CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CBC C513

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CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CBC C513
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CBC
C513
Chazan, Lilian Krakowski.
Fetos, máquinas e subjetividade : um estudo sobre a
construção social do feto como pessoa através da tecnologia de
imagem / Lilian Krakowski Chazan. – 2000.
116 f.
Orientadora: Jane Araujo Russo.
Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, Instituto de Medicina Social.
1. Feto - Cuidados médicos - Aspectos sociais _ Teses. 2.
Ultra-som na medicina - Teses. 3. Gravidez - Teses. 4.
Antropologia cultural - Teses. 5. Amor materno - Teses. 6.
Mortalidade infantil - Europa - Sec. XVIII - Teses. 7.
Subjetividade - Teses. I. Russo, Jane Araújo. II. Universidade
do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Medicina Social. III.
Título.
CDU612.647
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE MEDICINA SOCIAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE COLETIVA
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SAÚDE
FETOS, MÁQUINAS E SUBJETIVIDADE:
UM ESTUDO SOBRE A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO FETO
COMO PESSOA ATRAVÉS DA TECNOLOGIA DE IMAGEM
Dissertação apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Mestre em Saúde Coletiva. Curso de
pós-graduação em Saúde Coletiva – área de concentração
em Ciências Humanas e Saúde – do Instituto de Medicina
Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Mestranda: Lilian Krakowski Chazan
Orientadora: Profa. Dra. Jane Araujo Russo
Rio de Janeiro
2000
A Nicha e Dawid, meus pais muito queridos.
AGRADECIMENTOS
Redigir os agradecimentos ao final de um trabalho implica necessariamente duas
questões. A primeira delas consiste em uma rememoração da trajetória percorrida. A
segunda – inevitável – é a omissão involuntária de pessoas que, em algum momento,
participaram deste projeto. A essas peço antecipadamente desculpas.
Diversas pessoas estiveram – direta ou indiretamente – envolvidas com este
trabalho nos últimos dois anos. A elas, que de uma forma ou de outra possibilitaram o
resultado final, dedico minha profunda gratidão.
A Denise Morsch, pelo ‘pontapé inicial’, estímulo e companheirismo subsequentes.
A Rosane Mello, pela acolhida no setor de Follow-up do Instituto Fernandes
Figueira, pelos auxílios eventuais e pela amizade fiel.
A Suely Deslandes, pela generosidade e apoio no início desta trajetória e a Maria
Helena Cabral de Almeida Cardoso, além de tudo isso, pela ajuda bibliográfica, em outro
momento, que se revelou crucial para o desenvolvimento do trabalho.
A Tania Salem, pela avaliação cuidadosa e sugestões inestimáveis na qualificação
do projeto de dissertação.
A Annette Leibing, pelo estímulo e pelos artigos essenciais que me apresentou.
A Ana Maria Jacó Vilela, pelo ensino, apoio, interesse e amizade ao longo deste
percurso.
A Laura Rónai, pelo carinho, pelas ajudas de urgência e pelo abstract.
A Jane Russo, pela orientação constante, inteligente, delicada e bem-humorada,
além da disponibilidade e abertura para o diálogo.
Aos professores do IMS/UERJ, de quem tive o privilégio de ser aluna, em especial
a Sérgio Carrara e Luiz Antônio de Castro Santos, pela abertura de novos horizontes de
conhecimento.
A Jane Sayd e Kenneth Camargo Jr., pela amizade divertida e possibilidade de
trocas.
A Maria Luiza Heilborn, pelas contribuições e sugestões quando da qualificação do
projeto, e – com uma certa confessada ambigüidade – pelo empurrão final.
A Leila Santiago e Silvia Regina Nunes Constancio, da secretaria, pela ajuda em
momentos estratégicos.
A Rita de Cássia Bento, da biblioteca, pela gentileza e eficiência. A Regina Tinoco
Amato, bibliotecária, pela ajuda valiosa com a bibliografia.
A Rachel Aisengart Menezes, amiga de todas as horas, pelas múltiplas funções:
cumplicidade, afeto, interlocução, concordâncias verbais, crítica construtiva e trocas
constantes, ombro amigo para aflições, dúvidas e angústias (muitas), apoio e estímulo,
entre outras. Gratidão sem limites.
A Helena Besserman Vianna, pela escuta, interesse e acompanhamento desde o
início deste caminho.
A Nadir da Silva Pereira e Ana Carolina Salgado de Paulo, meus dois braços
direitos, pela infra-estrutura indispensável, assegurando a tranqüilidade necessária para me
dedicar integralmente a este trabalho.
A meus familiares mais próximos – pais, irmão e filho – pela compreensão e apoio
demonstrados ao longo desta trajetória.
A Rodrigo Nin Ferreira, companheiro nesta jornada, amoroso, atencioso e, acima de
tudo, amigo, pelo estímulo e suporte constantes, além dos socorros emergenciais em
situações de pânico na informática.
À CAPES, pela bolsa, que em muito facilitou a execução deste trabalho.
RESUMO
Este trabalho consiste em uma revisão bibliográfica da produção norte-americana e
européia dos anos 90, acerca da construção social do feto como Pessoa, mediada pela
tecnologia de imagem na medicina. O significado e os desdobramentos desta construção
implicam reformulações na sensibilidade em relação ao feto, assim como rearranjos na
noção de Pessoa.
A construção social do feto como Pessoa é contextualizada e discutida a partir da
emergência do sentimento de infância e da produção do amor materno como um valor
moral e social, no século XVIII. A partir dessa época, a criança, em seguida o bebê e – no
século XX – o feto, gradualmente tornaram-se objetos de atenção médica e social. Essa
atenção carreou consigo diversas conseqüências. O ultra-som, usado atualmente como
exame de rotina na gravidez, trouxe uma antecipação – e, portanto, uma ampliação – do
controle e disciplinarização dos corpos, ao mesmo tempo em que reiterava uma nova
subjetividade. Este reforço se dá em dois planos: o primeiro, da mãe em relação ao seu feto
– agora tornado visível, sob uma forma na tela, quando os movimentos fetais ainda são
imperceptíveis para os sentidos da mãe. Em outro plano, o feto é socialmente construído
como um novo ‘indivíduo’, visualizável e com ‘comportamentos’ observáveis e
individualizados.
Deste modo, novas tecnologias vêm contribuindo, tanto para a criação, quanto para
a afirmação de novas subjetividades e, em última instância, para a construção social do feto
como Pessoa.
ABSTRACT
This work consists in a review of the literature from North America and Europe during the
nineties concerning the social construction of the fetus as a person, mediated by medical
imaging technology. The significance and unfolding of this construction are involved in
reformulations in sensibility in relation to the fetus, and in adjustments in the notion of the
person. The social construction of the fetus as person is contextualized and discussed
beginning with the emergence of the notion of childhood and the production of maternal
love as a moral and social value in the eighteenth century. Beginning in this period, the
child, later the baby, and finally, in the 20th century, the fetus, gradually became objects of
medical and social attention. This attention brought with it various consequences.
Ultrasound, presently a routine exam during pregnancy, brought with it earlier and broader
control and discipline of the body while at the same time it reiterated a new subjectivity.
This reinforcement is found in two planes: firstly, that of the mother in relation to her fetus
which is now made visible on screen, at a time when the fetal movements are still
imperceptible to the mother's senses. On another plane, the fetus is socially constructed as a
new individual, visualizable and with observable and individualized ‘behaviors’. In this
way new technologies are contributing both to the creation and affirmation of new
subjectivities and in the last instance toward the social construction of the fetus as a person.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...............................................................................................................
1
Capítulo 1: A MORTE DE BEBÊS NO SÉCULO XVIII NA EUROPA ..................
1.1) Mortes de bebês e mortalidade infantil ..........................................................
1.2) Amas-de-leite e mortalidade infantil .............................................................
1.3) A mortalidade infantil e a transformação do sentimento materno .................
1.4) Abandono de bebês e mortalidade infantil ....................................................
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Capítulo 2: A MULHER, O BEBÊ E A CONSTRUÇÃO DO AMOR
MATERNO COMO VALOR ......................................................................................
2.1) O discurso econômico: a conservação de crianças ........................................
2.2) O discurso dos valores iluministas: novos Indivíduos ...................................
2.3) O discurso para as mulheres: a hierarquia .....................................................
2.4) O discurso da Ciência: famílias, mulheres, crianças e médicos.....................
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Capítulo 3: DA CONSTRUÇÃO DO BEBÊ COMO OBJETO .................................
3.1) A elaboração da mortalidade infantil e a existência social do bebê...............
3.2) Dimensões analíticas da infância ...................................................................
3.3) Atrofia e decadência ‘naturais’ versus doença e imaturidade .......................
3.4) A prematuridade como foco de atenção ........................................................
3.5) A análise epidemiológica na construção do bebê social ................................
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Capítulo 4: ALTA TECNOLOGIA: DO ÚTERO ‘TRANSPARENTE’ AO
STATUS DO FETO ......................................................................................................
4.1) Tecnologia e gravidez ...................................................................................
4.1.1) Breve histórico sobre o uso de tecnologia na gravidez ...................
4.1.2) A ultra-sonografia obstétrica na atualidade: o útero ‘transparente’
e o feto trazido para o espaço público.................................................
4.1.3) A produção de conhecimento confiável sobre a gravidez e o feto...
4.2) O feto-Pessoa .................................................................................................
4.2.1) Máquinas e subjetividade ................................................................
4.2.2) O feto civil, político e comercial .....................................................
4.2.3) Transformação: da imagem ao ‘bebê’ .............................................
4.2.4) A inclusão do feto na categoria Pessoa: significados e
desdobramentos .........................................................................................
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73
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86
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Capítulo 5: CONSIDERAÇÕES FINAIS: ‘NOVO’ FETO, ‘SUPER-RAÇA’? ......
90
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................
105
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA ...............................................................................
113
ANEXO I .........................................................................................................................
115
“Para apalpar as intimidades do mundo é preciso
saber:
a) Que o esplendor da manhã não se abre com faca
b) O modo como as violetas preparam o dia para
morrer
c) Por que é que as borboletas de tarjas vermelhas
têm devoção por túmulos
d) Se o homem que toca de tarde sua existência num
fagote, tem salvação
e) Que um rio que flui entre dois jacintos carrega
mais ternura que um rio que flui entre dois
lagartos
f) Como pegar na voz de um peixe
g) Qual o lado da noite que umedece primeiro.
etc
etc
etc
Desaprender oito horas por dia ensina os princípios.”
( Manoel de Barros, 2000: 9).
1
INTRODUÇÃO
Nas últimas décadas do século XX, na sociedade ocidental, pode-se observar uma
crescente medicalização da sociedade em geral, e da gravidez em particular. Os avanços da
tecnologia em medicina acentuaram este processo com uma rapidez vertiginosa. A
medicalização social, de acordo com Corrêa (1997), pode ser entendida como
“ (...) a forma pela qual a continuada evolução tecnológica vem modificando
a prática da medicina (...) evolução esta que tem como corolário um
aumento exagerado no consumo de atos médicos e notadamente de
medicamentos.” (Corrêa, 1997: 12).
O termo ‘medicalização’ também está referido à expansão do consumo de serviços,
produtos e equipamentos relacionados à prática da medicina. Ao lado destes aspectos,
Corrêa (1997) assinala que o termo diz respeito a uma redefinição de eventos, tais como
envelhecimento, diversos momentos da vida reprodutiva da mulher, comportamentos
‘desviantes’ – em termos médicos. Para Corrêa, esta redescrição tem um efeito circular,
tanto sobre o consumo de medicina quanto sobre a própria produção de conhecimentos
médicos. Além disto, essa apropriação discursiva é, ao mesmo tempo resultado e produtora
de uma normatização, propiciando a intervenção da medicina nos mais variados campos da
vida humana (Corrêa, 1997: 13).
Ao mesmo tempo em que estas mudanças podem trazer alívio e mesmo solução
para alguns problemas, são também produzidas novas configurações merecedoras de uma
reflexão. Dentre estas – como corolário direto da medicalização da gravidez e das novas
tecnologias reprodutivas – emerge uma transformação no status do feto na sociedade
ocidental contemporânea.
✼✼✼
Meu interesse no assunto surgiu em uma trajetória pouco linear. Ao longo de vários
anos de prática psicanalítica com crianças e adolescentes tive a atenção despertada pelo
fato de que meus pacientes mais gravemente perturbados tinham sido bebês prematuros. O
estudo sobre o desenvolvimento emocional de bebês, conjugado ao trabalho com crianças
pequenas, aproximaram-me de trabalhos acerca do psiquismo fetal. Os trabalhos de
Piontelli (1987; 1988; 1989; 1992; 1995) – utilizando ultra-som dinâmico – de observação
de fetos no útero, seguida de acompanhamento semanal destes bebês após o nascimento,
por um ano ou dois, em seu meio familiar, fomentaram minha curiosidade.
2
Em 1996 surgiu a possibilidade de observar o acompanhamento de bebês
prematuros, realizado semanalmente no ambulatório de Follow-up do Instituto Fernandes
Figueira. Nesta instituição tomei contato mais próximo com a gravidade do problema da
prematuridade e suas diversas conseqüências, e ensaiei um início de pesquisa que
rapidamente tornou claro o quanto me faltavam subsídios técnicos e teóricos. A percepção
desta insuficiência foi o que me conduziu ao mestrado do Instituto de Medicina Social da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Inicialmente pretendia desenvolver uma pesquisa de campo com mães de
prematuros. Contudo, ao longo dos estudos nos cursos da pós-graduação tornou-se evidente
que havia uma série de questões que antecediam, circundavam e situavam o problema da
prematuridade. Algumas leituras desempenharam um papel crucial para esta percepção,
entre as quais destacaria a discussão sobre o status do embrião em Novaes e Salem (1995)
e Salem (1997). A partir da discussão destes artigos com a Profa Jane Russo, minha
orientadora, surgiu a idéia de desenvolver um estudo sobre a questão do status do feto
como Pessoa que, entre outros aspectos, informa e configura a questão da prematuridade,
tema de meu interesse inicial. Como, porém – no dizer do poeta Antonio Machado – “ (...)
caminante, no hay camino, se hace camino al andar” ,1 diversas outras vertentes
fascinantes do assunto foram surgindo ao longo do estudo, e o objetivo inicial – uma
pesquisa de campo – foi adiado.
As novas vertentes surgiram a partir de trabalhos realizados ao longo do mestrado,
nos quais pude refletir acerca de uma série de debates contemporâneos envolvendo o papel
da tecnologia, tanto na prática médica quanto na construção da categoria Pessoa nos dias
atuais. Para o desenvolvimento desta última temática – a tecnologia e a noção de Pessoa na
sociedade ocidental contemporânea – que tornou-se meu ponto central de interesse,
destacaria as coletâneas Cyborgs and Citadels: Anthropological Interventions in Emerging
Sciences and Technologies, organizada por Downey e Dumit (1997) e Cyborg Babies:
From Techno-Sex to Techno-Tots, editada por Davis-Floyd e Dumit (1998). Concentrando
o foco na questão da construção do status do feto como Pessoa – mediada pela tecnologia,
baseei-me nos artigos de Mitchell (1994), Heriot (1996), Browner e Press (1996), Georges
(1996) e Mitchell e Georges (1998) que discutem – por diversos ângulos – a produção de
conhecimento confiável (authoritative knowledge) biomédico na gravidez, as formas de
construção da Pessoa e subjetividade fetais, e a reconfiguração da subjetividade da mulher
a partir da imagem tecnológica em medicina.
1
In: Campos de Castilla, Proverbios y cantares, XXIX.
3
Esta dissertação tem portanto como objetivo discutir a produção do status do feto
como Pessoa, mediada pela tecnologia – mais especificamente a do ultra-som obstétrico –,
a que transformações este movimento corresponde, com que estratégias vem se
estabelecendo este novo status e quais os desdobramentos produzidos por esta mudança.
Não se trata de ‘tomar partido’, em uma atitude tecnofílica ou tecnofóbica. O estudo
consiste, antes de tudo, em um mapeamento e uma reflexão crítica sobre a questão, visando
embasar um futuro trabalho de campo.
A perspectiva geral adotada neste trabalho alinha-se basicamente com o
pensamento de Michel Foucault, quando este insiste em que não há uma realidade
preexistente sujeita à investigação e aponta que o pesquisador deve buscar compreender o
campo das relações de força onde se constrói o objeto da pesquisa. Neste campo são
produzidos e articulados discursos e práticas dinâmicos que indicam estratégias. Esta
abordagem permite que a análise adquira um grau crescente de complexidade, conforme
assinala Rohden (2000: 8).
✼✼✼
Até o último quarto do século XX, na sociedade ocidental, ao se falar em ‘mãe’ era
possível pensar-se em duas categorias: a mãe social biológica e a mãe social substituta –
adotiva, cuidadora ou madrasta. A primeira fertilização humana in vitro que obteve sucesso
carreou consigo uma ruptura radical no conceito de ‘mãe’. Uma das pré-condições para que
fosse concebível o surgimento e desenvolvimento dessa tecnologia foi possivelmente um
processo que implicava a modificação do próprio conceito, em conseqüência de uma nova
demanda social da possibilidade de geração de bebês por via da tecnologia. Esta mudança
começara a ser construída, de forma mais concreta, através da ‘dessacralização’ e
‘cientifização’ da concepção, no século XVIII, quando da primeira experiência de
inseminação artificial em mamífero de que se tem registro.2 Este longo processo vem
desembocar, abreviando dois séculos, no final da década de 1970, nas novas tecnologias
reprodutivas para seres humanos nas quais, tanto a concepção quanto a maternidade e o
feto adquirem um caráter visível, ‘público’ e, freqüentemente, político (Heriot, 1996).3
2
Na década de 1770 Lazzaro Spallanzani, para provar que o orgasmo não era indispensável à concepção,
como se acreditava na época, produziu um experimento e obteve sucesso na inseminação artificial de uma
cadela da raça water spaniel, usando uma seringa para introduzir o esperma do cão na cadela (Laqueur, 1992:
161).
3
As fotos endoscópicas da fecundação de um óvulo e de um embrião em desenvolvimento, feitas pelo
fotógrafo sueco Lennard Nillson e publicadas na LIFE, com ampla repercussão, no início da década de 1990,
corroboram de forma clara esta tendência.
4
O desenvolvimento de novas tecnologias reprodutivas em ritmo acelerado nas
últimas décadas, ao mesmo tempo que respondeu a um novo tipo de demanda – poder
decidir ‘quando’ e ‘como’ ter filhos, construindo outra significação para esta escolha, não
mais uma ‘decorrência natural’ do casamento – acarretou modificações qualitativas de
grande monta, do ponto de vista social, na medida em que foram (e vêm sendo) produzidos
novos conceitos e paradigmas. Os laços de parentesco necessitam ser reconstruídos e resignificados, sendo para isto geradas novas estratégias na sociedade para dar conta das
reconfigurações produzidas a partir da reprodução assistida (Cussins, 1998). Além das
mudanças no status da mãe, agora com três categorias possíveis – genética, gestacional e
social, em arranjos variáveis – o embrião e o próprio feto também vêm passando por
modificações em seus respectivos status.
Abriu-se a possibilidade da maternidade/paternidade a mulheres e homens que não
conseguiam gerar filhos, e a noção de ‘fertilidade’ de um casal precisou ser revista, assim
como a própria noção de ‘casal’ como condição sine qua non para a geração de bebês.
Conforme assinalado por Strathern (1995), as novas tecnologias reprodutivas, ao
dissociarem a procriação do sexo (a pílula anticoncepcional já desvinculara de forma eficaz
o sexo da procriação), desassociam também o sexo da maternidade e reconfiguram as
relações de gênero na prática procriativa (Strathern, 1995: 303-4). Corrêa (1997) aponta
que, da mesma forma que as novas tecnologias reprodutivas modificam a maneira de se
lidar socialmente com a infertilidade – passando das soluções tradicionais, estritamente
sociais (adoção) para soluções médicas – cria-se concomitantemente a possibilidade de
realização de um ideal de continuidade gerando uma descendência sem estar vinculada à
vida sexual dos indivíduos (Corrêa, 1997: 187, 207). Essa autora observa ainda que, além
deste aspecto, as novas tecnologias reprodutivas – pela forma como são divulgadas pela
mídia – colocam em questão
“ (...) o conteúdo de certas categorias médicas até então indiscutíveis, como
tratamento, patologia, síndromes (...) que ficam ameaçadas de uma possível
desestabilização.” (Corrêa, 1997: 130).4
Além da medicalização da reprodução, a da gravidez e do próprio feto ascenderam a
proporções consideráveis. A fertilização in vitro trouxe para a cena da concepção parceiros
4
A rigor, outros procedimentos médicos também colocam em xeque estas categorias como, por exemplo, as
cirurgias plásticas de ordem estritamente estética ou para ocultamento da identidade de criminosos ou
espiões, tratamentos de obesidade não-mórbida, entre outros. Contudo, estes procedimentos médicos não são
divulgados pela mídia como ‘milagres’ produzidos pela medicina em favor da felicidade dos indivíduos –
forma como são referidas as novas tecnologias reprodutivas. Para uma ampla discussão sobre a apropriação
sensacionalista da mídia sobre a reprodução assistida, ver Corrêa (1997: 119-157).
5
inteiramente inéditos nesta situação: médicos, técnicos de laboratório, aparelhos de toda
ordem.5 Tanto a mãe quanto o embrião passam a ser vistos de uma forma diferente do que
até então, assim como surgem problemas e situações jamais imaginados, ou apenas
esboçados na literatura de ficção científica. Refiro-me a polêmicas tais como, por exemplo,
o destino a ser dado aos embriões excedentes congelados – quanto tempo mantê-los em
‘animação suspensa’, em que situações – e se – efetuar o descarte destes embriões, a
possibilidade de utilizá-los como material de pesquisa. Emerge neste processo outra
discussão, impensável até o surgimento das novas tecnologias reprodutivas: qual a posição
hierárquica da mulher em relação ao embrião produzido nestas condições, quem detém o
poder decisório sobre seu destino – os técnicos, o pai, a mãe, a família? (Novaes & Salem,
1995; Salem, 1997).
As novas tecnologias reprodutivas trouxeram em seu bojo, conforme assinalado
acima, entre outras questões, um redimensionamento da ‘infertilidade’. Na medida em que
esta começa a ser vista como uma questão ‘médica’, gera-se a expectativa de que seja
‘resolvida’ por meio da tecnologia. Franklin (1990) mostra como, ao se estabelecer a
conexão ‘infertilidade-desespero’ constrói-se uma narrativa épica dos feitos médicos
(Franklin, 1990: 204). Cabe notar também que nesta construção – que vincula a
impossibilidade de gerar filhos ao desespero – o feto adquire um caráter ‘messiânico’: só a
sua existência pode ‘salvar’ o casal desta situação.
Assim, é possível pensar que constrói-se, nos dias atuais, uma ‘sacralização’ do feto
e da vida, como assinala Duden (1993). Na realidade, esta questão não é de forma alguma
recente. A diferença em relação ao discurso religioso tradicional é que agora esta
sacralidade adquire um cunho ‘científico’. Cabe também indagar se o que está em jogo é a
sacralização da vida ou a da própria Ciência, capaz de produzir vida.
✼✼✼
A atenção dada especificamente ao feto – que vai passando a ser visto praticamente
como um ser destacado da mulher que o traz no útero –, fortemente apoiada na tecnologia
de imagem, tem conseqüências de várias ordens, entre as quais destacaria, como exemplo,
5
Cabe ressaltar que esta tecnologia é acessível apenas às camadas mais abastadas da população, dado seu alto
custo financeiro. Contudo, apesar de ter aplicação restrita, seu impacto social tem sido de amplo alcance,
através da grande divulgação, pela mídia, dos novos ‘feitos científicos’. Vale observar que há um filtro
cultural e os fracassos não são igualmente divulgados (Ricardo Ventura, em mesa-redonda no XXIV
Encontro Anual da Anpocs, comentou de forma irônica e precisa que “ ceticismo não vende notícia” ). A larga
difusão das ‘façanhas’ científicas contribui fortemente para reconfigurar uma série de questões, a serem
discutidas ao longo desta dissertação.
6
o surgimento da ‘medicina fetal’ como uma nova especialidade médica e os ‘direitos
fetais’, que em alguns estados dos Estados Unidos já são objeto de legislação própria. As
novas leis – e alguns projetos de lei – invertem a hierarquia mãe-feto, colocando o feto em
posição hierarquicamente superior àquela, do ponto de vista legal (Heriot, 1996: 182). O
feto é autonomizado e é-lhe atribuída uma existência ‘separada’ do corpo materno. ‘Poder
escolher’ ter um filho através de técnicas de reprodução assistida, sendo ou não parte de
um casal, parece ser, para a mulher, a outra face da contracepção – e ambos os aspectos,
corolários de um processo crescente de individualização. O feto passa a adquirir uma série
de novos significados, e estes podem ser mais alguns dos componentes geradores da
modificação hierárquica do status do feto em relação à mãe.
A inclusão do feto na categoria Pessoa implica um redimensionamento da categoria.
O processo de redefinição e reconfiguração desta é passível de provocar intensa resistência.
Esta situação pode esclarecer, ao menos parcialmente, a importância de se efetuar uma
modificação hierárquica, em alguns casos – poucos, porém indicativos de uma possível
tendência – a mãe tendo sua autonomia legalmente limitada ‘em benefício do feto’. Esta
inversão vem sendo assinalada, estudada e discutida por diversas autoras de enfoque
feminista (Heriot, 1996; Duden, 1993; Martin, 1992; Rapp, 1997, 1998, 1999).
Se considerarmos a extensão dos limites da Pessoa como correspondendo a uma
ampliação do controle dos corpos pelo bio-poder, é possível entender-se a grande força
que o movimento de inclusão do feto na categoria vem adquirindo.
✼✼✼
No decorrer do trabalho de situar a problemática do feto na sociedade
contemporânea foram-se revelando inúmeros aspectos, todos – sem exceção – interessantes
e merecedores de atenção e aprofundamento. Em virtude da exiguidade de tempo e da
amplitude dos vários temas que emergiram, fui obrigada a optar por, não apenas restringir o
número de questões a estudar, como também colocar um limite no grau de aprofundamento
de cada uma das questões abordadas. Cada opção sempre exclui o infinito, posto que
infinito menos um – a escolha – segue sendo infinito.
O caminho que optei por trilhar – uma contextualização histórica do surgimento do
feto como objeto de interesse social e médico, sob que formas esse interesse se revela e as
conseqüências daí decorrentes – implicitamente excluiu diversas outras questões
igualmente fascinantes, tais como: a discussão do papel da visualidade na construção do
olhar contemporâneo – médico ou leigo; o estudo semiótico das imagens fetais; as novas
7
tecnologias reprodutivas, que além de estarem estreitamente conectadas à valorização do
feto reconfiguram um sem-número de questões; a discussão bioética acerca das
intervenções sobre o feto, entre outras tantas. Oportunamente pretendo prosseguir
explorando esses temas.
O ponto de partida para localizar e construir o argumento desta dissertação consiste
em um estudo acerca da construção da maternidade como um valor, questão estreitamente
vinculada à construção social da criança e do bebê. A escolha do século XVIII como ponto
de partida deve-se, em parte, ao fato de que, devido à necessidade de restringir o escopo do
trabalho, não era possível retroceder indefinidamente. Obviamente, o que ocorre nessa
época tem sua configuração determinada em um processo histórico, construído ao longo
dos séculos precedentes. Por outra parte, esta escolha não é aleatória, se considerarmos o
século XVIII como consensualmente identificado com o início do que chamamos de
‘modernidade’. É calcada neste pressuposto que, por exemplo, conformei-me em não
incluir a Reforma de Lutero, no século XVI – questão que considero de vital importância
para a construção da modernidade – na discussão. Pelo mesmo motivo – a necessidade de
não me expandir demasiadamente – restringi-me a dados históricos referentes à Europa,
considerando que, na época em foco, este era o centro onde se geravam e de onde se
irradiavam as transformações do mundo ocidental – na política, na economia e nos
costumes.
Inicio – no capítulo 1 – com a discussão de um dos aspectos que, do meu ponto de
vista, está na base da construção das condições favoráveis para o surgimento da
maternidade como valor. Trata-se do alto índice de mortes de crianças na Europa no século
XVIII, e de que forma essa situação foi construída, compreendida e utilizada – tanto pelos
governantes quanto pelos pensadores da época. Para o desenvolvimento dessa questão
baseei-me em estudo de David Armstrong (1986) sobre a invenção das ‘taxas de
mortalidade infantil’, no qual o autor assinala que a partir da construção destas estatísticas
foi produzido um novo objeto de atenção médica e social – o bebê. Recorro ainda ao
historiador Edward Shorter (1977) que descreve com riqueza de detalhes a construção do
‘sentimento de infância’ nas diferentes classes sociais na Europa, estendendo e depurando
o argumento de Ariès (1978) – o de que o ‘sentimento de infância’ teria sido construído a
partir do século XVI, e que, como uma produção historicamente datada, não podia ser
simplisticamente tomado como ‘natural’ nem, muito menos, ‘universal’.
8
No capítulo 2, para discutir a construção da maternidade-valor é utilizado como
ponto de partida o livro polêmico de Elisabeth Badinter (1985), Um amor conquistado: o
mito do amor materno, articulado com as idéias de outros autores, como Michel Foucault
(1984, 1990, 1998a, 1998b, 1998c, 1999), Philippe Ariès (1978), Jacques Donzelot (1986),
Richard Sennett (1998), além de Edward Shorter (1977). Após um brevíssimo histórico da
mudança no ‘sentimento materno’ que se consolidou a partir do século XVIII, abordo e
discuto as estratégias erigidas e aplicadas para a construção do amor materno como um
valor, enfocando principalmente os discursos utilizados para tal fim. O significado dessas
estratégias é debatido e articulado aos novos status da mulher, da família e da criança na
sociedade. Por ser a maternidade-valor o ponto central de articulação dos diversos aspectos
abordados neste trabalho este é, também, o capítulo mais longo.
No capítulo 3 focalizo a emergência do bebê e do feto como entidades autônomas,
voltando à discussão de Armstrong sobre a construção e depuração das estatísticas de
mortalidade infantil que, articulados à medicalização do corpo da mulher e da gravidez,
juntamente com as mudanças na assistência ao parto, constróem na sociedade novos
objetos de atenção e intervenção – além do bebê, o bebê prematuro e, em seguida, o feto.
Para a explicitação das questões que, articuladas às estatísticas, concorrem para o
surgimento destes novos objetos, recorri aos estudos de Martensen (1998) e Shorter (1997).
O capítulo 4 consiste em uma revisão da literatura antropológica recente, produzida
na América do Norte e Europa, basicamente nos anos 90, acerca do papel da tecnologia de
imagem médica na construção do feto como Pessoa. Até o presente momento não encontrei
uma produção brasileira sobre o assunto, motivo pelo qual restringi-me à produção
estrangeira. Neste capítulo abordo brevemente o desenvolvimento de novas tecnologias
referentes à gravidez, e da tecnologia de imagem em medicina que, de forma acentuada nas
últimas décadas, vem mais e mais tornando os corpos (em especial o da mulher e seu útero)
transparentes e visualizáveis – e não apenas para a medicina. A visualidade, no século XX,
tem um papel de fundamental importância na construção da corporalidade, do
conhecimento confiável biomédico e também da noção de Pessoa. Além disto, é parte
crucial na transmissão do saber médico nas escolas de Medicina (Pinto, 1997). Dentre os
recursos de tecnologia de imagem médica, focalizo e discuto mais detalhadamente o ultrasom, que tem desempenhado um papel preponderante no processo de transformação do feto
9
em Pessoa. Este dispositivo tecnológico, que tornou o feto e seu desenvolvimento visíveis,
possibilitou também um sem-número de intervenções e desdobramentos. A forma como se
constitui todo este processo é o objeto central de interesse da dissertação.
No último capítulo, à guisa de conclusão, desenvolvo uma reflexão crítica sobre as
diversas questões que emergiram ao longo desta pesquisa. Ao lado disto, são levantadas
hipóteses que visam delinear horizontes para posterior aprofundamento em um trabalho de
campo, de cunho etnográfico. Em princípio, tenho como objetivo, em futuro próximo,
examinar e discutir como se constrói a Pessoa fetal, em unidades de imagem ultrasonográfica – privadas e públicas – no Rio de Janeiro.
10
Capítulo 1
A MORTE DE BEBÊS NO SÉCULO XVIII NA EUROPA
“ De fato, trata-se aqui apenas de militar por um
outro uso da história que não o de falar em seu nome
ou refugiar-se em suas dobras. Perguntar-lhe, enfim,
que somos, em vez de se debater inutilmente ainda
uma vez, para conseguir numa última gota de
profetismo ou para nela gravar, em letras filosóficas,
sentenças de indignação arrogante.”
(Jacques Donzelot, 1986: 14).
O século XVIII, na Europa, foi marcado, sob o ponto de vista político, pelo
movimento de formação do Estado moderno. Nesta constituição a mudança na arte de
governar desempenhava um papel fundamental, segundo Foucault:
“ (...) a razão do Estado, compreendida como um governo racional capaz de
aumentar o poderio do Estado de acordo consigo mesmo, pressupõe a
constituição de um certo tipo de conhecimento. (...) O conhecimento é
necessário: um conhecimento concreto, preciso e medido do poderio do
Estado. A arte de governar, característica da razão do Estado, está
intimamente associada ao desenvolvimento do que então se chamava
estatística ou aritmética política – ou seja, o conhecimento das forças
respectivas dos diferentes Estados. Um tal conhecimento era indispensável
ao governo correto.” (Foucault, 1990: 92) (Grifos originais).
O conceito de ‘população’ emerge da estatística, quando esta evidencia que a
população tem características e regularidade próprias, e produz efeitos econômicos
específicos através de seus deslocamentos e atividades (Foucault, 1998a: 288). O
surgimento do conceito está vinculado à nova arte de governar, na qual o poder do
soberano estende-se além do poder exclusivamente territorial, para também passar a
abranger ‘as coisas’ existentes em seu território (Foucault, 1998a: 282). O novo
conhecimento gerado permite assim uma extensão dos dispositivos de poder:
“ A velha potência de morte em que se simbolizava o soberano é agora,
cuidadosamente, recoberta pela administração dos corpos e pela gestão
calculista da vida (...) [Além do desenvolvimento de disciplinas diversas,
observa-se] aparecimento também, no terreno das práticas políticas e
observações econômicas, dos problemas de natalidade, longevidade, saúde
pública, habitação e migração (...) técnicas diversas e numerosas para
11
obterem a sujeição dos corpos e o controle das populações. Abre-se assim,
a era do bio-poder (...)” (Foucault, 1984: 131).
No início do século XIX, as mortes na Inglaterra eram registradas nas paróquias. Se
não fossem causadas por agente humano eram atribuídas à visita de Deus ou a causas
naturais. Com o surgimento do Registration Act de 1834, esta análise das mortes mudou
em dois sentidos. Primeiro, cada morte com sua causa tinha que ser registrada
publicamente. Em segundo lugar, a noção de uma causa patológica sob forma de doença
tomou o lugar das ‘causas naturais’. Em 1837, um espaço destinado a uma declaração de
aproximadamente dez palavras acerca da ‘causa de morte’ foi acrescentado aos itens de
sexo, idade e profissão, que já constavam anteriormente. David Armstrong (1986)
considera que esta nova prática no registro das mortes corresponde a uma extensão para o
domínio público da nova medicina patológica que emergira no final do século XVIII. A
morte não vinha mais de fora do corpo, mas da patologia interna, o que tornou possível a
substituição das ‘causas naturais’ de morte por causas patológicas (Armstrong, 1986: 212).
A criação de um registro público, estatal, de mortes com discriminação de idades,
sexo e profissão aponta para mais uma extensão do poder disciplinar, que se amplia através
do escrutínio dos detalhes e classificação minuciosa, não mais apenas das vidas e corpos,
mas também das mortes.
Quando as estatísticas – ou aritmética política – registram as mortes de bebês,
abrindo o campo para a construção do conceito de ‘mortalidade infantil’, o que ocorre já no
último quarto do século XIX, fica evidenciada e consolidada uma nova extensão de
controle dos corpos para as crianças e, mais especificamente, dos bebês. Essa extensão
articula-se a uma nova sensibilidade em relação à infância, sentimento que vinha sendo
construído desde o século XVI na Europa (Ariès, 1978: 61). Segundo Edward Shorter
(1977), esta mudança na visão e percepção da infância ocorreu de forma não homogênea –
houve diferenças significativas entre os países, e também entre as classes sociais em um
mesmo país. A transformação inicia-se nas classes mais abastadas – nobreza e alta
burguesia – e difunde-se lentamente para as classes populares, de forma que só no final do
século XIX e início do século XX pode-se considerar que há uma nova atitude consolidada
da sociedade em geral, no que tange à criança e ao bebê (Shorter, 1977: 168-204). A
comparação entre os países no que diz respeito a esta mudança revela que:
“ (...) [Os dados] efetivamente sugerem que uma diferença, freqüentemente
notada entre os países, na modernização da visão de mundo e na
percepção, surge também no domínio do afeto maternal: os anglo-saxões
iniciando (com a minha sugestão de que os americanos ‘nasceram
12
modernos’), os franceses colocando seu selo distintivo nacional sobre a
Grande Transformação, e a Europa Central – fora do perímetro da
mudança social – seguindo atrás, bem mais tarde.” (Shorter, 1977: 199).6
Em outras palavras, o mapa cronológico da transformação na sensibilidade acerca
da criança e do bebê segue pari passu o mapa da revolução burguesa, da consolidação do
absolutismo e da conseqüente modernização dos Estados na Europa do século XVIII.
