“Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”: a

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“Muito dinheiro no bolso, saúde pra dar e vender”: a
“MUITO DINHEIRO NO BOLSO, SAÚDE PRA DAR E VENDER”: A LITERATURA DE AUTO-AJUDA
Heloísa Helena Arneiro Lourenço Barbosa
Mestranda em Lingüística Aplicada da Universidade de Taubaté
A literatura de auto-ajuda encontra hoje um espaço muito grande no mercado editorial. O fenômeno
de alta vendagem desse tipo de obra parece ser o reflexo de uma época em que o homem busca
avidamente regras que, teoricamente, possam solucionar os problemas e garantir o sucesso no
enfrentamento das mais diversas situações. Os textos de auto-ajuda são publicados principalmente em
forma de livros. Percebendo o grande consumo desse tipo de literatura, por diferentes tipos de público,
algumas revistas femininas já trazem, em suas edições, textos que, como todos deste gênero, se propõem
a ensinar como o indivíduo pode se “auto-ajudar”. Há promessas de fórmulas para o “sucesso profissional,
pessoal, amoroso”. As “dicas” servem para os diversos tipos de problemas que afligem nossa sociedade de
ideologia predominantemente capitalista, na qual o individualismo é cultuado.
Algumas teses pontuam o discurso desse tipo de literatura: a) Querer é poder. Os textos de autoajuda dão a ilusão àquele que a lê “acriticamente” de que basta uma atitude positiva ou pensamento
positivo para que uma pessoa atinja “sucesso” em qualquer área de sua vida: b) Cada pessoa é
responsável pelo seu próprio sucesso ou fracasso. Com essa idéia, “o discurso de auto-ajuda
desconsidera as condições sócio-históricas a que as pessoas estão submetidas (BRUNELLI, 2008, p.35).
Ao se responsabilizar unicamente o indivíduo por tudo aquilo que lhe acontece, reforça-se a ideologia
capitalista, pois esta deixa de ser questionada se positiva ou negativa para a sociedade. A culpa dos que
nela fracassam caberia, então, apenas a esses que a ela não se “adequaram”; c) Qualquer pessoa pode
ficar rica. O discurso da literatura de auto-ajuda, por meio de frases categóricas, promete sucesso
financeiro a quem o desejar. Há uma certeza nessa tese. Essa idéia, presente em muitas dessas obras, é
totalmente favorável ao discurso capitalista, pois o efeito de sentido que pode provocar é o de que não há
nada de errado com esse tipo de ideologia, ela não precisa ser mudada, e todos nós, segundo esse
pensamento, podemos ser bem-sucedidos financeiramente.
Além dessas teses, algumas características são recorrentes nos textos de auto-ajuda: tom
extremamente otimista; a aproximação com os provérbios, devido ao mesmo propósito comunicativo de
ambos, que é o de aconselhamento; soluções simplistas; frases do senso comum; falta de questionamento
e reflexão; verbos no imperativo para não dar margem a um questionamento nem à provável dúvida em
relação ao que se é proposto no discurso da ideologia capitalista, o qual promete a realização dos sonhos e
satisfação das necessidades do homem atual.
Como se pode constatar, há regularidades na literatura de auto-ajuda. Há uma riqueza de aspectos
a serem analisados nas obras desse gênero.
Este texto propõe uma reflexão específica acerca da veiculação do discurso da ideologia capitalista
e uma análise dos efeitos de sentidos provocados pelo interdiscurso da literatura de auto-ajuda de Luiz
Antonio Gasparetto, em artigos seus publicados em edições da revista feminina Ana Maria.
Como referencial teórico, foram utilizados alguns conceitos da teoria da Análise do Discurso de
Linha Francesa (doravante AD): discurso; formação ideológica; formação discursiva; inter e intradiscurso;
pré-construído; formação imaginária (designando o lugar que o emissor e o destinatário se atribuem cada
um a si mesmo e ao outro).
O discurso, objeto de análise da AD, se produz socialmente através de uma materialidade
específica, a língua. É nessa materialidade que se manifesta o interdiscurso, conjunto de formações
discursivas. Para os postulados da AD, a interdiscursividade é o lugar que nos permite observar os efeitos
materiais da língua. Todo discurso é atravessado pelo discurso do outro ou por outros discursos. A hipótese
que se pode levantar a respeito da literatura de auto-ajuda é a de que, na “opacidade” desse tipo de texto,
manifestam-se pré-construídos da ideologia capitalista. Dentro perspectiva da Análise do Discurso, o préconstruído é entendido “como um enunciado simples proveniente de discursos outros anteriores, como se
esse elemento já se encontrasse sempre aí por efeito da interpelação ideológica” (PÊCHEUX, 1988).
