1 O Turismo Negro como Experiência de Ócio Humanista

Transcrição

1 O Turismo Negro como Experiência de Ócio Humanista
O Turismo Negro como Experiência de Ócio Humanista – aproximações entre conceitos
aparentemente distantes
Dark Tourism as Humanist Leisure Experience – approximations between seemingly
distant concepts
Belmira Coutinho
Doutoranda do Programa Doutoral em Estudos Culturais das Universidades de Aveiro e do
Minho. Mestre em Gestão e Planeamento em Turismo pela Universidade de Aveiro e licenciada
em Turismo pela Universidade do Algarve.
[email protected]
Maria Manuel Baptista
Docente da área de Estudos Culturais no Departamento de Línguas e Culturas da Universidade
de Aveiro e membro do Centro de Investigação de Línguas e Culturas da Universidade de
Aveiro. Doutorada em Cultura pela Universidade de Aveiro, mestre em Psicologia da Educação,
pela Universidade de Coimbra, e Licenciada em Filosofia, pela Universidade do Porto.
[email protected]
Resumo
Neste trabalho procuramos fazer uma aproximação entre dois conceitos aparentemente muito
distantes: o Turismo Negro e a experiência de ócio humanista. O Turismo Negro diz respeito à
atividade turística em locais de alguma forma relacionados com a morte e o sofrimento. O ócio
humanista, entendido aqui na perspetiva do autor Manuel Cuenca (2000, 2010), constitui-se
como uma vivência humana, uma ocupação voluntária e prazerosa sem qualquer outro fim que
esse mesmo. Através de uma revisão de literatura, mostramos como, na realidade, uma
experiência de Turismo Negro pode ser uma verdadeira experiência de ócio humanista que
propicia a recriação do sentido que o indivíduo faz de si mesmo e dos outros.
Palavras-chave: Turismo Negro, mediação, Ócio humanista, experiência de ócio, recriação
Abstract
In this paper we have strived to make an approximation between two concepts, apparently very
distant from one another: Dark Tourism and the humanist leisure experience. Dark Tourism
concerns the tourist activity in places somewhat related to death and suffering. Humanist
Leisure, understood here from the perspective of the author Manuel Cuenca (2000, 2010), is a
human experience, a voluntary and pleasant occupation without any other purpose. Through a
literature review, we show how, in reality, a Dark Tourism experience can constitute in a true
humanist leisure experience that fosters a recreation of the understanding that individuals have
of themselves and of others.
Keywords: Dark Tourism, mediator, humanist leisure, leisure experience, recreation
1
Introdução
Fazer uma aproximação entre o Turismo Negro, atividade turística em locais de morte e
sofrimento, e o Ócio, em particular o ócio humanista do autor Manuel Cuenca, pode parecer
uma tentativa inglória de relacionar forçosamente dois conceitos que nada têm a ver um com o
outro.
Contudo, quando estamos familiarizados com os dois conceitos e as suas práticas, apercebemonos de semelhanças profundas ligadas ao carácter mais essencial e subjetivo das suas
experiências.
O Turismo Negro pode ser definido de várias maneiras, tanto do lado da oferta como do lado da
procura, todavia há um elemento comum a todas as perspetivas de análise: a ligação concreta e
identificável com a morte, ou nas atrações visitadas, ou nas motivações dos turistas.
O Ócio Humanista, segundo (Cuenca, 2010), diz respeito a experiências satisfatórias,
prazerosas, que constituem um fim em si mesmas e que resultam da autonomia do sujeito que as
vivencia, estando intimamente ligadas ao sistema de valores e significados de cada um.
Num tempo em que a multidisciplinaridade e a abordagem híbrida são tidas como o caminho a
seguir dentro da comunidade científica, atrevemo-nos a propor a ideia de que estes conceitos,
aparentemente tão diferentes, têm na realidade vários pontos em comum. Mais ainda: afirmamos
que o Turismo Negro pode ser uma experiência de ócio humanista com capacidade recriadora
do indivíduo que a experiencia.
Com esta ideia como ponto de partida, o presente trabalho assenta numa revisão de literatura focando principalmente as publicações dos autores Manuel Cuenca, Clerton Martins, Philip
Stone, Philippe Ariès e Anthony Giddens – e procura identificar e explanar pontos em comum
entre Ócio Humanista e Turismo Negro.
