A representação paterna nas famílias do século XXI

Transcrição

A representação paterna nas famílias do século XXI
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, agradecemos nossos familiares e amigos pelo
apoio e paciência que a nós dispensaram durante a elaboração deste
trabalho.
Agradecemos também à professora Maria Helena Palma de
Oliveira por ter nos ajudado a estruturar nosso pensamento, o que
tornou possível esta pesquisa. Em especial, agradecemos ao
professor Marcos Alberto Tadeu Cipullo e a professora Yael Gotlieb
Ballas por terem nos ajudado, respectivamente, nas análises dos
desenhos e na fundamentação teórica do trabalho.
Agradecemos ainda à Marina San Martin Machado e Maribel
San Martin Manara, diretoras do Berçário Petita Ltda EPP, que
gentilmente nos autorizaram a realizar a pesquisa em suas
dependências, bem como a seus funcionários que facilitaram o
acesso às crianças e seus responsáveis.
1
DEDICATÓRIA
Dedicamos esta pesquisa às crianças participantes e suas
mães, que tão gentilmente se colocaram à disposição e tornaram
possível a realização deste trabalho.
2
RESUMO
No Brasil colonial as famílias eram numerosas e centradas na
figura paterna, porém esta formação patriarcal sofreu grandes
reveses. Família é hoje o espaço da vida privada em que cada um de
nós divide com outros afeto e compromissos fidelizadores. Novos
modelos de família surgiram, reforçando a noção de família nuclear,
que funciona como núcleo que fará a passagem da criança do mundo
biológico ao mundo social.
Nosso trabalho pesquisou a reprodução do modelo do pai,
quando a criança é privada do contato diário, devido a uma separação
conjugal. O discurso social parece diminuir a importância deste,
colocando-o, na separação, como alguém que só a pensão alimentícia
tem a oferecer aos filhos, sustentando que a maternidade é algo da
natureza da mulher, algo genético e, portanto, é com ela que a criança
deve permanecer em situações de separação.
3
Nossa pesquisa buscou entender como a criança representa a figura
paterna nos dias atuais e como ela percebe a importância desta, através de um
estudo com quatro crianças pré escolares que moram com os pais e também com
quatro que moram somente com suas mães, devido à separação conjugal. A
intenção foi de procurar saber se há conseqüências nesta representação quando
ocorre a separação dos pais.
Essa pesquisa pretende contribuir à prática da psicoterapia familiar no
sentido de construir conhecimento para que esse profissional possa adequar-se a
uma realidade em transformação. O terapeuta não pode ter uma idéia pré
concebida de um modelo de família ideal. Cabe a este ajudar seus clientes a
procurar um caminho possível de ser seguido pela família com a qual interage,
percebendo que cada família é um universo diferente.
O presente estudo tem como referencial teórico a Psicanálise e a Teoria
Crítica. Da Psicanálise trouxemos conceitos de complexo de Édipo e do papel
essencial do pai na formação da personalidade do indivíduo. Na Teoria Crítica,
discutimos os conceitos de criança e de família. Nosso trabalho utiliza como base
um modelo da família nuclear burguesa, mas levando em conta a idéia de não
naturalidade, de mutabilidade e de diversidade do conceito de família. Durante a
pesquisa, procuramos ouvir cada criança como ser humano com significados
afetivos que a determinam e não considerá-la como um aglomerado de condutas
definidas a priori.
Para podermos entender como a criança representa o pai utilizamos uma
adaptação da técnica do desenho de família com história segundo Walter Trinca.
As técnicas gráficas estão a favor da psicologia clínica, pois no caso de crianças,
a expressão verbal pode sofrer inibições ou dificuldades, e nesse caso a
expressão gráfica é mais satisfatória.
A realização do nosso trabalho propiciou a percepção das diferenças na
representação paterna entre os dois grupos de crianças. As crianças vindas de
famílias patriarcais representam sua família, onde aspectos relacionados ao
Complexo de Édipo aparecem visíveis em seus desenhos e relatos sobre os
mesmos. Por outro lado, percebemos que as crianças vindas de lares onde
residem só com suas mães, nem sempre representam a figura paterna em seus
desenhos e, quando o fazem, fantasiam uma reconciliação dos pais. Desta forma,
acreditamos que, com nossa pesquisa, conseguimos atingir nosso objetivo.
4
Porém, tendo em vista este resultado, é preciso considerar que, em nossa
sociedade, ainda existe uma modelo idealizado de família. Não se pode dizer que
somente a presença física do pai é essencial, e sim o papel psicológico exercido
por este na vida do filho. Essa questão, dada a sua relevância, acreditamos ser
mais adequadamente explorada em uma nova pesquisa.
5
“O essencial não é o que foi feito do homem,
mas o que ele faz daquilo que fizeram dele”.
Satre
6
SUMÁRIO
1.
INTRODUÇÃO...................................................................................... 7
2.
REVISÃO DA LITERATURA............................................................... 13
2.1.
A história da criança e da família - Uma abordagem da teoria crítica... 8
2.2.
A separação dos pais e o inconsciente da criança - Uma abordagem
psicanalítica ........................................................................................ 14
2.2.1. O divórcio - contar ou não contar?...................................................... 16
2.2.2. A função positiva dos deveres ............................................................ 18
2.2.3. A relação com os novos parceiros dos pais........................................ 20
2.3.
O mito patriarcal ................................................................................. 23
2.4.
Observação sobre o Édipo: O papel essencial do pai ........................ 25
2.5.
A ilusão da universalidade .................................................................. 30
3.
ABORDAGEM METODOLÓGICA ...................................................... 38
3.1.
Sujeitos da pesquisa........................................................................... 33
3.2.
Instrumentos de pesquisa................................................................... 34
3.3.
Procedimentos da pesquisa................................................................ 35
3.4.
Tratamento e análise dos dados......................................................... 36
4.
RESULTADOS E DISCUSSÕES DOS DADOS OBTIDOS ................ 46
4.1.
Os casos do estudo ............................................................................ 41
4.1.1. Alice .................................................................................................... 41
4.1.2. André .................................................................................................. 49
4.1.3. Bianca................................................................................................. 53
4.1.4. Carla ................................................................................................... 59
4.1.5. Cassia................................................................................................. 66
4.1.6. Giulia .................................................................................................. 73
4.1.7. Luis ..................................................................................................... 79
4.1.8. Marcos ................................................................................................ 84
4.2.
Discussão dos casos .......................................................................... 90
5.
CONSIDERAÇÕES FINAIS.............................................................. 100
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANEXOS
ANEXO A – SOLICITAÇÃO DE AUTORIZAÇÃO DA ESCOLA
ANEXO B – AUTORIZAÇÃO DOS RESPONSÁVEIS DAS CRIANÇAS
7
1. INTRODUÇÃO
8
A família, como núcleo básico da organização humana, comporta hoje
múltiplos modelos. O clã familiar funciona como um microcosmo social que não
apenas reproduz, protege ou devolve ao mundo seus filhos, mas também
determina valores ideológicos e culturais que moldam as sociedades. A família,
vigorosa hoje como era nos primórdios da comunidade humana, é responsável
pela iniciação social do indivíduo, que a ela permanece agregado durante toda a
sua existência, por valores sentimentais, materiais e legais. Mas a família tem
passado por grandes transformações nos últimos tempos. Em seu conceito
básico, família é hoje o espaço de vida privada em que cada um de nós divide,
com outros, afeto e compromissos fidelizadores. (Psi - Jornal de Psicologia ,
2001).
A estruturação da família sempre acontece em consonância com o
momento histórico da sociedade na qual está inserida. Ariès, citado por Bruschini
(1991), nos mostra que, na aristocracia européia dos séculos XVI e XVII, não
havia separação entre o público e o privado. As famílias não se isolavam, viviam
nas ruas e nas festas. Não havia funções afetivas e socializadora por parte da
família, mas essa era constituída visando somente a transmissão da vida, a
conservação dos bens, a prática de um ofício, a proteção da honra e da vida em
caso de crise. No Brasil colonial, por exemplo, as famílias eram numerosas e
centradas na figura paterna. Era uma formação patriarcal, em que a mulher era
subalterna e os filhos seres tutelados e sem direitos. Ao homem cabia prover o lar
por meio de seu trabalho; à mulher, permanecer em casa cuidando dos filhos; a
esses, cabia estudar e obedecer à autoridade paterna. Não faz muito tempo que
esse conjunto rígido de convenções, que nos soa absurdo, demarcava os papéis
inflexíveis dos componentes de uma família. (Psi - Jornal de Psicologia, 2001).
Porém, essa formação patriarcal viveu fortes reveses a partir da metade do
século XX com o moderno capitalismo industrial. A família, hoje, explodiu em
vários modelos. Por trás dessas transformações, temos as mais diversas causas,
entre elas: a urbanização, a emancipação feminista iniciada na década de 60, o
reconhecimento do adolescente como um ser de direitos (por meio de leis como o
ECA) e a luta do movimento homossexual por direitos de cidadania. Muitos foram
os fatores que contribuíram para uma divisão de poder que desestruturou o
patriarcalismo. (Psi- Jornal de Psicologia, 2001). Ainda segundo esse trabalho,
apesar da família estar mais fragmentada, ela não está acabando. A
9
maleabilidade nas relações de poder no seio da família, fez com que novas
justaposições se concretizassem. Os recasamentos, a formação de casais
homossexuais, os lares chefiados por mulheres, por exemplo, reafirmaram o
conceito de família não feito apenas baseado em laços consangüíneos, mas
também de laços afetivos. Esses novos modelos reforçam a noção de família
nuclear. Sempre haverá algum núcleo que fará a passagem da criança do mundo
biológico para o mundo social. Na realidade, apenas estão se criando outros tipos
de estruturas que fazem a mediação entre o filhote e o mundo. A diversidade
cultural proporcionada pelos novos modelos familiares faz com que o indivíduo
tenha uma formação mais enriquecedora do que era possível no castrador
sistema patriarcal.
A diferenciação entre as famílias tradicionais e as novas formações só
pode ser feita em tese. Na prática, as coisas se misturam. Não se pode afirmar
que um modelo está superando outro. Em um país de dimensões continentais
como o Brasil, as tendências convivem proximamente. A estrutura familiar evoluiu
para formas diversas que interagem. A família antes tinha estruturação
homogênea, com rigidez e inflexibilidade. Hoje, a família não tem regras nem
lugares definidos. (Psi - Jornal de Psicologia, 2001). Um bom exemplo dessa
multiplicidade de formatos das famílias brasileiras são os dados do censo
demográfico 2000 (IBGE, 2000). A pesquisa aponta que no ano de 2000, 24,9%
dos lares brasileiros eram chefiados por mulheres. Em pesquisas datadas de
1998, podemos observar que vem crescendo o número de dissoluções conjugais
no país, com dados de 193.244 divórcios e separações, frente a 698.614
casamentos registrados no mesmo ano. A pesquisa mostra que deste número de
dissoluções conjugais, cerca da metade são separações judiciais e destas, em
torno de 15% foram separações não consensuais.
Com a emancipação feminina e a inserção da mulher no mercado de
trabalho, o modelo de família patriarcal, aos poucos, foi sendo modificado, já que
a mulher não mais dedica sua vida somente aos filhos, obtendo certa
independência do marido. Na década de 90, a mulher fortaleceu sua participação
no mercado de trabalho, com melhor poder aquisitivo e maior escolaridade,
aumentando sua responsabilidade pelo comando das famílias. Esse dado pode
ser percebido em pesquisas do IBGE, que afirmam que, em 1981, 16,9% dos
domicílios
eram
chefiados
pelas
mulheres;
dado
esse
que
cresceu
10
significativamente, pois em 1990 a porcentagem subiu para 20,3% e, em pesquisa
feita em 2001 esse percentual chegou a 24,9%. (Brasil, IBGE – 2001).
Nas novas estruturações familiares, as mudanças nas relações de gênero,
nas posturas estabelecidas aos papéis masculinos e femininos, têm sido bastante
significativas. A tendência da família é suprimir esses opostos de gênero. Não se
pode mais imaginar o pai como oposto à mãe, ou o feminino como oposto do
masculino. Essas posturas vivem juntas e em constante movimento. Porém,
temos que tomar cuidado, pois, uma das características das teorias do psiquismo,
segundo Bezerra Júnior (1987), é a de pensar o homem, enquanto sujeito
psicológico universal. É necessário, segundo ele, cuidado, pois, a necessidade de
estabelecer cânones científicos, portanto, generalizantes e universais, para o
estado da atividade psíquica humana, pode servir de caminho a uma concepção
abstrata, a-histórica do sujeito. Seria como se todos os indivíduos se
emocionassem, afligissem-se e reagissem a esses sentimentos da mesma
maneira em todo lugar e em qualquer época. Nesse sentido, nos aprofundaremos
um pouco mais no capítulo do referencial teórico.
Conforme pesquisa feita em um site estabelecido por uma associação de
pais que luta pela guarda compartilhada no Brasil, pudemos perceber que cresce
o número de pais interessados em participar efetivamente do desenvolvimento de
seus filhos, apesar de estarem separados de suas esposas. Segundo o que se
observa nessa fonte, o homem de hoje parece não mais exercer somente o papel
de provedor, e sim se mostra interessado em se aproximar dos filhos
afetivamente. Esse fato pode ser confirmado no site pela luta dos pais a favor da
guarda compartilhada, e também pela guarda alternada, onde ambos os pais
participam do desenvolvimento dos filhos. Frente a essa aproximação,
percebemos que muitas mães tentam inviabilizar essa proximidade afetiva do pai,
o que fica mais explícito em caso de separação ( www.pailegal.net ).
Com base em experiências pessoais, como os atendimentos clínicos de
psicodiagnóstico, pesquisas na internet e, até mesmo, dos conhecimentos
cotidianos podemos também embasar as afirmações acima. Pudemos verificar
também no site que em quase 90% dos divórcios, os filhos ficam sob a guarda da
mãe, e a visita do pai acontece a cada quinze dias.
Pesquisamos como fica a reprodução da figura paterna quando a criança é
privada do contato diário com o pai, em caso de separação. O discurso social
11
parece diminuir a importância desta figura, colocando-o como alguém que só a
pensão alimentícia tem a oferecer aos filhos. Pensando nestes aspectos, o
trabalho a ser desenvolvido pretende tirar a criança do lugar de objeto de disputa
e entender como ela percebe a figura paterna, e se essa representação é
construída positiva ou negativamente em casos de separação.
Nossa
pesquisa
buscou
descrever,
analisar
e
interpretar
essa
representação. O estudo foi realizado com crianças que moram com os pais e
também com crianças que moram somente com suas mães, devido à separação
conjugal, buscando perceber como aparecem os papéis tradicionalmente
reservados à família patriarcal, a mãe como figura acolhedora e o pai como a
autoridade temida, no discurso das próprias crianças.
O trabalho tem como objetivo, com base na visão da criança, entender
como ela representa a figura paterna, como percebe a importância dessa figura e
se existem conseqüências nesta representação quando ocorre a separação dos
pais. A intenção é ouvir o discurso da criança já que, em casos de divórcio, ela
quase nunca é ouvida. O propósito foi alcançado através da análise do desenho
da família, enriquecido pelo discurso da própria criança.
Em nosso trabalho, tomamos o cuidado de não usar a criança como objeto,
pois estamos preocupadas sempre com a criança cidadã. Nesse sentido,
estudamos Patto e Copit (1980) que, em uma análise qualitativa, concluíram que,
em estudos feitos a respeito de criança, esta não era focalizada em sua condição
de sujeito psicológico, em que se consideraria a sua subjetividade, mas como um
ser-substância, que se identifica através de um “aglomerado de condutas
definidas a priori pelo pesquisador”. Dessa forma, segundo as autoras, quando se
busca a objetividade e a racionalidade sobre a criança, suprime-se de seus dados
o ser humano com os significados afetivos que o determinam e, também, o
contexto social e psicológico onde a criança está inserida. Assim sendo, tivemos
a precaução de não tratar a criança como objeto de uso, mas como sujeito do
próprio assunto.
Essa pesquisa justifica-se pela necessidade de entender como é que a prática
da psicoterapia familiar precisa compreender uma realidade em transformação e
sem fronteiras definidas. Sabemos que, no contexto atual, existem vários tipos de
família e é isso que, segundo vários terapeutas da família, facilita seu trabalho. Se
o terapeuta tiver algo muito definido como bom e adequado, perderá a riqueza
12
das construções pontuais que cada família faz. A idéia é que, cada família
construa para si a identidade em que melhor esteja adequada. Antes essa área
da Psicologia mantinha uma postura intervencionista. Muitas famílias ainda
procuram a psicoterapia, buscando atingir um padrão familiar parecido com o que
é veiculado nos anúncios de margarina. Ao terapeuta cabe, nos dias de hoje,
ajudá-las a perceber essa idealização, procurando o caminho possível de ser
seguido pela família com a qual interage. A terapia da família está muito mais
construtivista. O psicoterapeuta não tem a solução pronta: ele tem que ser
também antropólogo e perceber que cada família é um universo, uma cultura
diferente.
13
2. REVISÃO DA LITERATURA
14
2.1.
A história da criança e da família – Uma abordagem da teoria crítica
A estrutura do nosso trabalho passa primeiro pelo entendimento histórico
da família e da criança. Para falarmos da criança, necessitamos entender um
pouco da evolução histórica deste conceito. Dessa forma, tivemos que fazer um
estudo sobre a evolução desse conceito. Neste sentido, estudamos Ariès (1986).
Segundo ele, “as idades da vida ocupam um lugar importante nos tratados
pseudo-científicos da Idade Média na Europa”. Na época eram empregados
termos como infância e puerilidade, juventude e adolescência, velhice e
senilidade, sendo que cada uma dessas palavras designava um período diferente
da vida. Desde essa época, adotamos algumas dessas palavras para designar
noções abstratas como puerilidade e senilidade, mas estes sentidos não estavam
contidos nas primeiras acepções. Originalmente se tratava de uma terminologia
erudita que, com o passar do tempo, tornou-se familiar. As idades correspondiam,
no espírito de nossos ancestrais, a noções positivas, tão repetidas socialmente,
que passaram do domínio da ciência para o da experiência comum. As idades da
vida eram também uma das formas comuns usadas para conceber a biologia
humana, em relação com as correspondências secretas internaturais.
Segundo o autor, existem muitos textos da Idade Média sobre esse tema.
Tratavam a infância como primeira idade, a idade em que nascem os dentes,
idade essa que dura desde o nascimento até a criança completar sete anos.
Quando a criança nascia era chamada de “enfant”, que quer dizer, em francês,
não falante. Após a infância, vinha a Segunda, que era chamada “pueritia” e que
durava até os 14 anos. Em seguida vinha a terceira idade, que era chamada de
adolescência e poderia se estender até 30 ou 35 anos. Essa idade era chamada
de adolescência porque a pessoa era grande para procriar.
Durante o século XII ocorreu uma evolução. O antigo costume se
conservou nas classes sociais mais dependentes, enquanto um novo hábito
surgiu na burguesia, onde a palavra infância se restringiu a seu sentido moderno.
A infância não se limitava pela puberdade. A idéia da infância estava ligada à
idéia de dependência, ou seja, só se saía da infância quando se saía dos graus
mais baixos de dependência. Por isso, palavras ligadas à infância iriam subsistir
para designar homens de baixa condição, como por exemplo, os lacaios,
auxiliares e os soldados. (Ariès, 1986).
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Parece que a infância não tinha a importância que tem nos dias atuais pois,
segundo o autor, até por volta do século XII, a arte medieval não representava a
infância. Parece provável que a infância não tinha lugar no mundo, pois não se
tratava de incompetência ou falta de habilidade. Para se representar crianças nas
pinturas, os artistas utilizavam desenhos de homens em escala menor. Apenas o
seu tamanho os distinguia dos adultos. A criança não estava ausente na Idade
Média, ao menos a partir do século XIII, mas nunca era o modelo de retrato real,
tal como ela aparecia num determinado momento de sua vida. Nessa época as
pessoas não se apegavam às crianças por considerarem algo como perda
eventual. Elas morriam em grande número e não se pensava, como pensamos
hoje, que a criança contivesse a personalidade de um homem. Essa indiferença
era uma conseqüência direta e inevitável da demografia da época. Persistiu até o
século XIX, no campo, na medida em que era compatível com o cristianismo, que
respeitava na criança batizada a alma mortal (Ariès, 1986).
Para entendermos o conceito de família atual, recorremos aos estudos de
Bruschini (1993), que fala sobre a evolução desse conceito historicamente.
Segundo a autora, existe uma tendência à naturalização da família, tanto no nível
do senso comum quanto da reflexão científica, que leva à identificação do grupo
conjugal como base elementar familiar e a divisão de papéis e percepção de
parentesco, como fenômenos naturais. O primeiro passo para que se possa
estudar a família deveria ser o de “dissolver sua aparência de naturalidade,
percebendo-a como criação humana mutável”, e observar que as relações entre
grupo conjugal, rede de parentesco, unidade doméstica/residencial podem se
apresentar de forma bastante diferente em outras sociedades ou diferentes
momentos históricos.
Ainda segundo este trabalho, ao lermos a literatura antropológica,
poderemos perceber que, existe uma variabilidade das estruturas familiares e que
se existisse algum grupo “natural” este seria, quando muito, a mulher e seus
filhos. Segundo Bruschini (1993) Malinovski mostrou em seus estudos, que entre
os trobiandenses, o grupo doméstico coincide com a unidade de reprodução, mas
não com a unidade de parentesco. Murphy, analisando os índios Munducuru,
descobriu que o grupo formado pelo marido, a mulher e os filhos é uma unidade
de reprodução, herança e descendência, mas não de produção, residencial ou de
comensalidade, pois na aldeia as habitações são coletivas, com dispensa e fogo
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comum, onde todos os moradores se reúnem. Esses exemplos confirmam que a
família, tal como a conhecemos, na nossa sociedade atual, não é uma instituição
natural e assume diferentes configurações em torno da reprodução.
