Uma Estética Bossa Nova - Rafa Ortman Design, Desenvolvimento

Transcrição

Uma Estética Bossa Nova - Rafa Ortman Design, Desenvolvimento
uma estética
bossa nova
2001.1
uma estética
bossa nova
Relatório • PPD Conclusão
Rafael Ortman • 9514999-8
Orientador • Luis Antônio Coelho
PUC-Rio • Desenho Industrial • Comunicação Visual
agradecimentos
Este projeto só se tornou possível graças a algumas pessoas que acreditaram nele e me deram todo o
apoio necessário para concluir esta fase da minha vida.
Devo agradecer a Luiz Antônio Coelho, orientador deste trabalho, por abrir minhas perspectivas em um
momento em que eu estava sem saber o que apresentar como proposta de projeto e acreditar na pesquisa
mesmo sem termos contato pessoal anterior.
Agradeço muito a Jorge Luiz Rodrigues, mestrando em design pela PUC-Rio, que me acompanhou em
todas as fases da confecção deste relatório, fornecendo subsídios importantíssimos à pesquisa.
A Rita Couto, minha co-orientadora, agradeço pela compreensão e paciência em ler e sugerir modificações e correções neste trabalho e ajudar no levantamento de capas da época.
A José Ricardo Cardoso, ex-professor desta instituição, de quem sou funcionário, que teve a bondade de
reduzir minha carga horária na empresa e ler todo o material escrito, sugerindo novas idéias e adequações
de vocabulário.
A Taís Leal de Oliveira, que fez toda a correção de texto do material.
Finalmente, à equipe do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro, desde às estagiárias à diretora.
O MIS-RJ forneceu todas as condições para a pesquisa e o registro de capas de disco que já não são hoje
encontradas no mercado.
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S U M Á RIO
I ntrodu ção.........................................................................................................................11
Cenário para o apar e cim e n to da B ossa Nova .............................13
Um Brasil de sonhos ........................................................................................................15
Um Brasil de boleros .......................................................................................................18
A classe média inventa um Brasil para si...................................................................21
Modernismo e Bossa Nova.............................................................................................24
Bossa Nova: ascensão, transformação e imigração...................................25
A conquista do mercado................................................................................................27
O Brasil devora a Bossa Nova........................................................................................29
A Elenco................................................................................................................................32
Radicalização política e Bossa Nova: não podia mesmo dar certo...................34
Bossa Nova e design...........................................................................................................39
Pequena história da indústria fonográfica brasileira............................................41
Indústria e design gráfico brasileiro ..........................................................................44
Um design Bossa Nova?..................................................................................................49
Estrutura e ruptura............................................................................................................51
Análise gráfica do trabalho de César Villela . ..............................................53
O design da simplificação..............................................................................................56
Cinco capas de Villela.......................................................................................................60
a) O amor o sorriso e a flor (Odeon), João Gilberto: 1960.................................60
b) Maysa (Elenco), Maysa: 1963................................................................................62
c) Bossa, Balanço, Balada (Elenco), Sylvia Telles:1963.......................................64
d) A Bossa Nova de Roberto Menescal (Elenco), Roberto Menescal :1963...66
e) Nara (Elenco), Nara Leão: 1964............................................................................69
Consideraçõe s F i n ais...............................................................................................71
Bibliografia.............................................................................................................................73
Anexo...........................................................................................................................................75
Imagens................................................................................................................................77
Entrevista..............................................................................................................................87
INTRODUÇÃO
A Bossa Nova intriga e fascina até hoje, desde fãs japoneses a musicólogos contemporâneos. Movimento
que tomou forma e corpo no final dos anos 50 e sobreviveu integrado em torno de um conceito muitíssimo
definido apenas até o golpe de 64, quando a radicalização política praticamente exigia uma posição clara
de todos, em especial do artista, a Bossa Nova talvez nunca tenha sido popular verdadeiramente. Contudo,
estabeleceu para si uma estética e conceito tão representativos do momento vivido pelo Brasil da época
que acabou permeando toda a sociedade brasileira, de presidente a eletrodomésticos.
Este projeto pretende apresentar uma estética Bossa Nova, estabelecida graficamente a partir do
trabalho de César Villela, capista da gravadora Elenco. César Villela promoveu uma ruptura no design de
capas de disco no Brasil. Seu trabalho foi bem sucedido a ponto de as demais gravadoras acompanharem
sua identidade visual. Mesmo impressos, cartazes, quase tudo que foi feito da Bossa Nova depois de Villela,
seguiam o seu padrão.
A Bossa Nova é a expressão de um Brasil entusiasmado com a modernidade, buscando adequar-se em
diversos níveis às expectativas de uma ainda recente sociedade de consumo. Procuraremos delinear este
Brasil moderno que gerou o movimento.
A pesquisa histórica/musical foi realizada com base em três autores: Ruy Castro (Chega de Saudade),
que faz um relato mais completo da história do movimento; Arthur da Távola (40 anos de Bossa Nova), que
faz considerações de ordem social, cultural e artística; e Júlio Medaglia (O balanço da bossa), mais íntimo
de questões musicais e do cenário da música brasileira do período. Teve papel importante também, tanto
na coleta de imagens como na pesquisa do cenário político-econômico-social, a enciclopédia Nosso Século,
fornecendo um pano de fundo para a análise estética do período.
A pesquisa no âmbito do design/linguagem visual teve também três autores como referência: Rafael
Cardoso Denis (Uma introdução à história do design), que faz um apanhado geral da história do design; Gus-
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tavo Amarante Bomfim (Idéias e formas na história do design), que nos dá um panorama dos movimentos de
vanguarda européia e da estruturação do conceito de “modernismo”; e Donis A. Dondis (Sintaxe da linguagem
visual), que fornece a base para análise gráfica a ser empreendida nas capas de disco selecionadas. A carência de autores que apresentassem um cenário do design brasileiro até a década de 60, foi uma dificuldade
enfrentada no trabalho. Para supri-la minimamente, utilizaram-se as pesquisas de Denis e Bomfim.
Para a história da indústria fonográfica brasileira e do design de capas de disco no Brasil, a pesquisa
de Egeu Laus, A capa de disco no Brasil: os primeiros anos, foi a fonte utilizada. A coleta de capas de discos
pré-Bossa Nova teve como fonte as imagens publicadas do estudo de Egeu Laus na Revista Arcos, V. I, e na
Mostra de capas de disco no Brasil – os primeiros anos: 1951 a 1958, editada pela ADG. As capas de discos da
Bossa Nova foram coletadas no MIS-RJ.
A primeira parte da pesquisa (levantamento de dados) se estabeleceu na leitura dessa bibliografia e
reunião de outros títulos para referência e enriquecimento do trabalho, além da coleta de imagens realizada
no MIS-RJ e nas publicações já comentadas. Paralelamente à análise do material, digitalizamos as imagens
necessárias e iniciamos a redação do registro do processo, que prosseguiu até duas semanas antes da banca
final. Finalmente, criamos um projeto gráfico e o encaminhamos para impressão.
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CENÁRIO PARA O APARECIMENTO DA
BOSSA NOVA
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Um Brasil de sonhos
A Bossa Nova foi uma das muitas forças modernizadoras que marcaram a transição entre um Brasil exportador de matérias-primas para uma nação industrial que acompanhasse o desenvolvimento de um novo
capitalismo, inaugurado a partir da descoberta da sociedade de consumo como a saída para a depressão
industrial que se anunciava nos Estados Unidos no final da década de 40.1 Tendo nascido, amadurecido e se diluído como movimento de meados dos anos 50 (quando alguns
precursores do movimento já atraiam a atenção pela música moderna que executavam e compunham) a
meados dos anos 60 (quando começa a se exigir do artista um posicionamento político mais definido), a
Bossa Nova viveu um período conturbado na política brasileira. Exatamente os anos dos preparativos do
golpe militar até sua efetiva concretização em 1964.
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Denis, 1999
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uma estética bossa nova
cenário para o aparecimento da Bossa Nova
O segundo governo Getúlio Vargas se impunha como
meta, segundo as palavras do próprio ex-ditador,“transformar em nação industrial uma nação paralisada pela miopia
de seus governantes aferrados à monocultura extensiva e
à exploração primária de matérias primas” (Nosso Século,
1945/1960 V.II, 1980: 129). Contudo, Getúlio esbarrava na sua
precária sustentação política, devendo inúmeros favores
para conquistar alianças no pleito de 1950, e no receio que a
classe militar tinha de suas “motivações anti-democráticas”.
Ainda assim, pôde realizar projetos símbolos do seu desenvolvimentismo nacionalista, como o estabelecimento do
monopólio sobre o petróleo, através da criação da Petrobrás. Isolado politicamente, porém, sem forças de sustentação na classe média e sem apoio na imprensa, Getúlio
Virginia Lane
foi pouco a pouco perdendo terreno para seus adversários.
Alvo de uma campanha que o solapava diariamente em
rádio, jornal e até na recente televisão, Getúlio só viu uma
forma de impedir o golpe que se preparava contra ele: matou-se em 23 de agosto de 1954, gerando grande
comoção popular e refreando o golpe militar por dez anos2 .
Depois de Vargas, o otimismo desenvolvimentista e a crença na evolução do capitalismo brasileiro foram renovados na figura de Juscelino Kubitschek. Em seu projeto, o desenvolvimentismo e a modernização
brasileira serviriam para “combater o comunismo e enfrentar a miséria com prosperidade” (Nosso Século,
1945/1960 V.II, 1980: 80).
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Wainer, 1989
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análise gráfica do design do designer césar villela
uma estética bossa nova
O marco definitivo seria a construção de Brasília, meta-síntese do programa de metas do governo JK.
Longe da pressão direta das massas, a nova capital seria um diferencial na sua concepção urbana e na arquitetura arrojada. O projeto de Oscar Niemeyer procurou “formas novas, que surpreendessem pela sua leveza e
liberdade de criação. Formas que não se apoiassem apenas no chão, rígidas e estáticas, como uma imposição
da técnica, mas que mantivessem os palácios como que suspensos, leves e brancos nas noites sem fim do
Planalto”, como escreve Oscar Niemeyer em seu livro Forma e Função na Arquitetura (Nosso Século, 1945/1960
V.II, 1980: 94). Além disso, no meio do cerrado brasileiro, obrigaria um esforço adicional na construção de
estradas, alavancando a indústria automobilística que JK incentivou a se estabelecer no Brasil.
Eram os anos da fé no consumismo e no potencial da nação brasileira. Também do glamour da época de
ouro do cinema americano, exportando uma nova estética de Cadillacs
e topetes lambusados de brilhantina para galãs bem comportados,
e da indústria de beleza para o romance e devaneio das “moças
casadoiras”. A rígida moral vigente foi aos poucos cedendo lugar
para novos padrões de beleza estimulados por estrelas de formas
generosas como Mamie van Doren, Jane Mansfield, Sophia Loren e
Gina Lollobrigida. No Brasil, Wilza Carla, Virginia Lane e Mara Rúbia
causavam furor como vedetes do teatro rebolado, enquanto as
declarações apimentadas da atriz capixaba Luz del Fuego fazia
corar até o mais espertalhão dos “estróinas”.
De inúmeras formas, os anos 50 prepararam as revoluções de
costumes que vieram a acontecer na década seguinte. Por mais ambíguo que possa parecer, porém, eram anos positivos que faziam crer no
sucesso da sociedade de consumo e nos sonhos de felicidade ingênua em
um casamento perfeito.
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Um Brasil de boleros
Assim como Caetano sugere que a Tropicália surgiu “por causa
da Bossa Nova” (Velloso, 1997: 16), pode-se dizer que a Bossa Nova
apareceu “por causa” do samba canção de contornos bolerísticos
que imperava nos anos que a precederam.
Se dissessem a Ronaldo Bôscoli que João Gilberto em algum
momento de sua carreira iria gravar Besame Mucho, de Consuelo
Velasquez, ele “negaria com a maior veemência”,como escreve Ruy
Castro em Chega de Saudade as rádios despejavam nos ouvidos
daqueles jovens “modernos” um festival de boleros e sambascanções derramados que vieram a ser uma “antiinspiração” para
garotos como Carlos Lyra, Roberto Menescal e Bôscoli, líder daquela turminha de classe média que iria revolucionar a música
brasileira. Se bem que, para arrepios do próprio Bôscoli, João
Gilberto, o mentor intelectual dessa revolução, nunca negara a
Antônio Maria
admiração por Dalva de Oliveira e Anísio Silva, crooners que causavam aversão na turma. João Gilberto, entretanto, sempre deixou
clara a sua independência em relação a quaisquer rótulos que lhe quisessem impingir. Afinal, ele próprio
fora um crooner e seu ídolo máximo na adolescência era ninguém menos que Orlando Silva, “o cantor das
multidões”.
Mas multidão não era mesmo com a Bossa Nova. Repetidamente, Julio Medaglia, no ensaio O Balanço
da Bossa Nova (publicado em conjunto com outros ensaios em Balanço da Bossa e outras bossas do autor/
organizador Augusto de Campos), a qualifica como “música de câmara” que chegara para aparar as arestas
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análise gráfica do design do designer césar villela
uma estética bossa nova
da música popular e libertar o Brasil dos boleros e do romantismo melodramático. Para Medaglia, “[a Bossa
Nova] era a negação do ‘cantor’, do solista e do ‘estrelismo’ vocal e de todas as variantes interpretativas óperotango-bolerísticas que sufocavam a música brasileira de então” (Medaglia, 1993: 75).
Nos anos precedentes à Bossa Nova conviviam motivações modernizadoras na música popular com
sambas canções de motivos trágico-românticos. O estupendo sucesso de “Ninguém me ama”, de Antônio
Maria, é um bom exemplo dessa época. Descrevendo um Rio de Janeiro – mais especificamente, Copacabana – do princípio dos anos 50 como um antro “de mulheres sem dono, pederastas, lésbicas, traficantes de
maconha, cocainômanos e desordeiros da pior espécie”, Antônio Maria parece não ter sido atingido pelos
ares desenvolvimentistas e positivos do pós-guerra, e tanto menos pelo ingênuo romantismo com o qual
nos acostumamos a recordar os “anos dourados”.
Copacabana era a maior expressão de modernidade de um Rio de Janeiro que podia se considerar
cosmopolita. Com 2.600.000 habitantes, quase a metade de imigrantes portugueses, espanhóis, árabes e
brasileiros de todas as partes do país, a cidade irradiava
para o resto do país o it carioca – importado do glamour
das telas do cinema americano junto com a nova moda
de “óculos Ray-ban e jeans desbotados, contrabandeados
no cais do porto” (Tinhorão, 1979).
Na mesma Copacabana caótica que Antônio Maria
descrevia em suas músicas – embora talvez não nas mesmas boates – músicos como Johnny Alf todas as noites
renovavam os ouvidos dos jovens músicos brasileiros
que estavam inchados de tanto bolero.
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A classe média sonha um Brasil para si
A juventude de classe média dos anos 50 não poderia escolher
aquelas músicas de “dor de cotovelo” com mulheres cruéis e traições
sangrentas que os crooners bradavam como sinfonia dos dias ensolarados da zona sul do Rio de Janeiro.
É preciso que se diga, porém, que não só de sambas canções e
boleros vivia a rádio brasileira. Havia programas como “Ritmos do Tio
Sam” e “Midnight Serenade”, em estações alternativas como a Roquette Pinto, que tocavam as bandas de jazz mais badaladas da época e
cantores modernos como Frank Sinatra, Nat King Cole e Julie London,
considerada grande influência da Bossa Nova. E se a música cantada
em inglês não satisfizesse os mais nacionalistas, havia Dick Farney e
Johnny Alf
Lúcio Alves (este, um cantor de voz pequena, chamado de “o cantor
das multidinhas”3, em contraste a Orlando Silva), que tinham até fãs clubes rivais. E havia Johnny Alf e seu
piano precursor. E Garoto e seu violão ainda na ativa. Enfim, nem tudo estava estagnado.