Contudo, as modificações ocorridas na percepção e construção social da criança e do bebê
foram não apenas graduais como também profundamente heterogêneas, surgindo e
consolidando-se em diferentes épocas e de diferentes maneiras em cada país. Este fato pode
esclarecer, ao menos parcialmente, a disparidade verificada nas datas em que surgem – nos
diversos países – manifestações de preocupação acerca da morte de bebês e dos cuidados a
eles dispensados.
1.1) Mortes de bebês e mortalidade infantil
Foi somente a partir do 3o Relatório Anual do Registro Geral da Inglaterra, para o
ano de 1839 – publicado em 1841 – 7 que a nova lista de causas de mortes foi analisada por
idades e, mesmo assim, apenas em três grandes cidades e sem ênfase particular nas mortes
de bebês. Em 1857 foi feito um levantamento geral de mortes abaixo da idade de um ano, e
nos anos subsequentes houve a publicação anual de mortes de bebês com suas várias
causas. Entretanto, apenas em 1877 as mortes de bebês foram reportadas especificamente
como ‘taxas de mortalidade infantil’. Nesse ano, afirmou-se que a taxa de mortalidade
infantil relativa ao ano de 1875 fora de 158 por 1.000 bebês nascidos vivos. A partir desta
data as taxas anuais de mortalidade de bebês passaram a ser comparadas. Depois de 1877, a
construção desta nova estatística configura o surgimento de um novo objeto de interesse
social e médico (Armstrong, 1986: 212-213).
Armstrong chama a atenção para o fato de que os dados para computar taxas de
mortalidade infantil estavam disponíveis há muito e que, portanto, a criação de uma taxa
específica de mortalidade infantil indica, em primeiro lugar, a emergência de uma
consciência social destas mortes de bebês e, em seguida – de forma relevante – a
consolidação do reconhecimento social do bebê como uma entidade distinta. Shorter
corrobora esta visão por um outro ângulo: através da análise de sinais indicativos da
mudança que ocorre no sentimento materno ao longo do século XIX e que se consolida nas
6
As traduções dos textos em inglês e francês citados nesta dissertação são de minha autoria, salvo menção
expressa.
7
Os relatórios do Registro Geral sempre são referentes a dois anos antes. Portanto, o Registro de 1841 refere-
13
primeiras décadas do século XX (Shorter, 1977: 168-204).
A construção social do bebê implica diretamente a conservação deste, o que por sua
vez realimenta esta construção. O médico escocês Buchan diz: “ A medicina foi bem pouco
atenta à conservação de crianças, e isso por indiferença e desconhecimento da riqueza
potencial da infância (...)” (Buchan, 1775 apud Badinter, 1985: 81). A introdução da idéia
de “ riqueza potencial da infância” parece estar inserida no movimento, apontado por
Foucault, de consolidação do dispositivo de sexualidade em relação ao dispositivo de
aliança:
“ O primeiro momento [dessa consolidação] corresponderia à necessidade
de constituir uma ‘força de trabalho’ (portanto, nada de ‘despesa’ inútil,
nada de energia desperdiçada, todas as forças concentradas no trabalho) e
garantir sua reprodução (conjugalidade, fabricação regulada de filhos).
(...)” (Foucault, 1984: 107).
Em 1908 a importância atribuída à taxa de mortalidade infantil havia aumentado
significativamente. Armstrong assinala, contudo, que seria um equívoco concluir que foi a
preocupação pública que aumentou, considerando que a percepção e seu objeto são
mutuamente constitutivos. O ‘aumento da atenção pública’ dado à mortalidade infantil
relacionava-se à mudança na visão acerca da criança; essa modificação pode ser
identificada na nova análise de mortes de bebês que acompanhava a transformação mais
geral, do espaço físico em espaço social (Armstrong, 1986: 213). No século XIX a
mortalidade infantil era encarada basicamente como uma questão biológica. No século XX
esta visão gradualmente se modifica, passando a ser vista como um problema social:
‘falhas’ de higiene que demandam intervenções sociais.8 As linhas analíticas de habitação,
nutrição, higiene e pobreza trouxeram o doméstico do domínio privado para o público:
“ A relação entre mãe e bebê, tanto a fisiológica quanto a psicológica,
rapidamente tornaram-se entremeadas na rede de análises que reconstruiu
a vida doméstica e deu à maternidade e à maternagem um novo status e um
novo significado.” (Armstrong, 1986: 213).
Shorter aponta que um índice sólido na transformação da maternagem está no
abandono do uso do enfaixamento de crianças, o que passou a permitir um outro tipo de
interação mãe-bebê: “ (...) Liberar a criança das amarras de roupa branca significaria
liberá-la para interagir com uma nova mãe brincalhona. (...).” (Shorter, 1977: 197).9
se a 1839, 1845 a 1843, e assim sucessivamente (Armstrong, 1986: 230 n.1).
8
Este ponto será explicitado mais adiante.
9
Dr. Gilibert assim descreve a técnica de enfaixamento que o enfurecia: “ A ama estica o bebê sobre um
colchão de tábua ou palha e o envolve numa pequena camisola ou fralda de tecido grosseiro enrugado,
sobre o qual ela começa a enrolar as faixas.[Ela] prende os braços do bebê contra seu [dele] tórax, e passa
14
1.2) Amas-de-leite e mortalidade infantil
O recurso a amas mercenárias existia na Europa desde o século XIII, e difundiu-se
ao longo dos séculos a ponto de, no século XVIII, haver escassez de amas. O envio para
amas variou enormemente entre os países e classes sociais, mas tornou-se uma prática
social corrente, de toda maneira. Não há praticamente registro do que se passou entre os
séculos XIII e o XVIII. Os poucos disponíveis encontram-se esparsos em testemunhos
pessoais, memórias e diários. No século XVI, só mães aristocratas contratavam amas-deleite. Ao longo do século XVII o hábito se generalizou na burguesia e, no século XVIII, o
hábito de entregar recém-nascidos a amas-de-leite estava largamente difundido nas áreas
urbanas na França e em outros países da Europa, estendendo-se praticamente a todas as
classes sociais (Badinter, 1985: 67).
As camponesas amamentavam ou alimentavam à mão seus próprios bebês, e
mesmo assim porque não tinham dinheiro suficiente para pagar uma ama; além disto
aceitavam outros bebês para amamentar. Nas outras classes, os ganhos da mulher ou do
marido permitiam a contratação, e despachar bebês para amas tornou-se um sinal de status
elevado. Muitas mulheres pobres em área rural despachavam seus bebês para poderem
amamentar outros, ganhando mais. Shorter considera altamente significativo o fato de que
as trabalhadoras de fábrica nunca despachassem seus bebês ou pegassem outros para
amamentar, sugerindo que este grupo representaria a vanguarda da modernização.
Argumenta que o fato de manterem seus bebês consigo e cuidarem exclusivamente deles,
apesar da pobreza extrema, poderia ser devido a suas atitudes já serem ‘modernas’,
entendendo-se por ‘moderna’ a relação de privacidade da mãe com seu bebê, núcleo de
uma nova construção familiar. Neste sentido, as camponesas não poderiam ser
consideradas modernas, pois aceitavam outros bebês para amamentar (Shorter, 1977: 177).
Nos séculos XVII e XVIII, segundo F. Lebrun, a mortalidade de crianças até um
ano de idade nunca era menor que 25% dos nascidos vivos (Lebrun, 1976 apud Badinter,
1985: 137).10 Este índice variava em função da salubridade, do clima e do ambiente, além
a faixa abaixo de sua axilas, o que pressiona os braços firmemente no lugar (...) enrola com diversas voltas
a faixa até as nádegas, cada vez mais apertado, empurrando a fralda para entre as coxas do infante, e vai
embrulhando todas as dobras com as faixas mais largas (...) vai assim até os pés e, depois deste trabalho
‘perfeito’, cobre a cabeça do bebê com uma touca; um lenço recobre a touca e pende até as costas, sendo
fixado com alfinetes. Assim se faz o enfaixamento de bebês.” (Gilibert, 1772 apud Shorter, 1977: 197).
10
Na perspectiva de Armstrong: “ O ‘problema’ da mortalidade infantil não era [portanto] uma constante
histórica; ele não se escondia nos subterrâneos da sociedade à espera de ser descoberto por um público
esclarecido, mas sim foi inventado por uma análise que estabeleceu sua existência naquele exato momento e,
por extensão, no passado. É, portanto, apenas do ponto de vista do início do século XX que a mortalidade
infantil existiu antes do fim do século XIX.” (Armstrong, 1986: 214). Os dados estatísticos citados daqui por
diante, provenientes de Badinter (1985) e Shorter (1977), estão imbuídos deste ponto de vista.
15
do modo de alimentação das crianças, o que era feito basicamente de três maneiras:
aleitamento materno, aleitamento por amas (contratadas a domicílio – raramente – ou
morando no campo – o mais freqüente) e aleitamento por amas em asilos. Verificou-se que,
em regra, as crianças aleitadas pelas próprias mães morriam duas vezes menos do que as
confiadas a amas-de-leite (Badinter, 1985: 138).
A morte atingia, portanto, crianças de praticamente todos os estratos da sociedade.
As famílias mais abastadas contratavam amas-de-leite a domicílio, mas a maior parte das
amas residia no campo.11 Em estudo sobre a mortalidade infantil no subúrbio sul de Paris
entre 1774 e 1794, Paul Galliano apontou que 88% das crianças mortas em casas de amas
vinham das áreas mais abastadas da cidade. Os filhos dos camponeses remediados ou ricos
não eram entregues a amas (Galliano, 1966 apud Badinter, 1985: 71).
Não se pode considerar este dado como surpreendente, dado que as amas-de-leite
muitas vezes viviam em condições miseráveis e eram extremamente mal pagas. Tal
situação levava-as a aceitar um grande número de recém-nascidos para amamentar ao
mesmo tempo, o que reduzia consideravelmente as chances de sobrevivência dos bebês a
elas confiados. A pobreza extrema, imundície e penúria da habitação de uma ama são
assim descritas por uma comissão de abandonados, em 1841, e por Dr. Charles Monod, em
1872:
“ (...)‘as habitações de muitas amas são mal arejadas. Várias têm só um
cômodo, no qual estão juntos berços e arcas. Algumas têm apenas uma
cama com três bebês.’ E, numa casa típica de ama-de-leite em Nièvre, os
ocupantes freqüentemente despejavam sua água suja com dejetos no chão
dentro de casa, ‘incapazes de se darem ao trabalho de jogá-la fora dela.’ O
animais domésticos – porcos, cabras, bodes, carneiros e galináceos –
moravam junto com a família. A lareira ‘fornecia tanto calor quanto ar
frio’ posto que, para ventilar a fumaça, a porta tinha que inevitavelmente
ser deixada aberta, o que jogava correntes de ar frio mortais para o bebê.
Além de duas ou três camas enormes, havia vários berços suspensos como
redes indígenas, uns acima dos outros. Bem na porta ficava a pilha de
fertilizante, e os cantos e rachaduras da habitação eram vedados com palha
podre. Embaixo dos pés esguichava ‘uma espécie de água preta, esverdeada
e fétida’. Em outras palavras, exatamente um lugar para bebês.” (Shorter,
1977: 179).
Outro problema consistia na desatenção e negligência das amas, conforme descrito
por Dr. Jousset e publicado por Dr. Brochard em Mortalité des nourrissons [1866]:
“ Má habitação e imundície eram, afinal de contas, a regra geral para as
11
Em 1780 em Paris, para uma população de 800 a 900 mil habitantes, em 21 mil crianças nascidas, apenas
mil eram amamentadas pelas próprias mães; outras mil eram amamentadas por amas a domicílio, entre 2 e
3mil enviadas para amas perto de Paris e o restante era despachado para amas longe da cidade (Badinter,
1985: 68).
16
crianças pobres. O mais perigoso era a desatenção das amas. Há histórias
de horror acerca de negligência: ‘A ama estava bêbada e carregava a
criança de cabeça para baixo. Eu vi qual seria o destino daquela pobre e
inocente criatura. Designado, meses depois, pela comissão de polícia, para
investigar a morte daquele bebê que tinha chegado a Nogent tão robusto e
rosado, encontrei na choça que a mulher habitava uma pequena
personagem, com suas feições enrugadas, jogada sobre um colchão de
palha imundo e fedorento, sem lençóis. A pobre criança estava morta, de
fome e de miséria. Na ausência da ama, que tinha se estendido por toda a
manhã, os vizinhos tinham finalmente ficado tocados pelos gritos
lastimosos, que de repente pararam. Eles tiveram que arrombar a porta
para se certificarem que o bebê estava morto.’(...)” (Shorter, 1977: 179180).
Cabe observar que esses depoimentos já contêm uma visão escandalizada das
condições das crianças entregues aos cuidados das amas, o que indica dois aspectos:
primeiro, que nas classes pobres a indiferença parecia ser a norma e, segundo, que já havia
uma mudança na sensibilidade social acerca de bebês. No primeiro exemplo observa-se que
havia sido criada uma ‘comissão de abandonados’ para inspecionar as casas para onde estes
bebês eram enviados pelo governo, e o segundo exemplo consiste em um depoimento do
médico designado por uma comissão de polícia para investigar a morte de um bebê.
Os dados mais completos acerca de amas-de-leite vêm da França, onde a atividade
de despachar bebês tornou-se altamente organizada. Havia agências públicas e privadas
para envio de bebês.12 As famílias preferiam as agências privadas, numa proporção anual
de 12.000 para 2.000 ou 3.000 bebês enviados, respectivamente, pelas agências privadas e
oficiais (Shorter, 1977: 178). Os pais raramente visitavam os filhos.
As condições de transporte dos recém-nascidos faziam com que vários morressem
antes de chegar às mãos das amas. Badinter considera que a entrega de bebês a amas era
um infanticídio disfarçado, uma vez que o enorme número de acidentes e mortes de bebês
entregues a elas não impediam que as mesmas mães continuassem mandando seus bebês
para as mesmas amas (Badinter, 1985: 141).13
12
Algumas agências falsificavam as idades dos bebês das amas para fazer coincidir com a idade dos
‘candidatos’, o que Shorter considera uma questão de ‘desinformação médica’: na época acreditava-se que o
leite correspondia à idade do bebê (Shorter, 1977: 178). A afirmação de Shorter, contudo, baseia-se em uma
desinformação de sua parte: pesquisas recentes demonstram que a composição do leite da mãe efetivamente
varia à medida que seu bebê cresce.
13
Para mais dados acerca de infanticídio na Europa, ver Shorter (1977: 311 n.22). Para uma análise sobre
processos de infanticídio no Brasil no início do século XX, ver Rohden (2000: 161-189).
17
1.3) A mortalidade infantil e a transformação do sentimento materno
A literatura sobre criação de filhos e higiene infantil começa a ser avidamente
consumida pela burguesia a partir de 1815. Em meados do século XIX declinam os
internatos em relação ao século anterior (Ariès, 1962 apud Shorter, 1977: 192) e as mães
preocupam-se muito mais com a saúde dos bebês.
Nenhuma estatística pode ser vista como a ‘prova definitiva’ do sentimento
materno: este pode apenas ser inferido através das modificações no modo de agir. Shorter
considera que no início do século XX o processo de transformação na maternagem estava
praticamente completado. Mesmo assim, ainda havia locais onde vigorava a forma
tradicional de se lidar com crianças, geralmente no campo, o que para este autor é muito
mais um indicador de atrasos na modernização do que propriamente uma diferença
permanente entre os estilos de vida urbano e rural (Shorter, 1977: 196).
Para Armstrong a mortalidade infantil, no início do século XX, torna-se o ponto de
articulação entre o social, a vigilância dos novos esquemas de bem-estar (welfare), a
análise da vida doméstica e a higiene, assim como uma avaliação da maternidade
(Armstrong, 1986: 213-214). Seu ponto de vista caminha em paralelo com o de Shorter
que, em estudo sobre a transformação do sentimento materno desde o século XVIII,
evidencia a mudança da atitude geral da sociedade com as crianças, no século XX. Shorter
reforça seu argumento acerca desta transformação ampla apontando que, com o advento da
pasteurização e a produção de alimentos ‘cientificamente’ preparados, houve um
movimento renovado de abandono da amamentação. Contudo, nem por isso a mortalidade
infantil aumentou significativamente, o que indica uma melhoria geral no cuidado com os
bebês (Shorter, 1977: 188).14
O ponto que falta ser aprofundado, de acordo com Shorter, é a persistência de um
diferencial de classe nessas mudanças. Apesar de todos os protestos de médicos desde
meados do século XVIII, somente um século mais tarde a prática das classes populares
começaria a se modificar. Nas classes médias e superiores urbanas na França o
enfaixamento começou a declinar em torno da metade do século XVIII, o mesmo
ocorrendo nas cidades da província. Outros países além da França passaram pelo mesmo
processo de abolição das faixas, em diferentes tempos de implantação. A Inglaterra foi
14
No que tange à alimentação dos bebês, Shorter assinala as variações entre os países: na França, em 1920,
ainda havia cerca de 7% dos bebês legítimos despachados para amas. Em outros países havia dois padrões:
amamentação ao seio e por mamadeira (breast-feeding e hand-feeding), pela mãe. As mulheres na Inglaterra
e Estados Unidos saíram do mercado de trabalho para cuidar e amamentar os filhos, atitude sustentada por
valores sociais: a tradição da esposa dona-de-casa. Na Escandinávia e Alemanha do norte esta atitude era
estimulada pelo Estado. Na Holanda, Áustria e Alemanha do sul a mamadeira foi largamente utilizada no
18
bastante avançada neste sentido; na puritana Nova Inglaterra parece nunca ter existido o
enfaixamento, mas talvez isto seja apenas reflexo do vanguardismo inglês nesse aspecto.
Na Alemanha foi o contrário: há relatos de enfaixamento até os anos 1840, o mesmo tendo
ocorrido em Viena e Göttingen (Shorter, 1977: 199).15
1.4) Abandono de bebês e mortalidade infantil
O abandono de bebês era praticado em larga escala. Não se sabe qual era a
porcentagem de bebês legítimos entre os abandonados. Alguns estudiosos apresentam
como mínima no século XVIII, em Ardèche; um outro calcula a proporção de quatro
quintos nas proximidades de Limousin, na mesma época. Grosseiramente, algo em torno de
15% dos bebês abandonados no Hospital Geral de Paris em 1760 eram legítimos e, um
século depois, a proporção mantinha-se a mesma (Shorter, 1977: 173).
“ (...) Para se ter uma ordem de grandeza, retenha-se que em torno de
meados do século XIX, na França, aproximadamente 33.000 crianças eram
abandonadas a cada ano. Qualquer bebê abandonado de mais de um mês
de idade era considerado legítimo (usando a lógica de que mães solteiras
abandonariam seus bebês logo que possível), e fitinhas e notas presas às
roupas de alguns davam pistas suplementares – logo, as autoridades
dispunham de alguma base para desconfiar de seu status legítimo.
Poderíamos estimar que entre um décimo e um quarto de todos os bebês
achados eram legítimos. Isto significa que, num dado ano, talvez cinco mil
crianças seriam abandonadas por suas famílias.” (Shorter, 1977: 174).
O abandono de crianças em Paris era em média – entre 1773 e 1790 – de 5800 ao
ano, em um total de nascimentos que variava em torno de 20 a 25 000 bebês/ano (Lebrun,
1976 apud Badinter, 1985: 140). Embora as principais razões do abandono fossem de
ordem econômica e social, não era infreqüente o encontro de bebês abandonados com um
rico enxoval. Nos asilos, no último terço do século XVIII, as taxas de mortalidade até um
ano de vida eram altíssimas: 90% no asilo de Rouen, 84% em Paris, 50% em Marselha
(Badinter, 1985: 141).
O motivo principal de abandono consistia em uma pobreza desesperada: quando
aumentava o preço do trigo no século XVIII, o mesmo acontecia com o número de bebês
entre-guerras (Shorter, 1977: 189).
15
Mesmo que os adjetivos deste parágrafo possam, a meu ver, ser indicativos de um certo ufanismo anglosaxão por parte de Shorter, é interessante notar que, conforme aponta Ariès, o termo ‘bébé’ não existia ainda
na França no século XIX, tendo sido tomado por empréstimo do inglês ‘baby’ (Ariès, 1978: 45). Além deste
aspecto, vale sublinhar o paralelismo, já comentado acima, entre a modernização do comportamento em
relação aos bebês e a formação dos Estados absolutistas, acompanhando o surgimento do Indivíduo como
valor, na Europa. Aparentemente, a expansão do Individualismo, a modernização do Estado e a mudança no
tipo de atenção dispensada ao bebê seguem grosso modo a mesma seqüência: Inglaterra, França e Alemanha.
Este ponto será retomado mais adiante.
19
abandonados. Além disso, quanto mais alto o preço, maior a idade dos bebês, o que
indicava que os pais se livravam dos recém-nascidos e dos maiores também. Para outros
autores o motivo seria a indiferença. O estudo acerca do envio de bebês para amas-de-leite
mostra que a separação do bebê de sua mãe era uma prática sistemática de todas as classes,
pobres ou não (Shorter, 1977: 174).
Sabe-se bastante sobre a classe média e muito pouco sobre as classes pobres. Um
dos argumentos centrais desenvolvidos por Shorter é que a transformação no sentimento
materno não ocorreu de forma homogênea em toda a sociedade. Ele variou no tempo, de
acordo com a classe social. O início da transformação ocorre nas classes dominantes e só
muito lentamente estende-se às camadas mais pobres da população (Shorter, 1977: 168204). Tomando-se o abandono de bebês recém-nascidos como um indicador, apenas ao
longo dos anos 1860 surgem nas classes desfavorecidas sinais mais diretos de atenção às
crianças. Antes dessa época as melhorias existentes nos cuidados dispensados à infância
decorriam de iniciativas e ações do Estado. Estas ações consistiam em transferência dos
bebês para locais desconhecidos – de forma a impedir que as mães abandonassem os filhos
para o Estado prover e ao mesmo tempo continuassem a vê-los – ou na distribuição de
pequenos subsídios para mães solteiras que quisessem manter seus filhos junto a si.16
Os anos após 1860 marcam um ponto crítico na mudança de atitude na França,
refletida na diminuição acentuada nas taxas de abandono de crianças, o que pode ser em
parte devido à supressão da ‘roda’ no hospital de Rouen. Há também um aumento do
número de legitimações de bebês bastardos, outro indicador de mudança no sentimento
materno:
“ (...) A legitimação pode ser tanto um indicador de formação de lares
estáveis, quanto de sentimento materno. Mesmo assim, a necessidade de
estabelecer essas pequenas e ternas células emocionais nas quais a criança
ilegítima de alguém pudesse ser tomada e criada como as outras, indicava
definitivamente o amor da mãe por seu bebê.” (Shorter, 1977: 195).
Podemos dizer, em resumo, que as taxas de mortalidade infantil, ao mesmo tempo
em que foram sendo construídas, geraram também um novo imperativo: a sobrevivência
das crianças. Como a mortalidade maior verificava-se no primeiro ano de vida, este passou
a ser o foco das atenções no sentido de uma política para saná-la.
O Estado toma uma série de medidas no sentido de desestimular o abandono de
bebês, emerge na sociedade um novo sentimento materno e, estabelecendo a conexão da
16
Para mais exemplos destas medidas, ver Shorter (1977: 193). Para uma discussão sobre filantropia e seu
significado, ver Donzelot (1986: 68-89).
20
mortalidade infantil com o hábito difundido de envio das crianças recém-nascidas para
amas-de-leite, as atenções dirigem-se para as mães no intuito de fazê-las voltarem a
amamentar seus filhos.
21
Capítulo 2
A MULHER, O BEBÊ E A CONSTRUÇÃO DO AMOR MATERNO
COMO UM VALOR
“ – Procurem compreender – disse, e sua voz
causou-lhes um frêmito estranho na região do
diafragma. – Procurem compreender o que
significava ter uma mãe vivípara.
Novamente aquela palavra obscena. Mas,
dessa vez, nenhum deles pensou em sorrir.
– Procurem imaginar o que significava ‘viver
no seio da família’.
Eles tentaram imaginar; mas, evidentemente
sem nenhum êxito.
– E sabem o que era um ‘lar’?
Abanaram a cabeça.”
(Aldous Huxley, 1981: 43).17
✼
“ Não restava a Lenina senão afrontar, sem
socorro exterior, os horrores de Malpaís. Estes se
abateram sobre ela, abundantes e rápidos. O
espetáculo de duas mulheres moças dando o seio a
seus bebês fê-la corar e virar o rosto. Nunca tinha
visto, em toda sua vida, coisa tão indecente. E o que
tornava aquilo ainda pior era que, em vez de fechar
os olhos discretamente, Bernard se pôs a fazer
comentários francos sobre o revoltante espetáculo
vivíparo. (...)”
(Aldous Huxley, 1981: 105).
Nos anos 1760 – após a publicação do Émile [1762], de Rousseau – multiplicam-se
na França publicações que recomendam às mães que cuidem pessoalmente dos filhos e,
praticamente, ordenam-lhes que os amamentem. Segundo Badinter, estas publicações:
“ (...) impõem, à mulher, a obrigação de ser mãe antes de tudo, e engendram
o mito (...): o do instinto materno, ou do amor espontâneo de toda mãe pelo
filho.” (Badinter, 1985: 145).
Shorter frisa que as mães da sociedade tradicional não eram monstros.18 A
17
Brave New World foi publicado pela primeira vez em 1932.
O termo ‘tradicional’ é utilizado aqui no sentido dumontiano, referindo-se à sociedade holista, tradicional e
hierárquica, distinta da sociedade individualista, moderna e igualitária (Dumont, 1993).
18
22
indiferença materna ocorria em função de que circunstâncias materiais – e culturais –
subordinavam o bem-estar dos bebês a outras prioridades como, por exemplo, cuidar da
fazenda ou ajudar o marido na tecelagem. Shorter localiza a emergência do amor materno
no momento em que há uma reordenação das prioridades e as mães passam a colocar a
felicidade de seus bebês acima de tudo (Shorter, 1977: 169).
Badinter destaca em seu livro sobre a construção do amor materno que não pretende
dizer que as mães não possuíssem nenhum tipo de sentimento por seus filhos antes desta
época. O que passa a existir de novo é a exaltação do sentimento das mães pelos filhos
como um valor moral e social, sendo para tal fim transformado em ‘natural’ e “ favorável à
espécie e à sociedade” (Badinter, 1985: 146). A junção das palavras ‘amor’ e ‘materno’ –
associadas a uma valoração do conceito – indicam a promoção, tanto do sentimento,
quanto da mulher como mãe. Na família, o foco deslocava-se da autoridade para o amor, a
mãe passando a ocupar um lugar de maior importância, em detrimento do pai.
Este movimento parece inserir-se no aspecto mais amplo, descrito por Foucault, da
transição do regime punitivo para o regime disciplinar. Nesta transformação, o governo
passa a significar ação racional do Estado sobre a vida dos governados (Foucault, 1990:
92). A passagem gradual da autoridade paterna – na qual os pais tinham direitos sobre a
vida e a morte dos filhos – para a autoridade materna, agora responsável pela vigilância e
educação das crianças, corresponde ao movimento no qual:
“ [Instalam-se as disciplinas] (...) Diferentes da escravidão, pois não se
fundamentam numa relação de apropriação dos corpos; é até a elegância
da disciplina dispensar esta relação custosa e violenta obtendo efeitos de
utilidade pelo menos igualmente grandes (...)” (Foucault, 1999: 118).19
Em sua reflexão, Badinter aponta que:
“ Se outrora insistia-se tanto no valor da autoridade paterna, é que
importava antes de tudo formar súditos dóceis para Sua Majestade. Nesse
fim do século XVIII, o essencial, para alguns, é menos educar súditos dóceis
do que pessoas, simplesmente: produzir seres humanos que serão a riqueza
do Estado. (...)” (Badinter, 1985: 146).20
Nem a sociedade em geral, nem as mulheres em particular demonstravam grande
interesse pela criança, como Badinter explana exaustivamente na primeira parte de seu
livro. Este quadro coincide com a observação de Ariès de que o ‘sentimento de infância’ –
19
Sobre esta questão, ver também Donzelot (1986).
Apenas a título de curiosidade, vale notar que, embora esta descrição – como diversas outras ao longo do
livro Um amor conquistado: o mito do amor materno – e o próprio conceito de ‘discurso’ utilizado pela
autora sigam muito de perto o pensamento de Michel Foucault, em momento algum Elisabeth Badinter faz
referência a esse autor.
20
23
a consciência da particularidade infantil que a distinguia do adulto, que vinha sendo
construída desde o século XVI – não implicava necessariamente um sentimento de afeição
pela criança (Ariès, 1978: 156). Shorter complexifica a evolução do sentimento de infância
delineado por Ariès, apontando que nas classes populares essa modificação ocorreu em
época bem posterior – a partir do último quarto do século XVIII e, em alguns casos,
consideravelmente mais tarde. Esse autor amplia a questão levantada por Ariès,
comparando as diferenças no sentimento materno de acordo com a classe social, e como a
difusão das novas atitudes variou no tempo de acordo com o estrato social enfocado. Não
se trata apenas da questão dos maus-tratos dispensados à criança:
“ (...) Apesar da violência física ser abundante tanto nas grandes quanto nas
pequenas cidades, esta persiste até hoje e, em todo caso, não é um bom
indicador do inverso da afeição. (...)” (Shorter, 1977: 170).
O que está em jogo é todo um conjunto mais amplo de atitudes, que vai desde a
atenção dada à própria sobrevivência dos bebês, até sua alimentação e desenvolvimento,
passando pela preocupação com sua saúde e criação (aí incluída a educação).
Tendo como pano de fundo a ideologia iluminista e a produção de uma
racionalidade e de um discurso científico que a validavam, moralistas, administradores e
médicos desenvolvem um discurso sedutor de igualdade e felicidade para as mulheres:
sendo ‘boas mães’ adquiririam o direito à cidadania (Badinter, 1985: 147).21 No ideário
Iluminista, o Indivíduo emerge como um valor ‘universal’, e ‘todos os homens nascem
livres e iguais’. A religião começa a ser alvo de críticas por parte de alguns dos filósofos
iluministas, sendo vista por eles como obscurantista e retrógrada, as Ciências – e, em
particular, as Ciências da Natureza – emergindo como uma grande via alternativa de acesso
à ‘Verdade’. Um discurso, entretanto, só se torna de fato sedutor quando formula e
conjuga em si questões e tensões em pauta em determinada sociedade, em um dado
contexto histórico.
O pensamento iluminista, gerador desse discurso ‘sedutor’ para as mulheres,
emerge quando está se consolidando na Europa a passagem do feudalismo para o
absolutismo, com o surgimento do Estado moderno – o que implica uma transformação na
arte de governar, conforme mencionado anteriormente. Foucault assinala que, na passagem
da arte de governar do ‘governo do território’ para o ‘governo das coisas’, a família
representa um elemento central para o governo (Foucault, 1998a: 281). Esta mudança fica
21
Esta situação persiste até nossos dias, conforme aponta Petchesky em pesquisa desenvolvida pelo
IRRRAG: “ (...) [Para as mulheres de diversos países, a] maternidade torna-se a categoria abrangente que,
além de ordenar suas atividades econômicas, forma sua identidade social como cidadãs ou adultas.”
24
bem evidenciada nos autores que escreveram em oposição a Maquiavel. Em sua
argumentação, defendem e explicitam as principais transformações ocorridas de uma forma
de governar para a outra. Referindo-se à literatura anti-Maquiavel, reveladora dessa
transição, Foucault aponta que:
“ (...) O príncipe ‘maquiavélico’ é, por definição, único em seu principado e
está em posição de exterioridade, transcendência, enquanto que nesta
literatura o governante, as pessoas que governam, a prática de governo
são, por um lado práticas múltiplas, na medida em que muita gente pode
governar: o pai de família, o superior do convento, o pedagogo e o
professor em relação à criança e ao discípulo. Existem portanto muitos
governos, em relação aos quais o do príncipe governando seu estado é
apenas uma modalidade. Por outro lado, todos estes governos estão dentro
do Estado ou da sociedade. Portanto, pluralidade de formas de governo e
imanência das práticas de governo com relação ao Estado: multiplicidade
e imanência que se opõem radicalmente à singularidade transcendente do
príncipe de Maquiavel.” (Foucault, 1998a: 280) (Grifos acrescentados).
Torna-se evidente o papel estratégico da ‘mãe’, na expansão do poder e do controle
que tem na família um elemento-chave para a multiplicidade e imanência do poder.
No decorrer do processo de transformação de mentalidades e sensibilidades que vai
resultar na maternidade-valor – moral e social – são construídos diversos discursos, dentre
os quais Badinter destaca três: o discurso econômico – alarmante, dirigido aos homens
esclarecidos; o discurso filosófico – dirigido a ambos os sexos, e um discurso dirigido
especificamente às mulheres. Acrescento um quarto discurso, que perpassa e é
concomitante a todos os outros: o discurso da Ciência. Os três primeiros se superpõem ao
longo do tempo, reforçando-se mutuamente, mas há uma certa cronologia em seus
surgimentos, acompanhando a ordem acima exposta.
2.1) O discurso econômico: a conservação de crianças
O discurso econômico resulta de uma conceituação, pelos governantes, ao mesmo
tempo, da existência e da importância da população no sentido definido por Foucault:
“ (...) foi através do desenvolvimento desta ciência do governo [a estatística]
que se pôde isolar os problemas específicos da população; mas também se
pode dizer que foi graças ao isolamento deste nível de realidade, que
chamamos de economia, que o problema do governo pôde enfim ser
pensado, sistematizado e calculado fora do quadro jurídico da soberania.
(...)” (Foucault, 1998a: 288).
As primeiras pesquisas acerca desta questão, na França, surgem em meados do
século XVII, com o grande recenseamento pretendido por Colbert em 1663, e daí em diante
(Petchesky, 1998a: 20).
25
diversos censos foram realizados. A partir de então começa a se constituir uma
preocupação com a idéia de diminuição do números de habitantes no país,22 causando
alarme, chamando a atenção para a morte de crianças pequenas e também para o papel das
mães e amas-de-leite nesta mortalidade (Badinter, 1985: 151). Rousseau afirmou que a
Europa estava se despovoando porque “ (...) as mães já não queriam cumprir seu dever.”
(Rousseau apud Badinter 1985: 152).
A ênfase na conservação de crianças conduz à ampliação do ensino de técnicas
médicas de assistência ao parto pelo ministro fisiocrata Bertin que, na década de 1760,
solicita ao médico do rei – Joseph Raulin – a elaboração de uma obra dedicada às parteiras
da província, com tradução nos diversos dialetos falados nas regiões visadas.
Moheau, em 1778, aponta para o fato de que, em relação ao príncipe:
“ (...) seus súditos lhe são semelhantes (...) eles [os governantes] deveriam
pelo menos observar que o homem é ao mesmo tempo o último termo e o
instrumento de toda espécie de produto; e mesmo considerado apenas como
um ser que tem um preço, é o mais precioso tesouro de um soberano.”
(Moheau, 1778 apud Badinter, 1985: 153-4) (Grifo original).
A população – e junto com ela a criança – adquire um valor mercantil.
Relembrando Buchan, em 1775: “ A medicina foi bem pouco atenta à conservação das
crianças, e isso por indiferença e desconhecimento da riqueza potencial da infância (...)”
(Buchan, 1775 apud Badinter, 1985: 80-1) (Grifo acrescentado). A idéia de ‘riqueza
potencial da infância’ é um ponto de articulação do sentimento de infância, do
investimento no futuro e do bio-poder. A infância deve ser conhecida, valorizada,
disciplinada e cultivada porque nela residem o futuro e a riqueza da nação. O poder investe
na criança que, concomitantemente, o sustentará e ampliará.
Em meados do século XVIII, M. de Chamousset sugere que a eficácia em aumentar
a população reside na atenção à sobrevivência das crianças. Ao concluir que as que eram
abandonadas morriam mais facilmente, construiu um projeto visando transformar o que ele
chamava de ‘peso morto’ – as crianças que morriam “ antes que se pudesse extrair delas
alguma utilidade” – em força de produção rentável para a sociedade (Chamousset, 1756
apud Badinter, 1986: 156). Seu projeto incluía aleitamento artificial dos bebês
22
Colbert, em sua época, tomou várias medidas visando o incentivo ao repovoamento. Foi dada isenção de
impostos aos pais de família que conseguissem criar 10 filhos e concedidas facilidades fiscais aos rapazes que
se casassem até os 20 anos, no máximo (Badinter, 1985: 150). Estas medidas, entretanto, não foram
suficientes para resolver o problema da natalidade e do ‘despovoamento’ da França. O motivo do insucesso
destas medidas será discutido mais adiante.
26
abandonados e a exportação deles para povoar as colônias.23 Além disto, Chamousset
também sugeria o aproveitamento das crianças abandonadas na agricultura e na formação
de exércitos (Badinter, 1985: 156-160):
“ Crianças que não conhecem outra mãe senão a pátria (...) devem
pertencer a esta e ser empregadas da maneira que lhe seja mais útil: sem
pais, sem apoio além do que um sábio governo lhes proporciona, elas não
têm a que se apegar, e nada a perder. Poderia a própria morte parecer
temível a esses homens que nada parece prender à vida, e que se poderia
familiarizar desde cedo com o perigo, caso se lhes destinasse o serviço
como soldados?” (Chamousset, 1756 apud Badinter, 1985: 158-9).