Assim sendo, seguimos neste artigo uma estrutura que necessita de ser explicada: ao invés de
oferecermos inicialmente uma contextualização teórica para cada uma das áreas em análise,
para depois tecermos considerações sobre as suas semelhanças, optamos por levar o leitor a
refletir connosco sobre cada um dos pontos em que, no nosso entender, o Turismo Negro e o
Ócio Humanista se encontram, oferecendo por fim um resumo dos mesmos que não deve ser
encarado como uma conclusão, e sim como um ponto de partida para uma possibilidade de
leitura dos dois conceitos.
1. Ambos provêm de áreas de estudo recentes para a Academia, mas as suas raízes
são muito mais antigas
O primeiro ponto de encontro entre o Turismo Negro e o Ócio é o facto de eles constituírem
temas que só se estabeleceram como áreas de estudo académicas em finais do século passado.
O próprio conceito de Turismo Negro é muito recente: data de 1996, quando Foley & Lennon
(1996, p. 199) atribuíram essa denominação ao “fenómeno que engloba a apresentação e
consumo (pelos visitantes) de morte e locais de catástrofe reais e mercantilizados”.
Antes disso, já outros autores se tinham dedicado ao estudo da atividade turística relacionada
com a morte e o sofrimento, como Rojek, que em 1993 sugeriu a ideia de que existiriam
“Pontos Negros” no turismo, que ele considera serem “os desenvolvimentos comerciais de
locais de inumação e locais onde celebridades ou grande número de pessoas encontraram mortes
súbitas e violentas” (Rojek, 1997, p. 136), ou Blom, para o qual o “Turismo Mórbido” seria um
turismo “baseado em atrações e relacionado com uma morbidez artificial”, que “se foca na
morte súbita e que atrai rapidamente grande número de pessoas (Blom, 2000).
2
De uma perspetiva da procura, (Seaton, 1996) é outro autor que propôs uma denominação para
o Turismo relacionado com a morte e o sofrimento: Thanaturismo, o turismo em que a
“thanatopsis” (contemplação da morte) é o principal interesse dos turistas.
Foi só a partir do século XXI que os estudos sobre o Turismo Negro ganharam uma
disseminação mais ampla, com a adoção desta denominação e a popularização da definição de
Turismo Negro de Stone (2006, p. 146): “o ato de viajar para locais associados com morte,
sofrimento, e o aparentemente macabro”.
Todavia, alguns autores argumentam que a prática do Turismo Negro é muito mais antiga do
que o seu estudo académico.
Sharpley (2009, p. 4), acredita que:
“desde que as pessoas são capazes de viajar, elas são atraídas – propositadamente ou não –
para locais, atracções ou eventos que estão ligados de uma forma ou de outra com morte,
sofrimento, violência ou catástrofe.”
Stone (2006, p.147) afirma que “os exemplos iniciais de Turismo Negro podem ser encontrados
no patronato dos jogos gladiatoriais Romanos” e que o Coliseu de Roma foi uma das primeiras
atrações de Turismo Negro. As execuções públicas, “desde o período medieval até ao século
XIX” constituem também manifestações de Turismo Negro para o mesmo autor (ibid., p.147).
MacCannel (1989, citado por Sharpley, 2009, p. 5) relata que as visitas a morgues faziam
normalmente parte das visitas à cidade de Paris no século XIX, e Beech (2000, citado por
Sharpley, 2009) afirma que os edifícios militares são desde há muito atrações turísticas.
Tal como o Turismo Negro, o Ócio é também uma área de estudos recente para a Academia.
Foi em 1988 que surgiu, na Universidade de Deusto (em Bilbao, Espanha), o primeiro centro de
estudos de Ócio, o Instituto de Estudios de Ocio, primeiro como um departamento ligado à
Faculdade de Filosofia e Ciências da Educação, tendo ganho a sua autonomia perante a reitoria
em 1992 (Cuenca, 2008).
No entanto, o conceito de Ócio é muito mais antigo. A palavra ócio tem as suas raízes no latim
“otium” e no grego “skholē” (Boullosa, 2012).
A palavra grega “skholē”, cujo sentido foi absorvido pelo termo latino, tem um significado
múltiplo: tempo livre ou de “lazer”, atividades desempenhadas nesse tempo (em particular
palestras, discussões e outros exercícios de retórica), e o local onde essas palestras aconteciam,
escola (Wikimedia Foundation, 2012).