Desde o final dos anos 40, com os citados Alf e Garoto, já se ensaiava uma evolução harmônica na música brasileira. Jovens músicos, como os pianistas de boate Antônio Carlos Jobim e Newton Mendonça e o também acordeonista João Donato, já se espelhavam nas harmonias alteradas do cool jazz para compor e executar suas canções.
Alguns, como Tom, conseguiram ter suas músicas gravadas por ícones da época como Dolores Duran. Mas ainda
não conseguíamos nos livrar da tragicidade das canções: Dolores e, pouco depois, Maysa, transformaram suas
vidas artísticas em folhetins, para o deleite da imprensa, deixando claro, através de suas interpretações com
fortíssima carga dramática, que devia ser muito pior do que poderíamos imaginar estar na pele delas.
Castro, 1990
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análise gráfica do design do designer césar villela
uma estética bossa nova
“Rio de Janeiro, que eu sempre hei de amar/ Rio de Janeiro a montanha, o sol, o mar”, Bossa Nova? Sim. E não,
já que são frases de Billy Blanco para a música de Tom “Sinfonia do Rio de Janeiro”, um retumbante fracasso
de 1954. Gravada com sofisticado arranjo de cordas do maestro Radamés Gnatalli e músicos de estúdio de
primeira linha, já trazia presente dois elementos fundamentais do movimento: a harmonia moderna somada
à temática e construção coloquial da letra.
Arthur da Távola e Julio Medaglia explicitamente situam as composições de Cartola e Noel Rosa nos
anos 30 como canções identificadas, especialmente nas letras, com um modernismo urbano que ficou adormecido por duas décadas até o advento da Bossa Nova. Para Medaglia, “‘ah, se ela soubesse que quando
ela passa’ [“Garota de Ipanema” – Tom Jobim e Vinícius de Morais] (...) e ‘fotografei você na minha Rolleyflex’
[“Desafinado” – Tom Jobim e Newton Mendonça] (...) nada mais é que versões atualizadas de um mesmo
humor, uma mesma gente, uma mesma bossa” que “’seu garçom faça o favor de me trazer depressa’ [“Conversa de Botequim” – Noel Rosa]” (Medaglia, 1993: 81), apesar da procedência diversa – a Bossa Nova da orla
da zona sul e Noel da Lapa.
O marco, portanto, da retomada da evolução lírica
nas letras ficou sendo o encontro de Tom e Vinícius nas
composições de Orfeu da Conceição, este já um sucesso de
público e crítica em 1956. A partir daí, segundo Arthur da
Távola, se estabelece “a palavra como expressão concisa,
econômica de acordo com os padrões de uma sociedade
que começa a sepultar de vez o romantismo e a se tornar
científica e tecnológica” (Távola, 1998: 75). Prossegue
Távola: “À descontração das letras soma-se a crítica aos
temas, grandiosos, fatais ou grandiloqüentes. Aparecem,
então, os conteúdos de aparência simples, portátil, quase
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uma estética bossa nova
cenário para o aparecimento da Bossa Nova
descartáveis, descontraídos, intranscedentes” (Távola, 1998: 75).
Já João Gilberto, com as músicas “Hô-ba-la-lá” e “Bim-bom”, praticamente negava
“qualquer pretensão literária às letras” (Távola, 1998: 76).
A coisa realmente aconteceu quando João Gilbertoreapareceu no Rio de Janeiro e bateu na porta de Roberto Menescal em Ipanema. Depois de temporadas em
Porto Alegre, Diamantina, Juazeiro e Salvador, para se restabelecer do fracasso de sua
carreira no Rio, João trazia algo “diferente” para aquela turma de músicos jovens da
Zona Sul. Era uma nova batida, uma nova forma de tocar e se acompanhar ao violão
em um ritmo que simplificava toda a batida do samba. Segundo Ruy Castro, quando
Menescal e, logo depois, Ronaldo Bôscoli, o ouviram, entenderam tudo:“João Gilberto
era a realidade encarnada do que, até então, eles estavam procurando às cegas” (Castro, 1990: 138).
Além disso, nunca tinham o visto cantar daquele jeito: baixinho (como fazia Mário Reis em sua época),
quase como se falasse, escandindo as sílabas e distendendo ou contraindo a melodia de acordo com seu
desejo, valorizando ao máximo cada nota individualmente.
Quando João Gilberto, depois de uma rápida aparição como instrumentista em duas faixas de Canção
do amor demais, de Elizete Cardoso, cantando músicas de Tom e Vinícius, gravou o seu Chega de Saudade em
1959, já estava tudo ali: a evolução lírica a que Arthur de Távola se refere, com Vinícius de Morais e Newton
Mendonça4 , as harmonias alteradas de Tom Jobim e a batida revolucionária que ele inventara.
Conforme Castro:“Chega de Saudade oferecia, pela primeira vez, um espelho aos jovens narcisos. (...) Na
época não se tinha consciência disso, mas depois se saberia que nenhum outro disco brasileiro iria despertar
em tantos jovens a vontade de cantar, compor ou tocar um instrumento. Mais exatamente, o violão” (Castro,
1990: 197). Ou segundo Arthur da Távola, “a classe média ascendente da zona sul carioca encontrava, na
Bossa Nova, o seu canal de expressão” (Távola, 1998: 66).
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A Newton Mendonça costumam ser creditadas as letras e a Tom Jobim, as músicas. Dupla injustiça, já que ambos tomavam parte em música e letra.
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análise gráfica do design do designer césar villela
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Modernismo e Bossa Nova
Távola e Medaglia dedicam páginas e páginas a uma suposta adequação modernista na música brasileira
através da Bossa Nova. Enfatizam o aspecto de retomada que a Bossa Nova imprime na música brasileira,
conforme destacado anteriormente. Mas de uma forma muito mais clara nas suas intenções.
É quase o “forma segue função”,paradigma do design modernista cristalizado nas atividades da Bauhaus
segundo o qual “a forma ideal de qualquer objeto deve ser determinada pela sua função” (Denis, 1999: 123).
Eliminando os excessos, os adereços, a carga dramática, a Bossa Nova é simples, objetiva, concisa, essencial.
Ao mesmo tempo que é elaboradíssima rítmica e harmonicamente – como nunca antes na música brasileira.
Para Távola:
[A Bossa Nova] está para a música popular como, na literatura, o modernismo esteve para o parnasianismo. (...) À expressão moderna chamou-se Bossa Nova. (...) Ao tempo da Bossa Nova, do ponto de vista da
criação de condições para algum movimento renovador estavam maduras as seguintes pré-condicões:
vontade de renovação nas letras; idem na escritura musical das melodias, com incorporação de dissonâncias; idem na harmonia (...); vontade de renovação na instrumentação e na junção de pequenos
conjuntos. (...) Finalmente havia a vontade de renovação no modo de cantar e a melhora qualitativa
dos processos de gravação e reprodução sonoras. (Távola, 1998: 69).
A tudo isso Julio Medaglia acrescenta um elemento antropofágico que é mais comumente associado
à Tropicália (e certamente mais intencional), destacando os “artifícios extraídos da literatura de vanguarda
– particularmente da Poesia Concreta” na letra de “Lobo Bobo” de Ronaldo Bôscoli, segundo ele, uma “sátira
ao playboy com fome de donzela, onde, em tom de gozação e aparente ingenuidade, é ironizada a sua
antropofagia” (Medaglia, 1993: 86). A antropofagia, característica latente da obra do modernista Oswald de
Andrade, também é sugerida na forma como a Bossa Nova “devorou” o jazz americano, dando-lhe os contornos que convinham ao movimento.
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BOSSA NOVA: Ascensão,
Transformação
e Imigração
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uma estética bossa nova
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cenário para o aparecimento da Bossa Nova
A conquista do mercado
A segmentação do mercado de música popular propiciada pela
evolução dos métodos de gravação, possibilitou o advento de uma música
sofisticada e renovadora como a Bossa Nova. Artur da Távola ressalta a importância da gravação em alta-fidelidade para a inspiração de músicos mais
exigentes e para a criação de um mercado consumidor mais sofisticado:
A reprodução de sons em alta fidelidade começou a aguçar o ouvido dos músicos da época.(...) A ampliação de recursos sonoros abriu caminho para músicos criativos,
cansados de repetir harmonias tradicionais e instrumentação conservadora. Determinou, igualmente,
a criação de um consumidor capaz de diferenciação e sofisticação sonora. A Bossa Nova viria a ser uma
das respostas à exigência de segmentos sofisticados do mercado consumidor e do uso adequado
(estético/mercadológico) dos novos recursos sonoros. (Távola, 1998: 30)
Além disso, é importante lembrar que, antes da introdução do sistema eletromagnético de gravação,
nos anos da reprodução mecânica, era necessária grande potência de voz para o registro vocal dos cantores.
Como a Bossa Nova apostava em um tipo de interpretação e impostação de voz mais intimista, pode se dizer
que o Hi-Fi foi uma pré-condição técnica para acontecer o movimento.
No disco Canção do amor demais, de Elizete Cardoso, em 1958, já estavam presentes as músicas de Tom
e Vinícius e até o violão magnético de João Gilberto em duas faixas. Mas para que João Gilberto conseguisse
gravar seu 78rpm4 com todas as características bossanovistas foi preciso uma verdadeira blitz sobre o diretor
artístico da Odeon, Aloysio de Oliveira.
Aloysio, que voltara depois de anos nos Estados Unidos, achava que cantores deviam cantar para fora,
exibindo seus dotes vocais, e considerava “que cantores com voz centimetrada podiam ser a tetéia dos intelectuais, mas não tinham a menor possibilidade comercial”. (Castro, 1990: 181). Mas a argumentação de Tom
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Os discos de 78 rotações por minuto foram os precursores do LP de 33 1/3 rpm.
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uma estética bossa nova
B o s s a N o v a : a s c e n çã o t r a n s f o r m a çã o e i m i g r a çã o
Jobim, André Midani, descobridor de talentos da gravadora, e Ismael Corrêa, diretor comercial, acabaram
por convencê-lo. O aval de Dorival Caymmi, foi “o golpe de misericórdia na resistência de Aloysio”.
Emfim, depois de conturbadas sessões de estúdio devido ao “perfeccionismo maníaco” de João, o acetato
foi gravado, chegando às lojas do Rio de Janeiro em meados de 1958. O período, porém, não podia ser menos
propício: o Brasil acabara de conquistar sua primeira Copa do Mundo e tudo o que tocava nas rádios era “A Taça
do Mundo é nossa”. Mas Ismael Correa acreditava que aquela música nova podia ir de encontro aos anseios do
público jovem e esperou a euforia da conquista esportiva passar para lançar o disco em São Paulo.
Como conta Castro, “São Paulo já era o principal mercado e tinha a maior cadeia de lojas de discos do Brasil,
as Lojas Assumpção” que, sozinhas, eram capazes de ditar o sucesso de um disco, “se este fosse bem trabalhado”
(Castro, 1990: 181). Logo, Oswaldo Gurzoni, influente diretor da gravadora em São Paulo, encarregado por Correa
de trabalhar o disco, teve em Álvaro Ramos, gerente de vendas das Lojas Assumpção, seu alvo principal.
Ramos, que a princípio tivera ojeriza do disco, não resistiu a um encontro planejado pela direção da
Odeon com o sedutor João Gilberto e autorizou o “trabalho” do disco. Isto consistia na reprodução maciça
nas filiais e sua difusão através de um programa de rádio que as Lojas Assumpção patrocinavam. Aliada ao
empenho da Odeon, que providenciou visitas a emissoras de TV e rádio do Rio de São Paulo, a estratégia
acabou dando resultado:
O 78 de ‘Chega de Saudade’ chegou às paradas de sucesso de Radiolândia e Revista do Rádio no final
daquele ano, disputando no olho mecânico com Celly Campello em ‘Lacinhos cor-de-rosa’. (...) Com
arranque dado em São Paulo e, finalmente, sua descoberta pelo mercado carioca, ‘Chega de Saudade’
vendeu 15 mil 78s de agosto a setembro de 1958 [quando cantores já estabelecidos como Lúcio Alves
e Silvinha Telles ficavam entre cinco e dez mil cópias]. (Castro, 1990: 190).
Com o sucesso do primeiro 78 rpm, que continha “Chega de Saudade” e “Bim-bom”, João Gilberto grava
o seguinte (“Desafinado” e “Hô-ba-la-lá”), surgindo as condições para sair seu primeiro longplaying individual,
aquele que mudaria os rumos da música popular brasileira e “influenciou toda uma geração de cantores,
instrumentistas e compositores”, como escreve Tom Jobim na contracapa do LP Chega se Saudade.
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O Brasil devora a Bossa Nova
Antes do sucesso nas rádios, o violão e a voz de João já eram cultuados e faziam escola através da reprodução de gravações caseiras ou de pequenos saraus em apartamentos da zona sul do Rio de Janeiro. A batida
e modo de cantar de João Gilberto, como já foi salientado no primeiro capítulo, ofereceram um caminho a
seguir para os jovens músicos que participaram daquelas reuniões e escutaram aquelas fitas. No primeiro
semestre de 58, aconteceu o primeiro show no Grupo Universitário Hebraico do Brasil, que acabou por,
involuntariamente, dar nome ao movimento: “Hoje: Silvinha Telles e um grupo bossa nova”. Nele, além de
Silvinha, estavam presentes vários dos discípulos de João, entre outros, Chico Feitosa, Nara Leão, Carlos Lyra,
Luizinho Eça, Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, apresentando o show.
Depois do batismo no Grupo Universitário Hebraico do Brasil, a Bossa Nova ganhou os jornais numa
polêmica envolvendo a PUC-Rio. O ano era 1959, o DCE organizara o “1o Festival de Samba-Session”, contando com a presença
de grande parte do elenco do primeiro show mais as ilustres
presenças de Antônio Carlos Jobim e, para o desespero do
reitor da universidade, Padre Laércio Dias de Moura, que já
autorizara a realização do evento, a vedete do teatro rebolado,
Norma Bengell. Padre Laércio previu a péssima repercussão que
a apresentação de Norma poderia trazer junto aos membros
da congregação que sustentava a universidade e fincou o pé:
com Norma Bengell o show não se realizaria.
Os músicos, por outro lado, se revoltaram com a proibição
e devolveram:“Sem Norma, não haverá show”. O entrevero acabou vazando para os jornais, com o Diário de Notícias à frente,
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uma estética bossa nova
B o s s a N o v a : a s c e n çã o t r a n s f o r m a çã o e i m i g r a çã o
publicando a seguinte manchete em primeira página: “Norma
no Index”. Nem assim, porém, o reitor voltou atrás na decisão. A
solução encontrada pelos organizadores do evento foi transferir a apresentaçãopara o anfiteatro da Faculdade Nacional de
Arquitetura, na Praia Vermelha.
Esta, realizada no dia 22 de setembro daquele ano, impulsionada pela polêmica, ganhou status de show proibido e
o público, formado essencialmente de universitários, lotou o
anfiteatro. No show seguinte na Escola Naval, “bossa nova” já
deixara de ser um adjetivo para se tornar designação de um
movimento, motivando Ronaldo Bôscoli, mais uma vez como
apresentador, a tentar defini-la: “É o que há de mais moderno,
de totalmente novo e de vanguarda na música brasileira”.
