DEMOCRACIA E PRIVATIZAÇÃO – A Mudança Estrutural da

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DEMOCRACIA E PRIVATIZAÇÃO – A Mudança Estrutural da
DEMOCRACIA E PRIVATIZAÇÃO – A Mudança Estrutural da América
Latina nos Anos 90
Tharcisio Bierrenbach de Souza Santos
Professor Titular das Faculdades de Administração e de Economia da FAAP
Vice-Diretor da Faculdade de Administração da FAAP
Professor do FAAP-MBA
Diretor do FAAP-MBA
Research Schollar da Robert O. Anderson School and Graduate School of
Management da University of New Mexico
[email protected]
SUMÁRIO
A década de 1990 marcou um duplo desafio para a América Latina. Os países
emergentes do continente, que haviam experimentado um conjunto de regimes
autoritários nas duas décadas precedentes, marcados pelo populismo e pela
utilização de estratégias de desenvolvimento voltadas para o mercado interno,
tiveram de enfrentar um duplo desafio: de consolidar a democracia alcançada
na década anterior, e de superar as dificuldades econômicas geradas pela
crise da dívida externa e pelo agravamento da inflação.
A adoção de uma agenda de reformas e de privatizações se fez em meio às
pressões criadas pelo cenário externo do período, em que ocorreu uma
aceleração do processo de globalização ao mesmo tempo em que a
volatilidade financeira causava um conjunto de crises de liquidez internacional.
Este artigo pretende abordar a questão das reformas empreendidas na
América Latina durante a década de 1990, verificando em que medida a
transição para a democracia teve de conviver com a questão de reformulação
do modelo de crescimento econômico.
2
1. INTRODUÇÃO
A análise das reformas econômicas realizadas nos países da América Latina e
particularmente no Brasil foi realizada a partir do levantamento da situação
existente antes do seu início, ao mesmo tempo em que se considerava o
conjunto das mudanças na ordem econômica e política mundial que
caracterizou a aceleração da globalização. Os textos de Gerefi (1995) e de
Griffith-Jones & Stallings (1995) foram particularmente importantes para
descrever com detalhes os aspectos de organização da produção e de
estrutura do sistema financeiro internacional.
A questão dos diagnósticos e das diferentes agendas de reformas deles
decorrentes foi enfocada a seguir, com destaque para os textos de Williamson
(1993), Stiglitz (1998), Rodrik (1999), Bresser Pereira (1993) e Williamson et
alia (2004). Procurou-se distinguir claramente as diferenças entre a abordagem
preconizada pelo Consenso de Washington, que consiste de um conjunto de
reformas de caráter neo-liberal, e aquela recomendada alternativamente, que
leva em conta a necessidade de um mínimo de intervenção do Estado, para
nortear os aspectos de política industrial e agrícola, para administrar as
questões básicas de educação e de saúde pública e para promover uma maior
equidade nos países da América Latina.
O final do trabalho enfoca a questão da forma com que a reforma econômica
se processou durante os anos 90 no Brasil, analisando as dificuldades que
tiveram de ser enfrentadas pelo fato de que, paralelamente ao processo de
estabilização econômica que vem sendo desenvolvido a partir de 1993, foi
necessário compatibilizar a agenda de mudanças com um processo ainda em
curso de afirmação do regime democrático e com o poder de veto dos
diferentes atores políticos. Verifica-se que a transição e a reforma econômica
transitaram por um percurso demorado e arduamente negociado, mas que as
perspectivas que se abrem para o futuro imediato são claramente positivas.
Nesta parte da análise, os textos de Sola (1993), Tavares de Almeida (1996 e
1999), Diniz (2000) e Fiori (1997) foram a base para a reflexão.
2.
O QUADRO MAIS AMPLO
2.1
Os Sistemas Globalizados de Produção e o Desenvolvimento do
Terceiro Mundo
Nas últimas décadas a economia mundial sofreu uma modificação fundamental
em relação à divisão de trabalho entre produção e comércio. No passado, as
matérias primas provinham da periferia para o centro industrializado, enquanto
bens manufaturados eram produzidos desde os países desenvolvidos para
todo mundo.
O investimento direto na produção se constituiu na resposta às políticas
protecionistas, tanto de países do centro como da periferia, que desejavam
3
reduzir seu dispêndio de divisas na importação e usufruir do aumento nos
empregos na produção local. Criou-se um sistema integrado de comércio e
produção, o que levou países a se especializarem em diferentes aspectos da
manufatura e mesmo em estágios diversos de uma mesma indústria.
O processo determinou o aparecimento de um sistema global de manufatura,
no qual a produção se acha dispersa entre países desenvolvidos e em
desenvolvimento. As corporações ficaram crescentemente desconectadas de
seus países de origem, buscando sempre as melhores oportunidades de
comércio, produção, compras ou finanças que se pudesse dispor no mundo
inteiro.
Em conseqüência, surgiram novos centros de produção constituídos pelos
NIC’s1 do Leste Asiático e da América Latina, que durante os anos 70 e 80
expandiram sua participação na produção e subseqüente exportação de
manufaturados. Os baixos custos de mão de obra e o melhor nível de
habilidades e da produtividade dos trabalhadores do terceiro mundo, tem
contribuído para caracterizar o fornecimento global como uma necessidade
para qualquer empresa que procure melhorar sua posição competitiva. Assim,
verificou-se a emergência de novas divisões regionais do trabalho, que
exploram os diversos recursos dos países centrais, dos semi-periféricos e dos
periféricos.
A moderna tecnologia facilitou a globalização econômica. Dramáticas
mudanças nos sistemas de transporte e de comunicações reduziram o custo
para enviar bens, mensagens e pessoas de uma parte do mundo para outra. A
tecnologia da informação, através de soluções como o CAD2 e os
equipamentos de controle numérico, permite produzir, com alta qualidade,
produtos diversificados e de menor custo, tanto em lotes pequenos como em
grande volume. Assim, a tecnologia fortalece as forças de localização e de
globalização no processo de produção.
As TNC’s3 são os principais agentes econômicos no capitalismo global. Os
paradigmas teóricos anteriores falharam porque não havia uma forma de ligar
as atividades das transnacionais na estrutura da economia mundial (teoria da
dependência) ou, inversamente, porque não encaixavam o capital
transnacional nas peculiaridades e dinamismos associados às economias
locais (teoria dos sistemas mundiais). Uma nova estrutura, chamada de cadeia
global de mercadorias, tenta superar as limitações das duas formas de
teorização. A estrutura de cadeia global de mercadorias identifica novas
características do capitalismo global, distinguindo entre as cadeias de
mercadorias orientadas para a produção e aquelas voltadas para as compras,
ao mesmo tempo em que realça os papeis centrais desempenhados,
respectivamente, pelos capitais industriais e comerciais. Tenta também reduzir
a distância entre os enfoques macro e microeconômicos, enfatizando o
contexto local da produção global e mostrando o reforço que a globalização
1
Newly Industrialized Countries – países recentemente industrializados ou de industrialização tardia.
Computer Aided Design – projeto auxiliado por computação.
3
Trans National Companies – companhias transnacionais.
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4
traz aos processos de localização na economia mundial. Além disso, destaca
os múltiplos papeis exportadores que ligam os países à economia mundial,
embora com conseqüências variadas sobre o desenvolvimento nacional.
Grandes bancos comerciais seguiram as transnacionais durante os anos 60 e
70 nos mercados mais relevantes da Europa, Ásia e América Latina. No final
dos anos 70 e início dos 80, ocorreu a crise da dívida provocada pela
expansão dos empréstimos que se seguiu à abundância de recursos
provocada pela crise do petróleo. Países do terceiro mundo desenvolveram
ambiciosos programas de investimento e de custeio, com financiamentos
contraídos a taxas variáveis, que sofreram o impacto da crise dos juros,
acarretando enorme dispêndio de divisas e conseqüente moratória. Essas
operações sofreram posteriormente um refinanciamento forçado, a taxas
substancialmente mais elevadas do que aquelas a que tinham sido
contratadas.
A crise foi particularmente severa na América Latina e trouxe um conjunto de
reformas econômicas neo-liberais, que se traduziram na morte da ISI4 como
uma estratégia de desenvolvimento. Instituições internacionais, como o FMI e
Banco Mundial forçaram a adoção de políticas ortodoxas de estabilização.