Há neste processo, evidentemente, uma percepção da importância estratégica da
criança para o poder do Estado: ela vai gradualmente passando da condição de fardo ou
estorvo para a de um aumento potencial de força de produção, investimento lucrativo para
a nação.
Estes discursos populacionistas de economistas e filantropos dirigiam-se aos
homens, que não estavam diretamente ligados às crianças, e a premência em envolver as
mulheres neste projeto era evidente.24 No final do século XVIII surgem algumas
iniciativas, tanto do Estado quanto de particulares, em várias cidades, de ajuda a mães
necessitadas. 25
Badinter pontua que a urgência em envolver as mulheres gerou uma nova retórica,
mais gratificante e exaltante do que o discurso econômico alarmante. O novo discurso
calcava-se em valores – iluministas
– como igualdade, amor e felicidade e atingia
igualmente os homens e as mulheres (Badinter, 1985: 160).
23
Particularmente para a colônia americana de Louisiana, onde seu irmão investira todo o seu capital
(Donzelot, 1986: 16).
24
A medicina desempenharia um papel fundamental neste processo, conforme será discutido adiante.
25
Na Inglaterra, Thomas Robert Malthus, pastor anglicano e economista publicou em 1798 An Essay on the
Principle of Population, no qual advogava medidas opostas à assistência favorecendo a natalidade nas classes
populares. Sua tese era que a população crescia em uma progressão geométrica, enquanto a produção de
alimentos aumentava em uma progressão aritmética, daí concluindo que era necessário controlar a natalidade
para evitar a miséria decorrente desta desproporção. Os métodos preconizados por ele eram o da abstinência e
o da reeducação dos homens, que só deveriam constituir lar e ter filhos “ quando pudessem ter meios de
sustentá-los” (Malthus, 1972: 4220). O maltusianismo evoluiu e ultrapassou o campo demográfico,
adquirindo um sentido econômico, sobre o qual não cabe aqui um desenvolvimento. O que vale reter neste
ponto é o quanto, no final do século XVIII, na Europa, a questão da população estava em foco como um
problema a ser enfrentado, de uma forma ou de outra – estimulando ou contendo a expansão –, por
pensadores e governantes. Além deste aspecto cabe sublinhar que, tanto o estímulo à natalidade e
conservação de bebês, quanto a limitação do número de filhos apontam, por caminhos diversos, na direção de
uma valorização da criança.
27
2.2) O discurso dos valores iluministas: novos Indivíduos
O ideário iluminista enfatizava, além da liberdade e igualdade, a busca da felicidade
individual. A igualdade dizia mais respeito aos homens entre si, e as mulheres e as crianças
não pareciam estar incluídas explicitamente no projeto igualitário. Mesmo assim, este
acarretou um certo grau de homogeneização entre as três categorias. Com o relativo
declínio da autoridade paterna, mulheres e crianças adquiriram alguma autonomia.
A modificação da mentalidade em relação à criança, à família e, finalmente, à
mulher, é ilustrada por Badinter (1985) através de dois textos: o Contrato Social de
Rousseau, e a Enciclopédia.
Na Enciclopédia há uma visão de transição, parte ligada à tradição e parte ligada
aos novos valores. Pendendo para a tradição, havia a noção do poder paterno como tendo
origem natural e divina. Do lado dos novos valores emergentes, os enciclopedistas
consideravam que o poder paterno tinha limites e passavam a chamá-lo de poder parental,
aí incluindo, portanto, a mãe. O novo poder sobre a criança é fundado em sua ‘fraqueza’ –
posto que não pode zelar por si mesma – aliada à noção de que a criança tem uma
especificidade (Badinter, 1985: 162). Assim gera-se a idéia de que a criança deve ser
trabalhada, educada e aperfeiçoada.26 A autoridade dos pais é justificada pelo bem das
crianças, e a subsistência delas passa a ser mais importante para a sociedade do que criar
‘súditos dóceis’. As idades da criança demandam diferentes graus de autoridade paterna e
materna. Deste modo, na 1a idade a criança necessita de toda autoridade do pai e da mãe,
por ser totalmente incapaz de se cuidar sozinha, enquanto na puberdade já há alguma
autonomia, embora ainda precise ser dirigida por se tratar de um ser muito instável.
Finalmente, na idade adulta, a autoridade dos pais torna-se limitada, e os filhos devem
reconhecê-los como seus benfeitores e manifestar-lhes respeito e afeição. Para os
enciclopedistas, os pais tinham o direito de exigir a reverência e o afeto dos filhos. A
educação visava capacitá-los gradualmente para a autonomia. Segundo os enciclopedistas,
os pais tinham direitos em relação aos contratos matrimoniais de seus filhos adultos, de
modo que mesmo a autonomia destes era ainda relativa (Badinter, 1985: 163).
No Contrato Social, Rousseau vai mais além, delineando uma teoria totalmente
nova sobre a família; para ele, a família é a única sociedade natural, onde o laço entre pais
e filhos se mantém apenas enquanto os filhos precisam dos pais:
26
A construção desta noção de uma especificidade infantil, que devia ser trabalhada e burilada através de
uma forma educacional adequada às crianças, vinha sendo produzida desde o século XVII. O trabalho
desenvolvido por Jacqueline Pascal, em Port-Royal, é um exemplo cabal dessa nova pedagogia (Ariès, 1978:
140-2).
28
“ (...) logo que essa necessidade cessa, o laço natural se dissolve. Os filhos,
isentos da obediência que deviam ao pai, os pais, isentos dos cuidados que
deviam aos filhos, recobram todos igualmente a independência (...) se
continuam unidos, isso já não ocorre naturalmente, mas voluntariamente, e
a família em si só se mantém por convenção.” (Rousseau, 1762 apud
Badinter, 1985: 164) (Grifos originais).
Este é o ideário individualista do Iluminismo, exposto claramente por Rousseau. O
objetivo da educação dos filhos é a sua independência, a formação de indivíduos livres e
autônomos.27 Uma implicação apontada por Badinter no texto citado é que, quando
Rousseau diz que a família é a única sociedade natural, está implicitamente recusando a
legitimação da autoridade política do rei sobre seus súditos partindo do modelo da
autoridade do pai sobre os filhos; outra conseqüência importante deste texto é a noção da
família como uma sociedade provisória (Badinter, 1985: 164).
A nova conceituação de dissolubilidade da sociedade familiar emerge no contexto
da mudança que vinha ocorrendo na arte de governar. Enquanto esta se baseava no modelo
da família, a arte do governo encontrava-se ainda parcialmente bloqueada e sem ter sua
dimensão própria. Segundo Foucault:
“ (...) o problema do desbloqueio da arte de governar está em conexão com
a emergência do problema da população; trata-se de um processo sutil que,
quando reconstituído no detalhe, mostra que a ciência do governo, a
centralização da economia em outra coisa que não a família e o problema
da população estão ligados.” (Foucault, 1998a: 288).
Neste ponto intervinha a estatística que:
“ (...) vai revelar pouco a pouco que a população tem uma regularidade
própria (...) características próprias e que seus fenômenos são irredutíveis
aos da família (...) Permitindo quantificar os fenômenos próprios à
população revela uma especificidade irredutível ao pequeno quadro
familiar. A família como modelo de governo vai desaparecer. Em
compensação, o que se constitui neste momento é a família como elemento
no interior da população e como um instrumento fundamental.”
(Foucault, 1998a: 288) (Grifo acrescentado).
A nova família passava a ser um segmento privilegiado da população para a
obtenção de informações e, ao deixar de servir de modelo ao governo, trazia consigo um
desbloqueio na arte de governar.28 Esta passava então a agir diretamente sobre a população
através de campanhas e, indiretamente, através de técnicas que iriam permitir, por
exemplo, aumentar as taxas de natalidade ou influir em fluxos migratórios da população,
27
Vale assinalar de passagem o paradoxo de que cabe à família – com um formato predominantemente
hierárquico – a produção de indivíduos igualitários.
28
Para uma discussão aprofundada sobre o governo ‘pela família’, ver Donzelot (1986).
29
chamando a atenção para determinadas regiões (Foucault, 1998a: 289). O já mencionado
fracasso das campanhas populacionistas de Colbert, cem anos antes, pode ser
compreendido, portanto, pelo seguinte enfoque: para que as campanhas pudessem de fato
tornar-se eficazes foi necessária a consolidação tanto de uma mudança no interior da
família como no modelo de governo.
Rousseau advogava os cuidados às crianças como um dever moral, sem usar o
termo ‘instinto’, que seria utilizado mais tarde nas campanhas em prol da amamentação.
Mesmo em sua descrição do hipotético ‘estado de natureza’, os cuidados aos filhos
decorreriam de uma necessidade física da mãe, e só depois ela se apegaria àqueles. A mãe
amamentaria seu bebê para livrar-se do leite que a incomodava e apenas a partir de então se
desenvolveriam laços de ternura em relação à criança. Rousseau, que pode ser considerado
como o porta-voz na França da idéias de Locke sobre a infância (Menuret de Chambaud,
1786 apud Shorter, 1977: 183), começou a ser bem aceito e difundido. Entre essas idéias
havia a de se dar maior liberdade às crianças, libertando-as das faixas, e um cuidado maior
com a alimentação, banindo a ‘pap’: 29
“ (...) O que é de especial interesse aqui é a associação entre amamentação
materna e uma preocupação renovada pelo bem-estar da criança como um
todo, evidência de que amamentar era parte de um conjunto maior de
atitudes em relação à criança. (...)” (Shorter, 1977: 183).
Para Rousseau, no “ estado natural” não há a noção de paternidade: só no “ estado
social” os homens desempenham uma função paterna – a autoridade que acompanha a
proteção do filho (Badinter, 1985: 166). Shorter concorda que o Émile [1762], de
Rousseau, pode ser tido como um marco útil na história intelectual, mas discorda da
posição difundida de que o livro é que teria sido o iniciador do movimento em favor da
amamentação. Segundo Shorter, estas idéias já vinham circulando e, em 1760, elas já
estavam bem encaminhadas, ao menos na classe média inglesa (Shorter, 1977: 182). Na
França o costume de enviar bebês para amas-de-leite persistiu disseminado na população
até o início do século XIX.
Rousseau vai muito além dos enciclopedistas em sua postulação de que os laços
entre pais e filhos podem ser rompidos após o crescimento destes, parecendo levar às
últimas conseqüências a noção de Indivíduo, livre e autônomo. A possibilidade de ruptura
de laços de sangue abre o campo para a criação de um outro tipo de laço – o do contrato
social, voluntária e livremente escolhido pelo novo Indivíduo. A manutenção do vínculo
29
Mistura cozida de água, farinha e açúcar, dado aos lactentes quando o leite da ama secava ou quando havia
muitos bebês para ela cuidar ao mesmo tempo (Shorter, 1977: 180).
30
familiar passa a se dar em outros termos, conforme expresso no Segundo Discurso:
“ Cada família torna-se mais unida na medida em que o apego recíproco e a
liberdade constituem seus únicos laços.” (Rousseau, 1755 apud Badinter,
1985: 168).
Evidencia-se mais uma mudança neste momento: a noção da família como o lugar
do afeto, correspondendo ao modelo de família nuclear que se consolidou na sociedade
ocidental moderna. O ‘sentimento de família’ vincula-se de forma estreita ao ‘sentimento
de infância’, que vinha sendo construído desde o século XVI. Erasmo afirmava, nessa
época, que as crianças uniam a família, e que tal sentimento de união baseava-se na
semelhança física entre os pais e seus filhos (Ariès, 1978: 223). O tratado de Erasmo sobre
o casamento foi reimpresso no século XVIII, provavelmente como, ao mesmo tempo,
forma de validação e de resposta a novas demandas resultantes da mudança na
mentalidade.30
No Contrato Social, quando Rousseau afirma que “ o homem nasce livre” , há nessa
afirmação uma equiparação de natureza entre pai e filho. A criança tem a sua condição de
Indivíduo parcialmente dada, por ser livre desde o nascimento. O papel dos pais na
educação é o de complementar a condição de Indivíduo, habilitando-o a tornar-se também
autônomo. Deste modo há uma acentuação no sentimento de infância, com a noção
simultânea de sua fragilidade específica e de seu potencial de desenvolvimento futuro.
A educação das meninas seguia uma lógica específica, diferente da dos meninos. A
visão de Rousseau a respeito da educação da mulher era de que ela deveria ser educada
para ser esposa e mãe. Outros autores também se pronunciaram a respeito. Montesquieu,
20 anos antes, denunciava a desigualdade existente entre homens e mulheres e enfatizava o
quanto a educação recebida pelas meninas era responsável por este estado de coisas.
Holbach estabeleceu a mesma conexão. Voltaire ficou a meio caminho entre as duas
posições, defendendo uma educação sólida para as meninas, mas com a finalidade precípua
de que se tornassem melhores esposas e mães.31 Condorcet foi o filósofo iluminista que
mais se empenhou em mostrar a igualdade natural e política entre homens e mulheres,
militando pelos direitos políticos das mulheres (direito de voto e elegibilidade para cargos
públicos). Para ele, os talentos femininos não se reduziam exclusivamente à maternidade;
30
Em nossos dias, a criança como elo de ligação e manutenção do casamento continua sendo um elemento de
grande importância para a elaboração do discurso da construção social da ‘infertilidade’. Sarah Franklin cita
como exemplo um artigo do The Times, de 9/4/83: “ Sarah Browne e seu marido estão ainda solidamente
juntos, apesar de seus dez abortamentos e sete operações. Outros são menos fortes, achando que não
conseguem permanecer unidos sem uma criança (...).” (Franklin, 1990: 213) (Grifos acrescentados).
31
Esse tema será retomado adiante.
31
parecia estar adiante de seu tempo, e ter a noção disto:
“ Tenho medo de me indispor com elas [mulheres] (...) falo de seus direitos à
igualdade e não de seu império; posso tornar-me suspeito de um desejo
secreto de diminuí-las e desde que Rousseau mereceu os seus sufrágios,
dizendo que elas só tinham sido feitas para cuidar de nós e não nos serviam
senão para nos atormentar, não devo esperar que se manifestem em meu
favor.” (Condorcet, 1791 apud Badinter, 1985: 172).
Aparentemente, para que a mulher ascendesse à condição de Indivíduo,32 seria
necessário passar antes pela produção de uma subjetividade bastante específica – apoiada
na maternidade como um valor. À época de Condorcet este processo apenas se iniciava, o
que pode esclarecer, ao menos em parte, o sucesso da literatura de Rousseau e o insucesso
da de Condorcet junto ao público feminino.
No final do século XVIII, tanto nas classes mais abastadas, quanto entre os
burgueses mais modestos, estavam em construção algumas mudanças nas relações entre
marido e mulher. Badinter atribui este fato a duas razões principais: o casamento ‘por
amor’, transformando a mulher em companheira querida, e uma nova valorização da
família e dos filhos, com os homens estimulando as mulheres a assumirem um papel mais
ativo em relação à prole (Badinter, 1985: 173). Este último fator, embora não tenha trazido
uma igualdade em termos políticos, forneceu a possibilidade de um lugar mais valorizado
para a mulher, e o discurso iluminista da busca da felicidade e da valorização do amor
reforçava esta relativa homogeneização entre os cônjuges e entre os pais e os filhos.
Segundo Voltaire: “ O grande interesse, o único que devemos ter, é vivermos felizes.”
33
(Voltaire apud Badinter, 1985: 173).
A religião gradualmente deixa de ser a única e exclusiva fonte de felicidade para os
indivíduos; esta também passa a poder ser alcançada através do amor entre duas pessoas. A
valorização da vida cotidiana vinha se construindo desde a Reforma protestante,
constituindo-se assim o início da idéia de uma continuidade entre a felicidade terrena e a
eterna (Figueiredo, 1992; Taylor, 1997). Mais do que apenas mais uma possibilidade, a
busca da felicidade adquiria o caráter de uma obrigação.34 A felicidade podia ser obtida
32
Refiro-me ao Indivíduo livre e autônomo definido por Dumont (1993).
Vale notar que o reforço nos sentimentos, a busca da felicidade e do amor – portanto o sentido de
interioridade e de subjetividade – contidos no discurso iluminista, reforçam a tese de que o romantismo não
teria surgido como uma oposição ao racionalismo iluminista, e sim emergido simultaneamente da mesma
fonte, apenas como um contraponto ao discurso exclusivamente racionalista: “ (...) o século dos espíritos
esclarecidos foi também o das almas sensíveis. Nesta medida as duas revoluções individualistas foram mais
simultâneas do que sucessivas.” (Figueiredo, 1992: 107), sendo as ‘almas sensíveis’, cabe observar,
geralmente identificadas com a mulher.
34
As discussões filosóficas e teológicas a este respeito atravessaram os séculos XVI, XVII e XVIII
(Figueiredo, 1992; Taylor, 1997).
33
32
com o cumprimento do dever cotidiano, no trabalho e na família.35
As atitudes dentro da família foram amplamente atingidas e modificadas por este
discurso do amor e da felicidade. Esta passava a ser realizada a dois – em primeiro lugar –
ao invés de ser uma questão do sujeito isolado, em contato espiritual com a divindade.
Essa transformação estava inserida no movimento mais geral de secularização da
sociedade, apontado por Weber (1999). A burguesia encontrava aí a realização do sonho de
ordem e harmonia, concretizado no âmbito familiar, que vai então se tornando, cada vez
mais, um espaço privado. Badinter chama a atenção para o fato de que, pela primeira vez,
uma modificação importante dos costumes não tem sua origem na aristocracia, e sim na
classe burguesa ascendente. Essa transformação implicava tanto a valoração do amor
conjugal como uma mudança na imagem da mulher e sua subsequente valorização
(Badinter, 1985: 175). A modificação nos costumes a partir de uma classe emergente
coaduna-se com a observação de Shorter acerca do fato de que outra classe emergente – a
das trabalhadoras de fábricas – conservava seus filhos consigo, apesar da pobreza extrema,
o que configuraria, para esse autor, uma atitude ‘moderna’ – valorização do vínculo mãefilho, privacidade e exclusividade nesta relação – e de vanguarda na formação da família
nuclear tal como a conhecemos hoje (Shorter, 1977: 177). Pode-se portanto afirmar, no
plural, que é das classes emergentes do processo de urbanização e industrialização da
Europa que se inicia o movimento de transformação da atitude materna e também a do
lugar da mulher e da prole, na família e na sociedade.
A família nuclear constrói uma barreira contra o mundo exterior, constitutiva do
sentimento de intimidade e de privacidade: em seu interior as pessoas podem ‘ser elas
mesmas’, dar total vazão às suas idiossincrasias. Esta modificação no caráter da família
está intrinsecamente ligada à mudança nas noções de ‘público’ e ‘privado’.
Introduzo neste ponto um autor que apresenta um argumento bastante interessante e
bem articulado acerca do redimensionamento das categorias ‘público’ e ‘privado’.36 Para
Richard Sennett (1998), a expansão da burguesia nos séculos XVII e XVIII na Europa,
aliada à criação de novos mercados na América, teve como conseqüência, entre outras, o
surgimento de uma classe com uma identidade não definida. De forma resumida, o
argumento de Sennett consiste em que o aumento de mobilidade das populações, em
35
Este discurso é, a meu ver, uma das técnicas indiretas do poder referidas por Foucault. Ao mesmo tempo
que institui e reforça a construção de subjetividade, revigora a produção – de produtos e de filhos. O tema da
felicidade em família será retomado adiante.
36
A contrapartida da construção e boa articulação interna de seu argumento é de que este é bastante
compacto, fechado em si, e difícil de concatenar com outros autores – exceto, talvez, com Foucault. Eis o
motivo pelo qual faço esta introdução tão formal do autor.
33
especial as migrações para as grandes cidades, em conexão com mudanças na hierarquia
dentro das (e também entre as) guildas profissionais, modificaram radicalmente a
possibilidade de criação de uma identidade de classe baseada na herança de um nome ou de
uma profissão, por exemplo. Desta maneira, surgia a necessidade de criação de novas
formas de definição de identidade, na medida em que teria havido uma reconfiguração das
antigas diferenças de classe, geradoras de identidade social:
“ (...) As quebras de status entre as gerações se tornaram mais freqüentes; a
possibilidade de herdar a posição sucumbiu à criação de posições tanto
inferiores quanto mais elevadas.” (Sennett, 1998: 82).
Ainda segundo Sennett,
“ (...) a capital do século XVIII era um lugar onde as pessoas faziam
grandes esforços para dar cor e definir suas relações com os estranhos; a
questão está em que tinham que fazer um esforço. As condições materiais
de vida na cidade enfraqueciam qualquer confiança que as pessoas
pudessem ter na rotulação ‘natural’, rotineira, dos outros segundo a
origem, os antecedentes familiares ou a ocupação. O esforço para dar cor
ao relacionamento com os outros, a tentativa de dar uma forma a esses
intercâmbios sociais eram esforços para criar um sentido convincente de
platéia (...).” (Sennett, 1998: 83) (Grifos acrescentados).
A separação do público e do privado torna-se então um dos eixos fundamentais para
a criação de novas regras de sociabilidade e de uma identidade de classe em novas bases.37
Assim, a família nuclear moderna – tornada representante por excelência do espaço privado
– emerge também como um núcleo definidor de identidade social.38
Um dos carros-chefes do Iluminismo era o retorno à Natureza. Segundo Sennett, a
oposição Natureza versus Cultura começa a se consolidar no século XVIII, principalmente
na Inglaterra e França, seguidas pelo norte da Itália e nordeste dos Estados Unidos. Quanto
mais se cristaliza esta oposição, através do contraste entre privado e público e da correlação
privado-natureza e público-cultura, mais a família passa a ser vista como o lugar onde o
‘natural’ poderia se manifestar livremente – em contraposição explícita ao ‘artificialismo’
imposto pelas relações sociais (Sennett, 1998: 118-119). Contudo, no século XVIII, a
37
Sennett aponta que uma das primeiras mudanças pode ser detectada nas regras suntuárias, que são
modificadas do século XVII para o XVIII, passando a existir uma diferença entre ‘roupas da rua’ e ‘roupas de
casa’, sendo estas últimas mais informais – indicando e reforçando o sentido de que em casa as pessoas
seriam mais ‘naturais’ (Sennett, 1998: 91). O corpo gradualmente adquire um novo significado, deixando de
ser um ‘manequim’ para a ostentação de uma posição social através da roupa. O vestuário vai passando a ter
mais relação com o corpo do que com a posição social do sujeito, e as roupas “ (...) na metade do século
XVIII também passariam a ser vistas como tendo algo a ver com a personalidade daquele ou daquela que as
usava.” (Sennett, 1998: 98). Este movimento corrobora a positividade do poder disciplinar, assinalada por
Foucault, no sentido de uma subjetivação cada vez maior dos indivíduos.
38
A questão do papel da família nuclear moderna será discutido por outros ângulos nos itens 2.3 e 2.4, neste
capítulo.
34
expressão pública e a expressão privada não estavam propriamente em contradição: “ O
público era uma criação humana; o privado era a condição humana.” (Sennett, 1998:
128).39 Estas oposições não se constituíam em uma relação hostil, sendo antes uma questão
de controle, equilíbrio e interação, o domínio privado modulando o público e vice-versa:
“ Se o vício da cultura era a injustiça, o vício da natureza era a rudeza.” (Sennett, 1998:
120). Os domínios público e privado evoluíram de forma complexa – e articulados entre si:
“ O princípio da ordem natural era um princípio de moderação: as
convenções sociais somente estavam sujeitas a controle quando produziam
extremos de angústia ou de sofrimento.” (Sennett, 1998: 129).
Para esse autor,
“ (...) Gradativamente a família passou a ser pensada como uma instituição
especial. A descoberta da família e, com ela, de uma situação social
alternativa para as ruas dependeu, por sua vez, de uma outra descoberta,
interior e demorada: a descoberta de um estágio especial e natural no ciclo
da vida humana – a infância –, que só poderia florescer no interior dos
limites da vida em família.(...)” (Sennett, 1998: 120).40
Uma das conseqüências da consolidação do sentimento de infância (Ariès, 1978)
consistiu em que a vida pública, no decorrer do século XVIII, passou a se limitar aos
adultos. Como exemplo: os jogos de azar foram considerados impróprios para as crianças e
as roupas destas adquiriram características específicas, não mais sendo cópia em menor
escala das roupas de adultos. A noção de especificidade infantil implicava, entre outras, a
idéia de que as ruas não eram o lugar adequado para a infância – era necessário separá-la
do mundo adulto, para que se desenvolvesse de acordo com suas características próprias
(Ariès, 1978: 133, 231).41 De acordo com Sennett, a partir do momento que a criança não
pertencia ao ‘público’, a família como lugar adequado à criança, “ assento da natureza” ,
passava a ser a resposta à questão de onde situá-la. A percepção da fragilidade da criança
produz a noção de que ela deve ser protegida, e por ser esta vulnerabilidade uma
decorrência da Natureza, a proteção dos pais passava a ser vista como um direito da
criança: “ as próprias fragilidades naturais lhe conferiam direitos contra a sociedade (...)”
(Sennett, 1998: 123-124). Além de ser preconizada uma atitude mais indulgente com as
39
Sennett aponta que, em época posterior, essa articulação seria modificada, cedendo lugar a uma ruptura
neste equilíbrio, com a ‘personalidade’ individual transformada em um princípio de organização social
(Sennett, 1998: 129, 160).
40
De um ponto de vista foucaultiano não se poderia falar em ‘descobertas’, e sim em construções, tanto no
que se refere à família, quanto no que diz respeito à noção da idade como elemento identificador de sujeitos e
ao conseqüente estabelecimento da infância como um período especial. Ressalvado esse aspecto, o raciocínio
de Sennett persiste sendo interessante para a construção do argumento geral deste trabalho.
41
A escola também desempenharia um papel de destaque na separação criança-adulto, na medida em que se
constituiu como um espaço separado e específico para a educação de crianças.
35
crianças, a participação dos pais – em especial da mãe – passa a ser requerida na criação
dos filhos, principalmente nos níveis médios da sociedade. Esta tarefa é tornada uma
obrigação ‘natural’ da família, que passa também a ser o local de ‘expressão natural’.
Constrói-se a idéia de que agir naturalmente implica simplicidade, e no bojo desta crença
aumenta o gosto por roupas simples e confortáveis dentro de casa.
Há uma certa concordância entre os diversos autores no que tange à questão de que
a família nuclear moderna torna-se um espaço privado por excelência. No entanto, há
discordâncias radicais quanto ao significado que este espaço privado teria para os atores
envolvidos. Como exemplo de dois dos recortes válidos, Foucault e Shorter. De acordo
com este último,
“ (...) A família nuclear era um ninho. Morna e protetora, mantinha as
crianças protegidas das pressões do mundo adulto exterior, e dava aos
homens um refúgio [noturno] diário das rajadas geladas da competição. E à
medida que a família nuclear surge no século XIX, as mulheres também
gostam, pois permite que elas se retirem da extorsão opressiva do trabalho
da fazenda, ou do trabalho no moinho, e se dediquem ao cuidado das
crianças. Portanto, todos aconchegavam-se alegremente dentro destas
paredes seguras, tranqüilos à mesa de jantar, unidos na saída dominical.”
(Shorter, 1977: 279).
Para Foucault, a família
“ (...) é o permutador da sexualidade com a aliança [dispositivo de aliança]:
transporta a lei e a dimensão do jurídico para o dispositivo de sexualidade;
e a economia do prazer e a intensidade das sensações para o regime da
aliança.” (Foucault, 1984: 103).
Nada mais diferente do “ ninho” morno, tranqüilo e protetor descrito por Shorter do
que a família segundo Foucault:
“ [Essa fixação do dispositivo de aliança e do de sexualidade possibilita que
se compreenda que] a família tenha se tornado, a partir do século XVIII,
lugar obrigatório de afetos, de sentimentos, de amor; que a sexualidade
tenha, como ponto privilegiado de eclosão, a família; que, por esta razão,
ela nasça ‘incestuosa’. (...)” (Foucault, 1984: 103).
A mulher, diretamente envolvida com a criação dos filhos, identificada com o
espaço doméstico e com o ‘natural’, vai gradualmente deixando de ser vista como a
criatura diabólica que deve ser contida e dominada, passando a ser idealizada como um
símbolo de doçura, suavidade e sensatez.42 O casamento adquire um novo significado – ao
invés de ser exclusivamente um arranjo de interesses econômicos, passa a ser uma relação
42
Este movimento chegaria ao seu apogeu com a estetização romântica da mulher, no século XIX (Andrade,
1990: 70).
36
amorosa onde os cônjuges têm liberdade de escolha.43 A liberdade de opção implica uma
melhor preparação das mulheres para o exercício de sua autonomia, mesmo que ainda
bastante relativa e restrita a um determinado espaço. Há uma ênfase na educação das filhas
em casa, “ (...) em condições bastante satisfatórias para que não tenham vontade de
escapar à sua situação a qualquer preço.” (Badinter, 1985: 177). Essa educação em casa
reforça a idéia da mulher como pertencente ao âmbito doméstico, todo seu
desenvolvimento e educação passando-se, portanto, no espaço privado e ‘natural’ da
família e voltados para sua formação como ‘esposa’ e ‘mãe’ – posição defendida
principalmente por Rousseau e Voltaire, entre os pensadores iluministas.
O casamento calcado na liberdade de escolha pode ser o lugar da felicidade, alegria
e ternura, cujo clímax é a procriação. Os pais amarão seus filhos e estes espontaneamente
retribuirão esse amor. A maternidade torna-se o elemento central dessa feliz articulação. O
máximo de felicidade que uma mulher pode alcançar é ‘ser mãe’, o centro em torno do qual
se constrói a harmonia familiar. A nova família tem na maternidade – portanto na díade
mãe-filho – seu núcleo articulador fundamental.
A mãe foi transformada em educadora, pedagoga, desempenhando um papel
proeminente na vigilância estrita dos filhos.44 A valorização deste papel, ao mesmo tempo
em que era construída, serviria também de suporte ao que Jacques Donzelot denominou
“ estratégia de familialização das camadas populares” (Donzelot, 1986: 42), que ocorreria
mais tarde, durante a segunda metade do século XIX. A mulher contaria neste processo
com um certo número de instrumentos e aliados: a instrução primária, higiene doméstica,
repouso dos domingos – repouso familiar – em oposição ao das segundas-feiras, ocupado
em bebedeiras na rua (Donzelot, 1986: 42). Esse autor sugere também que, na medida em
que nas classes populares – a grande massa da população – o dote das mulheres tornava-se
cada vez mais raro, quando não impossível, as campanhas em prol do casamento nas
classes trabalhadoras traziam em seu bojo uma revalorização do trabalho doméstico da
mulher, como um substituto ao dote. Essa situação gerou uma nova inflexão nas relações
entre homens e mulheres:
43
O amor no casamento como estratégia do bio-poder será discutido mais adiante neste capítulo, no decorrer
do item 2.4.
44
Donzelot (1986) demonstra que o status materno tem destinos diferentes e funções táticas diversas segundo
a classe social no qual está inserido. Para a mulher burguesa a revalorização das funções educativas
estabeleceu “ (...) uma nova continuidade entre suas atividades familiares e suas atividades sociais” , sendo
ao mesmo tempo “ suporte de uma transmissão do patrimônio no interior da família e instrumento de
irradiação cultural no exterior.” (Donzelot, 1986: 47) (Grifo original). Para a mulher do povo, o trabalho
tem uma natureza antagônica ao status materno, e “ (...) sua missão é, ao contrário [da mulher burguesa],
velar por uma retração social de seu marido e de seus filhos.” (Donzelot, 1986: 47) (Grifo original). Ela
deveria retirar seu marido dos bares e seus filhos das ruas.
37
“ (...) esta solução permitiria fazer com que a mulher controlasse o homem,
já que só forneceria os benefícios de sua atividade doméstica na medida em
que ele os merecesse. No lugar do contrato que ela [anteriormente]
estabelecia com ele e que lhe atribuía, com o dote, a possibilidade de uma
autonomia exterior, de um lugar na sociedade pela posse de um status, ela o
insere na dependência de um interior, que será seu domínio reservado, o
que poderá dar mas também retomar a qualquer momento (...) a mulher, a
mulher do lar, a mãe dedicada, é a salvação do homem, o instrumento
privilegiado da civilização da classe operária. Basta amoldá-la para este
fim, fornecer-lhe a instrução necessária, inculcar-lhe os elementos de uma
tática do devotamento, para que consiga abafar o espírito de independência
do operário.” (Donzelot, 1986: 38-9) (Grifos originais).
✼✼✼
No final do século XVIII aumenta a ênfase na amamentação dos filhos pela própria
mãe. O aleitamento materno, além de assegurar a sobrevivência da prole – agora tornada
preciosa, insubstituível – estimula a criação de laços de ternura entre mãe e filho. As
mudanças efetivas nos costumes e comportamentos, entretanto, ocorrem de forma mais
lenta:
“ A filosofia da felicidade e da igualdade desempenhava por certo um papel
nada desprezível na evolução dos espíritos, mas só atingia um público
limitado e parecia considerar assegurado o que estava para ser feito. Seu
discurso era mais sedutor na medida em que prometia e sugeria sem jamais
forçar. Ora, a sobrevivência das crianças tornara-se aos olhos da classe
dirigente um problema prioritário que os discursos mais ou menos lenitivos
sobre a felicidade e o amor não bastavam para resolver.” (Badinter, 1985:
180).
A produção da maternidade como um valor, a partir do século XVIII, é o ponto
central de articulação de diversas questões cruciais para a época. Destacaria em especial a
passagem do poder punitivo para o poder disciplinar, cuja a feição principal consiste na
classificação, esquadrinhamento e normatização dos seres, a par da constituição de
subjetividades e singularidades. Nessa passagem a mulher-mãe desempenha um papel
estratégico relevante, uma vez que em torno dela constituem-se a família e a prole
valorizadas, novos sujeitos – elementos fundamentais na rede de relações constitutiva do
próprio poder disciplinar. Neste contexto é construída a maternidade-valor, e seu sucesso
reside exatamente na eficácia em articular todos os elementos da rede. Esta eficácia é
também responsável pela manutenção, relativamente intocada até os dias atuais na
sociedade ocidental, da maternidade como um valor moral e social.
38
2.3) O discurso para as mulheres: a hierarquia
O discurso do Estado dirigido às mulheres, segundo Badinter (1985),
automaticamente torna-as interlocutoras privilegiadas, uma vez que faz parecer que delas
depende o sucesso – ou fracasso – das medidas propostas.45 Há uma elevação de status
quando são tornadas ‘responsáveis pela nação’:
“ Do cuidado das mulheres depende a primeira educação dos homens; das
mulheres dependem seus costumes (...) educar os homens quando jovens,
cuidar deles quando grandes, aconselhá-los, consolá-los (...) eis os deveres
das mulheres em todos os tempos.” (Rousseau, 1762 apud Badinter, 1985:
181).
Um misto de súplica e acusação surge neste discurso:
“ Se as mães refletissem sobre sua grande influência na sociedade, se
quisessem se persuadir disso, aproveitariam todas as ocasiões de se instruir
sobre os deveres que delas exigem seus filhos (...) graças a elas, os homens
passam bem ou adoecem; graças a elas os homens são úteis no mundo ou
se transformam em pestes na sociedade.” (Buchan, 1775 apud Badinter,
1985: 181) (Grifos acrescentados).
Esta construção da ‘nova’ mulher, da mesma forma que a família moderna, emerge
na convergência das questões filosóficas, políticas, econômicas e morais do Iluminismo.
Um constructo social como ‘a boa mãe’ leva muito tempo para se difundir, em grande
parte porque não ocorre sem resistência – tornada evidente pela produção da enorme gama
de argumentos, presente na literatura dirigida às mulheres desde meados do século XVIII.
Há concomitantemente uma valorização do papel da mulher na sociedade e uma
responsabilização delas pelos mal-estares e malfeitos dos homens. Este discurso traz
implícita a noção do que seria uma ‘boa mãe’.
Segundo Sennett,
“ (...) [A] ordem da natureza, no Iluminismo, era (...) um esquema
carregado de moralidade. A natureza estava ligada à descoberta, à
necessidade e ao direito à manutenção. (...)” (Sennett, 1998: 124).
A Natureza sendo alçada ao status de expressão da vontade divina, desobedecê-la
eqüivale a desobedecer a Deus.46 Se a Natureza dota as mulheres de seios e leite, sua
‘condição humana natural’ está ‘ordenando’ que amamentem seus bebês. Constrói-se assim
45
O sucesso ou fracasso das proposições deveu-se, a meu ver, muito mais à convergência dos fatores
mencionados anteriormente do que apenas à eficácia isolada do discurso dirigido às mulheres, embora este
fosse, sem sombra de dúvida, uma das técnicas mais eficientes dos dispositivos do poder.
46
No deísmo iluminista de Tindal – e antes dele, Locke – para se saber dos desígnios de Deus acerca dos
homens bastava examinar o “ Livro da Natureza” , onde as leis desta eqüivaliam à vontade de Deus. Para
compreender os desígnios da divindade bastava examinar a Natureza usando a razão – dada por Deus aos
homens (Taylor, 1997: 316).
