CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CBC C513
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CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CBC C513
CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CBC C513 Chazan, Lilian Krakowski. Fetos, máquinas e subjetividade : um estudo sobre a construção social do feto como pessoa através da tecnologia de imagem / Lilian Krakowski Chazan. – 2000. 116 f. Orientadora: Jane Araujo Russo. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Medicina Social. 1. Feto - Cuidados médicos - Aspectos sociais _ Teses. 2. Ultra-som na medicina - Teses. 3. Gravidez - Teses. 4. Antropologia cultural - Teses. 5. Amor materno - Teses. 6. Mortalidade infantil - Europa - Sec. XVIII - Teses. 7. Subjetividade - Teses. I. Russo, Jane Araújo. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III. Título. CDU612.647 UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SAÚDE FETOS, MÁQUINAS E SUBJETIVIDADE: UM ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO FETO COMO PESSOA ATRAVÉS DA TECNOLOGIA DE IMAGEM Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Saúde Coletiva. Curso de pós-graduação em Saúde Coletiva – área de concentração em Ciências Humanas e Saúde – do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestranda: Lilian Krakowski Chazan Orientadora: Profa. Dra. Jane Araujo Russo Rio de Janeiro 2000 A Nicha e Dawid, meus pais muito queridos. AGRADECIMENTOS Redigir os agradecimentos ao final de um trabalho implica necessariamente duas questões. A primeira delas consiste em uma rememoração da trajetória percorrida. A segunda – inevitável – é a omissão involuntária de pessoas que, em algum momento, participaram deste projeto. A essas peço antecipadamente desculpas. Diversas pessoas estiveram – direta ou indiretamente – envolvidas com este trabalho nos últimos dois anos. A elas, que de uma forma ou de outra possibilitaram o resultado final, dedico minha profunda gratidão. A Denise Morsch, pelo ‘pontapé inicial’, estímulo e companheirismo subsequentes. A Rosane Mello, pela acolhida no setor de Follow-up do Instituto Fernandes Figueira, pelos auxílios eventuais e pela amizade fiel. A Suely Deslandes, pela generosidade e apoio no início desta trajetória e a Maria Helena Cabral de Almeida Cardoso, além de tudo isso, pela ajuda bibliográfica, em outro momento, que se revelou crucial para o desenvolvimento do trabalho. A Tania Salem, pela avaliação cuidadosa e sugestões inestimáveis na qualificação do projeto de dissertação. A Annette Leibing, pelo estímulo e pelos artigos essenciais que me apresentou. A Ana Maria Jacó Vilela, pelo ensino, apoio, interesse e amizade ao longo deste percurso. A Laura Rónai, pelo carinho, pelas ajudas de urgência e pelo abstract. A Jane Russo, pela orientação constante, inteligente, delicada e bem-humorada, além da disponibilidade e abertura para o diálogo. Aos professores do IMS/UERJ, de quem tive o privilégio de ser aluna, em especial a Sérgio Carrara e Luiz Antônio de Castro Santos, pela abertura de novos horizontes de conhecimento. A Jane Sayd e Kenneth Camargo Jr., pela amizade divertida e possibilidade de trocas. A Maria Luiza Heilborn, pelas contribuições e sugestões quando da qualificação do projeto, e – com uma certa confessada ambigüidade – pelo empurrão final. A Leila Santiago e Silvia Regina Nunes Constancio, da secretaria, pela ajuda em momentos estratégicos. A Rita de Cássia Bento, da biblioteca, pela gentileza e eficiência. A Regina Tinoco Amato, bibliotecária, pela ajuda valiosa com a bibliografia. A Rachel Aisengart Menezes, amiga de todas as horas, pelas múltiplas funções: cumplicidade, afeto, interlocução, concordâncias verbais, crítica construtiva e trocas constantes, ombro amigo para aflições, dúvidas e angústias (muitas), apoio e estímulo, entre outras. Gratidão sem limites. A Helena Besserman Vianna, pela escuta, interesse e acompanhamento desde o início deste caminho. A Nadir da Silva Pereira e Ana Carolina Salgado de Paulo, meus dois braços direitos, pela infra-estrutura indispensável, assegurando a tranqüilidade necessária para me dedicar integralmente a este trabalho. A meus familiares mais próximos – pais, irmão e filho – pela compreensão e apoio demonstrados ao longo desta trajetória. A Rodrigo Nin Ferreira, companheiro nesta jornada, amoroso, atencioso e, acima de tudo, amigo, pelo estímulo e suporte constantes, além dos socorros emergenciais em situações de pânico na informática. À CAPES, pela bolsa, que em muito facilitou a execução deste trabalho. RESUMO Este trabalho consiste em uma revisão bibliográfica da produção norte-americana e européia dos anos 90, acerca da construção social do feto como Pessoa, mediada pela tecnologia de imagem na medicina. O significado e os desdobramentos desta construção implicam reformulações na sensibilidade em relação ao feto, assim como rearranjos na noção de Pessoa. A construção social do feto como Pessoa é contextualizada e discutida a partir da emergência do sentimento de infância e da produção do amor materno como um valor moral e social, no século XVIII. A partir dessa época, a criança, em seguida o bebê e – no século XX – o feto, gradualmente tornaram-se objetos de atenção médica e social. Essa atenção carreou consigo diversas conseqüências. O ultra-som, usado atualmente como exame de rotina na gravidez, trouxe uma antecipação – e, portanto, uma ampliação – do controle e disciplinarização dos corpos, ao mesmo tempo em que reiterava uma nova subjetividade. Este reforço se dá em dois planos: o primeiro, da mãe em relação ao seu feto – agora tornado visível, sob uma forma na tela, quando os movimentos fetais ainda são imperceptíveis para os sentidos da mãe. Em outro plano, o feto é socialmente construído como um novo ‘indivíduo’, visualizável e com ‘comportamentos’ observáveis e individualizados. Deste modo, novas tecnologias vêm contribuindo, tanto para a criação, quanto para a afirmação de novas subjetividades e, em última instância, para a construção social do feto como Pessoa. ABSTRACT This work consists in a review of the literature from North America and Europe during the nineties concerning the social construction of the fetus as a person, mediated by medical imaging technology. The significance and unfolding of this construction are involved in reformulations in sensibility in relation to the fetus, and in adjustments in the notion of the person. The social construction of the fetus as person is contextualized and discussed beginning with the emergence of the notion of childhood and the production of maternal love as a moral and social value in the eighteenth century. Beginning in this period, the child, later the baby, and finally, in the 20th century, the fetus, gradually became objects of medical and social attention. This attention brought with it various consequences. Ultrasound, presently a routine exam during pregnancy, brought with it earlier and broader control and discipline of the body while at the same time it reiterated a new subjectivity. This reinforcement is found in two planes: firstly, that of the mother in relation to her fetus which is now made visible on screen, at a time when the fetal movements are still imperceptible to the mother's senses. On another plane, the fetus is socially constructed as a new individual, visualizable and with observable and individualized ‘behaviors’. In this way new technologies are contributing both to the creation and affirmation of new subjectivities and in the last instance toward the social construction of the fetus as a person. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 1 Capítulo 1: A MORTE DE BEBÊS NO SÉCULO XVIII NA EUROPA .................. 1.1) Mortes de bebês e mortalidade infantil .......................................................... 1.2) Amas-de-leite e mortalidade infantil ............................................................. 1.3) A mortalidade infantil e a transformação do sentimento materno ................. 1.4) Abandono de bebês e mortalidade infantil .................................................... 10 12 14 17 18 Capítulo 2: A MULHER, O BEBÊ E A CONSTRUÇÃO DO AMOR MATERNO COMO VALOR ...................................................................................... 2.1) O discurso econômico: a conservação de crianças ........................................ 2.2) O discurso dos valores iluministas: novos Indivíduos ................................... 2.3) O discurso para as mulheres: a hierarquia ..................................................... 2.4) O discurso da Ciência: famílias, mulheres, crianças e médicos..................... 21 24 27 38 43 Capítulo 3: DA CONSTRUÇÃO DO BEBÊ COMO OBJETO ................................. 3.1) A elaboração da mortalidade infantil e a existência social do bebê............... 3.2) Dimensões analíticas da infância ................................................................... 3.3) Atrofia e decadência ‘naturais’ versus doença e imaturidade ....................... 3.4) A prematuridade como foco de atenção ........................................................ 3.5) A análise epidemiológica na construção do bebê social ................................ 52 55 57 60 62 66 Capítulo 4: ALTA TECNOLOGIA: DO ÚTERO ‘TRANSPARENTE’ AO STATUS DO FETO ...................................................................................................... 4.1) Tecnologia e gravidez ................................................................................... 4.1.1) Breve histórico sobre o uso de tecnologia na gravidez ................... 4.1.2) A ultra-sonografia obstétrica na atualidade: o útero ‘transparente’ e o feto trazido para o espaço público................................................. 4.1.3) A produção de conhecimento confiável sobre a gravidez e o feto... 4.2) O feto-Pessoa ................................................................................................. 4.2.1) Máquinas e subjetividade ................................................................ 4.2.2) O feto civil, político e comercial ..................................................... 4.2.3) Transformação: da imagem ao ‘bebê’ ............................................. 4.2.4) A inclusão do feto na categoria Pessoa: significados e desdobramentos ......................................................................................... 68 68 68 71 73 78 78 83 86 88 Capítulo 5: CONSIDERAÇÕES FINAIS: ‘NOVO’ FETO, ‘SUPER-RAÇA’? ...... 90 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 105 BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ............................................................................... 113 ANEXO I ......................................................................................................................... 115 “Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca b) O modo como as violetas preparam o dia para morrer c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas têm devoção por túmulos d) Se o homem que toca de tarde sua existência num fagote, tem salvação e) Que um rio que flui entre dois jacintos carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos f) Como pegar na voz de um peixe g) Qual o lado da noite que umedece primeiro. etc etc etc Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.” ( Manoel de Barros, 2000: 9). 1 INTRODUÇÃO Nas últimas décadas do século XX, na sociedade ocidental, pode-se observar uma crescente medicalização da sociedade em geral, e da gravidez em particular. Os avanços da tecnologia em medicina acentuaram este processo com uma rapidez vertiginosa. A medicalização social, de acordo com Corrêa (1997), pode ser entendida como “ (...) a forma pela qual a continuada evolução tecnológica vem modificando a prática da medicina (...) evolução esta que tem como corolário um aumento exagerado no consumo de atos médicos e notadamente de medicamentos.” (Corrêa, 1997: 12). O termo ‘medicalização’ também está referido à expansão do consumo de serviços, produtos e equipamentos relacionados à prática da medicina. Ao lado destes aspectos, Corrêa (1997) assinala que o termo diz respeito a uma redefinição de eventos, tais como envelhecimento, diversos momentos da vida reprodutiva da mulher, comportamentos ‘desviantes’ – em termos médicos. Para Corrêa, esta redescrição tem um efeito circular, tanto sobre o consumo de medicina quanto sobre a própria produção de conhecimentos médicos. Além disto, essa apropriação discursiva é, ao mesmo tempo resultado e produtora de uma normatização, propiciando a intervenção da medicina nos mais variados campos da vida humana (Corrêa, 1997: 13). Ao mesmo tempo em que estas mudanças podem trazer alívio e mesmo solução para alguns problemas, são também produzidas novas configurações merecedoras de uma reflexão. Dentre estas – como corolário direto da medicalização da gravidez e das novas tecnologias reprodutivas – emerge uma transformação no status do feto na sociedade ocidental contemporânea. ✼✼✼ Meu interesse no assunto surgiu em uma trajetória pouco linear. Ao longo de vários anos de prática psicanalítica com crianças e adolescentes tive a atenção despertada pelo fato de que meus pacientes mais gravemente perturbados tinham sido bebês prematuros. O estudo sobre o desenvolvimento emocional de bebês, conjugado ao trabalho com crianças pequenas, aproximaram-me de trabalhos acerca do psiquismo fetal. Os trabalhos de Piontelli (1987; 1988; 1989; 1992; 1995) – utilizando ultra-som dinâmico – de observação de fetos no útero, seguida de acompanhamento semanal destes bebês após o nascimento, por um ano ou dois, em seu meio familiar, fomentaram minha curiosidade. 2 Em 1996 surgiu a possibilidade de observar o acompanhamento de bebês prematuros, realizado semanalmente no ambulatório de Follow-up do Instituto Fernandes Figueira. Nesta instituição tomei contato mais próximo com a gravidade do problema da prematuridade e suas diversas conseqüências, e ensaiei um início de pesquisa que rapidamente tornou claro o quanto me faltavam subsídios técnicos e teóricos. A percepção desta insuficiência foi o que me conduziu ao mestrado do Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Inicialmente pretendia desenvolver uma pesquisa de campo com mães de prematuros. Contudo, ao longo dos estudos nos cursos da pós-graduação tornou-se evidente que havia uma série de questões que antecediam, circundavam e situavam o problema da prematuridade. Algumas leituras desempenharam um papel crucial para esta percepção, entre as quais destacaria a discussão sobre o status do embrião em Novaes e Salem (1995) e Salem (1997). A partir da discussão destes artigos com a Profa Jane Russo, minha orientadora, surgiu a idéia de desenvolver um estudo sobre a questão do status do feto como Pessoa que, entre outros aspectos, informa e configura a questão da prematuridade, tema de meu interesse inicial. Como, porém – no dizer do poeta Antonio Machado – “ (...) caminante, no hay camino, se hace camino al andar” ,1 diversas outras vertentes fascinantes do assunto foram surgindo ao longo do estudo, e o objetivo inicial – uma pesquisa de campo – foi adiado. As novas vertentes surgiram a partir de trabalhos realizados ao longo do mestrado, nos quais pude refletir acerca de uma série de debates contemporâneos envolvendo o papel da tecnologia, tanto na prática médica quanto na construção da categoria Pessoa nos dias atuais. Para o desenvolvimento desta última temática – a tecnologia e a noção de Pessoa na sociedade ocidental contemporânea – que tornou-se meu ponto central de interesse, destacaria as coletâneas Cyborgs and Citadels: Anthropological Interventions in Emerging Sciences and Technologies, organizada por Downey e Dumit (1997) e Cyborg Babies: From Techno-Sex to Techno-Tots, editada por Davis-Floyd e Dumit (1998). Concentrando o foco na questão da construção do status do feto como Pessoa – mediada pela tecnologia, baseei-me nos artigos de Mitchell (1994), Heriot (1996), Browner e Press (1996), Georges (1996) e Mitchell e Georges (1998) que discutem – por diversos ângulos – a produção de conhecimento confiável (authoritative knowledge) biomédico na gravidez, as formas de construção da Pessoa e subjetividade fetais, e a reconfiguração da subjetividade da mulher a partir da imagem tecnológica em medicina. 1 In: Campos de Castilla, Proverbios y cantares, XXIX. 3 Esta dissertação tem portanto como objetivo discutir a produção do status do feto como Pessoa, mediada pela tecnologia – mais especificamente a do ultra-som obstétrico –, a que transformações este movimento corresponde, com que estratégias vem se estabelecendo este novo status e quais os desdobramentos produzidos por esta mudança. Não se trata de ‘tomar partido’, em uma atitude tecnofílica ou tecnofóbica. O estudo consiste, antes de tudo, em um mapeamento e uma reflexão crítica sobre a questão, visando embasar um futuro trabalho de campo. A perspectiva geral adotada neste trabalho alinha-se basicamente com o pensamento de Michel Foucault, quando este insiste em que não há uma realidade preexistente sujeita à investigação e aponta que o pesquisador deve buscar compreender o campo das relações de força onde se constrói o objeto da pesquisa. Neste campo são produzidos e articulados discursos e práticas dinâmicos que indicam estratégias. Esta abordagem permite que a análise adquira um grau crescente de complexidade, conforme assinala Rohden (2000: 8). ✼✼✼ Até o último quarto do século XX, na sociedade ocidental, ao se falar em ‘mãe’ era possível pensar-se em duas categorias: a mãe social biológica e a mãe social substituta – adotiva, cuidadora ou madrasta. A primeira fertilização humana in vitro que obteve sucesso carreou consigo uma ruptura radical no conceito de ‘mãe’. Uma das pré-condições para que fosse concebível o surgimento e desenvolvimento dessa tecnologia foi possivelmente um processo que implicava a modificação do próprio conceito, em conseqüência de uma nova demanda social da possibilidade de geração de bebês por via da tecnologia. Esta mudança começara a ser construída, de forma mais concreta, através da ‘dessacralização’ e ‘cientifização’ da concepção, no século XVIII, quando da primeira experiência de inseminação artificial em mamífero de que se tem registro.2 Este longo processo vem desembocar, abreviando dois séculos, no final da década de 1970, nas novas tecnologias reprodutivas para seres humanos nas quais, tanto a concepção quanto a maternidade e o feto adquirem um caráter visível, ‘público’ e, freqüentemente, político (Heriot, 1996).3 2 Na década de 1770 Lazzaro Spallanzani, para provar que o orgasmo não era indispensável à concepção, como se acreditava na época, produziu um experimento e obteve sucesso na inseminação artificial de uma cadela da raça water spaniel, usando uma seringa para introduzir o esperma do cão na cadela (Laqueur, 1992: 161). 3 As fotos endoscópicas da fecundação de um óvulo e de um embrião em desenvolvimento, feitas pelo fotógrafo sueco Lennard Nillson e publicadas na LIFE, com ampla repercussão, no início da década de 1990, corroboram de forma clara esta tendência. 4 O desenvolvimento de novas tecnologias reprodutivas em ritmo acelerado nas últimas décadas, ao mesmo tempo que respondeu a um novo tipo de demanda – poder decidir ‘quando’ e ‘como’ ter filhos, construindo outra significação para esta escolha, não mais uma ‘decorrência natural’ do casamento – acarretou modificações qualitativas de grande monta, do ponto de vista social, na medida em que foram (e vêm sendo) produzidos novos conceitos e paradigmas. Os laços de parentesco necessitam ser reconstruídos e resignificados, sendo para isto geradas novas estratégias na sociedade para dar conta das reconfigurações produzidas a partir da reprodução assistida (Cussins, 1998). Além das mudanças no status da mãe, agora com três categorias possíveis – genética, gestacional e social, em arranjos variáveis – o embrião e o próprio feto também vêm passando por modificações em seus respectivos status. Abriu-se a possibilidade da maternidade/paternidade a mulheres e homens que não conseguiam gerar filhos, e a noção de ‘fertilidade’ de um casal precisou ser revista, assim como a própria noção de ‘casal’ como condição sine qua non para a geração de bebês. Conforme assinalado por Strathern (1995), as novas tecnologias reprodutivas, ao dissociarem a procriação do sexo (a pílula anticoncepcional já desvinculara de forma eficaz o sexo da procriação), desassociam também o sexo da maternidade e reconfiguram as relações de gênero na prática procriativa (Strathern, 1995: 303-4). Corrêa (1997) aponta que, da mesma forma que as novas tecnologias reprodutivas modificam a maneira de se lidar socialmente com a infertilidade – passando das soluções tradicionais, estritamente sociais (adoção) para soluções médicas – cria-se concomitantemente a possibilidade de realização de um ideal de continuidade gerando uma descendência sem estar vinculada à vida sexual dos indivíduos (Corrêa, 1997: 187, 207). Essa autora observa ainda que, além deste aspecto, as novas tecnologias reprodutivas – pela forma como são divulgadas pela mídia – colocam em questão “ (...) o conteúdo de certas categorias médicas até então indiscutíveis, como tratamento, patologia, síndromes (...) que ficam ameaçadas de uma possível desestabilização.” (Corrêa, 1997: 130).4 Além da medicalização da reprodução, a da gravidez e do próprio feto ascenderam a proporções consideráveis. A fertilização in vitro trouxe para a cena da concepção parceiros 4 A rigor, outros procedimentos médicos também colocam em xeque estas categorias como, por exemplo, as cirurgias plásticas de ordem estritamente estética ou para ocultamento da identidade de criminosos ou espiões, tratamentos de obesidade não-mórbida, entre outros. Contudo, estes procedimentos médicos não são divulgados pela mídia como ‘milagres’ produzidos pela medicina em favor da felicidade dos indivíduos – forma como são referidas as novas tecnologias reprodutivas. Para uma ampla discussão sobre a apropriação sensacionalista da mídia sobre a reprodução assistida, ver Corrêa (1997: 119-157). 5 inteiramente inéditos nesta situação: médicos, técnicos de laboratório, aparelhos de toda ordem.5 Tanto a mãe quanto o embrião passam a ser vistos de uma forma diferente do que até então, assim como surgem problemas e situações jamais imaginados, ou apenas esboçados na literatura de ficção científica. Refiro-me a polêmicas tais como, por exemplo, o destino a ser dado aos embriões excedentes congelados – quanto tempo mantê-los em ‘animação suspensa’, em que situações – e se – efetuar o descarte destes embriões, a possibilidade de utilizá-los como material de pesquisa. Emerge neste processo outra discussão, impensável até o surgimento das novas tecnologias reprodutivas: qual a posição hierárquica da mulher em relação ao embrião produzido nestas condições, quem detém o poder decisório sobre seu destino – os técnicos, o pai, a mãe, a família? (Novaes & Salem, 1995; Salem, 1997). As novas tecnologias reprodutivas trouxeram em seu bojo, conforme assinalado acima, entre outras questões, um redimensionamento da ‘infertilidade’. Na medida em que esta começa a ser vista como uma questão ‘médica’, gera-se a expectativa de que seja ‘resolvida’ por meio da tecnologia. Franklin (1990) mostra como, ao se estabelecer a conexão ‘infertilidade-desespero’ constrói-se uma narrativa épica dos feitos médicos (Franklin, 1990: 204). Cabe notar também que nesta construção – que vincula a impossibilidade de gerar filhos ao desespero – o feto adquire um caráter ‘messiânico’: só a sua existência pode ‘salvar’ o casal desta situação. Assim, é possível pensar que constrói-se, nos dias atuais, uma ‘sacralização’ do feto e da vida, como assinala Duden (1993). Na realidade, esta questão não é de forma alguma recente. A diferença em relação ao discurso religioso tradicional é que agora esta sacralidade adquire um cunho ‘científico’. Cabe também indagar se o que está em jogo é a sacralização da vida ou a da própria Ciência, capaz de produzir vida. ✼✼✼ A atenção dada especificamente ao feto – que vai passando a ser visto praticamente como um ser destacado da mulher que o traz no útero –, fortemente apoiada na tecnologia de imagem, tem conseqüências de várias ordens, entre as quais destacaria, como exemplo, 5 Cabe ressaltar que esta tecnologia é acessível apenas às camadas mais abastadas da população, dado seu alto custo financeiro. Contudo, apesar de ter aplicação restrita, seu impacto social tem sido de amplo alcance, através da grande divulgação, pela mídia, dos novos ‘feitos científicos’. Vale observar que há um filtro cultural e os fracassos não são igualmente divulgados (Ricardo Ventura, em mesa-redonda no XXIV Encontro Anual da Anpocs, comentou de forma irônica e precisa que “ ceticismo não vende notícia” ). A larga difusão das ‘façanhas’ científicas contribui fortemente para reconfigurar uma série de questões, a serem discutidas ao longo desta dissertação. 6 o surgimento da ‘medicina fetal’ como uma nova especialidade médica e os ‘direitos fetais’, que em alguns estados dos Estados Unidos já são objeto de legislação própria. As novas leis – e alguns projetos de lei – invertem a hierarquia mãe-feto, colocando o feto em posição hierarquicamente superior àquela, do ponto de vista legal (Heriot, 1996: 182). O feto é autonomizado e é-lhe atribuída uma existência ‘separada’ do corpo materno. ‘Poder escolher’ ter um filho através de técnicas de reprodução assistida, sendo ou não parte de um casal, parece ser, para a mulher, a outra face da contracepção – e ambos os aspectos, corolários de um processo crescente de individualização. O feto passa a adquirir uma série de novos significados, e estes podem ser mais alguns dos componentes geradores da modificação hierárquica do status do feto em relação à mãe. A inclusão do feto na categoria Pessoa implica um redimensionamento da categoria. O processo de redefinição e reconfiguração desta é passível de provocar intensa resistência. Esta situação pode esclarecer, ao menos parcialmente, a importância de se efetuar uma modificação hierárquica, em alguns casos – poucos, porém indicativos de uma possível tendência – a mãe tendo sua autonomia legalmente limitada ‘em benefício do feto’. Esta inversão vem sendo assinalada, estudada e discutida por diversas autoras de enfoque feminista (Heriot, 1996; Duden, 1993; Martin, 1992; Rapp, 1997, 1998, 1999). Se considerarmos a extensão dos limites da Pessoa como correspondendo a uma ampliação do controle dos corpos pelo bio-poder, é possível entender-se a grande força que o movimento de inclusão do feto na categoria vem adquirindo. ✼✼✼ No decorrer do trabalho de situar a problemática do feto na sociedade contemporânea foram-se revelando inúmeros aspectos, todos – sem exceção – interessantes e merecedores de atenção e aprofundamento. Em virtude da exiguidade de tempo e da amplitude dos vários temas que emergiram, fui obrigada a optar por, não apenas restringir o número de questões a estudar, como também colocar um limite no grau de aprofundamento de cada uma das questões abordadas. Cada opção sempre exclui o infinito, posto que infinito menos um – a escolha – segue sendo infinito. O caminho que optei por trilhar – uma contextualização histórica do surgimento do feto como objeto de interesse social e médico, sob que formas esse interesse se revela e as conseqüências daí decorrentes – implicitamente excluiu diversas outras questões igualmente fascinantes, tais como: a discussão do papel da visualidade na construção do olhar contemporâneo – médico ou leigo; o estudo semiótico das imagens fetais; as novas 7 tecnologias reprodutivas, que além de estarem estreitamente conectadas à valorização do feto reconfiguram um sem-número de questões; a discussão bioética acerca das intervenções sobre o feto, entre outras tantas. Oportunamente pretendo prosseguir explorando esses temas. O ponto de partida para localizar e construir o argumento desta dissertação consiste em um estudo acerca da construção da maternidade como um valor, questão estreitamente vinculada à construção social da criança e do bebê. A escolha do século XVIII como ponto de partida deve-se, em parte, ao fato de que, devido à necessidade de restringir o escopo do trabalho, não era possível retroceder indefinidamente. Obviamente, o que ocorre nessa época tem sua configuração determinada em um processo histórico, construído ao longo dos séculos precedentes. Por outra parte, esta escolha não é aleatória, se considerarmos o século XVIII como consensualmente identificado com o início do que chamamos de ‘modernidade’. É calcada neste pressuposto que, por exemplo, conformei-me em não incluir a Reforma de Lutero, no século XVI – questão que considero de vital importância para a construção da modernidade – na discussão. Pelo mesmo motivo – a necessidade de não me expandir demasiadamente – restringi-me a dados históricos referentes à Europa, considerando que, na época em foco, este era o centro onde se geravam e de onde se irradiavam as transformações do mundo ocidental – na política, na economia e nos costumes. Inicio – no capítulo 1 – com a discussão de um dos aspectos que, do meu ponto de vista, está na base da construção das condições favoráveis para o surgimento da maternidade como valor. Trata-se do alto índice de mortes de crianças na Europa no século XVIII, e de que forma essa situação foi construída, compreendida e utilizada – tanto pelos governantes quanto pelos pensadores da época. Para o desenvolvimento dessa questão baseei-me em estudo de David Armstrong (1986) sobre a invenção das ‘taxas de mortalidade infantil’, no qual o autor assinala que a partir da construção destas estatísticas foi produzido um novo objeto de atenção médica e social – o bebê. Recorro ainda ao historiador Edward Shorter (1977) que descreve com riqueza de detalhes a construção do ‘sentimento de infância’ nas diferentes classes sociais na Europa, estendendo e depurando o argumento de Ariès (1978) – o de que o ‘sentimento de infância’ teria sido construído a partir do século XVI, e que, como uma produção historicamente datada, não podia ser simplisticamente tomado como ‘natural’ nem, muito menos, ‘universal’. 8 No capítulo 2, para discutir a construção da maternidade-valor é utilizado como ponto de partida o livro polêmico de Elisabeth Badinter (1985), Um amor conquistado: o mito do amor materno, articulado com as idéias de outros autores, como Michel Foucault (1984, 1990, 1998a, 1998b, 1998c, 1999), Philippe Ariès (1978), Jacques Donzelot (1986), Richard Sennett (1998), além de Edward Shorter (1977). Após um brevíssimo histórico da mudança no ‘sentimento materno’ que se consolidou a partir do século XVIII, abordo e discuto as estratégias erigidas e aplicadas para a construção do amor materno como um valor, enfocando principalmente os discursos utilizados para tal fim. O significado dessas estratégias é debatido e articulado aos novos status da mulher, da família e da criança na sociedade. Por ser a maternidade-valor o ponto central de articulação dos diversos aspectos abordados neste trabalho este é, também, o capítulo mais longo. No capítulo 3 focalizo a emergência do bebê e do feto como entidades autônomas, voltando à discussão de Armstrong sobre a construção e depuração das estatísticas de mortalidade infantil que, articulados à medicalização do corpo da mulher e da gravidez, juntamente com as mudanças na assistência ao parto, constróem na sociedade novos objetos de atenção e intervenção – além do bebê, o bebê prematuro e, em seguida, o feto. Para a explicitação das questões que, articuladas às estatísticas, concorrem para o surgimento destes novos objetos, recorri aos estudos de Martensen (1998) e Shorter (1997). O capítulo 4 consiste em uma revisão da literatura antropológica recente, produzida na América do Norte e Europa, basicamente nos anos 90, acerca do papel da tecnologia de imagem médica na construção do feto como Pessoa. Até o presente momento não encontrei uma produção brasileira sobre o assunto, motivo pelo qual restringi-me à produção estrangeira. Neste capítulo abordo brevemente o desenvolvimento de novas tecnologias referentes à gravidez, e da tecnologia de imagem em medicina que, de forma acentuada nas últimas décadas, vem mais e mais tornando os corpos (em especial o da mulher e seu útero) transparentes e visualizáveis – e não apenas para a medicina. A visualidade, no século XX, tem um papel de fundamental importância na construção da corporalidade, do conhecimento confiável biomédico e também da noção de Pessoa. Além disto, é parte crucial na transmissão do saber médico nas escolas de Medicina (Pinto, 1997). Dentre os recursos de tecnologia de imagem médica, focalizo e discuto mais detalhadamente o ultrasom, que tem desempenhado um papel preponderante no processo de transformação do feto 9 em Pessoa. Este dispositivo tecnológico, que tornou o feto e seu desenvolvimento visíveis, possibilitou também um sem-número de intervenções e desdobramentos. A forma como se constitui todo este processo é o objeto central de interesse da dissertação. No último capítulo, à guisa de conclusão, desenvolvo uma reflexão crítica sobre as diversas questões que emergiram ao longo desta pesquisa. Ao lado disto, são levantadas hipóteses que visam delinear horizontes para posterior aprofundamento em um trabalho de campo, de cunho etnográfico. Em princípio, tenho como objetivo, em futuro próximo, examinar e discutir como se constrói a Pessoa fetal, em unidades de imagem ultrasonográfica – privadas e públicas – no Rio de Janeiro. 10 Capítulo 1 A MORTE DE BEBÊS NO SÉCULO XVIII NA EUROPA “ De fato, trata-se aqui apenas de militar por um outro uso da história que não o de falar em seu nome ou refugiar-se em suas dobras. Perguntar-lhe, enfim, que somos, em vez de se debater inutilmente ainda uma vez, para conseguir numa última gota de profetismo ou para nela gravar, em letras filosóficas, sentenças de indignação arrogante.” (Jacques Donzelot, 1986: 14). O século XVIII, na Europa, foi marcado, sob o ponto de vista político, pelo movimento de formação do Estado moderno. Nesta constituição a mudança na arte de governar desempenhava um papel fundamental, segundo Foucault: “ (...) a razão do Estado, compreendida como um governo racional capaz de aumentar o poderio do Estado de acordo consigo mesmo, pressupõe a constituição de um certo tipo de conhecimento. (...) O conhecimento é necessário: um conhecimento concreto, preciso e medido do poderio do Estado. A arte de governar, característica da razão do Estado, está intimamente associada ao desenvolvimento do que então se chamava estatística ou aritmética política – ou seja, o conhecimento das forças respectivas dos diferentes Estados. Um tal conhecimento era indispensável ao governo correto.” (Foucault, 1990: 92) (Grifos originais). O conceito de ‘população’ emerge da estatística, quando esta evidencia que a população tem características e regularidade próprias, e produz efeitos econômicos específicos através de seus deslocamentos e atividades (Foucault, 1998a: 288). O surgimento do conceito está vinculado à nova arte de governar, na qual o poder do soberano estende-se além do poder exclusivamente territorial, para também passar a abranger ‘as coisas’ existentes em seu território (Foucault, 1998a: 282). O novo conhecimento gerado permite assim uma extensão dos dispositivos de poder: “ A velha potência de morte em que se simbolizava o soberano é agora, cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão calculista da vida (...) [Além do desenvolvimento de disciplinas diversas, observa-se] aparecimento também, no terreno das práticas políticas e observações econômicas, dos problemas de natalidade, longevidade, saúde pública, habitação e migração (...) técnicas diversas e numerosas para 11 obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações. Abre-se assim, a era do bio-poder (...)” (Foucault, 1984: 131). No início do século XIX, as mortes na Inglaterra eram registradas nas paróquias. Se não fossem causadas por agente humano eram atribuídas à visita de Deus ou a causas naturais. Com o surgimento do Registration Act de 1834, esta análise das mortes mudou em dois sentidos. Primeiro, cada morte com sua causa tinha que ser registrada publicamente. Em segundo lugar, a noção de uma causa patológica sob forma de doença tomou o lugar das ‘causas naturais’. Em 1837, um espaço destinado a uma declaração de aproximadamente dez palavras acerca da ‘causa de morte’ foi acrescentado aos itens de sexo, idade e profissão, que já constavam anteriormente. David Armstrong (1986) considera que esta nova prática no registro das mortes corresponde a uma extensão para o domínio público da nova medicina patológica que emergira no final do século XVIII. A morte não vinha mais de fora do corpo, mas da patologia interna, o que tornou possível a substituição das ‘causas naturais’ de morte por causas patológicas (Armstrong, 1986: 212). A criação de um registro público, estatal, de mortes com discriminação de idades, sexo e profissão aponta para mais uma extensão do poder disciplinar, que se amplia através do escrutínio dos detalhes e classificação minuciosa, não mais apenas das vidas e corpos, mas também das mortes. Quando as estatísticas – ou aritmética política – registram as mortes de bebês, abrindo o campo para a construção do conceito de ‘mortalidade infantil’, o que ocorre já no último quarto do século XIX, fica evidenciada e consolidada uma nova extensão de controle dos corpos para as crianças e, mais especificamente, dos bebês. Essa extensão articula-se a uma nova sensibilidade em relação à infância, sentimento que vinha sendo construído desde o século XVI na Europa (Ariès, 1978: 61). Segundo Edward Shorter (1977), esta mudança na visão e percepção da infância ocorreu de forma não homogênea – houve diferenças significativas entre os países, e também entre as classes sociais em um mesmo país. A transformação inicia-se nas classes mais abastadas – nobreza e alta burguesia – e difunde-se lentamente para as classes populares, de forma que só no final do século XIX e início do século XX pode-se considerar que há uma nova atitude consolidada da sociedade em geral, no que tange à criança e ao bebê (Shorter, 1977: 168-204). A comparação entre os países no que diz respeito a esta mudança revela que: “ (...) [Os dados] efetivamente sugerem que uma diferença, freqüentemente notada entre os países, na modernização da visão de mundo e na percepção, surge também no domínio do afeto maternal: os anglo-saxões iniciando (com a minha sugestão de que os americanos ‘nasceram 12 modernos’), os franceses colocando seu selo distintivo nacional sobre a Grande Transformação, e a Europa Central – fora do perímetro da mudança social – seguindo atrás, bem mais tarde.” (Shorter, 1977: 199).6 Em outras palavras, o mapa cronológico da transformação na sensibilidade acerca da criança e do bebê segue pari passu o mapa da revolução burguesa, da consolidação do absolutismo e da conseqüente modernização dos Estados na Europa do século XVIII. Contudo, as modificações ocorridas na percepção e construção social da criança e do bebê foram não apenas graduais como também profundamente heterogêneas, surgindo e consolidando-se em diferentes épocas e de diferentes maneiras em cada país. Este fato pode esclarecer, ao menos parcialmente, a disparidade verificada nas datas em que surgem – nos diversos países – manifestações de preocupação acerca da morte de bebês e dos cuidados a eles dispensados. 