Nos anos 90, o sistema financeiro global passa a ser entendido muito mais
como uma oportunidade que como uma restrição no terceiro mundo.
Instituições financeiras internacionais e investidores privados pareceram dispor
de amplos recursos e o foco parece ter sido deslocado da crise da dívida, onde
havia permanecido durante os anos 80, para como empregar recursos novos
no sentido de restaurar a competitividade internacional e gerar exportações
não tradicionais.
O ambiente criado pelo GATT permitiu o acesso de países do terceiro mundo a
mercados desenvolvidos, especialmente dos EUA. Barreiras tarifárias e não
tarifárias foram usadas pela Comunidade Européia, Estados Unidos e Canadá
para regular o comércio em setores como têxteis e confecções, calçados,
automóveis e eletrodomésticos. O protecionismo provocou ao aumento da
capacidade competitiva da maioria dos fabricantes do terceiro mundo. Outra
conseqüência do protecionismo foi a diversificação da competição
internacional: a imposição de barreiras não tarifárias levou ao estabelecimento
de bases de produção no primeiro mundo.
Três tendências específicas servem para ilustrar a natureza do sistema de
produção mundial contemporâneo:
a- surgimento de industrialização diversificada no terceiro mundo;
b- adoção de estratégias de desenvolvimento baseadas na exportação em
países periféricos; e,
c- elevada especialização do perfil exportador dos países do terceiro
mundo.
O impacto desses processos de mudança é bastante desigual, com alguns
países melhorando suas posições e outros ficando marginalizados.
4
Import Substitution Industrialisation – Industrialização Substituttiva de Importações
5
Desde 1950, o fosso entre os desenvolvidos e os sub-desenvolvidos foi sendo
reduzido em termos de industrialização. No final dos anos 70 os NIC’s tinham
igualado e ultrapassado os países centrais no grau de industrialização. Na
medida em que os países do primeiro mundo caminhavam na expansão do
setor terciário, a industrialização crescia na periferia.
A industria superou a agricultura como fonte de desenvolvimento em todos os
países do terceiro mundo. Entre 1965 e 1990, a participação industrial no
produto bruto cresceu 13% no leste e sudeste asiático, 10% na África subsahárica, 5% no sul da Ásia e 3% na América Latina. Ao mesmo tempo, a
participação da agricultura decrescia 16% no leste e sudeste da Ásia, 11% no
sul da Ásia, 8% na África sub-sahárica e 6% na América Latina.
O comércio mundial expandiu-se 30 vezes desde 1960: bens manufaturados,
que representavam 55% do total das exportações em 1980, passaram a
representar 75% em 1990. A participação dos NIC’s nas exportações de
manufaturados de alta tecnologia saltou de 2% em 1964 para 25% em 1985,
enquanto que nos produtos de média tecnologia passou de 16 para 22% no
mesmo período. As exportações representaram 22% do produto no leste e
sudeste asiático, 23% na África sub-sahárica, 15% nos países industrialmente
avançados, 11% no sul da Ásia e 10% na América Latina e Caribe. Em todas
as regiões, a importância relativa das commodities, tanto nas exportações,
como no produto, decresceu bastante desde 1970.
A maturidade ou sofisticação da estrutura industrial de um país pode ser
medida pela complexidade dos produtos que ele exporta. Os têxteis e
confecções, que foram o carro-chefe nas exportações dos tigres asiáticos nos
anos 60 e 70, perderam importância entre 1970 e 92. Ao mesmo tempo em
que os tigres mudavam seu foco para produtos de elevado valor adicionado
nos anos 80 e 90, passando a exportar equipamentos de produção e fibras
têxteis para países com menor grau de desenvolvimento na região, estes
assumiam a exportação de confecções. Enquanto a diversificação das
exportações de produtos não tradicionais é uma tendência clara, verifica-se –
de forma menos acentuada – uma outra tendência de concentração desses
países no desenvolvimento de nichos específicos de mercado.
Surgem, então, três questões relativas ao desenvolvimento dos países do
terceiro mundo:
a- Como assegurar a entrada dos países nos nichos de exportação mais
atraentes, onde eles tenham as maiores vantagens relativas ?
b- Em que extensão a posição de um país no sistema global de produção
é determinada pela disponibilidade de capital local, infra-estrutura
econômica e existência de uma força de trabalho adequada ?
c- Qual é o leque de opções de desenvolvimento disponíveis para os
países do terceiro mundo ?
Os sistemas transnacionais de produção ligam as atividades econômicas de
empresas às redes tecnológicas, organizacionais e institucionais usadas para
desenvolver, produzir e comercializar mercadorias específicas. A globalização
6
implica num grau de integração funcional entre essas atividades dispersas
internacionalmente.
As cadeias globais de mercadorias tem quatro dimensões principais:
a- cadeias com elevado valor adicionado de produtos, serviços e recursos
ligadas entre si num leque de indústrias relevantes;
b- dispersão geográfica das redes de produção e comercialização, nos
níveis nacional, regional e global, envolvendo empresas de diferentes
dimensões e tipos;
c- estrutura de governança de relações de poder e de autoridade entre
empresas, que determina como os recursos são alocados e fluem numa
cadeia; e,
d- esquema institucional, que identifica como as condições e políticas
locais, nacionais e internacionais dão forma ao processo de
globalização em cada estágio da cadeia.
As cadeias de mercadorias orientadas à produção ocorrem quando as
transnacionais, ou outras empresas industriais integradas, fazem o papel
central no controle de um sistema de produção. Trata-se de uma característica
de setores de capital e tecnologia intensivos, como automóveis, computadores,
aviões e equipamento pesado. A sub-contratação de componentes é comum,
especialmente nos processos de mão de obra mais intensiva. Também é
comum a existência de alianças estratégicas entre rivais internacionais. O que
caracteriza os sistemas orientados à produção é o controle exercido pela
matriz administrativa dos fabricantes transnacionais.
As cadeias de mercadorias orientadas às compras, segundo Gerefi, são
encontradas em setores onde grandes varejistas, empresas de marketing de
marcas e trading companies estabelecem redes de produção descentralizada
em uma variedade de países exportadores do terceiro mundo. A produção é
desenvolvida por empresas de capital local, que se encarregam da produção
dos bens acabados para compradores externos.
Por outro lado, as especificações são fornecidas por companhias de marketing
e marcas ou por grandes varejistas, que desenham e encomendam os
produtos. Essas empresas usualmente não são proprietárias das fábricas, mas
apenas projetam e comercializam os produtos de marca que encomendam.
O aspecto mais importante é administrar as cadeias de produção e de
comércio, assegurando que as partes se mantenham unidas, como um todo
integrado. Os lucros nessas cadeias não decorrem da escala, volume ou
avanços tecnológicos, como nas cadeias orientadas à produção, mas de
combinações específicas de pesquisa, projeto, vendas, marketing e serviços
financeiros, que permitem a varejistas e companhias de marca atuarem como
corretores estratégicos entre os produtores e comerciantes externos e seu
próprio mercado interno.
As cadeias globais de produção e de compras tem seu valor decorrente das
barreiras de entrada, que permitem às companhias centrais de industria e
comercio controlar os elos para frente e para trás no processo de produção. Os
7
diversos autores que se ocupam das teorias de organização industrial, entre os
quais se deve ressaltar Michael Porter, sustentam que a lucratividade é
elevada em segmentos industriais caracterizados por elevadas barreiras de
entrada a novos competidores.
As cadeias globais de produção caracterizam-se por tecnologia e capital
intensivos, enquanto que aquelas focadas nas compras apresentam, como
aspecto mais relevante, o fato de ocuparem mão de obra intensiva na
produção industrial. A distinção entre ambos os tipos de cadeias decorre da
diferença entre a produção de massa e as formas flexíveis de especialização
na organização industrial.
A produção de massa é um modelo orientado para a produção, no qual as
industrias verticalmente integradas reduzem custos de fabricação de
mercadorias padronizadas utilizando-se de equipamento específico, partes
intercambiáveis e trabalhadores pouco especializados, além de fábricas que
tenham linhas de montagem contínua.