De acordo com Bruschini, o modelo nuclear de família, que nos parece tão
natural, só se consolidou por volta do século XVIII, segundo estudos históricos.
Na Inglaterra, por exemplo, a história da família pode ser relatada em estágios, e
é descrita a partir do período pré-industrial. Segundo ela, alguns autores ingleses,
em seus estudos, afirmam que no primeiro estágio, homens, mulheres e crianças
trabalhavam juntos tanto na casa quanto no campo e a unidade familiar era a
unidade de produção. O segundo estágio é definido pela ruptura advinda da
Revolução Industrial do século XIX e a industrialização da venda da força de
trabalho. O terceiro estágio começa no início do século XX, onde a unidade da
família é restaurada em torno de sua função como unidade de consumo. A vida se
torna mais privatizada, a família extensa cede importância à nuclear e, dentro do
casamento, os papéis sexuais se tornam menos segregados.
Ariès, citado por Bruschini (1993), afirma que, na aristocracia européia dos
séculos XVI e XVII não havia separação entre o público e o privado. As famílias
não se isolavam, viviam nas ruas e nas festas. Não havia funções afetivas e
socializadora por parte da família, mas era constituída visando somente a
transmissão da vida, a conservação dos bens, a prática de um ofício, a proteção
da honra e da vida em caso de crise. Ainda segundo Ariès, por volta do século
XVIII, com a ascensão da burguesia, a privatização da família e a passagem das
funções socializadoras para o âmbito mais restrito do lar burguês, constituem
alguns dos mecanismos fundamentais para a constituição da família moderna.
Ariès, preocupado no início com o surgimento da infância como categoria social,
mostrou como a família moderna trouxe um novo conjunto de atitudes em relação
às crianças. Ele se preocupou em mostrar em seu trabalho não só as dimensões
da família como instituição, mas também a qualidade emocional das relações
familiares, remetendo dessa forma para uma teoria psicológica da família. A partir
do século XV, o Estado passou a interferir cada vez com mais freqüência no
espaço
social antes entregue às
comunidades; o
desenvolvimento da
alfabetização e a difusão da leitura, sobretudo graças à imprensa; e o
desenvolvimento de novas formas de religião. A família muda de sentido,
deixando de ser uma unidade econômica e tendendo a ser um lugar de refúgio,
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de afetividade, onde acabam por se estabelecer relações de sentimento entre o
casal e os filhos e lugar de atenção à infância, sendo que esse lugar poderia ser
bom ou mau. A família então desenvolve novas funções. Absorve o indivíduo,
para recolhê-lo e também defendê-lo. Enquanto grupo, a família separa-se mais
do que antes do espaço público. O pai de família torna-se então uma figura moral
que inspira respeito a toda sociedade.
Ariès também mostra que, nas famílias aristocráticas do Antigo Regime
européio (séculos XVI e XVII) era atribuído pouco valor à privacidade,
domesticidade, cuidados maternos, amor romântico e relações íntimas com as
crianças. A vida emocional das crianças estava difundida através de vasta gama
de figuras adultas e não gravitava em torno dos pais. Na família burguesa, o
padrão emocional é definido pela autoridade restringida aos pais, profundo amor
parental pelos filhos, uso de ameaças de retirada de amor, a título de punição, ao
invés de castigos físicos. Na família camponesa, a autoridade e o amor estavam
repartidos por ampla rede de parentes e aldeões, as relações entre pais e filhos
não se caracterizavam por intimidade ou intensidade emocional. As sanções eram
impostas com castigos físicos, ao invés de ameaças de retirada de amor.
Segundo Bruschini (1993), na literatura sociológica, a reflexão sobre a
família predominou na teoria funcionalista que, a partir da década de 50, dominou
o pensamento norte-americano e que teve reflexos marcantes sobre a sociologia
brasileira. De acordo com essa corrente, a família é, sobretudo, uma agência
socializadora, cujas funções se concentram na formação da personalidade dos
indivíduos. Como ao longo da história a família perdeu as funções de unidade de
produção econômica e de participação política, a família teria a função básica de
socialização primária das crianças e de estabilização das personalidades adultas
da população. O funcionalismo acentua a importância da criança ter uma relação
íntima e intensa com a mãe, nos primeiros estágios de seu desenvolvimento.
Nessa família, os papéis desempenhados pelos adultos são diferenciados,
assimétricos e complementares, o que possibilita a presença de modelos
masculinos e femininos claramente definidos. Esse fato seria muito importante no
processo de formação da personalidade infantil: enquanto o pai é o líder
“instrumental” do grupo, a mãe desempenha papéis sociais de natureza
“expressiva”, voltados, principalmente, para assuntos internos da família. Nesse
modelo, a mulher deve ser esposa, dona-de-casa e mãe. Ela deve zelar pelo bem
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estar físico e emocional dos dependentes e pela estabilidade das personalidades
dos membros adultos do grupo.
A Escola de Frankfurt, citada por Bruschini como outra importante vertente
da sociologia, considera a família como agência socializadora e formadora da
personalidade dos indivíduos, mas desenvolve linha de reflexão oposta ao
funcionalismo. Faz uma crítica ao papel conservador desse grupo social e ao
elemento de dominação nele presente, cujo mecanismo central esmagador da
liberdade é a autoridade do pai sobre o filho. Lugar de adestramento para a
adequação social, na família a criança aprende a relação burguesa com a
autoridade. O filho aprende a desenvolver o respeito pela autoridade, através da
idealização da figura paterna.
No campo da psicologia, a família representa papel fundamental na teoria
de Freud. O princípio básico da psicologia freudiana é o de que a estrutura da
mente humana se forma na infância, o que desempenhou papel revolucionário no
campo científico. Freud, em sua teoria, mostrou que a mente não é algo
previamente dado, mas sim uma estrutura construída na infância, por intermédio
de um longo processo de formação da personalidade e de estabelecimento de
vínculos afetivos e emocionais, que ocorre dentro da estrutura familiar. Freud
exerceu grande influência sobre a corrente funcionalista, que dele extraiu
fundamentos do modelo de família nuclear burguesa e das relações de
dominação nela contidas. Na teoria freudiana, podemos encontrar o ponto de
partida para a compreensão da família como uma complexa teia de vínculos e de
emoções, que se expressa simultaneamente através do ódio e do amor. Os
estudos da família, depois de Freud, não podem mais analisar as relações
familiares sem levar em conta o nível psicológico das relações sociais que se
passam em seu interior. (Bruschini, 1993)
Para que a teoria crítica sobre a família seja adequada, deve-se voltar
também para o nível psicológico e formular categorias que permitam a
compreensão de estruturas familiares que divergem em termos de seu padrão
emocional. A família, além de ser um lugar onde se forma a estrutura psíquica,
constitui um espaço social distinto, na medida em que gera hierarquias de sexo e
de idade. Família é um lugar social onde as gerações se defrontam mútua e
diretamente. É o lugar onde os sexos definem suas diferenças e relações de
poder. Além da não naturalidade, da mutabilidade e da diversidade de conceito
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sobre a família, outro aspecto importante a considerar é que, o conceito de família
se refere, de um lado, a um grupo social concreto e empiricamente delimitável e,
de outro, remete também a um modelo cultural e a sua representação. Ao
analisarmos a família devemos, portanto, mover-nos tanto no plano das
construções ideológicas, quanto no de seu papel na organização da vida social.
(Bruschini, 1993).
Ainda segundo esse trabalho, a autora explica que, como grupos sociais
concretos, as famílias são unidades sintéticas ou resumidas, na medida em que a
realidade não cabe por inteiro no modelo. Na sociedade ocidental moderna, na
qual estamos inseridos, o modelo predominante de família é o grupo composto
por marido, mulher e filhos. Isso pode ser confirmado pela pesquisa do Censo
Demográfico 2000 (IBGE 2000), que aponta um número de 24075982 pessoas de
dez anos ou mais de idade casadas frente a 2793780 desquitadas, separadas e
divorciadas na região sudeste do Brasil. A relação conjugal é o elo mais forte e
mais importante do que outros laços consangüíneos, como os fraternos. O que
predomina é o parentesco bilateral. O papel do pai, via de regra, identifica-se com
o do pai biológico. O controle da sexualidade feminina apoia-se na necessidade
de determinar e garantir a paternidade biológica. Nesse sistema os indivíduos
adultos pertencem a duas famílias distintas, de origem e de procriação. A
realidade que se apresenta, porém, distancia-se bastante deste modelo nuclear e
conjugal predominante em nossa sociedade. O grupo tanto pode extrapolar o
modelo, pela inclusão de parentes e agregados, quanto nem mesmo realizá-lo,
como acontece no caso de casais que não possuem filhos, irmãos que vivem sem
os pais ou famílias nas quais está presente um só cônjuge.
Em nosso trabalho, tomamos como base a estrutura da família burguesa,
onde procuramos analisar dentro das relações familiares, como a criança
representa, nos dias atuais, a figura paterna, tanto em famílias patriarcais como
naquelas onde a criança resida só com a mãe.
20
2.2.
A separação dos pais e o inconsciente da criança – Uma abordagem
psicanalítica
Para estudarmos a separação dos pais e o inconsciente da criança,
utilizamos autores psicanalíticos. Dolto (1989), psicanalista francesa, enfoca
psicologicamente como é para a criança a situação da separação dos pais,
modificando, assim, a estrutura familiar, que deixa de seguir o padrão da família
burguesa. A autora estuda a separação dos pais de maneira a destacar a
importância da relação entre ambos com o filho. Ressalta ainda que, quando uma
criança pergunta aos pais se eles irão se divorciar, ela, na verdade, gostaria de
saber se o que está claro será assumido ou se aquela situação, a qual
normalmente só os filhos são cúmplices, continuará. É importante que os pais
expliquem aos filhos a diferença entre compromisso de marido e mulher e
compromisso de mãe, pai e filhos. O divórcio legaliza o desentendimento de um
casal, e isso traz uma solução para a angústia da criança, já que a discórdia é
assumida para toda a família e os amigos.
A autora destaca a importância da relação entre ambos os pais com o filho,
afirmando que a criança estabelece uma triangulação mãe-pai-bebê, pois um filho
é capaz de perceber melhor a voz do pai, devido ao tom mais grave, o que faz a
mãe parecer “bivocal”. Dessa forma, o pai tem um lugar na vida do filho desde o
nascimento. Dolto (1989) não contesta a díade mãe-bebê, conceito de Dr. Berge
(in Dolto, 1989), que consiste na relação de simbiose que a mãe estabelece com
o filho desde a sua concepção, e sim acrescenta o papel do pai.
Para que o pai possa ocupar este papel importante na vida da criança é
necessário que a mãe permita e incentive tal contato. Isso, de acordo com Dolto
(1989), poucas vezes acontece, principalmente com um filho menino, já que,
neste caso, a mãe representa um complemento sexual inconsciente, o que difere
da filha menina, que tende a se voltar ao pai. Esse comportamento pode ser
observado precocemente, pois é algo instintivo e inconsciente, manifestação da
diferença sexuada.
Para César (2002), o pai deve romper o vínculo simbiótico entre mãe e
filho, mas isso só acontece quando a mãe, em seu discurso, permite que o pai
seja visto como um terceiro nessa relação. Quando isso acontece, a criança
percebe que não é tudo para a mãe e passa a ver o pai como o representante da
21
lei contra o incesto. Isso é necessário para que a criança aprenda a ouvir o não, a
lidar com os limites e a se estruturar de forma saudável, sem gerar patologias.
Essa relação de triangulação é percebida inclusive na amamentação, pois,
segundo Dolto (1989), quando a mãe oferece o seio ao bebê em companhia do
marido, a criança irá se sentir saciada graças à presença do pai, que funciona
como um recurso afetivo da mãe, que passa o afeto ao filho através do alimento.
Dessa forma, há uma troca de afeto entre os três, o que traz equilíbrio ao bebê.
Ela afirma que o corpo da criança se constitui no espaço onde ela vive. Em casos
de separação, esse ambiente muda, já que um dos pais vai embora, e aí a
criança já não se reconhece, pois perde seus referenciais espaciais e temporais,
vivendo uma desestruturação. Se a criança permanece no espaço onde vivia
quando os pais moravam juntos, o divórcio é vivido de melhor forma. O divórcio
deixa uma criança muito fragilizada. Os pais devem preservar o filho fazendo com
que ele precise lidar somente com a separação, e por isso é melhor que a criança
continue a morar na mesma casa onde vivia com o casal, e que seja mantida sua
vida social, como permanecer na mesma escola, para que ela não tenha que lidar
com outros conflitos.
Para Dolto (1989), filhos de pais divorciados muitas vezes apresentam
dificuldades em traçar objetivos futuros, pois essas crianças mostram medo de
que seu casamento também acabe em um divórcio. Para elas, as referências são
oscilantes. A criança sente-se o centro do mundo e quando algo que acontece
gera sofrimento, ela acredita que é a causa da situação. É necessário dizer a elas
que não são as culpadas. Esse sentimento de culpa acontece muito em casos de
crianças que solicitam a presença de um dos pais constantemente, como, por
exemplo aquela criança que exige a companhia da mãe para dormir. Na maioria
das vezes, a mãe não consegue mostrar para a criança que ela prefere ficar com
o marido mesmo que seu filho não queira; e por outro lado, o pai não ousa
mostrar ao filho que o lugar da mãe é com ele. Nesse caso, os pais se tornam
cúmplices dos caprichos da criança, e em caso de separação, a criança acredita
que foi a causadora desse rompimento. Dolto (1989) explica que, quando a
criança acredita ser a causa da separação, é porque essa crença é também um
desejo, já que a criança deseja ser o único amor da mãe. A criança guarda uma
grande culpa disso pois acredita que o comportamento edipiano provocou ciúme
em um dos pais. Na verdade, o casal é que era frágil e não conseguiu achar
22
graça dos comportamentos incestuosos dos filhos, mostrando que eles não
podem interferir na relação do casal. Muitos dos divórcios se dão em função da
mulher deixar-se prender no papel de mãe e, dessa forma, não ser mais um apoio
ao marido, permanecendo em um estado simbiótico com o filho. Esse estado não
proporciona autonomia à criança, e deixa o filho torna-se o falo da mãe e, então, a
mãe o falo do filho, que não consegue buscar outras relações. Estes são os casos
daqueles filhos que, quando adultos, idealizam os pais e lhe dedicam a vida,
abrindo mão da própria liberdade e sentindo-se na responsabilidade de sacrificarse pela mãe, ocupando não o lugar do filho, mas de cônjuge da mãe.
2.2.1. O divórcio – contar ou não contar?
Martinez (1999) define o divórcio como sendo um período que traz uma
necessidade de se desfazer os vínculos emocionais, sociais e legais. Segundo
ele, essa dissolução é um processo complexo e demorado, e que freqüentemente
não recebe a merecida atenção, no sentido de preparar essa dissolução de forma
menos prejudicial para todos, principalmente para os filhos. Quando o casal
percebe que seu casamento não mais funciona e conclui que o rompimento é a
melhor saída precisa tomar cuidado para que o filho não seja usado como
instrumento de agressão ao ex-cônjuge, o que freqüentemente acontece, fazendo
com que a criança seja a maior prejudicada. O processo de pós-divórcio segue
um curso que pode ser dividido em dois momentos, o divórcio conjugal e o
divórcio parental.
Martinez (1999) acredita que o divórcio conjugal consiste na separação
judicial ou de fato, o que implica no distanciamento físico e afetivo, dissolvendo o
vínculo matrimonial, que organizava a família na estrutura burguesa. Esse
processo é muito doloroso para os filhos pois eles se vêem em uma situação sem
possibilidades de escolha. Para essas crianças, pai e mãe são conceitos até
então inseparáveis que trazem uma conotação afetiva e de proteção. A criança
precisa de ambos em igual intensidade, pois eles são igualmente úteis e
necessários afetivamente. Por isso o autor afirma que o divórcio conjugal
freqüentemente conduz ao divórcio parental.
Divórcio parental, de acordo com Martinez (1999), é quando o pai se afasta
abruptamente ou paulatinamente dos filhos. Isso acontece porque existe uma
23
representação social que estabelece que diante de um divórcio o pai deve ir
embora, o que traria, socialmente, uma estabilidade para o filho, já que ele não
faz mais parte do lar da criança. Os filhos passam a ser propriedade natural das
mães, e cabe a ela permitir ou não que o pai possa continuar sendo pai.
Freqüentemente, esse fato traz uma desautorização da figura paterna, o que
conduz a uma anulação deste papel. O pai é afastado de seu papel e passa a ser
colocado no lugar de culpado, como freqüentemente ouvimos as mães falarem
que o pai de seus filhos nunca ligou, não aparece.
Para Dolto (1989), é essencial que os filhos sejam informados do que está
acontecendo desde o início do processo, e de todas as decisões que o casal vai
tomando, mesmo em caso de bebês. Isso vale também para divórcios realizados
na justiça. É sempre importante explicar às crianças que as obrigações de pai e
de mãe permanecem, contando o que foi estipulado pelo juiz a respeito da guarda
dos filhos.
Todo esse processo é complicado de ser vivido pelos pais, já que eles
sabem que a separação trará sofrimento a seus filhos, mas a situação deve ser
expressa por meio de palavras; caso contrário, a criança sentirá a angústia e os
estados de excitação dos pais, o que trará um abalo na sua segurança. Quando
os filhos têm conhecimento da situação, eles não vivem um sonho de pais
inseparáveis, e isso é positivo, porque quando a criança vive a situação ela
assume inconscientemente a separação. Essa realidade deve se tornar
consciente para que seja humanizada, e não idealizada em fantasias.
(Dolto,1989)
Em uma situação de separação, o desgaste e a ansiedade são sentimentos
inevitáveis, mas, de acordo com Silva (2001), não se pode deixar os filhos fora
dessa realidade, pois isso favoreceria a multiplicação de fantasias trazendo danos
maiores do que a realidade posta. O conflito deve ser enfrentado por todos, com
os pais apoiando a superação dessa fase, para que a criança viva suas angústias
e as supere-as, de forma que a situação favoreça seu crescimento e
amadurecimento, já que os conflitos são inerentes ao ser humano. Dessa forma, a
criança tende a se adaptar a nova vida, superando suas frustrações e lidando
melhor com os limites.
Dolto (1989) destaca a importância de que os pais enfatizem as crianças,
no momento que contam sobre o divórcio, que não se arrependem da vida que
24
tiveram casados e que expliquem que houve amor em um dado momento.
Quando os pais não assumem essa posição, a criança pode acreditar que o casal
se arrepende de toda a vida conjugal, o que inclui o nascimento dos filhos.
2.2.2. A função positiva dos deveres
Muitas crianças acabam se sentindo culpadas pelo divórcio, já que há todo
um processo de guarda, o que traz grande desgaste para pais e filhos. No
momento em que o juiz decide sobre a guarda da criança, ou no caso dos
próprios pais a decidirem, é necessário que se explique ao filho a razão sobre tal
decisão já que é comum que essa situação desperte interpretações falsas à
respeito daquele que fica com o direito às visitas e passeios de final de semana.
Dolto (1989) acredita que aquele que fica com a criança durante as férias é quem
vive o mais importante tempo para a sua educação, pois são esses os momentos
de relação mais profunda entre pais e filhos.
Na opinião de Dolto (1989), antes dos quatro anos de idade a criança deve,
preferencialmente, ficar sob a guarda da mãe; isso quando é ela quem cuida do
bebê. Até essa idade, o filho precisa manter-se no lugar onde viveu e com quem
lhe dispensou os cuidados, e o outro cônjuge deve visitá-lo no contexto onde ele
vive habitualmente. À partir dos cinco anos, é preferível que a mãe e o pai tenham
sua própria vida afetiva e sexual para que a criança não seja colocada em uma
situação onde ela se perceba como cônjuge e filho, pois isso ocasionará um
bloqueio em sua dinâmica estrutural, lembrando que a situação triangular é
preferível para o desenvolvimento. Nessa faixa etária, seria mais saudável que o
menino fosse viver com o pai e a menina com a mãe pois a criança precisa de
modelos para se desenvolver como homem e mulher. É importante fazer com que
os filhos entendam que os pais são seres sociais, e que eles obtém prazer em
outras relações e atividades das quais eles não participam.
Nos casos de divórcio em que a criança fica morando com a mãe e convive
com o pai uma vez por semana, ou, mais freqüentemente, com visitas quinzenais,
o papel paterno passa, obrigatoriamente, por um reajuste já que ambos, pai e
filho, precisarão conviver com situações novas como a não convivência rotineira e
a relação mediada pela mãe, o que freqüentemente resulta em uma relação sem
empatia (Martinez, 1999).
25
Muitas crianças desenvolvem reações psicossomáticas quando visitadas
pelo genitor descontínuo, ou seja, aquele que não tem o exercício da autoridade
parental (Dolto, 1989). Os médicos deveriam entender melhor esses sintomas e
explicar à criança que o corpo exprime os sentimentos que são difíceis de serem
explicitados verbalmente. Os sintomas psicossomáticos não são maus sinais, mas
uma linguagem que não é possível ser transformada em palavras pela criança. É
comum um dos pais achar que o outro é uma presença maléfica ao filho quando
este apresenta tais sintomas, mas o fenômeno não se deve a presença do pai ou
da mãe, e sim da situação.
Quando a mãe tem a guarda da criança, ela deve colaborar o contato com
o pai, mostrando ao filho que no dia de visita ele deve se dedicar a este, mesmo
quando a criança não quer vê-lo ou quando o pai não aparece para buscá-lo. Isso
é importante para que a criança entenda que não pode se “apossar” da mãe e
viver somente na companhia dela pois deve aprender a cumprir seus deveres de
filho. Isso vale também para quando a criança mora com o pai. É necessário que
as datas de visitas sejam conhecidas pela criança e que isso realmente aconteça.
Convém que o pai e a mãe se entendam sobre o valor da presença de ambos
para a criança e combinem a freqüência de telefonemas e visitas. A regularidade
deste contato é mais importante do que a freqüência e é necessário que se
respeite o que foi fixado para que a criança não fique na expectativa de algo que
não aconteça (Dolto, 1989).