1.1) Mortes de bebês e mortalidade infantil Foi somente a partir do 3o Relatório Anual do Registro Geral da Inglaterra, para o ano de 1839 – publicado em 1841 – 7 que a nova lista de causas de mortes foi analisada por idades e, mesmo assim, apenas em três grandes cidades e sem ênfase particular nas mortes de bebês. Em 1857 foi feito um levantamento geral de mortes abaixo da idade de um ano, e nos anos subsequentes houve a publicação anual de mortes de bebês com suas várias causas. Entretanto, apenas em 1877 as mortes de bebês foram reportadas especificamente como ‘taxas de mortalidade infantil’. Nesse ano, afirmou-se que a taxa de mortalidade infantil relativa ao ano de 1875 fora de 158 por 1.000 bebês nascidos vivos. A partir desta data as taxas anuais de mortalidade de bebês passaram a ser comparadas. Depois de 1877, a construção desta nova estatística configura o surgimento de um novo objeto de interesse social e médico (Armstrong, 1986: 212-213). Armstrong chama a atenção para o fato de que os dados para computar taxas de mortalidade infantil estavam disponíveis há muito e que, portanto, a criação de uma taxa específica de mortalidade infantil indica, em primeiro lugar, a emergência de uma consciência social destas mortes de bebês e, em seguida – de forma relevante – a consolidação do reconhecimento social do bebê como uma entidade distinta. Shorter corrobora esta visão por um outro ângulo: através da análise de sinais indicativos da mudança que ocorre no sentimento materno ao longo do século XIX e que se consolida nas 6 As traduções dos textos em inglês e francês citados nesta dissertação são de minha autoria, salvo menção expressa. 7 Os relatórios do Registro Geral sempre são referentes a dois anos antes. Portanto, o Registro de 1841 refere- 13 primeiras décadas do século XX (Shorter, 1977: 168-204). A construção social do bebê implica diretamente a conservação deste, o que por sua vez realimenta esta construção. O médico escocês Buchan diz: “ A medicina foi bem pouco atenta à conservação de crianças, e isso por indiferença e desconhecimento da riqueza potencial da infância (...)” (Buchan, 1775 apud Badinter, 1985: 81). A introdução da idéia de “ riqueza potencial da infância” parece estar inserida no movimento, apontado por Foucault, de consolidação do dispositivo de sexualidade em relação ao dispositivo de aliança: “ O primeiro momento [dessa consolidação] corresponderia à necessidade de constituir uma ‘força de trabalho’ (portanto, nada de ‘despesa’ inútil, nada de energia desperdiçada, todas as forças concentradas no trabalho) e garantir sua reprodução (conjugalidade, fabricação regulada de filhos). (...)” (Foucault, 1984: 107). Em 1908 a importância atribuída à taxa de mortalidade infantil havia aumentado significativamente. Armstrong assinala, contudo, que seria um equívoco concluir que foi a preocupação pública que aumentou, considerando que a percepção e seu objeto são mutuamente constitutivos. O ‘aumento da atenção pública’ dado à mortalidade infantil relacionava-se à mudança na visão acerca da criança; essa modificação pode ser identificada na nova análise de mortes de bebês que acompanhava a transformação mais geral, do espaço físico em espaço social (Armstrong, 1986: 213). No século XIX a mortalidade infantil era encarada basicamente como uma questão biológica. No século XX esta visão gradualmente se modifica, passando a ser vista como um problema social: ‘falhas’ de higiene que demandam intervenções sociais.8 As linhas analíticas de habitação, nutrição, higiene e pobreza trouxeram o doméstico do domínio privado para o público: “ A relação entre mãe e bebê, tanto a fisiológica quanto a psicológica, rapidamente tornaram-se entremeadas na rede de análises que reconstruiu a vida doméstica e deu à maternidade e à maternagem um novo status e um novo significado.” (Armstrong, 1986: 213). Shorter aponta que um índice sólido na transformação da maternagem está no abandono do uso do enfaixamento de crianças, o que passou a permitir um outro tipo de interação mãe-bebê: “ (...) Liberar a criança das amarras de roupa branca significaria liberá-la para interagir com uma nova mãe brincalhona. (...).” (Shorter, 1977: 197).9 se a 1839, 1845 a 1843, e assim sucessivamente (Armstrong, 1986: 230 n.1). 8 Este ponto será explicitado mais adiante. 9 Dr. Gilibert assim descreve a técnica de enfaixamento que o enfurecia: “ A ama estica o bebê sobre um colchão de tábua ou palha e o envolve numa pequena camisola ou fralda de tecido grosseiro enrugado, sobre o qual ela começa a enrolar as faixas.[Ela] prende os braços do bebê contra seu [dele] tórax, e passa 14 1.2) Amas-de-leite e mortalidade infantil O recurso a amas mercenárias existia na Europa desde o século XIII, e difundiu-se ao longo dos séculos a ponto de, no século XVIII, haver escassez de amas. O envio para amas variou enormemente entre os países e classes sociais, mas tornou-se uma prática social corrente, de toda maneira. Não há praticamente registro do que se passou entre os séculos XIII e o XVIII. Os poucos disponíveis encontram-se esparsos em testemunhos pessoais, memórias e diários. No século XVI, só mães aristocratas contratavam amas-deleite. Ao longo do século XVII o hábito se generalizou na burguesia e, no século XVIII, o hábito de entregar recém-nascidos a amas-de-leite estava largamente difundido nas áreas urbanas na França e em outros países da Europa, estendendo-se praticamente a todas as classes sociais (Badinter, 1985: 67). As camponesas amamentavam ou alimentavam à mão seus próprios bebês, e mesmo assim porque não tinham dinheiro suficiente para pagar uma ama; além disto aceitavam outros bebês para amamentar. Nas outras classes, os ganhos da mulher ou do marido permitiam a contratação, e despachar bebês para amas tornou-se um sinal de status elevado. Muitas mulheres pobres em área rural despachavam seus bebês para poderem amamentar outros, ganhando mais. Shorter considera altamente significativo o fato de que as trabalhadoras de fábrica nunca despachassem seus bebês ou pegassem outros para amamentar, sugerindo que este grupo representaria a vanguarda da modernização. Argumenta que o fato de manterem seus bebês consigo e cuidarem exclusivamente deles, apesar da pobreza extrema, poderia ser devido a suas atitudes já serem ‘modernas’, entendendo-se por ‘moderna’ a relação de privacidade da mãe com seu bebê, núcleo de uma nova construção familiar. Neste sentido, as camponesas não poderiam ser consideradas modernas, pois aceitavam outros bebês para amamentar (Shorter, 1977: 177). Nos séculos XVII e XVIII, segundo F. Lebrun, a mortalidade de crianças até um ano de idade nunca era menor que 25% dos nascidos vivos (Lebrun, 1976 apud Badinter, 1985: 137).10 Este índice variava em função da salubridade, do clima e do ambiente, além a faixa abaixo de sua axilas, o que pressiona os braços firmemente no lugar (...) enrola com diversas voltas a faixa até as nádegas, cada vez mais apertado, empurrando a fralda para entre as coxas do infante, e vai embrulhando todas as dobras com as faixas mais largas (...) vai assim até os pés e, depois deste trabalho ‘perfeito’, cobre a cabeça do bebê com uma touca; um lenço recobre a touca e pende até as costas, sendo fixado com alfinetes. Assim se faz o enfaixamento de bebês.” (Gilibert, 1772 apud Shorter, 1977: 197). 10 Na perspectiva de Armstrong: “ O ‘problema’ da mortalidade infantil não era [portanto] uma constante histórica; ele não se escondia nos subterrâneos da sociedade à espera de ser descoberto por um público esclarecido, mas sim foi inventado por uma análise que estabeleceu sua existência naquele exato momento e, por extensão, no passado. É, portanto, apenas do ponto de vista do início do século XX que a mortalidade infantil existiu antes do fim do século XIX.” (Armstrong, 1986: 214). Os dados estatísticos citados daqui por diante, provenientes de Badinter (1985) e Shorter (1977), estão imbuídos deste ponto de vista. 15 do modo de alimentação das crianças, o que era feito basicamente de três maneiras: aleitamento materno, aleitamento por amas (contratadas a domicílio – raramente – ou morando no campo – o mais freqüente) e aleitamento por amas em asilos. Verificou-se que, em regra, as crianças aleitadas pelas próprias mães morriam duas vezes menos do que as confiadas a amas-de-leite (Badinter, 1985: 138). A morte atingia, portanto, crianças de praticamente todos os estratos da sociedade. As famílias mais abastadas contratavam amas-de-leite a domicílio, mas a maior parte das amas residia no campo.11 Em estudo sobre a mortalidade infantil no subúrbio sul de Paris entre 1774 e 1794, Paul Galliano apontou que 88% das crianças mortas em casas de amas vinham das áreas mais abastadas da cidade. Os filhos dos camponeses remediados ou ricos não eram entregues a amas (Galliano, 1966 apud Badinter, 1985: 71). Não se pode considerar este dado como surpreendente, dado que as amas-de-leite muitas vezes viviam em condições miseráveis e eram extremamente mal pagas. Tal situação levava-as a aceitar um grande número de recém-nascidos para amamentar ao mesmo tempo, o que reduzia consideravelmente as chances de sobrevivência dos bebês a elas confiados. A pobreza extrema, imundície e penúria da habitação de uma ama são assim descritas por uma comissão de abandonados, em 1841, e por Dr. Charles Monod, em 1872: “ (...)‘as habitações de muitas amas são mal arejadas. Várias têm só um cômodo, no qual estão juntos berços e arcas. Algumas têm apenas uma cama com três bebês.’ E, numa casa típica de ama-de-leite em Nièvre, os ocupantes freqüentemente despejavam sua água suja com dejetos no chão dentro de casa, ‘incapazes de se darem ao trabalho de jogá-la fora dela.’ O animais domésticos – porcos, cabras, bodes, carneiros e galináceos – moravam junto com a família. A lareira ‘fornecia tanto calor quanto ar frio’ posto que, para ventilar a fumaça, a porta tinha que inevitavelmente ser deixada aberta, o que jogava correntes de ar frio mortais para o bebê. Além de duas ou três camas enormes, havia vários berços suspensos como redes indígenas, uns acima dos outros. Bem na porta ficava a pilha de fertilizante, e os cantos e rachaduras da habitação eram vedados com palha podre. Embaixo dos pés esguichava ‘uma espécie de água preta, esverdeada e fétida’. Em outras palavras, exatamente um lugar para bebês.” (Shorter, 1977: 179). Outro problema consistia na desatenção e negligência das amas, conforme descrito por Dr. Jousset e publicado por Dr. Brochard em Mortalité des nourrissons [1866]: “ Má habitação e imundície eram, afinal de contas, a regra geral para as 11 Em 1780 em Paris, para uma população de 800 a 900 mil habitantes, em 21 mil crianças nascidas, apenas mil eram amamentadas pelas próprias mães; outras mil eram amamentadas por amas a domicílio, entre 2 e 3mil enviadas para amas perto de Paris e o restante era despachado para amas longe da cidade (Badinter, 1985: 68). 16 crianças pobres. O mais perigoso era a desatenção das amas. Há histórias de horror acerca de negligência: ‘A ama estava bêbada e carregava a criança de cabeça para baixo. Eu vi qual seria o destino daquela pobre e inocente criatura. Designado, meses depois, pela comissão de polícia, para investigar a morte daquele bebê que tinha chegado a Nogent tão robusto e rosado, encontrei na choça que a mulher habitava uma pequena personagem, com suas feições enrugadas, jogada sobre um colchão de palha imundo e fedorento, sem lençóis. A pobre criança estava morta, de fome e de miséria. Na ausência da ama, que tinha se estendido por toda a manhã, os vizinhos tinham finalmente ficado tocados pelos gritos lastimosos, que de repente pararam. Eles tiveram que arrombar a porta para se certificarem que o bebê estava morto.’(...)” (Shorter, 1977: 179180). Cabe observar que esses depoimentos já contêm uma visão escandalizada das condições das crianças entregues aos cuidados das amas, o que indica dois aspectos: primeiro, que nas classes pobres a indiferença parecia ser a norma e, segundo, que já havia uma mudança na sensibilidade social acerca de bebês. No primeiro exemplo observa-se que havia sido criada uma ‘comissão de abandonados’ para inspecionar as casas para onde estes bebês eram enviados pelo governo, e o segundo exemplo consiste em um depoimento do médico designado por uma comissão de polícia para investigar a morte de um bebê. Os dados mais completos acerca de amas-de-leite vêm da França, onde a atividade de despachar bebês tornou-se altamente organizada. Havia agências públicas e privadas para envio de bebês.12 As famílias preferiam as agências privadas, numa proporção anual de 12.000 para 2.000 ou 3.000 bebês enviados, respectivamente, pelas agências privadas e oficiais (Shorter, 1977: 178). Os pais raramente visitavam os filhos. As condições de transporte dos recém-nascidos faziam com que vários morressem antes de chegar às mãos das amas. Badinter considera que a entrega de bebês a amas era um infanticídio disfarçado, uma vez que o enorme número de acidentes e mortes de bebês entregues a elas não impediam que as mesmas mães continuassem mandando seus bebês para as mesmas amas (Badinter, 1985: 141).13 12 Algumas agências falsificavam as idades dos bebês das amas para fazer coincidir com a idade dos ‘candidatos’, o que Shorter considera uma questão de ‘desinformação médica’: na época acreditava-se que o leite correspondia à idade do bebê (Shorter, 1977: 178). A afirmação de Shorter, contudo, baseia-se em uma desinformação de sua parte: pesquisas recentes demonstram que a composição do leite da mãe efetivamente varia à medida que seu bebê cresce. 13 Para mais dados acerca de infanticídio na Europa, ver Shorter (1977: 311 n.22). Para uma análise sobre processos de infanticídio no Brasil no início do século XX, ver Rohden (2000: 161-189). 17 1.3) A mortalidade infantil e a transformação do sentimento materno A literatura sobre criação de filhos e higiene infantil começa a ser avidamente consumida pela burguesia a partir de 1815. Em meados do século XIX declinam os internatos em relação ao século anterior (Ariès, 1962 apud Shorter, 1977: 192) e as mães preocupam-se muito mais com a saúde dos bebês. Nenhuma estatística pode ser vista como a ‘prova definitiva’ do sentimento materno: este pode apenas ser inferido através das modificações no modo de agir. Shorter considera que no início do século XX o processo de transformação na maternagem estava praticamente completado. Mesmo assim, ainda havia locais onde vigorava a forma tradicional de se lidar com crianças, geralmente no campo, o que para este autor é muito mais um indicador de atrasos na modernização do que propriamente uma diferença permanente entre os estilos de vida urbano e rural (Shorter, 1977: 196). Para Armstrong a mortalidade infantil, no início do século XX, torna-se o ponto de articulação entre o social, a vigilância dos novos esquemas de bem-estar (welfare), a análise da vida doméstica e a higiene, assim como uma avaliação da maternidade (Armstrong, 1986: 213-214). Seu ponto de vista caminha em paralelo com o de Shorter que, em estudo sobre a transformação do sentimento materno desde o século XVIII, evidencia a mudança da atitude geral da sociedade com as crianças, no século XX. Shorter reforça seu argumento acerca desta transformação ampla apontando que, com o advento da pasteurização e a produção de alimentos ‘cientificamente’ preparados, houve um movimento renovado de abandono da amamentação. Contudo, nem por isso a mortalidade infantil aumentou significativamente, o que indica uma melhoria geral no cuidado com os bebês (Shorter, 1977: 188).14 O ponto que falta ser aprofundado, de acordo com Shorter, é a persistência de um diferencial de classe nessas mudanças. Apesar de todos os protestos de médicos desde meados do século XVIII, somente um século mais tarde a prática das classes populares começaria a se modificar. Nas classes médias e superiores urbanas na França o enfaixamento começou a declinar em torno da metade do século XVIII, o mesmo ocorrendo nas cidades da província. Outros países além da França passaram pelo mesmo processo de abolição das faixas, em diferentes tempos de implantação. A Inglaterra foi 14 No que tange à alimentação dos bebês, Shorter assinala as variações entre os países: na França, em 1920, ainda havia cerca de 7% dos bebês legítimos despachados para amas. Em outros países havia dois padrões: amamentação ao seio e por mamadeira (breast-feeding e hand-feeding), pela mãe. As mulheres na Inglaterra e Estados Unidos saíram do mercado de trabalho para cuidar e amamentar os filhos, atitude sustentada por valores sociais: a tradição da esposa dona-de-casa. Na Escandinávia e Alemanha do norte esta atitude era estimulada pelo Estado. Na Holanda, Áustria e Alemanha do sul a mamadeira foi largamente utilizada no 18 bastante avançada neste sentido; na puritana Nova Inglaterra parece nunca ter existido o enfaixamento, mas talvez isto seja apenas reflexo do vanguardismo inglês nesse aspecto. Na Alemanha foi o contrário: há relatos de enfaixamento até os anos 1840, o mesmo tendo ocorrido em Viena e Göttingen (Shorter, 1977: 199).15 1.4) Abandono de bebês e mortalidade infantil O abandono de bebês era praticado em larga escala. Não se sabe qual era a porcentagem de bebês legítimos entre os abandonados. Alguns estudiosos apresentam como mínima no século XVIII, em Ardèche; um outro calcula a proporção de quatro quintos nas proximidades de Limousin, na mesma época. Grosseiramente, algo em torno de 15% dos bebês abandonados no Hospital Geral de Paris em 1760 eram legítimos e, um século depois, a proporção mantinha-se a mesma (Shorter, 1977: 173). “ (...) Para se ter uma ordem de grandeza, retenha-se que em torno de meados do século XIX, na França, aproximadamente 33.000 crianças eram abandonadas a cada ano. Qualquer bebê abandonado de mais de um mês de idade era considerado legítimo (usando a lógica de que mães solteiras abandonariam seus bebês logo que possível), e fitinhas e notas presas às roupas de alguns davam pistas suplementares – logo, as autoridades dispunham de alguma base para desconfiar de seu status legítimo. Poderíamos estimar que entre um décimo e um quarto de todos os bebês achados eram legítimos. Isto significa que, num dado ano, talvez cinco mil crianças seriam abandonadas por suas famílias.” (Shorter, 1977: 174). O abandono de crianças em Paris era em média – entre 1773 e 1790 – de 5800 ao ano, em um total de nascimentos que variava em torno de 20 a 25 000 bebês/ano (Lebrun, 1976 apud Badinter, 1985: 140). Embora as principais razões do abandono fossem de ordem econômica e social, não era infreqüente o encontro de bebês abandonados com um rico enxoval. Nos asilos, no último terço do século XVIII, as taxas de mortalidade até um ano de vida eram altíssimas: 90% no asilo de Rouen, 84% em Paris, 50% em Marselha (Badinter, 1985: 141). O motivo principal de abandono consistia em uma pobreza desesperada: quando aumentava o preço do trigo no século XVIII, o mesmo acontecia com o número de bebês entre-guerras (Shorter, 1977: 189). 15 Mesmo que os adjetivos deste parágrafo possam, a meu ver, ser indicativos de um certo ufanismo anglosaxão por parte de Shorter, é interessante notar que, conforme aponta Ariès, o termo ‘bébé’ não existia ainda na França no século XIX, tendo sido tomado por empréstimo do inglês ‘baby’ (Ariès, 1978: 45). Além deste aspecto, vale sublinhar o paralelismo, já comentado acima, entre a modernização do comportamento em relação aos bebês e a formação dos Estados absolutistas, acompanhando o surgimento do Indivíduo como valor, na Europa. Aparentemente, a expansão do Individualismo, a modernização do Estado e a mudança no tipo de atenção dispensada ao bebê seguem grosso modo a mesma seqüência: Inglaterra, França e Alemanha. Este ponto será retomado mais adiante. 19 abandonados. Além disso, quanto mais alto o preço, maior a idade dos bebês, o que indicava que os pais se livravam dos recém-nascidos e dos maiores também. Para outros autores o motivo seria a indiferença. O estudo acerca do envio de bebês para amas-de-leite mostra que a separação do bebê de sua mãe era uma prática sistemática de todas as classes, pobres ou não (Shorter, 1977: 174). Sabe-se bastante sobre a classe média e muito pouco sobre as classes pobres. Um dos argumentos centrais desenvolvidos por Shorter é que a transformação no sentimento materno não ocorreu de forma homogênea em toda a sociedade. Ele variou no tempo, de acordo com a classe social. O início da transformação ocorre nas classes dominantes e só muito lentamente estende-se às camadas mais pobres da população (Shorter, 1977: 168204). Tomando-se o abandono de bebês recém-nascidos como um indicador, apenas ao longo dos anos 1860 surgem nas classes desfavorecidas sinais mais diretos de atenção às crianças. Antes dessa época as melhorias existentes nos cuidados dispensados à infância decorriam de iniciativas e ações do Estado. Estas ações consistiam em transferência dos bebês para locais desconhecidos – de forma a impedir que as mães abandonassem os filhos para o Estado prover e ao mesmo tempo continuassem a vê-los – ou na distribuição de pequenos subsídios para mães solteiras que quisessem manter seus filhos junto a si.16 Os anos após 1860 marcam um ponto crítico na mudança de atitude na França, refletida na diminuição acentuada nas taxas de abandono de crianças, o que pode ser em parte devido à supressão da ‘roda’ no hospital de Rouen. Há também um aumento do número de legitimações de bebês bastardos, outro indicador de mudança no sentimento materno: “ (...) A legitimação pode ser tanto um indicador de formação de lares estáveis, quanto de sentimento materno. Mesmo assim, a necessidade de estabelecer essas pequenas e ternas células emocionais nas quais a criança ilegítima de alguém pudesse ser tomada e criada como as outras, indicava definitivamente o amor da mãe por seu bebê.” (Shorter, 1977: 195). Podemos dizer, em resumo, que as taxas de mortalidade infantil, ao mesmo tempo em que foram sendo construídas, geraram também um novo imperativo: a sobrevivência das crianças. Como a mortalidade maior verificava-se no primeiro ano de vida, este passou a ser o foco das atenções no sentido de uma política para saná-la. O Estado toma uma série de medidas no sentido de desestimular o abandono de bebês, emerge na sociedade um novo sentimento materno e, estabelecendo a conexão da 16 Para mais exemplos destas medidas, ver Shorter (1977: 193). Para uma discussão sobre filantropia e seu significado, ver Donzelot (1986: 68-89). 20 mortalidade infantil com o hábito difundido de envio das crianças recém-nascidas para amas-de-leite, as atenções dirigem-se para as mães no intuito de fazê-las voltarem a amamentar seus filhos. 21 Capítulo 2 A MULHER, O BEBÊ E A CONSTRUÇÃO DO AMOR MATERNO COMO UM VALOR “ – Procurem compreender – disse, e sua voz causou-lhes um frêmito estranho na região do diafragma. – Procurem compreender o que significava ter uma mãe vivípara. Novamente aquela palavra obscena. Mas, dessa vez, nenhum deles pensou em sorrir. – Procurem imaginar o que significava ‘viver no seio da família’. Eles tentaram imaginar; mas, evidentemente sem nenhum êxito. – E sabem o que era um ‘lar’? Abanaram a cabeça.” (Aldous Huxley, 1981: 43).17 ✼ “ Não restava a Lenina senão afrontar, sem socorro exterior, os horrores de Malpaís. Estes se abateram sobre ela, abundantes e rápidos. O espetáculo de duas mulheres moças dando o seio a seus bebês fê-la corar e virar o rosto. Nunca tinha visto, em toda sua vida, coisa tão indecente. E o que tornava aquilo ainda pior era que, em vez de fechar os olhos discretamente, Bernard se pôs a fazer comentários francos sobre o revoltante espetáculo vivíparo. (...)” (Aldous Huxley, 1981: 105). Nos anos 1760 – após a publicação do Émile [1762], de Rousseau – multiplicam-se na França publicações que recomendam às mães que cuidem pessoalmente dos filhos e, praticamente, ordenam-lhes que os amamentem. Segundo Badinter, estas publicações: “ (...) impõem, à mulher, a obrigação de ser mãe antes de tudo, e engendram o mito (...): o do instinto materno, ou do amor espontâneo de toda mãe pelo filho.” (Badinter, 1985: 145). Shorter frisa que as mães da sociedade tradicional não eram monstros.18 A 17 Brave New World foi publicado pela primeira vez em 1932. O termo ‘tradicional’ é utilizado aqui no sentido dumontiano, referindo-se à sociedade holista, tradicional e hierárquica, distinta da sociedade individualista, moderna e igualitária (Dumont, 1993). 18 22 indiferença materna ocorria em função de que circunstâncias materiais – e culturais – subordinavam o bem-estar dos bebês a outras prioridades como, por exemplo, cuidar da fazenda ou ajudar o marido na tecelagem. Shorter localiza a emergência do amor materno no momento em que há uma reordenação das prioridades e as mães passam a colocar a felicidade de seus bebês acima de tudo (Shorter, 1977: 169). Badinter destaca em seu livro sobre a construção do amor materno que não pretende dizer que as mães não possuíssem nenhum tipo de sentimento por seus filhos antes desta época. O que passa a existir de novo é a exaltação do sentimento das mães pelos filhos como um valor moral e social, sendo para tal fim transformado em ‘natural’ e “ favorável à espécie e à sociedade” (Badinter, 1985: 146). A junção das palavras ‘amor’ e ‘materno’ – associadas a uma valoração do conceito – indicam a promoção, tanto do sentimento, quanto da mulher como mãe. Na família, o foco deslocava-se da autoridade para o amor, a mãe passando a ocupar um lugar de maior importância, em detrimento do pai. Este movimento parece inserir-se no aspecto mais amplo, descrito por Foucault, da transição do regime punitivo para o regime disciplinar. Nesta transformação, o governo passa a significar ação racional do Estado sobre a vida dos governados (Foucault, 1990: 92). A passagem gradual da autoridade paterna – na qual os pais tinham direitos sobre a vida e a morte dos filhos – para a autoridade materna, agora responsável pela vigilância e educação das crianças, corresponde ao movimento no qual: “ [Instalam-se as disciplinas] (...) Diferentes da escravidão, pois não se fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância da disciplina dispensar esta relação custosa e violenta obtendo efeitos de utilidade pelo menos igualmente grandes (...)” (Foucault, 1999: 118).19 Em sua reflexão, Badinter aponta que: “ Se outrora insistia-se tanto no valor da autoridade paterna, é que importava antes de tudo formar súditos dóceis para Sua Majestade. Nesse fim do século XVIII, o essencial, para alguns, é menos educar súditos dóceis do que pessoas, simplesmente: produzir seres humanos que serão a riqueza do Estado. (...)” (Badinter, 1985: 146).20 Nem a sociedade em geral, nem as mulheres em particular demonstravam grande interesse pela criança, como Badinter explana exaustivamente na primeira parte de seu livro. Este quadro coincide com a observação de Ariès de que o ‘sentimento de infância’ – 19 Sobre esta questão, ver também Donzelot (1986). Apenas a título de curiosidade, vale notar que, embora esta descrição – como diversas outras ao longo do livro Um amor conquistado: o mito do amor materno – e o próprio conceito de ‘discurso’ utilizado pela autora sigam muito de perto o pensamento de Michel Foucault, em momento algum Elisabeth Badinter faz referência a esse autor. 20 23 a consciência da particularidade infantil que a distinguia do adulto, que vinha sendo construída desde o século XVI – não implicava necessariamente um sentimento de afeição pela criança (Ariès, 1978: 156). Shorter complexifica a evolução do sentimento de infância delineado por Ariès, apontando que nas classes populares essa modificação ocorreu em época bem posterior – a partir do último quarto do século XVIII e, em alguns casos, consideravelmente mais tarde. Esse autor amplia a questão levantada por Ariès, comparando as diferenças no sentimento materno de acordo com a classe social, e como a difusão das novas atitudes variou no tempo de acordo com o estrato social enfocado. Não se trata apenas da questão dos maus-tratos dispensados à criança: “ (...) Apesar da violência física ser abundante tanto nas grandes quanto nas pequenas cidades, esta persiste até hoje e, em todo caso, não é um bom indicador do inverso da afeição. (...)” (Shorter, 1977: 170). O que está em jogo é todo um conjunto mais amplo de atitudes, que vai desde a atenção dada à própria sobrevivência dos bebês, até sua alimentação e desenvolvimento, passando pela preocupação com sua saúde e criação (aí incluída a educação). Tendo como pano de fundo a ideologia iluminista e a produção de uma racionalidade e de um discurso científico que a validavam, moralistas, administradores e médicos desenvolvem um discurso sedutor de igualdade e felicidade para as mulheres: sendo ‘boas mães’ adquiririam o direito à cidadania (Badinter, 1985: 147).21 No ideário Iluminista, o Indivíduo emerge como um valor ‘universal’, e ‘todos os homens nascem livres e iguais’. A religião começa a ser alvo de críticas por parte de alguns dos filósofos iluministas, sendo vista por eles como obscurantista e retrógrada, as Ciências – e, em particular, as Ciências da Natureza – emergindo como uma grande via alternativa de acesso à ‘Verdade’. Um discurso, entretanto, só se torna de fato sedutor quando formula e conjuga em si questões e tensões em pauta em determinada sociedade, em um dado contexto histórico. O pensamento iluminista, gerador desse discurso ‘sedutor’ para as mulheres, emerge quando está se consolidando na Europa a passagem do feudalismo para o absolutismo, com o surgimento do Estado moderno – o que implica uma transformação na arte de governar, conforme mencionado anteriormente. Foucault assinala que, na passagem da arte de governar do ‘governo do território’ para o ‘governo das coisas’, a família representa um elemento central para o governo (Foucault, 1998a: 281). Esta mudança fica 21 Esta situação persiste até nossos dias, conforme aponta Petchesky em pesquisa desenvolvida pelo IRRRAG: “ (...) [Para as mulheres de diversos países, a] maternidade torna-se a categoria abrangente que, além de ordenar suas atividades econômicas, forma sua identidade social como cidadãs ou adultas.” 24 bem evidenciada nos autores que escreveram em oposição a Maquiavel. Em sua argumentação, defendem e explicitam as principais transformações ocorridas de uma forma de governar para a outra. Referindo-se à literatura anti-Maquiavel, reveladora dessa transição, Foucault aponta que: “ (...) O príncipe ‘maquiavélico’ é, por definição, único em seu principado e está em posição de exterioridade, transcendência, enquanto que nesta literatura o governante, as pessoas que governam, a prática de governo são, por um lado práticas múltiplas, na medida em que muita gente pode governar: o pai de família, o superior do convento, o pedagogo e o professor em relação à criança e ao discípulo. Existem portanto muitos governos, em relação aos quais o do príncipe governando seu estado é apenas uma modalidade. Por outro lado, todos estes governos estão dentro do Estado ou da sociedade. Portanto, pluralidade de formas de governo e imanência das práticas de governo com relação ao Estado: multiplicidade e imanência que se opõem radicalmente à singularidade transcendente do príncipe de Maquiavel.” (Foucault, 1998a: 280) (Grifos acrescentados). Torna-se evidente o papel estratégico da ‘mãe’, na expansão do poder e do controle que tem na família um elemento-chave para a multiplicidade e imanência do poder. No decorrer do processo de transformação de mentalidades e sensibilidades que vai resultar na maternidade-valor – moral e social – são construídos diversos discursos, dentre os quais Badinter destaca três: o discurso econômico – alarmante, dirigido aos homens esclarecidos; o discurso filosófico – dirigido a ambos os sexos, e um discurso dirigido especificamente às mulheres. Acrescento um quarto discurso, que perpassa e é concomitante a todos os outros: o discurso da Ciência. Os três primeiros se superpõem ao longo do tempo, reforçando-se mutuamente, mas há uma certa cronologia em seus surgimentos, acompanhando a ordem acima exposta. 2.1) O discurso econômico: a conservação de crianças O discurso econômico resulta de uma conceituação, pelos governantes, ao mesmo tempo, da existência e da importância da população no sentido definido por Foucault: “ (...) foi através do desenvolvimento desta ciência do governo [a estatística] que se pôde isolar os problemas específicos da população; mas também se pode dizer que foi graças ao isolamento deste nível de realidade, que chamamos de economia, que o problema do governo pôde enfim ser pensado, sistematizado e calculado fora do quadro jurídico da soberania. (...)” (Foucault, 1998a: 288). As primeiras pesquisas acerca desta questão, na França, surgem em meados do século XVII, com o grande recenseamento pretendido por Colbert em 1663, e daí em diante (Petchesky, 1998a: 20). 25 diversos censos foram realizados. A partir de então começa a se constituir uma preocupação com a idéia de diminuição do números de habitantes no país,22 causando alarme, chamando a atenção para a morte de crianças pequenas e também para o papel das mães e amas-de-leite nesta mortalidade (Badinter, 1985: 151). Rousseau afirmou que a Europa estava se despovoando porque “ (...) as mães já não queriam cumprir seu dever.” (Rousseau apud Badinter 1985: 152). A ênfase na conservação de crianças conduz à ampliação do ensino de técnicas médicas de assistência ao parto pelo ministro fisiocrata Bertin que, na década de 1760, solicita ao médico do rei – Joseph Raulin – a elaboração de uma obra dedicada às parteiras da província, com tradução nos diversos dialetos falados nas regiões visadas. Moheau, em 1778, aponta para o fato de que, em relação ao príncipe: “ (...) seus súditos lhe são semelhantes (...) eles [os governantes] deveriam pelo menos observar que o homem é ao mesmo tempo o último termo e o instrumento de toda espécie de produto; e mesmo considerado apenas como um ser que tem um preço, é o mais precioso tesouro de um soberano.” (Moheau, 1778 apud Badinter, 1985: 153-4) (Grifo original). A população – e junto com ela a criança – adquire um valor mercantil. Relembrando Buchan, em 1775: “ A medicina foi bem pouco atenta à conservação das crianças, e isso por indiferença e desconhecimento da riqueza potencial da infância (...)” (Buchan, 1775 apud Badinter, 1985: 80-1) (Grifo acrescentado). A idéia de ‘riqueza potencial da infância’ é um ponto de articulação do sentimento de infância, do investimento no futuro e do bio-poder. A infância deve ser conhecida, valorizada, disciplinada e cultivada porque nela residem o futuro e a riqueza da nação. O poder investe na criança que, concomitantemente, o sustentará e ampliará. Em meados do século XVIII, M. de Chamousset sugere que a eficácia em aumentar a população reside na atenção à sobrevivência das crianças. Ao concluir que as que eram abandonadas morriam mais facilmente, construiu um projeto visando transformar o que ele chamava de ‘peso morto’ – as crianças que morriam “ antes que se pudesse extrair delas alguma utilidade” – em força de produção rentável para a sociedade (Chamousset, 1756 apud Badinter, 1986: 156). Seu projeto incluía aleitamento artificial dos bebês 22 Colbert, em sua época, tomou várias medidas visando o incentivo ao repovoamento. Foi dada isenção de impostos aos pais de família que conseguissem criar 10 filhos e concedidas facilidades fiscais aos rapazes que se casassem até os 20 anos, no máximo (Badinter, 1985: 150). Estas medidas, entretanto, não foram suficientes para resolver o problema da natalidade e do ‘despovoamento’ da França. O motivo do insucesso destas medidas será discutido mais adiante. 