A produção flexível, em contraste, é baseada em equipamento flexível, partes
padronizadas e trabalhadores especializados em fábricas ou oficinas
localizadas freqüentemente em distritos industriais onde redes de cooperação
tendem a facilitar a inovação e a adaptação.
Enquanto a perspectiva de organização flexível trata especificamente da
organização da produção em economias nacionais ou em distritos industriais
locais, a noção de cadeias orientadas à produção ou às compras focaliza as
propriedades organizacionais de industrias globais.
O surgimento do esquema de produção flexível, numa cadeia orientada para
compras, é explicado, pelo menos parcialmente, por mudanças na estrutura do
consumo e no varejo dos principais mercados de exportação, que por sua vez
refletem mudanças demográficas e novos imperativos organizacionais.
Enquanto se discute se a produção flexível é uma forma que poderia deslocar
o sistema de produção de massa, as cadeias orientadas à produção e às
compras são vistas como pólos divergentes num espectro de possibilidades de
organização industrial.
Denomina-se de produção triangular a forma utilizada pelos países que se
acham em cadeias orientadas às compras para poder competir com
fornecedores de custos mais baixos. Os compradores colocam ordens de
compra junto aos NIC’s, que por sua vez colocam a totalidade ou parte dessas
ordens junto a fábricas off-shore, localizadas em países de baixos salários.
Essas empresas podem ou não ter participação acionária dos fabricantes que
estão localizados nos tigres
.
O triângulo se completa quando a mercadoria é embarcada para o mercado
americano, de acordo com quotas que os Estados Unidos concederam a esses
terceiros países. Apesar contato e confiança que os fabricantes dos NIC’s
gozam, quando o volume de encomendas cresce há uma tendência de evitar a
intermediação, ocorrendo a negociação direta entre compradores e
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fabricantes. Se os produtores se acham mais ligados, a mudança se acelera e
eles contam com menos tempo para explorar suas vantagens competitivas.
Outro aspecto relevante da estrutura dos mercados mundiais reside na
redução continuada dos ciclos de vida dos produtos. Esse encurtamento tem
várias causas:
a- a questão da sazonalidade dos produtos de moda;
b- a proliferação de novos modelos de produtos;
c- o crescimento das habilidades produtivas no terceiro mundo; e,
finalmente,
d- a grande velocidade com que os países centrais impõe barreiras ao
comércio.
A globalização econômica aumentou o papel do comércio, especialmente de
manufaturas na economia mundial. Os países estão ligados a cadeias globais
de mercadorias através dos bens e serviços que oferecem à economia
mundial. Esses laços de comércio assumem cinco alternativas:
a- exportações de mercadorias primárias;
b- processamento de exportação e operações de montagem;
c- fornecimento sub-contratado de componentes;
d- produção de equipamento original (OEM); ou,
e- produção original de produtos de marca (OBM).
Cada um desses papeis diferentes é progressivamente mais difícil de ser
assumido, porque implica num elevado grau de integração doméstica e
capacidade empreendedora local. Essas relações de comércio não são
mutuamente exclusivas e a maioria dos países se acha ligada à economia
mundial de múltiplas formas.
O desenvolvimento implica em avanço tecnológico e aprendizagem
organizacional, sendo que ambos são necessários para a aquisição de
maiores graus de complexidade industrial. Para isso é necessário contar com
uma dinâmica base empresarial, políticas estatais favoráveis e competências
crescentes, ao lado de salários mais elevados para a força de trabalho.
É necessário destacar que os países do terceiro mundo utilizaram-se de várias
estratégias na últimas décadas para tentar melhorar sua posição global. Essas
estratégias podem ser resumidamente apresentadas como sendo:
a- políticas governamentais e iniciativas das organizações no sentido de
melhorar a produtividade;
b- novas relações entre o capital nacional e o capital estrangeiro; e,
c- participação em blocos econômicos regionais.
A globalização não é inevitável, nem uma benção em termos de
desenvolvimento. Ela gera resistências de natureza social e cultural, por suas
conseqüências desiguais e suscetíveis de tornar paises e regiões inteiramente
marginais. As mudanças provocadas por este processo afetam todas as
regiões do mundo. Os tigres asiáticos, que consolidaram sua posição de
liderança nos últimos 25 anos, estão em meio a uma transformação radical em
seu perfil industrial e exportador, à medida que industrias de baixo custo de
mão de obra cedem lugar a setores tecnologicamente mais sofisticados e com
9
foco nos serviços. Para outras regiões, no entanto, o problema perdura
enquanto os países tentam modificar sua estratégia de exportações orientadas
por baixos salários, baixa produtividade e formas marginais de integração
econômica.
Na perspectiva da teoria econômica neo-liberal, a globalização promove maior
eficiência no mundo: as industrias de trabalho intensivo continuarão a procurar
mão de obra barata, enquanto os países que investem em tecnologia e capital
terão benefícios da inovação e da sofisticação industrial. A eficiência precisa
ser contrabalançada por uma estrutura regulatória que enfatize o
desenvolvimento para toda a sociedade e não apenas para alguns segmentos.
A globalização exuberante é criticada, porque deixa muitos grupos da
sociedade desprotegidos. O dilema que se coloca é a necessidade de
defender os interesses nacionais sem correr o risco de sofrer um desligamento
da economia mundial. É importante destacar que, apesar da performance em
exportações se constituir em medida da competitividade internacional dos
países e regiões, não deve ser confundida com o pleno desenvolvimento
nacional.
A globalização estimulou a EOI5 como uma estratégia de desenvolvimento,
mas seus investimentos tendem a se concentrar em determinados setores ou
regiões. Como as fontes básicas de vantagem competitiva são transitórias
(salários baixos e estabilidade econômica), muitas indústrias de exportação
são livres e com alta mobilidade. Existem diversas formas de integrar a EOI no
esforço de desenvolvimento:
a- por meio da diversificação econômica, espalhando seus efeitos por
vários setores e regiões;
b- procurando concentrar a economia em atividades exportadoras que
agregam maior valor adicionado;
c- estabelecendo elos para frente e para trás, quando necessário;
d- combinando a EOI com etapas de ISI, com o objetivo de evitar a estrita
dependência dos mercados externos ou mesmo do doméstico.
Deve-se ressaltar que, considerando a ordem econômica mundial
prevalecente, o desenvolvimento autárquico não é uma opção viável num
mundo interdependente, em que a inexistência de laços comerciais pode
representar a marginalização do país.
Assim, o desafio principal dos países do terceiro mundo, nesta era de
reestruturação global, é lidar com três aspectos:
a- produtividade;
b- dependência; e,
c- eqüidade.
A questão da produtividade requer capacidade empreendedora, para gerar
exportações não tradicionais, para melhorar a eficiência das empresas e para
desenvolver nos trabalhadores as habilidades requeridas pela economia
moderna.
5
Export Oriented Industrialisation – Industrialização Orientada para a Exportação
10
Por outro lado, o problema da dependência decorre da abertura do terceiro
mundo ao capital estrangeiro e da ênfase em políticas de livre comércio, que
deixam vários setores das economias nacionais ao sabor das flutuações
cíclicas. Sua solução está no fortalecimento do capital local.
Finalmente, a necessidade da busca da eqüidade envolve considerações
fundamentais sobre empregos, trabalhadores e qualidade de vida.