Na prática clínica de Silva (2001) com crianças é comum que ele se depare
com sintomas originados na separação dos pais. O autor afirma que tais sintomas
aparecem não pelo fato de ter pais separados, e sim pela falta que faz o
progenitor que não detém a guarda da criança. Essa ausência se dá devida a
uma separação mal feita e pelo estabelecimento da guarda mais comum;
exclusiva à mãe com visitas quinzenais pelo pai em finais de semana alternados.
Esse tipo de guarda priva a criança do contato com o pai, pois o tempo
cronológico da criança difere do adulto. Quinze dias é tempo suficiente para que
essa criança tenha sentimentos de medo do abandono e conseqüente desapego
com o pai. Esse convívio deveria ser feito mais intensamente, para que a criança
não perca o referencial de ambos os pais e não vivencie esse sentimento de
abandono.
26
A criança precisa saber que pertence a duas famílias, pois é necessário
que os pais representem duas linhagens genéticas. Para Dolto (1989), essas
duas linhagens oferecem integração da criança em sua história e cultura. Em
casos de pais de duas etnias diferentes, é muito comum que a linhagem do
genitor descontinuo desapareça na separação, não trazendo conseqüências
consideráveis no decorrer da infância, mas repercutindo no momento em que
essa criança se torna pai. É importante que o filho tenha nos pais modelos de
cidadãos adultos, e por isso Dolto (1989) desaconselha a volta do adulto para a
casa dos pais. Esse fato constitui uma regressão para a criança pois os pais
passam a ser percebidos como irmãos mais velhos, não sendo mais modelos.
2.2.3. A relação com os novos parceiros dos pais
A formação de um novo casal por ambos os pais é importante para o
desenvolvimento sadio de uma criança filha de pais separados, segundo Dolto
(1989). É preciso que haja um adulto que impeça a criança de ter intimidade total
com seu genitor, independente da criança gostar ou não desta pessoa, pois é
necessário que ela viva o Édipo. Isso é importante tanto em casais que se
separaram cedo ou mesmo em crianças cujo Édipo já havia se estabelecido, para
que ela viva uma variação do complexo edípico com esse novo adulto.
Dolto (1989) afirma que os obstáculos nessa relação normalmente não
partem da criança, e sim dos pais, que sentem-se enciumados do segundo
casamento do ex-cônjuge e da afeição do filho pela madrasta ou padrasto. A
criança precisa de vários adultos de sexos diferentes que cuidem dela, até
mesmo quando bebês. Quando as crianças dizem que não desejam que o pai ou
a mãe se casem novamente cabe a estes explicar que é desagradável que seus
filhos não concordem com a decisão, mas que isso é importante e é uma decisão
que eles não fazem parte. Quando os pais obedecem ao desejo do filho estão
deixando-o em um lugar de bebê, congelando a própria vida. Quando as crianças
pedem que os pais se casem novamente com outras pessoas elas estão, na
verdade, tentando se livrar das pulsões incestuosas e colocar os pais no lugar de
adulto. Isso é comum em casos de pais que voltam a morar com os próprios pais,
o que mostra uma regressão ao estado infantil, bloqueando o crescimento dos
27
filhos. É preciso dizer aos filhos que se está namorando novamente, mesmo
quando as crianças ainda não conhecem tal namorado, para que elas entendam
que o adulto tem uma relação com outro adulto. Normalmente, a mãe - ou o pai não aceita que seu novo cônjuge tenha um papel educacional perante o filho do
primeiro casamento, e isso é sentido pela criança. Assim, a criança rejeita a
ordem dada pelo padrasto -ou madrasta - como se estivesse agradando sua mãe
- ou seu pai. Quando a criança diz que os padrastos não gostam dela é
necessário que os pais sejam firmes e façam com que os padrastos sejam
respeitados, pois essa é uma tentativa da criança de regredir à uma relação
primária, onde domina o genitor. O pai ou a mãe devem dar crédito ao
companheiro e mostrar ao filho que ele não pode interferir nessa nova relação, e
sim respeitá-la.
É sempre prejudicial à criança que os avós se tornem o casal educador, a
referência para a criança, pois ocorrerão duas situações: ou os avós passaram
para a criança uma recriminação por seu filho ter se divorciado ou eles mostraram
certa felicidade por poderem criar o neto como filho. É claro que também existem
avós capazes de ajudar a criança a compreender o divórcio de seus pais, dando
espaço para que o neto discute esse assunto com eles. (Dolto, 1989).
Dolto (1989) acredita que a criança desconhece que tem direitos de
alimentação, moradia e educação, entre outros e isso traz uma fantasia de que os
adultos têm direitos sobre ela. Em casos de separação, essa fantasia fica ainda
em maior evidência, pois é comum que o filho escute expressões como ‘direito à
guarda’, ‘direito à visita’. Como toda a criança sente-se o centro da vida dos pais,
essa situação traz uma disputa obsessiva entre mãe e pai sobre os filhos, o que
deve ser evitado.
Em julgamentos de divórcio, o juiz atribui a guarda a um dos pais levando
em conta o interesse no melhor para os filhos, e isso acontece para aqueles que
ainda não completaram 18 anos. Dolto (1989) acredita que essa lei não deveria
estender-se até essa idade, pois um filho de pais divorciados tende a assumir a
própria responsabilidade mais cedo. Isso seria mais saudável do que ficar sob os
cuidados de um único genitor, principalmente quando este não se casa
novamente, já que esse tipo de cuidado não conduz a autonomia da pessoa. É
28
preciso que o divórcio seja visto pelo casal como uma recuperação da liberdade,
da vida de solteiro, e não uma disputa pela companhia do filho.
Dolto (1989) sugere que toda a criança deveria ter o direito de ser ouvida
em casos de divórcio dos pais, mesmo que o que ela pedisse não fosse acatado
pelo juiz. Ao mesmo tempo, ela deveria ouvir a decisão do juiz e receber a
explicação de tal decisão. Essa audiência deveria ser feita pelo juiz, recebendo a
criança a sós. Ao mesmo tempo poderiam ser feitos alguns encontros com
psicólogos, tanto para as criança quando para os adultos. Seria interessante se a
criança também ouvisse do juiz que tem deveres como filho, de, por exemplo,
manter relação com as duas famílias a que pertence.
É necessário que a criança saiba que a decisão do juiz é baseada na lei. É
comum que um dos pais, aquele que se sente injustiçado com a sentença dada
pelo juiz, falar mal desta decisão como se ela fosse estabelecida de acordo com a
vontade própria do juiz. A sentença sempre funciona como uma castração, mas é
isso que faz um divórcio se desenrolar de maneira saudável. Dolto (1989) defende
que o contato da criança com o juiz ocorra sempre que ela assim desejar, pois
isso traz à criança uma sensação de ter o direito de expressar aquilo que sente.
Isso não quer dizer que seu desejo deva ser atendido, mas sim de que ela tem o
direito de pensar sobre si e sempre ser ouvida. Esse tipo de conduta respeita a
dignidade da criança, pois está baseada na expressão da verdade.
29
2.3.
O Mito patriarcal
Muitos juízes de varas de infância estão atribuindo a autoridade parental ao
pai, mas na maioria das vezes ela ainda é atribuída a mulher. De acordo com
Dolto (1989), esse fato se deve à cultura do mundo ocidental, que atribui a
responsabilidade da educação dos filhos a mulher. Por isso, ela afirma que a
expressão ‘direito de visita’ deveria ser alterada para ‘dever de visita’, pois o fato
de um dos pais não ter a guarda da criança não o exime da responsabilidade
parental.
Martinez (1999) acredita que a paternidade é papel freqüentemente
esquecido em casos de divórcio porque existe um discurso social que sustenta
que a maternidade é algo da natureza da mulher, algo genético, presente na
identidade feminina. Os modelos de mulher - mãe são estereotipados, e
reproduzidos com adaptações nas famílias. Isso também acontece com o homem,
colocado socialmente no lugar de trabalhador, racional, dono do poder. Dessa
forma, o papel paterno fica separado do estereotipo masculino, o que não
acontece com a mulher. Dessa forma, cria-se um imaginário social de que a
mulher é naturalmente melhor para cuidar dos filhos. É provável que essa idéia
facilite a decisão da guarda dos filhos para a mãe, o que deveria ser melhor
estudado para que se constatasse ser uma verdade ou apenas uma crença. O
problema é que os mitos raramente são questionados, ao contrário, a tendência é
que se reproduzam e ganhem forças. Muitos mitos contribuem para anular o
papel do pai, tais como frases que costumamos ouvir no cotidiano: “Não existe
melhor amor que o de mãe; mãe é mãe; pais podemos encontrar muitos, mas
mãe é uma só”. Martinez propõe que haja uma revisão do conceito social de pai,
associando tal papel a um indivíduo participativo e como sujeito emocional na
relação com os filhos. O pai deve ser entendido como uma figura masculina que
constrói laços afetivos e duradouros, baseado no apego emocional desenvolvido
entre pai e filho.
A cultura burguesa coloca um modelo de paternidade que consiste em um
pai autoritário, provedor da família, alguém que preza a disciplina e se afasta das
relações afetivas. As leis que regem casos de divórcio acabam sendo
30
influenciadas por essas determinações culturais, pregando que somente a figura
materna é indispensável para a criação de um filho. Por isso, a maioria dos casos
de divórcio concedem a guarda às mães, atribuindo ao pai uma convivência
reduzida pelas visitas periódicas. Isso traz uma grande impossibilidade de
participação do pai na educação de seus filhos. Esses modelos estão
impregnados em nossa cultura, e é algo passado nas gerações, não sendo então,
questionados. Com a separação, acontece uma privação do papel paternal e uma
anulação do compromisso, como se o lugar de pai só pudesse ser ocupado
quando existe a relação do casal. (Martinez, 1999)
Em sua pesquisa, Martinez (1999) propõe que a escolha da guarda seja
analisada de acordo com as condições individuais de cada um dos pais,
dissociado dos estereótipos, visando outorga-la àquele que tenha maior
capacidade de proporcionar à criança um desenvolvimento saudável. Ele coloca
a possibilidade de ambos os pais compartilharem à guarda de seus filhos,
encaminhando-os a guarda compartilhada, o que considera a opção menos
maléfica a todos os implicados. Propõe ainda uma conscientização dos conceitos
culturais dos papéis dos membros da família, o que traria uma reformulação do
mito patriarcal, além de diminuir a onipotência materna no que se relaciona ao
afeto para com os filhos, mostrando que o contato e o apego com ambos os
papéis, materno e paterno, são benéficos e necessários para os filhos.
31
2.4.
Observação sobre o Édipo: o papel essencial do pai
Ainda dentro da abordagem psicanalítica, estudamos Nasio (1999). Ele
explica que, para falarmos do Édipo do menino e do papel que o pai desempenha
nele, normalmente enfatizamos o apego do menino à mãe como objeto sexual e
seu ódio pelo pai. Sem renegar essa configuração clássica de Édipo, Freud
privilegiou tanto a relação do menino com o pai que o autor não hesita em fazer
do pai, e não da mãe, o personagem principal do Édipo masculino. Na primeira
etapa da formação do Édipo, reconhece-se dois tipos de ligação afetiva do
menino: um apego desejante pela mãe considerada como objeto sexual e,
sobretudo, um apego ao pai como modelo a ser imitado. O menino faz de seu pai
um ideal em que ele próprio gostaria de se transformar. Enquanto o vínculo com a
mãe, como objeto sexual, se nutre do ímpeto de um desejo, o vínculo com o pai,
como objeto ideal, repousa num sentimento de amor produzido pela identificação
com um ideal. O autor explica que, o desejo pela mãe e o amor pelo pai,
aproximam-se um do outro, acabam por se encontrar, e é desse encontro que
resulta o complexo de Édipo normal. O menino incomoda-se com a presença da
pessoa do pai, que barra seu impulso desejante dirigido à mãe. A identificação
amorosa com o pai ideal se transforma, então, numa atitude hostil e acaba em
uma identificação com o pai como homem da mãe. O menino deseja substituir o
pai junto da mãe, a qual considera como objeto sexual, e se tornou o parceiro
eleito de sua mãe. De forma natural, todos esses afetos dirigidos ao pai se
cruzam e se combinam numa mescla de ternura pelo ideal, animosidade em
relação ao intruso e vontade de possuir os atributos do homem.
Segundo o autor, o essencial do Édipo masculino são as vicissitudes da
relação do menino com o seu pai, e não como se costuma acreditar, com a mãe,
pois é no vínculo perturbado com o pai que reside a causa mais freqüente da
neurose do homem adulto.
Ainda sobre este tema, Aberastury e Salas (1991), autores da
literatura psicanalítica, afirmam que durante mais de meio século, a partir dos
achados de Freud sobre as neuroses em adultos e crianças, tem-se enfatizado a
importância da relação mãe-filho. No entanto, só nos últimos anos e muito
timidamente, começou-se a destacar a importância que tem a figura do pai desde
32
os primeiros dias de vida e, até mesmo, desde o próprio momento da concepção.
Um fator fundamental para a vida da criança revelado pela psicanálise é que seu
nascimento tenha sido desejado; sentir-se filho do pai é tão fundamental para o
desenvolvimento do indivíduo como o próprio fato de sê-lo. A psicanálise também
permitiu provar que, desde muito pequenos, os filhos percebem a realidade
interna do pai, da mãe e de seus sentimentos frente a ele. Ser adotado, haver
nascido de um pai que não cumpre suas funções, ser filho de um divórcio, são
fatos que a criança percebe em sua memória e que, mais tarde, entram em
contradição com as semi-verdades, os ocultamentos e as mentiras do meio.
Esses estudos foram, aos poucos, substituindo o acento posto à princípio na
relação inicial com a mãe, e revalorizando a importância do rol paterno.
As histórias clínicas, segundo os autores, mostraram sempre que uma
criança sem pai, ou crescido junto a um pai psicologicamente ausente ou muito
fraco, apresentava transtornos psicológicos ou orgânicos. Ao organizar-se com
grupos de pais com a finalidade de estudar as zonas mais profundas do vínculo
pai-filho, Salas chegou à conclusão que, sem incluir a importância precoce do pai
na vida da criança, não se poderia compreender jamais nem seu desenvolvimento
normal nem seus transtornos. O autor ainda nos lembra que Freud, em toda sua
obra, apontou o complexo de Édipo como o nó da neurose infantil e adulta. Ao
fazer sua auto-análise, Freud descobriu a importância da relação com a mãe e do
papel fundamental que tinha o pai na vida do homem. Seus estudos sobre o
complexo de Édipo situam a problemática criada pelo triângulo mãe, pai, filho, ao
final da primeira infância, entre os quatro e cinco anos de idade.
O tema da paternidade teria continuado a ser evitado, senão fosse pelas
contribuições que trouxe posteriormente à Freud, a psicanálise de crianças. A
primeira e mais importante dessas contribuições é a colocação do complexo de
Édipo já no quarto mês de vida, ao invés de pensá-la no quarto ano de vida das
crianças. A aceitação do complexo de Édipo precoce impôs a necessidade de
reavaliar a importância da figura do pai neste período. Ainda que, suponhamos, a
figura do pai seja fundamental ao longo de toda a vida do menino, há dois
momentos em que adquire um destaque crucial, em que sua atuação real é
decisiva para que o menino possa resolver seus conflitos. O primeiro momento, o
qual o autor denomina de organização genital precoce entre os seis e os doze
33
meses de vida com a iniciação do triângulo edípico, e o segundo momento é o da
entrada na adolescência, quando a maturação genital obriga a criança a definir
seu papel na procriação, nas meninas com a aparição da menstruação e nos
meninos com o surgimento do sêmen.
Salas (1991) comenta também que as conseqüências da carência paterna
são tão graves como as da materna, mas só recentemente foram estudadas com
profundidade. Ter um pai presente não só significará poder separar-se bem da
mãe, mas também encontrar uma fonte de identificação masculina, imprescindível
tanto para a menina como para o menino, porque a condição bissexual do homem
torna necessário o casal pai e mãe para que se consiga um desenvolvimento
harmônico da personalidade.
Tanto Freud como seus seguidores, conforme Salas (1991), consideravam
que a relação dos pais com o filho é um ponto central para poder compreender o
desenvolvimento do adulto. Salas relata que nos grupos que fez de orientação de
mães e pais, ele pôde estudar a mudança no vínculo com o filho quando o pai se
empenha no seu papel ao desaparecer a inibição ou conflito com a paternidade.
Parece que todas as investigações feitas nos mais diversos países orientam na
busca pelo modo de reforçar o papel do pai na família como um dos possíveis
caminhos para a profilaxia da neurose infantil.
Então, segundo Salas (1991), para favorecer e assegurar a higiene mental
do homem, torna-se imprescindível a difusão de conhecimentos sobre o
desenvolvimento normal e patológico e, em especial, sobre as funções que
devem cumprir o pai e a mãe. É a sociedade que tende a fornecer ao indivíduo os
requisitos indispensáveis para que essas funções possam se cumprir. Os pais
precisam ser orientados no sentido de serem capacitados para receber o filho e
criar-lhe as condições necessárias para um bom desenvolvimento. O autor, após
muitas conferências, seminários ou grupos de estudo promovidos pela
Organização Mundial de Saúde, pôde observar a importância que, nos últimos
anos, dá-se ao papel do pai na saúde mental da criança, tantos nos seus
aspectos preventivos como nos terapêuticos. Esse interesse então nos orienta ao
estudo da função do pai da mesma maneira que, nos anos anteriores, os
especialistas dedicaram à compreensão da função materna.
34
Os achados da psicanálise sobre a importância que tem o pai, desde a
mais precoce infância, abriram caminho que conduz à profilaxia de muitos
transtornos psíquicos e físicos nos filhos e nos pais. Essa ciência que começou
sendo método terapêutico, transformou-se, progressivamente, em um enfoque
psicológico e psicossocial, que fundamentou uma nova concepção de homem.
Sua influência se estendeu desde a clínica até todos os ramos do conhecimento
humano, os quais, por sua vez, ampliaram suas descobertas. Ao se conceber o
enfoque psicanalítico, contempla-se a totalidade das condições históricas, sócioeconômicas, políticas nas quais o homem se movimenta. Os autores destacam
que para a década de 80, época em que escreveram, as condições de vida
exigiam que se intensificasse a luta contra a doença mental, evitando a mesma
através da profilaxia desde a infância. Neste sentido, todo o esclarecimento sobre
os papéis paterno e materno são fundamentais. Os autores destacam a tensão e
angústia do mundo atual, as quais representam uma ameaça muito grave para a
saúde mental. A estabilidade é o clima necessário para que um ser humano se
desenvolva normalmente e hoje, cada vez mais, precisamos recorrer a tudo o que
sabemos sobre o homem para podermos utilizar no intuito de equilibrar essa
angústia. (Aberastury e Salas, 1991)
Segundo o psicanalista Zimermam (1999), na literatura psicanalítica, a
figura do pai tinha um relevo extraordinário na obra de Freud, enquanto na teoria
Kleiniana a sua figura ficou muito ofuscada pela hegemonia que Klein atribui à
mãe, sendo que, na atualidade, a psicanálise está resgatando a importância do
lugar, papéis e funções pertinentes ao pai. Assim, dentre as fundamentais
funções que devem ser exercidas pelo pai, as seguintes merecem ser
destacadas:
1. A segurança e a estabilidade que ele dá, ou não dá, à mãe, na tarefa por
vezes árdua e extenuante, de bem educar e promover o crescimento do filho;
2. Dentro da concepção de transgeracionalidade, é útil saber como foi o vínculo
dele com seu respectivo pai e, até que ponto ele o está repetindo com seu
filho; qual é a representação interna que ele tem da esposa (mãe da criança) e
que influirá bastante naquela que o filho terá da mãe, e também qual o lugar
que o pai ocupa no desejo e na representação que a esposa tem dele.
35
3. A ênfase que merece ser dada ao papel do pai incide no fato de que a sua
presença, física e afetiva, é de fundamental importância no processo de
separação-individuação, referente à díade mãe-filho. Em outras palavras, é o
pai que no papel de “terceiro”, interpondo-se como uma cunha normatizadora
e delimitadora entre a mãe e o bebê, irá propiciar a necessária passagem de
Narciso e Édipo.
4. As adequadas frustrações impostas pela função paterna, pela colocação de
limites, reconhecimento das limitações e aceitação das diferenças, promovem
a necessária, embora dolorosa, passagem do princípio do “prazer-desprazer”
para o da realidade. Da mesma forma, as frustrações promovem um estímulo
às funções do ego da criança, especialmente a formação da capacidade para
pensar.
5. As fantasias inconscientes que se formam em torno da “cena primária” e que
vêm a desempenhar uma decisiva determinação na tão importante resolução
do complexo edípico, dependem diretamente do comportamento dos pais, e
de como cada um deles, por sua vez, resolveu em si próprio esses mesmos
conflitos edípicos. Uma vez ultrapassada a ligação simbiótica com a mãe
(graças à necessária presença e função castratória da figura paterna) e,
resolvido o conflito edípico, a criança, mais assegurada em sua identidade, vai
poder renunciar à mãe como seu interesse exclusivo e se abrir para uma
socialização com o pai, irmãos e amizades. (Zimerman, 1999, p.107).
36
2.5.
A ilusão da universalidade
Um dado importante que gostaríamos de destacar é que, uma das
características das teorias do psiquismo é a de pensar o homem enquanto sujeito
psicológico universal. Segundo Bezerra Júnior (1987), é necessário cuidado pois,
a necessidade de estabelecer cânones científicos, portanto generalizantes e
universais, para o estado da atividade psíquica humana, pode servir de caminho a
uma concepção abstrata, a – histórica e, por isso, acrítica do sujeito. É como se
todos os indivíduos se emocionassem, se afligissem e reagissem a esses
sentimentos da mesma maneira em todo lugar e em qualquer época.
