos. Tem também a vantagem de estar morto” (Faustino, 2003, p. 217) – lembremos da citação de Wilson Martins, a propósito do estilo de Mário. Será nessa revisão que as principais características da linguagem crítica faustiniana serão melhor desenvolvidas, explicitadas, detalhadas; cada poema um comentário, cada comentário um poema. A primeira classificação necessária sobre A invenção de Orfeu é de que trata-se de uma experiência que pretende criar um mundo através da poesia; A invenção... sendo uma natura naturans (Faustino, 2003, pp. 243-244), expressão que já seria utilizada por Mário Faustino em carta à Benedito Nunes em 1957 e que vale pela corroboração da ligação entre o espírito de sua critica e seu trabalho poético: “minha experiência – dizia Mário – tende agora no sentido de ‘coisificar’o mais possível as palavras, reificálas usando todos os instrumentos para fazer do poema uma natura naturans, como tu dirias” (Nunes, in: Faustino, 2002, p. 61). Compare-se a intenção de Faustino com a sua análise sobre o livro do Jorge de Lima. A invenção... seria: Um mundo verbal. Um mundo de antes mesmo da criação da palavra. Jorge, por seus processos de encantação, de nomeação original, de repetição mágica das palavras, de designação (notar os seus freqüentes ‘estes’, ‘esses’, ‘aqueles’), cria a palavra; percebe o mundo pelas palavras que cria e, assim, cria um outro mundo, uma outra natureza, de palavras-objetos, de frases objetos, de estrofes-objetos, de poemas-objetos: A invenção de Orfeu –objeto, o objeto Invenção de Orfeu (Faustino, 2003, p. 244). Eis a metafísica poética de Mário Faustino, que tinha na palavra seu ente fundador. Não é à toa que em um dos comentários, Faustino admite ter glosado um soneto de A invenção... (Cf. Faustino, 2003, p. 275). Sob essa perspectiva, ele tem mais afinidades com Jorge de Lima do que com João Cabral de Melo Neto, ao contrário do que afirmou José Castelo, por ocasião da reedição da obra de Faustino em 2002, dizendo ser o autor de Morte e vida Severina, pela importância que Mário dá à palavra, “seu grande Guru” (sic), errando igualmente, nesse mesmo aspecto, sobre Faustino ter imitado os concretistas pelo fato de ser “um poeta arquiteto (sic) [...] um artífice” (Castelo, 2002, p. 90). Classificação poética e novos aprendizes Sobre os poetas pertencentes à chamada Geração de 45 é relevante assinalarmos a crítica referente a Geir Campos. O poeta estreou em 1950 com Rosa dos rumos, na qual segundo Faustino, “o poeta parece 216 Asas da Palavra pretender reagir às conquistas ‘dos de 22’, procurando, igual a vários de seus contemporâneos, reviver o nosso ‘parnasianismo’” (Faustino, 2003, p. 312). Essa avaliação é um dos aspectos apontados por Wilson Martins (2003, 24 mai, p. 4) para o esquecimento do poeta nos dias de hoje: Uma das razões, aliás ridículas, que parecem ter-lhe determinado o ostracismo decretado pelos diretores da opinião é o fato de haver praticado com mão de mestre o soneto de extração clássica. Ora, levados pelos automatismos populares, muitos doutrinadores simplistas lançaram o descrédito sobre essa forma poética, identificando-a, por definição, com o execrado Parnasianismo (confundido, por sua vez, com a poesia de má qualidade). Ora, enquanto técnica poética, o soneto não é inferior, nem superior, a qualquer outra: nas mãos de um poeta autêntico, será boa poesia. Longe de ser um doutrinador simplista, e acreditando no soneto como forma poética, a crítica de Mário Faustino está de acordo com seus pressupostos metodológicos, conforme vai desenvolvê-los na análise. É que a linguagem poética, como a entende Faustino, não fora bem desenvolvida pelo autor de Arquipélago; e esse aspecto é o fundamento de sua crítica. Mário não abdica do soneto, é que ele observa em Geir Campos a falta de renovação da forma que ocorrera em Jorge de Lima; a renovação, que implica em uma inovação; o ‘Make it New’ poundiano é um dos pressupostos de sua crítica, e é também com esse que o autor vai realizá-la no exame do poeta, novamente, através do método da análise direta do objeto e da comparação. Dentre os “Poetas Novos”, para o crítico, Lélia Coelho Frota, autora de Quinze poemas, seria uma revelação. Lélia atende a um dos pressupostos de Pound assimilados por Mário, o da indicação de sua maior influência, Drummond, a quem ela oferece o livro. A indicação da influência está ligada à valorização da tradição, da experiência. O autor ou não procedendo dessa forma (não indicando