Através do ativismo de Bôscoli na Revista Manchete, o nome
se popularizou e motivou diversas polêmicas com os baluartes da geração anterior como Antônio Maria e
Silvio Caldas, acumulando admiradores e adversários. Conforme Castro:
Em todas as entrevistas a que eram solicitados – e, nos primeiros tempos, isto parecia acontecer de 15
em 15 minutos – Bôscoli, Menescal e o próprio Tom acusavam a música do ‘passado’ de ser macambúzia e meditabunda, além de francamente derrotista. Para eles a Bossa Nova vinha nos libertar do ‘Não,
eu não posso lembrar que te amei’ (‘Caminhemos’, de Herivelto Martins) com a afirmação máscula e
decidida de Vinícius de Morais em ‘Eu SEI que vou te amar/ Por toda a minha vida eu VOU te amar’. O
exemplo a não ser seguido, e que elas adoravam lembrar, era o inevitável ‘Ninguém me ama/ Ninguém
me quer’, de Antônio Maria. (Castro, 1990: 240)
Como percebeu o Diário de Notícias, polêmica vende jornais. E toda a celeuma em torno do movimento
acabou fazendo com que tudo de novo e moderno no Brasil fosse Bossa Nova. De tal forma que Carlos Lyra
sugeriu a Bôscoli que registrassem o nome, o que acabaram por não fazer. Logo, um novo modelo de gela-
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B o s s a N o v a : a s c e n çã o t r a n s f o r m a çã o e i m i g r a çã o
uma estética bossa nova
deira da Brastemp era o “Príncipe bossa nova”,“rádios, vitrolas, enceradeiras, aparelhos de barbear e demais
cacarecos que se começavam a ser produzidos no Brasil, novos estilos de sapatos, gravatas e até edifícios,
eram lançados sob a chancela de ‘Bossa Nova’”. (Castro, 1990: 280).
A Bossa Nova não era “apenas” utilizada para fins propagandísticos. A modernização gráfica realizada
nos jornais e revistas da época, uma vitória do Flamengo com um gol contra sobre o invencível Santos de
Pelé, a bancada jovem da UDN, tudo e todos, enfim, queriam tirar uma “casquinha” da idéia, conceito, de
“bossa-nova”.
Juca Chaves aproveita a onda para fazer “Presidente Bossa Nova”, referindo-se, evidentemente, a Juscelino Kubitschek:
Bossa Nova mesmo é ser presidente
Desta terra descoberta por Cabral.
Para tanto, basta ser tão simplesmente,
Simpático, risonho, original (...)
Voar da Velhacap pra Brasília
Ver o Alvorada e voar de volta para o Rio
Voar, voar, voar
Voar, voar pra bem distante.
Mandar parente a jato pro dentista
Almoçar com a tenista campeã (...).
Isto é viver como se aprova,
É ser um presidente bossa-nova.
E devia ser mesmo já que os convidou para compor uma canção para a inauguração de Brasília. “Brasília,
sinfonia da alvorada” acabou não sendo executada no
espetáculo de inauguração da cidade, a 21 de abril de
1960, em função do que JK chamou de “uma mudança
de estilo” do show.
Tom Jobim e Vinícius de Morais em Brasília
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A Elenco
A escalada meteórica da Bossa Nova fez com que
Aloysio de Oliveira (aquele mesmo que não gostava de
cantores de voz pequena), entusiasmado com a abertura
para o mercado americano com o show no Carneggie
Hall em novembro de 1962, tivesse a idéia de criar uma
gravadora só sua. E só de Bossa Nova.
Criada em 1963, mesmo ano da fundação da ESDI, a
Elenco foi a única gravadora a que os consumidores procuravam pelo nome. E seus discos, sob o projeto gráfico de
César Villela, uma verdadeira ruptura no design de capas
no Brasil, compostos basicamente em preto e branco
com detalhes em vermelho, podiam ser reconhecidos à
distância. O projeto de Villela, tão adequado ao movimenAloysio de Oliveira e Nara Leão
to, acabou por ser copiado pelas demais gravadoras que
apostavam em Bossa Nova (Phillips e Odeon). Como um
contraponto às capas da Elenco, havia as capas da Forma,
outra pequena gravadora que investiu no público da Bossa Nova. Diferia da primeira no sentido que seus
discos eram explicitamente de luxo,“com capas encorpadas e duplas, ilustradas com pintura moderna” (Castro,
1990: 341). A idéia não resistiu financeiramente e a gravadora passou imprimir capas menos dispendiosas.
Sob o selo da Elenco gravaram Tom Jobim, Sylvinha Telles, Dick Farney, Lúcio Alves, Sérgio Mendes, João
Donato, Sérgio Ricardo, Baden Powell, Roberto Menescal, Quarteto em Cy, Nara Leão, Edu Lobo, Rosinha de
Valença, Sidney Miller, Billy Blanco, Maysa, Lennie Dale, Vinícius de Moraes, Dorival Caymmi, Odete Lara e
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uma estética bossa nova
Norma Bengell, todos sem contratos com a gravadora, que, não podendo pagá-los, distribuía royalties aos
músicos.
Utilizando a RCA-Victor para imprimir seus discos e com o crônico problema da falta de dinheiro, suas
tiragens jamais passaram de dez mil exemplares. A frágil estrutura econômica gerou lendas de que o projeto
gráfico da gravadora, com apenas duas cores, era produto dessa dificuldade, o que Villela desmente com veemência: “Se eu quisesse um disco com mil cores, o Aloysio ia se virar para produzi-lo” (Villela, 2001: Anexo).
Aloysio, considerado um mestre do estúdio, mas uma lástima como administrador, nos três anos em
que esteve a frente da gravadora, seu período de maior sucesso, lançou cerca de 60 discos de Bossa Nova de qualidade
no Rio de Janeiro. Com francas dificuldades na distribuição e
demorando-se no lançamento da Elenco em São Paulo, onde
havia fértil mercado para o gênero, Aloysio, endividado, praticamente dá a gravadora para a Phillips em 1966.
Apesar do vanguardismo da Elenco, a maior fatia do mercado ficou mesmo com as grandes gravadoras, em especial a
Phillips, que atingiu a marca dos 100 mil discos com Jorge Ben
e seu LP Samba esquema novo, de 1963.
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Radicalização política e
bossa nova: não podia mesmo
dar certo...
A Bossa Nova começou a cindir no “divórcio” de
Carlinhos Lyra e Ronaldo Bôscoli no princípio de 1960.
Suspeitava-se, no polarizado clima da época, que o politizado Lyra teria descoberto que Bôscoli era de direita.
Contudo, segundo Castro, o problema fora a impaciência
de Lyra com a Odeon que prometera gravar a turma
estrelada por ele e liderada por Bôscoli (Menescal,
Nara Leão, Normando Santos, Osvaldo Castro Neves, e
outros), mas relutava levá-los para o estúdio. A Phillips
ofereceu-o um contrato e Lyra rompeu com a Odeon.
A reação da multinacional Odeon foi imediata:
transformou o projeto Turma da Bossa Nova em compacto duplo com o conjunto de Roberto Menescal. Isso
fez com que alguns participantes aderissem à Phillips,
uma companhia de capital binacional (holandês-brasileiro), juntando-se a Carlinhos. A batalha teve seu auge
quando as duas gravadoras patrocinaram shows propositadamente no mesmo dia: um na Faculdade Nacional
Roberto Menescal pesca em Cabo Frio
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de Arquitetura (Odeon), outro na PUC (Phillips).
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uma estética bossa nova
Isso foi apenas um aperitivo do que estava por vir. Enquanto Lyra participava da fundação de uma célula do Partido Comunista em São Paulo, se comprometendo a falar de assuntos menos alienados em suas
músicas, e ajudava na criação do CPC (Centro Popular de Cultura, que seria CCP, não fosse a sua intervenção
dizendo que fazia música burguesa e não samba de raiz), Menescal pescava meros em Cabo Frio. Mas a
grande cisão aconteceu mesmo através de Nara Leão, que começava a adicionar conteúdos sociais ao seu
repertório, cantando músicas de compositores como Cartola, Zé Kéti e Nelson Cavaquinho.
Nara Leão toma contato com essa velha guarda freqüentando o restaurante Zicartola, cujo nome é
uma junção de Cartola e Zica, sua mulher. Levada por Lyra, Nara, conforme conta Roberto Menescal, estava
rompida com Ronaldo Bôscoli, seu ex-noivo, e decide mudar os rumos de sua carreira (Seminário Da Bossa
Nova à Tropicália, 2001).
O “renovado” repertório foi gravado em no seu disco Nara, da Elenco, sua estréia em 1964. O disco
desagradou a Aloysio de Oliveira, mas foi bem assimilado pela Bossa Nova. “Os conservadores é que avançaram de tacape contra Nara, para dizer que ela estava assaltando a pureza da autêntica música popular ao
intrometer-se nela”. (Castro, 1990: 347). Mas quando Nara voltou de uma temporada internacional em 1964,
já com os militares no poder, ela já sabia que caminho seguir.
Nara gravou um disco que iria causar feridas mortais à Bossa Nova, Opinião de Nara. Em entrevistas,
deixaria claro o que pensava agora de seus ex-colegas e da música que produziam: “Chega de Bossa Nova.
Chega de cantar para dois ou três intelectuais uma musiquinha de apartamento. Quero o samba puro, que
tem muito mais a dizer, que é a expressão do povo.”
Os ventos mudavam. A Bossa Nova e sua temática feliz já não serviam mais para expressar o que sentiam
os jovens daquele período, envolvidos em polêmicas nacionalistas e radicalização política.
Para Roberto Menescal, porém, o mundo ainda parecia um mar de rosas. Desligado de política a ponto
de não perceber o motivo pelo qual seus músicos não compareceram ao estúdio naquela quarta-feira. Era
1o de abril de 1964, data da golpe militar.
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uma estética bossa nova
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Nara integrou-se ao engajado show Opinião, de Oduvaldo Vianna Filho, Armando Costa e Paulo Pontes,
com direção de Augusto Boal. Neste, Nara se apresentava junto ao compositor nordestino João do Vale e Zé
Kéti, oriundo da periferia dos morros cariocas. E continuava batendo na Bossa Nova através dos jornais. O
patrulhamento ideológico era de tal ordem que os jovens irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, integrantes
da segunda geração da Bossa Nova, que contava ainda com Francis Hime, Dori Caymmi, Nelsinho Motta,
Eumir Deodato e Edu Lobo, fizeram uma música de protesto “ao contrário”:
A resposta (Marcos e Paulo Sérgio Valle)
Se alguém disser que o teu samba não tem mais valor
Por que ele é feito somente de paz e amor
Não ligue não, que essa gente não sabe o que diz
Não pode entender quando o samba é feliz
O samba pode ser feito de céu e de mar
O samba bom é aquele que o povo cantar
De fome basta a que o povo na vida já tem
Pra que lhe fazer cantar isto também?
Mas é que é tempo de ser diferente
E essa gente
Não quer mais saber
De amor
Falar de terra na areia do Arpoador
Quem pelo pobre na vida não faz um favor
Falar de morro morando de frente pro mar
Não vai fazer ninguém melhorar
A música dos jovens compositores, que já tinham feito
“Terra de ninguém” de forte conteúdo social, fez com que
“Edu Lobo e outros velhos amigos passassem algum tempo
sem falar com eles” (Castro, 1990: 357). Só não esperavam a
reação de Nara: foi a única a querer gravar a música.
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Marcos Valle e Roberto Menescal
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uma estética bossa nova
Segundo Castro, no segundo semestre de 1965, apareceu o termo MPB, que viria substituir Bossa Nova, tão identificada com uma postura alienada que perdera definitivamente
espaço no contexto brasileiro da época:
A sigla não queria dizer música popular brasileira (...)
mas uma determinada música popular brasileira –
que podia ser tudo menos determinável. A MPB (...)
não tinha compromissos com o samba e queria flertar
à vontade com outros ritmos, temas e posturas. E
queria, principalmente, ser nacionalista, para purgarse dos excessos de influência do jazz na Bossa Nova.
(Castro, 1990: 377).
O estabelecimento da sigla MPB divide opiniões.
Sérgio Cabral situa como marco o disco Nara, da Elenco.
Tárik de Souza sugere que a transição se deu através da
consagração de Elis Regina, em 1964, no I Festival da Música
Brasileira, promovido pela TV Excelsior, cantando “Arrastão”,
de Edu Lobo e Vinícius de Morais (Seminário Da Bossa Nova
à Tropicália, 2001).
Se o mercado da Bossa Nova estava estreito no Brasil, se escancarava nos Estados Unidos e no mundo.
A partir do sucesso no já citado show no Carneggie Hall, em novembro de 1962, surgiram várias oportunidades para a disseminação da Bossa Nova nos EUA. João Gilberto e Tom Jobim lançaram discos americanos,
respectivamente Getz/Gilberto e The composer of Desafinado. Vários músicos brasileiros excursionavam com
sucesso pelos EUA, com destaque para o conjunto de Sérgio Mendes, Brasil ’65, que chegaria ao auge no ano
seguinte, quando mudou o nome para Brasil ’66. O grande marco da internacionalização da Bossa Nova foi o
disco que Frank Sinatra gravou em 1967 com Tom Jobim. Os Estados Unidos escancaravam definitivamente
suas portas à Bossa.
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uma estética bossa nova
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Tom Jobim e Frank Sinatra no estúdio
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uma estética bossa nova
BOSSA NOVA & DESIGN
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Pequena história da indústria fonográfica brasileira
Uma breve abordagem do desenvolvimento da indústria
fonográfica brasileira se faz importante para compreender a
introdução do long-playing individual como carro chefe das
gravadoras e o design que se estruturou em torno dele.
Presente no Brasil desde 1902, o disco só foi ter uma fábrica
instalada em território nacional em 1913. Antes disso, através
da liderança da International Talking Machine GmbH, os discos
eram gravados aqui (com o auxílio de um técnico de som da
companhia), mas prensados na Alemanha. Estabelecida com o
nome de Disques Odeon, a fábrica da International Talking Machine foi líder na produção de discos até o final
da década de 20, época em que se confirmou o potencial do mercado consumidor brasileiro6. Prensavam-se
até 125 mil discos mensais em formatos de 10, 12 e 14 polegadas naqueles anos da reprodução mecânica
no Brasil.
A grande revolução da indústria fonográfica se deu com a chegada do sistema eletromagnético de
gravação que trazia uma melhoria geral da qualidade do som gravado. No Brasil, a partir de 1927, a gravação
elétrica propicia o surgimento de “uma nova vaga de cantores com interpretação mais natural, sem necessidade de altos volumes vocais” (Laus, 1998: 117).
Segundo Laus, nos anos 30 se definem os caminhos da indústria fonográfica brasileira, com o estabelecimento das empresas que viriam a dominar o mercado até os dias de hoje. Também é partir dos primeiros
anos dessa década que podemos “olhar para o disco com a visão do designer gráfico” (Laus, 1998: 119).
Laus, 1998
6
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uma estética bossa nova
Bossa Nova e Design
O estudo de Egeu Laus publicado na revista Arcos é de fundamental importância para este levantamento
histórico. Suas pesquisas indicam 1946 como o ano da impressão da primeira capa de disco personalizada.
Até então, os discos eram acondicionados em um envelope de “papel pardo semelhante ao Kraft”, com fina
gramatura, vazado de ambos os lados à altura dos rótulos, sem qualquer tipo de identificação individual. Os
rótulos eram o único contato do consumidor com o artista gravado. Segundo Laus:
Nesses rótulos, as informações (...) indicavam o nome do artista, nome das músicas, autores, o estilo
musical e alguma informação complementar além do número de catálogo de cada disco. Geralmente,
a parte superior do rótulo era totalmente tomada pela logomarca da casa gravadora, que somada à cor
plana do fundo identificava as séries dos discos bem como as companhias fonográficas. (...) As gravadoras se esforçavam a tornar os rótulos atrativos e (...) [chegaram] a utilizar a foto dos artistas impressa
no próprio rótulo. (Laus, 1998: 120).