O texto dentro da AD não é concebido como transparente. Ele é entendido como opaco,
principalmente a partir da compreensão da multiplicidade de sentidos que cada texto pode gerar. O que se
busca nesta análise é verificar se, no discurso dos textos de auto-ajuda, o sujeito fala uma voz sem nome,
consideravelmente atravessada e levada ao sabor da ideologia. Uma das funções do analista do discurso é
realmente esta: “rastrear” como se argumenta, se constrói o discurso opaco, que se oculta ou oculta os atos
pela palavra (faz crer uma coisa diferente do que faz), o que provoca jogos de falsa aparência e de
esconde-esconde. É esse “rastreamento” que se pretende realizar no presente estudo.
A escolha de textos publicados na revista Ana Maria como objeto de análise justifica-se por ser esta
uma revista feminina semanal de grande circulação e com um público leitor heterogêneo, mas formado
principalmente por mulheres, geralmente donas de casa ou trabalhadoras, que acumulam a função de mãe,
esposa. Apesar de lida por pessoas de diferentes classes sociais, a revista Ana Maria tem como público
maior mulheres de classe média baixa, o que se justifica pelo preço acessível do periódico. Tal afirmativa
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pode ser comprovada pelas matérias da revista, nas quais aparecem muitas das leitoras de Ana Maria. São
mulheres já maduras, em sua maioria.
O que se percebe também nas principais chamadas das capas desta revista é uma preocupação do
grupo que a edita em oferecer dicas a sua leitora de “como emagrecer, acabar com ansiedade, educar os
filhos”, ou seja, logo na capa, instrumento para atrair o público, a revista Ana Maria já se utiliza de um
discurso bem próximo aos textos de auto-ajuda.
O autor Luiz Antônio Gasparetto assina os textos que aqui compõem o corpus desse estudo. Há
três anos, em todos os textos, publicados pela revista, Gasparetto subscreve um breve currículo de seu
trabalho: É autor de 26 livros sobre desenvolvimento emocional [...] faz o programa “Encontro Marcado”, na
Rede TV!. Apresenta o “Gasparetto conversando com você”, na Rádio Mundial [...] Ele mantém o “Espaço
Vida e Consciência em São Paulo “[...].
Ao se apresentar desse modo ao público, o autor já começa a constituir o “lugar” de que fala,
formando o imaginário do sujeito-autor para aqueles que irão ler seus textos, ou seja, Gasparetto já se
mostra como “autoridade” que pode dizer e apresentar conselhos, regras, dicas,instruções a um leitor que,
em um outro “lugar”, também tem projetada no emissor uma representação imaginária.O que ocorre é um
jogo de imagens: dos sujeitos entre si,dos sujeitos com os lugares que ocupam na formação social e dos
discursos já ditos com os possíveis e imaginados. Cabe ainda afirmar que imagem e lugar são tomados na
AD não como sujeitos ou espaços físicos, mas como resultados das projeções dos sujeitos.
O resultado dessa análise poderá fornecer subsídios lingüístico-discursivos que contribuam para
que os leitores, mais especificamente professores e alunos, cotidianamente envolvidos com a leitura,
percebam como a literatura de auto-ajuda pode se constituir em um veículo que, interessado em vender,
(re)produz o discurso de uma ideologia capitalista, que aparece dissimulada em uma organização textual
aparentemente marcada pelo discurso da espiritualidade.
O objetivo deste artigo é o de analisar como a literatura de auto-ajuda, presente em uma
determinada revista feminina, contribui para veiculação e perpetuação de um discurso ideologicamente
capitalista. A esta análise interessa saber como a literatura de auto-ajuda constrói, por meio de um aparente
discurso espiritualista, os sentidos que interessam a uma ideologia essencialmente materialista. Propõe-se
neste estudo um “rastreamento” na materialidade, identificando o que se esconde por trás dessa aparente
transparência do intradiscurso, o qual, aqui, no arcabouço teórico da AD, é entendido como “matéria-prima
na qual o indivíduo se constitui como sujeito falante numa determinada formação discursiva que o assujeita”
(FERREIRA, 2001, p.18).
O que se prioriza, enfim, é analisar o “como” e “no” que o dito de determinados textos de autoajuda se manifesta.