26 abandonados e a exportação deles para povoar as colônias.23 Além disto, Chamousset também sugeria o aproveitamento das crianças abandonadas na agricultura e na formação de exércitos (Badinter, 1985: 156-160): “ Crianças que não conhecem outra mãe senão a pátria (...) devem pertencer a esta e ser empregadas da maneira que lhe seja mais útil: sem pais, sem apoio além do que um sábio governo lhes proporciona, elas não têm a que se apegar, e nada a perder. Poderia a própria morte parecer temível a esses homens que nada parece prender à vida, e que se poderia familiarizar desde cedo com o perigo, caso se lhes destinasse o serviço como soldados?” (Chamousset, 1756 apud Badinter, 1985: 158-9). Há neste processo, evidentemente, uma percepção da importância estratégica da criança para o poder do Estado: ela vai gradualmente passando da condição de fardo ou estorvo para a de um aumento potencial de força de produção, investimento lucrativo para a nação. Estes discursos populacionistas de economistas e filantropos dirigiam-se aos homens, que não estavam diretamente ligados às crianças, e a premência em envolver as mulheres neste projeto era evidente.24 No final do século XVIII surgem algumas iniciativas, tanto do Estado quanto de particulares, em várias cidades, de ajuda a mães necessitadas. 25 Badinter pontua que a urgência em envolver as mulheres gerou uma nova retórica, mais gratificante e exaltante do que o discurso econômico alarmante. O novo discurso calcava-se em valores – iluministas – como igualdade, amor e felicidade e atingia igualmente os homens e as mulheres (Badinter, 1985: 160). 23 Particularmente para a colônia americana de Louisiana, onde seu irmão investira todo o seu capital (Donzelot, 1986: 16). 24 A medicina desempenharia um papel fundamental neste processo, conforme será discutido adiante. 25 Na Inglaterra, Thomas Robert Malthus, pastor anglicano e economista publicou em 1798 An Essay on the Principle of Population, no qual advogava medidas opostas à assistência favorecendo a natalidade nas classes populares. Sua tese era que a população crescia em uma progressão geométrica, enquanto a produção de alimentos aumentava em uma progressão aritmética, daí concluindo que era necessário controlar a natalidade para evitar a miséria decorrente desta desproporção. Os métodos preconizados por ele eram o da abstinência e o da reeducação dos homens, que só deveriam constituir lar e ter filhos “ quando pudessem ter meios de sustentá-los” (Malthus, 1972: 4220). O maltusianismo evoluiu e ultrapassou o campo demográfico, adquirindo um sentido econômico, sobre o qual não cabe aqui um desenvolvimento. O que vale reter neste ponto é o quanto, no final do século XVIII, na Europa, a questão da população estava em foco como um problema a ser enfrentado, de uma forma ou de outra – estimulando ou contendo a expansão –, por pensadores e governantes. Além deste aspecto cabe sublinhar que, tanto o estímulo à natalidade e conservação de bebês, quanto a limitação do número de filhos apontam, por caminhos diversos, na direção de uma valorização da criança. 27 2.2) O discurso dos valores iluministas: novos Indivíduos O ideário iluminista enfatizava, além da liberdade e igualdade, a busca da felicidade individual. A igualdade dizia mais respeito aos homens entre si, e as mulheres e as crianças não pareciam estar incluídas explicitamente no projeto igualitário. Mesmo assim, este acarretou um certo grau de homogeneização entre as três categorias. Com o relativo declínio da autoridade paterna, mulheres e crianças adquiriram alguma autonomia. A modificação da mentalidade em relação à criança, à família e, finalmente, à mulher, é ilustrada por Badinter (1985) através de dois textos: o Contrato Social de Rousseau, e a Enciclopédia. Na Enciclopédia há uma visão de transição, parte ligada à tradição e parte ligada aos novos valores. Pendendo para a tradição, havia a noção do poder paterno como tendo origem natural e divina. Do lado dos novos valores emergentes, os enciclopedistas consideravam que o poder paterno tinha limites e passavam a chamá-lo de poder parental, aí incluindo, portanto, a mãe. O novo poder sobre a criança é fundado em sua ‘fraqueza’ – posto que não pode zelar por si mesma – aliada à noção de que a criança tem uma especificidade (Badinter, 1985: 162). Assim gera-se a idéia de que a criança deve ser trabalhada, educada e aperfeiçoada.26 A autoridade dos pais é justificada pelo bem das crianças, e a subsistência delas passa a ser mais importante para a sociedade do que criar ‘súditos dóceis’. As idades da criança demandam diferentes graus de autoridade paterna e materna. Deste modo, na 1a idade a criança necessita de toda autoridade do pai e da mãe, por ser totalmente incapaz de se cuidar sozinha, enquanto na puberdade já há alguma autonomia, embora ainda precise ser dirigida por se tratar de um ser muito instável. Finalmente, na idade adulta, a autoridade dos pais torna-se limitada, e os filhos devem reconhecê-los como seus benfeitores e manifestar-lhes respeito e afeição. Para os enciclopedistas, os pais tinham o direito de exigir a reverência e o afeto dos filhos. A educação visava capacitá-los gradualmente para a autonomia. Segundo os enciclopedistas, os pais tinham direitos em relação aos contratos matrimoniais de seus filhos adultos, de modo que mesmo a autonomia destes era ainda relativa (Badinter, 1985: 163). No Contrato Social, Rousseau vai mais além, delineando uma teoria totalmente nova sobre a família; para ele, a família é a única sociedade natural, onde o laço entre pais e filhos se mantém apenas enquanto os filhos precisam dos pais: 26 A construção desta noção de uma especificidade infantil, que devia ser trabalhada e burilada através de uma forma educacional adequada às crianças, vinha sendo produzida desde o século XVII. O trabalho desenvolvido por Jacqueline Pascal, em Port-Royal, é um exemplo cabal dessa nova pedagogia (Ariès, 1978: 140-2). 28 “ (...) logo que essa necessidade cessa, o laço natural se dissolve. Os filhos, isentos da obediência que deviam ao pai, os pais, isentos dos cuidados que deviam aos filhos, recobram todos igualmente a independência (...) se continuam unidos, isso já não ocorre naturalmente, mas voluntariamente, e a família em si só se mantém por convenção.” (Rousseau, 1762 apud Badinter, 1985: 164) (Grifos originais). Este é o ideário individualista do Iluminismo, exposto claramente por Rousseau. O objetivo da educação dos filhos é a sua independência, a formação de indivíduos livres e autônomos.27 Uma implicação apontada por Badinter no texto citado é que, quando Rousseau diz que a família é a única sociedade natural, está implicitamente recusando a legitimação da autoridade política do rei sobre seus súditos partindo do modelo da autoridade do pai sobre os filhos; outra conseqüência importante deste texto é a noção da família como uma sociedade provisória (Badinter, 1985: 164). A nova conceituação de dissolubilidade da sociedade familiar emerge no contexto da mudança que vinha ocorrendo na arte de governar. Enquanto esta se baseava no modelo da família, a arte do governo encontrava-se ainda parcialmente bloqueada e sem ter sua dimensão própria. Segundo Foucault: “ (...) o problema do desbloqueio da arte de governar está em conexão com a emergência do problema da população; trata-se de um processo sutil que, quando reconstituído no detalhe, mostra que a ciência do governo, a centralização da economia em outra coisa que não a família e o problema da população estão ligados.” (Foucault, 1998a: 288). Neste ponto intervinha a estatística que: “ (...) vai revelar pouco a pouco que a população tem uma regularidade própria (...) características próprias e que seus fenômenos são irredutíveis aos da família (...) Permitindo quantificar os fenômenos próprios à população revela uma especificidade irredutível ao pequeno quadro familiar. A família como modelo de governo vai desaparecer. Em compensação, o que se constitui neste momento é a família como elemento no interior da população e como um instrumento fundamental.” (Foucault, 1998a: 288) (Grifo acrescentado). A nova família passava a ser um segmento privilegiado da população para a obtenção de informações e, ao deixar de servir de modelo ao governo, trazia consigo um desbloqueio na arte de governar.28 Esta passava então a agir diretamente sobre a população através de campanhas e, indiretamente, através de técnicas que iriam permitir, por exemplo, aumentar as taxas de natalidade ou influir em fluxos migratórios da população, 27 Vale assinalar de passagem o paradoxo de que cabe à família – com um formato predominantemente hierárquico – a produção de indivíduos igualitários. 28 Para uma discussão aprofundada sobre o governo ‘pela família’, ver Donzelot (1986). 29 chamando a atenção para determinadas regiões (Foucault, 1998a: 289). O já mencionado fracasso das campanhas populacionistas de Colbert, cem anos antes, pode ser compreendido, portanto, pelo seguinte enfoque: para que as campanhas pudessem de fato tornar-se eficazes foi necessária a consolidação tanto de uma mudança no interior da família como no modelo de governo. Rousseau advogava os cuidados às crianças como um dever moral, sem usar o termo ‘instinto’, que seria utilizado mais tarde nas campanhas em prol da amamentação. Mesmo em sua descrição do hipotético ‘estado de natureza’, os cuidados aos filhos decorreriam de uma necessidade física da mãe, e só depois ela se apegaria àqueles. A mãe amamentaria seu bebê para livrar-se do leite que a incomodava e apenas a partir de então se desenvolveriam laços de ternura em relação à criança. Rousseau, que pode ser considerado como o porta-voz na França da idéias de Locke sobre a infância (Menuret de Chambaud, 1786 apud Shorter, 1977: 183), começou a ser bem aceito e difundido. Entre essas idéias havia a de se dar maior liberdade às crianças, libertando-as das faixas, e um cuidado maior com a alimentação, banindo a ‘pap’: 29 “ (...) O que é de especial interesse aqui é a associação entre amamentação materna e uma preocupação renovada pelo bem-estar da criança como um todo, evidência de que amamentar era parte de um conjunto maior de atitudes em relação à criança. (...)” (Shorter, 1977: 183). Para Rousseau, no “ estado natural” não há a noção de paternidade: só no “ estado social” os homens desempenham uma função paterna – a autoridade que acompanha a proteção do filho (Badinter, 1985: 166). Shorter concorda que o Émile [1762], de Rousseau, pode ser tido como um marco útil na história intelectual, mas discorda da posição difundida de que o livro é que teria sido o iniciador do movimento em favor da amamentação. Segundo Shorter, estas idéias já vinham circulando e, em 1760, elas já estavam bem encaminhadas, ao menos na classe média inglesa (Shorter, 1977: 182). Na França o costume de enviar bebês para amas-de-leite persistiu disseminado na população até o início do século XIX. Rousseau vai muito além dos enciclopedistas em sua postulação de que os laços entre pais e filhos podem ser rompidos após o crescimento destes, parecendo levar às últimas conseqüências a noção de Indivíduo, livre e autônomo. A possibilidade de ruptura de laços de sangue abre o campo para a criação de um outro tipo de laço – o do contrato social, voluntária e livremente escolhido pelo novo Indivíduo. A manutenção do vínculo 29 Mistura cozida de água, farinha e açúcar, dado aos lactentes quando o leite da ama secava ou quando havia muitos bebês para ela cuidar ao mesmo tempo (Shorter, 1977: 180). 30 familiar passa a se dar em outros termos, conforme expresso no Segundo Discurso: “ Cada família torna-se mais unida na medida em que o apego recíproco e a liberdade constituem seus únicos laços.” (Rousseau, 1755 apud Badinter, 1985: 168). Evidencia-se mais uma mudança neste momento: a noção da família como o lugar do afeto, correspondendo ao modelo de família nuclear que se consolidou na sociedade ocidental moderna. O ‘sentimento de família’ vincula-se de forma estreita ao ‘sentimento de infância’, que vinha sendo construído desde o século XVI. Erasmo afirmava, nessa época, que as crianças uniam a família, e que tal sentimento de união baseava-se na semelhança física entre os pais e seus filhos (Ariès, 1978: 223). O tratado de Erasmo sobre o casamento foi reimpresso no século XVIII, provavelmente como, ao mesmo tempo, forma de validação e de resposta a novas demandas resultantes da mudança na mentalidade.30 No Contrato Social, quando Rousseau afirma que “ o homem nasce livre” , há nessa afirmação uma equiparação de natureza entre pai e filho. A criança tem a sua condição de Indivíduo parcialmente dada, por ser livre desde o nascimento. O papel dos pais na educação é o de complementar a condição de Indivíduo, habilitando-o a tornar-se também autônomo. Deste modo há uma acentuação no sentimento de infância, com a noção simultânea de sua fragilidade específica e de seu potencial de desenvolvimento futuro. A educação das meninas seguia uma lógica específica, diferente da dos meninos. A visão de Rousseau a respeito da educação da mulher era de que ela deveria ser educada para ser esposa e mãe. Outros autores também se pronunciaram a respeito. Montesquieu, 20 anos antes, denunciava a desigualdade existente entre homens e mulheres e enfatizava o quanto a educação recebida pelas meninas era responsável por este estado de coisas. Holbach estabeleceu a mesma conexão. Voltaire ficou a meio caminho entre as duas posições, defendendo uma educação sólida para as meninas, mas com a finalidade precípua de que se tornassem melhores esposas e mães.31 Condorcet foi o filósofo iluminista que mais se empenhou em mostrar a igualdade natural e política entre homens e mulheres, militando pelos direitos políticos das mulheres (direito de voto e elegibilidade para cargos públicos). Para ele, os talentos femininos não se reduziam exclusivamente à maternidade; 30 Em nossos dias, a criança como elo de ligação e manutenção do casamento continua sendo um elemento de grande importância para a elaboração do discurso da construção social da ‘infertilidade’. Sarah Franklin cita como exemplo um artigo do The Times, de 9/4/83: “ Sarah Browne e seu marido estão ainda solidamente juntos, apesar de seus dez abortamentos e sete operações. Outros são menos fortes, achando que não conseguem permanecer unidos sem uma criança (...).” (Franklin, 1990: 213) (Grifos acrescentados). 31 Esse tema será retomado adiante. 31 parecia estar adiante de seu tempo, e ter a noção disto: “ Tenho medo de me indispor com elas [mulheres] (...) falo de seus direitos à igualdade e não de seu império; posso tornar-me suspeito de um desejo secreto de diminuí-las e desde que Rousseau mereceu os seus sufrágios, dizendo que elas só tinham sido feitas para cuidar de nós e não nos serviam senão para nos atormentar, não devo esperar que se manifestem em meu favor.” (Condorcet, 1791 apud Badinter, 1985: 172). Aparentemente, para que a mulher ascendesse à condição de Indivíduo,32 seria necessário passar antes pela produção de uma subjetividade bastante específica – apoiada na maternidade como um valor. À época de Condorcet este processo apenas se iniciava, o que pode esclarecer, ao menos em parte, o sucesso da literatura de Rousseau e o insucesso da de Condorcet junto ao público feminino. No final do século XVIII, tanto nas classes mais abastadas, quanto entre os burgueses mais modestos, estavam em construção algumas mudanças nas relações entre marido e mulher. Badinter atribui este fato a duas razões principais: o casamento ‘por amor’, transformando a mulher em companheira querida, e uma nova valorização da família e dos filhos, com os homens estimulando as mulheres a assumirem um papel mais ativo em relação à prole (Badinter, 1985: 173). Este último fator, embora não tenha trazido uma igualdade em termos políticos, forneceu a possibilidade de um lugar mais valorizado para a mulher, e o discurso iluminista da busca da felicidade e da valorização do amor reforçava esta relativa homogeneização entre os cônjuges e entre os pais e os filhos. Segundo Voltaire: “ O grande interesse, o único que devemos ter, é vivermos felizes.” 33 (Voltaire apud Badinter, 1985: 173). A religião gradualmente deixa de ser a única e exclusiva fonte de felicidade para os indivíduos; esta também passa a poder ser alcançada através do amor entre duas pessoas. A valorização da vida cotidiana vinha se construindo desde a Reforma protestante, constituindo-se assim o início da idéia de uma continuidade entre a felicidade terrena e a eterna (Figueiredo, 1992; Taylor, 1997). Mais do que apenas mais uma possibilidade, a busca da felicidade adquiria o caráter de uma obrigação.34 A felicidade podia ser obtida 32 Refiro-me ao Indivíduo livre e autônomo definido por Dumont (1993). Vale notar que o reforço nos sentimentos, a busca da felicidade e do amor – portanto o sentido de interioridade e de subjetividade – contidos no discurso iluminista, reforçam a tese de que o romantismo não teria surgido como uma oposição ao racionalismo iluminista, e sim emergido simultaneamente da mesma fonte, apenas como um contraponto ao discurso exclusivamente racionalista: “ (...) o século dos espíritos esclarecidos foi também o das almas sensíveis. Nesta medida as duas revoluções individualistas foram mais simultâneas do que sucessivas.” (Figueiredo, 1992: 107), sendo as ‘almas sensíveis’, cabe observar, geralmente identificadas com a mulher. 34 As discussões filosóficas e teológicas a este respeito atravessaram os séculos XVI, XVII e XVIII (Figueiredo, 1992; Taylor, 1997). 33 32 com o cumprimento do dever cotidiano, no trabalho e na família.35 As atitudes dentro da família foram amplamente atingidas e modificadas por este discurso do amor e da felicidade. Esta passava a ser realizada a dois – em primeiro lugar – ao invés de ser uma questão do sujeito isolado, em contato espiritual com a divindade. Essa transformação estava inserida no movimento mais geral de secularização da sociedade, apontado por Weber (1999). A burguesia encontrava aí a realização do sonho de ordem e harmonia, concretizado no âmbito familiar, que vai então se tornando, cada vez mais, um espaço privado. Badinter chama a atenção para o fato de que, pela primeira vez, uma modificação importante dos costumes não tem sua origem na aristocracia, e sim na classe burguesa ascendente. Essa transformação implicava tanto a valoração do amor conjugal como uma mudança na imagem da mulher e sua subsequente valorização (Badinter, 1985: 175). A modificação nos costumes a partir de uma classe emergente coaduna-se com a observação de Shorter acerca do fato de que outra classe emergente – a das trabalhadoras de fábricas – conservava seus filhos consigo, apesar da pobreza extrema, o que configuraria, para esse autor, uma atitude ‘moderna’ – valorização do vínculo mãefilho, privacidade e exclusividade nesta relação – e de vanguarda na formação da família nuclear tal como a conhecemos hoje (Shorter, 1977: 177). Pode-se portanto afirmar, no plural, que é das classes emergentes do processo de urbanização e industrialização da Europa que se inicia o movimento de transformação da atitude materna e também a do lugar da mulher e da prole, na família e na sociedade. A família nuclear constrói uma barreira contra o mundo exterior, constitutiva do sentimento de intimidade e de privacidade: em seu interior as pessoas podem ‘ser elas mesmas’, dar total vazão às suas idiossincrasias. Esta modificação no caráter da família está intrinsecamente ligada à mudança nas noções de ‘público’ e ‘privado’. Introduzo neste ponto um autor que apresenta um argumento bastante interessante e bem articulado acerca do redimensionamento das categorias ‘público’ e ‘privado’.36 Para Richard Sennett (1998), a expansão da burguesia nos séculos XVII e XVIII na Europa, aliada à criação de novos mercados na América, teve como conseqüência, entre outras, o surgimento de uma classe com uma identidade não definida. De forma resumida, o argumento de Sennett consiste em que o aumento de mobilidade das populações, em 35 Este discurso é, a meu ver, uma das técnicas indiretas do poder referidas por Foucault. Ao mesmo tempo que institui e reforça a construção de subjetividade, revigora a produção – de produtos e de filhos. O tema da felicidade em família será retomado adiante. 36 A contrapartida da construção e boa articulação interna de seu argumento é de que este é bastante compacto, fechado em si, e difícil de concatenar com outros autores – exceto, talvez, com Foucault. Eis o motivo pelo qual faço esta introdução tão formal do autor. 33 especial as migrações para as grandes cidades, em conexão com mudanças na hierarquia dentro das (e também entre as) guildas profissionais, modificaram radicalmente a possibilidade de criação de uma identidade de classe baseada na herança de um nome ou de uma profissão, por exemplo. Desta maneira, surgia a necessidade de criação de novas formas de definição de identidade, na medida em que teria havido uma reconfiguração das antigas diferenças de classe, geradoras de identidade social: “ (...) As quebras de status entre as gerações se tornaram mais freqüentes; a possibilidade de herdar a posição sucumbiu à criação de posições tanto inferiores quanto mais elevadas.” (Sennett, 1998: 82). Ainda segundo Sennett, “ (...) a capital do século XVIII era um lugar onde as pessoas faziam grandes esforços para dar cor e definir suas relações com os estranhos; a questão está em que tinham que fazer um esforço. As condições materiais de vida na cidade enfraqueciam qualquer confiança que as pessoas pudessem ter na rotulação ‘natural’, rotineira, dos outros segundo a origem, os antecedentes familiares ou a ocupação. O esforço para dar cor ao relacionamento com os outros, a tentativa de dar uma forma a esses intercâmbios sociais eram esforços para criar um sentido convincente de platéia (...).” (Sennett, 1998: 83) (Grifos acrescentados). A separação do público e do privado torna-se então um dos eixos fundamentais para a criação de novas regras de sociabilidade e de uma identidade de classe em novas bases.37 Assim, a família nuclear moderna – tornada representante por excelência do espaço privado – emerge também como um núcleo definidor de identidade social.38 Um dos carros-chefes do Iluminismo era o retorno à Natureza. Segundo Sennett, a oposição Natureza versus Cultura começa a se consolidar no século XVIII, principalmente na Inglaterra e França, seguidas pelo norte da Itália e nordeste dos Estados Unidos. Quanto mais se cristaliza esta oposição, através do contraste entre privado e público e da correlação privado-natureza e público-cultura, mais a família passa a ser vista como o lugar onde o ‘natural’ poderia se manifestar livremente – em contraposição explícita ao ‘artificialismo’ imposto pelas relações sociais (Sennett, 1998: 118-119). Contudo, no século XVIII, a 37 Sennett aponta que uma das primeiras mudanças pode ser detectada nas regras suntuárias, que são modificadas do século XVII para o XVIII, passando a existir uma diferença entre ‘roupas da rua’ e ‘roupas de casa’, sendo estas últimas mais informais – indicando e reforçando o sentido de que em casa as pessoas seriam mais ‘naturais’ (Sennett, 1998: 91). O corpo gradualmente adquire um novo significado, deixando de ser um ‘manequim’ para a ostentação de uma posição social através da roupa. O vestuário vai passando a ter mais relação com o corpo do que com a posição social do sujeito, e as roupas “ (...) na metade do século XVIII também passariam a ser vistas como tendo algo a ver com a personalidade daquele ou daquela que as usava.” (Sennett, 1998: 98). Este movimento corrobora a positividade do poder disciplinar, assinalada por Foucault, no sentido de uma subjetivação cada vez maior dos indivíduos. 38 A questão do papel da família nuclear moderna será discutido por outros ângulos nos itens 2.3 e 2.4, neste capítulo. 34 expressão pública e a expressão privada não estavam propriamente em contradição: “ O público era uma criação humana; o privado era a condição humana.” (Sennett, 1998: 128).39 Estas oposições não se constituíam em uma relação hostil, sendo antes uma questão de controle, equilíbrio e interação, o domínio privado modulando o público e vice-versa: “ Se o vício da cultura era a injustiça, o vício da natureza era a rudeza.” (Sennett, 1998: 120). Os domínios público e privado evoluíram de forma complexa – e articulados entre si: “ O princípio da ordem natural era um princípio de moderação: as convenções sociais somente estavam sujeitas a controle quando produziam extremos de angústia ou de sofrimento.” (Sennett, 1998: 129). Para esse autor, “ (...) Gradativamente a família passou a ser pensada como uma instituição especial. A descoberta da família e, com ela, de uma situação social alternativa para as ruas dependeu, por sua vez, de uma outra descoberta, interior e demorada: a descoberta de um estágio especial e natural no ciclo da vida humana – a infância –, que só poderia florescer no interior dos limites da vida em família.(...)” (Sennett, 1998: 120).40 Uma das conseqüências da consolidação do sentimento de infância (Ariès, 1978) consistiu em que a vida pública, no decorrer do século XVIII, passou a se limitar aos adultos. Como exemplo: os jogos de azar foram considerados impróprios para as crianças e as roupas destas adquiriram características específicas, não mais sendo cópia em menor escala das roupas de adultos. A noção de especificidade infantil implicava, entre outras, a idéia de que as ruas não eram o lugar adequado para a infância – era necessário separá-la do mundo adulto, para que se desenvolvesse de acordo com suas características próprias (Ariès, 1978: 133, 231).41 De acordo com Sennett, a partir do momento que a criança não pertencia ao ‘público’, a família como lugar adequado à criança, “ assento da natureza” , passava a ser a resposta à questão de onde situá-la. A percepção da fragilidade da criança produz a noção de que ela deve ser protegida, e por ser esta vulnerabilidade uma decorrência da Natureza, a proteção dos pais passava a ser vista como um direito da criança: “ as próprias fragilidades naturais lhe conferiam direitos contra a sociedade (...)” (Sennett, 1998: 123-124). Além de ser preconizada uma atitude mais indulgente com as 39 Sennett aponta que, em época posterior, essa articulação seria modificada, cedendo lugar a uma ruptura neste equilíbrio, com a ‘personalidade’ individual transformada em um princípio de organização social (Sennett, 1998: 129, 160). 40 De um ponto de vista foucaultiano não se poderia falar em ‘descobertas’, e sim em construções, tanto no que se refere à família, quanto no que diz respeito à noção da idade como elemento identificador de sujeitos e ao conseqüente estabelecimento da infância como um período especial. Ressalvado esse aspecto, o raciocínio de Sennett persiste sendo interessante para a construção do argumento geral deste trabalho. 41 A escola também desempenharia um papel de destaque na separação criança-adulto, na medida em que se constituiu como um espaço separado e específico para a educação de crianças. 35 crianças, a participação dos pais – em especial da mãe – passa a ser requerida na criação dos filhos, principalmente nos níveis médios da sociedade. Esta tarefa é tornada uma obrigação ‘natural’ da família, que passa também a ser o local de ‘expressão natural’. Constrói-se a idéia de que agir naturalmente implica simplicidade, e no bojo desta crença aumenta o gosto por roupas simples e confortáveis dentro de casa. Há uma certa concordância entre os diversos autores no que tange à questão de que a família nuclear moderna torna-se um espaço privado por excelência. No entanto, há discordâncias radicais quanto ao significado que este espaço privado teria para os atores envolvidos. Como exemplo de dois dos recortes válidos, Foucault e Shorter. De acordo com este último, “ (...) A família nuclear era um ninho. Morna e protetora, mantinha as crianças protegidas das pressões do mundo adulto exterior, e dava aos homens um refúgio [noturno] diário das rajadas geladas da competição. E à medida que a família nuclear surge no século XIX, as mulheres também gostam, pois permite que elas se retirem da extorsão opressiva do trabalho da fazenda, ou do trabalho no moinho, e se dediquem ao cuidado das crianças. Portanto, todos aconchegavam-se alegremente dentro destas paredes seguras, tranqüilos à mesa de jantar, unidos na saída dominical.” (Shorter, 1977: 279). Para Foucault, a família “ (...) é o permutador da sexualidade com a aliança [dispositivo de aliança]: transporta a lei e a dimensão do jurídico para o dispositivo de sexualidade; e a economia do prazer e a intensidade das sensações para o regime da aliança.” (Foucault, 1984: 103). Nada mais diferente do “ ninho” morno, tranqüilo e protetor descrito por Shorter do que a família segundo Foucault: “ [Essa fixação do dispositivo de aliança e do de sexualidade possibilita que se compreenda que] a família tenha se tornado, a partir do século XVIII, lugar obrigatório de afetos, de sentimentos, de amor; que a sexualidade tenha, como ponto privilegiado de eclosão, a família; que, por esta razão, ela nasça ‘incestuosa’. (...)” (Foucault, 1984: 103). A mulher, diretamente envolvida com a criação dos filhos, identificada com o espaço doméstico e com o ‘natural’, vai gradualmente deixando de ser vista como a criatura diabólica que deve ser contida e dominada, passando a ser idealizada como um símbolo de doçura, suavidade e sensatez.42 O casamento adquire um novo significado – ao invés de ser exclusivamente um arranjo de interesses econômicos, passa a ser uma relação 42 Este movimento chegaria ao seu apogeu com a estetização romântica da mulher, no século XIX (Andrade, 1990: 70). 36 amorosa onde os cônjuges têm liberdade de escolha.43 A liberdade de opção implica uma melhor preparação das mulheres para o exercício de sua autonomia, mesmo que ainda bastante relativa e restrita a um determinado espaço. Há uma ênfase na educação das filhas em casa, “ (...) em condições bastante satisfatórias para que não tenham vontade de escapar à sua situação a qualquer preço.” (Badinter, 1985: 177). Essa educação em casa reforça a idéia da mulher como pertencente ao âmbito doméstico, todo seu desenvolvimento e educação passando-se, portanto, no espaço privado e ‘natural’ da família e voltados para sua formação como ‘esposa’ e ‘mãe’ – posição defendida principalmente por Rousseau e Voltaire, entre os pensadores iluministas. O casamento calcado na liberdade de escolha pode ser o lugar da felicidade, alegria e ternura, cujo clímax é a procriação. Os pais amarão seus filhos e estes espontaneamente retribuirão esse amor. A maternidade torna-se o elemento central dessa feliz articulação. O máximo de felicidade que uma mulher pode alcançar é ‘ser mãe’, o centro em torno do qual se constrói a harmonia familiar. A nova família tem na maternidade – portanto na díade mãe-filho – seu núcleo articulador fundamental. A mãe foi transformada em educadora, pedagoga, desempenhando um papel proeminente na vigilância estrita dos filhos.44 A valorização deste papel, ao mesmo tempo em que era construída, serviria também de suporte ao que Jacques Donzelot denominou “ estratégia de familialização das camadas populares” (Donzelot, 1986: 42), que ocorreria mais tarde, durante a segunda metade do século XIX. A mulher contaria neste processo com um certo número de instrumentos e aliados: a instrução primária, higiene doméstica, repouso dos domingos – repouso familiar – em oposição ao das segundas-feiras, ocupado em bebedeiras na rua (Donzelot, 1986: 42). Esse autor sugere também que, na medida em que nas classes populares – a grande massa da população – o dote das mulheres tornava-se cada vez mais raro, quando não impossível, as campanhas em prol do casamento nas classes trabalhadoras traziam em seu bojo uma revalorização do trabalho doméstico da mulher, como um substituto ao dote. Essa situação gerou uma nova inflexão nas relações entre homens e mulheres: 43 O amor no casamento como estratégia do bio-poder será discutido mais adiante neste capítulo, no decorrer do item 2.4. 44 Donzelot (1986) demonstra que o status materno tem destinos diferentes e funções táticas diversas segundo a classe social no qual está inserido. Para a mulher burguesa a revalorização das funções educativas estabeleceu “ (...) uma nova continuidade entre suas atividades familiares e suas atividades sociais” , sendo ao mesmo tempo “ suporte de uma transmissão do patrimônio no interior da família e instrumento de irradiação cultural no exterior.” (Donzelot, 1986: 47) (Grifo original). Para a mulher do povo, o trabalho tem uma natureza antagônica ao status materno, e “ (...) sua missão é, ao contrário [da mulher burguesa], velar por uma retração social de seu marido e de seus filhos.” (Donzelot, 1986: 47) (Grifo original). Ela deveria retirar seu marido dos bares e seus filhos das ruas. 37 “ (...) esta solução permitiria fazer com que a mulher controlasse o homem, já que só forneceria os benefícios de sua atividade doméstica na medida em que ele os merecesse. No lugar do contrato que ela [anteriormente] estabelecia com ele e que lhe atribuía, com o dote, a possibilidade de uma autonomia exterior, de um lugar na sociedade pela posse de um status, ela o insere na dependência de um interior, que será seu domínio reservado, o que poderá dar mas também retomar a qualquer momento (...) a mulher, a mulher do lar, a mãe dedicada, é a salvação do homem, o instrumento privilegiado da civilização da classe operária. Basta amoldá-la para este fim, fornecer-lhe a instrução necessária, inculcar-lhe os elementos de uma tática do devotamento, para que consiga abafar o espírito de independência do operário.” (Donzelot, 1986: 38-9) (Grifos originais). ✼✼✼ No final do século XVIII aumenta a ênfase na amamentação dos filhos pela própria mãe. O aleitamento materno, além de assegurar a sobrevivência da prole – agora tornada preciosa, insubstituível – estimula a criação de laços de ternura entre mãe e filho. As mudanças efetivas nos costumes e comportamentos, entretanto, ocorrem de forma mais lenta: “ A filosofia da felicidade e da igualdade desempenhava por certo um papel nada desprezível na evolução dos espíritos, mas só atingia um público limitado e parecia considerar assegurado o que estava para ser feito. Seu discurso era mais sedutor na medida em que prometia e sugeria sem jamais forçar. Ora, a sobrevivência das crianças tornara-se aos olhos da classe dirigente um problema prioritário que os discursos mais ou menos lenitivos sobre a felicidade e o amor não bastavam para resolver.” (Badinter, 1985: 180). A produção da maternidade como um valor, a partir do século XVIII, é o ponto central de articulação de diversas questões cruciais para a época. Destacaria em especial a passagem do poder punitivo para o poder disciplinar, cuja a feição principal consiste na classificação, esquadrinhamento e normatização dos seres, a par da constituição de subjetividades e singularidades. Nessa passagem a mulher-mãe desempenha um papel estratégico relevante, uma vez que em torno dela constituem-se a família e a prole valorizadas, novos sujeitos – elementos fundamentais na rede de relações constitutiva do próprio poder disciplinar. Neste contexto é construída a maternidade-valor, e seu sucesso reside exatamente na eficácia em articular todos os elementos da rede. Esta eficácia é também responsável pela manutenção, relativamente intocada até os dias atuais na sociedade ocidental, da maternidade como um valor moral e social. 38 2.3) O discurso para as mulheres: a hierarquia O discurso do Estado dirigido às mulheres, segundo Badinter (1985), automaticamente torna-as interlocutoras privilegiadas, uma vez que faz parecer que delas depende o sucesso – ou fracasso – das medidas propostas.45 Há uma elevação de status quando são tornadas ‘responsáveis pela nação’: “ Do cuidado das mulheres depende a primeira educação dos homens; das mulheres dependem seus costumes (...) educar os homens quando jovens, cuidar deles quando grandes, aconselhá-los, consolá-los (...) eis os deveres das mulheres em todos os tempos.” (Rousseau, 1762 apud Badinter, 1985: 181). Um misto de súplica e acusação surge neste discurso: “ Se as mães refletissem sobre sua grande influência na sociedade, se quisessem se persuadir disso, aproveitariam todas as ocasiões de se instruir sobre os deveres que delas exigem seus filhos (...) graças a elas, os homens passam bem ou adoecem; graças a elas os homens são úteis no mundo ou se transformam em pestes na sociedade.” (Buchan, 1775 apud Badinter, 1985: 181) (Grifos acrescentados). Esta construção da ‘nova’ mulher, da mesma forma que a família moderna, emerge na convergência das questões filosóficas, políticas, econômicas e morais do Iluminismo. Um constructo social como ‘a boa mãe’ leva muito tempo para se difundir, em grande parte porque não ocorre sem resistência – tornada evidente pela produção da enorme gama de argumentos, presente na literatura dirigida às mulheres desde meados do século XVIII. Há concomitantemente uma valorização do papel da mulher na sociedade e uma responsabilização delas pelos mal-estares e malfeitos dos homens. Este discurso traz implícita a noção do que seria uma ‘boa mãe’. Segundo Sennett, “ (...) [A] ordem da natureza, no Iluminismo, era (...) um esquema carregado de moralidade. A natureza estava ligada à descoberta, à necessidade e ao direito à manutenção. (...)” (Sennett, 1998: 124). A Natureza sendo alçada ao status de expressão da vontade divina, desobedecê-la eqüivale a desobedecer a Deus.46 Se a Natureza dota as mulheres de seios e leite, sua ‘condição humana natural’ está ‘ordenando’ que amamentem seus bebês. Constrói-se assim 45 O sucesso ou fracasso das proposições deveu-se, a meu ver, muito mais à convergência dos fatores mencionados anteriormente do que apenas à eficácia isolada do discurso dirigido às mulheres, embora este fosse, sem sombra de dúvida, uma das técnicas mais eficientes dos dispositivos do poder. 