Nos envelopes fazia-se propaganda das casas gravadoras (ou de equipamentos de reprodução associados a elas), que também, no início, vendiam os discos.“Mais adiante, outras lojas iriam revender os discos
e passam então a imprimir seus próprios envelopes, substituindo os originais e aproveitando para anunciar
outros produtos”. (Laus, 1998: 120).
Sem qualquer interesse para o consumidor, os envelopes eram comumente descartados e os discos
acondicionados em álbuns sem qualquer relação com a indústria fonográfica, onde começam a aparecer
os primeiros projetos gráficos. Esses álbuns podiam conter até 12 discos e vieram a emprestar o nome aos
invólucros dos LPs até a chegada do CD.
Quanto ao tratamento gráfico dos envelopes, aos poucos foram aparecendo, junto ao texto impresso,
ilustrações e vinhetas. Persistia, porém, a característica inferior do material:“papel sem branqueamento, tipo
kraft, (...) com impressão em preto ou tinta especial”. Conforme Laus:
[As fotografias] aparecem no momento em que os envelopes passam a divulgar o repertório em catálogo
dos artistas. (...) Ainda não era uma capa personalizada, visto que os envelopes eram intercambiáveis,
podendo o disco de um Francisco Alves ser vendido com a relação do repertório de um Orlando Silva,
por exemplo (Laus, 1998: 121).
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Bossa Nova e Design
uma estética bossa nova
A primeira capa personalizada, por volta de
1946, segundo as pesquisas de Laus, só vai aparecer, isoladamente, na série infantil da Continental,
com Branca de Neve. Somente em 1950 estariam
maduras as condições para a capa de disco se
estabelecer como a conhecemos hoje:
Seguindo a tendência dos álbuns importados, algumas gravadoras preparam álbuns de
três ou quatro discos com artistas de sucesso
e com vendagem garantida. Neles, sobre a
capa standard em cartão rígido do álbum,
era colada uma lâmina impressa com tudo
o que caracteriza uma capa de disco: fotos,
desenhos, nome do artista, título do disco,
logo da gravadora etc. (Laus, 1998: 125).
LP de Noel Rosa: uma das primeiras capas de disco brasileiras
Com a substituição a partir de 1951 do disco
de 78 rpm pelo long-playing de 33 1/3 rpm,“surge
um novo mercado para as artes gráficas no Brasil”. Os primeiros capistas saíram das agências de propaganda.
Como lembra César Villela em entrevista a Jorge Luiz Rodrigues7 (Villela, 2001: Anexo), a publicidade era área
do ilustrador, então foram ilustradores que produziram as capas por longo tempo,“até que o lançamento de
astros consagrados da música começa a exigir o trabalho de um fotógrafo”. (Laus, 1998: 125).
O formato definitivo do LP, com 12 polegadas para música popular, se firma em 1958, só sendo desbancado muitos anos depois com o advento do CD.
Jorge Luís Rodrigues é mestrando em design pela PUC e está elaborando sua tese:
Anos fatais: a estética tropicalista e seu reflexo no design gráfico nos anos 70.
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43
Indústria e design gráfico
brasileiro
Não temos a intenção de tecer um relato completo e preciso do
cenário do design brasileiro nos anos 50. Para tanto, seria necessário um projeto de pesquisa voltado exclusivamente para este
tema, já que a bibliografia sobre o assunto é escassa e carente de
autores. O intuito é tão somente indicar antecedentes e influências
importantes do período, abordando mais objetivamente o que
César Villela aponta como referências para a criação do projeto
gráfico para a gravadora Elenco.
É importante tecer um breve histórico das décadas predecessoras no que diz respeito à indústria e ao design, visto que foi
o grande desenvolvimento econômico e industrial experimentado
nesses anos que ditaram o ritmo das transformações posteriores.
O nacionalismo econômico e a crise do café impulsionaram a indústria brasileira do período entreguerras e fizeram com que o país voltasse seus olhos para o mercado interno. Sob o projeto do Estado
Novo, percebe-se um Estado profundamente comprometido com a identidade nacional, como pode ser
comprovado pela criação do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) para tutelar a imprensa e produzir material de divulgação do ideário político do governo. Interessado em interferir e ditar os rumos da
sociedade brasileira, o Estado passa a utilizar o design para instrumentalizar a construção de uma identidade
A música popular, vivendo sua época de ouro, com valores como Pixinguinha, Ary Barroso e Noel Rosa, também foi percebida como fator de integração, fazendo com que intelectuais e governantes procurassem transformá-la em símbolo de uma identidade brasileira (ver Laus).
8
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Bossa Nova e Design
uma estética bossa nova
nacional8 . Guardadas as devidas proporções, é interessante traçar um paralelo com a Deutsche Werkbund
(Liga Alemã do Trabalho).
Fundada em 1907, a Deutsche Werkbund visava à criação de uma linguagem estética objetiva, substituindo o
conceito de “belo” por “qualidade”. Em seu programa constavam a estetização dos produtos para socializar a arte,
formando uma cultura alemã e unificando “o gosto popular de acordo com os interesses da indústria” (Bomfim,
1998: 92). No Estado Novo, não havia essa consciência estética, quanto mais um projeto artístico. Contudo, os
laços se estabelecem na propagação de uma ideologia industrial e na influência exercida pelo projeto de uma
estética objetiva que as idéias da Deutsche Werkbund ajudaram a formular e viriam a se cristalizar na Bauhaus.
Exemplos da influência dessas idéias modernas são os cartazes de propaganda do Estado Novo, como relata
Denis, ao comentar o trabalho do cartazista Ary Fagundes: “As obras de Fagundes refletem bem as tendências
modernas da época, sem se encaixarem abertamente no paradigma modernista.” (Denis, 1999: 130).
Gustavo Amarante Bomfim percebe o incremento do capitalismo brasileiro entre as décadas de 30 e 50
Cartazes de Ary Fagundes para o Estado Novo
45
uma estética bossa nova
Bossa Nova e Design
como uma oportunidade de atualização em relação ao que se produzia na Europa, uma vez que até então
ainda “vigoravam os princípios difundidos pela semana de Arte Moderna de 1922” (Bomfim, 1998: 121):
A modernização econômica refletiu-se rapidamente no plano cultural, pois o incremento das relações
comerciais com outros países permitiu à burguesia nativa contatos mais intensos com os movimentos
artístico-culturais das nações européias. (Bomfim, 1998: 120).
O esvaziamento do DIP com a deposição de Vargas em 1945 refreou a
propaganda política agressiva do Estado. Contudo, os projetos desenvolvimentistas foram retomados no segundo governo Vargas e nos anos JK.
Citando Denis:
No compasso das políticas nacionalistas e desenvolvimentistas dos
governos acima citados (...) o design brasileiro se viu levado a gerar
soluções à altura dos grandes desafios sociais e culturais da época.
Os designers da segunda fase modernista se viram divididos entre
o nacionalismo e o internacionalismo, entre a tradição artesanal e
o progresso industrial. (Denis, 1999: 162).
Emblema da FAB
Em meio à febre de modernização que se vivia no Brasil, surge, junto
a intelectuais do Rio de Janeiro e de São Paulo, o desejo de desenvolver
novas concepções estéticas, baseadas no neo-positivismo do governo e numa racionalização e socialização
da arte. O movimento, que ficou conhecido como Concretismo, atingiu diversas áreas da produção artística
brasileira: das artes plásticas à poesia, passando pela arquitetura. O Concretismo acabou por afinar o Brasil
com o discurso funcionalista em voga na Europa.
O programa do Concretismo defendia o desenvolvimento de uma linguagem geométrica que promovesse a união entre arte e produção industrial. Com esse princípio os participantes do movimento
lutavam contra outras tendências artísticas européias (surrealismo, dada, expressionismo) e contra a
“arte mural” latino-americana, que seguia o realismo socialista. Ironicamente, os artistas concretistas
procuravam se libertar do domínio da arte européia, aceitando uma teoria estética pretensamente
universal. (Bomfim, 1998: 122).
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Bossa Nova e Design
uma estética bossa nova
Teoria estética universal, mas engendrada na Europa. Como reação à tendência de incluir elementos
decorativos que procuravam esconder a procedência industrial nos objetos (historismo), diversos movimentos procuraram uma adequação estética aos novos meios de produção fabril. A adequação estética vinha a
reboque da pulsão ideológica moderna. No início do século, vivia-se grande otimismo na utopia da criação
de uma sociedade igualitária e na capacidade produtiva do Estado industrial. Segundo Bomfim:
O impressionismo abriu caminho para duas
grandes correntes na prática estética. De um lado
se alinharam os movimentos que defendiam a
liberdade da arte e se posicionaram contra os
valores estabelecidos pela cultura artística da
sociedade burguesa. Esses movimentos – expressionismo, futurismo, cubismo, dada, surrealismo,
etc – declararam a separação definitiva entre
religião, arte e ciência, cada uma delas com sua
própria categoria de valores. De outro lado, existiam as correntes construtivistas, funcionalistas e
produtivistas que pretendiam a união entre arte
e produção industrial. Esses movimentos almejavam a construção de uma nova sociedade, onde
a racionalidade aplicada ao desenvolvimento
dos meios de produção conduziria à superação
das contradições sociais, políticas e econômicas.
(Bomfim, 1998: 78).
O ideal de se unir arte e indústria caminhou
no sentido de criar um “Estilo Internacional”,
segundo o qual existe uma forma perfeita para
cada objeto a se projetar. Desenvolveu-se a partir
das atividades da Bauhaus, fundada em Weimar
Capa do almanaque da Escola de Arte Wchutemas
El Lyssitsky: Moscou, 1927 (Construtivismo russo)
em 1917, e teve seu apogeu na Escola Superior
da Forma, fundada em Ulm, 1953.
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uma estética bossa nova
Bossa Nova e Design
O racionalismo estético teve ressonância no Brasil do progresso industrial: em 1950, o curso experimental ministrado pela arquiteta Lina
Bardi no Instituto de Arte Contemporânea do MAM de São Paulo
buscava “formar jovens que se sintam ligados à arte industrial
e que sejam aptos para desenhar objetos, nos quais a racionalidade da forma e o gosto correspondam ao progresso e à
mentalidade atual” (Bomfim: 1998, 125). Antes da fundação da
ESDI em1963– primeiro curso superior de design da América
do Sul –, Max Bill, ligado à escola de Ulm, propõe em 1956,
durante conferência no MAM do Rio de Janeiro, a instalação de
uma Escola Superior da Forma no museu. Problemas políticos e
econômicos inviabilizaram a escola no MAM-RJ, que acabou por ser
fundada anos depois nos arcos da Lapa.
Paralelamente ao embate estético e às tentativas de instalação de um curso de
design no Brasil, faziam-se prementes modernizações no campo gráfico brasileiro no final dos anos 50,
visando à adequação das novas tecnologias. Alguns dos destaques da renovação na mídia impressa da segunda metade da década de 50 são a editora Civilização Brasileira, o novo Jornal do Brasil, o projeto arrojado
da revista Senhor e o desenvolvimento da indústria fonográfica brasileira “lançando talentos (no design de
capas de disco) (...) como a dupla Joselito e Mafra (...) e (...) César G. Villela, autor de projetos antológicos na
época da Bossa Nova.” (Denis, 1999: 162).
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Um design Bossa Nova?
Já foi sugerido na primeira parte da pesquisa que o projeto estético da Bossa Nova podia ser enquadrado
no paradigma modernista “forma segue função”. Em uma música que se adequava às novas tecnologias de
gravação e reprodução, tudo se pretendia moderno: a letra exata, podada de excessos; a interpretação limpa, sem personalismos; o violão minimalista que simplificava toda a batida do samba. César Villela, quando
perguntado sobre sua intenção ao produzir um design de capa de disco tão diferente do que se fazia na
época, afirma que queria “simplificar”.
Donis A. Dondis relaciona a simplicidade como uma característica da “funcionalidade”,uma das categorias
de estilo que ele propõe para a linguagem visual. Para Dondis, a funcionalidade é um método compositivo
“estreitamente ligado à regra da utilidade e a considerações de ordem econômica” (Dondis, 1973: 178), não
sendo, portanto, exclusivo das vanguardas européias das primeiras décadas do século XX. O funcionalismo,
porém, acabou ficando estreitamente ligado ao design moderno, e sua formulação como uma das maiores
expressões da Bauhaus.
Tudo leva a crer portanto, concluindo uma retórica circular, que vamos inserir o trabalho de César
Villela como capista da Elenco no contexto do funcionalismo da Bauhaus. Isto fica especialmente tentador
se relacionarmos o aspecto de retomada moderna na música popular brasileira através da Bossa Nova (a
que Távola e Medaglia se referem) com o design “modernista” de suas capas. Dadas as inúmeras referências
estéticas e técnicas compositivas que parecem se concretizar em seu trabalho, seria até cômodo fazê-lo. E,
como já foi destacado anteriormente do texto de Denis,“os designers da segunda fase modernista se viram
divididos entre o nacionalismo e o internacionalismo” (Denis, 1999: 162).
Sem dúvida, os postulados funcionalistas ainda pairavam nas cabeças dos artistas gráficos do período,
mas seria leviano propor uma adesão total de Villela àquele contexto. Por algumas razões. Uma delas é que
o autoditada Villela não percebe seu trabalho como uma extensão do funcionalismo, sugerindo até motivos
místicos para a utilização de determinado elemento. Uma segunda razão é que há uma expressividade e
49
uma estética bossa nova
análise gráfica do design do designer césar villela
liberdade de utilização de formas que não é característico daquela escola. Podemos ainda citar o certo desprezo com que Villela se refere aos designers advindos da recente ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial), fundada em 1963, cuja filosofia de ensino era inspirada nos modelos funcionalistas da escola de Ulm:
“começou um festival de logotipos. Era compasso, régua e esquadro os instrumentos” (Villela, 2001: Anexo).
De qualquer maneira, se o design de Villela não era tão somente funcionalista, teve uma metodologia
funcional. Em sua entrevista a Rodrigues, Villela afirma que o impulso criativo de seu projeto foi “a grande
poluição visual” que eram as vitrines das lojas de disco da época, fazendo com que ele se entusiasmasse em
criar um projeto que se destacasse dos demais pela simplicidade e pelo uso do preto e branco.
Na década de 60, segundo Villela, não havia interesse por parte da mídia não especializada em divulgar
o disco de um artista. Para os jornais, era como “vender um peixe” que não era seu. De forma que as capas
dos discos eram o verdadeiro chamariz dos consumidores. Villela era consciente dessa realidade e assumiu
nas suas capas a característica de display que elas teriam quando fossem às lojas.
A capa de disco naquela época era o display, era o ponto de venda na loja, ela tinha de ser atrativa, ela
é que vendia. Então as lojas expunham nas vitrines as capas, um monte de capas. Eu já tinha observado
que era uma poluição visual muito grande: mesmo as minhas ficavam confusas junto com as outras. Eu
já tinha pensado em simplificar para aparecer mais determinadas capas. (...) Então eu disse: “eu tenho
de vencer essa barreira visual”. (Villela, 2001: Anexo).