Algumas questões foram levantadas para direcionar a análise:
1) Como se revela o discurso da ideologia capitalista nos textos de auto-ajuda? De que forma esse
tipo de literatura contribui para a perpetuação de um materialismo cada vez mais presente em nossa
sociedade?
2) Que efeitos de sentido podem ser produzidos por textos de auto-ajuda, aparentemente
espiritualistas, no público leitor da revista feminina Ana Maria?
O procedimento utilizado para se obter respostas às questões suscitadas neste estudo foi a divisão
do trabalho em etapas.
Num primeiro momento, fez-se a seleção dos recortes a serem analisados. Eles foram escolhidos
num universo de 26 (vinte e seis) revistas Ana Maria. Cada um dos dois recortes selecionados foi retirado
de edições diferentes.
A seleção dos recortes foi estabelecida pela repetição de determinadas escolhas lexicais do autor
em muitos de seus textos. As palavras paz e alma, pertencentes ao discurso da espiritualidade, aparecem
em vários títulos dos textos de Gasparetto. Para analisar como essas palavras são inscritas no discurso do
autor, os recortes escolhidos são:
a)
Nossa paz interior embeleza a vida (ANA MARIA, São Paulo. Ed. Abril, fevereiro, 2008.).
b)
Escute sua alma e seja feliz (ANA MARIA, São Paulo. Ed. Abril, junho, 2008.).
Numa primeira análise, tomou-se isoladamente cada um dos textos, verificando os “rastros”
deixados pelo autor, os quais revelam a sua formação discursiva e ideológica.
Uma segunda análise confrontou os textos para observação e confirmação da recorrência de
elementos presentes nos “ditos” e também para constatação dos sentidos estabelecidos pelo interdiscurso,
que não é palpável, mas que constitui o sujeito revelado, pela falha, deslize ou equívoco.
O efeito de sentido provocado por este tipo de literatura irá formar o sujeito resultante do processo
de assujeitamento.
Esse confronto entre os textos, certamente, colaborou com os resultados da pesquisa.
As condições sócio-histórico-ideológicas que envolvem a leitura dos textos também foram
consideradas, pois são elas que determinam tanto o leitor quanto a leitura que ele irá fazer.
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Para a Análise do Discurso de Linha Francesa, orientação teórica que embasa este trabalho, o texto
é “unidade de análise do discurso que, enquanto tal, é uma superfície lingüística onde se dá o jogo de
sentidos, do trabalho da linguagem, do funcionamento da discursividade. Para a AD, o texto é dispersão de
sujeitos por comportar diversas posições-sujeito que o atravessam e que correspondem a diferentes
formações discursivas.” (FERREIRA, 2001, p.22). Então, o que se propõe neste artigo é uma das possíveis
leituras dos textos que seguem e um possível descortinamento de um discurso de uma ideologia capitalista
que aparece velada em um discurso aparentemente espiritualista.
4.1. Análise do Recorte 1: Nossa paz interior embeleza a vida
“Proponho, aqui, exercitarmos juntos o poder da vibração”.
Agora, sinta-se aí, dentro do peito, uma pessoa que é dona de si mesma. Sinta-se serena. Comece
a emitir a palavra paz. Diga: “PAZ, PAZ, PAZ...”.
Eu valho a pena. Cuidar de mim é o maior investimento que posso fazer. Meu tempo e meu
empenho me capacitam, me potencializam. Eu trabalho e tenho lucros extraordinários. E mais: meu
pensamento positivo me torna uma pessoa sem medo do futuro, porque eu sei que posso vencer qualquer
obstáculo. Eu garanto um amanhã melhor.
Sinta essa paz de que sua alma gosta tanto! Sinta-se um monge sentado no alto da montanha,
contemplando o mundo silencioso. Sinta-se desprendida de toda a dor. Observe o vento, os vales, as
montanhas, o horizonte azul e a imensidão do céu. A paz cria a verdadeira realização. Agora vou sair daqui,
vou me mexer, me ativar e praticar a paz ativa.” (11/02/2008).
Neste recorte, o autor Luiz Antonio Gasparetto inicia seu discurso propondo ao leitor que “juntos”
exercitem o “poder da vibração”. O uso da primeira pessoa do plural pode sugerir a intenção do autor em
aproximar-se desse leitor, de estarem juntos numa ação.Há aqui uma possível tentativa de atrair para seu
discurso aquele que passa a ser seu interlocutor. Quando utiliza a primeira pessoa do plural, há posto um
“eu”, no caso o autor, e um “você” que, nos textos de auto-ajuda, pode-se referir a qualquer pessoa. É uma
marca pessoal que passa a ser impessoal neste tipo de discurso.
