o romantico - Livro Carlos Pereira

Transcrição

o romantico - Livro Carlos Pereira
TODOS
1
OS
POR
LADOS
VISTO
O ROMANTICO
( S Ó E S S E D Á OUTRO LI V RO)
Carlos Pereira visto por todos os lados -1,
o romântico (só esse dá outro livro)
Autor / Ana Rita Madruga com Carlos Gonçalves Pereira
Direcção Criativa / Pedro Oliveira
Fotografias / Arquivo de Família
Produção de Vídeo / VSP Audiovisuais
Impressão e Acabamento / Claim ideias - Produções de Comunicação, Lda
1.ª Edição / Novembro 2014
Depósito Legal n.º 00000
Reservados todos os direitos Tiragem / 500 exemplares
O texto foi escrito respeitando a antiga ortografia
Dedicatória 5
Nota Prévia 6
Prefácio8
1. Raízes
10
2. Os vicentinos e o prazer
do conhecimento
34
3. O curso de Engenharia Civil
e a paixão pela Medicina
72
4. O mundo real
116
5. Agarrar o destino
com as duas mãos
136
6. A CEE e a reconversão
dos matadouros
170
7. O engenheiro e o negócio
dos sabões
184
8. A visão comercial no mundo
da construção civil
198
9. O regresso às origens
214
Acerca do retrato do Carlos Pereira
e dos quatro heterónimos visuais
272
Epílogo ?
274
Agradecimentos276
Homem / Rui Aço
Este livro é dedicado
à minha família e a todos
os que considero meus amigos,
que não vou neste momento
nomear, mas que todos eles
bem sabem quem são!
Faço um voto simples!
Depois da leitura, da audição
e da visualização do livro,
possam todos ter uma imagem
mais nítida do CP!
Nota Prévia
7
Este é um projecto pensado desde há muito e a que apenas agora foi por mim dada
oportunidade para vir à tona! Ele surge, tentando conjugar a forma clássica da edição de
um livro, com a utilização das tecnologias de informação, actualmente ao nosso alcance,
e de interacção intuitiva! Vantagens dos tempos actuais que permitiram recuperar
registos em suportes extintos e a que foi possível dar vida nova em suportes actuais.
São mais de quarenta anos de actividade profissional ininterrupta... a não ser no
período do serviço militar a que, “obrigatoriamente”, não me furtei. E agora, que
este percurso naturalmente se aproxima do fim, parece-me ser o momento certo para
produzir este registo.
Este livro pretende apresentar o caminho percorrido e repartido por actividades tão
diversas como a engenharia, correspondente à minha formação de base, o grande
comércio, a gastronomia, a consultadoria internacional, apenas para referir as mais
importantes, e que as oportunidades da vida me levaram a trilhar.
É um percurso com mais sucessos do que insucessos, com alguns erros e uma ou
outra mágoa.
Fazendo um “fast rewind” posso afirmar que coleccionei muito mais amigos do que
adversários e apenas a um - por acaso colega de formação e profissão - marquei como
inimigo... a título definitivo, e a quem até já uma vez deixei de mão estendida ...
Existiram sonhos que não consegui realizar, claro! Mas qual o comum do mortal,
como eu, que os consegue realizar na totalidade? Poucos certamente, e esses são a
excepção onde eu, claramente, não me incluo.
Finalmente um último voto: desejo a todos boas leitura, audição e visualização e o meu
reconhecimento por partilharem este momento comigo.
Obrigado.
Carlos Gonçalves Pereira (CP)
8
Carlos Pereira
Prefácio
o tarot
de Carlos
g.pereira
O autor (auto) biografado fez o seu TAROT… Pegou nas 22 cartas e idealizou uma
abordagem interpretativa multipessoal da sua existência de mais de sessenta anos.
O baralho foi distribuído, entre si e amigos mais ou menos próximos, recebendo na
volta a interpretação que cada um fez da sua respetiva carta.
Arriscado, mas saboroso, como se exige a um bom gourmet; vale o que vale, exatidão
ou fantasia, o discurso de cada um acabou por permitir a sustentação da obra
idilizada, selando a estrutura projetada com uma argamassa testemunhal, mistura de
composição quase secreta e da qual aqui revelaremos alguns pormenores do enorme
manancial que o livro contém:
Lisboeta (Graça), Vicentino (aluno do antigo Liceu Gil Vicente, em Lisboa. Culto da
tradição, das amizades e do companheirismo interclassista), Desportista (futebol de
rua, de salão, andebol e o bridge), Sportinguista ferrenho é o leão 992, Engenheiro
Civil (aluno brilhante no IST), profissional com obra feita, projectar, concretizar,
atingir os objetivos. Pensa qualidade, admira a eficácia. Meticuloso, por vezes
indisciplinado q.b., mas com um sentido de humor muito aguçado. Empresário,
Diretor comercial, Consultor internacional (dinamismo, fogosidade e determinação.
Observador, reflexivo, está sempre a querer saber mais, é um “devorador de saber”.