Na Época Clássica, “otium” continha também dois significados: “otium otiosum” que
significava um tempo hedónico e livre de atividades, e “otium negotiosum”, um tempo que
exigia maior envolvimento do indivíduo e em que ele se dedicava a atividades intelectuais e
contemplativas enriquecedoras (Boullosa, 2012).
Nas sociedades pré-industriais, o trabalho e as atividades lúdicas não constituíam tempos
separados (Aquino & Martins, 2007). A separação entre tempo-espaço de trabalho e lazer só
aparece depois da Revolução Industrial. Com a Revolução Industrial, o ócio torna-se oposto ao
trabalho, que é visto como a fonte de todas as virtudes, ao passo que o ócio é visto como a fonte
de todos os vícios (ibid.).
Foi a partir desta conceção que o ócio desenvolveu o significado que perdura até nos nossos
dias: preguiça, mandriice, ausência de atividade – que perdeu o carácter reflexivo da
Antiguidade Clássica e é visto como algo negativo.
3
Em contrapartida, a palavra lazer aparece-nos com uma conotação positiva e ganha importância
numa Europa que ainda sofria com os efeitos da II Guerra Mundial, a Guerra Fria e a
decadência dos regimes ditatoriais, com a Sociologia do Lazer do francês Dumazedier, que
define lazer como atividades autónomas e prazerosas de divertimento, diversão e
desenvolvimento a que o indivíduo se dedica no seu tempo livre (Aquino & Martins, 2007). A
ideia de tempo livre supõe uma oposição, ou seja, supõe a existência de tempo “não livre”. Esta
oposição leva a uma conceção negativa daquilo que temos que nos libertar, que seria o trabalho.
Com Cuenca e outros autores da escola de Deusto, assiste-se a um retomar das dimensões
reflexivas e recriadoras do ócio. Este autor assume uma perspetiva humanista do Ócio, que
coloca o indivíduo como elemento central da experiência.
Segundo Cuenca (2000), o ócio não é um tempo, livre ou ocupado, porque o tempo não define a
ação humana, nem tampouco uma atividade, porque, dependendo de quem a realiza, uma
atividade pode ou não constituir uma experiência de ócio.
Para este autor, (ibid., p.64) “a vivência humanista do ócio é, ou deveria ser, uma vivência
integral e relacionada com o sentido da vida e os valores de cada um, coerente com todos eles”.
O mesmo autor (Cuenca, 2010, p. 69) afirma ainda:
“as vivências de ócio devem abrir-se a âmbitos que sempre estiveram unidos ao
desenvolvimento do ócio humanista: conhecimento desinteressado, reflexão, contemplação,
criatividade e abertura à transcendência.”
2. Ambos podem ser experienciados em diferentes níveis de intensidade
Outro dos pontos em comum entre o Turismo Negro e o Ócio é a noção de diferentes
intensidades na sua experiência, dependentes do sujeito que a vivencia.
A ideia de intensidades no Turismo Negro é introduzida por Seaton (1996). Para este autor, que
coloca o indivíduo e as suas motivações como elemento fundamental deste tipo de turismo, o
Thanaturismo1 não é um conceito absoluto, e sim:
“a viagem a um local, completa ou parcialmente, motivada pelo desejo de [estabelecer]
encontros reais ou simbólicos com a morte, particular mas não exclusivamente com a morte
violenta, que podem ser ativados em grau variável pelas características específicas das pessoas
cujas mortes são os seus objetos focais”. (Seaton, 1996, p. 40)
Como se pode observar na figura 1 abaixo, o autor apresenta um contínuo de intensidade do
Thanaturismo que tem como base dois valores: a medida em que o interesse na morte é relativo
à pessoa ou à escala da morte, e se o interesse na morte é a única motivação da visita ou uma
entre várias (Seaton, 1996).
Figura 1 - Contínuo de Intensidade de Thanaturismo de Seaton (Coutinho, 2012).
Elemento de Thanaturismo Fraco
1
+
O interesse na morte é relativo à
pessoa e co-existe com outras
motivações.
+
Os mortos são conhecidos e
estimados pelo visitante.
Elemento de Thanaturismo Forte
+
O interesse na morte é geral e
constitui a principal motivação.
+
O fascínio pela morte não está
dependente da pessoa ou pessoas
envolvidas.
Vide ponto 1 deste texto.