Há várias palavras e expressões vinculadas direta e explicitamente ao discurso da espiritualidade:
paz (que é bastante enfatizada pela repetição nos textos de Gasparetto); alma; monge; contemplando o
mundo; imensidão do céu; desprendida de toda a dor. Postas assim na materialidade da língua, no
intradiscurso, as palavras do autor querem deixar “transparecer” uma formação discursiva que almeja a
univocidade. O “lugar” assumido pelo autor é o daqueles que enunciam um discurso do desapego, do ser
religioso.
No entanto, em meio a toda esse aparente discurso espiritualizado, estão presentes, de forma
dissimulada, “rastros”, “vestígios” de um discurso ideologicamente capitalista. Aparecem palavras,
expressões, frases que remetem imediatamente ao campo semântico do materialismo-capitalista: “dona”;
“Eu valho a pena”; “maior investimento”; “Meu tempo e meu empenho me capacitam, me
potencializam. Eu trabalho e tenho lucros extraordinários.”; “Eu garanto um amanhã melhor.”; vou
me mexer, me ativar”.
São “deslizes”, “lapsos” do autor que anunciam sua formação discursiva e ideológica, que o
constituem como sujeito “assujeitado” e, ao mesmo tempo, responsável pelo assujeitamento.
Há expressões no discurso que permitem estabelecer ainda mais facilmente um efeito de sentido
que provoca o movimento de adesão ao discurso capitalista. Quando as palavras ligadas ao campo
semântico do discurso espiritualista aparecem “lado a lado” daquelas pertencentes ao discurso do
capitalismo, fica difícil não se deixar “seduzir” pelo pensamento materialista. Neste recorte selecionado, há
ocorrências desse tipo: A paz cria a verdadeira realização. A palavra paz aparece aqui combinada com a
palavra realização que, certamente, pode ser uma remissão direta ao universo capitalista. Quando o autor
enuncia “praticar a paz ativa”, as palavras paz e ativa permitem também estabelecer essa relação entre
os discursos espiritualista e capitalista.
Em Agora, sinta-se aí, dentro do peito, uma pessoa que é dona de si mesma, o efeito de
sentido que pode ser estabelecido no interlocutor é o de que cada um constrói seu próprio destino, na
condição de único responsável pela própria felicidade ou tristeza. Essa idéia reforça a ideologia capitalista,
pois, há um implícito de que esse sistema não deve ser questionado, já que não há nada de errado com ele.
Se há obstáculo, ele não seria o problema, mas sim a falta de determinação de quem não conseguiu
ultrapassá-lo.
Há também em porque eu sei que posso vencer qualquer obstáculo, a idéia implicitamente
enunciada na maioria dos textos de auto-ajuda: Qualquer pessoa pode vencer. É só querer. Querer é poder.
Este discurso é altamente favorável à ideologia capitalista, visto que, desse ponto de vista, nesse sistema
qualquer um pode enriquecer.
Neste ponto da análise, é bom reafirmar que a maior parte do público leitor da revista é formada por
mulheres de classe média baixa. E o autor sabe a que leitor se dirige. São mulheres, em sua maioria, que,
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fazendo parte de uma sociedade capitalista, têm ambições, sonham com ascensão social. Enfim,
estabelece-se um jogo de imagens dos papéis que cada um desempenha neste momento. A formação
imaginária que autor e interlocutor têm de si já está constituída. Dessa forma, podemos afirmar que “as
palavras, expressões, proposições, etc., recebem seu sentido da formação discursiva na qual são
produzidas [...] diremos que os indivíduos são “interpelados” em sujeitos falantes (em sujeitos de seu
discurso) pelas formações ideológicas que lhes são correspondentes” (PÊCHEUX, 1988, p.161).
Neste excerto, podemos perceber, por trás de uma opacidade, a mensagem de um provérbio que
há muito circula: Quem não arrisca, não petisca. Muitos textos de auto-ajuda se aproximam dos provérbios:
“Do ponto de vista dos propósitos comunicativos, pode-se dizer que o discurso de auto-ajuda se aproxima
dos provérbios, já que ambos são formas de aconselhamento [...] É exatamente o que faz o discurso de
auto-ajuda, que, como os provérbios, oferece sabedoria e aconselhamento de maneira rápida e incisiva.”(
BRUNELLI, 2008, p.39).