39
a noção de que a mulher que não amamenta é ‘corrompida’, ‘desumana’, porque
desobedece à lei da Natureza – passando, por essa razão, a ser socialmente condenável. O
mito do ‘bom selvagem’ corrobora esta visão: as mulheres selvagens amamentam seus
filhos e não se separam nunca deles – muitos relatos de viagem fundamentam o mito
(Badinter, 1985: 184). A exaltação dos costumes selvagens sublinha o contraste com os da
sociedade européia da época. A mitificação da ‘boa mãe’ estende-se também para as
mulheres dos tempos antigos e bárbaros, através da comparação do tamanho dos túmulos
dos gauleses e dos romanos, que atestariam a robustez destes em contraposição aos
‘civilizados’. Esta comparação traz em seu bojo a noção de “ degradação da espécie
humana em nossa Europa corrompida e civilizada” (Prost de Royer, 1778 apud Badinter,
1985: 185) (Grifo acrescentado).
A semente da idéia de degeneração – que no século XIX adquiriria status científico
– já está presente neste ponto. À medida que os povos enriqueciam e se civilizavam, as
mulheres deixavam de querer amamentar seus filhos e assim a raça degenerava. Para a
nação tornar-se grande dependia-se fundamentalmente, portanto, da ‘boa vontade’ das
mães (Verdier-Heurtin, 1804 apud Badinter 1985: 185).
Na Natureza as fêmeas amamentam seus filhotes, de modo que a ‘mulher ideal’ –
‘natural’, privada e doméstica – se aproximava do animal. 47 A construção de tal conjunto
de características corrobora também a noção de que a educação das mulheres não deveria
mesmo ultrapassar um certo estágio.48 Se a Natureza é a norma, quem a contraria é
‘desnaturada’ e ‘anormal’. Um passo a mais e as mulheres que não amamentam são
‘desnaturadas’ – e as que o fazem passam a ser idealizadas. O problema é que “ a maioria
das mães não ouve a Natureza” (Prost de Royer, 1778 apud Badinter, 1985: 191); se os
argumentos da Natureza não são suficientes, os discursos trazem também elogios,
promessas e ameaças.
O elogio da beleza e a idealização da lactante surgem juntamente com as promessas
do reconhecimento e amor filiais, além do “ apego sólido e constante do marido” em troca
do sacrifício da mulher (Rousseau, 1762 apud Badinter, 1985: 194). O médico Gilibert, em
1770, em sua Dissertation sur la dépopulation, após descrever os sacrifícios de uma mãe
desvelada – noites sem dormir, cuidados incessantes voltados ao filho e que ocupam todo o
47
Ou vice-versa. Sobre a importância atribuída à amamentação como configuradora de uma série de outras
noções, ver o interessante artigo de Schiebinger (1998) sobre a construção da categoria ‘mamíferos’ na
taxonomia zoológica de Lineu.
48
Médicos e moralistas, assim como vários filósofos iluministas compartilhavam deste ponto de vista, a
começar por Rousseau.
40
seu tempo disponível – considera que, em realidade:
“ Essas mães encontram prazer indefinível em tudo que lhes parecia
desagradável quando moças; fazem com alegria o que então lhes provocava
repulsa.” (Gilibert, 1770 apud Badinter, 1985: 193).
Há um preço para a mulher ascender a um status, mesmo que relativo, de Indivíduo.
Do ponto de vista da liberdade política e social seu espaço é restrito; no interior da família
nuclear, entretanto, tem uma maior liberdade e seu papel é fundamental.49 A interioridade e
subjetividade assim construídas colocam-na – ao menos dentro de casa – em posição de
relativa igualdade com o homem. Rohden (2000) assinala, entretanto, que
“ (...) em contraste com os ideais da Revolução Francesa de igualdade e
liberdade, a mulher continuava definida pela diferença. A idéia de natureza
feminina colocava barreiras imponderáveis na representação de seus
papéis sociais.” (Rohden, 2000: 5).
Gera-se uma tensão: o surgimento da nova família, que tem na mulher-mãe o
principal elemento articulador, estava profundamente comprometido com a ascensão da
burguesia industrial, com o desenvolvimento da ideologia protestante e com a reação aos
costumes da aristocracia. Neste sentido, verifica-se uma modulação dentro da família
nuclear: comprometida com os ideais de democracia da Revolução e também com a
tradição – a igualdade vigora como um valor dominante, porém sem ultrapassar as
diferenças entre homens e mulheres. Mantém-se, portanto, a hierarquia entre eles (Rohden,
2000: 5 n.15).
No que tange à procriação, em refutação às teorias até então em vigor, que
consideravam a mulher como secundária na reprodução (Badinter, 1985: 31), no século
XVIII a mãe passa a ser colocada quase em situação de igualdade procriadora com o
homem por Legouvé, mas mesmo assim cabe ao homem “ o impulso primeiro” (Legouvé,
1848 apud Badinter, 1985: 195). No início do século XX, Paul Combes, em seu Livre de
la mère, declara que “ pela maternidade, podemos quase dizer que toda mulher colabora
na obra da criação.” (Combes apud Badinter, 1985: 195) (Grifo acrescentado).50
Segundo Badinter, o argumento final, tanto dos moralistas quanto dos médicos, é
que não amamentar os filhos é antieconômico, pois estes, ao voltarem da casa das amas –
quando voltam – vêm doentes, fracos, desnutridos e vão aumentar as despesas do casal
49
Para a mulher este status parece ser relativo na medida em que reflete-se em uma autonomia restrita ao
âmbito familiar. Em muitos países esta situação persiste inalterada até hoje, conforme foi apontado em
pesquisa do IRRRAG por Petchesky: “ (...) Para muitas [mulheres] a maternidade é o campo onde
experimentam a única gratificação real e o único senso de autoridade que conhecem.” (Petchesky, 1998a:
20).
50
Acerca da construção social dos papéis do homem e da mulher na procriação ao longo da História, ver
41
com os cuidados que inspirarão (Badinter, 1985: 195). Este argumento envolve a extensão
do controle dos corpos e do bio-poder, em última instância. É absolutamente essencial que
todos – inclusive a mulher – participem da rede de relações que constitui corpos e
indivíduos saudáveis e produtivos. Não fazê-lo significa colocar-se em rota de colisão com
a sociedade e com a rede de relações constitutiva do bio-poder. Fora desta articulação não
há inserção social, interioridade ou subjetividade possíveis para a mulher.
O discurso adquire um tom ameaçador, e a ameaça principal à mulher consiste na
ruína da sua saúde. O leite sonegado aos filhos, retido no organismo da mãe, pode se
espalhar pelo seu corpo todo e causar “ males diversos” (Raulin, 1758 apud Badinter,
1985: 196). Até o final do século XIX as ‘metástases lácteas’ assustam. Podem causar “ (...)
epistaxes, hemoptises, diarréias mais ou menos rebeldes, suores (...)” (Dr. Brochard em De
l’amour maternel, 1872 apud Badinter, 1985: 197).
Este argumento apresenta uma característica anacrônica interessante, que é a de
lançar mão de concepções arcaicas em prol de um argumento moderno. A concepção de
intercambiabilidade de fluidos corporais, de acordo com Laqueur (1992), é derivada do
modelo grego de ‘um sexo e dois gêneros’, que perdurara durante aproximadamente dois
mil anos. Neste modelo, havia apenas um sexo – o masculino – do qual a mulher seria o
elemento invertido, uma versão imperfeita do homem. Há uma noção de hierarquia, em que
o homem, por ser a versão perfeita, é superior à mulher. Neste modelo, os líquidos
corporais são considerados como intercambiáveis, com graus diferentes de pureza. Por
exemplo, o sêmen seria o resultado da purificação do sangue causada pela fricção do órgão
sexual masculino, o sangue menstrual seria a demonstração da incapacidade da mulher em
purificá-lo, por falta de ‘calor’ vital (Laqueur, 1992: 35). O anacronismo consiste no uso
deste argumento arcaico, ameaçador para as mulheres, em um momento no qual o modelo
de ‘um sexo, dois gêneros’ já havia se modificado para o de ‘dois sexos’, com um abismo
intransponível entre eles. O modelo ‘dois sexos, dois gêneros’ emerge em meados do
século XVIII, na Europa, e no século XIX já estava bastante consolidado na sociedade e na
Medicina. É bastante paradoxal, portanto, que um argumento arcaico, de cunho
hierárquico, fosse utilizado em prol de um movimento moderno, típico da sociedade
individualista igualitária que emergia na época – movimento de estímulo ao aleitamento,
privacidade e estreitamento do vínculo mãe-filho, base da família nuclear moderna.
Esta ameaça pode ser também compreendida em um outro registro: na nova
configuração social onde a família funciona como o núcleo articulador fundamental, a
Laqueur (1992) e Rohden (2000: 17-18).
42
mulher que não utiliza a sua produção – o leite – em favor da manutenção da rede de
relações que sustenta o poder sofrerá um castigo infligido pelo próprio produto que fabrica.
Com a ‘recusa’ da mãe em colocar seu leite em circulação social através do filho, seu
produto vai voltar-se contra ela própria, espalhar-se em seu corpo e causar-lhe doenças
variadas.51 Em outras palavras, o leite retido deve sair de alguma forma e, se não for dado
ao bebê, vai se transformar em outros fluidos menos valorizados – fezes, suores – ou
degradados e adoecidos: o sangue – transformado em epistaxes e hemoptises. O corpo da
mãe ‘desnaturada’ é, enlouquecidamente, ao mesmo tempo vítima e algoz. O ‘castigo’ é
dado pelo seu próprio corpo, e não mais por uma instância externa – Deus ou a própria
sociedade. O leite retido se transforma em algo maligno, que ameaça o tecido social por
romper a rede de relações onde ocupa uma posição de produto privilegiado de troca, na
medida em que é um elemento considerado primordial para o estabelecimento do vínculo
mãe-bebê. A mulher que se recusa a entrar na rede de relações de poder torna-se um ciclo
fechado em si mesmo e está condenada à doença e à solidão.52
O que, no século XVI, era uma condenação teológica contra as mães que não
amamentavam ou que o faziam de ‘forma voluptuosa’ transforma-se, a partir do século
XVIII, em condenação moral (Badinter, 1985: 197-8).53 A mulher passa a ocupar o lugar da
responsabilidade ‘total’ pela sobrevivência e saúde dos filhos, além da coesão familiar e,
em última instância, da ordem social. Vê-se, por um lado, a ameaça:
“ Mulheres, não espereis que eu estimule vossa conduta criminosa (...) Não
censuro vossos prazeres quando são livres (...) mas transformadas em
esposas e mães, deixai os adornos vãos, fugi dos prazeres enganosos: sereis
culpadas se não o fizerdes.” (Verdier-Heurtin, 1804 apud Badinter, 1985:
198). (Grifos acrescentados).
Por outro lado, há a exaltação que também define o lugar oferecido – e ocupado –
às mulheres na rede de relações sociais: “ Se as mulheres voltarem a ser mães, dentro em
pouco os homens voltarão a ser pais e maridos.” (Rousseau, 1762 apud Badinter, 1985:
199) e, consequentemente, “ O Estado será rico e poderoso.” (Prost de Royer, 1778 apud
Badinter 1985: 199).
51
Cabe notar o alinhamento estreito do discurso ‘médico’ ou, melhor dizendo, medicalizante, com o discurso
moral da época.
52
Recentemente em uma mini-série da TV Globo, “ A Muralha” , ambientada no século XVII no Brasil, uma
personagem feminina que tem um filho e não demonstra o menor interesse em cuidá-lo e amamentá-lo, finda
por entregar a criança ao pai e embrenha-se na mata. Aparentemente, até nossos dias mantém-se bem presente
esta representação de que a mulher que não quer criar o próprio filho está fadada ao isolamento.
53
No que tange à condenação moral da ‘forma voluptuosa’ de amamentar, divergindo de Badinter, Costa
(1979) assinala que a erotização do ato de amamentar, ao longo do século XIX, pode ser vista como uma
estratégia de normatização da sexualidade da mulher, conforme será discutido adiante.
43
2.4) O discurso da Ciência: famílias, mulheres, crianças e médicos
Até o século XVIII, na França e na Inglaterra, a medicina não tinha maior interesse
nas mulheres nem nas crianças.54 A saúde das mulheres e crianças era considerada pelos
médicos assunto “ de comadres” . Na formação do campo profissional médico, a
“ implantação direta do médico na molécula familiar” – envolvendo, portanto,
diretamente, o cuidado a mulheres e crianças – constituiu “ o melhor meio de sustar as
tentações dos charlatães e dos médicos não qualificados.” (Donzelot, 1986: 23). Em geral
as mulheres eram tratadas por mulheres, e eventualmente por homens que liam guias sobre
a saúde das mulheres, escritos por ‘homens’ – supunha-se que na realidade fossem
mulheres sob pseudônimo masculino. O conhecimento das parteiras situava-se em um
plano equivalente ao dos médicos de formação universitária (Martensen, 1998: 140).
Na Inglaterra, no século XVII, Thomas Willis publicou em 1664 um texto acerca do
cérebro e do sistema nervoso, que rompia com os paradigmas galênico e aristotélico a
respeito do corpo, postulando que o cérebro seria o órgão principal do corpo, comandando
todos os outros.55 Os elementos sólidos do cérebro (e não os ventrículos e o líquido que
neles circula) e os nervos eram as estruturas valorizadas por Willis, o que representava uma
ruptura considerável em relação ao pensamento de seus antecessores.56 Neste novo modelo,
relativamente assexuado, Willis fundou as bases de uma explicação que permitia defender
a origem neurológica de diversas condições mentais e corporais – normais e anormais – e,
nesta nova construção, o corpo feminino expandia-se para além do modelo anterior,
deslocando-se do ‘centro uterino’ anterior para um novo ‘corpo nervoso’. Estabeleceu-se
dessa forma um fundamento fisiológico para que as mulheres deixassem de ser vistas – ao
menos nos meios eruditos ingleses – como sendo básica e exclusivamente a expressão
direta de seus úteros. A possibilidade de que as vísceras, inclusive o útero, provocassem o
“ mal” não era excluída; a diferença devia-se a que Willis apresentava descobertas
anatômicas e clínicas que deslocavam o centro do mal – a ação situando-se em outro lugar.
54
Não pretendo afirmar que antes deste período inexistissem estudos e cuidados médicos dedicados às
mulheres. É possível encontrar-se referências na historiografia da ginecologia e obstetrícia – produzida por
médicos – que remontam ao Egito Antigo, Mesopotâmia e Índia. O ponto aqui em discussão refere-se ao
surgimento, tipo de ênfase e utilização – pelos médicos e pela sociedade – de uma medicina especificamente
voltada à mulher. A história dessa especialidade foge ao escopo deste trabalho. Acerca das primeiras origens
da ginecologia e obstetrícia, ver a revisão de Rohden (2000: 14).
55
Para Aristóteles o órgão principal era o coração, e para Galeno o corpo era comandado pelo triunvirato do
fígado, coração e cérebro (Martensen, 1998: 140).
56
Mesmo os autores que valorizavam o papel do cérebro no funcionamento corporal – como Hipócrates e
Platão – atribuíam mais importância aos ventrículos do que à massa cinzenta cerebral (Martensen, 1998:
141).
44
Emergia, portanto, uma outra possibilidade de compreensão e explicação das doenças.57 Na
Inglaterra iluminista, dominada por uma visão de mundo newtoniana, a teoria do “ corpo
neurocêntrico” foi adotada entusiasticamente por diversos “ doutores de nervos” , além ser
apoiada e ativamente patrocinada pela High Church 58 (Martensen, 1998: 142-8).
A teoria de Willis carreava consigo diversas implicações, dentre as quais a
desvalorização da atividade artesanal cotidiana da medicina, quando praticada por pessoas
não formadas em universidade. Willis considerava que os “ não formados” prescreviam
como “ pessoas que atiram a esmo” , uma prática de “ prestidigitadores, charlatães e
velhas” (Willis, 1675 apud Martensen, 1998: 161 n.82). Os defensores da nova posição
passaram a considerar que os costumes consagrados pelo uso e o conhecimento intuitivo
utilizados por todo tipo de curandeiras – incluindo-se as parteiras – não eram mais
suficientes para o tratamento das mulheres. A nova compreensão da fisiologia apresentava
a mulher como necessitada do aconselhamento dos médicos, não mais das curandeiras e
parteiras, e essa nova visão do corpo implicava uma investigação de corpo inteiro – de
corpos saudáveis e enfermos, vivos e mortos –,59 para a constituição de “ terapias
racionais” (Martensen, 1998: 152).
Com a invenção do fórceps obstétrico, em 1598, por Peter Chamberlen, em meados
do século XVII na Inglaterra formou-se um grupo de ‘chamberlenianos’, à margem tanto da
elite médica quanto das parteiras, e que competia cada vez mais com estas pela clientela
das classes altas.60 Houve reação por parte das parteiras que, desde o início do século XVII,
na Inglaterra, vinham tentando se organizar como uma atividade auto-regulada. Na época
da Restauração, com a volta do licenciamento episcopal para ofícios e profissões, os partos
ficaram sob o controle da Igreja. Elizabeth Cellier, na década de 1680, tentou estabelecer
uma universidade para parteiras, tendo fracassado em sua iniciativa por falta de apoio da
Coroa. No século XVIII foi criada, nas maternidades inglesas, instrução formal em
57
Aparentemente os dois modelos coexistiram até, pelo menos, o século XIX, como pode ser exemplificado
pela disputa, nesta época, entre ginecologistas, neurologistas e alienistas na definição e tratamento das
doenças. Conforme assinalado por Rohden, “ (...) para os primeiros todas as doenças das mulheres, incluindo
as perturbações da mente, teriam origem nos órgãos reprodutivos, [enquanto] para os alienistas e
neurologistas o mais importante eram as predisposições hereditárias e o sistema nervoso como sede das
desordens mentais.” (Rohden, 2000: 10).
58
Grupo conservador e ritualístico da Igreja Anglicana.
59
Durante o século XVII, na Inglaterra, a aristocracia apoiava a prática de autópsias. Há um relato de Willis
de 1667 acerca de descobertas efetuadas na autópsia de “ uma mulher nobre” , de outra “ mulher muito nobre”
e de uma criança pertencente à nobreza (Martensen, 1998: 146).
60
A invenção do fórceps possibilitou de forma relevante a entrada dos médicos – homens – no campo da
assistência ao parto. Os Chamberlen, uma dinastia de parteiros – masculinos – mantiveram durante longo
tempo sua invenção em segredo, e usavam-na sob um lençol. O fórceps veio a público cerca de 1730, e pouco
tempo depois foi aperfeiçoado por dois parteiros – William Smellie e André Levret – com resultados bastante
melhores do que a invenção original (Shorter, 1997: 84). Para detalhes sobre o assunto, ver a revisão de
45
anatomia e obstetrícia para parteiras – por iniciativas de médicos em busca de assistentes
capacitadas (Martensen, 1998: 152-3).
Martensen (1998) considera que, embora a teoria de Willis buscasse transformar
idéias fisiológicas estabelecidas há muito, que encaravam a mulher não-reprodutora –
regida por seu útero – como perigosa, instável e louca, pelo fato de esta teoria ser apoiada e
patrocinada pela High Church (sendo Willis mesmo um anglicano), findava por se tornar
um instrumento ‘científico’ que reforçava a moral conservadora anglicana. Em contraste
com os quackers que, na mesma época, conferiam às mulheres igualdade plena com os
homens, os anglicanos consideravam como virtudes específicas das mulheres – nesta
ordem de importância – a modéstia, a submissão, a compaixão, a amabilidade e a
religiosidade. Através da associação ‘mulher-natureza’ e ‘homem-cultura’, a atividade
masculina envolvia assumir parte da ‘naturalidade’ da mulher para cultivá-la (Martensen,
1998: 149).
Depreende-se desse argumento que, embora na nova teoria a mulher fosse
equiparada fisiologicamente ao homem, deveria estar submetida a ele para seu cultivo.
Contudo, mesmo a equiparação neurológica foi questionada. No decorrer dos séculos
XVIII e XIX diversos autores dedicaram-se a comprovar que havia diferenças anatômicas
significativas entre os cérebros masculinos e femininos, ‘determinando’ biologicamente
comportamentos diversos: por conta destas diferenças as mulheres teriam mais
desenvolvidas as “ faculdades afetivas” e os homens as “ faculdades intelectuais” , o
cérebro feminino “ anatomo-fisiologicamente (...) inferior ao do homem” (Costa, 1979:
235, 237, 260). Ou seja, após uma visão igualitária, apoiada na biologia, ressurgia a
hierarquia entre os gêneros baseada na diferença, lançando mão do mesmo tipo de
argumentos ‘científicos’.
De toda maneira, a nova teoria neurocêntrica de Willis abriu o caminho para a
construção de uma fusão que se consolidaria nos séculos XVIII e XIX: útero e nervos, ou
sexo e nervos. O conceito de “ histerização do corpo da mulher” , desenvolvido por
Foucault (1984), um dos componentes básicos do dispositivo de sexualidade, possibilita o
aprofundamento da análise da produção e dos desdobramentos desse processo de fusão
útero/nervos. A “ histerização do corpo da mulher” , para esse autor, consiste em:
“ (...) tríplice processo pelo qual o corpo da mulher foi analisado –
qualificado e desqualificado – como corpo integralmente saturado de
sexualidade; pelo qual este corpo foi integrado, sob o efeito de uma
patologia que lhe seria intrínseca, ao campo das práticas médicas; pelo
Rohden (2000: 20-21); ver também Shorter (1997: 69-102).
46
qual, enfim, foi posto em comunicação orgânica com o corpo social (cuja
fecundidade regulada deve assegurar), com o espaço familiar (do qual deve
ser elemento substancial e funcional) e com a vida das crianças (que produz
e deve garantir, através de uma responsabilidade biológico-moral que dura
todo o período da educação): a Mãe, com sua imagem em negativo que é a
‘mulher nervosa’, constitui a forma mais visível desta histerização.”
(Foucault, 1984: 99).
Um outro desdobramento indireto da teoria de Willis consistia em que, para ele, o
princípio último dos humanos era um “ esforço para alcançar um estado divino” , o que
não poderia ser atingido no tempo de uma vida. A alma ‘natural’ levava os homens a
“ desejos infinitos” que, em busca de satisfação, conduzia-os a “ rolar na lama do prazer
sensual” (Willis, 1675 apud Martensen, 1998: 162 n.105, 106). Para se chegar à saúde
plena era necessário não apenas dispor de uma boa constituição e cuidados adequados
durante as doenças, mas também a existência de uma Igreja hierarquicamente organizada
para manter um “ Império da razão (...) sobre as faculdades inferiores” (Stingfleet, 1667
apud Martensen, 1998: 162 n. 107).61 Segundo Martensen,
“ (...) o modelo ‘neurocêntrico’ que procurava caracterizar os corpos
femininos e masculinos como estando sob a liderança das partes sólidas
(assexuadas) do cérebro (...) tornava naturais normas sociais que eram
valorizadas por uma subcultura masculina de líderes científicos e religiosos
preocupados com hierarquia, controle e eficiência (...)” (Martensen, 1998:
158).
De acordo com Foucault, no século XVIII, a medicina – como técnica geral de
saúde, mais do que apenas o cuidado e cura das doenças – expande-se como função direta
do grande crescimento demográfico do Ocidente europeu e da necessidade de coordená-lo
através do surgimento do conceito de ‘população’. Este conceito surge não apenas como
um problema teórico, mas como “ objeto de vigilância, análise, intervenções, operações
transformadoras” (Foucault, 1998b: 198, 202). O corpo passa a ser visto, portanto, sob um
novo ângulo,
“ (...) portador de novas variáveis: não mais simplesmente raros ou
numerosos, submissos ou renitentes, ricos ou pobres, válidos ou inválidos,
vigorosos ou fracos e sim mais ou menos utilizáveis, mais ou menos
suscetíveis de investimentos rentáveis (...) Os traços biológicos de uma
população se tornam elementos pertinentes para uma gestão econômica e é
necessário se organizar em volta deles um dispositivo que assegure não
apenas sua sujeição mas o aumento constante de sua utilidade.” (Foucault,
1998b: 198).
O bem-estar físico e o crescimento das populações surgem como objetivos
61
Em sermão realizado perante o rei da Inglaterra em 1667.
47
políticos,62 e a importância que a medicina ganha no século XVIII tem sua origem, segundo
Foucault, no “ cruzamento de uma nova economia ‘analítica’ da assistência com a
emergência de uma ‘polícia’ geral da saúde” (Foucault, 1998b: 197). A “ noso-política” ,
para usar a expressão deste autor, surge no século XVIII, resultante de um problema
multifacetado: o estado de saúde da população como um todo, tomado enquanto objetivo
político geral, um encargo coletivo (Foucault, 1998b: 195). Foucault frisa que a iniciativa,
organização e controle da noso-política encontram-se espalhados por todo o tecido social,
não estando restritos ao aparelho de Estado, e a medicina funciona como ponta-de-lança
nesse processo. Forma-se um “ saber médico-administrativo” , que servirá de base para a
economia social e para a sociologia do século XIX (Foucault, 1998b: 202). Esta nova
política médica difunde-se gradualmente por toda a Europa a partir do século XVIII e tem
como reflexo a “ organização (...) do complexo família-filhos, como instância primeira e
imediata da medicalização dos indivíduos” (Foucault, 1998b: 200).
Desta maneira, a criança – o futuro da população – passa a ser foco de uma atenção
estratégica e, sobretudo, medicalizada. A família deve tornar-se o meio favorável à
proteção e desenvolvimento da criança, e o laço conjugal passa a existir principalmente
para servir de matriz ao futuro adulto. A saúde, em especial a das crianças, transforma-se
em um dos objetivos obrigatórios da família – que se torna o agente mais constante da
medicalização. Em função do papel fundamental da mulher na gestação e no cuidado com a
saúde dos filhos acentua-se concomitantemente a progressiva medicalização do corpo da
mulher. Na expressão de Foucault, a família no século XVIII torna-se alvo de “ um grande
empreendimento de aculturação médica” (Foucault, 1998b: 200-1). Enfatiza-se sobretudo
os cuidados ministrados aos bebês, com uma proliferação intensa de publicações dirigidas
basicamente às mulheres.63 De acordo com Donzelot, a ligação do médico com a mãe
consistiu em:
“ Aliança proveitosa para as duas partes. O médico, graças à mãe, derrota
a hegemonia tenaz da medicina popular das comadres e, em compensação,
concede à mulher burguesa, através da importância maior das funções
maternas, um novo poder na esfera doméstica.” (Donzelot, 1986: 25).
O movimento higiênico que, no decorrer do século XIX, consolidou-se de forma
hegemônica no Ocidente, constituiu-se como a via principal de construção de um novo
62
Com destaque especial à preocupação extremada com a natalidade, conforme assinalado por Rohden
(2000: 2).
63
No século seguinte haveria um aumento de publicações dirigidas mais especificamente às classes
populares, evidenciando mais uma vez a difusão diferenciada do controle dos corpos de acordo com a classe
social.
48
paradigma. Na passagem do dispositivo de aliança para o dispositivo de sexualidade, o
principal compromisso de um casal era com os filhos, em especial com a saúde destes.
Segundo Jurandir Freire Costa,
“ No casamento idealmente concebido pela higiene o casal olhava o futuro e
não o passado. (...) O cuidado com a prole converteu-se, por esta via, no
grande paradigma da união conjugal (...)” (Costa, 1979: 219). 64
A escolha do futuro parceiro seria determinante para a saúde da descendência, o que
passava a alterar as regras para o estabelecimento das relações matrimoniais. Para o
casamento higiênico, a hereditariedade passava a ocupar o locus anteriormente designado à
herança – de nome, status social e de bens. Os corpos saudáveis, o sexo e a moral
sobrepunham-se às estirpes e linhagens. O controle sobre o sexo e a moral que, até o século
XVIII, era exercido pela autoridade religiosa desloca-se, no decorrer dos séculos XVIII e
XIX, para a autoridade secular representada pela emergência de novas normas médicas,
psicológicas e educacionais (Rohden, 2000: 9). Pela via do movimento higienista o médico
pode penetrar na família, como o guardião privilegiado da saúde de seus componentes. A
higiene passa a exaltar a sexualidade conjugal, atribuindo a esta um papel essencial para a
coesão do casal. O sexo torna-se, portanto, objeto de regulação médica (Costa, 1979: 215227). De acordo com Costa,
“ A relevância dada ao ‘amor físico’ no casamento atendia a vários
objetivos higiênicos. Em primeira instância, buscava-se fixar a sexualidade
masculina na relação com a esposa, livrando-a da prostituição. Com isto
procurava-se debelar as doenças venéreas e prevenir o nascimento de filhos
sifilíticos. Em segunda instância, tentava-se estimular a vida sexual das
mulheres, cuja ausência ou debilidade comprometiam a saúde física dos
filhos e a moral do casal (...)” (Costa, 1979: 228).
O casal medicalizado tornava-se plenamente sexualizado. A medicina passava a
regular a vida sexual do casal – e também a sua moral, em um nítido movimento de
ampliação do controle dos corpos. Os médicos aderiam ao amor romântico porque –
segundo Costa – este consistia em uma das poucas estratégias disponíveis para a
substituição do poder patriarcal da sociedade tradicional (Costa, 1979: 231). O estímulo à
sexualidade do casal como responsável pela estabilidade conjugal carreava um paradoxo
posto que, se aquela escapasse ao controle, colocaria em risco a moral e a estabilidade
64
A meu ver, embora Costa esteja se referindo mais especificamente ao movimento ocorrido no Brasil no
século XIX, suas colocações podem ser tomadas de forma mais genérica, posto que correspondem às
descrições da literatura referente à Europa – basicamente França e Inglaterra – do final do século XVIII e de
todo o século XIX. Grosso modo parece haver uma defasagem de cerca de meio século entre as tendências
emergentes na Europa e o movimento correspondente no Brasil.
49
pretendida pelos higienistas. Neste sentido, o estímulo ao amor dentro do casamento
configurava-se como uma estratégia que articulava sexo e moral:
“ O sexo precisava do amor para permanecer circunscrito nos limites da
casa. Ao Estado interessava não só a família fecunda, mas a família
responsável. Manter os filhos era tão importante quanto produzi-los. (...) A
família amorosa (...) não se contentava apenas em procriar. Rejubilava-se
em ver crescer e desenvolver-se a prole, conforme as regras higiênicas. O
amor era o mecanismo de feedback encarregado de manter o sexo em níveis
compatíveis com a homeostase familiar e social.” (Costa, 1979: 234).
O amor foi utilizado para criar e regular novos papéis sociais para o homem e para a
mulher, a partir dos modernos conceitos higiênicos. A medicina determinou as supostas
características biológicas do homem e da mulher, para em seguida apresentá-las como
‘imperativos da natureza’. A procriação era um deles e, desta forma, segundo os médicos, a
única maneira de se atender ao mandato da natureza – amor, sexo e procriação – seria a
conversão da mulher e do homem em, respectivamente, ‘mãe’ e ‘pai’. A conjugação
masculinidade/paternidade e feminilidade/maternidade “ torna-se um padrão regulador da
existência social e emocional de homens e mulheres” (Costa, 1979: 239).
A nova mãe ‘higiênica’, responsável principal pela sobrevivência da prole e pela
manutenção do casamento, envolvida primordialmente com a esfera doméstica, encontra
nos médicos (ou é por eles encontrada como) a grande aliança. Uma das principais
bandeiras do movimento higiênico é o aleitamento materno – tornado ‘prova’ do recémvalorizado ‘amor materno’. A culpabilização e a condenação moral das mães que não
desejam fazê-lo torna-se um elemento importante da estratégia higienista: ao mesmo tempo
em que construiu e valorizou a sexualidade feminina dentro do casamento, precisou
também restringi-la. Neste sentido a amamentação ocupava um lugar de grande
importância: tornada fonte de prazer sexual para a mulher, transformada em fator
determinante para a criação de filhos fortes e saudáveis, reforçava a limitação da lactante
ao âmbito doméstico e passava a ser responsável, em última instância, pela manutenção do
vínculo conjugal dentro dos limites da moralidade vigente (Costa, 1979: 255-266).
As mulheres que se recusavam a amamentar por preferirem os ‘prazeres mundanos’
seriam acometidas por males ‘nervosos’. De acordo com Costa, “ [A] correlação entre
mundanismo e doença teve um papel fundamental na domesticação da mulher” (Costa,
1979: 269). Se colocarmos esta situação lado a lado com o processo de histerização do
corpo da mulher através da construção da “ Mãe, com sua imagem em negativo que é a
‘mulher nervosa’ ” (Foucault, 1984: 99), verifica-se que não existe outra saída para a
50
mulher senão aliar-se ao médico em busca de cuidados, uma vez que, de uma maneira ou
de outra – sendo doméstica ou mundana – é tornada ‘nervosa’. Ainda segundo Costa,
“ A mulher nervosa foi, em parte, uma criação do médico. Servindo-se dela,
a higiene implantou-se na família. Solicitada em sua versão sexual para
combater pais e maridos e em sua versão mundana para dedicar-se aos
filhos, a ‘mulher nervosa’ ensinou a mulher a utilizar o nervosismo para
impor seus interesses. Essa ‘criatura médica’ tornou-se uma arma
obrigatória da mulher que queria livrar-se da opressão do cotidiano
familiar (...)” (Costa, 1979: 271-2).
Neste contexto o médico adquire uma posição altamente prestigiosa, posto que, ao
mesmo tempo atende, consola, cuida e ainda mantém intactas as estruturas sociais de
poder, na realidade praticamente investindo-se dele – dir-se-ia quase a personificação do
bio-poder.
Articulam-se a consolidação da profissão médica e a extensão do controle e
medicalização dos corpos. No decorrer do século XIX, no Ocidente, estruturam-se como
especialidades médicas a obstetrícia e a ginecologia e, no início do século XX surge – com
Pinard, obstetra francês – a puericultura, uma nova especialidade decorrente de maior
atenção médica voltada aos períodos pré e pós-natal (Rohden, 2000: 19-25).65
Concomitantemente, no mesmo processo, modifica-se também a função do hospital, que
gradualmente deixa de ser um depósito de pobres para, no final do século XVIII, passar a
ocupar também uma função de ensino, de fundamental importância para a constituição e
consolidação da profissão médica. O hospital passa a ser um instrumento terapêutico para a
população em geral, por meio da família e, através da melhoria da qualidade dos
conhecimentos médicos pelo ensino, contribui para a elevação do nível de saúde da
população.
✼✼✼
A expansão da medicalização corresponde pari passu à do bio-poder. No decorrer
dos séculos XIX e XX esse movimento adquire proporções cada vez mais amplas, tendo
como grande aliado – ou, melhor dizendo, construindo um grande aliado – o
desenvolvimento de novas tecnologias, como será visto mais adiante.
A construção do amor materno como um valor, a partir do século XVIII, é o ponto
em torno do qual se articulam, dentre diversos aspectos, a produção da família nuclear
65
Para uma explanação e análise mais detalhadas sobre a estruturação destas especialidades, ver Rohden
(2000).
51
moderna, a consolidação da identidade de classe da burguesia – principalmente urbana –, a
nova arte de governar, o poder disciplinar apoiado na medicalização, e a ampliação do
controle dos corpos. Esta expansão, além de abranger e normatizar o corpo feminino, cria
novos objetos de atenção social – o bebê, e, mais adiante, o feto, conforme será discutido a
seguir.
52
Capítulo 3
DA CONSTRUÇÃO DO BEBÊ COMO OBJETO
Desde o século XIII, segundo Shorter (1997), vários governos da Europa
começaram a tentar organizar e supervisionar as parteiras. De acordo com esse autor, este
movimento ocorreu basicamente em três estágios: o primeiro, até o século XVI, consistia
em leis religiosas e municipais regulando o lado moral e religioso das parteiras. O segundo
estágio consolidou-se no século XVII, com o surgimento de legislação colocando médicos
como examinadores e supervisores das parteiras e, em um terceiro estágio, são criadas
escolas para o treinamento ‘científico’ delas (Shorter, 1997: 40). Esse movimento pode ser
encarado como uma perfeita ilustração do movimento descrito por Foucault (1999), de
passagem do poder punitivo para o disciplinar: há de início proibições e regras, a seguir um
escrutínio e supervisão minuciosos e, finalmente, treinamento regulamentado e sistemático
para as parteiras.
Do século XIII ao XVI a regulamentação religiosa vinculava-se basicamente à
preocupação da Igreja de que as parteiras fossem capazes de batizar corretamente os recémnascidos, caso pensassem que eles não iriam sobreviver ao parto. Em várias cidades da
Europa houve diversas determinações concernentes às atitudes das parteiras, tais como
proibição do abuso alcoólico, obrigação de atender a parturientes independente do quanto
seria pago pelo serviço, obrigação de notificar às autoridades os ‘nascimentos secretos’
como medida contra o infanticídio, entre outras. Essa regulação, contudo, não tinha relação
com a qualidade do cuidado que a parteira oferecia à mãe (Shorter, 1997: 41).
A supervisão médica às parteiras iniciou-se, de uma forma mais geral, no século
XVII, embora já no século XVI houvesse leis, em Zürich, designando médicos para
supervisionar parteiras. No final do século XVII este controle se generalizara em várias
cidades da Europa. A esta época, os médicos já haviam adquirido alguns conhecimentos
sobre a anatomia da pelve feminina e o mecanismo do parto.66 Shorter observa que:
“ No início do século XVIII, as considerações humanas e pró-natalistas
tinham substituído amplamente as razões morais e religiosas para o
controle das parteiras.” (Shorter, 1997: 41).
O controle médico sobre as parteiras evoluiu de formas diferentes nos diversos
66
Em 1554, Jakob Rüff, de Zürich, publicou seu compêndio sobre partos, considerado o primeiro manual
prático sobre o assunto desde a antigüidade clássica (Shorter, 1997: 41).