4
+
Por exemplo, visitas a memoriais de
guerra que evoquem a morte de um
parente.
+
Por exemplo, visitas a cemitérios,
catacumbas, cenários de catástrofes.
Tal como Seaton o fez para o Turismo Negro, Cuenca (2010), afirma que o Ócio pode ser
vivido segundo diferentes níveis de intensidade.
Segundo o autor, as experiências de ócio são avaliadas pelo sujeito segundo o grau de satisfação
que lhe causam, quer durante o momento em que ocorrem, quer como resultado do mesmo
(ibid.). Nesta perspetiva, a experiência de ócio pode ir desde a “mera captação e aceitação da
experiência”, até à “imersão recetiva e contemplativa, capaz de proporcionar-nos uma
experiência intensa, inolvidável, catártica” (Cuenca, 2010, p. 71).
O mesmo autor afirma ainda:
“os sentimentos que suscita uma experiência memorável de ócio movem-se entre extremos
opostos, tais como temor e júbilo, ou sentimentos aparentemente antagónicos, como medo e
prazer. Isto é o que permite, em algumas ocasiões, alcançar a experiência catártica que
deixa uma agradável satisfação.” (Cuenca, 2010, p. 68)
3. Ambos têm uma importância contextualizável em características da sociedade
contemporânea
Como já vimos, pode-se argumentar que tanto o Turismo Negro como o Ócio Humanista
provêm de práticas antigas que recentemente ganharam a atenção dos académicos. Embora os
motivos pelos quais estas áreas de estudo se tornaram populares no momento em que tornaram
sejam muito mais complexos do que podemos sequer começar a abarcar no âmbito deste
trabalho, reunimos os argumentos de alguns autores sobre aspetos da sociedade contemporânea
que fazem com que o estudo e as vivências de Turismo Negro e de Ócio tenham uma
importância significativa.
No caso do Turismo Negro, a sua importância ganha significado quando se tem em conta a
atitude contemporânea perante a morte, a qual consiste em retirá-la da vida quotidiana (Giddens,
1991; Stone, 2009), escondê-la e torná-la tabu (Ariès, 1988) mas, ao mesmo tempo, deixar que
ela nos invada diariamente através dos meios de comunicação e da cultura popular (Durkin,
2003). Por outras palavras, podemos dizer que a atitude contemporânea perante a morte é
paradoxal. Stone (2009) chama-lhe o paradoxo da morte ausente/presente.
Este paradoxo está relacionado com a tendência natural da sociedade de excluir do quotidiano
todas as questões que, como é o caso da morte, podem perturbar o enquadramento social em que
decorre a vida humana, causando angústia ou uma ansiedade primordial (Kierkegaard,1944,
citado por Giddens, 1991). Segundo Stone (2009), a ubiquidade da morte faz com que ela
ultrapasse esse processo de exclusão e esteja de alguma forma presente no quotidiano, o que irá
dar origem ao contacto com a angústia, que por sua vez vai causar o que Giddens (1991) intitula
de “insegurança ontológica”.
Para além disso, ocorreu ainda um processo de dessacralização da morte (Ariès, 1988, Giddens,
1991), o qual não só fez desaparecer os tradicionais mecanismos com que o indivíduo lidava
com a morte como também a destituiu de significado público.
Segundo Giddens (1991), a sociedade contemporânea não criou novas verdades científicas que
atribuíssem novos valores e significados para a morte, e cada um é agora forçado a achar
sozinho maneira de fazer sentido da vida e da morte. Esta tarefa é ainda mais dificultada pela
diversidade cultural atual, que, ao fornecer um leque muito vasto de recursos força o indivíduo a
uma seleção angustiante para construir os seus mecanismos para lidar com a morte e responder
5
à sua necessidade intrínseca de estabilidade e segurança, ou segurança ontológica (Giddens,
1991).
É neste contexto que se enquadra a importância dos mecanismos e instituições que permitem
um certo contacto entre vivos e mortos: são os chamados mediadores da morte. Estes
mediadores são na verdade nada mais que um filtro, que permite às pessoas não lidarem com a
morte diretamente (Walter, 2009), diminuindo assim o sentimento de “insegurança ontológica”
(Giddens, 1991).