Mais uma vez, aparece reforçada a idéia capitalista de arriscar para enriquecer.
É muito forte também a exaltação do “eu” nas expressões Eu valho a pena; pessoa que é dona de
si mesma; porque eu sei que posso vencer qualquer obstáculo. São idéias que supervalorizam o
indivíduo. Enfim, é o individualismo exacerbado que marca o discurso capitalista.
4.2. Análise do Recorte 2: Escute sua alma e seja feliz!
É isso mesmo, gente. Diante de todas as dificuldades, é muito importante parar para escutar a vida
que existe em cada um de nós. Como se faz isso? Sentindo a situação e perguntando: “O que a minha alma
quer de mim?” Peça para ver, apele para a visão: “Eu quero saber onde estou falhando comigo mesma”.
Jamais se desligue daquilo que o seu espírito quer. Ninguém, absolutamente ninguém no mundo, sofre sem
necessidade.
Seja honesta com a sua alma, com o que você realmente deseja. Se você faz o que não sente, não
está sendo sincera. Dê espaço aos seus anseios e seja verdadeiramente autêntica consigo mesma! Faça
apenas o que gosta. É isso mesmo! Seja madura e, acima de tudo, se assuma. Quem não está bem
consigo não vai para frente. Quem está do próprio lado se realiza. Quando você adota essa postura, a
abundância surge em sua vida. O sucesso? Será apenas uma conseqüência!
(17/06/2008)
Luiz Antonio Gasparetto inicia seu texto utilizando o vocativo gente. Sabemos que esta palavra
pertence à variante popular da língua. Mais uma vez, portanto, podemos afirmar que o autor sabe para que
leitor ele se dirige. Ele já tem uma imagem do seu interlocutor. O vocativo sugere também uma tentativa de
aproximação com o interlocutor, que pode interpretar que o autor se considera um sujeito semelhante a ele.
Gente, um vocativo de marca pessoal, pode se referir a qualquer pessoa. É a impessoalidade numa marca
pessoal.
Podemos observar também que em Escute sua alma e seja feliz e em O que a minha alma quer
de mim? Peça para ver, apele para a visão o autor relaciona o concreto, aqui representado pelos sentidos
humanos da audição e da visão, com o abstrato, representado pelo substantivo alma. É como se o autor
quisesse deixar transparecer que não há diferença entre o concreto e o abstrato, entre o material e o
espiritual. O material e o espiritual conviveriam perfeitamente.
Quando Gasparetto traz neste excerto as expressões Eu quero saber onde estou falhando
comigo mesma e Se você faz o que não sente, não está sendo sincera, o sentido que pode ser
estabelecido é o de que, se a pessoa vive uma situação de fracasso ou insucesso, a culpa é dela que não
está sendo sincera consigo mesma. Então, o problema não é do sistema vigente, mas é um problema pelo
qual ela é a única responsável.
Em Ninguém, absolutamente ninguém no mundo, sofre sem necessidade, o efeito que pode
ser produzido é o de uma aceitação de que o sistema o faz sofrer, mas esse sofrimento é necessário, faz
parte de um processo, ou seja, devemos nos conformar com o que está estabelecido.
Há também neste recorte palavras que pertencem ao discurso da ideologia capitalista: abundância;
sucesso. Elas aparecem misturadas, embrenhadas a outras totalmente pertencentes semanticamente ao
discurso espiritualista: alma; espírito. Aparece novamente essa fusão entre o espírito e a matéria, como se
entre ambos não houvesse alguma diferença.
A mensagem do provérbio Quem anda pra trás é caranguejo se inscreve no que é posto pelo autor
em Quem não está bem consigo não vai para frente. Como o discurso do provérbio, esta idéia enunciada
pelo autor se presta mais a aconselhar do que levar a uma reflexão. Há uma “esperança subjacente”: “há
um problema, mas há também uma solução. É só você decidir andar para frente.”.
As frases Faça apenas o que gosta e Quem está do próprio lado se realiza manifestam a
exaltação do indivíduo, o desprezo pela vontade do outro, marcas bastante fortes do discurso capitalista.
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4.3. Confronto entre os recortes selecionados
No momento das análises de cada um dos recortes selecionados, as regularidades do discurso da
literatura de auto-ajuda deste autor já foram “emergindo”.
São evidentes alguns elementos que vão apontando a formação ideológica e discursiva de
Gasparetto.
