REFLEXOS DO LACONISMO NA PUBLICIDADE

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REFLEXOS DO LACONISMO NA PUBLICIDADE
REFLEXOS DO LACONISMO NA PUBLICIDADE CONTEMPORÂNEA
Acadêmico: Aline Rafaella de Souza.
Orientador: Prof. Dr. João Kogawa.
RESUMO: A formação discursiva publicitária contemporânea apresenta na construção
de seu discurso o laconismo, ou seja, forma breve de dizer. Essa característica remonta
o discurso bélico da Polis militar espartana, visto que a economia de palavras em Esparta era muito precisa para o comando dos soldados. Apesar da distância temporal entre a
Polis espartana e a publicidade atual, é possível encontrar uma transcendência do discurso econômico e objetivo da região da Lacônia (onde habitavam os espartanos) para o
discurso publicitário na contemporaneidade. A concisão e a objetividade das propagandas que visam o convencimento do comprador em pouco tempo e em poucas palavras,
bem como o uso da maioria dos verbos no modo imperativo, refletem a brevidade do
discurso militar impregnado nas situações de comando. Tendo como base teórica o conceito de formação discursiva de Michel Foucault que a define, resumidamente, como
uma regularidade no discurso, propõe-se uma análise do uso frequente do laconismo na
publicidade atual. As propagandas da coca-cola, usadas como material de análise, denotam as características do “breve dizer” na materialidade de seu discurso. As poucas palavras escolhidas e bem elaboradas carregam o efeito semântico desejado sem o auxílio
de uma explicação detalhada. Encontra-se, portanto, o laconismo em evidência no discurso publicitário atual atendendo às emergências da sociedade contemporânea.
Palavras-chave: Laconismo; enunciado; discurso; publicidade.
Introdução
Conforme o Dicionário Aurélio, O minidicionário da Língua Portuguesa, laconismo é definido como “Modo breve, lacônico, de falar ou escrever.” (FERREIRA,
2001, p. 415). Essa deriva de uma região grega conhecida por Lacônia, antigamente
habitada pelos espartanos.
Sabendo-se que Esparta denominava-se como Polis Militar, essa característica
influencia também as formas de dizer desse povo, ou seja, a maneira como eles materializam seu discurso. Conforme Pedro Paulo Funari, “[...] Como falavam pouco, os espartanos o faziam com grande precisão e concisão, esse tipo de fala passou a ser conhecida
como lacônica.” (FUNARI, 2002, p. 31). É nessa linha de raciocínio que pretendemos
dar segmento a este artigo. Isto é, investigaremos as modalidades enunciativas características do “dizer breve” em nossa contemporaneidade como um espaço de atualização
das formas bélicas que remontam à Antiguidade.
Partimos da hipótese de que o laconismo pode ser visto ainda hoje nos discursos
da mídia, notadamente, naqueles que se apresentam como publicidade. Assim como um
militar precisa ter um discurso breve para garantir a economia da ação e dos movimentos, o dizer publicitário também precisa ser breve para ser econômico. A esse respeito,
vale retomar um enunciado lacônico bastante comum e conhecido: “Time is Money”.
Lançando uma visão panorâmica sobre a publicidade atual, logo percebemos o
laconismo como forma privilegiada na construção do discurso. O enunciado será construído a partir deste caráter militar a fim de produzir, em poucas palavras, os efeitos
desejados.
Para delinearmos nosso trajeto analítico é preciso que tenhamos em vista certos
conceitos da arqueologia foucaultiana. Michel Foucault em sua obra A ordem do discurso diz:
Suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo
tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo
número de procedimentos que têm por função conjurar seus poderes e
perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e
temível materialidade. (FOUCAULT, 1996, p. 8).
Neste artigo discorreremos sobre formação discursiva publicitária como um agregado de discursos que ganha existência na forma de enunciados lacônicos. Nosso
objeto é, dessa forma, o “dizer breve”. Acreditamos que tal maneira de dizer está relacionada com as urgências de nossa atualidade e, sob essa ótica, tomamos a publicidade
como formação discursiva que se mostra em evidência no que concerne às formas de
dominação atuais.