Segundo Walter (2009, p.43), as instituições mediadoras entre os vivos e os mortos na
sociedade ocidental contemporânea são: “arqueologia, sepulturas, genealogia, música, literatura,
Lei, família, língua (oral e escrita), fotografias, História”. O mesmo autor (ibid.) afirma que
serão os três últimos que dão origem às duas principais instituições mediadoras na nossa
sociedade: os mass media e o Turismo, que constituem um meio de divulgação e interpretação
de morte e sofrimento para milhares de pessoas.
A importância da experiência de Ócio, aqui entendida na perspetiva humanista, entende-se mais
profundamente se for contextualizada no valor do trabalho e na noção de tempo para a
sociedade contemporânea, bem como o seu hiperconsumismo e imperativo da felicidade.
Com a Revolução Industrial, o trabalho assumiu-se como atividade central da vida das pessoas e
valor fundamental, fonte de virtudes (Aquino & Martins, 2007). Na sociedade pós-industrial isto
sofreu uma alteração: o homem tem que cumprir as suas obrigações laborais e de subsistência,
contudo deseja ao mesmo tempo poder libertar-se delas e ter tempo para dedicar a si mesmo
(ibid.).
O modo como gerimos e vivemos o tempo tem a ver com fatores culturais; ou seja, cada sujeito
valoriza o sentido de tempo de forma única. Este tempo é diferente do tempo cronológico ditado
pelo tic-tac do relógio: é o tempo social (Aquino & Martins, 2007).
Segundo Munné (1980, citado por (Aquino & Martins, 2007), este tempo social divide-se em
quatro tipos: o tempo psicobiológico, o tempo socioeconómico, o tempo sociocultural, e o
tempo livre.
O tempo psicobiológico diz respeito às necessidades fisiológicas e psíquicas mais básicas, sendo
endogenamente condicionado. O tempo socioeconómico é aquele dedicado às necessidades
económicas, ou seja, à atividade laboral fonte de rendimento, normalmente heterocondicionada.
O tempo sociocultural refere-se à sociabilidade do indivíduo, e pode ser mais ou menos hetero
ou auto condicionada. O tempo livre é aquele em que a ação humana ocorre sem necessidade
externa. Ou, pelo menos, deveria ser. Contudo, o consumismo exerceu a sua influência e
mercantilizou este tempo, privando-o de significado (Aquino & Martins, 2007).
Na nossa sociedade, somos educados desde crianças para o trabalho, sem contemplar também a
educação para o uso do ócio. Isto pode causar um perigoso efeito de alienação, tanto no trabalho
(faz com que o trabalhador se concentre apenas nas tarefas e não seja criativo), como no tempo
vago (por não se saber como usá-lo adequadamente) (Aquino & Martins, 2007).
Não obstante, hoje o ócio aparece-nos com o sentido de tempo livre, verdadeiramente livre, em
que o indivíduo pode dedicar-se ao que o faz feliz (Cuenca, 2000) (Cuenca, 2010).
Na sociedade contemporânea, a felicidade foi como que padronizada e retirada do interior do
indivíduo (Pinheiro, Rhoden, & Martins, 2010). A busca da felicidade, ideal modernista, revelase atualmente como um imperativo baseado em experiências de consumo (Pinheiro, Rhoden, &
Martins, 2010). Nesta sociedade hiperconsumista, o indivíduo é feliz pelo que possui, e o que
possui forma a sua identidade (Pedroza, 2008).
6
Mas a própria ideia de felicidade veiculada pela sociedade é volátil; os desejos e aspirações do
indivíduo estão em permanente crescimento, em volume e em intensidade, e são rapidamente
substituídos depois de satisfeitos (Pedroza, 2008). Nesta sociedade em que é obrigatório
consumir, o próprio indivíduo foi comodificado e tornou-se uma mercadoria, algo que deve
manter-se vendável (Pedroza, 2008).
Cria-se então uma sociedade de hiperconsumistas anónimos, conjuntamente individualistas pois
todos procuram a sua felicidade no consumismo coletivo. Ao mesmo tempo, perde-se a
subjetividade da visão de felicidade como interior ao indivíduo.
Todavia, o ócio não se restringe ao tempo fora do trabalho. Tampouco se opõe ao consumo e às
necessidades do capitalismo. Pelo contrário, integra-os de alguma forma. O ócio não é um
tempo cronológico, nem é a simples ausência de atividades. Mais do que tudo isso, o ócio é uma
atitude perante a vida que se resulta de um processo de aprendizagem, que visa o crescimento
pessoal integral, a possibilidade de “ser” verdadeiramente (Aquino & Martins, 2007). Enquanto
a vida contemporânea obriga a uma aprendizagem rápida e a um esquecimento imediato, o ócio
permite uma aprendizagem natural, interiorizada pelo indivíduo (ibid.).