É necessário compreender, segundo o autor, que “o homem objeto das
teorias de comportamento individual, não é um indivíduo dado, natural e universal,
mas sim uma construção social, historicamente datada e geograficamente pouco
uniformizada”. Muita confusão decorre do desconhecimento ou da pouca atenção
ao fato de que a palavra indivíduo pode encerrar um duplo sentido. Ela pode estar
sendo usada para designar a unidade física da espécie humana, o agente
empírico da fala e da ação que é o átomo elementar de cada agrupamento
humano. Por outro lado, ela pode ter o significado que predomina nas teorias do
comportamento, e que deriva do universo ideológico das sociedades complexas
modernas do Ocidente. Nesse sentido, a palavra indivíduo nomeia o ser moral
dotado de características como a de se pensar autônomo, independente em
relação às regras e grupos sociais, um sujeito que percebe dentro de si um
complexo mundo interno onde imagina se situar a sua verdadeira identidade, que
orienta a sua vida para a escolha livre de opções pessoais, etc. (Bezerra Junior,
1987, p.141).
Outro ponto de essencial importância a ser destacado é o de como a
criança é retratada pela Psicologia. Como já foi exposto na introdução do
presente trabalho, Patto e Copit (s/d), concluíram que a criança não é focalizada
em sua condição de sujeito psicológico, onde se consideraria a sua subjetividade,
mas como um ser-substância que se identifica através de um aglomerado de
condutas definidas a priori pelo pesquisador. Sendo assim, quando se busca a
objetividade e a racionalidade sobre a criança e não com a criança, suprime-se de
seus dados o ser humano com os significados afetivos que o determinam e,
também, o contexto social e psicológico onde estão inseridos.
37
Também é relevante considerar que a criança, na pesquisa psicológica, é
considerada
como
um
ser
a-histórico,
cujas
percepções,
habilidades,
necessidades, emoções e capacidades transcendem o tempo e o espaço onde
ela está inserida. As pesquisadoras Copit e Patto (s/d, p.8) chegaram a essa
conclusão pois verificaram que, na maioria das pesquisas por elas analisadas,
“não havia qualquer referência à formação social em que a criança crescia, suas
características
econômicas
e
políticas
e
à
maneira
como
o
contexto
macroestrutural influía sobre a própria constituição da infância enquanto etapa da
vida nesta formação social específica” Perceberam também que o contexto sócioeconômico, quando mencionado, surgiu de duas maneiras: reduzido à expressão
“nível sócio-econômico”, como se a divisão de classes alta, média e baixa fosse
algo natural; e no âmbito da problemática denominada “marginalização cultural”,
onde as populações marginais e suas crianças são consideradas como pessoas
não pertencentes, excluídas do sistema social mais amplo e, portanto, passíveis
de inserção, desde que passem por uma transformação de comportamento,
habilidades e capacidades presentes nos níveis sociais considerados superiores,
níveis esses em que se supõe serem detentores das respostas adequadas e
adaptativas e, portanto, tomadas como padrão de normalidade.
Outra conclusão que Patto e Copit chegaram em seus estudos foi que, a
criança jamais é vista de forma integral, enquanto membro de uma classe social e
submetida a determinações econômicas, culturais e políticas. A criança, segundo
as autoras:
“é seccionada em infinitos comportamentos e habilidades que, mesmo
se reunidos, jamais levariam ao conhecimento da criança na sociedade
brasileira, sua maneira de representar o mundo e de se representar no
mundo, com toda a complexidade que o termo representação do
mundo assume numa abordagem filosófica da práxis humana.” (Copit
e Patto, s/d, p.9)
Por isso, procuramos tomar o cuidado, em nossa pesquisa,de ter as
crianças como sujeitos do próprio assunto e procuramos, também, tratá-las com
respeito identificando-as somente através de pseudônimos com o intuito de
salvaguardar suas identidades. Na nossa metodologia, utilizamos não só o
desenho da família como também a própria linguagem da criança para podermos
analisar e interpretar a representação paterna que ela possui.
38
3. ABORDAGEM METODOLÓGICA
39
3.1.
Sujeitos da pesquisa
Para podermos entender como a criança representa o pai utilizamos a
técnica do desenho de família com estória segundo Trinca (1987) em 8 crianças
de 5 a 7 anos, que estão cursando jardim e pré-primário em uma escola de
educação infantil particular da zona norte paulistana. A técnica foi aplicada em 4
crianças filhas de pais que moram juntos e 4 filhas de pais separados A faixa
etária das crianças escolhidas se deu em função de uma maior facilidade de
acesso das pesquisadoras a essa escola, que funcionou como um de nossos
campos de estágio. Além da técnica do desenho de família, foi enviado um
pequeno questionário visando entender a situação familiar da criança, como a
regularidade no contato com o pai em casos de separação. Realizamos ainda um
entrevista aberta com as mães de todos os sujeitos, onde procuramos identificar a
relação familiar da criança e seu contato com os pais, independente da
separação. Isso porque não podemos negar que existem casais onde somente
uma pessoa é responsável pelos cuidados do filho, e também casos de
separação onde ambos os genitores decidem em conjunto a vida da criança.
Nessa entrevista, procuramos abordar questões do dia a dia da criança, e
realizamos questionamentos que visavam entender se ambos os pais planejam
juntos a festa de aniversário do filho, se ambos freqüentam as festas e reuniões
escolares para assim entendermos como é a participação dos pais.
40
3.2.
Instrumentos de medida
Faremos uma adaptação da técnica do desenho de família com estória,
aplicando somente os desenhos de uma família qualquer e da própria família por
serem estes suficientes para entendermos como a criança coloca a figura paterna
no contexto familiar, e se há diferença nessa representação em filhos de pais
separados e casados. Acreditamos que a aplicação destes desenhos não
desperte na criança conteúdos de sua relação familiar que não serão trabalhados
posteriormente, preservando, assim, os sujeitos da pesquisa. Para um melhor
entendimento do desenho da criança, pediremos que ela conte uma estória sobre
o que acabou de produzir e responda eventual inquérito.
41
3.3.
Procedimentos da pesquisa
Acreditamos que fazer as aplicações na escola da criança irá facilitar tanto
a elas como também às pesquisadoras, pois as crianças estarão em um ambiente
conhecido e não haverá necessidade de locomoção. O pedido de autorização à
direção da escola para a aplicação da técnica foi realizada por ambas as
estagiárias, pessoalmente, onde expusemos o objetivo de nosso trabalho. A
direção nos recepcionou de forma tranqüila, interessando-se pelo tema e
mostrando curiosidade nos resultados da pesquisa. Depois dessa etapa,
elaboramos um explicativo que foi enviado aos pais expondo o objetivo do
trabalho e pedindo a autorização destes para a utilização dos desenhos de seus
filhos. Junto a essa autorização, anexamos um pequeno questionário que visa
entender a situação familiar da criança, como separação ou não dos pais, contato
do sujeito com o pai em casos de separação. O passo seguinte foi a aplicação da
técnica nas criança, explicando a estas o objetivo do trabalho e pedindo a
autorização delas para a análise de seus desenhos. Tal aplicação foi feita pela
dupla de pesquisadoras na escola das crianças, de forma individual. Depois, a
mãe de cada criança foi chamada na própria escola para uma entrevista com a
pesquisadora que aplicou a técnica em seu filho, onde abordamos questões sobre
relação familiar e contato paterno.
42
3.4.
Tratamento e análise dos dados
A técnica do desenho da família com estórias é um instrumento de
avaliação que foi introduzido por Walter Trinca (in Cunha, 2000) tendo como
origem as técnicas gráficas e temáticas. Segundo Trinca (1987), as técnicas
gráficas são aquelas onde o sujeito se comunica fazendo uso de desenhos,
pinturas, rabiscos entre outros, de forma espontânea ou dirigida. Essas técnicas
estão a favor da psicologia clínica, pois no caso de crianças, a expressão verbal
pode sofrer inibições ou dificuldades, e nesse caso a expressão gráfica é mais
satisfatória. Em sua obra, Trinca (1987, p.2) cita Hammer, que afirma que “as
pessoas tendem a expressar em seus desenhos,..., uma visão de si mesmas tal
como gostariam de ser. Os desenhos representam uma forma de linguagem
simbólica que mobiliza níveis relativamente primitivos da personalidade”.
A técnica completa consiste em uma série de 4 desenhos de família, na
seguinte ordem: Uma família qualquer; uma família que gostaria de ter; uma
família onde alguém não está bem e a própria família. Após cada desenho, pedese que o sujeito conte uma estória sobre o que acabou de produzir, seguido de
inquérito e finalizado com o título. Ao falar sobre a importância das estórias nos
testes gráficos, Trinca (1987, p.15) citando Estern, afirma que o desenho
combinado à linguagem no transcorrer ou ao término do mesmo traria o
significado daquilo que foi representado, o que aconteceria no interior do sujeito
enquanto ele se entregava a atividade.
Essa técnica tem como objetivo detectar os processos e conteúdos
psíquicos inconscientes e conscientes relacionados a dinâmica da família,
ampliando o conhecimento do dinamismo da criança, já que este não é acessível
em entrevistas habituais. Com a aplicação, o psicólogo pode conhece alguns
aspectos das relações intrafamiliares do examinando, como eventuais conflitos,
angústias e fantasias. Trinca (in Cunha, 2000) sugere que na avaliação desta
técnica sejam observadas as características das figuras paterna e materna, os
vínculos da criança com essas figuras, eventual representação do complexo
edípico, a estrutura da família entre outros aspectos.
43
Cunha (2000) afirma que “não existe um roteiro padronizado para se
interpretar o desenho da família, embora haja certa concordância entre autores
sobre algumas hipóteses interpretativas”. De acordo com a autora, deve-se levar
em conta a impressão geral do desenho, dando ênfase aos sentimentos do sujeito
em relação ao que desenhou. Em sua obra, a autora cita Hulse, que sugere que
ao aplicar essa técnica, o psicólogo perceba aspectos psicodinâmicos da criança,
pois ela revela seus conflitos, sentimentos e atitudes frente aos diversos membros
da família ao desenhar. É necessário prestar atenção no tamanho de cada
personagem em relação aos demais membros que a criança representa, bem
como a posição das pessoas colocadas no papel, a seqüência desenhada e
eventuais omissões ou ênfases.
Hammer (in Cunha, 2000) considera a técnica do desenho da família
valiosa pois acredita que a criança revela a percepção de si e de sua família, bem
como a sua relação com as figuras parentais, dando ênfase à análise do tamanho
das figuras e a proximidade ou afastamento destas. No primeiro caso, uma mãe
dominante apareceria como uma grande figura materna e um pai pequeno
indicaria pouca valorização desta figura. Já a proximidade ou afastamento das
figuras revela a relação dos membros da família; por exemplo, figuras
desenhadas distantes umas das outras indicaria grupo familiar desunido,
ausência de troca emocional. A criança pode ainda se colocar próximo a um dos
pais e distante de outro, indicando sua preferência ou a situação do conflito
edípico.
Trinca (1987) afirma que as técnicas gráficas são importantes para às
crianças porque em geral, elas não são capazes de compreender claramente
suas questões, e por isso, não expõe verbalmente suas dificuldades, fazendo-a
por comunicação indireta e inconsciente. Dessa forma, diversas técnicas são
utilizadas e desenvolvidas na psicologia clínica para favorecer essa comunicação,
e os desenhos estão entre as referidas técnicas. O autor cita, em sua obra, a
abordagem de Bender sobre a comunicação gráfica, onde ele coloca que os
desenhos equivalem ao conteúdo manifesto de um sonho, expressando os
problemas e conflitos do sujeito, o que em conseqüência, torna-se importante
para diagnóstico e terapia. A criança utiliza-se dos meios que estão ao seu dispor
como forma de comunicação. Sendo assim, o grafismo é um elemento básico da
44
comunicação infantil, capaz de expressar em poucos traços a situação interior do
desenhista, o que acontece de forma espontânea.
A técnica de desenho-estória é um procedimento com características
próprias, a fim de auxiliar a investigação da personalidade fornecendo dados
clínicos. É uma tarefa não estruturada, que permite uma quase ilimitada
possibilidade de respostas, e baseia-se no modo como o indivíduo percebe,
interpreta e estrutura a situação, o que reflete características básicas de sua
dinâmica, funcionando como uma tela onde são projetadas suas próprias idéias.
As técnicas projetivas são menos suscetíveis as defesas do sujeito, porque não
há a exata percepção daquilo que ele está dizendo de si, como ocorre em uma
entrevista, por exemplo. Em se tratando de crianças, essas técnicas são ainda
mais importantes porque a capacidade verbal é reduzida, e os desenhos surgem,
então, como forma de comunicação natural.
A avaliação da comunicação presente em um procedimento de desenhoestória deve se utilizar dos sinais e indicações que a criança mostra ao psicólogo
durante a aplicação, pois, para Freud (in Trinca, 1987) a criança é egocêntrica, e
em conseqüência disto, fala dela mesma no desenho. Trinca destaca que a
compreensão da mensagem passada muitas vezes não é fácil, pois esta não
aparece claramente, e a interpretação do desenho depende então da relação de
empatia entre sujeito e aplicador, intuição daquele que realiza a análise e de um
sistema referencial que possa ser correspondido com a mensagem contida no
desenho. Os desenhos, suas estórias, as respostas do inquérito e o título devem
ser considerados, na avaliação,
um processo unitário de comunicação. Isso
porque este procedimento pretende enfocar a mensagem como um todo, e não
separar as manifestações gráficas das verbais, integrando os elementos
significativos em um conjunto que diz respeito ao sujeito.
De acordo com Ludke e André (1986), a tarefa da análise dos dados
implica em organizar o material e a partir daí, identificar os padrões de maior
relevância ao objetivo da pesquisa. Depois disso, o material deve ser reavaliado
de forma que o pesquisador possa buscar relações com a teoria que foi
pesquisada, explorando aspectos que mereçam maior atenção e eliminando
outros dados que não sejam relevantes à pesquisa. A problemática passa a ser
45
delimitada, o que permite uma focalização no objetivo do estudo, trazendo maior
produção dentro das questões obtidas na coleta de dados e favorecendo uma
relação entre os dados obtidos na pesquisa de campo e a pesquisa literária sobre
o tema. Essa relação entre as descobertas obtidas durante a pesquisa de campo
e a revisão da literatura é fundamental, de acordo com os autores, para que seja
possível concentrar os estudos em uma direção mais produtiva ao trabalho.
46
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES DOS
DADOS OBTIDOS
47
4.1.
Os casos do estudo
4.1.1. Alice
Idade: 6 anos e 2 meses
Data de nasc: 01/07/1996
Escolaridade: cursando o pré primário
Mora com a mãe e com os avós
Não mantém contato com o pai
Data da aplicação: 24/09/2002
Genetograma:
pai
mãe
filha
Desenho de uma família qualquer:
A criança pegou o lápis grafite e começou a desenhar uma casa, da esquerda
para a direita. Depois fez a pessoa da esquerda, o carrinho de pipocas e a pessoa
da direita. Quando lhe foi pedido uma estória, ela começou a contar, escrevendo:
A: “Era uma vez uma menina que se chamava Viviane. Ela estava na rua e
comprou uma pipoca. Pronto”. (terminou de escrever)
D: “Era uma vez uma menina que se chamava Viviane. Ela estava na rua e
comprou uma pipoca. Com quem ela estava na rua?”
A: “Sozinha.”
D: “Sozinha?O que mais aconteceu?”
A: “Só”.
D: “O que aconteceu antes?”
A: “Antes?”
D: “Antes de ela comprar uma pipoca”.
A: “Ela estava passeando”.
D: “Mais alguma coisa?”
A: “Não.
D: “Dá um título pra essa estória que você contou, pro seu desenho”.
A: “Pela rua vou caminhando”.(escreveu)
Desenho da própria família:
A criança disse que começaria o desenho pela bisavó, comentando que
não sabia fazer o cabelo. Desenhou a segunda pessoa da folha (bisavó), depois a
terceira dizendo que era a tia, também comentando dos cabelos e da saia:
48
“Minha tia agora só anda de saia, antes ela usava calça jeans mas agora só usa
saia. O cabelo dela é igual o da minha mãe”.
A menina desenhou depois a quarta pessoa da folha e disse que era sua
avó, que tinha acabado de cortar o cabelo. Nesse momento, contou que no dia
dos pais fez o presente para o avô porque não sabia que seu pai iria na festa,
mas ele apareceu. Ela disse que deu o presente para seu avô porque já estava
escrito vovô, e que se soubesse que o pai viria, teria feito dois presentes.
Depois desenhou a quinta pessoa da folha dizendo que era seu avô, e que
ele usa sempre a mesma camisa de listras, parecendo que só tem essa. Após
dizer isso, deu risada e disse que ele tem duas camisas, mas uma delas só usa
para brincar com os cachorros e a outra, de listras, usa até para dormir.
Comentou que era fácil desenhar seu avô, e que já sabia o título deste desenho: “Família Rocha Presse, porque minha mãe é Rocha, minha avó é Rocha e eu sou
rocha Presse”. Depois disso disse que faria a mãe, que na folha aparece na
primeira posição. Comentou que faria o cabelo mais comprido do que o da tia, e
com uma blusa de florzinha que a mãe sempre usa. Enquanto desenhava a mãe,
comentou que não quer que ela se case novamente, só se for com seu pai. Ela
falou que queria ter um irmão, mas só se for com seu pai. A menina contou que
quando pede para a mãe uma irmã, esta responde que vai lhe dar uma Barbie ou
uma Suzi de irmã.
Escrevendo...
A: “Eu vou contar o nascimento da minha família. O primeiro que nasceu foi a
minha bisavó. O segundo foi o meu vô. O terceiro foi a minha vó. O quarto foi a
minha tia e a última é a minha mãe e você sabe que eu fui a última. (terminou de
escrever) Pronto, que estória grande!”
D: “Grande né! O que mais você conta dessa estória?”
A: “Só.”
D: “Só?”
A: “Sim”.
D: “O que acontece depois?”
...
D: “Depois que você foi a última”.
A: “É o fim da estória”.
D: “Qual é o título dessa?”
A: “Família Rocha Presse. Eu sei que meu nome é com sse”.
49
Entrevista com a mãe de Alice:
D: “Quantos anos sua filha está?”
M: “Está com seis”.
D: “Ela está morando com você e com os avós?”
M: “É, agora sim, a gente mudou semana passada, antes ela morava só comigo”.
D: “Agora que você voltou pra casa de sua mãe?”
M: “Sim”.
D: “Você está separada desde quando?”
M: “Faz quatro anos e meio, por aí. Ela tinha um ano e oito meses. Ela fez seis
agora em julho. Ela era muito novinha, não sentiu, pelo menos não
demonstrava”..
D: “Como é hoje, ela não vê o pai, você colocou que não tem contato”.
M: “Eu pus que não tem contato porque ela vê duas, três, quatro vezes por ano.
Ela às vezes fala do pai dela, mas dificilmente fala. Quando ele aparece ela fica
toda alegre, contente, mas não é de ficar falando que está com saudade do pai,
não é de ficar falando essas coisas, mas quando vê fica contente”.
D: “Então ele não participa da vida dela, festas, aniversários, natal, datas
comemorativas?”
M: “Não, as vezes ele não aparece nem pra dar presente, às vezes dá, e outras
nem um presente de natal, nada”.
D: “Você acha que ela substituiu essa figura masculina por algum tio, avô?”
M: “É difícil falar, é assim, quando minha irmã namorava ela gostava muito do
namorado da minha irmã, era meu tio pra cá, meu tio pra lá. Tem também um
amigo meu que ela gosta muito dele, é ele pra cá e pra lá, então eu não sei se é
por não ter contato com o pai que quando ela tem um pouco mais de contato com
um homem é assim. Meu pai é aquela coisa, avô mesmo, deixa fazer o que quer
e quando tem algum homem que ela vê sempre, como o namorado da minha
irmã, ele levava pra passear junto, a gente saía junto também e ela ficava toda
assanhada. Teve uma época que ela queria que eu casasse de novo, quando ela
tinha uns três anos e pouco ela queria que eu casasse com o pai dela, daí eu
expliquei que com o pai dela não dava porque eu não gostava mais dele, e ela
falava então casa com o Ronaldão, que é meu amigo, e eu respondia que não
porque ele é meu amigo, não é meu namorado. E ela falava pra eu então casar
com aquele gordinho ali. Ela queria que eu casasse com qualquer um que
aparecesse na frente, você vê, aquele gordinho ali era o cara que estava
passando na rua. Aí ela queria uma irmãzinha e depois parou, hoje ela não fala
mais. Às vezes eu encho o saco dela, brincando, falo que eu vou casar, que vou
ter outro bebê e ela fica brava, não quer de jeito nenhum nem que eu case muito
menos que eu tenho outro neném. Agora ela não tem muito isso de ficar toda
acesa com homens, quando era mais nova que ficava. Tinha um namorado da
minha irmã, o Alexandre, que quando ela via ficava doida, queria brincar com ele,
ficar atrás dele. A minha irmã não podia namorar com o cara que ela ia atrás no
portão, ficava lá fazendo bagunça, pulava no colo dele... mas agora não tem
muito essas coisas. A minha irmã casou agora, não com esse, com outro e ela
não é assim com esse tio, ela gosta brinca mas não é aquela coisa. Não sei se é
porque ela tinha afinidade mesmo com o outro, ou se era porque era menor. Eu
sei que na época ela gostava muito dele”.
D: “Quando ela pergunta do pai o que você responde?”
M: “É, eu falo pra ela que não sei quando ele vem. Eu falo a verdade, né”.
50
D: “Ela o procura, tem telefone, pede pra ligar?”
M: “Uma vez ele me deu o telefone, mas ele deu pra mim e não pra ele. Eu sei
que o contato deles é assim, quando ela era mais novinha eu até deixava ele
levar de vez em quando mas depois não deixei mais porque, sabe, não dava
certo, ele é muito folgado”.
D: “Você não tem confiança de deixa-la com ele?”