2.2 As Novas Tendências Financeiras Globais e suas Implicações sobre o
Desenvolvimento
Ao se analisar a trajetória mais ou menos recente do processo de
desenvolvimento, especialmente nos países periféricos e semi-periféricos,
verifica-se que um aspecto relevante foi desempenhado pelos fluxos de capital
estrangeiro. A disponibilidade e o emprego de capitais estrangeiros sofreram
acentuadas mudanças nos anos 80 e no início do século XXI. A rigor, é
possível distinguir seis sub-períodos distintos:
a- período 80/82 – antes da chamada “crise da dívida” ter início, quando as
tendências dos anos 70 se mantiveram;
b- período 83/86 – que se constituiu numa fase de ajustamento à crise da
dívida, ao mesmo tempo em que os fluxos de capital realizavam o
chamado “flight to quality”, buscando o abrigo de aplicações menos
rentáveis em países centrais, que no entanto pudessem minimizar os
riscos a que o capital estava exposto no terceiro mundo.
c- período 87/90 – em que ocorreu uma elevação do volume de capital
decorrente valorização do iene, que conduziu à expansão dos
investimentos japoneses, mas em que a tendência de preferência por
mercados mais estáveis continuou a se verificar. Nesta etapa a Ásia
deslocou a América Latina, como destino preferencial dos
investimentos.
d- período 91/95 – quando fluxo de capital continuou aumentando
rapidamente, mas em que cresceu o volume de recursos destinados ao
terceiro mundo, especialmente para a América Latina.
e- período 95/00 – no qual a volatilidade financeira contribuiu para crises no
México (95); Tigres Asiáticos (97); Russia (98); Brasil (98 e 99) e
Argentina (a partir de 2000).
f- período 2001/2003 – em que se verificou uma tendência de recessão
mundial, iniciada nas bolsas norte-americanas, especialmente na
Nasdaq, com a queda dos ativos financeiros ligados à industria de
telecomunicações e à Internet e potencializada pelo atentado terrorista
de 11 de setembro de 2001.
Outro aspecto importante que deve ser destacado neste processo de
mudança, se constitui na confirmação da relevância e do volume dos
11
investimentos diretos e em portfolio6, que suplantaram o crédito de bancos
comerciais e se afirmaram como a fonte mais relevante de recursos.
Ao lado dessa importante modificação, deve-se também destacar que, no final
dos anos 80 os Estados Unidos foram deslocados, pela Alemanha e pelo
Japão da posição de principal fornecedor de capital. Essa alteração no volume
dos recursos investidos no terceiro mundo foi momentânea, tendo-se chegado
a um equilíbrio de fluxos de capital no início dos anos 90.
Também ocorreram outras mudanças importantes nas estruturas dos
mercados financeiros: durante os anos 60 verificou-se a emergência dos euromercados, inicialmente separados dos mercados domésticos. Ocorreu o
desmonte das barreiras constituídas pelas fronteiras nacionais, eliminando-se
controles de câmbio e varias restrições de acesso aos mercados domésticos.
Em conseqüência do maior acesso, os bancos começaram a colocar agências
ou comprar outros bancos nos países centrais. Isso ocorreu em grande escala
nos Estados Unidos e na Europa, mas muito pouco no Japão.
A ampliação do número de bancos trouxe, como conseqüência, um grande
incremento no volume de empréstimos. Ao mesmo tempo, novos instrumentos
financeiros foram desenvolvidos. A securitização7 tomou o espaço dos
empréstimos bancários, os ativos foram transformados em títulos negociáveis.
Ao lado dessas modificações, as operações de futuros e de opções ficaram
populares, sendo que os swaps8 tiveram seu surgimento nos anos 80.
Esse processo de alteração estrutural do mercado financeiro se completou
pelo surgimento de grandes fundos mútuos de investimento, que trouxeram
investidores individuais para os mercados e aumentaram a quantidade
disponível de capital. Finalmente, deve-se ressaltar que, no início dos anos 90,
o mercado internacional de bônus abriu-se novamente para os países
emergentes, ao mesmo tempo em que, através da emissão de ADR9’s e de
GDR10’s as companhias desses países tivessem acesso a mercado de capitais
mais sofisticados, do primeiro mundo.
Os fluxos de capital no terceiro mundo experimentaram mudanças
significativas nos anos 80 e início dos 90, em termos de composição e
estabilidade. Na Ásia, a região que mais recebeu recursos, ocorreu um
crescimento persistente. A América Latina experimentou uma elevada
volatilidade nos fluxos de capital, com pontos elevados no início e ao final do
período e grande baixa no intervalo. Na África ocorreu estagnação do acesso
6
termo técnico utilizado no mercado financeiro para designar investimentos em carteira de títulos
públicos e privados, geralmente negociáveis em Bolsa de Valores.
7
neologismo para designar esquema de financiamento de novos investimentos não mais através de
empréstimos bancários, mas por intermédio de emissões públicas a serem absorvidas pelo mercado de
capitais.
8
operação financeira no mercado de derivativos em que se pode “trocar” o indexador ou a moeda em que
uma obrigação se acha constituída.
9
American Depositary Receipt – título negociável no mercado bursátil norte-americano, que tem
correspondência em uma dada quantidade de ações emitida por determinada companhia no mercado
doméstico do país em que tem sede.
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Global Depositary Receipt – mesmo mecanismo dos ADR’s, mas um título negociável em vários
mercados do mundo desenvolvido.
12
ao financiamento externo, num nível relativamente baixo. A causa mais
evidente das flutuações se deve ao comportamento dos bancos comerciais,
que respondiam por mais de metade do fluxo de recursos para a América
Latina no início dos anos 80.
A partir de 1983 os fluxos se tornaram negativos, tendo havido recusa dos
bancos em “rolar” os empréstimos vencidos. Parte dessa perda de recursos foi
compensada por operações de reestruturação de dívida, mas o total de novos
financiamentos e empréstimos excepcionais declinou de US$ 33 bilhões em
média, durante o período 80/82, para US$ 11 bilhões em 83/90 e atingiu
apenas US$ 5 bilhões em 1991/92.
Os volumes de IED11 e de investimento em portfolio foram mais positivos. Os
IED’s declinaram na AL após a crise da dívida, mas voltaram a subir no final da
década e mais que dobraram, alcançado uma média de US$ 27 bilhões entre
91 e 92. O mesmo padrão de movimento se repetiu nos investimentos em
portfolio, mas isso é tanto devido ao aumento da confiança do investidor
americano na América Latina, como decorrência da queda da taxa de juros nos
Estados Unidos, provocada pela crise recessiva experimentada por aquele
país no início dos anos 90.
O comportamento dos fluxos de capital para a Ásia, por sua vez, diferiu
bastante do verificado na América Latina. Em relação aos empréstimos
bancários, com exceção das Filipinas, não ocorreu nenhuma crise de dívida. A
Coréia do Sul apresentava uma relação dívida/produto bruto equivalente à do
México e do Brasil, mas suas exportações permitiam uma receita em moeda
forte suficiente para enfrentar o serviço de juros e da amortização dos
empréstimos. Por outro lado, ocorreu uma “regionalização” da percepção de
risco pelos bancos, fazendo com que os empréstimos ficassem escassos na
América Latina e disponíveis na Ásia, mesmo que os fundamentos econômicos
dos países fossem semelhantes. Assim, nunca houve redução de créditos para
os países asiáticos.
Os IED’s cresceram lentamente na Ásia até os Acordos do Plaza, em 1985,
quando ocorreu a valorização do iene, que levou ao aumento de custos no
Japão e provocou investimentos japoneses nos tigres, como forma de
compensar a perda de competitividade. No final dos anos 80, a valorização das
moedas da Coréia do Sul e de Taiwan provocou novo movimento de IED’s na
região.
Finalmente, cabe analisar os investimentos em portfolio, que cresceram
bastante nos anos 90 em comparação com o que havia ocorrido nos 80, porém
sem o dinamismo verificado na América Latina. A partir de 1997, no entanto,
deve-se destacar que ocorreu uma severa crise financeira nos tigres,
caracterizada por efeito dominó entre os diferentes paises , com perda de
reservas em moeda forte, overshooting12 cambial, redução do nível de
atividade e inflação. No caso africano, repetiu-se a queda verificada na
11
Investimento Estrangeiro Direto
Desvalorização excessiva de uma moeda nacional frente às moedas fortes, como decorrência da perda
de confiança dos investidores estrangeiros na solvabilidade do país emergente.
12
13
América Latina, mas no início da década de 90 o volume dos recursos era
semelhante ao que havia se dirigido para o continente no início dos anos 80.
No início da década de 90 havia grandes diferenças entre os fluxos de
recursos para as diferentes regiões. Na Ásia havia a predominância de IED
(44% do total), com os empréstimos de bancos comerciais ao setor privado e
ao setor público, não sujeitos a condicionalidades, em menor escala. Na
América Latina, o mais importante item era representado pelos investimentos
em portfolio (55% do total), seguido do IED (28%). Na África as transferências
oficiais e os empréstimos de reestruturação tinham igual importância.