4. Ambos potenciam experiências de recriação e resignificação para o indivíduo
O último paralelo entre o Turismo Negro e o Ócio Humanista que abordamos neste trabalho é
talvez o mais importante e diz respeito à capacidade que ambos têm de potenciar, em quem os
experiencia, a criação de novos significados de si mesmo, dos outros, e do mundo.
O Turismo Negro é um local de excelência para que o indivíduo elabore as suas construções de
mortalidade e reflita sobre a própria condição humana, pois proporciona um ambiente
socialmente aceite e por vezes mesmo sancionado (Stone, 2009).
O modelo de Stone – figura 2 na página seguinte- procura esquematizar o modo como o
Turismo Negro pode ajudar o indivíduo a lidar com a mortalidade.
Partindo da atitude contemporânea perante a morte e do paradoxo da morte ausente/ presente, o
modelo evidencia a formação da insegurança ontológica e o surgimento da necessidade de
contactar com a morte de alguma forma. O Turismo Negro surge então como um meio que
permite esse contacto e a “reconceptualização da morte e mortalidade em formas que estimulam
outra coisa que não a angústia e o terror primordiais” (Stone & Sharpley, 2008, p. 585)
promovendo desta forma a criação de alguma segurança ontológica.
Stone (2011, p.28) identificou quatro motivos que explicam o papel do Turismo Negro enquanto
mediador da morte na sociedade contemporânea. O primeiro é o facto de o Turismo Negro
representar e comunicar a morte. O segundo motivo apontado pelo autor é o facto de o Turismo
Negro dar ao visitante a oportunidade de acumular “capital da morte”, que pode depois usar
quando precisar de refletir sobre ela. O facto de os locais de Turismo Negro constituírem locais
onde a mortalidade contemporânea é reconfigurada e revitalizada, mediando assim a
complexidade da morte é o terceiro dos motivos apontados pelo autor para explicar porque é
que o Turismo Negro é um mediador entre o indivíduo e a morte. O último motivo mencionado
por Stone (2011) é o facto de o Turismo Negro mediar o que é aparentemente macabro ao exibir
simbolicamente a morte.
Figura 2 - Consumo do Turismo Negro numa perspetiva tanatológica (Coutinho, 2012).
7
Tal como acontece com o Turismo Negro, o ócio, constitui “um espaço idóneo, possivelmente
um dos mais idóneos, para o desenvolvimento e a vivência de valores nos seus múltiplos
campos” (Cuenca, 2010, p. 69). De facto, o ócio pode mesmo ser uma fonte de equilíbrio ou
correção de desajustes e carências pessoais ou sociais (ibid.).
A perspetiva humanista do Ócio considera-o não como experiência superficial, mas como algo
profundamente enraizado no interior do indivíduo, e que tem um poder recreativo (Cuenca,
2000). Convém não confundir recreativo – de “recriar”, criar de novo, com “recreativo” – o que
proporciona deleite ou recreio, embora o ócio seja capaz das duas coisas.
Kreikemans (1973, p. 525, citado por Cuenca, 2000, p.63) define o ócio como “uma ‘recriação’,
ou seja, um meio para restabelecer a vontade e o valor de viver”. Cuenca (2000) argumenta que
o Ócio Humanista tem a capacidade de originar desenvolvimento pessoal, em experiências
transcendentes que causam a expansão de horizontes de conhecimento e compreensão.
O mesmo autor salienta ainda a importância do carácter autotélico do ócio, alegando que as suas
experiências só têm valor relativamente às necessidades de cada um (Cuenca, 2010). O ócio,
como experiência subjetiva limitada apenas pela individualidade, pode ser um meio de
ressubjetivação; uma experiência de desenvolvimento humano que permite ao indivíduo criar
novos significados de si mesmo e do que o rodeia, à medida que se vai conhecendo e ao mundo
melhor (Pinheiro, Rhoden, & Martins, 2010).
Considerações finais
8
Ao longo deste trabalho estabelecemos vários paralelismos entre o Turismo Negro e o Ócio
Humanista, com o objetivo de fazer conhecer dois conceitos ainda pouco estudados e que à
partida são muito diferentes, mas na realidade apresentam várias semelhanças.