46 No deísmo iluminista de Tindal – e antes dele, Locke – para se saber dos desígnios de Deus acerca dos homens bastava examinar o “ Livro da Natureza” , onde as leis desta eqüivaliam à vontade de Deus. Para compreender os desígnios da divindade bastava examinar a Natureza usando a razão – dada por Deus aos homens (Taylor, 1997: 316). 39 a noção de que a mulher que não amamenta é ‘corrompida’, ‘desumana’, porque desobedece à lei da Natureza – passando, por essa razão, a ser socialmente condenável. O mito do ‘bom selvagem’ corrobora esta visão: as mulheres selvagens amamentam seus filhos e não se separam nunca deles – muitos relatos de viagem fundamentam o mito (Badinter, 1985: 184). A exaltação dos costumes selvagens sublinha o contraste com os da sociedade européia da época. A mitificação da ‘boa mãe’ estende-se também para as mulheres dos tempos antigos e bárbaros, através da comparação do tamanho dos túmulos dos gauleses e dos romanos, que atestariam a robustez destes em contraposição aos ‘civilizados’. Esta comparação traz em seu bojo a noção de “ degradação da espécie humana em nossa Europa corrompida e civilizada” (Prost de Royer, 1778 apud Badinter, 1985: 185) (Grifo acrescentado). A semente da idéia de degeneração – que no século XIX adquiriria status científico – já está presente neste ponto. À medida que os povos enriqueciam e se civilizavam, as mulheres deixavam de querer amamentar seus filhos e assim a raça degenerava. Para a nação tornar-se grande dependia-se fundamentalmente, portanto, da ‘boa vontade’ das mães (Verdier-Heurtin, 1804 apud Badinter 1985: 185). Na Natureza as fêmeas amamentam seus filhotes, de modo que a ‘mulher ideal’ – ‘natural’, privada e doméstica – se aproximava do animal. 47 A construção de tal conjunto de características corrobora também a noção de que a educação das mulheres não deveria mesmo ultrapassar um certo estágio.48 Se a Natureza é a norma, quem a contraria é ‘desnaturada’ e ‘anormal’. Um passo a mais e as mulheres que não amamentam são ‘desnaturadas’ – e as que o fazem passam a ser idealizadas. O problema é que “ a maioria das mães não ouve a Natureza” (Prost de Royer, 1778 apud Badinter, 1985: 191); se os argumentos da Natureza não são suficientes, os discursos trazem também elogios, promessas e ameaças. O elogio da beleza e a idealização da lactante surgem juntamente com as promessas do reconhecimento e amor filiais, além do “ apego sólido e constante do marido” em troca do sacrifício da mulher (Rousseau, 1762 apud Badinter, 1985: 194). O médico Gilibert, em 1770, em sua Dissertation sur la dépopulation, após descrever os sacrifícios de uma mãe desvelada – noites sem dormir, cuidados incessantes voltados ao filho e que ocupam todo o 47 Ou vice-versa. Sobre a importância atribuída à amamentação como configuradora de uma série de outras noções, ver o interessante artigo de Schiebinger (1998) sobre a construção da categoria ‘mamíferos’ na taxonomia zoológica de Lineu. 48 Médicos e moralistas, assim como vários filósofos iluministas compartilhavam deste ponto de vista, a começar por Rousseau. 40 seu tempo disponível – considera que, em realidade: “ Essas mães encontram prazer indefinível em tudo que lhes parecia desagradável quando moças; fazem com alegria o que então lhes provocava repulsa.” (Gilibert, 1770 apud Badinter, 1985: 193). Há um preço para a mulher ascender a um status, mesmo que relativo, de Indivíduo. Do ponto de vista da liberdade política e social seu espaço é restrito; no interior da família nuclear, entretanto, tem uma maior liberdade e seu papel é fundamental.49 A interioridade e subjetividade assim construídas colocam-na – ao menos dentro de casa – em posição de relativa igualdade com o homem. Rohden (2000) assinala, entretanto, que “ (...) em contraste com os ideais da Revolução Francesa de igualdade e liberdade, a mulher continuava definida pela diferença. A idéia de natureza feminina colocava barreiras imponderáveis na representação de seus papéis sociais.” (Rohden, 2000: 5). Gera-se uma tensão: o surgimento da nova família, que tem na mulher-mãe o principal elemento articulador, estava profundamente comprometido com a ascensão da burguesia industrial, com o desenvolvimento da ideologia protestante e com a reação aos costumes da aristocracia. Neste sentido, verifica-se uma modulação dentro da família nuclear: comprometida com os ideais de democracia da Revolução e também com a tradição – a igualdade vigora como um valor dominante, porém sem ultrapassar as diferenças entre homens e mulheres. Mantém-se, portanto, a hierarquia entre eles (Rohden, 2000: 5 n.15). No que tange à procriação, em refutação às teorias até então em vigor, que consideravam a mulher como secundária na reprodução (Badinter, 1985: 31), no século XVIII a mãe passa a ser colocada quase em situação de igualdade procriadora com o homem por Legouvé, mas mesmo assim cabe ao homem “ o impulso primeiro” (Legouvé, 1848 apud Badinter, 1985: 195). No início do século XX, Paul Combes, em seu Livre de la mère, declara que “ pela maternidade, podemos quase dizer que toda mulher colabora na obra da criação.” (Combes apud Badinter, 1985: 195) (Grifo acrescentado).50 Segundo Badinter, o argumento final, tanto dos moralistas quanto dos médicos, é que não amamentar os filhos é antieconômico, pois estes, ao voltarem da casa das amas – quando voltam – vêm doentes, fracos, desnutridos e vão aumentar as despesas do casal 49 Para a mulher este status parece ser relativo na medida em que reflete-se em uma autonomia restrita ao âmbito familiar. Em muitos países esta situação persiste inalterada até hoje, conforme foi apontado em pesquisa do IRRRAG por Petchesky: “ (...) Para muitas [mulheres] a maternidade é o campo onde experimentam a única gratificação real e o único senso de autoridade que conhecem.” (Petchesky, 1998a: 20). 50 Acerca da construção social dos papéis do homem e da mulher na procriação ao longo da História, ver 41 com os cuidados que inspirarão (Badinter, 1985: 195). Este argumento envolve a extensão do controle dos corpos e do bio-poder, em última instância. É absolutamente essencial que todos – inclusive a mulher – participem da rede de relações que constitui corpos e indivíduos saudáveis e produtivos. Não fazê-lo significa colocar-se em rota de colisão com a sociedade e com a rede de relações constitutiva do bio-poder. Fora desta articulação não há inserção social, interioridade ou subjetividade possíveis para a mulher. O discurso adquire um tom ameaçador, e a ameaça principal à mulher consiste na ruína da sua saúde. O leite sonegado aos filhos, retido no organismo da mãe, pode se espalhar pelo seu corpo todo e causar “ males diversos” (Raulin, 1758 apud Badinter, 1985: 196). Até o final do século XIX as ‘metástases lácteas’ assustam. Podem causar “ (...) epistaxes, hemoptises, diarréias mais ou menos rebeldes, suores (...)” (Dr. Brochard em De l’amour maternel, 1872 apud Badinter, 1985: 197). Este argumento apresenta uma característica anacrônica interessante, que é a de lançar mão de concepções arcaicas em prol de um argumento moderno. A concepção de intercambiabilidade de fluidos corporais, de acordo com Laqueur (1992), é derivada do modelo grego de ‘um sexo e dois gêneros’, que perdurara durante aproximadamente dois mil anos. Neste modelo, havia apenas um sexo – o masculino – do qual a mulher seria o elemento invertido, uma versão imperfeita do homem. Há uma noção de hierarquia, em que o homem, por ser a versão perfeita, é superior à mulher. Neste modelo, os líquidos corporais são considerados como intercambiáveis, com graus diferentes de pureza. Por exemplo, o sêmen seria o resultado da purificação do sangue causada pela fricção do órgão sexual masculino, o sangue menstrual seria a demonstração da incapacidade da mulher em purificá-lo, por falta de ‘calor’ vital (Laqueur, 1992: 35). O anacronismo consiste no uso deste argumento arcaico, ameaçador para as mulheres, em um momento no qual o modelo de ‘um sexo, dois gêneros’ já havia se modificado para o de ‘dois sexos’, com um abismo intransponível entre eles. O modelo ‘dois sexos, dois gêneros’ emerge em meados do século XVIII, na Europa, e no século XIX já estava bastante consolidado na sociedade e na Medicina. É bastante paradoxal, portanto, que um argumento arcaico, de cunho hierárquico, fosse utilizado em prol de um movimento moderno, típico da sociedade individualista igualitária que emergia na época – movimento de estímulo ao aleitamento, privacidade e estreitamento do vínculo mãe-filho, base da família nuclear moderna. Esta ameaça pode ser também compreendida em um outro registro: na nova configuração social onde a família funciona como o núcleo articulador fundamental, a Laqueur (1992) e Rohden (2000: 17-18). 42 mulher que não utiliza a sua produção – o leite – em favor da manutenção da rede de relações que sustenta o poder sofrerá um castigo infligido pelo próprio produto que fabrica. Com a ‘recusa’ da mãe em colocar seu leite em circulação social através do filho, seu produto vai voltar-se contra ela própria, espalhar-se em seu corpo e causar-lhe doenças variadas.51 Em outras palavras, o leite retido deve sair de alguma forma e, se não for dado ao bebê, vai se transformar em outros fluidos menos valorizados – fezes, suores – ou degradados e adoecidos: o sangue – transformado em epistaxes e hemoptises. O corpo da mãe ‘desnaturada’ é, enlouquecidamente, ao mesmo tempo vítima e algoz. O ‘castigo’ é dado pelo seu próprio corpo, e não mais por uma instância externa – Deus ou a própria sociedade. O leite retido se transforma em algo maligno, que ameaça o tecido social por romper a rede de relações onde ocupa uma posição de produto privilegiado de troca, na medida em que é um elemento considerado primordial para o estabelecimento do vínculo mãe-bebê. A mulher que se recusa a entrar na rede de relações de poder torna-se um ciclo fechado em si mesmo e está condenada à doença e à solidão.52 O que, no século XVI, era uma condenação teológica contra as mães que não amamentavam ou que o faziam de ‘forma voluptuosa’ transforma-se, a partir do século XVIII, em condenação moral (Badinter, 1985: 197-8).53 A mulher passa a ocupar o lugar da responsabilidade ‘total’ pela sobrevivência e saúde dos filhos, além da coesão familiar e, em última instância, da ordem social. Vê-se, por um lado, a ameaça: “ Mulheres, não espereis que eu estimule vossa conduta criminosa (...) Não censuro vossos prazeres quando são livres (...) mas transformadas em esposas e mães, deixai os adornos vãos, fugi dos prazeres enganosos: sereis culpadas se não o fizerdes.” (Verdier-Heurtin, 1804 apud Badinter, 1985: 198). (Grifos acrescentados). Por outro lado, há a exaltação que também define o lugar oferecido – e ocupado – às mulheres na rede de relações sociais: “ Se as mulheres voltarem a ser mães, dentro em pouco os homens voltarão a ser pais e maridos.” (Rousseau, 1762 apud Badinter, 1985: 199) e, consequentemente, “ O Estado será rico e poderoso.” (Prost de Royer, 1778 apud Badinter 1985: 199). 51 Cabe notar o alinhamento estreito do discurso ‘médico’ ou, melhor dizendo, medicalizante, com o discurso moral da época. 52 Recentemente em uma mini-série da TV Globo, “ A Muralha” , ambientada no século XVII no Brasil, uma personagem feminina que tem um filho e não demonstra o menor interesse em cuidá-lo e amamentá-lo, finda por entregar a criança ao pai e embrenha-se na mata. Aparentemente, até nossos dias mantém-se bem presente esta representação de que a mulher que não quer criar o próprio filho está fadada ao isolamento. 53 No que tange à condenação moral da ‘forma voluptuosa’ de amamentar, divergindo de Badinter, Costa (1979) assinala que a erotização do ato de amamentar, ao longo do século XIX, pode ser vista como uma estratégia de normatização da sexualidade da mulher, conforme será discutido adiante. 43 2.4) O discurso da Ciência: famílias, mulheres, crianças e médicos Até o século XVIII, na França e na Inglaterra, a medicina não tinha maior interesse nas mulheres nem nas crianças.54 A saúde das mulheres e crianças era considerada pelos médicos assunto “ de comadres” . Na formação do campo profissional médico, a “ implantação direta do médico na molécula familiar” – envolvendo, portanto, diretamente, o cuidado a mulheres e crianças – constituiu “ o melhor meio de sustar as tentações dos charlatães e dos médicos não qualificados.” (Donzelot, 1986: 23). Em geral as mulheres eram tratadas por mulheres, e eventualmente por homens que liam guias sobre a saúde das mulheres, escritos por ‘homens’ – supunha-se que na realidade fossem mulheres sob pseudônimo masculino. O conhecimento das parteiras situava-se em um plano equivalente ao dos médicos de formação universitária (Martensen, 1998: 140). Na Inglaterra, no século XVII, Thomas Willis publicou em 1664 um texto acerca do cérebro e do sistema nervoso, que rompia com os paradigmas galênico e aristotélico a respeito do corpo, postulando que o cérebro seria o órgão principal do corpo, comandando todos os outros.55 Os elementos sólidos do cérebro (e não os ventrículos e o líquido que neles circula) e os nervos eram as estruturas valorizadas por Willis, o que representava uma ruptura considerável em relação ao pensamento de seus antecessores.56 Neste novo modelo, relativamente assexuado, Willis fundou as bases de uma explicação que permitia defender a origem neurológica de diversas condições mentais e corporais – normais e anormais – e, nesta nova construção, o corpo feminino expandia-se para além do modelo anterior, deslocando-se do ‘centro uterino’ anterior para um novo ‘corpo nervoso’. Estabeleceu-se dessa forma um fundamento fisiológico para que as mulheres deixassem de ser vistas – ao menos nos meios eruditos ingleses – como sendo básica e exclusivamente a expressão direta de seus úteros. A possibilidade de que as vísceras, inclusive o útero, provocassem o “ mal” não era excluída; a diferença devia-se a que Willis apresentava descobertas anatômicas e clínicas que deslocavam o centro do mal – a ação situando-se em outro lugar. 54 Não pretendo afirmar que antes deste período inexistissem estudos e cuidados médicos dedicados às mulheres. É possível encontrar-se referências na historiografia da ginecologia e obstetrícia – produzida por médicos – que remontam ao Egito Antigo, Mesopotâmia e Índia. O ponto aqui em discussão refere-se ao surgimento, tipo de ênfase e utilização – pelos médicos e pela sociedade – de uma medicina especificamente voltada à mulher. A história dessa especialidade foge ao escopo deste trabalho. Acerca das primeiras origens da ginecologia e obstetrícia, ver a revisão de Rohden (2000: 14). 55 Para Aristóteles o órgão principal era o coração, e para Galeno o corpo era comandado pelo triunvirato do fígado, coração e cérebro (Martensen, 1998: 140). 56 Mesmo os autores que valorizavam o papel do cérebro no funcionamento corporal – como Hipócrates e Platão – atribuíam mais importância aos ventrículos do que à massa cinzenta cerebral (Martensen, 1998: 141). 44 Emergia, portanto, uma outra possibilidade de compreensão e explicação das doenças.57 Na Inglaterra iluminista, dominada por uma visão de mundo newtoniana, a teoria do “ corpo neurocêntrico” foi adotada entusiasticamente por diversos “ doutores de nervos” , além ser apoiada e ativamente patrocinada pela High Church 58 (Martensen, 1998: 142-8). A teoria de Willis carreava consigo diversas implicações, dentre as quais a desvalorização da atividade artesanal cotidiana da medicina, quando praticada por pessoas não formadas em universidade. Willis considerava que os “ não formados” prescreviam como “ pessoas que atiram a esmo” , uma prática de “ prestidigitadores, charlatães e velhas” (Willis, 1675 apud Martensen, 1998: 161 n.82). Os defensores da nova posição passaram a considerar que os costumes consagrados pelo uso e o conhecimento intuitivo utilizados por todo tipo de curandeiras – incluindo-se as parteiras – não eram mais suficientes para o tratamento das mulheres. A nova compreensão da fisiologia apresentava a mulher como necessitada do aconselhamento dos médicos, não mais das curandeiras e parteiras, e essa nova visão do corpo implicava uma investigação de corpo inteiro – de corpos saudáveis e enfermos, vivos e mortos –,59 para a constituição de “ terapias racionais” (Martensen, 1998: 152). Com a invenção do fórceps obstétrico, em 1598, por Peter Chamberlen, em meados do século XVII na Inglaterra formou-se um grupo de ‘chamberlenianos’, à margem tanto da elite médica quanto das parteiras, e que competia cada vez mais com estas pela clientela das classes altas.60 Houve reação por parte das parteiras que, desde o início do século XVII, na Inglaterra, vinham tentando se organizar como uma atividade auto-regulada. Na época da Restauração, com a volta do licenciamento episcopal para ofícios e profissões, os partos ficaram sob o controle da Igreja. Elizabeth Cellier, na década de 1680, tentou estabelecer uma universidade para parteiras, tendo fracassado em sua iniciativa por falta de apoio da Coroa. No século XVIII foi criada, nas maternidades inglesas, instrução formal em 57 Aparentemente os dois modelos coexistiram até, pelo menos, o século XIX, como pode ser exemplificado pela disputa, nesta época, entre ginecologistas, neurologistas e alienistas na definição e tratamento das doenças. Conforme assinalado por Rohden, “ (...) para os primeiros todas as doenças das mulheres, incluindo as perturbações da mente, teriam origem nos órgãos reprodutivos, [enquanto] para os alienistas e neurologistas o mais importante eram as predisposições hereditárias e o sistema nervoso como sede das desordens mentais.” (Rohden, 2000: 10). 58 Grupo conservador e ritualístico da Igreja Anglicana. 59 Durante o século XVII, na Inglaterra, a aristocracia apoiava a prática de autópsias. Há um relato de Willis de 1667 acerca de descobertas efetuadas na autópsia de “ uma mulher nobre” , de outra “ mulher muito nobre” e de uma criança pertencente à nobreza (Martensen, 1998: 146). 60 A invenção do fórceps possibilitou de forma relevante a entrada dos médicos – homens – no campo da assistência ao parto. Os Chamberlen, uma dinastia de parteiros – masculinos – mantiveram durante longo tempo sua invenção em segredo, e usavam-na sob um lençol. O fórceps veio a público cerca de 1730, e pouco tempo depois foi aperfeiçoado por dois parteiros – William Smellie e André Levret – com resultados bastante melhores do que a invenção original (Shorter, 1997: 84). Para detalhes sobre o assunto, ver a revisão de 45 anatomia e obstetrícia para parteiras – por iniciativas de médicos em busca de assistentes capacitadas (Martensen, 1998: 152-3). Martensen (1998) considera que, embora a teoria de Willis buscasse transformar idéias fisiológicas estabelecidas há muito, que encaravam a mulher não-reprodutora – regida por seu útero – como perigosa, instável e louca, pelo fato de esta teoria ser apoiada e patrocinada pela High Church (sendo Willis mesmo um anglicano), findava por se tornar um instrumento ‘científico’ que reforçava a moral conservadora anglicana. Em contraste com os quackers que, na mesma época, conferiam às mulheres igualdade plena com os homens, os anglicanos consideravam como virtudes específicas das mulheres – nesta ordem de importância – a modéstia, a submissão, a compaixão, a amabilidade e a religiosidade. Através da associação ‘mulher-natureza’ e ‘homem-cultura’, a atividade masculina envolvia assumir parte da ‘naturalidade’ da mulher para cultivá-la (Martensen, 1998: 149). Depreende-se desse argumento que, embora na nova teoria a mulher fosse equiparada fisiologicamente ao homem, deveria estar submetida a ele para seu cultivo. Contudo, mesmo a equiparação neurológica foi questionada. No decorrer dos séculos XVIII e XIX diversos autores dedicaram-se a comprovar que havia diferenças anatômicas significativas entre os cérebros masculinos e femininos, ‘determinando’ biologicamente comportamentos diversos: por conta destas diferenças as mulheres teriam mais desenvolvidas as “ faculdades afetivas” e os homens as “ faculdades intelectuais” , o cérebro feminino “ anatomo-fisiologicamente (...) inferior ao do homem” (Costa, 1979: 235, 237, 260). Ou seja, após uma visão igualitária, apoiada na biologia, ressurgia a hierarquia entre os gêneros baseada na diferença, lançando mão do mesmo tipo de argumentos ‘científicos’. De toda maneira, a nova teoria neurocêntrica de Willis abriu o caminho para a construção de uma fusão que se consolidaria nos séculos XVIII e XIX: útero e nervos, ou sexo e nervos. O conceito de “ histerização do corpo da mulher” , desenvolvido por Foucault (1984), um dos componentes básicos do dispositivo de sexualidade, possibilita o aprofundamento da análise da produção e dos desdobramentos desse processo de fusão útero/nervos. A “ histerização do corpo da mulher” , para esse autor, consiste em: “ (...) tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado – qualificado e desqualificado – como corpo integralmente saturado de sexualidade; pelo qual este corpo foi integrado, sob o efeito de uma patologia que lhe seria intrínseca, ao campo das práticas médicas; pelo Rohden (2000: 20-21); ver também Shorter (1997: 69-102). 46 qual, enfim, foi posto em comunicação orgânica com o corpo social (cuja fecundidade regulada deve assegurar), com o espaço familiar (do qual deve ser elemento substancial e funcional) e com a vida das crianças (que produz e deve garantir, através de uma responsabilidade biológico-moral que dura todo o período da educação): a Mãe, com sua imagem em negativo que é a ‘mulher nervosa’, constitui a forma mais visível desta histerização.” (Foucault, 1984: 99). Um outro desdobramento indireto da teoria de Willis consistia em que, para ele, o princípio último dos humanos era um “ esforço para alcançar um estado divino” , o que não poderia ser atingido no tempo de uma vida. A alma ‘natural’ levava os homens a “ desejos infinitos” que, em busca de satisfação, conduzia-os a “ rolar na lama do prazer sensual” (Willis, 1675 apud Martensen, 1998: 162 n.105, 106). Para se chegar à saúde plena era necessário não apenas dispor de uma boa constituição e cuidados adequados durante as doenças, mas também a existência de uma Igreja hierarquicamente organizada para manter um “ Império da razão (...) sobre as faculdades inferiores” (Stingfleet, 1667 apud Martensen, 1998: 162 n. 107).61 Segundo Martensen, “ (...) o modelo ‘neurocêntrico’ que procurava caracterizar os corpos femininos e masculinos como estando sob a liderança das partes sólidas (assexuadas) do cérebro (...) tornava naturais normas sociais que eram valorizadas por uma subcultura masculina de líderes científicos e religiosos preocupados com hierarquia, controle e eficiência (...)” (Martensen, 1998: 158). De acordo com Foucault, no século XVIII, a medicina – como técnica geral de saúde, mais do que apenas o cuidado e cura das doenças – expande-se como função direta do grande crescimento demográfico do Ocidente europeu e da necessidade de coordená-lo através do surgimento do conceito de ‘população’. Este conceito surge não apenas como um problema teórico, mas como “ objeto de vigilância, análise, intervenções, operações transformadoras” (Foucault, 1998b: 198, 202). O corpo passa a ser visto, portanto, sob um novo ângulo, “ (...) portador de novas variáveis: não mais simplesmente raros ou numerosos, submissos ou renitentes, ricos ou pobres, válidos ou inválidos, vigorosos ou fracos e sim mais ou menos utilizáveis, mais ou menos suscetíveis de investimentos rentáveis (...) Os traços biológicos de uma população se tornam elementos pertinentes para uma gestão econômica e é necessário se organizar em volta deles um dispositivo que assegure não apenas sua sujeição mas o aumento constante de sua utilidade.” (Foucault, 1998b: 198). O bem-estar físico e o crescimento das populações surgem como objetivos 61 Em sermão realizado perante o rei da Inglaterra em 1667. 47 políticos,62 e a importância que a medicina ganha no século XVIII tem sua origem, segundo Foucault, no “ cruzamento de uma nova economia ‘analítica’ da assistência com a emergência de uma ‘polícia’ geral da saúde” (Foucault, 1998b: 197). A “ noso-política” , para usar a expressão deste autor, surge no século XVIII, resultante de um problema multifacetado: o estado de saúde da população como um todo, tomado enquanto objetivo político geral, um encargo coletivo (Foucault, 1998b: 195). Foucault frisa que a iniciativa, organização e controle da noso-política encontram-se espalhados por todo o tecido social, não estando restritos ao aparelho de Estado, e a medicina funciona como ponta-de-lança nesse processo. Forma-se um “ saber médico-administrativo” , que servirá de base para a economia social e para a sociologia do século XIX (Foucault, 1998b: 202). Esta nova política médica difunde-se gradualmente por toda a Europa a partir do século XVIII e tem como reflexo a “ organização (...) do complexo família-filhos, como instância primeira e imediata da medicalização dos indivíduos” (Foucault, 1998b: 200). Desta maneira, a criança – o futuro da população – passa a ser foco de uma atenção estratégica e, sobretudo, medicalizada. A família deve tornar-se o meio favorável à proteção e desenvolvimento da criança, e o laço conjugal passa a existir principalmente para servir de matriz ao futuro adulto. A saúde, em especial a das crianças, transforma-se em um dos objetivos obrigatórios da família – que se torna o agente mais constante da medicalização. Em função do papel fundamental da mulher na gestação e no cuidado com a saúde dos filhos acentua-se concomitantemente a progressiva medicalização do corpo da mulher. Na expressão de Foucault, a família no século XVIII torna-se alvo de “ um grande empreendimento de aculturação médica” (Foucault, 1998b: 200-1). Enfatiza-se sobretudo os cuidados ministrados aos bebês, com uma proliferação intensa de publicações dirigidas basicamente às mulheres.63 De acordo com Donzelot, a ligação do médico com a mãe consistiu em: “ Aliança proveitosa para as duas partes. O médico, graças à mãe, derrota a hegemonia tenaz da medicina popular das comadres e, em compensação, concede à mulher burguesa, através da importância maior das funções maternas, um novo poder na esfera doméstica.” (Donzelot, 1986: 25). O movimento higiênico que, no decorrer do século XIX, consolidou-se de forma hegemônica no Ocidente, constituiu-se como a via principal de construção de um novo 62 Com destaque especial à preocupação extremada com a natalidade, conforme assinalado por Rohden (2000: 2). 63 No século seguinte haveria um aumento de publicações dirigidas mais especificamente às classes populares, evidenciando mais uma vez a difusão diferenciada do controle dos corpos de acordo com a classe social. 48 paradigma. Na passagem do dispositivo de aliança para o dispositivo de sexualidade, o principal compromisso de um casal era com os filhos, em especial com a saúde destes. Segundo Jurandir Freire Costa, “ No casamento idealmente concebido pela higiene o casal olhava o futuro e não o passado. (...) O cuidado com a prole converteu-se, por esta via, no grande paradigma da união conjugal (...)” (Costa, 1979: 219). 64 A escolha do futuro parceiro seria determinante para a saúde da descendência, o que passava a alterar as regras para o estabelecimento das relações matrimoniais. Para o casamento higiênico, a hereditariedade passava a ocupar o locus anteriormente designado à herança – de nome, status social e de bens. Os corpos saudáveis, o sexo e a moral sobrepunham-se às estirpes e linhagens. O controle sobre o sexo e a moral que, até o século XVIII, era exercido pela autoridade religiosa desloca-se, no decorrer dos séculos XVIII e XIX, para a autoridade secular representada pela emergência de novas normas médicas, psicológicas e educacionais (Rohden, 2000: 9). Pela via do movimento higienista o médico pode penetrar na família, como o guardião privilegiado da saúde de seus componentes. A higiene passa a exaltar a sexualidade conjugal, atribuindo a esta um papel essencial para a coesão do casal. O sexo torna-se, portanto, objeto de regulação médica (Costa, 1979: 215227). De acordo com Costa, “ A relevância dada ao ‘amor físico’ no casamento atendia a vários objetivos higiênicos. Em primeira instância, buscava-se fixar a sexualidade masculina na relação com a esposa, livrando-a da prostituição. Com isto procurava-se debelar as doenças venéreas e prevenir o nascimento de filhos sifilíticos. Em segunda instância, tentava-se estimular a vida sexual das mulheres, cuja ausência ou debilidade comprometiam a saúde física dos filhos e a moral do casal (...)” (Costa, 1979: 228). O casal medicalizado tornava-se plenamente sexualizado. A medicina passava a regular a vida sexual do casal – e também a sua moral, em um nítido movimento de ampliação do controle dos corpos. Os médicos aderiam ao amor romântico porque – segundo Costa – este consistia em uma das poucas estratégias disponíveis para a substituição do poder patriarcal da sociedade tradicional (Costa, 1979: 231). O estímulo à sexualidade do casal como responsável pela estabilidade conjugal carreava um paradoxo posto que, se aquela escapasse ao controle, colocaria em risco a moral e a estabilidade 64 A meu ver, embora Costa esteja se referindo mais especificamente ao movimento ocorrido no Brasil no século XIX, suas colocações podem ser tomadas de forma mais genérica, posto que correspondem às descrições da literatura referente à Europa – basicamente França e Inglaterra – do final do século XVIII e de todo o século XIX. Grosso modo parece haver uma defasagem de cerca de meio século entre as tendências emergentes na Europa e o movimento correspondente no Brasil. 49 pretendida pelos higienistas. Neste sentido, o estímulo ao amor dentro do casamento configurava-se como uma estratégia que articulava sexo e moral: “ O sexo precisava do amor para permanecer circunscrito nos limites da casa. Ao Estado interessava não só a família fecunda, mas a família responsável. Manter os filhos era tão importante quanto produzi-los. (...) A família amorosa (...) não se contentava apenas em procriar. Rejubilava-se em ver crescer e desenvolver-se a prole, conforme as regras higiênicas. O amor era o mecanismo de feedback encarregado de manter o sexo em níveis compatíveis com a homeostase familiar e social.” (Costa, 1979: 234). O amor foi utilizado para criar e regular novos papéis sociais para o homem e para a mulher, a partir dos modernos conceitos higiênicos. A medicina determinou as supostas características biológicas do homem e da mulher, para em seguida apresentá-las como ‘imperativos da natureza’. A procriação era um deles e, desta forma, segundo os médicos, a única maneira de se atender ao mandato da natureza – amor, sexo e procriação – seria a conversão da mulher e do homem em, respectivamente, ‘mãe’ e ‘pai’. A conjugação masculinidade/paternidade e feminilidade/maternidade “ torna-se um padrão regulador da existência social e emocional de homens e mulheres” (Costa, 1979: 239). A nova mãe ‘higiênica’, responsável principal pela sobrevivência da prole e pela manutenção do casamento, envolvida primordialmente com a esfera doméstica, encontra nos médicos (ou é por eles encontrada como) a grande aliança. Uma das principais bandeiras do movimento higiênico é o aleitamento materno – tornado ‘prova’ do recémvalorizado ‘amor materno’. A culpabilização e a condenação moral das mães que não desejam fazê-lo torna-se um elemento importante da estratégia higienista: ao mesmo tempo em que construiu e valorizou a sexualidade feminina dentro do casamento, precisou também restringi-la. Neste sentido a amamentação ocupava um lugar de grande importância: tornada fonte de prazer sexual para a mulher, transformada em fator determinante para a criação de filhos fortes e saudáveis, reforçava a limitação da lactante ao âmbito doméstico e passava a ser responsável, em última instância, pela manutenção do vínculo conjugal dentro dos limites da moralidade vigente (Costa, 1979: 255-266). As mulheres que se recusavam a amamentar por preferirem os ‘prazeres mundanos’ seriam acometidas por males ‘nervosos’. De acordo com Costa, “ [A] correlação entre mundanismo e doença teve um papel fundamental na domesticação da mulher” (Costa, 1979: 269). Se colocarmos esta situação lado a lado com o processo de histerização do corpo da mulher através da construção da “ Mãe, com sua imagem em negativo que é a ‘mulher nervosa’ ” (Foucault, 1984: 99), verifica-se que não existe outra saída para a 50 mulher senão aliar-se ao médico em busca de cuidados, uma vez que, de uma maneira ou de outra – sendo doméstica ou mundana – é tornada ‘nervosa’. Ainda segundo Costa, “ A mulher nervosa foi, em parte, uma criação do médico. Servindo-se dela, a higiene implantou-se na família. Solicitada em sua versão sexual para combater pais e maridos e em sua versão mundana para dedicar-se aos filhos, a ‘mulher nervosa’ ensinou a mulher a utilizar o nervosismo para impor seus interesses. Essa ‘criatura médica’ tornou-se uma arma obrigatória da mulher que queria livrar-se da opressão do cotidiano familiar (...)” (Costa, 1979: 271-2). Neste contexto o médico adquire uma posição altamente prestigiosa, posto que, ao mesmo tempo atende, consola, cuida e ainda mantém intactas as estruturas sociais de poder, na realidade praticamente investindo-se dele – dir-se-ia quase a personificação do bio-poder. Articulam-se a consolidação da profissão médica e a extensão do controle e medicalização dos corpos. No decorrer do século XIX, no Ocidente, estruturam-se como especialidades médicas a obstetrícia e a ginecologia e, no início do século XX surge – com Pinard, obstetra francês – a puericultura, uma nova especialidade decorrente de maior atenção médica voltada aos períodos pré e pós-natal (Rohden, 2000: 19-25).65 Concomitantemente, no mesmo processo, modifica-se também a função do hospital, que gradualmente deixa de ser um depósito de pobres para, no final do século XVIII, passar a ocupar também uma função de ensino, de fundamental importância para a constituição e consolidação da profissão médica. O hospital passa a ser um instrumento terapêutico para a população em geral, por meio da família e, através da melhoria da qualidade dos conhecimentos médicos pelo ensino, contribui para a elevação do nível de saúde da população. ✼✼✼ A expansão da medicalização corresponde pari passu à do bio-poder. No decorrer dos séculos XIX e XX esse movimento adquire proporções cada vez mais amplas, tendo como grande aliado – ou, melhor dizendo, construindo um grande aliado – o desenvolvimento de novas tecnologias, como será visto mais adiante. A construção do amor materno como um valor, a partir do século XVIII, é o ponto em torno do qual se articulam, dentre diversos aspectos, a produção da família nuclear 65 Para uma explanação e análise mais detalhadas sobre a estruturação destas especialidades, ver Rohden (2000). 51 moderna, a consolidação da identidade de classe da burguesia – principalmente urbana –, a nova arte de governar, o poder disciplinar apoiado na medicalização, e a ampliação do controle dos corpos. Esta expansão, além de abranger e normatizar o corpo feminino, cria novos objetos de atenção social – o bebê, e, mais adiante, o feto, conforme será discutido a seguir. 52 Capítulo 3 DA CONSTRUÇÃO DO BEBÊ COMO OBJETO Desde o século XIII, segundo Shorter (1997), vários governos da Europa começaram a tentar organizar e supervisionar as parteiras. De acordo com esse autor, este movimento ocorreu basicamente em três estágios: o primeiro, até o século XVI, consistia em leis religiosas e municipais regulando o lado moral e religioso das parteiras. O segundo estágio consolidou-se no século XVII, com o surgimento de legislação colocando médicos como examinadores e supervisores das parteiras e, em um terceiro estágio, são criadas escolas para o treinamento ‘científico’ delas (Shorter, 1997: 40). Esse movimento pode ser encarado como uma perfeita ilustração do movimento descrito por Foucault (1999), de passagem do poder punitivo para o disciplinar: há de início proibições e regras, a seguir um escrutínio e supervisão minuciosos e, finalmente, treinamento regulamentado e sistemático para as parteiras. Do século XIII ao XVI a regulamentação religiosa vinculava-se basicamente à preocupação da Igreja de que as parteiras fossem capazes de batizar corretamente os recémnascidos, caso pensassem que eles não iriam sobreviver ao parto. Em várias cidades da Europa houve diversas determinações concernentes às atitudes das parteiras, tais como proibição do abuso alcoólico, obrigação de atender a parturientes independente do quanto seria pago pelo serviço, obrigação de notificar às autoridades os ‘nascimentos secretos’ como medida contra o infanticídio, entre outras. Essa regulação, contudo, não tinha relação com a qualidade do cuidado que a parteira oferecia à mãe (Shorter, 1997: 41). A supervisão médica às parteiras iniciou-se, de uma forma mais geral, no século XVII, embora já no século XVI houvesse leis, em Zürich, designando médicos para supervisionar parteiras. No final do século XVII este controle se generalizara em várias cidades da Europa. A esta época, os médicos já haviam adquirido alguns conhecimentos sobre a anatomia da pelve feminina e o mecanismo do parto.66 Shorter observa que: “ No início do século XVIII, as considerações humanas e pró-natalistas tinham substituído amplamente as razões morais e religiosas para o controle das parteiras.” (Shorter, 1997: 41). O controle médico sobre as parteiras evoluiu de formas diferentes nos diversos 66 Em 1554, Jakob Rüff, de Zürich, publicou seu compêndio sobre partos, considerado o primeiro manual prático sobre o assunto desde a antigüidade clássica (Shorter, 1997: 41). 