53
países da Europa. Na Inglaterra, embora os primeiros cursos médicos dirigidos às parteiras
tivessem surgido no século XVIII, apenas em 1902 foi criada uma lei com regulamentação
nacional para parteiras – a Sociedade Obstétrica de Londres passara a diplomá-las a partir
de 1872; antes desta data, mantinha-se em nível mínimo a instrução médica para essas
profissionais. Na França, as primeiras leis sobre a questão foram promulgadas em 1726 e
1730, mas não eram seguidas à risca. Somente após a Revolução Francesa foi de fato
criado um programa nacional sistemático para treinamento e credenciamento de parteiras.
Dentre as colônias norte-americanas, apenas a cidade de New York mostrou interesse em
regulamentar a prática das parteiras. Nas outras localidades a prática era livre (Shorter,
1997: 42).
Shorter considera um mito a idéia de que os médicos quisessem sonegar
conhecimentos científicos às parteiras. Para esse autor, o que se passava era, em certo
sentido, o oposto: os médicos pretendiam fornecer às parteiras conhecimentos ‘científicos’.
Esse argumento é fundamentado em exemplos de estímulo às parteiras – em Frankfurt e em
Paris – para que assistissem a autópsias de mulheres. Ainda de acordo com Shorter, o
desconhecimento dos termos de anatomia, em grego e latim, por parte das parteiras, tornou
essa prática pouco útil e este treinamento foi abandonado (Shorter, 1997: 42).67
O único meio viável de qualificar parteiras, do ponto de vista médico, ficou sendo
enviá-las para uma escola – por algumas semanas ou meses – de preferência situada dentro
de uma maternidade. A primeira destas foi estabelecida em Munich, em 1598, seguida pelo
Hôtel Dieu, em Paris, em 1618. Existiu uma lacuna de mais de um século na criação destes
estabelecimentos, e a partir de 1737, houve uma nova onda de surgimento de escolas de
ensino médico para parteiras – a primeira em Strasbourg, seguida por Würzburg em 1739,
Berlim em 1751, entre outras. Em 1759, na França, após um edito governamental, foram
criados diversos cursos para parteiras. Contudo, esse ensino permaneceu restrito a Paris.
Portanto, em torno de 1800, havia muitas parteiras treinadas por médicos em toda a
Europa Central, e algumas na França, concentradas nas cidades. Shorter sustenta que no
mundo anglo-saxão não havia praticamente nenhuma treinada formalmente (Shorter, 1997:
43).68
67
A assistência direta ao parto era uma atividade freqüentemente desprezada pelos médicos até cerca de
1930, quando o parto tornou-se altamente medicalizado, principalmente nos EUA. Shorter discute
extensamente os motivos de tais mudanças. Para mais detalhes, ver Shorter (1997: 136-164).
68
É, no mínimo, curioso, observar que a difusão (e valorização) do treinamento médico para parteiras – e
conseqüente melhora na assistência ao parto – segue a ordem exatamente inversa à da difusão do amor
materno como valor moral e social, assim como também a da criação de estados modernos na Europa e o
avanço do Individualismo. Chama a atenção o fato de que as cidades e a área rural que hoje constituem a
Alemanha estivessem sensivelmente mais avançadas na atenção ao parto do que o restante da Europa, desde o
54
A difusão do ensino médico às parteiras das áreas rurais na Europa Ocidental
enfrentou dois tipos de dificuldade no que tange à qualidade das alunas: ou eram jovens e
inexperientes, ou muito idosas e inflexíveis. Além destes aspectos, praticamente só
falavam os dialetos locais:
“ (...) elas dificilmente entendem francês. Como se pode fazê-las
compreender que os diâmetros oblíquos da pelve se estendem da sínfise
sacro-ilíaca à eminência íleo-pectínea?” (Jean-Marie Munaret, 1862 apud
Shorter, 1997: 46).
Segundo Shorter, multiplicaram-se as queixas na literatura médica acerca da
impossibilidade de se ensinar a medicina científica às parteiras das áreas rurais na Europa,
o que denota o choque entre dois tipos de conhecimento: o tradicional e o científico. As
mulheres do campo, fortemente ligadas à tradição, impacientavam profundamente os
médicos. Desse modo, “ as aulas das escolas eram ministradas agressivamente, e
rapidamente esquecidas.” (Shorter, 1997: 46). Por outro lado, quando as parteiras
aprendiam o que era ensinado, nada as obrigava a estabelecerem-se nas áreas rurais, e elas
preferiam permanecer nas cidades.69
Mesmo com todas estas dificuldades, o treinamento das parteiras promoveu um
melhor atendimento aos partos complicados, o que pode ser verificado pela diminuição das
taxas de mortalidade materna nas cidades, na segunda metade do século XVIII.
Aumentavam, portanto, as possibilidades de as mulheres sobreviverem aos partos difíceis
(Shorter, 1997: 47).
Esse quadro é compatível com o movimento de valorização e sensibilização social
referente à conservação de crianças e também melhores cuidados dispensados às mulheres
– em última instância, conservação também das mães. Conservam-se as mães e seus bebês,
no mesmo processo em que são gerados novos objetos de atenção social – mulheres e
bebês medicalizados, direta ou indiretamente.
século XVI, conforme depreende-se da leitura de Shorter (1997: 36-138) e, ao mesmo tempo, estivesse
bastante defasada no que tange aos modernos cuidados com bebês, conforme visto no Capítulo 1. Esses
paradoxos – aparentes ou reais – mereceriam uma investigação mais aprofundada do que é possível no
presente trabalho.
69
De acordo com Shorter, as parteiras das áreas rurais eram, em geral, excessivamente velhas e muito pobres.
O trabalho era duro e mal pago. As que optavam por esse tipo de atividade faziam-no por falta de melhor
opção para ganhar a vida. Apenas em algumas – poucas – comunidades este tipo de trabalho era socialmente
valorizado, e as parteiras eram eleitas pelas mulheres da coletividade – passando provavelmente também pelo
escrutínio do pastor local, para que ficasse assegurado que “ não eram loucas, heréticas ou praticassem
bruxaria.” (Shorter, 1997: 44-5). Após essa avaliação seu nome era enviado para as autoridades locais. Esse
autor assinala que, nas áreas rurais, as parteiras freqüentemente exerciam junto às mulheres o papel de
‘clínico geral’ e, muitas vezes, também a de gestor espiritual – daí a importância de serem consideradas bem
treinadas e confiáveis. Para mais referências acerca das parteiras na Europa, ver Shorter (1997: 36-47).
55
3.1) A elaboração da mortalidade infantil e a existência social do bebê
No início do século XX, na Inglaterra, a legislação passou a exigir a presença de
uma parteira ou de um médico em todos os nascimentos. Essa legislação, juntamente com
os cuidados pré-natais, assegurou a extensão e continuidade da vigilância médica.
Ampliou-se portanto o escrutínio sobre a gravidez e os nascimentos e, dessa forma, os
registros das causas de morte de bebês puderam tornar-se mais detalhados. Segundo
Armstrong, o refinamento da identificação e da análise da mortalidade infantil carrearam
em seu bojo dois desenvolvimentos: uma clarificação do status do feto não-nascido, e a
subdivisão do primeiro ano de vida em componentes analisáveis menores. A necessidade
de uma delimitação entre o feto e o bebê recém-nascido, ou de estabelecer a distinção entre
o que era um aborto e o que era um parto prematuro, gera o problema de se determinar
quando começa a vida de um bebê (Armstrong, 1986: 214).
No século XIX, aborto e parto prematuro eram indistinguíveis:
“ Embora não houvesse nenhuma diferença biológica fundamental entre o
nascimento de um feto morto em qualquer idade gestacional, havia
certamente um problema em distinguir um feto de um bebê, uma vez que
este era visto como tendo uma identidade social separada.” (Armstrong,
1986: 214).
No início do século XX, no Reino Unido, os agentes oficiais de saúde começaram a
reportar a ocorrência de partos pré-termo, porém apenas em 1926 delineou-se claramente a
distinção entre aborto e parto prematuro, e este último passou a ser formalmente definido
como ocorrendo depois da 28a semana de gestação. A notificação destes partos tornou-se
compulsória a partir de 1927. Desta data em diante passa então a haver uma delimitação do
início formal da vida do bebê (Armstrong, 1986: 215).70
A segunda linha na elaboração e consolidação da vida em separado do bebê
consistiu na subdivisão do seu primeiro ano de vida. Uma nota histórica do Registro Geral
de 1953 identificou retrospectivamente, em 1905, medidas de idade mensal, seguindo-se à
preocupação crescente com a mortalidade de bebês.
Em 1938 reconhece-se, na Inglaterra, o período das primeiras quatro semanas de
vida como período neonatal; consequentemente é introduzida a ‘mortalidade neonatal’ no
Registro Geral, definida como ‘morte no espaço temporal imediatamente após o
nascimento’. Contudo, o nascimento a termo não era mais a marca do novo bebê: esta fora
70
Nos dias atuais houve um recuo dessa fronteira, e atualmente vigora uma nova distinção entre aborto e
parto prematuro – estabelecida pela Organização Mundial de Saúde – com base no ‘peso ao nascer’: abaixo
de 500 gramas é considerado aborto. Contudo, já há relatos de tentativas exitosas de reanimação e sobrevida
de fetos pesando menos de 400 gramas ao nascer, indicando que possivelmente esse critério necessitará ser
56
recuada para 28 semanas gestacionais, a partir do momento que esse período foi definido
como marco para a conceituação do parto prematuro. No período entre-guerras considerase em conjunto, portanto, as mortes de prematuros com as de bebês de menos de quatro
semanas. É construída então mais uma subdivisão na mortalidade neonatal: precoce (early)
– na primeira semana de vida, e tardia (late) – até a quarta semana. A mortalidade pós-natal
ficou então estabelecida como ocorrendo desde quatro semanas até um ano de vida
(Armstrong, 1986: 215).
Em 1950, notou-se no Reino Unido que mais da metade das mortes no primeiro ano
de vida ocorriam na primeira semana. Tal observação chamou a atenção para a indistinção
entre as mortes de prematuros e neonatos a termo. Ambas apresentavam vários aspectos em
comum “ devido a fatores atuantes antes e durante o nascimento” (HMSO, 1951 apud
Armstrong, 1986: 216). Apenas em meados dos anos 50, na Inglaterra, a subdivisão da
infância tomou sua forma moderna. Constrói-se um mapeamento, na medicina, do primeiro
ano de vida: mortes de prematuros, perinatal, neonatal e bebês. A classificação permitiu a
observação das áreas temporais de concentração de mortalidade e, principalmente, “ (...)
permitiu delinear-se um objeto particular para escrutínio médico e social.” (Armstrong,
1986: 216).
✼✼✼
A partir dos anos 1930, de acordo com Shorter (1997), os médicos transformaram
sua preocupação de manter as mães vivas em cuidados para a obtenção de bebês saudáveis.
No primeiro quarto do século XX estavam consolidados diversos avanços concernentes não
apenas à diminuição do sofrimento e dos danos causados à mulher durante o parto, como
também ao controle das infecções puerperais – além de firmemente estabelecida a
medicalização do parto.
“ Antes de 1930, os médicos tinham relativamente pouco interesse nas
condições do bebê ao nascer. Todas as inovações obstétricas (...) desde o
século XVIII eram direcionadas no sentido de poupar a mãe (...)” (Shorter,
1997: 165).
Como exemplo, em 1917, James Voorhees, em New York, após chegar à conclusão
que era mais fácil para as mães darem à luz bebês de pequeno tamanho, desenvolveu uma
dieta para mães cortando carbohidratos a partir do 6o mês de gestação e induzindo partos
prematuros. Os médicos não estavam muito preocupados com os problemas clínicos
revisto. Um parto é considerado prematuro quando ocorre antes que se complete a 36a semana de gestação.
57
específicos da infância. Em 1900 havia apenas cerca de cinqüenta médicos nos EUA com
interesse específico nesta faixa etária (Cone, 1979 apud Shorter, 1997: 165).71
De acordo com Shorter, em torno dos anos 1930 delineou-se a tendência a poupar o
bebê no parto, em especial nos EUA. Os médicos começaram a atribuir prioridade máxima
à redução de natimortos e ao nascimento de bebês em boas condições de vitalidade.
Decorrente destas preocupações houve uma ampliação considerável da ação médica no
parto e do número de cesarianas praticadas (Shorter, 1997: 139-140). Para esse autor, o
aumento progressivo de intervenções médicas no parto nos últimos quarenta anos deveu-se
principalmente ao que denomina a “ descoberta do feto.” (Shorter, 1997: 164). As
“ indicações fetais” passaram a constar como determinantes para a intervenção obstétrica,
ao lado de “ indicações maternas” . Em 1941, a maioria dos presentes à reunião da
Sociedade Americana de Ginecologia compartilhava a opinião de que era válido intervir no
parto – cirurgicamente ou não – em benefício do feto. A nova ênfase na perinatologia –
cuidados ao concepto nos últimos dois meses de gestação e na primeira semana após o
nascimento produziu, por sua vez, uma série de modificações no manejo do parto (Shorter,
1997: 166).
Portanto, há uma articulação indissolúvel entre a expansão da medicalização do
parto e o surgimento do bebê – e também do feto – como entidades com existência social
destacada da mãe, sendo ambas as questões mutuamente constitutivas. Este ponto será
retomado mais adiante neste capítulo.
3.2) Dimensões analíticas da infância
A segmentação do primeiro ano de vida do bebê localiza-o em um espaço temporal,
mas há um espaço conceitual mais amplo que sustenta sua identidade social. As técnicas
epidemiológicas constróem os atributos da infância para a percepção médica:
“ A importância de ver a infância como um efeito, assim como um objeto da
aplicação de técnicas investigativas, pode ser demonstrado pelas dimensões
cambiantes do espaço conceitual onde o bebê foi situado durante o século
XX.” (Armstrong, 1986: 217).
No Reino Unido, no início do Registro Geral, foram utilizados três parâmetros
‘físicos’ para dissecar o fenômeno da mortalidade infantil. Em poucos anos estas três
dimensões analíticas tornaram-se mais ‘sociais’.
A primeira dimensão diz respeito a que, no início do século XX, foram notadas
diferenças de sexo dos bebês nas taxas de mortalidade, o que foi qualificado como um
71
Nos dias atuais o número de pediatras em atividade nos EUA é de cerca de 20.000.
58
‘fenômeno biológico’ que sustentava a suposição de maior ‘viabilidade’ de meninas;
meninos eram menores e mais suscetíveis a doenças. Pouco tempo mais tarde essa
diferença foi atribuída à alimentação materna durante a gestação. Armstrong assinala a
mudança de um parâmetro biológico – sexo do bebê – para um problema social: a nutrição
da mãe (Armstrong, 1986: 217).
No que tange à segunda dimensão, no século XIX verificou-se que as taxas de
mortalidade eram diferentes em áreas urbanas e rurais. À época, tal fato era atribuído à
maior densidade populacional nas áreas urbanas: vinculava-se a densidade populacional às
condições sanitárias precárias de áreas mais densamente povoadas. No século XX introduzse uma interpretação de cunho social: as crianças eram mais negligenciadas nas áreas
urbanas, e a mortalidade expressava não mais apenas os aspectos físicos – biológicos –
insalubres aos quais as crianças eram submetidas (Armstrong, 1986: 217).
A história da saúde pública mostra as mudanças na mortalidade infantil. O declínio
da taxa de mortalidade infantil entre o final do século XIX e os anos 20-30 do século XX
reflete os progressos na esterilização de alimentos, na pasteurização do leite e uma higiene
mais cuidadosa (Shorter, 1977: 201). Por outro lado, estas melhorias decorrem também da
mudança na sensibilidade social em relação ao bebê. Shorter aponta que:
“ (...) É bem conhecido que por volta do final do século XIX ocorreu um
grande declínio na mortalidade infantil. Todavia os dados (...) apontam dois
outros desenvolvimentos que são menos familiares. Um é a relativa falta de
progresso durante o século XIX. Na verdade, em alguns lugares, a
mortalidade até aumentou. Quaisquer que tenham sido os avanços na
maternagem nesta época, os odiosos efeitos da industrialização e
urbanização foram mais fortes, mantendo em um nível estável – e alto – as
chances de um bebê perecer no primeiro ano de vida.” (Shorter, 1977: 201)
(Grifo original).
A terceira dimensão delineada por Armstrong diz respeito ao fato de que, no século
XIX, havia um vínculo genericamente aceito entre condições meteorológicas e doenças. O
carro-chefe destas doenças era a diarréia, que apresentava uma forte variação sazonal
correspondendo a mudanças na temperatura. Em 1911 o Registro Geral sugere a exclusão
de ‘diarréias’ do índice de mortalidade infantil, por confundir as interpretações. Portanto,
os parâmetros físicos tradicionais do século XIX foram seriamente enfraquecidos no início
do século XX, e substituídos por uma visão complexificada dos fatores insalubres
(Armstrong, 1986: 218). Tal transformação na análise, que implica também a construção de
um novo enfoque, traz consigo uma mudança no status da criança e do bebê:
“ (...) As medidas de ambiente físico foram substituídas e a criança foi
situada em um espaço conceitual caracterizado por dois novos parâmetros
59
sociais, a legitimidade e a classe social (...) O realinhamento do espaço
conceitual do bebê, de sanitário para social, significou que, através das
mudanças na sua relação com a natureza e [da definição] da forma de sua
morte, ele tornou-se um objeto essencialmente social.” (Armstrong, 1986:
218).
O que se pode depreender de toda essa categorização de morte dos bebês é que, para
que o bebê finalmente tivesse consolidado seu status de Pessoa, algumas transformações
ainda teriam que ocorrer. Segundo Foucault, a morte passa a definir, analisar e construir
significados para a doença e para a vida, e a integração da morte no pensamento clínico
transforma a medicina em ciência do indivíduo (Foucault, 1998b: 163-8). Seguindo essa
linha conceitual, a depuração cada vez maior da análise da mortalidade infantil torna-se
constitutiva de novos indivíduos, cada vez melhor definidos: os bebês.
No final do século XIX, na Inglaterra, a diminuição nas taxas de mortalidade
infantil por melhoria nas condições sanitárias trouxe o medo de que talvez se estivesse
salvando bebês que “ deveriam morrer” .72 Até 1907 a alta mortalidade na primeira semana
de vida era atribuída à “ imaturidade e debilidade” entre crianças que “ dificilmente seriam
viáveis” (Armstrong, 1986: 219).
A substituição de critérios físicos por sociais introduziu uma visão mais sofisticada
da mortalidade infantil. Os modelos mono-causais foram substituídos por outros, mais
dinâmicos. Em 1912 passa a haver uma definição mais apurada das causas de morte de
bebês e crianças. Em 1927 é substituído o antigo sistema de classificação – causa primária
e secundária – por outro, com distinção entre causa imediata, outras causas (da qual a causa
imediata seria apenas a conseqüência) e doenças auxiliares não relacionadas.
Em 1954 a análise multi-causal da mortalidade infantil era um procedimento
estabelecido, o que tinha repercussões evidentes no status do bebê na sociedade:
“ (...) em poucos anos, no início do século XX, o espaço conceitual onde o
bebê era localizado se transformou. Os antigos eixos de clima e de vida
urbana – que reduziam a população a um agrupamento de corpos
separados – cederam o lugar para dimensões sociais nas quais a relação
entre os corpos, mais do que sua proximidade física, informava o exame das
mortes de bebês.” (Armstrong, 1986: 219).
72
Nos EUA, no início do século XX, um médico – adepto entusiástico dos princípios da eugenia – produziu
filmes divulgando e advogando o ponto de vista de que os bebês debilitados ao nascer não deveriam ser
alimentados e aquecidos, para que morressem à míngua. Um trecho – bastante bizarro – de um desses filmes
encontra-se incluído no documentário Homo Sapiens 1900, do cineasta Peter Cohen. No trecho em questão é
apresentado um bebê extremamente magro – que pode ser um prematuro ou um recém-nascido
profundamente desnutrido – nu, movimentando-se sobre uma maca, sendo agasalhado por uma enfermeira. O
médico chega e retira violentamente a coberta, diante do olhar assustado da mulher, o intertítulo (o filme é
mudo) indicando que o bebê deve ser deixado como está, sem agasalho ou nutrição.
60
3.3) Atrofia e decadência ‘naturais’ versus doença e imaturidade
Antes de 1839, na Inglaterra, as mortes eram divididas entre ‘causa natural’ e ‘ação
humana’. A partir dessa data a divisão passou a ser entre ‘causas internas’ e ‘externas’.
Estas seriam as que vinham de fora do corpo, como a violência, por exemplo; aquelas, na
nova visão patológica, seriam as doenças.
Em 1855 foi criada uma nova categorização das enfermidades, havendo uma
aproximação conceitual entre as da infância e as da velhice. Foram classificadas como
doenças do crescimento, nutrição e decadência, que podiam causar quatro tipos de morte:
malformações congênitas, prematuridade ou falta de vitalidade em recém-nascidos, atrofia
(tanto na infância como na velhice) e decadência (velhice). Para Armstrong, neste ponto o
bebê ainda era claramente um objeto da ‘ordem natural’: “ A mortalidade infantil ainda era
regida principalmente pelas grandes leis – irreversíveis – do crescimento e da
decadência.” (Armstrong, 1986: 221). Nas malformações congênitas considerava-se que o
embrião tinha parado de crescer. Não se pensava ainda que o crescimento em si pudesse ser
patológico. A prematuridade também era uma falha similar no tempo natural do
nascimento que, por ocorrer antes do tempo, tinha como conseqüência a debilidade – falta
de força vital necessária à existência. A atrofia e o envelhecimento pertenciam à
decadência natural do corpo.
Armstrong observa que, mesmo depois de já longamente estabelecidas as causas de
morte como resultando de causas patológicas, em relação aos velhos e crianças a morte era
analisada segundo os antigos paradigmas. No caso da velhice é difícil separar – questão
presente até os dias atuais – a noção de morte como evento normal, de sua construção
como anormal e patológica. A razão pela qual o bebê morre de uma morte ‘mais natural’
está atrelada à relação entre identidade social e forma de morte (Armstrong, 1986: 221).
“ Em meados do século XIX, antes da invenção e aplicação das taxas de
mortalidade infantil, o bebê ainda podia não ter uma existência como
indivíduo, no sentido social do termo. Ele era um objeto biológico, uma
parte do mundo natural e, consequentemente, estava sujeito às leis do
crescimento e regressão naturais que caracterizavam este domínio, mais do
que àquelas da vida patológica (...) Atrofia, debilidade e prematuridade não
demandavam nem eram sujeitas às análises médicas (patológicas); quando
estas designações foram finalmente colocadas no escopo do olhar clínico,
já tinham perdido seus significados antigos e o bebê teve uma primeira
aparição como pessoa.” (Armstrong, 1986: 222).
Por um outro ângulo, Shorter (1997) corrobora a ‘inexistência’ do feto do ponto de
vista social, ao observar que, no que tange às condições do parto na Europa – posições
adotadas pelas mulheres, local do parto (no chão ou sobre a palha, por exemplo, para
61
poupar as roupas de cama) –, até o início do século XX
“ (...) as mulheres tradicionalmente davam à luz em posições que elas
consideravam confortáveis. Naquela época o bem-estar do feto
simplesmente não se colocava.” (Shorter, 1997: 58) (Grifo acrescentado).73
A diminuição na taxa de mortalidade materna associada ao parto pode ter também
contribuído para o surgimento do bebê como uma entidade separada da mãe. De acordo
ainda com Shorter, antes de 1800, na Europa, entre 1 e 1,5% dos partos resultavam na
morte da mãe. Considerando-se que a média de filhos por mulher era de seis, as chances de
uma mulher vir a falecer de parto, durante seus anos férteis, situava-se em torno de oito por
cento. Nas famílias médias, na Europa, nos séculos XVII e XVIII, uma em cada quatro
mortes de mulheres férteis era devida ao parto. A queda nas taxas de mortalidade materna
ocorreu mais rápido nas grandes cidades, mantendo-se constante nas áreas rurais ao longo
dos séculos XVII e XVIII. O contraste entre as cidades e o campo deveu-se, segundo o
mesmo autor, ao efeito positivo de vários melhoramentos introduzidos na assistência ao
parto, tais como treinamento médico às parteiras, uso do fórceps e outros – iniciados nas
cidades e lentamente difundidos para as áreas rurais (Shorter, 1997: 98-100). Após os anos
1870 – quando foram introduzidas modificações no manejo do parto baseadas na
antissepsia descoberta por Joseph Lister – a mortalidade materna declinou rapidamente por
toda a Europa (Shorter, 1997: 100).
É possível articular a diminuição da preocupação de médicos e parteiras
concernente à morte de suas pacientes no parto com uma nova inflexão no olhar – passando
a encarar o bebê como uma entidade separada e em si merecedora de atenção.74 Por outro
lado, as próprias melhorias introduzidas no cuidado ao parto estão inseridas e ao mesmo
tempo respondem a um movimento social mais amplo no sentido da conservação do maior
número possível de bebês, em boas condições de saúde.
Nos anos 1930, após a invenção da sulfa e de sua introdução no tratamento das
infecções pós-parto, a maior parte das complicações puerperais encontrava-se sob controle
(Shorter, 1997: 100-1).
✼✼✼
73
Sobre posições para o parto e condições para o nascimento, juntamente com o tipo de intervenção praticado
pelas parteiras, ver Shorter (1997: 53-68).
74
Vale lembrar que, conforme visto no Capítulo 1, na Inglaterra, a invenção das taxas de mortalidade infantil
data de 1877.
62
Voltando ao estudo de Armstrong acerca do que é evidenciado e construído através
da depuração nas análises estatísticas, esse autor observa que, em 1921, a atrofia
desaparece da classificação inglesa das mortes de bebês e a influência do antigo domínio
natural na mortalidade é removida. A causa passa a ser localizada em dimensões
congênitas temporais e espaciais. Isto significou, entre outras questões, a introdução da
‘desordem’ no discurso médico legítimo e estabelecido (Armstrong, 1986: 223). Se a causa
pode estar localizada no tempo e no espaço que precedem o nascimento, há uma nova
inflexão no olhar para o bebê, abrangendo também o feto que o antecede.
Em 1948 a ‘debilidade congênita’ é desdobrada, passando a ser substituída por
imaturidade, desajuste nutricional e causas indefinidas. Consequentemente, em 1949 a
‘debilidade congênita’ declina como causa de morte. Pode-se observar que, no Reino
Unido, no espaço de 50 anos a ‘atrofia’ e ‘decadência’ como causas de mortalidade infantil
desapareceram:
“ (...) de 1877 – quando as taxas de mortalidade infantil foram introduzidas
pela primeira vez – até 1927 – quando partos prematuros tornaram-se
registráveis – o bebê ao mesmo tempo adquiriu e consolidou sua posição
como uma entidade analítica separada. No momento em que a morte do
bebê foi desligada da idéia excêntrica de ‘forças naturais’ como regressão e
decadência, o bebê pôde ser identificado como uma criatura separada e
essencialmente social. A emancipação final do bebê no entre-guerras foi
também marcada por uma área distinta da medicina voltada
especificamente para a criança (sob a forma de pediatria), assim como
outras configurações institucionais e profissionais – psicológicas,
educacionais, nutricionais, higiênicas – desenvolvidas em torno do novo
corpo fabricado da criança.” (Armstrong, 1979, 1983 apud Armstrong
1986: 223).
3.4) A prematuridade como novo foco de atenção
Em 1854, o nascimento prematuro foi registrado pela primeira vez como uma causa
de mortalidade infantil. Só em 1881 torna-se (na classificação da HMSO, na Inglaterra)
uma forma de doença do desenvolvimento – e durante 50 anos assim permanece. A
mudança de 1881 é importante pois, antes desta data, essas mortes pertenciam à mesma
estrutura de referência de ‘debilidade’ e ‘atrofia’. Antes da invenção da taxa de mortalidade
infantil, o bebê só existia como um apêndice, às vezes inconveniente, da mãe. Não tinha
existência com um objeto social (Armstrong, 1986: 224).
A mortalidade materna relacionada com parto prematuro chamou a atenção para a
prematuridade e, não por acaso, os primeiros médicos a se preocuparem em fazer
sobreviver bebês nascidos prematuramente eram obstetras. Esses médicos idealizaram
63
engenhos que tinham como objetivo básico manter um aquecimento constante para os
bebês prematuros.
O primeiro deles foi projetado e desenvolvido na Rússia, em 1835, por sugestão de
Johann Georg von Ruehl, médico da Czarina Feodorovna, esposa do Czar Paulo I.
Consistia em duas pequenas banheiras (ou berços) de zinco, de tamanhos diferentes,
acopladas uma dentro da outra. O espaço entre as duas era fechado, e no interstício era
introduzida água quente, renovada de tempos em tempos de forma a manter constante a
temperatura no interior do berço. O aparelho foi colocado no Hospital Imperial de Crianças
Abandonadas, em São Petersburgo. Em 1850 foi instalada uma adaptação desta primeira
incubadora, no Hospital de Crianças Abandonadas de Moscou e, em meados da década de
1850, havia cerca de 40 destes aparelhos naquela unidade.75 Em 1884, Carl Credé publica
os resultados de cerca de 20 anos de experiência em cuidados com 647 bebês prematuros
ou debilitados, usando um aparelho similar no Hospital Maternidade de Leipzig (Cone,
1981).
Em 1878, o obstetra francês Stéphane Tarnier idealizou uma incubadora para
prematuros aquecida com ar quente e encarregou o engenheiro Odile Martin de construí-la.
Essa invenção foi saudada entusiasticamente, à época, como uma grande inovação. Em
1880 Tarnier fundou em Paris uma unidade para os bebês ‘débeis’ na Maternité de Paris
(Silverman, 1979).
Cabe aqui assinalar a coincidência nas datas do surgimento da incubadora TarnierMartin e da mudança conceitual na classificação da HMSO, acima mencionada. Esta
coincidência indica provavelmente um novo foco sobre a criança e uma atenção maior
voltada para os prematuros. A prematuridade e os cuidados com estes bebês passam então a
ser um novo objeto de atenção e intervenção médicas, além de despertarem o interesse e a
curiosidade do público leigo, conforme pode ser exemplificado com o fato – bizarro – das
exposições de incubadoras com bebês.
Em 1896, o alemão Martin Couney, um jovem discípulo do obstetra Pierre Budin,76
solicitou a seu mestre autorização para exibir na Exposição Mundial de Berlim o modelo
de incubadora de Tarnier-Martin que fora recentemente modificada. Partiu de Couney a
idéia de exibir bebês prematuros vivos dentro das incubadoras. Em Berlim foram
conseguidos alguns destes bebês, com o apoio da Imperatriz Augusta Victoria, a protetora
75
A existência de hospitais de Crianças Abandonadas em diversas cidades da Europa corrobora o quanto a
prática de abandono de crianças era comum até o século XIX. Ver Capítulo 1 deste trabalho, particularmente
o item 1.4.
76
Discípulo, por sua vez, de Stéphane Tarnier.
64
do Hospital de Caridade de Berlim – a consideração era de que estes recém-natos teriam
mesmo poucas chances de sobreviver. Juntamente com as incubadoras veio parte do grupo
de enfermeiras de Budin. Foram expostas seis incubadoras, obtendo enorme sucesso.
Durante essa exposição Couney foi convidado por Samuel Schenkein a repetir o espetáculo
no ano seguinte em Londres, na Exposição da Era Vitoriana, que teria lugar na Earl’s
Court (Silverman, 1979).77
Essa primeira exposição de incubadoras com bebês ocorrida em Londres em 1897
obteve enorme sucesso de público e a ela seguiram-se uma série de outras, montadas, em
sua maioria, por produtores de espetáculos de variedades. Em virtude da excelente
receptividade, as exposições de bebês de incubadora (Incubator-Baby Side Shows)
multiplicaram-se pela Europa e, posteriormente, pelos Estados Unidos (Silverman, 1979:
131). Couney emigrou para a América em 1903, onde os espetáculos prosseguiram até o
início da década de 1940 – com pouquíssimas exceções a grande maioria dos espetáculos
foi realizada sob seus auspícios (Silverman, 1979).78 Em 1896 fora lançado um novo
modelo de incubadora, idealizada pelo engenheiro francês Alexander Lion e manufaturada
por Paul Altmann, com algumas vantagens sobre o modelo Tarnier-Martin (Toubas &
Nelson, 1998). Esta nova aparelhagem passou a ser exposta por Couney, resultando em
grande êxito comercial. Além disso, os espetáculos em si garantiam um bom retorno
financeiro (Silverman, 1979: 133). A receptividade do público a tais exibições indica,
além do fascínio pelo poder da Ciência e da tecnologia, uma nova atenção e sensibilidade
aos bebês prematuros – categoria recém-construída.79
✼✼✼
77
Espetáculo parece ser a palavra adequada. Apesar de todo o discurso ‘científico’ acerca das primeiras
exibições de bebês de incubadora, parece-me que não havia muita diferença – exceto pela não-contigüidade
com animais amestrados e aberrações humanas – entre o tipo de curiosidade soi-disant científica que movia
“ 3600 pessoas num único dia” para ver os bebês de incubadora em Earl’s Court, e a do público que
sustentou o sucesso do Barnum and Bailey’s Show durante muitos anos (ver editorial do Lancet a este
respeito, transcrito no Anexo I).
78
Uma destas exposições, em Saint Louis em 1904, foi francamente desastrosa, quando houve uma epidemia
de diarréia com morte de 50% dos bebês, o que parece ter desestimulado ‘imitadores’ de Couney de
continuarem com os espetáculos (Silverman, 1979: 135).
79
Em 1939, Arnold Gesell, de Yale, interessado nos “ primórdios da mente humana” , entrou em contato com
Couney e realizou alguns filmes documentando os “ bebês fetais” , como designava os prematuros, no intuito
de obter algumas pistas acerca da fase pré-natal do desenvolvimento comportamental (Silverman, 1979: 138).
O interesse de Gesell pela observação da psique de prematuros, assim como a própria atribuição de um
psiquismo a estes bebês indicam uma acentuação da tendência a considerá-los indivíduos, dotados de uma
subjetividade. Arnold Gesell tornou-se famoso, alguns anos mais tarde, através da elaboração uma escala –
que leva seu nome – de avaliação de desenvolvimento infantil, amplamente utilizada até nossos dias. Sua
escala permite avaliar diferentes áreas do desenvolvimento, definidas por Gesell como: área mental, de
linguagem, pessoal-social, adaptativa e motora. A avaliação oferece para o examinador um resultado
denominado QD – quociente de desenvolvimento – de crianças.
65
À medida que declinaram as mortes por ‘atrofia’ e ‘debilidade’, cresceram as
devidas à ‘prematuridade’. Entretanto, essa ainda era uma designação vaga. Nos anos 1950
surgem duas tendências: uma apontava o rótulo ‘morte de prematuro’ como insatisfatório,
muito vago, e considerava os termos atelectasia80 e asfixia mais adequados como causas de
morte. A outra tendência evidenciava-se com a introdução formal do termo ‘imaturidade’.
A morte poderia ser classificada duplamente, com uma causa patológica específica e
também com o rótulo de imaturidade – esta última, mais como contexto do que
propriamente causa da morte (Armstrong, 1986: 225).
Organizam-se as causas específicas de morte no Registro Geral do Reino Unido:
pré-natal, natal e pós-natal. A imaturidade era a causa mais importante nos dois primeiros
grupos. Ligar a imaturidade a causas pré-natais provocava uma mudança conceitual, de
uma afecção da criança para um problema da mãe. O parto prematuro tinha causado a
imaturidade, e esta representava uma falha na gestação – patologia, portanto, da mãe e não
da criança (Armstrong, 1986: 225). Na realidade, a questão do parto prematuro é ambígua.
Por um lado, é referido à criança que tem sua morte assim rotulada; por outro, pode ser um
atributo da mãe que produziu esse nascimento antes do termo.
“ Na realidade, só na medida em que a criança morre de uma doença
específica é que ela é separável da mãe como um objeto analítico. (...) O
bebê começaria a ganhar a independência social através de sua doença e
morte.” (Armstrong, 1986: 224).
Em 1954 é ressaltada a necessidade de tornar mais preciso o registro das mortes de
prematuros. A maior precisão leva a separar o risco de morte para os bebês nascidos a
termo e para os prematuros, baseados em “ critérios simples de maturidade tais como o
peso do bebê ao nascer ou o tempo de gestação” (HMSO, 1954 apud Armstrong, 1986:
225). Arney mostra que as mudanças na prática obstétrica no século XX trazem a noção de
‘relação mãe-bebê’, e do feto como o segundo paciente, além de produzirem literatura
sobre o vínculo mãe-bebê a partir dos anos 1950 (Arney, 1982: 134-5).
“ (...) Não é, portanto, surpreendente que o problema da prematuridade ou
da imaturidade, que havia sido – e que continua sendo – um dos maiores
fatores na mortalidade infantil, tivesse se tornado uma das técnicas de
desvendar (e, através disso, constituir) um vínculo aparentemente ‘natural’
e invariável entre mãe e criança. Se o início do século XX estabeleceu o
bebê como um objeto social distinto, as análises do pós-guerra serviram
para integrar esta mesma criança em uma matriz de laços maternais e
familiares de cunho fisiológico e afetivo.” (Armstrong, 1986: 226).
80
Colabamento dos alvéolos pulmonares, muito comum em bebês prematuros e que, dependendo da extensão,
pode provocar a morte por asfixia.
