Edição nº16

Transcrição

Edição nº16
Asas da Palavra
Revista do Curso de Letras
Universidade da Amazônia
Centro de Ciências Humanas e Educação
Asas da Palavra
ISSN 1415-7950
v.7 n.16
1
Asas da Palavra
Copyright 2003, by UNAMA
REVISTA DA GRADUAÇÃO EM LETRAS
União de Ensino Superior do Pará
Entidade Mantenedora da Universidade da Amazônia
Conselho Diretor
Presidente:
Paulo Roberto Carvalho Batista
Membros:
Antonio Carvalho Vaz Pereira
Édson Raymundo Pinheiro de Sousa Franco
Etiane Arruda
Marlene Coeli Vianna
Ana Paula Mufarrej
Asas da Palavra
Revista da Graduação em Letras
ISSN 1415-7950
Universidade da Amazônia
A revista Asas da Palavra é uma publicação semestral da GRADUAÇÃO em LETRAS da UNAMA que se
define como um espaço multidisciplinar para a divulgação de trabalhos científicos e críticos no âmbito
de estudos da linguagem, com ênfase à cultura amazônica. Pretende, ainda, ser um fórum de discussão
de questões relativas ao ensino de língua, literatura e tradução; e trazer, a cada número, uma seção
especial , dedicada a um nome de expressão da Amazônia, qualquer que seja sua forma de linguagem
para expressar a arte, com o intuito de incentivar a participação de alunos e professores na pesquisa e
produção crítica. É um espaço aberto, também, para a divulgação de trabalhos desenvolvidos em
cursos de graduação e pós-graduação, assim como textos de criação e tradução literária, a fim de
dinamizar a circulação de informação relevante ao fazer acadêmico e, acima de tudo, colocar em pauta
a expressão cultural do homem e da mulher da Amazônia.
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Asas da Palavra
Universidade da Amazônia
Centro de Ciências Humanas e Educação
Asas da Palavra
Revista da Graduação em Letras
Semestral v.7 • n.16 • Outubro 2003 - ISSN 1415-7950
Asas da Palavra
Asas da Palavra
Belém
v.7
N.16
ISSN-1415-7950
p1-224
out.2003
3
EDIÇÃO COMEMORATIVA DE ANIVERSÁRIO
Esta publicação foi elaborada por professores
da Graduação em Letras da Universidade da Amazônia,
UNAMA, com o patrocínio do Banco Itaú. Esta edição,
que tem como tema o crítico e poeta MÁRIO FAUSTINO,
comemora o 10º aniversário da UNAMA como universidade,
e os 10 anos de lançamento do número 0 desta revista,
em outubro de 1993.
MÁRIO FAUSTINO, no Pomana College, em 1951, na Califórnia,
onde estudou Língua e Literatura inglesas.
Foto: acervo Benedito Nunes
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Asas da Palavra
Asas da Palavra
10 anos
Asas da Palavra
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Revista da Graduação em Letras
v.7 n.16 outubro/2003
UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
Reitor
Édson Raymundo Pinheiro de Sousa Franco
Vice-Reitor
Antônio de Carvalho Vaz Pereira
Pró-Reitor de Ensino
Mário Francisco Guzzo
Pró-Reitora de Pesquisa, Pós-Graduação e Extensão
Núbia Maria Vasconcelos Maciel
Diretora do Centro de Ciências Humanas e Educação
Ana Célia Bahia Silva
Coordenadora do Curso de Letras
Maria Célia Jacob
Coordenadora da Interiorização em Letras
Maria das Graças Alves Salim
Asas da Palavra n. 16
Organização e Coordenação Editorial
Célia Jacob e Rosa Assis
Projeto Gráfico
Célia Jacob
Editoração Eletrônica
Elailson Santos
Captura de imagens
Sue Anne Collares
Impressão
íCone Gráfica e Editora
Distribuição /Assinaturas/ Intercâmbio
Assessoria de Comunicação da Universidade da Amazônia
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Fone/Fax(91) 210-3058
http://www.unama.br
[email protected]
Asas da Palavra - revista da graduação em Letras
Belém: Unama,v.7n.16,2003
Semestral
ISSN 1415-7950
1.Literatura-Estudos críticos, artigos, ensaios,
resenhas, tradução, poesia .
Periódicos
2.Lingüística.I.UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
Curso de Letras
800
CDD
400
6
Asas da Palavra
APRESENTAÇÃO
V
inte e um de outubro de 1993, um dia muito especial na história
da educação da cidade de Santa Maria de Belém do Grão Pará :
nascia a primeira universidade particular da região Norte — a
Universidade da Amazônia.
Dias depois, a UNAMA realizava, com a presença das mais altas
personalidades do Estado, do mundo acadêmico local e de outras regiões brasileiras, Sessão Solene de instalação da sua nova condição como
instituição de ensino.
Na Galeria de Arte — UNAMARTE — inaugurada naqueles
dias de festa e, integralmente, lotada, um grupo de professores do Curso de Letras da UNAMA, convidados para a festa, timidamente, quebrou o protocolo e iniciou a distribuição de uma pequena publicação. A
capa, ilustrada com uma colagem feita pelo professor Paulo Nunes,trazia
já o título dos poucos exemplares, editados em formato simples, quase
artesanal, mas com produção acadêmica e recursos de alunos e professores do Curso. O tema: a cronista paraense Eneida de Moraes. Era o
número 0, chamado de experimental, da Revista ASAS DA PALAVRA
que aparecia de surpresa, como um desafio, uma saudável provocação.
Sem recursos financeiros, sem crédito, ainda sem autorização para usar
o nome da instituição, mas com uma grande vontade de entrar para a
sua história. Na ultima folha, uma referência àquela data festiva, como
que para registrar o início de um caminho.
É impossível condensar, pelo pouco espaço reservado à apresentação, a trajetória de ASAS DA PALAVRA até este número, comemorativo de aniversário — 10 anos — junto com a Universidade que
lhe permitiu a identificação institucional, ao acreditar na sua proposta
editorial e no seu papel social e acadêmico. Mas é importante registrar o
nome de pessoas que lutaram para garantir-lhe vida além do número
zero: professora Dirce Koury, então Diretora do Centro de Ciências
Humanas e Educação, que nos incentivava, não deixando esfriar nosso
entusiasmo diante das dificuldades, e professor Paulo Batista, Presiden-
Asas da Palavra
7
te do Conselho Diretor da UNAMA. A este creditamos o empenho
para garantir patrocínio — e que se mantém até hoje — permitindo
que a Revista desse continuidade a sua existência como periódico, que
crescesse. Lembramo-nos bem quando ele foi, muito alegre, um pouco
mais de um ano depois, até a quadra de esportes da UNAMA, onde
fazíamos a confraternização de Natal, para nos dar a boa nova, o presente maior: tínhamos o patrocínio garantido do BANCO ITAÚ. ASAS
DA PALAVRA número 1 podia sair. Foi o que aconteceu, tendo como
tema o Maestro Waldemar Henrique. E vieram: Ruy Barata, Wilson
Fonseca, 100 anos de Cinema no Pará, Dalcídio Jurandir, Bruno de
Menezes, Eneida, Pastorinhas de Belém, Ferreira de Castro, Antonio
Tavernard, Heranças da cultura lusitana na Amazônia, Max Martins,
Belém da Memória, Haroldo Maranhão, Carlos Drummond de Andrade,
Inglês de Sousa e, neste número 16, Mário Faustino.
Esta é, portanto, uma edição comemorativa. E traz, como tema,
um dos nomes mais representativos da poesia e da crítica brasileira que,
embora nascido em Terezina-Piauí, aos 10 anos mudou-se para Belém,
aqui estudou, cresceu e fez grandes amigos, antes de partir para muitas e
longas viagens — até a definitiva — sempre buscando o aperfeiçoamento
da mais bela expressão humana.
Deixo que os ilustres colaboradores deste número falem melhor sobre Mário Faustino. O conjunto de textos coletados sobre ele e
sua obra é grande. Alguns, inéditos; outros não, porém importantes de
serem reeditados aqui, sobretudo aqueles publicados em livros esgotados, em revistas que já não circulam, ou de difícil acesso. Fotos, documentos pessoais formam um mosaico da curta, porém intensa, vida do
homem, do poeta, das suas horas. A recuperação deste farto e valioso
material, convocando traços da memória individual ou coletiva, foi um
trabalho incansável da professora Doutora Rosa Assis, com o apoio do
grande amigo de Mário Faustino, o filósofo Benedito Nunes, a quem
agradecemos a confiança depositada nesta Revista.
A todos os outros autores, não nomeados por falta de espaço,
fica registrado o agradecimento da UNAMA pela presença constante,
correta e amiga nestes 10 anos de ASAS da PALAVRA, e, dela própria,
como Universidade.
Célia Jacob
Coordenadora do Curso
de Letras da UNAMA
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Asas da Palavra
SUMÁRIO
• O fragmento da juventude ........................................................................................................... 13
Benedito Nunes
• Quem foi e o que fez Mário Faustino
( um poeta e seu mundo) .............................................................................................................. 25
Albeniza de Carvalho e Chaves
• Mário Faustino e a paciência órfica
(depoimento de um companheiro de geração) ......................................................................... 51
Haroldo de Campos
• Mário Faustino- poeta sacrílego .................................................................................................. 71
Pedro P. de Assis
• Para que serve um poema? ......................................................................................................... 111
Maria Lúcia Medeiros
• Mário Faustino, poeta do meu Norte ....................................................................................... 117
Lília Silvestre Chaves
• Mário Faustino: fazer poético: avanços e vacilações .............................................................. 131
Carlos Evandro Eulálio
• Mário Faustino, um militante da poesia ................................................................................... 141
Elias Pinto
• Lembrança ..................................................................................................................................... 157
Ivo Barroso
• Mário Faustino: nosso cigano .................................................................................................... 163
Lúcio Flávio Pinto
• Versos , imagens, recortes & colagens ...................................................................................... 167
Rosa Assis
• À procura de sentidos em Mário Faustino: Sintaxe e Leitura .............................................. 183
Sérgio Sapucahy
• Mário Faustino e a reconstrução olímpica do espírito pela palavra .................................... 191
Júlia Maués
• O tempo da criação em O Homem e sua hora ............................................................................ 199
Benilton Cruz
• Estratégias da demolição: a linguagem crítica de Mário Faustino ....................................... 209
Relivaldo de Oliveira
• Breves notícias de um poema: suas horas e suas versões ...................................................... 221
João Carlos Pereira
Asas da Palavra
9
“Quem fez esta manhã, quem penetrou
À noite os labirintos do tesouro,
Quem fez esta manhã predestinou
Seus temas a paráfrase do touro,
A traduções do cisne: fê-la para
Abandonar-se a mitos essenciais
Desflorada por ímpetos de rara
Metamorfose alada, onde jamais
Se exaure o deus que muda, que transvive
Quem fez esta manhã fê-la por ser
Um raio a fecundá-la, não por lívida
Ausência sem pecado e fê-la ter
Em si princípio e fim: ter entre aurora
E meio dia um homem e sua hora.”
10
Asas da Palavra
MÁRIO FAUSTINO
Asas da Palavra
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Asas da Palavra
O FRAGMENTO DA
JUVENTUDE
Benedito Nunes
Filósofo. Professor Titular
Emérito da UFPA
Asas da Palavra
13
J
Muitas obras dos antigos acabaram
como fragamentos. Muitas obras
dos modernos já nascem assim.
F. Schlegel  Frag. A 24.
•••
uventude 
a jusante a maré entrega tudo 
maravilha do vento soprando sobre a maravilha
de estar vivo e capaz de sentir
maravilhas no vento 
amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rastro 
maravilha de estar ensimesmado
(a maravilha: vivo!),
tragado pelo vento, assinalado
nos pélagos do vento, recomposto
nos pósteros do tempo, assassinado
na pletora do vento 
maravilha de ser capaz,
maravilha de estar a postos,
maravilha de em paz sentir
maravilhas no vento
e apascentar o vento,
encapelado vento 
mar à vista da ilha,
eternidade à vista
do tempo 
o tempo: sempre o sopro
etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento,
do monstruoso vento 
e a terna idade amarga 
juventude 
êxtase ao vivo, ergue-se o vento lívido,
vento salgado, paz de sentinela
maravilhada à vista
de si mesma nas algas
do tumultuoso vento,
de seus restos na mágua
do tumulário tempo,
de seu pranto nas águas do mar justo 
maravilha de estar assinalado
pelo vento repleto
e pelo mar completo 
juventude 
a montante a maré apaga tudo 
....
14
Asas da Palavra
Esse “fragmento”, daqui por diante denominado Juventude, pertence à série de poemas curtos sem título, compostos entre
1959 e 1962, que Mário Faustino excepcionalizou como o início de
um projeto de criação, preenchendo nova fase de sua poesia, para
ele definitiva. Tratava-se de elaborar, enquanto vivesse, um único e
longo poema tão só pela correlação mútua entre poemas curtos desse tipo, em número indefinido  “pequenos poemas líricos”, dizia,
heterogêneos na forma e na temática, mas escritos em verso e com a
autonomia das composições tradicionais. Em vez de partes que se
adicionassem para formar-lhe o todo, essas composições breves eram
“fragmentos”, enquanto porções antecipatórias, exemplificativas, do
único poema extenso, cuja idéia, contudo, também ideal norteando
a experiência poética de que provinham, preexistia aos seus componentes, enquanto diretiva a eles comum. Únicos produtos finais, os
“fragmentos”, identificados pelos pontos de suspensão (...) antes do
início e depois do final, constituíam, ao mesmo tempo, momentos
de paradoxal “obra em progresso”, sempre incompleta quanto mais
avançassem, e da experiência do poeta que intermediavam. O existencial e o poético se complementariam dentro de tal projeto, que
pretendeu unir vida e poesia. Por isso, atribuía Mário Faustino à escrita dos “fragmentos”  num primeiro jato, versos ocasionais ou
de circunstância, depois estruturados, reconstruídos,1  a função de
reordenar a sua existência, feita “unidade múltipla”, à semelhança
do almejado poema extenso a que tendia.
Ao neutralizar a intenção psicológica desse projeto biográfico-artístico, em proveito da intencionalidade da Juventude, aqui
analisado, numa leitura de compreensão, do ângulo de uma
fenomenologia do poema, à busca de seu sentido, essa composição
perde a excepcionalidade conferida à série, sem perder o caráter de
“fragmento”, que deve à sua forma peculiar de “pequeno poema
lírico”, e religa-se, juntamente com as suas congêneres, ao conjunto
da obra realizada pelo poeta, de que todas são efetivamente partes,
ao lado das poesias de O Homem e sua hora (1955) e dos textos experimentais (1956-1959) que as antecederam2 . No correr da análise,
ficam patentes, a despeito das diferenças que as separam na forma e
na concepção, os vínculos do “fragmento” escolhido com as primeiras e com os últimos, a começar pelo seu tema, a juventude, ai interligado às grandes oposições temáticas da lírica de Mário Faustino,
amor e morte, tempo e eternidade.
Mas como desencobrir o sentido desse poema envultante, de
avassaladora sonoridade, que se propaga com o repetitivo bordão
das duas palavras insistentes, “maravilha” e “vento”, aquela em posição anafórica, treze vezes reiterada, e a última quinze, no começo
e no fim dos versos? O imediato efeito encantatório da iteração,
envolvendo o leitor, parece dissolver as significações em “nadas aéreos”. Talvez estejamos diante de uma poesia aparentada àquela espécie, mencionada por Jorge Luis Borges, que “Não quer dizer nada
e à maneira da música diz tudo”3 .
Asas da Palavra
1
2
3
4
MF adotava terminologia
cinematográfica inspirada
por Eisenstein: os versos
circunstanciais seriam
takes e montagem o
procedimento artístico
posterior. Os concretistas
difundiram, à época, o
ensaio do cineasta russo
relacionando montagem e
ideograma (O princípio
cinematográfico e o
ideograma). A terminologia
era, de certo modo,
polêmica, na medida em
que M.F., que tinha
conservado o verso mesmo
nos seus poemas
experimentais, marcava a
distância que o separou
dos concretistas, utilizando
teóricos e poetas que eles
prezavam, sem esquecer,
ainda Mallarmé e Pound,
de cuja escrita poética se
aproximaria a dos
“fragmentos”, no entanto
vinculada, quanto ao ideal
do poema longo, à
Invenção de Orfeu, de
Jorge de Lima.
O Homem e sua hora,
Livros de Portugal, Rio,
1955. Republicado com os
esparsos e os inéditos,
incluindo os “fragmentos”,
in Poesia de Mário
Faustino, Editora
Civilização Brasileira, S/A,
1966 e Poesia Completa /
Poesia traduzida , Editora
Max Limonad, 1985. As
citações seguem esta
última edição.
Jorge Luis Borges, La Cifra,
Prólogo, pp. 11 e 12,
Alianza Editorial, Madrid,
1981.
Na conceituação de Roman
Ingarden, o ritmo é
imanente quando prescrito
“por determinado conjunto
fonemático-significativo”. A
obra de arte literária, p. 67.
Fundação Caloute
Gulbenkian, Lisboa, 1965
15
5
A proporção crescente de
poemas fragmentos a
partir do começo do
século XIX pode atribuir-se
a “uma ênfase crescente
do associacionismo lírico
e uma ênfase decrescente
do enredo dramático
racionalmente desenvolvido...” ( “an increased
emphasis upon lyrical
associationism, and a
decreased emphasis upon
rationally extricated plot ...)
– Keneth Burke, The
philosophy of literary form,
University of California
Press Berkeley, Los
Angeles, London, 1973.
Aqui de fato o encantatório é musical; a iteração integra um
ritmo cantabile , considerável e vigoroso estrato fônico das
enunciações dos versos. Elas são rítmicas, de modo que não há significados que não sejam cantantes, na acepção melódica do termo.
Inversamente, o rítmico é significativo, tanto do ponto de vista semântico quanto sintáxico. Nessas condições, pode aplicar-se a Juventude, sob a dependência da interconexão entre o fonemático e a
significação das palavras que o caracteriza, a noção de ritmo em toda
a sua latitude de fenômeno imanente4 . A repetição das mesmas palavras, antes assinalada, cuja função veremos adiante, é, sem dúvida,
a figura mais exterior dos 36 versos paratáticos da composição  de
metros variados, regulares, como decassílabos, em geral heróicos,
além dos de menor medida, e irregulares, com 13, 15 e 18 sílabas 
cujo ritmo ondulatório excede o simples compasso métrico pelo
andamento, graças à diferença expressiva das variações de acento,
combinadas com a recorrente incidência, verso a verso, das mesmas
vogais (a-e-i-o). Mais lento nos versos de maior número de sílabas,
mais rápido nos outros, o andamento, inseparável desses pontos de
assonância, redobrados pelas profusas rimas internas (estar/amar/
vento/tempo/apascentar/mar/mágua/águas/repleto/completo)e
aliterações (juventude/jusante/pélagos/pósteros/pletora/postos/
eternidade/etéreo/tumultuoso/tumulário), dá às enunciações uma
nítida linha de entoação. Sob esse aspecto, é justificável o qualificativo, atribuído ao ritmo, de ondulatório, que tem a ver com a forma
do “fragmento” diagramada na página seguinte:
O traço formal mais ostensivo de Juventude  parco em
adjetivos utilizando freqüentemente o infinitivo pessoal do verbo
estar (estar vivo/estar ensimesmado/estar a postos/estar assinalado)  é o uso, do princípio ao fim, de uma pontuação  os travessões nos finais de verso, doze ao todo  quase exclusiva, não fosse
a saliente função rítmica das vírgulas, como se constata no
enjambement dos decassílabos 9, 10 e 11. Os travessões pontuam
unindo o que separam e separando o que unem. Nesse duplo papel,
assinalam tanto o recorte do “fragmento”  seccionado à altura de
cada um dos doze travessões  quanto o entrelaçamento das três
estrofes  dístico, estância mediana e verso final isolado  e dos
versos entre si, distribuídos em dez unidades distintas de enunciação
(indicadas pelos algarismos romanos do lado direito do texto), que
não se interligam discursivamente. Onde o travessão aparece, a sintaxe discursiva se interrompe, substituída pela sintaxe rítmica. Assim, a forma singular desse “pequeno poema lírio”, enquanto “fragmento”, é a da continuidade na descontinuidade  continuidade
associativa do ritmo e das imagens5 , descontinuidade das enunciações.
À luz de tal oposição interna, os travessões também funcionam para
marcar pausas do ritmo, que se interrompe em cada unidade, recomeçando de novo, na seguinte. Nessas sucessivas interrupções e
recomeços  daí o movimento ondulatório do ritmo  seu andamento ganha distintas entoações, que complementam as variações
acentuais com as variações melódicas dos versos.
16
Asas da Palavra
...
1
2
3
4
5
Juventude 
A jusante a maré entrega tudo 
maravilha do vento soprando sobre a maravilha
de estar vivo e capaz de sentir
maravilhas no vento 
6 amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rastro 
I
II
III
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9
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maravilha de estar ensimesmado
(a maravilha: vivo!),
tragado pelo vento, assinalado
nos pélagos do vento, recomposto
nos pósteros do tempo, assassinado
na pletora do vento 
13
14
15
16
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maravilha de ser capaz,
maravilha de estar a postos,
maravilha de em paz sentir
maravilhas no vento
e apascentar o vento,
encapelado vento 
19
20
21
mar à vista da ilha,
eternidade à vista
do tempo 
VI
22
23
24
o tempo: sempre o sopro
etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento,
do monstruoso vento
VII
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26
27
28
29
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e a terna idade amarga  juventude 
êxtase ao vivo, ergue-se o vento lívido,
vento salgado, paz de sentinela
maravilha à vista
de si mesma nas algas
do tumultuoso vento
de seus restos na mágua
do tumulário tempo,
de seu pranto nas águas do mar justo 
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35
36
maravilha de estar assinalado
pelo vento repleto
e pelo mar completo  juventude 
IX
37
....
a montante e maré apaga tudo 
I
Asas da Palavra
IV
V
VIII
17
6
7
8
De acordo com a
conhecida distinção de
João Cabral de Melo Neto
entre “poemas para serem
lidos em silêncio”e
“poemas que, menos que
lidos, podem ser ouvidos”.
Nota a duas águas, José
Olympio Editora, Rio,
1956.
“Além da escolha, do lugar
e do encadeamento das
palavras, é pois,
sobretudo, a totalidade da
configuração rítmica do
dizer poético, que
“exprime” o que se chama
de sentido (Sinn)”.
Heidegger, Hölderlin
Hymnen, “Germanie” und
“Der Rheine”,
Gesamtausgabe, Band 39,
p. 14, Vittorio Klostermann,
Frankfurt am Main, 1980.
“Divisamos assim o
adolescente, / a rir
desnudo em praias
impolutas...”, Divisamos
assim o adolescente, p.
119  Rapaz, em minhas
mãos cheias de areia /
Conto os astros que faltam
no horizonte / Da praia
soluçante onde passeia / A
espuma de teu fim, pranto
sem fonte, / Ó juventude,
um pálio de inocência /
Jamais se estenderá sobre
outra aurora...”, Onde paira
a canção recomeçada,
Sete sonetos de amor e
morte, O Homem e sua
hora, p. 175  “Lá onde
um velho corpo
desfraldava / As trêmulas
imagens de seus anos; /
onde imaturo corpo
condenava / Ao canibal
solar seus tenros anos; ...
Nam Sibyllam, Sete
sonetos de amor e morte,
O Homem e sua hora, p.
172.
O efeito encantatório antes destacado é, pois, o prolongamento da sedução do canto, em que as significações são musicais, e
o cantabile, significativo. E a iteração de “vento” e “maravilha”
introduz nesse cantabile a diferença de timbre das duas palavras 
refrões mais do que bordões  que têm por função emprestar ao
movimento ondulatório do ritmo uma altura enfática, altissonante,
de recitativo oral. À semelhança de outros “fragmentos”, nosso poema, a despeito de incluir detalhes de escritura visual, entra na categoria dos textos poéticos de leitura em voz alta 6 . É recitativo por
ser canto, e é canto pela sua configuração rítmica, como intercorrência
dos elementos destacados: compasso ou cadência, andamento, variação melódica e timbre. Articula-se na configuração rítmica o sentimento preponderante no poema, que dá o tom ou a tonalidade de
sua linguagem lírica. É aí, no ritmo, que traspassa as enunciações da
segunda estrofe, que se pode desencobrir o sentido intencional, o
dizer oblíquo de Juventude. 7
Enquanto nos sonetos de O Homem e sua hora, a juventude
aparece no motivo incidental do amor  a perturbadora atração
amorosa pelo adolescente ou, ainda, o realce de seu viço físico em
contraste com a velhice8  nesse “fragmento”ela é expressamente
tematizada, em confronto com o amor e a morte, o tempo e a eternidade, como objeto de louvor.
Assim Mário Faustino retoma um dos atos mais proeminentes da linguagem lírica  o encômio, o elogio,  base intencional
de um gênero da Antiguidade, cujas formas, o hino e a ode, então
codificadas, a tradição moderna estendeu, desde o Romantismo, às
coisas da Natureza, aos estados e sentimentos humanos. Por ser
contraparte da reverência, do respeito ou da admiração do sujeito a
algo fora de si, a ato de louvor, que lhe manifesta a voz, guarda
distância em relação ao que exalta, e que revive, de maneira exultante,
numa ação celebratória.
Porém, é só na segunda estrofe que o sujeito lírico louva a
juventude, em atitude de abstrato distanciamento, favorecida pelo
infinitivo impessoal, depois de havê-la invocado no começo do
dístico:
Juventude 
a jusante a maré entrega tudo

maravilha do vento soprando sobre a maravilha
de estar vivo e capaz de sentir
maravilhas no vento 
amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rastro
maravilha de estar ensimesmado
(a maravilha: vivo!),
18

Asas da Palavra
Sobre ser o único em primeira pessoa de toda a composição,
e um dos poucos no indicativo presente, esse verso parentético é
também o único que interrompe o distanciamento da voz,
externando, num registro exclamativo solitário, o motivo de admiração do sujeito: o sentimento de viver. Eis a “maravilha”, 9 que o
identifica à sua própria juventude e a torna louvável. Numa glosa ao
conhecido conceito de Paul Valéry, pode-se dizer que o “pequeno
poema lírico” de Mário Faustino é o “desenvolvimento” dessa exclamação10 . O sentimento de viver, estado intensivo de ânimo e origem da admiração que a motiva, constitui a tônica dos versos de
louvor da segunda estrofe, exaltando a vida como juventude e a juventude como vida. Mas “dança de uma atitude”11 naquela tônica, a
ação celebratória dramatiza essa exaltação do sentimento de viver
dentro dos limites da cena marinha traçada conjuntamente pelo
dístico e pelo verso isolado final, entre os quais a estrofe mediana se
localiza.
9
Maravilha (de mirabilia,
neutro plural de mirabilium
do verbo mirare): o que
causa assombro ou
provoca admiração.
10
11
12
De fato, o dístico (I), que começa invocando a juventude, e
do qual não há passagem sintático-discursiva para aquela, é o início
de uma enunciação sentenciosa, não-celebratória, que se completa
com a da última estrofe (I), a que está oposta, formando ambas,
enquanto imagens contrárias do fluxo e do refluxo da maré, em correspondência simétrica, as partes complementares de um mesmo
símile da juventude enquanto ciclo temporal:
Juventude 
a jusante a maré entrega tudo


a montante a maré apaga tudo
13

O espaço marinho do louvor aberto entre esses extremos,
demarcados por duas locuções marítimo-fluviais, a jusante e a montante, indicando a posição altaneira de quem divisasse os dois movimentos contrários da mesma corrente líquida, é, como cena da celebração, um espaço metafórico. Muito embora se note a ausência, no
“fragmento” de metáforas tópicas, abundantes nos poemas anteriores de Mário Faustino12 , os versos sentenciosos, que sobrepõem a
imagem da maré ao estado juvenil, dão origem ao principal núcleo
associativo do poema, nele disseminado como elemento fonemáticosignificativo:
mar-av-ilha do vento soprando sobre a mar-av-ilha
................................................................................
a-mar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rastro

Tanto “maravilha” quanto amar são anagramas de mar, e o
mar é uma imagem obsessiva que passa das composições de O homem e sua hora às peças experimentais e aos “fragmentos”13 . Prolongado, por encontro eufônico num acidental adjetivo (amara ilha,
Asas da Palavra
“Le lyrisme est le
développement d’une
exclamation…”  “Le
genre de poésie qui
suppose la voix en action
 la voix directement
issue de ou provoquée par
les choses que l’on voit et
que l’on sent comme
presentes”. Paul Valéry, Tel
Quel I, p.179, Gallimard,
Paris, 1941.
“The symbolic act is the
dance an attitude”. Cf.
Kenethe Burke, op. cit. p. 9.
Entendemos a ação
celebratória como um tipo
de ato simbólico.
Bastaria referir, como
exemplo, as de Nam
Sybillam: “Lá onde um
velho corpo desfraldava /
As trêmulas imagens de
seus anos; / Onde imaturo
corpo condenava / Ao
canibal solar seus tenros
anos, ...”, p. 172. Veja-se,
ainda: “E dobram sonhos
na mal-estrelada / Memória
arfante donde alguém que
chamo / Para outros braços
cardeais me nega / Restos
de rosas entre lençóis de
olvido”... Ego de Mona
Kateudo, Sete sonetos de
amor e morte, O Homem e
sua hora, p. 176.
“Apago a vela, enfuno as
velas: planto / Um fruto
verde no futuro, e parto /
De escuna virgem
navegante, e canto / Um
mar de peixe e febre e
estirpe farto  ”, Viagem,
p. 123  “... E até no atol
do sexo triunfante / Do mar
e da salsugem da agonia /
Dormia um redentor ... ,
Agonistes ( O Homem e
sua hora), p. 174. “... Cruel
foi teu triunfo, torpe mar./
Celebrara-te tanto, te
adorava / Do fundo atroz à
superfície, altar / De seus
deuses solares  tanto
amava / Teu dorso
cavalgado de tortura! ...”,
Balada (em memória de
um poeta suicida), p. 116
 “... E do salão o
deslizar se ouvia / dos
carros na rodovia, como se
ouve / o mar  outro,
mais outro  sobre as
conchas atentas  “,
Ariazul p. 78  “... por
que temes o mar; por que
não temes / o carvão que
ele forma; por que temes
 ?”, Marginal Poema 19,
19
p. 84  “... No sabuloso
mar na salsa areia /
alimento não cresce /
cobras crescem / e nos
impõe silêncio o bramir
vero / do veado oceano...”,
Cavossonante escudo
nosso, p. 91  “... eu
lutando com eros / idem
idem com verbo / eu
lutando com mar, com
Circe e com / Migomesmo,
guerreiro atribulado,,,”2210-1956, p. 96  “... O
mar confrange  amor
confrange”, fragmento, p.
50  “... o mar sem remo
tolda os horizontes, ...
fragmento, 52 ”... O mar
recebe o rio. O rio/
faustosamente corre para o
mar / o rio-mar / um hino
apologético do mundo.
...”fragmento, p.55  “... e
experimenta-se a
voracidade / do mar, do
fundo / envenenado: ...
cala-se alguém que não
quis beber seu cálice, /
alguém que não quis
beber., / alguém que não
quis / o mar, em vão e
nada, o árduo mundo, / ...
As algas dançam / no mar
de vinho amargo...
“fragmento, p. 63.
14
15
“E marcho contra o vento,
sobre etéreos / Desertos
sem retorno..., Soneto
antigo, p. 126  “Oh
vento que meu cérebro
aleitaste / Tempo que meu
destino ruminaste...”, Ego
de Mona Kateudo, p. 176.
Também se trata de uma
imagem-símbolo, que
ocorre no poema título O
Homem e sua hora
(“...Quando o coche / da
noite detiveres, canção
minha, / Retorna a mim,
que passarei mil anos / A
contemplar-te, ouvir-te,
cogitar-te. ... Vênus fará de
teu marfim fecunda / Carne
que tomarei por fêmea,
carne / Feita de verbo, cara
carne, mãe / de Paphos,
filho nosso, que outra ilha /
Fundará, consagrada a tua
música, / Ilha sonora e
redolente...”, p. 188, no
experimental 22-10-1956
(“... e pelágicos deuses /
conspiram contra mim,
jogam-me em ilhas...”p.
95) e num fragmento ( “Ao
fundo a ilha, movediça e
torta / de nossa infância...
Ao fundo a ilha, semovente
e morta, / as ânsias
inocentes.”... p. 57)
20
amaro vento, amaro sopro), mais realçável pela leitura em vol alta,
essa imagem forma o primeiro elo de uma cadeia de associações por
semelhança. Assim, ao repetir-se “maravilha”, também se repetem
as imagens do mar, da ilha e do vento, elementos do cenário marítimo a ela associadas. A outra palavra privilegiada, “vento”, refrão
como a anterior, e metonímia do elemento aéreo e aligero da cena
marinha, também se conjuga ao mar, porém, segundo se verá adiante, enquanto imagem-símbolo do ímpeto amoroso, erótico, da juventude14 . Acrescente-se a esse primeiro elo  maré, maravilha,
amar a ilha, mar à vista da ilha15  aqueles derivados da transposição de significados mediante similitude sonora entre os significantes
(paronomásias), que integram, interligando os versos da segunda
estrofe, o mesmo ritmo ondulatório que começou no dístico, e teremos a segunda cadeia associativa. A proliferação da semelhança
paronomástica, próxima do trocadilho (capaz de sentir  recomposto  estar a postos  ser capaz  em paz sentir  eternidade  a terna idade  paz de sentinela), em convergência com
as rimas e aliterações, completa o espaço metafórico da ação
celebratória, que encena, em dois momentos, retomando o tempo e
a eternidade, já tematizados anteriormente pelo poeta, a dramática
identificação da juventude com o sentimento de viver.
O primeiro momento (3 a 18), que corresponde às quatro
primeiras entoações (II,III, IV,V), é o da expansão oceânica,
dionisíaca, da sensibilidade, arrebatada pelo próprio sentimento de
viver. A longa pausa que o separa do decassílabo heróico do dístico
(I), realça o lento andamento de 3 (15 sílabas), que, movendo-se na
esteira das assonâncias, aumenta em 6 (17 sílabas), num largo
maestoso, com apoio na repetição de amar, e sob o maior efeito de
retardamento rítmico introduzido pelas vírgulas, dividindo o verso
em quatro hemistíquios (amar a ilha / amar o vento / amar o sopro
/ o rasto), que finalizam por uma sílaba grave (rasto).
Na quarta entoação, em contraste com a anterior pelo
decassílabo com que se inicia, acelera-se o andamento, marcado por
três rimas emparelhadas e pontuado por vírgulas, dos três outros
decassílabos (9, 10 e 11) interligados, acompanhando a metamorfose do sentimento de viver em impulso amoroso, erótico (a imagem
do vento), envolvente e violento, que extasia o sujeito:
maravilha de estar ensimesmado
(a maravilha: vivo!),
tragado pelo vento, assinalado
nos pélagos do vento, recomposto
nos pósteros do tempo, assassinado
na pletora do vento 
Asas da Palavra
Já o hexassílabo final (na pletora do vento), em que arrefece
a aceleração, entrosa-se aos versos de menor medida de entoação
seguinte, octossilábicos, com tônicas na terceira e na oitava sílabas, e
hexassilábicos, com variações acentuais na quarta, terceira e sexta
sílabas, que assinalam o anti-clímax do arrebatamento, o sujeito pacificado retornando a si mesmo num estado de plenitude individual:
maravilha de ser capaz,
maravilha de estar a postos,
maravilha de em paz sentir
maravilhas no vento
e apascentar o vento,
encapelado vento 
As variações melódicas do andamento, em função das pausas
e variações acentuais dos versos, e de todo o regime iterativo da
composição, incluindo a esteira de assonâncias  as aliterações e as
rimas, mas sobretudo a repetição conjugada de “maravilha”e “vento”, principal fator de intensidade rítmica  unem as quatro distintas unidades de enunciação, com suas diferentes entoações, numa só
inflexão exultante, interrompida quando começa o intermezzo do
“fragmento”, dividindo-o em duas metades:
mar à vista da ilha,
eternidade à vista
do tempo 
o tempo: sempre o sopro
etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento,
do monstruoso vento 
No intermezzo  de 19 a 24  ingressa o tempo como agente
dramático, em concorrência com o “vento”, sua rima assoante no verso
10, e confrontado à eternidade, a que tende a exultação da vida, na
mesma cadência dos últimos versos da anterior entoação interrompida.
A eternidade, aí sugerida, é o hic et nunc da sensação, no espaço do presente instantâneo (mar à vista da ilha). Logo a imagem do tempo, associada à do “vento”, em 22, torna-se dominante, recebendo em 23 (13
sílabas) um registro de amplidão espacial, depois do que tem início o
segundo momento da ação celebratória e a segunda metade do “fragmento”, continuação do louvor ao sentimento de viver, à sua expansão
erótica, de novo metamorfoseada, mas sob diferente inflexão do mesmo ritmo:
e a terna idade amarga  juventude 
êxtase ao vivo, ergue-se o vento lívido,
vento salgado, paz de sentinela
maravilha à vista
de si mesma nas algas
do tumultuoso vento,
Asas da Palavra
21
16
17
Cf. Alfredo Bosi. O ser e o
tempo da poesia, p. 8,
Cultrix, São Paulo, 1983.
“...Sobre as nuvens /
Defronte mãos escrevem
numa estranha, /
Antiqüíssima língua estas
palavras/ Que afinal
compreendo: toda vida/ é
perfeita. E pungente, e
raro, e breve / É o tempo
que me dão para viver-me,
/ Achado e precioso. Mas
saúdo / Em mim a minha
paz final...”  Parte final
de A Reconstrução. Vide
Poesia completa / Poesia
traduzida, p. 107, Ed. Max
Limonad.
de seus restos na mágua
do tumulário tempo,
de seu pranto nas águas do m ar justo 
A conjunção inicial (e) marca um recomeço. Agora, porém,
saindo do êxtase preponderante na primeira metade, a par e passo da
exultação, e já aliviada a carga repetitiva do ritmo, rimas e aliterações
reduzidas ao mínimo (mágua/águas  tumultuoso/ tumulário), sem
mais o acompanhamento intensificador de “maravilha, a “curva melódica”16 da entoação de VIII, traçada pela cadência em diminuendo
de 25 a 32  versos de seis sílabas sucedendo os de doze e dez 
declina para o andamento vagaroso do adagio, enquanto, diante da
metamorfose tanática do ímpeto amoroso, a exultação da primeira
metade alia-se, dentro do contínuo rítmico da segunda estância, transportando a mesma tônica à inflexão lamentosa, elegíaca, deste segundo momento.
O “vento” como tempo, metamorfose tanática do impulso
amoroso, recebe conotações sombrias (lívido, tumulário),
reincorporando a metáfora do mar (salgado), e a juventude, “terna
idade amarga”, realçada no que tem de frágil, passageira e conflitiva
 oxímoro que é um calembour da eternidade  assimila o acidental adjetivo do verso 6 (amar, amaro). Mas embora a celebração seja
agora um rito lutuoso, o louvor à juventude e ao sentimento de viver, completamente identificados, não cessa. Em seu último ato, após
o decassílabo heróico (33) do final da unidade VIII, a celebração,
que encena o luto da juventude, sua imersão tanática no “mar justo”, repete de maneira modificada, em IX, a inflexão exultante de
IV, inclusive na disposição emparelhada das rimas:
maravilha de estar assinalado
pelo vento repleto
e pelo mar completo  juventude 
Mas aqui também se fecha a enunciação sentenciosa iniciada
no dístico, perfazendo-se, com o fim da celebração, o ciclo temporal
da juventude, antevisto de maneira impessoal e distanciada pelo sujeito lírico, a cavaleiro de sua própria idade juvenil, de que antecipou, após o momento de expansão, quando tudo entrega (a jusante
a maré entrega tudo), o momento de dissipação, de ruína e de morte,
quando
a montante a maré apaga tudo

Vê-se, então, que o símile da juventude, que entrosou as duas
imagens contrárias do fluxo e do refluxo, é uma concordia discors,
uma concordância de opostos, do mesmo modo que o é o sentimento de viver em suas metamorfoses, cujo contraste, entre o arrebatamento dionisíaco, amoroso, e a morte, como entre exultação e lamento, o ritmo ondulatório mantém na celebração que o louva. E
22
Asas da Palavra
assim a ação celebratória, que une as duas inflexões, a exultante do
elogio e a lamentosa da elegia, num só louvor à juventude e ao sentimento de viver, equivale a um sim dado à vida contraditória e
efêmera. Nessa afirmação trágica está o sentido intencional do “fragmento”  o seu dizer oblíquo  explicitado do ritmo cantante em
que se articulou, aceitando e consagrando o amor fati que impregna, desde o começo, a lírica de Mário Faustino17 .
Asas da Palavra
17
“...Sobre as nuvens /
Defronte mãos escrevem
numa estranha, /
Antiqüíssima língua estas
palavras/ Que afinal
compreendo: toda vida/ é
perfeita. E pungente, e
raro, e breve / É o tempo
que me dão para viver-me,
/ Achado e precioso. Mas
saúdo / Em mim a minha
paz final...”  Parte final
de A Reconstrução. Vide
Poesia completa / Poesia
traduzida, p. 107, Ed. Max
Limonad.
23
24
Asas da Palavra
QUEM FOI E O QUE FEZ
MÁRIO FAUSTINO
1
(UM POETA E SEU MUNDO)
Albeniza de Carvalho e Chaves
Mestre em Teoria Literária, UFPa
1
Asas da Palavra
Introdução da obra Tradição
e modernidade em Mário
Faustino. Gráfica e ed. UFPA,
1986.
25
N
ovembro de 1962.
Na madrugada do dia 27, o Boeing 707 – PPVJB, da VARIG,
decolado do Galeão às 03:35’ que deveria chegar a Lima às 05:00 horas,
explodiu no ar causando a morte de todos os seus tripulantes e passageiros, num total de 97 pessoas.
As buscas logo promovidas por avião da Força Aérea Peruana
atestaram sua queda nos Andes, em Cerro de Las Cruces, entre
Otoctongo e Ciudad de Dios, a 32 quilômetros do sul de Lima, perto
das ruínas de Pachacamac. Nenhum sinal de vida no aparelho destroçado.
Entre seus passageiros, encontrava-se Mário Faustino, que se
dirigia ao exterior a fim de escrever, para o Jornal do Brasil, uma série de
reportagens sobre Cuba, México e Estados Unidos da América do Norte.
Quem era ele?
Um jovem poeta, crítico e jornalista, de 32 anos de idade, completados a 22 de outubro anterior, que já publicara, sete anos antes, seu
único livro de poemas  O Homem e sua hora (Livros de Portugal,
Rio,1955).
Nascido em Teresina (Piauí), em 1930, Mário Faustino dos Santos e Silva era um dos últimos da série de 20 filhos do casal Francisco
dos Santos e Silva e Celsa Veras e Silva, ele forte comerciante na capital
piauiense. Criado, porém, pelo mais velho dos irmãos e pela cunhada 
José Veras e Silva e Eurídice Mascarenhas Veras, dos quais era afilhado
de batismo, considerava-os como seus verdadeiros pais.
Todo o seu curso primário foi feito na cidade natal, em colégio
público  Escola Modelo “Artur Pedreira”, tendo como professora D.
Nicola Burlamaqui.
Muito cedo aprendeu a ler e a escrever. Familiares e amigos contam que gostava de brincar de escritor, tendo composto, entre 9 e 10
anos, um conto que a todos impressionou  No Reino da Morte 
história em que os personagens, após alcançarem esse reino, lá morriam.
Dominado, desde muito cedo e de forma quase obsessiva pela
26
Asas da Palavra
paixão da leitura, ficava agarrado aos livros até altas horas na noite. Aos
9 anos iniciou o estudo do inglês, língua de sua predileção, em “que viria
a escrever e falar impecavelmente, como um oxfordiano”, no dizer de
Haroldo Maranhão, consagrado jornalista e escritor paraense, grande
amigo de Mário Faustino.
Em 1940, mudou-se para Belém do Pará, onde cursou todo o
ginásio, os três primeiros anos no Colégio Nazaré, tradicional estabelecimento de ensino dirigido pelos Irmãos Maristas, e o último no Colégio Moderno, não menos tradicional mas de orientação leiga, e no qual,
mais tarde, veio a ser professor de línguas estrangeiras. No Colégio Estadual Paes de Carvalho fez Curso Clássico, terminado em 1948.
Já aos 16 anos iniciara o jornalismo militante, no matutino associado A Província do Pará, escrevendo crônicas sobre literatura e cinema, além
de traduzir e reescrever telegramas nacionais e estrangeiros.
Em 1949, transferiu-se para A Folha do Norte, cuja redação veio
a chefiar, remodelando inteiramente o conhecido diário paraense. Ali
trabalhou cerca de 7 anos, interrompidos por viagens. Desde 1948 colaborara com o Suplemento Literário do mesmo jornal, apresentando traduções de poetas franceses, espanhóis, ingleses e norte-americanos. Nesse
mesmo Suplemento publicara poemas, demonstrando, já aos 16 anos, a
profunda seriedade com que encarava a poesia, seriedade essa conservada ao longo de sua curta vida literária, rica de múltiplas atividades.
A primeira notícia que então se teve sobre a poesia de Mário
Faustino deve-se a Francisco Paulo do Nascimento Mendes, professor
e ensaísta paraense, titular de Literatura Portuguesa no Centro de Letras
e Artes da Universidade Federal do Pará, que em artigo intitulado – O
poeta e a rosa – comentou longa e compreensivamente os poemas publicados.
Ainda no ano de 1948, Mário Faustino, juntamente com Benedito Nunes e Haroldo Maranhão, dirigiu uma revista literária de vida
efêmera – Encontro – e participou da instalação, em Belém, da Associação Brasileira de Escritores.
Oficial do Exército pelo CPOR, ingressou, em 1949, na Faculdade de D ireito, freqüentando-a, acidentalmente, até o 3º ano. Em 1954,
chegou a matricular-se no 4º, não realizando, porém, qualquer trabalho
acadêmico. Pouco depois, abandonou a Faculdade, “ por falta de interesse” , conforme veio, mais tarde, a confessar.
Em 1951, viajou pelo Estado Unidos da América do N orte, onde
permaneceu dois anos, com bolsa de estudos para Língua e Literatura
I nglesas, conquistada em concurso internacional promovido pelo Institute
of International Education. Foram seus estudos realizados no Pomona
College, em Covina, na Califórnia. Submeteu-se, nessa oportunidade, a
uma espécie de estágio no Los Angeles Mirror e, a interesses jornalísticos,
Asas da Palavra
27
visitou vários órgãos de imprensa de São Francisco, Chicago e Nova
York.
Regressando a Belém, com a perspectiva de uma viagem à Europa, o poeta, que já escrevia e falava, com perfeição, francês e inglês além
de se expressar satisfatoriamente em espanhol e italiano, estudou, com
afinco, o alemão, em aula diárias, ministradas em inglês, por ser muito
precário o português do professor. Logo conseguiu desembaraçar-se bem
em língua alemã, a ponto de poder usá-la na Europa onde, em 1953,
integrando uma embaixada de acadêmicos de Direito, percorreu minuciosamente Portugal, visitando, a seguir, durante 11 meses, Espanha, França, Inglaterra, Alemanha, Dinamarca, Bélgica, Holanda, Áustria e Suíça.
Suas andanças levaram-no, ainda, às Américas, especialmente Cuba, México, República Dominicana, Venezuela, Chile, Argentina e Uruguai.
De volta da Europa, Mário Faustino desempenhou, durante dois
anos, o importante cargo de Chefe do Setor de Coordenação e Divulgação da Superintendência da Valorização Econômica da Amazônia
(SPVEA), hoje Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia
(SUDAM), ao tempo dirigida pelo historiador Artur César Ferreira Reis,
seu primeiro Superintendente. Foi no interesse dessas funções que fez, no
Rio de Janeiro, curso intensivo de Introdução à Administração Pública,
Organização e Métodos e de Relações Públicas na Fundação Getúlio
Vargas, para o qual veio, depois, a ser contratado como professor, o que o
levou a deixar Belém em 1956.
De 1956 a 1958, Mário Faustino foi, na Escola de Administração Pública, primeiramente professor-assistente, intérprete e tradutor
num curso especial de Planejamento Regional, e depois assistente da
cadeira de Sociologia e Filosofia Política e professor de inglês e francês.
Por esse tempo, prestou serviços ao Conselho Nacional de Economia e
ao Museu de Arte Moderna, como tradutor, intérprete e redator.
Foi essa uma época de intensa atividade intelectual na vida de
Mário Faustino. O poeta que, aos 25 anos, já publicara o livro O Homem
e sua hora, com a transferência para o Rio aumentou sua produtividade
literária no campo da poesia e da crítica, através do julgamento e interpretação de poetas nacionais e estrangeiros.
Dirigiu, durante dois anos, a página Poesia-Experiência, do Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, por ele iniciada, na qual, ao lado
de estudos críticos, aparecem seus próprios poemas, ao tempo também
publicados fora da página e no Correio da Manhã.
A página, pelos novos caminhos que abriu, despertou profundo
interesse, sacudindo o ambiente poético do momento.
Em fevereiro de 1959, ingressou Mário Faustino no corpo
redacional do Jornal do Brasil, galgando, três meses depois, em comissão,
28
Asas da Palavra
o cargo de confiança de Coordenador de Opiniões. Em dezembro do
mesmo ano, licenciou-se para voltar, novamente, aos Estado Unidos.
Lá permaneceu durante todo o ano de 1960, trabalhando no Departamento de Informações Públicas da ONU, em Nova York, onde preparava os Press Releases.
Voltou ao Rio em 1961, assumindo as funções de Diretor Adjunto do Centro de Informações da ONU no Brasil, nelas permanecendo até junho de 1962. No mês seguinte, retornou ao Jornal do Brasil já
como Editorialista e Editor Chefe da Tribuna da Imprensa, cargo de
que pediu demissão a 18 de julho, por incompatibilidade com a orientação redacional.
Nos meses seguintes, nenhuma função exerceu. Preparava-se
para uma nova viagem ao México, Cuba e Estados unidos, a fim de
escrever uma série de reportagens sobre a atualidade política internacional, para o Jornal do Brasil, de cujo superintendente, Sr. Nascimento
Brito, continuou amigo, apesar da ruptura com o matutino carioca.
Durante esse tempo, Mário Faustino ficou fazendo o que mais
desejava - lendo, escrevendo, ouvindo música e conversando com os
amigos.
Era propósito seu, declarado a Haroldo Maranhão e a Benedito
Nunes, seus grandes amigos, acumular recursos que lhe permitissem
desobrigar-se, pelo menos durante um ano, de encargos profissionais, a
fim de dedicar-se inteiramente à obra que planejara e se constituíra verdadeira razão de ser de sua vida.
A morte prematura não lhe permitiu realizar a obra tão sonhada; mas, a que Mário Faustino deixou é poesia alta e séria e, ao lado de
sua crítica, provavelmente permanecerá, marco que é de uma renovação em tão boa hora aparecida nas letras nacionais
Haroldo Maranhão, ao escrever sobre Mário Faustino, no Suplemento Literário d’O Estado de São Paulo (9 de julho de 1966), longo
artigo intitulado O poeta e sua vida, conta, a propósito da projetada última viagem do poeta ao exterior, passagem muito curiosa, que vai
reproduzida com as palavras do próprio articulista:
Asas da Palavra
Depois, veio a saber-se que muito vacilou em empreender essa
derradeira viagem. Várias vezes transferiu-a sem motivo aparente. E procedeu de forma estranhável, deixando com a mãe
adotiva, no momento de embarcar finalmente, uma carta contendo instruções minuciosas de como deveria proceder na sua
ausência e na eventualidade de alguma coisa acontecer-lhe.
Tantas viagens realizara, sem que tivesse tido tal cautela. Uma
coisa parece certa: assaltara o poeta a premonição da morte,
que tanto celebrou em seus versos e que constitui um dos temas
permanentes em sua obra. Singular episódio, verificado em sua
29
última viagem a Nova York, confirma isso certamente. Um
amigo emprestara-lhe seu apartamento naquela cidade e, uma
tarde, Mário Faustino abriu ao acaso o catálogo de telefones
com o intuito de localizar a lavanderia mais próxima. Seu
olhar colidiu em duas linhas: nome e direção de uma astróloga
irlandesa.
Como era espírito irrequieto, foi tomado pelo desejo de ouvir a
voz da irlandesa, fazer-lhe perguntas, trocarem idéias; e telefonou-lhe. Antes que pudesse explicar o acaso, intimou-a a outra que fosse ter com ela, incontinenti, para uma entrevista
absolutamente necessária, tomasse um táxi, ela o atenderia
logo, apesar de estarem vários clientes à espera. Levado por
pura curiosidade intelectual, e imaginando que se tratasse de
uma pobre senhora em dificuldades financeiras, não se escusou
Mário Faustino ao encontro. De fato, havia pessoas aguardando a palavra da frenóloga, como também se intitulava ela. E
não obstante narrasse o episódio de modo divertido, rindo ele
próprio da experiência excitante, deve ter ficado momentaneamente embaraçado: a astróloga, rápida e incisivamente,
reconstituiu-lhe coisas acontecidas, de maneira fulminante e
exata, revelando-lhe circunstâncias pessoais e muito íntimas,
parecendo desnecessário ressalvar que Mário Faustino, pelo seu
espírito vigilante e perspicaz, não poderia ser ludibriado assim
como alguém desavisadamente pudesse supor. Em seguida,
disse-lhe a irlandesa mais ou menos isto:
O senhor está próximo de uma encruzilhada decisiva de seu
destino. Poderá chegar às culminâncias da glória em sua pátria; ou um acontecimento cortará tudo de um golpe. Está no
seu arbítrio contornar esse acontecimento.
E encerrou a entrevista, recusando o pagamento oferecido, o
que o poeta levou à conta, naturalmente, de um truque
promocional.
Mas a viagem, por várias vezes inexplicavelmente adiada, realizou-se, afinal, a 27 de novembro de 1962. Partindo do Galeão e destinado a Los Angeles, o Boeing 707 - PPVJB da VARIG, escalaria em Lima,
Bogotá, Panamá e Cidade do México. Na última, Mário Faustino deveria desembarcar. Espatifado o avião em Cerro de Las Cruces, morreram as 97 pessoas que nele vinham. O corpo do poeta não foi identificado e, juntamente com outros despojos, irreconhecíveis todos, foi sepultado em mausoléu da capital peruana. Fim trágico, insuportável para
os amigos, mas, no dizer de um deles – Paulo Francis - “rápido, brilhante e total como a imaginação do poeta”.
30
Quando o jato em que viajava bateu na montanha “tudo se desintegrou, terno, sapato, obturações, o anel. O poeta, o crítico e
editorialista Mário Faustino morreu e não foi cadáver”. Assim se refe-
Asas da Palavra
riu à morte do artista o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues no
Capítulo LVIII de suas Memórias, publicado no Correio da Manhã de 5
de maio de 1967.
Ao apresentar, a 23 de setembro de 1956, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, a página Poesia-Experiência, por ele próprio concebida, orientada e dirigida, Mário Faustino assim se expressou:
Trata-se de uma tribuna e de uma oficina, onde os poetas novos falarão ao público e, em particular, a outros poetas novos e
onde, ao mesmo tempo, os jovens poetas e seus leitores procurarão reviver a boa poesia do passado, à medida que aprendem a
fazer e a reconhecer a boa poesia do presente e do futuro. O
lema de Poesia-Experiência (“Repetir para aprender, criar
para renovar”) – parece exprimir as intenções da página. Através desta esperamos que o público – comparecendo, em última
análise, como protagonista – possa ver, número após número,
em pleno processo de elaboração, uma parte significativa da
nova poesia brasileira. Aqueles que, como nós acreditam ser a
poesia uma arte, e ser o poeta não uma prima donna e sim
artesão honesto, competente músico e ser humano perigosamente vivo, procurando exprimir, da maneira mais bela, eficiente e
durável possível, o sentimento de seu tempo e de seu mundo –
esses encontrarão sempre abertas, para o debate e para a criação, as diversas seções de Poesia-Experiência, página que pretende ser veículo de comunicação do maior número possível dos
interessados nos problemas da poesia.
A página, publicada, com raras interrupções, ate 1° de novembro de 1958, como um suplemento dentro de outro, manteve-se fiel a seus
propósitos iniciais, vivificando a poesia do passado como lição para o
presente.
A biblioteca de Mário Faustino, dizem os amigos, constituía-se,
basicamente, de poetas, desde os clássicos grego-latinos Homero, Virgílio,
Propércio, aos mais recentes autores nacionais e estrangeiros. Lia, com
assiduidade, os Cancioneiros galaico-portugueses, sobretudo o
Romanceiro de Garret, o moderno Fernando Pesssoa, os espanhóis
Garcilaso, Gôngora, Lorca, os franceses Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud,
Apollinaire, e St.John Perse, pelo último dos quais nutria enorme admiração. Em língua inglesa, voltavam-se suas predileções para Shakespeare,
Keats, Browning, Yeats, Eliot, Dylan, Thomas e Pound, cujos Cantos e
ensaios críticos anotou da primeira à última linha; entre os alemães, principalmente para Hölderlin, Novalis, Stephan George e Rilke. Carlos
Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Manuel Bandeira, João Cabral
de Melo Neto e Jorge de Lima foram os brasileiros de sua leitura e
estudo mais constantes. Daí o seu grande cabedal para apreciar a arte
poética.
Manter viva a poesia do passado, sem tirar os olhos do presente,
Asas da Palavra
31
aproveitar para esta a experiência daquela, divulgar, enfim, os grandes
poetas de todos os tempos, eis o que tentou Mário Faustino através da
página Poesia-Experiência.
A agudeza do crítico evidenciou-se ao lançar, nessa página, produções de jovens poetas ainda desconhecidos, nos quais sentira verdadeira vocação para a arte poética, além de vontade e capacidade de renovação.
Assim, não foi Mário Faustino apenas o crítico de autores já
consagrados, quer estrangeiros, quer nacionais, o que seria bem mais
fácil, mas o descobridor de novos talentos, que a ele devem o seu aparecimento em público. Procurando agir sempre dentro de um critério da
mais estrita justiça, acabou com algumas reputações poéticas que lhe
pareceram infundadas, fazendo a revisão de outras mais ou menos fundamentadas. Valeu-lhe esse procedimento inimizades, não raro injustiça
e injúrias do próprio meio literário do Rio de Janeiro da época.
Sentiu-as o jornalista, o homem, de certo, mas o crítico não
mudou sua atitude, ditada por uma concepção muito séria da literatura,
fruto, ainda, de acurados estudos dessa arte superior – a arte poética –
por ele próprio exercida com total devoção.
Para Mário Faustino, o poeta deveria cumprir o tríplice preceito
horaciano – ensinar, deleitar e comover (docere, delectare, movere).
Crítico não historicista, Mário Faustino preocupou-se, sobretudo, em captar os aspectos essenciais do fenômeno poético, em todos os
tempos, independentemente de escolas. A esse propósito teórico, acrescentou a finalidade pedagógica de ensinar poesia, já que, a seu ver, nenhum meio de comunicação ensinava tão profundamente e de modo
tão inesquecível quanto a poesia (FAUSTINO, Mário. Para que poesia?
In: Cinco ensaios sobre poesia, de Mário Faustino, 1964, p. 20).
Publicando exemplares da melhor poesia do passado e do presente, e, ao mesmo tempo, divulgando poetas novos, cujas produções
se apresentavam renovadoras, Poesia-Experiência, através de artigos,
balanços reavaliadores e estudos da autoria do próprio organizador, “ajudou a impulsionar a poesia brasileira no momento de marasmo em que
ele caíra, após a edição de obras como Claro enigma (1950), de Carlos
Drummond de Andrade, Invenção de Orfeu (1952), de Jorge de Lima,
Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles e Poemas reunidos
(1954) de João Cabral de Melo Neto”. (NUNES, Benedito. Poesia de
Mário Faustino. 1966, p.4).
Mário Faustino, seguindo longa tradição que remonta à antigüidade clássica (basta lembrar Horácio) e continuada, mais recentemente,
com Baudelaire, Mallarmé, Rimbaud, Pound e Eliot, para só citar al32
Asas da Palavra
guns dos mais importantes, alternou à sua experiência criadora de poeta
à reflexiva de crítico. Por isso, toda a sua atividade intelectual, desde o
livro O homem e sua hora, foi dedicada ao conhecimento e à elaboração da
poesia. Não apenas pregou esse procedimento, mas viveu-o até o fim da
vida, fazendo de sua poesia uma autêntica praxis.
Sua teoria poética, deixou-a sintetizada, sobretudo, nos três ensaios – Para que poesia?, O poeta e seu mundo e Que é poesia? – escritos
em forma dialogada, publicados primeiramente na página Poesia-Experiência e, após a morte do autor, reunidos em livro – Cinco ensaios
sobre poesia de Mário Faustino com a seguinte nota explicativa:
Dois poetas trabalham na oficina que compartilham. Nas horas de
trégua, quando guardam fatigados o silêncio, discutem seu ofício. Não pretendem dizer-se novidades, nem um ao outro expor-se à admiração; querem somente esclarecer, fixar e trocar experiências.
Daí o nome de Diálogos de oficina, pelo qual comumente é conhecida essa obra, verdadeira profissão de fé poética do autor, dos quais
farei aqui uma síntese.
O primeiro diálogo é todo o desenvolvimento ou a glosa da
pergunta: Afinal de que serve a poesia? – feita por um dos poetas e à qual o
outro responde fazendo, à maneira socrática, com que o próprio
interlocutor vá encontrando a resposta. Esta, em síntese, atribui à poesia a tríplice missão de docere, movere et delectare, presa a conceito horaciano,
mas já vista em ângulo moderno, pois essa tríplice ação se exerce, não
apenas sobre o leitor, mas sobre o próprio artista, que se organiza através de sua obra.
Ao lado dessa função pedagógica, há uma outra - a função
catártica, purificadora – também duplamente exercida sobre o leitor e
sobre o autor: “Enquanto o poeta purga e melhora o leitor ou ouvinte,
fazendo-o ‘mudar de vida’ purga também e também melhora a si mesmo, mudando continuadamente de vida, até, se possível, fixar-se em
formas definitivas de realização. Na poesia encontra o poeta, quando
os deuses estão de seu lado, a sua unidade existencial”. (FAUSTINO,
Mário.op.cit, p.21).
O diálogo destaca, ainda, a utilidade social da poesia, encarada
sob dois aspectos: o ativo e o passivo, o segundo dos quais dá testemunho da sociedade ao interpretá-la e registrar as diferentes fases, quer
espacias, quer temporais, de sua evolução, tornando-se, assim, um documento vivo de certo povo em época e momento determinados. Como
documento humano, é insuperável e isso basta justificar a sua existência
perante a sociedade, “sem esquecer aquela sua outra utilidade como que
ontológica: a simples beleza, a mera consciência da dignidade da espécie que um poema automaticamente comunica aos homens “(id. ibid.,
p. 25).