As capas da Odeon e da Phillips passam a seguir o projeto de Villela para a Elenco
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ruptura e estrutura
Até este momento, pretendeu-se apresentar em
que cenário surge a Bossa Nova, suas inspirações,
aspirações e características. Propôs-se uma analogia
ao paradigma modernista e sugeriram-se pontos de
contato entre o movimento brasileiro e o axioma
do Estilo Internacional. Em seguida, discorremos
a respeito do design brasileiro do período e suas
influências mais significativas. Finalmente, falamos
Cartaz de Herbert Mayer, 1926 (Funcionalismo)
das idéias funcionalistas e como Villela se colocava
nesse contexto.
Desde a introdução, nos referimos a uma “ruptura no design de capas de disco”,promovida pelo trabalho
de Villela, como a motivação principal de nossa pesquisa, bem como a identidade visual do movimento que
se estruturou em torno daquele design. Persistem duas perguntas básicas ainda sem resposta:
1)
Que ruptura foi esta e porque assim se configurou?
2)
O que havia de tão excepcional no projeto de Villela para promover uma onda de capas inspiradas
nas suas idéias?
Tanto à primeira quanto à segunda pergunta, já se anunciaram possíveis respostas. Falemos, porém,
primeiro da segunda pergunta, que indicará o caminho para a resposta da primeira.
O que havia de tão excepcional no projeto de Villela para promover uma onda de capas inspiradas nas suas
idéias?
Villela foi muito bem sucedido ao captar a essência modernista do projeto da Bossa Nova: o clean, o
essencial, o conteúdo, a expectativa do público jovem de classe média, carente de produtos feitos para ele
51
uma estética bossa nova
Bossa Nova e Design
e ávido por modernidade.“A Bossa Nova era simplicidade, a leveza do som e a clarividência musical de seus
criadores”, diz Villela (Folha de São Paulo, 2000: D-9). Associou essas questões à estética modernista que pairava sobre as cabeças dos designers e da sociedade brasileira em pleno neo-positivismo industrial. Neste
ponto, é importante frisar mais uma vez os pontos de contato entre a Bossa Nova, sofisticada música urbana
de câmara, objetiva e sem acessórios desnecessários à sua música, com a estética funcionalista, cuja objetividade é sua característica principal. Assim como Menescal e Bôscoli viram em João Gilberto tudo aquilo
que estavam procurando, Villela apresentou um projeto absolutamente adequado àquela música, àquele
público e ao estado de coisas do Brasil pré-golpe militar.
Que ruptura foi esta e porque assim se configurou?
Parte desta pergunta foi respondida no parágrafo anterior. Villela trouxe ao design de capas de disco
conteúdos da estética contemporânea que ainda não haviam tido penetração nesta área de projeto. Ao
assumir o preto e branco, a simplicidade e a objetividade (característica dessa estética funcionalista), suas
capas divergiram totalmente das demais. Villela deixa transparecer que a utilização dos elementos característicos do design funcionalista foi subordinada à sua intenção de simplificar e destacar seu projeto dos
outros discos. Ingênua antropofagia?
Outro ponto importantíssimo, como já foi abordado anteriormente, é a percepção da função de display que
exercia a capa de disco. Ao projetar tendo em vista esta característica, Villela também foi pioneiro e visionário.
Visionário de um Brasil que estava prestes a desaparecer: em breve, quem devorará será a mídia e as
estruturas de poder. A capa-display perderia brevemente a função, com o incremento da mídia televisiva e
a inserção do artista no cotidiano do leitor/ expectador.
Villela iria para os Estados Unidos depois do golpe militar de 1964. A Bossa Nova iria para os Estados
Unidos depois do golpe militar de 1964. A Escola de Ulm não iria para os Estados Unidos, mas, coincidentemente, também desapareceria depois do golpe de 1964. A utopia modernista cedia lugar a uma outra forma
de se conceber e perceber o mundo: o pós-modernismo.
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Bossa Nova e Design
uma estética bossa nova
CÉSAR
Análise gráfica do trabalho do designer
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54
A análise gráfica a ser empreendida nesta pesquisa será desenvolvida da
seguinte forma: primeiramente, iremos fazer uma análise geral do projeto gráfico
desenvolvido por Villela para a gravadora Elenco, a ser chamado, para referência,
de design da simplificação. Destacaremos suas características fundamentais, as
técnicas e partidos gráficos utilizados de acordo com os princípios sugeridos por
Donis A. Dondis em seu livro a Sintaxe da linguagem visual e estabeleceremos comparações com as capas de disco de outras gravadoras do mesmo período. Em um
segundo momento, analisaremos individualmente quatro capas representativas
do trabalho de César:
a)
O amor o sorriso e a flor (Odeon), João Gilberto: 1960 – primeira tentativa
de Villela em direção ao design da simplificação.
b)
Maysa (Elenco), Maysa: 1963 – uma das primeiras capas da Elenco e,
talvez, a mais conhecida dentre todas elas.
c)
Bossa, Balanço, Balada (Elenco), Sylvia Telles:1963 – interessante pela
mudança na forma de representação da cantora.
d)
A Bossa Nova de Roberto Menescal e seu conjunto (Elenco), Roberto Menescal: 1963 – uma capa que foge bastante ao conceito empregado na
Elenco.
e)
Nara (Elenco), Nara Leão: 1964 – disco considerado marco da transição
Bossa Nova/MPB.
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O design da simplificação
A grande motivação de Villela, como já foi exposto anteriormente – e pode ser comprovado na sua
entrevista – foi a “grande poluição visual” que eram as vitrines das lojas de discos da época. As capas dos
discos, carentes de divulgação em outras mídias, tinham uma característica de display: era pela capa que
o consumidor comprava o disco. As capas deviam, portanto, ser atrativas. Contudo, no momento em que
eram expostas junto com as demais, o resultado era uma explosão de cores e estilos diversos que em nada
contribuíam para a percepção de uma capa individualmente. Villela percebe a necessidade de diferenciar
seu trabalho e começa a desenvolver o que ele chama de “simplificação”: toma o partido do monocromatismo, apresenta soluções tipográficas criativas, composições inusitadas e efeitos fotográficos ainda não
utilizados comercialmente. Suas propostas podem ser observadas na capa do disco O amor, o sorriso e a flor,
de 1960, de João Gilberto. A idéia, porém, não foi bem recebida pela gravadora Odeon, na qual trabalhava
como freelancer, e ele teve de aguardar outra oportunidade para pô-la em prática.
Villela afirma que havia uma prerrogativa de se utilizar nas capas dos discos a foto do artista. Pelo que
se pode deduzir de seu depoimento e das capas coletadas na pesquisa durante o levantamento de dados,
fotografias que apresentassem o artista de forma objetiva, sem interpretações estéticas. Aproveitava-se
o artista que poderia ter apelo visual junto ao público feminino/masculino e escondiam-no atrás de uma
paisagem, ou ilustração, no caso de serem “muito feios”:
Havia por aqui uma espécie de cultura de “capa de disco”. Conheciam-se os conceitos básicos: num
disco de cantor ou cantora, punha-se a foto do intérprete; num disco de orquestra (ou nos de cantores
muito feios), apelava-se para uma paisagem ou para uma modelo. Era raro haver uma integração entre
o estilo da capa e o tipo de música gravada no disco. (Folha de São Paulo, 2000: D-9).
São exemplos interessantes desta “cultura da capa de disco” a que Ruy Castro se refere em reportagem
sobre César Villela da Folha de São Paulo o disco Para ouvir amando, de Waldir Calmon (Gravadora Copacabana – não temos referência da data precisa do disco), com uma modelo recostada em um sofá, e o LP Carícia
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análise gráfica do design do designer césar villela
uma estética bossa nova
(Odeon), capa de Villela para o disco Sylvia Telles em 1957.
Portanto, talvez somente fosse possível uma transgressão a esses postulados em uma gravadora pequena, como a Elenco. E um designer que estivesse interessado em mudar os rumos das coisas e tivesse
criatividade e inteligência para inovar. César, mesmo na Odeon, sempre trabalhara com total carta branca.
Nem o artista, nem os diretores interferiam em seu trabalho. Muitas vezes, quando fugia muito dos padrões,
ou propunha algo muito “ousado” para a época, pediam que não repetisse essas idéias, como no caso
d’O amor o sorriso e a flor, de João Gilberto, e em uma outra oportunidade, em que ele usa o detalhe do seio
descoberto uma mulher. “A Odeon pedia e a gente maneirava” (Villela, 2001: Anexo).
Quando César chega à Elenco, em 1963, já tinha um conceito para por em prática e nenhum diretor
comercial para tolher seus experimentos. Antes, porém, das capas, vieram as fachadas dos shows do Bon
Gourmet, cujas fotos em alto contraste foram posteriormente utilizadas para os discos.
Villela diz que seu trabalho na Elenco foi a primeira programação visual em disco (quem sabe a única, no
sentido de padronizar os discos de uma gravadora) e
afirma que não tinha influências de outros capistas.
Não obstante, era interessado no que Piet Mondrian
propunha para o De Stijl e no design da Bauhaus.
Segundo ele, a “simplificação” que ele trouxe para as
capas de disco, promovendo uma ruptura nesta área
de projeto, não teve a intenção de “adequar” o design
de capas à estética funcionalista. De muitas formas,
contudo, as características do funcionalismo da
Bauhaus parecem se concretizar em seus projetos.
Recorreremos a Dondis para levantar estas
características. Esta autora relaciona simplicidade,
simetria, angularidade, previsibilidade, estabilidade,
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uma estética bossa nova
análise gráfica do design do designer césar villela
seqüencialidade, unidade, repetição, economia, sutileza, planura, regularidade, agudeza, monocromatismo
e mecanicidade como técnicas da funcionalidade. Das técnicas sugeridas, algumas são mais explícitas e
intensas, enquanto outras parecem não se realizar de todo. Há ainda outras características presentes em
estilos teoricamente opostos à funcionalidade que acontecem no trabalho de Villela. Dondis propõe espontaneidade e ousadia como técnicas do “expressionismo”. A ousadia, especialmente, parece estar presente
nos discos da Elenco como um todo, citando os exemplos de Maysa, 1963, onde Villela capta a característica
mais marcante da cantora, os olhos expressivos e dramáticos, e os estoura sob alto-contraste na capa, e a
tipografia trabalhada no disco Nara, 1964 (além, é claro, de todo o trabalho fotográfico utilizado, desde o
precursor O amor, o sorriso e flor). Quanto à espontaneidade, há o exemplo do disco A Bossa Nova de Roberto
Menescal, 1963, onde há peixinhos quase rabiscados, casuais, na capa do disco.
Como já foi relatado anteriormente, propor uma adesão total do autoditada Villela ao funcionalismo
seria uma falha. Suas capas, porém, parecem buscar uma estética que vinha se desenvolvendo e ganhando
adeptos fervorosos desde a fundação da Bauhaus, em 1919. Paralelamente, havia o interesse por parte do
público jovem pela modernidade, inflamado pela construção de Brasília. Um design modernista, para um
público moderno e uma música de vanguarda, era o que poderia haver de mais adequado (e desejável)
para aquele momento. Em métodos e técnicas o resultado que ele atinge tem características explicitamente
funcionais: na observação da situação de projeto, na simplicidade, equilíbrio e monocromatismo.
Como características mais marcantes de seu projeto gráfico para a Elenco, além da supracitada simplicidade, são:
Monocromatismo – plano branco com títulos e elementos gráficos pretos;
Tipografia trabalhada – títulos estourados, em grandes proporções ou compostos de maneira inusitada,
algumas vezes desenhada à mão, outras alteradas para obter resultado inesperado/ousado;
Fotografias em alto-contraste – ou com efeitos de solarização, obtendo máxima atenção do observador
e dramaticidade;
58
análise gráfica do design do designer césar villela
uma estética bossa nova
Quatro pontos vermelhos – esta é talvez a característica mais interessante: Villela afirma que esta idéia veio
da criação do logotipo da Elenco, um spot com um ponto vermelho apoiado no N do nome da gravadora.
Tendo que colocá-lo na capa do disco, ele insere mais três pontos da mesma cor, pois “quatro, esotericamente, significa harmonia” (Villela: 2001: Anexo), o que tinha a ver com a música gravada no disco. Os quatro
pontos vermelhos também conferiam ritmo à composição e identificavam o trabalho de Villela na Elenco
das demais gravadoras que vieram a copiar sua fórmula e até do capista (Eddie Moyna) que deixou em seu
lugar quando foi para os EUA, em 1964. É ainda um diferencial claro do racionalismo estético presente nas
idéias da Bauhaus e no design funcionalista que costuma ser percebido em suas capas.
Quando deixa o Brasil na época do golpe militar, Villela deixa seu legado para ser repetido pelas demais
gravadoras que gravavam Bossa Nova e seguido por designers como Eddie Moyna, que o substitui na maioria das capas da Elenco. Villela é um pouco duro com
Moyna, afirmando que, ao incluir novos elementos,
“as capas voltaram a ser como antes” (Villela, 2001:
Anexo). Moyna dá prosseguimento à estética desenvolvida por Villela e, aos poucos vai tomando algumas
liberdades, e conseguindo resultados interessantes,
como em Lennie Dale e o Sambalanço Trio (Elenco),
Lennie Dale, 1965.
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Análise gráfica de cinco capas de Villela
a)
O amor o sorriso e a flor (Odeon), João Gilberto: 1960
Esta é uma capa para o segundo disco de João Gilberto, contratado da Odeon. Representa a primeira tentativa de Villela em direção à simplificação das capas e um embrião do projeto gráfico que ele desenvolverá
posteriormente para a gravadora Elenco. Difere do projeto da Elenco em alguns aspectos:
•Na fotografia do artista é utilizada uma técnica fotográfica conhecida como solarização, ao invés
do alto-contraste que seria emblemático nas capas da Elenco. Há, entretanto, entre as capas da
Elenco a que tive acesso em minha pesquisa, uma na qual a solarização aparece. Porém, nesta
capa de Lennie Dale e o Sambalanço Trio, (de Eddie Moyna) também se eliminam os meios-tons,
de modo que também nesta é ulilizado o alto-contraste. Na capa de O amor, o sorriso, e a flor, ao
contrário, os meios-tons estão presentes, dando uma textura quase metálica à foto.
•Na titulagem, mais contida e intimista, além de a tipografia não sofrer alterações na ação do autor.
•Na ausência dos pontos de cor que Villela utiliza nas capas posteriores. Esta ausência, no entanto,
é de certa forma suprida pela repetição do nome do artista, também de forma não seqüencial,
como ocorre com os pontos de cor da Elenco.
O monocromatismo já se faz presente, assim como a simplicidade e economia de elementos.
A capa está composta da seguinte forma: sobre o plano branco da capa, a fotografia solarizada do artista
ocupa o canto inferior esquerdo, alcançando quase toda a extensão da altura do impresso, sangrando para a
esquerda e para baixo. A foto é tirada do plano médio do artista de perfil, com o violão em posição diagonal.