53 países da Europa. Na Inglaterra, embora os primeiros cursos médicos dirigidos às parteiras tivessem surgido no século XVIII, apenas em 1902 foi criada uma lei com regulamentação nacional para parteiras – a Sociedade Obstétrica de Londres passara a diplomá-las a partir de 1872; antes desta data, mantinha-se em nível mínimo a instrução médica para essas profissionais. Na França, as primeiras leis sobre a questão foram promulgadas em 1726 e 1730, mas não eram seguidas à risca. Somente após a Revolução Francesa foi de fato criado um programa nacional sistemático para treinamento e credenciamento de parteiras. Dentre as colônias norte-americanas, apenas a cidade de New York mostrou interesse em regulamentar a prática das parteiras. Nas outras localidades a prática era livre (Shorter, 1997: 42). Shorter considera um mito a idéia de que os médicos quisessem sonegar conhecimentos científicos às parteiras. Para esse autor, o que se passava era, em certo sentido, o oposto: os médicos pretendiam fornecer às parteiras conhecimentos ‘científicos’. Esse argumento é fundamentado em exemplos de estímulo às parteiras – em Frankfurt e em Paris – para que assistissem a autópsias de mulheres. Ainda de acordo com Shorter, o desconhecimento dos termos de anatomia, em grego e latim, por parte das parteiras, tornou essa prática pouco útil e este treinamento foi abandonado (Shorter, 1997: 42).67 O único meio viável de qualificar parteiras, do ponto de vista médico, ficou sendo enviá-las para uma escola – por algumas semanas ou meses – de preferência situada dentro de uma maternidade. A primeira destas foi estabelecida em Munich, em 1598, seguida pelo Hôtel Dieu, em Paris, em 1618. Existiu uma lacuna de mais de um século na criação destes estabelecimentos, e a partir de 1737, houve uma nova onda de surgimento de escolas de ensino médico para parteiras – a primeira em Strasbourg, seguida por Würzburg em 1739, Berlim em 1751, entre outras. Em 1759, na França, após um edito governamental, foram criados diversos cursos para parteiras. Contudo, esse ensino permaneceu restrito a Paris. Portanto, em torno de 1800, havia muitas parteiras treinadas por médicos em toda a Europa Central, e algumas na França, concentradas nas cidades. Shorter sustenta que no mundo anglo-saxão não havia praticamente nenhuma treinada formalmente (Shorter, 1997: 43).68 67 A assistência direta ao parto era uma atividade freqüentemente desprezada pelos médicos até cerca de 1930, quando o parto tornou-se altamente medicalizado, principalmente nos EUA. Shorter discute extensamente os motivos de tais mudanças. Para mais detalhes, ver Shorter (1997: 136-164). 68 É, no mínimo, curioso, observar que a difusão (e valorização) do treinamento médico para parteiras – e conseqüente melhora na assistência ao parto – segue a ordem exatamente inversa à da difusão do amor materno como valor moral e social, assim como também a da criação de estados modernos na Europa e o avanço do Individualismo. Chama a atenção o fato de que as cidades e a área rural que hoje constituem a Alemanha estivessem sensivelmente mais avançadas na atenção ao parto do que o restante da Europa, desde o 54 A difusão do ensino médico às parteiras das áreas rurais na Europa Ocidental enfrentou dois tipos de dificuldade no que tange à qualidade das alunas: ou eram jovens e inexperientes, ou muito idosas e inflexíveis. Além destes aspectos, praticamente só falavam os dialetos locais: “ (...) elas dificilmente entendem francês. Como se pode fazê-las compreender que os diâmetros oblíquos da pelve se estendem da sínfise sacro-ilíaca à eminência íleo-pectínea?” (Jean-Marie Munaret, 1862 apud Shorter, 1997: 46). Segundo Shorter, multiplicaram-se as queixas na literatura médica acerca da impossibilidade de se ensinar a medicina científica às parteiras das áreas rurais na Europa, o que denota o choque entre dois tipos de conhecimento: o tradicional e o científico. As mulheres do campo, fortemente ligadas à tradição, impacientavam profundamente os médicos. Desse modo, “ as aulas das escolas eram ministradas agressivamente, e rapidamente esquecidas.” (Shorter, 1997: 46). Por outro lado, quando as parteiras aprendiam o que era ensinado, nada as obrigava a estabelecerem-se nas áreas rurais, e elas preferiam permanecer nas cidades.69 Mesmo com todas estas dificuldades, o treinamento das parteiras promoveu um melhor atendimento aos partos complicados, o que pode ser verificado pela diminuição das taxas de mortalidade materna nas cidades, na segunda metade do século XVIII. Aumentavam, portanto, as possibilidades de as mulheres sobreviverem aos partos difíceis (Shorter, 1997: 47). Esse quadro é compatível com o movimento de valorização e sensibilização social referente à conservação de crianças e também melhores cuidados dispensados às mulheres – em última instância, conservação também das mães. Conservam-se as mães e seus bebês, no mesmo processo em que são gerados novos objetos de atenção social – mulheres e bebês medicalizados, direta ou indiretamente. século XVI, conforme depreende-se da leitura de Shorter (1997: 36-138) e, ao mesmo tempo, estivesse bastante defasada no que tange aos modernos cuidados com bebês, conforme visto no Capítulo 1. Esses paradoxos – aparentes ou reais – mereceriam uma investigação mais aprofundada do que é possível no presente trabalho. 69 De acordo com Shorter, as parteiras das áreas rurais eram, em geral, excessivamente velhas e muito pobres. O trabalho era duro e mal pago. As que optavam por esse tipo de atividade faziam-no por falta de melhor opção para ganhar a vida. Apenas em algumas – poucas – comunidades este tipo de trabalho era socialmente valorizado, e as parteiras eram eleitas pelas mulheres da coletividade – passando provavelmente também pelo escrutínio do pastor local, para que ficasse assegurado que “ não eram loucas, heréticas ou praticassem bruxaria.” (Shorter, 1997: 44-5). Após essa avaliação seu nome era enviado para as autoridades locais. Esse autor assinala que, nas áreas rurais, as parteiras freqüentemente exerciam junto às mulheres o papel de ‘clínico geral’ e, muitas vezes, também a de gestor espiritual – daí a importância de serem consideradas bem treinadas e confiáveis. Para mais referências acerca das parteiras na Europa, ver Shorter (1997: 36-47). 55 3.1) A elaboração da mortalidade infantil e a existência social do bebê No início do século XX, na Inglaterra, a legislação passou a exigir a presença de uma parteira ou de um médico em todos os nascimentos. Essa legislação, juntamente com os cuidados pré-natais, assegurou a extensão e continuidade da vigilância médica. Ampliou-se portanto o escrutínio sobre a gravidez e os nascimentos e, dessa forma, os registros das causas de morte de bebês puderam tornar-se mais detalhados. Segundo Armstrong, o refinamento da identificação e da análise da mortalidade infantil carrearam em seu bojo dois desenvolvimentos: uma clarificação do status do feto não-nascido, e a subdivisão do primeiro ano de vida em componentes analisáveis menores. A necessidade de uma delimitação entre o feto e o bebê recém-nascido, ou de estabelecer a distinção entre o que era um aborto e o que era um parto prematuro, gera o problema de se determinar quando começa a vida de um bebê (Armstrong, 1986: 214). No século XIX, aborto e parto prematuro eram indistinguíveis: “ Embora não houvesse nenhuma diferença biológica fundamental entre o nascimento de um feto morto em qualquer idade gestacional, havia certamente um problema em distinguir um feto de um bebê, uma vez que este era visto como tendo uma identidade social separada.” (Armstrong, 1986: 214). No início do século XX, no Reino Unido, os agentes oficiais de saúde começaram a reportar a ocorrência de partos pré-termo, porém apenas em 1926 delineou-se claramente a distinção entre aborto e parto prematuro, e este último passou a ser formalmente definido como ocorrendo depois da 28a semana de gestação. A notificação destes partos tornou-se compulsória a partir de 1927. Desta data em diante passa então a haver uma delimitação do início formal da vida do bebê (Armstrong, 1986: 215).70 A segunda linha na elaboração e consolidação da vida em separado do bebê consistiu na subdivisão do seu primeiro ano de vida. Uma nota histórica do Registro Geral de 1953 identificou retrospectivamente, em 1905, medidas de idade mensal, seguindo-se à preocupação crescente com a mortalidade de bebês. Em 1938 reconhece-se, na Inglaterra, o período das primeiras quatro semanas de vida como período neonatal; consequentemente é introduzida a ‘mortalidade neonatal’ no Registro Geral, definida como ‘morte no espaço temporal imediatamente após o nascimento’. Contudo, o nascimento a termo não era mais a marca do novo bebê: esta fora 70 Nos dias atuais houve um recuo dessa fronteira, e atualmente vigora uma nova distinção entre aborto e parto prematuro – estabelecida pela Organização Mundial de Saúde – com base no ‘peso ao nascer’: abaixo de 500 gramas é considerado aborto. Contudo, já há relatos de tentativas exitosas de reanimação e sobrevida de fetos pesando menos de 400 gramas ao nascer, indicando que possivelmente esse critério necessitará ser 56 recuada para 28 semanas gestacionais, a partir do momento que esse período foi definido como marco para a conceituação do parto prematuro. No período entre-guerras considerase em conjunto, portanto, as mortes de prematuros com as de bebês de menos de quatro semanas. É construída então mais uma subdivisão na mortalidade neonatal: precoce (early) – na primeira semana de vida, e tardia (late) – até a quarta semana. A mortalidade pós-natal ficou então estabelecida como ocorrendo desde quatro semanas até um ano de vida (Armstrong, 1986: 215). Em 1950, notou-se no Reino Unido que mais da metade das mortes no primeiro ano de vida ocorriam na primeira semana. Tal observação chamou a atenção para a indistinção entre as mortes de prematuros e neonatos a termo. Ambas apresentavam vários aspectos em comum “ devido a fatores atuantes antes e durante o nascimento” (HMSO, 1951 apud Armstrong, 1986: 216). Apenas em meados dos anos 50, na Inglaterra, a subdivisão da infância tomou sua forma moderna. Constrói-se um mapeamento, na medicina, do primeiro ano de vida: mortes de prematuros, perinatal, neonatal e bebês. A classificação permitiu a observação das áreas temporais de concentração de mortalidade e, principalmente, “ (...) permitiu delinear-se um objeto particular para escrutínio médico e social.” (Armstrong, 1986: 216). ✼✼✼ A partir dos anos 1930, de acordo com Shorter (1997), os médicos transformaram sua preocupação de manter as mães vivas em cuidados para a obtenção de bebês saudáveis. No primeiro quarto do século XX estavam consolidados diversos avanços concernentes não apenas à diminuição do sofrimento e dos danos causados à mulher durante o parto, como também ao controle das infecções puerperais – além de firmemente estabelecida a medicalização do parto. “ Antes de 1930, os médicos tinham relativamente pouco interesse nas condições do bebê ao nascer. Todas as inovações obstétricas (...) desde o século XVIII eram direcionadas no sentido de poupar a mãe (...)” (Shorter, 1997: 165). Como exemplo, em 1917, James Voorhees, em New York, após chegar à conclusão que era mais fácil para as mães darem à luz bebês de pequeno tamanho, desenvolveu uma dieta para mães cortando carbohidratos a partir do 6o mês de gestação e induzindo partos prematuros. Os médicos não estavam muito preocupados com os problemas clínicos revisto. Um parto é considerado prematuro quando ocorre antes que se complete a 36a semana de gestação. 57 específicos da infância. Em 1900 havia apenas cerca de cinqüenta médicos nos EUA com interesse específico nesta faixa etária (Cone, 1979 apud Shorter, 1997: 165).71 De acordo com Shorter, em torno dos anos 1930 delineou-se a tendência a poupar o bebê no parto, em especial nos EUA. Os médicos começaram a atribuir prioridade máxima à redução de natimortos e ao nascimento de bebês em boas condições de vitalidade. Decorrente destas preocupações houve uma ampliação considerável da ação médica no parto e do número de cesarianas praticadas (Shorter, 1997: 139-140). Para esse autor, o aumento progressivo de intervenções médicas no parto nos últimos quarenta anos deveu-se principalmente ao que denomina a “ descoberta do feto.” (Shorter, 1997: 164). As “ indicações fetais” passaram a constar como determinantes para a intervenção obstétrica, ao lado de “ indicações maternas” . Em 1941, a maioria dos presentes à reunião da Sociedade Americana de Ginecologia compartilhava a opinião de que era válido intervir no parto – cirurgicamente ou não – em benefício do feto. A nova ênfase na perinatologia – cuidados ao concepto nos últimos dois meses de gestação e na primeira semana após o nascimento produziu, por sua vez, uma série de modificações no manejo do parto (Shorter, 1997: 166). Portanto, há uma articulação indissolúvel entre a expansão da medicalização do parto e o surgimento do bebê – e também do feto – como entidades com existência social destacada da mãe, sendo ambas as questões mutuamente constitutivas. Este ponto será retomado mais adiante neste capítulo. 3.2) Dimensões analíticas da infância A segmentação do primeiro ano de vida do bebê localiza-o em um espaço temporal, mas há um espaço conceitual mais amplo que sustenta sua identidade social. As técnicas epidemiológicas constróem os atributos da infância para a percepção médica: “ A importância de ver a infância como um efeito, assim como um objeto da aplicação de técnicas investigativas, pode ser demonstrado pelas dimensões cambiantes do espaço conceitual onde o bebê foi situado durante o século XX.” (Armstrong, 1986: 217). No Reino Unido, no início do Registro Geral, foram utilizados três parâmetros ‘físicos’ para dissecar o fenômeno da mortalidade infantil. Em poucos anos estas três dimensões analíticas tornaram-se mais ‘sociais’. A primeira dimensão diz respeito a que, no início do século XX, foram notadas diferenças de sexo dos bebês nas taxas de mortalidade, o que foi qualificado como um 71 Nos dias atuais o número de pediatras em atividade nos EUA é de cerca de 20.000. 58 ‘fenômeno biológico’ que sustentava a suposição de maior ‘viabilidade’ de meninas; meninos eram menores e mais suscetíveis a doenças. Pouco tempo mais tarde essa diferença foi atribuída à alimentação materna durante a gestação. Armstrong assinala a mudança de um parâmetro biológico – sexo do bebê – para um problema social: a nutrição da mãe (Armstrong, 1986: 217). No que tange à segunda dimensão, no século XIX verificou-se que as taxas de mortalidade eram diferentes em áreas urbanas e rurais. À época, tal fato era atribuído à maior densidade populacional nas áreas urbanas: vinculava-se a densidade populacional às condições sanitárias precárias de áreas mais densamente povoadas. No século XX introduzse uma interpretação de cunho social: as crianças eram mais negligenciadas nas áreas urbanas, e a mortalidade expressava não mais apenas os aspectos físicos – biológicos – insalubres aos quais as crianças eram submetidas (Armstrong, 1986: 217). A história da saúde pública mostra as mudanças na mortalidade infantil. O declínio da taxa de mortalidade infantil entre o final do século XIX e os anos 20-30 do século XX reflete os progressos na esterilização de alimentos, na pasteurização do leite e uma higiene mais cuidadosa (Shorter, 1977: 201). Por outro lado, estas melhorias decorrem também da mudança na sensibilidade social em relação ao bebê. Shorter aponta que: “ (...) É bem conhecido que por volta do final do século XIX ocorreu um grande declínio na mortalidade infantil. Todavia os dados (...) apontam dois outros desenvolvimentos que são menos familiares. Um é a relativa falta de progresso durante o século XIX. Na verdade, em alguns lugares, a mortalidade até aumentou. Quaisquer que tenham sido os avanços na maternagem nesta época, os odiosos efeitos da industrialização e urbanização foram mais fortes, mantendo em um nível estável – e alto – as chances de um bebê perecer no primeiro ano de vida.” (Shorter, 1977: 201) (Grifo original). A terceira dimensão delineada por Armstrong diz respeito ao fato de que, no século XIX, havia um vínculo genericamente aceito entre condições meteorológicas e doenças. O carro-chefe destas doenças era a diarréia, que apresentava uma forte variação sazonal correspondendo a mudanças na temperatura. Em 1911 o Registro Geral sugere a exclusão de ‘diarréias’ do índice de mortalidade infantil, por confundir as interpretações. Portanto, os parâmetros físicos tradicionais do século XIX foram seriamente enfraquecidos no início do século XX, e substituídos por uma visão complexificada dos fatores insalubres (Armstrong, 1986: 218). Tal transformação na análise, que implica também a construção de um novo enfoque, traz consigo uma mudança no status da criança e do bebê: “ (...) As medidas de ambiente físico foram substituídas e a criança foi situada em um espaço conceitual caracterizado por dois novos parâmetros 59 sociais, a legitimidade e a classe social (...) O realinhamento do espaço conceitual do bebê, de sanitário para social, significou que, através das mudanças na sua relação com a natureza e [da definição] da forma de sua morte, ele tornou-se um objeto essencialmente social.” (Armstrong, 1986: 218). O que se pode depreender de toda essa categorização de morte dos bebês é que, para que o bebê finalmente tivesse consolidado seu status de Pessoa, algumas transformações ainda teriam que ocorrer. Segundo Foucault, a morte passa a definir, analisar e construir significados para a doença e para a vida, e a integração da morte no pensamento clínico transforma a medicina em ciência do indivíduo (Foucault, 1998b: 163-8). Seguindo essa linha conceitual, a depuração cada vez maior da análise da mortalidade infantil torna-se constitutiva de novos indivíduos, cada vez melhor definidos: os bebês. No final do século XIX, na Inglaterra, a diminuição nas taxas de mortalidade infantil por melhoria nas condições sanitárias trouxe o medo de que talvez se estivesse salvando bebês que “ deveriam morrer” .72 Até 1907 a alta mortalidade na primeira semana de vida era atribuída à “ imaturidade e debilidade” entre crianças que “ dificilmente seriam viáveis” (Armstrong, 1986: 219). A substituição de critérios físicos por sociais introduziu uma visão mais sofisticada da mortalidade infantil. Os modelos mono-causais foram substituídos por outros, mais dinâmicos. Em 1912 passa a haver uma definição mais apurada das causas de morte de bebês e crianças. Em 1927 é substituído o antigo sistema de classificação – causa primária e secundária – por outro, com distinção entre causa imediata, outras causas (da qual a causa imediata seria apenas a conseqüência) e doenças auxiliares não relacionadas. Em 1954 a análise multi-causal da mortalidade infantil era um procedimento estabelecido, o que tinha repercussões evidentes no status do bebê na sociedade: “ (...) em poucos anos, no início do século XX, o espaço conceitual onde o bebê era localizado se transformou. Os antigos eixos de clima e de vida urbana – que reduziam a população a um agrupamento de corpos separados – cederam o lugar para dimensões sociais nas quais a relação entre os corpos, mais do que sua proximidade física, informava o exame das mortes de bebês.” (Armstrong, 1986: 219). 72 Nos EUA, no início do século XX, um médico – adepto entusiástico dos princípios da eugenia – produziu filmes divulgando e advogando o ponto de vista de que os bebês debilitados ao nascer não deveriam ser alimentados e aquecidos, para que morressem à míngua. Um trecho – bastante bizarro – de um desses filmes encontra-se incluído no documentário Homo Sapiens 1900, do cineasta Peter Cohen. No trecho em questão é apresentado um bebê extremamente magro – que pode ser um prematuro ou um recém-nascido profundamente desnutrido – nu, movimentando-se sobre uma maca, sendo agasalhado por uma enfermeira. O médico chega e retira violentamente a coberta, diante do olhar assustado da mulher, o intertítulo (o filme é mudo) indicando que o bebê deve ser deixado como está, sem agasalho ou nutrição. 60 3.3) Atrofia e decadência ‘naturais’ versus doença e imaturidade Antes de 1839, na Inglaterra, as mortes eram divididas entre ‘causa natural’ e ‘ação humana’. A partir dessa data a divisão passou a ser entre ‘causas internas’ e ‘externas’. Estas seriam as que vinham de fora do corpo, como a violência, por exemplo; aquelas, na nova visão patológica, seriam as doenças. Em 1855 foi criada uma nova categorização das enfermidades, havendo uma aproximação conceitual entre as da infância e as da velhice. Foram classificadas como doenças do crescimento, nutrição e decadência, que podiam causar quatro tipos de morte: malformações congênitas, prematuridade ou falta de vitalidade em recém-nascidos, atrofia (tanto na infância como na velhice) e decadência (velhice). Para Armstrong, neste ponto o bebê ainda era claramente um objeto da ‘ordem natural’: “ A mortalidade infantil ainda era regida principalmente pelas grandes leis – irreversíveis – do crescimento e da decadência.” (Armstrong, 1986: 221). Nas malformações congênitas considerava-se que o embrião tinha parado de crescer. Não se pensava ainda que o crescimento em si pudesse ser patológico. A prematuridade também era uma falha similar no tempo natural do nascimento que, por ocorrer antes do tempo, tinha como conseqüência a debilidade – falta de força vital necessária à existência. A atrofia e o envelhecimento pertenciam à decadência natural do corpo. Armstrong observa que, mesmo depois de já longamente estabelecidas as causas de morte como resultando de causas patológicas, em relação aos velhos e crianças a morte era analisada segundo os antigos paradigmas. No caso da velhice é difícil separar – questão presente até os dias atuais – a noção de morte como evento normal, de sua construção como anormal e patológica. A razão pela qual o bebê morre de uma morte ‘mais natural’ está atrelada à relação entre identidade social e forma de morte (Armstrong, 1986: 221). “ Em meados do século XIX, antes da invenção e aplicação das taxas de mortalidade infantil, o bebê ainda podia não ter uma existência como indivíduo, no sentido social do termo. Ele era um objeto biológico, uma parte do mundo natural e, consequentemente, estava sujeito às leis do crescimento e regressão naturais que caracterizavam este domínio, mais do que àquelas da vida patológica (...) Atrofia, debilidade e prematuridade não demandavam nem eram sujeitas às análises médicas (patológicas); quando estas designações foram finalmente colocadas no escopo do olhar clínico, já tinham perdido seus significados antigos e o bebê teve uma primeira aparição como pessoa.” (Armstrong, 1986: 222). Por um outro ângulo, Shorter (1997) corrobora a ‘inexistência’ do feto do ponto de vista social, ao observar que, no que tange às condições do parto na Europa – posições adotadas pelas mulheres, local do parto (no chão ou sobre a palha, por exemplo, para 61 poupar as roupas de cama) –, até o início do século XX “ (...) as mulheres tradicionalmente davam à luz em posições que elas consideravam confortáveis. Naquela época o bem-estar do feto simplesmente não se colocava.” (Shorter, 1997: 58) (Grifo acrescentado).73 A diminuição na taxa de mortalidade materna associada ao parto pode ter também contribuído para o surgimento do bebê como uma entidade separada da mãe. De acordo ainda com Shorter, antes de 1800, na Europa, entre 1 e 1,5% dos partos resultavam na morte da mãe. Considerando-se que a média de filhos por mulher era de seis, as chances de uma mulher vir a falecer de parto, durante seus anos férteis, situava-se em torno de oito por cento. Nas famílias médias, na Europa, nos séculos XVII e XVIII, uma em cada quatro mortes de mulheres férteis era devida ao parto. A queda nas taxas de mortalidade materna ocorreu mais rápido nas grandes cidades, mantendo-se constante nas áreas rurais ao longo dos séculos XVII e XVIII. O contraste entre as cidades e o campo deveu-se, segundo o mesmo autor, ao efeito positivo de vários melhoramentos introduzidos na assistência ao parto, tais como treinamento médico às parteiras, uso do fórceps e outros – iniciados nas cidades e lentamente difundidos para as áreas rurais (Shorter, 1997: 98-100). Após os anos 1870 – quando foram introduzidas modificações no manejo do parto baseadas na antissepsia descoberta por Joseph Lister – a mortalidade materna declinou rapidamente por toda a Europa (Shorter, 1997: 100). É possível articular a diminuição da preocupação de médicos e parteiras concernente à morte de suas pacientes no parto com uma nova inflexão no olhar – passando a encarar o bebê como uma entidade separada e em si merecedora de atenção.74 Por outro lado, as próprias melhorias introduzidas no cuidado ao parto estão inseridas e ao mesmo tempo respondem a um movimento social mais amplo no sentido da conservação do maior número possível de bebês, em boas condições de saúde. Nos anos 1930, após a invenção da sulfa e de sua introdução no tratamento das infecções pós-parto, a maior parte das complicações puerperais encontrava-se sob controle (Shorter, 1997: 100-1). ✼✼✼ 73 Sobre posições para o parto e condições para o nascimento, juntamente com o tipo de intervenção praticado pelas parteiras, ver Shorter (1997: 53-68). 74 Vale lembrar que, conforme visto no Capítulo 1, na Inglaterra, a invenção das taxas de mortalidade infantil data de 1877. 62 Voltando ao estudo de Armstrong acerca do que é evidenciado e construído através da depuração nas análises estatísticas, esse autor observa que, em 1921, a atrofia desaparece da classificação inglesa das mortes de bebês e a influência do antigo domínio natural na mortalidade é removida. A causa passa a ser localizada em dimensões congênitas temporais e espaciais. Isto significou, entre outras questões, a introdução da ‘desordem’ no discurso médico legítimo e estabelecido (Armstrong, 1986: 223). Se a causa pode estar localizada no tempo e no espaço que precedem o nascimento, há uma nova inflexão no olhar para o bebê, abrangendo também o feto que o antecede. Em 1948 a ‘debilidade congênita’ é desdobrada, passando a ser substituída por imaturidade, desajuste nutricional e causas indefinidas. Consequentemente, em 1949 a ‘debilidade congênita’ declina como causa de morte. Pode-se observar que, no Reino Unido, no espaço de 50 anos a ‘atrofia’ e ‘decadência’ como causas de mortalidade infantil desapareceram: “ (...) de 1877 – quando as taxas de mortalidade infantil foram introduzidas pela primeira vez – até 1927 – quando partos prematuros tornaram-se registráveis – o bebê ao mesmo tempo adquiriu e consolidou sua posição como uma entidade analítica separada. No momento em que a morte do bebê foi desligada da idéia excêntrica de ‘forças naturais’ como regressão e decadência, o bebê pôde ser identificado como uma criatura separada e essencialmente social. A emancipação final do bebê no entre-guerras foi também marcada por uma área distinta da medicina voltada especificamente para a criança (sob a forma de pediatria), assim como outras configurações institucionais e profissionais – psicológicas, educacionais, nutricionais, higiênicas – desenvolvidas em torno do novo corpo fabricado da criança.” (Armstrong, 1979, 1983 apud Armstrong 1986: 223). 3.4) A prematuridade como novo foco de atenção Em 1854, o nascimento prematuro foi registrado pela primeira vez como uma causa de mortalidade infantil. Só em 1881 torna-se (na classificação da HMSO, na Inglaterra) uma forma de doença do desenvolvimento – e durante 50 anos assim permanece. A mudança de 1881 é importante pois, antes desta data, essas mortes pertenciam à mesma estrutura de referência de ‘debilidade’ e ‘atrofia’. Antes da invenção da taxa de mortalidade infantil, o bebê só existia como um apêndice, às vezes inconveniente, da mãe. Não tinha existência com um objeto social (Armstrong, 1986: 224). A mortalidade materna relacionada com parto prematuro chamou a atenção para a prematuridade e, não por acaso, os primeiros médicos a se preocuparem em fazer sobreviver bebês nascidos prematuramente eram obstetras. Esses médicos idealizaram 63 engenhos que tinham como objetivo básico manter um aquecimento constante para os bebês prematuros. O primeiro deles foi projetado e desenvolvido na Rússia, em 1835, por sugestão de Johann Georg von Ruehl, médico da Czarina Feodorovna, esposa do Czar Paulo I. Consistia em duas pequenas banheiras (ou berços) de zinco, de tamanhos diferentes, acopladas uma dentro da outra. O espaço entre as duas era fechado, e no interstício era introduzida água quente, renovada de tempos em tempos de forma a manter constante a temperatura no interior do berço. O aparelho foi colocado no Hospital Imperial de Crianças Abandonadas, em São Petersburgo. Em 1850 foi instalada uma adaptação desta primeira incubadora, no Hospital de Crianças Abandonadas de Moscou e, em meados da década de 1850, havia cerca de 40 destes aparelhos naquela unidade.75 Em 1884, Carl Credé publica os resultados de cerca de 20 anos de experiência em cuidados com 647 bebês prematuros ou debilitados, usando um aparelho similar no Hospital Maternidade de Leipzig (Cone, 1981). Em 1878, o obstetra francês Stéphane Tarnier idealizou uma incubadora para prematuros aquecida com ar quente e encarregou o engenheiro Odile Martin de construí-la. Essa invenção foi saudada entusiasticamente, à época, como uma grande inovação. Em 1880 Tarnier fundou em Paris uma unidade para os bebês ‘débeis’ na Maternité de Paris (Silverman, 1979). Cabe aqui assinalar a coincidência nas datas do surgimento da incubadora TarnierMartin e da mudança conceitual na classificação da HMSO, acima mencionada. Esta coincidência indica provavelmente um novo foco sobre a criança e uma atenção maior voltada para os prematuros. A prematuridade e os cuidados com estes bebês passam então a ser um novo objeto de atenção e intervenção médicas, além de despertarem o interesse e a curiosidade do público leigo, conforme pode ser exemplificado com o fato – bizarro – das exposições de incubadoras com bebês. Em 1896, o alemão Martin Couney, um jovem discípulo do obstetra Pierre Budin,76 solicitou a seu mestre autorização para exibir na Exposição Mundial de Berlim o modelo de incubadora de Tarnier-Martin que fora recentemente modificada. Partiu de Couney a idéia de exibir bebês prematuros vivos dentro das incubadoras. Em Berlim foram conseguidos alguns destes bebês, com o apoio da Imperatriz Augusta Victoria, a protetora 75 A existência de hospitais de Crianças Abandonadas em diversas cidades da Europa corrobora o quanto a prática de abandono de crianças era comum até o século XIX. Ver Capítulo 1 deste trabalho, particularmente o item 1.4. 76 Discípulo, por sua vez, de Stéphane Tarnier. 64 do Hospital de Caridade de Berlim – a consideração era de que estes recém-natos teriam mesmo poucas chances de sobreviver. Juntamente com as incubadoras veio parte do grupo de enfermeiras de Budin. Foram expostas seis incubadoras, obtendo enorme sucesso. Durante essa exposição Couney foi convidado por Samuel Schenkein a repetir o espetáculo no ano seguinte em Londres, na Exposição da Era Vitoriana, que teria lugar na Earl’s Court (Silverman, 1979).77 Essa primeira exposição de incubadoras com bebês ocorrida em Londres em 1897 obteve enorme sucesso de público e a ela seguiram-se uma série de outras, montadas, em sua maioria, por produtores de espetáculos de variedades. Em virtude da excelente receptividade, as exposições de bebês de incubadora (Incubator-Baby Side Shows) multiplicaram-se pela Europa e, posteriormente, pelos Estados Unidos (Silverman, 1979: 131). Couney emigrou para a América em 1903, onde os espetáculos prosseguiram até o início da década de 1940 – com pouquíssimas exceções a grande maioria dos espetáculos foi realizada sob seus auspícios (Silverman, 1979).78 Em 1896 fora lançado um novo modelo de incubadora, idealizada pelo engenheiro francês Alexander Lion e manufaturada por Paul Altmann, com algumas vantagens sobre o modelo Tarnier-Martin (Toubas & Nelson, 1998). Esta nova aparelhagem passou a ser exposta por Couney, resultando em grande êxito comercial. Além disso, os espetáculos em si garantiam um bom retorno financeiro (Silverman, 1979: 133). A receptividade do público a tais exibições indica, além do fascínio pelo poder da Ciência e da tecnologia, uma nova atenção e sensibilidade aos bebês prematuros – categoria recém-construída.79 ✼✼✼ 77 Espetáculo parece ser a palavra adequada. Apesar de todo o discurso ‘científico’ acerca das primeiras exibições de bebês de incubadora, parece-me que não havia muita diferença – exceto pela não-contigüidade com animais amestrados e aberrações humanas – entre o tipo de curiosidade soi-disant científica que movia “ 3600 pessoas num único dia” para ver os bebês de incubadora em Earl’s Court, e a do público que sustentou o sucesso do Barnum and Bailey’s Show durante muitos anos (ver editorial do Lancet a este respeito, transcrito no Anexo I). 78 Uma destas exposições, em Saint Louis em 1904, foi francamente desastrosa, quando houve uma epidemia de diarréia com morte de 50% dos bebês, o que parece ter desestimulado ‘imitadores’ de Couney de continuarem com os espetáculos (Silverman, 1979: 135). 79 Em 1939, Arnold Gesell, de Yale, interessado nos “ primórdios da mente humana” , entrou em contato com Couney e realizou alguns filmes documentando os “ bebês fetais” , como designava os prematuros, no intuito de obter algumas pistas acerca da fase pré-natal do desenvolvimento comportamental (Silverman, 1979: 138). O interesse de Gesell pela observação da psique de prematuros, assim como a própria atribuição de um psiquismo a estes bebês indicam uma acentuação da tendência a considerá-los indivíduos, dotados de uma subjetividade. Arnold Gesell tornou-se famoso, alguns anos mais tarde, através da elaboração uma escala – que leva seu nome – de avaliação de desenvolvimento infantil, amplamente utilizada até nossos dias. Sua escala permite avaliar diferentes áreas do desenvolvimento, definidas por Gesell como: área mental, de linguagem, pessoal-social, adaptativa e motora. A avaliação oferece para o examinador um resultado denominado QD – quociente de desenvolvimento – de crianças. 65 À medida que declinaram as mortes por ‘atrofia’ e ‘debilidade’, cresceram as devidas à ‘prematuridade’. Entretanto, essa ainda era uma designação vaga. Nos anos 1950 surgem duas tendências: uma apontava o rótulo ‘morte de prematuro’ como insatisfatório, muito vago, e considerava os termos atelectasia80 e asfixia mais adequados como causas de morte. A outra tendência evidenciava-se com a introdução formal do termo ‘imaturidade’. A morte poderia ser classificada duplamente, com uma causa patológica específica e também com o rótulo de imaturidade – esta última, mais como contexto do que propriamente causa da morte (Armstrong, 1986: 225). Organizam-se as causas específicas de morte no Registro Geral do Reino Unido: pré-natal, natal e pós-natal. A imaturidade era a causa mais importante nos dois primeiros grupos. Ligar a imaturidade a causas pré-natais provocava uma mudança conceitual, de uma afecção da criança para um problema da mãe. O parto prematuro tinha causado a imaturidade, e esta representava uma falha na gestação – patologia, portanto, da mãe e não da criança (Armstrong, 1986: 225). Na realidade, a questão do parto prematuro é ambígua. Por um lado, é referido à criança que tem sua morte assim rotulada; por outro, pode ser um atributo da mãe que produziu esse nascimento antes do termo. “ Na realidade, só na medida em que a criança morre de uma doença específica é que ela é separável da mãe como um objeto analítico. (...) O bebê começaria a ganhar a independência social através de sua doença e morte.” (Armstrong, 1986: 224). Em 1954 é ressaltada a necessidade de tornar mais preciso o registro das mortes de prematuros. A maior precisão leva a separar o risco de morte para os bebês nascidos a termo e para os prematuros, baseados em “ critérios simples de maturidade tais como o peso do bebê ao nascer ou o tempo de gestação” (HMSO, 1954 apud Armstrong, 1986: 225). Arney mostra que as mudanças na prática obstétrica no século XX trazem a noção de ‘relação mãe-bebê’, e do feto como o segundo paciente, além de produzirem literatura sobre o vínculo mãe-bebê a partir dos anos 1950 (Arney, 1982: 134-5). “ (...) Não é, portanto, surpreendente que o problema da prematuridade ou da imaturidade, que havia sido – e que continua sendo – um dos maiores fatores na mortalidade infantil, tivesse se tornado uma das técnicas de desvendar (e, através disso, constituir) um vínculo aparentemente ‘natural’ e invariável entre mãe e criança. Se o início do século XX estabeleceu o bebê como um objeto social distinto, as análises do pós-guerra serviram para integrar esta mesma criança em uma matriz de laços maternais e familiares de cunho fisiológico e afetivo.” (Armstrong, 1986: 226). 