Asas da Palavra
33
Graças a essa utilidade social, a poesia age sobre um povo, não
individualmente e de maneira catártica, mas semelhante a um comício, um
discurso, um editorial, levando-o a tomar consciência de si mesmo. É o seu
aspecto ativo, que pode ser bem compreendido quando se atenta para a importância d’ Os Lusíadas para a nacionalidade portuguesa, ou da Ilíada e da
Odisséia na formação de uma consciência helênica, capaz de unificar os fragmentados povos da Grécia antiga.
Finalmente, o julgamento de um poema só pode ser feito segundo o diálogo, sob nível estético, sem qualquer vinculação ao ético.
Se esteticamente bom, ele exerce um papel importantíssimo, ajudando
a manter elevada a expressividade da língua, com o que presta um grande serviço à coletividade; caso contrário, se degrada a língua, provoca,
também, a decadência da sociedade que a fala.
Seguindo linha bem moderna, o poeta mostra no seu diálogo,
que não há mais lugar para a poesia “ingênua, embaladora, inofensiva,
que só serve de paliativo, enganando o povo que a lê, fazendo-o esquecer, por instante que seja, seus problemas, seus direitos, seus
deveres”,(id.ibid., p.34) como um outro “ópio do povo”.
O segundo diálogo - O poeta e seu mundo - responde a duas perguntas básicas: “Que posição deve assumir o poeta contemporâneo diante dos problemas de sua época?” e “Qual o seu papel perante a sociedade em que vive?” - questões complexas, de raízes profundas, para
esclarecimento das quais surge uma nova: “Que vem a ser um poeta?”.
E logo uma resposta breve: “um ser humano como os outros”, mas
dotado de certa capacidade de percepção e de expressão, ambas verbais,
que “o tornam especialmente apto para harmonizar - intrinsecamente e
em relação ao outro – os dois universos: um tangível - natureza e sociedade – e outro intangível - o das palavras em todos os seus aspectos de
som, idéia e imagem. O poeta seria, portanto, aquele homem que, (sic)
capaz de receber os fenômenos naturais e sociais de modo especialmente sintético, e também capaz de exprimir em palavras organicamente relacionadas, essa visão totalizadora de um mundo e de uma época”.
(FAUSTINO, Mário. O poeta e seu mundo. In Cinco... p.35-36).
Antes da resposta às duas perguntas, há toda uma explanação
sobre as condições necessárias a um bom poeta que acima de tudo, deve
procurar aperfeiçoar a sua percepção do mundo todo, do universo, natural, social e individual. Seu papel é o de traço-de-união entre três elementos permanentemente agônicos: ele próprio, o universo (natural e
social) e as palavras. Ao poeta cabe perceber o universo não apenas pelo
sentimento, mas através da reflexão, do raciocínio, porque a poesia não
é somente música e imagem, é, também, pensamento.
34
Poudiano, Mário Faustino não poderia esquecer a tríade do artista norte-americano: melopéia, fanopéia e logopéia, que constituem a
estrutura do tecido poético, hoje qualificada de “fanologomelódica da qual
depende o valor de um poema aquilatado mediante a eficácia de sua
Asas da Palavra
linguagem”(NUNES, Benedito. Introdução .In: FAUSTINO, Mário.
Poesia-Experiência. 1977, p. 14).
O verdadeiro poeta critica o universo e a sociedade porque os
ama, e sobre eles procura agir, experimentando melhorá-los. Daí se interessar, ativamente, pela filosofia, ciências e política de sua época, das quais
nos dá um retrato dinâmico, através da própria obra.
O universo, em todos os seus aspectos, natural, social e individual, pode se constituir objeto, não apenas da percepção poética, mas,
também, da expressão poética. Não há objetos, nem palavras, nem expressões impróprias à poesia, porque esta “é um pássaro versátil e bem
pouco snob, capaz de fazer seu ninho em qualquer canto” (FAUSTINO
, Mário. op. cit., p 41).
Para Mário Faustino, a percepção poética deverá ser
“omninclusiva” e “omninexclusiva” (neologismos do crítico”), isto é, o
poeta deve ver a coisa integrada no universo, através de múltiplas relações de semelhança e dessemelhança e, ao mesmo tempo, individualizada de modo extremamente objetivo, independente, o máximo possível,
da percepção por categoria. Os dois aspectos se interpenetram, completando-se.
É importante, para ele, ver a coisa de modo inteiramente original e novo, como se nunca a tivesse visto ou ouvido, e, ao mesmo tempo, carregada de toda a experiência anterior, não só sua própria, como
de todos os homens. Isto resultaria em uma percepção simultaneamente horizontal: a coisa no momento, agora, como novidade, considerada
em abstrato; e vertical: a coisa em sua história, não só na sua própria
ancestralidade, mas, ainda, na história do conhecimento que dela têm
tido os homens, poetas, ou não. É a questão sincronia e diacronia, termos que o autor não emprega.
Relacionam-se, de maneira íntima, o processo perceptivoexpressional da poesia e o processo criador da própria linguagem. Adequados os meios à matéria tratada, ajustada a dicção aos padrões próprios da poesia, ter-se-á o poema perfeito, cuja eficácia “está na razão direta de seu perfeito funcionamento, sem desgaste ou perda de
significado”(NUNES, Benedito. op. cit., p.14)
Se Shelley, na sua Defesa da poesia, considerou o poeta como legislador e profeta, Mário Faustino, comungando de opinião semelhante, julga-o, ainda mais, cientista, filósofo, juiz e líder, mas, acima de tudo,
obrigado a ser “um bom poeta”. A esse primeiro mandamento, outros
são impostos:
a - ter uma visão de conjunto das coisas e das situações, munindo-se,
para tanto, de conhecimentos filosóficos, sociais, políticos, noções de
estética, intimidade com a prosa e com as outras artes, saber o que se
passa no mundo exterior, ter autoconhecimento e conseqüente auto
crítica;
Asas da Palavra
35
b - perceber a mutabilidade das coisas e ser capaz de raciocinar “em
projeção”, atentando para a transformação das situações atuais em
situações futuras;
c - provocar uma impressão de eternidade, própria da poesia verdadeira
(seu caráter profético ou de vidente);
d - retratar-se a si próprio, com fidelidade, de forma a fazer de sua poesia um documento humano fidedigno;
e - expressar, também com igual fidelidade, sua época, seu povo e sua
terra;
f - agir sobre sua época através de uma poesia realmente participante,
crítica e transformadora do mundo; e
g - contribuir para o progresso de sua língua, dando-lhe mais flexibilidade e exatidão, ampliando-lhe, assim, a eficiência.
Herdeiro de experiências ancestrais, quer no sentido moral quer
no estético, modificando-as de acordo com a própria concepção artística,
o poeta adquirirá sua experiência pessoal, sob certos aspectos dotada de
originalidade, capaz de levá-lo a promover a transformação do mundo,
um dos principais deveres de qualquer artista. Assim procedendo, colocar-se-á “não à margem, mas no centro móvel da corrente dos tempos”
(FAUSTINO , Mário. op. cit., p.54) .
Se assumir essa posição, o poeta deverá levar-nos, a “cosmos
incessantemente renovados” (BACHELARD, Gaston. La Poétique de
la Réverie. 1968, p.21), lembro eu, agora, associando o pensamento do
poeta-crítico ao do filósofo-poeta que foi Gaston Bachelard.
O terceiro e último diálogo - Que é poesia? Adverte, de início, que
nenhum dos interlocutores pretende dar sobre isso um conceito definitivo, procurando, apenas, estabelecer o que representa, para eles, a Poesia, encarada, não no seu conceito vulgar e sim como arte poética, antes
de tudo “uma maneira de ser da literatura, ou seja, da arte da palavra, da
arte de exprimir percepções através de palavras, organizando estas em
padrões lógicos, musicais e visuais” (FAUSTINO, Mário. Que é poesia? In
:- Cinco. . . 1964, p.56)”
Mostra-se Mário Faustino, mais uma vez, francamente poundiano
nessa concepção.
Ponto destacável do diálogo é a distinção entre prosa e poesia,
comumente formal e quantitativa. Formal, porque referente apenas aos
dados concretos que têm distinguido uma coisa da outra: aspecto exterior, gráfico, da página de prosa e do poema, variações rítmicas, etc.
Quantitativo, porque todas as distinções formais até hoje apontadas têm
servido apenas para mostrar a poesia como possuidora de um ritmo
mais acentuado do que o da prosa, de uma linguagem mais concentrada
do que a desta e de um metro mais preciso e mais fácil de identificar.
36
Tais distinções, na verdade, limitam-se a separar prosa e verso,
quando o interessante é colocar em contraste duas linguagens, dois
Asas da Palavra
modos de expressão ou os dois extremos de uma só modalidade de
expressão – a literatura, a arte verbal. É nesse nível que prosaico e poético
se distinguem com suficiente nitidez, embora permaneça difícil decidir
para sempre, e com exatidão, se determinada obra literária se encontra
dentro dos limites do prosaico ou nas fronteiras do poético.
Prosa e poesia distinguem-se apenas no campo formal, porque
ao nível material, essencial, sempre o prosaico é encontrado na poesia e
o poético na prosa. Por isso deve-se distinguir qualitativamente o prosaico e o poético, sem emprestar ao primeiro qualquer intenção pejorativa.
Prosaico é “o arranjo de palavras em padrões (cuja forma gráfica e cujo ritmo, mais ou menos irregulares, não nos interessam ainda),
que analisam, descrevem, ilustram, glosam, narram ou comentam o
objeto; é prosaico o discurso sobre o objeto ( ser, coisa, ou idéia)”. É
poético “o arranjo de palavras em padrões (cujo aspecto formal - auditivo ou visual – repito, ainda não entra em consideração) que sintetizam, suscitam, ressuscitam, apresentam, criam, recriam o objeto; é poético o canto, a celebração, a encantação, a nomeação do objeto”( id.
ibid. p.58- 59).
Noção muito importante a fixar: um trabalho não é melhor ou
pior por ser poético ou prosaico. Linguagem poética é, antes de tudo criação
ou recriação, enquanto a prosaica é mais comunicação, o que não implica
na inexistência de comunicação no poético, nem de recriação no prosaico. Na verdade, não há prosa pura nem poesia pura.
A genuína linguagem prosaica, comunicativa por excelência, não
pode dispensar um máximo de clareza, de exatidão e de
inconfundibilidade; a poética sempre poderá ser ambígua, mágica e misteriosa.
O poético não precisaria ser compreendido e sim percebido,
como um vaso, um edifício, uma dança, enquanto o prosaico perderia
todo o sentido se não fosse perfeitamente entendido, pois nele o artista
comenta o universo por meio de palavras cujo arranjo já está a sua disposição, tendo como fim capital comunicar. E o artista comenta o universo em benefício do ouvinte ou leitor. No poético, esse mesmo universo é recriado, graças às palavras-objetos, por ele doadas ao ouvinte ou
leitor.
Toda essa distinção está vinculada a discussões sobre a origem
das línguas, a respeito da qual estudiosos como Vico e Croce sugeriram
tenha sido a linguagem poética a original, já que a primeira nomeação
de um objeto, por parte de um sujeito que o desconhecia, só pode ter
sido feita através de sua recriação, de maneira verbal, por esse mesmo
sujeito. Conclusão: o poético sempre precede, cronologicamente, o prosaico.
Asas da Palavra
37
Em última análise, Poesia é toda a obra literária em que a nomeação ultrapassa em significativa proporção o relato dos objetos - “pouco
importando a profundidade, a importância, a ‘beleza’ desses objetos,
bem como pouco importando os padrões formais mais ou menos rítmicos, mais ou menos regulares adotados pelo autor”. Prosa - “toda obra
literária em que o relato dos objetos ultrapassa em proporção substancial a nomeação dos mesmos: seres, coisas, idéias” ( id , ibid. ,p. 67- 68).
Propondo uma distinção qualitativa entre prosa e poesia, Mário
Faustino acompanha o pensamento de Sartre em Qu’est-ce que la littérature?,
baseado nos dois usos diferentes das palavras e nas duas formas de
percepção do mundo - o poético e o prosaico.
O poeta compreendeu bem a responsabilidade de ser poeta e para
ela chamou a atenção de outros poetas como Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes,
Cecília Meireles, Jorge de Lima e Vinícius de Morais, em ensaio intitulado
Concretismo e poesia brasileira (FAUSTINO, Mário. Concretismo e poesia
brasileira. In: - Cinco. . .1964, p. 71- 83).
Para Mário Faustino, ser poeta não era apenas escrever poesia
de alto valor, como o fizeram os autores citados, mas, ainda, dedicar-se
à tarefa do didatismo crítico, teorizar sobre poesia e, no caso especifico
do Brasil, tentar uma solução eficiente para os inúmeros problemas da
arte poética.
Somente o grupo concretista de Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e Ferreira Gullar, saindo do nível do verso, tentara
novos caminhos poéticos, constituindo “a única forma de vanguarda
séria que há no Brasil de hoje”(id. ibid, p.80). Isso ficou bem provado
quando da abertura, em 1957, da exposição de arte concreta, no Ministério da Educação.
A experiência concretista, para Mário Faustino, salvaria a poesia
brasileira do discursivo- sentimental, promovendo autêntica renovação
da linguagem poética. Essa opinião foi, ao tempo, bastante válida.
No último ensaio da Coletânea 2, Mário Faustino, que considera
Stéphane Mallarmé o poeta mais poeta de todo um século, analisa-o tendo em vista as duas grandes tarefas por ele desempenhadas: a de criticar a
tradição poética através do próprio ato de fazer poemas, aproveitando o
vivo e desprezando o ultrapassado e morto, e a de criar poemas, senão
totalmente novos, pelo menos renovados, e constituindo-se, a um só tempo, documento de auto crítica existencial e fundamentos para uma reforma da linguagem poética.
O crítico chama atenção para o fato de Mallarmé, aparentando
respeitar a sintaxe tradicional, fazer dela o que bem entende, associando
38
Asas da Palavra
palavras à sua maneira, renovando a língua e criando objetos verbais.
Comentários mais ou menos sucintos dos poemas Igitur e Um
coup de dés, oferecidos apenas como pontos de referência e não com
intenção interpretativa, ilustram o que teoricamente fora exposto, evidenciando o sólido conhecimento que Mário Faustino possuía da obra
malarmeana. Justificam, também, o seu entusiasmo pelo poeta francês,
promotor de uma renovação da linguagem poética” poeta imenso, para
nós o mais importante e o menos incompleto (juntamente com Ezra
Pound) de todo um século de poesia em experiência” ( id. ibid. p. 107).
Se os Diálogos de oficina já nos dizem bastante sobre o pensamento
do poeta e crítico Mário Faustino, é, no entanto, na página Poesia-Experiência que melhor pode ser apreciada a sua atividade crítica, exercida com
largueza de vistas, excedendo as finalidades comuns do gênero, fugindo
“as barreiras do bom-mocismo enmiástico, do aceno cordial ou do
amadorismo alienado”(GRUNEWALD, José Lino. Mário Faustino: poeta e
crítico. 1962).
Na página aparece uma seção intitulada Poeta Novo, que seu
organizador considerava a mais importante porque destinada a divulgar,
após rigorosa seleção prévia, poemas de autores jovens capazes de concorrer para abrir novos caminhos à arte poética nacional.
As demais divisões da página são: O melhor em português, com a
publicação de clássicos de Portugal; È preciso conhecer, divulgando os poetas modernos estrangeiros através de traduções, algumas da autoria do
autor da página; Clássicos Vivos, apresentando textos, também traduzidos, de poetas antigos de épocas e nacionalidades diversas; Subsídios de
críticas, ou, Textos pretextos para discussão agrupando excertos de André
Gide, Gaëtan Picon, Sartre, Benedetto Croce, Pound, Eliot, Hebert Read,
Gertrude Stein e outros; e, ainda, uma antologia de trechos pequenos
em versos, exemplificadores da linguagem poética de alto nível, intitulada
Pedras de toque.
Em uma outra seção, por ele própria escrita - Fontes e correntes da
poesia contemporânea, Mário Faustino estudou, em ensaios de grande
acuidade crítica, a atividade poética de Edgar Allan Poe, Théofhile
Gauthier, Walt Whitman, Charles Baudelaire, Emily Dickinson, Arthur
Rimbaud, Gerard Manley Hopkins, Stephan George, William Butler
Yeats, Alfred Jarry, Tristan Coribièrie, Jules Laforgue e Ezra Pound. Nessa
mesma seção, Futurismo, Cubismo e Dadaísmo mereceram, também, cuidadosa apreciação.
Não ficou nisso o seu trabalho de divulgador da poesia universal. Traduziu textos teóricos de vários autores, antes pouco ou quase
nada divulgados em nosso país: Gaëtan Picon, Michel Debrun, Hebert
Read, Gertrude Stein, com os quais pretendia fornecer pretextos para
discussão da arte poética.
Asas da Palavra
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Sem perder de vista uma longa tradição, traduziu poetas antigos,
de épocas e nacionalidades diferentes, mostrando o que neles havia de
vivo e capaz de servir de lição ao presente. Se as traduções não eram de
sua autoria, o crítico, rigorosamente honesto, fazia constar o nome do
tradutor, o que prova o quanto se mantinha em dia com o que era feito
ou publicado, entre nós, a respeito de poesia.
Tradutor, Mário Faustino foi, na linha de Augusto e Haroldo de
Campos, mais um recriador, um intérprete, demonstrando sua superior
sensibilidade na captação da poesia em língua estrangeira.
Escapa às dimensões desta dissertação, a seus propósitos, também, um estudo detalhado de Mário Faustino tradutor de antigos ou
modernos. Nem é possível falar com pormenores, de sua atividade de
organizador de uma grande Antologia da Poesia Brasileira, antologia
crítica, de nossas primeiras manifestações poéticas à fase contemporânea.
Sobre esse último trabalho, do qual o incumbira Afrânio Coutinho
e que deveria tomar- lhe pelo menos dois anos, assim falou em carta a
Benedito Nunes: “Farei a coisa mais bem feita e séria e viva e útil e
provocante de minha vida. Não respeitarei convenção nenhuma, a não
ser ajudar e interessar o leitor, e fazer absoluta justiça aos poetas” (Carta
procedente do Rio de Janeiro, 16.10.57).
Dessa futura antologia, foram encontrados o pleno geral e mais
uma seleção, bastante numerosa, de poemas de José de Anchieta,
Gregório de Matos, Manuel Botelho de Oliveira, Bento Teixeira Pinto,
Bernado Vieira Ravasco, Euzébio de Matos e Sebastião da Rocha Pita.
No campo específico da literatura brasileira, procedeu a uma
cuidadosa revisão da poesia de Jorge Lima, apresentada ao longo de
sete ensaios intitulados Revendo Jorge de Lima, e apreciou sob o título
geral de Evolução da poesia brasileira, poetas do passado como Anchieta,
Bento Teixeira, Gregório de Matos, Botelho de Oliveira, Caldas Barbosa, Tomás Antônio Gonzaga, Cláudio Manuel da Costa, Silva Alvarenga,
Souza Caldas, Basílio da Gama, de todos apresentando excertos das
obras.
Em outra seção - Poesia em dia - foram apresentados trechos
de poetas contemporâneos como: Carlos Diegues, Jamir Firmino Pinto,
José Paulo Moreira da Fonseca, Paulo Mendes Campos, Ruy Costa Duarte
e Américo Facó.
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Assim, como muito bem salienta Benedito Nunes, em PoesiaExperiência Mário Faustino destacou a continuidade entre o tradicional
e o novo, colocando-os, lado a lado, para, segundo aquele crítico, obter
a convergência estética de certos padrões criativos nos quais pudesse
assentar uma renovação da linguagem poética (NUNES,
Benedito.op.cit.p.10)
Asas da Palavra
Como as duas atividades mostram mais uma faceta do jovem
poeta e crítico, não poderia deixar de mencioná-las.
A crítica de Mário Faustino, que o ensaísta e professor paraense
ressalta como “a primeira de caráter instrumental e didático entre nós”,
é fruto imediato de sua superior atividade poética.
Sentindo o sortilégio da poesia, “transformava-se tranqüilamente
num ser poético integral” (AYALA, Walmir.23/05/ 64,5/jul./ 64), conforme confessa em carta a um de seus amigos: “Aliás, sinto-me cada
vez mais poeta e cada vez menos crítico. E poeta, por oposição ao crítico, é aquele que Aceita tudo, a beleza e o pavor” (RILKE - Carta de Mário
Faustino, de 21.03.60).
Quando em setembro de 1957, a página Poesia-Experiência completou um ano, Mário Faustino fez uma espécie de relatório, de tomada
de posição, de balanço, de autocrítica, enfim, das atividades nela desenvolvidas. Comentando suas diferentes seções, afirmou ser de todas elas
a mais importante a intitulada O poeta novo, verdadeiro campo de experiência, o verdadeiro laboratório (atelier livre ) da página.
A respeito desta seção, “alguém de muita responsabilidade afirmara ao poeta que, em apenas um ano, graças a ela muito se elevara o
nível da poesia inédita em livro no Brasil”.
Alguns dos poetas nela apresentados, embora já houvessem
publicado um ou dois livros, declararam, por sua vez, que haviam mudado consideravelmente depois da participação ativa na página.
José Lino Grunewald, um dos mais ativos colaboradores do
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil, atuante membro do movimento concretista, publicou seu primeiro poema (O Albatroz) no primeiro número de Poesia-Experiência e, como ele, vários outros, nela
estreantes, passaram a colaborar normalmente no mesmo Suplemento.
Ainda nesse número de autocrítica, Mário Faustino repete um
pensamento de Confúcio, publicado no primeiro numero da página:
“Se um homem sabe manter vivo o que é velho e reconhecer o que é
novo, poderá um dia ensinar”.
As palavras do sábio chinês aplicam-se, perfeitamente ao
organizador da página Poesia- Experiência, que de sua arte soube fazer,
mantendo vivo o velho e reconhecendo o novo, uma completa docência.
Na mesma página de balanço-crítico, o poeta, cuja honestidade
intelectual já ressaltei, esclarece sobre sua atividade de tradutor:
Traduzir um poema ou um trecho de um poema, de não im-
Asas da Palavra
41
porta qual poeta, não quer dizer que conheçamos (ou queiramos dar a entender que conhecemos) a obra inteira desse poeta.
Muitas vezes extraímos poemas e trechos de poemas de antologias e de textos críticos. Por outro lado, só traduzimos diretamente do original os poemas em espanhol, francês, inglês, italiano e alemão e algumas vezes com o auxílio de outras traduções em outras línguas. Os textos em latim traduzimos sempre
recorrendo, ao mesmo tempo, ao original e a outras traduções.
Os textos em grego, - língua da qual sabemos pouquíssimo,
quase nada - traduzimos sempre, exclusivamente, com o auxílio de outras traduções. Publicamos, às vezes, o original grego
em caracteres latinos, precariamente, apenas a título de ilustração. Estes esclarecimentos têm como fim a destruição de mitos
de que talvez sejamos em parte culpados - por descuido ou seja
lá que for.
Prestando informações sobre a seção Pedras de toque, declara ser
a expressão traduzida de touchstone, usada por Mattew Arnold, e acrescenta:
Para nós essas ‘pedras de toque’ - que a muitos hão de parecer
resquícios ‘parnasianos’ de indevido amor à unidade ‘verso’ são muito importantes: definem nosso gosto, contribuem para
a formação de um novo gosto entre nossos leitores mais jovens,
servem de termos de comparação para o julgamento de outros
poemas, estabelecem performance standards, i.é, padrões de realização e formam ao mesmo tempo, verdadeira antologia de
fragmentos excelentes, a nosso ver, da poesia universal. Há,
por outro lado, poetas que só subsistem por um ou alguns versos. Seria trair nossa posição estética publicar de qualquer deles um poema inteiro. A pedra de toque é, nesse caso, uma
solução, uma opinião, uma atitude, mais o direito de lutar
ferozmente para colocar em ação social esse gosto, essa opinião,
essa atitude.
Para Mário Faustino, a arte foi longa e a vida foi breve. Melancolicamente, o poeta chegou a perguntar “Que será da minha velhice?
A esperança é que os amados dos deuses morrem cedo: que me amem
os deuses (duvido muito)”( Carta – 21/03/60).
Amaram- no, sim. Mário morreu cedo, aos 32 anos de idade.
•••
A morte prematura não o impediu de desenvolver um tema único,
confundido com a sua própria natureza e o seu entendimento pessoal
das coisas humanas, o que, segundo Carlos Drummond de Andrade, é
preocupação do verdadeiro poeta.
Pelo tratamento dado a esse tema, oferece-nos o poeta uma visão
42
Asas da Palavra
do mundo, resultado de uma luta constante com o universo, transformada na mais vã das lutas – a luta com as palavras, verdadeiro desafio que,
mesmo acabando na derrota do artista, é “sempre de certo modo uma
vitória” (FAUSTINO, Mário. op. cit., p.22). Se um sereno pacto final se
estabelecer entre os dois mundos – exterior e interior – reconcilia-se o
cosmos, graças ao logos poético.
O tema único sofre um sem-número de variações. Exposto de
diferentes maneiras, desdobrando- se, parece diverso, múltiplo. Esse
desdobramento de uma mesma realidade implica na criação de um
mundo rico de múltiplas facetas, universo verbalizado, em que a palavra
é soberana única. Matéria prima, é através dela, do ato cosmogônico de escrever que se verifica “a passagem da desordem à ordem, da treva à luz, do
caos ao cosmos” (SANTANA, Afonso Romano. Drummond, o guache no
tempo. 1972, p. 212) .
Graças a uma linguagem poética vivificada e de alto nível,
Mário Faustino desvenda-nos sua cosmovisão, através do tema único
Vida-Amor-Morte, a que se acham profundamente interligados outros,
dele simples variações: Sexo-Carne-Espírito, Pureza-Impureza, Salvação-Perdição, Homem-Deus ou Humano-Divino.
O tema, aqui considerado, não é sinônimo de assunto, e sim de
obsessão constante que leva um autor a se fixar em torno de determinada realidade expressiva. É o tema no sentido bachelardiano, a que, de
certa forma, se filiam os postulados ulteriores de Charles Mauron, JeanPaul Weber, Jean Rousset e Jean-Pierre Richard, o último dos quais
considera tema “um princípio concreto de organização, um esquema
ou um objeto fixos, em torno do qual tenderia a se constituir e a se
desdobrar um mundo”(RICHARD, Jean- Pierre. L’Univers imaginaire de
Mallarmé. 1961, p 24)
Em Mário Faustino, o tema eterno e obsessivo Vida-Amor-Morte
abrange os três elementos confundidos de tal modo que é quase impossível considerá-los isoladamente. Na realidade, constituem a experiência
interna do poeta, depois valorizada sob revestimento verbal, mundo-íntimo que se torna palavra e só assim comunicável. A Vida é Vida em toda
a sua plenitude, física, moral e intelectual e encontra no Amor a sua maior
forma de realização. Ambos têm na Morte a síntese final, porque ela é
Vida e Amor também.
Esse tema, explorado pela atividade criadora do poietés se constitui um dos melhores elementos para apreender sua visão do mundo,
baseada toda ela nessa relação triádica, em que o Amor, como Eros
universal, é força criadora que rege o destino das coisas e dos homens,
transformando- se na Morte, nova forma de Vida.
Por sua vez, a linguagem, a única substancia que, no mundo de
Mário Faustino”se manifesta através das coisas reduzidas à condição de
metáforas” (NUNES, Benedito. Invenção, Revista de Arte de Vanguarda,
jun.1963), confunde- se com a Vida, como se evidencia no poema Vida
toda linguagem, em que os versos finais identificam Vida e Linguagem ao
Asas da Palavra
43
perfeito e ao eterno
Vida toda linguagem
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os vocábulos mortos
com que o homem jovem, nos terraços do inverno, contra a chuva,
tenta fazê-la eterna - como se lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
língua
eterna.
Vivendo uma vida toda linguagem, todos sabem conjugar três
verbos - amar, fazer, destruir simples variações da trindade temática básica
que assume, na poesia de Mário Faustino, um caráter realmente obsessivo. O artista, ao elaborar sua obra, promove a divinização do verbo e o
seu mundo é para nós delineado pela linguagem, totalizado em forma e
estrutura.
Sexo-Carne-Espírito, outra relação triádica, constantemente
invocada, não se desliga da anterior. O Sexo, encarado como princípio de
vida, liga-se ao Amor; a Carne associada ao Espírito, vive em constante
busca de libertação. A esses elementos vão, por sua vez, unir-se, intimamente, mais outros, os temas dualísticos da Pureza-Impureza e PerdiçãoSalvação. E onde eles se acham comprometidos, nada mais natural do que
a procura de uma outra relação dualística – Homem-Deus ou Humano-Divino, coroamento de todo o processo metafórico, já que em Deus tudo se
resume, na medida em que é Vida-Amor-Morte e Ressurreição, triunfo total
do espírito sobre a matéria.
Implicado com esses temas, importante também, está o do Tempo, encarado ora como eternidade, ora como momento fugaz, passagem, mistério que angustia e deixa perplexo o artista. E esse tempo é
tempo no conceito heraclitiano, é a durée bergsoniana. Paradoxalmente
efêmero e eterno, ilusão e realidade, é tempo devorador e escatológico,
contra ele nada valendo, nem mesmo os versos do poeta (“verbos,
dardos de falso eterno”), pois seu domínio se estende até “o morto que
enterra os próprios mortos”(Sinto que o mês presente me assassina).
Essa preocupação com o Tempo evidencia-se no próprio título
do único livro publicado em vida do poeta - O homem e a sua hora - título
também do poema que encerra a obra então editada.
Todos esses temas, entrelaçados, confundidos e unificados, têm um
elemento comum a ligá-los – a noção de vida agônica, de luta que não finda e
rege o Amor, a Morte, o Sexo, a Carne, o Espírito, a Pureza, a Impureza,
Deus e o Homem, enfim, tudo quanto, no mundo é capaz de gerar a angústia existencial, provocar perguntas, esperar respostas nem sempre encontradas. Nenhuma vitória completa, nem total derrota – luta do homem com o
44
Asas da Palavra
mundo e do homem com o homem, luta do poeta com o cosmos e sua luta,
maior ainda, com as palavras.
Quando o escritor tenta transformar qualquer experiência ou
ilusão em linguagem, sem dúvida o faz, não para dizer alguma coisa,
mas para se dizer, para transformar-se, ele próprio, em linguagem. Fadado, como o Amante, a uma penosa agonia, resultante desse trabalho, o
poeta, no caso Mário Faustino, confunde o caminho da salvação com o
da perdição e, paradoxalmente, é por este levado àquele. “E é dos elementos impuros da existência – do atol do sexo triunfante ou da salsugem
da agonia, que a pureza se desprende” (NUNES, Benedito.op.cit.p.6).
Tal como na prosa da vida, amar, fazer, destruir são versos conjugados ao longo da poesia de Mário Faustino. Se o poeta, entrelaçado à
figura do Amante e do Herói, chega a triunfar claro e dórico, pouco
lhe adianta a vitória. Morre na luta, sem conseguir resolver o problema
Vida-Morte, Eterno- Efêmero, simbolizado no enigma dos eclipses do
sol, para o qual:
...não temos resposta. E a esfinge desdenha
Devorar-nos na paz que a transfigura
Após a fértil guerra pela inútil
Coroa longeviva ( Vigília)
Eneida, ao comentar o aparecimento de O homem e sua hora “livro de versos belíssimos”, refere-se a Mário Faustino “tão menino, tão
jovem e já tão seguro da arte poética, tão forte nos mistérios e nos
segredos do versejar” (ENEIDA. Diário de Notícias, nov.1955).
É realmente impressionante, e percebeu-o bem a cronista, a capacidade do poeta de estruturar os poemas, vários dos quais, creio não
exagerar, podem figurar como dos mais perfeitos da língua portuguesa.
Artífice e artista, Mário Faustino maneja o verso com superior
maestria, consciente do que realiza, tentando fazer da poesia, de acordo
com a sua própria concepção teórica “o mais eficaz, o mais perene, o
mais exato dos meios de comunicação” (FAUSTINO, Mário.op. cit.,
p.30). Para funcionar, é necessário que o poema “ viva em função do
tempo, do espaço e do homem”- contra ou a favor, nunca indiferente,
(id. ibid.p.31). Só assim poderá ser uma força respeitável em face das
demais forças sociais.
Impossível negar a atualidade dessas opiniões.
Ora, o próprio tema central e único da poesia de Mário Faustino
- Vida-Amor-Morte - e suas variantes, insere-se no contexto, não apenas
poético, mas social da atualidade, já que a famosa tríade literária encontra sua correspondente em outra tríade biológica – Nascer-Crescer-Morrer, inseparável da própria condição humana em todos os tempos. À
etapa intermediária – crescimento – corresponde o Amor, única forma
de perpetuação do ser humano. No poema Vida toda linguagem, há estes
Asas da Palavra
45
versos:
Vida toda linguagem –
como todos sabemos
conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir,
em que a relação triádica se enuncia em nova ordem, conservando, porém, o mesmo sentido.
Não é apenas nos poemas de O homem e sua hora, nem nos Esparsos
e Inéditos, reunidos na coletânea Poesia de Mário Faustino, publicação posterior à sua morte, que se encontram os temas referidos.
Preocupação constante do poeta, estão presentes nas produções de sua juventude, esparsas em jornais da época, e nas posteriores
aos livros editados, estas últimas conjunto a que ele próprio chamou
obra-em-progresso convertida em poema-projeto do qual, em carta cujo trecho vale a pena transcrever, assim fala:
com ele, poesia e vida minhas deverão seguir paralelas, até que
a morte nos separe, till death doeth part us; o que publicarei,
de tempos em tempos – digamos, segundo meu plano atual, de
cinco em cinco anos, serão porções “montadas” à maneira cinematográfica, eisensteiniana. Essa montagem, ao mesmo tempo
que dará ordem, harmonia, à minha poesia, organizará, de
certo modo, minha vida, uma refletindo, ou melhor, reflexando
a outra. A poesia será assim, um outro plano de vida que,
agindo sobre e reagindo a, (sic) minha vida, me possibilitará
– espero - o tipo de auto-realização a que aspiro”(Carta a
Benedito Nunes, procedente de Nova York, 17.
09.60).
A primeira tentativa de realização desse projeto aparece no poema O homem e sua hora, para mim ponto central da poesia de Mário
Faustino, sintetizando, de certa maneira, as produções que lhe são, quer
anteriores, quer posteriores.
Partindo do estudo desse poema básico, tentei uma apresentação ampla da poesia de Mário Faustino, nela destacando a importância
dos temas indicados como obsessivos, responsáveis por sua visão do
mundo.
Para atingir tal finalidade, o meio mais adequado pareceu-me a
análise e interpretação de certos poemas, isolados, ou de conjunto de
poemas, quando verificadas entre eles semelhanças temáticas ou formais, nexos de ligação e interdependências mais estreitas.
46
Asas da Palavra
Além desse propósito maior, foi intenção minha evidenciar a
sempre constante tradição renovada na poesia de Mário Faustino, de
cuja presença o poema central é excelente exemplo, confirmando o lema
da página Poesia-Experiência -“Repetir para aprender, criar para renovar”. Tentei ressaltar, ainda, a permanente conciliação dos postulados
teóricos do artista com a sua praxis poética.
É claro que, posteriormente, várias outras constatações foram
sendo feitas, como, por exemplo, a predileção de Mário Faustino pela
metáfora, seu gosto pela construção anafórica a insistência em valorizar
substantivos e verbos e em economizar no uso dos adjetivos, mostrando
com isso, uma contenção verbal das mais apuradas.
Este não é um trabalho polêmico e muito menos uma tese. É
uma leitura a que interessa, sobretudo, Mário Faustino poeta, renovador
da linguagem artística através da assimilação dos melhores modelos das
literaturas portuguesa e brasileira - Camões, Fernando Pessoa, Manuel
Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e Jorge Lima, para só citar
alguns - e da utilização, nunca servil, de autores estrangeiros, como
Mallarmé, Pound, Eliot ou Cummings, que o impressionaram de maneira positiva.
Como o poeta escolhido foi, também, um crítico cuidadoso e
atuante, sendo impossível nele dissociar totalmente os dois aspectos,
procurei fazer o estudo de sua poesia sem perder de vista as formulações do crítico. Teoria e praxis, na sua obra, são inseparáveis como as
duas faces de uma mesma moeda.
A maneira pessoal e criativa de Mário Faustino usar a linguagem
artística, ligada a uma tradição incessantemente renovada, vai aparecendo aos poucos das análises feitas, que mostram, pelo menos assim pretendi, a sua contribuição de jovem poeta para o aperfeiçoamento da
mais bela forma de expressão humana.
Escrita há já bastante tempo, a dissertação sofreu modificações
várias, decorrentes de leituras posteriores à sua defesa e da reformulação
de certos pontos de vista, alguns sugeridos pelos próprios examinadores. Basicamente, porém, permanece a intenção original, bem como a
divisão em três partes e uma Conclusão, precedidas desta Introdução e
completadas por uma parte antológica (Apêndices) com textos do autor, não constantes do livro Poesia de Mário Faustino, e textos sobre o
autor e sua obra, escritos por críticos e amigos seus, antes ou depois de
sua morte.
Resta uma palavra de esclarecimento sobre a abordagem dos
poemas, que não foi feita em uma só linha, variando de acordo com a
natureza deles, mas permanecendo principalmente estilística, sem desprezo de outros critérios, sempre que me pareceram mais adequados à
revelação dos textos.
Asas da Palavra
47
A leitura do livro (será que ele vai encontrar leitores?) dirá se
foram ou não alcançados os fins pretendidos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Rio de Janeiro, 23/05/1964; A Província do Pará, Belém, 5/ 06/1964.
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FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora. Rio de Janeiro, Livros de Portugal, 1955.
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Mário Faustino. Rio de Janeiro, edições GRD (Apresentação de Assis
Brasil, Coletânea 2), 1964.
———O poeta e seu mundo. In: Cinco... Rio de Janeiro. Ed. GRD
(Apresentação de Assis Brasil, Coletânea 2), 1964.
———Para que poesia? In: Cinco... Rio de Janeiro. Ed. GRD (Apresentação de Assis Brasil, Coletânea 2), 1964.
——— Que é poesia. In: Cinco... Rio de Janeiro. Ed. GRD (Apresentação de Assis Brasil, Coletânea 2), 1964.
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MARANHÃO, Haroldo. O Poeta e sua vida. O Estado de São Paulo. Suplemento Literário, 9/07/1966.
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Arte de Vanguarda, 2(3): 20/ 06/1963.
———-Poesia de Mário Faustino. Rio de Janeiro. Civilização brasileira
(Coleção Poesia Hoje, 4, Série Poetas Brasileiros), 1966.
48
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——— Introdução. In: Faustino, Mário.Poesia-Experiência. São Paulo,
Perspectiva (Coleção Debates, Literatura, 136), 1977.
RICHARD, Jean-Pierre.1961. L’ Univers imaginaire de Mallarmé. Paris. Aux.
Ed. du Seuil.
RODRIGUES, Nelson, Memórias de Nelson Rodrigues, cap. LVIII.
Correio da Manhã, 5/05/1967.
SANTANA, Afonso Romano.Drummond, o guache no tempo. Rio de Janeiro, Guanabara, Lia. Ed. 1972.
Asas da Palavra
49
50
Asas da Palavra
MÁRIO FAUSTINO
A IMPACIÊNCIA ÓRFICA
(DEPOIMENTO DE UM COMPANHEIRO DE GERAÇÃO)*
Haroldo de Campos
Crítico e Poeta
*
Asas da Palavra
Publicado originalmente
nos CADERNOS DE
TEREZINHA, em 1986.
Nº 1. Edição comemorativa.
51
1
A expressão “aeromorte”
recorda o poema “A Mário
Faustino, aeromorto”, de
Augusto de Campos,
publicado no nº. 3, junho
de 63, de Invenção;
meudepoimento de 73 está
reproduzido em Ivo
Barbieri, Oficina da
Palavra (Achiamé, R.
Janeiro, 1979).
C
erca de dez anos após a “aeromorte” de Mário Faustino, prestei
um depoimento a Mônica Rector e Roberto Pontual sobre o
nosso encontro - encontro de poetas: Mário e o grupo
“Noigrandes” de São Paulo – no momento marcante do lançamento
nacional da “poesia concreta” e da militância de Mário (e através dele,
nossa) no “suplemento “ cultural do Jornal do Brasil, em meados dos
anos 50. Disse então:
Mário Faustino, em todo o período em que participamos do
Suplemento, teve uma atuação ímpar a de Crítico de formação poundina,
seus trabalhos caracterizavam-se pelo agudo discernimento criativo e
pela dinâmica instigação de idéias. Faustino fez o mais ágil e inteligente
jornalismo literário que jamais vi entre nós. Como poeta, aberto ao novo,
dotado de um manuseio dúctil e sutil das técnicas do poema em verso,
capaz do fragmento e da ruptura, mostrou-se sempre generosamente
sensível aos experimentos mais radicais da poesia concreta, embora, na
sua produção pessoal, conservasse ainda certos elos com a tradição
discursiva. É uma grande e inesquecível figura de intelectual e de homem, que não se pode deixar de evocar quando se fala nos anos de
atividade do Suplemento do Jornal do Brasil, de quem ele foi um dos principais animadores e o mais constante traço de união entre a equipe do
1
Suplemento e nós outros, de Noigrandes”.
Hoje, passados mais de dez anos desse depoimento (1973) e
mais de 20 desde a morte de Mário, repetiria, nuclearmente, o mesmo
testemunho quanto à grandeza do escritor e à generosidade do amigo,
mas já posso distanciar-me o suficiente para emitir sobre Mário uma
opinião mais circunstanciada.
Diferentemente do meu irmão, Augusto de Campos (que foi,
aliás, entre nós, o primeiro a estabelecer contacto pessoal com Mário,
no Rio de Janeiro, numa reunião na casa de Mário Pedrosa, da qual
nasceu o reconhecimento recíproco de “afinidades eletivas” e o convite
para a colaboração no Suplemento em organização do Jornal do Brasil),
diferentemente do Augusto, jamais escrevi um artigo sobre Mário. Ao
inesquecível amigo e poeta dediquei, sim, um poema IN MEMORIAM,
escrito ainda sob o impacto do desastre aéreo que o tirou brusca e
inexplicavelmente de nosso convívio, poema hoje recolhido em meu
livro A educação dos cinco sentidos (Brasiliense, 85). Esse poema, datado de
28 de novembro de 1962, foi estampado pela primeira vez, se bem me
recordo, na mesma edição do Correio da Manhã do Rio de Janeiro, de
15.1.1967, que publicou a versão inicial (ainda com o titulo “Mário
Faustino e o Nó Mallarmaico”) do estudo de Augusto, “Mário Faustino,
o último Verse Maker”, posteriormente incluído em seu livro Poesia.
52
Asas da Palavra
Antipoesia. Antropofagia (Cortez & Moraes, 1978).
2
MÁRIO FAUSTINO E O GRUPO “NOIGANDRES”
As relações de Mário Faustino (e de sua poesia) com o movimento de poesia concreta (e em especial com o grupo Noigandres) têm
sido enfocadas, quase necessariamente, do ponto de vista da coincidência e copresença no tempo da atividade poética faustiniana (O homem e sua hora, único livro editado em vida do poeta, é de 1955) e do
momento de eclosão pública (1956) da poesia concreta (aliás, já anunciada desde 1953 com a série cromo-ideogramática do weberniano
“poetamenos” de Augusto de Campos, estampada em Noigandres 2,
fevereiro de 1955). Ora, esse movimento poético, perseguindo o seu
programa de ultimação do projeto mallarméano de “sintaxe espacial”
(Um Coup de Dés) e poundiano (linguagem ideogrâmica como corretivo da linguagem lógico-discursiva), tendeu a chegar ao “mínimo múltiplo comum” da linguagem (ao que, na terminologia da vanguarda
plástica e musical, ficaria posteriormente conhecido como “mimimal
art”). Evoluiu rapidamente de uma “fase orgânica” (mais complexa e
mesmo labiríntica, em termos de “desconstrução” do verso e de
multiplicidade de percursos de leitura, fase que vai de 1953 a 1956)
para uma outra mais despojada, concentrada, construtivista, altamente sintética, a “fase geométrica” ou da “matemática da composição”
(a fase representada no nº 4, de 1958, de Noigandres, que compreende
poemas escritos entre 1956 e 1957). Pois bem: os poemas
monadológicos (para usar a expressão benjaminiana, com as implicações que suscita), poemas-limite, escritos nessa “fase geométrica”,
poemas onde o Oriente sintético-ideogrâmico se encontrava, nos extremos do possível, com uma linguagem ocidental, fonética, digital,
analítico-discursiva, forçando-a a converter-se no seu oposto (e assim
a reconciliar-se com o eidos não-discursivo
da poesia, mesmo daquela
2
produzida na tradição do Ocidente) , foram esses poemas que ficaram como paradigmas da atividade poética dos poetas concretos no
período (e mesmo, persistentemente, nos debates da crítica, nas escolhas de antologia, na representação para efeitos de recepção do eu se
entendia e se entende pelo designativo “poesia concreta”). E não era
para menos. Poemas que representavam uma experiência de limites,
que levaram rente ao ponto “zerológico” do silêncio (“zero ao zênit”
como me expressei fenomenologicamente à época) a posibilidade
mesma de fazer poesia (como em pintura o quadrado branco inscrito
no marco branco do quadro, de Maliévitch), e que, por outro lado,
tendiam ao anonimato, ao livro coletivo (o Noigandres 4 é a “maquete”
desse livro) e à comunicação instantâneo-simultânea, foram esses poemas que mais violentaram a expectativa do leitor brasileiro de poesia
(condicionado pela retórica floral e restauradora da Geração de 45) e
do usuário da língua (incapaz de desapegar-se da clausura normativa,
lógico-discursiva – “logocêntrica” diria posteriormente Derrida – de
3
seu idioma fonético, em nosso caso o português) . Os poemas préconcretos (os poemas da “fase em verso”, escritos nos últimos anos
da década de 40 e publicados em meu Auto do possesso, 1950; em O
Asas da Palavra
Veja-se, por exemplo, na
Teoria da poesia concreta
(Duas Cidades, S.Paulo,
1975, 2ª. ed.) o estudo de
A. de Campos, “A moeda
concreta da fala” (1957),
focalizando, com apoio em
Susanne Langer, a
contradição entre a
natureza não discursiva da
poesia e o caráter
discursivo da linguagem de
uso literal. O problema foi
desenvolvido e elaborado
por mim em “Ideograma,
anagrama, diagrama /
Uma leitura de Fenollosa”,
introdução a Ideograma
(Lógica. Poesia. Linguagem), Cultrix, S. Paulo,
1977.
53
3
4
J. Derrida, em De la
grammatologie, 1967,
reconhee a contribuição
pioneira do ensaio de
Fenollosa sobre o
ideograma para o
“arrombamento” da
“clausura da episteme”
ocidental (referindo-se,
ainda, no mesmo contexto,
à “poética: irreditivelmente
gráfica” de Ezra Pound,
que, juntamente com a de
Mallarmé, constituía “a
primeira grande ruptura da
mais profunda tradição
ocidental”). Cf.
Gramatologia, trad. de
Miriam Schnaiderman e
Renato Janini Ribeiro,
Perspectiva, 1973.
Sobre o dissídio que essa
poesia de estréia
representava em relação à
“geração de 45”, ver a
série de três artigos (“A
difícil alvorada”, “Rito de
outubro” e “Ritmo e
compasso”) publicada por
Sérgio Buarque de
Holanda entre 27.5 e
12.6.51 no Diário Carioca e
na Folha da Manhã de S.
Paulo.
54
carrosel, de D. Pignatari, 1950, e em O rei menos o reino, 1951, de A. de
4
Campos, bem como aqueles constantes do nº 1, 1952, de Noigandres) ,
os pára-concretos ou já concretos da fase “orgânica” (incluídos nos
nº. s 2, de 1955, e 3, de 1956, também de Noigandres) foram como que
obliterados, “postos entre parênteses”. Sequer se imaginou que os
poetas concretos poderiam ter (como o próprio Mário Faustino) poemas inéditos, não recolhidos em livro, anteriores àquele momento “geométrico” privilegiado para termo de comparação (e esses poemas
existiam: alguns vieram à luz na Antologia Noigandres nº. 5, 1962,
substitulada “do verso à poesia concreta”; outros só foram veiculados
muito posteriormente nas antologias pessoais da tríade concreta: no
meu Xadrez de estrelas, percurso textual 1949-1974, publicado em 76;
no Poesia pois é poesia, 1950-75, de Décio Pignatari, que é de 77; e no
Poesia 1949-1979 (VIVA VAIA de A. de Campos, 1979; outros ainda
– no meu caso pelo menos – ficaram no limbo dos rascunhos e dos
textos inconclusos...). Também não houve preocupação de se levar
em conta, já que isto complicava os termos da comparação, os desdobramentos do movimento a partir de 58, que se caracterizaram por
um progressivo descompromisso com aquela “fase geométrica” axial
(a “fase áurea” ou ‘heróica” da poesia concreta, como entre nós costumávamos dizer) e com algumas estrituras mais programáticas do
que operacionais do Plano piloto (síntese das teses do movimento,
divulgada com o Noigandres 4, de 53). Ainda em vida de Mário Faustino,
no II Congresso Brasileiro de Crítica e História Literária, que teve
lugar em Assis, Est. de S. Paulo, D. Pignatari relatou o tema “Situação
atual da poesia no Brasil”, anunciando o “pulo da onça”: o “pulo
conteudístico-semântico-participante” da “poesia concreta”. Do 1º.
trimestre de 62 é o nº. 1 da revista Invenção, com a tese-relatório de
Pignatari, e do mesmo ano sua “Estela cubana”, publicada com estardalhaço em página inteira do conspícuo, mas liberal, Suplemento Literário de O Estado de S. Paulo (7.7.62). Em 62 publiquei também o meu
“poemalivro” Servidão de passagem (escrito entre junho/julho 61). É do
2º. Trimestre de 62 o número “vermelho”, participante, de Invenção,
com a “Estela Cubana” de Décio, fragmentos do Servidão e o agressivo “Cubagrama”, espécie de poema-de-agitação, agit-prop concretomaiakovskiano do Augusto (por sinal, minha primeira tradução de
Maiakóvski, diretamente do russo, a do poema dedicado ao suicídio
de Iessiênin, foi estampada no nº. duplo, 23-24, julho/dezembro de
61, da Revista do Livro...). A revisão do “poema longo” sousandradino,
“Montagem: Sousândrade” (estudo crítico e seleção de textos), também remonta a esse período: desenvolveu-se por seis edições da página “Invenção” do Correio Paulistano, de 18.12.60 a 26.2.61.
Não creio que a “poesia concreta”, enquanto atividade poética
em progresso, tenha sido recebida nesses mesmos termos e dentro desse mesmo esquema redutor pela inteligência aguda e alerta de Mário
Fuastino, um poeta profundamente atento ao antes e ao depois da poesia
de seu momento. Muito pelo contrário. Quando se lê o ensaio
“concretismo e poesia brasileira” (aliás, “A poesia ‘concerta’ e o momento poético brasileiro”), incluído em Cinco ensaios sobre poesia (Edições
Asas da Palavra
GRD, 1964), reproduzido em Poesia-Experiência (Perspectiva, 1977), fica
evidente o motivo pelo qual o exigente poeta-crítico Mário Faustino
considerava os promotores do movimento (o grupo “Noigandres” de
S. Paulo por um lado e Ferreira Gullar por outro) como “antes do
concretismo, os melhores poetas brasileiros aparecidos depois do Sr.
João Cabral de Melo Neto” (sou obrigado a referir esse fato, à parte o
que me toca, para poder expor o meu argumento e ficar fiel ao de Mário). O motivo fora explicitado parágrafos antes, a propósito do grupo
paulista, mas o raciocínio aplicava-se, “mutatis mutandis”, a Ferreira
Gullar: “Nos domínios do verso chegam todos três, rapidamente, ao
nível do melhor que já se fizera antes deles no Brasil, freqüentemente,
no detalhe, ultrapassando esse nível. Saem dos domínios do verso e
tentam novos caminhos poéticos”. Quem se dispuser a ir mais adiante e
pesquisar o texto de Mário na sua fonte, a 5ª página do 2º Caderno do
Suplemento Dominical do Jornal do Brasil de 10.2.57, que coincidia com a
apresentação da “Exposição Nacional de Arte Concreta” no saguão do
MEC-RJ, terá mais uma confirmação desse acurada atenção de Mário
Faustino para com a “fase verso” dos poetas concretos que coexiste
com o seu também proclamado desinteresse pessoal por uma integração
no movimento concretista, apesar da defesa que faz do direito que reconhecia aos participantes da mostra – “e quiçá mesmo o dever, de
serem extremistas, combativos, proselitistas, exclusivistas, etc.”). É que,
acompanhando essa página, a contígua de nº. 4, com o título “Os poetas ‘concretos’ antes da ‘poesia concreta’’’ , trazia uma “Pequena antologia de poemas pré-concretos de D. Pignatari, H. de Campos, A. de Campos e F. Gullar, selecionada por Mário Faustino”. Adepto do método de
“amostragem ideogrâmica” preconizado por Ezra Pound, é fora de
dúvida que Faustino considerasse parte integrante do seu polêmico estudo sobre o “momento poético brasileiro” esse exemplário, no qual se
ancoravam as premissas de sua desassombrada defesa do movimento
que então se lançava (por isso mesmo, será desejável que, numa próxima reedição desse ensaio, o complemento antológico-demonstrativo seja
reproduzido em anexo ao texto crítico). Da seleção constam, com as
respectivas datas: “Bateau pas îvre” (março de 51) e “Move-se a brisa ao
sol final” (fevereiro de 52) de Pignatari; trecho de “O sol por
natural”(agosto de 51) e trecho de “Ad Augustum per Augusta” (junho
de 52), de Augusto; os meus “Soneto de Bodas” (1949) e extrato de
“Thálassa Thálassa” (agosto de 57); “A Sentinela” (trecho, dezembro de
5
52) e o soneto “Neste leito de ausência” (1950), de Gullar.
Quando Faustino escreve, no “Relatório e Tomada de Posição”
que abre o balanço de um ano da página Poesia-Experiência (SLJB,
6.10.57): “...acho e declaro que a experiência concretista, em sua própria direção, vai bem mais longe, e mais segura, que a minha. (...) Repito: o principal que nos separa somo nós mesmos, nossos seres, nossas
condições. Repito: nossa formação muito nos aproxima. Hoje tomamos direções diferentes, a deles bem mais definida, a minha bem menos
precisa, amanhã essas direções poderão encontrar-se”, revela um senso
agudo da situação, das convergências e divergências que nos uniam e
separavam, não num movimento brusco e definitivo, mas num plexo
Asas da Palavra
5 Benedito Nunes, na
“Introdução” à edição
Perspectiva de PoesiaExperiência, por ele
organizada, justifica a não
reprodução das características da página de jornal
no livro pela impossibilidade de uma edição facsimilada. No caso por mim
indicado, parece-me que a
transcrição do complemento antológico não
acarretaria problemas de
ordem tipográfica. É uma
sugestão.
55
6 Cf. “Lance de Olhos sobre
Um lance de dados” (com
a tradução de dois
fragmentos do poema),
Jornal de Letras, R.
Janeiro, agosto 58. “Orfeu
e o discípulo” foi estampado em Habitat, nº 21,
março/abril de 55. S.
Paulo.
7 Conferência pronunciada
em 28.5.85 e publicada
pelo Conselho Estadual de
Cultura, Belém-Pará, 1986.
sutil de atrações e repulsões, de gradações táticas nas preferências e nas
ênfases.
A formação comum... Não apenas Pound e a moderna poesia
de língua inglesa, não apenas Mallarmé ( cuja influência já se fazia, por
exemplo, sentir na temática, no léxico e na espacialização do meu
“Orfeu e o discípulo”, de 52, e cujo Coup de Dés eu já traduzira, numa
6
primeira versão, em 1958 , mas tantos outros liames de ostensividade
não tão manifesta... Do elenco de poetas que Benedito Nunes refere
em sua recente conferência “A obra poética e a crítica de Mário
7
Faustino” , estavam também presentes, no currículo de leitura
formativa dos três poetas que em 1952 lançaram a revista-livro
Noigandres, Baudelaire, Rimbaud (lembre-se o “Bateau pas îvres”, 51,
de Pignatari); Rilke (estudei alemão, ainda aluno de Direito, para lê-lo
e a Georg Trakl; encimei com uma epígrafe rilkeana sobre o poeta e o
“dom de celebrar” meu “Auto do Processo” de 49); Lorca (quanto o
lemos dos “romanceros” de gitano-andaluzes ao Poeta en Nueva York!);
Fernando Pessoa (vejam-se, de Pignatari, o “Tosco dizer de coisas fluidas”, de 49, ou o “Eu sou contemporâneo de alguém”, 51); SaintJohn Perse (de que Décio traduziu um excerto de Exil no Suplemento
do extinto Jornal de S. Paulo, no começo dos anos 50, e que foi o
instigador de algumas das minhas primeiras tentativas de poema de
mais fôlego, “A Cidade” e “Thálasa Thálassa”, em 51 e 52 respectivamente). Isto para não falar nos clássicos greco-latinos (“Rumo a
Nausicaa” é o título do conjunto de poemas decianos, datados de 49 a
52, que figuram em Noigandres 1; meu “Vinha estéril”, de 49, traz uma
epígrafe de Virgílio); em Dante (com Hoelderlin e Lautréamont, presenças explícitas em O rei menos o reino, poemas datados de 49 a 50, de
Augusto); na tradição ibérica, em especial Camões e Sá de Miranda
(para este último, bastaria mencionar o “O Sol por Natural”, 50-51,
Noigandres 1, também do Augusto); na fonte bíblica e na mitológica
(elementos constantes na minha primeira poesia, p. exemplo). A numeração, claro, não esgota o que Faustino, por uma lado, e nós outros,
por outro, lemos em nosso período de formação e nos anos que precederam ao lançamento público da “poesia concreta”, mas é suficiente para tornar visível a rosácea das convergências...
As nossas divergências... Havia sobretudo uma, fundamental.
Faustino recusava-se, por motivos respeitabilíssimos de temperamento
e vocação (mas nem por isso eximíveis de avaliação crítica, ele melhor
do que ninguém o sabia), a submeter-se ao violento processo de
“coletivização” e “anonimização” poética, a que nós, de Noigandres, nos
sujeitamos voluntariamente. Estávamos persuadidos de que esse verdadeiro “tratamento de choque”, que implicava “dar por encerrado o ciclo histórico do verso”, era necessário para comensurar a poesia ao estágio evolutivo das outras artes (a música e as artes plásticas) e às instâncias da ciência (o espaço-tempo da física einsteiniana; os subsídios da
“psicologia da Gestalt”, da cibernética e da teoria da informação, bem
como da lingüística). Entendíamos que chegara o momento de reduzir
56
Asas da Palavra
as nossas (muitas) diferenças individuais em prol da fundação de uma
nova koiné, uma nova linguagem comum sintético-ideogrâmica, de validade nacional e universal, capaz de ultimar (no sentido evolutivo-processual, bem entendido, não no axiológico) o projeto mallarmaico delineado no Coup de Dés (onde a sintaxe é fraturada e o verso disseminado,
mas onde o discurso ainda persiste espacejadamente...), projeto que remonta ao “poema universal progressivo” dos Românticos de Iena e,
8
assim, à própria “tradição da modernidade”... . Éramos, num certo
sentido, Faustino e nós, além de experimentais, “tradicionalistas”. Púnhamos, porém, ênfases diferentes em cada um desses termos, só aparentemente antitéticos.
Quando se fala da absorção de recursos concretistas pela poesia
de Mário Faustino, sobretudo na fase “experimental” dos anos 56-59 e
nos últimos “fragmentos” (técnicas visuais, caligrâmicas ou ideogrâmicas;
jogos permutatórios de combinação lexical ou frasal; vertebrações em
eixo como em “o movimento”, 1956, de Pignatari), está-se falando de
um diálogo intertextual, de “oficina para oficina”, que os poemas
faustinianos travavam sobretudo com poemas já decididamente experimentais da fase “pré-e-pára” concreta e com aqueles da “fase orgânica”
do concretismo paulista (não é meu propósito aqui examinar o caso de
F. Gullar), poemas onde o discurso era fragmentado, pluridivido,
capilarizado, porém, não abolido nem controlado com rigor absoluto
(“cronomicrome-tragem do acaso”); onde a metáfora era explodida, mas
vigia ainda (veja-se o mellarmeano “O jogral e a prostituta negra” de
Pignatari, que é de 49); onde a paronomásia, o trocadilho, a tmese, o
recorte parentético minavam incessantemente o corpo, ainda não
diamantizado em geometria monadológica, do discurso poético em verso.
Onde a temática poderia ser lírica, existencial e até onto-fenomenológica,
metafísica (considerem-se os meus poemas de “o â mago do ô mega ou
a fenomenologia da composição”, de 55-56); essa “temática-do-ser”,
aliás, permaneceu ainda, ao lado da lírico-erótica e da participante, mesmo no auge do momento geométrico de aparente dominância
metalingüística: refiram-se, por exemplo, as verdadeiras “cosmogonias
portáteis” que são o “terremoto”, 56, de Augusto, ou o meu “nascemorre”, de 58; o erotismo antropofágico do “hombre hambre hembra”
deciano, de 57; a sátira engajada do “coca cola”, do mesmo ano, também do Décio, ou, em tom mais grave, a denúncia existencial-política
9
do “greve”, de Augusto, que é de 61 e saiu em Invenção 2 . Trata-se de
um diálogo pelágico que a poesia de Faustino entretinha com as partes
provisoriamente recessivas, submersas, de um “corpus” de escritura
geracional e grupal, cujas cristas emersas (os “minimal poems” da etapa
“geométrica” do concretismo) ele respeitava, mas considerava
radicalizações extremistas; dessa ostensiva radicalização ele, mais moderado, mais apegado à grande tradição clássica do que à “tradição de
ruptura” incessantemente vetoriada para o futuro (embora esta o fascinasse e lhe parecesse irrecusável a existência de uma “crise do verso”,
10
exponenciada pelo Coup de Dés), ele – Faustino – discrepava . Aí o “nó
mallarmaico” em que observávamos fraternalmente, ele se enredava (imagem dialética que, se bem me recordo, não o desgostava de todo...). Pois
Asas da Palavra
8 Enfoquei o problema e
desenhei esse traçado em
ensaio recentemente,
publicado em duas partes:
“Poesia e modernidade: da
morte da arte à constelação” e “O poema pósutópico”, Folhetim, Folha
de S.Paulo, nºs. 403 e 404,
7 e 14.10.84.