A primeira dessas semelhanças é, como vimos, o facto de ambos os conceitos provirem de
práticas muito mais antigas do que o seu estudo académico. O Turismo Negro é visto por alguns
autores, como Sharpley (2009), como uma prática tão antiga quanto a capacidade de
mobilização do ser humano, contudo só ganhou dimensão como área de estudos no final do
século passado; o próprio conceito de Turismo Negro também só foi adotado amplamente nessa
altura. O Ócio tem raízes na Época Clássica, figurando proeminentemente no estilo de vida de
gregos e romanos, todavia foi desprezado e desvalorizado a partir da Revolução Industrial para,
nas últimas décadas do século passado, voltar a ser alvo da atenção dos estudiosos.
Para além disso, ambos estes conceitos estão aliados a experiências subjetivas que variam
segundo o sujeito que as pratica e a intensidade com que ele as percebe.
Outra das semelhanças entre o Turismo Negro e o Ócio Humanista é o facto de eles terem uma
importância que deve ser entendida num enquadramento em características da sociedade
contemporânea como a busca imperativa da felicidade, que exclui da vida quotidiana tudo o que
possa causar angústia – como a morte – mas que foi retirada do interior do indivíduo e assenta
agora num fundo volátil de hiperconsumismo. A própria noção de tempo atual foi
mercantilizada e agrava a possibilidade de angústia quando não se sabe o que fazer com ele.
É neste contexto que a capacidade de recriação e resignificação presente nas práticas de ambos
os conceitos ganha a sua importância. O Turismo Negro é um importante mediador entre o
sujeito e a morte, ao permitir-lhe contactar com uma morte mais ou menos sanitarizada e
construir os seus mecanismos para lidar com ela e refletir sobre a sua condição enquanto
humano em ambientes seguros e socialmente aceites, que vão provocar uma angústia muito
menor. O Ócio Humanista pode ter um papel fundamental no desenvolvimento pessoal e mesmo
de equilíbrio para um indivíduo, uma vez que as suas vivências constituem momentos de
recriação e ressubjetivação que podem conferir a quem as experiencia novos significados para si
e para o mundo.
Segundo Cuenca (2010, p.68), “uma experiência de ócio tem sentido na medida em que ‘eu
gosto’; um argumento pouco racional, mas um sinal de afirmação pessoal”. Neste sentido,
qualquer coisa pode constituir uma experiência de ócio, incluindo obviamente o Turismo Negro.
Não obstante, estamos conscientes de que apenas aflorámos os pontos em que estes dois
conceitos se encontram. Muito mais podia ser dito sobre a evolução dos conceitos, por exemplo.
Mas também as questões sociológicas, psicológicas e até filosóficas relacionadas com o
Turismo Negro e com o Ócio Humanista são merecedoras de uma reflexão muito mais
aprofundada do que a que nos propusemos a fazer neste trabalho. Mais importante ainda seria
aprofundar o estudo sobre o papel que as práticas do Turismo Negro e do Ócio Humanista
desempenham na sociedade contemporânea e o seu significado para quem as experiencia.
Porém, esse não foi o nosso objetivo. O que pretendemos é simplesmente abrir a porta para que
essas investigações sejam feitas.
Bibliografia
Aquino, C., & Martins, C. (Setembro de 2007). Ócio, lazer e tempo livre na sociedade do
consumo e do trabalho. Revista Mal-estar e Subjetividade, VII (2), pp. 479-500.
Ariès, P. (1988). Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média. Lisboa:
Teorema.
9
Blom, T. (2000). Morbid tourism – a postmodern market niche with an example from Althorp.
Norsk Geografisk Tidsskrift–Norwegian Journal of Geography, 54, pp. 29-36.
Boullosa, N. (Julho de 2012). Activo, productivo, rural: el significado perdido de "ocio". Obtido
em 29 de Dezembro de 2012, de *fair companies:
http://faircompanies.com/blogs/view/activo-productivo-rural-el-significado-perdidoocio/
Coutinho, B. (2012). Há morte nas catacumbas? Um estudo sobre Turismo Negro. Aveiro:
Dissertação de Mestrado, Universidade de Aveiro.
Cuenca, M. (2000). El ocio desde uma vision humanista. In M. Cuenca, Ocio humanista Dimensiones y manifestaciones actuales del ocio. Documentos de Estudios de Ocio
(Vol. 16, pp. 62-80). Bilbao, Espanha: Universidad de Deusto.