A (re) produção do discurso vigente do capitalismo aparece nos dois textos selecionados. Essa (re)
produção é feita por meio dos sentidos que são produzidos pelos vestígios, pelos “rastros”, pelas marcas
deixadas pelo autor durante seu discurso. São sentidos que serão produzidos pelo e no discurso de
Gasparetto e que promovem o processo de assujeitamento do leitor, principalmente do leitor acrítico. O
(inter) discurso materialista fica evidente.
São recorrentes em seu texto a presença de palavras de um universo materialista misturadas
àquelas de remissão direta ao discurso espiritualista. Há também a exaltação do individualismo nos dois
textos. A aproximação das idéias presentes nos dois excertos a idéias de provérbios conhecidos também
pode ser constatada.
Na materialidade do discurso, percebe-se também a tese de que a única responsabilidade pelo
fracasso de uma pessoa é dela mesma. Reforça-se a ideologia capitalista quando se diz implicitamente que
“se há algo errado com a pessoa, não é culpa do sistema. Não é ele quem deve mudar, mas sim ela.”.
O uso do vocativo, mesmo que implicitamente, aparece também nos dois textos como uma
estratégia discursiva do autor para atrair seu leitor.
Além dessas ocorrências que revelam uma defesa do discurso ideologicamente capitalista,
percebemos também outros pontos em comum entre os textos desses recortes e os da maioria dos textos
de auto-ajuda: tom extremamente otimista; o foco nas soluções a despeito da complexidade dos problemas;
a promessa da realização dos sonhos; as frases imperativas, das quais ninguém deve discordar.
Enfim, são recortes cujas regularidades apontam a formação discursiva de seu autor, que já tem
constituída a formação discursiva do seu interlocutor.
São discursos que vêm corroborar uma das idéias nodais da AD: A palavra é sempre prenha de
sentidos que atravessam todo o sujeito.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As leituras e interpretações que aqui foram feitas, sem dúvida, são passíveis de discussão e não
esgotam as possibilidades de outras leituras. Afinal, na perspectiva pêcheutiana, o discurso é objeto de
busca infinita, visto que ele sempre “escapa“. O discurso constitui-se assim, no verdadeiro ponto de partida
de uma “aventura teórica” (FERREIRA, 2003, p.39).
Tomando como embasamento teórico pressupostos da Análise do Discurso de Linha Francesa, não
se pode falar em uma análise “pronta e acabada”, posto que “a AD não trabalha com a língua da
transparência, da autonomia, da imanência. A língua do analista do discurso é outra. É a língua da ordem
material, da opacidade [...] É a língua da indefinição, do direito e do avesso, do dentro e fora, da presença e
da ausência.” (FERREIRA, 2003, p. 42). Por essa perspectiva, não se pode falar que o estudo que aqui se
propôs a analisar o (inter)discurso capitalista presente na literatura de auto- ajuda encerre a discussão.
É pertinente dizer, porém, que os textos do autor Luiz Antonio Gasparetto, publicados em duas
edições da revista Ana Maria, e aqui analisados, revelam que o discurso da ideologia capitalista pode ser
(re)produzido por este discurso de auto-ajuda, posto como espiritualista. Os textos de auto-ajuda podem,
enfim, por meio dos sentidos produzidos no público leitor dessa revista, contribuir para a perpetuação de um
materialismo cada vez mais presente na sociedade moderna.
REFERÊNCIAS
BRUNELLI, A. F. O sucesso está em suas mãos: análise do discurso de auto-ajuda. Campinas:
Universidade Estadual de Campinas, 2004.
BRUNELLI, A. F. Ilusão à venda. Discutindo a Língua Portuguesa, São Paulo, n. 13, p. 35-41,
agosto 2008.
FERREIRA, Maria Cristina Leandro. O quadro atual da Análise de Discurso no Brasil. Revista
Letras; Espaços de Circulação de Linguagem, Universidade Federal de Santa Maria, n. 27, p. 39-46,
2003.
FERREIRA, Maria Cristina Leandro. Glossário de termos do discurso. Porto Alegre: UFRGS.
Instituto de Letras, 2001.
PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso. Uma crítica à afirmação do óbvio. Trad. Eni P. Orlandi,
Campinas: Editora Unicamp, 1988.
TEIXEIRA, Marlene. Análise de discurso e psicanálise: elementos para uma abordagem do sentido
no discurso. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000.
ORLANDI, Eni P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Editora Pontes.
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