57
9
Em 1961, acrescentamos
umPost-Scriptum ao
“Plano Piloto” de 58: “Sem
forma revolucionária não
há arte revolucionária”
(Maiakóvski); Faustino, em
14.7.57, criticando o
recém-aparecido Canto
claro e Poemas anteriores,
de Geir Campos,
posicionara-se com
respeito à poesia dita
“engajada”: “O poeta
engagé tem de ser um
poeta – e um profissional
realizado. Só assim poderá
cumprir suas obrigações:
atacar, desmoralizar as
classes dominantes,
fornecer da sociedade em
que vivemos um
diagnóstico convincente e
eloqüente, apresentar,
reificar, poeticamente, os
problemas populares e as
idéias evolucionárias e
revolucionárias, promover
o inconformismo e, se
possível ou necessário, a
revolta dos leitores ou
ouvinte contra o statu quo”
(“Da ingenuidade engajada
e do engajamento
ingênuo”).
10
Não deixava, porém, de
reconhecer o trabalho
realizado, onde quer que o
encontrasse. Assim, na
súmula evolutiva da poesia
brasileira com que remata
sua série de estudos sobre
Jorge de Lima (SDJB,
8.9.57), credita ao Grupo
“Noigandres” e a F. Gullar
“produtos acabados e de
alta categoria”, tanto na
fase “pré-concretista” como
em “diversos poemas
concretos das diferentes
fases da experiência”.
58
bem: é esse colóquio “submarino”, esse intertexto nem sempre manifesto aos olhos do analista compreensivelmente desviados para seguir o
percurso aguerrido da intervenção concretista em sua fase mais
disruptora e polêmica, esse subtexto é que urge reconstituir e repensar
de modo mais amplo, sobretudo, a essa altura, em que está por se completar um trintênio do lançamento da poesia concreta; em que a
reconstituição da trama complexa das inter-relações já pode ocorrer,
sem que a inteligibilidade do problema e a equação dos termos da comparação sejam anuviadas pela constatação da sua labilidade e riqueza.
O POEMA LONGO E O IDEOGRAMA
Faustino deixou consignado também, no mesmo balanço de um
ano de sua página no SDJB: “...a experiência ideogrâmica de Pound me
interessa, me serve, mais que a experiência ideogrâmica dos concretistas”.
E, do seu ângulo tinha razão nessa preferência: não lhe interessava, como
opção pessoal, o gesto radical de uma vanguarda empenhada na “abolição elocutória” do individualismo do eu em prol da ultimação do projeto anunciado no poema constelar mallarméano, projeto que envolvia a
esperança utópica da fundação de uma nova linguagem comum e da
restituição da função comunicativo-social do poeta na sociedade mais
justa do futuro (essa preocupação ético-social Faustino também a possuía, porém a equacionava em outros termos). Tinha razão porque, mais
comprometido com o passado do que com o futuro (com o presente
todos nós o éramos), almejava conciliar a estrutura discursiva tradicional do verso com a sintaxe de montagem propiciada pelo “método
ideogrâmico” de Pound e por ele praticada na construção do edifício
dos Cantares (que, em 1955, com a publicação da Section: Rock-Drill/
Seção: perfuratriz de rochas, já haviam chegado ao nº. 95). Reação semelhante teve Octavio Paz, inspirada por análogos desígnos quando
recebeu o impacto da “poesia concreta”, na segunda metade dos anos
60. Basta ler a carta extremamente significativa que me escreveu em
14.03.68, carta que constitui um roteiro da evolução de sua própria poesia até o seu encontro com a dos “concretos” brasileiros na antologia
internacional (An Anthology of Concrete Poetry), publicada em Nova Iorque
em 1967 pela Something Else Press, ou melhor, já antes mesmo, à época da redação do ensaio “Los signos em rotación”, de 1964, onde é
central a presença do Mallarmé do Coup de Dés e do “espaço que a sua
11
palavra abre” . Nessa carta, pondera Octavio Paz: “Compreendendo
que os senhores vejam em Pound um precursor. De toda maneira, assinalo que a poesia de Pound – fundamentalmente discursiva – não utiliza realmente ideogramas, porém descrições de ideogramas. Esta observação
se estende ao empego, em certas passagens dos Cantos, de ideogramas
chineses verdadeiros: são citações numa língua estrangeira que, para
serem compreendidas, requerem tradução para a nossa linguagem
discursiva. Nossos idiomas estão no extremo oposto do chinês, e o
máximo que podemos fazer é o que os senhores (não Pound) fazem:
inventar procedimentos plásticos e sintáticos que, mais do que imitação
dos ideogramas, sejam suas metáforas, seus duplos analógicos. (...) A
poesia moderna é dis-persão do curso: um novo dis-curso. A poesia
Asas da Palavra
12
concreta é o fim desse curso e o grande re-curso contra esse fim. ”.
Por outro lado havia a questão da quantidade, do “poema longo”
(“Pessoalmente, sempre emprestei grande importância à quantidade em
arte”; “... a min só interessa o poema longo”, escreve Faustino em outras
passagens do seu Relatório e Tomada de Posição”).
Ora, há poema longo e poema longo... Perante um “haicai” de
Bashô ou um epigrama da Antologia Grega, ou mesmo diante do Mattina/
M’illumino d’immenso” do Ungaretti de L’Allegria, “The Raven” de
Edgar Allan Poe (o advogado da forma breve, do “mimor poem”), com
suas 8 estrofes de cinco versos de medida larga mais um refrão cada,
não deixa de ser um poema longo... Comparados à Commedia de Dante,
The Waste Land de Eliot e o Lance de dados de Mallarmé (aquele poeta a
quem costumamos chamar “o Dante da Idade Industrial”), epos sintético em 11 páginas duplas, ambas essas composições, quantitativamente
falando, poderiam ser designados por “minor poems” ou poemas breves...
11
12
Cf. Octavio Paz e Haroldo
de Campos, Transblanco,
Editora Guanabara, R.
Janeiro, 1985. Ver, ainda,
de O. Paz, Signos em
rotação, Perspectiva, 1972.
As questões levantadas
por O. Paz já haviam sido,
de certo modo, consideradas no âmbito da poesia
concreta, conforme referi
na nº . 5, p. 130, do
Transblanco, cit.,
reportando-me a textos de
55, recolhidos na Teoria da
poesia concreta.
Por outro lado, também nós estávamos interessados no poema de
maior fôlego, mais sustentado, no poema seqüencial. Tentativas, “sketches”
nesse sentido são, por exemplo, em meu livro de estréia, “Sísifo” (poema
coral, onde ressoa a influência “coloquial-irônica” de Eliot) e o esboço de
poema-drama, em três cenas, “Auto do Possesso”. Prossegui experimentando com a forma menos breve, mais desenvolvida, em “A Cidade” e “Thálassa
Thálassa” e depois em “Ciropédia ou a Educação do Príncipe” (52),
prosapoema, introduzido por uma epígrafe de Joyce, que é o embrião de
minhas Galáxias, cujo primeiro fragmento (“formante” inicial) data de 1963.
Tinha razão Mário Faustino quando prenunciava: “amanhã essas direções
poderão encontrar-se”...
Mas esse possível (até que ponto?) reencontro, que a morte prematura de Mário não permitiu que de fato acontecesse, tinha de ser
precedido por um momento crítico de afastamento, de desencontro. A
radicalização evolutivo-processual da poesia concreta suspendeu provisoriamente essa pesquisa da forma longa ou menos breve (também insinuada, em certa medida, num poema de elaboração mais sustentada,
como o “Rosa d’amigos”, do primeiro Pignatari, ou mesmo no poematítulo de seu livro de estreante, “O Carrossel”, datado de 1948; em
Augusto, vislumbro-a na organização seqüencial de textos como “Ad
Augustum” e “O sol por nautral”). Se bem que – diga-se entre parênteses – sempre nos preocupou o que poderia ser um “poema concreto”
longo: o ‘poetamenos” do Augusto e o meu “o â mago do ô mega” são
poemas-seqüências; comparado ao “velocidade”, de Ronaldo Azeredo,
não seria longo o “cidade do Augusto, “mot total” aspirando ao infinito
da frase? E que dizer de meu poema-livro servidão de passagem, na fase
“engajada” de 61-62? Que dizer sobretudo da “Estela Cubana”, de
Pignatari, cartaz épico, poema tipográfico-mural de múltipla e polissêmica
leitura, que Fausto Cunha, à época (o poema foi publicado em julho de
62), considerou “mais antiburguês, mais revolucionário do que todos os
Asas da Palavra
59
13
histerismos dirigidos dos meninos da UNE” .
13
Fausto Cunha, “Enxadas
ou transistores?”, ensaio
recolhido em A luta
literária, Lidador, R.
Janeiro, 1964.
14
Benedito Nunes, “O
projeto de Mário Faustino”,
Invenção nº. 3, junho de
63. Do mesmo autor, as
introduções às duas
edições póstumas da
Poesia (Civilização
Brasileira, R. Janeiro,
1966) e da Poesia
completa/ Poesia traduzida
(Max Limonad, S. Paulo,
1985).
Mas Faustino estava assaltado do que eu chamaria “impaciência
épica” ou, melhor dizendo, “órfica”. Estava empenhado em projetar, ainda que contra o espírito do tempo, um poema longo, quantitativamente
voluminoso, à Camões, à Milton, à Dante; ou, mais proximadamente, à
Pound. A última formulação desse seu projeto parece estar na carta de
outubro de 58, em que anunciou a Banedito Nunes um “programa de
trabalho a longo prazo”, cujo primeiro item consista exatamente em “conferir à poesia uma vasta medida, uma dignidade que lhe permita competir
com as outras formas de cultura contemporâneas, principalmente a arqui14
tetura e a ciência” . Em 1959, em fins desse ano, como refere Benedito
Nunes, “concebe que a obra em progresso deverá acompanhar a sua própria vida – till death doth part us – e constituir-se de fragmentos como os
que então passou a escrever”. B. Nunes informa que recebeu os primeiros desses fragmentos (hoje, em sua mais completa recolha – num total
de 18, mais o autógrafo “Fidel”, - incluídos na edição Max Limonad) de
Nova Iorque, onde o poeta exerceu funções junto a ONU, de dezembro
de 59 a junho de 62. Mário estava disposto a dá-los à estampa a cada cinco
anos (é ainda o seu devotado crítico e estudioso quem nos ministra essa
informação), um pouco à mineira do que fazia E.P. com os ‘drafts’ de
seus Cantos.
A IMINÊNCIA DO BARROCO
E havia ainda o Barroco. O Barroco mediava a vocação de Mário Faustino para o poema longo. Mas este era um ponto que antes nos
aproximava do que nos afastava.
De fato, num dos textos, quase manifestos, que anunciaram o
surgimento da poesia concreta, o meu “A obra de arte aberta” (publicado em 3.7.55 no Diário de S. Paulo e republicado em 28.4.56 no Correio da Manhã do Rio de Janeiro graças a Oliveira Bastos), depois de
passar em revista o paideuma constituído por Mallarmé, Joyce, Pound e
Cummings, eu concluía, citando uma conversa entre Pignatari e o compositor Pierre Boulez, por declarar-me em favor de um “barroco moderno”, que corresponderia talvez “às necessidades culturmorfológicas
da expressão artística contemporânea”. Barroquizantes, do ponto de
vista da exploração da metáfora e dos jogos fonoprosódicos, eram a
maioria dos meus poemas da “fase verso” e mesmo aqueles da fase
“orgânica” da poesia concreta (como o SILENCIO, de 1955, p. ex.);
uma constatação semelhante se poderia fazer – creio – com relação a
Pignatari, da “Rosa d’amigos” à “Estela Cubana”. Mesmo os poemas
da fase “geométrica” foram, no aceso da polêmica entre concretos e a
dissidência neoconcreta, acusados pejorativamente de “barroquistas”,
por seu caráter cinético, de matriz aberta de leituras (atualizado em
partituras por jovens músicos que colaboravam conosco), em contraste com a ascese e o purismo das composições equilibradas e mais
estáticas do colançador internacional do movimento, o suíço Eugen
Gomringer...
60
Asas da Palavra
Mas Faustino entendia por Barroco não tanto a “obra aberta”
como o estilo “polimórfico” e polifônico”, a “poesia recargada”, capaz
de uma “densa polimorfia de temas de belleza”, para falar como Dámaso
Alonso a propósito de Gôngora. Expandia o conceito, para nele abarcar retroativamente Camões ( e neste ponto acertava em cheio, pois o
Camões épico “maneirista” que os estudos de Jorge de Sena, publicados entre nós no último quadrimestre de 61, revelava, tem mais a ver
com o Brroco na sua acepção histórica do que com a imagem convencional da Renascença, ou, como o exprime tipologicamente Sena, “re15
sulta de uma emoção clássica e de uma expressão barroca”) O resgate
da função mitopoética da metáfora, por um lado, e a aspiração à
monumentalidade do poema longo, por outro, encontraram no Camões
barroco e os n’Os Lusíadas um modelo instigante, que a tradição de
nossa língua e de nossa literatura oferecia.
Mas faltava encontrar algo mais, um nexo mais contemporâneo,
que facilitasse a transição, no plano do presente de criação, da lição do
Coup de Dés de Mallarmé e daquela haurida nos Cantos poundianos, do
epos agônico e cosmogônico do homem em luta contra o acaso, para o
périplo, a “plotless epic” poundiana. Mallarmé, o Mallarmé “obscuro”,
era mais assimilável a Gôngora (tantas vezes, desde o simbolismo francês, foi ensaiada essa comparação). Já Ezra Pound, em nome da “claritas”,
da “precise definition”, recusava Gôngora e o que entendia por linha
turva do barroco (pelo menos em teoria; na prática dos Cantos – monumental ruína alegórica da Modernidade, é uma questão a discutir). Havia uma brecha, e esta não escapara à argúcia crítica de Faustino: no
ensaio sobre Camões, constante de The Spirit of Romance, e que Faustino
traduziu não por mera coincidência para o SDJB em 2.9.56, um ensaio
geralmente negligenciado pelos camonólogos mas cheios de intuições
surpreendentes, Pound referira-se ao poeta d’Os Lusíadas como “O
Rubens do verso”, elogiando-lhe a “dicção” e a “técnica”, chamando-o
“mestre de som e de linguagem”, frisando a “qualidade retórica” da
“mente” camoniana, mas, ao mesmo tempo, descobrindo nele, em certas passagens, “simplicidade” e “diretidade”, além de destacar, como
centro para o interesse moderno no poema, o episódio de Inês de Castro (que aliás glosa no Canto XXX). O “Rubens do verso”... É este
designativo poundiano que Faustino vai recordar no IV dos sete artigos
que dedicou a Jorge de Lima em sua página do SDJB (de 28. 6 a 8.9.57).
16
O Camões (e o Gôngora) à mão foram (hélas!) Jorge de Lima.
15
Jorge de Sena, “O
Maneirismo de Camões” e
“ainda o problema de
Camões e os Maneiristas”,
Diário de Notícias, R.
Janeiro, 10.9.61 e
10.12.61. Vítor Manuel
Pires de Aguiar e Silva, em
Maneirismo e Barroco na
poesia lírica portuguesa,
Centro de Estudos
Românicos, Coimbra,
1971, refere o livro do
professor e investigador
espanhol José Filgueira
Valverde, onde, já em 58,
estaria insinuado o caráter
barroco da estética de
Camões. Registra, ainda o
pioneirismo de Jorge de
Sena, que, em 1948,
chama Camões “um
magnífico Proust da
Renascença, ou melhor,
do Barroco, ou melhor
ainda, do Maneirismo...”
Faustino proclama a tese
do Camões barroco em
seus artigos de 57
(“Revendo Jorge de
Lima”), o que lhe dá
merecido relevo nesse
conjunto de estudiosos.
Assinale-se, finalmente,
que o ensaio camoniano
de Pound, incluído num
livro cuja primeira edição é
de 1910, toma explicitamente o Barroco, porém
enquanto estilo
arquitetônico, para
enquadrar o seu
tratamento de Os Lusíadas
(“A corresponding study in
architecture were a study
of barocco”).
Tenho para mim que a Invenção de Orfeu, nessa longa série de
artigos que constitui a “revisão” de Jorge Lima, ficou sendo, antes de
mais nada, uma “invenção” de Mário Faustino...
Estou com Augusto de Campos quando afirma não poder concordar com a estima que Faustino devotava ao poeta e à sua Invenção de
Orfeu. Expressando seu ponto de vista com desassombro faustiniano,
uma vez qualquer outra atitude, no caso, como diria o próprio animador
de “Poesia-Experiência”, incorreria em “farisaísmo”, Augusto classifica
o poema de Jorge de Lima de “falso poema longo”, que peca pela “in-
Asas da Palavra
61
16
17
Não deixa de ser curioso o
fato de Faustino não dar
sinal, em seu paideuma,
de recepção a
Sousândrade. O processo
revisional do Guesa foi
levado a efeito na página
Invenção de dezembro de
60 a fevereiro de 61,
período em que Faustino
vivia em N. Iorque; mas o
poeta mantinha contacto
epistolar com amigos no
Brasil. O Guesa, muito
antes e muito mais do que
a tumultuada jorgíada do
Rapsodo alagoano,
poderia ter servido de
ponto de referência
brasileiro para o projeto
faustiniano. Vasto poema,
poema-périplo, misturava o
épico, o lírico e o
dramático. Em sua dicção
barroquizante, há registros
de Camões, de Milton e
mesmo de Dante. Não é
uma das costumeiras
“camoníadas” que, de
quando em quando,
atravancam o caminho de
nossa literatura com passo
de paquiderme, desde o
duro Caramuru. Ao
contrário. O Guesa,
publicado em drafts desde
1868, acusando embora a
vocação romântica para o
poema-viagem, não é uma
empreitada regressiva.
Apesar de seus desníveis,
de suas inegáveis
descaídas, mostra-se mais
arrojado na invenção da
forma do que seu modelo
byroniano. Nas secções
infernais (“Tatuturema” e
“O inferno de Wall Street”)
chega a antecipar certas
técnicas de montagem e
citação polilingüe, bem
como algo da temática
usurofóbica do Inferno
financeiro dos Cantos de
Pound. “Se algum poema
faz jus ao título de epopéia
da América Latina, é este”
(escreveu a respeito o
resenhista de The Times
Literary Supplement,
Londres, 24.6.65).
Cf. “Mário Faustino, o
último Verse Maker”, cit.
62
consistência de organização e pela falta de rigor”, tachando-o de “sucessão mal-ajambrada de poemas subjetivos diluídos numa enxurrada
17
camoniana, com raras ilhas de poesia realmente nova.
O próprio Faustino autorizaria em parte esse severo julgamento (
que, repito, é também o meu). Nunca Mário Faustino elogiou tanto um
autor e nunca, talvez, pôs a nu, de um só autor, tantos defeitos. Percorrendo os juízos emitidos por Faustino a respeito de Jorge de Lima, encontramos expressões e trechos assim: D eixou a Invenção de Orfeu, que contém
alguns dos mais altos e dos mais baixos momentos da língua poética lusobrasileira. O poema é uma mêlée péssimo-ótima (em “A poesia ‘Concreta’
e o momento poético brasileiro”); “Esse grande Jorge de Lima (...) único
no Brasil a ter possuído o tom e a medida do epos, é para nós, com todos
os seus pavorosos, arrepiantes defeitos, o maior nome de nossa poesia”
(de “Revendo Jorge de Lima”, donde extrairei todas as citações seguintes); “Na primeira parte, por exemplo, entre coisas de incrível mau
gosto...”(falando dos “trabalhos de adolescente” do poeta); “ No mais,
trata-se apenas de longa série de poemas de todas as influências, embaraçados caminhos cruzados onde mal importa ao autor a construção da
unidade poema, onde pouco se lhe dá emitir alguma linguagem poética”
(sobre A túnica inconsútil ); Há no livro coisa insuportáveis, como a insistência em explorar temas bíblicos sem nem de longe igualar (muito menos acrescentar-lhes algo) as incomparáveis qualidades literárias de boa
parte do Antigo e do Novo Testamento (...) ou como as fatigantes
tentativas de mitificação da figura do poeta” (idem); “A obra inteira de
Jorge de Lima, Invenção inclusive, talvez se explique pela insistência do
poeta épico vocacional diante da provável impraticabilidade do gênero
em nossa época”; “... as tenebrosas quedas de sempre...”; “Por toda
parte, a necessidade de emprestar uma forma à massa amorfa que foi
quase sempre – e continuaria a ser – a linguagem de Jorge de Lima”;
“Em Jorge de Lima há o primado quase absoluto da criação sobre a
organização. Pouco lhe interessa a estrutura de seu poema no todo ou
em partes”; (o leitor) “verá os enormes erros e os enormes acertos de
Jorge; notará, desgostoso, seu descuido, sua falta de rigor; mas, verá,
afinal, que o poema, como boa coisa barroca, é um universo que justifica, pelo todo, os seus próprios monstros, as suas próprias aberrações”;
“Os grandes versos quase sempre de mistura aos péssimos”; “... um
desespero de mágico incapaz de fazer o coelho sair do chapéu...”; “ O
XXIV é um emblema de toda a Invenção: ótimo – péssimo”; “...Péssimo
verso, péssima prosa, nada de poesia. Ó diretor desse filme podia ser
bom, os takes talvez tivessem sido bem tomados – mas a montagem
falhou. Relaxamento, falta de rigor”; “Por altos e baixos, trancos e barrancos, sigamos adiante”; “O poema XXXII, o mais longo deste canto,
é uma péssima salada. É difícil encontrar coisa séria, publicada, de tão
ruim gosto, em português ou em qualquer outra língua”; “Tudo isso,
note bem o leitor, de mistura ao que há de pior na língua”; “O poema
XX deste canto é uma das piores coisas que já lemos – ou quase, que
não lemos, de quase ilegível”; “E vem depois (VI) mais um desses longos poemas em que Jorge brinca de perde-e-ganha. Perde quase o tempo todo: ornatos, ornatos, ornatos, jogados sobre um vácuo de estrutu-
Asas da Palavra
ra. Barroco? Uma boa desculpa – que, à la longue, fatiga”; “Em XIX,
Jorge homenageia Dante, com versos que fariam bocejar o esteta de De
Vulgari Eloquio”; “Do Canto VII (“Audição de Orfeu”) em diante, decai
sensivelmente a Invenção: acentuam-se as deficiências e diminui a eficácia do poema (...) Uma série de poemas à maneira de solilóquio dramático (...) simplesmente líricos, autobiográficos, auto-reflexivos, autoapologéticos, autopiedosos... mélange adultère de tout... Páginas e mais páginas de pouco interesse até para um psicanalista. E geralmente má dicção, gagueira, pé-quebrado, ruim versificação, incapacidade de desenvolver e sustentar a frase musical, o jogo metafórico, a seqüência lógica,
a sintaxe geral...; “É o eterno perde-e-ganha jorgiano; a ausência de rigor; a falta de autocrítica; fobia desses preciosos utensílios literários que
são a borracha-apagador, o lápis vermelho, o retrocesso das máquinas
de escrever, a cesta de papéis”.
A enumeração foi longa, mas precisava ser eloqüente. Faustino
hesitava, avançava e recuava, dava lá e tomava cá. Sua consciência crítica, seu discrimen apurado tomavam distância de recusa diante da “massa amorfa” da poesia de Jorge de Lima. Contextualiza sua avaliação:
“pelo menos neste momento de nossa própria evolução, é Jorge de Lima
o maior, o mais alto, o mais vasto, o mais importante, o mais original
dos poetas brasileiros de todos os tempos”. A desmesura do elogio (que
antes kitichiza o objeto nomeado, do que o promove) o põe em guarda:
ressalva que na arte há “muita coisa de lúdico, logo de esportivo”, assinala as virtudes provocativas da “emulação”. Mais adiante, salienta o
caráter provisório de seu posicionamento: “Estabeleceremos, apenas,
de saída, algumas posições, que ocupamos agora, mas que amanhã poderemos abandonar. Estamos sempre dispostos a mudar de idéia”. De
fato, Jorge de Lima e a Invenção não sustentam as comparações armadas
pela militância faustiniana; antes, ficam esmagados por elas (quando ele
dá vantagem a Jorge de Lima sobre Drummond e João Cabral; quando
ele o põe ao lado de Camões como “os dois pontos máximos da língua”; quando diz da Invenção que é “o melhor poema da língua, afinal de
contas, melhor até mesmo talvez que Os Lusíadas”, quando eleva o poema jorgiano, com seu “vácuo estrutural”, ao nível de uma obra-prima,
esta sim micrologicamente estruturada e sempre mantida no mais alto
nível da invenção de linguagem, como o Grande sertão de Guimarães
Rosa).
O fato é que Mário Faustino precisava “reinventar” a Invenção de
Orfeu, sabendo muito bem que esta sequer era um poema contemporâneo, moderno, mas antes um poema em regresso: “Pena é que Jorge, nesse
e noutros poemas, tivesse de voltar atrás no tempo: não quis ou não
pôde fazer uso de uma temática contemporânea. É um poema imitativo,
se bem que numa linguagem poética atual e dele, Jorge o verso branco é
de Milton, o espírito é de Virgílio, o todo é uma volta a Camões”. Capaz
de desmistificar o “mito Neruda” (ver texto publicado no SDJB de
13.4.58, onde Faustino afirma: os Nerudas remanescentes de Residencia
en la tierra, “em particular o do Canto General, sempre nos pareceram
maneiras, pouco diversas entre si, do mesmo mau poeta”), não foi ca-
Asas da Palavra
63
paz de fazer outro tanto com Jorge de Lima. E a Invenção de Orfeu, de
1952, outra coisa não é, a meu ver do que a variante brasileira do mesmo magna retórico que deu o Canto General nerudiano de 1950; ambos
poemas cumulativos com mais desníveis que altitudes, desarticulados
que jamais se propuseram a questão da estrutura base para quem quer
que intente um epos ou mesmo um poema cosmogônico-órfico no mundo
da modernidade “abandonado pelos deuses”: do Coup de Dés de Mallarmé,
de 1897, a The Wast Land de Eliot ou aos Cantares de Pound, ou, nosso
âmbito latino-americano, ao Altazor de Huidobro e ao mais recente Blanco
de Octavio Paz; aliás, não foi por a caso que Murilo Mendes pensou em
Canto Geral, como um dos possíveis títulos a dar ao voluminoso livro
jorgiano, só o rejeitando uma vez que estava “prejudicado por um livro
de igual nome, saído há pouco, de Pablo Neruda”.
Mas Mário Faustino precisava do “poema longo” de Jorge, mais
como fantasma, paradigma ideal, do que como texto real (já idealizara
uma espécie de super-Pound brasileiro,18 feito da soma dos três Andrades:
Mário, Oswald, Carlos Drummond) . Era a conditio sine qua non para
sonhar o seu projeto de poema, vasto, de poema-vida (não é possível
avaliá-lo, “presumir do futuro”, pelos poucos fragmentos que dele
restaram, já que a morte o impediu de completar mesmo o primeiro
lustro de sua safra; mas é lícito admitir que, num certo sentido, seria
poundianamente intentado contra Jorge de Lima, pois Faustino era tão
cioso da quantidade como da qualidade; perseguia ferozmente a coesão do seu caos em cosmo, prezava acima de tudo a competência e a
eficiência do poeta sério e não temia a autocrítica e a cesta de papéis).
Acredito que se tivesse sobrevivido; se os fados lhe houvesse concedido tempo; se houvesse podido desprender-se do fundo placentário de
algumas obsessões e recorrências (fixações temáticas já quase
estilêmicas; nostalgias de retorno); se lhe houvesse sido dado o prazo
necessário para concatenar sua vontade arquitetônica de estrutura com
sua voragem mitopoética de metáfora, poderia quiçá ter chegado, no
plano do poema-vida, a alguma síntese original entre a vocação para o
poema longo e o desejo de concentração da linguagem e da coisificação
da palavra numa imagética resgatada “da fácil carnadura do discurso”
(como me expressei em outro lugar). Algo, talvez, no gênero do Blanco
de Octavio Paz, poema erótico e reflexivo, metalingüístico e
mitogenesíaco, barroquizante e calculado. Mas esse prognóstico só
seria verificável na “memória de Deus” (como diria rabinicamente o
jovem Walter Benjamin), que é absoluta e onisciente. Não necessitamos, porém, dessa conjectura quase teológica para dizer da importância e da “sobrevida” da poesia de Mário Faustino.
A OBRA “IN FIERI” E A OBRA FEITA
De fato, não é preciso levar a cabo a tarefa impossível de concluir e arredondar o projeto inconcluso de Mário Faustino, nem é praticável referir-se axiologicamente à sua miragem, para apreciar e valorar a
obra extante do autor de O homem e sua hora.
64
Asas da Palavra
Observou judiciosamente Benedito Nunes, a quem todos devemos ensaios pioneiros, de devotamento e lúcida penetração, sobre o
currículo faustiniano de “poesia-e-vida”: “... se não teve a poesia que
quis e que podia fazer, conseguiu ter, a despeito da morte prematura,
uma verdadeira obra poética, de valor incontestável”. E mais: “Não
podemos e não devemos julgar o poeta Mário Faustino por aquele seu
projeto, certamente grandioso, que cedo, muito cedo, interrompeu-se
(...) O essencial é, precisamente, levar em conta aquilo que Mário Faustino
acabou – a sua Obra concretizada e não a sua Obra sonhada” (trechos
do Prefácio à edição Civilização Brasileira da Poesia, reiterados na introdução à edição Max Limonad, de 85).
18
Cf. Ivo Barbieri, o cit. Na
nota 1: “Dando um balanço
na situação geral da nossa
poesia, chegou a sonhar
com um Pound nacional
que fosse os três Andrades
ao mesmo tempo: Mário,
Oswald, Carlos”.
Augusto de Campos, imbuído de espírito crítico verdadeiramente
faustiniano (“Faustino não toleraria o elogio fácil, como não aceitaria
também (...) a piedade:’piedade que poupa tanta coisa vil’’’), já fez, com
empenho de objetividade, um balanço do percurso e do legado poético
desse inesquecível companheiro de geração, que foi “o vate, o bardo
moderno, ávido de magia e profecia, esconjurando com metáforas os
descaminhos do amor, da frustração e da morte” (expressões colhidas
no ensaio “Mário Faustino, o último Verse Maker”). No essencial, subscrevo esse balanço.
Sublinharei, apenas, de minha parte, que, em todas as etapas,
Faustino deixou pontilhado seu percurso, que a morte bruscamente
irrealizou, com realizações admiráveis. Desde os “Dois motivos da rosa”,
de 1948, destacados com acerto por B. Nunes (ah o topos da “rosa”, que
obsediou nossa geração em seus anos de juventude: o meu “rosa morta
ao rés do sonho”, de 48; a “Rosa d’Amigos”, de 49, do Décio ainda na
casa dos 20...); passando por aqueles “hits antológicos”, como os denomina Augusto (“Vida toda linguagem”, “Mito”, “Sinto que o mês presente me assassina”, “Inferno, eterno inverno”, “O Homem e sua Hora”);
seguindo por vários exemplos de sua fase “experimental” dos anos 56/
59 (onde repontam outros hits memoráveis, do porte de “Cavossonante
escudo nosso”, “Ressuscitado pelo embate da ressaca” ou “Ariazul”),
até os últimos fragmentos, cujos momentos-ápice estarão, talvez em
“juventude” (como as suas recorrências de “mar” e “maravilha”, de
“tempo” e “vento”, no entusiasmo do “estar vivo”) e “Espadarte em
crista de vaga”, onde, como diz muito bem Ivo Barbieri, o poeta “aliou
ao virtuosismo metafórico o equilíbrio arquitetônico da composição
enfeixando na associação Cristo-Mar
a ironia mística que afetou a últi19
ma parte da obra inacabada”
“O Tempo” – escreve Borges no Prólogo à sua Nuevas Antología
Personal – “acaba por editar antologias admiráveis”. E acrescenta: “nueve
o diez páginas de Coleridge borran la gloriosa obra de Byron (y el resto
de la obra de Coleridge)”. Alguém poderia continuar glosando: meia
dúzia de sonetos sibilinos de Nerval minam para sempre o majestoso e
imponente edifício da obra poética de (hélas!) Victor Hugo...
Asas da Palavra
65
19
No caso de Mário Faustino, a morte prematura antecipou-se à
tarefa antológica do tempo. Seu professado amor pela quantidade, pelo
poema de “vasta medida”, foi inesperadamente “copidescado” pelo
destino: sobrou, incorruptível, a qualidade, o vigor de sua poesia, rastilho de cintilações, ora nas peças isoladas que perfez, ora, esparsamente,
em resgatados fragmentos interruptos.
op. cit.
Também com razão alerta-nos Benedito Nunes contra a “aparência de frustação” que a Morte precoce faria pesar sobre a obra de
Mário.
Aparência. Mera aparência. Afinal, bem examinadas, a completude,
a perfeição, são nostalgias clássicas, substancialistas, de harmonia e reconciliação, num mundo como o nosso, laico e dilacerado, só habitado pelas
alegóricas ruínas benjaminianas (traço insinuante da persistência moderna e contemporânea do Barroco...)
Num certo sentido (num sentido admonitório, que conjura as
veleidades e convida à reflexão), prefiro recapitular as palavras de
Gottfried Benn, na sua conferência de 51, Probleme der Lyrik (Gottfried
Benn, o nietzscheano poeta das Destillationen, fascinado plo “complexo
ligúrico”, um poeta que partilhava com o nosso Faustino “uma amizade
pelo azul” / eine Befreundung für Blau): “Nenhum, mesmo dentre os maiores líricos de nosso tempo, deixou mais do que seis a oito poemas
perfeitos, os restantes podem ser interessantes do ponto de vista da
biografia e da evolução do autor, mas aqueles que encerram em si mesmos e de si irradiam um fascínio plenamente duradouro são poucos – e
no entanto, para esses seis poemas, trinta a cinqüenta anos de ascese, sofrimentos e
luta”.
S.Paulo, out./nov.86
Mito
Os cães do sono ladram
Mas dorme a caravana de meu ser;
Ser em forma de pássaro,
Sonora envergadura
Ruflando asas de ferro sobre o fim
Dos êxtases do espaço,
Cantando um canto de aço nos pomares
Onde o tempo não treme,
Onde frutos mecânicos
Rolam sobre sepulcros sem cadáver;
E sonho outros planaltos
Por mim sobrevoados na procela;
E sonho outras legendas
Em mim argamassadas pelo vento,
Trabalhadas em mim por mãos sem tacto;
E sonho o que foi parco
Mas meu e por que raro foi perdido,
66
Asas da Palavra
Vida Toda Linguagem
Vida toda linguagem,
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjetivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.
Vida toda linguagem,
há entretanto um verbo, um verbo sempre e um nome
aqui, ali, assegurando a perfeição
eterna do período, talvez verso,
talvez interjetivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
feto sugando em língua compassiva
o sangue que criança espalhará – oh metáfora ativa!
leite jorrado em fonte adolescente,
sêmen de homens maduros, verbo, verbo.
Vida toda linguagem,
bem o conhecem velhos que repetem,
contra negras janelas, cientilantes imagens
que lhes estrelam turvas trajetórias.
Vida toda linguagem –
como todos sabemos
conjugar esses verbos, nomear
esses nomes:
amar, fazer, destruir,
homem, mulher e besta, diabo e anjo
e deus talvez, e nada.
Vida toda linguagem,
vida sempre perfeita,
imperfeitos somente os vocábulos mortos
com que um homem jovem, nos terraços do inverno, contra a chuva,
tenta fazê-la eterna – como se lhe faltasse
outra, imortal sintaxe
à vida que é perfeita
língua
eterna.
Asas da Palavra
67
E sonho o que foi vasto
Mas de alheio me pesa sobre os ombros,
Globo de ásperos polos,
Continentes de medo
E mares onde o sangue é trilha e nódoa;
Deitado no vitral
Da noite intensa, exata,
Assim um Fazedor empunha o cetro
Ornado de serpentes;
Assim refaz o que foi feito à sua
Augusta semelhança
Contrafacção de um gesto mais difícil
Sonâmbulo e remoto – contundente;
E enquanto nuvens quedam
De incenso carregadas, de semente,
Levanto-me e estrangulo
O ato de nascer que me divide
Em morna derrisão
Disforme difidência de um presságio;
O Fazedor anula
O inferno que o refina
E alçando-se ao poente mais seguro
Mergulha na verdade
Acesa que o derrota e reduz ao
Dormente ser de vidro e cor que sonha;
Os cães do sono calam
E cai da caravana um corpo alado
E o verbo ruge em plena
Madrugada cruel de um albatroz
Zombado pelo sol
68
Asas da Palavra
Asas da Palavra
69
70
Asas da Palavra
MÁRIO FAUSTINO
POETA SACRÍLEGO
Pedro P. de Assis
Doutor em Poética, UFRJ
Professor de Literatura, UFPA
Asas da Palavra
71
N
um desenvolvimento mais largo, digressivo, e evocativo, que me
dei o azo e prazer de fazer, malgrado o pesar jacente, do Réquiem
em prosa e verso para Chico Mendes que eu já antes publicara em preliminar versão para jornal (O Liberal, 10/01/2000, data-efeméride em que o
velho mestre coroar-se-ia da auréola dos novent’anos de vida, e bem lida,
ensinada e vivida poesia), mas que, tendo ficado o texto assim muito extenso
para sair inteiro numa obra coletiva, tive de cortá-lo em grande parte na versão editada no belo livro-álbum O amigo Chico, fazedor de poetas (organizado por Benedito Nunes, Belém, Secult, 2001), álbum-monumento com o
qual a Secretaria de Cultura do Estado do Pará homenageou e perpetuou a
figura humana e intelectual do nosso grande professor de história das literaturas e da arte, havia eu então concebido e desenvolvido largamente, em sua
memória e celebração  ao lado dos vultos e das líricas lembranças de
poetas amigos seus, também já mortos, imaginados a recepcioná-lo
jubilosamente, lá no alto, no silêncio eterno desses espaços infinitos, como gostava ele de vislumbrar e pressentir , uma espécie de réquiem líterorecitativo, porém laico e elogioso, glorificante e não apenas lamentoso, e afinal
transformado, digamos, numa alegórica e ampla fantasia funeral: tentando destarte
compor, até de um certo modo ou arranjo musical em sete partes ou movimentos, à semelhança do gênero litúrgico-sinfônico imitado, uma longa homenagem póstuma, de conteúdo e um certo cunho estético-literários, para
mais condizente e condignamente evocar a personalidade e a ação pedagógica do nosso grão-mestre da grande literatura e esteta completo ele-mesmo.
Entremeando ali, desse modo, ao meu próprio e prosaico discurso evocativo
de sua vida e de sua morte, e das cerimônias simples, mas significativas e
tocantes, das suas exéquias (relembradas a partir do rito eclesiástico-acadêmico da solene e afetuosa missa de réquiem, do sétimo dia, celebrada por sua alma
e seu espírito, em meio a hinos, odes, antífonas, epicédios, elegias, preces,
cânticos, litanias e lamentos, de música e poesia, harmoniosamente), e por
entre as recordações biográficas inseridas naquela pretensa partitura
discursiva, toda uma tessitura de escolhidas citações e referências literárias,
artísticas e filosóficas, dentre as suas grandes e altas predileções intelectuais.
E intercalando em especial, como compassos maiores desse rememorativo
concerto de imagens e palavras, o relato de um episódio esquecido ou despercebido, porém marcante do ato mesmo do seu sepultamento (como o
recordaremos e interpretaremos) e, de entremeio a essa frisante recordação,
uma antologia de versos lírica e dramaticamente incidentais ao nosso texto,
colhidos na obra dos seus mais próximos amigos poetas já mortos (além de
outros poetas de sua eletiva afinidade), todos eles, em maior ou menor escala de tempo, arrebatados prematuramente em relação à sua própria morte
ora por nós em versos deles conjurada.
O referido e recordado episódio, constituído por um insólito even72
Asas da Palavra
to advindo em meio ao préstito comum do seu enterro, no meio do caminho de sua jornada última para a sepultura, envolveu, como aqui ao longo
e ao final se verá, o último preito de admiração ou mesmo de sincera
veneração, prestado por um grupo fraterno de alunas e amigas suas, todas
igualmente consternadas e órfãs de sua partida, mas que ao templo do
túmulo serenamente o levavam, e que, apesar de ali exalçarem-no, como
veremos, ao alto empíreo, ao assento etéreo onde subira, dessa terrena e
grande tristeza ficavam cá na terra sempre tristes. Foi recordando e assim
melhor compreendendo aquele episódio insólito e simbólico, também lírico-dramático, da sua hora mortis (e foi recorrendo, em sua homenagem e
memória, àquele comboio de cordas que nas calhas de roda / gira, a entreter a
razão), que em nosso texto reconstitutivo e rememorativo, fazendo e deixando correr a recordação e a interpretação alegórica daquele também
mágico-elegíaco gesto de homenagem  que além disso decorreu a um
só tempo de um certo impulso lírico e um certo ímpeto épico de
exaltação, traduzindo-se imediata e diretamente, como se verá, na força
moral e física dos braços e das mãos, daquelas boas e fortes amigas, a
suportarem naquele ato e momento o muito pesar da alma e toda a dor
do coração, num brado gestual eloqüente e incomum entre mulheres
em nossa cultura e em tais e tão pesarosas ocasiões , pouco a pouco
vieram então surgindo, em meio ao nosso discurso de requiem mas também de gloriam, como natural ressonância e vivas reminiscências no interior da evocação literária do velho amigo e professor, e a par e passo
com aquelas imagens efetivamente reais, relembradas, poemas inteiros
e versos especiais daqueles seus mais chegados e mais jovens amigos
por ele mesmo de certo modo feitos e aclamados poetas (ele, o virtual e
virtuose fazedor de poetas), os quais, como dissemos, bem antes da sua
morte já eram mortos, e tivera ele por muito tempo de vê-los e revê-los
(relê-los!) dolorosamente sepultos na palavra e na herma dos seus
redivivos poemas. Poetas e amigos, assim, que lá nos jardins de outra
arcádia mais amena, extraterrena, estavam e vinham juntos, magicamente,
jubilosamente, na aura literária de nossa recordação e imaginação, a
conclamá-lo (como os ouviremos pelas vivas vozes dos seus incidentes
versos) para reunir-se a eles e imortalizar-se, transcendentalmente, na
eterna irmandade dos poetas mortos.
Estranhamente, ou antes, misteriosamente, daquele mysterium fidei
ou mysterium verbi de que participa o mistério da poesia, fautora e
enunciadora do sagrado (sobretudo o fogo sagrado do espírito, a sarça de fogo
da palavra, fogo-flama roubado miticamente aos deuses, ao próprio Zeus,
portanto e por excelência o sacrilégio original; fogo preservado e sempre
reacendido, poeticamente mais do que prometeicamente, pelos homens
enquanto lúcidos ou iluminados poetas: O som desta paixão acende o fogo /
eterno que roubei, que te ilumina / a face zombeteira e me arruína), misteriosamente, pois, foi em meio ao diferente e vário ressoar daquelas vozes (não,
sobrenaturais, mas super-reais: todas históricas, todas catárticas, todas patéticas, e
todas poéticas, todas utópicas, todas melódicas, todas uníssonas) que de
repente percebi e entendi claramente, isto é, ouvi, escutei e compreendi
de um golpe, de modo heurístico, na própria gama verbal e semântica dos
versos ou dos poemas de um só deles, como num heureka da lembrança e
Asas da Palavra
73
da leitura, que uma daquelas vozes (já há pouco ouvida em sua risada
zombeteira, sarcástica, sacrílega), precisamente a do mais jovem dos quatro poetas e amigos mortos, soava aos meus ouvidos e na própria consonância, na significância do texto  voz especialmente ressoante naquele
contexto funeral e cemiterial em que se evocava uma celebração ritual do
sagrado em si, e eminente, que é a própria entidade e majestade da Morte
, soava ali e reincidia, claramente, com um tom de agudo, profundo e
marcante, deliriante sacrilégio, radicalmente poético, na sua expressão blasfema e bela, herética e cínica, sardônica e serena, de tudo aquilo que há ou
possa haver de mais eminentemente sagrado na experiência humana: a
sacralidade do próprio Homem, único ser a quem o Ser con-cerne, essencialmente implicados um com o outro. O que a tornava e torna, a essa voz
rompente, rampante, e fundamentalmente heresíaca por conseguinte, como
iremos ver e ouvir em algumas das suas mais fortes pronunciações, ainda
mais autêntica e profundamente sacrílega, quer dizer: a própria e pura contra-dicção do sagrado, ir-rompendo a e da própria cristalização do espírito
sacralizado. Tal voz assim, sonora e ousada, ressoante e irônica, já se percebe, era e só poderia mesmo ser a do poeta predestinado e fatalizado de
O Homem e sua hora.
74
Com efeito, percebemos e verificamos, quanto mais versos seus
ressurgiam e ressoavam na evocação do velho amigo e mestre, e com a
imediata e seguida leitura ou releitura então feita desses e outros poemas
seus, que se trata não só de um poeta malsinado pelas musas e pelos fados
(como em tantos versos-vaticínios se auto-sentenciou ele), nem tão-só de
uma poesia amaldiçoada ou mal-entendida em sua e nossa época (morto
o autor das heresias e blasfêmias criminalizadas, a penalização recairia então
sobre a própria obra, interdita, escoimada, “queimada” de certa forma,
até certo ponto e até certo tempo, nos arraiais oficiais, nos meios ortodoxos ou acadêmicos mais conservadores), mas sim de um prototípico, inaudito e completo poeta sacrílego, num sentido essencial; e radical, isto é, que
vai à raiz da questão, à raiz do sagrado na própria raiz da linguagem (sacri
+ legiu), para erradicar hereticamente (criticamente) o que possa haver de
necrose do sentido em todo discurso sacralizado (mítico, religioso, poético, estético, político, filosófico etc.), de modo a restituir a força de sentido
do sagrado à e na linguagem, até à raiz etimológica mais originária do
sacrilégio, da palavra sacrílega, própria da poesia, naquele ínsito sentido
mallarmaico de dar um sentido mais puro às palavras da tribo. Nesse
sentido, toda verdadeira poesia é heresia, por natureza e definição, cada
poema no seu grau próprio alcançado, uma vez que lhe cabe e compete (é
da sua competência mesma, lingüística, poética e histórica) fazer a crítica das
linguagens cristalizadas, sacralizadas, necrosadas, e assim a cada vez reativar
a krísis da linguagem, fazer a haíresis interna do próprio discurso poético.
Nosso poeta ele-mesmo, por sinal, já num dos assinalantes poemas iniciais de sua obra in fieri, aquele heráldico e hermético Brasão d’armas lúcidas e
da rosa transfigurada, insculpiu em ouro e luz as suas infensas insígnias, a
sua divisa crítica, o seu lema de luta, o desafio inerente e erístico de sua
poesia: Nasce um verso rampante, um brado, um solo / de lira santa e brava 
minha lei. Essa a lei originária da linguagem, dura lex (legis); essa a lira órfica
da poesia, que traz inscrita de origem na sua própria e brava palavra aquela
Asas da Palavra
santa ira, mítica e histórica, de todas as fúrias sagradas, todos os autênticos,
radicais e legítimos sacrilégios.
Mas não se trata, nem poderia tratar-se, de considerar Mário
Faustino meramente um poeta herético, no sentido mais tradicional e
comum do termo, como o foram todos os poetas ou escritores ou artistas
réprobos, da nossa tradição, condenados ao fogo do inferno ou
anatematizados pela língua de fogo de todas as santas inquisições, contudo a
seu modo ou de algum modo “religiosos” quase todos, doutrinários ao
contrário, crentes à rebours (ainda que depois arrependidos ou até retratados), que por isso mesmo sofreram no passado (ou eventualmente sofrem ainda) algum tipo de perseguição ou maldição religiosa e/ou política, ou literária até, como por exemplo, em nossa língua portuguesa, Bocage,
Antônio José da Silva, Guerra Junqueiro, Gregório de Matos, Castro Alves,
Sousândrade, Augusto dos Anjos, e decerto outros.Também não se trata
de considerá-lo simplesmente um poeta satânico (embora à sua maneira o
sendo num teor e num tom mais modernos), nem mesmo na grande e
variada tradição do satanismo poético blakeano, byroniano, baudelaireano,
lautréamontano, rimbaudiano etc. Tampouco, e muito menos, um simples poeta blasfemo nos termos puramente retóricos, não obstante ousados e ardorosos, de um Castro Alves, por exemplo; embora a blasfêmia
em si, como forma e força da linguagem no poema, como palavra rebelada e procelária (heresia irrompendo em poesia, num certo rasgo de palavras conflagradas, numa certa flama verbal, ao mesmo tempo inflamada e
infamante no seu fogo vivo: O som desta paixão esgota a seiva / que ferve ao pé
do torso; abole o gesto / de amor que suscitava torre e gruta, / espada e chaga à luz do
olhar blasfemo; ou quando, num giro eficaz de hipálage, a blasfêmia se investe na própria imagem, na própria linguagem do poema: ...corrente onde
blasfemas / gaivotas provam peixes de milagre; tão conflagradas palavras, com
sua inapagável flama castroalvina, que eu mesmo  hypocrite lecteur, mon
samblable, mon frère¾ me senti queimar e consumir nessa lavra insana, sagrada, na sarça ardente dessa palavra, mais do que blasfema, sacrílega palavra), embora não seja portanto, a blasfêmia em si, como forma e força de
expressão sacrílega, um recurso ausente do seu verbo e da sua verve; que
aliás não deixam de às vezes refletir, não certamente o tom grandíloquo
e os altos raptos hiperbólicos, mas o timbre, a gama, o estro, o surto
castroalvinos, em especial nas imagens marítimas ou talássicas mais vigorosas, mais bravas, mormente quando investidas no impulso e no ritmo do
decassílabo heróico, tal aquele Espumejante herói de cem naufrágios! e outros
versos mais; como em quase todo o antitético e metabólico Soneto Marginal, no qual lavra, de fio a pavio, a palavra bravia, escalavrada e
conflagradora, de Castro Alves (ouçamo-la, vejamo-la, nesta super-imagem duplamente faustiana: O açor rebenta o azul e a pomba, espedaçada, /
ensangüenta-me o rastro ...; sem falar naquele acusador cadáver ... hecatombado
pela vaga, nem no igual condor sangrento que é ali o sol, troféu tripudiado), nosso
mais precoce e mais forte precursor, a seu modo e no seu tempo  coincidindo à distância com as bravuras (do lat. barbaru) sinfônicas, tremendas,
do suprablasfemo Lautréamont , das distorções e contorcimentos, dos
absurdos e cargas estético-temáticos do surrealismo e do expressionismo,
a que se liga em boa parte a “tripudiada” linguagem poética de Mário
Asas da Palavra
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Faustino.
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Por outro lado, embora não se restrinja a este conceito mais caracteristicamente romântico-simbolista, Mário Faustino pode sem dúvida, até por afinidades poéticas (temáticas e formais), ser religado à linhagem verlainiana dos poètes maudits (Baudelaire, Lautréamont, Corbière,
Rimbaud, Mallarmé, e outros, anteriores e posteriores). Como é sabido, já
desde a antiga República de Platão e, em particular, no mundo burguês
moderno dos filisteus da cultura (antípodas dos mecenas aristocráticos
do Renascimento), denunciados em pleno Romantismo pelo Stello, de
Alfred de Vigny, quando a tendência ou mania do mal do século agravou
ainda mais a situação, até se chegar, depois do processo de Baudelaire por
causa das suas despetaladas e ameaçadoras Flores do Mal, aos protestos e
denúncias de Verlaine em favor dos novos poetas incompreendidos e
discriminados (e em função também de suas próprias atribulações pessoais, embora não tanto de sua musical e suave poesia, em geral bem aceita),
sempre os artistas e os poetas em especial, por sua visão crítica e sua
natureza visionária, sua linguagem desviante e contraditante, a-normal, anômala (desobedecendo e modificando, ou mudando radicalmente as normas, as regras, os códigos consolidados, estabelecidos), têm sido alvo de
desconfiança, discriminação, mesmo incriminação, ou pura e simples maldição: são eles “a raça maldita” por sua própria condição de insatisfeitos,
inadaptados, diferentes, por isso rejeitados, marginalizados, ou banidos e
condenados para sempre pelos que detêm o poder neste mundo, os supostos donos ou dominadores do mundo, os poderosos ou superpotentes
senhores do Céu e da Terra, do Sol e l’altre stelle (inclusive os poderes
acadêmicos dos sistemas literários e universitários). Em outras palavras,
ainda mais frisantes da ingênita maldição da raça: poetas malditos, no
duplo sentido fundamental, ligado à própria forma e acepção dessas palavras, de serem ao mesmo tempo precitos e proscritos da ordem social, da
“norma culta”, da “gramática normativa” da sociedade, justamente por
sua anormalidade ou anomalia de pensamento e de linguagem. Neste sentido, tivemos e temos na história da literatura brasileira toda uma “plêiade”,
quero dizer, toda uma súcia ou malta de poetas malditos: a começar pelo
mesmo ob-scenu e desbocadoGregório de Matos, sintomaticamente
cognominado nada mais nada menos que o “Boca do Inferno”. Em seguida, os poetas inconfidentes, denominação em si mesma indicativa, que
foram presos, segregados, degredados, proscritos. Entre os românticos,
os mais boêmios e rebeldes: Álvares de Azevedo, o notívago das tavernas,
o mais byroniano e blasé dos nossos românticos; Fagundes Varela, o bêbado dos arrabaldes, oscilando a pobre lira entre os cantos do ermo e da
cidade; o Castro Alves dos teatros e dos comícios, dos vastos mares e dos
infinitos céus, da mocidade e morte, dos amores sensuais, de Eros contra
Thánatos (Oh! Eu quero viver, beber perfumes ... No seio da mulher há tanto aroma
... Quero boiar à tona das espumas ...), o lírico erótico, liberado, não mais
tímido e casto, das formosas mulheres banhadas no pranto das alvoradas,
e que foi também, acima de tudo e de todos, o nosso mais tempestuoso e
intempestivo poeta blasfemo, das apóstrofes catastróficas e retumbantes
(irrompentes e rompantes!), não raro até maldorrorescas em sua cósmica
revolta, vazada em hecatombes e diatribes; e ainda, já a meio caminho do
Asas da Palavra
simbolismo, o próprio Sousândrade, um caso à parte, desterrado do seu
próprio tempo, o grande errante, das harpas selvagens e dos valores indígenas, dos novos ventos políticos e das inovadoras formas futuras. Entre os
simbolistas, mais esteticistas e nefelibatas, recolhidos em sua torre de
marfim, somente Cruz e Sousa, o cisne negro das formas alvas, o emparedado
na sua própria pele, tantalizado na dor e na maldição da raça, crucificado
no seu próprio nome e na sua própria desgraça, social, física e espiritual; e,
de novo, o também herético e blasfemo Augusto dos Anjos (cujo próprio
nome aliás, suma ironia, é uma excelsa blasfêmia por si, ou uma heresia
batismal), poeta do pessimismo cósmico absoluto e da linguagem absolutamente esdrúxula, de inaudito acento proparoxítono (antes quase interdito à poesia) e contorcidamente expressionista avant la lettre. Já entre os
modernistas, os nomes seriam quase todos (que quase todos foram durante muito tempo rejeitados, repelidos, malfalados, mal-afamados, enfim, mal-ditos), mas vamos citar apenas os mais denegridos e apedrejados, os três Andrades: Mário desvairado e macunaímico, Oswald canibal
experimental, e Carlos gauche na vida, deambulador do tempo e do mundo, lutador corpo a corpo com as palavras, pastor sem paz da memória e
minerador tenaz da morte e do amor, sem redenção. Por fim, dentre os
pós-modernistas, além do próprio Mário Faustino, maldito até no clube
da poesia, quanto mais no grande público, citaríamos: João Cabral, da
anti-lira, da anti-ode, da poesia-fezes, da palavra-pedra; Ferreira Gullar,
habitante do vento, poeta da luta corporal com a palavra, como Drummond,
do poema sujo, das muitas vozes e barulhos verbais; (não cito aqui os chamados poetas concretos porque eles não são e nunca foram poetas malditos,
antes benditos, bem-vindos, bem editados, apesar de toda a sua briga com
o verso e a prosa, e não obstante os seus reformadores projetos
ideogramáticos, jazidos na teoria e no programa, tendo os seus esquemas
ou diagramas verbivocovisuais, na verdade equivocados poeticamente, sido
bem acatados, absorvidos e aproveitados quase completamente pelas (malas, ou mídias) artes industriais, comerciais, comunicacionais e publicitárias do sistema dominante, que logo transformou a pretensa poesia concreta numa bem dominada e eficiente tecnologia lingüística  uma espécie
de técnica ídeo-picto-cali-tipo-gráfica das palavras, dispostas no espaço
impresso, baseada nas análises da ciência estrutural da linguagem e nos
princípios e conceitos das teorias da forma, da informação, da comunicação, da cibernética, da semiótica, e de outros aportes científicos recentes,
inclusive da lógica, da matemática, da glossemática, e das
“filosofias”gestáltica, analítica e fenomenológica  para produção em série,
sob o signo de uma super-reprodutibilidade técnica, de textos eficazes de
comunicação de massa, ou seja: a própria anti-poesia, se considerarmos o
sentido primordial e estrito da poesia como experiência existencial, como
forma de existência nas formas da linguagem, de conteúdo lírico, épico
ou dramático, ou os três integrados; por onde se vê que a chamada poesia
concreta é na verdade uma poesia abstrata, isto é, que se abstrai e subtrai
do conteúdo poético essencial para tornar-se quase um mero jogo formal
de palavras, ou às vezes nem isso: de pedaços, estilhaços de palavras, sílabas, letras, simples grafemas, ou meros traços distintivos combinados ou
contrapostos, sem maior significado, à semelhança dos literais e vazios
exercícios de análise combinatória que são os palíndromos antigos e me-
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dievais e sobretudo os labirintos barrocos, todos destituídos de qualquer
conteúdo significativo: é o famoso e curioso niilismo temático do barroco
academicista, ou, como diríamos em linguagem mais atual, é a significação
zero, que todavia não tem nada a ver (mas sim a dever) com o grau zero
barthesiano da escritura; como se vê também, por tudo isso, o concretismo
não poderia mesmo, apesar dos seus desforços críticos, técnicos e combativos,
até mesmo iconoclásticos em relação às artes do verso e do discurso,
gerar nenhum poeta maldito, propriamente dito, nem, muito menos, produzir verdadeiramente uma poesia sacrílega, no sentido aqui adotado,
porquanto as suas formas de despersonalização do ego lírico e
dessacralização da linguagem poética, a começar pelas con-sagradas estruturas do verso, da estrofe e mesmo do poema, sobretudo do poema
longo, não passavam exatamente desse nível formal, dessa mera arte poética ou puro ritual litúrgico-semiótico da então “sacrossanta” palavraobjeto de culto, isto é, de uma simples estrutura de superfície, não indo
nunca, por falta de maior substancialidade temática, aos conteúdos sacramentais maiores, e muito menos aos mais profundos, a serem interrogados, derrogados, conjurados, ou mesmo exorcizados, sob o signo de um
autêntico e radical sacrilégio poético; pode-se então concluir que, neste
contexto histórico-literário e sócio-cultural, nossos competentes e aguerridos poetas concretos (ortodoxos!), não tendo sido heréticos nem malditos, blasfemos nem sacrílegos, nem o poderiam ser, foram apenas, e há
muito não mais são, os iconoclastas da literatura, destruidores de ícones,
cânones e molduras literárias  não de estruturas, pois nem o verso nem
o discurso conseguiram nem poderiam conseguir abolir; e ainda bem,
senão, não mais teríamos canções nem poemas, somente ideogramas e
grafemas; não obstante isso, ou por tudo isso mesmo, nossos abstratos
concretistas deixaram um bom saldo técnico em termos de renovação de
recursos formais, sobretudo gráfico-visuais, e novas matrizes de composição do texto poético sintético; eis pois, também, alguns motivos básicos
por que Mário Faustino, embora reconhecendo e assimilando os renovadores recursos do concretismo, não aderiu ao movimento, mantendo-se
numa distância crítica; e, quando e quanto mais se aproximou, mais prejudicou ou desnaturou, a meu ver, a sua própria índole, a sua própria têmpera, o seu próprio modo de ser e existir como poeta, e até a sua maneira
mais verdadeira e própria de fazer poesia: ele que se dizia e era por natureza um fazedor, de mão- cheia, mão na massa, no barro e no limo das
palavras, no fluxo e no ritmo dos versos, na forma e na força das imagens,
das metáforas, e não um rigoroso e meticuloso designer, um desenhador de
textos, esquadrinhando a página para melhor distribuir, diagramar, decompor, pulverizar o universo temático e sinfônico do poema; afinal,
poema, coisa redonda, não pode ser só esquema, diagrama, gráfico de
linhas, traços, letras, sílabas contrapostas, ainda que se monte isso tudo
num pequeno “panorama”, ou suposto “cosmorama”); e, entre nós, the
last but not the least, o paraense Max Martins, certamente um poeta maldito,
na acepção mais atual da pecha, e malmente lido em geral, não tanto por
suas serenas heresias irreligiosas, ou estranhas e peregrinas religiosidades
não-ortodoxas, ou heterodoxias do pensamento e da linguagem, do ser e
do não-ser hermeneuticamente fundidos, con-fundidos, da fala e da cala
no dizer poético, até às lindes do indizível, enfim, da falta e da fenda, do
Asas da Palavra
hífen, do hímen, no inter-dito do poema, nos interstícios da escrita, na
significância e na di-ferência do(s) sentido(s), até o oco do mundo, até o vazio
do silêncio, mas sim ou principalmente por seus hermetismos eróticoerísticos da palavra, sua escrita hiper-gráfica, mas também hipo-grífica,
sua mística e erótica indissoluvelmente poéticas, sua linguagem erógena,
orgiástica, sua letra viva, sua lavra impura: abracadabra, galamalga, ovo filosófico, fala entre parênteses, risco subscrito.
Não é, pois, somente naquele verlainiano sentido da maldição
social do poeta, e do seu auto-isolamento (depressivo ou agressivo) como
rejeitado, malvisto, maldito, marginalizado, que se deve entender o autor
de Haceldama como autêntico e radical poeta sacrílego. Não obstante o
peso do conceito, da expressão e da tradição que carrega, seria ainda muito
pouco para sopesar, para aquilatar a densidade, a profundidade e o alcance mitopoético e metafísico desse teor de sacrilégio, da sua palavra sacrílega ao pé da letra. Na verdade, sua poesia clássico-barroca-românticomoderna, feita ao mesmo tempo de tradição e renovação, incorpora e
reintegra todos os aspectos do embate crítico do poeta com o sagrado: o
mítico, o mágico, o alquímico, o satânico, o místico, o erótico, o herético,
o blasfemo, o anagógico, o teúrgico, o demiúrgico, o escatológico, e mais
o que se possa dizer ou descobrir. Ligando e considerando tudo isso, é
que se compreende o que estou aqui chamando de poeta sacrílego, até o
âmago etimológico do termo e até o cúmulo heterodoxo do sacrilegium
poético. Todavia, sacrílego não por mero espírito anti-religioso do poeta,
nem por simples arrivismo ateístico e iconoclástico (outra forma invertida de fanatismo religioso, ou também político), mas sim para liberar-se de
todo dogmatismo e sacramentalismo, e experimentar, usando e abusando
amistosamente das linguagens sacralizadas, e mesmo das escrituras sagradas,
uma nova, profunda, individual e livre experiência do sagrado, da
consubstanciação existencial, imanente, do humano e do divino, envolvendo imanência e transcendência no próprio curso e discurso da experiência poética.