É importante destacar que a natureza dos fluxos de recursos tem importante
implicação para as perspectivas de desenvolvimento de um país. As
transferências oficiais de recursos, das agências bilaterais e dos programas
especiais das IFI13’s são os recursos mais baratos, porque em parte não
precisam ser amortizados (doações) e, quando isso não ocorre, as taxas de
juros e os prazos de amortização são atraentes. No entanto, esses recursos
estão disponíveis unicamente para os países mais pobres.Apesar da África ter
recebido em grande volume esse tipo de fluxo de capital, os recursos não tem
sido suficientes para gerar o crescimento necessário na região.
Na seqüência, os empréstimos mais favoráveis tem sido aqueles sem
condicionalidade, que provém de agências multilaterais ou bilaterais. O caso
mais comum é representado por créditos destinados à compra de bens
exportados pelos países doadores dos recursos. Apesar dos créditos
apresentarem custo mais elevado e prazo de amortização mais curto que os
do grupo anterior, seus termos são mais favoráveis que os empréstimos de
bancos comerciais ou que o mercado de títulos de dívida.
Os créditos de bancos comerciais apresentam custos mais elevados, bem
como prazos de amortização mais curtos. Além disso, esses créditos tendem a
apresentar taxas de juros variáveis, o que eleva a instabilidade do ambiente
econômico. Sua vantagem é a não condicionalidade de concessão.
Os IED’s foram considerados desinteressantes ao longo dos anos 70, porque
não permitiam aos governos o exercício de um controle maior sobre sua
utilização. A percepção do interesse dos países do 3o. Mundo pelos IED’s
mudou nos anos 80 em função de vários aspectos. Em primeiro lugar, trata-se
de capitais mais estáveis, já que é difícil o processo de desinvestimento. Por
outro lado, o fluxo de lucro varia, de modo que é mais interessante remeter
dividendos que comprometer as divisas na remessa de juros. Um terceiro
aspecto importante é que o investimento direto normalmente representa
também uma forma de importar tecnologia e “know-how”.Finalmente, deve-se
destacar que o investimento direto facilita o crescimento das exportações,
sendo que o caso dos tigres asiáticos ilustra essa facilidade, quando se analisa
os IED japoneses na região).
Os investimentos em portfolio compreendem investimentos em participação
acionária (fundos, ADR’s e GDR’s e investimentos diretos em participação
13
International Financial Institutions – instituições financeiras internacionais.
14
propriamente dita) e instrumentos de dívida (bônus, commercial papers e
certificados de depósito). A maior parte do fluxo de recursos aplicados em
portfolio se acha em bônus, que representavam mais da metade do total nos
primeiros anos da década de 90.
A vantagem dos bônus é que se acham ligados a taxas fixas de juros, apesar
de que a maioria de bônus emitidos pelos países em desenvolvimento nos
anos 90 apresentava prazo de amortização muito curto, sendo ao redor de 4
anos na América Latina. O primeiro problema daí decorrente é que existe um
risco muito elevado de não renovação desses títulos, ao mesmo tempo em que
pode haver renovação, mas com custos de empréstimo significativamente
elevados.
Por ocasião da crise mexicana de 95, a não renovação dos bônus teve um
papel importante no agravamento da situação, uma vez que muitos desses
títulos apresentavam prazos de amortização inferiores a um ano.
Uma nova forma de obtenção de recursos privados externos é o investimento
internacional em participações acionárias, composto por participações diretas,
ADR’s, GDR’s e investimentos através de fundos mútuos. Da mesma forma
que os IED, a sensibilidade dos investimentos em participação também se
refere à questão dos dividendos: eles são devidos apenas quando a posição
da economia recipiente é favorável. Se a economia se acha em dificuldades,
as empresas não apresentam lucros e as divisas em moeda forte não serão
pressionadas pelo pagamento de dividendos.
No entanto, existem outros riscos quando se capta recursos através de
participações acionárias: na hipótese de um aumento da percepção de risco
por parte dos investidores privados, haverá um movimento geral de venda dos
ativos, que pode pressionar tanto o mercado de títulos no país, como a taxa de
câmbio. Isso pode ser ainda mais difícil se houver elevada alavancagem
financeira no mercado, ou se os bancos e o mercado de capitais se acharem
fortemente interligados.
A composição dos fluxos de capital na Ásia e na América Latina tem tido uma
importância crucial na forma de reação dessas regiões em termos de
velocidade de desenvolvimento.Os IED’s sempre se acham ligados a novos
investimentos, enquanto os recursos de outras fontes podem ser aplicados
com outros propósitos. A maior participação de IED’s em relação ao total de
fluxo externo de recursos, obtida pela Ásia relativamente à América Latina,
pode explicar porque nessa última região o ingresso de capital estrangeiro não
se traduziu em imediato aumento do volume de novos investimentos.
Outro aspecto importante reside no impacto macroeconômico desses fluxos de
capital estrangeiro nas economias regionais: na América Latina o crescimento
desse volume levou a um processo de apreciação cambial, enquanto que na
Ásia isso não foi significativo. Evidentemente, a apreciação cambial não é um
efeito interessante, na medida em que reduz a competitividade externa do país
e desencoraja a produção de bens exportáveis.
15
Também é importante notar que os IED’s parecem afetar menos a conduta da
política monetária do país recipiente dos recursos. Na medida em que os IED’s
não são intermediados pelo sistema bancário doméstico, não há uma paralela
expansão no crédito interno e assim a questão da esterilização dessa
expansão monetária é menos importante.
Assim, a variada composição do fluxo de capital, bem como a diferente
estabilidade histórica na evolução desse fluxo, pode explicar porque
inquietações sobre o hot money14 e súbita reversão no sentido e no volume
dos fluxos são mais freqüentes entre os formuladores de política na América
Latina do que na Ásia.
Além do sua conseqüência sobre os investimentos e a política
macroeconômica nos países recipientes, outro impacto causado pelos fluxos
financeiros diz respeito às condicionalidades. Nos anos 80, após a crise da
dívida na América Latina e África, o FMI e o Banco Mundial desempenharam
importante papel na mudança de política econômica ocorrida nesses países,
após a negociação dos pacotes de reestruturação financeira.
Deve-se destacar pelo menos três tipos de condicionalidades criadas durante a
renegociação das dívidas nos anos 80. O primeiro diz respeito às condições
macroeconômicas, orientadas especificamente para eliminar déficits
orçamentários e de balanço de pagamentos. O segundo tipo de
condicionalidades se acha ligado a reformas estruturais destinadas a criar
economias de mercado nos países recipientes, que forçaram a abertura
econômica dos países do 3o. Mundo ao comércio internacional e a limitação
do papel exercido pelo estado. Finalmente, cabe ressaltar que o terceiro grupo
de condicionalidades ultrapassa o terreno econômico, encorajando políticas de
redução da pobreza, de redução dos gastos militares, de respeito aos direitos
humanos, de estabelecimento de boa governança, de manutenção do regime
democrático e de proteção ambiental.
Existem três formas pela quais os fluxos internacionais de capital podem
influenciar as estratégias de desenvolvimento e as perspectivas. Uma primeira
forma se acha explicitada nas condicionalidades impostas pelas IFI’s. Além
das condicionalidades do FMI e Banco Mundial, deve-se destacar o papel
exercido pelas restrições impostas por agências bilaterais e bancos regionais
de desenvolvimento. O aspecto mais importante dessas condicionalidades é
representado pelas reformas estruturais que tendem a substituir a tradicional
estratégia de ISI, com elevado grau de protecionismo e forte participação do
estado na economia, por políticas orientadas para o mercado.
O segundo tipo de influência decorrente do emprego do capital estrangeiro
reside no que pode ser chamado de condicionalidade implícita. Por
condicionalidades implícitas deve-se entender o conjunto de requisitos
colocados pelos investidores privados, que devem ser seguidos pelas nações
recipientes, de modo a se tornarem confiáveis. Esses requisitos não são
claramente enunciados, como as condicionalidades apresentadas pelas IFI’s,
mas constituem os fatores que são considerados pelos administradores de
14
recursos de curto e curtíssimo prazo.
16
corporações transnacionais, de companhias de seguro e de bancos privados,
quando se trata de alocar recursos.