80 Colabamento dos alvéolos pulmonares, muito comum em bebês prematuros e que, dependendo da extensão, pode provocar a morte por asfixia. 66 3.5) A análise epidemiológica na construção do bebê social O saber médico considera que as análises tornam-se mais apuradas apenas para ‘melhor exame de seus objetos’, o que é questionado por Armstrong. Mudanças de uso de palavras para designar doenças – ‘malformação congênita’ para ‘anomalia congênita’, por exemplo – refletem muito mais uma mudança de percepção do que precisão no diagnóstico. Esse tipo de mudança evidencia uma transformação do objeto do olhar médico: “ Existem, é claro, razões políticas para prover o bebê com uma existência a priori e reduzir a análise a uma técnica metodológica. Se o corpo da criança tem uma natureza inviolável e a análise é um método neutro, então a investigação poderá revelar as bases para um código moral (...). Na realidade, o problema da mortalidade neonatal só pôde tornar-se – de forma reflexiva – o ponto de apoio biológico de uma ordem moral e social, porque foi analisado e emergiu como um problema de influências sociais, domésticas e maternas.” (Armstrong, 1986: 226-7). Observa-se nesse ponto o quanto e de que forma estes argumentos ‘biológicos’ são utilizados como base de apoio e validação para argumentos morais.81 Para Armstrong, a análise e seu objeto são mutuamente constitutivos: tanto o bebê é produto de uma análise, quanto esta análise reflete o bebê. É possível considerar-se que os objetos são estabelecidos por uma interrogação: o bebê não possuía existência médica/social antes de uma estrutura analítica que impôs as mortes no primeiro ano de vida sobre todas as mortes. As características e atributos do objeto são também produto de dimensões analíticas: “ (...) Ao mesmo tempo que estas linhas de interrogação atravessam o bebê e o provêem de uma natureza e uma identidade, são em troca constituídas e consolidadas pela suposta realidade do bebê sobre a qual se articularam.” (Armstrong, 1986: 227). Armstrong considera que cada morte estabelece, por contraste, um componente da infância. Por exemplo, malformações congênitas estabelecem a identidade biológica; mortes por imaturidade remetem à interação mãe-bebê; mortes por abuso físico destacam a importância do contexto parental. Esse autor sinaliza a ausência de um olhar totalizante que integre todas as linhas de vigilância e as desdobre em torno de um ‘bebê ideal’. A rigor, a análise da mortalidade infantil requeria um bebê totalmente não-sobrecarregado de linhas fixas de classificação prévia; um espaço que fosse essencialmente aberto. Esse espaço 81 A questão da ‘biologização’ como base de – ou mesmo pretendendo substituir – critérios e argumentos morais será retomada adiante. 67 surgiu nos anos 1950 por uma inversão curiosa do campo de visibilidade que dominava a análise da mortalidade infantil desde o século XIX (Armstrong, 1986: 227-8). Até a metade do século XX havia fundamentalmente dois tipos de morte de bebês: as ‘com causa’ e as ‘sem causa’. A partir dessa época, o segundo grupo que, anteriormente, era visto como um aborrecimento tedioso e incômodo, torna-se foco de interesse. O olhar desloca-se para as crianças em geral, não mais apenas para as doentes ou moribundas. Os limites normal/anormal tornam-se menos rígidos e cada criança passa a ter uma trajetória pessoal. Significativamente o texto clássico do período é The normal child, de Illingworth. Nenhum bebê escapa mais ao escrutínio (Armstrong, 1986: 228). Em 1951, na Inglaterra, a atenção volta-se para a ‘morte do berço’. Estas mortes, sem explicação, não estavam saturadas por causas e ofereciam o ponto de apoio ideal para a articulação da estrutura analítica total que havia até então adotado, em graus variados, outras formas de mortes de bebês. Esta indefinição da causa de morte ampliou infinitamente o campo de investigação. Inversamente, pode-se argumentar que as ‘mortes do berço’ eram, elas próprias, um produto desta estrutura analítica. De toda forma, vale reter que, algo que até os anos 50 era um aborrecimento, após esse período passa a ser o ponto ideal de aplicação de todas as estratégias analíticas, das fisiológicas às sociais, sobre o corpo ainda totalmente moldável do bebê (Armstrong, 1986: 229). Concomitantemente – correspondendo ao movimento de ampliação do campo de observação e também ao surgimento do feto como uma entidade em separado – é desenvolvida a tecnologia do ultra-som, que torna o útero ‘transparente’, acessível ao olhar,82 permitindo a observação do feto em desenvolvimento e também carreando consigo diversas conseqüências, tema do próximo capítulo. 82 A grande ruptura qualitativa no sentido de tornar o corpo ‘objetivamente’ transparente deu-se com a invenção dos raios-X, em 1895, por W.R. Röentgen. Contudo, gradualmente foi sendo verificado que estes raios, assim como diversos outros tipos de radiação, provocavam danos ao feto em crescimento – conforme ficou dramaticamente evidenciado algum tempo após a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki. A questão dos efeitos deletérios do ultra-som a longo prazo, no desenvolvimento, continua a ser discutida sem que se chegue a um consenso, ao mesmo tempo em que esta tecnologia é difundida como técnica ‘segura’. Este ponto será melhor explicitado no próximo capítulo. 68 Capítulo 4 ALTA TECNOLOGIA: DO ÚTERO TRANSPARENTE AO STATUS DO FETO “ O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás de casa. Passou um homem depois e disse: Essa volta que o rio faz por trás de sua casa se chama enseada. Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que fazia uma volta atrás de casa. Era uma enseada. Acho que o nome empobreceu a imagem.” (Manoel de Barros, 2000: 25). 4.1) TECNOLOGIA E GRAVIDEZ 4.1.1) Breve histórico sobre o uso de tecnologia na gravidez Até há cerca de 60 anos, a única forma de confirmação da suspeita de gravidez na mulher, a partir do atraso menstrual, era dada pela evolução no tempo e com ela o surgimento dos sinais explícitos de gestação. Na década de 1940 surgem os primeiros testes laboratoriais para confirmação do diagnóstico de gravidez, realizados com a urina da mulher a partir de, no mínimo, 30 dias de atraso menstrual. Surge portanto uma primeira mediação da tecnologia, que transforma a suspeita de gravidez em um razoável grau de certeza. Contudo, a percepção da existência do feto no útero continuava a se dar bem mais tarde, cerca de 3 meses depois, através da vivência sensorial da mãe, ao perceber os movimentos fetais. Na década de 70 foi inventado o teste da dosagem por imunofluorescência de β-HCG83 no sangue da mulher, que podia ser realizado mesmo sem haver atraso menstrual e que apresentava maior grau de certeza em relação aos testes anteriores. Desde o surgimento dos testes laboratoriais de confirmação da gravidez verifica-se um deslocamento da posição ocupada pela mulher no que tange ao poder e ao conhecimento acerca de sua gestação. Ocorre uma relativa substituição da percepção e 83 Hormônio gonadotrofina coriônica, produzido pela implantação do ovo fecundado no endométrio da mulher; a detecção deste hormônio no sangue da mulher grávida é mais precisa e mais precoce do que na urina por ser possível evidenciar concentrações muito menores da substância no sangue. 69 subjetividade da mulher em favor de um dispositivo tecnológico, laboratorial, de diagnóstico. A grande mudança qualitativa ocorreu quando, na década de 50, o obstetra escocês Ian Donald (1910-87) aplicou o princípio do sonar84 ao corpo, inicialmente concentrandose em mostrar que diferentes classes de tumores abdominais produziam ecos diferentes. Em 1957 usou pela primeira vez o ultra-som para diagnosticar desordens fetais e, mais adiante, a gravidez em si. O avanço desta tecnologia de imagem recebeu um impulso indireto considerável, na época, por conta do impacto causado na opinião pública com a revelação dos danos provocados pela radiação, após a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e Nagasaki. A partir dessa constatação, os raios X deixavam de ser uma alternativa tecnológica para o acompanhamento da gravidez. Inicialmente o ultra-som foi recebido com suspeita – em especial com relação ao seu uso durante a gestação. Este recurso tecnológico, ao ser designado como inócuo ao feto (mesmo sendo a ‘inocuidade’ uma questão polêmica), abriu um novo campo a ser explorado – o da observação, ao vivo, de um ser em desenvolvimento (Porter, 1997: 608). Rosalind Petchesky (1987) considera importante contextualizar e historicizar o surgimento dessa tecnologia, assinalando que o ultra-som passou a ser aplicado à obstetrícia em maior escala na década de 60, alguns anos depois de ter sido aceito em outros campos do diagnóstico médico. Para essa autora, a determinação do momento de seu surgimento é significativa, porque corresponde ao final do “ baby-boom” e a uma queda acentuada na fertilidade nos EUA – o que teria impelido obstetras e ginecologistas para novas áreas de descobertas e de ganhos financeiros, além de uma nova população de “ pacientes” (Petchesky, 1987: 65). Nos início dos anos 70, antes que o uso de ultra-som estivesse difundido na obstetrícia, foram levantados questionamentos acerca de perigos para a mãe e para o feto. Em 1984, nos Estados Unidos, a conferência de consenso do National Institute of Health (NIH) decidiu que os dados disponíveis sobre a eficiência e segurança do ultra-som não permitiam a recomendação deste como técnica de rotina. Na Inglaterra, o Royal College of Obstetricians and Gynaecologists (RGOC), embora reconhecendo que havia necessidade de mais pesquisas, lançou a afirmação reasseguradora de que havia “ (...) razões 84 Abreviatura de Sound Navigation and Ranging. A técnica naval do sonar, desenvolvida pelos franceses e usada na I Grande Guerra para localizar objetos e submarinos inimigos submersos (Rapp, 1997: 34-5), baseia-se no princípio de que certos cristais, quando submetidos a uma descarga elétrica, emitem ondas sonoras de alta freqüência que não são captadas pelo ouvido humano. Essas ondas atravessam a água e, ao encontrarem um obstáculo, produzem eco. A distância do emissor de onda sonora ao obstáculo pode ser calculada pelo lapso de tempo que a onda sonora gasta para retornar. 70 convincentes para supor benefícios para todas mães e bebês advindos de ‘um escaneamento bem feito entre 16-18 semanas de gravidez’.” (RCOG, 1984 apud Price, 1990: 133). Não ficou definido o que queria dizer “ um escaneamento bem feito” (Price, 1990: 133).85 A questão da segurança do uso do ultra-som na gravidez, para o feto, está profundamente impregnada pelo poder da instituição médica. Price sinaliza que esse poder se revela ao mesmo tempo minimizando os medos do risco e cultivando a confiança no seu controle: “ (...) A aura da autoridade médica é reforçada por uma ideologia de profissionalismo e uma confiança difundida na eficácia do controle institucional.” (Price, 1990: 132). A controvérsia acerca de efeitos biológicos atravessa toda a história das tecnologias utilizadas em medicina. Diversos experimentos sustentam a evidência de retardo no crescimento e anormalidades fetais em camundongos após exposição ao ultra-som. Estes resultados forneceram subsídios para que houvesse mais cautela nos anos 80 (O’Brien, 1983; Takabayashi et al., 1981 apud Price, 1990: 132). Contudo, como os medos iniciais não foram consubstanciados por evidências e, por outro lado, foram produzidos na Inglaterra dois estudos com grupos de mulheres, que não evidenciaram danos – freqüentemente citados como prova da segurança do ultra-som – ficou tacitamente concluído que era uma tecnologia segura: “ Deliberações subsequentes pelo Cell Board chegaram à conclusão que os possíveis efeitos biológicos seriam sutis demais e difíceis de distinguir de outros efeitos do ambiente pós-natal.” (Price, 1990: 132). A discussão acerca dos possíveis efeitos deletérios do ultra-som foi encerrada na Inglaterra sem que houvesse evidências concludentes nem em um sentido nem no outro e, agora que o ultra-som está largamente difundido na clínica obstétrica, fazer um vasto estudo prospectivo acerca dos seus efeitos acarretaria inúmeras dificuldades do ponto de vista prático, econômico e ético (Price, 1990: 133-4) – e, portanto, tal estudo nunca foi realizado. O ultra-som passou a ser usado, a partir de fins da década de 80, nos EUA, como exame de rotina na gestação (Mitchell, 1994: 146), tornando-se um dispositivo essencial na medicalização da gravidez e também do feto. Esta utilização da tecnologia representou uma 85 Francis Price discute também a questão do quanto o uso de novos medicamentos é regulamentado e monitorizado pelo governo inglês, ao passo que novas tecnologias e aparelhagens não são submetidos ao mesmo tipo de controle (Price, 1990: 133). 71 considerável ampliação do controle e disciplinarização dos corpos, ao mesmo tempo em que se reforçava uma nova subjetividade. Esse reforço parece se dar em dois planos: em um primeiro, reconfigurando e antecipando vivências da mãe em relação ao seu feto – agora tornado visível para ela sob uma forma externalizada na tela, muito antes de poder captar sensorialmente os movimentos fetais. Em um segundo plano, constitui-se o próprio feto como um novo ‘indivíduo’, visualizável e com a atribuição de ‘comportamentos’ observáveis, específicos, individualizados e psicologizados (Piontelli, 1987; 1988; 1989; 1992; 1995). O novo recurso ao mesmo tempo correspondia e atendia à construção de uma nova sensibilidade em relação ao bebê – agora estendida também ao feto que, conforme visto no Capítulo 3, tornara-se, desde a década de 30, também ele um objeto de atenção médica. No mesmo processo que gerou as condições de sua produção, o ultra-som contribuiu e vem contribuindo, em larga escala, para o reforço daquela sensibilidade, em uma via de mão dupla. As implicações e desdobramentos do uso do ultra-som na gravidez são inúmeras e de tipos variados, como, por exemplo, a monitoração crescente da gestação e do feto, maior envolvimento do pai na gravidez, ampliação do número de atores sociais envolvidos na gestação, diagnósticos de anomalias que podem levar à decisão de interromper a gravidez, assim como a instrumentalização dos grupos anti-aborto (Rapp, 1997; Salem, 1997). Petchesky (1987), em um dos primeiros artigos a discutir a utilização das imagens fetais, aponta que, baseadas nestas imagens, as lideranças do movimento antiaborto, em seu afã de ganhar terreno nas cortes judiciais e nos ‘corações e mentes’ da população norte-americana, efetuaram uma mudança estratégica consciente – do discurso e autoridade religiosos para o discurso e autoridade médico-técnicos (Petchesky, 1987: 58). 4.1.2) A ultra-sonografia obstétrica na atualidade: o útero ‘transparente’ e o feto trazido para o espaço público No passado, a presença pública do feto revelava-se aos poucos, em um período de meses, e os sinais desta presença passavam necessariamente pela codificação da mulher, tanto em termos físicos quanto psíquicos. A passagem dos sinais internos de gravidez para os externos ocorria de maneira lenta e gradual e, de qualquer maneira, os sinais dependiam do relato da mulher grávida. Nos dias atuais, a ultra-sonografia sobrepõe-se à consciência corporal da mulher e fornece um conhecimento médico, independente, sobre o feto. Os estados corporais que anteriormente indicavam a gravidez são substituídos por sinais exclusivamente visuais que transformam uma série de ecos em um ‘bebê’. O conhecimento corporal difuso da mulher acerca de sua gravidez é transformado, reduzido e restringido à 72 imagem do feto como uma entidade separada ou um ‘paciente’ (Rapp, 1997: 39). Michèle Fellous (1991), em estudo sobre a ecografia obstétrica86 na França observa que, para as gestantes, a visualização do movimento é mais impactante do que apenas a imagem, e que, freqüentemente, o interesse das mulheres no ultra-som decresce a partir do momento que começam a sentir os primeiros movimentos fetais. Entretanto, para os homens, sem a possibilidade de apreender o feto sensorialmente, este interesse persiste inalterado durante toda a gravidez da mulher (Fellous, 1991: 20). O constructo que emerge da visualização do feto foi denominado por alguns autores de feto-cyborg (Mitchell & Georges, 1998). O uso deste conceito permite que sejam colocados em evidência não apenas a interação corpo-máquina na reconfiguração da Pessoa, como também os processos de produção deste constructo: “ Usar o ultra-som para descobrir e conhecer o feto-cyborg é, nos termos de Haraway [Donna Haraway], um problema de tradução; ultra-sonografistas devem traduzir não só a física dos ecos, como também os significados clínicos e sociais dos diferentes matizes de cinza.” (Mitchell & Georges, 1998: 108). Obstetras, radiologistas e técnicos podem apropriar-se da imagem descrevendo-a para a mãe em um discurso que garante sua ‘condição de Pessoa’ (personhood)87 em termos físicos, morais e subjetivos (Rapp, 1997: 39). Fellous (1991), observando o uso e o impacto da ecografia na França e EUA, mostra que há diferenças marcantes na construção da idéia de autonomia do feto em relação à mãe, dependendo da categoria profissional – por exemplo, ultra-sonografistas e pediatras tendiam a perceber o feto como um ser autônomo, enquanto obstetras percebiam a dupla como uma unidade (Fellous, 1991: 56). Mitchell (1994), em estudo sobre a ultra-sonografia com 49 mulheres primíparas, no Canadá, observa que, durante o exame, o termo ‘feto’ é reservado a questões diagnósticas, e que a maioria das observações feitas pelo ultra-sonografista durante um exame de rotina refere-se à anatomia, aparência e atividade do ‘bebê’. A imagem ultrasonográfica é descrita para a gestante em termos de atividade intencional: está “ brincando” , “ nadando” , “ pensando” , “ espreguiçando” , “ descansando” , etc. A aparência de ‘bebê’ do feto é ressaltada, com comentários sobre “ a gracinha dos dedinhos do pé” , ou sobre a semelhança com membros da família. Os movimentos fetais são também freqüentemente descritos em termos de humor como, por exemplo, “ o bebê está 86 Os termos ultra-sonografia e ecografia são utilizados neste texto como sinônimos, e sempre referidos ao seu uso em obstetrícia. 87 Não há uma tradução exata em português para o termo personhood. Optei por utilizar ‘condição de Pessoa’ e ‘pessoalidade’ como equivalentes à palavra inglesa. 73 feliz” , “ relaxado” , “ cansado” , “ tímido” . Muitas vezes os técnicos interagem com a imagem na tela, cumprimentando-a, dirigindo-lhe reprimendas ou criando uma voz em seu lugar, que “ fala” com a mãe (Mitchell, 1994: 150). Em outras palavras, é atribuída ao feto uma subjetividade, de forma bastante explícita. A descrição é vital para a imagem ultra-sonográfica tornar-se significativa culturalmente como “ um bebê” , e passa por um “ filtro cultural” : no Canadá, os técnicos selecionam as partes “ não-chocantes” tais como bexiga, pés e mãos – e dedos – para mostrar às grávidas, e não mostram a face do feto no período de 16/18 semanas, considerada por eles como alarmante para as mulheres. Apenas mais adiante mostram o rosto do feto (Mitchell & Georges, 1998: 108). Os médicos, contudo, em conversas entre si referem-se às imagens em linguagem neutra, científica (Rapp, 1997: 39). Fellous assinala que a tomada de consciência da realidade do feto só é efetiva no momento em que é conjugada a outras percepções, tais como a escuta dos batimentos cardíacos fetais e a sensação vivida com os movimentos do concepto. A produção de prazer e alegria está condicionada a que “ (...) a imagem seja sustentada pela palavra que comenta e explica, senão ‘não se vê o que é’; e que a consulta [ecográfica] termine com: ‘tudo vai bem’(...).” (Fellous, 1991: 20-1). 4.1.3) A produção de conhecimento confiável sobre a gravidez e o feto A ultra-sonografia de alta resolução é vista atualmente pelos obstetras e por suas clientes não só como parte integral do cuidados pré-natais, como também um recurso indispensável nas novas tecnologias reprodutivas (Price, 1990: 136). Esta conformidade de opiniões indica o quanto a ecografia obstétrica passou a ser um instrumento essencial no movimento crescente de medicalização da concepção, da gravidez e do próprio feto, com papel de destaque na produção de conhecimento confiável (authoritative knowledge) acerca da gestação.88 Como o processo de hegemonia em geral, o conhecimento confiável envolve a construção de um consenso relativo ao que é pensável ou impensável. Como Jordan assinala, as tecnologias têm um papel preponderante nesta construção, devido ao seu valor simbólico, sua associação com experts e sua expressão de poder (Jordan, 1993: 158 apud Georges, 1996: 158). 88 Brigitte Jordan resume da seguinte forma seu conceito de conhecimento confiável: “ (...) o conhecimento que os participantes de uma situação consensualmente consideram válido, que eles vêm como conseqüente, baseado no qual tomam decisões e encontram justificativas para séries de ações.” (Jordan, 1993: 154 apud Heriot, 1996: 177) (Grifo original). 74 Carole Browner e Nancy Press (1996), em pesquisa sobre cuidados pré-natais nos EUA tomam como base a conceituação de conhecimento confiável desenvolvida por Brigitte Jordan, que o define como regras que têm mais peso do que outras, “ (...) tanto porque explicam melhor o estado do mundo para os objetivos imediatos (‘eficácia’), quanto porque estão associadas a uma base de poder mais forte (‘superioridade estrutural’) e, freqüentemente, por ambas as razões.” (Jordan, 1993: 152 apud Browner & Press, 1996: 142). Em situações de igualdade hierárquica, há possibilidade de escolha por parte dos indivíduos. Em situações de desigualdade estrutural, geralmente um conjunto de regras ou formas de conhecimento ganha autoridade desvalorizando e tirando a legitimidade de outras. Browner e Press consideram o período pré-natal como um exemplo claro de um processo de medicalização em ação (Browner & Press, 1996: 142). As autoras examinam o papel da tecnologia biomédica no deslocamento do conhecimento incorporado (embodied knowledge) – e corporal – das mulheres sobre a gravidez, em favor da consolidação do conhecimento confiável biomédico nos cuidados pré-natais.89 Cabe observar que a distinção entre conhecimento incorporado e conhecimento confiável biomédico corre o risco de ser tomada de uma forma um tanto ingênua, como se o conhecimento incorporado fosse ‘genuíno’ e o biomédico ‘artificial’ ou ‘imposto’. É evidente que o conhecimento incorporado é um constructo, tanto quanto o conhecimento confiável biomédico, sendo ambos histórica e socialmente informados pelos valores em circulação em uma determinada sociedade.90 O ponto principal a ser destacado é o quanto e de que forma a tecnologia de imagem em medicina interfere neste deslocamento. O estudo de Browner e Press focalizou basicamente o auto-cuidado de mulheres durante a gravidez, e de que maneira estas incorporavam os conselhos biomédicos às suas rotinas preexistentes de cuidados com o corpo. O foco na questão do papel que mulheres leigas desempenham na construção de conhecimento confiável, decidindo quais conselhos médicos incorporam ou ignoram no cuidado com seus próprios corpos pode esclarecer os processos de expansão biomédica, assim como revela de que forma a tecnologia designa alguns tipos de conhecimento como ‘confiáveis’ e, assim fazendo, ajuda a dirigir o 89 Browner e Press definem ‘conhecimento confiável biomédico’ na gestação como: “ (...) as recomendações cujo objetivo é proteger a saúde da mulher grávida ou de seu feto. Inclui informações dos próprios agentes de saúde ou outras autoridades biomédicas às mulheres, livros e outros impressos (...)” (Browner & Press, 1996: 145). 90 Por exemplo, Browner e Press definem o conhecimento incorporado como: “ (...) conhecimento subjetivo derivado das percepções da mulher sobre seu próprio corpo e seus processos naturais, à medida que mudam no decorrer da gestação.” (Browner & Press, 1996: 142), sem levarem em consideração que as percepções corporais também são culturalmente informadas. Agradeço a Tania Salem o ter-me alertado quanto a este aspecto. 75 processo de medicalização (Browner & Press, 1996: 142). Vale sublinhar que o processo parece se dar em uma via de mão dupla, realimentando-se. Tanto a atribuição de confiabilidade a um tipo de conhecimento tecnológico contribui para o processo crescente de medicalização da gravidez, quanto esta tendência acentua a visão da tecnologia como produtora de conhecimento confiável. Cabe também ressaltar que as mulheres não são passivas neste processo. Nos Estados Unidos, boa parte dos cuidados pré-natais pode ser vista como um processo de socialização médica, no qual os agentes de saúde tentam ensinar às mulheres grávidas as suas próprias interpretações acerca dos sinais e sintomas que as gestantes apresentarão à medida que a gravidez prossegue, bem como a importância que deve ser atribuída àqueles. Há uma aliança entre mulheres e médicos, a partir do momento em que elas se dispõem a ter seus corpos monitorados e examinados, e solicitam aos médicos que as ensinem o que fazer durante a gestação. Em muitos depoimentos das entrevistadas no estudo evidenciou-se o sentimento de conforto e reasseguramento por receberem instruções acerca do que fazer. Várias mulheres revelaram que gostavam do pré-natal porque os recursos tecnológicos, tais como ultra-sonografia e a audição dos batimentos cardíacos fetais, faziam-nas sentir-se mais perto de seus fetos, ou tornavam o bebê “ mais real” (Browner & Press, 1996: 144). Conforme observação de Fellous, a imagem apenas não é a única responsável pela vivência positiva da ecografia obstétrica: “ (...) É a imagem em movimento, a imagem e o movimento que emocionam, particularmente os batimentos do coração [visualizados no ultra-som].” (Fellous, 1991: 20) (Grifos originais). O movimento confirma que há outra vida dentro da mulher. Embora haja ampla aceitação da autoridade biomédica acerca da gravidez na sociedade americana, diversas pesquisas citadas pelas autoras mostram que não há consenso entre as gestantes acerca da natureza e extensão do papel que a biomedicina91 deveria ter no cuidado pré-natal (Browner, 1990; Reid & Garcia, 1989; Terry, 1989; Hubbard, 1995 apud Browner & Press, 1996: 142). 92 91 Compreendida nos termos de Camargo Jr. (1997). O estudo de Browner e Press, assim como os de diversos outros autores, não encontrou diferenças significativas nas atitudes das gestantes que pudessem ser relacionadas às suas origens étnicas ou de classe social (Browner & Press, 1996: 143). Este resultado foi compatível com Lazarus (1988) que concluiu que a organização da clínica e as exigências do treinamento dos médicos residentes causavam um impacto maior na relação médico-paciente do que as diferenças culturais entre as pacientes das clínicas obstétricas estudadas (Lazarus, 1988, apud Browner & Press, 1996: 143). No entanto, há controvérsias a este respeito, e outros autores documentaram e discutiram o papel da etnicidade e classe social na formação de práticas de autocuidado de mulheres durante a gravidez (Martin, 1992; Rapp, 1997). 92 76 A passagem de informações no pré-natal era altamente valorizada pela maioria da mulheres estudadas. Acreditavam que, estando informadas, estariam mais aptas a assumir as responsabilidades conferidas pela gravidez. Contudo, apesar da importância conferida à informação, a pesquisa revelou que a autoridade biomédica não era aceita de forma incondicional. Isto ocorria, em parte, porque muitas vezes as mulheres descobriam que as informações biomédicas a seu respeito ou de outras mulheres estavam erradas e, em parte, pela falta de exatidão das informações obtidas por testagens laboratoriais. Outro motivo para a relativa descrença poderia ser atribuído à velocidade com que os conselhos biomédicos às grávidas eram modificados. Não só eram muito diferentes dos que suas mães tinham recebido, como às vezes mudavam de uma gravidez para a outra – em multíparas – ou variavam de médico a médico. Muitas mulheres estavam inclinadas a aceitar o conselho dos médicos como confiável, mas demonstravam alto grau de ambivalência em executá-los (Browner & Press, 1996: 145). Há uma vasta quantidade de material impresso dirigido às gestantes, que vai desde publicações de agências oficiais de saúde materno-infantil, livros e revistas a suplementos publicitários. Esta quantidade de informação não é necessariamente útil ou reasseguradora para as mulheres – freqüentemente gera confusão, e Browner e Press observaram que a maioria das mulheres aceitava os conselhos biomédicos que eram confirmados pelas experiência incorporada e rejeitava os que iam contra suas crenças preexistentes acerca dos cuidados consigo mesmas durante a gestação, assim como aqueles que dificilmente podiam ser incorporados às suas rotinas diárias (Browner & Press, 1996: 147-151). O grupo estudado pelas autoras não considerava as recomendações pré-natais confiáveis simplesmente porque eram emitidas por médicos. Neste sentido as informantes mostraramse semelhantes a homens e mulheres que, nos Estados Unidos, raramente seguem conselhos médicos de forma acrítica, conforme demonstrado por diversos estudos (Chrisman & Kleinman, 1983; Conrad, 1985; Hunt et al., 1989; Hunt, Browner & Jordan, 1990; Stimson & Webb, 1975 apud Browne & Press, 1996: 151). Em outros termos, as pacientes eram intérpretes ativas da informação médica. A valorização do conhecimento incorporado em detrimento do conhecimento biomédico, no que tange aos cuidados pré-natais inverte-se, contudo, quando da situação do parto, nos Estados Unidos. Neste momento a maioria das mulheres torna-se altamente receptiva à autoridade biomédica, deixando seu conhecimento incorporado em segundo plano (Bromberg, 1981; Davis-Floyd, 1992; Jordan, 1993 apud Browner & Press, 1996: 152). Há entre as mulheres americanas uma concordância generalizada de que a tecnologia 77 é essencial para o parto bem sucedido. Muitas acreditam que é “ mais seguro” para elas e para o recém-nascido, enquanto outras pensam que desta maneira há “ mais controle” . Browner e Press chamam a atenção para o contraste que existe entre a confiança no conhecimento incorporado, quando dos cuidados pré-natais, e a falta dela no momento do parto. Sugerem que esta diferença deve-se ao papel diferente da tecnologia biomédica nos dois terrenos. Enquanto o parto tornou-se, nos EUA, um empreendimento basicamente tecnológico, no campo dos cuidados pré-natais isto ainda não ocorreu (Browner & Press, 1996: 152).93 Diversos estudos acerca de diagnósticos pré-natais esclarecem este contraste (Browner & Press, 1995; Lippman, 1989; Petchesky, 1987; Rapp, 1987, 1988, 1990 apud Browner & Press, 1996: 152), mostrando que poucas mulheres recusam os exames de ultrasom ou outros procedimentos recomendados pelos agentes de saúde, mesmo quando não vêem a utilidade deles. Estas tecnologias tornam a gravidez ‘mais real’, na medida em que são culturalmente consideradas como produtoras de verdades incontestáveis e, além disso, permitem que as mulheres sintam que estão ‘fazendo o melhor’ para a saúde do feto. Observa-se, portanto, um contraste entre a atitude de aceitação da tecnologia prénatal e a de restrição crítica em relação a outras recomendações, só aceitas caso preencham alguns pré-requisitos tais como utilidade, coincidência com conhecimentos prévios e possibilidade de incorporá-las à vida cotidiana. Em suma, as mulheres do estudo confiavam mais em seu conhecimento incorporado do que na opinião dos médicos em relação a recomendações diversas, mas tornavam-se aquiescentes à autoridade médica quando esta se apresentava apoiada pelo poder da tecnologia (Browner & Press, 1996: 153). Esta atitude pode ser sintetizada pela conclusão de Arnold (1985) acerca da atitude de mulheres grávidas em Creta, Grécia: “ Confie na Ciência, mas desconfie dos médicos.” (Arnold, 1985 apud Georges, 1996: 160). O aparato tecnológico apresenta-se como a corporificação da biomedicina, de forma que a obediência observada por Browner e Press pode perfeitamente estar ligada à idéia de ‘um poder maior’, ao qual as mulheres podem entregar-se de forma ‘confiante’. Nos dias atuais, ainda há algum espaço para que as mulheres, durante o período prénatal, façam prevalecer seu conhecimento incorporado. Contudo, pode-se antever que, a partir do momento que a tecnologia de diagnóstico pré-natal passe a ser amplamente 93 Embora haja um movimento crescente no sentido da ‘desmedicalização’ do parto, ele ainda é incipiente em comparação com a tendência medicalizante difundida no mundo ocidental. Cabe ainda assinalar uma ambigüidade interessante, que consiste no fato de que muitos destes movimentos em favor do ‘parto natural’ são desencadeados e liderados por médicos. 78 disponível, a recusa da gestante em utilizá-la deixará de ser neutra: nas culturas onde a ideologia do ‘risco’ vai se tornando – ou já é – hegemônica, a negação pode ser construída como ‘falta de responsabilidade’ da mulher. A única maneira social e culturalmente aprovada de as mulheres grávidas reassegurarem-se de que tudo vai bem com sua gravidez fica sendo a aderência às rotinas científicas do pré-natal. À medida que a tecnologia avança no campo do pré-natal, pode-se imaginar que as mulheres progressivamente passem a sobrepor a autoridade biomédica ao seu conhecimento. As autoras concluem o estudo comentando que, com esta atitude, as mulheres contribuem para a construção do consenso de que a biomedicina preside o conhecimento confiável também no campo dos cuidados pré-natais (Browner & Press, 1996: 153). 4.2) O FETO-PESSOA 4.2.1) Máquinas e subjetividade Eugenia Georges (1996), ao focalizar a ecografia na gestação, examina como a capacidade intrínseca de visualização do feto pelo ultra-som detém o potencial poderoso de fundir processos naturais e tecnológicos e, com isso, produzir novas experiências cognitivas e corporais na gravidez. Através da reconfiguração da forma pela qual as mulheres percebem a ‘realidade’ de sua gravidez, esta autora postula que o ultra-som pode agir como um facilitador potente na produção e atuação do conhecimento confiável. Em etnografia desenvolvida em uma pequena cidade da Grécia, Georges descreve e discute a experiência subjetiva vivida por mulheres durante a ultra-sonografia (Georges, 1996: 159). Em seu estudo sustenta que o ultra-som fetal exerce uma atração especial, e considera que muito de seu impacto e autoridade estão ligados tanto à posição única que ocupa – de interseção entre tecnologias visuais científicas e populares – quanto com os códigos e convenções da representação do ‘real’ enraizados nestas tecnologias (Georges, 1996: 158).94 As mulheres estudadas viam o ultra-som por um prisma positivo, exercendo uma demanda ativa sobre os médicos. Georges considera que em parte esta atitude é um produto do status da máquina como representante da superioridade estrutural e simbólica da 94 Na Grécia, a expressão utilizada para o ultra-som fetal é “ colocar o bebê na televisão” . A televisão é uma metáfora bastante apropriada para este exame nesse país; é ubíqua e carreia consigo a imagem da modernidade, inserindo a Grécia no ‘moderno’ comportamento ocidental relativo à gravidez. A autora cita um estudo realizado pela Comunidade Européia que revelou que os gregos assistem, em média, mais horas de televisão do que os habitantes de qualquer outro país membro da Comunidade Européia (Georges, 1996: 170 n.4). Sobre a ‘naturalização’ e ‘objetividade’ das imagens técnicas na sociedade ocidental contemporânea, ver 79 moderna medicina científica e tecnológica, mas no decorrer da pesquisa outros aspectos subjetivos emergiram. Em primeiro lugar, as mulheres relataram um sentimento – proporcionado pelo uso da tecnologia – de reasseguramento em relação à saúde do concepto. Além disto, o ultra-som mediava o contato delas com o feto e estabelecia a ‘realidade’ dele para as mães, através de uma imagem que, turva, era reinterpretada como ‘o meu bebê’. Uma das mulheres sintetizou assim o sentimento: “ Você sente [o bebê] mais intensamente quando o vê.” (Georges, 1996: 164) (Grifos acrescentados).95 Diversos comentários das mulheres estudadas denotavam o quanto a percepção corporal era colocada em segundo plano, em relação à visualização da imagem do feto. Através da atribuição de uma modalidade tátil à percepção visual ocorriam, tanto uma antecipação, como uma reconfiguração – ambas mediadas pela tecnologia – da percepção corporal da mulher acerca de seu concepto. Estes aspectos subjetivos derivados da visualização do feto eram também fonte de grande prazer para as mulheres, conforme relatado por elas. Georges pontua que o aparente realismo da televisão tem um papel de grande importância nesta construção. O prazer era derivado, em primeiro lugar, pela tranqüilização a respeito do estado de saúde do concepto. A observação dos movimentos fetais em tempo real, como um show ‘ao vivo’, acentuava o sentimento de realidade dos fetos para as mães. Outro elemento prazeroso estava conectado à possibilidade de saber e conhecer ‘tudo’ sobre o feto. E, last but not least, o ultra-som reforçava o sentimento de propriedade das mulheres sobre seus fetos, do momento em que atribuíam a eles qualidades e características particulares (Georges, 1996: 163-5). Outro aspecto assinalado por Georges refere-se ao estabelecimento da idade fetal através do ultra-som, procedimento que com freqüência desautoriza as informações dadas pelas mulheres quanto à data da última menstruação – até o surgimento desta tecnologia, a forma tradicional de se estabelecer o tempo de gravidez. Em caso de dúvida, o exame funciona como o árbitro final (Georges, 1996: 168). O ponto fundamental desta pesquisa é o quanto – no contexto estudado pela autora – a aparelhagem tem um papel de fundamental importância na reconfiguração da forma pela qual as mulheres vivenciam suas gestações. O prazer visual experimentado na exibição da imagem do feto vem substituir o prazer das ‘antigas’ percepções internas, e produzem-se novas sensações pela fusão do visual com o tátil. O ritmo da gravidez é Pereira (1999) e também Petchesky (1987: 61-2). 