Cuenca, M. (2000). Ocio y Turismo. In M. Cuenca, Ocio Humanista - Dimensiones y
manifestaciones actuales del ocio. Documentos de Estudios de Ocio (Vol. 16, pp. 213230). Bilbao, Espanha: Universidad de Deusto.
Cuenca, M. (Janeiro de 2008). “La del siglo XXI es una sociedad del ocio”. (N. Baza,
Entrevistador) Periodico Bilbao. Obtido em 29 de Dezembro de 2012, de Ocio Blog:
http://www.ocioblog.deusto.es/2008/01/
Cuenca, M. (2010). Una forma de entender el ocio. Obtido em 20 de Novembro de 2012, de
Ocio Blog: www.ocioblog.deusto.es/una-forma-de-entender-el-ocio/
Dann, G. (1998). The Dark Side of Tourism. Etudes et Rapports, 14, p. s.p.
Deroux, C. (2008). Studies in Latin literature and Roman history. (C. Deroux, Ed.) Bruxelles,
Belgium: Latomus - Revue D'Etudes Latines.
Durkin, K. (2003). Death, Dying, and the Dead in Popular Culture. In C. Bryant (Ed.),
Handbook of Death and Dying (pp. 43-49). Thousand Oaks, CA: Sage Publications.
Foley, M., & Lennon, J. (1996). JKF and Dark Tourism: A Fascination With Assassination.
International Journal, 2, pp. 198-211.
Giddens, A. (1991). Modernity and Self Identity. Cambridge: Polity.
Lennon, J., & Foley, M. (2000). Dark Tourism: The Attraction of Death and Disaster. Londres:
Continuum.
Pedroza, R. G. (Julho - Dezembro de 2008). Vida para consumo - A transformação das pessoas
em mercadoria. Cronos, 9 (2), pp. p.485-491. Obtido em 25 de Setembro de 2012, de
http://www.cchla.ufrn.br/cronos/pdf/9.2/r02.pdf
Pinheiro, K. F., Rhoden, I., & Martins, C. (Dezembro de 2010). A experiência do ócio na
sociedade hipermoderna. Revista Mal-Estar e Subjetividade, 10 (4), p. s.p.
Rojek, C. (1997). Indexing, dragging and the social construction of tourist sights. In C. Rojek,
& J. Urry (Edits.), Touring Cultures: Transformations of Travel and Theory (pp. 5274). London: Routledge.
Seaton, A. (1996). Guided by the dark: From Thanatopsis to thanatourism. International
Journal of Heritage Studies, 2 (4), pp. 234-244.
10
Sharpley, R. (2009). Shedding Light on Dark Tourism: An Introduction. In Sharpley, R., &
Stone, P. (Edits.), The Darker Side of Travel - The Theory and Practice of Dark
Tourism (pp. 3-32). Bristol: Channel View Publications.
Stone, P. (2006). A Dark Tourism spectrum: Towards a Typology of Death and Macabre
Related Tourist Sites, Attractions and Exhibitions. Tourism: An Interdisciplinary
International Journal, 54 (2), pp. 145-160.
Stone, P. (2009). Making Absent Death Present: Consuming Dark Tourism in Contemporary
Society. In R. Sharpley, & P. Stone (Edits.), The Darker Side of Travel - The Theory
and Practice of Dark Tourism (pp. 23-38). Great Britain: Channel View Publications.
Stone, P. (2011). Dark Tourism in Contemporary Society: Mediating Life and Death Narratives.
Twilight Tourism: An International Symposium, (pp. 1-29).
Stone, P., & Sharpley, R. (2008). Consuming Dark Tourism: a Thanatological Perspective.
Annals of Tourism Research, 35 (2), pp. 574-595.
Walter, T. (2009). Dark Tourism: Mediating Between the Dead and the Living. In R. Sharpley,
& P. Stone (Edits.), The Darker Side of Travel: The Theory and Practice of Dark
Tourism (pp. 39-55). Great Britain: Channel View Publications.
Wikimedia Foundation. (Agosto de 2012). σχολή. Obtido em 29 de Dezembro de 2012, de
Wiktionary:
http://en.wiktionary.org/wiki/%CF%83%CF%87%CE%BF%CE%BB%CE%AE
11