M: “Não, sabe, ele marcava uma hora e não chegava, ficava de aparecer e não
aparecia. Ela não é palhaça e nem eu, então eu comecei a cortar, e ele não
insistiu. Eu posso estar até errada mas eu acho que é melhor ela vê menos do
que ela vê, porque quando ela vê o pai todo mundo sabe porque ela fica outra”.
D: “Qual tipo de comportamento ela apresenta?”
M: “Ela fica assim, sabe, mais..., ela já não é flor que se cheire, e fica mais
teimosa, mais espevitada, muda o comportamento. Ela fica assim uma semana, e
olha que precisa ter saco pra aguentar, porque ela deixa qualquer um, por mais
paciência que tenha, ela deixa a pessoa doida. Fica agitada, eu não faço muita
questão que ela veja, mas as vezes ele passa na minha mãe pra ver, fala com ela
cinco dez minutos e vai embora porque eu não deixo ele levar. Eu falo que se ele
quiser ficar lá com ela pode ficar, eu nunca falei que tem que conversar com ela
cinco ou dez minutos e ir embora, mas se não é pra levar ele também não fica”.
D: “Quando ele fala de leva-la, ele fala na frente dela ou não”?
M: “As vezes fala na frente dela, as vezes não”.
D: “Quando fala na frente dela, ela diz que quer ir?”
M: “Ela fala que quer ir, mas eu dou uma enrolada e não deixo. Até quando ela
fez seis anos eu deixei ela dar uma voltinha com ele na casa da avó dele porque
ela queria ver a avó dela. Ela não tem contato com ninguém da família dele,
ninguém liga, ninguém visita, ninguém nada. Então quando ele às vezes pede, eu
deixo ele levar ela pra dar uma voltinha de meia hora, uma hora pra ela ver a avó,
pra ter contato com alguém do lado dele, porque fora isso ninguém nem tchum”.
D: “E com você; como é a relação dela com a mãe?”
M: “Depende, porque ela é assim, se eu tivesse que deixa-la na minha mãe pra
sair quando eu morava na minha casa, ela ficava com minha mãe numa boa. Se a
minha irmã quisesse leva-la pra passear ela vai, mas ela é bastante agarrada sim.
É que ela dorme na minha mãe, passeia com minha irmã, minha mãe, minha tia,
fica o dia inteiro longe, mas é bastante apegada independente disso”.
D: “Ela é apegada mas permite que você tenha um tempo para você sair,
passear?”
M: “É, às vezes quando ela acorda no meio da noite ela vai pra minha cama. Eu
não acostumei a dormir comigo, mas se ela acordar no meio da noite ela corre pra
minha cama, às vezes até me enforca (risos). Ela é apegada em termos, não é
chiclete, é uma coisa normal. O que é que ela desenhou, eu posso ver?”.
D: “Pode” (mostrando os desenhos da menina).
M: “Quem é essa aqui? Ela fez a bisavó, que ela vê uma vez por mês e não fez o
pai. Sabe, eu até prefiro que ela não veja ele, porque quando a gente se separou
ele queria voltar e chegou a dizer que ia me matar caso eu não voltasse pra ele. É
por isso que eu não deixava que ela saísse sozinha com ele, já pensou se ele
fizesse alguma coisa com a menina. No aniversário dela deste ano ele deu uma
bicicleta usada pra ela, e teve a cara de pau de falar que era do filho da mulher
que ele está agora, e que o dinheiro que ele ia usar para comprar o presente ele
deu pra esposa dele comprar roupa nova pro menino. Na páscoa do ano passado
51
ele teve coragem de aparecer um mês depois com um ovo de páscoa dizendo
que esperou um pouco porque depois os preços ficam mais baixos...”.
Análise do desenho de família de Alice:
No primeiro desenho, podemos observar que a menina aparece sozinha,
conforme ela fala na história, apesar do pedido de que se desenhasse uma
família. Neste desenho, aparece uma outra figura humana feminina, mas que não
é citada pela menina em nenhum momento da história. Isso pode indicar que a
menina não se sente parte da família, tanto que está fora de casa e em uma
história que intitula “Pela rua vou caminhando”. Essa frase nos traz indícios de
que a criança está sem rumo, excluída da casa. Isso pode estar refletindo o
momento de vida atual, pois a mãe contou durante a entrevista que se mudou na
semana anterior ao teste com a filha para a casa de seus pais, pois antes
moravam somente as duas. Isso pode ainda se confirmar no segundo desenho,
onde ela não se representa.
No desenho da própria família, a menina não representa a figura paterna,
porém o cita enquanto desenhava o casal de avós. Neste caso, o avô é a única
figura masculina do desenho. Quando fala do pai, mostrou certo arrependimento
por não ter feito para ele o presente do dia dos pais, se justificando com o fato de
não saber se ele apareceria. Contou ainda que se soubesse faria dois, deixando
claro que reconhece o avô como uma referencia masculina, e por isso não cogita
tirar seu presente e oferecer ao pai. Alice indica que há um desejo de que esse
pai faça parte de sua família, e que para ela isso só é possível se a mãe se casar
novamente com ele. Parece que há uma tentativa de cria a própria família, pois
fala na história que gostaria de ter uma irmã, mas somente se fosse filha de seu
pai com sua mãe, o que nos faz supor que ela só teria uma família se fosse
nessas condições, pois quando representa o desenho da própria família, desenha
a família da mãe, e não se inclui nesta. Quando conta a história sobre a
nascimento das pessoas, disse que a mãe foi a última a nascer, e no final afirma
para a aplicadora que esta sabia que ela havia sido a última, se colocando na
família em uma momento onde a história já parecia ter terminado, talvez pedindo
da aplicadora uma confirmação de que faz parte da família. Ainda nos chama a
atenção o fato do avô ser representado pela menor figura humana, o que pode
indicar uma desvalorização da figura masculina. Isso pode ainda ser percebido no
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fato da menina comentar que o avô tem somente duas blusas e usar sempre a
mesma. Essa desvalorização possivelmente se dá pela ausência paterna.
A mãe, ao ver os desenhos, achou interessante o fato de a filha ter
desenhado sua bisavó, já que a vê somente uma vez ao mês. Isso nos induz a
pensar que a bisavó é alguém bastante afetiva, por ser a figura dominante do
desenho e aparecer de braços abertos e mãos grandes, com uma flor estampada
na blusa.
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4.1.2. André
Idade: 5 anos e 11 meses
Data de nasc.: 21/10/1996
Escolaridade: cursando o pré primário
Mora com os pais, um irmão e um tio
Data da aplicação: 03/10/2002
Genetograma:
pai
Fi
lho
mãe
Fi
lho
Desenho de uma família qualquer:
O garoto pegou o lápis grafite e desenhou uma figura feminina do lado esquerdo
da folha. Depois desenhou uma figura masculina ao lado da primeira, na parte
superior. Em seguida desenhou a pessoa que está abaixo da segunda, seguida
pela pessoa a direita, e por ultimo a figura maior, no canto direito da folha. O
menino fez todos os desenhos de figura humana começando pela cabeça, depois
o corpo, os membros e por último o cabelo. No final da atividade, desenhou o
solo.
A: “É a minha família. A minha família foi na praia, a minha família. Depois eu fui
numa festa, depois eu fui no Hopi Hari, depois eu fui no Playcenter. Depois eu fui
na casa da minha avó”.
D: “Quem é quem aqui no seu desenho?”
A: “Esse é meu pai (5º), minha mãe (4º), não. Meu pai (5º), eu (4º), meu irmão
(2º), minha mãe (3º) e minha, minha tia”.
D: “E o que mais?”
A: “Só”.
D: “Primeiro vocês foram para a praia. E aí, o que vocês estavam pensando?”
A: “A gente ficou cinco anos na praia”.
D: “Cinco anos. Por que tanto tempo?”
A: “Meu pai falou, (silêncio), que era pra ficar cinco anos no Playcenter e no Hopi
Hari”.
D: “E o que as pessoas pensavam disso?”
A: “(silêncio). É, meu pai, minha mãe falou que, que todo mundo, não, ... meu pai
falou que não era pra ficar brincando no mar”.
D: “Por que?”
A: “Se não o brinquedo ia lá pro fundo do mar”.
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D: “E o que as crianças pensavam de não poder brincar no mar?”
A: “A gente brincava na areia”.
D: “E era legal ou era chato brincar na areia?”
A: “Legal”.
D: “Depois que voltaram da praia você falou que foi no Playcenter, no Hopi Hari e
na casa da avó. Como foram esses passeios?”
A: “Depois eu ainda fui na casa da minha tia”.
D: “Só você?”
A: “Meu pai, eu e o meu irmão. Minha mãe não foi”.
D: “Por que?”
A: “Ela estava doente”.
D: “E como termina essa estória?”
A: “Eu não sei”.
D: “Dá um título pra essa estória”.
André escreve ELA, e se levanta para ir embora.
Entrevista com a mãe de André (por telefone):
As entrevistas com as demais mães foram realizadas na escola das
crianças. No caso da mãe de André, foi feita por telefone, já que esta nos deu
como alternativa entrevistarmos pessoalmente o pai do menino ou usarmos o
telefone para falar com ela, alegando que não tinha tempo para ir até a escola da
criança.
D: “Qual a idade do André?”
M: “5”.
D: “A data de nascimento dele qual é?”
M: “21/10/96”.
D: “Ele é o filho mais velho ou mais novo?”
M: “Ele é o mais novo”.
D: “Qual a idade da senhora e de seu marido?”
M: “Eu tenho 33 e o meu marido, pai dele tem 31”.
D: “Como é o relacionamento de André com o pai?”
M: “Ah, é muito bom, normal no meu ponto de vista né. Ele é muito grudado com
o pai, porque onde o pai vai ele também quer ir, o que o pai faz, ele também quer
fazer, ele quer fazer tudo igual sabe; até mesmo as músicas que o pai dele gosta
ele também diz que gosta”.
D: “O pai participa de reuniões escolares, organização de festas de aniversário,
cuidados diários da criança?”
M: “Sim, o pai leva na escola, fica bastante junto com ele. A gente aqui em casa
tem o costume de sentarmos todos juntos para almoçar ou jantar, e o pai dele
leva bastante pra sair, pra passear”.
D: “Quem é o responsável pelos limites do menino?”
M: “Eu acho que os dois, sabe, porque ele é bastante obediente. Eu acho que
quando precisa mais de um limite mesmo, uma bronca, aí é comigo. Eu sou mais
firme, quando precisa eu pego a cinta e só ameaço ele que daí ele já fica mais
quieto”.
D: “Como é o relacionamento da criança com os demais membros da família?”
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D: “Ele é bastante apegado com todo mundo. Tem o tio dele que mora aqui, ele
tem 33 anos e vai casar no final do ano, daí vai mudar. As vezes a namorada dele
vem e fica aqui, no final de semana. Hoje mesmo meu filho viu que o tio ia na
casa da mãe dele, minha sogra, e ele chorou pra sair com o tio, mas não dava pra
ele levar. Ele até ligou pro pai pra saber se dava pra levar ele pra lá depois, então
ele queria o tio e também quer o pai junto”.
D: “O menino sente ciúmes dos pais?”
M: “Ele sente ciúmes da gente com o Caio, que é mais velho. Mas eu acho que é
normal porque é só quando a gente agrada o Caio, dá alguma coisa pra ele que
ele fala que a gente gosta mais do Caio do que dele, essas coisas de irmão”.
Análise do desenho de André:
O desenho da criança apresenta traços infantilizados, com representação
corporal mais elaborada para as figuras que representam a tia, o pai e a ele
próprio. O menino representa uma linha de solo, mas as figuras humanas não
estão apoiadas nessa base. A figura do pai é aquela que aparece em tamanho
maior, o que sugere a autoridade paterna, além de mostrar também uma
identificação com este, já que ele se desenha ao lado do pai. A figura materna
aparece em tamanho diminuído, até menor do que a da tia, o que reforça a idéia
de que o pai é a autoridade da família. Essa hipótese é reforçada na história do
desenho, onde o menino cita muitas vezes o pai, e quando cita a mãe a exclui de
um passeio. Na história, o pai é citado como alguém que dá a ordem e é
obedecido. Na entrevista com a mãe, ela indica que o filho se identifica com o pai
quando fala que ele quer fazer tudo igual ao pai, e até mesmo gostar das músicas
que o pai gosta.
Ainda na história, é interessante destacar que André exclui a mãe de uma
passeio, onde coloca o pai e o irmão, alegando que a mãe não fora porque estava
doente. Logo em seguida, ele termina a história e diante do pedido de um título,
ele escreve “Ela” em letras grandes, bem no topo da folha.
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4.1.3. Bianca
Idade: 5 anos e 5 meses
Data de nascimento: 23/04/1997
Escolaridade: cursando o pré-primário
A criança mora com os avós paternos, os pais e os dois irmãos
Data de Aplicação: 17/09/2002
Genetograma:
pai
filha
mãe
filha
Fi
lho
Desenho de uma família qualquer:
Bianca fez o primeiro desenho da seguinte forma: primeiramente, fez uma
figura que identificou como Renata, a mãe. Do lado oposto, desenhou uma figura
masculina menor, a qual ela identificou como Dininho, o pai. Voltou para o lado
esquerdo, onde desenhou a mãe e fez duas flores. Logo após, desenhou do lado
direito da segunda flor, uma árvore e, logo acima, um sol. Desenhou primeiro o
tronco da árvore, depois a copa. Por último, fez a grama no chão. Primeiramente,
fez todos os desenhos com grafite. Pintou todas as figuras. Ela ia pintando cada
figura, à medida que ia fazendo o desenho.
C: “Você pode contar uma história sobre esse desenho?”
B: “Era uma vez, uma mulher que queria casar. E aí, depois ela achou um
homem. Então, depois eles ganharam um filho. Eles ficavam brincando, brincando
e aí, de repente, eles conseguiram trabalhar num serviço. Aí, trabalhavam,
ganharam muito dinheiro e continuaram brincando com seus brinquedos.
Compraram um monte de coisas; comida, roupas. Aí era todo dia ensolarado,
ensolarado. Só que à noite, todos os dia chove, chove, chove e você sabe que
todos os dias têm estrela à noite, lua à noite. Deixa as flores bem bonitinhas, as
plantinhas. Vou te contar como eram as florzinhas: o pau das florzinhas era preto,
as folhas da florzinha era verde, a bolinha era amarela e a florzinha era ‘azús’. Aí
eles plantaram uma árvore, bem bonita, uma árvore bem feliz: no pauzinho era
marrom, nas folhinhas era verde. O solzinho era amarelo e os pauzinhos eram
‘vermelho’. Eles ganharam um monte de filhos; ficaram com dez filhos.
Passeavam, iam pra escola, tudo eles faziam. Só que pegaram uma menina e aí
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eles ficaram com onze crianças. Aí uma não gostava de chá mate, não gostava
da escola, não gostava de nada; não gostava da mãe, não gostava do pai, não
gostava da árvore, não gostava do parque. E aí eles conseguiram tirar a mãe,
quer dizer, tirar a filha que não gostava de nada, nada, nada. Aí eles tiraram e
viveram felizes para sempre.”
C: “Tiraram como?”
B: “Eles tiraram a filha, levaram pra outra casa, a filha e deixou ela lá com outra
pessoa.”
C: “E eles ficaram com os outros dez filhos?”
B: “É, os outros dez filhos.”
C: “Como é o nome deles?”
B: “A mãe se chamava Renata, o pai se chamava Dininho e uma filha se
chamava Isabela, outra filha se chamava Bruna, um homem, o filho se chamava
Lucas, uma menina se chamava Natália, outra se chamava Amanda, um se
chamava Artur, outro se chamava Lucas. Quantos eu já falei?”
C: “Sete.”
B: “Aí, tinha uma menininha que eles ganharam, que se chamava Amanda de
novo, uma filha se chama Isabela, outro filho se chamava Betinho, outro se
chamava Betinho, outro se chamava o menino maluquinho.”
C: “Como era o nome da menina que foi morar na outra casa?”
B: “Ela se chamava Joana.”
Desenho da própria família:
No segundo desenho, fez cinco figuras humanas. Começou da esquerda para a
direita. Primeiro, desenhou Renata, a mãe. Logo após, desenhou Isabel (irmã),
Lucas (irmão), Bruna (irmã) e, por último, Dininho, o pai. Coloriu a mãe e as filhas
com as mesmas cores, seguindo as usadas no desenho anterior. Coloriu o pai e o
filho também com as mesmas cores, justificando que meninas se vestem como a
mãe e meninos como o pai. Ela escrever em cima de cada desenho “Papane”,
referindo-se ao pai, “Mei”, referindo-se à mãe, e “Ima”, referindo-se a ela própria,
ao irmão e a irmã. Na primeira ilustração, ela desenhou grama. Na segunda
ilustração, fez todas as figuras no alto da folha e não representou a linha de solo.
C: “Conte uma história desse desenho.”
B: “Era uma vez uma mãe que se chamava Bruna, quer dizer, Renata e o pai se
chamava Dininho. E eles queriam ter muitos filhos. Eles ganharam três filhos. Eles
brincavam na casa, brincava de escovar o dentinho, jogar o jogo da memória. Só
que eles se chamavam Isabela (irmã), Lucas (irmão) e Bruna (irmã). Aí, também,
a Bruna um dia ela estava na praia. Só estava a mãe, o pai, o filho, a filha e a
filha. Então, aí ela queria jogar e ela chorava, chorava, porque ela queria jogar. Só
que não dava, era o dia de ir embora. Antes do dia de ir embora. Então aí, a mãe
chegou lá na casa da avó. Eles estavam indo para a cada da avó. O vô ligou para
a Bete. Ele ligou pra Bete vir buscar nós. Só que aí, teve que esperar, esperar,
esperar. Só que ela resolveu ir embora. Aí ela foi embora, nóis teve que ir com o
avô, não tinha ninguém em casa. Nóis teve que ir para a outra avó. Aí, ficamo,
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ficamo, ficamo e o pai veio buscar nós. Aí nós fomos para casa e vivemos felizes
para sempre.”
C: “E o que mais?”
B: “Só.”
C: “E quem é a Bete?”
B: “A Bete era a minha avó. E o Dino era o meu vô. A minha outra avó se
chamava Sueli e o outro vô se chamava Antônio. Pronto.”
Entrevista com a mãe da Bianca:
D: “Com quantos anos está a Bianca?”
M: “A Bianca está com cinco”.
D: “Qual a data de nascimento dela?”
M: “23/04/97”
D: “Você é casada, não é?”
M: “Sou casada, não no papel mas moro com ele”.
D: “Desde que ela nasceu?”
M: “Desde que ela nasceu, antes até dela nascer”.
D: “Como é o relacionamento da Bianca com o pai?”
M: “Ele gosta, ele participa de tudo o que ela faz. Ele gosta, incentiva. Ela gosta
muito dele, pelo menos aparenta gostar. Ela brinca com ele, com todo mundo. Ela
se expressa bem, eu acho. Ela se comporta muito bem perto do pai e da mãe”.
D: “Qual a sua idade e a de seu marido?”
M: “25, os dois”.
D: “Vocês moram com os avós paternos da Bianca?”
M: “É, a mãe dele e o marido atual dela, que não é o avô. Ela também tem uma
boa relação com eles. Nunca teve briga, nunca teve nada. Ela nunca expressou
que não goste deles, nunca teve nenhum comportamento diferente com nenhum
dos dois”.
D: “E na questão dos limites, é com você ou com o pai?”
M: “Olha, é mais o pai, porque tem hora que não adianta eu falar que continua e o
pai vai e daí ela obedece mais. Com os três são assim”.
D: “E você acha que tenha outra figura masculina com quem ela se identifique?”
M: “Eu acho que é o pai mesmo. Porque quando eu falo ela até obedece, mas
como os irmãos são mais novos, quando a gente briga eles não estão nem aí, daí
ela acha que pode fazer igual, ela relaxa um pouco. Quando ela está sozinha
comigo ela me obedece, como os outros. Agora quando junta os irmãos eles já
começam a fazer manha e daí eles obedecem mais ao pai. Embora ele participe
de tudo, ele goste, ele brinque com eles, ele tem o limite dele. Ele fala que
nenhum dos três dá trabalho pra ele mas eu fico meia louca com os três sozinha.
Eles obedecem bem mais ao pai do que a mim quando estão juntos. Como foi o
desenho da Bianca?”
D: “Nós ainda não analisamos o desenho da Bianca porque era preciso fazer a
entrevista primeiro. Quando tivermos terminado o trabalho nós traremos uma
cópia para que vocês possam ver como foi a pesquisa”.
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Análise do desenho de família de Bianca:
Ao analisarmos os desenhos, pudemos perceber que a menina possui um
traço bastante forte, e usa cores na tentativa de diferenciar as figuras masculinas
e femininas. O primeiro desenho apresenta uma linha de solo, o que desaparece
no segundo, onde a família aparece na parte superior da folha.
Olhando os dois desenhos, supomos que no primeiro há uma maior
resistência, pois aparecem duas flores e uma árvore entre o casal, assim como os
filhos aparecem no segundo desenho. Dessa forma, podemos identificar a flor
roxa como a irmã e a flor azul como o irmão, sendo que a árvore que aparece ao
lado do pai representa a menina. Isso pode ainda ser reforçado pelas cores que
dá as flores, lembrando a diferenciação do feminino e masculino que aparece no
segundo desenho.
Além da posição das figuras no desenho, podemos identificar o complexo
edípico da criança também nas histórias que conta sobre seus desenhos. Na
primeira, ela fala “tirar a mãe”, mas logo se corrige dizendo que os pais tiraram a
filha, lavaram para outra casa e viveram felizes para sempre. Essa frase ilustra o
complexo edípico, onde aparece claramente a tentativa de se colocar no lugar da
mãe mandando-a embora e logo a correção da fala, mostrando que ela sabe que
é ela quem deve desistir dessa relação. Já no início da segunda história, o ato
falho ocorre novamente, e ela conta “era uma vez uma menina que se chamava
Bianca”, e logo corrige colocando nome da mãe, seguido do nome do pai, o que
reforça a hipótese citada anteriormente.