95 Este comentário surgiu em um diálogo entre S. – de 25 anos – e sua mãe, durante a ultra-sonografia, quando S. disse, logo ao ver a imagem da tela, que ‘tinha mais noção de que havia uma pessoa dentro [dela]’, e sua mãe comentou que tinha sentido a mesma coisa ao perceber os primeiros movimentos fetais de 80 ‘acelerado’, na medida em que várias situações são adiantadas no tempo: desde a percepção ‘concreta’ da existência do feto, até a determinação do sexo. Ao mesmo tempo em que o discurso biomédico aumenta a ansiedade acerca de possíveis problemas durante a gestação, a tecnologia apresenta-se como a forma eficaz de aliviá-la. Mesmo concordando em parte com a crítica feminista acerca do quanto a visualização fetal perpetua o modelo da autoridade médica patriarcal, Georges sugere que a forte demanda e a recepção entusiástica das imagens fetais pelas mulheres podem também indicar o surgimento de uma nova consciência e a conseqüente transformação delas em novos sujeitos: grávidas e modernas. É inegável também que, na medida em que o ultra-som exerce e reforça a autoridade médica, ele consolida a crescente hegemonia médica sobre a experiência reprodutiva da mulher (Georges, 1996: 169-170). Cabe sublinhar o quanto esta pesquisa corrobora a afirmação de Foucault acerca da positividade do poder disciplinar que, através do escrutínio e também do prazer no conhecimento, constrói subjetividades que sustentam e reforçam o poder (Foucault, 1984: 131-133; 1999: 117-192). Do estudo de Georges emerge um duplo aspecto no que tange às relações de poder: reconfigura-se o poder da mulher sobre o feto, e emerge claramente o poder da tecnologia biomédica exercido sobre a mulher, quando esta passa a depender da aparelhagem e dos médicos para ter acesso ao concepto. Neste caso, há duas subjetividades sendo construídas: a da mãe e a do feto – ambas mediadas pela tecnologia. Observa-se também um rearranjo no que diz respeito ao poder e ao conhecimento da mulher sobre o concepto, posto que este conhecimento – no passado, estritamente subjetivo e privado da mulher – passa necessariamente a ser dividido com médicos e técnicos, na medida em que depende destes para a sua produção. Além deste aspecto, com o feto tornado ‘público’, amplia-se a rede de atores sociais envolvidos com a gestação (parceiros, familiares, amigos, e outros). A pesquisa de Fellous (1991) na França, por ter evidenciado uma gama bastante variada de reações – positivas e negativas – ao exame ultra-sonográfico leva esta autora a assumir uma postura de cautela e relativização em relação às conseqüências, para as mulheres e seus parceiros, da ecografia obstétrica: “ (...) pareceu-nos enganador falar univocamente do efeito da ecografia sobre a vivência da gravidez e daí tirar conclusões gerais. (...) Viu-se que a ecografia, por sua dimensão visual, pode enriquecer o processo de ‘tornarse mãe e pai’ ou, pelo contrário, perturbá-lo, quando vai às avessas ou pretende substituí-lo. A vivência da ecografia varia segundo o contexto social e relacional no qual se desenvolve a gravidez, segundo a elaboração S. dentro dela (Georges, 1996: 164). 81 da mãe de suas próprias referências internas e da maturação da relação com a criança que ela espera, e segundo sua própria história de fertilidade. Viu-se o quanto esta eficiência deve-se menos à ‘imagem’ em si do que à palavra médica que a acompanha e à relação na qual [esta palavra] está inserida.” (Fellous, 1991: 38).96 Lisa Mitchell e Eugenia Georges (1998) desenvolveram estudo comparando o impacto da ultra-sonografia na América do Norte e na Grécia. Através da análise das diferenças evidenciadas entre os dois contextos, revelam como a construção social do feto como Pessoa, mediada pela tecnologia do ultra-som, encontra-se profundamente impregnada pelos valores vigentes em cada contexto. As similaridades encontradas, conjugadas às diferenças, revelam que o feto-cyborg é, simultaneamente, constituído por compreensões locais e globais. O feto norte-americano aparece em filmes, anúncios e fotografias – as pessoas se acostumaram a ver o feto, e esta visualização desempenha um importante papel em sua construção e representação como um ator social. Na Grécia não há um ‘feto público’. Raramente aparece na mídia e, apenas às vezes, em hospitais – em cartazes de campanhas contra o fumo na gestação. Sujeitos fetais e gestantes são culturalmente construídos. O consumo de tecnologia de ultra-som tem sido uma forma de as gestantes se constituírem em sujeitos modernos na Grécia contemporânea. A tecnologia médica, nesse país, tornou-se sinônimo de modernidade, tanto para os pais quanto para os médicos. O consumo de tecnologia parece ser importante para os gregos se sentirem incluídos na Comunidade Européia.97 Em contraste, poucas canadenses referiam-se ao ultra-som como um exemplo de “ progresso médico” , ou como algo que “ nossas mães não tiveram” . O ultra-som era visto como meio de “ fazer o melhor para o bebê” ou de alívio com relação às preocupações sobre anormalidades fetais ou risco de aborto (Mitchell & Georges, 1998: 119). O ultra-som foi concebido e é encarado por médicos e gestantes como um meio de revelar o que é ‘natural’, ‘verdadeiro’ e ‘comum’ a todos os fetos e gestações. Desta forma, apresenta-se como uma tecnologia sem cultura, universalizante. As autoras sublinham que o feto-cyborg que emerge dessa tecnologia revela muito das condições históricas e culturais de sua produção. A cyborgificação ao mesmo tempo reproduz e reconfigura os 96 Cabe assinalar que Michèle Fellous apresenta, na comparação com os outros autores aqui estudados, uma visão significativamente mais psicologizada acerca do impacto causado pelo ultra-som sobre os atores envolvidos em sua produção. Os outros autores trazem, a meu ver, um ponto de vista de caráter mais político e antropológico. A comparação entre os dois tipos de abordagem revela-se interessante na medida em que uma visão pode servir como contraponto à outra. 97 A Grécia foi um dos últimos países da Europa a serem integrados à Comunidade Européia. 82 entendimentos sobre – e o relacionamento com – o feto. Apesar de o ultra-som expandir dramaticamente a apreensão cognitiva e sensorial do feto, este processo se dá sempre dentro dos limites das formações discursivas dominantes. A perspectiva transcultural traz a possibilidade de explorar a forma complexa pela qual estes discursos poderosos operam na sociedade (Mitchell & Georges, 1998: 120). “ No Canadá, o ultra-som está referido à separação e reconexão de indivíduos. As gestantes esperam ser ‘apresentadas ao seu bebê’ [meet the baby] na tela do ultra-som e são encorajadas por experts a verem na tela digitalizada evidências de um ator com gênero, consciente e sensível, comunicando suas demandas e necessidades. Capturadas pela ideologia complexa e pública do risco, através do ultra-som provam que são ‘boas mães’ (...) Na Grécia, a produção de sujeitos gestantes e fetos é marcadamente diferente. A evidência de normalidade física é lida como evidência da ‘condição de Pessoa’ fetal. Entretanto, os fetos permanecem como seres relacionais, cuja construção como Pessoa é constituída primariamente através de redes de parentesco. Para as mulheres gregas, buscar o ultra-som torna-as grávidas e modernas, simbolicamente afiliadas à Europa e ao Ocidente.” (Mitchell & Georges, 1998: 120-121). As diferenças na construção das pessoas do feto e da mãe são destacadas na comparação das traduções culturais populares do conhecimento expert sobre a gestação: 100% das canadenses lêem guias sobre a gravidez, muitos dos quais apresentam as fotos do feto vivo, mais recentes, de Lennard Nillson, enquanto apenas 50% das gregas lêem guias. A maioria destas lê Birth is Love, o único guia escrito por um grego. Além da famosas fotos dos fetos autopsiados de Lennard Nillson, de 1965 – solitários, rosados, vulneráveis, chupando o dedo – há, neste guia, imagens em preto e branco nada enternecedoras. Na Grécia o texto é focado exclusivamente nas características físicas e no desenvolvimento do feto, e o conceito de vínculo (bonding) está ausente. Há muitos conselhos para que as mulheres sejam “ boas pacientes” para os médicos, pontuais às consultas, além de precisas e concretas em seus relatos – as gestantes gregas devem ser sujeitos modernos e disciplinados. No Canadá o feto é percebido pelos ecografistas e mulheres como sensível, ativo, um indivíduo socializado, engajado em atividades intencionais e o vínculo maternofetal é enfatizado como a experiência central e essencial da gravidez.98 As canadenses, já medicalizadas e disciplinadas são “ compensadas” com a comunicação materno-fetal (Mitchell & Georges, 1998: 119-20), mediada e potencializada pela tecnologia de imagem. As duas situações parecem ser faces diferentes de um dispositivo do bio-poder. 98 Para Petchesky (1987) a noção de um investimento afetivo (ou bonding) baseado em uma imagem fotográfica tem um sentido fetichista, na medida em que se trata do: “ (...) investimento de sentimentos eróticos em uma fantasia.” (Petchesky, 1987: 70). 83 Torna-se evidente que o feto, neste contexto, funciona como ponto em torno do qual articulam-se, constróem-se e são ao mesmo tempo reforçados a subjetividade da mulher, o poder médico e a ampliação, disciplinarização e normatização dos corpos – dos fetos e das mães. 4.2.2) O feto civil, político e comercial As imagens fetais vêm sendo amplamente utilizadas na luta política contra o direito de aborto, por exemplo (Rapp, 1997: 47). Petchesky (1987) discute de que forma estas imagens são apropriadas e transformadas em um discurso moral, ao analisar o vídeo The Silent Scream – produzido pelo Dr. Bernard Nathanson –,99 que foi largamente exibido pela mídia eletrônica em 1984, nos EUA. Segundo Petchesky, “ The Silent Scream marcou uma mudança dramática na concorrência por imagens sobre aborto. Com uma esplêndida perspicácia, traduziu as imagens imóveis e agora rotineiras do feto como ‘um bebê’, em um vídeo em tempo real, desta forma (1) dando a essas imagens uma interface imediata com a mídia eletrônica; (2) transformando a retórica anti-aborto de predominantemente místico-religiosa em um estilo médico-tecnológico; e (3) ‘dando vida’ à imagem fetal. (...)” (Petchesky, 1987: 58). Prosseguindo em sua análise do vídeo, Petchesky aponta que este levanta questões importantes acerca do que significa ‘evidência’ ou ‘informação médica’, uma vez que a imagem ultra-sonográfica é apresentada como a ‘prova’ de que o feto está vivo, “ é humano como nós” e “ sente dor” . Estas duas últimas afirmações foram contestadas por médicos que, em debates no New York Times, argumentaram que com 12 semanas de vida o feto não tem ainda um córtex cerebral, não podendo, portanto, sentir dor e, menos ainda, ‘gritar’, pois não existe ar em seus pulmões; neste ponto de seu desenvolvimento, o feto apresentaria apenas movimentos reflexos. Os movimentos rápidos foram denunciados como truques na edição do vídeo. Contudo, o poder ideológico do filme, a despeito de suas incoerências e fraudes, reside no fato de que ele pertence muito mais ao terreno das representações culturais do que ao das evidências médicas (Petchesky, 1987: 60-1). Ainda de acordo com essa autora, 99 O vídeo registra, através de ultra-som, o aborto de um feto de 12 semanas, e intercala essas imagens com a mesa cirúrgica de aborto e com Dr. Nathanson ‘explicando’ o que se está vendo, tudo isso acompanhado por uma melodia de órgão como fundo musical. O ultra-som mostra a cânula de aspiração sendo introduzida no útero da mulher, e o feto ‘tentando escapar’ – movimentos rápidos – e finalmente ‘lançando a cabeça para trás’, em um ‘grito silencioso’. Petchesky assinala que, juntamente com a exibição de um aparato altamente tecnológico, o que se ouve no vídeo é semelhante à moralidade medieval, em uma retórica anti-aborto padronizada. Observa que a retórica não é a da ciência, assemelhando-se mais à do seriado norte-americano ‘Miami Vice’ (Petchesky, 1987: 60). Dr. Nathanson era um ginecologista-obstetra, ex-aborcionista que converteu-se em anti-aborcionista militante. 84 “ A aparência [do vídeo] de documento médico obscurece e reforça um conjunto codificado de mensagens, que operam como símbolos políticos e injunções morais. (...)” (Petchesky, 1987: 61). O vídeo adquiriu credibilidade pelo fato de estar envolto em uma aura de autoridade médica, associada à sedução da tecnologia e ao impacto cumulativo de imagens fetais da década que o antecedeu. Petchesky assinala que desde o surgimento de imagens – fotográficas – do feto, pela primeira vez na mídia, em 1962 na revista LIFE,100 este sempre foi apresentado como isolado ou autônomo, a mulher como periférica – quando não ausente (Petchesky, 1987: 62). Para essa autora, a imagem isolada e flutuante do feto “ (...) não faz mais que estender para a gestação a visão hobbesiana acerca dos seres humanos, como indivíduos desconectados e solitários. É esse individualismo abstrato – que anula tanto a mulher grávida quanto a dependência do feto a ela – que proporciona à imagem fetal sua transparência simbólica, de maneira a possibilitar que vejamos nele nosso próprio self, nossos bebês perdidos, nosso mítico passado seguro.” (Petchesky, 1987: 63). Passa, dessa forma, a haver a instrumentalização tecnológica de representações – com imagens – cada vez mais precoces da gravidez, contribuindo para o surgimento de noções de ‘pessoalidade’ e independência dos fetos em relação às suas mães (Rapp, 1997: 47). Do ponto de vista do ativismo anti-aborto (ou pró-vida, como este se auto-intitula), a ‘condição de Pessoa’ do feto é um dos carros-chefes, e esta noção carreia implicitamente a idéia de que a mulher ficaria subordinada ao concepto, durante a gravidez (Martin, 1992: 100-101). Como uma contraface do mesmo processo, verifica-se também uma crescente psicologização da gravidez e do próprio feto (Lo Bianco, 1985). A ‘autonomização’ do feto sublinha sua ‘independência’ em relação à mãe, enquanto a sua psicologização enfatiza – além da individualização e subjetivação – o aspecto relacional e a dependência.101 100 Mitchell e Georges (1998: 119) referem-se a estas fotos como tendo surgido em 1965 na mídia. Rapp (1997: 44) também data estas fotos da LIFE como sendo do ano de 1965. 101 A medicalização do parto também desempenha um papel significativo na construção de ‘pessoalidade’ e independência do bebê, quando não de franca oposição entre este e a mãe. Martin assinala que, no que tange à intervenção médica no nascimento, relacionada à idéia do parto como intrinsecamente traumático para o bebê, “ (...) é construído um papel para o médico como aliado do bebê contra a potencial destruição executada [vingativamente] pelo corpo da mãe sobre este. Nos termos de Rothman [Barbara Katz Rothman], ‘mãe/bebê são vistos no modelo médico mais como uma díade conflitiva do que como uma unidade integrada’.” (Martin, 1992: 64). Para Martin, a metáfora da produção quando aplicada ao nascimento – a mãe como ‘trabalhadora’, o bebê como ‘produto’ – norteia uma série de questões relativas ao controle e às decisões sobre o tipo de parto e a própria condução da gravidez. O papel da mulher no parto, em manuais de obstetrícia, é visto como praticamente acessório, sendo o controle da situação atribuído ao médico, encarregado de lidar com a tecnologia de monitoração do estado do feto. O obstetra torna-se o ‘aliado’ da vida do bebê ‘inocente’; Martin pergunta-se até que ponto esta articulação visa realmente o bem-estar e a saúde do bebê, ou se de fato esta atitude não consiste basicamente em um controle sobre a mulher e seu parto (Martin, 1992: 148). Shorter (1997: 139-176) compartilha parcialmente deste ponto de vista, discutindo a falta de controle da mulher sobre seu parto, mas por um ângulo diverso. 85 Em alguns estados dos EUA os ‘direitos fetais’ são objeto de legislação específica, e o feto é referido como “ criança-não-nascida” , sendo seus direitos considerados separadamente dos da mãe (Heriot, 1996). Há que ressaltar, ainda, o paradoxo apontado por Rayna Rapp: ao mesmo tempo que as imagens fetais são produzidas em ‘tempo real’ dentro dos corpos femininos, elas sofrem um tratamento visual e se apresentam incorpóreas, flutuantes (Rapp, 1997: 47). O ‘feto-em-tempo-real’ visualizado através do ultra-som é, simultaneamente, pessoal, doméstico e íntimo e provoca uma reflexão ampla, pública e política a respeito do papel da mãe, entre outras questões.102 Trata-se aqui de um exemplo da postulação de Foucault com relação ao poder disciplinar que, ao ampliar o controle dos corpos e disciplinarizá-los, também constrói subjetividades e singularidades que por sua vez o sustentam (Foucault, 1999: 125). Amplia-se a vigilância e constitui-se “ (...) [exercício da disciplina e jogo do olhar] um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam (...)” (Foucault, 1999: 143). O surgimento de uma nova especialidade – a medicina fetal – parece corroborar essa visão. O feto ‘visível’ torna-se passível também de uma vasta gama de intervenções, diretas e indiretas, que vão desde modificações alimentares impostas à mãe até intervenções cirúrgicas – realizadas dentro e fora do útero – antes do seu nascimento.103 Abre-se também um novo mercado de produtos dirigidos à gestante. Como exemplo, o ‘seu-bebê-a-cada-dia’: uma agenda que informa à grávida o que está ocorrendo com seu feto em cada dia da gestação. Como se fosse uma troca: já que a subjetividade e sensorialidade maternas como fontes de conhecimento confiável foram relativamente lateralizadas em favor do aparato tecnológico, é-lhe oferecida a possibilidade, mediada pela ‘agenda’, de ‘acompanhar, dia-a-dia’ o que se passa em seu interior. Este deslocamento ou mediação pode também ser relacionado à fragmentação do corpo feminino apontada e detalhada por Martin (1992: 71-91). A mulher precisa ‘receber notícias’ do que se passa dentro dela. Um outro exemplo de pressão mercadológica pode ser visto no desenvolvimento recente de aparelhos de ultra-sonografia que produzem imagens em 3D, o que gera uma nova demanda na produção de imagens fetais. Do ponto de vista diagnóstico, este novo 102 Refiro-me aqui a discussões acerca de direito de aborto, política de assistência materno-infantil, anomalias genéticas e aborto ‘eugênico’. 103 Rothman observa que a mesma tecnologia que produz o feto ‘visível’ torna também a mãe ‘invisível’ (Rothman, 1986 apud Petchesky, 1987: 70). 86 dispositivo tecnológico acrescenta pouco ou quase nada ao acompanhamento da gestação. Entretanto, a possibilidade de ‘ter uma foto do rosto de seu bebê’, antes do nascimento, é acenada para as futuras mães que passam, então, a escolher os centros de imagem que disponham de aparelhagem 3D. 4.2.3) Transformação: da imagem ao ‘bebê’ A avaliação e padronização do desenvolvimento ‘normal’ da gravidez e do feto, em nossos dias, vem passando cada vez mais a ser necessariamente mediada pelo uso da tecnologia. Na expressão de Petchesky, do ponto de vista do médico o ultra-som consistiria em uma espécie de “ panóptico do útero” , ampliando a vigilância sobre o feto e o controle médico sobre a gravidez (Petchesky, 1987: 69). Por um lado, observa-se que a percepção da mulher acerca da evolução de sua gestação é lateralizada, por ‘não confiável’, substituída pelo aparato tecnológico. Por outro, este mesmo aparato media, modifica e fornece subsídios para a construção de novas sensações e sentimentos em relação ao seu feto, em parte por antecipar a percepção da gravidez e em parte por promover uma reconfiguração da sensorialidade materna através da fusão da visualidade com sensações táteis. A partir de cinco semanas de gestação o feto torna-se visualizável pelo ultra-som.104 A noção e a vivência subjetivas de ‘maternidade’ são, assim, antecipadas comparativamente ao que ocorria algumas décadas antes, em um processo chamado por Rayna Rapp de fast-forwarding (Rapp, 1997: 38). Segundo Rapp, o aspecto mais significativo do processo de personificação do feto é a determinação do sexo, que pode ser realizada (com maior grau de precisão) a partir da vigésima semana de gravidez.105 O conhecimento do sexo do feto “ (...) aumenta a velocidade da gravidez (...)” , deixando de ser um ‘ser imaginário’ para tornar-se um ‘menininho ou menininha’ (Rothman, 1986 apud Rapp, 1997: 40).106 Para pais de primeira vez esta ansiedade parece ser maior. Em entrevistas com mulheres grávidas, Rapp observou que menos de um quarto das mulheres 104 Com uma semana de atraso menstrual já se pode visualizar o saco gestacional através do ultra-som, embora o primeiro exame de ultra-som seja, em geral, realizado em torno da 6a semana. 105 Desde a décima-terceira semana de gestação já é possível visualizar-se o sexo do feto, embora via de regra esta determinação seja feita na vigésima semana. 106 Michel Soulé, psicanalista francês, alcunhou a ecografia obstétrica de “ interruption volontaire du fantasme” em alusão à “ interruption volontaire de grossesse” (Fellous, 1991: 10). Recentemente uma mulher anglófona, grávida do primeiro filho, em conversa informal comigo, justificou assim o querer saber o sexo do bebê logo que possível: “ Quero saber logo de uma vez, porque não agüento mais me referir ao bebê como it!” . Rapp pontua que o lento processo de tornar o bebê, já nascido, sexuado, é atropelado pela pressa de se saber o sexo do feto (Rapp, 1997: 40). Sobre o sexo e gênero como construções sociais, ver também Laqueur (1990) e Findlay (1995). 87 não queria saber o sexo da criança, sendo que a maioria delas era multípara (Rapp, 1997: 40). Todos estes aspectos da vivência reconfigurada de maternidade contribuem de maneira determinante para a construção de uma nova subjetividade para a mulher, além da atribuição de subjetividade ao próprio feto. Fellous (1991: 26-35) chama a atenção para o fato de que nem sempre esta aceleração – ou antecipação – proporcionada pela ultra-sonografia é vivenciada de forma positiva pelas mulheres. Para algumas delas pode haver o sentimento de terem seu “ segredo roubado” pela revelação do sexo do feto, a ecografia como uma interferência “ quase insuportável” , uma “ violência” , um impedimento de vivenciarem de forma gradual as mudanças que ocorrem no interior de seus corpos, por “ (...) uma discordância entre as sensações e imagens internas elaboradas pela mulher, sua maturação que segue um ritmo próprio, e as imagens externas que lhe são apresentadas.” (Fellous, 1991: 31). A possibilidade de visualização do feto é um elemento potente para a constituição de um deslizamento de ‘feto’ para ‘bebê’, deste para ‘Pessoa’ e – com a intervenção da medicina fetal – ‘paciente’. Um exemplo bastante significativo e um tanto bizarro desse deslizamento pode ser observado em um texto que circula por correio eletrônico na Internet, contendo em anexo uma foto – intitulada “ Mão Amiga” – realizada durante uma cirurgia em um feto de 21 semanas. Na imagem vê-se nitidamente o abdômen cortado da mãe e o útero exposto, com um corte de onde emerge a mão minúscula do feto segurando o dedo enluvado do cirurgião. Segue-se o texto: “ Assunto: Mão amiga Data: Segunda-feira, 20 de Março de 2000 15:43 (...) Um fotógrafo que fez a cobertura de uma intervenção cirúrgica para corrigir um problema de espinha bífida107 realizada no interior do útero materno num feto de apenas 21 semanas de gestação, numa autêntica proeza médica, nunca imaginou que a sua máquina fotográfica registraria talvez o mais eloqüente grito a favor da vida conhecido até hoje (...) Paul Harris (...) captou o momento em que o bebê tirou a sua mão pequenina do interior do útero da mãe, tentando segurar um dos dedos do médico que o estava a operar (...) A pequena mão que comoveu o mundo pertence a Samuel Alexander, cujo nascimento deverá ter ocorrido no passado dia 28 de Dezembro (no dia da foto ele tinha apenas 5 meses de gestação) (...) A vida do bebê está literalmente presa por um fio. Os especialistas sabiam que não conseguiriam mantê-lo vivo fora do útero materno e que deveriam tratá-lo lá dentro, corrigindo a anomalia fatal e voltando a fechar o útero para que o bebê continuasse o seu crescimento normalmente. (...) Agora, o Samuel tornou-se no[sic] paciente mais jovem que já foi submetido a este tipo de intervenção e, é bem possível que, já fora do útero da mãe, Samuel 107 Malformação congênita da coluna vertebral, causadora de graves seqüelas neurológicas. 88 Alexander Arms aperte novamente a mão do Dr. Bruner (...).” (Grifos acrescentados). O “ feto de apenas 21 semanas de gestação” transforma-se em “ bebê” , a quem é atribuída uma intencionalidade no momento em que “ tirou sua mão pequenina (...) tentando segurar um dos dedos do médico” . No momento seguinte, o feto que se transformou em bebê com uma intencionalidade, adquire um nome – “ Samuel Alexander” – mesmo ainda dentro do útero da mãe. Em seguida, o bebê com nome, mas ainda dentro do útero, torna-se um “ paciente” e, finalmente – em uma projeção do futuro, pode-se visualizá-lo adulto, com nome e sobrenome, agradecendo ao médico. Há uma aceleração no tempo, que é reforçada pela imagem que vem em anexo ao texto, posto que a mão do feto é, de fato, uma minúscula e perfeita mão – humana.108 4.2.4) A inclusão do feto na categoria Pessoa: significados e desdobramentos. A discussão em torno de incluir ou não do feto na categoria Pessoa passa-se em um terreno minado. De um lado, encontra-se a vertente pró-escolha, liderada pelas feministas. De outro, os ativistas anti-aborto. Segundo Macklin, “ (...) os valores que informam as várias definições de Pessoa tornam impossível, no contexto do debate sobre aborto, chegar-se a alguma conclusão acerca do status do feto como Pessoa.” (Macklin, 1984 apud Heriot, 1996: 183). O debate bioético acerca do início da vida humana é infindável e foge ao escopo deste trabalho. De toda forma, cabe sempre lembrar que esta discussão, como qualquer outra, é informada pelos valores vigentes da sociedade onde se desenrola. A atenção dada especificamente ao feto – que gradualmente passa a ser visto como um ser destacado da mãe que o traz no útero – tem conseqüências de várias ordens, dentre os quais, como já mencionado, o surgimento da ‘medicina fetal’ como uma nova especialidade médica e os ‘direitos fetais’, que em alguns estados dos EUA já são objeto de legislação própria e de projetos de lei. A aliança entre a medicina e a lei inverte a hierarquia mãe-feto em alguns casos, ao atribuir autonomia e posicionar o feto como hierarquicamente superior à mãe, em termos de direitos civis (Heriot, 1996: 182). Esta inversão vem sendo observada e problematizada por diversas autoras feministas.109 Segundo diversas autoras que se dedicam a monitorar o sistema legal nos EUA, a oposição 108 Há inúmeras outras leituras possíveis para este texto, a começar pela elação em torno dos feitos médicos, passando pela ciência-espetáculo, entre outras. Contudo, uma análise mais extensa foge ao escopo deste trabalho. 109 (Heriot, 1996; Duden, 1993; Martin, 1992; Rapp, 1997, 1998, 1999). 89 construída entre ‘direitos do feto’ versus ‘direitos da mãe’ funciona como uma das racionais para a ampliação do controle sobre o corpo da mulher (Heriot, 1996: 181). Por um outro ângulo, pode-se pensar também que a supervalorização do feto, ao reafirmar a potência do saber ‘científico’ que possibilita acesso e interferência cada vez maiores, tanto sobre o feto quanto sobre o corpo da mulher e – porque não –, todos os corpos humanos, seria indicativa de uma estratégia mais ampla de controle, como um dispositivo do biopoder. ✼✼✼ Embora fugindo um pouco ao ponto abordado, não se pode ignorar que há outro aspecto que concorre de maneira relevante para novas configurações na sociedade contemporânea, tomado aqui como pano de fundo para a questão em foco. Trata-se do desenvolvimento das novas tecnologias reprodutivas. Constrói-se a idéia de que a ‘infertilidade’ é um problema médico que pode ser ‘resolvido’, recorrendo-se à reprodução assistida. O discurso implícito é de que, em nossa sociedade, ‘só não tem filhos quem não quer’. Se querer filhos é apresentado como um ‘desejo natural’, “ (...) o desejo de produzir filhos está profundamente enraizado no instinto biológico (...) e [é] uma expressão natural do amor” (Barker, 1986 apud Franklin, 1990: 207),110 a geração de filhos adquire o sentido de uma obrigação. Cabe também notar que o discurso biomédico, apresentado como uma forma ‘neutra’, ‘científica’ e ‘objetiva’ de informar ao público, inevitavelmente veicula noções e valores morais. Aparentemente está-se diante de um novo movimento natalista, no qual, consequentemente, o feto torna-se um elemento articulador central. Se considerarmos que a produção de filhos – metáfora extensamente discutida por Martin (1992) – tem este caráter estratégico fundamental, torna-se compreensível a atenção que vem sendo dada ao feto, erigido ao status de Pessoa, além do que também ele passa a estar submetido aos mesmos controles, disciplinarizações e intervenções que o restante da população. Esta nova extensão dos limites da Pessoa, correspondendo a uma ampliação do controle dos corpos pelo bio-poder, permite que se entenda a grande força que este movimento de inclusão vem adquirindo nas últimas décadas do século XX. 110 Dr. Graham Barker publicou The New Fertility, um guia popular para tratamento da infertilidade, bestseller na Inglaterra. 90 Capítulo 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS: ‘NOVO’ FETO, ‘SUPER-RAÇA’? “ – Condicionamento ao calor – disse o Sr. Foster. Túneis quentes alternavam com túneis resfriados. O resfriamento estava ligado ao desconforto sob a forma de raios X duros. Quando chegavam ao ponto de serem decantados, os embriões tinham horror ao frio. Ficavam predestinados a emigrarem para os trópicos (...) Mais tarde, seu espírito seria formado de maneira a confirmar as predisposições do corpo. – Nós os condicionamos de tal modo que eles se dão bem com o calor – disse o Sr. Foster em conclusão. – Nossos colegas lá em cima os ensinarão a amá-lo. – E esse – interveio sentenciosamente o Diretor – é o segredo da felicidade e da virtude: amar o que se é obrigado a fazer. Tal é a finalidade de todo condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino social a que não podem escapar.” (Aldous Huxley, 1981: 27) (Grifo original). ✼ “ (...) É curioso – prosseguiu, depois de uma pequena pausa – ler o que se escrevia na época de Nosso Ford sobre o progresso científico. Segundo parece, imaginavam que se podia permitir que ele continuasse indefinidamente, sem consideração a qualquer outra coisa. O saber era o mais alto bem; a verdade, o valor supremo; tudo o mais era secundário e subordinado. É certo que as coisas já então estavam começando a mudar. (...)” (Aldous Huxley, 1981: 199). Os diversos e multifacetados aspectos que surgiram ao longo deste estudo – articulados em torno da construção do feto como Pessoa através da tecnologia de imagem – foram agrupados em três conjuntos de questões, com o objetivo de apontar hipóteses para futura investigação em trabalho de campo, etnográfico, com observação participante, no Rio de Janeiro. 91 O primeiro conjunto diz respeito à ampliação do Individualismo na sociedade contemporânea, à sua difusão diferenciada pelas distintas classes sociais e à construção da Pessoa moderna, e de que maneira este movimento se reflete na – e configura a – produção da Pessoa fetal. O segundo conjunto reúne a inclusão do feto na categoria Pessoa e a reconfiguração desta categoria. Esse movimento de inclusão, mediado de maneira marcante pela tecnologia de imagem, articula-se com a produção de uma nova corporalidade, ‘híbrida’ ou cyborg, como a resultante de uma mescla de corpo e máquina. A terceira série de questões diz respeito ao surgimento das novas tecnologias reprodutivas e algumas de suas diversas conseqüências, particularmente no que tange ao status do feto e ao surgimento de uma nova ‘eugenia’ – agora possibilitada pela manipulações genéticas e também pelo acesso ampliado ao feto, através de exames laboratoriais e da tecnologia do ultra-som. -INo final do século XVIII, na sociedade ocidental, juntamente com a transformação na arte de governar – do governo ‘do território’ para o governo ‘das coisas’ –, houve uma mudança qualitativa na estrutura familiar, com a emergência e consolidação da família nuclear, concomitante ao aumento da importância estratégica da família para o novo modelo de governo. Nessa nova articulação foi atribuído à mulher um papel crucial como elemento de, ao mesmo tempo, disciplinarização e sobrevivência da prole. A nova estratégia do poder, ao constituir a mulher como cidadã e mãe valorizada, em um novo lugar na rede de relações de poder, construía assim uma nova subjetividade, tanto para a mulher quanto para a própria criança. Este processo abriu caminho para, mais adiante, ocorrer o mesmo em relação ao bebê e ao feto, respectivamente nos séculos XIX e XX. A construção da maternidade como um valor moral e social surge do mesmo contexto de onde emerge o Indivíduo como um valor: o Iluminismo. As duas condições – Indivíduo e maternidade – como valor tiveram como arautos, na França, exatamente os mesmos pensadores: Montesquieu, Rousseau, Voltaire e os enciclopedistas. Na Inglaterra, Locke desempenhou o mesmo papel. A maternidade como um valor foi, a meu ver, um dos mais importantes elementos para a construção da subjetividade feminina e consequentemente para a constituição da mulher como um tipo específico de Indivíduo na sociedade ocidental moderna. A imagem de ‘mãe’ que vigora atualmente em nossa sociedade é o produto de um longo processo histórico, que tem no século XVIII um 92 momento crítico. A compreensão da forma como essa subjetividade e esse papel foram construídos pode fornecer subsídios para a análise das diversas reconfigurações nos laços de parentesco que vêm sendo produzidas na sociedade ocidental contemporânea, tanto por conta de modificações na estrutura familiar quanto pela introdução das novas tecnologias reprodutivas. A construção e também o sucesso da maternidade como um valor, a partir do século XVIII, devem-se ao fato de que nela se articulavam – de forma elegante e eficaz – uma série de elementos constitutivos da rede de relações do poder. Essa articulação é indissolúvel, sendo impossível pensar em um dos elementos da rede sem os outros. A enumeração dos componentes não passa de um artifício analítico. O sentimento da infância, que começara a surgir em torno do século XVI, assim como a noção das idades como elemento identificador das pessoas e a subseqüente conceituação de uma especificidade infantil (Ariès, 1978) corresponderam, de perto, à consolidação do poder disciplinar que, ao separar, classificar, esquadrinhar e definir os seres, constituiu individualidades e, ao mesmo tempo, ampliou o controle dos corpos e reforçou a rede de relações constitutiva do próprio poder (Foucault, 1984, 1998a, 1999). Cada elemento da rede assim constituída é fundamental: a criança torna-se um ser com status potencial de Indivíduo e passa, portanto, a ser considerada insubstituível. O mesmo pode ser dito em relação à mulher – mãe em potencial, geradora portanto de potenciais Indivíduos – a quem foi oferecido o lugar eminente de cuidadora e articuladora essencial dos outros elementos da rede, com a família ocupando um lugar privilegiado em relação ao restante da população. Ao longo de todo o século XIX é possível observar-se historicamente a consolidação do bebê como um objeto de sensibilização e atenção médica e social, construído e valorizado socialmente como indivíduo singular.111 No decorrer do século XX, principalmente a partir do fim da I Guerra Mundial – e talvez mesmo em parte como decorrência dela – verifica-se a valorização e atenção crescentes relativas ao feto, questão central, focalizada e discutida neste trabalho. A construção da maternidade como um valor e a do feto como Pessoa fazem parte de um processo histórico e cultural mais amplo que envolve a construção da Pessoa moderna. Segundo Marcel Mauss, a “ pessoa” , ou o “ eu” , é uma categoria construída culturalmente com diferentes atributos: racionalidade, ação, participação, gênero – que 111 Cabe assinalar que, evidentemente, para os enormes contingentes populacionais vítimas da exclusão social em nossos dias esta lógica não se aplica. A discussão dessa questão, contudo, escapa ao âmbito deste 93 dependem do local e da época em que se inserem. Ainda para este autor e também para seus seguidores, a Pessoa é uma categoria ‘embutida’ em um corpo físico, mas independente da fisicalidade, na medida em que é configurada histórica e culturalmente (Dumit, 1997: 83). Mauss chama a atenção para o fato de que o “ eu” – como uma categoria do espírito humano – é, na realidade, resultado das vicissitudes de um processo ao longo de muitos séculos “ a ponto de, ainda hoje, ser flutuante, delicada, preciosa e estar por ser elaborada.” (Mauss, 1974: 209) (Grifo acrescentado). Para Mauss, nos últimos dois séculos, “ (...) [A categoria do ‘eu’] Longe de ser a idéia primordial, inata, claramente inscrita no mais profundo do nosso ser desde Adão, eis que ela continua ainda em nossos dias, lentamente, a edificar-se, a esclarecer-se, a especificar-se, a identificar-se com o conhecimento de si, com a consciência psicológica.” (Mauss, 1974: 237) (Grifos acrescentados). Ao retraçar as origens e vicissitudes da categoria, Mauss estabelece, portanto, a noção da Pessoa como um constructo histórico e cultural. Para Luiz Fernando Dias Duarte (1986), Mauss funda uma via de relativização profunda da noção de Pessoa (Duarte, 1986: 36). Na sociedade ocidental contemporânea, marcada pelo Individualismo, há uma coincidência entre o sujeito empírico, o Indivíduo-valor e a Pessoa. A noção de Pessoa é limitada pelas fronteiras do próprio corpo, em comparação com as culturas nas quais a linhagem, o totem e o grupo, por exemplo, configuram de maneira diversa a idéia de Pessoa. A concepção moderna de Pessoa é caracterizada por sua indivisibilidade e autonomia, em contraste com outras concepções, nas quais o grupo é o portador da identidade do sujeito (Duarte, 1986: 37). De acordo com Duarte (1986), Louis Dumont relativiza radicalmente a noção moderna de Pessoa, ao especificar a ideologia moderna do Individualismo na construção desta categoria (Duarte, 1986: 40).112 Como exemplo, a noção de Indivíduo como valor, presente nas sociedades de cunho individualista, igualitário, e ausente nas sociedades holistas, hierárquicas: nestas, o valor está no conjunto social e na organização da sociedade visando fins coletivos. Nas sociedades hierárquicas, cada sujeito contribui para uma ordem global, enquanto nas sociedades de cunho individualista a organização da sociedade tem trabalho. 