Diríamos ainda, a propósito, dando um toque de atualidade ao
tema e à questão, precisamente no que toca à problemática religiosa em
nossa época (ou melhor: a intolerância religiosa que ressurge com os
fundamentalismos dogmáticos e fanáticos de todas as partes, de todos os
credos, e politicamente instalados ou implementados), que se pode aqui
aproveitar e aplicar o que recentemente disse no Brasil o escritor angloindiano Salman Rushdie, em tranqüila e lúcida entrevista ao semanário
Veja (nr. 1802, 14/05/2003). Como se sabe, trata-se de um escritor que
foi em 1989 pronunciado maldito pelo regime fundamentalista islâmico do
Irã, que lhe cominou sentença de morte, sob a acusação de que teria ele
blasfemado contra o islamismo no seu romance Os Versos Satânicos (título
diretamente incidente em nossa temática e, como indicamos, num aspecto importante da poética faustiniana). Procurado e perseguido, escondido
e protegido internacionalmente por dez anos, ele conseguiu, mercê dos
deuses e das musas (com o apoio da Interpol, naturalmente), atravessar
incólume “o túnel do medo”, como se auto-referiu, até que, sob pressão
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mundial, o governo iraniano em 1998 suspendeu a condenação. Como
era de esperar de um escritor agora livre do fantasma de sua própria sombra e ainda mais cônscio da liberdade inalienável de ser, pensar, sentir,
dizer, escrever, ele voltou a falar abertamente contra, digamos, as “santas
alianças” entre religião e poder, igrejas e estados, em suma, toda uma e
única hierarquia, eclesiástica e burocrática, dois aparelhos de estado num
só, compondo e impondo uma só instituição dogmática, se não, tirânica,
do Poder. Em certos casos atuais, ressurgidos ou remanescentes, o que se
vê é que há de fato uma nova teocracia instalada (e não exclusivamente de
religiões reveladas, mas também de uma espécie de religião velada por
trás de alguma ideologia autoritária, e totalitária, isto é, absolutista) ou
parcial e disfarçadamente implementada, mesmo no caso de tradicionais
democracias, por meio de manipulações periódicas e estratégicas do discurso religioso. De tal modo que, em qualquer desses casos, são regimes e
discursos político-sociais de dominação, relativa ou absoluta, que procuram
investir-se ou justirficar-se com os dogmas e apotegmas do discurso do
Absoluto, para impedir ou reprimir (em nome de Deus, ou das Leis divinas, como outrora o direito divino de reinar, da Monarquia Absoluta) as
idéias e formas renovadoras, os novos projetos, o desejo de mudança dos
indivíduos e da sociedade. Eis aí o motivo e a origem do próprio e legítimo
sacrilégio: gesto e palavra hereticamente assumidos (isto é, por outra e
nova escolha e atitude, ou nova heresia, outra seita, secta, outro partido
tomado, seguido) na justa luta dos dicursos, na santa guerra das linguagens, em face e no campo da própria linguagem consolidada, sacramentada,
em busca de outros modos do sagrado. No exato sentido, portanto, em
que o nosso assim definido e único poeta sacrílego, plenamente (e provavelmente em todo o cosmos e todo o logos da língua portuguesa, todo o
mundo da nossa língua e literaturas, ou seja, essencialmente, todo o nosso
templum da linguagem, casa do Ser), convoca, desde a primeira e inaugural
Mensagem de sua poesia, dirigida a todos os deuses, desaparecidos ou
porvindouros, e sobretudo a todos os homens ainda de boa vontade, convoca e impele o seu próprio discurso, o seu verso ele-mesmo alado ou de
ímpeto divino, a que o leve em demanda de outras formas do sagrado:
Em marcha, heróico, alado pé de verso, / busca-me o gral onde sangrei meus deuses
(...). E já no indicativo poema-prefácio do seu mesmo e único livro publicado em vida, antecipara ele sua visão potencialmente ou intencionalmente sacrílega, ab initio, de que a experiência poética (não, positiva) do
sagrado é uma permanente ex-periência, uma constante demanda, uma
sempre busca ou contínua renovação (uma re-volução, re-ligação, re-ligo,
re-ligio, re-ligionem) permanente e, decorrentemente, um contínuo dis-curso
sacrílego da poesia; ou o sacrilégio poético em essência, em sendo, não
como ato isolado e estanque, mas sim um processo em curso, sempre
renovado, em demanda de, em contenda com todas as formas de sacralização
cristalizadas, que a cruzada incessante da poesia, sempre o dizer, em transe,
do sagrado (que é combate agônico, não estado extático, de inter-ação
recíproca, no horizonte do Aberto e do Incontornável, em sentido
heideggeriano, entre a terra e o céu, o humano e divino, o ser e o tempo
imbricadamente), tem de combater e enfrentar com suas armas simbólicas, sem cessar, de uma forma que não pode ser outra senão, a fundo, e
sempre, sacrilegamente, que é o mote mesmo, a própria voz e o desafio da
Asas da Palavra
poesia: O som desta paixão desmente o verbo / mais santo e mais preciso (...) E de
tal maneira, também, que o divino só é eterno em sendo e permanecendo
(et maniat semper) sagrado, sagrando-se, constantemente (e não, fixando-se,
consagrado, para sempre), pois só não morrem os deuses que se transformam, se transmutam, os entes divinos que se metamorfoseiam continuamente, poieticamente, inclusive os poetas verdadeiros, como seres mortais
que se imortalizam, que se divinizam pela poesia: Quem fez esta manhã (...)
fê-la para / abandonar-se a mitos essenciais, / desflorada por ímpetos de rara /
metamorfose alada, onde jamais / se exaure o deus que muda, que transvive.
Voltemos então à entrevista de Salman Rushdie, para quem, literalmente: “blasfêmias são importantes, pois é graças a elas que o mundo
avança”. E ele assim explica e justifica: Sócrates, o próprio Jesus e Galileu
foram considerados blasfemos; os filósofos e escritores do Iluminismo
(Voltaire, Rousseau, Diderot) usavam da blasfêmia, aberta blasfêmia (reforcemos, como aliás já em si diz e pede a própria embocadura da palavra) como tática deliberada para obter maior liberdade intelectual, cujo
grande inimigo, para eles, não era o Estado mas a Igreja; e mais, enfatiza
o escritor: blasfemar com alegria era para eles um modo e um meio de
dizer (uma forma de linguagem, uma figura de estilo, digamos, um tipo
de sacri-légio no e do próprio discurso, conforme estamos aqui empregando o conceito e o termo) que não aceitavam mais os limites que a
religião impunha ao pensamento. Ora, é precisamente esse “blasfemar
com alegria”, na feliz e franca expressão do romancista maldito, que
captamos e quase sorvemos na linguagem teúrgica e demiúrgica (deuses, santos, anjos, musas, ninfas, mitos, heróis, oráculos, mistérios, milagres, promessas, belezas, graças, gozos, dores, agonias, êxtases, porém
misturando voluptuosamente o sagrado e o profano, o divino e o humano, matéria e espírito, carne e verbo, amor e morte, céu e inferno,
mundo e linguagem, tempo e eternidade, enfim, poder-se-ia resumir
numa cinematográfica blasfêmia: Deus e o diabo na terra do sol), linguagem
investida e marcada de todo o fervor irreligioso que há no autêntico e
radical sacrilégio, é pois esse “blasfemar com alegria”, sem soberba nem
rancor, mas sem culpa e sem medo, que a nosso ver perpassa a obra
poética inteira e inacabada de Mário Faustino, embora existam nela
momentos de bem maior densidade e intensidade da expressão sacrílega, como sobretudo no poema-título do livro e em alguns mais típicos
dos disjecta membra e dos esparsos, como alguns já citamos e outros citaremos.
Feita esta espécie de “ouverture” teórica e temática, ou introdução histórica e conceitual ao tema específico do nosso título, vamos passar à leitura (se assim o desejarem) de alguns largos trechos da pretensa
fantasia funeral (como a chamamos) em que de um modo algo mítico e
mágico rememoramos a morte e celebramos a memória do velho Chico
dos nossos rios de alunos e alunas, dos cursos e discursos literários, artísticos, filosóficos e estéticos em geral, colegiais e universitários, e dos diversificados e tantos círculos, simpósios, conferências, exposições, encontros e debates culturais da nossa velha cidade, numa grande roda e num
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redemoinho de amigos e admiradores, ao longo e ao largo de quase todo
esse estuário de correntes e tendências do século XX, que ele viveu e
acompanhou até o fim, ou quase viu nascer e morrer com ele. Queremos
lembrar, entretanto, que nessa evocação ampla da sua figura e personalidade intelectual, ora restrita aos trechos aqui editados, atém-se este nosso
texto àquele episódio inusitado do seu sepultamento, que iremos relatar,
descrever e interpretar alegoricamente, e, em preâmbulo e de entremeio a
ele, até o final, a evocação e a invocação sucessivas e simultâneas dos
nomes e dos poemas ou versos dos seus aludidos amigos poetas, mortos
precocemente a ele, os quais nos reaparecem assim, poeticamente, como
em tertúlia imaginária e transcendente, conclamando-o e recepcionandoo no Olimpo celeste dos deuses e das musas, por força e pela voz mesma
dos seus versos incidentalmente invocativos e convocativos. É de dizer
também que, dentre eles, sobressairá a figura, ou o vulto metafórico, e
sobretudo a fala virtual dos versos re-citados e transcritos, do mais jovem
(daquela jubilosa e estuante juventude, quando a jusante a maré entrega tudo) e
o mais teatral ou contracenante dos seus amigos poetas mortos  o do
primeiríssimo e inaugural Primeiro Poema, já então dedicado ao amigo, o
virginal poeta recém-nado ainda em sonho com sua voz de anjo que acordou;
o que veio por sobre as ondas, trazendo a paz e as distâncias, e tendo na boca ...
mundos e nos olhos palavras; o dos poemas do anjo e dos dois motivos da rosa, o
que se sentira o encantador do mundo! e que morrera deste belo sofrimento / de ser
maravilhoso!; o de voz multiplicada, aquele que é o Ressuscitado pelo embate da
ressaca.
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Lembraríamos, ainda, que os versos re-citados em função e em
abono do nosso tema-título não serão objeto de análise para demonstrar
ou explicar a definição do autor como poeta sacrílego; mas sim, apenas,
invocados para mostrarem e frisarem por si mesmos tal definição, uma
vez que não se trata de um estudo analítico, rigoroso, minucioso (que
todavia pode ser perfeitamente levado a efeito, pois a obra poética de
Mário Faustino está pontuada e pontilhada de uma visão e expressões
efetivamente sacrílegas, no sentido afirmativo do sacrilégio, aqui adotado).
Porém se trata sim, como de início anunciamos, e assim é que a entendemos, pretendemos, e escrevemos, precisamente de uma fantasia: não uma
fantasia exata, exegética, rigorosa e objetivamente construída nos seus suportes teóricos e metódicos de análise minuciosa e explicitativa do objeto,
decompondo-o, pormenorizando-o, dissecando-o em estruturas e elementos, disssolvendo-o em aspectos e significações, ou seja, destruindo-o na
sua inteireza e beleza de objeto poético ou estético para reconstruí-lo
intelectualmente num constructo interpretativo, demonstrativo e
clarificador, como é o árduo trabalho e o prêmio incerto da boa crítica
fenomenológico-hermenêutica, em qualquer das suas direções ou preferências de enfoque (histórico-cultural, sociológico, psicológico, psicanalítico, semiológico, estético-estilístico, ou todas de envolta, conforme o estofo intelectual e a paleta sensível do crítico); mas sim, e simplesmente,
uma prazerosa, subjetiva, livre, pretensa fantasia musical, feita de vária leitura recitativa e evocativa dos poemas e dos poetas, dotada de uma certa
forma ou nota interpretativa; não exaustiva, pois, mas tão-somente
perceptiva e apresentativa: em primeira mão ou audição, digamos, até num
Asas da Palavra
certo e simples sentido musical da execução, portanto com um certo e próprio toque de interpretação dos poemas lidos, re-citados.
Desse modo, o que se quer e se vai apresentar (sem analisar) por
meio de uma quase aleatória (ao sabor da memória e da leitura) rapsódia de
versos e/ou de imagens poéticas, de diferentes poetas e de diferentes
épocas ou estilos (além dos quatro preferenciais), inserida em nossa imaginada e pretendida fantasia funeral, de póstuma homenagem (bem mais
ampla, aliás, no todo completo do nosso discurso fúnebre, com seus sete
e encadeados movimentos compositivos, do que as partes ou trechos a
seguir apresentados), forma e configura uma espécie de prolongado e
intermitente recitativo de versos líricos e sacros, estes não canônicos nem
ortodoxos: posto que sacrílegos, muitos deles, na sua própria e herética
ou heteróclita expressão sacral, tal como os consideramos e adiante os recitaremos (alguns já acima citados de antemão, prenunciando o tom dominante da evocação mais ampla do tema, e do clima fantástico-elegíaco,
a se tentar criar ou sugerir). Recitativo, pois, que iremos entremear,
parentética e interpretantemente, ao texto geral do fúnebre recordo narrativo e descritivo, ou alegórico ricercare em que relembramos e também
interpretamos a cena cemiterial aludida. Não quer dizer, porém, que não
haja um certo jogo ou às vezes um certo giro interpretativo, também, na
escolha, na colocação e nos comentários das citações ou recitações
evocativas. De modo que, no conjunto, ou mesmo no detalhe, o que a
seguir se lerá é um discurso de cunho evocativo-interpretativo, mas sem
pretensões rigorosas de análise e exegese, sem maiores preocupações teóricas e nenhuma preocupação metodológica formal; donde, não se recorrer diretamente a determinada bibliografia nem se fazerem quaisquer referências bibliográficas, a não ser as inevitáveis (dadas no corpo do texto, de
forma direta ou indireta) e as que automaticamente se colam aos próprios
versos, poemas ou livros citados. Vamos, pois, aos trechos específicos
desentranhados do longo réquiem em prosa e verso que reescrevemos
para lembrar e celebrar, com algum engenho, arte, música e poesia, o
nosso grão-mestre e bel-amigo, tornado mito. E de entremeio aos quais
eclodirão alguns dos versos satânicos, heréticos, ou mesmo blasfemos, do
nosso talvez único efetivamente poeta sacrílego no sentido essencial e radical.
—— xxxx ——
A justeza e a beleza conceituais dessa configuração idealizante do
retrato intelectual do nosso notável mestre, sob a égide e a efígie estéticoreligiosas da figura hegeliana da bela alma (die schöne Seele), ressaltam imediatamente e se ajustam com perfeição à sua pessoa e ao seu espírito. E
tanto mais completamente quanto se sabe que a figura histórica e artística
na qual Hegel terá inspirado os traços finais dessa encarnação estéticofilosófica e ético-religiosa do espírito subjetivo, definindo-se tal figura sobretudo pelo caráter contemplativo, e com um duplo nexo de sensibilidade e misticismo, estesia e êxtase, foi a de Novalis, poeta romântico por
excelência, do qual o nosso retratado prezava e até certo ponto partilhava
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a visão mística, nostálgica e noturna (não a melancolia nem a obsessão da
morte, contudo; embora partilhasse com o poeta alemão uma simbólica e
melancólica desdita biográfica: a dolorosa perda de sua primeira e única
noiva  e ele talvez por isso nunca mais de novo noivaria nem jamais se
casaria , precocemente falecida antes que houvessem e convolassem
núpcias; de modo que ele teve também a sua perdida Sofia, ou mais simbolicamente, a sua embalsamada Ofélia, e cultuou longamente na lembrança a imagem poética de sua Ismália  quiçá indício do seu grande
afeiçoamento ao musical lirismo espiritualizante do nosso mais suave poeta
simbolista , de sua flutuante e longínqua infante defunte, talvez, sempre
liricamente ressurgindo-lhe, envolta nos mantos diáfanos da poesia; fato,
e mito pessoal, que sem dúvida terá influenciado na sua perseverante identificação com a poesia lírica de Novalis, repassada de místicas associações
de amor e morte, da nebulosa noite e suas fantásticas visões, nas quais o
nosso mestre solitário bem poderia ver, quem sabe, evocando também os
versos visionários do seu amigo Ruy, que ele decerto sempre relia ou
relembrava, o vulto e a sombra da amada escurecida, como se também ele
desejasse adormecer sobre a grande noite / da amada escurecida, ou se deixasse
ficar como o que espera as visões da grande madrugada, como o que permanece
com os olhos abertos compassivamente / para o grande retorno da amada escurecida);
o mesmo e contemplativo Novalis, portanto, que foi também, como poeta e pensador romântico, um dos grandes prediletos do nosso mestre,
que talvez só o tenha postergado, como poeta místico-metafísico, na absoluta predileção que manifestava pela poesia pós-simbolista de Rilke, o
dos Sonetos a Orfeu e das Elegias de Duíno, igualmente obcecado pela temática
unitária do amor e da morte, porém numa visão e numa expressão modernas, que melhor traduzem a compreensão poético-existencial a que
chegara o nosso preclaro mestre e clarividente amigo. Tanto assim que,
fiel a essa devoção poética, ele organizou e prefaciou com especial dedicação e diligência a edição póstuma de toda a poesia, concluída, esparsa,
inacabada, e traduzida, de um dileto amigo seu e poeta nosso dos melhores, o já antes evocado Paulo Plínio Abreu, que tão cedo nos deixou, e que
foi eminentemente um rilkeano, tendo inclusive traduzido, além de alguns
outros poemas, as completas dez Elegias, em colaboração com Peter Paul
Hilbert, talvez a primeira tradução integral do ciclo feita no Brasil; ousada
e boa tradução, que o nosso devotado mestre incluiu e referiu na sua
cuidadosa edição com tanto entusiasmo, e uma certa e sincera ternura de
admirador e amigo; e que ao ainda jovem poeta e tradutor, prematuramente desaparecido (e quiçá premonitoriamente interessado em traduzir
versos não raro dirigidos aos que sabem e conseguem estar a postos e arderem na plenitude do coração, perseveradamente, quando essa mesma e ardente
sedução do florescer, no auge da juventude, assim como a brisa noturna mais
suave / lhes toca a mocidade da boca, toca-lhes as pálpebras: aos que souberem
como soube ele, Plínio, glorificar o pleno florescer, viva e direta imagem
que o poeta colhe da grande metáfora genésica da figueira, de sua premente floração em busca da ventura maior dos frutos maduros, e da qual
seus versos meditantes recolhem, por magnífica e simples metamorfose
poética, a seiva e o sentido de nosso fruto final, em cujo âmago e segredo...
traídos penetramos; versos assim precipuamente dirigidos aos heróis, talvez, e
aos destinados ao desaparecimento prematuro, a todos esses trágicos predestina-
Asas da Palavra
dos, aos quais a morte jardineira de modo diferente torce as veias), e que ao ainda
jovem poeta e tradutor, por conseguinte, revelam-se poemas e versos que,
mais do que traduzidos, interpretados e incorporados são, assimilados ao
mais íntimo de sua individualidade humana e artística, e que a ele, pois,
tão prematuramente levado a provar desse fruto final, reenviamos aqui de
volta, em póstuma e justa remissão a si mesmo, à sua experiência lírica da
vida e da morte, sorvidas num mesmo fruto dadivoso; referência, ou antes, pura reminiscência que ainda queremos completar em especial com
este outro verso da mesma elegia sexta, verso também tão simples e sensivelmente vertido, e tão simbólico de sua pressentida e lamentada morte,
como a ele o remeteria por certo, em elegíaca reflexão, o sentido pensamento do amigo:  Estranhamente perto está o herói dos que morreram jovens. E
ainda mais diretamente lhe reenviaríamos, pelas recordações escritas do
velho amigo, o seu próprio verso tão comoventemente invocativo, que o
mesmo e impressionado amigo destacou no aludido prefácio como sendo “de pura descendência rilkeana”, e que, nestas páginas rememorativas,
de fato especialmente assim ressoa: Tu que vestes os mortos com o que cai do
coração dos vivos. Enfim, podemos então reafirmar e proclamar, agora com
todo o rigor e todo o valor histórico-filosófico da expressão —
entronizando este seu perfeito retrato intelectual, segundo o vemos, posto em rica e nobre moldura estético-metafísica, entre os excelsos nomes
de uma galeria transcendental — que o nosso mestre foi não só um grande espírito mas um alto espírito, que o nosso amigo foi não apenas uma
grande alma, porém, rigorosamente, uma bela alma.
Diria então, fazendo ainda neste ponto uma homenagem
ao seu gosto poético e estético da vida, e pela vida em si, a vida mesma e
mínima que fosse, pelo simples gosto vital, ou mesmo mortal, de viver
(viver ou vivenciar algo tão intensamente até morrer, como se diz: um
morrer de viver, paroxismo da própria vida!), o que era já em si um repúdio a qualquer anseio de morte, real ou imaginário, e um gosto intenso de
viver que nele se revelava até numa certa volúpia com que buscava não só
o sabor do vivo mas o próprio e vívido sabor das palavras, como tantas
vezes o vimos tentando como que palpá-las, sorvê-las, degustá-las poeticamente (ou desdobrando tudo isso num digressivo parêntese: era aquela
vida mínima, essencial, a que ele se apegava, como em Drummond — a vida:
captada em sua forma irredutível, / já sem ornato ou comentário melódico, / vida a
que aspiramos como paz no cansaço ... (Não a morte, contudo); e ainda: Não o morto
nem o eterno ou o divino, / apenas o vivo, o pequenino, calado, indiferente / e solitário
vivo — isso, como o poeta, ele ainda e avidamente buscava e queria; não a
morte, repita-se). E o queria e buscava, no seu afã de viver, no seu elã
vital, sem alimentar ilusões nem fantasias metafísicas, ou meramente metafóricas, românticas ou não, acerca dos profundos nexos essenciais, ou
absurdos e absolutos amplexos, do amor e da morte em conjunção, fantasticamente envolvendo-se e entrelaçando-se, como numa dança macabra,
frenética ou suspirosamente entrelaçados, sob a atração fatal da Inexorável.
Não, sob este aspecto, ele sem dúvida experienciava a fatalidade da morte
de maneira adversa à do jovem e ardoroso poeta que ele mesmo descobriu e que se tornou, não apenas por força do próprio nome, o seu faustiano
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amigo. Também não, certamente, o poeta infernal dos Sete Sonetos de Amor
e Morte, trespassado pelas sete setas satânicas, prazerosamente martirizantes,
da linguagem e da vida envolvidamente implicadas na sua experiência
radical da poesia e da existência, de uma existência poética desatada, ou
dessa Vida toda linguagem, vida sempre perfeita, como ele a entendeu e viveu,
toda uma vida selada em signos, vazada em címbalos e símbolos, como ele
mesmo a cantou e transfundiu, tentando dar-lhe outra, imortal sintaxe / à
vida que é perfeita / língua / eterna. Adverso não, pois, a esse órfico, fáustico,
infernal poeta, ao mesmo tempo angelical e demoníaco, arcanjo e facínora, inocente e satânico simultanemanete, na mesma medida, ou numa só e
funda dimensão poético-existencial, que ao mestre e amigo tanto surpreendia, assustava, e fascinava. Nem o poeta que, também ele, fez
abrasadoramente a sua estação infernal, a sua breve prova de fogo, a sua
talvez mais forte e intensa do que Une Saison en Enfer, ao largo e ao longo,
à brasa ardente e ao fogo vivo de sua mortal e vital poesia — Inferno, eterno
inverno, quero dar / Teu nome à dor sem nome deste dia / Sem sol, céu sem furor,
praia sem mar, / Escuma de alma à beira da agonia. / Inferno, eterno inverno, quero
olhar / De frente a gorja em fogo da elegia —, e que, também iluminado poeta
estelar, constelar, produziu em versos de luz e rimas lampejantes as suas
próprias Illuminations, como verdadeiras iluminuras líricas e alucinatórias,
tão intensamente alumbradoras para o seu mesmo amigo tão
confessadamente rimbaudiano; o qual aliás, ao seu próprio e discreto modo,
soubera também vogar e banhar-se embriagadoramente no mar do poema, como bateau perdu sous les cheveux des anses. Adverso pois, não ao
argonáutico poeta das grandes viagens imaginárias, visionárias, singrando
sem rumo, à vela de ouro da palavra, ao sabor dos velhos temas, os mares
já sempre e nunca dantes navegados da linguagem, da grande aventura
mítica, rítmica, marítima, epo-lírica, agônica e talássica, da sua herói-trágica poesia. Mas sim adverso, em matéria de amor e morte, ao simplesmente lírico e onírico poeta da falsa balada Romance, tão melodioso e insinuante poemeto que não tinha talvez outra razão de ser a não ser essa valsa
envolvente e as puras razões da férvida imaginação, de envolta com as
formas alegóricas da mais dançante e lúdica e alegre expressão, naquelas
rigorosas redondilhas maiores do seu mais sedutor romance poético, ao ali
cantar  com todo o celeste enlevo que soube dar às Festas da Agonia  as
amorosas e dúbias seduções do Anjo fatal (e da Besta feroz), cantando-as,
com certo acento neo-romântico, ao modo antigo de um nostálgico e
celestial vilancete, ou dançante vilancico, e como que tangendo um risonho e trovadoresco alaúde, num tom sutilmente irônico, mas não o suficiente para quebrar o encanto de tão volteantes versos, na última e mais
envolvente volta dos quais deixa ouvir no entanto, com estridente estardalhaço  qual gargalhada satânica, fantástica e sarcástica, tal qual em
vida sabia dá-las e soltá-las à larga pelas salas  o seu mais desconcertante
e súbito descante: Não morri de mala sorte, / Morri de amor pela Morte. Porquanto, ou porque no entretanto da humana lida e condição, ao contrário
da alucinante valsa desse amor fatal, oniricamente celebrado, na verdade e
no final das contas, isto é, na efetiva realidade da vida (e da morte), à luz
real da existência a mais verdadeira e autêntica, sem alegorias nem metáforas sedutoras, mesmo da existência a mais poética e dramaticamente
levada, não se pode mais hoje, com a consciência onto-tanatológica do
Asas da Palavra
nosso tempo (após Ser e Tempo), superada a fase das grandes ilusões e
obsessões românticas, e a não ser justamente por uma irônica tirada neoromântica (tal aquela estalada gargalhada, literal e literária), sequer dizer
ou sonhar morrer de amor pela morte: salvo, é claro, num sentido de
ironia trágica. Porém o que se pode, sim, é ter e manter a consciência da
unidade dialética e dramática, ou hermenêntica, fundamental, da vida e
da morte em todos os transes da existência, que era por certo como pensava e experienciava o nosso muito cônscio e até o fim lúcido mestre.
Contrariando aliás também, nesse particular, a visão inicial, quase juvenil,
e ainda mais tipicamente neo-romântica na sua obsessão poética da morte, embora de uma forte expressão moderna, do seu outro queridíssimo
amigo e poeta, o das visões sobrenaturais de Anjo dos Abismos, livro literalmente obsidiado pelo mar e a noite, o amor e a morte, quatro temas aí
confluentes em quase todos os poemas, ou que em geral ressoam juntos
fantasticamente, como no largo poema que começa, já desde o título, por
esse vagalhão rítmico de um longo verso, em onda larga, que é a própria
imagem daquela envolvente, mortal obsessão: Meu Deus (...) É a morte que
vai chegar da imensidão dos mares. Temática, e poética, tão envolventemente
obsessivas, nesse poeta que então a si próprio se definiu romântico e transcendente, que ele chega a expressar o desejo do encontro fatal com as delícias da
morte, aliás bem à semelhança do outro e amigo, para o qual tão celeste foi a
Festa, como vimos, dos prazeres sobrenaturais da morte, nos eróticos,
orgiásticos volteios daquele amoroso romance relembrado. O mesmo seu
querido poeta e amigo Ruy, porém, que no segundo livro, muito menos
tantalizado pela visão neo-romântica (embora ainda aí considere o sobrenatural a grande vocação), muito mais despojado na expressão, duas vezes invoca nominalmente o fraterno amigo: a primeira, muito significativamente,
no centro de um poema natalício, seu próprio, em que o então ainda
jovem poeta se autoanalisa afetivamente, sob o signo desse dia especial
em que o poema devasta mais que o aniversário, e em meio a cujos versos
brancos e soltos, de uma outra e nova roupagem poética, e de um novo
lirismo pessoal, de franca auto-interpretação, nosso homenageado mestre
é o único e fiel amigo invocado diretamente pelo afetivo nome, e de uma
forma taxativa: O amigo fiel chama-se Chico; e a segunda vez, muito mais
direta, reiterada, e ainda mais significativa, é todo um poema-carta em que
um emocionado e ansiosoo poeta se dirige abertamente ao amigo, clamando por sua presença, num apelo quase patético por sua companhia,
para que venha co-participar no afã de viver intenso do poeta, contra a
solidão, o cansaço e o tédio da própria existência, dos próprios livros,
pois que a poesia não resolve nada; poema no qual, todavia, com todo esse
desejo de viver, esse afã de existência, de esgotar a taça do prazer, do fruir
a vida, o sedento e angustiado poeta, mesmo assim, ainda admite a eventualidade de desejar a morte. Esse mesmo fatídico e antes tantálico desejo
que o outro aludido amigo e já evocado lírico do amor e da morte, num
insólito soneto mais lúcido talvez do que aquele lúdico e irônico vilancete,
saberia afinal melhor avaliar, constatar e definir, tão francamente, que não
é senão o desumano / desejo de morrer. Bem diferente, pois, e bem mais existencialmente plausível, mais humanamente aceitável, compreensível, o
pensamento desse poema  tanto mais se lido no contexto da desesperada necessidade de amar, de amar e de ser, necessidade imperiosa de um ser
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amado, que o mesmo soneto expressa tão sôfrego e arfante  do que aquele pretenso, e falso, morrer de amor pela morte, da fantasia neo-romântica
e trágico-irônica de que partimos. É que em outras expressões menos
lúdicas de sua tanatologia erótica (ou vice-versa), na linha desse mesmo
soneto citado, o nosso jovem e impávido poeta mais claramente assume a
unidade dialética e dramática fundamental da vida e da morte, na realidade efetiva da existência humana, do homem como ser-no-mundo-para-amorte, unidade a que antes nos referíamos sobretudo em termos
hermenêuticos (da fenomenologia hermenêutica de Heidegger), como
de fato ele a expressaria lapidarmente  gravada em verdadeira pedra
tumular, ou no grifo lapidar de um autêntico poema-túmulo  no dístico
final, terminante e categórico, de um dos labirínticos “fragmentos” que
deixou, na verdade um dos seus últimos poemas “completos” em si, composto a partir da contraposição de três palavras-símbolos do enigma do
homem e do ciclo existencial, túnel, pedra, tonel: túnel do tempo, túnel sem
fim, tonel sem fundo, pedra inaugural, pedra tumular; palavras que se
ampliam e se transfundem, imagens que se complementam no texto, encerrando no contexto do poema (contudo fragmentário) o curso do tempo, a prosa do mundo, a lida da vida, a roda da sorte, os fados do homem,
tudo de tal modo transfundido que o poema arremata e sela afinal, em
fecho duplo, a única e insuperável contradição, numa só e redobrada fórmula, epitáfio-epigrama, irrefutavelmente lapidar: Lida, caixão e sorte, /
vida, paixão e morte. Eis assim, posta em simples e claros termos, inteiramente despojada de qualquer romântica fantasia ou moderna mistificação, antes colocada com lucidez e poesia no estrito senso da realidade
comum, a nossa fundamental questão. Como aliás rigorosamente pensava o nosso mestre, em perfeita conformidade com o que serenamente
ensinara, pelo menos desde o seu magistral e modelar Claro Enigma, o
nosso mais completo, mais complexo, mais moderno e realmente sábio
pensador poético do paradoxo existencial da morteamor, ou do amoremorte,
se preferirem (que aliás soa e grafa bem, calha na pauta, rola muito bem,
na fala e na página, no correr da pena, no próprio rolar da escritura, literalmente imprimindo na escrita aquele eterno-retorno verbal de versiprosa,
ou versivida e vice-versa, que já antes referi e a que costumo referir-me para
designar a arte drummondiana de escreviver). E conforme longamente o
ensinou o nosso grande e maior poeta, como sabemos, não por simples
ou imaginária ou abstrata experiência poético-pensante, mas por meio
daquele sumo e bom saber de experiências feito, que conhecemos, ou seja,
pela experiência concreta e viva, profunda e contínua — na própria vida,
na própria carne, no próprio cerne do coração e do sentimento, da consciência e do pensamento, e no próprio âmago vivencial e artístico de sua
poesia, de sua experiência poética — desse antropológico, histórico e cultural, autêntico e exclusivo fenômeno humano por excelência que é o da conjunção originária, existenciária, de Éros e Thánatos. Bastando ler, para crer,
a vida e obra ou versivida, e vice-versa como eu disse, do nosso
experientíssimo poeta de tantos anos e tantos livros de versiprosa,
inseparavelmente como ele a entendia e escrevia (sobretudo a efetiva prosa do mundo e da vida, conteúdo essencial e constante do seu verso-universo), e conforme ele a fundo a si mesmo e ao Outro (minerador do Outro)
interpretou e compreendeu, se entrentendeu, e se reuniu, em texto e teste-
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munho; e aí constatar, segundo explicara ele próprio, e já bem vivido,
relendo a vida passada a limpo, e num rigoroso oxímoro hermenêutico,
indestrinçável, indecidível, no qual ele mesmo pergunta e responde, para
nosso governo, ou ainda maior desconcerto, sobre as implicações reais
entre o vivido e o inventado: Tudo vivido? Nada. / Nada vivido? Tudo. Inclusive,
obviamente, a vivência essencial e antecipatória da morte; porém ainda, e
sempre, nos próprios modos de encarnação e exaltação da vida: jamais a
morte pela morte, como jamais a arte pela arte. E tal como, por seu turno,
exatamente pensava e ensinava o nosso convicto mestre, que sempre oficiou, aliás, como bem me lembro, no mosteiro neobarroco e moderníssimo
de Drummond. Diria eu então, fechando esse amplo e digressivo parêntese, entrecortado de outros coniventes trechos parentéticos, e retomando o fio principal do discurso, agora recorrendo a outro dos poetas mais
admirados e prediletos do nosso emérito professor de literatura portuguesa, que ele se achava por fim, em verdade, num singular e sensível
estado de espírito, difícil de denominar em português, e que melhor se
define e apreende pelo título e o conteúdo imagístico e psicológico de um
aqui bem-vindo e bem apropositado soneto que o seu dileto e aludido ou
por enquanto aqui eludido poeta, sentindo talvez o mesmo difícil mood e a
mesma dificuldade de dizê-lo em nosso idioma, disse-o precisa e melodiosamente, e desencantadamente, em inglês: Despondency.
Tudo isso, claro está, são ainda poucos ramalhetes literários que
trazemos para depor (ou antes, para repor, já que foi ele quem primeiro
nos mostrou e nos deu tais finos discernimentos, mais do que simples
conhecimentos) junto à modesta sepultura do velho mestre e verdadeiro
preceptor que a todos esteticamente nos educou, edificou, no seu perfeito amor à arte e à literatura. É verdade: uma sepultura modesta, humilde
mesmo, no seu despojamento e no sentido humífero, telúrico, mais profundo do termo; mas para nós, que a ele evocamos, alcatifada em poesia,
como sua lídima e natural alfombra, feita de folhas de relva e folhas caídas, a
imarcescível hera, as verdes h’eras, e gramas raras; e, naturalmente, muitas flores,
todas as pétalas de flores: desde as simples flores do verde pinho, do verde ramo,
tão naturais e ingênuas, e que por isso tanto o encantavam, até as mais
luxuriantes e estranhas flores da poesia contemporânea, além de outras
muitas e nobres florações poéticas, inclusive (por que não?!) as vívidas,
mórbidas, satânicas, edênicas, simbólicas flores do mal, que tanto o seduziam poeticamente. E também, é claro, as melhores folhagens da chamada
poesia cemiterial ou tumular, romântica ou pós-romântica, desde as noturnas e longínquas soledades de Young e suas adjacências, que ele em
vida amplamente visitou, às alusivas meditações e metamorfoses poéticas
do Cemitério marinho de Paul Valéry, grande poema contemporâneo, ontotanatológico, e outra de suas grandes admirações literárias. Sem esquecermos, naturalmente, os nossos poetas paraenses modernos, com seus diferenciados traços neo-românticos ou neo-simbolistas, e que são também
de algum modo poetas noctâmbulos e cemiteriais, ao mesmo tempo
morituros e amorosos, poetas que oniricamente vagueiam pelos noturnos
caminhos, pelos sinistros caminhos, levados pela estranha mensagem, pela sonâmbula miragem, marcados que são pela temática da noite e da morte, pelos
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símbolos fatídicos dos sudários e sepulcros, dos cemitérios e calvários,
defuntos e cadáveres em rara metamorfose; e atraídos obsessionalmente pelos mortíferos mares, pelos fatais amores, pelos funestos fados, os signos
suicidas, as mortais ardências, o clamor das madrugadas, não hesitando
mesmo em inscrever na sua linguagem o tronco dos ciprestes, nem o canto dos
sepulcros, as urzes, as cruzes, e as flores sepulcrais; seduzidos todos, cada
um ao seu modo e à sua maneira de expressão, pela aurora fecundante dos
sepulcros, pela flor sangrenta que brota nas origens / com haste de cristal e pétalas de
fogo; pelas florestas escuras, / as águas turvas dos rios martirizados; enfim, pelas
fanadas solidões / e as perdidas auroras / como dobres de sinos sobre os mares. Todos, assim, visionariamente expostos aos perenes horrores e à soturna beleza,
medusados, como na terrível lenda, pelo grande olhar da morte escuro e frio,
mas fascinados, cegamente, pelo fogo-fátuo que acende a eternidade / ao banquete dos vermes e à poeira dos mortos. Em suma, capazes de explorar simbolicamente todos os elementos do verbo, até os mais dissolventes e letais, e todos
poetas nossos já falecidos, que lhe foram muito próximos, e seus diletos
amigos: Ruy, Mário, Plínio, Cauby — convoquemo-los de além-túmulo,
nominalmente, do fundo sagrado da tumba ou sanctu sepulcro de seu nome,
para usarmos aqui, ou antes, para exumar do próprio terreno verbal e
simbólico de sua poesia, dos mais singulares e profundos elementos do
verbo, em que se transmutaram, graças à sua peculiar e forte alquimia do
verbo, que ao nosso mestre tanto enfeitiçava, imagens poéticas radicais dos
dois primeiros invocados, os quais em vida e de forma explícita a si mesmos inumaram-se poeticamente no solo essencial da linguagem, no signo
e na sina de seu próprio nome, pois que a essência é o nome, como a todos,
com sua consciência e experiência essenciais de poeta, ensinara o grãomestre Drummond. E porque, afinal, a luta do poeta não é / com o anjo (o
anjo ou a besta, o amor ou a morte) mas com o verbo, / que dissolve em poesia,
como soube tão simples e claramente discernir e dizer o terceiro e mais
sereno entre eles, nesse tão breve poema que é quase só e puro pensamento (meta)poético, ou melhor, um autêntico e límpido aforismo poético-pensante, sobre a essência mesma da poesia. E o último deles nomeado, embora menos afeito às obcecações da temática e da imagística da
morte e seus motivos sepulcrais, foi também no entanto capaz de clamar,
no mesmo patético diapasão: Salta, Arcanjo, / cujo grito anunciando meu fim /
eu mesmo gero, eu mesmo fabrico. E os quais juntamente, aqui de novo reunidos por obra e graça da poesia, na mesma paisagem irreal de um cemitério,
onde agora jaz, hic et nunc, nunc et semper, o velho amigo enfim transformado e reintegrado em telúrio, memória e palavra, ressurgem pois como que
redivivos no seio da grande noite, a noite imemorável, (...) Noite herdada / de
noites ancestrais, áurea cadeia / de lua entrelaçada a lua, estrela / amalgamada a
estrela (...) E ressurgem trazendo-nos à lembrança novamente aquele
mesmo anseio da noite, do mar e da morte, que os aproximara na mesma
lírica expectativa, como o que espera as visões da grande madrugada, como o
que escuta longamente aquela estranha voz cair no mar da madrugada, perscrutando no silêncio o ruflo do pássaro noturno, ambíguo e misterioso —
grande cisne das trevas encantado e noturno — com seu dúplice e irredimível
canto de amor e morte, de morte amorosa, daquele amor de mor amor de
amor talhado, como cantou em sisofrendo e sisofrido o nosso mesmo nativo
poeta, vidente viandante das ruas, dos rios, e dos vastos abismos. Ou
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ainda, trazendo-nos juntos aquela fantástica visão que se solta das trevas como
a madrugada, ou que brota subitamente dessas madrugadas de um estranho
encanto, como de todos eles o mais plácido e suave poeta cantou, aquele
que tão docemente, por uns termos em si tão concertados, soube anunciar morte,
desolação, naufrágio, amor, aquele que soube imaginar e seguir o anjo verde dos
caminhos, e buscou tão calmamente a estranha amada, a estranha amada das
regiões perdidas, o mesmo que tão cedo já deixara, como que para o túmulo
do amigo preparada, a imagem da flor exposta ao orvalho da morte, ou lhe reservara o sonho das estrelas / na rosa morta pela madrugada. E para completar
assim a tertúlia cemiterial dos poetas-amigos mortos, em póstuma convocação, de novo unidos e reunidos poeticamente para receber o velho amigo recém-chegado à pátria da Poesia, como a vislumbrara num poema o
mais visionário deles, lembremos ainda os versos perversivamente
mortuários do outro e mais agônico dos quatro, o mais premonitório da
própria morte (Sinto que o mês presente me assassina), o mais profundamente
envolvido com seus defuntos mais revoltos, revolvendo no vazio da palavra
sepulcros sem cadáver, e fadado pelas Musas e pelas Moiras a deixar-se atrair,
como ele mesmo vatidicamente predisse, ao beco de agonia onde me espreita /
a morte espacial que me ilumina. E o qual, no centro e no ato mesmo de sua
poesia, de sua concepção e criação, numa de suas autênticas vigílias poéticas (ou, mais do que isso, metapoéticas), à luz mortiça de um círio fértil,
vela o cadáver da palavra, à espera de outro verbo, para assim celebrar o
sacrifício incruento do poema, onde o belo devora e gera o belo. Pois afinal,
conforme ele próprio essencialmente concebe e consagra a arte, o poder
e o mistério da poesia, esta é capaz, por sua palavra reveladora, re-criadora, de superar transcendentalmente a morte, como o declara ele e celebra
noutro candente soneto: — a própria morte hoje defloro / e vida eterna engendro:
gero, adoro. Enfim, todos esses signos funéreos, ou ecos cemiteriais, provindos da poesia dos seus quatro amigos que muito antes se foram, vêm
ressoar profundamente junto à singela sepultura do imorredouro mestre,
alcatifando-a com a força viva de suas metáforas, suas poéticas metamorfoses. É como se o mais velho amigo sobrevivente — o Chico sempre tão
querido e chamado: Vamos Chico / não me negues a graça da presença (...) Vamos Chico, / esta noite floresce na legenda que é tua (...) Anda Chico / toma o teu anjo
e vem (...) leva-me nas asas do teu anjo; (...) quero ver de novo o mar / nosso rumo é
o absoluto / onde iremos descansar (...) —, é como se esse tão fascinante Chico,
que a todos longamente sobreviveu, fazendo agora retumbarem no tempo, ecoando da poesia do outro e mais brando amigo, os mesmos leves
passos que acordarão os amigos mortos, a todos por sua vez despertasse e reencontrasse nessas estranhas terras, onde ele agora pode ver enfim das trevas
surgir a eterna claridade. Sem mais ouvir, contudo, como as escutara angustiadamente o seu mais fraterno amigo poeta — aquele então o mais jovem e exaltado cantor da amada escurecida, o que desejara adormecer sobre a
grande noite, e para sempre sepultar o (seu) canto nas paredes eternas, mas que
também clamou num verso desarvorado: — eu o jamais sepultável dos poemas
—, sem mais ouvir ele, portanto, nem mais sentir-se metafisicamente angustiar pelo sopro fatal das trombetas aladas. Assim, e agora, não mais anseios
de absoluto, ou de infinito, ou de eterno, nem mais angústias apocalípticas;
somente, ao fim de tudo, a paz transcendental dos cemitérios, em que o
velho amigo aos amigos mortos se reúne, se reintegra, na dimensão es-
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sencial, incomensurável, do tempo. Pois o tempo  mistério inigualável, como
antes mesmo do chamado último Heidegger já o meditara a fundo e poeticamente Drummond, em especial num curto e arguto poemeto jocosério, do sempre surpreendente Claro Enigma, fazendo de brincadeira sérias e graves perguntas em forma de cavalo marinho, sobre o homem, o ser, o
tempo, e terminando sem resposta, sob um tom heraclitiano: Que metro
serve / para medir-nos? (...) Contemos algo? / Somos contidos? (...) Que relembramos?
/ Onde jazemos? // (Nunca se finda / nem se criara. / Mistério é o tempo /
inigualável.); e como também refletiu, com antecipadora visão heideggeriana,
mas pós-drummondiana, o nosso faustiniano poeta,  o tempo, repitamos e recitemos com ele, para arrematar o tema da morte, e a tumular
evocação, com outro dístico seu, duplamente lapidar: o tempo na verdade tem
domínio / sobre o morto que enterra os próprios mortos.
—— xxxx ——
Retornando assim ao pé do singelo mas poetizado e belo túmulo
do mestre, todo alcatifado de folhas, flores, memórias, metáforas, em
suma, tapizado de relva e poesia, com efeito se nos afigura aí, dessa
forma poética, e como acima o descrevíamos, ou melhor, o reinscrevíamos na própria origem, no húmus do sentido, em terra e palavra (dizendo-o novamente com a linguagem árqueo e criptográfica de Drummond),
um modesto, singelo, humilde até, mas perfeito jazigo, no qual de fato
possa jazer e repousar em paz e beleza a sua bela alma. Todavia, intervém aqui ainda, e à outrance, ecoando d’outre-tombe em nosso discurso
fúnebre, uma voz de novo sepulcral e sardônica, embora amiga,
ironizando e desdizendo a piedosa, estética e lírica idéia de alma: Alma
que foste minha, / desprendida de meu corpo e de meu espírito, / leque de palma sem
raízes, sem tormentas, / (...) sem cravos e sem espinhos; e em seguida lançando
a reiterada e desarvorada apóstrofe, sem apelação: que trigo milenar te
mata a fome / divina / que pirâmide encerra tua essência / nudíssima / que corpo
te defende de ti mesma / do espaço / que idade, quantas eras, contra o tempo / alma
anárquica (...) apoética, absurda / como chamar-te alma, de quê, quando, / para
quê, alma de morto, para onde? Eis assim, cética e hereticamente, como do
fundo ou do sem-fundo metafísico do poema, ou póstumo anátema,
repto sacrílego, a si mesma questiona e interroga, sem propor nem esperar resposta, desdenhando crenças e saberes, signos e dogmas, mitos
e musas (camoniana inclusa), a mente mefistofélica do mesmo revel poeta e
amigo seu, estremecido, afinal como que rindo fausticamente das ilusórias certezas, rindo derrisoriamente da própria alma e da própria morte,
depois de morto, ou faustamente libertando-se das seculares prisões
temporais, como o rio / faustosamente corre para o mar / o rio-mar da sua
própria vida desvivida e do seu próprio nome revertido, contradito,
anagramado. Mas, não obstante essas memórias e ironias póstumas, de
um outro e mais drástico Brás Cubas, contudo bem recebidas e até compartidas pelo espírito crente mas crítico do lúcido mestre, voltemos a
imaginar, a idealizar o seu perfeito e perpétuo jazigo, como dizíamos,
imaginavelmente situado numa tranqüila e amena paragem, como a que
o nosso também moderno e grande sonetista, por seu turno, e à sua
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Asas da Palavra
maneira mineira, inscreve harmoniosamente entre Fraga e Sombra (e
Solombra!... em eco relembro, ainda, os seus cecilianos encantos, e
alumbramentos, com os mágicos poemas de Cecília, como os claros
mistérios de Clarice, que o fascinavam). Paragem aquela imaginariamente
onde, ante a falange / das nuvens esquecidas de passar, de longe um sino
tange, enquanto baixa, severa, a luz crepuscular, e tudo enfim se resume em
silêncio e ausência, envolvendo-se em música breve, noite longa, como
evocativamente se relê nesse plácido e lânguido soneto citado: outro
sibilino mas translúcido e harmonioso soneto de amor e morte (como
vários outros, aliás, da mesma lavra e teor, que ele muito apreciava),
feito de leve imagem e suave música, essencializante, que emana e soa
também (e tão bem! qual se a ouvíssemos numa pequena e silente igreja) como a terna e serena sonoridade de um órgão, tocando em surdina,
bachianamente, o mais leve andante da mais suave e plangente oferenda
musical. E que ao nosso melômano mestre e amigo, igualmente da música
essencial da poesia e da boa música de câmara, aqui reoferecemos, em
elegíaca e musical lembrança...
Feito esse último circunlóquio lírico-filosófico, de meditação ontotanatológica — designemos assim, com alta reverência na expressão —
em torno ao túmulo daquele que tudo isso e mais nos ensinou, voltemos
à evocação mais direta e chã do dia e do ato em si do seu enterro. Assim,
no pesaroso rito do seu sepultamento, que todos acompanhávamos contristados e silentes, um fato concreto e eloqüente aconteceu, um fato inesperado e inédito, que veio cobrir de um sentido mítico e poético o momento derradeiro e dramático do funeral — aquele momento último,
inapelável e triste, de efetivamente enterrar o morto. Que é sempre,
deploradamente, como todos sabemos e sentimos, um momento patético, além de um ato em si mesmo lúgubre e grotesco: ver o corpo morto
de uma criatura humana, de um ente querido, fechado num caixão, literalmente encaixotado, baixar à cova funda, com palmos medida, a dita cova de
sete palmos, tão esconjurada e tão temida; e vê-lo depois ser lacrado,
sacramentado, e definitivamente arrematado (com aquela argamassa de cimento e lágrimas) e ficar assim hermeticamente (hermeneuticamente, conforme
aludimos) fechado embaixo da terra, sepultado, soterrado — segundo ecoa
da antiga poesia cemiterial — sob a lájea fria; e por fim ser recoberto, palmo a palmo, pá sobre pá, de terra e barro, e mais nada. E em cima da
terra, ironicamente, só restos de flores, murchas e mortas, só lamento e
lamúria, e soluço apenas, sem mais palavras. E depois de tudo, enfim,
pateticamente ao fim de tudo, as pessoas se despedindo e se retirando,
mortificadas e mudas, saindo em silêncio, uma a uma, passo a passo,
entristecidamente, deixando ali sepultada uma afeição, uma amizade, deixando ali, naquela pedra, naquela perda, uma eterna saudade petrificada.
Tudo isso torna, de fato, o momento derradeiro do enterro propriamente dito, isto é, o ato bruto em si de enterrar, de deixar para sempre
embaixo da terra o corpo de um ser humano, de um ente admirado e
querido, um momento (reiteremos sem forçar a nota, sem fazer humor
negro) que é por natureza, ou contra-natura, além de doloroso e dramáti-
Asas da Palavra
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co, algo de grotesco e macabro, tétrico e lúgubre, terrivelmente. Ou dizendo-o de outro modo, mais dentro do nosso contexto específico de
referência: é o que há de mais brutalmente prosaico  sem verso ou rima
que o possa lenir nem remir  nesta nossa rude prosa da vida. Por isso
mesmo, o fato real e simbólico a que me reporto, recordando-o com um
misto ainda de surpresa e reflexão, fato que ocorreu de repente, de forma
espontânea e impulsiva, revestiu-se, naquela infausta circunstância, de um
significado profundamente afetivo e poético ao mesmo tempo, dando
àquele funesto evento um certo selo, diria eu, de lirismo dramático, por
isso mesmo eloqüente: rompendo a paisagem desoladora dos cemitérios,
quebrando aquela rotina triste dos enterros, enfim, aliviando o peso do
absurdo rito, e dando um cunho menos pesadamente lutuoso, menos
consternadoramente fúnebre, e sim mais celebratoriamente litúrgico, ao
nosso coletivo e solidário acompanhamento do saudoso amigo e mestre
à sua última e humilde morada (litúrgico, no sentido mais amplo e mais
livre em que estou neste réquiem considerando a liturgia, como função
cultual pública, não apenas religiosa, mas também profana, isto é, realizada do lado de fora, no adro exterior que se antepõe ao fano, ao lugar
sagrado, ou santificado, portanto fora do recinto e dos cânones do templo, da Igreja; não esqueçamos que a palavra vem do grego leitourgía, com
todas as significações históricas e culturais aí envolvidas: de serviço e sacrifício, de sagrado e profano, culto e orgia, no sentido original deste último termo; embora, no caso, estejamos principalmente aproveitando a
tradição ritual católica, ainda que de forma não-canônica nem ortodoxa
em relação aos ritos, imagens e símbolos aproveitados).
Um fato, pois, inesperado, surpreendente, mesmo comovente, e,
todavia, pouco notado ou até despercebido na sua discreta cena e no seu
tácito significado, talvez em razão do confrangedor momento para todos
que ali seguiam, consternados e abstraídos. Porém que a mim em particular, que estava bem no meio da cena, que vinha também carregando com
muito pesar aquele para todos nós tão mais pesado caixão, a mim aquele
súbito embora discreto fato me tocou tão de perto e fortemente, que não
me passou inócuo, não se apagou da minha lembrança, e não posso deixar de relembrá-lo e alegoricamente interpretá-lo, incorporrando-o, como
já disse, ao texto e ao contexto litúrgico-ritualístico deste réquiem, nãocanônico, reitero, mas que nem por isso rejeita o teor sacro e eclesiástico
do gênero; antes ao contrário, procurando absorver-lhe o sentido conjuntamente religioso e estético, ou estético-religioso, segundo a formação e o
espírito, conforme vimos, do nosso egrégio mestre aqui celebrado.
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Evoco-o e dou aqui, portanto, a tão marcante e significativo fato, a
interpretação simbólica que na ocasião mal lhe pude dar, ou somente vislumbrei, ao comentá-lo automaticamente no ato, para mim mesmo, em
breve murmúrio, apenas esboçando ou insinuando naquele instante, por
simples associação de imagens, o seu mais profundo e completo sentido,
que adiante irei explicitar. Mas já extraindo ali naquele relance, como depois
melhor analisei e agora aqui recordo e reinterpreto mais amplamente, todo
um sentido mítico e poético, ou inseparavelmente mitopoético, daquele
derradeiro acontecimento biográfico (posto que a morte  por fatal con-
Asas da Palavra
tradição  é o último evento fundamental da vida) e de toda uma existência, inteira e íntegra, que sempre fora devotada ao ideal poético, ao projeto
lírico do mundo, e que ali, recolhida naquele esquife, ainda por um instante
existia e subsistia  malgrado inerte  de alma aberta, e de corpo presente.
O inusitado episódio aconteceu por assim dizer no auge do rito
fúnebre do enterro, quando o préstito já demandava o locus sanctus para o
sepultamento. A certa altura do silencioso cortejo, propício a largas reflexões em torno à culta figura do morto, digamos que já pela metade do
final percurso, ou de novo com Dante dizendo, no meio do caminho
desta vida breve a sepultura (aquela bruta e áspera selva oscura), nós que
íamos carregando com penoso esforço o seu tão leve esquife, todos amigos homens, como é de praxe, fomos de repente e com certo espanto
surpreendidos, e mesmo comovidos, por um ato insólito, um fato inédito
entre nós ao que se saiba: algumas ex-alunas, amigas e admiradoras do
falecido mestre (segundo me lembro: Amarílis Tupiassu, Ângela Maroja,
Dina Oliveira, Juruema Bastos, Maria Lúcia Medeiros, e talvez alguma
outra, não me lembro bem), que vinham acompanhando o triste préstito
ao nosso lado ou logo atrás, em dado momento, num espontâneo impulso e iniciativa de não sei qual ou quais delas, chegaram-se a nós e sem
pedir nem hesitar foram tomando em suas mãos as alças da urna funerária (para elas talvez ainda mais efetiva e afetivamente pesada), desse modo
direto e forte demonstrando, mais do que dizendo, que queriam também
carregar o caixão, suportar o peso daquela dor, daquela perda, como de
fato a partir dali o tomaram e carregaram e suportaram, sem parar nem
tremer, até o fim. Prestando assim de forma concreta e ativa, de corpo e
alma, com o seu nobre gesto, com as suas próprias mãos e todo o sentimento nelas colocado, o seu último preito de admiração, de amor, puro
amor, sua última e eloqüente homenagem ao admirado e amado mestre,
ao seu mestre querido.
A princípio relutamos um pouco em ceder-lhes àquele impulso,
achando que o peso e o percurso eram demais para elas, e tentando prosseguir cumprindo com pesar o nosso ritual ofício e sacrifício. Mas de nada
adiantou nem adiantaria: estavam determinadas a cumprirem elas mesmas, com suas próprias forças, o seu dramático rito de admiração e despedida. Insistiram pois na decisão, foram nos afastando com delicadeza,
mas com determinação, pegaram firme as alças do ataúde e, emocionadas
e decididas, o carregaram daí em diante sozinhas, solidárias, pateticamente refortalecidas pelas forças maiores do sentimento e da emoção. E assim ungidas e compungidas, no exato e coeso sentido dos termos, elas
próprias como que transportadas pela tristeza e a dor, e como se caminhassem ao ritmo interior de um andante lamentoso, conduziram-no em
lenta e silente marcha fúnebre, consternadamente, até o limiar do túmulo,
até ao pé da sepultura, ou para o dizer como de fato se diz, em forma
direta e crua perante a crueza do fim: até à beira da cova  para além do
tempo, irreversivelmente.
Foi, com efeito, um episódio incomum, quase inacreditável na
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tradição normal das nossas práticas funerárias, porém que aconteceu efetivamente e marcou de um cunho singular e enobrecedor o modesto funeral, o humilde enterro do nosso grande amigo e mestre maior. Fiquei,
quanto a mim, extremamente impressionado com aquele gesto: mais do
que um gesto, de amor e dor, simultaneamente, uma atitude de alto respeito e honraria da mulher à grandeza de espírito do homem, a essa
hombridade moral e espiritual superior, que faz de um homenzinho pequeno e franzino, como o nosso Chico Mendes, um portento de humanidade! E que as mulheres, por sua própria natureza em geral mais afetuosa
e generosa, também mais francamente reconhecem e glorificam. E são
até mesmo capazes, como no caso espontaneamente o foram, de carregar-lhe o corpo morto, alçando-lhe o ataúde, não em simples sinal de luto,
ou de honras fúnebres, mas em real e paradoxal triunfo, pois triunfo quiçá
sobre a própria morte: Mors stupebit et natura / cum ressurget creatura.
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Uma atitude, portanto, espontânea e simples, inesperada e despretensiosa, que entretanto se tornou, naquele contexto, uma excelsa atitude,
mais do que inédita, inaudita e augusta perante a majestade da morte, e a
dignidade do morto. E que a meu ver, naquele momento sensível, não só
adquiriu uma dimensão algo sublime, ou que superou o lúgubre e o grotesco naturais ao drama real do enterro, impondo o valor ideal do gesto sublime, mas também, simultaneamente, infundiu àquele ato prosaico, rotineiro
e triste, um sentido gloriosamente simbólico, de caráter mítico e poético,
em função da analogia cultural (e cultual) que despertou. Assim, lembro
que, logo depois de passar a uma delas (Maria Lúcia) a alça que eu segurava,
e notando então que era todo um grupo feminino envolvido e empenhado
naquela ação conjunta, um grupo unido e como que impelido por um só e
repentino impulso emotivo, automaticamente murmurei para mim mesmo,
em tom meio jocoso, num misto de susto e riso contido, mas de nenhum
modo irônico (a não ser pela ironia trágica inerente à própria morte, ali
patente), uma frase que me brotou naturalmente, ou quase inconscientemente, diante daquela inesperada cena (quem sabe por que junguianos caminhos do inconsciente coletivo!?), frase precisa e incisiva, trazendo à tona
uma instantânea e exata associação mitológica: — São as mênades furiosas!