Do perfil do rosto artista, pode-se divisar tão somente sua face, já que a técnica utilizada na foto apaga por
completo seu pescoço e parte de trás da cabeça. A foto mostra o cantor e instrumentista totalmente concentrado, com os olhos fechados. À altura de seus olhos, Villela posiciona o nome do artista, em caixa alta,
sobre o título do disco, em caixa baixa, ambos com corpo 24, aproximadamente. A tipografia do título é uma
fonte sem serifa bastante estendida, bem próxima de uma helvética. O designer repete o nome do artista
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análise gráfica do design do designer césar villela
uma estética bossa nova
mais cinco vezes, com a mesma tipografia e em caixa baixa, mas com tamanhos e posições diferentes. Numa
diagonal ascendente, formada com o braço do instrumento e o título do trabalho, estão posicionados em
corpos senão iguais, muito semelhantes (18, provavelmente), duas dessas repetições. A primeira, do canto
inferior esquerdo ao canto superior direito, aparece em posição normal, enquanto que a seguinte tem um
giro de 180 graus. Alinhadas à primeira repetição do nome do artista, encontram-se mais duas repetições:
uma a 90 graus em uma linha ortogonal vertical a partir da extremidade esquerda da primeira repetição, à
altura da mão do violão, portanto abaixo; e uma outra sem giro algum em uma linha ortogonal horizontal,
posicionada à esquerda da face do cantor, portanto aonde deveria estar sua cabeça. Estas duas repetições
também parecem ter o mesmo tamanho de letra (em torno de 9). Em um corpo intermediário, possivelmente 14, há a última repetição nesta mesma tipografia, no canto superior esquerdo, sangrando à altura do
“r” de gilberto. Há ainda a assinatura do cantor abaixo do título, à altura de sua mão esquerda, o que ajuda
a equilibrar a composição. A logomarca da gravadora aparece alinhada a uma linha ortogonal vertical à
extremidade esquerda do título do disco. O plano escuro que contém o “O” dobrado da Odeon sangra na
extremidade superior do disco. Este posicionamento da
logo, sangrando na extremidade superior, embora não
na mesma localização, repete-se em discos posteriores
da Odeon (João Gilberto, João Gilberto, 1961 e O cantor
e compositor, Marcos Valle, 1965). Não se sabe, porém, se
esta utilização da logo se estabelece a partir do redesenho
da mesma (o disco Carícia de Sylvia Telles, 1957, apresenta
uma logo mais antiga, que não permitia esta utilização, e o
Chega de Saudade, 1959, não tem a logo impressa na capa),
ou é inaugurada neste segundo disco de João Gilberto.
61
uma estética bossa nova
análise gráfica do design do designer césar villela
Percebe-se nesta análise morfológica a intenção clara do designer em estabelecer um alinhamento
preciso dos elementos utilizados na capa, denotando uma preocupação com uma característica da “funcionalidade” a que Dondis se refere. O partido tomado com a utilização da diagonal posicionando elementos
para estabelecer este eixo de composição, também é uma característica funcional. Dondis coloca a seqüencialidade, outra técnica da composição funcional como oposto do acaso. Talvez para o observador menos
atento, a utilização do nome repetido do artista em posições e ângulos diversos fosse uma transgressão a
esta regra. Depois da decomposição da capa, através da análise morfológica, fica claro que nenhum elemento
é utilizado nesta capa por “acaso”. Todos obedecem a um sentido de composição objetivo, onde cada um
tem sua função: seja para estabelecer o eixo diagonal, seja para equilibrar a composição. Na repetição do
nome do artista, pode-se sugerir ecos da poesia concreta, movimento artístico brasileiro inspirado no Estilo
Internacional.
b) Maysa (Elenco), Maysa: 1963
Esta capa é uma espécie de síntese do design da simplificação de César Villela. É do primeiro ano da Elenco e sua
composição é baseada em apenas dois elementos: o nome
e os olhos da cantora.
Sobre o fundo branco da capa, Villela estoura, sangrando para ambos os lados, MAYSA, em tipografia sem
serifa, helvética ou semelhante, em corpo superior a 500
pontos. Em um LP de 12 polegadas, o título do disco ocupa quase a metade de sua altura (5,5 polegadas) e toda
a extensão de sua largura. Está posicionado ½ polegada
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análise gráfica do design do designer césar villela
uma estética bossa nova
abaixo da metade da altura do LP, deixando pouco menos de duas polegadas acima, onde ele posiciona a
logomarca da gravadora. Abaixo do título, Villela se utiliza da característica mais marcante da artista: os olhos
extremamente expressivos e carregados de dramaticidade. Em alto-contraste sobre o fundo branco, ocupando quase toda a extensão da largura da capa, a expressividade da foto alcança o máximo de intensidade,
comunicando-se de imediato e diretamente com o expectador. Segundo Dondis, esta seria uma característica
das mais importantes do estilo expressionista, sendo um diferencial à estética predominantemente funcional aplicada no trabalho de Villela. Os olhos da cantora estão em leve perspectiva, o esquerdo ligeiramente
mais próximo do direito, conferindo movimento à composição. Esta sensação de movimento é intensificada
em virtude dos olhos não estarem alinhados a uma linha ortogonal horizontal imaginária, como se a foto
tivesse sido tirada naquele instante e o expectador estivesse sendo contemplado pela artista. O título preto
e de grandes proporções pesa substancialmente sobre os olhos da cantora, estabelecendo mais um componente intenso à composição. Os três pontos vermelhos, que com o ponto utilizado na logo formam quatro,
número esotericamente harmônico, estão dispostos de forma quase casual, também estabelecendo ritmo
ao trabalho. Apoiado à extremidade superior da altura do “M”, no encontro da haste vertical com a diagonal
da letra, um pouco à direita do ângulo agudo formado pelas duas hastes, aparece um ponto. Um “segundo”
ponto forma um ângulo com o “primeiro” e está situado um pouco abaixo da extremidade inferior do “M”. Se
dividíssemos a segunda diagonal do “M”, o centro de seu raio estaria situado exatamente na metade desta
haste. O terceiro ponto se encontra abaixo do “A” e um pouco acima do olho esquerdo de Maysa, como um
sinal. A logo da Elenco, com o quarto ponto esotérico, acima do título, está na bissetriz do “Y”.
A carga dramática da composição é um paralelo à interpretação da cantora, que não tinha muitos
pontos de contato com o modo de cantar dos intérpretes da Bossa Nova. Ainda assim, ela se insere no contexto da estética da Bossa Nova, assim como a linha de projeto que Villela se utiliza para criar a linguagem
visual da Elenco.
63
uma estética bossa nova
c)
análise gráfica do design do designer césar villela
Bossa, Balanço, Balada (Elenco), Sylvia Telles:1963
Esta capa tem um interesse especial na medida que há uma diferença interessante na forma de apresentação da artista em relação a uma outra capa de Villela, de 1957. Além disso, é um trabalho ousado no qual os
elementos gráficos utilizados parecem fazer pender a composição para o lado direito.
Os elementos gráficos usados na composição interagem, atraindo o foco da atenção para a metade direita
da capa de fundo branco. Um campo de força é formado
em torno da fotografia da artista, intermediada por pontos
de exclamação estilizados que indicam o nome do disco.
À haste de um dos pontos citados a foto se apóia, exibindo a intérprete de corpo inteiro, cabelos curtos e roupa
aderente ao corpo, com calças e blusa de gola rolê. Com
estilo eminentemente moderno, a cantora, de microfone
na mão, parece estar no palco, em ação. No alto-contraste
utilizado nesta foto, as únicas áreas claras aparecem na
face direita da intérprete, no seu antebraço esquerdo e
em detalhes de sua mão direita e do microfone, sendo
isto suficiente para a compreensão da silhueta e da expressão da cantora. Ocupa três quartos da altura da
capa, a partir da extremidade superior, da qual tem um pequeno deslocamento de ½ polegada. O nome do
disco, “Bossa, balanço, balada”, forma com o nome da intérprete uma elipse em torno da foto. As três palavras, em letra bastão condensada, aproximadamente corpo 60, orbitam em torno da cantora e se integram
pela ação dos pontos de exclamação. “Bossa” aparece na altura do cotovelo da artista, alinhado à direita
pela mediana da largura da capa. Partindo da órbita da elipse iniciada com “Bossa”, o nome da intérprete é
o “satélite” a seguir, quase alinhado na extremidade superior da mediana da altura. Não comparece com o
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análise gráfica do design do designer césar villela
uma estética bossa nova
mesmo peso, porém. Expresso em fonte estendida sem serifa, como na capa de O amor, o sorriso e a flor, corpo
24, é o elemento mais à esquerda do trabalho, o que acaba por equilibrar a composição pela característica
singular da fonte adotada em relação às demais. Em seguida, aparece “Balanço”, deslocado à esquerda em
relação à “Bossa” e à mediana da largura. Está alinhado pelo topo a uma linha ortogonal horizontal que passa
pela quarta parte da altura e pelo pé da artista. Abaixo e à direita, está “Balada”, ocupando o quarto inferior
direito da capa e concluindo a elipse. Os três “pontos de exclamação” têm o auxílio dos pontos vermelhos
de Villela para indicar a direção da leitura. Todos os três apresentam a mesma proporção, em torno de seis
polegadas, metade do quadrado que forma a capa do disco. Têm a forma de uma gota e cada um deles
apresenta uma rotação particular. O primeiro aparece de ponta-cabeça ao lado de “Bossa”, com um ponto
vermelho no interior de seu ponto preto, tangenciando à esquerda sua circunferência. Sua haste em forma
de gota descai sobre o segundo, rotacionado a 270 graus, entre o círculo preto e sua haste. Neste, também
um ponto vermelho se aproxima no interior do ponto preto à esquerda de “Balanço”. No terceiro, o único em
posição natural, sua haste quase toca a haste do primeiro. Se os isolássemos, o segundo e o terceiro pontos
de exclamação, seria possível estabelecer um ponto médio na altura total, de forma que a rotação dos dois
elementos fizesse com que o ponto inferior recaísse exatamente sobre a posição do superior. Esta é uma
característica simétrica interessante que pode passar despercebida na contemplação da composição como
um todo. O ponto vermelho sobre o círculo preto do terceiro ponto de exclamação situa-se à sua direita,
mais uma vez indicando a direção da leitura de “Balada”. A logo da Elenco aparece na quarta parte superior
da capa, alinhada ao centro na mediana da largura.
Uma das razões da escolha desse trabalho é um paralelo estabelecido com uma capa de César Villela
para a mesma intérprete. Nesta capa, de 1957, a cantora, estudante de ballet, aparece vestida com um figurino de dança, sentada, como num palco, depois de um espetáculo, uma caracterização repleta de significados românticos e líricos. Seis anos depois, alinhada aos propósitos da Bossa Nova, a artista ganha uma
interpretação totalmente moderna, inserindo-se perfeitamente na ideologia da nova música. Outro ponto
65
uma estética bossa nova
análise gráfica do design do designer césar villela
interessante a se abordar é a diferença desta capa em relação à capa com
elementos expressivos de Maysa, cantora que acompanhou a “onda” Bossa
Nova, diferentemente da capa menos emotiva de Sylvia Telles, que apostou
no movimento desde o seu início. O recurso aos pontos de exclamação é
uma particularidade desta capa. Eles conferem ritmo e intensidade a esta
composição inusitada.
d) A Bossa Nova de Roberto Menescal e seu conjunto (Elenco), Roberto
Menescal: 1963
Este trabalho tem interesse pela sua característica lúdica e sua composição muito mais solta, menos aferrada aos princípios de uma estética funcionalista – muito embora as técnicas e os elementos essenciais da
linguagem visual de Villela estejam ainda presentes: a capa de fundo branco; o monocromatismo; o altocontraste; os três pontos vermelhos auxiliares.
Villela aproveitou a personalidade esportiva para criar a capa. O cantor, adepto da caça submarina, é
fotografado sorridente, de roupa e máscara de mergulho, snorkels e pé de pato, com o violão apoiado a seus
pés. O designer desenha peixes estilizados, que servem para abrigar o nome dos integrantes do conjunto
de Roberto Menescal. A fotografia em alto-contraste de corpo inteiro do artista é colocada no segmento
esquerdo da capa, à semelhança da de Sylvia Telles. Neste trabalho, a foto ocupa ¾ da altura. À sua direita,
são caracterizadas, despreocupadamente, as linhas de contorno de quatro peixes. Delineadas como por um
pincel ou outro instrumento de ponta grossa, as linhas determinam somente o contorno dos peixes e fazem
alusão à sua boca, tendo um ponto escuro para situar o olho do animal. Os quatro peixes à direita da foto
do artista têm aproximadamente metade da altura da capa, dos ombros do violonista aos seus tornozelos.
A cabeça do primeiro e do terceiro apontam para a esquerda, enquanto que a cabeça do segundo e do
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análise gráfica do design do designer césar villela
uma estética bossa nova
quarto se volta para a direita. Da boca de cada um deles sai uma linha ortogonal horizontal, não superior
a 2 pontos, que vão se encontrar, duas a duas, às extremidades do plano da capa. As linhas emitidas pelo
primeiro e terceiro peixe propagam-se para esquerda, passando por trás da foto, respectivamente à altura
dos ombros e acima dos joelhos, reaparecendo do outro lado para encontrar a extremidade da capa. As
linhas emitidas pelo segundo e quarto peixe vão no sentido inverso e servem para delimitar uma área vazia
onde será colocada a logomarca da gravadora. Há um quinto peixe abaixo da foto. Menor do que os quatro
primeiros, ele se posiciona no canto inferior esquerdo da capa. No espaço em branco dentro das linhas de
contorno dos peixes, Villela escreve em letra bastão estendida, caixa alta e em corpo 12, o nome de cada
músico do conjunto. A tipografia usada para escrever o título do disco é desenhada à mão e bastante informal, não apresentando rígido alinhamento horizontal das letras. Villela parece incorporar características de
fontes serifadas sobre um padrão basicamente “bastão”. Nas letras sempre em caixa alta, em corpo superior
a 180, há elementos que se repetem, como uma meia lua no “R” e no “B” que serve para compor a letra sem
se integrar completamente ao seu desenho. “A”,“D”,“M”,“N”,“T” e “V” não incorporam elementos diferentes a
seu desenho basicamente bastão, apesar da característica caligráfica. O “S” e o “C” têm um arremate serifado na extremidade superior, enquanto que na inferior
terminam sem particularidades. O “O” é como um recorte
onde a emenda não se faz perfeita e também apresenta um arremate nas extremidades. O “E” é a letra mais
curiosa. Parece ser composta de um “F” com um “rabo” a
seu pé. Além disso, apresenta também um arremate na
haste horizontal do meio. O “L” tem um arremate na sua
haste horizontal. O título do disco é separado em duas
partes: “A Bossa Nova” e “de Roberto Menescal”. Dividida
em duas linhas, “A Bossa Nova” ocupa um quadrado de 7
67
uma estética bossa nova
análise gráfica do design do designer césar villela
polegadas no canto superior direito do trabalho. O “A” aparece em corpo inferior, próximo a 72pt, deslocado
à esquerda e um pouco acima de “Bossa”. Abaixo dele, há um ponto vermelho, à metade da altura do corpo
de “Bossa”, que está deslocada da extremidade superior e muito próxima da extremidade direita. Abaixo dela,
alinhada em relação ao “A”, está “Nova” deixando um espaço de mais de uma polegada para a extremidade
direita. Abaixo de Nova, passam as linhas que delimitam a área vazia onde a logo está disposta. No outro
segmento, embaixo da logomarca, “de Roberto Menescal” não ocupa uma área tão bem delimitada quanto
à analisada anteriormente. “Roberto” é a palavra mais à direita, mas não está alinhada a nenhuma das duas
palavras escritas no canto superior direito. Podemos dizer que está alinhado pelo topo a uma linha ortogonal
horizontal imaginária que passa pela terça parte da altura da capa. À sua esquerda, alinhado pela base, “de”
tem tamanho semelhante ao “A” de “A Bossa Nova”.“Menescal” tem o quinto peixe a sua esquerda, como que
apontando a direção da leitura. Ele deixa um espaço à sua direita: um quadrado de 2,2 polegadas de largura
no qual está escrito “e seu conjunto”, em duas linhas centralizadas, fonte bastão, compensada, corpo 30. Os
outros dois pontos vermelhos ainda não descritos se posicionam ao lado do pescoço do artista, no canto
superior esquerdo, e acima do segundo “R” de Roberto, no canto inferior direito. Não têm qualquer função
mais objetiva nesta composição, servindo mais para conferir ritmo ao trabalho.