112 Através do estudo sobre a hierarquia na sociedade indiana, Dumont visa apreender intelectualmente outros valores e, assim, obter uma visão antropológica dos valores em vigor em nossa própria sociedade. O entendimento do sistema de castas – o oposto da moderna ideologia igualitária – permite uma visão relativizada da sociedade ocidental contemporânea, impedindo que se tome esta como ‘verdade universal’ ou a expressão ‘adequada’ da vida social. Segundo esse autor, a comparação evidencia que a ideologia presente 94 como meta a felicidade individual (Dumont, 1992: 57). Ao longo desta pesquisa emergiu um outro aspecto a ser considerado, concernente à difusão diferenciada do Individualismo nos diferentes países e pelas distintas classes sociais. Diversas questões, discutidas ao longo deste trabalho a partir de diferentes autores, reforçam esta hipótese. A noção de infância difundiu-se de forma não homogênea nas diversas classes sociais ao longo do tempo, assim como ocorreu com a modificação no sentimento materno, conforme assinalado por Ariès (1978) e explicitado por Shorter (1977). As publicações acerca de cuidados com bebês e crianças, na segunda metade do século XVIII, foram inicialmente dirigidas às classes mais abastadas e só se difundiram nas classes populares ao longo do século XIX. O papel social da mãe, da mesma forma, configurou-se diferentemente de acordo com a classe na qual a mulher estava inserida, conforme discute Donzelot (1986). No que tange à ideologia predominante em determinada sociedade – se individualista ou hierárquica – a noção de Pessoa, ao mesmo tempo que encontra-se profundamente impregnada pelos valores em circulação, também circunscreve, limita e modela as possibilidades de reconfiguração do próprio conceito nessa mesma sociedade. Esta questão fica claramente evidenciada no trabalho comparativo de Mitchell e Georges (1998) sobre a construção da Pessoa fetal na América do Norte – predominantemente individualista – e na Grécia – que na comparação pode ser considerada como mista, com acentuados traços hierárquicos. A difusão diferenciada do Individualismo e do ‘consumo’ de medicina pelas diversas classes sociais foi assinalada e discutida por Ropa e Duarte (1985). Segundo estes autores, as características que aproximam os indivíduos do sistema médico-científico de explicação procedem de três fatores que intervêm no processo de socialização dos sujeitos: a “ reflexividade” , a “ verbalização” e a “ problematização” , que estariam presentes de formas heterogêneas nas várias classes sociais, configuradas a partir de diferentes habitus de classe113 (Ropa & Duarte, 1985: 186). Sublinham que a “ (...) intimização, interiorização psicológica, auto-exame, privatização dos sentimentos, seriam vertentes de um mesmo processo de difusão do individualismo ou de uma estratégia disciplinar (...)” (Ropa & Duarte, 1985: 191), e esse processo inicia-se pelas camadas médias e altas da sociedade moderna (Ropa & Duarte, 1985: 191). Há uma associação bastante estreita entre Individualismo e nas sociedades determina e configura os valores nelas vigentes (Dumont, 1992: 50). 113 De acordo com a definição de Bourdieu, “ sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias de um grupo de agentes.” (Bourdieu, 1998: 191). 95 psicologização – as ‘ciências psicológicas’ constituindo-se como “ o apogeu da progressiva segmentação individualizante: um saber ‘autônomo’ sobre sujeitos ‘autônomos’.” (Ropa & Duarte, 1985: 193). A análise comparativa desenvolvida por Dumont em torno do par holismo/individualismo indica a coexistência de princípios hierárquicos e individualistas nas sociedades complexas modernas e possibilita, segundo Ropa e Duarte, desvendar situações “ (...) onde se confrontam, no seio de nossas sociedades, grupos portadores de visões de mundo mais ‘individualizantes’ (...), associados às camadas sociais urbanas herdeiras da ‘grande tradição’ erudita do pensamento ocidental, e grupos portadores de visões de mundo mais ‘holistas’(...), associados a camadas sociais ‘periféricas’ e em boa parte alheias à reprodução da ‘grande tradição’ ocidental.” (Ropa & Duarte, 1985: 193). A teorização desenvolvida por Foucault acerca do poder disciplinar/dispositivo de sexualidade como constitutivos de indivíduos subjetivados, articulada com a teoria do holismo/individualismo dumontiana sugere, ainda segundo os mesmos autores, que “ (...) essas configurações culturais características da modernidade (...) [possam] não se difundir uniformemente em todos os espaços sociais, lutando ou convivendo em diversos sentidos com os princípios ‘tradicionais’ da hierarquia ou do poder soberano/dispositivo de aliança. As classes trabalhadoras em geral (...) pareceriam ser uma dessas áreas de resistência à ideologia individualista dominante (...)” . (Ropa & Duarte, 1985: 200). Neste sentido, se considerarmos a inclusão do feto na categoria Pessoa como um indicador do avanço do Individualismo ou da ampliação do poder disciplinar, podemos supor que a construção social do feto como Pessoa provavelmente varia conforme a classe social estudada, em correspondência com a difusão diferenciada do Individualismo/poder disciplinar nas diversas classes. Esta é a primeira das hipóteses a serem investigadas em um trabalho de campo com observação participante, em clínicas de imagem ultra-sonográfica no Rio de Janeiro. -IIO caráter histórico e cultural da categoria Pessoa implica diretamente o fato de que esta categoria está em constante elaboração, em um processo de realimentação com a sociedade e seus valores: informada e configurada por eles e, ao mesmo tempo, informando o próprio sistema de valores. No decorrer do século XX, na sociedade ocidental, a tecnologia vem contribuindo de forma marcante para a reconfiguração da noção de Pessoa, 96 modificando profundamente, por exemplo, a relação do homem com o tempo e o espaço, através do desenvolvimento das tecnologias de comunicação e da invenção de novos meios de transporte. A tecnologia utilizada em medicina reconstrói, de modo mais específico, diversas noções concernentes à corporalidade e à consciência de si e, consequentemente, tem um papel de grande importância na re-elaboração da noção de Pessoa moderna. Dentre os diversos dispositivos tecnológicos utilizados na medicina, a tecnologia de imagem, em suas diversas modalidades – raios X, ultra-sonografia, ressonância magnética, PET scan – vem modificando radicalmente o olhar anatomo-clínico postulado por Foucault (1998c), assim como também, ao tornar o corpo ‘transparente’ tem contribuído de forma decisiva na desconstrução e reconstrução da Pessoa na sociedade ocidental contemporânea.114 Uma das tecnologias de imagem em medicina, o ultra-som, utilizado na obstetrícia, apresenta uma peculiaridade que ultrapassa em muito suas finalidades estritamente clínicas e diagnósticas. A visualização de uma série de ecos, transformados em uma imagem composta de diferentes tonalidades de cinza, tem contribuído de forma decisiva para a antecipação da existência social do feto. Essa imagem torna subitamente evidente – agora para uma vasta gama de atores – a presença, dentro da mulher, de um outro ser. No passado, esta noção tinha um caráter gradual, exclusivo e privado para a mulher, ao menos nos primeiros meses de gestação. Dentre os diversos desdobramentos decorrentes desta situação encontra-se a construção social do feto como Pessoa, impulsionando a tendência a percebê-lo como individualizado e autonomizado em relação à mulher que o contém.115 Dumont acentua que os valores cardinais da sociedade moderna individualista são a igualdade e a liberdade (Dumont, 1992: 52). Nesse sentido, a tendência crescente que vem sendo observada no sentido da individualização e autonomização do feto em relação à ‘mãe uterina’ pode ser também compreendida como a expressão de uma acentuação radical, ou extensão, do Individualismo em nossa sociedade. A inclusão na categoria Pessoa de um elemento como o feto – dependente, nãoautônomo, imaturo, inconcluso, cercado ainda de incertezas quanto ao seu completo e perfeito desenvolvimento – coloca em xeque, de um modo peculiar, uma série de premissas 114 Diversos autores têm se dedicado a explorar o papel destas novas tecnologias na construção da Pessoa. Dentre estes destacaria Rapp (1997, 1998, 1999), Dumit (1997), Dumit e Davis-Floyd (1998), Fellous (1991), Petchesky (1987), Mitchell (1994) entre outros. 115 Abstenho-me propositadamente de utilizar neste ponto o termo ‘mãe’ porque esta é uma das categorias que vêm sendo postas em xeque pelas novas tecnologias reprodutivas: quem pode (ou deve) ocupar esse posto de ‘mãe’? A genética, a gestacional, a social? De que maneira isto é determinado? De qualquer forma, o fato de que a mulher que contém o feto possa ou não ser sua ‘mãe’ genética e/ou social acentua a idéia do feto como um ente ‘separado’ e ‘autônomo’. 97 que foram fundadoras e constituintes da noção de Pessoa no mundo ocidental contemporâneo como, por exemplo, autonomia e auto-determinação. Em um certo sentido, esta tendência ‘subversiva’ corresponde à radicalização do movimento romântico de interiorização e de busca infindável do próprio ‘eu’ que desembocou na Psicanálise, conforme assinalado por Russo (1997). Na medida em que o indivíduo passa a ser visto como um ser fragmentado, indeterminado, com autonomia relativa, e ‘despossuído de si’ (Russo, 1997: 14) e, mesmo assim, permanece sendo Pessoa, abre-se uma das vias para a inclusão do feto nesta categoria. Essa inclusão redimensiona a categoria, passando a incluir os fatores incerteza e indeterminação – e agora sob uma forma ‘orgânica’, ‘biológica’ – na constituição da Pessoa. Esta situação insere-se no que Salem aponta como uma tendência à “ biologização” da identidade (Salem, 1997: 80).116 Salem assinala ainda que os parâmetros morais que anteriormente definiam a Pessoa vão sendo substituídos pelos de “ viabilidade” (Salem, 1997: 80). Contudo, por mais biologizante que possa ser, este conceito é bastante ambíguo e está impregnado por um forte conteúdo moral. Como exemplo, citaria o exame de amniocentese117 que, ao detectar precocemente algumas anomalias genéticas, como a trissomia 21 – identificada como causadora da Síndrome de Down –, possibilitaria legalmente à mãe decidir por um aborto, em alguns países. De qual viabilidade se estaria falando? De um ponto de vista estrito – a possibilidade de sobrevivência ‘autônoma’ fora do útero materno – a síndrome de Down não inviabiliza a sobrevivência do bebê ao nascer. Entretanto, este é um dos resultados diagnósticos da amniocentese que, com freqüência, leva à decisão de aborto. Possivelmente esse tipo de critério de ‘viabilidade’ estaria envolvendo outros aspectos da vida humana, tais como autonomia potencial do sujeito, sociabilidade, exclusão social, para além da possibilidade de sobrevivência pura e simples.118 Ao largo desta discussão, de toda forma, na prática médica, a determinação de ‘viabilidade’ é, freqüentemente, delimitada de forma marcante pelos recursos tecnológicos disponíveis. Dessa maneira acentua-se, de forma sensível, o embricamento corpo-máquina, dando margem a situações ‘híbridas’ e radicais nas quais o corpo torna-se dependente da máquina para sobreviver. Um exemplo marcante desta situação consiste na sobrevida de bebês prematuros extremos – há casos de bebês de menos de 400 gramas – em unidades de 116 O Projeto Genoma, assim como o grande impulso que vem adquirindo a Neurociência, podem ser tomados como exemplos da radicalização desta tendência. 117 Exame realizado por volta da 16a semana de gestação, com o líquido amniótico extraído do útero da mulher grávida. 118 A discussão mais aprofundada da questão da ‘viabilidade’ foge ao escopo dessa dissertação, e pretendo retomá-la em futuro próximo. 98 terapia intensiva neonatais. Trata-se aqui de um rearranjo, posto até há bem pouco tempo havia uma relação unidirecional entre o ser humano e seu produto, a máquina: esta dependia daquele para ser mantida e colocada em funcionamento. No momento em que a manutenção da vida tornase dependente de algum tipo de aparelho, a relação torna-se bidirecional; de fato, o engenho ainda continua a precisar do humano para seu funcionamento e/ou manutenção – sendo ou não o mantenedor o próprio beneficiário dela – mas configura-se uma mudança qualitativa a partir do momento em que uma vida humana passa a depender de um aparelho para sua continuidade. Neste ponto articula-se também a discussão acerca da redefinição do natural e do artificial ou, melhor dizendo, do apagamento da fronteira entre as duas categorias, aspecto que vem sendo explorado e discutido por diversos autores.119 No caso em discussão neste trabalho – a produção da imagem do feto a partir de uma série de ecos, tomada como sinônimo de ‘um bebê’ – essa fusão ou hibridação ocorre em um plano imaginário, mas nem por isso menos significativo ou menos híbrido; o fetocyborg é um produto da tecnologia, mas, obviamente, sem existir um feto dentro da mulher não pode haver a produção de sua imagem. Fellous (1991) assinala que: “ (...) [A] valorização da imagem científica na vivência da gravidez pressupõe uma adequação entre o desenvolvimento biológico e a consciência vivida desse desenvolvimento; aqui estariam mescladas [confundidas] a temporalidade humana e a temporalidade biológica, cientificamente apreensíveis e exteriorizados pelo equipamento ecográfico.(...)” (Fellous, 1991: 40). A produção do híbrido feto-cyborg é modelada pelas condições que circundam e possibilitam seu surgimento. Este é o segundo aspecto a ser investigado em futuro trabalho etnográfico: como se dá essa construção no Rio de Janeiro, em clínicas de imagem privadas e públicas – atendendo portanto a diferentes estratos sociais –, dispondo de tecnologia mais ou menos sofisticada, como essa fusão é apreendida pelas gestantes, por seus parceiros e pelos técnicos e que desdobramentos a produção desse híbrido carreia consigo. -IIINo que tange à questão aqui focalizada – o status do feto – é impossível passar ao largo do impacto social provocado pelas novas técnicas de reprodução assistida. Dentre um sem número de questões levantadas pelo surgimento destas novas tecnologias, 119 Destacaria Donna Haraway – responsável pela criação da Antropologia cyborg – e Joseph Dumit entre os 99 destacaria o que parece se constituir em uma via de mão dupla: a produção delas, ao mesmo tempo, é parcialmente resultado [de] e contribui [para] a valorização do feto – agora viabilizado também através da tecnologia. Ao mesmo tempo que essas novas tecnologias desempenham um papel relevante na modificação do status do feto, pode-se também considerar que a produção destes recursos tecnológicos decorre, em larga escala, da intervenção médica na vida reprodutiva dos seres humanos – o que leva à suposição de que aquele status já vinha passando por sensíveis modificações. As duas questões tornamse, portanto, mutuamente constitutivas. Neste sentido Corrêa (1997) assinala: “ Apesar da significativa história da intervenção médica sobre a reprodução, estas novas formas tecnológicas [de reprodução assistida] são apresentadas e vêm sendo tratadas, predominantemente, como estando em completa ruptura com aquelas práticas e técnicas médicas que até então configuraram a medicalização do processo reprodutivo.” (Corrêa, 1997: 183). Por outro lado, essa autora observa que: “ Se a reprodução assistida não pode ser considerada propriamente como uma novidade, quando se tem em mente a intervenção médica sobre o processo reprodutivo, ela o é no sentido de que, pela primeira vez na história da humanidade, o problema da impossibilidade de reprodução biológica (...) pode ser resolvido biologicamente. (...)” (Corrêa, 1997: 183).120 A ‘infertilidade’ de um casal é com grande freqüência associada a um ‘desespero’ e tal associação não é aleatória. Franklin (1990) relaciona a construção de ‘verdades médicas’ acerca do corpo infértil (geralmente da mulher) em conjunto com relatos que se multiplicam na mídia acerca do ‘desespero’ dos casais inférteis, a um novo papel épico atribuído à medicina através das novas tecnologias reprodutivas. Se a medicina detém a ‘verdade’ e o conhecimento acerca da infertilidade, torna-se detentora também do poder de revertê-la. Após observar o alto grau de coincidência de pontos de vista entre os relatos produzidos por comissões governamentais, manuais sobre infertilidade e estórias na mídia local e nacional na Inglaterra, superposição que considera reveladora na medida em que todos estes relatos são construídos em condições muito diferentes, essa autora aponta como se produz um novo ‘mito’: “ (...) Através de uma miríade de enunciações e repetições de relatos, esse ‘mito’ popular começa a ser estabelecido como uma compreensão do senso comum que liga a ‘infertilidade’ às novas tecnologias reprodutivas. Em diversos autores contemporâneos que têm se dedicado a analisar e discutir esta questão. 120 Corrêa assinala ainda que o uso do termo ‘biológico’ para estas novas tecnologias, em contraposição ao termo ‘artificial’ provocou controvérsias, tendo-se optado pelo termo ‘assistida’ para se referir às novas tecnologias reprodutivas (Corrêa, 1997: 184). 100 troca, essa compreensão informa o consumo de novas informações, de acordo com a construção narrativa de um mito que se torna senso comum. (...) [Roland Barthes definindo os mitos contemporâneos, conclui que] um mito é definido primariamente por sua forma, mais do que por seu conteúdo.” (Franklin, 1990: 214). Analisando a correlação estabelecida entre ‘infertilidade’ e ‘desespero’, Franklin observa que, pela maneira como são construídas, essas narrativas já contêm a ‘resolução’ do ‘problema’. A mesma autora assinala que, de acordo com o relatório Warnock,121 além da “ perda de identidade social e do sentido de falência pessoal que resultam da infertilidade” , que resultam em um senso de exclusão e perda da auto-estima, “ A falta de filhos [biológicos] pode ser uma fonte de stress mesmo para aqueles que deliberadamente escolheram esta situação (...) Eles podem sentir que não serão capazes de preencher suas próprias expectativas e as dos outros e também sentirem-se excluídos de toda uma série de atividades humanas – e, particularmente, as atividades dos seus contemporâneos criando filhos.” (Warnock, 1985 apud Franklin, 1990: 205) (Grifo acrescentado). A idéia de que a falta de filhos possa causar uma perda de identidade social e de auto-estima aponta de maneira insistente para a questão da construção da mulher como Indivíduo ou, melhor dizendo, da produção da subjetividade feminina passando ‘necessariamente’ pela maternidade. Esta pressão – principalmente de que as mulheres sejam mães ‘a todo custo’ – lembra de perto a pressão sobre as mães nos séculos XVIII e XIX para aleitarem seus filhos. O sentido parece ser análogo ao daquela época: colocar sua ‘produção’ em circulação social. Teria havido uma ampliação do que é concebido como a ‘produção’ da mulher. O tipo de ênfase dada ao leite nos séculos XVIII e XIX estende-se, no século XX, também à produção de filhos, além de produtos e/ou serviços.122 Aparentemente está-se diante de um novo movimento natalista, fortemente circunscrito por uma intensa medicalização: ao mesmo tempo controla-se a natalidade e podem ser produzidos bebês em laboratório. O fato de, em tese, poder-se agora ‘produzir’ filhos em laboratório – mesmo que o índice de sucesso seja reduzido – implica uma reconfiguração do que é ‘não ter filhos’. Corrêa (1997) aponta que a difusão da reprodução assistida tende a reforçar atitudes negativas em relação à ausência de filhos, mesmo que as novas tecnologias reprodutivas apresentem um grau de sucesso estatisticamente bastante baixo e, mais, que a sua aplicação 121 Relatório produzido por um comitê governamental inglês, convocado em 1982 para investigar os ‘tratamentos’ de infertilidade na Inglaterra. 122 Por um outro ângulo, Martin (1992) discute extensamente a metáfora da produção aplicada ao parto. 101 não resolva o problema em si da infertilidade. Obtém-se eventualmente bebês, mas não são modificadas as causas de esterilidade (Corrêa, 1997: 204). Mesmo assim reitera-se, na sociedade contemporânea, a idéia de que a ‘esterilidade’ pode ser ‘resolvida’, recorrendo-se às novas tecnologias reprodutivas. A produção de embriões em laboratório é freqüentemente veiculada pela mídia como uma demonstração de potência da Ciência.123 As novas técnicas parecem também representar uma expansão máxima das possibilidades do Indivíduo: o desejo e direito de escolha de quando, com quem e agora também como ter filhos.124 O aspecto de consumo impregna profundamente essa possibilidade de escolha. Consome-se tecnologia, e o próprio bebê pode se transformar em objeto de consumo, sendo (ou tendo) determinadas características físicas, e mesmo o sexo, ‘escolhidos’ como, por exemplo, no caso de inseminação por doadores anônimos. Cabe também assinalar a existência de uma tendência que vem se consolidando de maneira crescente, de mulheres que optam por ter filhos em um período mais tardio da vida, constituindo-se em um novo mercado consumidor para as novas tecnologias reprodutivas. A mídia desempenha um papel nada desprezível na construção e alimentação desta demanda, ao divulgar – com maior ou menor espalhafato – os sucessos das novas técnicas, destinando pouco ou nenhum espaço para a discussão bioética ou para a divulgação das largas margens de insucesso deste tipo de tecnologia, conforme observa Corrêa (1997: 1212, 179-181). A maternidade pode também ser referida ao desejo exclusivamente individual da mulher, em uma ruptura da noção da família como ‘local ideal’ para produção de bebês. 125 Paradoxalmente, o poder da mulher em relação ao embrião produzido em laboratório passa a ter que ser dividido com médicos e técnicos, e quando existe a função ‘pai’, este tem a si atribuído um novo lugar no que tange, por exemplo, à tomada de decisão em relação ao destino dos embriões excedentes (Novaes & Salem, 1995; Salem, 1997). 123 Recentemente, em documentário produzido pela BBC sobre ‘terapias genéticas’, foi apresentado o caso de um casal que perdera uma filha aos três anos de idade com a doença de Tay-Sachs – doença degenerativa do sistema nervoso, de origem genética, incurável. O casal desistira de ter filhos em virtude da alta possibilidade de conceberem outro bebê com o mesmo problema. Os cientistas que descobriram o gene causador da doença propuseram ao casal o uso de reprodução assistida, o que possibilitaria selecionar – entre os embriões obtidos – aqueles que não fossem portadores do gene defeituoso, para implantação na mulher. Deste procedimento nasceu uma menina saudável que, no documentário – significativamente – é mostrada, ao nascer, no colo do pai – os dois cercados pelos cientistas. Em momento algum aparece a mulher com seu bebê recém-nascido. Chama a atenção também o fato de que, em relação a este episódio, não é utilizado o termo ‘eugenia’, e sim ‘terapia genética’. 124 Vale notar que a produção da pílula anticoncepcional, a partir de meados da década de 1960, ofereceu às mulheres uma possibilidade eficaz de escolha acerca da procriação que, anteriormente, ou não se colocava ou era muito precária. Há um deslocamento e reforço na ênfase para gerar filhos, concomitante a uma forte pressão em favor do aleitamento materno. Cabe ainda assinalar que a ênfase na procriação ou no controle da natalidade segue lógicas bastante diferentes, dependendo da classe social da mulher. 102 Em nossos dias, há um recuo das fronteiras da infância e também da própria maternidade.126 O feto no útero é referido, na legislação americana, como “ criança nãonascida” (Heriot, 1996: 178). A vivência de maternidade se inicia desde o princípio da gravidez, com a visualização do embrião, sendo acentuada ao longo da gestação com a observação do desenvolvimento do feto, através de ultra-som uterino. A ‘pessoalização’ do concepto, mediada pela tecnologia, tem como conseqüência direta uma psicologização acentuada do feto; uma outra faceta desta mesma questão é a intervenção direta (medicalizada ou não) sobre ele. Em evento ocorrido em novembro de 1999, em São Paulo – V Encontro Brasileiro para Estudo do Psiquismo Pré e Perinatal, promovido pela Associação Brasileira para Estudo do Psiquismo Pré e Perinatal (ABREP) – tive a atenção despertada para a importância conferida por todos os conferencistas ao ‘vínculo mãe-feto’. Os três palestrantes chamados para o Encontro – uma etóloga, um psicanalista e uma perinatologista – desdobraram-se, cada um a seu modo, para demonstrar o quanto e de que maneira o feto é atingido e também moldado por diversos estímulos no útero. Multiplicaram-se exemplos: a etóloga apresentou diversos resultados de pesquisas envolvendo aspectos sensoriais do feto e do recém-nato, e o psicanalista e a perinatologista (ambos médicos, vale dizer) com explicações, a maioria delas baseada em formulações da Neurociência, visando comprovar que o feto é atingido e ‘modelado’ por seu meio ambiente – o útero – e que dessa interação surge uma gama variada de resultados – tanto positivos quanto negativos – em seu desenvolvimento físico e psíquico.127 Nos dias atuais há diversas publicações que voltadas para a ‘psicologia fetal’, fato que corrobora a tendência crescente de subjetivação do feto e de sua transformação em Indivíduo, muito antes do nascimento. No evento referido acima, a etóloga Marie Claire Busnel mencionou a existência, nos EUA, de uma ‘Universidade Fetal’, que visaria potencializar o desenvolvimento da inteligência do feto durante seu crescimento no útero. O feto-cyborg, observado e monitorado em seu desenvolvimento, cuidado, corrigido, 125 Para uma discussão aprofundada sobre o ‘desejo de filhos’, ver Corrêa (1997: 191-212). Ariès aponta e comenta indiretamente este recuo de fronteiras ao comentar a prática de infanticídio ‘tolerado’ até o século XVII: “ A vida de uma criança era então considerada com a mesma ambigüidade com que hoje se considera a do feto, com a diferença que o infanticídio era abafado no silêncio, enquanto o aborto é reivindicado em voz alta – mas esta é toda a diferença entre uma civilização do segredo e uma civilização da exibição. (...)” (Ariès, 1978: 18). O fato deste texto ser nitidamente direcionado contra o aborto apenas reforça o quanto o status de Pessoa do feto é um argumento importante para essa posição política. 127 Uma interação implica necessariamente a existência de dois ou mais elementos. O uso do termo traz implícita a concepção do feto como um elemento individualizado, questão que não foi problematizada pelos palestrantes do referido Encontro. 126 103 disciplinado e educado desde o útero seria, na expressão de Dumit e Davis-Floyd, um ‘super-feto’? (Dumit & Davis-Floyd, 1998). Além do ‘aperfeiçoamento’ do feto pode-se pensar também em uma ‘nova’ eugenia, tanto por conta das manipulações genéticas quanto pela possibilidade de diagnósticos intrauterinos de anomalias genéticas e congênitas, levando à decisão de aborto (Heriot, 1996). Nos países onde a interrupção da gravidez é permitida – seja por conta de um diagnóstico de algum tipo de anomalia, seja por vontade exclusiva da mulher – a discussão sobre aborto ‘eugênico’, seus critérios e limites, desenvolve-se de maneira ampla em todo o corpo social. A tomada de decisão é informada por esse debate. No Brasil, onde o aborto por causas genéticas é permitido por lei em pouquíssimos casos (e, mesmo nesta situação, difícil de ser realizado em instituições públicas), sendo na maior parte das vezes considerado crime – mas nem por isso praticado em menor escala –, a discussão e as tomadas de decisão sobre o aborto ‘eugênico’ necessariamente têm outra feição. Esta é a terceira questão que, a meu ver, merece ser investigada localmente, em uma abordagem comparativa: por quem, e de que maneira, a ultra-sonografia é utilizada nestes casos? Como são lidadas estas questões no Rio de Janeiro? Quais as conseqüências da visualização do feto em situações como essas, para a gestante, para o parceiro – quando existe – e para a equipe técnica? ✼✼✼ Schmidt e Moore (1998), em artigo sobre os bancos de sêmen, nos EUA, discutem de que forma o ‘beneficiamento’ do esperma, tal como divulgado pela propaganda destes bancos, produz a idéia de um ‘super-sêmen’, não apenas reconfigurando o conceito de masculinidade como também construindo a idéia de que o esperma ‘ao natural’ representaria um ‘risco’ para a produção de bebês geneticamente saudáveis.128 Seguindo a mesma lógica, poder-se-ia pensar na construção da idéia de que o ‘super-feto’ seria também ‘muito melhor’ do que o produzido pelos ‘antigos e imprecisos’ métodos naturais e, além de tudo, deixado em estado ‘selvagem’ até o nascimento. A preocupação eugênica de produção de seres humanos ‘perfeitos’, o que quer que possa significar essa ‘perfeição’, pode encontrar nas novas tecnologias reprodutivas e no monitoramento estrito do desenvolvimento dos fetos no útero um terreno fértil. Dessa 128 Foi-me sugerida, no decorrer dessa pesquisa, a leitura de manuais de zootecnia, como forma de obter um vislumbre do futuro, posto que os procedimentos de beneficiamento e seleção de sêmen são utilizados por esta disciplina desde longa data. 104 maneira, parece estar implícita a idéia de que o ‘super-feto’, que daria origem ao ‘bebê perfeito’, poderia ser considerado a ‘salvação’ ou a ‘perfeição’ da espécie humana, além de reafirmar o poder da Ciência. Não se trata aqui, em absoluto, de um exercício de ‘catastrofismo futurológico’. O exagero e a ironia visam apenas problematizar o papel e os usos da Ciência – jamais ingênuos, mas nem por isso necessariamente ‘maquiavélicos’ – e chamar a atenção para a necessidade de permanente discussão e questionamento do que se nos apresenta nos dias atuais como ‘progressos científicos’. Para o estudo e reflexão acerca das reconfigurações constantes que são geradas pelas invenções dos humanos, as Ciências Sociais constituem um valioso instrumento analítico que possibilita a manutenção desse constante e indispensável exercício crítico sobre a sociedade em que vivemos. 105 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Ricardo A. S. L’héritage romantique allemand dans la pensée freudienne. 1990. Tese (Doutorado). Paris : Université de Paris VII, 1990. ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro : Zahar, 1978. 279p. ARMSTRONG, David. “ The invention of infant mortality” . 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São Paulo : Brasiliense, 1985. p. 35-61. 115 ANEXO I Editorial do Lancet, de 8 de fevereiro de 1898. “ The introduction of incubators for babies into this country has been favourably noticed in the Lancet. The incubators which we described were exhibited at Earl’s Court. They were manufactured by scientific instrument makers of high reputation who provide many of the apparatus used in Dr. Koch’s laboratory. Skilled attendants were employed who had been specially trained not merely in the care of babies and the management of incubators but more particularly in the nursing of prematurely born or especially debilitated infants. Again, though the Victorian Era Exhibition was looked upon as a mere pleasure resort by many it was also a serious exhibition where objects of art of great value were collected side by side with scientific inventions bearing medical and public health questions. Thus surrounded there was nothing derogatory to the dignity of the healing art in the exhibition of incubators at Earl’s Court. Also a healthy site was chosen in the broadest part of the gardens where there was plenty of fresh air. The incubators were scientifically ventilated and only received the air taken from the outside. This exhibition had an extraordinary success. On one occasion there were no less than 3600 visitors in a single day. This success, however, has proved a mixed blessing. It attracted the attention and cupidity of public showmen, and all sorts of persons, who had no knowledge of the intricate scientific problem involved, started to organize baby incubator shows just as they might have exhibited marionettes, fat women, or any sort of catch-penny monstrosity. It is therefore necessary that we should at once protest that human infirmities do not constitute a fit subject for the public showmen to explore. Incubators are only useful for prematurely born children, and especially for infants whose lives cannot possibly be saved in any other way. Therefore constant medical supervision and the presence day and night of nurses trained in the use of incubators and of wet-nurses is indispensable. To organize all this in a satisfactory manner necessitates a considerable outlay and cannot be lightly undertaken by inexperienced persons. An incubator show, if such there must be, should correspond in every respect to a hospital ward. Now, at the World’s Fair held at the Agricultural Hall, Islington, there is an incubator show where the charge for admittance is only 2d. We fail to see how this small sum can cover the cost of properly trained attendants and of wet-nurses. On visiting this exhibition we were informed that the infants were fed by their mothers – but how can the mothers attend during the whole of the night at the Agricultural Hall and where is their sleeping accommodations? Then, again, the incubators do not derive their air supply from without. The infants breathe atmosphere of the interior of the Agricultural 116 Hall, where, apart from the numerous visitors, the whole of Wombwell’s menagerie is kept. Just opposite the incubators there are some leopards and everyone is familiar with the obnoxious odour that arises from the cages in which such animals are incarcerated. There is a similar exhibit at the Royal Aquarium, and we cannot think that the dust of bicycle racing, the smoking of the men, and the exhalations from the crowd of people who visit that resort are likely to constitute an atmosphere suitable for prematurely born infants. Of the thousands who daily flock to these two buildings, how many convey pathogenic germs which may enter the incubators since they are not ventilated from without? Then what connection can there be between the style of the public or of the entertainments to be seen at these places and a purely medical scientific question? Is it in keeping with the dignity of the science that incubators and living babies should be exhibited amidst the aunt-sallies, the merry-go-rounds, the five-legged mule, the wild animals, the clowns, penny-peep show, and amidst the glare and noise of a vulgar fair? At Barnum and Bailey’s Show129 also there is a baby incubator show where, however, the air is brought in from without; but, again, what connection is there between this serious matter of saving human life and the bearded woman, the dog-faced man, the elephants, the performing horses and pigs, and the clowns and the acrobats that constitute the chief attraction to Olympia? (...).” (Silverman, 1979: 130-131). 129 Conhecido show de aberrações humanas, do tipo mulher barbada, anões, homem-cobra, que fez enorme sucesso na Europa e Estados Unidos por muitos anos a partir de fins do século XIX. A curiosidade popular acerca deste tipo de aberrações mereceria um estudo à parte, que escapa ao objetivo do presente trabalho.