— sussurrei brincando e sorrindo, quase só para mim, ou de mim para
comigo, em curto e certo comentário. [E abrindo um amplo e longo parêntese, que todo entrecortado será, para frisar aqui, de um friso dórico, a
incidental e helênica citação, recitemos na seqüência, ressalvada a romana
adaptação, ainda um belo verso alusivo ao mito dionisíaco: E nos irados olhos
das bacantes — qual cantara, tão ritmada e melodiosamente, como em grego
e tírio ditirambo, o nosso jovem e contemporâneo Píndaro, que foi o seu já
lembrado grande amigo e poeta não menos grande, tão prematura e tragicamente desaparecido, como já antes relembramos no contexto fúnebre
deste réquiem, e com todo o pesar que restou contido em tantos versos
seus, espantosamente premonitórios, como se arautos fossem da brutal tragédia; e cuja morte assim tão trágica e tão traumática  ainda hoje horripilante na sua fatalidade e contundência, e não de todo expungida de nossa
memória social e literária, na qual para sempre ficará inscrita como um
enigma e um estigma da poesia brasileira  cabe ainda ser resgatada no seu
patético sentido, exorcizada do horror que se seguiu ao seu impacto, ao ser
Asas da Palavra
agora e aqui rememorada poeticamente em meio aos tributos líricos prestados e oferecidos na branda morte do velho amigo, certamente um dos que
mais sentiu e sofreu aquele golpe brutal, aquela abrupta hecatombe. Mas
prossigamos na funesta recordação  todavia dramaticamente poética em
sua insólita significação, uma verdadeira contra-dicção poética em si mesma, no seu estranho prenúncio ou absurdo predizer da infausta hora ¾
ainda compelidos sob o acicate fatídico da mitológica evocação: um predestinado jovem, um malsinado poeta, sem dúvida, que haveria de ser literalmente despedaçado, ou, dir-se-ia, estraçalhado pelas Erínias em sua terrível e desgrenhada ira, que ele tanto e a fundo provocara e fustigara com as
mais desafiadoras palavras; infernais Erínias como que atiçadas também
pelas fatais Moiras, que lhe haviam por sinal (mau sinal) mais de uma vez
nos seus próprios versos, nos seus próprios ditos inauditos de poeta,
preanunciado a fatal desdita, inclusive, conforme vimos já, enviando-lhe
em sonho e fantasia celestial aquele Anjo satânico, e sardonicamente
apocalíptico, de vulto tão belo / em (seu) cavalo amarelo; o mesmo poeta assim
radical do amor e da morte, que soube cantar de amor tão mortalmente, e
que  com esse leitmotif crucial, e cruciante, ou mesmo crucificante (com os
próprios cravos dos seus versos de autoflagelação lírica) da sua própria existência e da sua existencial poesia, quer dizer, da sua real e vital experiência
poética  tornou-se indiscutivelmente, com sua linguagem ao mesmo tempo e escandalosamente orgiástica e litúrgica, numa só e promíscua expressão (naquele originário e forte sentido de liturgia a que antes nos referimos),
no fausto verbal e na luxuriante imagética, o nosso poeta por excelência não
só dos faustosos versos, volutuosos, capazes de explorar e de exprimir todas
as volutas da linguagem, todas as volúpias da expressão (Vida toda linguagem,
reinvoquemos-lhe o poético apotegma), mas sim também dos mais fáusticos
decassílabos sáficos; e heróicos, igualmente, inclusive o heróico quebrado,
como no límpido e desesperado Soneto que eu chamaria o patético soneto
do Necessitado, de um absoluto necessitado: de ser e de amar; soneto que é
tão claramente a expressão crua, e a urgente revelação, do seu árdego desejo
amoroso, daquele outro e mesmo amor de que falou Drummond, em claro
enigma envolvendo-o, e resgatando-o desde o belo mito de Ganimedes, em
belíssimos decassílabos clássicos, debruados em retorcida e insinuante sintaxe neobarroca, rigorosamente heróicos no metro e no ritmo, porém essencialmente sáficos no amoroso tema, como bem denotam estes rompentes
versos iniciais: Se uma águia fende os ares e arrebata / esse que é forma pura e que é
suspiro / de terrenas delícias combinadas (...) ; ao que por sua vez, e não por acaso,
responderia depois em contemplante soneto o nosso ledo fauno das praias
imaginárias, ferindo o mesmo mito e no mesmo ritmo: Divisamos assim o
adolescente, / a rir, desnudo, em praias impolutas (...) E loucos e ladrões acalentavam /
seu sono suave, até que um deus fendia / o céu, buscando arrebatá-lo, enquanto / durasse
ainda aquele breve encanto. Aspecto marcante e forte da experiência existencial
e poética de Mário Faustino, que não terá sido talvez indiferente ao nosso
tão sensível mestre: pois sua grande atração ao mesmo tempo literária e
afetiva pelo jovem amigo, que ele descobriu e revelou como poeta de raro
talento, e certamente admirou como radiante e belo efebo que era (segundo
salientam os que lhe conheceram pessoalmente a verve e o charme), não
terá ficado quiçá imune a uma possível e surda afeição verlainiana, sublimada na admiração e na amizade, mas que talvez no fundo o ligasse com mais
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vivo afeto, ainda que platonicamente, sob um ersatz poético, à fascinante
figura a todos os títulos rimbaudiana do jovem poeta e amigo próximo
(enigmaticamente, aliás, et pour cause, hélas!... relembro ainda com um misto
de surpresa e de estranheza, que, ao visitar espontaneamente o velho mestre algumas semanas antes de sua morte, eu que já há algum tempo não o
via, surpeendi-me e mesmo espantei-me ao encontrá-lo de barba inteiramente crescida e cerrada, e não era de todo branca apesar de sua idade
avançada, ele que em quarenta anos de convivência eu jamais vira barbado,
pois que estava sempre de barba feita e bigode bem recortado, barbeava-se
diária e religiosamente, apesar do sacrifício, e esta era por certo uma visível
marca da sua aparência e do seu estilo elegante de ser e de viver; no entanto,
naquele preciso dia, ali estava ele meio desalinhado e muito barbado, barbudo mesmo, como eu jamais o vira antes, e, além disso, um tanto abatido,
amargurado e triste; também eu contristei-me em vê-lo daquele modo, e
acheio-o então estranhamente parecido com algum artista famoso, decerto
um pintor, que eu conhecia de fotografia e ao qual era ele muito afeito, mas
não consegui então definir bem qual seria; primeiro pensei em Monet, mas
logo vi que não era bem o caso; depois pareceu-me mais plausível que fosse
a figura do Douanier Rousseau que ele assim lembrava, e cheguei até a
comentar essa impressão com alguns amigos comuns; porém, muito mais
tarde, e daí vem aquela confusa estranheza, quando alguns meses depois de
sua morte estava eu escrevendo este réquiem, ao me recordar daquele surpreendente encontro final, de fato a última vez que o vi em vida, lembreime de repente com toda a clareza, quase uma clarividência, e então convenci-me absolutamente, que naquele infausto dia o seu rosto me impressionara tanto porque, naquela ambígua e simbólica ir-realidade, ele parecia-se
muito e exatamente era com a figura barbuda e sofrida, não de um pintor,
mas sim de um marcado poeta que ele também muito lera e admirara: Paul
Verlaine; e logo surgiu-me à lembrança, em conjunto e em contraste, também muito simbolicamente, o retrato juvenil e fascinante de Rimbaud, que
sem dúvida tinha sido para ele, muito mais do que o enfant gâté da poesia, o
seu igualmente amado Satan adolescent, poeta muito jovem e prodígio, que
ele tanto citava, recitava, e sublimemente amava, sempre a lembrá-lo com
especial fascínio em aulas e nas rodas literárias; pauvre Lelian, pobre Chico
Mendes! que terá quem-sabe desejado ou imaginado viver no fim da vida,
melancolicamente, na sua própria figura e desventura a também desditosa
figura verlainiana...); o qual jovem poeta e auto-poetificado amante, como
se sabe, lancinantemente experimentou no seu próprio ser  conflituado,
supliciado, crucificado no seu próprio anseio de ser, contra o lenho absurdo
de não ser (o lenho de teu signo suicida?), como o confessa ele e clama, sem
fingimento poético nem real, no referido e quebrado e sincero Soneto (Necessito de um ser sendo ao meu lado / Um ser profundo e aberto, um ser amado)  aquele
aguilhão supino da carne e da alma, simultaneamente, com que a natureza
imprime, segundo a mesma isenta e serena meditação drummondiana, ...
dobrando-lhe o amargor, outra forma de amar no acerbo amor. Poeta ávido, arfante, e
insofrido pois, como se revela ele, Mário Faustino, nos sôfregos versos do
citado e singular soneto, ante os apelos contraditórios do ser e do não-ser,
do desejo e da falta, do amor e da morte, da vida e da poesia envolvidamente,
sob o dominante impulso de Eros, buscando a fundo um ser humano, um ser
amado, ansiando a sós, à noite, ao pé do desumano / desejo de morrer (aqui é mais
Asas da Palavra
pateticamente humana a sua visão da morte), e quebrando assim direta e
formalmente o verso heróico, para quebrar ao mesmo tempo, de um só
golpe duplamente anti-heróico e profundamente irônico e auto-irônico, as
duas velhas falácias poéticas: a do heroísmo estóico ante a condição trágica
da existência e a do rigorismo formal, da rígida regularidade métrica, artificialmente controlada e obedecida, pretensamente reveladora de uma atitude lírica impassível, do jugo ou do gelo da razão sobre as flamas e os clamores da paixão, sobretudo em nossa mais tradicional e estereotipada forma,
ou fôrma poética, a do velho e persistente soneto, como forma fixa e inflexível, por isso mesmo quebrável; rigidez que o nosso revel poeta, contudo,
partiu completamente ao meio, e em sete versos quebrados espedaçou; e
ainda em outro e mais quebrantado, desconstruído, como que espatifado
Soneto, e talvez por intencional ironia assim de novo e simplesmente intitulado,
ele de todo estilhaçaria em fragmentos métricos e verbais diversos: despedaçados versos, palavras em bronze e brasa dilapidadas, para dizerem e galvanizarem, a ferro e fogo, num auge poético e orgástico dos sentidos, em
árduas sinestesias, as mais vivas lacerações de amor e morte, verbalmente
resolvidas; desconstruindo assim o rigor e a rigidez da forma pelo vigor e a
força irrompentes da significação, da significância, como diz com mais precisão a moderna semiologia literária. Sedento e angustiado poeta, enfim, autosupliciando-se como que sáfica e sàdicamenteno no próprio jogo e gozo
íntimo de sua poesia, mártir sangrento de sua própria palavra, escalavrada e
viva (... fecunda / carne que tomarei por fêmea, carne / feita de verbo, cara carne ...),
vivendo assim no seu próprio ser o suplício da expressão, na busca, na
angústia de exprimir o inexprimível, o indizível, o inaudito, o interdito dizer
que lhe cala n’alma profunda, atormentada, torturada e livre no cárcere do
próprio corpo verbal do poema, disjungido, desmantelado, disjecta membra
na vida e nos versos, homologicamente; o qual jovem e revel poeta, além
disso, ou melhor, por tudo disso, foi decerto na literatura brasileira contemporânea, ou de qualquer época, o nosso único e autêntico, além de herético
e satânico, em confronto crítico com todas as doutrinas codificadas e
estabelecidas, inclusive e principalmente as da literatura e artes poéticas tradicionais e mesmo as modernas, e além de um novo tipo de poeta maldito,
rigorosa e vigorosamente o que podemos chamar um poeta sacrílego, no
sentido etimológico e eminente da expressão; e isso já desde a ousada e
explícita Mensagem com que abre a primeira seção do seu primeiro e único
livro publicado em vida, onde se lêem estes que, muito mais do que versos
satânicos, malditos ou blasfemos, são intrínseca e abertamente versos sacrílegos, sem contestação nem condenação possíveis: Em marcha, heróico, alado pé
de verso, / busca-me o gral onde sangrei meus deuses (...) Dize a eles (...) que desçam
sobre a urna deste olvido / e engendrem rosas rubras / do estrume em que tornei seus dons
de trigo e vinho); poeta sacrílego, portanto, em todo o étimo e o peso da
expressão, e no sentido mais puro, mais originário (naquele exato senso
mallarméano de donner un sens plus pur aux mots de la tribu), sentido ao mesmo
tempo o mais próprio do termo e ao contrário da acepção atual: portanto, o
puro sacrilégio ao reverso, em sentido positivo, afirmativo do sagrado que é
correlato-intrínseco ao profano e mundano da experiência humana, em especial a profunda e radical experiência poética (poiética) da existência e do
mundo (do ser-no-mundo e ser-para-a-morte, inseparavelmente); sacrilégio que
assim significa em si, etimologicamente, em primeira e última instância,
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linguagem sagrada, discurso do sagrado, ou legislação sagrada (os próprios
mandamentos, mistérios, oráculos, escrituras, dogmas, apotegmas de fé, em suma, a
santa Palavra de um deus ou dos deuses, revelada ou transmitida aos homens para a entenderem, seguirem e cultivarem), ou ainda, o conjunto
coligido, codificado em bíblias, códices e breviários, das leis, ditos, versos,
preces, cultos, cantos, ritos, gestos, sinais e símbolos sagrados, enfim, todas
as normas e formas sacras professadas pelas diferentes religiões e seitas;
mas que, na realidade, ou na atualidade da significação comum, por contradição interna e inerente à própria linguagem, que não raro se desdiz e contradiz a si mesma (pois são históricas as línguas, as culturas, e não eternas ou
naturais), quer dizer hoje em geral, na fala cotidiana ou linguagem comum,
exatamente o contrário de tudo isso, isto é, quer fazer sentido a contrariu
sensu: significando, precisa e opostamente, a infração das leis e a infamação
das palavras e escrituras sagradas, ou a profanação das coisas e formas sacras, e, por extensão, a profanação dos lugares santos e o uso profano de
objetos sacros, a começar pelo furto de tais objetos, que teria dado origem
ao vocábulo novilatino sacrilegus (ladrão do sagrado, amaldiçoados nome e
homem, não obstante o belo perfil sacrossanto do termo nominal,
ambivalência que talvez explique o peso mais leve, mais venial, ou menos
negativo do cognato sacrilegium, que, segundo o nosso velho e bom
etimologista Antenor Nascentes, viria lá, ou já, de Horácio, Sátiras, I, 3,
v.117: qui nocturnus sacra divum legerit; daí é que posteriormente se teria criado,
agravado e generalizado o termo execratório); e, por fim, passando a designar todo e qualquer tipo de profanação religiosa , ou inclusive de alvo não
religioso, ou seja, em última análise, o infringir de todas as tábuas da Lei, das
leis maiores ou supremas, de todas as escrituras sagradas, todos os discursos
instalados, repetidos, estabelecidos, incluídos os das artes poéticas tradicionais e consagradas, enfim, profanação da linguagem sagrada pela (mesma)
linguagem profana, dos códigos rígidos pelo livre-discurso, ou, numa palavra, do discurso mítico pelo discurso poético; ou ainda, e em vista do nosso
fim específico: o profanar da linguagem por si mesma, poeticamente, profanando no seu próprio espaço de expressão, de enunciado e enunciação, as
próprias normas, formas e fórmulas cristalizadas, con-sagradas, da própria
linguagem e da própria poesia, como também as do mito e da religião, de
todos os discursos consolidados, codificados; profanação, afinal, do templo
da linguagem (casa do Ser, lembremos) pelo duplo sacrilégio-e-sortilégio da
poesia, o que aparentemente seria uma contradição nos termos, se não se
tratasse do próprio contra-dizer que é o da poesia; porém é que o sacrilégio
significa finalmente isso: um contradizer-se da palavra, dos termos,
denegando-se, desdizendo-se, desfazendo-se o sagrado das linguagens com
a própria linguagem do sagrado; portanto, num processo interno e moderno, inédito e inaudito, de dessacralização geral dos conteúdos e dos discursos, em prol de uma renovação mais pura e mais crua do sagrado, da experiência e expressão humano-divina do sagrado em si, esssencial (para além
ou aquém do mistério religioso), de que a verdadeira e grande poesia é
portadora e privilegiada enunciadora (e vejam aí também, na mesma pauta
etimológica, o privilegium); donde a força eloqüente, heterodoxa, e o impacto chocante, herético, blasfemo, do discurso sacrílego, tipicamente sacrílego, que diz o sagrado ao reverso, per-verso, desdizendo-lhe o sentido consagrado, mas sem necessariamente acoimar nem macular o discurso religioso,
Asas da Palavra
nem ofender as religiões, antes cultivando-as (embora não cultuando-as) no
sentido mais puro e profundo do culto, da cultura religiosa e lítúrgica, poética in nuce, ou ab ovo; e esse contradizer-se da linguagem, em termos de
sacrilégio, falando contra si mesma, a contrapelo, para melhor reafirmar-se,
ressignificar-se, é precisamente um privilégio, e às vezes também um sortilégio, verbal (alquimia do Verbo, da palavra interdita), próprio do discurso
poético, afeito não só aos sentidos opostos e à harmonia dos contrários,
mas ao próprio contra-senso e mesmo ao puro nonsense dos termos e dos
sentidos; pois o contraditório e o paradoxal, como sabemos, são matéria e
forma essenciais de poesia (e nosso mestre bem que nos dizia), os elementos mesmos em que se movem e se fazem o pensamento e o discurso poéticos maiores (não esqueçamos, a propósito, que a poesia mais rica / é um sinal
de menos, como antitética e até matematicamente equacionou o problema,
em fórmula tão sábia quanto simples, o nosso poeta maior). Templo da
linguagem, pois, recinto de deuses e de mitos, de nomes e mistérios, sentidos e segredos, sinais e signos do sagrado, todos os címbalos e símbolos, enfim,
reduto eminente da poesia, onde o nosso órfico e fáustico poeta celebra
sacrilegamente o seu ofício, o sacrifício da palavra, do verbo que se faz
carne poeticamente, cara carne, conforme o vimos e ouvimos proferir, em
nova forma instituindo e enunciando os seus oráculos, délficos, apolíneos,
dionisíacos, talmúdicos, querigmáticos, eucarísticos (só não soteriológicos,
evidentemente, pois um tal poeta, sacrílego e descrente por condição e convicção, obviamente não acreditava em qualquer promessa oracular, qualquer que fosse, de salvação beatífica do homem, nem terrena nem
extraterrena, nem temporal nem eterna, a não ser aquela, paradoxal, e sarcástica, de inebriante e delirante dançar a valsa da vida com a morte, sem
pensar nem cessar). Nesse templo é que, em contra-senso, em controversa
forma, ele sangra impiamente os seus deuses, pagãos e cristãos, como o
decantado e danteano deus do Amor, destituído de seu antigo vigor de ser:
Amor represo em ritos e remorsos, / Eros defunto e desalado. Eros! / Eras tão belo
enquanto não pregavam / No cume do obelisco de teu falo / Uma cruz, um talento de
ouro, um preço, / Um prêmio, uma sanção... À própria encarnação do deus cristão, deus de amor, redentor, feito homem para nos salvar (segundo a sagrada palavra dos santos evangelhos), ele interpela com a mais franca e sacrílega ironia: A noite tomba, Iésus, e no céu / Da tarde, onde os revôos de mil pombas /
Sôltas pelo desejo de teu reino? E dirigindo-se ao ente universal do Homem,
depois de negar-lhe todo reinado antropocêntrico no mundo e de apontarlhe a extrema fragilidade (débil cana) do seu pretenso cetro, entretanto retoma a defesa de nossa inalienável humanidade com o ainda mais sacrílego
teor desta invectiva, que chega a profanar a figura do Santo Sepulcro: Nosso
inimigo toma nosso aspecto / Para zombar da nobre nossa espécie: / E quem nos erguerá
deste sepulcro? Enfim, convocando de todos os pios templos todos os novos e
modernos sacerdotes, que são sobretudo os pensadores, artistas e poetas
verdadeiros, ele comete-lhes a inédita e inaudita missão de permanentemente proferirem o mais contundente e explícito dos sacrilégios, porquanto eles, poética e profeticamente a um só tempo, como os conclama: Repetirão a cada aurora (hrodo, / Hrododáktulos Eos, brododáktulos!) / Que Santo, Santo,
Santo é o Ser Humano — Flecha partindo atrás de flecha eterna — Agora e sempre,
sempre, nunc et semper... Nada mais expressa e abertamente sacrílego, sem
dúvida; porém de um puro e demiúrgico sacrilégio, como o consideramos.
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Tudo isso, portanto, sem fazer-se nunca, este nosso único poeta verdadeiramente sacrílego, e talvez mesmo de todas as literaturas em língua portuguesa, um mero poeta iconoclasta (que destes os houve muitos, e maus poetas,
sobretudo os anticlericais, declarados e desabusados): a iconoclastia do nosso poeta revel, e blasfemo, mas sempre ligado à amorosa memória dos
deuses (... jogral verde / que outrora celebrou seus milagres fecundos), é antes contra
os ícones calcificados da própria poesia ou da linguagem poética sacralizada,
cristalizada, mumificada (e, claro, as correspondentes ladainhas e jaculatórias,
verbais e não-verbais, do discurso religioso petrificado, bem como de todas
as mitologias ideológicas ou ideologias mitológicas, mistificadoras), que ele
se empenhava em derruir, derrogar, sem todavia querer apenas destroçar,
destruir, qual tresloucado iconoclasta, numa espécie de terrorismo cultual e
cultural, já ultrapassado ou quase desaparecido no Ocidente, embora hoje
recrudescido num certo Oriente (afinal, é bom para o homem, e é agradável
aos deuses e aos santos, aos semideuses e heróis, coligir ou colecionar, colher,
eleger, selecionar, reunir ou arranjar, e até mesmo obter furtivamente, pois tudo
isso vem da mesma raiz lingüística, elementos, documentos e objetos sacros, de todos os credos ou crenças naturalmente, sem preconceitos, e sim
toda uma politéica e variada iconografia mítico-artística, mágico-religiosa,
formando assim um verdaeiro florilegium de textos, coisas e formas sagradas,
ou todo um collegium eletivo, um collegium aureum de figuras sacras superiores,
uma ampla e alta coletânea ecumênica de um certo universo do sagrado, ou
simplesmente, como se costuma dizer, uma col-lecção de santos, e de coisas
santas ou objetos de igreja, conforme a antiga e exata grafia portuguesa
remanescente da etimologia latina, paradigmática, de lego, legere, legi, lectum,
lex, legis, lecte, lectus, lectio, lectionis, lector, lectoris, et alii et coetera). Porém, em sua
escrita convictamente herética — e portanto crítica, sectária no sentido próprio das suas escolhas ou selecções pessoais, preferenciais, de pensamento e
linguagem —, nada de cismáticas, fanáticas, enfáticas blasfêmias, apóstrofes destemperadas, anátemas laicos de santa ira ou de anticlericalismo rancoroso, do mais odiento ateísmo iluminista e positivista, iconoclastas, ultrapassados, que de nada adiantam e nada mudam a fundo, nem neste nem
noutro mundo; antes tenderam e tendem ainda, em certos focos recalcitrantes, no seu materialismo raso e obtuso, reducionista, a rebaixar e apoucar a complexidade da natureza humana, pretendendo negar ou eliminarlhe a fome do divino, do sobrenatural, do supra-sensível, enfim, do extraordinário e do maravilhoso que alimentam a essência do humano pensamento e imaginação, e cuja busca inesgotável se manifesta e descarrega justamente nas criações e recriações do mito, da religião, da arte e da filosofia
(não-positivista, logicamente; ou até mesmo nos interstícios metafísicos e
analíticos do positivismo lógico, onde, afinal, todo um tractatus logicophilosophicus vai resolver-se musicalmente, e poeticamente, num constructo
místico do mundo como linguagem, ou como o mundo da linguagem, totalidade incontornável e intransponível, e depois na concepção dos jogos de
linguagem como forma de vida). Mas sim, como íamos dizer, uma profunda e
respeitosa, ou até mesmo reverente, consciência irreligiosa, que reassimila e
reinterpreta heterodoxamente, é claro, expressões fundamentais do discurso mitopoético e querigmático das grandes religiões, em especial do paganismo antigo e do cristianismo tradicional, em toda a sua tradição judaicocristã, unindo assim profundamente na temática de sua poesia e sobretudo
Asas da Palavra
na sua linguagem poética, linguagem que é em si mesma também florilegium
 uma bela e farta colheita, coletânea (col-lectanea) antológica, de flores poéticas, míticas, retóricas, litúrgicas, perfeitamente colhidas e arranjadas em pequenas e grandes guirlandas poemáticas, ou em mais livres e largas grinaldas, espacializadas, ou simples ramalhetes-fragmentos  de versos, metros
diversos, inteiros, quebrados, desdobrados, disjecta membra, esparsos, dispersos
ritmos e estrofes canônicas ou heterotróficas, em tudo isso perpassando
literária e etimologicamente o também sortilegium poético, tão rico e intenso
(até por vezes em excesso ou raiando ao artifício) nesse poeta de tão elaborada e enfeitiçante linguagem (quase a incorrer num certo fetichismo do
verbo, da palavra pela palavra, puro jogo verbal, aquela palavra: panacéia que
ele mesmo auscultou e esconjurou, no soante búzio verbivocovisual, de um
sabuloso mar, que é o seu fenomenal poema do Cavossonante escudo nosso, mas
sem conseguir, talvez, completamente abolir e conjurar dos lances últimos
de sua poesia), e ambas as duas formas paronomásticas diretamente convergindo e rimando com sacrilegium; e isso não apenas em sua morfologia
externa mas a fundo lingüisticamente, ou poeticament se quisermos, pois
todas afinal provêm etimológica e analogicamente de lego, legiu, legis, de legein,
em última análise, de logos, quer dizer: da própria linguagem essencial, originária, que é a linguagem primordial da poesia, ou a própria linguagem como
poesia primordial, o dizer poético inicial, primacial, fundador, que está na
base de todos os discursos. Desse modo ainda mais integradamente unindo
e religando, pois, nosso demiúrgico e sacrílego poeta, no cerne de sua poética, de sua dicção poética, o divino e o humano, o sagrado e o profano, o
eterno e o efêmero, a carne e o espírito, a graça e o pecado, a bendição e a
maldição, o sacrifício e a deleitação, o banimento e a redenção, em suma, o
bem e o mal, o amor e a morte. Em especial, por conseguinte, no tratamento poético, lírico-dramático, ou mesmo trágico-patético, do tema preferencial e ambíguo do amor-e-morte, vital e crucial paradoxo, puro oxímoro,
que está no centro mesmo de sua poética e sua erótica inseparáveis como
experiência dúplice e una, liricamente mágica e algo mí(s)tica em seu êxtase
e agonia, orgiastikós  sobretudo no caso exemplar e antológico, autêntico
florilégio sacrílego, embora não o mais blasfemo, que é a poliantéia clássicomoderna das sete setas satânicas e sublimes que o “arcanjo incendiado”
(Estava lá o arcanjo incendiado / Sentado aos pés de quem desafiara) contra si mesmo desfere seguidamente, obsidentemente, na incruenta e supliciante coroa poemática dos Sete Sonetos de Amor e Morte , e tudo isso no preciso e
contudo ambíguo sentido da concepção antropológico-filosófica do Erotismo num Georges Bataille, por exemplo, com sua irredimível dialética do
interdito e da transgressão: o mesmo poeta-pensador heterológico, aliás, de
A Experiência interior, de La Part maudite, de A Literatura e o mal, em suma e
afinal, de La Somme athéologique, e que ainda iria até às Lágrimas de Eros; aliás,
outra grande afinidade poético-religiosa (ou de uma visão poética da religião, neste laico e largo sentido) do nosso mui religioso mestre mas também
nada ortodoxo no seu conceito e prática da experiência religiosa; e que por
isso mesmo, isto é, também por essa afinidade profunda com o pensamento e a experiência de Bataille, foi tão, digamos assim, pecaminosamente
fascinado (a velha atração irresistível da árvore da sabedoria e do fruto proibido) pela tão sacrílega poesia do seu faustiano e predestinado amigo; o
qual, como lembramos, por uma fatalidade atroz  retomemos o trauma de
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sua morte com os versos bruscos de Castro Alves  dessas que descem do
Além, morreria tão prematura e violentamente, como é sabido, num fragoroso
desastre aéreo, no mesmo ano em que morreu Bataille. Ele, poeta dos infaustos signos (muito mais pressagos do que os sinais dos tempos), que
antevira premonitoriamente nas imagens verbais de sua poesia infiltraremse aziagos os passos virtuais, fatídicos, da morte pressentida, quase esperada
(e ainda aí sacrilegamente falando: Sinto que o mês presente me assassina, / Corro
despido atrás de um cristo preso, / Cavalheiro gentil que me abomina / E atrai-me ao
despudor da luz esquerda, / Ao beco de agonia onde me espreita / A morte espacial que
me ilumina. E acentuando ainda mais as cores negras do presságio, de mistura com imagens eclesiais, sacrílegas, da santa sina, do fatal destino: Sinto que
o mês presente me assassina. / Há luto nas rosáceas desta aurora. / Há sinos de ironia
em cada hora. Ou como, já desde o prólogo poético de sua obra, tão profeticamente sentenciara e traçara: ... entre aurora / e meio-dia um homem e sua hora.
Ou quando, em cristológica alusão, rejeitando o corpo morto que nele mesmo jaz, deseja entregar-se ao vivo que nele estua: Ao que, se a Morte chama ao
longe: Mário!, / Me abraça estremecendo em meu sudário. Ou ainda quando, maldizendo o revés da própria sina, pressente, preliba, e deplora a noite festiva,
tanática, mas frustrante, que estranhamente lhe adia a sorte: ...Dura sorte, /
ter de deixar para outra noite a morte), e cujo efetivo desaparecimento, ou antes,
brutal e súbito arrebatamento, prematuro e trágico  logo tornando-se
dolorosamente simbólico em si, como um holocausto nos (dos) céus,
despedaçada a asa ao rapto da heresia, crestado no mesmo fogo o prometeico
e renovado sacrilégio, perpetrado no ar o cruento sacrifício  o poeta
hecatombado vivo, em clamor e chamas consumido, consumatum est, no malsinado
e fatídico Cerro de las Cruces o homem em sua hora crucificado e no seu
próprio verbo transverberado, incandescido, carbonizado: Cimo de cerro / no
imo do ermo / rasteja o erro , talvez fosse um dos motivos, ainda que subliminar
ou subconsciente, por que o traumatizado e estremecido amigo, associando
talvez, por simples associação de imagens, a aérea circunstância e a brusca
violência daquela morte com as coincidentes imagens finais do poema que
a seguir citaremos, tanto gostasse de recitar (não raro só para si), como
diversas vezes o vi e ouvi fazer, e assinalar-lhes a beleza, os dois versos que
fecham outro grande soneto de Drummond, os quais dizia ele serem versos
que trazem aquela centelha do que considerava como sendo essencialmente o poético; versos, pois, que ora aqui incidem e ressoam como um dísticoepicédio, rememorando e transfigurando liricamente a morte dramática do
jovem amigo seu: o qual foi não apenas um assinalado, iluminado poeta,
mas era sim um ser alado: Ser em forma de pássaro, / sonora envergadura / ruflando
asas de ferro sobre o fim / dos êxtases do espaço (...), por conseguinte um verdadeiro e predestinado... Anjo dos Abismos, que vivia de arremeter-se, poeticamente arriscar-se nas asas da palavra, nessas asas largas, livres, da palavra  Albatroz!
Albatroz! dá-me estas asas..., qual antecipa o metapoético, célebre e ruflante
verso castroalvino a bela imagem do verbo faustiniano que ruge em plena /
madrugada cruel de um albatroz / zombado pelo sol  e que ainda responde em
igual diapasão: Fonte de fogo — dá-me essa Glória / Sarça de fogo — dá-me o
Poder (...), como pede e clama ele no seu haceldamático poema, o qual se
lança largamente em dois inteiros dodecálogos de alexandrinos, formando
simbolicamente todo um amplo campo, por assim dizer, funéreo-semântico-sangüíneo, alegoricamentee configurado, campo santo, campo de san-
Asas da Palavra
gue e campo de sentido, da culpa e desencantamento, do auto-suplício e
remordimento; poeta, enfim, desarvorado, que um dia efetivamente voou
longe e alto para os Andes e, de novo castroalvinamente — condor sem rumo,
errante, lançado ao vento da desgraça — repentinamente sumiu no céu e desapareceu; e quiçá ainda por suma ironia das temíveis Moiras e das terríveis
Erínias, anticristãs, desapareceu e sumiu, como simbólico e real crucificado,
por fatal coincidência, como pressentira, no inesperado calvário daquele
Cerro de las Cruces!; restando assim, como aludíamos, do jovem amigo
perdido no tempo, desaparecido no espaço, apenas a sua aérea e alegórica
lembrança, gravada nos versos drummondianos que o velho amigo saudoso gostava tanto de recitar: Salvo aquele pássaro  vinha azul e doido  que se
esfacelou na asa do avião. Ou ainda, para o admirador e amigo que desolado
nesta terra ficou, o fantástico e alado poeta, que tanto o fascinara, bem
poderia ser invocado e saudado, no próprio sentido da vida e no transe da
morte, que tensamente viveu e que bruscamente o arrebatou, pela simples e bela imagem daquele outro e rilkeano amigo comum de ambos, que
um dia exclamara: Ó grande anjo azul das noites tenebrosas!] Fechando enfim o
extenso e evocativo excurso parentético (estendido em toda uma chave,
de intercalados parênteses) e retomando agora o fio principal do discurso: um comentário, dissera eu, curto e certo ( São as mênades furiosas!
mas furiosas da ira divina, da fúria poética), salientando assim, com a
referência mitológica, o empenho e o impulso afetivo, com seu quê de
patético, daquelas mulheres tocadas de sentimento, imbuídas de emoção
e respeito no momento do enterro do grande homem, do pequeno herói,
do velho mestre e amigo. Mas sem ali insinuar e nem sequer haver eu
percebido, naquele instante e naquele rápido comentário, a incidental conexão paronomástica dos dois nomes casualmente aproximados: o nome
grego da mitologia, das antigas ninfas dionisíacas, e o sobrenome pessoal
mais apropriado e conhecido, pelo qual e com o qual sempre fora em vida
identificado, reconhecido e reverenciado, o nosso incomparável e inconfundível Professor Mendes.
—— xxxx ——
Recordando agora, em toda a sua dimensão e sentido, aquela
inaudita e eloqüente atitude, melhor a interpreto e compreendo, e acrescento, pois, esta explicação àquela frases, convencido e emocionado do
que digo: eram ali em verdade, não as antigas mênades furiosas, mas, análoga e homonimicamente, as nossas Men(a)des fervorosas (com proparoxítona
pronúncia e significação, é claro): mulheres, naquele momento, além de
sinceramente amigas e admiradoras, profundamente movidas e comovidas, mais do que por sincero apreço, por um apego de morte (um pathos
de amor e morte, realmente) ao mestre querido, ao modelo perdido, em
suma, ao ídolo desaparecido ¾ porém o mito ali redivivo e soerguido. E
assim, trazendo também elas naquele préstito os seus ramalhetes de folhas e flores nas mãos, como se fora o tirso dionisíaco, ornado de hera e
pâmpanos, pude analogamente por um instante, num simples relance
entre lírico e onírico do olhar, imaginariamente vê-las naquele momento (como de fato o vi para mim a olhos vistos e o disse a mim, naquela
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instantânea enunciação da mimética e mágica palavra, deflagrada pelo
imaginante olhar:  São as mênades... furiosas), todas elas em grupo,
vindo juntas e unidas, reunidas, compungidas pela mesma coita e paixão,
virtualmente correndo empós do seu deus, ou humilde semideus, o seu
mestre muito amado, o mestre estremecido. E de repente, como num
ato extraordinário, um súbito ímpeto, vi-as arrebatarem-lhe o corpo inerte, um corpo ali real e simbólico, para restituí-lo às forças telúricas, profundas, sagradas da terra, da Tellus Mater, de divinas e femininas entranhas, que maternalmente o receberam  como depois, nos brandos céus
iluminados, seria o seu belo espírito recebido, num misto de algazarra e
heresia, pela irmandade dos seus amigos poetas mortos.
Desse modo assim alto e sublimado, mítico e poético, portanto
metaforicamente, e até diria meta-fisicamente, carregaram elas e conduziram em silêncio e calada emoção o seu divino e humano Dioniso até à
beira do túmulo (como que à imagem e semelhança do TEANTROPO
faustiniano de Ariazul, onde aliás, traindo e contraindo verbalmente a
memória dos célebres versos castroalvinos e torcendo-lhes o pescoço da
retórica patriótica e versificatória, sem temer o incurso noutro sacrilégio,
diretamente contra a sacrossanta linguagem de um poeta-mito da nossa
mais celebrada e consagrada tradição de poesia nacional, o revel e sacrílego poeta de novo retoma e quebra o metro canônico do decassílabo,
contra-proferindo: traído pela brisa / mastro / mestre / abandona a
bandeira da balança); ou antes — investidas que estavam, nominalmente, de
força e poder mitológicos —, até o alto empíreo, o assento etéreo, aonde em
espírito e em glória o elevaram. Transformando destarte, simbolicamente, e de um modo ainda mais eloqüentemente litúrgico, aquele modesto e
simples enterro, não em um rotineiro e triste périplo até à última morada,
mas sim num glorioso préstito, um ascensional e excelso Caminho da Glória, aquele celeste, límpido caminho, que não vislumbramos (e quão estranhos
roseirais nele florescem!...), por onde passam... trêmulos, sonhando  na heterodoxa e hermética visão soteriológica do poeta  os seres virginais que vêm da
Terra — tal nosso mestre assinalado pelos órficos arcanos da fé e da poesia —, ensangüentados da tremenda guerra, embebedados do sinistro vinho (sinistramente ébrios decassílabos, cruz-e-sousianos, que aliás ressoam em certos
versos faustinianos).
E dessarte transformaram também, alegoricamente falando-se,
aquele simples e modesto esquife num autêntico, heróico, mítico féretro
(com todo o peso, toda a imagem e todo o étimo da palavra), como se
carregassem em paradoxal triunfo os despojos mortais do seu grande herói,
do seu titã imbatível, seu invencível, inesquecível Agonistes: que somente
na saga final, e no fatal lance, vencido foi pelo Inelutável  aquele
apocalíptico e ambíguo cavaleiro andante do destino, igualmente paladino
do amor, que anelantemente demanda, por desertos, por sóis, por noite escura, o
inatingível, o inenarrável, o ilusório palácio encantado da Ventura; o mesmo
sublime cavaleiro que estranhamente, cruzando regiões sagradas, provindo
inimaginavelmente das altas estrelas, vestido de armadura reluzente, desde a
origem dos cosmos e dos tempos cavalga formidável, sem temor e sem
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rumo, o mais fero e desarvorado corcel negro  tenebroso e sublime  que
terrível passa inexoravelmente a galope, da noite nas fantásticas estradas, a
estremecer-lhe não sei que horror nas crinas agitadas! — do qual nos fala, e
dramática e oniricamente nos pinta, em eqüestre e sombrio painel, outro
assombroso soneto de Antero, o indeslindável Mors-Amor (oxímoro vital
e verbal in nuce), que o nosso anteriano mestre quantas vezes a fundo terá
meditado e contemplado, perplexamente, ante a parelha inseparável e eterna do amor e da morte, jungidos num só vulto de trágica figura e sentido
 insuperável contradição.
Por conseguinte, por obra e graça do nome, na simplicidade e
sortilégio de sua pura nomeação, e sem ter nem pretender as loas e os
louros de maior renome, nosso proverbialmente modesto professor tornava-se ali, no ato mesmo e simples do seu sepultamento, ainda mais
significativa e definitivamente consagrado como insigne mestre: em ritual
cortejo carregado por fiéis discípulas e conduzido in aeternum a um túmulo,
ou templo, paradoxalmente celestial  como quem é levado em glorificador
triunfo, não propriamente ao pé da tumba, pois arrebatado foi simbolicamente, mas a um pedestal transcendental, pelas mãos amorosas das melhores alunas, e alçado ao amplexo espiritual não das almas (pois as almas
são incomunicáveis, como ele manuelinamente sabia) mas dos versos imortais de seus diletos amigos poetas mortos, reunindo-se com eles para sempre
em perfeita confraria poética, no mais sublime panteão de honra e glória,
que é de amizade e saudade construído, erigido no campo-santo mais
celeste, infinito, no profundo e eterno azul, etérea ariazul, dos brandos céus
iluminados.
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PARA QUE SERVE UM
POEMA?
Maria Lúcia Medeiros
Escritora
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M
il novecentos e sessenta e dois... corria o ano. Minha turma
na Faculdade de Filosofia lá da Generalíssimo incluía um
pequeno grande grupo de jovens estudantes, uns acabados de entrar, outros no meio do curso, outros quase a “se formar”, a
viver um tempo em que quase nada era permitido além do compromisso de lutar pelo seu país,.
Por que, ao pensar nesse tempo, penso nos grandes planos de
Antonioni?
Íamos ao cinema, namorávamos, odiávamos os americanos, nos
revoltávamos com o leite que eles mandavam para as crianças do Nordeste, através do vergonhoso programa Aliança para o Progresso. Vivíamos.
Como eram as tardes de Belém? Ah! mais belas impossível, caindo lá
pelos lados da Sorveteria Santa Marta, rendilhando de sombras os ainda paralelepípedos da rua. E vejo alguns rostos queridos parados à calçada ou em
volta do chafariz: Valter Bandeira, Roberto Cortez, Isidoro Alves, Mariano
Klautau, Alberto Uchôa, Roberta Braga, Judith Bastos, Ana Maria Verbicaro,
Graça Landeira, Marlene Viana, Vera Bastos, Celina, Raimunda Moy, Angélica, Heraldo Maués, Maria Alice Cordeiro, Ana Francisca, Pedro Pinho e tantos outros “do nosso tempo”.
Eu fazia parte do grupo de calouros, mas todos se conheciam.
Época de muito charme ou no cigarro que quase todos fumavam ou
nos blasers usados por nossos colegas e professores.
Roberta Braga dirigia uma Rural Willys, Mariano Klautau calçava
elegantes sapatos esportivos tchecos, Leda era nossa colega católica mais
politizada e Benedito Nunes, Ruy Barata, Roberto Santos, José Maria Alves
Cunha, Orlando Costa e Carlos Coimbra, nossos intelectuais de ponta,
professores, jovens professores a quem admirávamos, de quem bebíamos
ensinamentos nas disciplinas Introdução à Filosofia, Introdução à Sociologia, Introdução à Educação, Introdução à Psicologia, Literatura Brasileira. Os de Letras estudavam grego e latim, mas todos sabiam do Brasil e
contribuíam de um jeito ou de outro para que as mudanças sociais acontecessem.
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Foi nesse ano, 1962, que morreu, em acidente aéreo, o poeta Mário
Faustino. A notícia alcançou-nos na esquina e veio como um golpe seco. Eu
não o conhecia e o que ouvíamos a respeito dele era o melhor: um grande
poeta em ascensão, uma promessa nas letras brasileiras, bom crítico, bom
jornalista, bom tradutor, amigo querido.
Asas da Palavra
Em meio à trágica notícia alguns versos premonitórios:
Sinto que o mês presente me assassina
Não morri de mala sorte
Morri de amor pela morte
Envolta nesse tom guardei para mim esses versos. Muito tempo
passou. O ano de 1964 trouxe meu primeiro filho e um golpe militar.
Prisões, invasões, torturas, fugas, exílios, a juventude dispersa, o fim
daquelas belas tardes da Generalíssimo.
Lá se vão quase 40 anos.
Agora é a revista Asas da Palavra, da Unama, que dedica um
número em homenagem ao poeta Mário Faustino.
Convidada pela amiga Rosa Assis a escrever um texto sobre Mário
me vêm à memória três poemas que seriam imprescindíveis em uma
seleção com vistas a uma antologia amorosa. Falo de Balatetta, Quando
chegares ao aeroporto e Carpe diem que, na minha simples opinião de leitora
de poesia, compõem a mais tocante expressão da poesia amorosa de
Mário Faustino.
Em todos eles é o poeta a tentar inscrever o tempo amoroso no
tempo da memória em movimentos que vão da euforia pelo reconhecimento da plenitude amorosa até o desalento, o esvaziamento, a morte
do amor.
Decido-me entre eles, no entanto, por Carpe diem que tem me
desafiado pela vida pela riqueza das inúmeras possibilidades de vozes
dentro do poema a cada leitura feita.
CARPE DIEM
Que faço deste dia, que me adora?
Pegá-lo pela cauda, antes da hora
Vermelha de furtar-se ao meu festim?
Ou colocá-lo em música, em palavra,
Ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?
Força é guardá-lo em mim, que um dia assim
Tremenda noite deixa se ela ao leito
Da noite precedente o leva, feito
Escravo dessa fêmea a quem fugira
Por mim, por minha voz e minha lira.
(Mas já de sombras vejo que se cobre
Tão surdo ao sonho de ficar – tão nobre.
Já nele a luz da lua – a morte – mora,
De traição foi feito: vai-se embora.)
Asas da Palavra
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O que me seduz neste poema é a luta pela permanência das
coisas, o desespero diante da efemeridade, da morte da beleza. O que,
de impacto, ainda me comove neste poema é o apelo dramático para
que a expressão criadora possa salvar o instante.
A plenitude do dia, o arroubo narcísico presente no primeiro
verso que inicia o poema já traz o conflito que será desdobrado no
correr dos versos seguintes.
“Que faço deste dia, que me adora?” põe a questão dramática
que se desenvolve em meio a dúvidas (Faço isto ou aquilo?)
O ser amoroso na poesia de MF, diante do passar das horas,
diante do tempo que levará embora o momento de plenitude da paixão,
transfigura amor e amante em luz, em sol, em dia e, em oposição, faz da
noite a inimiga, a que pode roubar-lhe o amante encerrando-o na escuridão das trevas.
Neste poema, os primeiros cinco versos deflagram o drama
amoroso e, em seguida, apresentam as alternativas para a possível solução buscada pelo poeta. No entanto, antes de escolher imortalizar,
perenizar o instante, o dia, está expresso o desejo de posse, de subjugálo pela força, à maneira animal (“Pegá-lo pela cauda, antes da hora /
vermelha de furtar-se ao meu festim?”) mas em seguida escolhe (“Ou
colocá-lo em música, em palavra, ou gravá-lo na pedra, que o sol lavra?”) já se entendendo aí a salvação pela arte, a expressão criadora
abrigando o instante amoroso.
O verso força é guardá-lo em mim mostra a impotência do poeta
diante da grandeza da paixão amorosa. Em seguida, abre o cenário do
drama: leito, fêmea, escravo, fuga, traição, todos os elementos da intriga
amorosa, postos agora de maneira mais passional, mais trágica. A utilização do pronome pessoal feminino, ela, ao mesmo tempo que parece apenas posto para nomear corretamente a noite, a fêmea, configura também o
amante masculino o sol, o dia em oposição à natureza feminina da lua, cuja
luz prenuncia a morada da morte.
Ele, o dia, é o amante roubado pela noite, engolido pela noite,
esvaziado de sua luz (de vida) em detrimento da luz da lua, onde mora a
morte.
Ele, o dia (“que me adora”) “vai-se embora”, “surdo ao sonho
(tão nobre) de ficar” roubado pela noite, “vejo-o já coberto de sombras”,
“de traição foi feito”.
O esforço do poeta para segurar o instante lutando pela permanência, tentando salvá-lo, imobilizá-lo, perenizá-lo pela arte, também nasce
do desejo de segurá-lo pela cauda, domá-lo, submetê-lo à força física,
animal, instintiva.
114
Asas da Palavra
Ao mesmo tempo que o poema nos provoca a vivenciar toda a
paixão amorosa levando-nos da euforia ao desalento, comuns ao sentimento e, de certa forma, comuns à poesia amorosa de MF, mais uma
vez é o elogio do amor, a nota mais funda, mais marcante da obra de
Mário.
Em Carpem diem o ser amoroso é o mesmo “ser aberto, humano” a buscar e cantar o mesmo amor “acima de qualquer fosso de sexo
/ acima de qualquer muro de credo”.
Este ser amoroso, aberto, luminoso, em Carpe diem é o próprio
dia. É o amante, é o amor tragado, engolido pela noite transfigurada em
traição e traidora, ela, a noite que rouba o dia e deixa o poeta (amante) em
desalento. Duas estrofes, dois momentos, dois tons do sentimento amoroso a euforia e o desalento este último tom como um lamento, um murmúrio, entre parênteses está o gemido, sufocado.
Lembro Emily Dickinson: Prefiro recordar um pôr-de-sol
a possuir um sol nascente
porque na partida existe um drama
que a permanência nunca pode dar.
E apercebo-me da poesia animando a natureza para trazer mais
perto, traduzir melhor o instante amoroso, compará-lo, amplificá-lo,
confundi-lo com a força da natureza, tudo tentativa de segurar, de reter
o tempo que passa, transforma e passa. Inexorável. Mário Faustino, a
poesia, o tempo amoroso... Eu comecei lembrando o Tempo da Faculdade
e o fim daquelas belas tardes na Generalíssimo.
Enfim, para que serve um poema?
Asas da Palavra
115
116
Asas da Palavra
MÁRIO FAUSTINO
POETA DO MEU NORTE
Lília Silvestre Chaves
Mestre em Teoria Literária, UFPA,
e doutoranda em Literatura
Comparada, UFMG
Asas da Palavra
117
“É inacreditável que a
perspectiva de ter um
biógrafo não tenha feito
ninguém renunciar a ter
uma vida” (tradução
minha).
1
2
Cf. MALLARMÉ, Stéphane.
Quelques médaillons et
portraits en pied. In: ____.
Oeuvres complètes. Paris:
Gallimard, 1945, p. 481.
3
4
5
Versos finais do “Primeiro
poema”. 21 fev. 1948.
Do “Primeiro poema”.
Do poema “Auto-retrato”.
25 abr. 1948.
“P
Il est incroyable que la perspective d’avoir un biographe
1
n’ait fait renoncer personne à avoir une vie.
Cioran
rimeiro poema”
Ao F. Paulo Mendes, amigo.
Por que vos espantais se eu venho sobre as ondas?
Trago a paz e as distâncias vêm comigo
na boca tenho mundos e nos olhos palavras.
Ouvi-me.
Sabe-se o que é escrever poesia? Uma antiga e muito vaga mas
ciumenta prática, na qual jaz o mistério do coração, responderia Mallarmé.
É como se nada existisse e repentinamente alguém ousasse lançar-se a
este jogo insensato de escrever, arrojar-se, como o reflexo de uma divindade esparsa, perseguindo a virtude de uma dúvida – com um dever
de tudo recriar, com reminiscências e surpresas, na lenta apreensão de
uma certeza. Perceber a anterioridade da criação, uma somação do mundo
e, “sur le papier blême de tant d’audace” (“sobre o papel lívido de tanta audá2
cia”), retrucar, entre atônito e vaidoso: “Mas eu não sou Senhor /
embora venham comigo a Música e o Poema / Por que vos ajoelhais se
eu vim por sobre as ondas / e só3 tenho palavras? / Ouvi minha voz de
anjo que acordou: / Sou Poeta”.
Teria sido anjo ou demônio – como diria Lorca – a inspirar Mário
Faustino na gestação lírica de palavras, incitando-o a libertar-se das cadeias da prosa, iniciando-o na profecia poética, impregnando-o de vestígios
românticos e apontando-lhe a direção ambiciosa do vidente e do arauto
do novo? E que outro anjo surpreso e vaidoso acordava naquele início de
1948, em Belém, cidade diluída – pela chuva, pela distância que a separa
do Sul do Brasil, ou ainda pelo fantasma acalentado do reflexo de Paris?
Ao retornar do impossível para si mesmo, o primeiro espanto foi do próprio Mário, que ofereceu suas palavras àquele que provocou nele o aflorar
da poesia. O poema inicial ilustra esse misto de surpresa e de deslumbramento por sentir-se poeta, como se descobrisse pela primeira vez o verdadeiro sentido das palavras: “Minhas palavras. / Antigas porém há pou4
co descobertas”. Talvez pudéssemos repetir as palavras de Gide, segundo o qual a influência nada cria, apenas desperta. E então desponta um
mundo aberto ao infinito, onde não há antes, nem depois, e sim a obra
eterna: “Também há quantos séculos eu não escrevo poemas? / Há
5
miríades de séculos, meu irmão”, escreveu Mário sobre o poeta que
existia nele e que acabara de emergir.
Datado de 21 de fevereiro de 1948, datilografado em papel
118
Asas da Palavra
6
timbrado da Alfândega de Belém, trazendo, escritas à mão, na diagonal,
as palavras “Para o Mendes não tomar o porre prometido” e a assinatura de Mário Faustino, o “Primeiro Poema” foi entregue, triunfantemente, a Francisco Paulo Mendes, no salão do Café Central. O “não”, grifado por Mário, deixa-nos ouvir a voz de Mendes que, no tom sedutor do
desafio, prometeu embriagar-se caso um poema transbordasse naquele
início de ano. As palavras refletem a alegria de Mário ao responder aos
anseios do amigo, a quem dedica orgulhosamente o seu primeiro poema, desobrigando-o da promessa.
6
7
8
O sr. Mascarenhas, avô de
Mário, trabalhava na
Receita Federal e Mário
gostava muito de papéis
timbrados...
Do poema “1º motivo do
anjo”, 8 abr. 1948.
“Eu sou o dia, eu sou o
orvalho. [...] Eu sou o que
começa” (tradução minha).
No dia 2 de abril, Mário correu à casa de Mendes, no meio da
noite, dessa vez com um pedaço de papel em que datilografara, na frente,
um poema e, no verso, tal um outro poema, a dedicatória:
Mário escreveu dias depois o “2º motivo da rosa” (8 de abril).
Mas, antes de compor esses dois “Motivos”, dos seus poemas os primeiros a serem publicados, ele tinha escrito, além do “Primeiro poema”
(21 de fevereiro), o “Poema de amor” (23 de fevereiro), um “Auto-retrato” (25 de fevereiro), uma “Elegia” (6 de março, com a mesma dedicatória do primeiro: “Ao F. Paulo Mendes, amigo”) e uma “Ode” (7 de
março). Ora românticos, pelo sopro de sonho que os banha, ora
impressionistas, pela fugacidade do traço, esses textos são a efusão de
uma alma sensível e contemplativa que descobre um mundo intermediário entre a vida e o sonho: “Donde esta paz o sono o sonho a sombra?
/ Apenas leves dedos sobre os olhos / somente a mão do anjo sobre o
7
ombro”. O leitmotiv da rosa e o do anjo exalam o tom de Rilke, tanto na
efusividade do início – “Je suis le jour, je suis la rosée, [...] Moi: je suis ce qui
8
commence” –, quanto na ânsia de mudar quando a fonte se exaure, o
que, para Mário, só acontecerá alguns anos depois, quando viajou para
estudar nos Estados Unidos.
As datas contêm um mundo de informações não somente relativas ao tempo, elas dizem de gestos, revelam espaços e sentimentos,
amizades, influências. As datas cravam as palavras no instante vivido,
fazem parte do poema e com ele incorporam-se ao texto da biografia.
Em novembro de 1947, Mário tinha sido apresentado a Francisco Paulo
Mendes; em fevereiro de 1948, Mário escreve poesia. Essa aproximação
foi o acontecimento mais importante desse período da vida de Mário
Asas da Palavra
119
9
MENDES, Francisco Paulo.
O poeta e a rosa, primeira
notícia sobre a poesia de
Mário Faustino. Folha do
Norte, Belém, 25 abr. 1948.
Suplemento Arte-Literatura,
n. 761, p. 1-3.
10
Cf. NUNES, Benedito.
Entrevista filmada em sua
casa. Belém, 30 set. 2000.
Faustino e desencadeou uma profunda amizade que durou, em uma
espécie de encanto, por volta de cinco anos. Naquelas reuniões do Café
Central, Mário Faustino passou a levar os poemas para o Mendes ver.
Este exultava com os poemas do Mário, enquanto os outros do grupo,
apesar de enciumados, não podiam deixar de admirar também o poeta
que surgia: “Nada mudou, apenas eu transbordo”, escrevia o poeta.
“Todo poeta novo é um novo profeta: anuncia uma nova idade.
E é na palavra dele que nós depositamos a nossa esperança”: na mesma
edição de domingo, os leitores da Folha do Norte foram surpreendidos
duplamente. Além de encontrarem uma página inteira do “Suplemento,
arte e literatura”, dedicada a um poeta novo, com dois poemas – “Dois
motivos da rosa” – e a ilustração romântica de duas rosas, decalcada de
uma das revistas européias assinadas por Francisco Paulo Mendes, os
leitores depararam-se, na página seguinte, com uma longa e entusiasmada crítica de um dos intelectuais mais eminentes da sociedade paraense:
9
“O poeta e a rosa, primeira notícia sobre a poesia de Mário Faustino”.
Dois anos depois da crítica de Francisco Paulo Mendes, que diz
respeito a poemas de Mário que precedem O Homem e sua hora e que não
foram incluídos nesse livro, em 31 de dezembro de 1951, ainda no “Suplemento” da Folha, um segundo comentário sobre o poeta foi feito por
um Sr. João Afonso que se dizia crítico literário de passagem pela cidade
e que, tendo lido e se interessado pela antologia dos “Dez poetas
paraenses” publicada no “Suplemento” do domingo anterior, tomava a
liberdade de mandar para o jornal algumas observações que a leitura lhe
tinha sugerido. E passava a comentar, impiedosamente, um a um, todos
os dez poetas, Mário Faustino entre eles. O artigo causou um alvoroço
inesperado e provocou indignação entre os poetas criticados, indo atingir Haroldo Maranhão, o diretor do “Suplemento” (ele mesmo um dos
poetas) no seu descanso, em Fortaleza, onde Mário Faustino também se
encontrava. Tendo concluído que o artigo era de autoria de Francisco
Paulo Mendes, Haroldo escreveu, imediatamente, um artigo combatendo a crítica mordaz do tal João Afonso que pretendia publicar no “Suplemento”, à guisa de resposta.
120
O autor da “crítica mordaz” sorriu. Depois de tanto tempo –
por volta de cinqüenta anos passados –, Benedito Nunes (que revelou,
no “Suplemento” seguinte, ser ele o misterioso João Afonso) lembra-se
perfeitamente do episódio: foi tudo uma idéia do Ruy Barata, que tinha
ficado responsável pelo “Suplemento” durante as férias de Haroldo
10
Maranhão. Esse episódio revela a força e a importância do “Suplemento” de arte e literatura da Folha do Norte (local, mas de amplitude
nacional), naquele pequeno mundo da cidade provinciana, em que os
leitores se constituíam, na sua maioria, dos próprios colaboradores do
jornal, compostos pelos dois grupos que atuavam na vida intelectual da
terra: as gerações velha e nova que se entrechocavam, uma desdenhando de certa maneira a outra. A brincadeira no jornal custou aos amigos
alguns mal-entendidos, mas forneceu motivo para muitas risadas posteriores e animou e enriqueceu o “Suplemento” dominical da Folha, na-
Asas da Palavra
quela virada de ano. Mesmo se tratando de uma simulação, o crítico que
usou o pseudônimo de João Afonso esboçava com segurança as suas
idéias sobre os primeiros passos de um poeta de cuja obra, mais tarde,
seria o maior e mais fiel divulgador. Na verdade, essa foi a primeira vez
que Benedito Nunes escreveu sobre Mário Faustino.
Depois da edição de O Homem e sua hora, em 1955, momento em
que Mário Faustino “entra vitoriosamente para o grupo dos melhores
poetas brasileiros”, segundo a referência de Eneida
de Moraes na sua
11
coluna “Encontro Matinal”, do Diário de Notícias, muitas notas em jornais e revistas do Brasil fazem menção à obra. Destaco um comentário de
Mário Chamie, que vê nos versos do poeta estreante “um novo padrão de
12
13
sensibilidade estética”, e uma longa análise crítica de Benedito Nunes,
cujo gesto de promover a obra do poeta de O Homem e sua hora repetir-seá várias vezes no futuro. Em cada publicação póstuma, Benedito será o
organizador, apresentando, analisando, difundindo a poesia de Mário
Faustino.
Hoje, no panorama da literatura brasileira, os autores que citam
o poeta piauiense situam-no ao lado daqueles que tomaram uma direção diversa da chamada geração de 45. No prefácio de Poesia de Mário
Faustino, Benedito Nunes considera a “arte da composição utilizada por
Mário Faustino em O Homem e sua hora, liberta do dualismo matéria/
14
forma” que preocupou a geração de15 45. Walmir Ayala e Manuel Bandeira, na Antologia dos poetas brasileiros, falam de Mário Faustino como
pertencente a “um grupo, menos que uma geração de 55 (ou 56?) [...]
marcada por um lirismo metafísico [...], absolutamente autônomo na
resolução de uma experiência pessoal”, porém sempre ligado aos acontecimentos
artísticos de sua época. Assis Brasil, em A nova Literatura
16
Brasileira, situa Mário Faustino, poeta sempre em busca de novos padrões da linguagem (na tradição de Mallarmé e Pound), entre a geração
pós-modernista de 45 e as experiências de vanguarda. Ao lado de João
Cabral e Ferreira Gullar, Mário Faustino seria, ainda segundo Assis Brasil, o poeta que antecipou e promoveu a experiência concretista. José
Guilherme Merquior, no ensaio “Musa morena moça: notas sobre a
17
nova poesia brasileira”, em O fantasma romântico e outros ensaios, referese a ele (junto com Ferreira Gullar e Mário Chamie) como representante de um novo estilo, emergente nos anos de 1950, mais radical, mais
próximo das técnicas de expressão do modernismo mais novo, brasileiro ou ocidental. Para o Merquior de O elixir do apocalipse, Mário Faustino
é “um neovanguardista autocolocado na confluência de Jorge de Lima e
18
19
Ezra Pound”. Na História da literatura brasileira, Massaud Moisés cita
Mário Faustino, cuja obra poética foi produzida nos anos áureos da
vanguarda, como um poeta que procurava novos experimentos e buscava a tradição na modernidade “para além do humor e do prosaísmo
cultivados pelos de 22”, diferenciando-se do clima de 45 “pela desejada
metamorfose do verso”. Pedro Lyra, por sua vez, concentra na figura de
Mário Faustino todos os requisitos fundadores do que ele chama de
20
Geração-60.
Asas da Palavra
11
MORAES, Eneida de.
Poesia e livros. Diário de
Notícias, Rio de Janeiro, 14
nov. 1955, Encontro
Matinal.
12
13
14
15
16
17
18
19
CHAMIE, Mário. O
Homem e sua hora (Mário
Faustino). Diálogo, São
Paulo, nº 3, p. 121-122,
mar. 1956.
NUNES, Benedito. O
Homem e sua hora. Jornal
do Brasil, Rio de Janeiro, 5
e 12 ago. 1956, Livro de
Ensaio, caderno 2,
Suplemento Dominical, p.
10 e 6.
NUNES, Benedito.
Introdução. In: ____ (Org.).
Poesia de Mário Faustino.
Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira S.A., 1966, p.
12.
AYALA, Walmir; BANDEIRA, Manuel. Antologia dos
poetas brasileiros: Poesia
da fase moderna, v. II. Rio
de Janeiro: Edições de
Ouro, 1967, p. 129.
ASSIS BRASIL. Mário
Faustino. In: ____. A nova
Literatura Brasileira. v. II.
Rio de Janeiro: Companhia
Editora Americana/MEC,
Brasília-INL, 1975.
MERQUIOR, José
Guilherme. O fantasma
romântico e outros
ensaios. Rio de Janeiro:
Vozes, 1980.
MERQUIOR, José
Guilherme. O elixir do
apocalipse. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1983, p.
131.
MOISÉS, Massaud.
História da literatura
brasileira. Modernismo. 4ª
ed. São Paulo: Cultrix,
1989.
121
20
LYRA, Pedro (Org.).
Sincretismo: a poesia da
geração 60. Introdução e
Antologia. Rio de Janeiro:
Topbooks, 1995, p. 92.
21
CAMPOS, Augusto de.
Depoimento a Eliston
Altman. O Estado de S.
Paulo, São Paulo,
Suplemento Literário.
22
23
24
CAMPOS, Haroldo de.
Mário Faustino ou a
impaciência órfica. In: ____
Metalinguagem e outras
metas. São Paulo:
Perspectiva, 1992, p. 189.
NUNES, Benedito. Crítica
literária no Brasil, ontem e
hoje. In: MARTINS, Maria
Helena (Org.). Rumos da
crítica. São Paulo: SENAC
São Paulo: Itaú Cultural,
2000b, p.51-79.
BOSI, Alfredo. História
concisa da literatura
brasileira. São Paulo:
Cultrix, 1994.