O interesse pela herança discursiva bélica carrega consigo a especificidade e objetividade do uso do laconismo. É uma pesquisa que focaliza como um discurso pode
ser construído a partir de poucas palavras e carregar um efeito semântico eficaz e persuasivo.
Nessa análise selecionamos publicidades da coca-cola1 por serem aquelas que
demonstram o dizer lacônico. O enunciado construído a partir de poucas palavras e a
escolha dessas palavras retoma o discurso bélico de Esparta.
1
O leitor poderá verificar essas publicidades mais abaixo.
A formação discursiva publicitária sob a ótica foucaultiana
Para observarmos o laconismo no discurso publicitário atual, cabe-nos apreender
as condições de emergência dos enunciados responsáveis pela sua atualização. Para isso, tomamos como norte o conceito de formação discursiva que se apresenta relevante
como princípio de agrupamento – ainda que com fronteiras relativas – dos discursos.
Sabendo que o discurso é composto de enunciados, a formação discursiva consiste no agrupamento desses discursos. Para uma compreensão detalhada, Michel Foucault, em sua obra, A Arqueologia do Saber, define formação discursiva a partir de quatro hipóteses – que posteriormente serão refutadas – de relação entre enunciados.
Na primeira hipótese o autor infere: “[...] os enunciados diferentes em sua forma,
dispersos no tempo, formam um conjunto quando se referem a um único e mesmo objeto.” (FOUCAULT, 2010, p.36). Diante disso, a formação discursiva seria um princípio
de agrupamento fundado no caráter dos objetos comuns dos quais tratariam os enunciados.
No entanto, essa hipótese esbarra na particularidade das modalidades enunciativas, ou seja, – mesmo estando relacionados entre si, – por uma aparente repetibilidade
objetal do enunciado – a historicidade impede que se fale de um mesmo e único objeto.
Em relação ao campo médico, por exemplo,
[...] [O] objeto que é colocado como seu correlato pelos enunciados
médicos dos séculos XVII ou XVIII não é idêntico ao objeto que se
delineia através das sentenças jurídicas ou das medidas policiais; da
mesma forma, todos os objetos do discurso psicopatológico foram
modificados desde Pinel ou Esquirol até Bleuler: não se trata das
mesmas doenças, não se trata dos mesmos loucos. (FOUCAULT,
2010, p. 36).
Sendo assim, entendemos que o mesmo objeto modifica-se de acordo com a modalidade enunciativa da qual faz parte. Dessa forma, conclui-se que uma formação discursiva não se dá a partir de observações de enunciados ligados ao mesmo objeto.
A segunda hipótese se apresenta a partir da forma e do encadeamento dos enunciados. Tomando a forma dos enunciados como principal objeto de análise, Foucault
comenta que a medicina do século XIX parecia ter uma mesma série de enunciados que
seguiam o mesmo padrão de descrição, sendo assim, era possível supor uma unidade de
escrita, ou seja, uma formalidade no sistema de transcrição. Dessa forma poder-se-ia
supor que o discurso coincidiria com padrões uniformes de descrição. Contudo, obser-
vando o discurso clínico, conclui-se que o mesmo alterou-se com as transformações da
ciência e, assim, o sistema da informação foi modificado. “Todas essas alterações, que
nos conduzem, talvez hoje, ao limiar de uma nova medicina, depositaram-se lentamente
no discurso médico, no decorrer do século XIX.” (FOUCAULT, 2010, p. 38). Diante
dessas observações, desconstrói-se a hipótese de que uma formação discursiva se dá a
partir de sua forma e do encadeamento dos enunciados.
A terceira hipótese apresentada: “[...] não se poderiam estabelecer grupos de enunciados, determinando-lhes o sistema dos conceitos permanentes e coerentes que aí se
encontram em jogo?” (FOUCAULT, 2010, p. 39).
A essa questão, o autor responde que, apesar de toda a gramática estabelecida e
organizada oferecer grandes possibilidades de análise do discurso, ainda assim ela é
limitada, pois há o surgimento de novos conceitos e que de tal forma, alguns podem até
ser incompatíveis com os precedentes:
Não buscaríamos mais, então, uma arquitetura de conceitos suficientemente gerais e abstratos para explicar todos os outros e introduzi-los
no mesmo edifício dedutivo; tentaríamos analisar o jogo de seus aparecimentos e de sua dispersão. (FOUCAULT, 2010, p. 40).