Entre as condicionalidades implícitas pode-se enumerar:
a- O contexto macroeconômico, com ênfase no equilíbrio fiscal;
b- O papel do Estado na economia;
c- As leis que regulam os investimentos estrangeiros, inclusive a questão
da remessa de lucros;
d- Os direitos de propriedade;
e- A questão da propriedade intelectual;
f- O arcabouço jurídico; e,
g- A estabilidade política.
Além das condicionalidades explícitas e implícitas, um grande impacto sobre
as estratégias de desenvolvimento reside na percepção, pelos países sobre o
sucesso ou fracasso provocado pela adoção das novas políticas. Assim, o
impacto do fluxo de capital externo sobre o crescimento dos países a longoprazo dependerá tanto do tipo desse fluxo e de sua sustentabilidade, como –
em grande medida – da forma com que o governo adapte sua administração
macroeconômica para maximizar os impactos positivos desse fluxo e para
minimizar os efeitos negativos, tais como o excessivo aquecimento da
economia ou a sobrevalorização das taxas de câmbio.
Analisando a reação dessas condicionalidades sobre as diferentes regiões,
pode-se verificar que enquanto a América Latina, no início da década de 90,
parecia caminhar mais rapidamente na direção das estratégias de
desenvolvimento baseadas no livre mercado, isso não ocorria na Ásia, onde os
formuladores de política preferiam um papel mais ativo do estado, ainda que
de modo seletivo.
3. Reformas e Desenvolvimento Econômico na América Latina
De acordo com Bresser Pereira, existem duas interpretações para a crise da
América Latina nos anos 80/90. A primeira, neo-liberal, deriva do Consenso de
Washington. A segunda, denominada de pragmática pelo autor, acha-se
focalizada na crise fiscal do Estado.
De acordo com o Consenso de Washington, as causas da crise na América
Latina eram o excesso de intervenção do Estado, que se traduz em
protecionismo, sobre- regulação e um inchaço do setor público e o populismo
econômico, expresso na incapacidade de eliminação do déficit orçamentário.
As reformas econômicas deveriam, a curto-prazo, combater o populismo
econômico e controlar o déficit orçamentário, adotando a médio-prazo uma
estratégia de crescimento orientada pelo mercado, o que significa reduzir a
intervenção estatal, liberalizar o comércio e promover exportações.
17
O Consenso de Washington compreendia dez medidas, sendo que as cinco
primeiras (eliminação do déficit fiscal, eliminação de subsídios e reforço das
despesas com educação e saúde, reforma tributária, política monetária ativa,
câmbio livre) poderiam ser resumidas num processo de estabilização com
políticas fiscais e monetárias ortodoxas, em que o mercado desempenha um
papel fundamental. As demais cinco reformas (liberalização do comércio, livre
entrada
de
investimentos
diretos
estrangeiros,
privatização,
desregulamentação e respeito ao direito de propriedade) constituem-se em
meios para redução do tamanho e do papel do Estado.
Para Bresser Pereira, no entanto, a retomada do crescimento não dependeria
apenas de se estabilizar a economia e promover a redução da intervenção do
Estado. Era necessário combater a crise fiscal, recuperar a capacidade de
poupança do setor público e definir o novo papel estratégico para o Estado, de
forma a promover o crescimento da poupança agregada e do progresso
tecnológico.
De acordo com este enfoque, a crise da América Latina é decorrente do
populismo econômico e do problema da dívida. Ambos os fatores provocaram
a crise fiscal do Estado, que se traduziu em elevadas taxas de inflação. Na
medida em que salários e preços tendiam a ser indexados informalmente, a
inflação apresentava um aspecto crônico ou inercial. Os programas de
estabilização deveriam, além de políticas monetárias e fiscais ortodoxas, incluir
políticas de renda e reduzir o débito público.
Após a estabilização e a implementação de reformas, deveria surgir um Estado
menor e reorganizado, cuja tarefa mais relevante seria manter uma política
industrial orientada para a exportação.
A crise fiscal é um fenômeno estrutural e não circunstancial, de curto-prazo,
sendo necessário destacar cinco fatores na crise dos anos 80, na América
Latina: o déficit orçamentário; uma poupança agregada do setor público muito
pequena ou negativa; o grande volume de dívida externa e interna; a baixa
credibilidade do Estado, que resultava em falta de confiança na moeda
nacional e prazos curtos de financiamento do dívida interna; e, a falta de
credibilidade do governo.
A perda de crédito por parte do Estado e sua incapacidade de se financiar,
exceto pela seigniorage, constituem a característica da crise fiscal. Sempre é
necessário contar com investimentos públicos em infra-estrutura, sociais
(educação e saúde), em segurança (reaparelhamento da polícia e novas
prisões), bem como os incentivos e subsídios aos investimentos privados
(políticas agrícola e industrial). Se a poupança agregada do setor é baixa ou
negativa, a única forma de financiar esses investimentos é através do déficit
público.
Os governos da América Latina, que haviam se utilizado largamente de
poupança pública forçada entre 1930 e os anos 70, se viram imobilizados.
Assim, a crise foi resultado:
a- do excessivo endividamento externo dos anos 70; e,
18
b- da demora em substituir a ISI por estratégias orientadas para a
exportação.
Como a maioria dos impostos na América Latina é indireta, o sistema tributário
tende a ser regressivo. Originalmente o financiamento do Estado vinha sendo
feito através dos impostos de exportação. Na medida em que as receitas de
exportação se reduziram, o mecanismo foi substituído pr impostos indiretos e
por impostos decorrentes de fundos de investimento. Nos anos 70, quando
essas fontes de recursos se esgotaram, a alternativa utilizada foi a do
endividamento externo.
As políticas econômicas desenvolvimentistas e populistas foram mantidas na
maioria dos países da América Latina pelos regimes militares. A dívida externa
e os investimentos estrangeiros diretos foram as novas fontes de
financiamento para essa segunda onda de ISI. Quando essas fontes secaram
no início dos anos 80, os diferentes países da região foram à bancarrota e a
crise se iniciou.
Existe para o autor uma distinção clara entre o populismo em geral, o “pacto
populista”, que prevaleceu entre os anos 30 e 60 e o populismo econômico.
Nos países da América Latina tende a haver um padrão cíclico entre o
populismo econômico e as políticas ortodoxas. Adotando políticas de redução
da inflação enquanto aumenta a demanda agregada e o crescimento, o regime
populista se utilizava da sobrevalorização da taxa cambial. A estratégia se
completava pelo crescimento dos salários reais e nominais e pelo incremento
das despesas do governo.
Num quadro dessa magnitude, por algum tempo parece que os resultados são
ótimos: a inflação parece estar sob controle e a economia sadia. Quando
surgem dificuldades com o balanço de pagamentos, os controles de
importação são fortalecidos. Quando a inflação de demanda começa, os
controles de preço são incrementados.
No entanto, essas soluções improvisadas não produzem o efeito desejado: na
medida em que as exportações caem e as importações se avolumam, o país
enfrentará uma crise no balanço de pagamentos. As reservas estrangeiras se
exaurem e, como o governo tem que promover uma desvalorização cambial, a
inflação volta com grande intensidade.
Na seqüência, a crise econômica traz a crise política. No passado, esse era o
momento do golpe militar, apoiado pela classe capitalista. O novo governo
tinha que enfrentar a crise e a mera desvalorização da moeda não era
suficiente. A solução residiu, muitas vezes, em aplicar a terapia ortodoxa em
sua plenitude: liberalização de preços, liberalização do comércio, cortes de
despesas e elevação de impostos. Nestas condições os custos da transição
são extremamente elevados, e os resultados nem sempre brilhantes.
O populismo econômico é uma conseqüência de política democrática em
países que contam com eleitorado constituído por imensa massa de pessoas
escassamente educadas e economicamente marginais. A alternativa ao
19
populismo é idealmente a democracia moderna, mas freqüentemente tem
ocorrido o surgimento de regimes autoritários.
Geralmente os programas de estabilização que seguem a orientação neoliberal tendem a falhar quando a inflação é alta e crônica, com um forte
componente inercial, autônomo em relação à demanda. Esse tipo de inflação,
situado entre o nível moderado que ocorre habitualmente em vários países e a
hiperinflação, tem recebido a designação de autônoma, inercial, elevada ou
crônica. Sempre que a inflação é elevada, acima de 5% ao mês, uma série de
sistemas de indexação formais ou informais tende a surgir, como forma dos
agentes protegerem sua participação relativa na renda: é o chamado “conflito
distributivo”.