66
3.5) A análise epidemiológica na construção do bebê social
O saber médico considera que as análises tornam-se mais apuradas apenas para
‘melhor exame de seus objetos’, o que é questionado por Armstrong. Mudanças de uso de
palavras para designar doenças – ‘malformação congênita’ para ‘anomalia congênita’, por
exemplo – refletem muito mais uma mudança de percepção do que precisão no
diagnóstico. Esse tipo de mudança evidencia uma transformação do objeto do olhar
médico:
“ Existem, é claro, razões políticas para prover o bebê com uma existência a
priori e reduzir a análise a uma técnica metodológica. Se o corpo da
criança tem uma natureza inviolável e a análise é um método neutro, então
a investigação poderá revelar as bases para um código moral (...). Na
realidade, o problema da mortalidade neonatal só pôde tornar-se – de
forma reflexiva – o ponto de apoio biológico de uma ordem moral e social,
porque foi analisado e emergiu como um problema de influências sociais,
domésticas e maternas.” (Armstrong, 1986: 226-7).
Observa-se nesse ponto o quanto e de que forma estes argumentos ‘biológicos’ são
utilizados como base de apoio e validação para argumentos morais.81
Para Armstrong, a análise e seu objeto são mutuamente constitutivos: tanto o bebê é
produto de uma análise, quanto esta análise reflete o bebê. É possível considerar-se que os
objetos são estabelecidos por uma interrogação: o bebê não possuía existência
médica/social antes de uma estrutura analítica que impôs as mortes no primeiro ano de vida
sobre todas as mortes. As características e atributos do objeto são também produto de
dimensões analíticas:
“ (...) Ao mesmo tempo que estas linhas de interrogação atravessam o bebê e
o provêem de uma natureza e uma identidade, são em troca constituídas e
consolidadas pela suposta realidade do bebê sobre a qual se articularam.”
(Armstrong, 1986: 227).
Armstrong considera que cada morte estabelece, por contraste, um componente da
infância. Por exemplo, malformações congênitas estabelecem a identidade biológica;
mortes por imaturidade remetem à interação mãe-bebê; mortes por abuso físico destacam a
importância do contexto parental. Esse autor sinaliza a ausência de um olhar totalizante que
integre todas as linhas de vigilância e as desdobre em torno de um ‘bebê ideal’. A rigor, a
análise da mortalidade infantil requeria um bebê totalmente não-sobrecarregado de linhas
fixas de classificação prévia; um espaço que fosse essencialmente aberto. Esse espaço
81
A questão da ‘biologização’ como base de – ou mesmo pretendendo substituir – critérios e argumentos
morais será retomada adiante.
67
surgiu nos anos 1950 por uma inversão curiosa do campo de visibilidade que dominava a
análise da mortalidade infantil desde o século XIX (Armstrong, 1986: 227-8). Até a metade
do século XX havia fundamentalmente dois tipos de morte de bebês: as ‘com causa’ e as
‘sem causa’. A partir dessa época, o segundo grupo que, anteriormente, era visto como um
aborrecimento tedioso e incômodo, torna-se foco de interesse. O olhar desloca-se para as
crianças em geral, não mais apenas para as doentes ou moribundas. Os limites
normal/anormal tornam-se menos rígidos e cada criança passa a ter uma trajetória pessoal.
Significativamente o texto clássico do período é The normal child, de Illingworth. Nenhum
bebê escapa mais ao escrutínio (Armstrong, 1986: 228).
Em 1951, na Inglaterra, a atenção volta-se para a ‘morte do berço’. Estas mortes,
sem explicação, não estavam saturadas por causas e ofereciam o ponto de apoio ideal para
a articulação da estrutura analítica total que havia até então adotado, em graus variados,
outras formas de mortes de bebês. Esta indefinição da causa de morte ampliou
infinitamente o campo de investigação. Inversamente, pode-se argumentar que as ‘mortes
do berço’ eram, elas próprias, um produto desta estrutura analítica. De toda forma, vale
reter que, algo que até os anos 50 era um aborrecimento, após esse período passa a ser o
ponto ideal de aplicação de todas as estratégias analíticas, das fisiológicas às sociais, sobre
o corpo ainda totalmente moldável do bebê (Armstrong, 1986: 229).
Concomitantemente – correspondendo ao movimento de ampliação do campo de
observação e também ao surgimento do feto como uma entidade em separado – é
desenvolvida a tecnologia do ultra-som, que torna o útero ‘transparente’, acessível ao
olhar,82 permitindo a observação do feto em desenvolvimento e também carreando consigo
diversas conseqüências, tema do próximo capítulo.
82
A grande ruptura qualitativa no sentido de tornar o corpo ‘objetivamente’ transparente deu-se com a
invenção dos raios-X, em 1895, por W.R. Röentgen. Contudo, gradualmente foi sendo verificado que estes
raios, assim como diversos outros tipos de radiação, provocavam danos ao feto em crescimento – conforme
ficou dramaticamente evidenciado algum tempo após a explosão das bombas atômicas de Hiroshima e
Nagasaki. A questão dos efeitos deletérios do ultra-som a longo prazo, no desenvolvimento, continua a ser
discutida sem que se chegue a um consenso, ao mesmo tempo em que esta tecnologia é difundida como
técnica ‘segura’. Este ponto será melhor explicitado no próximo capítulo.
68
Capítulo 4
ALTA TECNOLOGIA: DO ÚTERO TRANSPARENTE AO STATUS
DO FETO
“ O rio que fazia uma volta atrás de nossa casa era a
imagem de um vidro mole que fazia uma volta atrás
de casa.
Passou um homem depois e disse: Essa volta que o
rio faz por trás de sua casa se chama enseada.
Não era mais a imagem de uma cobra de vidro que
fazia uma volta atrás de casa.
Era uma enseada.
Acho que o nome empobreceu a imagem.”
(Manoel de Barros, 2000: 25).
4.1) TECNOLOGIA E GRAVIDEZ
4.1.1) Breve histórico sobre o uso de tecnologia na gravidez
Até há cerca de 60 anos, a única forma de confirmação da suspeita de gravidez na
mulher, a partir do atraso menstrual, era dada pela evolução no tempo e com ela o
surgimento dos sinais explícitos de gestação. Na década de 1940 surgem os primeiros
testes laboratoriais para confirmação do diagnóstico de gravidez, realizados com a urina da
mulher a partir de, no mínimo, 30 dias de atraso menstrual. Surge portanto uma primeira
mediação da tecnologia, que transforma a suspeita de gravidez em um razoável grau de
certeza. Contudo, a percepção da existência do feto no útero continuava a se dar bem mais
tarde, cerca de 3 meses depois, através da vivência sensorial da mãe, ao perceber os
movimentos fetais. Na década de 70 foi inventado o teste da dosagem por
imunofluorescência de β-HCG83 no sangue da mulher, que podia ser realizado mesmo sem
haver atraso menstrual e que apresentava maior grau de certeza em relação aos testes
anteriores.
Desde o surgimento dos testes laboratoriais de confirmação da gravidez verifica-se
um deslocamento da posição ocupada pela mulher no que tange ao poder e ao
conhecimento acerca de sua gestação. Ocorre uma relativa substituição da percepção e
83
Hormônio gonadotrofina coriônica, produzido pela implantação do ovo fecundado no endométrio da
mulher; a detecção deste hormônio no sangue da mulher grávida é mais precisa e mais precoce do que na
urina por ser possível evidenciar concentrações muito menores da substância no sangue.
69
subjetividade da mulher em favor de um dispositivo tecnológico, laboratorial, de
diagnóstico.
A grande mudança qualitativa ocorreu quando, na década de 50, o obstetra escocês
Ian Donald (1910-87) aplicou o princípio do sonar84 ao corpo, inicialmente concentrandose em mostrar que diferentes classes de tumores abdominais produziam ecos diferentes.
Em 1957 usou pela primeira vez o ultra-som para diagnosticar desordens fetais e, mais
adiante, a gravidez em si. O avanço desta tecnologia de imagem recebeu um impulso
indireto considerável, na época, por conta do impacto causado na opinião pública com a
revelação dos danos provocados pela radiação, após a explosão das bombas atômicas de
Hiroshima e Nagasaki. A partir dessa constatação, os raios X deixavam de ser uma
alternativa tecnológica para o acompanhamento da gravidez.
Inicialmente o ultra-som foi recebido com suspeita – em especial com relação ao
seu uso durante a gestação. Este recurso tecnológico, ao ser designado como inócuo ao feto
(mesmo sendo a ‘inocuidade’ uma questão polêmica), abriu um novo campo a ser
explorado – o da observação, ao vivo, de um ser em desenvolvimento (Porter, 1997: 608).
Rosalind Petchesky (1987) considera importante contextualizar e historicizar o surgimento
dessa tecnologia, assinalando que o ultra-som passou a ser aplicado à obstetrícia em maior
escala na década de 60, alguns anos depois de ter sido aceito em outros campos do
diagnóstico médico. Para essa autora, a determinação do momento de seu surgimento é
significativa, porque corresponde ao final do “ baby-boom” e a uma queda acentuada na
fertilidade nos EUA – o que teria impelido obstetras e ginecologistas para novas áreas de
descobertas e de ganhos financeiros, além de uma nova população de “ pacientes”
(Petchesky, 1987: 65).
Nos início dos anos 70, antes que o uso de ultra-som estivesse difundido na
obstetrícia, foram levantados questionamentos acerca de perigos para a mãe e para o feto.
Em 1984, nos Estados Unidos, a conferência de consenso do National Institute of Health
(NIH) decidiu que os dados disponíveis sobre a eficiência e segurança do ultra-som não
permitiam a recomendação deste como técnica de rotina. Na Inglaterra, o Royal College of
Obstetricians and Gynaecologists (RGOC), embora reconhecendo que havia necessidade
de mais pesquisas, lançou a afirmação reasseguradora de que havia “ (...) razões
84
Abreviatura de Sound Navigation and Ranging. A técnica naval do sonar, desenvolvida pelos franceses e
usada na I Grande Guerra para localizar objetos e submarinos inimigos submersos (Rapp, 1997: 34-5),
baseia-se no princípio de que certos cristais, quando submetidos a uma descarga elétrica, emitem ondas
sonoras de alta freqüência que não são captadas pelo ouvido humano. Essas ondas atravessam a água e, ao
encontrarem um obstáculo, produzem eco. A distância do emissor de onda sonora ao obstáculo pode ser
calculada pelo lapso de tempo que a onda sonora gasta para retornar.
70
convincentes para supor benefícios para todas mães e bebês advindos de ‘um
escaneamento bem feito entre 16-18 semanas de gravidez’.” (RCOG, 1984 apud Price,
1990: 133). Não ficou definido o que queria dizer “ um escaneamento bem feito” (Price,
1990: 133).85 A questão da segurança do uso do ultra-som na gravidez, para o feto, está
profundamente impregnada pelo poder da instituição médica. Price sinaliza que esse poder
se revela ao mesmo tempo minimizando os medos do risco e cultivando a confiança no seu
controle:
“ (...) A aura da autoridade médica é reforçada por uma ideologia de
profissionalismo e uma confiança difundida na eficácia do controle
institucional.” (Price, 1990: 132).
A controvérsia acerca de efeitos biológicos atravessa toda a história das tecnologias
utilizadas em medicina. Diversos experimentos sustentam a evidência de retardo no
crescimento e anormalidades fetais em camundongos após exposição ao ultra-som. Estes
resultados forneceram subsídios para que houvesse mais cautela nos anos 80 (O’Brien,
1983; Takabayashi et al., 1981 apud Price, 1990: 132). Contudo, como os medos iniciais
não foram consubstanciados por evidências e, por outro lado, foram produzidos na
Inglaterra dois estudos com grupos de mulheres, que não evidenciaram danos –
freqüentemente citados como prova da segurança do ultra-som – ficou tacitamente
concluído que era uma tecnologia segura:
“ Deliberações subsequentes pelo Cell Board chegaram à conclusão que os
possíveis efeitos biológicos seriam sutis demais e difíceis de distinguir de
outros efeitos do ambiente pós-natal.” (Price, 1990: 132).
A discussão acerca dos possíveis efeitos deletérios do ultra-som foi encerrada na
Inglaterra sem que houvesse evidências concludentes nem em um sentido nem no outro e,
agora que o ultra-som está largamente difundido na clínica obstétrica, fazer um vasto
estudo prospectivo acerca dos seus efeitos acarretaria inúmeras dificuldades do ponto de
vista prático, econômico e ético (Price, 1990: 133-4) – e, portanto, tal estudo nunca foi
realizado.
O ultra-som passou a ser usado, a partir de fins da década de 80, nos EUA, como
exame de rotina na gestação (Mitchell, 1994: 146), tornando-se um dispositivo essencial na
medicalização da gravidez e também do feto. Esta utilização da tecnologia representou uma
85
Francis Price discute também a questão do quanto o uso de novos medicamentos é regulamentado e
monitorizado pelo governo inglês, ao passo que novas tecnologias e aparelhagens não são submetidos ao
mesmo tipo de controle (Price, 1990: 133).
71
considerável ampliação do controle e disciplinarização dos corpos, ao mesmo tempo em
que se reforçava uma nova subjetividade. Esse reforço parece se dar em dois planos: em
um primeiro, reconfigurando e antecipando vivências da mãe em relação ao seu feto –
agora tornado visível para ela sob uma forma externalizada na tela, muito antes de poder
captar sensorialmente os movimentos fetais. Em um segundo plano, constitui-se o próprio
feto como um novo ‘indivíduo’, visualizável e com a atribuição de ‘comportamentos’
observáveis, específicos, individualizados e psicologizados (Piontelli, 1987; 1988; 1989;
1992; 1995). O novo recurso ao mesmo tempo correspondia e atendia à construção de uma
nova sensibilidade em relação ao bebê – agora estendida também ao feto que, conforme
visto no Capítulo 3, tornara-se, desde a década de 30, também ele um objeto de atenção
médica. No mesmo processo que gerou as condições de sua produção, o ultra-som
contribuiu e vem contribuindo, em larga escala, para o reforço daquela sensibilidade, em
uma via de mão dupla. As implicações e desdobramentos do uso do ultra-som na gravidez
são inúmeras e de tipos variados, como, por exemplo, a monitoração crescente da gestação
e do feto, maior envolvimento do pai na gravidez, ampliação do número de atores sociais
envolvidos na gestação, diagnósticos de anomalias que podem levar à decisão de
interromper a gravidez, assim como a instrumentalização dos grupos anti-aborto (Rapp,
1997; Salem, 1997). Petchesky (1987), em um dos primeiros artigos a discutir a utilização
das imagens fetais, aponta que, baseadas nestas imagens, as lideranças do movimento antiaborto, em seu afã de ganhar terreno nas cortes judiciais e nos ‘corações e mentes’ da
população norte-americana, efetuaram uma mudança estratégica consciente – do discurso e
autoridade religiosos para o discurso e autoridade médico-técnicos (Petchesky, 1987: 58).
4.1.2) A ultra-sonografia obstétrica na atualidade: o útero ‘transparente’ e o feto
trazido para o espaço público
No passado, a presença pública do feto revelava-se aos poucos, em um período de
meses, e os sinais desta presença passavam necessariamente pela codificação da mulher,
tanto em termos físicos quanto psíquicos. A passagem dos sinais internos de gravidez para
os externos ocorria de maneira lenta e gradual e, de qualquer maneira, os sinais dependiam
do relato da mulher grávida. Nos dias atuais, a ultra-sonografia sobrepõe-se à consciência
corporal da mulher e fornece um conhecimento médico, independente, sobre o feto. Os
estados corporais que anteriormente indicavam a gravidez são substituídos por sinais
exclusivamente visuais que transformam uma série de ecos em um ‘bebê’. O conhecimento
corporal difuso da mulher acerca de sua gravidez é transformado, reduzido e restringido à
72
imagem do feto como uma entidade separada ou um ‘paciente’ (Rapp, 1997: 39). Michèle
Fellous (1991), em estudo sobre a ecografia obstétrica86 na França observa que, para as
gestantes, a visualização do movimento é mais impactante do que apenas a imagem, e que,
freqüentemente, o interesse das mulheres no ultra-som decresce a partir do momento que
começam a sentir os primeiros movimentos fetais. Entretanto, para os homens, sem a
possibilidade de apreender o feto sensorialmente, este interesse persiste inalterado durante
toda a gravidez da mulher (Fellous, 1991: 20).
O constructo que emerge da visualização do feto foi denominado por alguns autores
de feto-cyborg (Mitchell & Georges, 1998). O uso deste conceito permite que sejam
colocados em evidência não apenas a interação corpo-máquina na reconfiguração da
Pessoa, como também os processos de produção deste constructo:
“ Usar o ultra-som para descobrir e conhecer o feto-cyborg é, nos termos de
Haraway [Donna Haraway], um problema de tradução; ultra-sonografistas
devem traduzir não só a física dos ecos, como também os significados
clínicos e sociais dos diferentes matizes de cinza.” (Mitchell & Georges,
1998: 108).
Obstetras, radiologistas e técnicos podem apropriar-se da imagem descrevendo-a
para a mãe em um discurso que garante sua ‘condição de Pessoa’ (personhood)87 em
termos físicos, morais e subjetivos (Rapp, 1997: 39). Fellous (1991), observando o uso e o
impacto da ecografia na França e EUA, mostra que há diferenças marcantes na construção
da idéia de autonomia do feto em relação à mãe, dependendo da categoria profissional –
por exemplo, ultra-sonografistas e pediatras tendiam a perceber o feto como um ser
autônomo, enquanto obstetras percebiam a dupla como uma unidade (Fellous, 1991: 56).
Mitchell (1994), em estudo sobre a ultra-sonografia com 49 mulheres primíparas,
no Canadá, observa que, durante o exame, o termo ‘feto’ é reservado a questões
diagnósticas, e que a maioria das observações feitas pelo ultra-sonografista durante um
exame de rotina refere-se à anatomia, aparência e atividade do ‘bebê’. A imagem ultrasonográfica é descrita para a gestante em termos de atividade intencional: está
“ brincando” , “ nadando” , “ pensando” , “ espreguiçando” , “ descansando” , etc. A
aparência de ‘bebê’ do feto é ressaltada, com comentários sobre “ a gracinha dos dedinhos
do pé” , ou sobre a semelhança com membros da família. Os movimentos fetais são
também freqüentemente descritos em termos de humor como, por exemplo, “ o bebê está
86
Os termos ultra-sonografia e ecografia são utilizados neste texto como sinônimos, e sempre referidos ao seu
uso em obstetrícia.
87
Não há uma tradução exata em português para o termo personhood. Optei por utilizar ‘condição de Pessoa’
e ‘pessoalidade’ como equivalentes à palavra inglesa.
73
feliz” , “ relaxado” , “ cansado” , “ tímido” . Muitas vezes os técnicos interagem com a
imagem na tela, cumprimentando-a, dirigindo-lhe reprimendas ou criando uma voz em seu
lugar, que “ fala” com a mãe (Mitchell, 1994: 150). Em outras palavras, é atribuída ao feto
uma subjetividade, de forma bastante explícita.
A descrição é vital para a imagem ultra-sonográfica tornar-se significativa
culturalmente como “ um bebê” , e passa por um “ filtro cultural” : no Canadá, os técnicos
selecionam as partes “ não-chocantes” tais como bexiga, pés e mãos – e dedos – para
mostrar às grávidas, e não mostram a face do feto no período de 16/18 semanas,
considerada por eles como alarmante para as mulheres. Apenas mais adiante mostram o
rosto do feto (Mitchell & Georges, 1998: 108). Os médicos, contudo, em conversas entre si
referem-se às imagens em linguagem neutra, científica (Rapp, 1997: 39).
Fellous assinala que a tomada de consciência da realidade do feto só é efetiva no
momento em que é conjugada a outras percepções, tais como a escuta dos batimentos
cardíacos fetais e a sensação vivida com os movimentos do concepto. A produção de prazer
e alegria está condicionada a que
“ (...) a imagem seja sustentada pela palavra que comenta e explica, senão
‘não se vê o que é’; e que a consulta [ecográfica] termine com: ‘tudo vai
bem’(...).” (Fellous, 1991: 20-1).
4.1.3) A produção de conhecimento confiável sobre a gravidez e o feto
A ultra-sonografia de alta resolução é vista atualmente pelos obstetras e por suas
clientes não só como parte integral do cuidados pré-natais, como também um recurso
indispensável nas novas tecnologias reprodutivas (Price, 1990: 136). Esta conformidade de
opiniões indica o quanto a ecografia obstétrica passou a ser um instrumento essencial no
movimento crescente de medicalização da concepção, da gravidez e do próprio feto, com
papel de destaque na produção de conhecimento confiável (authoritative knowledge) acerca
da gestação.88 Como o processo de hegemonia em geral, o conhecimento confiável envolve
a construção de um consenso relativo ao que é pensável ou impensável. Como Jordan
assinala, as tecnologias têm um papel preponderante nesta construção, devido ao seu valor
simbólico, sua associação com experts e sua expressão de poder (Jordan, 1993: 158 apud
Georges, 1996: 158).
88
Brigitte Jordan resume da seguinte forma seu conceito de conhecimento confiável: “ (...) o conhecimento
que os participantes de uma situação consensualmente consideram válido, que eles vêm como conseqüente,
baseado no qual tomam decisões e encontram justificativas para séries de ações.” (Jordan, 1993: 154 apud
Heriot, 1996: 177) (Grifo original).
74
Carole Browner e Nancy Press (1996), em pesquisa sobre cuidados pré-natais nos
EUA tomam como base a conceituação de conhecimento confiável desenvolvida por
Brigitte Jordan, que o define como regras que têm mais peso do que outras,
“ (...) tanto porque explicam melhor o estado do mundo para os objetivos
imediatos (‘eficácia’), quanto porque estão associadas a uma base de poder
mais forte (‘superioridade estrutural’) e, freqüentemente, por ambas as
razões.” (Jordan, 1993: 152 apud Browner & Press, 1996: 142).
Em situações de igualdade hierárquica, há possibilidade de escolha por parte dos
indivíduos. Em situações de desigualdade estrutural, geralmente um conjunto de regras ou
formas de conhecimento ganha autoridade desvalorizando e tirando a legitimidade de
outras. Browner e Press consideram o período pré-natal como um exemplo claro de um
processo de medicalização em ação (Browner & Press, 1996: 142). As autoras examinam o
papel da tecnologia biomédica no deslocamento do conhecimento incorporado (embodied
knowledge) – e corporal – das mulheres sobre a gravidez, em favor da consolidação do
conhecimento confiável biomédico nos cuidados pré-natais.89 Cabe observar que a
distinção entre conhecimento incorporado e conhecimento confiável biomédico corre o
risco de ser tomada de uma forma um tanto ingênua, como se o conhecimento incorporado
fosse ‘genuíno’ e o biomédico ‘artificial’ ou ‘imposto’. É evidente que o conhecimento
incorporado é um constructo, tanto quanto o conhecimento confiável biomédico, sendo
ambos histórica e socialmente informados pelos valores em circulação em uma
determinada sociedade.90 O ponto principal a ser destacado é o quanto e de que forma a
tecnologia de imagem em medicina interfere neste deslocamento.
O estudo de Browner e Press focalizou basicamente o auto-cuidado de mulheres
durante a gravidez, e de que maneira estas incorporavam os conselhos biomédicos às suas
rotinas preexistentes de cuidados com o corpo. O foco na questão do papel que mulheres
leigas desempenham na construção de conhecimento confiável, decidindo quais conselhos
médicos incorporam ou ignoram no cuidado com seus próprios corpos pode esclarecer os
processos de expansão biomédica, assim como revela de que forma a tecnologia designa
alguns tipos de conhecimento como ‘confiáveis’ e, assim fazendo, ajuda a dirigir o
89
Browner e Press definem ‘conhecimento confiável biomédico’ na gestação como: “ (...) as recomendações
cujo objetivo é proteger a saúde da mulher grávida ou de seu feto. Inclui informações dos próprios agentes
de saúde ou outras autoridades biomédicas às mulheres, livros e outros impressos (...)” (Browner & Press,
1996: 145).
90
Por exemplo, Browner e Press definem o conhecimento incorporado como: “ (...) conhecimento subjetivo
derivado das percepções da mulher sobre seu próprio corpo e seus processos naturais, à medida que mudam
no decorrer da gestação.” (Browner & Press, 1996: 142), sem levarem em consideração que as percepções
corporais também são culturalmente informadas. Agradeço a Tania Salem o ter-me alertado quanto a este
aspecto.
75
processo de medicalização (Browner & Press, 1996: 142). Vale sublinhar que o processo
parece se dar em uma via de mão dupla, realimentando-se. Tanto a atribuição de
confiabilidade a um tipo de conhecimento tecnológico contribui para o processo crescente
de medicalização da gravidez, quanto esta tendência acentua a visão da tecnologia como
produtora de conhecimento confiável. Cabe também ressaltar que as mulheres não são
passivas neste processo.
Nos Estados Unidos, boa parte dos cuidados pré-natais pode ser vista como um
processo de socialização médica, no qual os agentes de saúde tentam ensinar às mulheres
grávidas as suas próprias interpretações acerca dos sinais e sintomas que as gestantes
apresentarão à medida que a gravidez prossegue, bem como a importância que deve ser
atribuída àqueles. Há uma aliança entre mulheres e médicos, a partir do momento em que
elas se dispõem a ter seus corpos monitorados e examinados, e solicitam aos médicos que
as ensinem o que fazer durante a gestação. Em muitos depoimentos das entrevistadas no
estudo evidenciou-se o sentimento de conforto e reasseguramento por receberem instruções
acerca do que fazer. Várias mulheres revelaram que gostavam do pré-natal porque os
recursos tecnológicos, tais como ultra-sonografia e a audição dos batimentos cardíacos
fetais, faziam-nas sentir-se mais perto de seus fetos, ou tornavam o bebê “ mais real”
(Browner & Press, 1996: 144). Conforme observação de Fellous, a imagem apenas não é a
única responsável pela vivência positiva da ecografia obstétrica: “ (...) É a imagem em
movimento, a imagem e o movimento que emocionam, particularmente os batimentos do
coração [visualizados no ultra-som].” (Fellous, 1991: 20) (Grifos originais). O movimento
confirma que há outra vida dentro da mulher.
Embora haja ampla aceitação da autoridade biomédica acerca da gravidez na
sociedade americana, diversas pesquisas citadas pelas autoras mostram que não há
consenso entre as gestantes acerca da natureza e extensão do papel que a biomedicina91
deveria ter no cuidado pré-natal (Browner, 1990; Reid & Garcia, 1989; Terry, 1989;
Hubbard, 1995 apud Browner & Press, 1996: 142). 92
91
Compreendida nos termos de Camargo Jr. (1997).
O estudo de Browner e Press, assim como os de diversos outros autores, não encontrou diferenças
significativas nas atitudes das gestantes que pudessem ser relacionadas às suas origens étnicas ou de classe
social (Browner & Press, 1996: 143). Este resultado foi compatível com Lazarus (1988) que concluiu que a
organização da clínica e as exigências do treinamento dos médicos residentes causavam um impacto maior na
relação médico-paciente do que as diferenças culturais entre as pacientes das clínicas obstétricas estudadas
(Lazarus, 1988, apud Browner & Press, 1996: 143). No entanto, há controvérsias a este respeito, e outros
autores documentaram e discutiram o papel da etnicidade e classe social na formação de práticas de autocuidado de mulheres durante a gravidez (Martin, 1992; Rapp, 1997).
92
76
A passagem de informações no pré-natal era altamente valorizada pela maioria da
mulheres estudadas. Acreditavam que, estando informadas, estariam mais aptas a assumir
as responsabilidades conferidas pela gravidez. Contudo, apesar da importância conferida à
informação, a pesquisa revelou que a autoridade biomédica não era aceita de forma
incondicional. Isto ocorria, em parte, porque muitas vezes as mulheres descobriam que as
informações biomédicas a seu respeito ou de outras mulheres estavam erradas e, em parte,
pela falta de exatidão das informações obtidas por testagens laboratoriais. Outro motivo
para a relativa descrença poderia ser atribuído à velocidade com que os conselhos
biomédicos às grávidas eram modificados. Não só eram muito diferentes dos que suas
mães tinham recebido, como às vezes mudavam de uma gravidez para a outra – em
multíparas – ou variavam de médico a médico. Muitas mulheres estavam inclinadas a
aceitar o conselho dos médicos como confiável, mas demonstravam alto grau de
ambivalência em executá-los (Browner & Press, 1996: 145).
Há uma vasta quantidade de material impresso dirigido às gestantes, que vai desde
publicações de agências oficiais de saúde materno-infantil, livros e revistas a suplementos
publicitários. Esta quantidade de informação não é necessariamente útil ou reasseguradora
para as mulheres – freqüentemente gera confusão, e Browner e Press observaram que a
maioria das mulheres aceitava os conselhos biomédicos que eram confirmados pelas
experiência incorporada e rejeitava os que iam contra suas crenças preexistentes acerca dos
cuidados consigo mesmas durante a gestação, assim como aqueles que dificilmente podiam
ser incorporados às suas rotinas diárias (Browner & Press, 1996: 147-151). O grupo
estudado pelas autoras não considerava as recomendações pré-natais confiáveis
simplesmente porque eram emitidas por médicos. Neste sentido as informantes mostraramse semelhantes a homens e mulheres que, nos Estados Unidos, raramente seguem
conselhos médicos de forma acrítica, conforme demonstrado por diversos estudos
(Chrisman & Kleinman, 1983; Conrad, 1985; Hunt et al., 1989; Hunt, Browner & Jordan,
1990; Stimson & Webb, 1975 apud Browne & Press, 1996: 151). Em outros termos, as
pacientes eram intérpretes ativas da informação médica.
A valorização do conhecimento incorporado em detrimento do conhecimento
biomédico, no que tange aos cuidados pré-natais inverte-se, contudo, quando da situação
do parto, nos Estados Unidos. Neste momento a maioria das mulheres torna-se altamente
receptiva à autoridade biomédica, deixando seu conhecimento incorporado em segundo
plano (Bromberg, 1981; Davis-Floyd, 1992; Jordan, 1993 apud Browner & Press, 1996:
152). Há entre as mulheres americanas uma concordância generalizada de que a tecnologia
77
é essencial para o parto bem sucedido. Muitas acreditam que é “ mais seguro” para elas e
para o recém-nascido, enquanto outras pensam que desta maneira há “ mais controle” .
Browner e Press chamam a atenção para o contraste que existe entre a confiança no
conhecimento incorporado, quando dos cuidados pré-natais, e a falta dela no momento do
parto. Sugerem que esta diferença deve-se ao papel diferente da tecnologia biomédica nos
dois terrenos. Enquanto o parto tornou-se, nos EUA, um empreendimento basicamente
tecnológico, no campo dos cuidados pré-natais isto ainda não ocorreu (Browner & Press,
1996: 152).93
Diversos estudos acerca de diagnósticos pré-natais esclarecem este contraste
(Browner & Press, 1995; Lippman, 1989; Petchesky, 1987; Rapp, 1987, 1988, 1990 apud
Browner & Press, 1996: 152), mostrando que poucas mulheres recusam os exames de ultrasom ou outros procedimentos recomendados pelos agentes de saúde, mesmo quando não
vêem a utilidade deles. Estas tecnologias tornam a gravidez ‘mais real’, na medida em que
são culturalmente consideradas como produtoras de verdades incontestáveis e, além disso,
permitem que as mulheres sintam que estão ‘fazendo o melhor’ para a saúde do feto.
Observa-se, portanto, um contraste entre a atitude de aceitação da tecnologia prénatal e a de restrição crítica em relação a outras recomendações, só aceitas caso preencham
alguns pré-requisitos tais como utilidade, coincidência com conhecimentos prévios e
possibilidade de incorporá-las à vida cotidiana. Em suma, as mulheres do estudo confiavam
mais em seu conhecimento incorporado do que na opinião dos médicos em relação a
recomendações diversas, mas tornavam-se aquiescentes à autoridade médica quando esta se
apresentava apoiada pelo poder da tecnologia (Browner & Press, 1996: 153). Esta atitude
pode ser sintetizada pela conclusão de Arnold (1985) acerca da atitude de mulheres
grávidas em Creta, Grécia: “ Confie na Ciência, mas desconfie dos médicos.” (Arnold,
1985 apud Georges, 1996: 160). O aparato tecnológico apresenta-se como a corporificação
da biomedicina, de forma que a obediência observada por Browner e Press pode
perfeitamente estar ligada à idéia de ‘um poder maior’, ao qual as mulheres podem
entregar-se de forma ‘confiante’.
Nos dias atuais, ainda há algum espaço para que as mulheres, durante o período prénatal, façam prevalecer seu conhecimento incorporado. Contudo, pode-se antever que, a
partir do momento que a tecnologia de diagnóstico pré-natal passe a ser amplamente
93
Embora haja um movimento crescente no sentido da ‘desmedicalização’ do parto, ele ainda é incipiente em
comparação com a tendência medicalizante difundida no mundo ocidental. Cabe ainda assinalar uma
ambigüidade interessante, que consiste no fato de que muitos destes movimentos em favor do ‘parto natural’
são desencadeados e liderados por médicos.
78
disponível, a recusa da gestante em utilizá-la deixará de ser neutra: nas culturas onde a
ideologia do ‘risco’ vai se tornando – ou já é – hegemônica, a negação pode ser construída
como ‘falta de responsabilidade’ da mulher. A única maneira social e culturalmente
aprovada de as mulheres grávidas reassegurarem-se de que tudo vai bem com sua gravidez
fica sendo a aderência às rotinas científicas do pré-natal.
À medida que a tecnologia avança no campo do pré-natal, pode-se imaginar que as
mulheres progressivamente passem a sobrepor a autoridade biomédica ao seu
conhecimento. As autoras concluem o estudo comentando que, com esta atitude, as
mulheres contribuem para a construção do consenso de que a biomedicina preside o
conhecimento confiável também no campo dos cuidados pré-natais (Browner & Press,
1996: 153).
4.2) O FETO-PESSOA
4.2.1) Máquinas e subjetividade
Eugenia Georges (1996), ao focalizar a ecografia na gestação, examina como a
capacidade intrínseca de visualização do feto pelo ultra-som detém o potencial poderoso de
fundir processos naturais e tecnológicos e, com isso, produzir novas experiências
cognitivas e corporais na gravidez. Através da reconfiguração da forma pela qual as
mulheres percebem a ‘realidade’ de sua gravidez, esta autora postula que o ultra-som pode
agir como um facilitador potente na produção e atuação do conhecimento confiável. Em
etnografia desenvolvida em uma pequena cidade da Grécia, Georges descreve e discute a
experiência subjetiva vivida por mulheres durante a ultra-sonografia (Georges, 1996: 159).
Em seu estudo sustenta que o ultra-som fetal exerce uma atração especial, e considera que
muito de seu impacto e autoridade estão ligados tanto à posição única que ocupa – de
interseção entre tecnologias visuais científicas e populares – quanto com os códigos e
convenções da representação do ‘real’ enraizados nestas tecnologias (Georges, 1996:
158).94
As mulheres estudadas viam o ultra-som por um prisma positivo, exercendo uma
demanda ativa sobre os médicos. Georges considera que em parte esta atitude é um produto
do status da máquina como representante da superioridade estrutural e simbólica da
94
Na Grécia, a expressão utilizada para o ultra-som fetal é “ colocar o bebê na televisão” . A televisão é uma
metáfora bastante apropriada para este exame nesse país; é ubíqua e carreia consigo a imagem da
modernidade, inserindo a Grécia no ‘moderno’ comportamento ocidental relativo à gravidez. A autora cita
um estudo realizado pela Comunidade Européia que revelou que os gregos assistem, em média, mais horas de
televisão do que os habitantes de qualquer outro país membro da Comunidade Européia (Georges, 1996: 170
n.4). Sobre a ‘naturalização’ e ‘objetividade’ das imagens técnicas na sociedade ocidental contemporânea, ver
79
moderna medicina científica e tecnológica, mas no decorrer da pesquisa outros aspectos
subjetivos emergiram. Em primeiro lugar, as mulheres relataram um sentimento –
proporcionado pelo uso da tecnologia – de reasseguramento em relação à saúde do
concepto. Além disto, o ultra-som mediava o contato delas com o feto e estabelecia a
‘realidade’ dele para as mães, através de uma imagem que, turva, era reinterpretada como
‘o meu bebê’. Uma das mulheres sintetizou assim o sentimento: “ Você sente [o bebê] mais
intensamente quando o vê.” (Georges, 1996: 164) (Grifos acrescentados).95
Diversos comentários das mulheres estudadas denotavam o quanto a percepção
corporal era colocada em segundo plano, em relação à visualização da imagem do feto.
Através da atribuição de uma modalidade tátil à percepção visual ocorriam, tanto uma
antecipação, como uma reconfiguração – ambas mediadas pela tecnologia – da percepção
corporal da mulher acerca de seu concepto. Estes aspectos subjetivos derivados da
visualização do feto eram também fonte de grande prazer para as mulheres, conforme
relatado por elas. Georges pontua que o aparente realismo da televisão tem um papel de
grande importância nesta construção. O prazer era derivado, em primeiro lugar, pela
tranqüilização a respeito do estado de saúde do concepto. A observação dos movimentos
fetais em tempo real, como um show ‘ao vivo’, acentuava o sentimento de realidade dos
fetos para as mães. Outro elemento prazeroso estava conectado à possibilidade de saber e
conhecer ‘tudo’ sobre o feto. E, last but not least, o ultra-som reforçava o sentimento de
propriedade das mulheres sobre seus fetos, do momento em que atribuíam a eles qualidades
e características particulares (Georges, 1996: 163-5).