Como quarta hipótese para reagrupar os enunciados, seu encadeamento e explicar as formas unitárias que se apresentam no discurso, Foucault (2010, p.48), sugere:
“[...] a identidade e a persistência dos temas.” Para isso, seria necessário observar os
temas persistentes no discurso.
Observando as ciências como a economia e a biologia, encontramos temas persistentes. No caso da biologia, o evolucionismo. Seria possível construir uma unidade a
partir de tudo o que foi proposto desde Buffon até Darwin? E na economia, temos o
tema fisiocrático, o caso da tripla renda fundiária que levou a tantos estudos e interrogações como um tema permanente.
Porém, apesar do tema permanecer o mesmo, a modalidade enunciativa se encaminha para rumos diferenciados. A evolução, no século XVIII, apresenta-se no quadro do parentesco entre as espécies. No século XIX, as análises sobre esse mesmo tema
desprendem-se um pouco dos parentescos e concentram-se mais nas modalidades de
interação de um organismo com o meio que lhe oferece condições de sobrevivência. No
caso fisiocrático, havia um jogo conceitual único, mas duas análises para a formação do
valor “[...] analisando-o a partir da troca, ou da remuneração pela jornada de trabalho.”
(FOUCAULT, 2010, p. 41).
Diante dessas análises, a quarta hipótese se desfaz, pois fica claro que não é possível definir a individualização de um discurso sob o aspecto de temas persistentes.
Mas afinal, o que é formação discursiva? Para Foucault,
No caso em que se puder descrever, entre um certo número de enunciados, semelhante sistema de dispersão, e no caso em que entre os objetos, os tipos de enunciação, os conceitos, as escolhas temáticas, se
puder definir uma regularidade (uma ordem, correlações, posições e
funcionamentos, transformações, diremos, por convenção , que se trata de uma formação discursiva (...). (FOUCAULT, 2010, p. 43).
Enfim, o que podemos entender por formação discursiva é que quando há uma
regularidade, uma ordem entre determinados enunciados que não se constitui uma ciência, mas uma forma que se submete a um conjunto de regras tem-se aí uma formação
discursiva.
Destarte, tomando como campo de análise a formação discursiva publicitária, a
qual mantém as suas regularidades e correlações, observaremos em alguns enunciados
selecionados o constante uso do laconismo, o que implica o entrelaçamento entre, pelo
menos, duas formações discursivas distintas: a bélica e a publicitária. Tal entrelaçamento leva-nos a propor que um dos avatares da FD publicitária é o campo militar, a partir
do qual as propagandas tiram sua força.
É assim que pretendemos lançar olhos sobre algumas publicidades da coca-cola,
delineando o caráter lacônico de sua modalidade enunciativa. Tal exercício nos levará a
delimitar os discursos que constituem uma forma de dizer breve em nossa contemporaneidade.
O laconismo em evidência
Observando as modalidades enunciativas publicitárias atuais, em destaque nas
publicidades da coca-cola que demonstraremos a seguir, percebemos que elas se constituem laconicamente. Essa mensagem apresentada em poucas palavras traz o essencial
de seu produto e o objetivo principal de colocá-lo como indispensável para o comprador.
Figura 12
Figura 34
Figura 23
Figura 45
As publicidades têm o dizer breve como característica principal. Os enunciados
apresentados são construídos a partir de três a seis palavras, o que denota um primeiro
ponto a respeito do lacônico. Porém, entre estas poucas palavras há a eficiência de um
discurso que produz o efeito e a compreensão desejada sem o auxílio de uma explicação
detalhada.
Ao observarmos a figura três, por exemplo, obtemos o enunciado: “viva mais
positivamente”. A relação entre as poucas palavras bem elaboradas e a correlação com o
produto em destaque derivam de uma utilização da função enunciativa típica desse anúncio publicitário. Como diz Foucault:
2
Disponível em: http://www.wandersonnogueira.com.br/colunas/35/propaganda-de-refrigerante
Disponível em: http://quasepublicitarios.wordpress.com/2010/04/16/todos-os-slogans-da-coca-cola/
4
Disponível em: http://www1.hays.be/jobs/cocacolabrasil/index.html
5
Disponível
em:
http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-478865182-placa-antiga-coca-colapropaganda-texaco-_JMM
3
[...] o enunciado circula, serve, se esquiva, permite ou impede a realização de um desejo, é dócil ou rebelde a interesses, entra na ordem
das contestações e das lutas, torna-se tema de apropriação ou de rivalidade. (FOUCAULT, 1972, p. 132).