A indexação informal torna a inflação rígida, autônoma, inercial. Para debelar
este tipo de inflação, as políticas monetária e fiscal convencionais não são
suficientes: há necessidade de um choque fiscal, acompanhado de
congelamento. A razão principal pela qual as reformas são retardadas é a falta
de um consenso mínimo sobre o que deve ser realizado. Os objetivos mais
gerais, como estabilização, crescimento e distribuição são geralmente aceitos,
o que não acontece em relação ao ajuste fiscal, ajuste do balanço de
pagamentos e liberalização do comércio.
O autor reconhece que as políticas populistas tem sofrido crescente
descrédito, enquanto que a disciplina fiscal e a orientação para o mercado são
progressivamente pontos de consenso. A questão central é como dividir os
custos do ajuste entre os diferentes setores da sociedade. Existe um “trade-off”
entre os custos, que ocorrem a curto-prazo, e os benefícios que advirão das
reformas, que ocorrem a médio-prazo. O ideal é que se ataque as distorções
causadoras do desequilíbrio tão cedo quanto possível, mas a democracia é
basicamente um processo de negociação e persuasão, que pode consumir
muito tempo.
Na opinião de Bresser Pereira, existiriam duas alternativas para que a América
Latina pudesse superar a crise fiscal. A primeira consistiria em atacá-la
diretamente, reduzindo a dívida pública interna e externa e elevando os
impostos. Uma segunda alternativa seria de reduzir o sacrifício imposto aos
setores dominantes da economia, enquanto se promove o ajuste e se
implementa as reformas.
O autor continua sua análise, considerando que a primeira alternativa
implicaria em riscos, na medida em que se as mudanças não fossem bem
planejadas e adequadamente fortes, a situação poderia deteriorar-se ainda
mais. O andamento das medidas fiscais e das reformas, bem como a
renegociação com os bancos de acordo com o Plano Brady é que contribuiriam
para a criação de um clima de confiança. Apesar disso, na medida em que
parece inviável obrigar os trabalhadores e os setores médios da sociedade a
aceitar os custos do ajuste, a crise fiscal não será completamente resolvida. O
enfoque neo-liberal para a crise envolve pressão internacional, com ações
formais e informais por parte dos governos de países desenvolvidos, das
agências multilaterais e da comunidade de negócios.
20
Concluindo, Bresser Pereira considera que política é a arte do compromisso,
que na América Latina esse compromisso deve ser alcançado não apenas
internamente, mas também nas relações internacionais. Aduz também que o
neo-liberalismo é basicamente retórico, não se constituindo em prática efetiva
nos países industrializados, mas que deve ser considerado, particularmente
quando aponta para a necessidade de disciplina fiscal e de reformas
orientadas na direção do mercado.
Em suma, o desafio fundamental enfrentado pela América Latina é a crise
fiscal: a estabilização e a retomada do crescimento dependem da superação
da insolvência do Estado e da recuperação da poupança pública. Na medida
em que a América Latina é uma região dependente e apesar de muitos
objetivos nacionais dos seus países terem pontos em comum com os
interesses dos países avançados, especialmente os Estados Unidos, existem
também muitos conflitos. Assim, o compromisso terá que ser atingido em uma
grande variedade de pontos, reconhecendo, mas não superestimando, as
diferenças existentes.
4. O Caso Brasileiro
De acordo com Tavares de Almeida, o Brasil experimentou, durante a segunda
metade dos anos 80 e em toda a década de 90, duas transições. A primeira foi
a substituição do autoritarismo pelo regime democrático, enquanto que, ao
mesmo tempo se processava um conjunto de reformas econômicas que deve
desembocar numa nova relação entre o Estado e o Mercado.
Ao lado do processo de democratização, o país experimentou uma crise que
resultava tanto de fatores internos, como da necessidade de se ajustar a um
ambiente econômico em mudança. Dornbusch, em 1991, afirmou que apenas
Cuba e Brasil se aferravam a estratégias obsoletas de desenvolvimento,
centradas no Estado.
Não há dúvida que as opções estratégicas das elites se constituem em
variáveis cruciais para a compreensão das mudanças históricas, políticas ou
econômicas. O Brasil experimentou um ritmo mais lento de reformas,
introduzindo lenta e hesitantemente as mudanças econômicas que estavam
sendo realizadas com rapidez em outros países latino-americanos.
A autora prossegue em sua análise, mostrando que no que respeita às
reformas orientadas para o mercado, pode-se dividir o passado recente em
dois períodos. Durante os anos 80 (Governos Figueiredo e Sarney), não houve
nenhuma mudança intencional importante. As políticas visavam controlar a
inflação e evitar a hiperinflação. A partir dos anos 90, com o Governo Collor de
Mello, se começa a considerar a reformas orientadas para o mercado como
integrantes da agenda governamental.
A experiência brasileira de formulação e implementação de políticas é de
crescente subordinação a constrangimentos estruturais. As reformas foram
21
menos o resultado de escolhas deliberadas por parte das elites, apoiadas por
algum consentimento explícito dos liderados, que uma conseqüência do acaso.
O Brasil enfrentou uma crise fiscal do Estado, caracterizada por déficits
orçamentários crônicos e poupança pública reduzida ou negativa, além da
perda de confiança na moeda nacional e no Estado como devedor. O colapso
do Estado apressou a crise do modelo de ISI, apesar de seu sucesso anterior
na promoção do desenvolvimento. O governo perdeu sua capacidade de
administrar a economia e induzir o crescimento, enquanto a inflação
aprofundava e erodia a autoridade pública.
Trata-se, na realidade, de uma pesada herança do regime militar: Geisel
desprezou a necessidade de ajustamento do país ao choque do petróleo,
preferindo manter crescimento econômico e aprofundar a ISI, ainda que ao
preço de exacerbar os desequilíbrios externo e interno.
A consciência da natureza e dimensão da crise, especialmente da relação
entre crise fiscal, padrões de intervenção do Estado e inflação, formou-se
lentamente e difundiu-se de forma desigual entre as elites. Depois da eleição
de Fernando Collor, estes aspectos passaram para o primeiro plano das
preocupações de todos, mas o presidente não foi capaz de passar das
palavras aos atos. O assunto teve prosseguimento na administração Itamar
Franco e, especialmente, no período posterior a 1994, incluindo a privatização
em larga escala das empresas públicas, liberalização do comércio externo,
mudanças nos sistema previdenciário, lei de responsabilidade fiscal e reforma
administrativa.
Durante o regime militar, conquanto criticasse o modelo de crescimento
econômico baseado na contenção de salários, distribuição desigual da renda,
em políticas irresponsáveis de endividamento externo, na excessiva
concentração de recursos no nível federal e na tomada de decisões
excessivamente centralizada, a oposição compartilhava com as elites políticas,
militares e tecnocráticas ligadas ao regime, a mesma fé nas estratégias de
desenvolvimento conduzidas pelo Estado.
Por outro lado, a oposição abominava a idéia de políticas de estabilização via
austeridade monetária e contenção fiscal. Os desequilíbrios fiscais eram
entendidos como meio de estimular o crescimento econômico. Esse modelo de
desenvolvimento era apoiado pelos interesses criados e promovidos por ele:
empresas nacionais que se beneficiaram de subsídios estatais e tarifas
protecionistas, classes médias que tinham tido sem emprego expandido
através do crescimento do mercado interno ou do setor público, funcionários
de estatais e assim por diante.
As idéias liberais, que haviam avançado nos países da AL durante os anos 70,
não frutificaram no Brasil. Por outro lado, a austeridade fiscal nunca teve
grande aceitação junto às elites nacionais. Aumentos salariais, expansão de
oportunidades de emprego e políticas sociais eram os mecanismos invocados
pela centro esquerda e pela esquerda democrática para promover a
distribuição de renda e justiça social. Isto, todavia, dependia de crescimento
econômico e/ou de políticas expansionistas de gastos públicos.