a influência), é melhor disfarçá-la o máximo possível, no sentido de uma influência predominante, sem a dominação no texto (Cf. Faustino, 2003, p. 362). Concretismo e linguagem De Anchieta aos concretos traz como última seção Concretismo & Balanços. E aqui é relevante assinalarmos a discussão feita por Mário Faustino a respeito da situação da poesia brasileira na época e o surgimento do concretismo. Relativo ao ano de 1956, além da de João Cabral de Melo Neto (Duas águas), o grande acontecimento seria a exposição de arte concreta, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo, capitaneada por Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, a qual Faustino saúda como “a genuína força de vanguarda de nossa poesia” (Faustino, 2003, p. 458). São os concretistas, segundo o crítico que “muito contribuíram para manter viva e nova a nossa poesia”. (Faustino, 2003, p. 462), afirmação que logo se transformaria em Asas da Palavra 217 um diagnóstico preocupante para Faustino. O crítico observa a crise da poesia brasileira e não vê grandes possibilidades de avanço a partir dos nomes então consagrados. Cogita a possibilidade de que isso sbeja realizado através da poesia concretista (Cf, Faustino, 2003, pp. 461-464). Não se pode pensar que a saudação aos concretistas e a consideração da possibilidade de renovação a partir deles tenham feito com que Faustino se tornasse mais um membro dessa confraria – que então contaria também com Ferreira Gullar, já autor de A luta Corporal; posteriormente saindo do movimento. O crítico apenas admitiu depois, alguma identificação de base com o movimento, especialmente no âmbito de alguns pressupostos estéticos, Mallarmé e Pound, em essência (Cf. Faustino, 2003, p. 478) (não é à toa que Augusto de Campos é o tradutor do ABC da literatura). Deixou isso claro em um texto de Poesia-Experiência, lugar onde ainda publicou textos dos concretistas antes deles praticarem, na expressão de Wilson Martins, os seus jogos de armar. Na carta, já citada, à Benedito Nunes ele diria: “mas não sinto necessidade de abolir inteiramente aquilo que os concretos chamam de sintaxe linear [...] O motivo principal que me separa da poesia concreta é que o que mais me interessa é poema longo: o que menos interessa a eles” (Faustino, 2002, p. 61). Mário Faustino não poderia abdicar daquilo que fora a quintessência de sua produção como poeta e crítico: a linguagem; suas formas, métodos, objetivos. Queria criar um grande trabalho, um grande poema – do qual nos restaram fragmentos – que se tornou um dos seus projetos de vida. Vida toda linguagem... 218 Asas da Palavra 1945). São Paulo: Cultrix, 1967. MAUÉS, Júlia. A modernidade literária no Pará: o suplemento literário da Folha do Norte. Belém: UNAMA, 2002. NUNES, Benedito. A obra poética e a crítica de Mario Faustino (Com um adendo rememorativo sobre o poeta). Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1986. POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos. São Paulo: Cultrix, 2001. Artigos de revistas. CASTELO, José. Feroz independência. Bravo!, São Paulo, n. 61, p. 9093. 2002. GOUVÊA, Leila V.B. A capitania poética de Cecília Meireles. Cult, São Paulo, n. 51, p. 42-47. 2001. MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil. Fragmenta. Curitiba. n. 16, p. 25-33. 1999. NUNES, Benedito. O verso visionário de Mário Faustino. Bravo!, São Paulo, n. 61, p. 87-90. 2002. Artigos de Jornais MARTINS, Wilson. Retaguarda de vanguardas. O Globo, 5 abr. 2003. Caderno Prosa & Verso, p. 4. _______________. Fortuna do poeta. O Globo, 24 mai. 2003. Caderno Prosa & Verso, p. 4. Asas da Palavra 219 220 Asas da Palavra BREVE NOTÍCIA DE UM POEMA, SUAS HORAS E SUAS VERSÕES João Carlos Pereira Jornalista e escritor. Professor de História da Arte na UNAMA. Membro da Academia Paraense de Letras Asas da Palavra 221 O trigésimo ano de publicação de O Homem e sua Hora foi motivo para que “O Liberal”,em sua edição de 15 de novembro de 1985 - data de aniversário do jornal – rompesse o silêncio que cercava a lembrança de um dos mais importantes livros de poemas, em língua portuguesa, no século XX, e saísse um Caderno dedicado à história da formação paraense do poeta Mario Faustino que, nascido no Piauí, criou-se em Belém e daqui saiu para cumprir seu destino iluminado e de trágico final. Fui chamado para preparar o material sobra a vida de Mário entre nós. Esse trabalho, que o então diretor-redator-chefe de “O Liberal”, jornalista Cláudio Augusto de Sá