Todas essas características podem ser avaliadas nas propagandas selecionadas. A
herança espartana do “dizer breve” aparece nesse campo enunciativo como uma aliada
precisa nos dias atuais.
Outra observação importante é o uso dos verbos no modo imperativo: abra, viva,
tome. Essas expressões retomam as características bélicas de ordem que, por consequência exercem certo “poder” sobre o alvo, quanto a isso, é notável que em uma guerra
qualquer o uso desse modo no diálogo dos guerreiros é imprescindível.
O verbo no imperativo exige, por parte de quem é comandado, uma reação, portanto, o anúncio publicitário nessas condições exige uma reação do comprador, ou seja,
que a ordem ou petição seja cumprida.
O uso do imperativo nas publicidades analisadas também pode ser considerado
como uma forma de solução em situações extremas que exigem um “alívio”. Vivemos
numa sociedade líquido-moderna em que as pessoas vivenciam o agito das ruas, do trabalho, do estresse em geral, das mudanças constantes. Como afirma Bauman em sua
obra Vida líquida,
[...] E ouçam nossos atuais e potenciais ministros e seus porta-vozes.
Eles cantam em muitas vozes, mas as canções têm um tema comum:
modernizar, modernizar, mudar ou perecer. [...] Tornar as coisas diferentes, mantê-las em movimento, é o que realmente conta: são a mudança e mais ainda a confiança e a decisão de que as coisas podem ser
mudadas que mantêm viva a esperança de satisfação. (BAUMAN,
2007, p. 170).
Pode-se imaginar como uma pessoa se sente em relação às mudanças constantes
e como se defende ou se preocupa para sobreviver ao dia-a-dia da modernidade.
Mas, para isso há uma solução: “viva o lado coca-cola da vida”. Neste caso, o
imperativo pode funcionar como um convite para o alívio do estresse, do cansaço, das
mudanças e, após um longo dia de trabalho, depois de ouvir ou ler longos discursos, o
sujeito muito preocupado com seus problemas se depara com uma mensagem curta e
objetiva: “tome coca-cola”. Dessa forma, a brevidade das palavras determina uma economia de tempo e ainda oferece uma solução repentina para o dia.
Pode-se dizer então, que a presença do laconismo nas propagandas analisadas é
evidente e, portanto, é possível notar a sua transição da formação discursiva bélica para
a formação discursiva publicitária atual.
Conclusão
A formação discursiva bélica decorrente de Esparta que, como se sabe, se utilizava muito pouco da fala, “[...] a tal ponto que os outros gregos diziam que era mais
fácil ouvir uma estátua falar do que um lacônio [...]” (FUNARI, 2002, p. 31), encontrou
espaço na sociedade atual no campo da formação discursiva publicitária. Devido às emergências do século presente, o laconismo se constitui como um forte aliado na construção do discurso publicitário.
Nas publicidades da coca-cola, por exemplo, encontramos uma referência da
atualização do discurso espartano. A economia de palavras e a objetividade do discurso
direcionado ao comprador trazem reflexos do “breve dizer” espartano no comando das
ações militares.
A construção do discurso publicitário contemporâneo sustém a mesma brevidade
discursiva decorrente da região da Lacônia. As palavras utilizadas como comando, a
objetividade e a concisão ressoam o discurso bélico espartano a fim de valorizar o curto
tempo disponível e assim, transmitir o enunciado ao público-alvo.
Referências bibliográficas
BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Rio de Janeiro: Zorge Zahar Editor, 2007.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio século XXI. 4ª Ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 18ª Ed. São Paulo: Loyola, 2009.
______. A arqueologia do saber. Petrópolis: Vozes, 1972.
FUNARI, Pedro Paulo. Grécia e Roma. 2ª Ed. São Paulo: Contexto, 2002.