Outro aspecto assinalado por Georges refere-se ao estabelecimento da idade fetal
através do ultra-som, procedimento que com freqüência desautoriza as informações dadas
pelas mulheres quanto à data da última menstruação – até o surgimento desta tecnologia, a
forma tradicional de se estabelecer o tempo de gravidez. Em caso de dúvida, o exame
funciona como o árbitro final (Georges, 1996: 168).
O ponto fundamental desta pesquisa é o quanto – no contexto estudado pela autora
– a aparelhagem tem um papel de fundamental importância na reconfiguração da forma
pela qual as mulheres vivenciam suas gestações. O prazer visual experimentado na
exibição da imagem do feto vem substituir o prazer das ‘antigas’ percepções internas, e
produzem-se novas sensações pela fusão do visual com o tátil. O ritmo da gravidez é
Pereira (1999) e também Petchesky (1987: 61-2).
95
Este comentário surgiu em um diálogo entre S. – de 25 anos – e sua mãe, durante a ultra-sonografia,
quando S. disse, logo ao ver a imagem da tela, que ‘tinha mais noção de que havia uma pessoa dentro
[dela]’, e sua mãe comentou que tinha sentido a mesma coisa ao perceber os primeiros movimentos fetais de
80
‘acelerado’, na medida em que várias situações são adiantadas no tempo: desde a percepção
‘concreta’ da existência do feto, até a determinação do sexo. Ao mesmo tempo em que o
discurso biomédico aumenta a ansiedade acerca de possíveis problemas durante a gestação,
a tecnologia apresenta-se como a forma eficaz de aliviá-la. Mesmo concordando em parte
com a crítica feminista acerca do quanto a visualização fetal perpetua o modelo da
autoridade médica patriarcal, Georges sugere que a forte demanda e a recepção entusiástica
das imagens fetais pelas mulheres podem também indicar o surgimento de uma nova
consciência e a conseqüente transformação delas em novos sujeitos: grávidas e modernas.
É inegável também que, na medida em que o ultra-som exerce e reforça a autoridade
médica, ele consolida a crescente hegemonia médica sobre a experiência reprodutiva da
mulher (Georges, 1996: 169-170).
Cabe sublinhar o quanto esta pesquisa corrobora a afirmação de Foucault acerca da
positividade do poder disciplinar que, através do escrutínio e também do prazer no
conhecimento, constrói subjetividades que sustentam e reforçam o poder (Foucault, 1984:
131-133; 1999: 117-192). Do estudo de Georges emerge um duplo aspecto no que tange às
relações de poder: reconfigura-se o poder da mulher sobre o feto, e emerge claramente o
poder da tecnologia biomédica exercido sobre a mulher, quando esta passa a depender da
aparelhagem e dos médicos para ter acesso ao concepto. Neste caso, há duas subjetividades
sendo construídas: a da mãe e a do feto – ambas mediadas pela tecnologia. Observa-se
também um rearranjo no que diz respeito ao poder e ao conhecimento da mulher sobre o
concepto, posto que este conhecimento – no passado, estritamente subjetivo e privado da
mulher – passa necessariamente a ser dividido com médicos e técnicos, na medida em que
depende destes para a sua produção. Além deste aspecto, com o feto tornado ‘público’,
amplia-se a rede de atores sociais envolvidos com a gestação (parceiros, familiares,
amigos, e outros).
A pesquisa de Fellous (1991) na França, por ter evidenciado uma gama bastante
variada de reações – positivas e negativas – ao exame ultra-sonográfico leva esta autora a
assumir uma postura de cautela e relativização em relação às conseqüências, para as
mulheres e seus parceiros, da ecografia obstétrica:
“ (...) pareceu-nos enganador falar univocamente do efeito da ecografia
sobre a vivência da gravidez e daí tirar conclusões gerais. (...) Viu-se que a
ecografia, por sua dimensão visual, pode enriquecer o processo de ‘tornarse mãe e pai’ ou, pelo contrário, perturbá-lo, quando vai às avessas ou
pretende substituí-lo. A vivência da ecografia varia segundo o contexto
social e relacional no qual se desenvolve a gravidez, segundo a elaboração
S. dentro dela (Georges, 1996: 164).
81
da mãe de suas próprias referências internas e da maturação da relação
com a criança que ela espera, e segundo sua própria história de fertilidade.
Viu-se o quanto esta eficiência deve-se menos à ‘imagem’ em si do que à
palavra médica que a acompanha e à relação na qual [esta palavra] está
inserida.” (Fellous, 1991: 38).96
Lisa Mitchell e Eugenia Georges (1998) desenvolveram estudo comparando o
impacto da ultra-sonografia na América do Norte e na Grécia. Através da análise das
diferenças evidenciadas entre os dois contextos, revelam como a construção social do feto
como Pessoa, mediada pela tecnologia do ultra-som, encontra-se profundamente
impregnada pelos valores vigentes em cada contexto. As similaridades encontradas,
conjugadas às diferenças, revelam que o feto-cyborg é, simultaneamente, constituído por
compreensões locais e globais.
O feto norte-americano aparece em filmes, anúncios e fotografias – as pessoas se
acostumaram a ver o feto, e esta visualização desempenha um importante papel em sua
construção e representação como um ator social. Na Grécia não há um ‘feto público’.
Raramente aparece na mídia e, apenas às vezes, em hospitais – em cartazes de campanhas
contra o fumo na gestação.
Sujeitos fetais e gestantes são culturalmente construídos. O consumo de tecnologia
de ultra-som tem sido uma forma de as gestantes se constituírem em sujeitos modernos na
Grécia contemporânea. A tecnologia médica, nesse país, tornou-se sinônimo de
modernidade, tanto para os pais quanto para os médicos. O consumo de tecnologia parece
ser importante para os gregos se sentirem incluídos na Comunidade Européia.97 Em
contraste, poucas canadenses referiam-se ao ultra-som como um exemplo de “ progresso
médico” , ou como algo que “ nossas mães não tiveram” . O ultra-som era visto como meio
de “ fazer o melhor para o bebê” ou de alívio com relação às preocupações sobre
anormalidades fetais ou risco de aborto (Mitchell & Georges, 1998: 119).
O ultra-som foi concebido e é encarado por médicos e gestantes como um meio de
revelar o que é ‘natural’, ‘verdadeiro’ e ‘comum’ a todos os fetos e gestações. Desta forma,
apresenta-se como uma tecnologia sem cultura, universalizante. As autoras sublinham que
o feto-cyborg que emerge dessa tecnologia revela muito das condições históricas e culturais
de sua produção. A cyborgificação ao mesmo tempo reproduz e reconfigura os
96
Cabe assinalar que Michèle Fellous apresenta, na comparação com os outros autores aqui estudados, uma
visão significativamente mais psicologizada acerca do impacto causado pelo ultra-som sobre os atores
envolvidos em sua produção. Os outros autores trazem, a meu ver, um ponto de vista de caráter mais político
e antropológico. A comparação entre os dois tipos de abordagem revela-se interessante na medida em que
uma visão pode servir como contraponto à outra.
97
A Grécia foi um dos últimos países da Europa a serem integrados à Comunidade Européia.
82
entendimentos sobre – e o relacionamento com – o feto. Apesar de o ultra-som expandir
dramaticamente a apreensão cognitiva e sensorial do feto, este processo se dá sempre
dentro dos limites das formações discursivas dominantes. A perspectiva transcultural traz a
possibilidade de explorar a forma complexa pela qual estes discursos poderosos operam na
sociedade (Mitchell & Georges, 1998: 120).
“ No Canadá, o ultra-som está referido à separação e reconexão de
indivíduos. As gestantes esperam ser ‘apresentadas ao seu bebê’ [meet the
baby] na tela do ultra-som e são encorajadas por experts a verem na tela
digitalizada evidências de um ator com gênero, consciente e sensível,
comunicando suas demandas e necessidades. Capturadas pela ideologia
complexa e pública do risco, através do ultra-som provam que são ‘boas
mães’ (...) Na Grécia, a produção de sujeitos gestantes e fetos é
marcadamente diferente. A evidência de normalidade física é lida como
evidência da ‘condição de Pessoa’ fetal. Entretanto, os fetos permanecem
como seres relacionais, cuja construção como Pessoa é constituída
primariamente através de redes de parentesco. Para as mulheres gregas,
buscar o ultra-som torna-as grávidas e modernas, simbolicamente afiliadas
à Europa e ao Ocidente.” (Mitchell & Georges, 1998: 120-121).
As diferenças na construção das pessoas do feto e da mãe são destacadas na
comparação das traduções culturais populares do conhecimento expert sobre a gestação:
100% das canadenses lêem guias sobre a gravidez, muitos dos quais apresentam as fotos do
feto vivo, mais recentes, de Lennard Nillson, enquanto apenas 50% das gregas lêem guias.
A maioria destas lê Birth is Love, o único guia escrito por um grego. Além da famosas
fotos dos fetos autopsiados de Lennard Nillson, de 1965 – solitários, rosados, vulneráveis,
chupando o dedo – há, neste guia, imagens em preto e branco nada enternecedoras. Na
Grécia o texto é focado exclusivamente nas características físicas e no desenvolvimento do
feto, e o conceito de vínculo (bonding) está ausente. Há muitos conselhos para que as
mulheres sejam “ boas pacientes” para os médicos, pontuais às consultas, além de precisas
e concretas em seus relatos – as gestantes gregas devem ser sujeitos modernos e
disciplinados. No Canadá o feto é percebido pelos ecografistas e mulheres como sensível,
ativo, um indivíduo socializado, engajado em atividades intencionais e o vínculo maternofetal é enfatizado como a experiência central e essencial da gravidez.98 As canadenses, já
medicalizadas e disciplinadas são “ compensadas” com a comunicação materno-fetal
(Mitchell & Georges, 1998: 119-20), mediada e potencializada pela tecnologia de imagem.
As duas situações parecem ser faces diferentes de um dispositivo do bio-poder.
98
Para Petchesky (1987) a noção de um investimento afetivo (ou bonding) baseado em uma imagem
fotográfica tem um sentido fetichista, na medida em que se trata do: “ (...) investimento de sentimentos
eróticos em uma fantasia.” (Petchesky, 1987: 70).
83
Torna-se evidente que o feto, neste contexto, funciona como ponto em torno do qual
articulam-se, constróem-se e são ao mesmo tempo reforçados a subjetividade da mulher, o
poder médico e a ampliação, disciplinarização e normatização dos corpos – dos fetos e das
mães.
4.2.2) O feto civil, político e comercial
As imagens fetais vêm sendo amplamente utilizadas na luta política contra o direito
de aborto, por exemplo (Rapp, 1997: 47). Petchesky (1987) discute de que forma estas
imagens são apropriadas e transformadas em um discurso moral, ao analisar o vídeo The
Silent Scream – produzido pelo Dr. Bernard Nathanson –,99 que foi largamente exibido
pela mídia eletrônica em 1984, nos EUA. Segundo Petchesky,
“ The Silent Scream marcou uma mudança dramática na concorrência por
imagens sobre aborto. Com uma esplêndida perspicácia, traduziu as
imagens imóveis e agora rotineiras do feto como ‘um bebê’, em um vídeo
em tempo real, desta forma (1) dando a essas imagens uma interface
imediata com a mídia eletrônica; (2) transformando a retórica anti-aborto
de predominantemente místico-religiosa em um estilo médico-tecnológico; e
(3) ‘dando vida’ à imagem fetal. (...)” (Petchesky, 1987: 58).
Prosseguindo em sua análise do vídeo, Petchesky aponta que este levanta questões
importantes acerca do que significa ‘evidência’ ou ‘informação médica’, uma vez que a
imagem ultra-sonográfica é apresentada como a ‘prova’ de que o feto está vivo, “ é humano
como nós” e “ sente dor” . Estas duas últimas afirmações foram contestadas por médicos
que, em debates no New York Times, argumentaram que com 12 semanas de vida o feto
não tem ainda um córtex cerebral, não podendo, portanto, sentir dor e, menos ainda,
‘gritar’, pois não existe ar em seus pulmões; neste ponto de seu desenvolvimento, o feto
apresentaria apenas movimentos reflexos. Os movimentos rápidos foram denunciados
como truques na edição do vídeo. Contudo, o poder ideológico do filme, a despeito de suas
incoerências e fraudes, reside no fato de que ele pertence muito mais ao terreno das
representações culturais do que ao das evidências médicas (Petchesky, 1987: 60-1). Ainda
de acordo com essa autora,
99
O vídeo registra, através de ultra-som, o aborto de um feto de 12 semanas, e intercala essas imagens com a
mesa cirúrgica de aborto e com Dr. Nathanson ‘explicando’ o que se está vendo, tudo isso acompanhado por
uma melodia de órgão como fundo musical. O ultra-som mostra a cânula de aspiração sendo introduzida no
útero da mulher, e o feto ‘tentando escapar’ – movimentos rápidos – e finalmente ‘lançando a cabeça para
trás’, em um ‘grito silencioso’. Petchesky assinala que, juntamente com a exibição de um aparato altamente
tecnológico, o que se ouve no vídeo é semelhante à moralidade medieval, em uma retórica anti-aborto
padronizada. Observa que a retórica não é a da ciência, assemelhando-se mais à do seriado norte-americano
‘Miami Vice’ (Petchesky, 1987: 60). Dr. Nathanson era um ginecologista-obstetra, ex-aborcionista que
converteu-se em anti-aborcionista militante.
84
“ A aparência [do vídeo] de documento médico obscurece e reforça um
conjunto codificado de mensagens, que operam como símbolos políticos e
injunções morais. (...)” (Petchesky, 1987: 61).
O vídeo adquiriu credibilidade pelo fato de estar envolto em uma aura de autoridade
médica, associada à sedução da tecnologia e ao impacto cumulativo de imagens fetais da
década que o antecedeu. Petchesky assinala que desde o surgimento de imagens –
fotográficas – do feto, pela primeira vez na mídia, em 1962 na revista LIFE,100 este sempre
foi apresentado como isolado ou autônomo, a mulher como periférica – quando não
ausente (Petchesky, 1987: 62). Para essa autora, a imagem isolada e flutuante do feto
“ (...) não faz mais que estender para a gestação a visão hobbesiana acerca
dos seres humanos, como indivíduos desconectados e solitários. É esse
individualismo abstrato – que anula tanto a mulher grávida quanto a
dependência do feto a ela – que proporciona à imagem fetal sua
transparência simbólica, de maneira a possibilitar que vejamos nele nosso
próprio self, nossos bebês perdidos, nosso mítico passado seguro.”
(Petchesky, 1987: 63).
Passa, dessa forma, a haver a instrumentalização tecnológica de representações –
com imagens – cada vez mais precoces da gravidez, contribuindo para o surgimento de
noções de ‘pessoalidade’ e independência dos fetos em relação às suas mães (Rapp, 1997:
47). Do ponto de vista do ativismo anti-aborto (ou pró-vida, como este se auto-intitula), a
‘condição de Pessoa’ do feto é um dos carros-chefes, e esta noção carreia implicitamente a
idéia de que a mulher ficaria subordinada ao concepto, durante a gravidez (Martin, 1992:
100-101). Como uma contraface do mesmo processo, verifica-se também uma crescente
psicologização da gravidez e do próprio feto (Lo Bianco, 1985). A ‘autonomização’ do feto
sublinha sua ‘independência’ em relação à mãe, enquanto a sua psicologização enfatiza –
além da individualização e subjetivação – o aspecto relacional e a dependência.101
100
Mitchell e Georges (1998: 119) referem-se a estas fotos como tendo surgido em 1965 na mídia. Rapp
(1997: 44) também data estas fotos da LIFE como sendo do ano de 1965.
101
A medicalização do parto também desempenha um papel significativo na construção de ‘pessoalidade’ e
independência do bebê, quando não de franca oposição entre este e a mãe. Martin assinala que, no que tange
à intervenção médica no nascimento, relacionada à idéia do parto como intrinsecamente traumático para o
bebê, “ (...) é construído um papel para o médico como aliado do bebê contra a potencial destruição
executada [vingativamente] pelo corpo da mãe sobre este. Nos termos de Rothman [Barbara Katz Rothman],
‘mãe/bebê são vistos no modelo médico mais como uma díade conflitiva do que como uma unidade
integrada’.” (Martin, 1992: 64). Para Martin, a metáfora da produção quando aplicada ao nascimento – a
mãe como ‘trabalhadora’, o bebê como ‘produto’ – norteia uma série de questões relativas ao controle e às
decisões sobre o tipo de parto e a própria condução da gravidez. O papel da mulher no parto, em manuais de
obstetrícia, é visto como praticamente acessório, sendo o controle da situação atribuído ao médico,
encarregado de lidar com a tecnologia de monitoração do estado do feto. O obstetra torna-se o ‘aliado’ da
vida do bebê ‘inocente’; Martin pergunta-se até que ponto esta articulação visa realmente o bem-estar e a
saúde do bebê, ou se de fato esta atitude não consiste basicamente em um controle sobre a mulher e seu parto
(Martin, 1992: 148). Shorter (1997: 139-176) compartilha parcialmente deste ponto de vista, discutindo a
falta de controle da mulher sobre seu parto, mas por um ângulo diverso.
85
Em alguns estados dos EUA os ‘direitos fetais’ são objeto de legislação específica,
e o feto é referido como “ criança-não-nascida” , sendo seus direitos considerados
separadamente dos da mãe (Heriot, 1996). Há que ressaltar, ainda, o paradoxo apontado
por Rayna Rapp: ao mesmo tempo que as imagens fetais são produzidas em ‘tempo real’
dentro dos corpos femininos, elas sofrem um tratamento visual e se apresentam
incorpóreas, flutuantes (Rapp, 1997: 47). O ‘feto-em-tempo-real’ visualizado através do
ultra-som é, simultaneamente, pessoal, doméstico e íntimo e provoca uma reflexão ampla,
pública e política a respeito do papel da mãe, entre outras questões.102
Trata-se aqui de um exemplo da postulação de Foucault com relação ao poder
disciplinar que, ao ampliar o controle dos corpos e disciplinarizá-los, também constrói
subjetividades e singularidades que por sua vez o sustentam (Foucault, 1999: 125).
Amplia-se a vigilância e constitui-se
“ (...) [exercício da disciplina e jogo do olhar] um aparelho onde as técnicas
que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de
coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam (...)”
(Foucault, 1999: 143).
O surgimento de uma nova especialidade – a medicina fetal – parece corroborar
essa visão. O feto ‘visível’ torna-se passível também de uma vasta gama de intervenções,
diretas e indiretas, que vão desde modificações alimentares impostas à mãe até
intervenções cirúrgicas – realizadas dentro e fora do útero – antes do seu nascimento.103
Abre-se também um novo mercado de produtos dirigidos à gestante. Como
exemplo, o ‘seu-bebê-a-cada-dia’: uma agenda que informa à grávida o que está ocorrendo
com seu feto em cada dia da gestação. Como se fosse uma troca: já que a subjetividade e
sensorialidade maternas como fontes de conhecimento confiável foram relativamente
lateralizadas em favor do aparato tecnológico, é-lhe oferecida a possibilidade, mediada
pela ‘agenda’, de ‘acompanhar, dia-a-dia’ o que se passa em seu interior. Este
deslocamento ou mediação pode também ser relacionado à fragmentação do corpo
feminino apontada e detalhada por Martin (1992: 71-91). A mulher precisa ‘receber
notícias’ do que se passa dentro dela.
Um outro exemplo de pressão mercadológica pode ser visto no desenvolvimento
recente de aparelhos de ultra-sonografia que produzem imagens em 3D, o que gera uma
nova demanda na produção de imagens fetais. Do ponto de vista diagnóstico, este novo
102
Refiro-me aqui a discussões acerca de direito de aborto, política de assistência materno-infantil, anomalias
genéticas e aborto ‘eugênico’.
103
Rothman observa que a mesma tecnologia que produz o feto ‘visível’ torna também a mãe ‘invisível’
(Rothman, 1986 apud Petchesky, 1987: 70).
86
dispositivo tecnológico acrescenta pouco ou quase nada ao acompanhamento da gestação.
Entretanto, a possibilidade de ‘ter uma foto do rosto de seu bebê’, antes do nascimento, é
acenada para as futuras mães que passam, então, a escolher os centros de imagem que
disponham de aparelhagem 3D.
4.2.3) Transformação: da imagem ao ‘bebê’
A avaliação e padronização do desenvolvimento ‘normal’ da gravidez e do feto, em
nossos dias, vem passando cada vez mais a ser necessariamente mediada pelo uso da
tecnologia. Na expressão de Petchesky, do ponto de vista do médico o ultra-som consistiria
em uma espécie de “ panóptico do útero” , ampliando a vigilância sobre o feto e o controle
médico sobre a gravidez (Petchesky, 1987: 69). Por um lado, observa-se que a percepção
da mulher acerca da evolução de sua gestação é lateralizada, por ‘não confiável’,
substituída pelo aparato tecnológico. Por outro, este mesmo aparato media, modifica e
fornece subsídios para a construção de novas sensações e sentimentos em relação ao seu
feto, em parte por antecipar a percepção da gravidez e em parte por promover uma
reconfiguração da sensorialidade materna através da fusão da visualidade com sensações
táteis.
A partir de cinco semanas de gestação o feto torna-se visualizável pelo ultra-som.104
A noção e a vivência subjetivas de ‘maternidade’ são, assim, antecipadas
comparativamente ao que ocorria algumas décadas antes, em um processo chamado por
Rayna Rapp de fast-forwarding
(Rapp, 1997: 38). Segundo Rapp, o aspecto mais
significativo do processo de personificação do feto é a determinação do sexo, que pode ser
realizada (com maior grau de precisão) a partir da vigésima semana de gravidez.105 O
conhecimento do sexo do feto “ (...) aumenta a velocidade da gravidez (...)” , deixando de
ser um ‘ser imaginário’ para tornar-se um ‘menininho ou menininha’ (Rothman, 1986 apud
Rapp, 1997: 40).106 Para pais de primeira vez esta ansiedade parece ser maior. Em
entrevistas com mulheres grávidas, Rapp observou que menos de um quarto das mulheres
104
Com uma semana de atraso menstrual já se pode visualizar o saco gestacional através do ultra-som,
embora o primeiro exame de ultra-som seja, em geral, realizado em torno da 6a semana.
105
Desde a décima-terceira semana de gestação já é possível visualizar-se o sexo do feto, embora via de regra
esta determinação seja feita na vigésima semana.
106
Michel Soulé, psicanalista francês, alcunhou a ecografia obstétrica de “ interruption volontaire du
fantasme” em alusão à “ interruption volontaire de grossesse” (Fellous, 1991: 10). Recentemente uma
mulher anglófona, grávida do primeiro filho, em conversa informal comigo, justificou assim o querer saber o
sexo do bebê logo que possível: “ Quero saber logo de uma vez, porque não agüento mais me referir ao bebê
como it!” . Rapp pontua que o lento processo de tornar o bebê, já nascido, sexuado, é atropelado pela pressa
de se saber o sexo do feto (Rapp, 1997: 40). Sobre o sexo e gênero como construções sociais, ver também
Laqueur (1990) e Findlay (1995).
87
não queria saber o sexo da criança, sendo que a maioria delas era multípara (Rapp, 1997:
40). Todos estes aspectos da vivência reconfigurada de maternidade contribuem de maneira
determinante para a construção de uma nova subjetividade para a mulher, além da
atribuição de subjetividade ao próprio feto.
Fellous (1991: 26-35) chama a atenção para o fato de que nem sempre esta
aceleração – ou antecipação – proporcionada pela ultra-sonografia é vivenciada de forma
positiva pelas mulheres. Para algumas delas pode haver o sentimento de terem seu
“ segredo roubado” pela revelação do sexo do feto, a ecografia como uma interferência
“ quase insuportável” , uma “ violência” , um impedimento de vivenciarem de forma
gradual as mudanças que ocorrem no interior de seus corpos, por
“ (...) uma discordância entre as sensações e imagens internas elaboradas
pela mulher, sua maturação que segue um ritmo próprio, e as imagens
externas que lhe são apresentadas.” (Fellous, 1991: 31).
A possibilidade de visualização do feto é um elemento potente para a constituição
de um deslizamento de ‘feto’ para ‘bebê’, deste para ‘Pessoa’ e – com a intervenção da
medicina fetal – ‘paciente’. Um exemplo bastante significativo e um tanto bizarro desse
deslizamento pode ser observado em um texto que circula por correio eletrônico na
Internet, contendo em anexo uma foto – intitulada “ Mão Amiga” – realizada durante uma
cirurgia em um feto de 21 semanas. Na imagem vê-se nitidamente o abdômen cortado da
mãe e o útero exposto, com um corte de onde emerge a mão minúscula do feto segurando o
dedo enluvado do cirurgião. Segue-se o texto:
“ Assunto: Mão amiga
Data: Segunda-feira, 20 de Março de 2000 15:43
(...) Um fotógrafo que fez a cobertura de uma intervenção cirúrgica para
corrigir um problema de espinha bífida107 realizada no interior do útero
materno num feto de apenas 21 semanas de gestação, numa autêntica
proeza médica, nunca imaginou que a sua máquina fotográfica registraria
talvez o mais eloqüente grito a favor da vida conhecido até hoje (...) Paul
Harris (...) captou o momento em que o bebê tirou a sua mão pequenina do
interior do útero da mãe, tentando segurar um dos dedos do médico que o
estava a operar (...) A pequena mão que comoveu o mundo pertence a
Samuel Alexander, cujo nascimento deverá ter ocorrido no passado dia 28
de Dezembro (no dia da foto ele tinha apenas 5 meses de gestação) (...) A
vida do bebê está literalmente presa por um fio. Os especialistas sabiam
que não conseguiriam mantê-lo vivo fora do útero materno e que deveriam
tratá-lo lá dentro, corrigindo a anomalia fatal e voltando a fechar o útero
para que o bebê continuasse o seu crescimento normalmente. (...) Agora, o
Samuel tornou-se no[sic] paciente mais jovem que já foi submetido a este
tipo de intervenção e, é bem possível que, já fora do útero da mãe, Samuel
107
Malformação congênita da coluna vertebral, causadora de graves seqüelas neurológicas.
88
Alexander Arms aperte novamente a mão do Dr. Bruner (...).” (Grifos
acrescentados).
O “ feto de apenas 21 semanas de gestação” transforma-se em “ bebê” , a quem é
atribuída uma intencionalidade no momento em que “ tirou sua mão pequenina (...)
tentando segurar um dos dedos do médico” . No momento seguinte, o feto que se
transformou em bebê com uma intencionalidade, adquire um nome – “ Samuel Alexander”
– mesmo ainda dentro do útero da mãe. Em seguida, o bebê com nome, mas ainda dentro
do útero, torna-se um “ paciente” e, finalmente – em uma projeção do futuro, pode-se
visualizá-lo adulto, com nome e sobrenome, agradecendo ao médico. Há uma aceleração
no tempo, que é reforçada pela imagem que vem em anexo ao texto, posto que a mão do
feto é, de fato, uma minúscula e perfeita mão – humana.108
4.2.4) A inclusão do feto na categoria Pessoa: significados e desdobramentos.
A discussão em torno de incluir ou não do feto na categoria Pessoa passa-se em um
terreno minado. De um lado, encontra-se a vertente pró-escolha, liderada pelas feministas.
De outro, os ativistas anti-aborto. Segundo Macklin,
“ (...) os valores que informam as várias definições de Pessoa tornam
impossível, no contexto do debate sobre aborto, chegar-se a alguma
conclusão acerca do status do feto como Pessoa.” (Macklin, 1984 apud
Heriot, 1996: 183).
O debate bioético acerca do início da vida humana é infindável e foge ao escopo
deste trabalho. De toda forma, cabe sempre lembrar que esta discussão, como qualquer
outra, é informada pelos valores vigentes da sociedade onde se desenrola.
A atenção dada especificamente ao feto – que gradualmente passa a ser visto como
um ser destacado da mãe que o traz no útero – tem conseqüências de várias ordens, dentre
os quais, como já mencionado, o surgimento da ‘medicina fetal’ como uma nova
especialidade médica e os ‘direitos fetais’, que em alguns estados dos EUA já são objeto de
legislação própria e de projetos de lei. A aliança entre a medicina e a lei inverte a
hierarquia mãe-feto em alguns casos, ao atribuir autonomia e posicionar o feto como
hierarquicamente superior à mãe, em termos de direitos civis (Heriot, 1996: 182). Esta
inversão vem sendo observada e problematizada por diversas autoras feministas.109
Segundo diversas autoras que se dedicam a monitorar o sistema legal nos EUA, a oposição
108
Há inúmeras outras leituras possíveis para este texto, a começar pela elação em torno dos feitos médicos,
passando pela ciência-espetáculo, entre outras. Contudo, uma análise mais extensa foge ao escopo deste
trabalho.
109
(Heriot, 1996; Duden, 1993; Martin, 1992; Rapp, 1997, 1998, 1999).
89
construída entre ‘direitos do feto’ versus ‘direitos da mãe’ funciona como uma das
racionais para a ampliação do controle sobre o corpo da mulher (Heriot, 1996: 181). Por
um outro ângulo, pode-se pensar também que a supervalorização do feto, ao reafirmar a
potência do saber ‘científico’ que possibilita acesso e interferência cada vez maiores, tanto
sobre o feto quanto sobre o corpo da mulher e – porque não –, todos os corpos humanos,
seria indicativa de uma estratégia mais ampla de controle, como um dispositivo do biopoder.
✼✼✼
Embora fugindo um pouco ao ponto abordado, não se pode ignorar que há outro
aspecto que concorre de maneira relevante para novas configurações na sociedade
contemporânea, tomado aqui como pano de fundo para a questão em foco. Trata-se do
desenvolvimento das novas tecnologias reprodutivas. Constrói-se a idéia de que a
‘infertilidade’ é um problema médico que pode ser ‘resolvido’, recorrendo-se à reprodução
assistida. O discurso implícito é de que, em nossa sociedade, ‘só não tem filhos quem não
quer’. Se querer filhos é apresentado como um ‘desejo natural’, “ (...) o desejo de produzir
filhos está profundamente enraizado no instinto biológico (...) e [é] uma expressão natural
do amor” (Barker, 1986 apud Franklin, 1990: 207),110 a geração de filhos adquire o sentido
de uma obrigação. Cabe também notar que o discurso biomédico, apresentado como uma
forma ‘neutra’, ‘científica’ e ‘objetiva’ de informar ao público, inevitavelmente veicula
noções e valores morais. Aparentemente está-se diante de um novo movimento natalista,
no qual, consequentemente, o feto torna-se um elemento articulador central. Se
considerarmos que a produção de filhos – metáfora extensamente discutida por Martin
(1992) – tem este caráter estratégico fundamental, torna-se compreensível a atenção que
vem sendo dada ao feto, erigido ao status de Pessoa, além do que também ele passa a estar
submetido aos mesmos controles, disciplinarizações e intervenções que o restante da
população.
Esta nova extensão dos limites da Pessoa, correspondendo a uma ampliação do
controle dos corpos pelo bio-poder, permite que se entenda a grande força que este
movimento de inclusão vem adquirindo nas últimas décadas do século XX.
110
Dr. Graham Barker publicou The New Fertility, um guia popular para tratamento da infertilidade, bestseller na Inglaterra.
90
Capítulo 5
CONSIDERAÇÕES FINAIS: ‘NOVO’ FETO, ‘SUPER-RAÇA’?
“ – Condicionamento ao calor – disse o Sr.
Foster.
Túneis quentes alternavam com túneis
resfriados. O resfriamento estava ligado ao
desconforto sob a forma de raios X duros. Quando
chegavam ao ponto de serem decantados, os embriões
tinham horror ao frio. Ficavam predestinados a
emigrarem para os trópicos (...) Mais tarde, seu
espírito seria formado de maneira a confirmar as
predisposições do corpo.
– Nós os condicionamos de tal modo que eles
se dão bem com o calor – disse o Sr. Foster em
conclusão. – Nossos colegas lá em cima os ensinarão
a amá-lo.
– E esse – interveio sentenciosamente o
Diretor – é o segredo da felicidade e da virtude: amar
o que se é obrigado a fazer. Tal é a finalidade de todo
condicionamento: fazer as pessoas amarem o destino
social a que não podem escapar.”
(Aldous Huxley, 1981: 27) (Grifo original).
✼
“ (...) É curioso – prosseguiu, depois de uma pequena
pausa – ler o que se escrevia na época de Nosso Ford
sobre o progresso científico. Segundo parece,
imaginavam que se podia permitir que ele continuasse
indefinidamente, sem consideração a qualquer outra
coisa. O saber era o mais alto bem; a verdade, o
valor supremo; tudo o mais era secundário e
subordinado. É certo que as coisas já então estavam
começando a mudar. (...)”
(Aldous Huxley, 1981: 199).
Os diversos e multifacetados aspectos que surgiram ao longo deste estudo –
articulados em torno da construção do feto como Pessoa através da tecnologia de imagem –
foram agrupados em três conjuntos de questões, com o objetivo de apontar hipóteses para
futura investigação em trabalho de campo, etnográfico, com observação participante, no
Rio de Janeiro.
91
O primeiro conjunto diz respeito à ampliação do Individualismo na sociedade
contemporânea, à sua difusão diferenciada pelas distintas classes sociais e à construção da
Pessoa moderna, e de que maneira este movimento se reflete na – e configura a – produção
da Pessoa fetal. O segundo conjunto reúne a inclusão do feto na categoria Pessoa e a
reconfiguração desta categoria. Esse movimento de inclusão, mediado de maneira marcante
pela tecnologia de imagem, articula-se com a produção de uma nova corporalidade,
‘híbrida’ ou cyborg, como a resultante de uma mescla de corpo e máquina. A terceira série
de questões diz respeito ao surgimento das novas tecnologias reprodutivas e algumas de
suas diversas conseqüências, particularmente no que tange ao status do feto e ao
surgimento de uma nova ‘eugenia’ – agora possibilitada pela manipulações genéticas e
também pelo acesso ampliado ao feto, através de exames laboratoriais e da tecnologia do
ultra-som.
-INo final do século XVIII, na sociedade ocidental, juntamente com a transformação
na arte de governar – do governo ‘do território’ para o governo ‘das coisas’ –, houve uma
mudança qualitativa na estrutura familiar, com a emergência e consolidação da família
nuclear, concomitante ao aumento da importância estratégica da família para o novo
modelo de governo. Nessa nova articulação foi atribuído à mulher um papel crucial como
elemento de, ao mesmo tempo, disciplinarização e sobrevivência da prole. A nova
estratégia do poder, ao constituir a mulher como cidadã e mãe valorizada, em um novo
lugar na rede de relações de poder, construía assim uma nova subjetividade, tanto para a
mulher quanto para a própria criança. Este processo abriu caminho para, mais adiante,
ocorrer o mesmo em relação ao bebê e ao feto, respectivamente nos séculos XIX e XX.
A construção da maternidade como um valor moral e social surge do mesmo
contexto de onde emerge o Indivíduo como um valor: o Iluminismo. As duas condições –
Indivíduo e maternidade – como valor tiveram como arautos, na França, exatamente os
mesmos pensadores: Montesquieu, Rousseau, Voltaire e os enciclopedistas. Na Inglaterra,
Locke desempenhou o mesmo papel. A maternidade como um valor foi, a meu ver, um dos
mais
importantes
elementos
para
a
construção
da
subjetividade
feminina
e
consequentemente para a constituição da mulher como um tipo específico de Indivíduo na
sociedade ocidental moderna. A imagem de ‘mãe’ que vigora atualmente em nossa
sociedade é o produto de um longo processo histórico, que tem no século XVIII um
92
momento crítico. A compreensão da forma como essa subjetividade e esse papel foram
construídos pode fornecer subsídios para a análise das diversas reconfigurações nos laços
de parentesco que vêm sendo produzidas na sociedade ocidental contemporânea, tanto por
conta de modificações na estrutura familiar quanto pela introdução das novas tecnologias
reprodutivas.
A construção e também o sucesso da maternidade como um valor, a partir do século
XVIII, devem-se ao fato de que nela se articulavam – de forma elegante e eficaz – uma
série de elementos constitutivos da rede de relações do poder. Essa articulação é
indissolúvel, sendo impossível pensar em um dos elementos da rede sem os outros. A
enumeração dos componentes não passa de um artifício analítico. O sentimento da
infância, que começara a surgir em torno do século XVI, assim como a noção das idades
como elemento identificador das pessoas e a subseqüente conceituação de uma
especificidade infantil (Ariès, 1978) corresponderam, de perto, à consolidação do poder
disciplinar que, ao separar, classificar, esquadrinhar e definir os seres, constituiu
individualidades e, ao mesmo tempo, ampliou o controle dos corpos e reforçou a rede de
relações constitutiva do próprio poder (Foucault, 1984, 1998a, 1999).
Cada elemento da rede assim constituída é fundamental: a criança torna-se um ser
com status potencial de Indivíduo e passa, portanto, a ser considerada insubstituível. O
mesmo pode ser dito em relação à mulher – mãe em potencial, geradora portanto de
potenciais Indivíduos – a quem foi oferecido o lugar eminente de cuidadora e articuladora
essencial dos outros elementos da rede, com a família ocupando um lugar privilegiado em
relação ao restante da população. Ao longo de todo o século XIX é possível observar-se
historicamente a consolidação do bebê como um objeto de sensibilização e atenção médica
e social, construído e valorizado socialmente como indivíduo singular.111 No decorrer do
século XX, principalmente a partir do fim da I Guerra Mundial – e talvez mesmo em parte
como decorrência dela – verifica-se a valorização e atenção crescentes relativas ao feto,
questão central, focalizada e discutida neste trabalho.