BARBIERI, Ivo. Oficina da
palavra. Rio de Janeiro:
Achiamé Ltda., 1979.
25
26
CHAVES, Albeniza.
Tradição e modernidade
em Mário Faustino. Belém:
Universidade Federal do
Pará, 1986.
SILVA, Antônio Manoel
dos Santos. Poesia e
poética de Mário Faustino.
2 tomos. 1979. 447 f.. Tese
(Livre-docência em
Literatura Brasileira) Universidade Estadual
Paulista Júlio de Mesquita
Filho (UNESP), São Paulo,
1979.
27
MÜLLER, Luciana Martins.
Tensões de crítica e de
poesia em Mário Faustino.
2000. 173 f.. Tese
(Doutorado em Filosofia) USP, São Paulo, 2000.
28
29
TERRA em transe.
Direção: Glauber Rocha.
Produção: Zelito Viana.
Roteiro: D. Felipe Vieira
(José Lewgoy) vai assinar
sua renúncia diante do
quadro político constrangedor que vive Eldorado.
Paulo Martins (Jardel Filho)
tenta dissuadi-lo. Não
consegue. Quando está
indo embora é ferido
mortalmente por policiais.
Antes de morrer, declama
pateticamente um poema,
contando a história de
Eldorado. A história de uma
terra em transe, com suas
contendas políticas, suas
arbitrariedades, suas
misérias, seus crimes.
Intérpretes: Jardel Filho;
Paulo Autran; José Lewgoy;
Glauce Rocha; Paulo
Gracindo e outros. Estúdio
de som Herbert Richers;
122
Último verse maker competente da sua geração, Faustino estaria
preso ao nó mallarmaico, na opinião de Augusto de Campos, que con21
siderava sua crítica pragmática, ideogrâmica e criativa. Para Haroldo
de Campos, Faustino era um poeta aberto ao novo, “dotado de um
manuseio dúctil e sutil das técnicas do poema em verso, capaz do fragmento e da ruptura, sempre sensível aos experimentos da poesia concreta, embora, na sua produção pessoal, conservasse ainda certos elos
22
com a tradição discursiva”. Em “Crítica 23literária no Brasil, ontem e
hoje”, palestra publicada em Rumos da crítica, Benedito Nunes, comentando a participação dos poetas-críticos no debate da crítica sobre a
linguagem poética, une o nome de Mário Faustino, que defende a harmonia entre o novo e o tradicional, aos de Décio Pignatari, Augusto de
Campos, Haroldo de Campos, Ferreira Gullar e Mário Chamie.
Há alguns traços biográficos de Mário Faustino e comentários
24
críticos sobre sua obra na História concisa da literatura brasileira, de Alfredo
Bosi. Ivo Barbieri dedica-lhe um livro inteiro de crítica, Oficina da pala25
vra, em que procede a uma leitura intertextual e intratextual de sua
poesia, e Albeniza
Chaves publica sua tese Tradição e modernidade em Má26
rio Faustino, resultado de uma leitura de O Homem e sua hora. Também
surgidas na academia, duas teses sobre Mário Faustino devem ser citadas: a de livre-docência de Antônio Manoel dos Santos, Poesia e poética de
27
Mário Faustino, e a de doutorado
de Luciana Martins Müller,29Tensões de
28
crítica e de poesia em Mário Faustino. No seu filme Terra em transe, Glauber
Rocha põe na boca de Jardel Filho versos de Mário Faustino e Italo
Moriconi inclui “Balada” (Em memória de um poeta suicida) entre Os
30
cem melhores poemas brasileiros do século.
As vozes que cito não são as únicas que dizem sobre ele, nos
livros, revistas e jornais. Há outras referências em volumes de história
da literatura e da crítica brasileira, em artigos disponíveis na Internet,
31
em coletâneas de seus poemas e mesmo em uma antologia escolar.
Notícias e comentários críticos nos jornais sempre acompanharam as
publicações de seus livros.
Sem qualquer pretensão de ter sido exaustiva nessa revisão, percebi que a crítica biográfica que tornaria mais tênues os limites entre a
obra e a vida desse poeta ainda estava por se fazer. No doutorado em
Literatura Comparada, ao pensar novamente na questão da crítica de
poesia e desejando voltar-me para outros rumos no encalço dessa crítica nova, cuja bússola aponta para uma crítica da literatura (reunindo
teoria e história) que dissolve os limites antes traçados entre obra literária e vida pessoal, foi em Mário Faustino que pensei. Mário, poeta do
meu Norte; Mário, sem biografia; Mário, de obra e vida fragmentadas.
Um certo mistério que cerca seu nome animou minha decisão: se
Mário Faustino fez o mais ágil e inteligente jornalismo literário do Brasil, se
foi um dos nossos maiores críticos literários militantes, se o lançamento de
seu livro O Homem e sua hora tornou-se um dos principais acontecimentos da
poesia brasileira dos anos 50, por que havia tão pouca referência à sua vida?
Asas da Palavra
Decidi preencher essa lacuna e escrever (como tese de doutorado) uma
biografia literária de Mário Faustino. Partindo do princípio de que Mário
Faustino concebeu a vida construindo a sua maneira de ser e de ser visto,
como se vivesse em ritmo de (auto)biografia, empreendi fazer da obra e da
vida o assunto de uma biografia, como um todo, inserindo a questão do
gênero biográfico na esfera da ficção e da crítica. Além de contrafazer a vida
do poeta, recriando-a com base nos pólos distintos de uma experiência
vivida e imaginada, tentei unir à sua vida, não apenas a poesia, mas também
toda a sua produção literária, teórico-crítica e extraliterária, inserindo-as em
uma história política, cultural e artística.
Laboratório Líder
Cinematográfica, 1966/
1967. 1 filme (115 min.,
son., preto e branco, 35
mm).
MORICONI, Ítalo (Org.).
Os cem melhores poemas
brasileiros do século. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2001,
p. 217.
30
31
REBELO, Marques.
Antologia escolar brasileira.
Belo Horizonte: MEC, 1967.
A história de Mário Faustino dos Santos e Silva iniciou-se no
Piauí, no dia 22 de outubro de 1930. Mas, se em Teresina Mário Faustino
chorou pela primeira vez, foi em Belém que ele atingiu a idade da consciência e iniciou a invenção de si mesmo. A poesia encontrou-o em
Belém. Muitos escritores o citam entre os poetas do Pará – mesmo nascido no Piauí, Mário Faustino era paraense.
Quando Mário Faustino morreu, vários artigos, com homenagens e despedidas, foram publicados nos jornais. A morte de um jovem
poeta, crítico e jornalista, aos 32 anos de idade, completados no mês
anterior, com um livro de poemas publicado oito anos antes e tendo
assinado em jornais de Belém e do Rio de Janeiro, teve alguma repercussão. Para Mário Faustino, a morte representava o início da vida, e a
sua biografia não poderia deixar de começar por uma espécie de
tanatografia:– a grafia para a morte e a morte como grafia. Projetando o
fim sobre o começo, depois de contada a morte, volto-me para o nascimento de Mário Faustino e continuo a história no ritmo sugerido pelo
curso do tempo. Obedeço, dessa maneira, simultaneamente, à
circularidade da ilusão biográfica (em uma biografia narra-se uma vida
da qual já se sabe o fim) e à aceitação sensual dos instantes de que nos
fala Sartre.
Para que o olhar pudesse enlaçar as várias direções, foi preciso alargar em torno do biografado o número de pessoas e movimentos, reconstruir seu meio, fazer reviver outros que o cercavam. Daí a tentativa de recriar a Belém de Mário Faustino, com o seu espaço social, o mundo da arte, os
artistas de sucesso na época. A vida intelectual e social na província, os
saraus e salões – que contribuem para estruturar o campo literário (como
farão, em outra escala, as revistas, os jornais e os editores) –, os cafés de
encontro – o Café Central, espécie de salão cultural, que não existe mais e
do qual nem uma fotografia foi ainda encontrada. Sua amizade com Francisco Paulo Mendes e com Benedito Nunes. O seu lugar de trabalho. O
jornal. A vida da juventude intelectual de Belém, seus projetos e leituras: o
grupo dos “novos”. As reuniões na “casa das tias”, a referência a cada uma
delas – a Mimita em especial – com epítetos carinhosos. O início da vida de
universitário, a rota de um poeta, desde os primeiros poemas, a primeira
crítica, a temporada nos Estados Unidos e a viagem à Europa. De volta a
Belém, o encontro com Robert Stock, poeta norte-americano, no Bairro da
Matinha. E a trajetória social que se anuncia, as calçadas, os trajes – os
Asas da Palavra
123
passeios a pé, as roupas, a elegância, a escolha das gravatas, a moda: o dandy
que era Mário Faustino.
Depois, o abandono do curso de Direito, a mudança para o Rio
de Janeiro, a capital do Brasil, fervilhando de novidades, a publicação e a
recepção do seu livro de poesia, a renovação do “Suplemento” do Jornal
do Brasil, a sua atividade crítica na página “Poesia-Experiência” – incomparável no jornalismo literário nacional –, as exposições de Artes Plásticas
e o movimento Noigandres (os mesmos passos trilhados para chegar a
poéticas diferentes). Sua fase dita experimental. A influência da arquitetura da época nas outras artes. A atmosfera de liberdade e de desenvolvimento no país, com a eleição de Juscelino. A praia, o sol e o cuidado com
o corpo que Mário Faustino cultivava. Sua homossexualidade e o
pioneirismo de seus versos homoeróticos na poesia brasileira. Os amigos
do Sul, os novos poetas, a angústia da evolução poética. A enorme experiência que adquiriu com a vida em Nova York e o trabalho na ONU, o
amor de Oswaldo, a lenta e agônica escrita dos poemas-fragmentos destinados à composição do grande poema que sonhava publicar e que deixou
inacabado. A volta ao Brasil e a viagem final – de tantas viagens na curta
vida, a mais acabada de todas.
Escrever a vivência, tornar o vivido palavra é tarefa silenciosa e
lenta, que se dá no avesso da poesia, como o recolhimento do ser na
invenção da reminiscência. Como não há lembrança sem esquecimento,
religar a biografia individual às características estruturais globais da situação histórica (datada e vivida) torna-se um processo vivo de recuperação da memória e de transmissão dos fatos passados às gerações contemporâneas e futuras. A vida e a obra de Mário Faustino oferecem
uma interpretação e uma recriação crítica de nossa cultura. O desafio é
diluir a poesia e a teoria na grafia da vida e encontrar métodos críticos
que se mesclem ao enredo e concorram para a interpretação de um
mito que faço meu. Essa é a proposta que me fascina, a de uma crítica
que se situa entre a teoria e a ficção, entre o documento e a literatura,
entre o referente biográfico e a arte, uma crítica que faz da vida, texto.
O ato biográfico põe em jogo inúmeros problemas, como os da
viabilização da memória de outros, os da construção de uma personalidade, os da análise de textos, os do tom da narração. O biógrafo, ao
tomar para si informações autobiográficas veiculadas em cartas, ao reproduzir fragmentos de declarações do biografado sobre si mesmo, funde, em seu texto, registros diversos como o da biografia, do testemunho
(de amigos íntimos) e da autobiografia (em cartas e poemas). A biografia apresenta-se também como um texto crítico-literário. Roland Barthes,
ao sugerir a um possível biógrafo: “Se eu fosse escritor e morto, como
eu gostaria que minha vida se reduzisse, pelos cuidados de um biógrafo
amistoso e desenvolto, a alguns pormenores, a alguns gostos, a algumas
32
inflexões, digamos: ‘biografemas’...”, contradiz, de certa forma, as
palavras de Cioran, citadas na epígrafe deste texto, no que diz respeito à
reação de alguém diante da possibilidade de ser biografado.
124
Asas da Palavra
Não se trata, para mim, nem de partir da interioridade de um
autor, nem da posição do leitor, nem, como biógrafa, de modificar os
cânones de um gênero. Trata-se de contar a vida de alguém que se exprime através de palavras, que se delineia em fragmentos de escritos,
cartas, ensaios críticos; que se mostra nas escolhas poéticas de temas e
palavras, nos poemas em geral; que se entrega à visão, nos recortes retangulares de fotografias. O segredo talvez seja fazer dessa biografia
algo que pertença mais ao leitor do que a quem a cria, singular em si,
mas plural enquanto relator das lembranças de outrem. Enquanto crítica, ao empreender esta reescritura, sinto-me submetida a uma aventura
de reconhecimento, pois o que existe no mundo sobre o biografado e o
que está na obra à l’insu de l’écrivain (“insabido pelo escritor”) e que seduz o leitor, tudo isso é uma espécie de ilusão compartilhada.
32
33
BARTHES, Roland.
Sades, Fourier, Loyola.
Paris: Éditions du Seuil,
1971, p. 14.
MALCOLM, Janet. A
mulher calada: Sylvia
Plath, Ted Hughes e os
limites da biografia. São
Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
Hoje a biografia traz um outro sujeito para o texto: o biógrafo. Quem reinventa a história participa desta nova escrita. Malcolm
refere-se mesmo à natureza transgressora do biógrafo, que não conhece limites ao penetrar nos mais íntimos detalhes da vida
pesquisada, além
de relatar as suas próprias experiências no papel de
33
investigador. Para atingir os objetivos traçados, precisei recolher
os rastros que Mário Faustino deixou, seguir suas pegadas em solos
e papéis, pisar nelas, recriá-las. Precisei voltar o olhar para o autor e
para os bastidores da sua criação. Tocar seus rascunhos, suas anotações de leitura, frases abandonadas e riscos distraídos: seus vestígios
pessoais e/ou autorais. Além de folhear febrilmente os livros de Mário
Faustino, fui à busca das palavras fechadas nos arquivos (internos e
externos) de outros escritores, concebendo a literatura como um
arquivo maior, constituído das mais diversas fontes documentais, das
mais diferentes culturas. Nesse rumo, outros livros acrescentaramse ao meu percurso teórico. Livros ligados à memória e ao esquecimento e, talvez, também à amnésia (para usar a idéia de Silviano
Santiago).
Os lugares de memória de Mário Faustino, em Belém do Pará,
encontram-se reunidos, principalmente, em vários recantos da casa de
Maria Sylvia e Benedito Nunes, na antiga Travessa da Estrela “(trav.
da Estrela: cheiro de lama, capim, sapo, cachorro, livro, tudo mixed
34
up)”. Assim como os arcontes foram os primeiros guardiões dos
documentos da lei, Benedito Nunes tornou-se não somente o guardião
dos papéis de (e referentes a) Mário Faustino, como também a autoridade publicamente reconhecida no que diz respeito ao espólio do poeta.
Um desses recantos é a estante repleta com os livros que
pertenceram ao poeta, na biblioteca situada no mezanino da torre
cujo primeiro andar serve de escritório ao filósofo Benedito Nunes.
Outro fica em uma dependência da mesma biblioteca, uma pequena
construção anexada à casa, e consta de um arquivo propriamente
dito, composto por pastas cheias dos papéis deixados pelo poeta. O
arranjo do material pode ser tão significativo quanto o próprio ma-
Asas da Palavra
125
34
35
Carta a Benedito Nunes.
Rio de Janeiro, 4 set.
1956.
Do poema “O Homem e
sua hora” (O Homem e
sua hora).
terial. Aqui os papéis foram colecionados sem o aparato técnico de
que hoje dispõem as bibliotecas públicas. O arquivo privado de Mário Faustino tornou-se parte do arquivo privado de Benedito Nunes.
À escrita fragmentária de Mário correspondem pastas classificadas
por datas obedecendo ao princípio de respeito à ordem original. Há
escritos de caráter público, entrevistas publicadas, depoimentos, poemas recortados dos jornais, páginas do “Suplemento” do Jornal do
Brasil, e escritos mais pessoais, que dizem respeito ao processo de
construção da identidade, entre eles grande parte de sua correspondência, rascunhos e cópias de poemas, e apontamentos sobre uma
antologia que ficou inacabada.
O arquivo de Mário Faustino está guardado em uma enorme
gaveta de um desses móveis de ferro, aberta para mim por Benedito
Nunes. A imagem de um túmulo onde jazem os papéis e a memória
do poeta, na casa da Estrela, recupera a vontade do pai-irmão de Mário, de um enterro simbólico, mas verdadeiro. As pastas enfileiram-se,
catalogadas. Amareladas realmente, muito antigas, tanto quanto os
papéis que guardam, elas não jazem inutilmente. Várias vozes encontravam-se ali, à espera de que eu profanasse aquele solo: “E quem nos
35
erguerá deste sepulcro?
Duas metáforas misturam-se na linguagem faustiniana que se
podem referir ao arquivo: a do corpo e a do solo. Atadas à idéia de
semeação, ambas conciliam vida e morte, idéia impressa em cada gesto ou palavra esboçados por Mário Faustino, desejados por ele ou
pelo olhar daquele a quem coube interpretar esses momentos de início e fim da sua existência e de sua obra, fragmentadas e breves. O
sêmen é a linguagem aguardando a descoberta e a interpretação. O
terreno semeado é o mesmo solo em que se enterram os despojos,
pedaços do corpo agora letra e imagem e, mais do que nunca, palavra
e gesto.
Voltei-me para aquele móvel nada sofisticado, um arquivo comum de escritório usado para facilitar aquilo que o dicionário chama
simplesmente de “a guarda sistemática de documentos ou papéis”. E
repentinamente tudo se animou. A sala encheu-se de uma imensa e palpitante espera; o silêncio, que não é perturbado por nenhum sussurro
de leitores irrequietos, carregou-se de mil forças, como se a pequena
biblioteca se tornasse o palco no qual uma ação deveria desenrolar-se. A
espera, infinita, sempre em curso, sem horizonte acessível, a impaciên36
cia absoluta de um desejo de memória, predita nos versos de Mário
Faustino – “o resto – silêncio! / sabereis quando nascer / o fruto cujo
37
sêmen planto agora / na boca duma noite contraurora” –, atingia um
de seus fins. Eu não tinha sido a única a tocar aquele corpo, mas, para
mim, a história começava naquele momento.
Desdobrei jornais que registraram fatos públicos da história de
Mário que, de tão comprimidos entre tantos papéis, pareciam destina-
126
Asas da Palavra
dos a permanecer dobrados para sempre – ao abri-los, corre-se o risco
de danificar papel e momentos de vida. Encontrei as cópias de suas
crônicas da “Vida Social” publicadas em A Província do Pará (de 1947 a
1949); os “Suplementos Literários” da Folha do Norte (com os primeiros
poemas); algumas das crônicas “Cartas americanas” que durante algum
tempo Mário enviou dos Estados Unidos; artigos de crítica de cinema;
ensaios críticos, comentários, traduções e resenhas publicados no “Suplemento Dominical” do Jornal do Brasil, em que ele assinou por pouco
mais de dois anos a página inteira de crítica de poesia (de 23/9/1956 a
1/11/58). Além de poemas esparsos publicados em vários jornais e que
só foram editados em livros depois de sua morte, há também notas
sobre o lançamento do seu primeiro livro de poesia, comentários críticos sobre sua poética e vários artigos sobre sua morte trágica. Algumas
revistas da época, com poemas e contos de Mário Faustino, completam
o acervo relativo à sua obra na imprensa.
36
37
Cf. DERRIDA, Jacques.
Mal de arquivo: uma
impressão freudiana.
Tradução de Cláudia de
Moraes Rego. Rio de
Janeiro: Relume Dumará,
2001, p. 9.
Do poema “22-10-1956”.
Os fragmentos da obra que ele deixou e o nada a que seu
corpo foi reduzido acabaram por se reunir em um corpus único (Benedito Nunes insiste na unidade e na suficiência do seu arquivo).
Abrigados e dissimulados (o mistério permanece em torno de alguns papéis), articulando-se metonimicamente em antigas pastas de
papel pardo, na primeira gaveta de um móvel cinzento e pesado.
Esse arquivo instituiu-se a partir da morte do poeta, mas vinha se
preparando passo a passo durante a sua vida, fragmentado pelas datas das cartas de mão única, as vozes que responderam para sempre
emudecidas, não tendo sido arquivadas pelo poeta. Aos papéis
colecionados por Benedito Nunes foi acrescentado o conteúdo da
caixa que Mário Faustino deixou com sua mãe, rascunhos, manuscritos de poemas, alguns inacabados, projetos poéticos. Vários amigos do poeta enviaram o que haviam guardado. Cópias de poemas e
uma foto dedicada vieram de Francisco Paulo Mendes.
Sobre o móvel, encontram-se dois álbuns de fotografias. Não
são muitas as fotos de Mário Faustino reunidas no arquivo de Benedito
Nunes. Trinta e dois anos em dois pequenos álbuns. Um deles conserva
ainda o manuseio da família nas ranhuras, na capa gasta, nas folhas descosidas e no amarelo do papel de seda: o álbum de família, com fotos da
sua infância, em Teresina e em Belém, misturadas a personagens desconhecidos e, mais particularmente, com fotos da irmã-sobrinha – Maria
Júlia. O outro álbum, novo, coleciona as fotos que o dono do arquivo
recebeu ou recolheu. São fotos de Mário Faustino, entre 20 e 25 anos,
umas tiradas em Belém, outras em viagens no exterior, duas ou três no
Rio, instantâneos que, ao prescindir de seus autores, adquirem vida própria, tornam-se independentes para constituir a desordem do mundo
previsto, fragmentado e imaginado.
A crítica biográfica, ao escolher tanto a produção ficcional quanto
a documental do autor – correspondência, depoimentos, ensaios, crítica
– desloca o lugar exclusivo da literatura como corpus de análise e expan-
Asas da Palavra
127
38
38
Cf. SOUZA, Eneida Maria
de. Notas sobre a crítica
biográfica. In: ____. Crítica
cult. Belo Horizonte:
Faculdade de Letras da
UFMG, 2002, p. 111.
de o feixe de relações culturais. A idéia é escrever de maneira que o
arquivo se confunda com o texto, tornando-se parte viva da própria
narrativa – procedendo a uma espécie de metamorfose do arquivo em
história de vida.
A projeção escrita cria um espaço-tempo que se vai compondo
de acordo com as folhas de papel – a vida vista numa superfície e tornada palavra; o tempo encontrado não se superpõe, como em Proust, ao
tempo perdido, e é outro o sujeito que o descobre para reencontrá-lo.
Se a vida vivida é um borrão, é preciso que outras mãos a risquem, a
corrijam e a exponham. Esse é o mistério do arquivo – túmulo que se
pode abrir, guardando a possibilidade de despertar o seu conteúdo de
um sono profundo, para se transformar no seu contrário: berço ou fonte novamente libertada.
A pesquisa provocou em mim o desejo de ir além do arquivo, de
transcendê-lo, no sentido de procurar outros registros peculiares – trechos de obras, citações, transcrições de pensamentos, fatos relatados ou
adivinhados da sua vida. Para analisar o processo de re-construção de
uma existência, seria preciso partir de uma nova coleção, ou melhor,
seria necessário re-colecionar o logos fragmentário de Mário Faustino
(a expressão é de Foucault) transmitido pela leitura não apenas de seus
escritos, mas também de suas máscaras, de suas meditações, de seus
silêncios, usando-o como um meio para o estabelecimento de uma relação com o meu próprio exercício pessoal de escrita.
128
Em relação ao desenvolvimento do meu texto, o período que se
estende de 1930, ano do nascimento de Mário Faustino, a 1950, ano em
que ele inicia sua correspondência com Benedito Nunes, baseia-se em
lacônicas informações biográficas colhidas nos poucos livros que falam
de sua infância, em fotos eloqüentes, em raras impressões da infância
esparsas em cartas e em algumas histórias repetidas por Mário aos seus
amigos e que ficaram, vagas, na memória desses últimos. A partir de
1950, data da primeira carta constante no arquivo, são as cartas de Mário Faustino que vão dar o rumo à minha narração durante todo esse
ensaio. Mas tanto a sua obra crítico-literária (as crônicas, os poemas, os
textos críticos, as traduções), quanto os depoimentos que colecionei
(recordações de seus contemporâneos) afloram ao longo do meu texto,
sugerindo situações e referindo-se às suas leituras ou ao seus afazeres
profissionais, nas diferentes fases da sua vida. Ao contar a morte, por
exemplo, além dos versos de Mário (em que a morte e o amor são temas
constantes de louvor e premonição), são as manchetes e os artigos dos
jornais da época – letras que substituem imagens impossíveis – que
pontuam a narração posterior ao acidente que provocou a sua morte e a
repercussão dessa morte no Brasil. Quanto às fotos de Mário Faustino,
elas se colam ao texto para contar de sua infância e de sua adolescência
até por volta de 1956, quando ele vai definitivamente morar no Rio de
Janeiro. Haverá trechos de silêncio na produção poética, quando vamos
ouvir os seus ensaios que unem a reflexão e a prática crítica. É dessa
maneira, seguindo a corrente natural dos anos, que faço das lembranças
Asas da Palavra
dos outros (torno-me outra), das cartas (instantâneos em que fito uma
alma) e das fotos (imagens que transformo em letras), o meu itinerário
para contar seus passos irrequietos pelas cidades que o conheceram, em
sua vida tão curta e tão rica. Uma “Vida toda linguagem”.
Asas da Palavra
129
130
Asas da Palavra
MÁRIO FAUSTINO
FAZER POÉTICO: AVANÇOS E VACILAÇÕES
Carlos Evandro Eulálio
Professor de Teoria Literária da
Fundação Universidade do Piauí
Asas da Palavra
131
1
2
3
4
HABERMAS, Jürgen.
“Modalidade Versus PósModernismo”, Arte em
Revista, CEAC, ano V, nº 7,
São Paulo, 1975, p. 86.
Idem, op. cit. p. 86.
PAZ, Octávio. “A tradição
da ruptura”, em Os Filhos
do Barro, Nova Fronteira,
Rio de Janeiro, 1984, p.18.
ROSEMBERG, Haroldo. A
tradição do novo,
Perspectiva, São Paulo
(prefácio à segunda
edição), 1974.
A
o empreendermos o estudo da obra de Mário Faustino, concebendo-o como mediador entre dois pólos estilísticos, constatamos como primeiro empecilho a necessidade de apreender melhor o sentido que os termos vanguarda e tradição, vistos de uma
perspectiva mais ampla, assumem não só em específico no corpo da
poesia do autor mas também, por extensão, no contexto cultural brasileiro, mais precisamente nas suas expressivas fases de renovação literária, a partir principalmente do modernismo de 22.
A palavra moderno, na sua acepção latina, modernus, historiada por
1
Hans Robert Jauss , teria surgido em fins do século V, para distinguir o
presente, que se tornou oficialmente cristão, em relação à tradição romana e pagã.
O termo moderno, como resultado de uma transição do velho
para o novo, é também retomado por Habermas que o apresenta como
sinônimo de vanguarda e, conforme ainda alguns autores, quando limitam o conceito de modernidade à Renascença, na medida em que se
forma a consciência de uma nova época, mediante renovada relação
com a antiguidade.
Mesmo referindo-se ao modernismo – o mais recente – Habermas
acrescenta que este movimento “estabelece simplesmente uma oposição abstrata entre a tradição e o presente; e de certa forma, ainda permanecemos contemporâneos daquela espécie de modernidade estética
2
surgida em meados do século XIX” .
Octavio Paz, ao partilhar das reflexões de Baudelaire – em L´Art
romantique – assevera que desde os princípios do século passado é atribuído à modernidade o caráter tradicional. Ampliando seu ponto de
vista, acrescenta que, neste caso, está diante de uma outra tradição que
se manifesta num sentido polêmico:
A modernidade é uma tradição polêmica e que desaloja a tradição imperante, qualquer que seja esta; porém desaloja-a para
um instante após, ceder lugar a outra tradição que, por sua
vez, é outra manifestação momentânea da atualidade. A
3
modernidade nunca é ela mesma: é sempre outra.
132
Este aspecto de outridade moderna é também implícito nas
4
colocações de Haroldo Rosemberg quando este confere ao novo o
caráter de entidade auto-suficiente, uma vez que, a cada surgimento, o
novo funda a sua própria tradição, embora nutrido de contradições e
paradoxos, como no caso da poesia ocidental, cujos princípios estéti-
Asas da Palavra
cos oscilam entre as preferências que consistem na imitação dos antigos e entre predileções que exaltam a novidade e o inesperado.
No âmbito da poesia brasileira, não vemos, então, de forma inteiramente lícita, considerar o modernismo de 22 como um “fato literário
autônomo, desvinculado das linhas gerais de desenvolvimento do pro5
cesso de nossa cultura”. É a partir deste pressuposto que Affonso Ávila
aponta como descaso dos estudiosos no assunto o propósito de insistirem apenas em ressaltar o aspecto radical da ruptura modernista, negligenciando, em contrapartida, as transformações cumulativas verificáveis no
passo criativo do artista, ao longo dos tempos, vinculado portanto ao
meio cultural em que vive. Dessa forma, Affonso Ávila constata nítida
integração evolutiva desde o modernismo, divisando-o em seqüência, ou
por extensão, como desdobramento de outros estilos, a exemplo do
Barroco e do Romantismo, numa outra etapa maior e ciclicamente definida. Daí que, ao pensar o Projeto “Literatura Brasileira”, dentro de um
raio de maior abrangência crítica, o autor surpreende em cada um destes movimentos citados uma série-chave de elementos de estrutura aos
níveis lingüístico e temático, que de maneira constante e/ou intermitente, atuam em seu processo de evolução.
5 Ver ensaio de Affonso
Ávila, “Do barroco ao
modernismo: o desenvolvimento cíclico do projeto
literário brasileiro”, em O
Modernismo, Perspectiva,
coleção Stylus, org.
Affonso Ávila, São Paulo,
1985, p.29.
6 ÀVILA, Affonso: op. cit.,
p.36.
Embora alguns acreditem que o ciclo do modernismo tenha
chegado ao fim, face à revolução vanguardista contemporânea, que promove o rompimento com a estrutura discursiva e dá ênfase ao emprego
do elemento não-verbal, o crítico conclui as suas considerações afirmando:
Da lição modernista há de prevalecer, todavia, a radicalidade
prospectiva, aquele ver com olhos novos, ver com olhos livres
que transmitindo como a grande herança
de 22, fez há pouco
6
artistas da geração moça reescrever.
Mário Faustino, por sua impulsiva, porém moderada postura
poética, pertenceu de fato a uma geração que reclamava o novo, exatamente num momento de inquietações, num momento em que outros
contemporâneos seus insistiam em promover mudanças experimentalmente radicais em relação a uma tradição e a um presente vivos ainda na
consciência criadora do poeta, preservando, por outro lado, aquilo que
para ele representava o melhor em matéria de escritura poemática.
Assim, Mário Faustino colocava-se numa situação paradoxal:
obstinadamente acolhia o novo, mas consciente de que as novas experiências devessem também contribuir com seu tributo ao passado literário mais autêntico. Nesse sentido, afirmou:
Como a minha poesia tende a ser mais comprometida com o
passado e o presente que com o futuro, (embora inúmeras experiências muito me interessem e também procure sempre make
it new), tento progredir sem abandonar, um momento que seja,
Asas da Palavra
133
7
8
9
FAUSTINO, Mário.
“Poesia-Experiência”, em
Poesia-Experiência, org.
Benedito Nunes, Perspectiva, São Paulo, 1977, p.280.
No capítulo “A
Redescoberta da Utopia”,
Pierre Furter distingue
rigorosamente o utopismo,
que é uma maneira de
sonhar o futuro (ou de um
passado a reconquistar) do
pensamento utópico que se
preocupa em descobrir no
presente os pontos de
apoio para o futuro
desejado. Pierre Furter em
Dialética da Esperança,
Paz e Terra, Rio, 1974,
p.149.
FURTER, Pierre: op. cit.,
p.146.
toda a tradição a preceder-me e procurando revivificá-la e
7
aproveitá-la, adaptando-a novas experiências.
Foi a partir precisamente deste seu propósito que nos animou questionar os possíveis avanços de natureza poemático-construtiva verificáveis em sua obra poética e, se possível avaliar ainda o
grau de radicalidade adotado pelo poeta, em relação à poesia de seu
tempo.
Ao destacar inicialmente o seu discreto, porém inegável desejo
de participar com os Concretistas do processo de renovação poética,
mas de forma a não abrir mão dos vínculos com o passado mais fértil,
fomos buscar nas entrelinhas de suas afirmações o sentido talvez errante de suas palavras, possivelmente movido de acentuado sentimento
utópico, consubstanciado no princípio da esperança que porventura
pudesse alimentar o seu ambicioso projeto.
Atentando-se pois para as contradições “fazer poesia comprometida com o passado / fazer poesia adaptando-a a novas necessidades” vemos então daí emergir este sentimento utópico, entendido aqui
na forma como o poeta deixa entrever a sua vontade de inovar, fato
impossível de se concretizar sem que se considerem novas perspectivas.
Assim, se estabelecermos relações entre a práxis poética de Faustino e
8
as três funções do pensamento utópico de que nos fala Pierre Furter ,
ao interpretar as idéias de Ernst Bloch, melhor explicitaríamos nosso
ponto de vista.
A primeira função do pensamento utópico consistiria em favo9
recer a crítica da realidade , exercendo neste nível uma tensão dialética,
permitindo manifestar aos outros a existência do possível, através do
real. Com respeito a este aspecto, julgamos a poesia de Mário Faustino
exponencial; basta citar o poema Brasão, mediante o qual o poeta tece a
sua crítica, atentando em especial para a realidade literária de sua época:
Nasce do solo sono uma armadilha
Das feras do irreal para as do ser
- Unicórnios investem contra o Rei.
Nasce do solo sono um facho fulvo
Transfigurando a rosa e as armas lúcidas
Do campo de harmonia que plantei.
Nasce do solo sono um sobressalto.
Nasce o guerreiro. A torre. Os amarelos
Corcéis da fuga de outro que implorei.
E nasceu nu do sono um desafio.
Nasce um verso rampante, em brado, um solo
De lira santa e brava – minha lei
134
Até que nasça a luz e tombe o sonho,
Asas da Palavra
O monstro de aventura que eu amei.
10
Albeniza Chaves chama-nos a atenção para os termos “solo/
sono” que respectivamente designariam “o momento poético brasileiro
e a esterilidade que o marcava, salvo raras e honrosas exceções
(Drummond e Cabral, principalmente) quando do aparecimento de “O
11
Homem e sua Hora” . A segunda função do pensamento utópico
permitiria à inteligência visualizar o real, de modo a descobrir as perspectivas de sua transformação. Conforme Bloch, “a utopia não somente indica aos outros a existência dos possíveis além do real, mas também
é um instrumento de trabalho que permite a exploração sistemática de
12
todas as possibilidades concretas existentes no real” .Neste sentido, o
pensamento utópico, na sua crítica do atual, apóia-se nas tendências
fundamentais do presente que têm as suas raízes no passado e irrompem
para o futuro. No poema de Mário Faustino aprendemos também a
noção do trabalho poético como possibilidade de explorar as
potencialidades criadoras, de modo sempre a permitir o surgimento do
novo:
10
FAUSTINO, Mário.
“Brasão” – em O homem e
sua hora – Poesia de
Mário Faustino, Civ.
Brasileira, 1966, p.45.
11
12
13
14
CHAVES, Albeniza de
Carvalho e. Tradição e
Modernidade em Mário
Faustino.Dissertação de
mestrado, USP, São
Paulo, 1975. p.58. (já
publicada em 1986)
BLOCH, Ernst: apud cit.
Pierre Furter, op. cit.,
p.146.
FAUSTINO, Mário. Op.
cit., p. 45.
CHAVES, Albeniza de
Carvalho e. Op. cit., p.58.
E nasce nu do sono um desafio.
.......................................................
até que nasça a luz e tombe o sonho,
13
O monstro de aventura que eu amei.
Conforme ainda Albeniza chaves, a obra de Faustino, “nascida
da nudez ou da aridez do momento, se constituiu um desafio corajoso do
14
poeta à situação que pretendia renovar” . E a confirmação desse papel
renovador seria reconhecida pelo poeta como poderosa aventura diante
das circunstâncias do momento.
Finalmente, a terceira função do pensamento utópico de que
nos fala Bloch diz respeito à possibilidade de “introduzir a exigência da
radicalidade”. Apontando para uma realidade possível de transformação, o pensamento utópico nutre-se de entusiasmo e de fé, visando alcançar o “novo possível”. Desse ângulo ocorre-nos chamar a atenção
para a existência na poesia de Mário Faustino desse ímpeto que o impele a uma tomada de atitude radical. Essa radicalidade traduzir-se-ia como
uma definição de procedimento artístico em relação aos parâmetros
poéticos vigentes no seu tempo e ainda em relação às novas propostas
que surgiam.
Assim, das suas contradições, vemos despontar de modo muito
nítido o compromisso também com o futuro da poesia brasileira. E esse
compromisso representaria então o seu avanço maior. Embora aceitasse a experiência do concretismo, como forma de superar a crise do verso,
acreditava, por outro lado, com o mesmo entusiasmo dos concretistas,
vencer estes empecilhos mediante a reificação do próprio verso, dado
que o concebia (mesmo em crise) ainda como importante meio de co-
Asas da Palavra
135
15
16
17
FAUSTINO, Mário.
Poesia-Experiência, op.
cit., p. 276.
BARBIERI, Ivo. Ensaio
intertextual, em Oficina da
Palavra, Achiamé, Rio,
1979, p.20.
CAMPOS, Augusto de.
“Mário Faustino, o último
verse-maker’”, em Poesia
Antipoesia Antropofagia,
Cortez & Moraes, São
Paulo, 1978, p.40.
municação poética. A esse respeito pronunciou-se:
Há, por toda parte, uma crise do verso, mas que, em toda
parte, ainda se faz, e pode-se fazer melhor ainda bom verso. A
tradição continua, retifica-se e continua, não se perde um bom
instrumento só porque outro foi inventado, ou se está inventando – sobretudo se ainda não está provada a maior eficiência do
15
mais novo em relação ao mais velho.
Renovar a linguagem poética para Faustino seria portanto um
ato não apenas inventivo, mas um gesto também produto da apropriação estilística dos mais representativos modelos da tradição literária de
todos os tempos. A propósito, este aspecto é melhor desenvolvido por
Ivo Barbieri, ao ressaltar que “fazer o novo na experiência poética de
Mário Faustino está condicionado à disposição e ordenamento dos fatos do passado. Daí entrarem leitura e criação, como atividades integradas, no campo de experiências do poeta. Selecionar e criar, nesse labo16
ratório, são modalidades, reciprocamente solidárias, da práxis poética.”
O projeto de Mário Faustino, estando pois atrelado a uma proposta experimental em termos verbais, era apoiado sobretudo na manutenção do verso, adaptação, conforme o poeta, às exigências contemporâneas. Era necessário no entanto ajustá-lo à prática do método
ideogrâmico, isto é, não linear, não discursivo, semelhante à montagem
eisensteiniana.
Se a poesia faustiniana não surge inovadora num sentido imediatamente revolucionário, não podemos negar, por outro lado, que a exemplo dos melhores poetas brasileiros desse período, Mário Faustino buscou, com a sua obra inicial, responder aos desafios de seu tempo, lançados aos poetas do pós-45.
Atento então às necessidades de renovação, Mário Faustino, sem
desdenhar os avanços experimentais no plano não-verbal, promovidos
pelas vanguardas, ou sem insurgir-se contra elas, ligou-se, de início, mais
às raízes literárias da tradição, conforme depoimento de Haroldo de
Campos: “Faustino fez o mais ágil e inteligente jornalismo literário que
jamais vi entre nós. Como poeta, aberto ao novo, dotado de um manuseio dúctil e sutil das técnicas do poema em verso, capaz do fragmento
e da ruptura, mostrou-se sempre generosamente sensível aos experimentos mais radicais da poesia concreta, embora na sua produção
pes17
soal, conservasse ainda certos elos com a tradição discursiva”. É nesse sentido ainda que Augusto de Campos, mesmo em resistência ao
caráter, para si não tão inovador da poesia de Faustino, quando do
surgimento de O homem e sua hora, distingue o poeta “por sua formação
diversa, muito mais poundiana que eliotina, e por um certo alento barroco, aberto à experimentação e à rebeldia, que sempre faltou às aspira18
ções mais classicizantes daquela época literária”
136
Asas da Palavra
A radicalidade de Mário Faustino decorreria por certo de uma
produção poética irmanada à reflexão crítica, prática tão freqüente entre
os poetas de sua geração, de cuja postura dialógica – aliada a outros temas,
assomaria o desejo de inovar a poesia brasileira pela sublimação do verbal.
É por essa razão que veríamos nos seus poemas, sobretudo nos da primeira fase, a preocupação implícita de resgatar o prestígio do verso. Essa
preocupação transpareceria, então, nos poemas metalingüísticos, em torno dos quais o poeta questiona a sua arte verbal como uma das possíveis
linhas e força da moderna poesia brasileira. Por essa razão, inscreve-se
como poema-projeto ou matriz geradora dos poemas subseqüentes o texto
Prefácio, já analisado dentro dessa perspectiva por Albeniza Chaves.
18
19
20
BARTHES, Roland.
“Existe uma escritura
poética?”, em O grau zero
da Escritura, Cultrix, São
Paulo, 1974, p.144.
FAUSTINO, Mário.
“Mensagem”, em O
homem e sua hora, op.
cit., p.43.
NUNES, Benedito. Os
melhores poemas de
Mário Faustino, seleção
de Benedito Nunes,
Global, São Paulo, 1985,
p.8.
É importante acrescentar que a experiência de Mário Faustino,
coletânea à dos concretistas, embora trilhasse outras vias, nutria-se, como
já frisamos, do mesmo entusiasmo daqueles poetas. A poesia de Mário
Faustino, revelando entre outras virtudes as marcas decorrentes da lenta assimilação dos melhores padrões da linguagem poética tradicional,
afasta-se porém, progressivamente, daquela arte consagradora de expressão de formas estereotipadas neoparnasianas e se aproxima cada
vez mais da arte de invenção em que, conforme Barthes, “cada palavra
poética constitui assim um objeto inesperado, uma caixa de Pandora de
onde escapam todas as virtualidades da linguagem: ela é portanto produzida e consumida
com uma curiosidade particular, uma espécie de
19
gulodice sagrada”.
Na condição de poeta irmanado a essa modalidade de escritura,
Mário Faustino reivindica para si o direito de inventar, criar a palavra
poética geradora de novos e inusitados significados. No poema Mensagem,
por exemplo, destacamos os seguintes versos:
Em marcha, heróico, alado pé de verso,
busca-me o gral onde sangrei meus deuses:
.............................................................
Dize a eles que tombam
20
como chuvas de sêmen sobre campos de sal.
A sublimação do verbal para Mário Faustino não consistia, portanto, numa poesia engendrada de simples prosa decorada de ornamentos, mas num desafio que se lhe apresentava, de modo contínuo e nunca
vencido, por seu caráter perene de busca. Nesse sentido Benedito Nunes
o considera poeta da poesia – o poeta que pensa – para quem a criação
verbal, encadeamento de vida e linguagem, constituísse numa forma
simbólica de percepção e de concepção das coisas, inseparável de mui21
tas polaridades existenciais” . Assim, para o filósofo e crítico, a experiência vivida e o enigma de sua própria linguagem permeiam toda a poesia de Mário Faustino.
É dessa forma que vemos a tradição comparecer no verso do
poeta; por sua natureza auto-reflexiva e por uma contida forma de ex-
Asas da Palavra
137
21
22
23
24
25
Vide ensaio de Mário
Faustino “Que é Poesia?”,
em Poesia-Experiência,
op. cit., p.62.
Idem, p.62.
Idem, ibidem, p.62.
FAUSTINO, Mário.
Poesia-Experiência, op.
cit., p.277/278.
Vide entrevista de Mário
Faustino concedida à
jornalista Ruth Silver, do
Jornal do Brasil (SDJB),
em 16.12.56, em resposta
à pergunta: “E de sua
própria poesia, que me
diz? Que está escrevendo
agora?”
pressão. Os avanços faustinianos possivelmente na tentativa de revigorar o verso, com o arranjo de palavras mediante as quais pudesse, conforme o próprio poeta, “sintetizar, suscitar, ressuscitar, apresentar, criar,
22
recriar o objeto” .Para Mário Faustino, “é poético o canto, a celebra23
ção, a encantação, a nomeação do objeto” . E o poema Mensagem,
objeto de nossa ilustração, ratifica o propósito do poeta: minar os campos de sal com palavras onde as deixa cair no chão túmido, para que do
caos surja o novo – NU – para despontar em nosso meio um trabalho
poético inventivo, reutilizando o verbal capaz de instaurar novas possibilidades criadoras e recriadoras, para “atender às necessidades
metafísicas, místicas e míticas do ser humano”, num momento em que
outras “tais necessidades ainda são prementes e em que outras formas
24
de satisfazê-las encontram-se em evidente decadência” .
Concluímos, portanto, reafirmando nosso ponto de vista,
advindo paradoxalmente das colocações de Faustino: entre o presente e
o passado, com os quais ele se dizia mais comprometido, vemos implícito também o compromisso com o futuro de nossa poesia, conforme
suas próprias palavras: “tudo que faço, por enquanto, tem um sentido
de experimentação, tanto ao nível ético, metafísico, psicológico, quanto
no plano estético. Quero ser, ainda por muito tempo, um poeta em
formação e em transformação: um dia, quando estiver mais realizado,
como homem e como artista, então começarei minha verdadeira obra,
que espero sirva de alguma coisa como documento humano e como
contribuição para a transformação da sociedade, da língua e da poesia
25
do Brasil”.
Juventude
Juventude –
a jusante a maré entrega tudo –
maravilha do vento soprando sobre a maravilha
de estar vivo e capaz de sentir
maravilhas no vento –
amar a ilha, amar o vento, amar o sopro, o rasto –
maravilha de estar ensimesmado
(a maravilha: vivo!),
tragado pelo vento, assinalado
nos pélagos do vento, recomposto
nos pósteros do tempo, assassinado
na pletora do vento –
maravilha de ser capaz,
maravilha de estar a postos,
maravilha de em paz sentir
maravilhas no vento,
e apascentar o vento,
encapelado vento –
mar à vista da ilha,
138
Asas da Palavra
eternidade à vista
do tempo –
o tempo: sempre o sopro
etéreo sobre os pagos, sobre as régias do vento,
do montuoso vento –
e a terna idade amarga – juventude –
êxtase ao vivo, ergue-se o vento lívido,
vento salgado, paz de sentinela
maravilhada à vista
de si mesma nas algas
do tumultuoso vento,
de seus restos na mágua
do tumulário tempo,
de seu pranto nas águas do mar justo –
maravilha de estar assimilado
pelo vento repleto
e pelo mar completo – juventude –
a montante a maré apaga tudo –
Asas da Palavra
139
Ao lado, fac-simite da
página Poesia-
Experiência, editada por
Faustino durante quase
três anos no Jornal do
Brasil, onde abriu espaço
para o Concretismo,
movimento do qual
acabou se afastando e que,
por ironia, prosperou
caoticamente após sua
morte prematura
140
Asas da Palavra
MÁRIO FAUSTINO
UM MILITANTE DA POESIA1
Elias Pinto
Jornalista
1
Asas da Palavra
Entrevista publicada no
Diário do Pará, nos dias 9,
16 e 23 de março de 1997
141
2
(Hoje já publicados os dois
primeiros volumes)
N
o primeiro semestre do ano passado, Maria Eugenia
Boaventura, professora do Departamento de Teoria Literária da Universidade de Campinas, passou uma semana em
Belém, com o propósito de levantar nos jornais locais os escritos do
poeta Mário Faustino publicados nas décadas de 40 e 50. Era também
importante conhecer a cidade, decisiva na formação pessoal e intelectual do autor de O homem e sua hora, palco de suas amizades mais queridas.
Como a que teve com Benedito Nunes, parceria intelectual fértil e provocadora. Na casa de Benedito, principal intérprete da obra deixada por
Mário, ali, na Rua da Estrela, Maria Eugenia – ao consultar os arquivos
pessoais do professor, incluindo livros, manuscritos e cartas de Mário
Faustino – abriu “novos horizontes” para o avanço de seu projeto.
Afinal, autora de elogiada biografia do escritor paulista Oswald
de Andrade, O salão e a selva (Editoras Ex Libris/Unicamp), a professora
da Unicamp é responsável pelo projeto de edição da obra completa de
Mário Faustino, com a orientação de Benedito Nunes e colaboração do
escritor paraense Haroldo Maranhão, a ser publicada pela Unicamp.
Esta entrevista é inédita. Era destinada ao jornal O Estado de S.
Paulo, conforme previamente acertado com a editoria de Cultura daquele
jornal. Eu é que nunca mandei a entrevista. Minha intenção era enviá-la
2
quando da publicação dos primeiros volumes da série em projeto, aproveitando então a convergência de interesses, o momento oportuno de
divulgar o nome de Mário. Como o cronograma do projeto não pôde ser
cumprido conforme o previsto, retive a entrevista que agora ofereço aos
leitores do Diário, e que terá continuidade nos próximos domingos em
relação ao original que seria remetido ao Estadão, a diferença é que voltei
a incluir nomes familiares ao belenense mais ou menos informado, mas
que nada diriam ao leitor paulistano. Verdade é que a entrevista, no que
diz respeito, digamos, à parte “executiva” do projeto da edição permanece atual, uma vez que nenhum dos volumes previstos veio à luz até o
momento. No mais, a exemplo da perenidade da poesia de Mário, depoimentos sobre sua obra permanecerão sempre atuais.
Além de Benedito Nunes e Maria Eugenia Boaventura, em torno da mesa onde se deu a entrevista, na casa de Benedito, estavam presentes, e eventualmente participando da conversa, Max Martins, Francisco Paulo Mendes, hoje já falecido, e a professora Angelita Silva, já
falecida. E é à Angelina que ofereço esta entrevista, ao lado de quem,
nas poucas vezes em que convivemos, respirei tranqüilidade, bem-estar
e delicadeza no trato pessoal.
P. Qual a importância de sua visita a Belém no contexto do projeto de
142
Asas da Palavra
publicação das obras completas de Mário Faustino?
Maria Eugenia Boaventura – A visita a Belém faz parte desse projeto de
publicar uma edição a mais abrangente possível. Eu li coisas aqui na casa do Benedito Nunes que me abriram novos horizontes. Pude comprovar também que, nas
décadas de 40 e 50, em Belém havia um núcleo de debates, uma efervescência cultural. Aliás, a cidade de Belém, os amigos, a convivência, o bate-papo, tudo isso foi
decisivo na formação de Mário Faustino.
P. Os jornais daquelas décadas, de 40, 50, onde Mário publicou seus
escritos, foram sua principal fonte de pesquisa?
MEB – Eu fiquei impressionada com a qualidade dos suplementos literários daqui; não ficavam nada a dever aos do Rio e de São Paulo. Inclusive, Álvaro Lins,
Manuel Bandeira, Marques Rebelo, eram alguns dos colaboradores, ao lado das
pessoas de Belém. Até James Joyce já era traduzido por aqui, e isso em 1948.
Quanto ao Mário Faustino, anotamos mais de 700 crônicas dele.
P. Você chegou ao primeiro texto do Mário publicado na imprensa?
MEB – Ele começou publicando traduções de poemas de Pablo Neruda, Paul
Eluard, Henry Michaux, Rafael Alberti, T. S. Eliot, e isso numa configuração
moderna, com apresentação bilíngüe.
P. Professor Benedito de onde vem esse domínio que o Mário tinha, de
conhecer várias línguas? Ele foi autodidata?
Benedito Nunes – Ele aprendeu inglês no ginasial, no tempo, é claro, em que os
cursos ginasiais eram bem melhores. E ele deve ter tido professores particulares. Para
entender a personalidade do Mário, lembro de um episódio até engraçado, até gozávamos
dele por isso. Numa carta de recomendação, redigida pelo próprio Mário e destinada ao
meu sogro, que era desembargador e precisava de alguém com conhecimento de inglês, o
Mário escreveu sobre si próprio: “Tem perfeito conhecimento de vários idiomas. Conhece o
inglês como a sua própria língua”. E conhecia mesmo.
P. Aproveitando a deixa, como se deu seu primeiro encontro com
Mário Faustino?
BN – Deu-se em 1947, numa reunião preparatória da ABDE, Associação Brasileira de Escritores, convocada pelo Haroldo Maranhão, que era muito ligado ao
pessoal do Sul pelo fato de dirigir o suplemento literário da Folha do Norte. A
reunião foi convocada para a Assembléia Paraense. Compareceram Raimundo Moura,
Ernesto Cruz, Levy Hall de Moura, Machado Coelho, Francisco Paulo Mendes,
Ruy Barata e os mais novos: eu, Cauby Cruz e Mário Faustino, que vinha da
Província do Pará mas estava mais ligado ao suplemento do Haroldo. Foi nessa dita
reunião que se deu a nossa ligação
com ele. Tanto que depois formou-se uma “embaiº
xada” para participar do 1 Congresso Brasileiro de Escritores, presidido pelo
Graciliano Ramos, no Rio Grande do Sul. Fomos eu, Ruy Barata, Haroldo
Maranhão e Benedicto Monteiro.
Asas da Palavra
143
P. Quais as afinidades literárias que surgiram desse primeiro encontro, e
que depois perdurariam ao longo da estreita amizade que ligou o senhor ao Mário Faustino?
BN – Ah, os pontos em comum apareceram logo, imediatamente. Lia-se Baudelaire,
lia-se Valéry, Mallarmé, Rilke. Cada qual ia descobrindo o seu autor. Lia-se muito
Kafka nessa época, em 47, 48, em traduções francesas: América, O Processo, Colônia Penitenciária. Os primeiros Kierkegaard, também. Depois o poeta Paulo Plínio
Abreu se interessou particularmente pelo Rilke e passou a traduzi-lo. Antes disso,
o Ruy Barata aprendeu francês com o propósito de ler Baudelaire.
P. E autores brasileiros, o que se lia então?
BN – Lia-se Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Jorge de Lima...
Em 52, houve o grande impacto, a publicação de Claro Enigma, do Drummond.
De modo que não nos afetou muito a Geração de 45. O que os poetas da Geração de
45 apresentavam tinha sido realizado muito melhor pelo Drummond em 52, no
Claro Enigma.
P. Bem, Maria Eugenia, quais os critérios que orientarão a edição da
obra completa do Mário? Em quantos volumes ela será publicada?
MEB – Do ponto de vista editorial e visando o interesse do leitor, é preferível
publicar volumes separados da tradução, da crítica, da poesia, e não uma obra completa em edição única, tipo da Aguilar [N. R.: Editora Nova Aguilar]. A princípio estavam programados seis volumes, mas a partir das crônicas recolhidas em
Belém é possível que seja editado um sétimo volume.
P. Mas de que forma vai se dar essa divisão?
MEB – O primeiro volume trará a poesia do Mário, enquanto no segundo virão
suas traduções. Um partipris que a gente adotou foi este: separar a poesia, que é
criação dele, do exercício crítico-reflexivo que é a tradução. Acho que a grande plataforma do Mário era, primeiro, divulgar a boa poesia, catequizar as pessoas para ler
a boa poesia, tanto a nacional quanto a estrangeira, e depois fazer um pequeno
ensaio, uma reflexão sobre essa poesia. Havia um ideário estético por trás disso: o
desejo de informar e formar. Era uma militância, tanto que o projeto dessa edição se
chama “Mário Faustino, um militante da poesia”. Acho que sintetiza o espírito do
trabalho dele, e isso vem sendo confirmado à medida que vou lendo suas cartas,
ouvindo depoimentos sobre ele.
P. E quanto aos demais volumes?
144
MEB – Bem, um terceiro contemplará a parte da crítica nacional, que mostra um
panorama literário da década de 50 no Brasil, período em que ele divulgou jovens
autores, os livros que estavam saindo, que estavam rompendo com os padrões da
época. Teremos ainda um outro volume para a crítica a autores estrangeiros, um
outro só sobre cinema e mais um que seria uma pequena fobiografia, com a parte
mais pessoal, a correspondência. Como resultado dessa semana de pesquisa em Belém,
pretendemos acrescentar a este último volume mencionado um roteiro lírico-cultural-
Asas da Palavra
sentimental da cidade, na medida em que Belém exerceu papel fundamental na
formação do Mário. E ainda poderemos ter o sétimo, que seria o da reunião de suas
crônicas.
P. No projeto está previsto um perfil, uma apresentação biográfica geral
de Mário Faustino?
MEB – Para cada volume está previsto uma introdução crítica pertinente ao livro.
Mas é bem possível que já no primeiro volume haja uma apresentação biográfica do
Mário, até para permitir aos que desconhecem o poeta um primeiro contato com o
homem e sua obra.
P. Já existem nomes escolhidos para escrever o prefácio de cada volume?
MEB – De preferência uma pessoa competente, que tenha afinidade com a obra de
Mário Faustino.
P. E quais os críticos que teriam esta afinidade?
BN – Alfredo Bosi, Haroldo de Campos, Augusto de Campos, João Alexandre
Barbosa, Luiz Costa Lima ...
MEB – Silviano Santiago...
P. A intenção é lançar uma nova luz sobra a obra de Mário Faustino?
BN – A finalidade é esta.
P. Já em 1977, por ocasião do lançamento de um livro sobre Mário, o
autor, Ivo Barbieri, se queixava da escassez de dados críticos e biográficos a respeito do poeta, bem como da dificuldade para o estudioso em
sair à cata de periódicos dispersos a fim de juntar as peças que faltavam
no que já havia sido editado. O que mudou, desde então?
BN – Nós esquecemos de incluir o Ivo Barbieri entre os possíveis prefaciadores, e ele
está na nossa lista.
MEB – De lá para cá não mudou muito. Precisa é procurar, pesquisar. Ainda
falta, por exemplo, quarenta por cento do que Mário publicou no Jornal do Brasil ser
editado em livro.
P. Em relação ao conjunto do que já foi publicado, o que esta nova
edição trará quanto a inéditos?
MEB – Pelo menos cinqüenta por cento não foi publicado antes em livro. Poesia é
pouca coisa, a não ser que as pessoas daqui abram as caixas, os envelopes, não é
Max? A dificuldade, como o Ivo Barbieri falou, é que pesquisa no Brasil é muito
difícil. É preciso ter muita paciência para recolher, os arquivos são muito precários.
É quase uma atividade braçal.
Asas da Palavra
145
BN – Em relação à poesia, temos pouca coisa inédita. É mais prosa. As crônicas
de cinema, as crônicas diárias da vida social que saíam na Província.
P. Do que ele tratava nessas crônicas?
MEB – Era tipo crônica de Rubem Braga.
P. Esse Mário Faustino é desconhecido.
BN – Não havia, na época, crônica social como conhecemos hoje. O que se chamava
de vida social era uma crônica sobre os fatos da vida diária, como Rubem Braga
fazia, Paulo Mendes Campos, e depois vinham às chamadas notas mundanas: registro de aniversários, casamentos, batizados... Não era a crônica social como depois
viemos a conhecer, uma parte representativa dos jornais, que começa no final dos
anos 50 no Rio de Janeiro, com o Jacinto de Thormes, aquele outro, o Ibrahim Sued,
e depois os derivados regionais.
P. Do que o Mário tratava nessas crônicas?
BN – Ele falava sobre um mundo de coisas, um fato que ele viu naquele dia. São
deliciosas.
O poeta, o homem e sua hora
(II)
P. Como era Mário Faustino na intimidade?
Angelita Silva – Era uma pessoa extremamente atraente. Uma vez, eu não esqueço
nunca, ele estava contando uma história, e todo mundo passou a prestar atenção nele, e aí
ele fala: Spot on me, spot on me. Eu respondi: “Não precisa, porque você já tem a sua luz
própria, intensa”. Ele ria muito, era uma pessoa encantadora.
P. Mas ele, às vezes, tinha um comportamento ensimesmado, ou era
sempre essa pessoa alegre?
BN – Era sempre alegre. Tinha naturalmente suas crises, como todos têm.
P. Ele era um homem livresco?
BN – Ele era um leitor voraz. Fazia tudo muito depressa. Lia e escrevia muito
depressa. Por acaso, na última fase – antes dele morrer –, ele morava defronte à
SPVEA, onde trabalhávamos. Eu chefiava o setor de divulgação e coordenação, e o
Mário trabalhava no setor de imprensa. Como ele morava defronte, de vez em quando vinha e dizia para mim: “Olha, toma. O material já está todo feito e eu vou para
casa escrever um poema, já, já”. Ia embora e não voltava mais. Ele aprontava tudo
o mais rapidamente possível e o mais perfeitamente possível, também. A rapidez de
execução era uma coisa notável. Ele podia fazer várias versões muito boas do mesmo
poema.
146
Asas da Palavra
P. O poeta foi para o Rio de Janeiro em que ano?
BN – Em 1956. Antes, ele foi ao Rio para cuidar da edição de seu livro, O homem
e sua hora, em 1955. Retornou a Belém e depois seguiu para o Rio já com um cargo
na Fundação Getúlio Vargas, passando também a colaborar no “Jornal do Brasil”.
P. Por sinal, em relação à página de Mário no Suplemento Dominical do
Jornal do Brasil, o poeta e crítico Haroldo de Campos já disse que Mário Faustino fez o mais ágil e inteligente jornalismo literário, jamais feito
no país. Esta afirmação, ainda hoje, às vésperas da edição de sua obra
completa, permanece atual?
MEB – Eu acho que sim, sobretudo porque os suplementos literários atuais são
chatinhos.
BN – E o jornalismo literário acabou, da mesma forma que a crítica nos jornais.
As duas coisas acabaram ao mesmo tempo.
P. O que caracteriza o fim dessa crítica e o fim do jornalismo literário
que se fazia, por exemplo, no Suplemento Dominical do Jornal do Brasil e no Suplemento Literário do Estado de S. Paulo? As imposições do
mercado atual?
BN – Primeiro é a mudança interna nos jornais por causa da questão mercadológica,
do consumo. E dessa concepção falsa de que o leitor de hoje não precisa de certas
coisas. Imagine se hoje iam publicar aqueles enormes artigos que você encontra no
“Suplemento Literário do Estado de São Paulo”.
P. Nos anos 60...
BN – Artigos do Otto Maria Carpeaux, Adolfo Casais Monteiro, Jorge de Sena...
Mas concomitantemente a isso, os cursos de letras começaram a se desenvolver no
Brasil. E começou a aparecer um novo gênero de trabalho intrauniversitário: as
revistas, com periodicidade muito incerta. Essa crítica universitária, ela já surge fora
do jornal. Morreu uma, a outra estava nascendo. Os jornais se tornaram muito
mais instrumentos de informação rápida, como conseqüência de uma hierarquia das
mídias: a mídia mais rápida vai condicionando a outra que é menos rápida, e assim
por diante.
P. Quando se fala no Carpeaux, no Álvaro Lins, no próprio Mário
Faustino, é preciso observar que eles tinham um conhecimento amplo,
variado, humanista, e sabiam transmitir esse conhecimento num texto
claro, articulado, vivo, que envolve o leitor. Já os textos de hoje – e
continuam sendo publicados textos de maior fôlego – não têm a mesma
qualidade, vamos dizer, de comunicação. O conhecimento é muito mais
especializado, restrito.