22
Durante décadas, uma inflação administrável permitiu transferências de renda
sem conflitos distributivos demasiadamente abertos, tanto entre setores, como
entre regiões e grupos sociais. O malogro do Cruzado produziu junto a
economistas e elites tecnocráticas a fratura no consenso desenvolvimentista.
Emergiu lentamente um entendimento das relações complexas entre inflação e
a crise fiscal do Estado. Esse entendimento foi denominado de abordagem da
crise fiscal, ou pragmática, tendo sido apresentado em anteposição às idéias
neo-liberais.
Para Tavares de Almeida, existem três fenômenos importantes na moldagem
brasileira de estabilização e reforma. Eles são o poder e perfil das
organizações de interesse; a descentralização das estruturas governamentais;
e as mudanças na estrutura e capacidade do governo federal. Todos os três
aspectos decorrem do padrão institucionalizado de múltiplos níveis de poder
na sociedade brasileira, que limita a autonomia de decisão do Executivo e dá
origem a extensas e complexas negociações no Legislativo, para aprovação de
iniciativas daquele poder.
A nova democracia testemunhou o crescimento de poderosos grupos de
interesse e o confronto entre um governo federal enfraquecido, de um lado, e
governadores e prefeitos com recursos de poder próprios do outro. A
capacidade de decisão do governo central foi limitada pela proliferação das
organizações de interesse e pela redistribuição de poder produzida pela
democratização. A crise do regime militar e a transição para a democracia
provocaram um forte movimento descentralizador.
Até recentemente os governadores se opunham à austeridade fiscal, à
privatização de empresas públicas e às reformas de estruturas no serviço
público. As estratégias políticas se achavam assentadas em políticas de
expansão do emprego público e dos gastos com obras e serviços sociais.
Depois de 1988, a base para essas políticas foi o conjunto de recursos
transferido pela União a partir da nova partilha tributária e na utilização “ad
nauseam” da capacidade de endividamento dos bancos estaduais. O poder
crescente dos grupos de influência e das autoridades estaduais e municipais
criou forte contraste com o enfraquecimento da capacidade decisória no nível
do Executivo federal. A limitada autonomia do Executivo não impediu a reforma
econômica, mas transformou-a numa lenta negociação do governo com um
amplo conjunto de poderosos atores políticos.
As reformas econômicas apenas começaram. Precisarão transitar por um
sistema político complexo que dispõe de poderes de veto enraizados
institucionalmente. A probabilidade de paralisia no processo decisório se
amplia, o que transforma a distância entre uma reforma gradual e nenhuma
reforma em perigosamente reduzida.
A autora conclui, mostrando que por ser um late comer, o Brasil pode se
aproveitar das experiências de outros países, evitando os equívocos cometidos
nos mesmos. Pesquisas de Bielschowski e Stump mostram que a abertura
23
comercial não gerou desindustrialização no Brasil, ao contrário do que ocorreu
em outros países da América Latina. Finalmente, cabe ressaltar também que
uma mudança negociada, conquanto mais lenta, pode ajudar a criar e legitimar
interlocutores democráticos e a consolidar instituições e procedimentos na
recente democracia brasileira.
5. Considerações Finais
O processo de globalização econômica não é isento de contradições, como
afirma Fiori, 1997. Seus impactos e perspectivas são diferenciados e as
opções de cada país dependem no fundo de escolhas de suas forças políticas
e sociais internas, coordenadas pelo Estado. É impossível contar com um
receituário pronto e acabado. Se alguma dúvida subsistisse a esse respeito, a
lenta e tumultuada queda da Argentina serviria para dirimi-la. No caso do
vizinho país, assistiu-se durante os anos 90, por parte das organizações
financeiras internacionais, a uma contínua exaltação da política adotada pelo
governo, como aquela necessária para promover a estabilidade e o
desenvolvimento. A conseqüência prática desse apoio internacional se traduziu
numa baixa percepção, por parte do mercado financeiro e das agências de
rating sobre os riscos envolvidos numa política neo-liberal selvagem, que
provocou a perda de competitividade e a desindustrialização do nosso parceiro
no Mercosul.
A crise argentina demonstra, à saciedade, como a internacionalização da
produção e do investimento coloca uma questão central sobre quem serão os
avaliadores da eficiência das políticas de desenvolvimento dos países: se os
administradores de fundos e investidores dispersos pelo mundo, ou se a
população desses países. Declarações posteriores do diretor-gerente do FMI,
em que reconhece a parcela de culpa que cabe às IFI pelo colapso econômico
e social do país, corroboram com o argumento de Rodrik, 1999, no sentido de
que governos e conselheiros políticos devem deixar de considerar a integração
econômica como um fim em si mesmo, o que levaria os diferentes países
periféricos e semi-periféricos a procurar inserções internacionais que
atendessem a seus próprios objetivos.
Considerando a evolução econômica brasileira, por outro lado, é necessário
ressaltar que, conquanto o processo de estabilização econômica tenha sido
conduzido com bastante êxito, que as reformas econômicas e privatização
tenham avançado substancialmente, e que a transição democrática em 2002
tenha sido um sucesso, é forçoso reconhecer que ainda existe muito a ser
realizado.
Em primeiro lugar, cabe considerar que a privatização ainda tem questões
importantes a serem consideradas. Se o processo avançou muito bem na
maioria dos casos, existem ainda pontos não resolvidos, como a questão do
saneamento básico, por exemplo. Também se torna necessário proceder a
uma revisão de medidas que não surtiram o efeito desejado, como é o caso do
processo de privatização das empresas de energia elétrica, em que o modelo
adotado durante os anos 90 revelou uma fragilidade realçada pela crise de
24
abastecimento enfrentada em 2001. Toda a política energética revista
recentemente pelo Governo Federal parece apontar na direção de um claro
retrocesso, com o Estado voltando a assumir um papel importante na geração
e na distribuição de energia e com a redução da importância do papel da
agência reguladora.
Por outro lado, a despeito do equilíbrio fiscal ter sido alcançado a partir de
1999, ao mesmo tempo em que se conquistava uma vitória importante com a
aprovação e implementação da Lei de Responsabilidade Fiscal, é necessário
enfatizar que esse equilíbrio é bastante questionável. Ele foi obtido mediante a
produção de um superávit primário destinado a gerar recursos para amortecer
o impacto deficitário causado pelos juros da dívida pública sobre o orçamento.
Assim, além de um corte substancial nos dispêndios de investimento, que
compromete o desenvolvimento da infra-estrutura econômica, os resultados
decorrem do arrocho fiscal implementado, que elevou a carga tributária de
26% para 37% do PIB. Pouco ou quase nada foi alcançado no que respeita à
racionalização e reorientação dos gastos correntes do governo.
Se, de um lado, a tese liberal do “estado mínimo” parece totalmente inaceitável
para as condições brasileiras, em que cabe ao Estado um papel essencial na
formulação e condução de políticas sociais, por outro, é necessário ter
presente que a elevada carga tributária atual se constitui num constrangimento
à manutenção de um crescimento sustentado. A questão da necessidade da
reforma tributária ampla tem, neste aspecto, uma importância muito destacada.
Outro aspecto importante para a manutenção do crescimento sustentado
reside na necessidade de redução das taxas de juros internas e na
dependência excessiva da poupança externa. Os esforços realizados no setor
externo nos últimos anos parecem começar a frutificar, mas será necessário
apoiar fortemente as exportações e o crescimento da poupança interna, como
forma de reduzir essa dependência.
Nesse contexto adquire especial relevância o equacionamento final da questão
previdenciária, que terá de ser realizado para que a poupança forçada gerada
se possa constituir num elemento de alavancagem do mercado de capitais. Se
não for possível expandir o volume interno de poupança e atraí-lo para o
mercado de capitais, operando o processo de desintermediação financeira que
se processou nos países mais avançados, não haverá garantia de expansão
dos investimentos, elemento essencial para a sustentação do processo de
desenvolvimento.
Por último, e provavelmente mais importante, é necessário concluir a agenda
de reformas, enfrentando as questões da reforma do Judiciário e da reforma
política. A capacidade de veto dos atores políticos, aliada à reduzida
capacidade de ação do executivo, ressaltada nos textos de Tavares de
Almeida (1996 e 99), pode se constituir num obstáculo para que se atinja o
desejado desenvolvimento auto-sustentado.
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