A construção da maternidade como um valor e a do feto como Pessoa fazem parte
de um processo histórico e cultural mais amplo que envolve a construção da Pessoa
moderna.
Segundo Marcel Mauss, a “ pessoa” , ou o “ eu” , é uma categoria construída
culturalmente com diferentes atributos: racionalidade, ação, participação, gênero – que
111
Cabe assinalar que, evidentemente, para os enormes contingentes populacionais vítimas da exclusão social
em nossos dias esta lógica não se aplica. A discussão dessa questão, contudo, escapa ao âmbito deste
93
dependem do local e da época em que se inserem. Ainda para este autor e também para
seus seguidores, a Pessoa é uma categoria ‘embutida’ em um corpo físico, mas
independente da fisicalidade, na medida em que é configurada histórica e culturalmente
(Dumit, 1997: 83).
Mauss chama a atenção para o fato de que o “ eu” – como uma categoria do espírito
humano – é, na realidade, resultado das vicissitudes de um processo ao longo de muitos
séculos “ a ponto de, ainda hoje, ser flutuante, delicada, preciosa e estar por ser
elaborada.” (Mauss, 1974: 209) (Grifo acrescentado). Para Mauss, nos últimos dois
séculos,
“ (...) [A categoria do ‘eu’] Longe de ser a idéia primordial, inata,
claramente inscrita no mais profundo do nosso ser desde Adão, eis que ela
continua ainda em nossos dias, lentamente, a edificar-se, a esclarecer-se, a
especificar-se, a identificar-se com o conhecimento de si, com a
consciência psicológica.” (Mauss, 1974: 237) (Grifos acrescentados).
Ao retraçar as origens e vicissitudes da categoria, Mauss estabelece, portanto, a
noção da Pessoa como um constructo histórico e cultural. Para Luiz Fernando Dias Duarte
(1986), Mauss funda uma via de relativização profunda da noção de Pessoa (Duarte, 1986:
36). Na sociedade ocidental contemporânea, marcada pelo Individualismo, há uma
coincidência entre o sujeito empírico, o Indivíduo-valor e a Pessoa. A noção de Pessoa é
limitada pelas fronteiras do próprio corpo, em comparação com as culturas nas quais a
linhagem, o totem e o grupo, por exemplo, configuram de maneira diversa a idéia de
Pessoa. A concepção moderna de Pessoa é caracterizada por sua indivisibilidade e
autonomia, em contraste com outras concepções, nas quais o grupo é o portador da
identidade do sujeito (Duarte, 1986: 37).
De acordo com Duarte (1986), Louis Dumont relativiza radicalmente a noção
moderna de Pessoa, ao especificar a ideologia moderna do Individualismo na construção
desta categoria (Duarte, 1986: 40).112 Como exemplo, a noção de Indivíduo como valor,
presente nas sociedades de cunho individualista, igualitário, e ausente nas sociedades
holistas, hierárquicas: nestas, o valor está no conjunto social e na organização da sociedade
visando fins coletivos. Nas sociedades hierárquicas, cada sujeito contribui para uma ordem
global, enquanto nas sociedades de cunho individualista a organização da sociedade tem
trabalho.
112
Através do estudo sobre a hierarquia na sociedade indiana, Dumont visa apreender intelectualmente outros
valores e, assim, obter uma visão antropológica dos valores em vigor em nossa própria sociedade. O
entendimento do sistema de castas – o oposto da moderna ideologia igualitária – permite uma visão
relativizada da sociedade ocidental contemporânea, impedindo que se tome esta como ‘verdade universal’ ou
a expressão ‘adequada’ da vida social. Segundo esse autor, a comparação evidencia que a ideologia presente
94
como meta a felicidade individual (Dumont, 1992: 57).
Ao longo desta pesquisa emergiu um outro aspecto a ser considerado, concernente à
difusão diferenciada do Individualismo nos diferentes países e pelas distintas classes
sociais. Diversas questões, discutidas ao longo deste trabalho a partir de diferentes autores,
reforçam esta hipótese. A noção de infância difundiu-se de forma não homogênea nas
diversas classes sociais ao longo do tempo, assim como ocorreu com a modificação no
sentimento materno, conforme assinalado por Ariès (1978) e explicitado por Shorter
(1977). As publicações acerca de cuidados com bebês e crianças, na segunda metade do
século XVIII, foram inicialmente dirigidas às classes mais abastadas e só se difundiram nas
classes populares ao longo do século XIX. O papel social da mãe, da mesma forma,
configurou-se diferentemente de acordo com a classe na qual a mulher estava inserida,
conforme discute Donzelot (1986). No que tange à ideologia predominante em determinada
sociedade – se individualista ou hierárquica – a noção de Pessoa, ao mesmo tempo que
encontra-se profundamente impregnada pelos valores em circulação, também circunscreve,
limita e modela as possibilidades de reconfiguração do próprio conceito nessa mesma
sociedade. Esta questão fica claramente evidenciada no trabalho comparativo de Mitchell e
Georges (1998) sobre a construção da Pessoa fetal na América do Norte –
predominantemente individualista – e na Grécia – que na comparação pode ser considerada
como mista, com acentuados traços hierárquicos.
A difusão diferenciada do Individualismo e do ‘consumo’ de medicina pelas
diversas classes sociais foi assinalada e discutida por Ropa e Duarte (1985). Segundo estes
autores, as características que aproximam os indivíduos do sistema médico-científico de
explicação procedem de três fatores que intervêm no processo de socialização dos sujeitos:
a “ reflexividade” , a “ verbalização” e a “ problematização” , que estariam presentes de
formas heterogêneas nas várias classes sociais, configuradas a partir de diferentes habitus
de classe113 (Ropa & Duarte, 1985: 186). Sublinham que a
“ (...) intimização, interiorização psicológica, auto-exame, privatização dos
sentimentos, seriam vertentes de um mesmo processo de difusão do
individualismo ou de uma estratégia disciplinar (...)” (Ropa & Duarte,
1985: 191),
e esse processo inicia-se pelas camadas médias e altas da sociedade moderna (Ropa &
Duarte, 1985: 191). Há uma associação bastante estreita entre Individualismo e
nas sociedades determina e configura os valores nelas vigentes (Dumont, 1992: 50).
113
De acordo com a definição de Bourdieu, “ sistema das disposições socialmente constituídas que, enquanto
estruturas estruturadas e estruturantes, constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas
e das ideologias de um grupo de agentes.” (Bourdieu, 1998: 191).
95
psicologização – as ‘ciências psicológicas’ constituindo-se como “ o apogeu da progressiva
segmentação individualizante: um saber ‘autônomo’ sobre sujeitos ‘autônomos’.” (Ropa
& Duarte, 1985: 193). A análise comparativa desenvolvida por Dumont em torno do par
holismo/individualismo indica a coexistência de princípios hierárquicos e individualistas
nas sociedades complexas modernas e possibilita, segundo Ropa e Duarte, desvendar
situações
“ (...) onde se confrontam, no seio de nossas sociedades, grupos portadores
de visões de mundo mais ‘individualizantes’ (...), associados às camadas
sociais urbanas herdeiras da ‘grande tradição’ erudita do pensamento
ocidental, e grupos portadores de visões de mundo mais ‘holistas’(...),
associados a camadas sociais ‘periféricas’ e em boa parte alheias à
reprodução da ‘grande tradição’ ocidental.” (Ropa & Duarte, 1985: 193).
A teorização desenvolvida por Foucault acerca do poder disciplinar/dispositivo de
sexualidade como constitutivos de indivíduos subjetivados, articulada com a teoria do
holismo/individualismo dumontiana sugere, ainda segundo os mesmos autores, que
“ (...) essas configurações culturais características da modernidade (...)
[possam] não se difundir uniformemente em todos os espaços sociais,
lutando ou convivendo em diversos sentidos com os princípios
‘tradicionais’ da hierarquia ou do poder soberano/dispositivo de aliança.
As classes trabalhadoras em geral (...) pareceriam ser uma dessas áreas de
resistência à ideologia individualista dominante (...)” . (Ropa & Duarte,
1985: 200).
Neste sentido, se considerarmos a inclusão do feto na categoria Pessoa como um
indicador do avanço do Individualismo ou da ampliação do poder disciplinar, podemos
supor que a construção social do feto como Pessoa provavelmente varia conforme a classe
social estudada, em correspondência com a difusão diferenciada do Individualismo/poder
disciplinar nas diversas classes. Esta é a primeira das hipóteses a serem investigadas em um
trabalho de campo com observação participante, em clínicas de imagem ultra-sonográfica
no Rio de Janeiro.
-IIO caráter histórico e cultural da categoria Pessoa implica diretamente o fato de que
esta categoria está em constante elaboração, em um processo de realimentação com a
sociedade e seus valores: informada e configurada por eles e, ao mesmo tempo, informando
o próprio sistema de valores. No decorrer do século XX, na sociedade ocidental, a
tecnologia vem contribuindo de forma marcante para a reconfiguração da noção de Pessoa,
96
modificando profundamente, por exemplo, a relação do homem com o tempo e o espaço,
através do desenvolvimento das tecnologias de comunicação e da invenção de novos meios
de transporte. A tecnologia utilizada em medicina reconstrói, de modo mais específico,
diversas noções concernentes à corporalidade e à consciência de si e, consequentemente,
tem um papel de grande importância na re-elaboração da noção de Pessoa moderna.
Dentre os diversos dispositivos tecnológicos utilizados na medicina, a tecnologia
de imagem, em suas diversas modalidades – raios X, ultra-sonografia, ressonância
magnética, PET scan – vem modificando radicalmente o olhar anatomo-clínico postulado
por Foucault (1998c), assim como também, ao tornar o corpo ‘transparente’ tem
contribuído de forma decisiva na desconstrução e reconstrução da Pessoa na sociedade
ocidental contemporânea.114
Uma das tecnologias de imagem em medicina, o ultra-som, utilizado na obstetrícia,
apresenta uma peculiaridade que ultrapassa em muito suas finalidades estritamente clínicas
e diagnósticas. A visualização de uma série de ecos, transformados em uma imagem
composta de diferentes tonalidades de cinza, tem contribuído de forma decisiva para a
antecipação da existência social do feto. Essa imagem torna subitamente evidente – agora
para uma vasta gama de atores – a presença, dentro da mulher, de um outro ser. No
passado, esta noção tinha um caráter gradual, exclusivo e privado para a mulher, ao menos
nos primeiros meses de gestação. Dentre os diversos desdobramentos decorrentes desta
situação encontra-se a construção social do feto como Pessoa, impulsionando a tendência a
percebê-lo como individualizado e autonomizado em relação à mulher que o contém.115
Dumont acentua que os valores cardinais da sociedade moderna individualista são a
igualdade e a liberdade (Dumont, 1992: 52). Nesse sentido, a tendência crescente que vem
sendo observada no sentido da individualização e autonomização do feto em relação à ‘mãe
uterina’ pode ser também compreendida como a expressão de uma acentuação radical, ou
extensão, do Individualismo em nossa sociedade.
A inclusão na categoria Pessoa de um elemento como o feto – dependente, nãoautônomo, imaturo, inconcluso, cercado ainda de incertezas quanto ao seu completo e
perfeito desenvolvimento – coloca em xeque, de um modo peculiar, uma série de premissas
114
Diversos autores têm se dedicado a explorar o papel destas novas tecnologias na construção da Pessoa.
Dentre estes destacaria Rapp (1997, 1998, 1999), Dumit (1997), Dumit e Davis-Floyd (1998), Fellous (1991),
Petchesky (1987), Mitchell (1994) entre outros.
115
Abstenho-me propositadamente de utilizar neste ponto o termo ‘mãe’ porque esta é uma das categorias que
vêm sendo postas em xeque pelas novas tecnologias reprodutivas: quem pode (ou deve) ocupar esse posto de
‘mãe’? A genética, a gestacional, a social? De que maneira isto é determinado? De qualquer forma, o fato de
que a mulher que contém o feto possa ou não ser sua ‘mãe’ genética e/ou social acentua a idéia do feto como
um ente ‘separado’ e ‘autônomo’.
97
que foram fundadoras e constituintes da noção de Pessoa no mundo ocidental
contemporâneo como, por exemplo, autonomia e auto-determinação. Em um certo sentido,
esta tendência ‘subversiva’ corresponde à radicalização do movimento romântico de
interiorização e de busca infindável do próprio ‘eu’ que desembocou na Psicanálise,
conforme assinalado por Russo (1997). Na medida em que o indivíduo passa a ser visto
como um ser fragmentado, indeterminado, com autonomia relativa, e ‘despossuído de si’
(Russo, 1997: 14) e, mesmo assim, permanece sendo Pessoa, abre-se uma das vias para a
inclusão do feto nesta categoria. Essa inclusão redimensiona a categoria, passando a
incluir os fatores incerteza e indeterminação –
e agora sob uma forma ‘orgânica’,
‘biológica’ – na constituição da Pessoa. Esta situação insere-se no que Salem aponta como
uma tendência à “ biologização” da identidade (Salem, 1997: 80).116
Salem assinala ainda que os parâmetros morais que anteriormente definiam a
Pessoa vão sendo substituídos pelos de “ viabilidade” (Salem, 1997: 80). Contudo, por
mais biologizante que possa ser, este conceito é bastante ambíguo e está impregnado por
um forte conteúdo moral. Como exemplo, citaria o exame de amniocentese117 que, ao
detectar precocemente algumas anomalias genéticas, como a trissomia 21 – identificada
como causadora da Síndrome de Down –, possibilitaria legalmente à mãe decidir por um
aborto, em alguns países. De qual viabilidade se estaria falando? De um ponto de vista
estrito – a possibilidade de sobrevivência ‘autônoma’ fora do útero materno – a síndrome
de Down não inviabiliza a sobrevivência do bebê ao nascer. Entretanto, este é um dos
resultados diagnósticos da amniocentese que, com freqüência, leva à decisão de aborto.
Possivelmente esse tipo de critério de ‘viabilidade’ estaria envolvendo outros aspectos da
vida humana, tais como autonomia potencial do sujeito, sociabilidade, exclusão social, para
além da possibilidade de sobrevivência pura e simples.118
Ao largo desta discussão, de toda forma, na prática médica, a determinação de
‘viabilidade’ é, freqüentemente, delimitada de forma marcante pelos recursos tecnológicos
disponíveis. Dessa maneira acentua-se, de forma sensível, o embricamento corpo-máquina,
dando margem a situações ‘híbridas’ e radicais nas quais o corpo torna-se dependente da
máquina para sobreviver. Um exemplo marcante desta situação consiste na sobrevida de
bebês prematuros extremos – há casos de bebês de menos de 400 gramas – em unidades de
116
O Projeto Genoma, assim como o grande impulso que vem adquirindo a Neurociência, podem ser
tomados como exemplos da radicalização desta tendência.
117
Exame realizado por volta da 16a semana de gestação, com o líquido amniótico extraído do útero da
mulher grávida.
118
A discussão mais aprofundada da questão da ‘viabilidade’ foge ao escopo dessa dissertação, e pretendo
retomá-la em futuro próximo.
98
terapia intensiva neonatais.
Trata-se aqui de um rearranjo, posto até há bem pouco tempo havia uma relação
unidirecional entre o ser humano e seu produto, a máquina: esta dependia daquele para ser
mantida e colocada em funcionamento. No momento em que a manutenção da vida tornase dependente de algum tipo de aparelho, a relação torna-se bidirecional; de fato, o
engenho ainda continua a precisar do humano para seu funcionamento e/ou manutenção –
sendo ou não o mantenedor o próprio beneficiário dela – mas configura-se uma mudança
qualitativa a partir do momento em que uma vida humana passa a depender de um aparelho
para sua continuidade. Neste ponto articula-se também a discussão acerca da redefinição do
natural e do artificial ou, melhor dizendo, do apagamento da fronteira entre as duas
categorias, aspecto que vem sendo explorado e discutido por diversos autores.119
No caso em discussão neste trabalho – a produção da imagem do feto a partir de
uma série de ecos, tomada como sinônimo de ‘um bebê’ – essa fusão ou hibridação ocorre
em um plano imaginário, mas nem por isso menos significativo ou menos híbrido; o fetocyborg é um produto da tecnologia, mas, obviamente, sem existir um feto dentro da mulher
não pode haver a produção de sua imagem. Fellous (1991) assinala que:
“ (...) [A] valorização da imagem científica na vivência da gravidez
pressupõe uma adequação entre o desenvolvimento biológico e a
consciência vivida desse desenvolvimento; aqui estariam mescladas
[confundidas] a temporalidade humana e a temporalidade biológica,
cientificamente apreensíveis e exteriorizados pelo equipamento
ecográfico.(...)” (Fellous, 1991: 40).
A produção do híbrido feto-cyborg é modelada pelas condições que circundam e
possibilitam seu surgimento. Este é o segundo aspecto a ser investigado em futuro trabalho
etnográfico: como se dá essa construção no Rio de Janeiro, em clínicas de imagem privadas
e públicas – atendendo portanto a diferentes estratos sociais –, dispondo de tecnologia mais
ou menos sofisticada, como essa fusão é apreendida pelas gestantes, por seus parceiros e
pelos técnicos e que desdobramentos a produção desse híbrido carreia consigo.
-IIINo que tange à questão aqui focalizada – o status do feto – é impossível passar ao
largo do impacto social provocado pelas novas técnicas de reprodução assistida. Dentre
um sem número de questões levantadas pelo surgimento destas novas tecnologias,
119
Destacaria Donna Haraway – responsável pela criação da Antropologia cyborg – e Joseph Dumit entre os
99
destacaria o que parece se constituir em uma via de mão dupla: a produção delas, ao
mesmo tempo, é parcialmente resultado [de] e contribui [para] a valorização do feto –
agora viabilizado também através da tecnologia. Ao mesmo tempo que essas novas
tecnologias desempenham um papel relevante na modificação do status do feto, pode-se
também considerar que a produção destes recursos tecnológicos decorre, em larga escala,
da intervenção médica na vida reprodutiva dos seres humanos – o que leva à suposição de
que aquele status já vinha passando por sensíveis modificações. As duas questões tornamse, portanto, mutuamente constitutivas. Neste sentido Corrêa (1997) assinala:
“ Apesar da significativa história da intervenção médica sobre a
reprodução, estas novas formas tecnológicas [de reprodução assistida] são
apresentadas e vêm sendo tratadas, predominantemente, como estando em
completa ruptura com aquelas práticas e técnicas médicas que até então
configuraram a medicalização do processo reprodutivo.” (Corrêa, 1997:
183).
Por outro lado, essa autora observa que:
“ Se a reprodução assistida não pode ser considerada propriamente como
uma novidade, quando se tem em mente a intervenção médica sobre o
processo reprodutivo, ela o é no sentido de que, pela primeira vez na
história da humanidade, o problema da impossibilidade de reprodução
biológica (...) pode ser resolvido biologicamente. (...)” (Corrêa, 1997:
183).120
A ‘infertilidade’ de um casal é com grande freqüência associada a um ‘desespero’ e
tal associação não é aleatória. Franklin (1990) relaciona a construção de ‘verdades
médicas’ acerca do corpo infértil (geralmente da mulher) em conjunto com relatos que se
multiplicam na mídia acerca do ‘desespero’ dos casais inférteis, a um novo papel épico
atribuído à medicina através das novas tecnologias reprodutivas. Se a medicina detém a
‘verdade’ e o conhecimento acerca da infertilidade, torna-se detentora também do poder de
revertê-la. Após observar o alto grau de coincidência de pontos de vista entre os relatos
produzidos por comissões governamentais, manuais sobre infertilidade e estórias na mídia
local e nacional na Inglaterra, superposição que considera reveladora na medida em que
todos estes relatos são construídos em condições muito diferentes, essa autora aponta como
se produz um novo ‘mito’:
“ (...) Através de uma miríade de enunciações e repetições de relatos, esse
‘mito’ popular começa a ser estabelecido como uma compreensão do senso
comum que liga a ‘infertilidade’ às novas tecnologias reprodutivas. Em
diversos autores contemporâneos que têm se dedicado a analisar e discutir esta questão.
120
Corrêa assinala ainda que o uso do termo ‘biológico’ para estas novas tecnologias, em contraposição ao
termo ‘artificial’ provocou controvérsias, tendo-se optado pelo termo ‘assistida’ para se referir às novas
tecnologias reprodutivas (Corrêa, 1997: 184).
100
troca, essa compreensão informa o consumo de novas informações, de
acordo com a construção narrativa de um mito que se torna senso comum.
(...) [Roland Barthes definindo os mitos contemporâneos, conclui que] um
mito é definido primariamente por sua forma, mais do que por seu
conteúdo.” (Franklin, 1990: 214).
Analisando a correlação estabelecida entre ‘infertilidade’ e ‘desespero’, Franklin
observa que, pela maneira como são construídas, essas narrativas já contêm a ‘resolução’
do ‘problema’. A mesma autora assinala que, de acordo com o relatório Warnock,121 além
da “ perda de identidade social e do sentido de falência pessoal que resultam da
infertilidade” , que resultam em um senso de exclusão e perda da auto-estima,
“ A falta de filhos [biológicos] pode ser uma fonte de stress mesmo para
aqueles que deliberadamente escolheram esta situação (...) Eles podem
sentir que não serão capazes de preencher suas próprias expectativas e as
dos outros e também sentirem-se excluídos de toda uma série de atividades
humanas – e, particularmente, as atividades dos seus contemporâneos
criando filhos.” (Warnock, 1985 apud Franklin, 1990: 205) (Grifo
acrescentado).
A idéia de que a falta de filhos possa causar uma perda de identidade social e de
auto-estima aponta de maneira insistente para a questão da construção da mulher como
Indivíduo ou, melhor dizendo, da produção da subjetividade feminina passando
‘necessariamente’ pela maternidade. Esta pressão – principalmente de que as mulheres
sejam mães ‘a todo custo’ – lembra de perto a pressão sobre as mães nos séculos XVIII e
XIX para aleitarem seus filhos. O sentido parece ser análogo ao daquela época: colocar sua
‘produção’ em circulação social. Teria havido uma ampliação do que é concebido como a
‘produção’ da mulher. O tipo de ênfase dada ao leite nos séculos XVIII e XIX estende-se,
no século XX, também à produção de filhos, além de produtos e/ou serviços.122
Aparentemente está-se diante de um novo movimento natalista, fortemente circunscrito por
uma intensa medicalização: ao mesmo tempo controla-se a natalidade e podem ser
produzidos bebês em laboratório.
O fato de, em tese, poder-se agora ‘produzir’ filhos em laboratório – mesmo que o
índice de sucesso seja reduzido – implica uma reconfiguração do que é ‘não ter filhos’.
Corrêa (1997) aponta que a difusão da reprodução assistida tende a reforçar atitudes
negativas em relação à ausência de filhos, mesmo que as novas tecnologias reprodutivas
apresentem um grau de sucesso estatisticamente bastante baixo e, mais, que a sua aplicação
121
Relatório produzido por um comitê governamental inglês, convocado em 1982 para investigar os
‘tratamentos’ de infertilidade na Inglaterra.
122
Por um outro ângulo, Martin (1992) discute extensamente a metáfora da produção aplicada ao parto.
101
não resolva o problema em si da infertilidade. Obtém-se eventualmente bebês, mas não são
modificadas as causas de esterilidade (Corrêa, 1997: 204). Mesmo assim reitera-se, na
sociedade contemporânea, a idéia de que a ‘esterilidade’ pode ser ‘resolvida’, recorrendo-se
às novas tecnologias reprodutivas. A produção de embriões em laboratório é
freqüentemente veiculada pela mídia como uma demonstração de potência da Ciência.123
As novas técnicas parecem também representar uma expansão máxima das
possibilidades do Indivíduo: o desejo e direito de escolha de quando, com quem e agora
também como ter filhos.124 O aspecto de consumo impregna profundamente essa
possibilidade de escolha. Consome-se tecnologia, e o próprio bebê pode se transformar em
objeto de consumo, sendo (ou tendo) determinadas características físicas, e mesmo o sexo,
‘escolhidos’ como, por exemplo, no caso de inseminação por doadores anônimos. Cabe
também assinalar a existência de uma tendência que vem se consolidando de maneira
crescente, de mulheres que optam por ter filhos em um período mais tardio da vida,
constituindo-se em um novo mercado consumidor para as novas tecnologias reprodutivas.
A mídia desempenha um papel nada desprezível na construção e alimentação desta
demanda, ao divulgar – com maior ou menor espalhafato – os sucessos das novas técnicas,
destinando pouco ou nenhum espaço para a discussão bioética ou para a divulgação das
largas margens de insucesso deste tipo de tecnologia, conforme observa Corrêa (1997: 1212, 179-181).
A maternidade pode também ser referida ao desejo exclusivamente individual da
mulher, em uma ruptura da noção da família como ‘local ideal’ para produção de bebês. 125
Paradoxalmente, o poder da mulher em relação ao embrião produzido em laboratório passa
a ter que ser dividido com médicos e técnicos, e quando existe a função ‘pai’, este tem a si
atribuído um novo lugar no que tange, por exemplo, à tomada de decisão em relação ao
destino dos embriões excedentes (Novaes & Salem, 1995; Salem, 1997).
123
Recentemente, em documentário produzido pela BBC sobre ‘terapias genéticas’, foi apresentado o caso de
um casal que perdera uma filha aos três anos de idade com a doença de Tay-Sachs – doença degenerativa do
sistema nervoso, de origem genética, incurável. O casal desistira de ter filhos em virtude da alta possibilidade
de conceberem outro bebê com o mesmo problema. Os cientistas que descobriram o gene causador da doença
propuseram ao casal o uso de reprodução assistida, o que possibilitaria selecionar – entre os embriões obtidos
– aqueles que não fossem portadores do gene defeituoso, para implantação na mulher. Deste procedimento
nasceu uma menina saudável que, no documentário – significativamente – é mostrada, ao nascer, no colo do
pai – os dois cercados pelos cientistas. Em momento algum aparece a mulher com seu bebê recém-nascido.
Chama a atenção também o fato de que, em relação a este episódio, não é utilizado o termo ‘eugenia’, e sim
‘terapia genética’.
124
Vale notar que a produção da pílula anticoncepcional, a partir de meados da década de 1960, ofereceu às
mulheres uma possibilidade eficaz de escolha acerca da procriação que, anteriormente, ou não se colocava
ou era muito precária. Há um deslocamento e reforço na ênfase para gerar filhos, concomitante a uma forte
pressão em favor do aleitamento materno. Cabe ainda assinalar que a ênfase na procriação ou no controle da
natalidade segue lógicas bastante diferentes, dependendo da classe social da mulher.
102
Em nossos dias, há um recuo das fronteiras da infância e também da própria
maternidade.126 O feto no útero é referido, na legislação americana, como “ criança nãonascida” (Heriot, 1996: 178). A vivência de maternidade se inicia desde o princípio da
gravidez, com a visualização do embrião, sendo acentuada ao longo da gestação com a
observação do desenvolvimento do feto, através de ultra-som uterino. A ‘pessoalização’ do
concepto, mediada pela tecnologia, tem como conseqüência direta uma psicologização
acentuada do feto; uma outra faceta desta mesma questão é a intervenção direta
(medicalizada ou não) sobre ele.
Em evento ocorrido em novembro de 1999, em São Paulo – V Encontro Brasileiro
para Estudo do Psiquismo Pré e Perinatal, promovido pela Associação Brasileira para
Estudo do Psiquismo Pré e Perinatal (ABREP) – tive a atenção despertada para a
importância conferida por todos os conferencistas ao ‘vínculo mãe-feto’. Os três
palestrantes chamados para o Encontro – uma etóloga, um psicanalista e uma
perinatologista – desdobraram-se, cada um a seu modo, para demonstrar o quanto e de que
maneira o feto é atingido e também moldado por diversos estímulos no útero.
Multiplicaram-se exemplos: a etóloga apresentou diversos resultados de pesquisas
envolvendo aspectos sensoriais do feto e do recém-nato, e o psicanalista e a perinatologista
(ambos médicos, vale dizer) com explicações, a maioria delas baseada em formulações da
Neurociência, visando comprovar que o feto é atingido e ‘modelado’ por seu meio
ambiente – o útero – e que dessa interação surge uma gama variada de resultados – tanto
positivos quanto negativos – em seu desenvolvimento físico e psíquico.127
Nos dias atuais há diversas publicações que voltadas para a ‘psicologia fetal’, fato
que corrobora a tendência crescente de subjetivação do feto e de sua transformação em
Indivíduo, muito antes do nascimento. No evento referido acima, a etóloga Marie Claire
Busnel mencionou a existência, nos EUA, de uma ‘Universidade Fetal’, que visaria
potencializar o desenvolvimento da inteligência do feto durante seu crescimento no útero.
O feto-cyborg, observado e monitorado em seu desenvolvimento, cuidado, corrigido,
125
Para uma discussão aprofundada sobre o ‘desejo de filhos’, ver Corrêa (1997: 191-212).
Ariès aponta e comenta indiretamente este recuo de fronteiras ao comentar a prática de infanticídio
‘tolerado’ até o século XVII: “ A vida de uma criança era então considerada com a mesma ambigüidade
com que hoje se considera a do feto, com a diferença que o infanticídio era abafado no silêncio, enquanto o
aborto é reivindicado em voz alta – mas esta é toda a diferença entre uma civilização do segredo e uma
civilização da exibição. (...)” (Ariès, 1978: 18). O fato deste texto ser nitidamente direcionado contra o
aborto apenas reforça o quanto o status de Pessoa do feto é um argumento importante para essa posição
política.
127
Uma interação implica necessariamente a existência de dois ou mais elementos. O uso do termo traz
implícita a concepção do feto como um elemento individualizado, questão que não foi problematizada pelos
palestrantes do referido Encontro.
126
103
disciplinado e educado desde o útero seria, na expressão de Dumit e Davis-Floyd, um
‘super-feto’? (Dumit & Davis-Floyd, 1998).
Além do ‘aperfeiçoamento’ do feto pode-se pensar também em uma ‘nova’ eugenia,
tanto por conta das manipulações genéticas quanto pela possibilidade de diagnósticos intrauterinos de anomalias genéticas e congênitas, levando à decisão de aborto (Heriot, 1996).
Nos países onde a interrupção da gravidez é permitida – seja por conta de um diagnóstico
de algum tipo de anomalia, seja por vontade exclusiva da mulher – a discussão sobre
aborto ‘eugênico’, seus critérios e limites, desenvolve-se de maneira ampla em todo o
corpo social. A tomada de decisão é informada por esse debate.
No Brasil, onde o aborto por causas genéticas é permitido por lei em pouquíssimos
casos (e, mesmo nesta situação, difícil de ser realizado em instituições públicas), sendo na
maior parte das vezes considerado crime – mas nem por isso praticado em menor escala –,
a discussão e as tomadas de decisão sobre o aborto ‘eugênico’ necessariamente têm outra
feição. Esta é a terceira questão que, a meu ver, merece ser investigada localmente, em uma
abordagem comparativa: por quem, e de que maneira, a ultra-sonografia é utilizada nestes
casos? Como são lidadas estas questões no Rio de Janeiro? Quais as conseqüências da
visualização do feto em situações como essas, para a gestante, para o parceiro – quando
existe – e para a equipe técnica?
✼✼✼
Schmidt e Moore (1998), em artigo sobre os bancos de sêmen, nos EUA, discutem
de que forma o ‘beneficiamento’ do esperma, tal como divulgado pela propaganda destes
bancos, produz a idéia de um ‘super-sêmen’, não apenas reconfigurando o conceito de
masculinidade como também construindo a idéia de que o esperma ‘ao natural’
representaria um ‘risco’ para a produção de bebês geneticamente saudáveis.128 Seguindo a
mesma lógica, poder-se-ia pensar na construção da idéia de que o ‘super-feto’ seria
também ‘muito melhor’ do que o produzido pelos ‘antigos e imprecisos’ métodos naturais
e, além de tudo, deixado em estado ‘selvagem’ até o nascimento.
A preocupação eugênica de produção de seres humanos ‘perfeitos’, o que quer que
possa significar essa ‘perfeição’, pode encontrar nas novas tecnologias reprodutivas e no
monitoramento estrito do desenvolvimento dos fetos no útero um terreno fértil. Dessa
128
Foi-me sugerida, no decorrer dessa pesquisa, a leitura de manuais de zootecnia, como forma de obter um
vislumbre do futuro, posto que os procedimentos de beneficiamento e seleção de sêmen são utilizados por
esta disciplina desde longa data.
104
maneira, parece estar implícita a idéia de que o ‘super-feto’, que daria origem ao ‘bebê
perfeito’, poderia ser considerado a ‘salvação’ ou a ‘perfeição’ da espécie humana, além de
reafirmar o poder da Ciência.
Não se trata aqui, em absoluto, de um exercício de ‘catastrofismo futurológico’. O
exagero e a ironia visam apenas problematizar o papel e os usos da Ciência – jamais
ingênuos, mas nem por isso necessariamente ‘maquiavélicos’ – e chamar a atenção para a
necessidade de permanente discussão e questionamento do que se nos apresenta nos dias
atuais como ‘progressos científicos’. Para o estudo e reflexão acerca das reconfigurações
constantes que são geradas pelas invenções dos humanos, as Ciências Sociais constituem
um valioso instrumento analítico que possibilita a manutenção desse constante e
indispensável exercício crítico sobre a sociedade em que vivemos.
105
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p. 35-61.
115
ANEXO I
Editorial do Lancet, de 8 de fevereiro de 1898.
“ The introduction of incubators for babies into this country has been favourably noticed in
the Lancet. The incubators which we described were exhibited at Earl’s Court. They were
manufactured by scientific instrument makers of high reputation who provide many of the
apparatus used in Dr. Koch’s laboratory. Skilled attendants were employed who had been
specially trained not merely in the care of babies and the management of incubators but
more particularly in the nursing of prematurely born or especially debilitated infants.
Again, though the Victorian Era Exhibition was looked upon as a mere pleasure resort by
many it was also a serious exhibition where objects of art of great value were collected
side by side with scientific inventions bearing medical and public health questions. Thus
surrounded there was nothing derogatory to the dignity of the healing art in the exhibition
of incubators at Earl’s Court. Also a healthy site was chosen in the broadest part of the
gardens where there was plenty of fresh air. The incubators were scientifically ventilated
and only received the air taken from the outside. This exhibition had an extraordinary
success. On one occasion there were no less than 3600 visitors in a single day. This
success, however, has proved a mixed blessing. It attracted the attention and cupidity of
public showmen, and all sorts of persons, who had no knowledge of the intricate scientific
problem involved, started to organize baby incubator shows just as they might have
exhibited marionettes, fat women, or any sort of catch-penny monstrosity. It is therefore
necessary that we should at once protest that human infirmities do not constitute a fit
subject for the public showmen to explore. Incubators are only useful for prematurely born
children, and especially for infants whose lives cannot possibly be saved in any other way.
Therefore constant medical supervision and the presence day and night of nurses trained
in the use of incubators and of wet-nurses is indispensable. To organize all this in a
satisfactory manner necessitates a considerable outlay and cannot be lightly undertaken by
inexperienced persons. An incubator show, if such there must be, should correspond in
every respect to a hospital ward. Now, at the World’s Fair held at the Agricultural Hall,
Islington, there is an incubator show where the charge for admittance is only 2d. We fail to
see how this small sum can cover the cost of properly trained attendants and of wet-nurses.
On visiting this exhibition we were informed that the infants were fed by their mothers –
but how can the mothers attend during the whole of the night at the Agricultural Hall and
where is their sleeping accommodations? Then, again, the incubators do not derive their
air supply from without. The infants breathe atmosphere of the interior of the Agricultural
116
Hall, where, apart from the numerous visitors, the whole of Wombwell’s menagerie is kept.
Just opposite the incubators there are some leopards and everyone is familiar with the
obnoxious odour that arises from the cages in which such animals are incarcerated. There
is a similar exhibit at the Royal Aquarium, and we cannot think that the dust of bicycle
racing, the smoking of the men, and the exhalations from the crowd of people who visit that
resort are likely to constitute an atmosphere suitable for prematurely born infants. Of the
thousands who daily flock to these two buildings, how many convey pathogenic germs
which may enter the incubators since they are not ventilated from without? Then what
connection can there be between the style of the public or of the entertainments to be seen
at these places and a purely medical scientific question? Is it in keeping with the dignity of
the science that incubators and living babies should be exhibited amidst the aunt-sallies,
the merry-go-rounds, the five-legged mule, the wild animals, the clowns, penny-peep show,
and amidst the glare and noise of a vulgar fair? At Barnum and Bailey’s Show129 also
there is a baby incubator show where, however, the air is brought in from without; but,
again, what connection is there between this serious matter of saving human life and the
bearded woman, the dog-faced man, the elephants, the performing horses and pigs, and the
clowns and the acrobats that constitute the chief attraction to Olympia? (...).” (Silverman,
1979: 130-131).
129
Conhecido show de aberrações humanas, do tipo mulher barbada, anões, homem-cobra, que fez enorme
sucesso na Europa e Estados Unidos por muitos anos a partir de fins do século XIX. A curiosidade popular
acerca deste tipo de aberrações mereceria um estudo à parte, que escapa ao objetivo do presente trabalho.

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