Na entrevista com a mãe, nós pudemos perceber a figura paterna como
aquela que impõe o limite que a mãe sozinha afirmou não conseguir estabelecer.
Isso pode indicar que Bianca meça forças com a mãe quando essa tenta exercer
autoridade. A mãe cita ainda que isso ocorre quando os outros irmãos estão
presentes, o que mostra que quando está sozinha com a mãe, a criança não tem
com quem competir. Isso pode ser identificado no primeiro desenho, quando ela
representa a si como árvore e sol, figura dominante da família, e que se coloca
entre o pai e a mãe, dificultando a relação do casal.
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4.1.4. Carla
Idade: 6 anos e 1 mês
Data de nasc.: 07/09/1996
Escolaridade: cursando o pré primário
A criança mora com a mãe, a avó materna e com uma irmã.
Mantém contato com o pai de quinze em quinze dias, nos finais de
semana.
Data da aplicação: 01/10/2002
Genetograma:
pai
mãe
filha
filha
Desenho de uma família qualquer:
Carla desenha quatro figuras humanas,
da esquerda para a direita,
dizendo, durante a estória, que são, respectivamente, a mãe, o pai, e os filhos. A
menina faz os desenhos começando pela cabeça, depois o corpo, os braços e por
fim as pernas. Vale comentar que ela não verbaliza durante os desenhos.
D: “Pode contar um história desse desenho.”
C: “Era uma vez uma menina que se chamava Rosileide. Um dia ela foi passear,
aí ela encontrou um homem que quis se casar com ela. Eles tiveram um filhinho e
viveram felizes para sempre.”
D: “Quem que é quem aqui no desenho?”
C: “Esse são os bebês, esse é o homem, essa é ela.”
D: “E o que mais?”
C: “Só.”
D: “E o que ela sentiu quando encontrou o homem e casou com ele?”
C: “Ela gostava muito dele.”
D: “E os filhinhos, o que pensaram?”
C: “Eles pensaram que não se casaram.”
D: “Quem não se casou?”
C: “Os bebês pensaram que não se casaram.”
D: “Ah, os bebês não se casaram.”
D: “E daí, o que acontece depois?”
C: “Só.”
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Desenho da própria família:
Carla desenha cinco pessoas, que desta vez possuem apenas o contorno
da cabeça, sem expressão. O esquema de desenho corporal continua o mesmo
que do desenho anterior, só que desta vez aparecem cinco personagens, que
foram confeccionados da seguinte maneira. A segunda figura humana da
esquerda para a direita foi a primeira a ser desenhada, seguida das demais
figuras nesta ordem. A última figura humana que desenhou foi a figura da
esquerda, que ela denominou com sendo o pai. As demais figuras são a mãe, a
amiga e as filhas.
D: “Você conta pra mim um história desse desenho?”
C: “Era uma vez uma moça que se chamava Déia. Ela passeou e encontrou um
homem e se casou com ele. E a amiga dela foi visitar ela. E os filhinhos dela
ficaram muito felizes.”
D: “Por que eles ficaram felizes?”
C: “Porque eles casaram.”
D: “Quem casou?”
C: “A Déia e o homem.”
D: “Quem que é quem nesse desenho?”
C: “A Déia é essa, esse é o homem, essa é amiga e essas são as filhas.”
D: “E por que a amiga foi visitar?”
C: “Porque ela estava sentindo muita saudade.”
D: “De quem?”
C: “Dos dois.”
D: “Que dois que ela estava sentindo saudade?”
C: “Da Déia e dele.”
D: “E aí o que acontece nessa visita?”
C: “Aí eles conversaram.”
D: “Do quê?”
C: “De casamento.”
D: “ E depois?”
C: “Só.”
Entrevista com a mãe de Carla:
D: “Com quantos anos está a Carla?”
M: “Com seis anos”.
D: “Seis. A data de nascimento dela qual é?”
M: “É 7/9/96.”
D: “É a filha mais nova? Quantos filhos são?”
M: “É a filha mais nova e são duas meninas.”
D: “Quanto tempo você já está separada?”
M: “Cinco anos. A Carla tinha um ano.”
D: “Então como foi para ela?”
M: “Ela não percebeu muito. Ela é muito calada, diferente da mais velha, que é
mais madura. Então eu conversei muito com ela , disse que fiquei morando um
tempo com o pai dela, pois ela nem sabia. Hoje ele tem uma outra mulher. Então,
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ela achava que ele sempre teve e eu expliquei para ela que não é assim. Ela é
uma criança alegre, já a outra amadureceu muito mais depressa, pois sentiu e
nem brincava quase. Só queria conversar com adulto. O mundo dela é adulto.”
D: “Você casou de novo ou não?”
M: “Não. Achei complicada essa coisa de colocar alguém em casa. Acho que vai
dar um nó na cabeça. Talvez não”.
D: “Ela tem contato com o pai a cada quinze dias?”
M: “Sim , embora agora ele até de vez em quando tem ido buscar na escola . Ele
gosta dela. Ele não tem muita maturidade, é meio criança. Ele é egoísta, quer
jogar a bola dele, não assume muito as responsabilidades.”
D: “Quando ela vai, ela dorme na casa dele?”
M: “Sim . As duas passam o fim de semana com ele.”
D: “Ele tem outros filhos?”
M: “Não. Só as duas.”
D: “Festas, reuniões na escola, ele participa ou não?”
M: “Geralmente sim. Antes, a outra não queria que ele fosse ou ia junto, foi um
caso aqui na escolinha, pois elas estão aqui desde pequenas e as pessoas
ficaram chocadas, por ele trazer outra mulher. Agora ele está participando mais
eu acho, mesmo em aniversários ele vai.”
D: “Vocês fazem a festa juntos, planejam juntos ou não?”
M: “Às vezes ele ajuda em alguma coisa, compra alguma coisa , mas geralmente
são os pais dele.”
D: “Essas visitas quinzenais vocês entraram em algum acordo ou foi através de
juiz?”
M: “Foi estabelecido. E ele trabalha no Fórum, não sei se ele segue porque é uma
espécie de obrigação e se ele furar pode dar algum problema para ele. Ele pega
sempre e eu também sempre quis manter ele em contato, mesmo quando a gente
se separou eu falava pra ele ir buscar. Eu nunca fiz objeção, mas fico de antena
ligada, pois não confio muito.”
D: “Antes da separação ele era participativo ou era ausente?”
M: “Eu acho que ele era participativo, dava banho, levava no médico. Só que eu
acho que ele era muito agressivo, ele batia. A mais velha tinha três anos e ela
tinha muito medo dele. Ele não queria comer na mesa, parecia que ele era
criança, isso me cansava. Ele não tinha disciplina e essas coisas eu achava que
era demais. Tanto que quando me separei eu fiz terapia, a gente tinha uma
relação, e eu era mãe para ele. A mãe dele morreu quando ele nasceu e a tia
criou .Eu fui a figura de mãe dele. Ele começou a sair, arrumar outras mulheres,
uma coisa de louco. Não deu para agüentar.”
D: “Como é hoje o relacionamento da Carla com ele? Ela vai numa boa, volta
numa boa?”
M: “Eu acho que ela gosta dele. No final da semana passada ela estava com
febre e eu falei para ele que não ia dar e ele sugeriu trocar o fim de semana. Ela
falou que queria ir com o pai. Eu sempre fico com a parte ruim. Ela não gosta de
ficar com a mulher dele , ela xinga, ela acha ela meio chata mesmo, que ela
manda nele. Talvez também ela pense que podia ser a mãe dela. Outro dia ela
estava vendo o Chaves e eu disse que ele não tinha nem mãe nem pai e ela
disse que ela tem mãe e pai, mas não estão juntos. “
D: “Ela fala alguma coisa no sentido de que quer que vocês voltem, que vocês
casem de novo?”
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M: “Não. A mais velha fala: imagine se eu sou louca de querer voltar para meu pai
e a Carla não fala nada. Ele é nervoso, bravo e o ambiente é diferente. Eu com a
minha mãe, ela acha que é mais leve e com ele não”.
D: “Talvez pela agressividade dele?”
M: ”Eu não entendo muito se é isso, mas gosto de ler psicologia e eu acho, pois
sou eu, minha mãe e elas, fica mais light”.
D: “Você acha que ela tem outra figura masculina com quem ela se identifica?”
M: “Sim. O marido da minha irmã, que ela adora e ele paparica.”
D: “Você acha que foi a figura masculina que ela escolheu na sua família?”
M: “Não sei, pois tem meu irmão e até o ano passado ele morava com a gente.
Ele casou, mas ela também gosta muito dele. Acho que ela deve ter uma figura,
deve buscar. Meu cunhado pega ela no colo, vai passear com ela.”
D: “E a relação dela com você? Ela tem ciúme, ou não, se você casar
novamente?”
M: “Não, pois eu cheguei a namorar mas ele nem chegou a se relacionar com ela
. Ela fala às vezes que eu tenho que arranjar um namorado, ela é menos
ciumenta que a outra que toma mais partido. Não sei se daria certo,fico até
pensando como seria, teria que ser uma pessoa muito legal saber dividir, pois
homem é egoísta” .
Análise do desenho de família de Carla:
O primeiro aspecto que nos chama a atenção é que ambos os desenhos
não tem cores e nem linha de solo. As mãos do todos os personagens, dos dois
desenhos, estão abertas, o que pode indicar que há uma busca por contato
afetivo. No desenho da própria família, parece que as mãos forma desenhadas
em formato de coração, o que pode reforçar a idéia de busca por afetividade.
No desenho de uma família qualquer, a posição dos pés do pai difere do
restante da família, o que pode querer referir a separação do casal, já que o pai
parece caminhar para frente e a mãe, com os filhos, para outra direção. Isso
mostra que Carla percebe que o pai seguiu um caminho diferente, já que se
casou novamente; enquanto a mãe demonstra viver para as filhas, já que não
entrevista, disse que teve um namorado que nem chegou a ser apresentado às
filhas.
No segundo desenho, aparece a inclusão de uma figura feminina, que ela
declara ser uma amiga. É possível que essa amiga esteja representando a atual
esposa do pai. O que parece é que Carla coloca a mãe entre o casal, pois
desenha o pai e a mãe de mãos dadas, e se refere a outra figura feminina como
alguém que esporadicamente as visita, quando sente saudades. Visitas
esporádicas é o que a criança vivencia na relação com o pai, então podemos
supor que ela transforma a mulher do pai em visita, colocando dessa forma, a
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esposa do pai na condição que a criança vivencia atualmente. O desejo da
criança é de que os pais se casem novamente, pois esse tema é abordado nos
dois desenhos, onde ela coloca até mesmo bebês pensando que eles não se
casaram. Essa fala pode ser relacionada a entrevista com a mãe, quando esta
fala que a filha era bebê na época da separação, e que nem sabia que os pais
eram casados. Esses dados podem levar a pensar que no desenho da própria
família, a criança se representa sem os pés porque isso sinaliza a dificuldade em
entender sua história, sua origem, o que é fundamental para a estruturação
psíquica da criança.
O desenho de uma família qualquer possui a fisionomia nos rostos das
figuras, e no desenho da própria família os rostos não são preenchidos.esse dado
pode demonstrar que o desenho da própria família é da ordem do desejo, onde os
pais se casam e a mulher do pai é alguém de fora da casa, da família. Como é um
desejo, as pessoas não tem expressão.
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4.1.5. Cassia
Idade: 6 anos e 11 meses
Data de nasc.: 23/11/1995
Escolaridade: cursando o pré primário
Mora com a mãe e os avós
Mantém contato com o pai sempre que possível e passa dois finais de
semana por mês com ele.
Data da aplicação: 08/10/2002
Genetograma:
pai
mãe
filha
Desenho de uma família qualquer:
A criança começou seu desenho pegando o lápis grafite e fazendo uma
figura feminina do lado esquerdo da folha, iniciando pela cabeça, o cabelo, depois
o corpo, os braços e por fim as pernas. Desta forma fez todos os desenhos de
figura humana, da esquerda para a direita. Quando tinha desenhado sete, das
oito figuras que fez, indicou que tinha terminado seu desenho, fazendo a oitava
pessoa no meio da estória. Quando lhe foi pedido uma estória, Cassia ficou
bastante pensativa e não contou espontaneamente.
D: “Quem é quem aqui no seu desenho?”
C: “Mãe, pai, tio, bisavó, tia, vó e vô.”
D: “E o que eles estão fazendo?”
C: silêncio “Estão arrumando a casa”.
D: “Quem está arrumando a casa?”
C: “A mãe”.
D: “O que ela está pensando?”
C: “Eu esqueci de fazer um”... – Cássia pegou o lápis grafite e fez o oitavo
desenho de figura humana. “A mãe está pensando em fazer uma festa pra filha,
uma surpresa pra filha”. Neste dia, estava pra começar uma festa de aniversário
de uma criança da escola.
D: “Por que?”
C: “Porque era aniversário dela”.
D: “E o que acontece depois?”
C: “Ela convidou as amigas dela”.
D: “E como é a festa?”
C: “É... a mãe tinha feito, tinha chamado um palhaço pra ir na casa dela”.
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D: “E ele foi?”
C: “Foi”.
D: “E o que a filha pensou disso?”
C: “Legal”.
D: “Mais alguma coisa você quer contar dessa estória?”
C: “Não”.
Desenho da própria família:
Cassia seguiu o mesmo esquema corporal que fez no desenho anterior, da
esquerda para a direita, também fazendo a última pessoa durante a estória. A
criança também não contou a estória espontaneamente.
D: “Você me conta uma estória deste desenho?”
C: silêncio. “Eu sempre esqueço de fazer isso”. Cassia começou a desenhar a
figura humana da direita.
D: “Do que você esqueceu?”
C: “Da filha”.
D: “E nesse desenho, quem é quem?”
C: Apontando da esquerda para a direita - “Essa é a mãe, essa é a avó, esse é o
vô, esse é o pai, esse tio, essa é a tia, essa é a outra avó e essa é a filha”.
D: “E nesse, o que eles estão fazendo?”
C: “Comendo”.
D: “Quem está comendo?”
C: “Todo mundo”.
D: “O que eles estão pensando?”
C: “Eles estão pensando em ir pra algum lugar”.
D: “E o que acontece?”
C: “Aí eles foram...pro clube”.
D: “Quem foi”.
C: “A mãe, o pai, o tio e a tia. E a filha”.
D: “E aí, como é no clube?”
C: “Tem piscina, tem natação, tem parquinho, tem escorregador pra escorregar
na água, tem o túnel pra você cair na água. Eu já fui num clube, no clube Tiete,
que lá tem isso”.
D: “É, gostoso né?”
C: “É, mas eu nunca fui lá, só fui no escorregador”.
D: “E aí, quem vai na piscina, no escorregador do clube?”
C: “A filha. E a mãe, o pai, e o tio e a tia ficam tomando sol”.
D: “E depois, como termina a historia?”
C: “Eles vão pra casa”.
D: “E aí como foi esse dia pra eles?”
C: “Foi bom”.
D: “Mais alguma coisa?’
C: “Não”.
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Entrevista com a mãe de Cassia:
D: “Você chegou a morar com o pai de sua filha?”
M: “Morei, deixa eu ver quanto tempo.Cinco, quase seis anos”.
D: “Quantos anos ela tinha quando vocês se separaram?”
M: “Quatro”.
D: “Hoje ela está com seis?”
M: “Hoje ela está com seis. Vai fazer sete”.
D: “E hoje, como é o contato com ele. Você colocou na autorização ‘sempre que
possível e dois finais de semana por mês’.”
M: “É, o que a gente estabeleceu de acordo foi que eu ficasse um final de semana
e ele ficasse outro, mas ele pega quando ele quer. O dia que ele fala que está
com saudades dela pergunta se pode dormir com ela eu nunca pus nenhum
impecilho, ele sempre pode”.
D: “As visitas foram estabelecidas por juiz ou foi um acordo entre vocês?”
M: “Não, foi a gente que estabeleceu esse acordo entre a gente. Quando ele não
podia ele falava que não podia, mas ele sempre procurou ficar com ela”.
D: “Ela é filha única?”
M: “Ela é filha única minha. Dele ela é a primogênita, ele tem mais um”.
D: “Ele casou novamente?”
M: “Ele casou de novo, tem uma menininha de dez meses. Eu tenho um bom
relacionamento com a esposa dele e a gente não tem problema nenhum, temos
um acordo legal entre nós”.
D: “E você namora alguém ou chegou a casar novamente?”
M: “Eu namoro. Fiquei noiva do meu atual namorado. A gente brigou e resolveu
ficar só namorado, mas já faz dois anos”.
D: “Como é o relacionamento da Cassia com o padrasto e madrasta?”
M: “Com a madrasta ela se dá bem. Isso é o que eu percebo porque a gente
conversa bastante, eu não tenho esse problema de ex. eu vejo que a menina
gosta muito dela, não tem medo de ir com ela, gosta de ficar com ela, mas tem
muito ciúme do meu namorado, de mim. Do pai ela não tem tanto, mas de mim”.
D: “Mesmo com o nascimento da irmã ela não ficou...”
M: “Ela não sentiu, eu acho que o pai dela, até conversando com a atual esposa
dele, ela também acha que ele tem uma ligação muito forte com ela, ela acha que
é o contrário, que talvez ele proteja mais a Cassia do que a pequenininha, eu
acho que o ciúme é mais dela. Ele sempre foi um pai muito participativo, trocou
fralda, deu banho, fazia dormir, acordava de madrugada, nunca foi um pai
ausente, pelo menos no meu ponto de vista sempre foi muito participativo”.
D: “E como vocês fazem com reuniões escolares, festas de aniversários?”
M: “Olha, o aniversário dela, no ano passado eu preferi que ele não fosse. Eu
conversei com ele e com a esposa dele por causa do meu namorado. Ficaria um
clima meio chato porque meu namorado é muito ciumento, mas comigo não tem
nenhum problema, então nós fizemos duas festas, separado. Ele não questionou
e entendeu numa boa. Natal e ano novo cada um faz a sua festa”.
D: “E nas questões escolares, vocês participam os dois?”
M: “Quando dá, com eu viajo bastante eu falo quando tem festa na escola se ele
quer levar a Cassia, mas também se viéssemos os dois não teria nenhum
problema. Na natação teve campeonato e ele foi e eu também, não tem isso de
não poder estar no mesmo lugar que e o outro”.
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D: “Como foi a notícia da separação?”
M: “Eu peguei a Cassia e falei que a mamãe não namora mais o papai, eu falei –
ele é seu pai, vai ser sempre seu pai mas a gente não namora mais, você pode ir
com ele quando você quiser mas a gente não namora. Ela entendeu e sentiu
quando eu comecei a namorar, porque tinha um ciúme muito grande. Ela tem um
pouco ainda mas é mais velado, ela controla mais. Ela se dá bem com ele, brinca,
beija, vai no colo, mas enquanto ele não está perto de mim. Não é em relação a
pessoa dele, é comigo”.
D: “Você percebe se ela faz isso com outras pessoas em relação a você?”
M: “Com outra criança ela tem ciúme, mas com adulto não, nem com meu irmão
ou meus pais”.
D: “Ela mora com quem?”
M: “Comigo, e eu moro com meus pais”.
D: “Você acredita que ela tenha criado uma relação forte com outra figura
masculina, como o seu pai, em função de não morar com o pai?”
M: “Eu acho que não, talvez pela boa relação que ela tem com o pai. Eu nunca
impedi a relação dos dois, eu tinha que preservar a figura dele, independente do
que aconteceu com a gente, ele é o pai dela. Ele pode não ter sido um bom
marido mas ele é um bom pai e continua sendo preocupado, participativo. Não
tem porque eu barrar a relação entre eles, então eu acho que ela não substituiu.
Ela sabe bem quem é pai dela, o lugar dele na vida dela”.
D: “Isso parece ser tranqüilo para ela”.
M: “Talvez no começo tenha sido mais difícil porque ela estava acostumada com
a convivência”.
D: “Você já morava com seus pais ou não?”
M: “Não , eu voltei. Eu acho que ele era mais ausente quando a gente estava
casado do que quando separou. Agora ele é mais presente, talvez pelo fato de
conviver todos os dias e ter sentido falta. Ele é um bom pai, participativo. Agora
que vai precisar mudar de escola a gente conversa, que perfil de escola a gente
acha melhor. A gente está discutindo isso porque ela não é minha filha, ela é
minha filha e filha dele. Eu acho que isso ficou bom na cabecinha dela, acho que
ela não tem nenhum conflito”.
M: “A gente tem que optar como quer separar. Se você quer separar com mágoa
e fica remoendo essa mágoa pro resto da vida ou se é para viver uma outra vida.
Eu acho que não dá pra refletir essa frustração para os filhos, porque ela tem a
vida dela, é um ser independente de mim e vai fazer as escolhas dela. Não é
porque não deu certo que ele é uma pessoa horrível, não é por aí. Ele tem todo
direito porque ama na mesma intensidade que eu, é uma boa pessoa
independente de não ter dado certo”.
Análise do desenho de família de Cássia:
Analisando os dois desenhos, pudemos perceber uma mudança na
representação da figura materna. No primeiro, a mãe é representada de forma
singela, com vestido, aparentando feminilidade. Já no segundo, a mãe está
desenhada com traços fortes, mais agressivos e de certa forma perde o aspecto
feminino. Nos dois desenhos, a figura materna aparece em tamanho maior do que
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a figura do pai, e é sempre a primeira figura a ser representada, o que pode
indicar que esta é a figura de maior importância para a criança.
O que pudemos observar foi que a Cássia esqueceu de se representar nos
dois desenhos, fazendo a filha por último, já quando tinha sinalizado o término do
desenho. No segundo desenho, se justifica dizendo que sempre esquece de fazer
“isso”. Talvez para a criança seja difícil se representar num contexto familiar
padrão, pois ela mora com a mãe e com os avós. O fato dela esquecer de si pode
ainda indicar que se sente esquecida pelos pais, talvez pelo fato do pai ter outra
família e a mãe viajar muito.