Esta capa destoa amplamente das demais escolhidas para análise. É mais complexa, contendo mais
elementos e incluindo acessórios e recursos inexistentes nas outras. A diferença é ainda mais óbvia em
relação à Nara e Maysa onde são utilizados somente os elementos essenciais do projeto gráfico da Elenco.
Aproxima-se mais da capa de Bossa, Balanço, Balada, de Sylvia Telles, onde também existem acessórios e
a utilização da foto é semelhante. Nesta, porém, os elementos gráficos são distribuídos por toda a área da
capa, ao contrário da outra, onde o foco de atenção se volta para o lado direito da composição.
68
análise gráfica do design do designer césar villela
uma estética bossa nova
e) Nara (Elenco), Nara Leão: 1964
Esta capa é das mais simples, utilizando sobre o plano
branco somente o nome da cantora (que também dá
nome ao disco), uma foto em alto-contraste de seu busto,
a logomarca e os três pontos auxiliares.
O desenho e a forma de se compor o nome da cantora
é o aspecto mais interessante deste trabalho. Com uma
tipografia estendida sem serifa, de haste bastante grossa,
Villela decompõe o nome em duas sílabas, alinhando-as
pela esquerda. Funde o “N” com o “R” abaixo dele, de modo
que a haste vertical das duas letras coincidam. O espaço
horizontal do “N” é maior que o do “R”, possibilitando a
utilização de uma mesma haste diagonal para desenhar os dois “As”. As hastes horizontais dos “As” dão estrutura para o desenvolvimento das duas outras hastes diagonais, que se expandem acima da altura da letra,
terminando em uma seta. O resultado parece indicar o equilíbrio diagonal da composição. Este trabalho
tipográfico é o elemento que comparece com mais peso na capa, com mais de 4 polegadas na altura das
hastes unidas do “N” e do “R”, sem contar a expansão das hastes diagonais dos “As”. Está situado mais acima
e à esquerda da foto da intérprete, que ocupa o canto inferior direito se expandindo um pouco acima da
metade da altura da capa. A seta do “A” da segunda sílaba aponta a fotografia em auto-contrate da artista,
de semblante tímido e com a cabeça girada sobre seu ombro direito. A foto sangra pela base, de modo que
só fica representado o busto da cantora. Os três pontos vermelhos, quase alinhados em uma reta, indicam a
diagonal inversa e o logo da Elenco está centralizado ao título do disco, situando-se acima do mesmo.
O resultado alcançado por Villela nesta capa talvez seja um dos mais interessantes dentre todos os seus
trabalhos pesquisados. As setas nas extremidades das hastes diagonais dos “As” tanto indicam o equilíbrio
69
uma estética bossa nova
análise gráfica do design do designer césar villela
diagonal da composição, como podem apontar para a cantora, então gravando seu LP de estréia, e sugerir
sua ascensão meteórica. Ao mesmo tempo, podem sugerir os diferentes caminhos que Nara começa a tomar
a partir deste disco (a cantora atravessa a Bossa Nova, chega à Tropicália, grava Roberto Carlos e standards
americanos, para no final da vida voltar novamente à Bossa).
70
CONsiderações finais
A ruptura no design de capas de disco promovida por Villela foi uma ilha nesta área de projeto. A função
de display que as capas exerciam naquela época, motivação inicial no design de Villela, brevemente seria
substituída pela inserção do artista numa mídia mais atenta às possibilidades de capitalização da música e
artes em geral. No Brasil, mesmo com a imprensa sob a tutela do Estado pós-64, isto pode ser exemplificado
na realização de diversos festivais musicais por emissoras de TV rivais, e na criação de programas voltados
para a música, como, no âmbito da música popular, O Fino da Bossa e Esta noite se improvisa.
A Bossa Nova e sua postura lírica e “alienada” perderia espaço no clima polarizado da época, fazendo
com que aquela forma de se criar capas de disco, tão identificada com o movimento, acabasse sucumbindo
junto com ela.
No que diz respeito a uma “adequação modernista” no projeto de capas de disco, apresentamos um quadro
no qual o design estudado se aproxima e se afasta de uma estética funcionalista. Se aproxima no uso do preto e
branco, da limpeza, da simplicidade, no método; se afasta na independência do designer na aplicação de quaisquer recursos e técnicas que julga interessante incorporar ao seu trabalho, sem se fixar a um estilo ao qual ele
nem reconhece sua adesão. Villela sublinha por diversas vezes sua total liberdade de criação, não sendo tolhido
por diretores de gravadora ou artistas, que só tinham acesso à sua capa depois de impressa.
É curioso observar que o axioma “forma segue função” presente na música bossanovista, e, de certa
forma, no design que Villela projeta para ela, tem suas origens em uma ideologia de reconstrução social,
“onde a racionalidade aplicada ao desenvolvimento dos meios de produção conduziria à superação das
contradições sociais, políticas, econômicas” (Bomfim, 1998: 77). Paradoxalmente, os fundamentos da estética
inspiradora do design de Villela tinham uma aspiração ideológica que, no acirramento dos ânimos na década
de 60, acaba por soterrar a Bossa Nova. Os artistas que a sucederam não desejavam mais seguir seu projeto.
Seja na sua temática, seja na sua forma.
71
A estética que Villela concretiza em suas capas e seus valores de limpeza, simplicidade, exatidão e
objetividade perderiam espaço para a pluralidade de ritmos e conteúdos diversos que a MPB traz para a
música brasileira. O violão sintético de João Gilberto, cujo ritmo era capaz de se moldar a qualquer tipo de
música (analogamente, como o Estilo Internacional pretendia dar conta de qualquer área de projeto), já
não era suficiente para abrigar o caldeirão cultural e político brasileiro.
72
BIBLIOGRAFIA
BOMFIM, Gustavo Amarante. Idéias e formas na história do design. João Pessoa: Ed. Universitária, 1998.
CASTRO, Ruy. Chega de Saudade. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 2000.
CHEDIAK, Almir. Songbook Bossa Nova, V.I e V.II. Rio de Janeiro: Ed. Lumiar, 1990.
DENIS, Rafael Cardoso. Uma introdução à história do design. São Paulo: Ed. Edgard Blücher, 1999.
DONDIS, Donis A. A sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2000.
Enciclopédia Nosso Século, 1930/1945 V.II, 1945/1960 V.I, 1945/1960 V.II. São Paulo: Ed. Abril Cultural,1980.
LAUS, Egeu. “As capas de disco no Brasil: os primeiros anos”. In Arcos - Design, cultura material e visualidade.
Rio de Janeiro: 1998.
MAIA, Alexandre Barros. Bossa Nova – Relatório de PPD Conclusão. Rio de Janeiro: Departamento de Artes
da PUC-Rio, 1998.
MEDAGLIA, Júlio. “Balanço da Bossa Nova”. In: CAMPOS, Augusto. O Balanço da Bossa. São Paulo: Ed.
Perspectiva S.A., 1993.
MORAIS, Fernando. Chatô. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1994.
Mostra de capas de disco no Brasil. São Paulo: ADG, 1999.
MOTTA, Nelson. Noites tropicais. Rio de janeiro: Ed. Objetiva, 2000.
RODRIGUES, Jorge Luís. Anos fatais: a estética tropicalista e seu desdobramento no design gráfico nos anos 70
– Tese de mestrado. Departamento de Artes da PUC-Rio, por publicar.
Seminário Da Bossa Nova à Tropicália. Rio de janeiro, 2001.
TÁVOLA, Arthur da. 40 anos de Bossa Nova. Rio de Janeiro: Ed. Sextante, 1998.
TINHORÃO, José Ramos. In Jornal do Brasil. Rio de janeiro, 1979.
VELOSO, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo: Ed. Companhia das Letras, 1997.
VILLELA, César. Entrevista a Jorge Luís Rodrigues. Rio de Janeiro, 2001.
WAINER, Samuel. Minha razão de viver. São Paulo: Ed. Record, 1989.
73
ANE X O
76
capas de disco
As capas foram coletadas, basicamente, da pesquisa de Egeu Laus publicada na Revista Arcos V. I e do acervo do
Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro. No caso das imagens tiradas da Revista Arcos, sofremos o problema de
terem sido digitalizadas a partir de um impresso, o que por si só já compromete o resultado. As capas do MIS-RJ foram
fotografadas em um ambiente que tinha apenas o mínimo de lumiosidade para o registro fotográfico e maioria delas
tinha um invólucro plástico o que propiciava reflexos indejáveis.
Infelizmente, nem todas as capas poderão ter todas as informações desejáveis disponíveis: no caso da pesquisa
de Egeu Laus, ele nem sempre as disponibiliza. Não sabemos se por elas não estarem realmente impressas, ou porque
o pesquisador optou por não utilizá-las. Podemos, no entanto, afiançar, baseado em sua pesquisa, que as capas datam
de 1950 a 1958. Este problema poderia ser resolvido com uma entrevista com o autor, o que, desafortunadamente,
não foi possível, apesar das nossas insistentes tentativas. No caso das capas coletadas do livro de Ruy Castro, não há a
referência de autores; no entanto, podemos conferir datas na discografia que ele apresenta ao final do livro.
Há uma situação curiosa no que diz respeito às capas de César Villela. Ele afirma (Villela, 2001: Anexo) que deixou
o Brasil em 1964, tendo executado as 18 primeiras capas da Elenco. Segundo ele, utilizando sempre os três pontos
vermelhos auxiliares. Curiosamente, existe a capa de A nova Bossa nova de Roberto Menescal e seu conjunto, na qual seu
nome consta dos créditos. Como o disco é de 1963, suspeitamos de um engano de Villela quanto a esse aspecto. Há
outras capas, no entanto, de anos posteriores à sua saída do Brasil, que também apresentam seu nome nos créditos.
Essas, porém, não parecem ter sido feitas por este designer. O exemplo mais vivo deste enigma é a capa de Contrastes,
de Odete Lara, de 1966. Mesmo assim, quando disponível, mantivemos o crédito expresso no disco.
Outro enigma é a capa de Surf Board, de Roberto Menescal, do ano de 1964, cuja autoria ninguém parece concordar: Castro afirma que é de Villela; Villela diz que é de Eddie Moyna e na contra-capa do disco consta o nome de
Rubens Richter como autor do layout.
Uma útima curiosidade é a respeito dos discos verdes da Elenco (ex: Antônio Carlos Jobim com Nelson Riddle e
sua orquestra: 1967). Segundo Achille, colecionador de discos que encontrei em minha primeira visita ao MIS-RJ, é um
padrão adotado para os discos gravados no exterior. A informação procede, pelo menos no que diz respeito aos discos
com esta característica coletados na pesquisa.
77
a)
Capas de disco de 1950 a 1958
Noel Rosa (Continental), Noel Rosa:
1950
Ilustração: Di Cavalcanti
Capa: Joselito • Foto: Mafra
Boite (Musidisc), Nestor Campos e seu
conjunto de boite: ?
Carnaval do meu tempo (Polydor): ?
Ilustração: F.K.
Ilustração: Lan
Eu vou p’ra Maracangalha (Odeon),
Dorival Caymmi: ?
Vamos dançar? (Continental): ?
Capa: Páez Torrez
Turma da Gafieira (Musidisc):?
Capa: Joselito • Fotos: Mafra
78
Canções praieiras (Odeon), Dorival
anexo
uma estética bossa nova
Caymmi: 1954
Ilustração: Dorival Caymmi
(RCA Victor): ?
Autor desconhecido
?
Capa: Joselito • Foto: Studio Musidisc
Fafá Lemos e seu violino com surdina
The Ink Spots (Musidisc), The Ink Spots:
Dorival Caymmi à interpretação de
Jacques Klein (Sinter), Jacques Klein: ?
Ilustração: Paulo Brèves
Silva: ?
Autor desconhecido
Waldir Calmon: ?
Foto: Avila
Gafieira (Musidisc), Gadê e Walfrido
Para ouvir amando... (Copacabana),
A Patativa do Norte (Odeon), Augusto
79
uma estética bossa nova
Calheiros: 1956
Autor desconhecido
anexo
Capa: Ronald • Foto: Diler
Na batida do samba (Continental),
Neuza Maria (Sinter), Neuza Maria: 1956
Nelson Golçalves (RCA Victor), Nelson
Gonçalves: ?
Autor desconhecido
80
Risadinha com Vadico e sua orquestra: 1956
Capa: Páez Torres
Noel Rosa na voz romântica de
Sucessos em desfile no2 (Odeon)
Carolina Cardoso de Menezes: ?
Autor desconhecido
Sambas em desfile (RCA Victor):?
Autor desconhecido
Show Copacabana (Copacabana): ?
anexo
Autor desconhecido
Autor desconhecido
Ribamar ao piano (Columbia): ?
Silvio Caldas (Columbia):?
uma estética bossa nova
Capa: Páez Torres
Carícia (Odeon), Sylvia Telles: 1957
Capa: Villela
81
b) Capas de Bossa Nova de 1959 a 1968
Chega de Saudade (Odeon), João
Gilberto: 1959
Capa: Villela • Foto: Chico Pereira
O amor o sorriso e a flor (Odeon), João
Gilberto: 1960
Capa: Villela • Foto: Chico Pereira
João Gilberto (Odeon), João Gilberto:
1961
Capa: Villela • Foto: Chico Pereira
Antonio Carlos Jobim (Elenco), Tom
Jobim: 1963
Capa: Villela • Foto: Chico Pereira
Maysa (Elenco), Maysa: 1963
Capa: Villela • Foto: Chico Pereira
Telles:1963
Capa: Villela • Foto: Chico Pereira
Bossa, Balanço, Balada (Elenco), Sylvia
A Bossa Nova de Roberto Menescal
82
anexo
uma estética bossa nova
(Elenco), Roberto Menescal:1963
Capa: Villela • Foto: Chico Pereira
Vinícius & Odete Lara (Elenco), Vinícius
& Odete Lara: 1963
Capa: Villela • Foto: Chico Pereira
Um Sr. Talento (Elenco), Sérgio Ricardo:
1963
Capa: Villela • Foto: Chico Pereira
A nova Bossa Nova de Roberto Menescal
e seu conjunto (Elenco), Roberto
Menescal e seu conjunto: 1963
Capa: Villela • Foto: Chico Pereira
Bossa session (Elenco): s/r
Capa: Villela
Kaleidoscópio Elenco (Elenco): s/r
Capa: Villela
Kaleidoscópio 2 (Elenco): s/r
83
uma estética bossa nova
anexo
Capa: ?
Capa: Villela • Foto: Chico Pereira
Nara (Elenco), Nara Leão: 1964
Opinião de Nara (Phillips), Nara Leão:
Surf Board (Elenco), Roberto Menescal:
1964
Capa: Rubens Richter • Foto: Chico
Pereira
Capa: Eddie Moyna • Foto: Chico Pereira
Lennie Dale e o Sambalanço Trio
(Elenco), Lennie Dale:1965
Rio capital de Bossa Nova (Elenco): ?
Capa: Eddie Moyna • Foto: Chico
84
1964
Capa:?
anexo
uma estética bossa nova
Pereira
Capa: ? • Foto: Galdino Silva
Capa: Eddie Moyna
O cantor e o compositor (Odeon),
Marcos Valle: 1965
Bud Shank, Donato, Rosinha de Valença
(Elenco), Bud Shank, João Donato,
Rosinha de Valença: 1965
Manhã de carnaval (Phillips), Nara Leão:
1966
Capa:?