BN – Exatamente, existe isso. Há coisas que se publicam em jornal que ficariam
melhor em livro. São textos enfadonhos. E há coisas que se publicam em jornal que
são tão supérfluas, mesquinhas, do ponto de vista de idéias.
Asas da Palavra
147
P. O leitor que não conhece Mário Faustino, que tipo de impacto literário ele terá ao tomar contato com a obra do poeta e crítico?
MEB – O leitor vai se surpreender primeiro pela variedade, pela dimensão polimorfa
da produção dele, pelo interesse vasto e também pela qualidade. Ele tocava em assuntos que ainda hoje não são tocados no Brasil, ou são comentados num ambiente
restrito.
BN – O Mário, aliás, teve diversos e variados leitores, como o Wally Salomão; o
pessoal da música baiana daquela época, Caetano Veloso; Torquato Neto, o próprio
Gláuber Rocha.
MEB – O Mário aparece no filme “Terra em Transe”, do Gláuber.
BN – Aparece o poema do Mário, “Balada”, principalmente o verso, “Tanta
violência, mas tanta ternura”.
P. Bem, o Mário Faustino, por seu exercício crítico rigoroso, ao analisar
poetas nacionais, livros recém-lançados, ao avaliar medalhões da poesia
brasileira, por certo ganhou muitas inimizades, não?
BN – Ah, sim. Hoje essas inimizades já devem estar desfeitas, embotadas pelo
tempo. Foram inimizades principalmente com aquela turma da chamada Geração
de 45, o Geir Campos. Houve um que ele atingiu muito, mas que não revidou, um
homem de dignidade muito grande: José Paulo Moreira da Fonseca.
P. Isso pode ser levantado em sua pesquisa, os problemas que Mário
enfrentou com os poetas daquele período, as desavenças com seus contemporâneos?
MEB – A situação do Mário, com as devidas proporções, é um pouco a
coisa do Oswald de Andrade. Esse pessoal da Geração de 45, alguns,
não todos, eles hostilizaram muito os modernistas, sobretudo o Oswald
de Andrade. Eu tive problemas quando editei alguns volumes da obra
de Oswald, sobretudo as entrevistas, que mexiam com as feridas da
época. Pode-se fazer um paralelo com a obra de Mário Faustino. A obra
de muitos poetas da Geração de 45 desapareceu, enquanto o Mário
Faustino está aí, despertando interesse, sendo reeditado.
BN – É até artificioso esse uso de “geração” – e eles usavam o termo geração como
bandeira. Geracional é um conceito periodológico. Há uma parte da Geração de 45
– que ainda está viva – que pratica a necrofilia. Eles se comem. Continuam cultuando
a própria bandeira, que é a da geração, simplesmente. Publicam coisas medíocres,
repetitivas.
P. Aliás, e por falar em bandeira (vai o trocadilho), o Manuel Bandeira
parece que andou tomando as dores de um poeta da Geração de 45
criticado pelo Mário?
148
BN – Foi o Geir Campos.
Asas da Palavra
P. O Bandeira escreveu contra o Mário Faustino?
BN – Ele fez uns versinhos, que eu não conheço.
MEB – Quem tem não mostra. Ele parte para a coisa pessoal.
BN – Eu sei que isso está na Casa Rui Barbosa.
MEB – Se tiver lá é acessível. Vou tentar procurar.
P. Em relação às traduções feitas pelo Mário, que merecerão um volume à parte, elas podem ser tomadas como um produto acabado, ou
devem ser vistas como forma de complemento ao trabalho crítico por
ele desenvolvido na página do Suplemento? Do ponto de vista atual,
em que a tradução em si e a teoria da tradução já se encontram mais
desenvolvidas, mais aprimoradas, as traduções do Mário podem ser consideradas da boa qualidade?
MEB – Há várias atitudes quanto ao aspecto da tradução. Eu acho que as traduções do Mário representam uma dessas atitudes. Podem não estar filiadas à vertente
das traduções mais criativas. Ele se impôs uma missão: divulgar, informar, educar.
Eu acho que o projeto do Mário é um projeto didático, ele quer formar o leitor,
estabelecer um padrão. E as traduções dele, de um modo geral – considerando o
veículo em que formam publicadas –, elas foram determinadas pela rapidez deste
veículo.
P. O próprio Mário não deixou de ressaltar este aspecto.
MEB – Claro. É diferente você ser convidado a fazer uma edição bilíngüe bem
cuidada, com notas, tempo suficiente. Ele fazia traduções para resultado imediato,
para o público ler no outro dia. O jornal tem um alcance rápido, passageiro.
P. O livro O homem e sua hora, publicado em 1955, surge logo depois de
A Luta Corporal, de Ferreira Gullar, publicado em 1952, e de Duas Águas,
publicado em 1954, de João Cabral de Melo Neto, sem esquecer Claro
Enigma (51), de Drummond, Invenção de Orfeu (52), de Jorge Lima, e o
Cancioneiro da Inconfidência, de Cecília Meireles. Como podemos situar o
aparecimento do livro do Mário naquele momento poético? Que tipo
de recepção crítica o livro mereceu?
BN – Foi considerado uma coisa muito nova, original, uma poesia muito forte para
os padrões da época, e já de relevância. Ficava à altura da boa poesia que se fazia na
época. Havia uma relação com Claro Enigma. Nenhuma com A Luta Corporal.
Havia ligações muito mais com Cecília Meireles, com Jorge de Lima e com Carlos
Drummond de Andrade. Com este último compartilhava uma certa sobriedade na
expressão. A aspereza do verso. Não tem nada a ver com a poesia de João Cabral de
Melo Neto. Aliás, nunca teve nada a ver com a poesia de João Cabral. A poesia de
Mário Faustino passou imune à poesia de João Cabral.
P. O homem e sua hora teve ressonância entre os então nascentes po-
Asas da Palavra
149
etas concetos? Eles leram o livro pela época de seu lançamento?
BN – Eles leram. Acho que era muito mais o tipo de mentalidade poética que o
Mário representava do que propriamente a poesia. Ambos já vinham realizando,
publicando, e se encontraram no caminho.
P. Os livros Invenção de Orfeu, de Jorge Lima, e Os Cantos, do poeta norteamericano Ezra Pound, parecem ter influenciado, orientado a poesia de
Mário Faustino. Estes dois vastos poemas cortam, se entrecruzam ao
longo da obra faustiniana. Aliás, Invenção de Orfeu, sob o ponto de vista
do crítico Mário Faustino, às vezes parece ser Invenção de Mário Faustino,
e não de Jorge de Lima. Qual a influência desses dois poetas na obra de
Mário?
BN – O Mário é um poeta de poetas, mas sem a “angústia da influência”, sabendo
extrair de cada qual o que precisava e passando adiante. Quanto mais você vê que é
grande a influência da crítica de Pound nele, menor é a dos poemas de Pound. Até
um certo momento – você pega “A Reconstrução” –, ele quis ir no sentido de uma
épica, mas quando ele parte para os “fragmentos”, aí eu acho que ele estava escrevendo de encontro, e não ao encontro, às influências maiores que ele recebia. Os “fragmentos” podem lembrar certo Jorge de Lima descarnado, mas não tem nada com o
Pound.
P. 38 Quais os pontos de interseção, de convergências – e de divergências – entre Mário Faustino e as vanguardas da época, os concretistas
principalmente? Mário, por sinal, recusava a idéia de “movimento”, de
pertencer a movimentos, de compartilhar do processo de “coletivização”
das vanguardas, de se unir em torno de uma bandeira...
MEB – Na poesia eu acho que tem poucos pontos em comum. Agora, no projeto
de Mário Faustino de buscar o novo, a fuga a cânones, isso ele vai buscar nas
vanguardas. Na série que ele faz sobre o cubismo, sobre o futurismo. Nos textos
que ele escreve sobre Blaise Cendrars, poeta que agora é que está sendo reavaliado.
A série também sobre Apollinaire. São pontos de ruptura para a atualização,
para a dinamização da poesia. Da mesma forma que ele vai buscar, também, nos
clássicos.
BN – A maior identidade com os concretistas é na crítica. Apreciavam os mesmos
autores, os mesmos críticos. Apreciavam os críticos-poetas ou poetas-críticos. O
Paideuma dos concretistas pressupõe a superação do verso. O Mário, por sua vez,
também fala sobre a crise do verso, mas jamais aceita abandonar o verso. Pelo contrário. O Mário concordava: o verso está em crise em toda a parte. Escrevem-se péssimos
versos, etc. Mas ele dizia que era preciso usar o verso de outro modo. A propósito, o
José Lino Grünewald, que também colaborava no Suplemento do Jornal do Brasil,
dizia: “Mário, desfaz o nó mallarmaico. Estás preso ao nó mallarmaico”. O Mário
debochava.
150
P. O movimento concreto pregava que a poesia devia acompanhar a
evolução da ciência, até mesmo tornar-se científica. Esse era um momento de divergência com o Mário, não?
Asas da Palavra
BN – Ele dizia o seguinte: a poesia deve ter uma dignidade tão grande quanto à
ciência, mas não que devia ser igual, o que é diferente. Devia ombrear-se com a
ciência. Nas suas cartas, ele falava que os concretistas faziam coisas interessantes,
mas sempre minipoemas, nunca poemas.
O apóstolo Mário Faustino
(final)
P. O projeto de Mário Faustino de escrever um longo poema, projeto
malogrado, em parte, devido sua morte precoce, esse desaparecimento
prematuro não acabou por impedir que brotasse uma contrapartida
poética à concisão pregada pelas vanguardas e que, de certa forma, desaguou nesta poesia atual, lacônica, esteticista, minimalista e, muitas vezes,
insossa? Não teria sido saudável para a poesia brasileira o contraste que
ofereceria o pleno desenvolvimento da obra faustiniana?
BN – Eu acredito que sim. Não que ele fosse realizar um poema longo. Ele sempre
faria um poema longo feito de pequenos poemas.
P. Que ele iria dando à publicação ao longo do tempo?
BN – Mas mesmo esses minipoemas, dos quais os “fragmentos” são uma prova,
jamais eram insossos. Um poema como “Juventude”, como “Inês, Inês...”, são diferentes dos anteriores. Indicam uma variação nas intenções dele dentro de uma mesma
concepção.
P. Mas Mário Faustino ainda hoje entre nós, não teria sido outro o caminho seguido pela poesia brasileira?
BN – Na tendência que acabou predominando, o Mário, hoje, seria uma grande
voz, mas uma voz isolada.
MEB – Com a ausência de Mário faltou uma voz, uma autoridade crítica. O que me
espanta em Mário é essa coragem, a sinceridade, a objetividade crítica com os amigos.
BN – Hoje nós temos uma ausência de crítica.
P. Não existe mais crítica no Brasil, é isso?
BN – Está-se dominado – e eu particularmente também sofro disso – por um tal
ceticismo que já não se aplicam mais os critérios da maneira rigorosa como o Mário
Faustino aplicava. O Mário era apóstolo, tinha fé naquilo que pregava, acreditava
no que pregava. Nós já não acreditamos muito.
P. Nos seus “Diálogos da Oficina”, ele chega a ser, digamos, tão religioso em sua doutrina poética que, às vezes, parece ingênuo, pelo menos
visto na perspectiva de hoje.
Asas da Palavra
151
BN – A poesia deve ter também um certo empenho metafísico, está dito lá.
MEB – Uma poesia empenhada socialmente.
BN – Metafisicamente também. Lutando pelo homem mas também exprimindo a
sua situação no universo. Nós estamos sofrendo mal do relativismo, do qual não nos
livramos e não sabemos como é que vamos nos livrar. Por exemplo: tudo pode ser
interpretado. Até a má poesia pode traduzir um certo estado da sociedade.
P. Quase trinta e cinco anos depois da morte de Mário Faustino, o interesse pela sua obra vem crescendo?
MEB – Vem sim, apesar da dificuldade de se encontrar a obra dele nas livrarias.
Apesar disso, ele vem ganhando novos leitores.
P. O Mário deixou herdeiros?
MEB – Acho que os irmãos são os herdeiros universais.
P. Não, eu digo herdeiros na poesia (risos).
MEB – Bem, então vamos botar a memória para funcionar...Acho que, infelizmente, não.
BN – Não podemos esquecer que, pela função didática que ele exerceu, diversos
poetas surgiram por intermédio de sua página no Suplemento do Jornal do Brasil.
Ele não deixou herdeiros, mas abriu caminho aos mais variados poetas.
MEB – E nenhum poeta tinha feito isso já há muito tempo, a não ser o Mário de
Andrade, embora num outro nível, numa outra circunstância.
P. Pode-se dizer que Mário Faustino é um poeta paraense?
MEB – Cada vez mais estou convencida disso. A convivência com os amigos
paraenses, acho que isso foi bom para o Mário.
BN – Mas poeta paraense no sentido de restrito a um meio cultural periférico?
P. No sentido de que metade de sua vida, dezesseis anos, seus anos de
formação intelectual, foram passados em Belém.
BN – Quanto a isso, certamente.
P. Sem, é claro, que isso dê a entender ter sido poeta restrito a uma
condição provinciana, poeta municipal. Eu queria voltar ao que a Maria
Eugênia falou, sobre estar cada vez mais convencida do fato de Mário
ser um poeta paraense. O que a leva certifica-se disso?
MEB – A minha ignorância até então em relação ao Pará. A minha estadia aqui
152
Asas da Palavra
vai ajudar a compreender o trabalho do Mário. Eu não sabia desse grau de intimidade intelectual, de discussão, de debate. Não avaliava o grau disso na formação de
Mário.
P. Max, aproveitando sua presença, até agora calada, fale sobre sua convivência com o Mário?
Max Martins – A minha convivência não foi muito estreita com o Mário. Até
por timidez, o acompanhava de longe. Aprendi muito lendo a poesia do Mário.
Naquela ocasião eu estava descobrindo poetas como Dylan Thomas, Hart Crane,
William Carlos Williams, dos quais Mário também recebeu influência. Há um
poeta que representa uma espécie de encontro poético entre mim e o Mário, revelado
para mim e o Mário, revelado para mim pelo Robert Stock, que é o Dylan Thomas,
inclusive pela leitura das traduções do Mário.
P. É curiosa e praticamente desconhecida a presença desse poeta norteamericano, Robert Stock, na biografia de Mário Faustino.
BN – Ele foi, para todos nós, uma espécie de catalisador.
P. Ele já tinha livros publicados quando veio para Belém?
BN – Somente uns poucos poemas publicados em pequenas revistas acadêmicas dos
Estados Unidos.
P. Mas estava atualizado com os poetas contemporâneos, muitos dos
quais apresentou a vocês.
BN – Bob Stock foi um homem de grande generosidade intelectual. Conversava de
igual para igual com o Mário Faustino. Os dois se fecundavam mutuamente, tanto
que o Mário traduziu poemas dele e o Bob alguns do Mário. O encontro de ambos se
deu em 1952, quando o Mário voltou de sua primeira viagem aos Estados Unidos
e topou com o Bob por aqui.
P. Os contrastes que formam – e informam – a poesia de Mário Faustino,
contrastes espirituais, éticos, religiosos, eróticos, que confluem para uma
espécie de configuração alegórica que busca se expressar na criação de
um novo repertório poético, conciliando o mito e o passado a novas
técnicas experimentais, as vanguardas de então. A par disso, o que a
morte interrompeu pode ser dado como concluído, como tendo alcançado uma unidade poética, feito Rimbaud, que não precisou da morte
para se encerrar enquanto poeta, ou a frustração da incompletude, da
forma fragmentada dos últimos poemas, pesará sempre a obra de Mário
Faustino?
BN – Acho que ele se completou na incompletude. É claro que ele visou muito mais
além, mas isso não quer dizer que ele precisaria viver mais alguns anos para realizar
o seu dom. Acho que a própria busca já era uma realização.
P. Então ele deixou uma unidade poética?
Asas da Palavra
153
BN – Quando você examina hoje, é possível observar uma relação muito grande
entre os “fragmentos” e os poemas de O homem e sua hora. E até buscando as
vanguardas. Aquele aparato da retórica de vanguarda, você vê as mesmas imagens,
os mesmos símbolos, as mesmas alegorias, para usar a sua expressão.
P. Sabemos que o Rimbaud decidiu não mais escrever poesia. Deixou
uma obra pronta e acabada. Mas o Mário, sua morte prematura não
deixou de interromper um curso poético, ainda que possamos dizer que
toda e qualquer morte interrompe toda e qualquer atividade. Mas o que
quero ressaltar é o desaparecimento repentino, prematuro, do poeta
quando jovem, e não em idade madura, com obra já considerável.
BN – Evidente que ele esperava fazer mais. Mas, paradoxalmente, o que ele fez foi
uma realização, do ponto de vista disso que ele estava procurando. A própria diversidade tem uma unidade. O fragmentarismo, ele caminhava para isso mesmo. Diante do concretismo, a solução dele foi recuar não a uma forma preliminar de expressão
poética que abolisse o verso, mas buscar uma outra forma de verso, que chegasse ao
refinamento do verso que ele fazia antes. Cada fragmento tem a unidade do poema
formalmente considerado, uma unidade temática, sua autonomia estética.
P. No ensaio Mocidade e morte, Otto Maria Carpeaux fala de um certo
“estilo da velhice”, que acometeria poetas novos, mas somente aqueles
que morreram moços. Segundo Carpeaux, pressentido a morte prematura, este poeta anteciparia experiências fora do tempo, transcendentais,
expressando-se num tom enigmático, sombrio, atemporal. Esse estilo
da velhice estaria ligado não ao tempo civil, mas à iminência da morte, e
distinguiria os gênios malogrados daqueles outros gênios, celebridades
falsas. É possível, nesses termos, falar em estilo da velhice a respeito de
Mário Faustino?
BN – A velhice aí é como a consumação. Seria antecipar sua própria experiência da idade madura. Num outro aspecto, o Hermann Broch usa esta expressão
de Carpeaux. O estilo da velhice é aquele que não é mais um estilo direto, mas
traz uma certa complexidade. Dá até o James Joyce, entre outros como exemplo
de estilo da velhice. Aí já existe uma noção de cultura por trás, culturas jovens,
culturas velhas. Mas, nesse sentido, antecipatório, é possível concordar com
Carpeaux. Num certo sentido, Mário é um poeta juvenil – não é a juvenilidade
auriverde. Ao publicar O homem e sua hora, ele já é um poeta maduro.
MEB – Ele não se compara com nenhum desses modelos de poeta de morte precoce.
P. Que é o caso de alguns dos nossos poetas, poetas que morreram jovens,
mas que não alcançaram o estilo da velhice: Casimiro de Abreu, Álvares de
Azevedo... Eles foram somente juvenis, ainda que talentosos.
MEB – Me parece que o Mário fala disso, que sua poesia é a de um homem de 40 anos.
P. 60 É problemático falar quando já temos o conhecimento do fato
consumado, da morte violenta, brutal, repentina, precoce, que não deixa sequer o corpo. Já falamos sobre o ritmo acelerado que Mário impri154
Asas da Palavra
miu a sua vida, parecendo até sinal de premonição da vida breve. Com
uma leitura, digamos, viciada pelo conhecimento da morte trágica, alguns de seus versos chegam a soar premonitórios. Ele fazia comentários sobre isso, falava a respeito da morte, deu sinais do que viria a lhe
acontecer?
BN – Eu não quero falar em premonição; sou muito cético. Acho que ele tinha uma
preocupação constante com a morte, mas na poesia. E, verdade, também, às vezes, no
dia-a-dia. Lembro de uma coisa muito curiosa. Uma vez, ele estava deitado e umas
moscas vieram e pousaram nele, e ele disse: Oh, not yet, not yet (risos).
P. 61 Ainda não era a hora.
MEB – A idéia da morte é um dos motivos principais da poesia de Mário.
P. Você não conheceu o homem Mário Faustino, mas ao ler o poeta, ao
editá-lo, você o vive, de certa forma; busca conhecer a pessoa, sua biografia. Nesse levantamento feito em Belém, ao estar aqui, ao lado das
pessoas com as quais Mário conviveu, dá para formar uma opinião, ter
uma impressão do homem atrás da obra?
MEB – A minha presença nesse projeto editorial talvez venha trazer uma outra
parte às pessoas que conviveram com ele, Benedito, Max Martins, Haroldo Maranhão.
Para mim, a poesia do Mário é um objeto específico, uma coisa fria que eu vou dissecar,
vou procurar conhecer tudo. Mesmo assim eu fiquei espantada com o meu envolvimento
nessa semana passada em Belém, afetivamente, pela leitura das cartas, a surpresa desse
mundo aqui, que eu desconhecia. O Mário era ao mesmo tempo um homem que vivia
freneticamente, um homem moderno, mas que tinha esse lado melancólico, meio saudosista. E isso era importante: a saudade do Pará e dos amigos. Ele jamais despreza o
Pará e os amigos. Isso eu percebi aqui, nessa semana, que para mim foi uma universidade em período intensivo.
P. O que a poesia e a crítica de poesia ganham com este retorno a Mário
Faustino, que a reedição ampliada de sua obra propicia?
BN – A poesia ganha poesia e a crítica ganha crítica (risos).
MEB – Eu acho que a crítica ganha um parâmetro de objetividade, que falta hoje
em dia. Ganha a dissecação da obra, dizer por que é boa, por que é ruim, e em que
padrões se está julgando essa poesia. A crítica vai ganhar muito.
Asas da Palavra
155
156
Asas da Palavra
LEMBRANÇA
*
Ivo Barroso
Tradutor
*
Asas da Palavra
Publicado originalmente na
Revista Palavra. abril/2000
157
A
final de que serve a poesia? Que papel deve assumir o poeta
contemporâneo diante dos problemas de sua época? O que é
a poesia? Estas e outras perguntas, um jovem poeta procurou
responder aos 26 anos. Seu nome: Mário Faustino, cuja vida precoce foi
seguida de uma precoce morte, aos 32 anos, em um acidente de avião em
Cerro de la Cruz, nas imediações de Lima, capital do Peru. Seu corpo não
foi identificado. Mário Faustino deixou um único livro, O homem e sua hora.
Mas o seu trabalho de poeta, crítico e tradutor permanece com um dos
momentos mais instigantes da nossa poesia.
Os jovens leitores de hoje, que vêem emagrecer de dia para dia
o espaço dos jornais destinado aos assuntos literários, estão longe de
imaginar o que era o “Suplemento Dominical” do “Jornal do Brasil”
nos últimos anos da década de 50: um caderno especial de 12 páginas,
formato grande (60 cm x 40 cm), com paginação sofisticada, onde poemas inteiros eram transcritos com ilustrações e espaços em branco largamente utilizados em benefício da composição estética. Seu diretor,
Reynaldo Jardim, inovador da feitura gráfica, paginador de vanguarda,
estava aos poucos transformando um compósito de artigos sobre “artes” num conjunto homogêneo de assuntos literários.
Pouco a pouco foram sendo devidamente “aposentadas”
decrépitas seções de balé e crítica teatral, conselhos domésticos e notícias
literárias, cujos velhos colaboradores iam se queixar furiosos à condessa
Pereira Carneiro da intromissão “desses jovens” nas searas em que vinham respingando (e ruminando) havia décadas. Mas o genro da condessa, Nascimento Brito, desejoso da remodelação do jornal, deu respaldo à
turma do “Suplemento”.
Foi nesse espaço que apareceu, a 23/09/56, a página inteira denominada Poesia-Experiência, sob a assinatura de Mário Faustino, jovem
poeta paraense, logo em seguida transformado num dos maiores críticos
literários do país. Se o Suplemento Dominical já era para os jovens poetas de
minha geração leitura semanal obrigatória (para torná-lo ainda mais sui
generis, o dominical saía aos sábados), com o aparecimento de Mário
Faustino, a folha transformou-se em motivo de cult. Isso porque ele representava para nós tudo aquilo por que vínhamos ansiando: o mestre capaz
de nos fornecer, da maneira mais atraente e dinâmica possível, as teorias
de que necessitávamos e que não poderíamos adquirir fosse por falta de
recursos financeiros, fosse por desconhecimento de suas fontes originais.
Faustino ensinava Poesia, matéria que não estava nos tratados legíveis, e dela nos dava exemplos (exhibits, em sua linguagem) que abrangiam desde os tempos clássicos greco-romanos ou mesmo de literaturas
158
Asas da Palavra
mais remotas como a chinesa, até as grandes vozes do presente (Rilke,
Pound, Eliot) sobre as quais ouvíamos falar mas sem haver ouvido (ou
visto) o que diziam.
Seus Diálogos de oficina eram conversas imaginárias entre mestre e
discípulo, ou entre dois interlocutores cultos, sobre a conceituação do ser e
do fazer poéticos, expressos numa linguagem acessível, mas sempre elevada. A seção O melhor em português antologiava e comentava os clássicos portugueses, e o É preciso conhecer, os grandes poetas estrangeiros em tradução.
Havia ainda os “Subsídios de Crítica”, com trechos selecionados de mestres
do gênero, principalmente os de língua inglesa, e a seção “O Poeta Novo”,
a que mais interesse despertava entre nós, pois Faustino convocava democraticamente os inéditos a colaborar, submetendo-os no entanto a uma seleção impiedosa.
Vítima de timidez aguda, estive várias vezes para lhe mandar minha colaboração, mas só me arrisquei quando Faustino passou a publicar
e analisar alguns poemas traduzidos. Enviei-lhe o soneto 3 da primeira
parte dos Sonetos a Orfeu, de Rainer Maria Rilke (Ein Gott vermags), efiquei
abismado e confuso quando, na semana seguinte, abrindo o suplemento,
dei com o original e a tradução em O poeta novo, tendo embaixo a seguinte
nota: “O poeta novo da semana apresenta-se com uma tradução. Alguns
leitores poderão estranhá-lo. Nós, porém, somos dos que pensam poder
haver tanta criação poética – ou mais – em uma tradução quanto num
poema original. Algumas das obas mais importantes das maiores literaturas do mundo têm sido traduções...”
Diante de tal acolhimento, ganhei coragem e fui visitar a redação
do Jornal do Brasil, àquela época na avenida Rio Branco. Lá encontrei
Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Oliveira Bastos e Assis Brasil, mas
Faustino não estava presente, só ia ao jornal uma vez por semana levar a
página de Poesia-Experiência.
Poucos leitores o conheciam; na entrevista que deu a Ruth Silver
para o mesmo Suplemento, em vez de se deixar fotografar, preferiu copiar a
mão uns versos de Camões e de Pessoa.
Devia ser um velho sistemático, mas queria de qualquer forma
agradecer-lhe a “promoção”. Reynaldo aconselhou-me a procurá-lo na
Fundação Getúlio Vargas, onde trabalhava num departamento da ONU,
e aconteceu que um dia resolvi lá ir. Recebeu-me um colega dele; fiquei à
espera junto à mesa em que havia um paletó e um bilhete escrito em
francês: “Voltarei dentro de alguns minutos. Mário”. Logo chegou, muito
jovem (eu esperava um senhor quarentão, Mário tinha apenas 26 anos,
um ano mais novo do que eu), nada alto, rosto redondo, perfeitamente
escanhoado, cabelo à West Point, fisionomia rosada de esportista, olhar
vivo e brilhante, gestos um tanto nervosos – enfim, o inverso do que ser
convencionou ser o “tipo intelectual”. A conversa começou meio amarrada da minha parte, não conseguindo repetir o ensaiado discurso de agradecimento. Mário cortou curto. Não lhe devia agradecer. Não havia ne-
Asas da Palavra
159
nhuma concessão em sua escolha.
Perguntou-me se conhecia um verso de Pound: “A piedade matou
minhas Ninfas” e falou-me algo sobre a honestidade na crítica de arte. Percebendo minha atitude de acólito, tratou de anular a impressão de que gostava de ser mestre. Estava procurando aguçar em todos nós o senso crítico
através do conhecimento. Mas o gosto artístico, ou saber distinguir em arte,
deveria ser a conquista de cada um com os recursos de que dispusesse.
Pediu para ver outros trabalhos meus. Mostrei-lhe a tradução que tentava
fazer da Ode a uma urna grega, de Keats, e Mário tomou o papel onde escrevera o bilhete em francês, e nele anotou um remanejamento do verso Beauty
is truth and truth is beauty, dizendo que a frase se tornara proverbial em inglês
e era portanto necessário conseguir uma forma de traduzi-la com o mesmo
pique em português. Saí levando comigo o papel, que ainda guardo.
No ano seguinte, encontrei Mário novamente, desta vez na redação
do jornal. Sabendo da importância que dava às traduções, queria mostrarlhe algumas dos sonetos de Shakespeare, que ele imediatamente publicou
(27/10/57), também com uma nota: “Ivo Barroso é, a nosso ver, um dos
maiores tradutores para a língua portuguesa em ação atualmente: os leitores
desta página hão de estar lembrados de seu comparecimento à seção ‘O
Poeta Novo”, traduzindo um dos ‘Sonetos a Orfeu’ de Rilke. Volta agora
Barroso com três sonetos de Shakespeare, todos surpreendentemente traduzidos, a ponto de superarem, em nossa opinião, as traduções (em
alexandrinos), já por nós elogiadas, de Jerônimo de Aguiar (Editora Melhoramentos). Ivo Barroso estará dentro de algumas semanas em ‘Poesia em
Dia’, com página de traduções do inglês, do italiano, do alemão, etc.”
Mas sem esperar pelas semanas vindouras, pediu a Reynaldo que
me acolhesse entre os colaboradores do Suplemento e me vi, de um momento para outro, fazendo parte da equipe.
160
Nesse mesmo ano de 1957, o Suplemento passaria por um momento histórico com sua adesão ao concretismo, teorizado pelos irmãos Campos e Décio Pignatari, de S. Paulo, e encampado, no Rio, por Jardim e
Gullar, que lhes abriram as portas para a publicação de manifestos e poemas. O Suplemento passou a estampar versos “espaciais” que causavam
exasperação entre os conservadores e pedidos veementes à condessa “para
que pusesse um paradeiro ao descalabro”. Nós, poetas novos, prontamente aderimos. Eu próprio tive alguns poemas concretos publicados,
entre eles o SAPO PULA/ PAUL PULULA, e o ÉPOCA/ ÉPICO, reproduzidos com grande destaque. Mário não aderiu de primeira hora nem
de corpo inteiro ao movimento, embora respeitasse a cultura e probidade
de seus mentores. Mas escreveu um artigo de página inteira, A poesia concreta e o momento poético brasileiro, que situava o movimento vis-à-vis da atuação dos grandes poetas da época, e que, pela sua coragem e agudeza de
análise, permanece, até hoje, significativamente como um dos mais avançados patamares de crítica literária objetiva. Como Manuel Bandeira, não
deixou também de fazer, em seus poemas subseqüentes, algumas incursões pelos “recursos espaciais” concretistas, mas, entre nós, confessava
Asas da Palavra
não acreditar na “morte do verso”.
Muitas outras vezes estive e falei com Mário, e dele recebi conselhos e orientações, sempre dados de maneira informal e sugestiva. Lembrome de quando achou estranho que eu tivesse traduzido para o Suplemento
uma série de artigos do crítico literário norte-americano R. P. Blackmur
contrários a Ezra Pound, que era um de seus ídolos intocáveis. Como houvesse um endeusamento permanente de Pound nas páginas do Suplemento,
Reynaldo achou que era oportuno mostrar também “a outra face”, e eu
concordei em traduzir os artigos. “Blackmur é sério, mas eu prefiro Pound,
que é espiroqueta”, ainda o ouço dizendo: “Os críticos teorizam, mas só os
gênios criam”.
Em dezembro de 1959, Mário ausentou-se do Brasil para exercer
um cargo na ONU em Nova York, só regressando em 62, como
editorialista do Jornal do Brasil e da Tribuna da Imprensa, que estava sendo
adquirida pelo primeiro. A Tribuna passava por grandes transformações e
entre seus redatores estava Paulo Francis, com quem eu já trabalhara na
revista “Senhor”, e que me convidou para traduzir um folhetim, Os ladrões
de corpos, para aquele jornal. Lá encontrei um dia Mário Faustino, que passara a dirigir o órgão e se mostrava naquele dia extremamente agitado. O
jornal publicara ou ia publicar uma entrevista com Luís Carlos Prestes, e
havia reações de toda espécie. Mário disse-me que a vida política brasileira estava muito conturbada e estava ficando muito difícil exercer o papel
de orientador da opinião pública. Preferia aceitar uma oferta do jornal
para fazer uma série de artigos e reportagens sobre Cuba, México e Estados Unidos. Perguntou, como sempre atencioso, pelos meus trabalhos e
mostrei-lhe os “33 Sonetos de Abraxas”, em que vinha trabalhando. “Merece um prefácio”, disse-me com afeição que não pude esquecer. Dei-lhe
a pasta com os sonetos. No dia 27 de novembro daquele ano, Mário embarcou para nova York para não mais voltar.
Os jovens poetas de minha geração tudo devem a Mário Faustino:
foi ele quem nos ensinou a encarar a poesia como algo sério e comprometedor. A ter como um dos instrumentos do poeta o conhecimento de
línguas e literaturas estrangeiras. A desenvolver avaliação crítica sem a
qual nunca iríamos passar de diluidores. Não consegui nunca, em vida,
agradecer-lhe por isso. Mas em 1991, quando publiquei a antologia de
traduções O torso e o gato, nela inscrevi seu nome, in memorian, como um
singelo tributo.
Asas da Palavra
161
162
Asas da Palavra
MÁRIO FAUSTINO
NOSSO CIGANO
Lúcio Flávio Pinto
Jornalista
Asas da Palavra
163
Q
uando li pela primeira vez Mário Faustino, mais de 35 anos
atrás, já conhecia – e amava – Federico Garcia Lorca. Foi
impossível não fazer comparações e associações. Eram surpreendentemente parecidos. Primeiro fisicamente: homens morenos, de
traços fortes e firmes, suavemente bonitos. Nas personalidades também: ambos eram homossexuais. A homossexualidade, como não podia deixar de ser, era um elemento forte dos seus modos de ser, sobretudo em suas terras natais (ou adotivas). Algo importante para dentro dos
dois poetas. Eles nunca assumiram essa sexualidade subversiva, mas também não a negavam.
O mais importante, porém, é que mesmo se desviando do comportamento padrão (e sancionado) e não escondendo essa atitude, sua
homossexualidade era um componente harmonioso neles. Ninguém a
notava, nem a acusava. Exceto, no caso de Lorca, quando a guerra civil
espanhola, em sua fase mais furiosa, a tomou como combustível para
um dos seus mais odiosos atos de brutalidade: a execução sumária do
poeta.
Mário e Federico eram poetas sensíveis e almas superiores, mas
nunca tiraram os pés da terra. Envolveram-se nos dramas dos seus países
e tentaram usar suas inteligências a serviço de causas nobres, dando-lhes
aplicação coletiva, social. Circularam com a mesma desenvoltura pelo
universo das simbolizações e pelo mundo dos homens. Essa rara combinação de vida literária com vida social é o traço que mais me agrada ao
lembrar, como muita gente fez, a memória de Mário Faustino dos Santos
e Silva, nos 40 anos de sua morte, ocorrida em acidente aéreo, no dia 27
de novembro de 1962.
Podia-se escolher uma data mais festiva: os 70 anos do seu nascimento, que se deu no Piauí, em 22 de outubro de 1930. Vê-se, pelo
confronto das duas datas, que Mário esteve entre nós por apenas 32
anos. Mas fez muito, imensamente. Como parecia ter a premonição da
vida breve, uma marca de grandes artistas que morreram jovens, tudo
que fez tem intensidade, paixão, urgência.
Assim como Guimarães Rosa tremia diante do desafio de ter
que assumir a cadeira que o esperava havia anos na Academia Brasileira
de Letras (morreu logo depois da solenidade de posse), Mário vivia transferindo a viagem que faria aos Estados Unidos. Quando não mais pôde
protelá-la, assumiu o destino: seu corpo estava entre os restos carbonizados do jato da Varig que bateu numa montanha, no Peru. Por vários
dos seus poemas perpassa o hálito da morte, indesejado, mas inevitavelmente precoce.
164
Asas da Palavra
A obra deixada por Mário não se exaure nos seus versos, que
são relativamente pouco numerosos, mas carregados de significados,
densos de intenções e conquistas. Estudante em Belém, Mário teve uma
carreira incomum. Num dos seus últimos anos, tirou 10 em todas as
disciplinas. Expressava-se em seis línguas, escrevendo e falando fluentemente em inglês e francês (mas lia e conversava também em espanhol,
italiano e alemão).
Enquanto uma perna demandava as criações intelectuais puras, a
outra caminhava por terreno mais imediato e pragmático. Aos 16 anos
começou a trabalhar, como noticiarista de A Província do Pará. Com 19
anos passou para a Folha do Norte, jornal que chegou a secretariar, imprimindo sua marca pessoal na excelência da publicação. Durante dois anos,
chefiando a Seção de Divulgação da SPVEA (Superintendência do Plano
de Valorização Econômica da Amazônia, antecessora da SUDAM), patrocinou a publicação, em formato ágil, de alguns dos mais expressivos
trabalhos sobre a região.
Em 1956, depois de dois anos nos Estados Unidos e 11 meses
na Europa, ele transferiu seus apetrechos para a capital da república.
Em seis anos de Rio de Janeiro atraiu interesses, catalisou energias e
despejou anátemas e canonizações à vontade, com ou sem razão. Em
todas as situações, porém, fez presença com sua inquietação, criando
um campo magnético próprio. Mas a terra ficara estreita. Mário precisava se alargar.Daí a decisão de ir mais além, para os Estados Unidos,
subindo na carreira que havia iniciado no Brasil, como diretor-adjunto
da ONU. Se tivesse conseguido chegar a Nova York outra vez, o que
faria Mário Faustino desta vez?
A pergunta ficará sem resposta para
sempre. É possível que, com a reedição de sua
obra pela Companhia das Letras e a publicação da sua vasta produção inédita, de crítica e
jornalismo, quem poderemos nos aproximar
de uma resposta mais satisfatória do que o silêncio atual se apresenta, não deixando que a
poeira estrelar do poeta se reduza a pó de arquivo. Mário Faustino merece muito mais pelo
que fez e nos deixou. Este jornal, incorporando-se ao revival, republica o fac-símile do manuscrito de Mário do poema “Ego de Mona
Kateda”, datado de 1955, que dedicou ao seu
maior amigo, Benedito Nunes.
Fica a letra que deu forma à inventiva
do poeta, que morreu para nunca mais morrer.
Asas da Palavra
165
166
Asas da Palavra
VERSOS,
IMAGENS, RECORTES & COLAGENS
Rosa Assis
Doutora em Língua Portuguesa, UFRJ
Professora da UNAMA
Asas da Palavra
167
Q
1
Os caracteres maiúsculos
ou minúsculos, em negrito,
indicam os primeiros
versos de poemas da obra
de Mário Faustino
uem fez esta manhã, quem penetrou Em marcha, heróico, alado
pé de verso, Nasce do solo sono uma armadilha Nem uma só verdade resplandece Triunfo de herói morto – claro, dórico No princípio Para as Festas da Agonia Vida toda linguagem, Estrela
roxa, Alma que foste minha, Náusea – Os cães do sono ladram
Sinto que o mês presente me assassina Meu desespero é fonte onde
as lágrimas bóiam O mundo que venci deu-me um amor, Lá onde
um velho corpo desfraldava Inferno, eterno inverno, quero dar
Dormia um redentor no sol que ardia Onde paira a canção recomeçada Dor, de dor de minha alma, é madrugada estava lá
Aquiles, que abraçava ... Et in saecula saeculorum: mas Cambiante floresta, rios, jóias, o eixo: a envergadura:a tempestade: o
todo – Entorne-se o mel do tempo: Espadarte em crista de vaga,
Forma: pira distante. Ao fundo a ilha, a movediça e torta, Gaivota, vais e voltas, / gestos de amor fizeram-se – Inês, Inês, quem
sobrevive, quem, Juventude – O mar recebe o rio. O rio meninada
apostando corrida com chuva Neste momento as sombras Recesso
de água entre rochedos turvos, Trabalha: Traição, traição, onde
encontrar azul Trancadas portas, quietos lilases, dados lançados
– Túnel, pedra, tonel. Seixo Item: Amar é jogo difícil. Não conseguiu firmar o nobre pacto Por não ter esperança de beijá-lo Só
ardem neste sono Deixo a quem quer que seja Divisamos assim o adolescente, Vai
meu canto, Naquela face redonda e cálida, Os grandes ventos passam Não quero
amar o braço descarnado Tremenda fortaleza traz consigo Subo meu monte mágico
meu monte O servo novo ao som de cada lira Necessito de um ser, um ser humano
Esse estoque de amor que acumulei E quando a luz e o vento me deixaram, Em
cinza de derrota nos deitamos, Três artesãs me olharam Tira uma pena da asa de
Gabriel Apago a vela, enfuno as velas: planto Teu hálito quebrado entre teus lábios
Em Nova York diabólica, de madrugada Mão invisível levanta a balança O céu
azula a poça Raiz de serra em honra dum ar de colina; Bronze e brasa na
treva:diamantes Cavossonante escudo nosso Ressuscitado pelo embate da ressaca, E
sonhou a mulher que se cumprira. Noite, noite, após noite, uma outra noite O som
desta paixão esgota a seiva Ah, possuir-te a alma Que faço deste dia, que me adora?
As vozes frias Trago-lhe a marca mais tensa O olhar recebe a forma e esquece a
essência O que eu sou, quero dizer a mim mesmo Tudo o que importa é ser
maravilhoso. Por que vos espantais se eu venho sobre as ondas? Quem como tu sem
ser percebida O mar reza por mim Ela existia misteriosa e oculta “Esta manhã o ar
estava cheio de anjos” Da rosa somente a pétala inconsútil A rosa adormecida
sonha sonha e sonha aquele cujo nome traçaram os vagalumes Oh não passar somente sugerido! Ontem vieram as orações esquecidas Em rosa pura e lírio Sereno ele
retorna do impossível
168
1
Asas da Palavra
CERTIDÃO DE NASCIMENTO
Asas da Palavra
169
2
Esta foto me foi cedida
pelos amigos em comum
Maria Sylvia e Benedito
Nunes
Há risos tristes, o do Mário era alegre. Dentes perfeitos, sobrancelhas fartas, olhos vivos-mortos, boca sorridente, por isso seu riso era
mais riso, seu riso ria. Há gargalhadas surdas, a do Mário era uma sonora gargalhada, continua, até hoje, gargalhando nos ouvidos de seus
amigos.Era amigo de meus pais: Celina e Machado Coelho.Gostava muito
de minha mãe
NY, 14 de setembro, à noite
Meu querido Bené
“ .... De volta à casa, escrevi uma carta ao Machado, contando-lhe da passagem do filho. Aliás, no mesmo dia em que
aqui chegou o JF passei um Western ao pai dele, tranqüilizando a família. Isso com um olho, sobretudo,na pobre e maravilhosa D. Celina, a quem quero muito bem e que imaginei
preocupadíssima ...
(Trecho da carta de Mário Faustino a Benedito Nunes)
Guardo na memória, não o poeta da
estrela roxa, mas o Mário, aquele, de quando
menina, em minha casa ouvia a sua alegria. O
2
Mário menino, esse aí ao lado. Não sabia eu,
àquela altura, quem era Mário, soube, um dia,
quis ele ser padrinho de minha irmã mais nova.
Avoado, risonho, porque alegre e descontraído,
mas de repente, o seu riso se fez pranto. Seus amigos choraram. Mas ficou O Homem e sua hora.
Os recortes que se seguem são apenas ‘pedaços’ que foram guardados e retirados dos tantos que ainda tenho. São muitos como Muito é
o Mário, mas só colei estes.
170
Asas da Palavra
Suplemento Literário
24 de dezembro, 1950
Mário-paraense na ‘galeria’ dos dez poetas
com sua elegia, seu anjo e sua rosa
Asas da Palavra
171
Poeta
Tradutor
172
Asas da Palavra
1948
CRONISTA
Mario Faustino: M.F.
Asas da Palavra
173
O crítico cinematográfico W
1949
174
Asas da Palavra
Poesia-Experiência
Jornal do Brasil
1956-1958
Crítico-literário-solto
Passar pelos olhos de Mário era um querer-temer de muitos
poetas, em especial os novos, pois sabiam que a crítica era implacável,
justa, coerente.
A franqueza de Mário Faustino atraiu inúmeros poetas que almejavam ter
seus livros crivados por seu olhar atento... (BOAVENTURA, Maria Eugênia,
p. 35)
Asas da Palavra
175
O VAIVÉM DO CORREIO
Mário no Mundo
Drummond / Mário
Prezado Mario Faustino
Deixo-lhe aqui a separata, e mais os números de uma revista Argentina
de poesia, cujo pessoal deseja estabelecer contato com os nossos poetas novos. Se V
acha que vale a pena, mande o seu livro para eles.
Deixo também alguns endereços de pessoas interessadas em poesia, e que
certamente gostariam de conhecer o seu livro.................
(trecho de Carta de Carlos Drummond de Andrade a Mário Faustino / 9. XI.55)
176
Asas da Palavra
Mário / Drummond
Asas da Palavra
177
Mais
Paulo Francis
16 de jul./ 1996
O Diário
Ribeirão Preto
Conselho de Cultura
20/08/85
A Província do Pará
Folha de São Paulo,
30/06/1985
178
Asas da Palavra
Cartas Americanas
3
SAPOS E ESTRELAS
3
4
Tenho lido com grande encanto – o encanto das páginas bem
escritas, – as crônicas de Mário
Faustino, esse moço que depois de
Colombo anda agora a descobrir
a América.
4
Publicadas na Folha do
Norte
Publicadas em A Província
do Pará
Gosto imenso desse Mário, tão
inteligente e tão menino! Quando
converso com ele saio também convencido de que a beleza da vida
não reside na sabedoria da velhice, mas nos erros da juventude.
Feliz a mocidade, que não precisa dos óculos de Pangloss para
ver o mundo cor de rosa. Depois,
que entusiasmo, que pletora, que
euforia, nesse Mário das “Cartas Americanas”. Sente-se que
o rapaz está admirado, fascinado,
mais ainda, arrebatado no carro
de fogo do deslumbramento.
...............................................................
Pelo amor de Deus, não despertem de seu sono ou de seu sonho o meu querido Mário
Faustino. Quanto não sofreu, de
certo, o Eça ao verificar que “há
mais civilização num beco de Paris do que em toda a vasta Nova
York”!
E depois quem sabe se a América não é mesmo como as pérolas
argentinas?!
“Perlas Ecla – imitación –
pero más solidas, más lindas y
mejores que las verdaderas”.
Asas da Palavra
179
Sem comentários
Folha do Norte
Belém-Pará
Quarta-feira
28 de novembro, 1962
Seres e estrelas brotam de meus lábios ...
e morro deste belo sofrimento
de ser maravilhoso!
( Solilóquio)
Suplemento Literário da Folha do Norte
20/11/49
180
Asas da Palavra
Fontes
Suplemento Literário Folha do Norte, 01 de janeiro de 1949. Belém-Pará.
Suplemento Literário Folha do Norte, 20 de novembro de 1949. Belém-Pará.
Suplemento Literário Folha do Norte, 24 de dezembro de 1950. Belém-Pará.
A Província do Pará, 17 de janeiro de 1948. Belém-Pará.
A Província do Pará, 07 de fevereiro de 1948. Belém-Pará.
A Província do Pará, 25 de dezembro de 1949. Belém-Pará.
FAUSTINO, Mário. Poesia de Mário Faustino, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1966.
FAUSTINO, Mário. O homem e sua hora e outros poemas. São Paulo, Companhia
das Letras, 2002. (Org. Maria Eugênia Boaventura).
FAUSTINO, Mário. De Anchieta aos concretos. São Paulo, Companhia das Letras,
2003. (Org. Maria Eugênia Boaventura)
CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e modernidade em Mário Faustino.
Universidade Federal do Pará, 1986.
Folha do Norte, 26 de novembro de 1962. Belém-Pará.
Folha do Norte, 1949. Belém-Pará.
O Liberal, 23 de maio de 1985. Belém-Pará.
Folha de São Paulo, 30 de junho de 1895. São Paulo.
O Diário, Ribeirão Preto, 16 de julho de 1966. Minas.
Asas da Palavra
181
182
Asas da Palavra
À PROCURA DE SENTIDO EM
MÁRIO FAUSTINO
SINTAXE E LEITURA
Sérgio Sapucahy
Mestre em Teoria Literária
Professor da UNAMA e da UEPA
Asas da Palavra
183
E
stava lá Aquiles, que abraçava
Estava lá Aquiles, que abraçava
Enfim Heitor, secreto personagem
Do sonho que na tenda o torturava;
Estava lá Saul, tendo por pajem David,
Que ao som da cítara cantava;
E estava lá seteiros que pensavam
Sebastião e as chagas que o mataram.
Nesse jardim, quantos as mãos deixavam
Levar aos lábios que os atraiçoaram!
Era a cidade exata, aberta, clara:
Estava lá o arcanjo incendiado
Sentado aos pés de quem desafiara.
E estava lá um deus crucificado
Beijando uma vez mais o enforcado.
Mário Faustino. Os Melhores Poemas.
1. Justificando
Este é mais um exercício analítico a que vimos nos dedicando
em nossas aulas, com o objetivo da valorização do conhecimento gramatical, sobretudo o morfossintático, nesses tempos em que docentes e
discentes, por vezes, questionam sua necessidade. Para desenvolvê-lo,
retomamos as lições de Maria Luiza Ramos em Fenomenologia da Obra
Poética, sobre a integração dos estratos ótico, fônico, morfossintático e
retórico na construção dos poemas . Associamo-las àquelas, inesquecíveis, de Albeniza de Carvalho e Chaves, em um curso de Estilística, nos
anos setenta quando, por meio do soneto “Estava lá Aquiles, que abraçava”, ocorreu nosso primeiro contato com a obra poética de Mário
Faustino.
Para isso, submetemos o texto selecionado a uma leitura analítica a partir do estrato morfossintático com a expectativa da revelação de
sentidos que enriquecem ainda mais sua plurissignificação.
2. O Estrato Morfossintático
184
Assim apresentado, na seqüência ininterrupta de seus quatorze
versos, o soneto se deixa ler com mais extensão e profundidade, evidenciando sua camada sintática. Focalizando nela o nosso olhar, após a
Asas da Palavra
leitura de contato, podemos encontrar a primeira grande unidade de
sentido do poema, desenvolvida nos sete primeiros versos, interrompida pela intercalação da segunda grande unidade, do oitavo ao décimo
verso, e prosseguindo até o derradeiro: a união dos contrários e o espaço ideal.
Essa ‘fôrma’ sintática que acolhe e harmoniza os contrários (
Aquiles/ Heitor /, Saul / David; Seteiros / Sebastião, Lúcifer / Deus;
Jesus / Judas), ora explícitos ora metaforizados, molda-se com notável
paralelismo sintático, a partir do enunciado que se manifesta no título,
inicia o primeiro verso e se retoma anaforicamente quatro vezes, uma
para cada um dos pares-personagem do poema.
O poeta que afirmara ser a
“Vida toda linguagem
frase perfeita sempre, talvez verso,
geralmente sem qualquer adjetivo,
coluna sem ornamento, geralmente partida.(...)”
não pode prescindir da adjetivação para a especificação de cada um dos
pares eleitos por ele. Por isso a ‘fôrma’ se faz e se refaz com a precisão
das formas paralelas, a repetir a mesma estrutura em que se destaca a
topicalização do verbo predicador na oração matricial: “Estava lá
Áquiles, que”. Pode-se visualizar a estrutura
O1
SV
V
Mod
SN
N
Mod
O2
Estava
lá
Aquiles
que...
cujo conhecimento sintático do leitor recupera, imediatamente, como
ordem direta:
Asas da Palavra
185
O1
SV
N
Mod
SN
V
Mod
O2
Aquiles
que...
estava
lá
Esse mesmo conhecimento permite fruir da adjetivação analítica, desenvolvida como em “...que abraçava..., ...que na tenda o torturava...”; reduzida como em “...tendo por pajem David..., ...Beijando uma
vez mais o enforcado.”
A ‘fôrma’ se revela como precisa arquitetura sintática, constituída de períodos com estrutura regularíssima, manifestada por meio de
períodos coordenados justapostos, separados quase sempre pela pausa
mista do ponto e vírgula, para não interromper, de todo, o fluxo da
leitura. Essa ´forma´ é manifestação da face clássica da poética de Mário Faustino, estrutura necessária à harmonia entre os contrários que o
poema e o poeta desejam.
Mas a primeira unidade de sentido evidenciada por essa leitura
não se restringe à apresentação dos contrários. Ela também propõe,
desde o início do poema, o elo com o espaço ideal, a segunda unidade:
“Estava lá...”
Como nos ensina AZEREDO, 2000:
“... há boas razões para considerar que
há apenas um verbo estar (intransitivo),
e que as diferenças convencionalmente
estabelecidas não dizem respeito ao verbo,
mas ao constituinte que o complementa.”
Com essa concepção, o verbo ‘estar’ significa, e muito, no poema. Todos estavam lá. Topicalizado, de pronto modificado pela forma
adverbial, flexionado no passado inconcluso, ele se torna a porta de
entrada para as camadas significativas mais profundas do texto. “Estava lá” não só traduz a localização dos pares-personagens como também sinaliza para o feito de colocá-los lá: um desejo do eu-lírico narrador.
186
Nota-se que o advérbio pronominal ‘lá’ aparentemente situa as
personagens distante do eu-narrador e do tu-narratário (leitor), ambos
ficcionais. Entretanto, esse mesmo ‘lá’ instaura o jogo da interlocução
dentro e fora do texto. Conduz o leitor ao desejo também do poeta, ou
Asas da Palavra
seja, da relação ficcional narrador / narratário à histórica, autor / leitor.
Aberta a porta, encaminhamo-nos a uma re-leitura da segunda
grande unidade de sentido:
“(...) Nesse jardim, quantos as mãos deixavam
Levar aos lábios que os atraiçoaram.
Era a cidade exata, aberta, clara: (...)”
O ‘lá’ se explicita: jardim, cidade. Sintaticamente, dois períodos,
um complexo e um simples. O primeiro, analítico, vale-se ainda de recursos mais elaborados como a topicalização do modificador adverbial. Recurso preciso, porque esse é o tema do qual , nesse momento, o poema
quer falar: jardim, espaço privilegiado. O sujeito, “quantos”, quantificador
genérico, apenas reitera a explicitação anterior( Aquiles, Heitor, seteiros...),
ao mesmo tempo que amplia a possibilidade numérica da população desse paraíso sonhado pelo eu-narrador: ‘quantos’, uma multidão, talvez.
Mas a subordinação adjetiva destaca o antagonismo histórico: “...que os
atraiçoara”.
E o jardim se torna um macrocosmo: “Era a cidade exata,
aberta, clara.” O espaço ideal se configura na síntese, depois de ter
sido desvelado pelo eu-narrador. A adjetivação ternária define-o: exata,
aberta, clara. Precisão, liberdade, transparência.
A ‘fôrma’ sintática, por meio da qual lemos o poema até aqui,
pode ser vista numa conclusiva configuração geométrica:
Contrários
Espaço Ideal
Contrários
A figura nos permite visualizar os contrários convergindo para
o espaço ideal: jardim, cidade, um éden que só a ficção possibilita ao eunarrador.
3. O Estrato Semântico
É importante ressaltar, mesmo sob o risco da redundância, que
o texto é tecido de muitas tramas e separar uma ou outra somente se
justifica quando a finalidade é destacar de que modo elas concorrem
para a construção de sentidos. Em se tratando de textos literários, a
maior participação dessa ou daquela, posta em relevo, gera preciosos
efeitos de sentido. Cabe também reiterar que o ato de ler será tanto ou
mais proficiente quanto mais extensos forem os conhecimentos
lingüísticos e de mundo, concretizadores da leitura.
Isso posto, observemos como o estrato semântico preenche a
Asas da Palavra
187
‘fôrma’ sintática já apreciada na sua construção clássica, harmoniosa,
geométrica.
Como leitor, impomo-nos, então, o desafio de encontrar o(s)
sentido(s) maior(es) latentes nas camadas profundas do poema.
No caso específico de “Estava lá Aquiles, que abraçava”, pertencente ao conjunto “Sete Sonetos de Amor e Morte”, é momento de
recordar o já referido primeiro contato com o obra do poeta piauiense /
paraense. Estávamos em 1978, em uma das salas de aula da UFPA. Mestra
Albeniza propõe àquela primeira turma da Pós-Graduação Lato Sensu do
Curso de Letras o desafio de apontar o tema do soneto. Após leituras de
contato e reflexão, as respostas choveram: Perdão, Amor, Reconciliação,
Contraste, Paraíso... Todas recusadas pela mestra, ainda que conferisse a
elas a categoria de subtemas.
Néscio, desconhecia as pesquisas de Albeniza Chaves sobre a
obra de Mário Faustino. Além de néscio, leitor ingênuo.
Leiamos, agora, a partir dos recursos sintáticos levantados:
paralelismo sintático, com a insistente retomada anafórica, construtor
da primeira unidade de sentido – os contrários; adjetivação oracional
analítica e sintética; topicalização do predicador; intercalação da segunda unidade de sentido – o espaço ideal, a receber os contrários e a iluminar todo o poema.
Evidente a união dos aparentes contrários no espaço edênico.
Focalizemos esses contrários, sujeitos dos enunciados. Ódio e inveja
construíram suas relações.
Por que, então, o eu-lírico os reconcilia? Que traços têm em
comum?
As respostas a essas indagações remetem a uma interpretação,
algo freudiana, da íntima relação entre ódio e inveja, e da fragilíssima
fronteira entre o ódio e o amor. Só se odeia e se quer destruir aquilo
que, inconscientemente, se deseja. Beleza, virilidade, grandeza são objetos de desejo presentes na relação histórica entre os componentes de
cada um dos pares-personagem. Mesmo os seteiros, legionários romanos, viris como Sebastião, encantam-se com a quase impossível união
entre beleza e virilidade do Santo Cristão indiferente ao sofrimento.
É preciso reconciliá-los. O poeta o faz, rompendo a barreira
que separa o amor do ódio (“E estava lá um deus crucificado / Beijando uma vez mais o enforcado”). Historicamente, o beijo-traição
de Judas se transforma no beijo-perdão de Jesus.
188
E por que os reconcilia? Talvez fosse suficiente como resposta, a
beleza plástica verbalizada no poema por meio das personagens. Exemplo disso a metáfora do “arcanjo incendiado”. Mas pode-se ir além,
Asas da Palavra
apropriando-se do conhecimento de Benedito Nunes, contemporâneo,
amigo e crítico da obra de Mário Faustino. O filósofo e crítico literário
acentua a visão heraclitiana de mundo do poeta:
“Tudo que é contrário se concilia e
das coisas mais diferentes nasce a mais
bela harmonia, pois tudo se engendra
por via de contrastes. Melhor é a
harmonia oculta do que a aparente (Nunes, 1966)”
A união dos contrários no espaço ideal concebido pelo poeta se
dá, evidentemente, pelo amor. Mas um amor singular, interiorizado / negado, para cuja realização plena somente restava o espaço utópico. “... a
cidade exata, clara, aberta.” Esse amor singular emerge das camadas profundas de “Estava lá Aquiles que abraçava” assim como em “O mundo que venci deu-me um amor.”
“(...) Amor feito de insulto e pranto e riso,
Amor que força as portas dos internos,
Amor que galga o cume ao paraíso.
Amor que dorme e treme. Que desperta
E torna contra mim, e me devora
E me rumina em cantos de vitória...”
O amor singular, ou o “amor que não ousa dizer seu nome” é o
amor entre os iguais que, pelas veredas da poesia, une os iguais e o euficcional no espaço do poema, também este exato, claro, aberto.
Conclui-se a leitura desenvolvida com a ilusória separação entre
forma e conteúdo e com a pretensão de afirmar, nesses tempos de tantas inquietações lingüísticas, a relevância do conhecimento gramatical
para o enriquecimento do conhecimento de mundo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEREDO, José Carlos de. Fundamentos de Gramática do Português. Rio
de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2000.
CHAVES, Albeniza de Carvalho e. Tradição e Modernidade em Mário Faustino.
Belém, GEU – UFPA, 1986.
FAUSTINO, Mário. Os Melhores Poemas. São Paulo, Global. s/d.
NUNES, Benedito. Introdução. In. Poesia de Mário Faustino. 1966, pp. 8 e
9.
Asas da Palavra
189
190
Asas da Palavra
MÁRIO FAUSTINO
E A RECONSTRUÇÃO OLÍMPICA
DO ESPÍRITO PELA PALAVRA
Júlia Maués
Mestre em Teoria Literária
Professora da UNAMA e do CEFET
Asas da Palavra
191
I
ntrodução
Mário Faustino alimentava projeto de escrever um poema em
larga escala , uma escrita do Poema que converteria em linguagem,
desejo quase missão para que ... “poesia e vida” seguissem paralelas
(Cf. Nunes: 1963) . A poesia seria a sua própria vida em processo, tarefa
existencial, como ação “no sentido autêntico, do pensar verdadeiramente,
e trabalhar sem o risco de alienação” (Nunes:1963, Cf. Chaves, Albeniza,
1986).
Com essa escolha de vida, segundo ainda Benedito Nunes, MF
jogava um lance decisivo. Um lance de dados como Mallarmé no poema “Um Coup de Dés”, no sentido de acatar que sua poesia seria parte
do Livro – instrumento espiritual -, do qual o poeta participa com sua
aventura poética-existencial, equilibrando-se no fio (“arame” para Max
Martins), nexo relacional de toda poesia seguindo a idéia de que “Tout
devient suspens, disposition fragmentaire, avec alternance et vis-a-vis
...”. A variedade dos livros desenha um único livro: cada livro é único e
singular, mas também a repetição do livro único. Todos os livros estão
a escrever um só livro.
Para Benedito Nunes, MF manteria uma afinidade eletiva com
Mallarmé, sem que essa afinidade esgotasse o alcance do seu projeto
poético-existencial: a existência do poeta em situação, ao mesmo tempo
circunstancial de suas experiências literárias, culturais e históricas, aliadas aos temas do amor da morte do sexo e da conquista de si mesmo,
que adquiririam uma feição épica, tal qual os “Cantos” de Ezra Pound.
Apesar de o alcance do projeto de MF não ter se exaurido na
aproximação com a poética de Mallarmé, gostaria de me deter nessa
afinidade eletiva, uma das opções desse projeto, como o foram Pound,
Jorge de Lima e Einsestein, naquilo que for tangencialmente pertinente
no ideal de vida perfeita x linguagem imperfeita, tematizado no poema
“Vida Toda Linguagem” de Mário Faustino, aqui reproduzido.