Apesar da mãe dizer durante a entrevista que ela e a filha se relacionam
bem com a nova família do pai da menina, e que a separação é algo tranqüilo
para Cássia, podemos supor, pela história do desenho da própria família, que há
um desejo da menina em reunir os pais, pois esse parece passeando no clube
com a filha e a mãe num domingo. O normal para a criança, já que ela passa
finais de semana alternados com o pai, é que estivesse com um ou com outro, e
não com ambos.
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4.1.6. Giulia
Idade: 5 anos e 1 mês
Data de nascimento: 17/08/1997
Escolaridade: cursando o jardim da infância
A criança mora com a mãe, a avó materna e o padrasto da mãe.
Mantém contato com o pai dois finais de semana por mês.
Data de aplicação: 17/09/2002
Genetograma:
pai
mãe
filha
Desenho de uma família qualquer:
Giulia desenhou três figuras humanas. Começou pela figura do lado esquerdo, a
qual identificou como sendo sua mãe. Logo após, fez a segunda figura (meio),
identificada como sendo o tio Dani e logo após fez a terceira figura (direita),
identificada como sendo sua avó. Cada figura foi desenhada de cima para baixo,
na seqüência: cabeça, tronco, pernas, pés, braços e mãos. Giulia coloriu cada
figura logo após desenhada. A figura maior à esquerda possui cabeça, tronco,
braços, mãos, pernas e pés. A figura do meio possui braços e mãos grandes,
desproporcionais ao tamanho do tronco que aparece representado por duas
linhas verticais e paralelas; essa figura não possui pernas e pés. A 3ª figura
(direita) é menor, possui cabeça, tronco, braços e pernas, mas não possui mãos e
pés. O desenho foi feito centralizado no alto da folha e não apresenta linha de
solo. Durante a confecção do desenho, Giulia falou do tio Dani, que é um gigante,
que é maior do que sua avó, maior do que ela e maior que sua mãe. Giulia disse
que antes não tinha um tio, agora tem porque a avó se casou de novo. Ela fez
todos os desenhos com lápis grafite e foi colorindo à medida que ia fazendo cada
desenho.
C: “Você pode contar uma história sobre o desenho que você fez?”
G: “Inventando?”
C: “Uma história sobre o desenho que você fez.”
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G: “Eu vim aqui pra escola e fui no parque da Mônica, no outro dia com a minha
amiga Bruninha, e a mãe da Bruninha. E tinha que ir descalça, senão ia quebrar
todos os brinquedos e a minha tia, a mãe da Bruninha, ela foi descalça e a minha
mãe não. Eu fui de sandália. Aí né, eu vim pra escola outro dia e almocei aqui na
escolinha. Aí eu não queria mais porque a minha barriga já estava enchida e aí
então, só.”
C: “E sobre o desenho que você fez? Que história você tem para contar?”
G: “Já contei, ué!”
C: “Mas você não falou dessas pessoas que você desenhou.”
G: “Aqui, minha avó mandou tchau pra mim. Minha mãe estava trabalhando; ela
estava lá trabalhando e depois ela indo lá na escola dela, com o meu tio. E só.”
C: “Ela estava indo na escola com seu tio?”
G: “Depois ela ia, ela começou às 8 na escola dela. E aí, só.”
C: “O que mais você quer contar da história?”
G: “Só isso.”
Entrevista com a mãe de Giulia:
C: “Com quem a Giulia mora?”
M: “Com a mãe, a avó e o meu padrasto, que ela chama de tio.”
C: “E o relacionamento dela com o pai, como é?”
M: “É muito bom.”
C: “De quanto em quanto tempo eles se vêem?”
M: “De quinze em quinze dias, às vezes menos.”
C: “E ela, conversa muito com o pai dela?”
M: “Conversa, brinca, tem bom relacionamento com ele.”
C: “E nas festas de aniversário, Natal, ele é presente?”
M: “As festas que são em conjunto, festas da escola, ele participa. Natal, ele fica
com a família dele, e ela fica Natal ou Ano Novo com ele. E assim a outra data
também é minha.”
C: “Como é a preocupação dele com ela, como por exemplo, quando ela está
doente?”
M: “Tem épocas que estamos nos dando bem e épocas em que a gente não pode
se falar. Então ele não aceita muito o que eu falo pra ele. Ele acha que é uma
afronta, então é meio complicado. Mas o relacionamento dele com ela é bom.”
C: “Ela tem outra figura masculina muito presente na vida dela?”
M: “O meu padrasto que é como se fosse um avó. Aquela pessoa que mima, que
dá comida, que brinca. Então ele é como um avô e não como um pai. Quando
parentes ela sai com o pai, ela fica muito próxima aos parentes do pai, mas com
meus irmãos não porque um mora em Salvador e outro mora em Portugal. Ela
não tem contato com meus irmãos, só com os tios da parte do pai.”
C: “Quem é o tio Dani?”
M: “O tio Dani, que é o meu padrasto. Como ele é aposentado, fica o tempo todo
em casa. E a minha mãe também, como não é aposentada, mas é do lar, então
ficam os dois em casa; é com eles que ela tem mais contato. É o tio Dani que traz
ela pra escola, que leva. Eu fico meia hora por dia com ela, que é no caminho pra
minha faculdade, pois eu trabalho e estudo. O meu padrasto me leva pra
faculdade e leva ela junto também pra que possa ficar um pouco comigo. No
Sábado eu trabalho meio período e no Domingo eu passo o dia inteiro com ela,
então são eles que têm o papel de educar e dar limites.”
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C: “Como ela é em casa? É quieta ou fala bastante?”
M: “Ela é muito faladeira, conversa pra caramba.”
C: “Ela desenhou a avó pequena, isso corresponde à realidade?”
M: “A avó é pequena e ela diz que o nome da avó é pequeno. A avó é baixinha e
o meu padrasto é bem alto.”
C: “Ela tem muita afinidade com seu padrasto?”
M: “Sim. É porque ele apareceu e a minha mãe já foi casada com ele uns dez
anos e também ficaram separados uns dez anos. E ele retornou e então eles se
acertaram e ele voltou pra minha casa. Então ela não conviveu com ele antes. Pra
ela, ele é o namorado da avó, que casou com a avó e pronto. E aí ela não gostou
muito porque foi justamente numa época em que eu tinha me separado do meu
marido. E então ele passou a ser a imagem paterna dela.”
C: “Quanto tempo ela viveu com os pais juntos?”
M: “Tem dois anos que eu estou separada. Ela conviveu três anos com o pai e
comigo juntos.”
C: “Ela fala a respeito da separação?”
M: “Ela fala: ‘por que você não volta a namorar com o meu pai? Como você
conheceu o meu pai? Como você namorava com meu pai?’ Sempre fala nisso.
Ela sente falta dele. Ela escutou uma história que ele vai embora para Campinas.
Pra ela Campinas é fora do país, então ela vai ficar sem ver o pai dela. Aí ela
começou a ficar assim, ligava todo o dia pro pai dela, pra ver se ele estava lá, e a
gente veio descobrir que era isso, que ela estava desconfiada que ele ia embora
do país. Então eu perguntei pra ela e ela disse que o pai ia embora do país. Então
eu perguntei pra ele se ele ia embora do pais e ele disse que não, que ele só
disse que ia embora pra Campinas. Então ela entendeu que era fora do país, e
entrou nessa viagem. Para ela é muito longe e ela não sabe. Como tem um avô
que mora fora do país, ela associou. O meu pai mora em Portugal. Aí ela
pergunta porque eu não namoro com o pai dela, aí ele não vai embora. Ficou com
medo dele ir embora. Agora eu pergunto: Ela não queixou nada? Não falou nada
do pai? De nenhum ressentimento? Porque eu fico muito preocupada porque ela
acabou presenciando discussões minhas com ele. Porque eu faço tudo pra não
discutir, então ele fala, fala, fala e eu fico quieta. Mas ela viu muitas vezes ele
discutindo e depois ele pede desculpas para ela. Isso não é legal para ela e eu
fico preocupada.”
C: Não, ela não comentou nada sobre isso. Mas como é o pai dela hoje? Mais
presente ou mais ausente do que era quando morava junto com você e a filha?”
M: “Quando nós morávamos juntos, ele ficava um pouquinho com ela, mas logo
achava um jeito de levar ela pra casa da minha mãe, pra assistir o jornal ou o
jogo, sem ser interrompido. Quando ele estava presente, estava mais ausente do
que agora que separamos. Quando ele encontra ela, ele sabe que o tempo pra
ficar com ela é menor e tem que dar atenção naquele tempo. Então ele melhorou;
dá muito mais carinho, mais atenção, brinca mais com ela do que antes, quando
morava junto.”
M: “Ela não falou do pai?”
C: “Não, somente quando falou que o pai mora longe.”
M: “Sabe, eu até tenho um namorado agora, mas eu não apresentei a ela. Ela até
conhece ele, mas só fala oi e só. Eu quero que o pai dela arrume uma namorada
e fique fixo com ela. Ela é muito ciumenta. Ela já falou uma vez que ia dar na cara
da namorada do pai e na cara dele. Expliquei e ela começou a aceitar e o pai
brigou com a namorada, que eu achava até que era uma boa pessoa para ser
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madrasta da minha filha. Eu falo de arrumar namorado, ela não liga, mas o pai
dela, ela não quer que arrume. Ela é muito ciumenta e muito teimosa. Tem uma
personalidade forte, acho que é porque ela é do signo de Leão.”
Análise do desenho de família de Giulia
O desenho da criança apresenta três figuras humanas as quais identifica
como sendo sua mãe, seu tio Dani e sua avó. Todos estão representados com
traços primitivos, no topo da folha, sem linha de solo, dados estes inda aceitáveis
para crianças dessa faixa etária.
O que nos chama a atenção no desenho da criança são as mãos do tio
Dani, desenhadas em forma de flor, em tamanho desproporcional ao do corpo.
Esse dado nos leva a pensar que o tio Dani é uma figura bastante afetiva para a
menina. Tal fato se confirma durante a entrevista com a mãe, onde esta conta que
o tio Dani é seu padrasto, e exerce a função de avô para sua filha (“aquele que
mima, dá comida e brinca”). Em virtude de Giulia não representar o pai no
desenho de família e também não citá-lo na história pode indicar que é o tio Dani
a referência masculina que a criança possui, pois a mãe fala, durante a entrevista,
que é ele e sua mãe que cuidam da menina diariamente, e então “educam e dão
limites”. Em outro momento da entrevista, a mãe explica que seu padrasto
apareceu justamente na época de sua separação, e ele então passou a ser a
imagem paterna de sua filha. O pai parece ser uma figura distante para Giulia,
tanto que a única vez que fala dele na aplicação do teste, o cita como alguém que
mora longe, o que pode indicar que exista um distanciamento não só físico, mas
também afetivo.
No desenho, a mãe aparece com flores nos pés e nas mãos, o que mostra
que esta é alguém com quem Giulia mantém uma relação afetiva, porém mais
distanciada do que com o tio Dani. Ela cita, na história sobre o desenho, que sua
mãe a levou ao parque mas não tirou os sapatos para brincar, como a mãe da
amiga fez. Talvez essa fala revele uma certa carência afetiva em relação a mãe.
O tio Dani surge então como uma figura importante pois a menina o cita como
quem a leva para ter um contato diário com a mãe, durante o percurso de casa
para a faculdade.
A avó aparece como alguém desvalorizada, pois a Giulia a desenha em
tamanho menor do que as demais figuras, além de ser a única que não possui
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mãos nem pés. No discurso da criança, a avó é “pequenininha e anãzinha”. A
mãe também a desvaloriza quando, na entrevista, disse que ela é “uma do lar”.
Todos esse dados nos levam a crer que é o tio Dani quem centraliza o poder da
família, lembrando ainda que, durante a confecção do desenho, Giulia disse que o
tio Dani é um gigante.
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4.1.7. Luis
Idade: 6 anos e 5 meses
Data de nascimento: 07/04/1996
Escolaridade: Pré-primário – Escola particular
A criança mora com a mãe, o pai e os dois irmãos
Data de aplicação: 24/09/2002
Genetograma:
pai
filha
mãe
Fi
lho
fil
ho
Desenho de uma família qualquer:
Luis desenhou na seqüência: um portão, uma figura masculina, uma figura
feminina, um objeto que explicou ser uma máquina de lavar e, por último,
desenhou um sol. Ele fez os desenhos com lápis grafite e pintou na mesma
ordem na qual desenhou. Fez o desenho com lápis grafite. Ele não pintou o
portão. O desenho não apresenta linha de solo e as figuras humanas não
possuem mãos.
C: “Você me conta uma história sobre esse desenho? Quem são essas pessoas?”
L: “Sou eu e a minha irmã.”
C: “E o que vocês estão fazendo?”
L: “Brincando e só.”
C: “E o que é isso que você desenhou?”
L: “O portão da minha casa.”
C: “E aqui o que você desenhou?”
L: “A máquina de lavar. Ela está desligada. Não funciona.”
C: “Você gostaria que ela estivesse funcionando?”
L: “Sim.”
C: “Por quê?”
L: “Não sei.”
C: “O que você e a sua irmã estão fazendo no desenho?”
L: “De esconde-esconde.”
C: “Quantos anos ela tem?”
L: “Dezoito.”
C: “Como é o nome dela?”
L: “Vânia.”
C: “O que mais acontece nessa casa?”
L: “Só.”
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C: “Não mora mais ninguém aí nessa casa?”
L: “Minha mãe, meu irmão e meu pai.”
C: “O que eles fazem?”
L: “O meu irmão trabalha, o meu pai também e a minha mãe fica fazendo
comida.”
C: “Como é o seu pai?”
L: “Ele tem bigode, toma café, corta a barba, corta cabelo, só isso.”
C: “E a sua irmã, o que faz?”
L: “Fica arrumando a casa.”
C: “E você fica fazendo o quê?”
L: “Jogando futebol.”
C: “E a sua mãe?”
L: “Cozinha.”
C: “Onde você costuma passear com seu pai?”
L: “Empinar pipa, comprar salgadinho, andar de bicicleta e ver os carros.”
C: “De quem você mais gosta na sua casa?”
L: “Da minha mãe e do meu irmão Fabiano.”
C: “Por que você gosta mais deles?”
L: “Porque eles não são chatos. Minha irmã e o meu pai ficam reclamando. Meu
pai reclama de tudo.”
C: “Por que eles reclamam?”
L: “Porque eu fico deitado no chão.”
Entrevista com a mãe de Luis:
D: “Quem mora com ele?”
M: “Eu, os dois irmãos e o meu marido; são cinco.”
C: “E como ele é em casa? É falador ou é quieto?”
M: “É a mesma coisa. Em casa ainda é pior.”
D: “E como é? É mais apegado com você ou com o pai?”
M: “Comigo. Ele é apegado muito comigo e com o irmão. Pra brincar gosta mais
do irmão do que de mim. Ele é grudado também com o pai, mas não é tanto.
Acho que é por causa que ele vive 24 horas junto comigo, né? Comecei a trazer
ele pra cá, estava com 4 meses, praticamente cresceu pra lá e pra cá. Eu disse
pra ele, que ele cresceu dentro do ônibus e ele disse: ‘Quer dizer que eu nasci
dentro do ônibus?’ E eu disse: ‘Não, você começou a crescer no ônibus.’” Risos.
C: “E com o pai ele conversa?”
M: “Conversa, conversa sim.”
D: “Como é aniversário, Natal? O pai participa? A senhora faz festinha aqui na
escola?”
M: “Eu faço aqui; aliás eu nunca tinha feito festa pro Luis aqui. Em casa, eu
sempre faço, nunca deixo de fazer. Sempre tem um bolinho para comemorar. Mas
nunca deixei de fazer.”
D: “Ele convidou as pessoas? O pai veio?”
M: “Só quem veio foi o irmão, porque a minha filha estava trabalhando, o pai
estava trabalhando; só quem veio foi o meu menino, o irmão. Veio só as
criançadas e as tias para participar com ele. Para ele foi uma riqueza. Ele me
cobrava, sabe? ‘Por que você nunca faz o meu aniversário no Petita?’ Em casa
vai mais adulto.”
D: “Como ele é aqui na escola?”
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M: “A professora de computação disse que ele é o máximo no computador. Disse
que ele faz aquilo de olho fechado. Disse que é excelente, mas tem defeito na
língua; fala muito, como o irmão.”
D: “E de final de semana, o que ele faz? Com quem ele costuma brincar?”
M: “Sozinho. Não tem amiguinhos, onde eu moro não tem uma criança. O dia
todo fica em casa brincando. Liga a televisão na hora que se levanta, aí vê
desenho o dia todo. É doido por jogo de futebol. Espalha os brinquedos pela casa,
aí a irmã faz a brigaria pra ele ajuntar, pra ela arrumar a casa. Eu digo: ‘Deixa o
menino brincar, ele passa o dia na escola e só chega em casa à noite, só pra
tomar banho, jantar e dormir.’ Ele espalha os brinquedos no sofá, faz fileiras de
brinquedos no braço do sofá.”
D: “Alguém de vocês costuma brincar com ele?”
M: “Quem costuma brincar com ele é Fabiano. De joguinho, de quebra-cabeça,
várias coisas. Então Fabiano tem que brincar com ele, senão ele chora. Ela já
chegou até a ir no tanque. Às vezes eu estou no tanque, lavando roupa e ele
chega dizendo: ‘Ninguém quer brincar comigo.’ Já cheguei até a parar e disse:
‘Agora vou brincar com você , ninguém quer brincar.’ Mas o irmão dele dá muita
atenção pra ele. Se preocupa com ele. Outro dia ele já estava dormindo e o irmão
chegou e foi ver o menino. Disse que ele estava com frio, pra eu colocar outro
cobertor em cima dele. Disse que o irmão estava com o nariz entupido e que era
pra eu colocar remédio no nariz dele. Pro Fabiano parece que foi uma riqueza que
apareceu em casa. Todo o dia ele traz alguma coisa pro irmão. Parece até o pai.
Já a Vânia é mais seca. O pai já está com 59 anos, o ano que vem faz 60. Então,
quando apareceu um menino, com aquela idade, ficou abestalhado, ficou bobo.”
Análise do desenho de família de Luis:
O primeiro ponto a destacar no desenho é que as figuras estão “voando”, já
que não há linha de solo. Já no primeiro desenho pedido, Luis desenha sua
própria família, representando a si e à irmã. A criança inicia a representação da
irmã tentando fazer um desenho um pouco maior do que a figura que o
representa, mas logo em seguida apaga e a figura da irmã, 12 anos mais velha
que ele, fica praticamente do mesmo tamanho. O fato de não haver linha de solo
pode indicar que o menino possui certa dificuldade no contato com a realidade, o
que ainda pode ser observado no fato das figuras humanas não possuírem mãos,
o que também é apagado após ser representado na irmã. É possível que haja
uma dificuldade na troca de afetos dessa família. Isso pode também estar
representado no portão que ele desenhou, já que um portão pode indicar que há
uma porta para que essa relação ocorra, uma necessidade de comunicação do
interno e
externo. A falta de relação também pode estar representada na
distância entre ele e a irmã, no desenho no qual estariam brincando de escondeesconde.
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A criança não desenha sua mãe, pai e irmão, mas ele os cita na história do
desenho. O pai é citado como alguém que vive reclamando de tudo e de todos,
inclusive das brincadeiras do menino. Esse pai parece ter pouco relacionamento
afetivo com o filho, já que o menino relaciona a figura paterna com “possuir
bigode, tomar café, empinar pipa, comprar salgadinho e andar de bicicleta”. A
fala da criança indica certo distanciamento, pois mesmo atividades conjuntas
(bicicleta, pipa) são colocadas no mesmo patamar de tomar café e cortar cabelo.
De acordo com a mãe, na entrevista, é o irmão do menino a figura masculina de
referência, mas isso não pode ser percebido no desenho.
A mãe é citada como alguém de quem ele gosta e que fica cozinhando
(esta é a sua profissão). Na entrevista com a mãe, esta comenta que quando está
lavando roupas, precisa parar porque o filho chora querendo companhia para
brincar; no desenho, Luis representa uma máquina de lavar, que está desligada e
não funciona, o que nos leva a supor que essa máquina representa a figura
materna, e que haja uma demanda de uma mãe que esteja mais presente, que
“funcione”. Ainda pela fala da mãe e do menino, podemos levantar a hipótese de
que se essa máquina estivesse funcionando, talvez a mãe pudesse dar mais
atenção para Luis.
89
90
4.1.8. Marcos
Idade: 5 anos e 10 meses
Data de nascimento: 13/12/1996
Escolaridade: cursando pré-primário
A criança mora com o pai, a mãe e irmã
Data da aplicação: 08/10/2002
Genetograma:
pai
Fi
lho
mãe
filha
Desenho de uma família qualquer:
Marcos
desenhou
primeiramente
uma
figura
humana
maior
que,
posteriormente, identificou como sendo sua mãe. Desenhou uma outra figura à
esquerda da mãe, a qual identificou como sendo seu pai. Logo após, desenhou
outra figura à esquerda do pai, que disse ser sua irmã. Em seguida, desenhou a si
mesmo à direita da mãe. E, logo após, desenhou mais dezenove figuras, as quais
identificou como sendo seus familiares e amigos da igreja. Desenhou um sol,
duas nuvens e dois cachorros. Por último, desenhou algo abaixo da figura do pai,
que explicou ser algo para subir, uma escada. Usou lápis grafite e não coloriu o
desenho. Não desenhou mãos em nenhuma figura.
C: “Quem são essas pessoas que você desenhou?”