Contrastes (Elenco), Odete Lara: 1966
Capa: Villela
Rosinha de Valença (Elenco), Rosinha
de Valença: s/r
Capa e foto sem registro
Reencontro (Elenco), Sylvia Telles, Edu
Lobo, Tamba Trio e Quinteto Villa
Lobos: 1966
Capa e foto sem registro
85
uma estética bossa nova
A 3a dimensão de Lennie Dale(Elenco),
Lennie Dale:1967
Capa: Villela
1968
Capa: ? • Foto: Galdino Silva
Tamba Trio (Phillips), Tamba Trio: 1968
86
anexo
As músicas de Edu Lobo por Edu Lobo
(Elenco), Edu Lobo: 1967
Capa e foto sem registro
e sua Orquestra (Elenco): 1967
Capa: João Baptista Canto • Fotos: Ed
Thrasher e Manchete
Antônio Carlos Jobim com Nelson Riddle
Viola enluarada (Odeon), Marcos Valle:
Capa e foto sem registro
Entrevista de CÉSAR VILLELA
Esta entrevista foi concedida, em fevereiro de 2001, a Jorge Luiz Rodrigues, mestrando em design pela PUC-Rio.
Qual foi sua formação? Você é autoditada? Como você
definição do que ia ser como capa, então fomos ordenando. O
chegou até a capa de disco?
André Midani dirigia esse setor de publicidade da Odeon com
Essas coisas acontecem na infância. Desde garoto já começava
o Aloysio de Oliveira, que era o nosso diretor artístico fantástico,
a rabiscar. Quando eu estava no Laffaiete, tinha um professor de
e me apoiaram muito, me deram toda liberdade.
história, o Passos, que tinha uma revista chamada Humanidades,
para a qual eu já desenhava. Depois, tinha um outro professor
Você tinha idéia do que se fazia lá fora? Você tinha influ-
com uma revista chamada Gente Nova e eu desenhava também
ência lá de fora?
para essa revista. Depois criaram um jornal lá dentro, chamado
Não tinha influências, como a nossa música era diferente da
Nosso Jornal. Eu já venho dali. Eu fui estudando, mas fui sempre
deles, eles tinham características diferentes. Aliás as capas da
me envolvendo com desenho. Até que eu comecei a trabalhar
Capitol da época marcaram: eram bonitas, muito bem feitas
para a revista Tico Tico, Vida Infantil, essas revista infantis. Fazia
graficamente. Eram as melhores capas. Mas as européias eram
cartoon, histórias em quadrinhos. Na Rio Gráfica eu também
muitos ruins. A Decca, aquelas capas inglesas, francesas, eram
ilustrava as revistas infantis. O meu primeiro emprego foi em
muito ruins, dentro do nosso ponto de vista. E nós começávamos
publicidade na falecida Mesbla. E depois, naquela época, não
a criar uma personalidade, porque não era só eu que estava
existia faculdade de propaganda, de publicidade, de desenho,
trabalhando naquela época. Na Musidisc, tinha o Joselito e o
nada. As coisas eram passadas e repassadas de colega para
fotógrafo Mafra, bom fotógrafo. Eu levei o Chico Pereira para
colega. A gente trabalhava com os mais experientes e nós
trabalhar comigo, tinha pretensões de criar, dirigia as fotos.
íamos aprendendo, melhorando. Eu tive grandes colegas mais
Chico era um excelente profissional, tecnicamente, fazia tudo
velhos que foram grandes professores. Naquela época não havia
muito bem feito. Ganhamos alguns concursos de capa até surgir
nem faculdade de jornalismo. Quando eu entrei pr’O Globo
a Elenco. A Elenco é que definiu.
eu ilustrava Henrique Ponjetti, Lessa, os cronistas da época.
O indivíduo precisava ter o cientifico, mas se ele tivesse cinco
Como surgiu o design do preto e branco?
anos de jornalismo, o dono do jornal podia registrá-lo como
Há tempos eu queria fazer na Odeon uma mudança nas
jornalista. Era praticamente uma faculdade. Nesse caso, o Ro-
capas de disco. Antigamente não tinha televisão e os jornais
berto Marinho, que nessa época ainda estava em um nível que
praticamente não falavam de artistas, eles não eram notícias
podíamos conversar com ele, me colocou como jornalista. Do
como hoje. Se você quisesse fazer algum artista aparecer no
Globo eu fui para a publicidade: a Standart Propaganda e outras
jornal você tinha que pagar. O cara tinha que fazer um anúncio,
agências, onde trabalhava como freelancer. Até cair em disco
pois eles achavam que falar do artista ia vender disco. Então o
no final de 1957. O LP estava embrionário ainda, não tinha uma
Roberto Marinho, que não tinha TV, não tinha companhia de
87
uma estética bossa nova
anexo
disco, era especificamente o jornal, não queria falar nada. Só se
as fotos em alto-contraste. Nós fizemos as fachadas da Maysa,
o artista matasse alguém é que saía na primeira pagina. Depois
do Lennie Dale, dessa turma que se apresentava lá e com as
veio a Revista do Rádio e o Roberto criou a Radiolândia, então
próprias fotos fomos fazendo as capas da Elenco. Tem um certo
falávamos sobre o artista mais não se falava do disco. E o que
folclore que o preto e branco era porque não tinha dinheiro.
acontecia: a capa de disco naquela época era o display, era o
Não era. Se eu determinasse “vamos fazer a cores”, seria, porque
ponto de venda na loja, ela tinha de ser atrativa, ela é que ven-
o Aloísio não estava nem aí. Não era por economia.
dia. Então as lojas expunham nas vitrines as capas, um monte
Foi na realidade a primeira programação visual em capas. Mas
de capas. Eu já tinha observado que era uma poluição visual
eu não fiz pensando em ser a primeira, eu fiz porque já vinha
muito grande: mesmo as minhas ficavam confusas junto com
pensando na simplificação. Eu usava quatro bolinhas vermelhas
as outras. Eu já tinha pensado em simplificar para aparecer mais
por causa do logotipo que eu tinha criado, onde o N formava
determinadas capas. Hoje mudou muito o conceito. Tem tele-
um spot com a luzinha vermelha. Então eu disse: “já que tem
visão, rádio, clips, um monte de coisa, o ponto de vista é outro.
que botar um pontinho vermelho, vou botar quatro”, porque,
Os cds mudaram muito a concepção de capas. Então eu disse:
esotericamente, quatro queria dizer harmonia, o que estava
“eu tenho de vencer essa barreira visual”. O Chico era professor
ligado à música. E assim ficou marcado.
de fotografia na ABASF e havia excelentes fotógrafos fazendo
coisas diferentes, que não eram usadas comercialmente. Aí
Você tinha noções do “funcionalismo”?
eu disse: “Chico, tem umas coisas aí que talvez a gente possa
Eu me baseio muito em Mondrian para a minha pintura. Como
pegar para mexer a coisa” e tal. A primeira tentativa é uma capa
conceito, a Bauhaus tinha um desenho de simplificacão, porque
solarizada de João Gilberto (O amor, o sorriso e a flor). Não era
saiu da art noveau, da art deco. Era confuso. Você se lembra dos
alto-contraste era solarização. Mas o departamento comercial
postes de iluminação do Rio? Tinham uma saia toda bordada,
da Odeon não gostou muito, eles queriam fotografias do artista
cheia de voltinha, então industrialmente as coisas eram mais
na capa. Aí, eu tive que dar uma paradinha. Mas logo surge a
difíceis de serem feitas em produção. A Bauhaus criou uma
oportunidade de lançar a Bossa Nova como movimento. Mas a
concepção nova de simplificação para ajudar inclusive na
Odeon não queria apostar na Bossa Nova, só o Aloyso de Oliveira
produção, então os postes passaram a ser retinhos, limparam
queria. Aí partimos...
visualmente as coisas. E Mondrian sacou e simplificou. Foi
Eu já tinha essa idéia da simplificação quando o Aloysio criou
dentro desta concepção de simplificação que eu resolvi fazer
a Elenco. Ele não tinha um tostão no bolso, saiu da Odeon,
o meu trabalho.
entusiasmou-se, e foi fazer a gravadora. Todos os artistas colaboraram com ele, ninguém estava a fim de dinheiro, nem Jobim,
Como era a relação com a gráfica?
e o Aloísio também era desorganizado à beça. Para ele, dinheiro
Eu tinha o privilégio de ter como amigos o Aloyso e o André
para ele era uma coisa espiritual, etérea. Eu e o Chico fizemos
Midani. Eles eram funcionários da Odeon e eu trabalhava como
as capas e nunca ganhamos um tostão, nunca recebemos um
freelancer, o Chico também. Eu comprava tinha uma tabela,
dinheiro. Mas antes das capas havia os shows da Bossa Nova
cobrava X, e fim de papo. Eles tinham tanta confIança e mim
no Bon Gourmet. Fazíamos a fachada e aproveitamos para usar
que não queriam saber, me davam o nome do lançamento, o
88
anexo
uma estética bossa nova
nome dos discos, às vezes os trocávamos opinião, e eu saia só
pronta. Ele me ligou para casa às 11 horas da noite e ficou me
com aquilo. Eu tinha liberdade. Não precisava mostrar um layout
explicando por que não gostou da capa, que era “tristezinha”.
a eles, me viciei muito nisso. Eles iam ver depois, gostando ou
Ele ficou até as 2 da manhã me explicando o que era tristezinha.
não. Às vezes, eles não gostavam, mas não me impediam de eu
Uma coisa de louco! Eu queria dormir e ele me explicando o
continuar com a minha liberdade de trabalho. Eu fazia a arte
que era tristezinha. Ele desenvolveu um termo sobre o que era
final. Não existia fotoletra naquela época, não tinha computador
tristezinha que eu até hoje não sei o que é tristezinha. Ele não
para fazer fotocomposição, não existia nada. Então, eu pedi
gostou da capa.
para o André mandar vir dos Estados Unidos um catálogo de
tipografia, fotografei-o todo e fiz fotoletras dali; fiz negativo e
A tipologia desta capa já é uma coisa muito moderna.
tirava várias cópias e montava-as. Por exemplo: eu pegava a foto
Eu procurava fazer tudo muito alinhado. Mas tem um erro
do Chico, o cromo, ampliava no prisma, marcava o lugar da foto,
fotográfico: apareceu a sombra do flash lá atrás. Mas não tinha
botava o título e mandava para São Paulo, onde era a gráfica.
como, porque esta era a melhor foto.
Já vinha pronto, não me perguntavam nada, não dava tempo.
Às vezes mal impresso, às vezes bem impresso.
As fotos eram feitas de comum acordo?
Íamos para o estúdio e eu armava a situação. O Chico trabalhava
Você não via nem o fotolito?
com a Rolleyflex dele, eu olhava às vezes através do visor, dava
Eu já via a coisa pronta, não tinha controle porque era em São
ok, e o Chico disparava. Os artistas eram todos muitos carinho-
Paulo. O departamento comercial não mexia no que eu fazia,
sos com a gente. Também, naquela época, a gente não ouvia
me respeitavam. Também havia umas questões moralistas.
falar de maconha, cocaína. Se tinha, era uma coisinha ou outra.
Naquela época as coisas eram difíceis. Uma vez eu botei uma
Falava-se ligeiramente que o João era da esquadrilha da fumaça.
mulher com o seio de fora, um detalhe, e choveram reclamações:
Era um ambiente mais sadio, tinha aquela turma que saía para
“como é que eu vou levar um disco desse para casa?”. A direção
uma bebedeira, um chopinho, era mais tranqüilo.
da Odeon pedia pra não fazer, a gente ia maneirando.
Como foi a historia da capa do LP Surfboard?
Como era a relação com o fotógrafo e com os artistas?
Essa capa não é minha, o Ruy cita no livro, mas essa não é minha.
Muito boa. O artista não dava palpite, ele não tinha acesso às
Eu fiz as dezoito primeiras capas da Elenco, e resolvi ir para os
capas dele. Depois quando surgiram os produtores indepen-
Estados Unidos, já estava saturado. Começou a revolução de 64,
dentes, cada artista tinha um produtor, e aí o artista escolhia
o mercado começou a ficar difícil. Deixei um amigo do Chico
quem faria a capa. Trazia o amigo e aí começou a ficar um pouco
que era designer também, o Eddie Moyna, no meu lugar. O Eddie
amador. Hoje em dia não, hoje já é mais profissional com o cd.
que fez essa capa. O Eddie modificou as capas, incluindo novos
O Gê da universal, Geraldo Alves Pinto, é um excelente capista,
elementos, aí as capas voltam a ser como antes.
ele já tem um grande controle, os artistas já não dá tanto palpite. Mas no meu tempo, eles nem sabiam, só iam ver a capa
Dentre as suas capas qual a que você mais gosta?
depois. Tanto que a capa do LP Chega de Saudade, o João só viu
A Odeon tinha lançado uma espécie de capa de plástico, o es-
89
uma estética bossa nova
anexo
tereoplástico, não sei se você conhece. Era uma capa de papel
tipo. Era compasso, régua, esquadro os instrumentos.
envolvida em plástico que um japonês inventou e a Odeon
comprou a patente dele. Então eu fiz uma capa original do Bola
Você não usava esses instrumentos?
Sete, o violonista. Era bem bolada porque ninguém tinha uma
Usava, mas eles só usavam isso. A publicidade nasceu do ilus-
capa igual à do outro. Eu botei em preto e branco Bola Sete e
trador. Não eram designers, eram ilustradores. Na publicidade,
a foto dele redondinha em preto impresso. Soltei seis bolas de
quando um cara queria fazer um anúncio, chamava um dese-
cores dentro, jogadas, de modo que você mexia e elas se mexiam
nhista, ilustrador. Às vezes, o ilustrador mesmo fazia o texto.
também. Essa capa é uma que se destaca pela originalidade.
E, no Brasil, tivemos grandes ilustradores, e temos ainda hoje.
Naquela época, tínhamos o Sami Mattar, um grande pintor, o
Nessa época você tinha contato com outras pessoas que
Benício, um grande ilustrador, o Lutz, o Gutenberg, que está
estavam fazendo capa de disco? O que era design na época?
nos EUA, Fernando Dias da Silva que está nos EUA, grandes
Essa palavra era usada?
ilustradores. E, antes disso, o J. Carlos. O ilustrador que dava
Não, era desenhista, capista, ou então diretor de arte. Então,
base à publicidade, fazia os layouts. Era tudo muito baseado
eu era diretor de arte, mas eu nunca gostei do título, achava
em ilustração. Quando veio a ESDI, começou a perder-se o ilus-
pretensioso. Eu botava simplesmente layout de César, fotos
trador, o cara já não precisava desenhar, precisava ter um ritmo
de Chico. Não havia necessidade. As agências de publicidade
diferente. E o ilustrador foi ficando à parte. Depois começou a
estavam criando este termo art director. Mais tarde, eu vim a ser
se dosar um pouco, o designer com ilustração. Hoje em dia, a
presidente do Clube de Diretores de Arte do Brasil, mas muitas
ilustração no Brasil caiu muito, por causa do computador. Quem
coisas já tinham se sedimentado, já tinha voltado dos Estados
sabe desenhar vai para o EUA.
Unidos, foi outra coisa. Mas naquela época era isso. A idéia de
design tinha sim, na Europa, mas para nós nada significava...
Era desenhista.
Em 63 é fundada a ESDI...
Aquela primeira turma estava muito ligada à régua e esquadro,
começou um festival de logotipos, todo mundo fazendo logo-
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Este livro foi composto nas tipografias Myriad Roman
e Alternate Gothic 2, impresso na Sir Speedy e
encadernado na gráfica Dois Irmão LTDA.

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