Leal, me propôs, na forma de um desafio, consistia em encontrar e entrevistar os amigos de Mário Faustino. Penso que, em vinte e um anos de jornalismo, completados em janeiro de 2003 e todos eles vividos em torno da redação de “O Liberal” e da TV Liberal, poucas vezes me dediquei tão integralmente à execução de uma tarefa como essa de recuperar, pela palavra dos amigos, a presença de Mário Faustino em Belém. Depois de ouvir pessoas que estiveram sempre muito perto dele e de seu coração, consegui fechar a edição, que trazia entrevistas com os professores Benedito Nunes - apresentado como o maior amigo e crítico que melhor conheceu sua poesia – Ruy Barata, Albeniza Chaves, Francisco Paulo Mendes e Walquíria Mello; os poetas José Ildone, Anamaria Barbosa Rodrigues, José Maria Villar Ferreira, José Guilherme de Campos Ribeiro, Max Martins e Age de Carvalho, o romancista Haroldo Maranhão, os jornalistas Antônio Pantoja, Ossian Brito, Mário Couto e Maria Augusta Cotrim de Britto e uma amiga do poeta, a senhora Yvette Vieira Pinto de Araújo, colega de Mário, ao tempo em que trabalhavam na SPVEA, e que, no momento da entrevista, chefiava o setor de Taquigrafia da Câmara dos Deputados. De todos recolhi informações que me ajudaram a dar contornos humanos à interessantíssima figura de Mário Faustino. Cada um me revelou o Mário que conheceu e amou. Todos convergiam para os mesmo pontos: a sensibilidade, a doçura, a elegância, a irreverência, a beleza física, a inteligência privilegiada, a vastíssima cultura e o jeito de ser raro de um homem que, nos escassos 32anos que viveu, esteve à frente de seu tempo e construiu uma obra ímpar. Todos os “Mários” – e o mesmo Mário – eram, em síntese, uma saudade especial. Se o Caderno me deu oportunidade de conhecer e compartilhar o Mário Faustino, de cujas feições não me recordo, embora freqüentasse a casa onde nasci, para ouvir música clássica na companhia de meu pai, Joel Pereira, uma entrevista me possibilitou entrar em contato com uma expe222 Asas da Palavra rimentação poética rara. Poeta artífice, artesão no melhor sentido do lapidador de versos, escrevia e reescrevia seus poemas até que, tendo vida própria, adquirissem a luz que os mantêm vivos. Quem testemunhou muito de perto esse trabalho foi dona Yvete Araújo, que trabalhava na mesma repartição do poeta. Um dia, estando perto dele, viu-o trabalhando um poema, cuja versão- a segunda,conforme dona Yvete me disse – não ficou do seu agrado. Mário riscou o texto, embolou a folha onde o havia datilografado e jogou no lixo. Dona Yvete sabia que o que estava no cesto não era apenas um passo para a versão definitiva do poema “Mensagem” e guardou aquela bola de papel amassada. Muitos anos se passaram e ela jamais se desfez do poema porque, ainda que sujeito a mudanças, um original de Mário Faustino é um original de Mário Faustino. Quando já estava com a edição quase fechada, dona Yvete me mandou uma cópia do poema. Olhando um e outro textos, percebe-se como Mário era cuidadoso, quando fazia seus versos. A ele caberia perfeitamente uma expressão que, certa vez, ouvi do professor Inocêncio Machado Coelho, referindo-se a uma outra pessoa: “tinha as mãos de Baudelaire, porque tudo que saia delas era perfeito”. Para esta edição de “Asas da Palavra”, em homenagem a Mário Faustino, pensei em apresentar as entrevistas dos amigos. Mas eram tantas para tão pouco espaço que seria injusto, por exemplo, trazer a de Mário Couto e deixar de lado a da professora Albeniza Chaves; ou publicar a de Campos Ribeiro e deixar a de Ruy Barata de lado. Ou sairiam todas, ou não sairia nenhuma, porque formam um mosaico. Uma ausência comprometeria o retrato. Em um outro momento, poderão ser publicados na íntegra. Só não posso fazer o mesmo com algumas cartas do poeta que dona Maria Augusta me entregou e que foram ficando, foram ficando, até que não tive mais chance de devolvê-las à sua dona. São lindas cartas de amigos, cuja privacidade, imagino, deve ser, de alguma forma, preservada. Como nem remetente, nem destinatária estão mais entre nós, guardo-as como lembrança da delicadeza da jornalista Maria Augusta, uma das mulheres mais inteligentes e finas que conheci. O que de mais curioso e de vida mais autônoma poderia extrair daquela pesquisa está aqui reproduzido: uma versão do poema e sua forma assentada, que entrego ao leitor, com a marca da caneta do próprio Mário, que fez um X sobre os versos e os assinou como Marius Faustinus. Asas da Palavra 223