M: “A grande é a minha mãe, depois vem o meu pai (à esquerda da mãe),
Raquel, a minha irmã (à esquerda do pai), eu (à direita da mãe), a minha vó, a
minha tia, minha outra vó, meu irmão que eu não sei o nome, meu vô, a vovó
Lúcia (figura pequena), os amigos da igreja, a Bel, o pai da Bel, a mãe da Bel, o
Rodolfo que mora na casa da Bel, o Nei, a Marli, namorada do Nei e o menino
que foi para a Bahia. O último é o tio Dé que mora nos Estados Unidos e veio
correndo chamar eles. O tio Dé tá chamando pra ir pra casa dele. Vou desenhar
os cachorros também, a Salsicha e a Pretinha, lá da casa da minha vó. Ele tem
bebê: um é preto e branco, o outro é preto e branco e o outro é branco. Ele não
come comida, só leite. Esse é o sol e essas são as nuvens.”
C: “Com quem você fica na sua casa? Quem mora com você?”
M: “Em apartamento. O meu pai, a minha mãe e a Raquel.”
C: “A sua mãe trabalha?”
91
M: “Trabalha. Hoje eu fui com o meu pai, a minha irmã e eu assistir ‘Scooby Doo’
no cinema.”
C: “E a vovó e o vovô?”
M: “Eu gosto mais da vovó Lúcia porque ela tem espaço pra brincar, futebol. A
outra é a vovó Zulmira, só pode brincar de casinha. Na minha casa, gosto de
brincar de pega-pega, mas não dá, a minha mãe briga. Minha mãe tem varinha
pra dar no bumbum.”
C: “O que é varinha?”
M: “Meu vô corta umas madeiras e depois dá pra minha mãe para bater no
bumbum. Eu corro e quando a Raquel pega a varinha, a minha mãe briga.”
C: “Qual é o nome do vovô?”
M: “Não sei.”
C: “De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe?”
M: “Da mamãe.”
C: “O que ela faz que você gosta?”
M: “Ela faz comida.”
C: “Agora me diz o que é isso aqui no desenho?”
M: “É um negócio de subir, é uma escada.”
C: “E o que é isso aqui?”
M: “O sol. As nuvens.”
C: “Onde estão estas pessoas?”
M: “Indo pra os Estados Unidos. O tio Dé está na casa dele.”
C: “Vocês vão lá na casa dele?”
M: “Não sei.”
C: “O que mais você gostaria de contar da história?”
M: “Só isso.”
Entrevista com a mãe de Marcos:
C: “Como é o relacionamento dele com o pai?”
M: “Eles se dão bem. Ele tem, às vezes, um pouco de receio. Não sei se com
outras crianças acontece, mas eu vejo que ele se abre mais comigo. É que,
normalmente, tudo é a mãe, tá com dor, é a mãe. Mas eu acho que é importante a
presença do pai, ainda mais agora que ele começou a fazer faculdade no meio do
ano. Então, Marcos sente sua falta. Ele pergunta aonde o pai foi, se ele vai
demorar e eu explico que o pai está na escolinha, assim como ele. Às vezes ele
quer esperar, eu percebo que a figura do pai é muito importante, tipo, às vezes,
ele vai fazer alguma coisa e diz que vai fazer igual ao pai. Ele diz que quer se
vestir igual ao pai, com a calça igual, com a gravata igual.”
C: “O pai é presente nas festas, como a de aniversário por exemplo?”
M: “Ah sim. Aqui na escola, eles não deixam os pais participarem. Eu fiz a festa
de quatro anos dele aqui, aí as professoras comentaram que a gente podia
mandar máquina, mas que os pais não poderiam vir. Quando a gente faz em
casa, o pai procura sempre estar. Na Segunda-feira passada, ele não trabalhou
porque ele é funcionário público e eu trabalhei. Então eu pedi para ele levar as
crianças ao cinema, porque eu tenho uma menor. Ele levou eles ao cinema. Às
vezes eu falo para ele dar mais carinho, um colinho. Ele procura estar sempre
presente. Às vezes precisa não só sair, mas estar perto deles.”
C: “Na casa de vocês moram quantas pessoas?”
M: “Só nós quatro.”
92
C: “Como é o relacionamento dele com a imã menor?”
M: “Ele protege muito ela. Eles brigam demais e se pegam em casa, mas aqui,
principalmente com ele, ele se põe na frente e se preocupa demais com ela. Se
ela não ganhou uma coisa, ele vai e pega uma pra ela também. Ele tem muito
cuidado. Ela é muito arisca e geniosa. Às vezes ela bate nele e ele é mais
sossegado.”
C: “Ele falou do tio Dé, quem é?”
M: “É meu irmão. Eles sempre foram muito apegados e meu irmão faz dois anos
que foi para os Estados Unidos, eu não sei se ele falou. Então ontem mesmo o
meu irmão ligou que era para falar pelo dia das crianças, que ele estava com
muitas saudades e a gente tem se falado muito pelo telefone mas, quando o meu
irmão foi, ele tinha três anos, ele lembra muito de quando eles saíam. O meu
irmão fazia de tudo, eu acho que foi uma figura muito marcante, que ele lembra
bem.”
C: “Marcos falou da avó Lúcia que mora numa casa onde ele tem mais espaço
para brincar e da casa da outra avó que não tem espaço. Quais seriam essas
avós?”
M: “Tem a minha mãe que mora num sítio com meu pai, e tem a avó do meu
marido, que ele chama de avó também, e que mora num apartamento. A avó
Lúcia é minha mãe que mora num sítio e onde tem cachorros. Ele põe o tempo
todo os cachorrinhos que nasceram para mamar.”
C: “Ele fala várias vezes no tio Dé, durante o tempo em que faz o desenho. Você
poderia falar um pouco mais a respeito do relacionamento do seu irmão com o
Marcos?”
M: “Desde os dois anos, o meu irmão sempre levou ele no shopping, prá
passear. Sabe aquele tio de pendurar, de levar no carro? O pai não é muito
brincalhão. Às vezes eu falo prá ele brincar mais com os filhos. O meu irmão é
daqueles que se tiver que deitar no chão, ele deita. Já o pai, ele é aquela figura
mais séria; de responsabilidade, que impõe limites.”
C: “Ele falou de um avô que ele não sabe o nome, quem é esse avô?”
M: “Deve ser o pai do meu marido. É que é uma confusão porque a mãe do meu
marido faleceu quando ele tinha de nove para dez anos, e quem cuidou dele foi a
mãe dela. O pai dele foi embora, mudou para o sul, não cuidou muito, não
participou mais. Marcos já o viu duas vezes, mas não tem aquela relação com
ele.”
C: “Ele contou que o avô dele tem uma madeirinha que ele te dá para bater no
bumbum dele. Isso é verdade?”
M: “Esse é o meu pai. Sabe varetinha de árvore, fininha? Eu tenho para ameaçar
ele. É galhinho só para mostrar, que já assusta. Serve mais como efeito
psicológico. Eu digo pra ele que ele vai apanhar ‘porque você fez isso e a mamãe
não gosta’. Eu falo: ‘se brigar os dois, apanham os dois’.”
C: “Ele contou que o avô, de uma madeira, fez várias madeirinhas para você
bater nele. É essa a fantasia que ele tem.”
M: “Eu acho então, quando eu for pra casa do meu pai de novo, eu vou mostrar
pra ele. Vou tirar um pedaço de galho para mostrar pra ele de onde é.”
C.: “Você acha o seu marido um pouco fechado com os filhos? A que atribui?”
M: “Até com a gente ele é muito fechado. Eu sou mais de abraçar e ele. Às vezes
é mais importante um abraço do que um presente. Às vezes eu digo ‘dá um beijo
neles, um abraço’, e ele não teve isso. Então eu acho que uma pessoa que não
passou por isso, é complicado. Eu vejo assim, eu sempre tive carinho,
93
principalmente da minha mãe, que é de agarrar e de beijar. Ele não tem como dar
o que não teve. A minha mãe, por exemplo, é do tipo que tem todo mundo
embaixo dos seus braços. Então eu e meu irmão já somos diferentes. O meu
marido, não dá para culpar, pois a mãe dele faleceu cedo. Eu tento ajudar o
máximo que eu posso. O meu marido é mais fechado para o lado do coração. Ele
é muito inteligente mas, para contato, é difícil. Ele está querendo começar a fazer
terapia, porque tem coisas que eu não posso ajudar. Mas a gente vai levando.”
Análise do desenho de família de Marcos:
No desenho de Marcos, o que nos chama a atenção é o grande número de
figuras humanas representadas, as quais ele identifica como pessoas de sua
família e amigos da igreja, o que nos leva a acreditar que o menino indiferencia o
núcleo social do familiar, talvez pela crença religiosa que a família freqüenta.
Apesar dessa não diferenciação, há uma tentativa de diferenciar a família,
pois percebemos que os olhos das pessoas que ele identifica como o pai, a mãe a
irmã e a si são maiores, vazados; além desses personagens serem desenhados
pela criança em primeiro lugar. Pelo desenho, o menino se coloca ao lado da
mãe, e a irmã ao lado do pai, de forma que o casal fique ao centro. Isso pode
indicar que é com a mãe que a criança possui maior afinidade, já que ela fala na
historia que gosta mais da mãe porque é quem faz a comida. O “fazer a comida”
pode indicar que é mãe quem satisfaz as necessidades básicas do filho. Isso é
ainda reforçado pela fala da mãe, quando ela disse que o filho se abre mais com
ela, pois apesar de se dar bem com o pai, tem receio dele. Essa hipótese pode
ainda ser identificada pela representação da cachorra que teve “bebês que tomam
leite”. A mãe cita, durante a entrevista, que o filho insiste em que os filhotes
fiquem mamando, colocando-os o tempo todo embaixo da mãe. A ordem em que
coloca os membros da família pode ainda demonstrar o complexo edípico, pois
ele se coloca ao lado da mãe, e deixa o pai ao lado da irmã. O pai, em cima da
escada, seria uma forma de mostrar que percebe o pai como alguém superior, na
psicanálise, aquele que tem o poder, a autoridade, o falo.
O desenho da escada embaixo do pai pode sugerir que o pai está em outro
patamar, acima, inacessível. Isso pode ser justificado pela entrevista com a mãe,
onde ela disse que pede várias vezes para que o pai abrace os filhos e dê mais
atenção a eles, justificando essa falta de afeto com o fato do marido ter perdido a
mãe muito cedo e ter sido criado pela avó materna, não tendo quase nenhum
contato com o pai. Dessa forma, ele não teria como dar o afeto que não recebeu.
94
O tio aparece na história como uma figura idealizada, mas distante. É
possível que a mudança de país desse tio, com quem a criança possuía um
vínculo, trouxe não só uma distância física, mas também emocional, pois parece
que a quebra desse vínculo não foi elaborada adequadamente pelo menino, já
que ele cita, na história, um desejo de ver o tio. Na entrevista com a mãe, esta
cita o tio como alguém que dava carinho e atenção ao menino, mostrando-se
espantada do filho lembrar de alguém com quem teve contato aos três anos. Isso
nos faz supor que a figura do tio aparece suprindo a falta emocional que ele sente
em relação ao pai, falta essa reforçada pela fala da mãe. O menino também dá
indícios dessa falta quando relata ter ido ao cinema com o pai, mostrando a
importância desse contato.
95
96
4.2.
Discussão dos casos
De todas as análises realizadas, é importante destacarmos os aspectos
comuns entre crianças filhas de pais separados e de crianças que moram com
ambos os pais.
Em se tratando dos filhos de pais separados, pudemos perceber mais
nitidamente que a ausência física do pai traz um sentimento de desamparo e
abandono. Este fato foi percebido em todos os desenhos destas crianças; quando
Alice intitula sua história de “Pela rua vou caminhando” e se coloca sozinha no
primeiro desenho, aliado a sua não representação na própria família. A Carla
demonstrou nos dois desenhos a necessidade de conhecer sua origem e de
tentar juntar os pais, transformando a madrasta como visita esporádica, papel
exercido pela criança na relação com o pai. A criança representou sua própria
família sem expressão facial, o que indica o desejo de que a família idealizada
possa se concretizar. No caso de Cássia, o sentimento de desamparo está
representado quando a menina se esquece de fazer “isso”, o que traz uma
desvalorização de si. Giulia também não se representa no desenho de sua própria
família, e pode estar indicando a sensação de abandono quando cita que o pai
está longe, única referência que faz a esta figura durante a aplicação. No
referencial teórico estudado, Silva (2001) afirma que o tempo da criança é
diferente do tempo do adulto, e o contato esporádico com o pai em casos de
separação gera um sentimento de medo e abandono, e conseqüente desapego.
Para Zimerman (1999) uma das funções do pai é promover estabilidade e
segurança à mãe na tarefa de educar e promover o crescimento adequado do
filho, o que conseqüentemente gera estabilidade para a criança.
Aberastury e Sallas (1991) colocam que a presença do pai no período
inicial do complexo edípico é de fundamental importância no processo de
separação da mãe e do bebê. Zimerman e Dolto (1989) também enfatizam a
importância da presença paterna para romper essa díade. Nos desenhos
analisados, foi percebido que em três casos, de Alice, Cássia e Carla, essa díade
ainda não foi rompida, pois na fala e no desenho das crianças, o pai não aparece
e a relação de simbiose com a mãe é percebida de alguma forma. No caso de
Alice, a representação da figura feminina vendendo pipocas na rua onde a menina
está sozinha. Na análise de Carla, onde os bebês pensaram que os pais não
97
haviam se casado e em Cássia, o pai aparece diminuído e a mãe é a figura
dominante, ora representada de forma singela e ora representada de forma
agressiva. Além dos dados dos desenhos, todas essas mães, de alguma forma,
relataram nas entrevistas que suas filhas sentem ciúmes delas. Para Martinez
(1999) o que ocorre no divórcio é o afastamento abrupto ou paulatino do pai com
os filhos, pois o contato destes passa a ser mediado pela mãe, o que
freqüentemente traz uma desautorização da figura paterna e que conduz a uma
anulação deste papel. Vale lembrar que Alice desvaloriza a figura masculina em
sua história e desenho, e Giulia substitui a figura paterna pela do tio Dani, que
exerce o papel de avô, transferindo essa função.
Nestes casos de separação, o que é necessário é que a criança tenha
conhecimento da situação para que elas não vivam um sonho de que o casal é
inseparável e, desta forma, não passem a vida tentando juntar os pais. A
realidade da família deve se tornar consciente para que a criança não viva
idealizando suas fantasias. (Dolto, 1989).
Nas análises dos desenhos, ficou bastante expressa a necessidade das
crianças em juntarem os pais. Para Aberastury e Sallas (1991) a estabilidade que
o casal promove propicia o clima necessário para que ser humano se desenvolva
normalmente. Quando isso não é possível, a criança deve ser esclarecida sobre a
real situação dos pais, pois esse esclarecimento trará segurança interna e o
equilíbrio de angústias para o desenvolvimento de um indivíduo saudável.
Alguns aspectos já identificados nas análises dos desenhos de crianças
filhas de pais casados merecem ser destacados. No caso dos meninos, surge a
identificação com o pai, como no caso de André, que a mãe comenta o fato do
filho querer vestir as mesmas roupas e fazer as mesmas coisas do pai. Este
aspecto também foi abordado pela mãe de Marcos durante a entrevista. Em sua
obra, Nasio (1999) afirma que durante o complexo edípico reconhece-se dois
tipos de ligação afetiva nos meninos. Um apego desejante pela mãe e um apego
ao pai como modelo a ser imitado. No desenho de Marcos, o menino se coloca ao
lado da mãe e a irmã ao lado do pai, exemplificando este apego desejante,
acrescentando a fala do menino de que gosta da mãe porque é quem faz comida,
podendo indicar que é ela quem supre a carência de afeto. Nas palavras da mãe,
o pai é a figura temida, o que pode querer demonstrar, na psicanálise, que é a
figura de poder, aquele que tem o falo. De acordo com Zimerman (1999), o
98
menino sente a figura do pai como aquela que coloca os limites, proporcionando
adequadas frustrações que promovem a passagem do princípio do prazer
desprazer para o da realidade, estimulando as funções do ego da criança,
especialmente a formação da capacidade do pensar.
No caso de Bianca, ela se coloca no desenho e no discurso ao lado do pai
e no lugar da mãe, confundindo-se com esta por duas vezes. Aqui também
podemos observar que a criança está em busca da elaboração do complexo
edípico, pois cita na história que os pais deram a filha, como se admitisse que
precisa sair da relação do casal. Pode-se perceber que, através dos desenhos,
busca uma diferenciação do masculino e feminino, onde revela a identificação
com a mãe como modelo a ser imitado, o que, para Nasio (1999), faz parte da
resolução sadia do complexo edípico. De acordo com o autor, a tendência é de
que a menina queira substituir a mãe junto ao pai, o que acabará em uma
identificação com a mãe como mulher do pai.
Também percebemos, nas análises destes desenhos, que aparece a
ausência paterna, mas não é tão explicita como a que aparece nos casos de pais
separados. No desenho de Luis, o pai não é representado, porém, a criança opta
por não representar também o irmão e a mãe. Na entrevista, a mãe relata que ele
se identifica com ela e com o irmão mais velho, e que esse irmão é para o menino
como se fosse um pai. Essa substituição não é autorizada, talvez em função da
presença física do pai, e portanto nenhuma das figuras masculinas aparecem no
desenho. Isso poderia sinalizar não a ausência física, mas a ausência psíquica do
pai.
No caso de Marcos, percebemos uma transferência afetiva do pai para o
tio, que mora nos Estados Unidos, mas que não anula a figura do pai como
aquele que detém o poder e que é representado em cima de uma escada, num
nível superior. Nos desenhos de André, o pai é representado em tamanho muito
maior do que as demais, o que sugere a autoridade paterna e a identificação com
essa figura. A análise deste desenho nos faz destacar a obra de Zimerman
(1999), onde afirma que a presença física e afetiva do pai é fundamental para o
processo de separação-individuação da díade mãe-bebê. O menino deixa claro,
na história, que já se separou da mãe, e segue a identificação com o pai.
Para Aberastury e Salas (1991) é importante que toda a criança tenha a
presença de um pai para poder se desprender da mãe, e também necessita de
99
uma dupla “pai e mãe” para satisfazer, por identificação projetiva, sua
bissexualidade. Se aceitamos a bissexualidade do ser humano, compreendemos
o porquê, no indivíduo edípico, é imprescindível a presença de pai e mãe para um
bom desenvolvimento emocional e para satisfazer a necessária identificação da
criança com os dois aspectos que oferecem os progenitores.
100
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
101
Ao pensarmos no tema do nosso trabalho, o que nos chamou a atenção foi
o crescimento de separações conjugais que ocorrem atualmente no Brasil e o
conseqüente aumento do número de lares chefiados por mulheres. Neste cenário,
pudemos perceber que um grande número de crianças passou a residir somente
com suas mães, visto que o discurso social parece diminuir a importância do pai,
delegando a ele somente prover o filho com a pensão alimentícia. Em nossa
pesquisa, pudemos perceber que muitos pais hoje lutam pela guarda
compartilhada de seus filhos na justiça. Numa separação, pareceu-nos que, tanto
a paternidade quanto a maternidade, tornaram-se mais um poder do que uma
função, o que coloca a criança no lugar de objeto, esquecendo-se de sua
condição de sujeito psicológico. Neste sentido, resolvemos estudar a importância
da figura paterna no desenvolvimento psíquico da criança. Ao longo de nossa
pesquisa, pudemos compreender que a personalidade do indivíduo se constrói e
se diferencia por meio de uma série de identificações. A identificação é o
processo pelo qual a pessoa assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo
de outra e se transforma, total ou parcialmente, a partir desse modelo. Para
chegar a ser idêntico a si mesmo, é preciso ter sido idêntico a outro. A criança se
estrutura imitando alguém. Neste sentido, o pai é aquele que ajuda o filho a
construir uma estrutura interna. Sua presença vai permitir que a criança, em
particular o menino, tenha acesso à agressividade (afirmação de si e capacidade
de se defender), à sexualidade, o sentido de exploração, assim como ao logos,
compreendido como aptidão para a abstração e a objetivação. Ele facilitará
igualmente a passagem do mundo da família para o da sociedade, uma figura,
seguramente, em mutação, tanto para a menina como para o menino.
No caso da família brasileira, o que pudemos perceber é que existe um
modelo idealizado; padrão de família, com pai, mãe e filhos, que atinge toda a
criança desde cedo, na infância. Existe uma permanência desse modelo ideal.
Outro fator importante também, ao nosso ver, é o fato da mídia valorizar datas
comemorativas, o que faz as escolas comemorarem o dia dos pais, por exemplo.
Isso traz um certo desconforto para a criança que mora só com a mãe, ou mesmo
aquela que não tenha pai. Esses fatores podem ter influenciado diretamente os
desenhos e discursos das crianças.
A nossa sociedade fomenta, principalmente através da mídia, um modelo
de família ideal e cobra por isso o tempo todo. Neste caso, uma pessoa não pode
102
ficar solteira, um casal não pode ficar sem filhos e um filho não pode ficar sem
pai, por exemplo, pois eles são o tempo todo questionados por isso.
Com um número cada vez mais crescente de lares chefiados por mulheres,
não podemos dizer que somente a presença física do pai é imprescindível no
desenvolvimento sadio da personalidade da criança. Os resultados indicam que
não é somente a questão da presença física que deve ser estudada, mas o papel
psicológico que o pai exerce na vida da criança é o importante. Essas questões
podem ser percebidas em duas crianças da pesquisa que moram com os pais,
mas o tem ausentes psicologicamente. Essa questão, dada a sua relevância,
acreditamos que poderia ser mais adequadamente explorada em um novo
trabalho.
Com o término de nossa pesquisa, pudemos compreender melhor a
relação pai e filho, e esperamos ter contribuído, de alguma forma, para que os
pais possam, no caso de uma separação, tirar a criança do lugar do objeto de
disputa e que os dois possam entender que, mesmo separados, tanto o pai como
a mãe, têm sua função e são responsáveis pelo desenvolvimento da criança, no
sentido de que esta possa, no futuro, ser um adulto saudável e capaz de conviver
harmoniosamente em sociedade.
103
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