Vida toda linguagem,
Frase sempre perfeita, talvez verso,
Geralmente sem qualquer adjetivo,
Coluna sem ornamento, geralmente partida.
192
Vida toda linguagem,
Há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
Asas da Palavra
Aqui, ali, assegurando a perfeição
Eterna do período, talvez verso,
Talvez interjetivo verso
Vida toda linguagem,
Feto sugando em língua compassiva
O sangue que criança espalhará – oh metáforas ativa!
Leite jorrando em fonte adolescente,
Sêmen de homens maduros, verbo, verbo.”
Vida toda linguagem –
Como todos sabemos
Conjugar esses verbos, nomear esses nomes:
Amar fazer, destruir,
homem, mulher e besta, diabo e anjo
e deus talvez, e nada.
Vida toda linguagem
Vida sempre perfeita,
Imperfeitos somente os vocábulos mortos
Com que um homem jovem, nos terraços do inverno, contra a chuva,
Tenta faze-la eterna – como se lhe faltasse
Outra imortal sintaxe
À vida que é perfeita
Língua
Eterna.
MALLARMÉ E A LÍRICA MODERNA
Situada no desafio de se fazer linguagem e romper a ausência da
palavra que nos nomeie, a lírica moderna reduz ao máximo a presença
do eu da emoção que tenha uma origem no sujeito, suprimindo essa
presença como o próprio Mallarmé afirma em “A crise do Verso”: “a
obra pura implica o desaparecimento da elocução no poeta, que cede a iniciativa às
palavras pelo encontro de suas singularidades mobilizadas, elas se iluminam com os
reflexos recíprocos como um rastro de sobre o fôlego lírico ou a dicção pessoal entusiasta da frase”.
Assim os poetas tornam-se aqueles que estariam a escrever um livro completo que recuaria de seu poder de palavras para presentificar o seu
poder de silêncio, como se a poesia não devesse tudo dizer, mas evocar e
sugerir, sem, contudo, deixar de lado a consciência da plenitude da linguagem na poesia, pois “no poema, há o isolamento da palavra de sua comunicação prosaica”. Das palavras isoladas o poeta faz uma “palavra total, nova,
estranha”, com um poder encantatório no mesmo sentido latino de sedução. O verso, portanto, deve reduzir-se a uma única palavra que tenha poder
encantatório.
Ao fato de o poeta situar-se não como o eu próprio, mas como
um um-outro traduz, segundo Hugo Friedrich, uma das vertentes mais
abrangentes da lírica moderna, também caracterizada como
Asas da Palavra
193
desumanização. Esse princípio traduz em Mallarmé o mais radical abandono da lírica baseada na vivência e na confissão, ao mesmo tempo,
comporta algo distinto do entusiasmo e do delírio – antes “uma elaboração precisa das palavras a fim de que se torne uma voz que oculte
tanto o poeta quanto o leitor” (Friedrich, Hugo: 1973, Cf. 111). Isso
pode ser obser vado em “ Igitur” (1869), na cena dialogada de
“Herodiade” (1864) e nos poemas cujo tema primordial é o amor e a
morte “em que a palavra só descobre seu destino de ser logos no limite
do silêncio, mas que também nele comprova sua insuficiência” (p.112).
Assim Mallarmé conduz o processo que, desde o inicio do século XIX, rejeita e reage contra o mundo comercializado e o desejo de
decifração cientifica do mistério do universo. Como disse Mário Faustino,
“a um mundo infame, como ainda é, o Rimbaud que o rejeitava, reagiu
rejeitando também a própria poesia. Mallarmé que o rejeitava, reage,
refugiando-se na poesia” (Coletânea, 2, 1964). Este refúgio, porém, é
representado pelo mais tenaz trabalho que rejeita a inspiração subjetiva,
prejudicial, em nome de uma vigilância técnica do poeta, que, afinal,
cada vez mais, reativa o poder mágico da linguagem.
O paroxismo desse trabalho, levado às últimas conseqüências aparece no poema “Un Coup de Dés” (1897), quando Mallarmé atinge os
objetivos prenunciados no poema “Salut” que serve de introdução ao
seu volume de poesia, a partir das três forças fundamentais de sua lírica e
de seu pensamento: ”solidão (a situação principal do poema moderno),
recife (contra o qual naufraga), e estrela (a idealidade inacessível que é a
causa de tudo)” (Friedrich, Hugo, p.119).
Essas forças aparecendo como temas ou motivos, obedecem ao
esquema ontológico da obra de Mallarmé, cuja linguagem tem o poder
de aniquilar objetivamente os objetos da realidade empírica para reconstruí-los na poesia onde recebem a existência espiritual. A linguagem,
porém, eternamente inferior enquanto nomeação ordinária e, infinitamente superior uma vez disposta poeticamente, impede, mesmo assim,
que o homem chegue à perfeição ou a reconstrução olímpica do seu
espírito.
Em “Un Coup de Dés”, a temática – que ultrapassa a de “Igitur”
- é o fato de que nem mesmo o nada é alcançado, porquanto o pensamento não pode escapar aos acidentes (da linguagem e do tempo)” (id.,
p.131). Trata-se de um tipo de aspiração que contém um apelo ascendente à meta suprema da poesia através da possibilidade da criação. Em
seguida, porém “o arco desce”, a obra, consciente dessa possibilidade,
atesta a impossibilidade desse alcance – permutando assim a “consciência dolorosa de que aquela terra existe (a terra da idealidade), e obrigará
sempre a poesia a elevar-se até ela, mas também, a levará sempre ao
fracasso -, com a vantagem de que no próprio fracasso está garantida a
existência invisível da idealidade” (ibid., p.131).
194
Para Otávio Paz, “Un Coup de Dés” é a condenação da poesia
Asas da Palavra
idealista, como “Une Saison en Enfer” de Rimbaud teria sido da materialista “(1982, trad. P.110). Essa condenação, porém, abre um período na poesia moderna cujo modelo nos é oferecido na forma do poema
com a originalidade que convém ao fato de ser ele um poema crítico, ou
seja, “aquele poema que contém a sua própria negação e que faz desta o
ponto de partida do canto, a igual distância da afirmação e da negação”
(id., p.111).
A poesia, nesse sentido, é a única possibilidade de identificação
com o absoluto, e, no entanto, fracassa por não conseguir abolir o acaso –
e salva-se, se o poema é, ao mesmo tempo, crítica dessa tentativa, uma vez
que o poema apresenta, apesar da negação, uma exaltação jubilosa do ato
poético. Não nega o acaso, mas o neutraliza, pois “todo pensamento emite
um lance de dados” (toute la pensée émet un coup de dés). Essa possibilidade
completa-se a partir de cada poema ou lance de dados que possa atingir
um ponto absoluto – “qualquer ponto único que o sagre” (qualqui point
dernier que le sacre). Otávio Paz assinala que esse ponto pode ser “o de cada
leitor” ou mais exatamente de cada leitor (comte total en formation), lembrando que no ensaio “Le Livre a Venir” (1959) Maurice Blanchot escreve
que “Un Coup de Dés” contém a sua própria leitura – e que, portanto, a
noção de um poema crítico implica a noção de uma leitura: “os brancos,
os parênteses, a construção sintática tanto quanto a disposição tipográfica
e, principalmente o si comportam um possibilidade de reflexão das palavras e das frases entre si mesmas” (Paz, Otávio, op. cit. p.113) que, ao
afirmar a impotência da palavra diante do silêncio absoluto afirma também a plena soberania dessa mesma palavra.
A partir daí não se pode falar na poesia que contenha uma idéia
ou uma aventura absolutamente real porque Mallarmé compreendeu
que a única palavra verdadeira, e talvez e a única realidade do mundo, se
chama possibilidade infinita” (id., p.114). “Un Coup de Dés” é a forma
de uma possibilidade, um poema fechado ao mundo, mas aberto ao
espaço sem nome.
Por outro lado, Mallarmé previu a incorporação pela poesia
moderna dos processos utilizados pelo jornalismo, pela publicidade, pelo
cinema e por outros meios de reprodução visual que vêm transformando a escrita e a disposição visual da palavra no papel. A página, a partir
daí, não é senão a representação do espaço real onde se estende a palavra, convertendo-se em “uma extensão animada, em perpétua comunicação com o ritmo do poema” (id. Ib, p.119). O espaço em branco que
representa o silêncio diz algo que os signos não dizem.
MÁRIO FAUSTINO E MALLARMÉ: VIDAS VERBALIZADAS
Mário Faustino não só compreendeu Mallarmé como assumiu o
desafio de retomar o nexo relacional da Poesia a escrever o único Livro,
com a missão de fazer o novo a partir do compromisso tão bem estabelecido no poema “Vida Toda Linguagem”, cujos “traços materiais do agônico
trabalho de criação verbal” ou “vestígios do labor criativo” do espólio
literário de MF, foi publicado e comentado por Benedito Nunes junta-
Asas da Palavra
195
1
Faustino, Mário; pesquisa e
organização de Maria
Eugênia Boaventura, São
Paulo: Companhia das
Letras, 2002.comentado por
Benedito Nunes, 1
mente com os antecedentes do poema “Romance”, no artigo “A poesia
do meu amigo Mário” que precede a leitura dos poemas de “O Homem e
sua Hora e outros poemas”, organizados por Maria Eugênia Boaventura,
1
em 2002.
No artigo, Benedito Nunes comenta a identidade entre vida e
linguagem ou entre a vida e a palavra (verbo) existente no poema como
“o ciclo da mesma metáfora da recíproca entre vida e linguagem, que
individualiza a forma definitiva desse elogio à vida potência do Verbo
seminal, poético” (idem, p. 61).
Como na aventura épica de Riobaldo em “Grande Sertão: Veredas” de Guimarães Rosa, que repete como um refrão “viver é muito
perigoso”, esse elogio é anaforizado no poema “Vida toda linguagem”
com um verso semelhante, garantindo bem mais que uma combinação
estilística - uma ressonância poética -, repercussão intermitente, ritmada
a reunir em si um aforismo ontológico, que condiz com a nossa relação
vida/morte/beleza/perfeição.
Essa repetição ressoa intermitente, latejante na recepção estética do poema, cujo ritmo peculiar imprime um eco definitivo da
presentificação em nossa existência da linguagem, cuja poeticidade é
dada àqueles que fazem da poesia seu próprio ato de viver. Dada a poucos que chegam ao limiar da possibilidade de outro lance de dados, que
fisgue o acaso e o recoloque na linha espiral do nexo poético da vida.
E se para Mallarmé as palavras não eram o nada, mas a Idéia, o
signo puro que deixou de apontar para as coisas e que não é nem o ser
nem o não-ser, algo não mais ligado à emoção, contendo assim em seus
primado algo de mortífero, uma negação que faz sofrer, e que sugere
um certo tipo de loucura, há o recolocar em outra instância essa emoção perdida e só reencontrada no ritmo grave e suave ao mesmo tempo
que nos embala e nos remete fortemente à procura do realinhamento
de nossa passagem, tangenciamento ou inserção no “arame” que dê
sentido a nossa aventura existência - com um beleza que, felizmente,
apesar de trágica nos recompõe, nos convida a ser o que somos.
É assim que título/verso de “Vida toda linguagem” apresenta
o desejo de experienciar o verbo/convite para que participemos do
universo único, circular e caleidoscópico da linguagem universal, circunscrito na resposta/poema de MF, uma forma de celebração, quase
êxtase religioso que nos resgata a vida de sua banalidade diária.
O poema atesta o desejo de encontro do homem com ele mesmo, consciente de que a linguagem é uma forma possível de fazer essa
aproximação, embora possa correr o risco de nada alcançar, de nada
ver, de nada conseguir a não ser a afirmação de uma elocução mágica,
estranha e irresistível.
196
Confirma-se assim o tipo de dificuldade com que a poesia mo-
Asas da Palavra
derna confronta o leitor, segundo Otávio Paz que:
“não se origina tanto de sua complexidade (Rimbaud é
mais simples do que Gôngora). Quanto do fato de que, como
o misticismo ou o amor, ela exige entrega total (e também
uma vigilância total) ... É uma experiência que implica a
negação do mundo exterior (embora essa negação possa ter
caráter provisório, como ocorre na reflexão filosófica ... É, de
uma só vez, a destruição e a criação de palavras e significados, o reino do silêncio, mas ao mesmo tempo é também uma
busca: palavras buscando a Palavra”. (Otávio Paz: 1973,
p. 5)
O poeta escolhe as palavras para se fazer linguagem diante da
vida. Mas palavras são a face anversa da realidade, assim sendo porque,
segundo ainda Otávio Paz, “a atividade poética nasce do desespero diante da onipotência da palavra e finaliza com o reconhecimento da onipotência do silêncio”. O poeta faz com que o problema da linguagem
seja, na verdade, o problema ontológico da vida da qual consegue avizinhar-se pela crença no poder paradoxal das palavras. E assim ele nos
reinventa e nos deixa participar de sua aventura, pela existência de uma
vida convertida em poesia pura – resquício, herança, da magia das palavras no homem.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
CHAVES, Albeniza de Carvalho. Tradição e Modernidade em Mário Faustino.
Belém: Universidade Federal do Pará, 1986.
FAUSTINO, Mário. O Homem e sua Hora e outros poemas, Pesquisa e organização de Maria Eugênia Boaventura, São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio & CAMPOS, Haroldo
de. Mallarmè, São Paulo: Perspectiva, 1974.(Signos, v.2).
MALLARMÈ, Stéphane. Poésis. Preface d’Yves Bonnefoy. Paris: Éditions
Gallimard, 1992.
FRIEDRICH, Hugo. A Estrutura da Lírica Moderna.trad. Marise
M.Curiani. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
PAZ. Otávio. Signos em Rotação. São Paulo: Perspectiva, 1982.
Asas da Palavra
197
198
Asas da Palavra
O TEMPO DA
CRIAÇÃO
EM O HOMEM E SUA HORA1
Benilton Cruz
Professor da UFPA, do Curso
de Letras, CUBT - Abaetetuba
1
Asas da Palavra
Este artigo faz parte da
pesquisa “Uma Poética da
Voz: Aspectos do
romancero medieval em
García Lorca e Mário
Faustino” subvencionada
pelo PROINT da UFPA, e
conta com os bolsistas
João Rosemildo e Ivonice
Gonçalves, ambos
estudantes de Abaetetuba.
199
Preocupa-te apenas com estas poucas coisas e dispense o resto. Não te
esqueças de que cada um só vive o momento presente, um momento
infinitamente pequeno. Fora isso, já foi vivido ou é duvidoso. Assim, de
pouca coisa vive o homem. Apenas desse canto de terra onde mora.
Pouca coisa, a glória póstuma, mesmo que duradoura, já que depende
de criaturas miseráveis, que breve morrerão, e nem a si mesmas conhecem bem, quanto mais ao que há muito já se foi.
MARCO AURÉLIO, Meditações.
O
2
Os poemas citados neste
artigo foram tirados de O
Homem e sua Hora e
outros poemas. Pesquisa e
organização: Maria
Eugênia Boaventura. São
Paulo : Companhia das
Letras.2002.
3
Ver o interessante livro
GLEISER, Marcelo. A
Dança do Universo. Dos
Mitos de Criação ao Big
Bang. São Paulo :
Companhia das Letras,
1997, p. 276.
tempo, o questionamento mais vital da metafísica, será analisado em alguns poemas de Mário Faustino em seu livro O Homem
e sua Hora2 , na difícil pretensão de dizer mais sobre o tempo do
poema e menos sobre o tempo em si. Embora seja necessário ver as posições clássicas acerca do tempo como o absoluto-newtoniano, ou o relativo-einsteiniano, ou o histórico ou o metafísico em sua menor hipótese,
o nosso objetivo é mostrar que o tempo, enquanto matéria da poesia nem
sempre é uma medida, um movimento, um princípio, uma ordem ou uma
duração. A pergunta é: seria o tempo do poema o tempo da criação? Um
tempo próprio? Constatação do momento criativo, captação suprema do
instante criador? O instante em si, talvez a única realidade temporal?
Outra pergunta que ficaria à parte, mesmo porque não será respondida aqui é: o tempo conjuga com a realidade verbal da linguagem
humana? Vamos ver que a poesia nos dá algumas brechas para estacionarmos no momento, o instante da criação, esse tempo do poema para
fixarmos o mais difícil ainda, o relâmpago da temporalidade. Sim, ainda
bem que o tempo não é a maior questão, pois a morte, a que marcamos
com um nome e uma data, assusta um pouco mais. Menos assustador, e,
entretanto, mais enigmático é ver em um poema como “ Sinto que o
mês presente me assassina” a junção desses dois enigmas, o tempo e a
morte, ainda sem uma análise mais detalhada desse encontro.
Voltando para a questão do tempo, uma das novidades, ref ere-se à teoria do matemático lituano H er mann M inkowski, a que
f unde tempo e espaço em uma realidade quadridimensional, o espaço-tempo, ou seja, uma dimensão para o tempo e três para o espa3
ço . É como se o movimento, a unidade referencial tempo-espaço,
fosse um trem em que cada comboio tivesse um vagão para o tempo, e o espaço três. Ora, se o tempo-espaço pode ser
quadridimensional, será que ele não pode ser penta-, hexa-, hepta-,
octa-, enea- decadimensional? Não vamos dilatar esse trem em questões mais polêmicas, uma vez que ainda existem os intervalos entre
os vagões. “E o tempo na verdade tem domínio”. Será que só na
poesia?
Na obra poética de Mário Faustino, o tempo é uma das
recorrências mais evidentes, e no seu livro não são poucas. Do primeiro
200
Asas da Palavra
ao último poema, claro que não necessariamente em todos, há passagens sobre marcações temporais:
Quem fez esta manhã, quem penetrou
À noite os labirintos do tesouro,
Quem fez esta manhã predestinou
Seus temas a paráfrases do touro,
As traduções do cisne: fê-la para
Abandonar-se a mitos essenciais,
Desflorada por ímpetos de rara
Metamorfose alada, onde jamais
Se exaure o deus que muda, que transvive.
Quem fez esta manhã fê-la por ser
Um raio a fecundá-la, não por lívida
Ausência sem pecado, e fê-la Ter
Em si princípio e fim: ter entre aurora
E meio-dia um homem e sua hora.
(Prefácio, p. 71)
“Manhã”, “noite”, “aurora”, “meio-dia”, “hora”, são palavras que,
no poema faustiano, assim como em nosso cotidiano, nos remetem à
idéia da noção temporal advinda da observação de acontecimentos sucessivos. Essa forma temporal é a que predomina, como a mais elementar, a
mais visível, a partir do convívio do homem com a natureza, por isso a
noção, no início referida, como a mais vital das questões, pois o que está
em jogo são os afazeres, o trabalho, a lida e a luta do homem no seu dia a
dia, e isso repete-se no poema. Entretanto, essa noção do tempo é ampliada, nos poemas de Mário Faustino, para o Tempo da Criação, uma forma de domínio do tempo para que se manifeste o estado permanente da
poesia.
Sabemos que, essencialmente, é o movimento dos astros que dá
a medida do tempo. Isso aprendemos principalmente a partir Isaac
Newton, quando, por exemplo, ouvíamos do professor de geografia “a
rotação da Terra determina o dia, e a rotação da Terra ao redor do Sol
determina o ano”. Sim, essa determinação, esse absoluto, não deixava
muita questão em uma época em que se andava de carruagem e de
navio à vela. Com Albert Einstein, na Era Atômica, e do foguete, o
espaço é curvo e o tempo é relativo. Sim. Mas ambos, tanto Newton,
como Einstein, referem-se ao movimento. As duas teorias são, em sua
essência, absolutas.
Agora abordando algo mais complexo, a eternidade, esta foi tomada como o primeiro arquétipo do tempo. Isto assinalaria uma dimensão temporal do tamanho do universo. Como se tempo e universo fossem de um mesmo tamanho: o do infinito. Platão, não menos ficto que
Plotino, impôs mobilidade à imagem da eternidade, e a esse movimento
chamou de tempo. Essas duas hipóteses formam nossa idéia mais comum sobre o tempo e ajudaram a converter o tempo em uma convenção de princípio e fim, talvez a mais impressionante de todas as conven-
Asas da Palavra
201
ções, a que foi muito bem aproveitada pelo Cristianismo.
Faustino corrobora com essa noção, só que mais plástica e não
menos diferente:
“No princípio
Houve treva bastante para o espírito
Mover-se livremente à flor do sol”
(Legenda, p. 79)
Assinalar um princípio, como um tempo determinado, uma ordenação, revelaria e justificaria o ato criador. Essa conjunção é permitida na
religião. Talvez esteja aí uma das forças da religião? Ela explicaria melhor e
mais convincente que a ciência ou a filosofia? Tomando dois pensadores
para uma breve comparação, constata-se que nem sempre foi assim: em
Heráclito a força poderosa do rio não cessa uma pausa para o princípio ou
para o fim; para Santo Agostinho, ao usar o temo “eternidade”, há uma
pausa,” nada é sucessivo, tudo é presente”. Parece que a dialética de Heráclito,
tão bonita e tão poética, sai perdendo para a força expressiva da palavra
“eternidade” de Agostinho. Como aproveitar a eternidade? Parece que o
Verbo tem esse papel.
Quem fecunda, essencialmente para Santo Agostinho, é a Palavra, e o poeta confirma:
Há entretanto um verbo, um verbo sempre, e um nome
Aqui, ali, assegurando a perfeição
Eterna do período, talvez verso,
Talvez interjetivo, verso, verso.
Vida toda linguagem,
Feto sugando em língua compassiva
O sangue que criança espalhará – oh metáfora ativa!
Leite jorrado em fonte adolescente,
Sêmen de homens maduros, verbo, verbo
(Vida toda linguagem, p.82)
A Palavra foi dita para criar o mundo, o tempo, as imagens... e a
Palavra (com P maiúsculo) deve ser “plantada”, “germinada” – a Palavra, então, seria a semente de Deus. Aí se explica até o celibatarismo de
padres e freiras. Mas, comenta o bispo de Hipona, quase reconhecendo
que palavra e tempo teriam realidades diferentes, basta conferir XI capítulo do livro XI das suas Confissões. Desta maneira, como aproximar o
tempo da Palavra ou da palavra?
202
Fazer referência a Santo Agostinho quando o assunto é tempo,
aqui, pode ser até banal, mas foram os cristãos, os primeiros a imporem
linearidade no tempo. “Para o cristão, o primeiro segundo do tempo
coincide com o primeiro segundo da Criação”, é o comentário de Borges
na História da Eternidade, principalmente ao se referir a Swedenborg,
mais do que a Santo Agostinho. Interessa à lógica do princípio, a lógica
Asas da Palavra
da ordem o que justificaria a lógica da criação. Agora, um drama se
manifesta na poesia de Mário Faustino: Como congelar, como suspender, uma imagem fugidia na linearidade do tempo? Parar o tempo, como?
O Verbo que planta e germina pode assegurar o momento?
Não vou me alongar mais: treze séculos depois das Confissões,
um judeu errante e perseguido pelos próprios judeus, que sabia a Bíblia de
cor, pensaria que o tempo seria a maneira da imaginação tentar medir a
duração. Neste caso, o tempo restringir-se-ia à imaginação que atua no
tempo presente, daí ser sempre presente, por outro lado, a eternidade
seria o “não-tempo”, onde a existência e a essência se encontrariam. Portanto, para Spinosa, a eternidade seria imóvel. Para que serve essa imobilidade? Onde a encontramos?
Fixar o relâmpago. A eternidade spinosiana, a imóvel, assim, aplacaria a terrível sucessividade do tempo. Não esse desenrolar histórico, tão
afeito aos românticos, não justifica o poema, mas sua capacidade de reter a
mobilidade do sucessivo, isso sim interessa ao poeta.
Em si princípio e fim: ter entre aurora
E meio-dia um homem e sua hora.
Sendo a criação, o poema, a obra ou mesmo a morte (em parte uma
libertação), interessa ao poeta, em seu apogeu (o meio-dia) revelar ao homem a sua hora (a derradeira duração, a que lhe assegura a supressão do
terror da sucessividade e a própria glória do instante).
Noutro poema, Mensagem, o fazer poético aponta um caminho
para essa eternidade
Em marcha, heróico, alado pé de verso
Busca-me o gral onde sangrei meus deuses:
......................................................................
Dize a eles que vinham
Tecer silentes minha eternidade
(Mensagem, p. 74)
O título é sugestivo, e nesse poema opera-se a Palavra como o
“templo justo”, a Palavra que ressurge da extrema purificação pela água,
relembrando uma cena genesíaca, o Dilúvio, um princípio ordenador e
purificador:
Asas da Palavra
Apanha estas palavras do chão túmido
Onde as deixo cair, findo o dilúvio:
Forma delas um palco, um absoluto
Onde possa dançar de novo, nu
Contra o peso do mundo e a pureza dos anjos,
Até que a lucidez venha construir
Um templo justo, exato, onde cantemos.
(Mensagem, p. 74)
203
É possível renovar o que foi dito e o por dizer porque a palavra
é esse palco, ou seja, ação, “um absoluto”, o que é a própria militância
poética de Mário Faustino. No caso, a ação, a que removerá todas as
impurezas do discurso, para a dança do corpo nu recomeçar, mas desta
vez, com bastante lucidez, aliás essa é a poética de Mário Faustino: o
trabalho extensivo do fazer poético com muita disciplina e lucidez.
No poema “Noturno” mostra-se visivelmente a estagnação a que se
encontra o mundo, a arte, a poesia... e até mesmo a verdade salvadora
4
O tempo do poema é bem
analisado no trabalho de
Leonardo Martinelli, em seu
ensaio, Ferreira Gullar e o
tempo do poema na revista
Inimigo Rumor, nº3, setdez, 1997.
Nem uma só verdade resplandece
Neste verão sonhado por abutres,
O ano inteiro, o outro ano, e o outro,
Mentido pela mímica de um bufo,
Contam falsas proezas de funâmbulo.
E os saltos já não podem mais traçar
O mito que exercemos, a parábola.
Alardes, fugas, flâmulas. Palmeiras
Partilhando o resgate da beleza
Das nuvens criadoras de uma estrela,
De nada mais que uma. O saltimbanco,
Mirando-se nas poças, rejubila.
E ressoa na flauta de anteontem
O repouso de um pântano...
Quanto foste traído! O luar torto
Raiva no campo aberto onde esta noite
Um profeta estremece no seu túmulo.
Talvez um dos mais autobiográficos de seus poemas. Escrito,
com certeza, em um momento em que se abate o lutador por reconhecer extremamente árdua a sua militância com os versos. A consciência
de um tempo bom, quente, talvez a sua juventude, o “verão”, entregue
às carniças, os tormentos do mundo e não os do labor da poesia. Esse
poema é sobe o cansaço, e mostra que a poesia é a mais humana das
humanas artes. Aí, o tempo parece não ter fim: “O ano inteiro, o outro
ano, e o outro”.
204
Vê-se, nos poemas que completam o livro, referências ao tempo
de criação, o tempo intelectivo4 , sentimental e essencialmente um tempo épico-lírico, talvez aqui a melhor parte deste artigo, típico dos grandes poetas do século 20 como, Fernando Pessoa, em Mensagem, García
Lorca, no Romancero Gitano, Yeats, no Sailing to Byzantium, apenas para
exemplificar.
Et in saecula saeculorum: mas
Que século, este século – que ano
Mais-que-bissexto, este –
Ai, estações –
Esta estação não é das chuvas, quando
Asas da Palavra
Os frutos se preparam, nem das secas,
Quando os pomos preclaros se oferecem.
(Nem podemos chamá-la primavera,
Verão, outono, inverno, coisas que
Profundamente, Herói, desconhecemos....)
Esta é outra estação, é quando os frutos
Apodrecem e com eles quem os come.
Eis a quinta estação, quando um mês tomba,
O décimo-terceiro, o Mais-que-Agosto,
Como este dia é mais que sexta-feira
E a hora mais do que Sexta e roxa.
Aqui,
..................................................................
(O Homem e sua hora, p. 106.)
Um quase épico, mas essencialmente um poema lírico, Faustino,
com isso, como todo grande poeta, faz do tempo sempre um tempo do
momento (para não dizer do presente, como muitas vezes fez Drummond e
Bandeira) tanto em sua obra poética como crítica. Dominar o tempo para
estabelecer a ordem e a criação: não é tempo de chuvas e nem de secas, a
quinta-estação, o décimo-terceiro mês (que nome teria: poesia? eternidade? O espaço entre os vagões na teoria de Minkowski? Melhor deixar
inominável para a criação pensar).
Agora negar o tempo e suas medidas limitadas tem um preço: a
constante presença da morte por perto. A morte não é inimiga do poeta, é sua confissão. Um de seus poemas mostra isso “Sinto que o mês
presente me assassina”, da célebre frase “E o tempo na verdade tem
domínio“, este que a meu ver, é um dos mais ousados da poesia escrita
na língua portuguesa.
Apenas para lembrá-lo, e já terminando este artigo (que continurá
em uma segunda parte exclusivamente mostrando no poema Romance a
herança dos Romanceros por via de um García Lorca) ninguém, no
Brasil, fez o que Mário Faustino fez. Em tão pouco tempo sua militância
poética foi responsável por algo nunca antes visto na nossa poesia: a
abolição total das amarras cronológicas, ou seja, a melhor poesia de
todos os tempos é a poesia do tempo todo, e não necessariamente do
presente.
Ninguém foi mais moderno, no jornalismo literário, do que Mário
Faustino. A democratização da poesia no jornal nunca antes havia sido
concretizada. E a testemunha ocular de tudo isso foi nada menos que o
Jornal do Brasil. Isso, claro, a professora Maria Eugênia explica melhor
do que eu na série de oito volumes que a Companhia das Letras pretende publicar sobre o nosso poeta.
Só queria lembrar que Mário fez do jornalismo crítico-literário
aquilo que o poeta faz no poema: respeitar o tempo da criação, anular as
barreiras que impedem a criação.
Asas da Palavra
205
O TEMPO DA DESTRUIÇÃO
Ao procurar o tempo da criação, o poeta se depara com o tempo da destruição. Ao mergulhar no tempo, uma realidade que nem sempre coincide com a da palavra, o poeta paga um preço muito alto. Volto
a falar do seu mais assustador poema
Sinto que o mês presente me assassina,
As aves atuais nasceram mudas
E o tempo na verdade tem domínio
Sobre homens nus aos sol de luas curvas,
Sinto que o mês presente me assassina,
Corro despido atrás de um cristo preso,
Cavalheiro gentil que me abomina
E atrai-me ao despudor da luz esquerda
Ao beco de agonia onde me espreita
A morte espacial que me ilumina
.................................................................
(Sinto que o mês presente me assassina, p. 92-93)
Nem Ars Poetica, nem Ars Patética. E quando se descasca a
linguagem começamos a ver coisas, a terrível nudez do tempo pode
muito bem se assemelhar à terrível nudez da beleza. Mas vou negar aqui
o sentido de vidência neste poema, que muitos defendem. A linguagem
nem sempre representa a realidade. O poema é a prova disso, ele é capaz de cortar os nexos espacios-temporais, e talvez anular o tempo em
todos os seus sentidos, e simplesmente resumir: o tempo não existe, o
que existe é o momento. Para ser mais contudente: a linguagem não
pode servir-se apenas à realidade ou à língua, serve-se à criação. A linguagem tem que servir à criação que é ela mesma um lugar do homem
no mundo, o seu momento. O resto se aproxima do suicídio ou da morte,
daí também o tempo ser bem-vindo para enforcar os falsos poetas.
Há de se precisar do tempo para separar o que não foi engolido
injustamente por ele, já que ele a todos corrói. Assim, o poeta tem o
poder de enfrentar o tempo. Tem um segredo da divindade, o da inteligência de dominar o tempo. Mário Faustino como ser humano temeu a
morte e como poeta fez essa confissão: o tempo de criação é também o
tempo da destruição, e isso está dentro, no ser, condição do ente, onde
nasce a morte, conforme lembra a citação de Ferreira Gullar, que abre
este artigo.
Qual a segurança que nos permite a palavra diante da sua
fragilidade verbal? Ainda mais diante da volátil condição cronológica. Nossa única vitória seria esse instante, o do poema, a vitória
sobre a morte, por isso Mário Faustino, constantemente, recebia esses avisos, não necessariamente presságios, mas o prêmio pela afronta
206
“Como ia morrer, foi-lhe dado o aviso
Na carne, como sempre ocorre aos seres vivos;
Asas da Palavra
Um aviso, um sinal, que não lhe veio de fora
Mas do fundo do corpo, onde a morte mora”
FERREIRA GULLAR, Nova concepção da morte.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. por: Pietro Nassetti São Paulo :
Martin Claret, 2002.
AURÉLIO, Marco. Meditações. Trad. por: Alex Marins. São Paulo : Martin
Claret, 2002.
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas, vol. 1. São Paulo : Globo, 2001.
CADERNOS DE TERESINA. Revista da Fundação Cultural
Monsenhor Chaves. Ano I, Nº 1, Teresina, abril de 1987.
CHAVES, Albeniza de Carvalho. Tradição e Modernidade em Mário Faustino.
Belém : Universidade Federal do Pará, 1986.
EULÁLIO, Carlos E. M. Mário Faustino: Literatura Piauiense em Curso.
Teresina : Corisco, 2000.
FAUSTINO, Mário. De Anchieta aos Concretos. Org. de Maria Eugênia
Boaventura. São Paulo : Companhia das letras, 2003.
______________. O Homem e Sua Hora e outros poemas. Org. de Maria
Eugênia Boaventura. São Paulo : Companhia das letras, 2002.
______________. Poesia de Mário Faustino. Introdução de Benedito
Nunes. Rio : Civilização Brasileira,1966.
GLEISER, Marcelo. A Dança do Universo. Dos Mitos de Criação ao Big
Bang. São Paulo : Companhia das Letras, 1997
MARTINELLI, Leonardo. Ferreira Gullar e o tempo do poema. In:
Inimigo Rumor, revista de poesia, nº 3, set-dez, 1997, p.39-46.
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SPINOSA, Baruch. Vida e Obra. Trad. sob licença da Globo. São Paulo
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Asas da Palavra
207
208
Asas da Palavra
ESTRATÉGIAS DA DEMOLIÇÃO:
A LINGUAGEM CRÍTICA DE
MÁRIO FAUSTINO
Relivaldo de Oliveira
Mestre em Planejamento do
Desenvolvimento - NAEA
Asas da Palavra
209
E foi assim que do alto da minha “prosopéia”, como se dizia,
então, de prelúdios de Eliot, como I’m moved by francies, que
Mário Faustino (morto em 1962) e eu recitávamos em dueto em
face de alguma mostra de estupidez espantosa de nossos políticos e
colegas de imprensa...
Paulo Francis, Trinta anos esta noite: 1964 o que vi e vivi.
E
I
xiste uma dimensão da obra de Mário Faustino a ser analisada. Trata-se de sua crítica. Essa afirmação apenas pode
ser entendida se concebermos que sua poética já teve os
fundamentos elucidados por Benedito Nunes, restando apenas observar as características que podem ainda ser entendidas como
epifenômenos da explicação maior. O próprio ensaísta já explicitou alguns dos fundamentos sobre a obra crítica do poeta piauiense-paraensecarioca-cosmopolita e esses, em sua maioria, já são conhecidos e já foram discutidos por outros estudiosos. O que de novo, então, temos agora?
Temos a publicação de sua crítica em um exemplar que é parte
das edições que estão sendo lançadas referentes ao trabalho do autor de
O homem e sua hora. De Anchieta aos concretos: poesia brasileira no jornal
traz à tona a, em grande parte inédita, produção que o escritor realizou
no suplemento dominical do Jornal do Brasil, na página Poesia-Experiência, entre 1956 e 1958. A obra é composta dos textos críticos sobre a
poesia brasileira, do período colonial, como o próprio título explicita,
ao tempo do surgimento da chamada vanguarda concretista, em fins
dos anos 50.
Os textos são parte fundamental do material necessário para
uma análise mais completa e profunda da linguagem crítica de Mário
Faustino. Linguagem crítica porque o autor é adepto de um método de
crítica, o que, se não o diferencia de outros, inscreve sua crítica em um
lugar de destaque na produção literária brasileira. Este trabalho pretende ser uma leitura de sua crítica, observando nela os seus fundamentos,
em essência, aqueles provenientes de Ezra Pound – o que não o impediu de criar os seus próprios. Fundamentos em geral apontados, mas
nem sempre explicitados e comparados com sua crítica.
Faustino foi uma espécie de crítico-artesão que tomou a obra a
ser analisada como um organismo, para subverter, na maioria das vezes,
o suposto artesão que nela existia. Desconstrução. Desconstruir, para
construir, ou, se quisermos, de acordo com o lema, que serviu como
frontispício de sua página: “repetir para aprender, criar para renovar”.
II
210
Asas da Palavra
Sem deixar ao largo as outras influências do autor, influências
importantes como T.S Eliot para ficarmos no âmbito da crítica, o grande lastro da crítica de Mário Faustino é Ezra Pound (1885-1972). A
partir dos conceitos do escritor norte-americano – notadamente no ABC
to Reading (1934) (ABC da Literatura); esse sendo a obra mais citada por
Mário Faustino nos textos aqui estudados – é que seu método crítico
será fundamentado,
“O método adequado para o estudo da poesia – diz Ponud – e
da literatura é o método dos biologistas contemporâneos, a saber, exame cuidadoso e direto da matéria e contínua COMPARAÇÃO de uma
‘lâmina’ou espécie com outra” (Pound, 2001, p. 23). Tal metodologia
pode ser observada, progressivamente, se tomarmos a definição de Pound
para grande literatura, que seria “simplesmente linguagem carregada de
significado até o máximo possível”, conceituação simbolizada pelo verbo alemão “Dichten”, concentração, correspondente ao substantivo
“Dichtung”, poesia; “a mais condensada forma de expressão verbal”
(Pound, 2001, p. 40). As palavras podem ser carregadas de significado
segundo a classificação em “fanopéia, melopéia, logopéia. Usamos uma
palavra para lançar uma imagem visual na imaginação do leitor ou a
saturamos de um som ou usamos grupos de palavras para obter esse
efeito” (Pound, 2001, p. 41).
Nesse método deve ser incluída a classificação das três classes
de pessoas que criam a literatura: Inventores, “homens que descobriram um novo processo ou cuja obra nos dá o primeiro exemplo conhecido de um processo”; Mestres, “homens que descobriram um certo
número de tais processos e que os usaram tão bem ou melhor que os
inventores”; Diluidores, “Homens que vieram depois das duas primeiras espécies de escritor e não foram capazes de realizar tão bom trabalho” (Pound, 2001, pp. 42-43), e existem ainda os Bons escritores sem
qualidades salientes, Beletristas e Lançadores de moda.
Compare-se os pressupostos do método poundiano com a explicação do autor para as pretensões da página Poesisa-Experiência:
Asas da Palavra
Pretende-se mostrar. Mais vale uma só visão da coisa que 37
discursos sobre ela. Aqui se mostra poesia. Poesia de ontem, de
hoje, até aquilo que talvez seja a poesia de amanhã. Mostrandoa, se possível, de maneira crítica, demolindo e promovendo, procura-se manter viva a poesia do passado. Exibindo-a, do mesmo
modo, procura-se reconhecer a poesia nova: Make it new [...]
Irrita-se para manter vivo o ambiente cultural [...] Insiste-se na
superioridade da invenção sobre a imitação, por mais que incerta
aquela e perfeita esta. Na maior importância do perito em relação ao amador. No fato de que a verdadeira poesia é feita com
palavras vivas, como palavras coisas, e não apenas, e muito menos com conceitos, impressões, confissões... Insiste-se na importância da linguagem como utensílio único e como terreno de cultivo da atividade poética, e como ‘requisito indispensável ao desen-
211
volvimento da cultura como um todo’( Faustino, 2003, pp. 485486).
As inter-relações metodológicas são perceptíveis: a inovação
como uma das preocupações de Pound que Faustino ratifica, inovação
baseada na experiência, na tradição, no que já foi escrito; a valorização
da observação direta do objeto; a superioridade da invenção, Inovadores e Mestres; a instigação crítica, outro pressuposto poundiano que
afirma que o crítico não deveria ser um chato; a importância do perito;
da palavra (máximo de significado, “Dichten”) e da linguagem para a
cultura, essa última característica podendo ser entendida de acordo com
a afirmação de Pound de que “uma nação que negligencia as percepções de seus artistas entra em declínio. Depois de um certo tempo ela
cessa de agir e apenas sobrevive” (Pound, 2001, p. 78).
Literatura de Colônia
Primeiro autor analisado por Mário Faustino, o jesuíta José da
Anchieta, seria “o primeiro poeta dentre os muitos, jesuítas ou não, que,
até Gregório de Matos, escreveu no Brasil ou sobre o Brasil” (Faustino,
2003, p. 44 e 50). Classificação atribuída tanto pela realização da influência estrangeira (pioneirismo), como pela incorporação da língua indígena (temas nacionais). Anchieta, então poderia ser classificado como
um diluidor, com potencial técnico demonstrado na longa citação feita
por Faustino – incorporação do método da análise, através da apreciação direta do objeto. Diferindo de Bento Teixeira, que com a Prosopopéia
apenas “imita” Camões de Os Lusíadas, afirma o autor.
Se Anchieta é um diluidor competente e Bento Teixeira um
diluidor menor, Gregório de Matos, “o ‘boca do inferno’ é o primeiro
poeta de verdade que se pode, sem hesitação, chamar brasileiro”
(Faustino, 2003, p. 60). Tal classificação, é efetuada pela relevância pessoal, enquanto escritor, pela incorporação de temas nacionais (lundus,
modinhas) e pela sua qualidade técnica. O crítico faz questão de enfatizar
como Gregório se configurou em poeta social, especialmente pela sua
poesia satírica, considerada, por nosso autor como o melhor de sua
obra: “visão de mundo e ação sobre o mundo, expressão individual e
crítica social” (Faustino, 2003, p. 61), um dos preceitos do método
faustiniano-poudiano, relativos à importância da linguagem, da literatura, da arte, para uma nação. Gregório reuniria, desse modo, muitas das
qualidades relevantes na Poesia para Mário Faustino; a competência técnica nos vários estilos, (emprego da palavra exata, concentração,
“richten”, e participação social (escrita inscrita no mundo).
Destaca-se entre esses autores do período colonial Antônio Pereira de Souza Caldas, esse relevante por uma dos fundamentos críticos
de Pound que Faustino assimila, a tradução – característica que mais
tarde será retomada pelos concretistas, influenciados igualmente por
Pound:
212
Asas da Palavra
Uma das marcas de nossa deficiência cultural – diz Faustino
– é a tendência a somente levar em consideração, no julgamento
dos poetas, a sua obra original, passando-se ao largo as traduções; ora, é preciso reconhecer encontrar-se na tradução, na paráfrase, na “homenagem” (à maneira de Pound), na paródia
mesmo, um dos terrenos mais fortes – e indispensáveis – do
trabalho poético (Faustino, 2003, p. 153).
Modernistas revisados
Na parte do livro que denomina-se modernismo, o método de
crítica desenvolvido na análise dos autores continua a ser aquele por
nós já descrito. Enganam-se os que imaginam de que pelo fato da maioria dos autores criticados estarem vivos e, também em sua maioria, já
serem consagrados, Mário Faustino se furtaria da crítica dentro de seu
estilo e pressupostos. Um dos seus princípios, é movimentar o ambiente literário em questão, fazer círculos na água, na expressão de Paulo
Francis, um de seus amigos na Tribuna na Imprensa; na água de fonte que
se encontrava em crise, como depois iria constatar Mário.
E foi a partir deste postulado, como um de seus fundamentos,
que o autor analisou a publicação do livro Canções de Cecília Meireles.
Sobre um dos aspectos da poesia da autora , o crítico diz: “essas coisas,
em seu melhor, são apenas cacoetes femininos, iguais aos de Bette Davis
ou aos de Morineu. Em seu pior são vulgaridades, efeitos baratos, bric-àbrac indigno de quem escreveu, em Romanceiro da inconfidência e em Mar
absoluto, alguns dos maiores versos da língua”(Faustino, 2003, p. 183).
A afirmação, cremos, não deve ser interpretada literalmente,
como se Mário restringisse sua literatura apenas por características de
gênero – e hoje já se fala em literatura gay, acreditem; atomismo de
pós-modernistas deslumbrados. A crítica, em grande parte, está de
acordo aos pressupostos do método faustiniano; está muito mais ligada ao conceito de concentração (Richten) adotado por Mário Faustino
e ao pressuposto da palavra que se deve ligar à coisa. Pressuposto
ratificado na afirmação contida no texto sobre Cecília – bastaria esta
para explicar a crítica de Faustino – de que “o pior defeito das mulheres-poetas é pensarem – como aliás, muito homem também pensa –
que palavras bonitas, relembrando ao leitor coisas bonitas, ‘palavras
que fazem suspirar’, é pensarem que essas palavras, nelas mesmas, já
são poesia” (Faustino, 2003, p. 184) De qualquer forma, alguns críticos divergiram de Faustino (Cf. Boaventura. In: Faustino, 2003, p. 28).
E o que não dizermos da afirmação totalizante – não vai aí nenhuma
depreciação – de Alcides Villaça sobre a mulher, poeta e intelectual
Cecília: “a bela dialética – diz o crítico – entre a ação positiva da mulher e da intelectual e o recolhimento lírico mais assombrado, no qual
declinam-se e declinam altivamente (paradoxo Ciciliano?) as aspirações essenciais” (Apud Gouvêa, p. 43). O que diria Mário Faustino?
Talvez, que era melhor ir direto ao objeto (poesia, poema) e comparálo, observando suas qualidades ou defeitos próprios. Eis a diferença
Asas da Palavra
213
de metodologias.
O texto referente a Cassiano Ricardo é ainda mais explícito quanto à metodologia (linguagem, com leis e códigos) crítica de Faustino.
Inicia citando, diretamente, Pound e sua classificação dos escritores,
conforme está no início deste texto, para classificar Cassiano como um
diluidor. Vale citar o crítico Wilson Martins, coevo de Mário Faustino
na Folha do Norte: “numa das suas impulsivas simplificações polêmicas,
Mário Faustino afirmou que, até ‘João Torto’ e ‘O arranha-céu de vidro’, ele [Cassiano Ricardo] ‘não era grande coisa’, assim eliminando da
sua e da história literária do Brasil o livro [trata-se de Martim Cererê] em
que, precisamente, ele foi uma grande coisa” (Martins, 5 abr, 2003, p. 4).
Essa afirmação de Faustino consta no texto em que ele faz um balanço
do momento poético brasileiro nos fins dos anos 50 (Cf. Faustino, 2003,
p. 474); a ressalva de Martins dá uma idéia do estilo do jovem crítico.
Na essência do texto que trata sobre a poesia de Drummond,
Faustino enumera uma série de qualidades; dentre as quais estão a de
documento crítico do país que poderia muito bem representar o “Geist”
(espírito) de uma época, “Zeitgeist”, com mais propriedade que as variadas ciências que se dedicam a isso. Nesse aspecto, Drummond seria
aquilo que Pound afirmou sobre os artistas: as antenas da raça (Cf. Pound,
2001 p. 77); podendo captar os sentimentos do mundo de maneira superexcitada, indicando o espírito que sobre ela paira e, ao mesmo tempo,
característica mais enfatizada por Faustino, agindo sobre ela através de
sua arte.
Mesmo cobrando veementemente de Drummond uma maior participação nas linhas de frente em prol da cultura do país (Cf, Faustino, 2003,
p. 215), no domínio poético, Faustino, seguindo a metodologia poundiana,
considerava Drummond um Inventor; por trazer contribuições originais
ao desenvolvimento da poesia e um Mestre; por aplicar tais criações em
sua poesia, sendo “o primeiro escritor (embora em verso) do Brasil a conseguir, depois de Machado de Assis, um alto padrão daquilo que se chama em
inglês diction, isto é, adequação das palavras utilizadas ao objeto expresso”
(Faustino, 2003, p. 212).
As relações entre a crítica e a poesia de Mário Faustino já foram
comentadas, especialmente por Benedito Nunes. A concepção de poesia, ou do que ela deveria ser, do autor de O homem e sua hora, seus pressupostos críticos, podem ser entendidos como “um prolongamento reflexivo” (Nunes, 1986, p. 34) de seu único livro de poesia lançado em
1955. A importância fundamental que Faustino atribuía à linguagem,
tanto em sua obra poética, simbolizado no poema “Vida toda linguagem” de O homem..., e que é perceptível em seus trabalho crítico permanecerá indelével na sua forma de conceber a literatura, a poesia.
É nessa seara da linguagem que todos os textos críticos, como
não poderiam deixar de ser, estão enquadrados. Menos, talvez, detalha214
Asas da Palavra
Asas da Palavra
215
dos do que a revisão que Faustino realizou de Jorge de Lima. “Para nós,
todavia – diz Faustino –, pelo menos neste momento de nossa própria
evolução, é Jorge de Lima o maior, o mais alto, o mais vasto, o mais
importante, o mais original dos poetas brasileiros de todos os tempos.
Tem também a vantagem de estar morto” (Faustino, 2003, p. 217) –
lembremos da citação de Wilson Martins, a propósito do estilo de Mário.
Será nessa revisão que as principais características da linguagem
crítica faustiniana serão melhor desenvolvidas, explicitadas, detalhadas;
cada poema um comentário, cada comentário um poema. A primeira
classificação necessária sobre A invenção de Orfeu é de que trata-se de
uma experiência que pretende criar um mundo através da poesia; A
invenção... sendo uma natura naturans (Faustino, 2003, pp. 243-244), expressão que já seria utilizada por Mário Faustino em carta à Benedito
Nunes em 1957 e que vale pela corroboração da ligação entre o espírito
de sua critica e seu trabalho poético: “minha experiência – dizia Mário –
tende agora no sentido de ‘coisificar’o mais possível as palavras, reificálas usando todos os instrumentos para fazer do poema uma natura
naturans, como tu dirias” (Nunes, in: Faustino, 2002, p. 61). Compare-se
a intenção de Faustino com a sua análise sobre o livro do Jorge de Lima.
A invenção... seria:
Um mundo verbal. Um mundo de antes mesmo da criação da
palavra. Jorge, por seus processos de encantação, de nomeação
original, de repetição mágica das palavras, de designação (notar os seus freqüentes ‘estes’, ‘esses’, ‘aqueles’), cria a palavra;
percebe o mundo pelas palavras que cria e, assim, cria um
outro mundo, uma outra natureza, de palavras-objetos, de frases objetos, de estrofes-objetos, de poemas-objetos: A invenção
de Orfeu –objeto, o objeto Invenção de Orfeu (Faustino, 2003,
p. 244).
Eis a metafísica poética de Mário Faustino, que tinha na palavra
seu ente fundador. Não é à toa que em um dos comentários, Faustino
admite ter glosado um soneto de A invenção... (Cf. Faustino, 2003, p.
275). Sob essa perspectiva, ele tem mais afinidades com Jorge de Lima
do que com João Cabral de Melo Neto, ao contrário do que afirmou
José Castelo, por ocasião da reedição da obra de Faustino em 2002,
dizendo ser o autor de Morte e vida Severina, pela importância que Mário
dá à palavra, “seu grande Guru” (sic), errando igualmente, nesse mesmo aspecto, sobre Faustino ter imitado os concretistas pelo fato de ser
“um poeta arquiteto (sic) [...] um artífice” (Castelo, 2002, p. 90).
Classificação poética e novos aprendizes
Sobre os poetas pertencentes à chamada Geração de 45 é relevante assinalarmos a crítica referente a Geir Campos. O poeta estreou
em 1950 com Rosa dos rumos, na qual segundo Faustino, “o poeta parece
216
Asas da Palavra
pretender reagir às conquistas ‘dos de 22’, procurando, igual a vários de
seus contemporâneos, reviver o nosso ‘parnasianismo’” (Faustino, 2003,
p. 312). Essa avaliação é um dos aspectos apontados por Wilson Martins
(2003, 24 mai, p. 4) para o esquecimento do poeta nos dias de hoje:
Uma das razões, aliás ridículas, que parecem ter-lhe determinado o ostracismo decretado pelos diretores da opinião é o fato
de haver praticado com mão de mestre o soneto de extração
clássica. Ora, levados pelos automatismos populares, muitos
doutrinadores simplistas lançaram o descrédito sobre essa forma poética, identificando-a, por definição, com o execrado
Parnasianismo (confundido, por sua vez, com a poesia de má
qualidade). Ora, enquanto técnica poética, o soneto não é inferior, nem superior, a qualquer outra: nas mãos de um poeta
autêntico, será boa poesia.
Longe de ser um doutrinador simplista, e acreditando no soneto como forma poética, a crítica de Mário Faustino está de acordo com
seus pressupostos metodológicos, conforme vai desenvolvê-los na análise. É que a linguagem poética, como a entende Faustino, não fora bem
desenvolvida pelo autor de Arquipélago; e esse aspecto é o fundamento
de sua crítica. Mário não abdica do soneto, é que ele observa em Geir
Campos a falta de renovação da forma que ocorrera em Jorge de Lima;
a renovação, que implica em uma inovação; o ‘Make it New’ poundiano
é um dos pressupostos de sua crítica, e é também com esse que o autor
vai realizá-la no exame do poeta, novamente, através do método da
análise direta do objeto e da comparação.
Dentre os “Poetas Novos”, para o crítico, Lélia Coelho Frota,
autora de Quinze poemas, seria uma revelação. Lélia atende a um dos
pressupostos de Pound assimilados por Mário, o da indicação de sua
maior influência, Drummond, a quem ela oferece o livro. A indicação
da influência está ligada à valorização da tradição, da experiência. O
autor ou não procedendo dessa forma (não indicando a influência), é
melhor disfarçá-la o máximo possível, no sentido de uma influência
predominante, sem a dominação no texto (Cf. Faustino, 2003, p. 362).
Concretismo e linguagem
De Anchieta aos concretos traz como última seção Concretismo &
Balanços. E aqui é relevante assinalarmos a discussão feita por Mário
Faustino a respeito da situação da poesia brasileira na época e o
surgimento do concretismo. Relativo ao ano de 1956, além da de João
Cabral de Melo Neto (Duas águas), o grande acontecimento seria a exposição de arte concreta, realizada no Museu de Arte Moderna de São
Paulo, capitaneada por Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio
Pignatari, a qual Faustino saúda como “a genuína força de vanguarda de
nossa poesia” (Faustino, 2003, p. 458). São os concretistas, segundo o
crítico que “muito contribuíram para manter viva e nova a nossa poesia”. (Faustino, 2003, p. 462), afirmação que logo se transformaria em
Asas da Palavra
217
um diagnóstico preocupante para Faustino.
O crítico observa a crise da poesia brasileira e não vê grandes
possibilidades de avanço a partir dos nomes então consagrados. Cogita
a possibilidade de que isso sbeja realizado através da poesia concretista
(Cf, Faustino, 2003, pp. 461-464). Não se pode pensar que a saudação
aos concretistas e a consideração da possibilidade de renovação a partir
deles tenham feito com que Faustino se tornasse mais um membro dessa confraria – que então contaria também com Ferreira Gullar, já autor
de A luta Corporal; posteriormente saindo do movimento. O crítico apenas admitiu depois, alguma identificação de base com o movimento,
especialmente no âmbito de alguns pressupostos estéticos, Mallarmé e
Pound, em essência (Cf. Faustino, 2003, p. 478) (não é à toa que Augusto
de Campos é o tradutor do ABC da literatura). Deixou isso claro em um
texto de Poesia-Experiência, lugar onde ainda publicou textos dos
concretistas antes deles praticarem, na expressão de Wilson Martins, os
seus jogos de armar.
Na carta, já citada, à Benedito Nunes ele diria: “mas não sinto
necessidade de abolir inteiramente aquilo que os concretos chamam de
sintaxe linear [...] O motivo principal que me separa da poesia concreta
é que o que mais me interessa é poema longo: o que menos interessa a
eles” (Faustino, 2002, p. 61).
Mário Faustino não poderia abdicar daquilo que fora a quintessência de sua produção como poeta e crítico: a linguagem; suas formas,
métodos, objetivos. Queria criar um grande trabalho, um grande poema
– do qual nos restaram fragmentos – que se tornou um dos seus projetos de vida. Vida toda linguagem...
218
Asas da Palavra
1945). São Paulo: Cultrix, 1967.
MAUÉS, Júlia. A modernidade literária no Pará: o suplemento literário da Folha do Norte. Belém: UNAMA, 2002.
NUNES, Benedito. A obra poética e a crítica de Mario Faustino
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Artigos de revistas.
CASTELO, José. Feroz independência. Bravo!, São Paulo, n. 61, p. 9093. 2002.
GOUVÊA, Leila V.B. A capitania poética de Cecília Meireles. Cult, São
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MARTINS, Wilson. A crítica literária no Brasil. Fragmenta. Curitiba.
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NUNES, Benedito. O verso visionário de Mário Faustino. Bravo!, São
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Artigos de Jornais
MARTINS, Wilson. Retaguarda de vanguardas. O Globo, 5 abr. 2003.
Caderno Prosa & Verso, p. 4.
_______________. Fortuna do poeta. O Globo, 24 mai. 2003. Caderno Prosa & Verso, p. 4.
Asas da Palavra
219
220
Asas da Palavra
BREVE NOTÍCIA
DE UM POEMA,
SUAS HORAS E SUAS VERSÕES
João Carlos Pereira
Jornalista e escritor. Professor de História da
Arte na UNAMA.
Membro da Academia Paraense de Letras
Asas da Palavra
221
O
trigésimo ano de publicação de O Homem e sua Hora foi
motivo para que “O Liberal”,em sua edição de 15 de novembro de 1985 - data de aniversário do jornal – rompesse o
silêncio que cercava a lembrança de um dos mais importantes livros de poemas, em língua portuguesa, no século XX, e saísse um
Caderno dedicado à história da formação paraense do poeta Mario
Faustino que, nascido no Piauí, criou-se em Belém e daqui saiu para
cumprir seu destino iluminado e de trágico final.
Fui chamado para preparar o material sobra a vida de Mário
entre nós. Esse trabalho, que o então diretor-redator-chefe de “O Liberal”, jornalista Cláudio Augusto de Sá Leal, me propôs, na forma de um
desafio, consistia em encontrar e entrevistar os amigos de Mário Faustino.
Penso que, em vinte e um anos de jornalismo, completados em janeiro
de 2003 e todos eles vividos em torno da redação de “O Liberal” e da
TV Liberal, poucas vezes me dediquei tão integralmente à execução de
uma tarefa como essa de recuperar, pela palavra dos amigos, a presença
de Mário Faustino em Belém.
Depois de ouvir pessoas que estiveram sempre muito perto dele
e de seu coração, consegui fechar a edição, que trazia entrevistas com os
professores Benedito Nunes - apresentado como o maior amigo e crítico que melhor conheceu sua poesia – Ruy Barata, Albeniza Chaves,
Francisco Paulo Mendes e Walquíria Mello; os poetas José Ildone,
Anamaria Barbosa Rodrigues, José Maria Villar Ferreira, José Guilherme de Campos Ribeiro, Max Martins e Age de Carvalho, o romancista
Haroldo Maranhão, os jornalistas Antônio Pantoja, Ossian Brito, Mário
Couto e Maria Augusta Cotrim de Britto e uma amiga do poeta, a
senhora Yvette Vieira Pinto de Araújo, colega de Mário, ao tempo em
que trabalhavam na SPVEA, e que, no momento da entrevista, chefiava
o setor de Taquigrafia da Câmara dos Deputados. De todos recolhi informações que me ajudaram a dar contornos humanos à interessantíssima figura de Mário Faustino. Cada um me revelou o Mário que conheceu e amou. Todos convergiam para os mesmo pontos: a sensibilidade,
a doçura, a elegância, a irreverência, a beleza física, a inteligência privilegiada, a vastíssima cultura e o jeito de ser raro de um homem que, nos
escassos 32anos que viveu, esteve à frente de seu tempo e construiu
uma obra ímpar. Todos os “Mários” – e o mesmo Mário – eram, em
síntese, uma saudade especial.
Se o Caderno me deu oportunidade de conhecer e compartilhar o
Mário Faustino, de cujas feições não me recordo, embora freqüentasse a
casa onde nasci, para ouvir música clássica na companhia de meu pai, Joel
Pereira, uma entrevista me possibilitou entrar em contato com uma expe222
Asas da Palavra
rimentação poética rara. Poeta artífice, artesão no melhor sentido do
lapidador de versos, escrevia e reescrevia seus poemas até que, tendo vida
própria, adquirissem a luz que os mantêm vivos. Quem testemunhou muito
de perto esse trabalho foi dona Yvete Araújo, que trabalhava na mesma
repartição do poeta.
Um dia, estando perto dele, viu-o trabalhando um poema, cuja
versão- a segunda,conforme dona Yvete me disse – não ficou do seu
agrado. Mário riscou o texto, embolou a folha onde o havia datilografado e jogou no lixo. Dona Yvete sabia que o que estava no cesto não era
apenas um passo para a versão definitiva do poema “Mensagem” e guardou aquela bola de papel amassada. Muitos anos se passaram e ela jamais se desfez do poema porque, ainda que sujeito a mudanças, um
original de Mário Faustino é um original de Mário Faustino.
Quando já estava com a edição quase fechada, dona Yvete me mandou uma cópia do poema. Olhando um e outro textos, percebe-se como
Mário era cuidadoso, quando fazia seus versos. A ele caberia perfeitamente
uma expressão que, certa vez, ouvi do professor Inocêncio Machado Coelho, referindo-se a uma outra pessoa: “tinha as mãos de Baudelaire, porque
tudo que saia delas era perfeito”.
Para esta edição de “Asas da Palavra”, em homenagem a Mário
Faustino, pensei em apresentar as entrevistas dos amigos. Mas eram
tantas para tão pouco espaço que seria injusto, por exemplo, trazer a de
Mário Couto e deixar de lado a da professora Albeniza Chaves; ou publicar a de Campos Ribeiro e deixar a de Ruy Barata de lado. Ou sairiam
todas, ou não sairia nenhuma, porque formam um mosaico. Uma ausência comprometeria o retrato. Em um outro momento, poderão ser
publicados na íntegra. Só não posso fazer o mesmo com algumas cartas
do poeta que dona Maria Augusta me entregou e que foram ficando,
foram ficando, até que não tive mais chance de devolvê-las à sua dona.
São lindas cartas de amigos, cuja privacidade, imagino, deve ser, de alguma forma, preservada. Como nem remetente, nem destinatária estão
mais entre nós, guardo-as como lembrança da delicadeza da jornalista
Maria Augusta, uma das mulheres mais inteligentes e finas que conheci.
O que de mais curioso e de vida mais autônoma poderia extrair daquela
pesquisa está aqui reproduzido: uma versão do poema e sua forma assentada, que entrego ao leitor, com a marca da caneta do próprio Mário,
que fez um X sobre os versos e os assinou como Marius Faustinus.
Asas da Palavra
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