Deixa-se envolver responsavelmente nos muitos processos empresariais nacionais e
internacionais para que é convidado e habitualmente lidera com sucesso). Familiar
9
(bisneto e neto saudoso, filho único, estima e respeita os pais, marido três vezes, pai
atento e avô babado, é cioso da sua estrutura familiar onde quer deixar bem impressa
a sua pegada). Romântico, convicto do seu “Eu” (respeita os afectos. É amigo do seu
amigo). Musicalidade e gosto pela representação (enriquecem uma personalidade que
se desdobra por múltiplos gostos e tendências artísticas. Envolve-se na música ligeira
instrumental que pratica em conjuntos musicais na juventude, para os quais escreve
letras de canções e adapta alguns dos seus textos poéticos, é um trovador!, deixando
no fundo do baú os primeiros ensaios de prosa em que se aventura). 7ªarte (atraiu-o
precoce e intensamente, outorgando-lhe o papel de Diretor de imagem e de realização
tendo idealizado e concretizado vários projectos de curtas e médias metragens que
conduziu com seriedade e quase profissionalismo). Homem de causas (observador
atento desde criança das realidades sociais que o rodeiam, constrói uma postura
politica consequente que o leva a participar com entusiasmo nas várias iniciativas
sociopolíticas individuais ou coletivas em que participa, pondo de parte algum
individualismo e apostando nos objetivos do bem-estar da sociedade). Gastronomia,
bem comer e beber e uma sonhada carreira de Cirurgião, são igualmente paixões que
da “excelência“ da realidade das primeiras ao sonho impossível da última, sempre o
acompanharão no frenesim do seu dia-a-dia em Portugal ou nas viagens e estadias
de trabalho por países de vários continentes, que vai calcorreando, cumprindo uma
“dialética de emigrante de luxo” que em 2014 parece finalmente querer abrandar.
Será?
Como é seu timbre, Carlos G. Pereira pôs a máquina a funcionar, liderou o processo
e atingiu o desiderato desta intrincada e complexa tarefa, fazer uma autobiografia
sintética, partindo das estórias da sua vida, desfiadas na primeira e na terceira pessoas
do singular.
Leitura muito agradável, num desenrolar fluente, quase romanceado, surpreendendo
o leitor mais desprevenido, transportando-o a um patamar de prazer comparável ao
proporcionado pela degustação de um “prato de iscas”, superiormente confeccionadas
pelo chefe de um dos bons restaurantes que frequenta e para onde o Carlos gosta de
convidar os amigos.
Pedro Miguéis
O amigo médico Vicentino
do grupo dos 7+1
1
Raízes
Raízes
A saúde débil e frágil marcou-lhe a infância, mas armou-o de combatividade para a
vida. Com apenas três anos, uma tuberculose violenta atacou-lhe os pulmões e atirou-o
para uma cama, ficando à mercê de uma tosse compulsiva e de um fogo febril. O corpo
era todo ele um palco de tremores e de suores que se anunciavam mais intensos ao cair
da noite. A doença cravou-lhe para sempre uma lembrança, uma cicatriz no pescoço
que assinala o local onde os gânglios linfáticos rebentaram. Quando olha para trás,
percebe que a enfermidade foi determinante para a formação da sua personalidade. Só
assim entende por que é que nunca voltou costas aos desafios e enfrentou com fulgor
as atribulações da vida.
Carlos António Gonçalves Pereira nasceu a 31 de Janeiro de 1947, em casa dos avós
maternos, na Rua Guilherme Braga1, número 24, segundo esquerdo, no típico e
popular bairro de Alfama, em Lisboa.
Os seus pais conheceram-se ainda jovens na capital. O pai, Carlos Diamantino Pereira,
era, à época, um homem alto. Media um metro e setenta e cinco centímetros de altura
e pesava cerca de cem quilos. Abusava de brilhantina para domar o cabelo rebelde que
abria severamente em duas metades. Calmo, discreto e bom conversador, enamorouse de uma bela e jovem rapariga - Maria Adelina Gonçalves Pereira –, com pouco mais
de vinte anos, oriunda de uma família beirã, católica, e que havia emigrado uns anos
antes para Lisboa.
As raízes de Carlos Pereira são assim marcadas por uma tendência mais liberal e mundana
do lado paterno, e por um tradicionalismo e conservadorismo do lado materno.
Do lado do pai, as recordações e o conhecimento chegam ao avô e à bisavó. Apesar de
nunca ter conhecido a avó, Saudade de Jesus Pereira -, pois faleceu quando o próprio
pai tinha apenas três anos -, sabe que era vendedora de peixe na Praça da Figueira. O
avô, Diamantino Pereira, era polidor de móveis. No entanto, a actividade da marcenaria
foi posta de lado, quando a sua figura sólida e potente chamou a atenção de alguns
produtores de espectáculos de revista, ávidos de personagens exuberantes, cómicas
e populares. De estatura baixa, mas com cerca de 150 quilos, Diamantino Pereira
funcionava como um chamariz das casas de espectáculos, teatros e cinemas que se
enchiam de espectadores, muito embora fosse apenas figurante. Chegou a representar
no antigo Teatro Apolo, no Martim Moniz, fazendo parte do cartaz.
O país estava a mudar depressa, à medida que os primórdios da Iª República (1910 1926) traziam reformas importantes nos sectores da família e do ensino. Na perspectiva
1 Escritor e jornalista português, Guilherme da Silva Braga nasceu a 22 de Março de 1845, no Porto, e morreu a 26 de Julho de 1874, na mesma cidade, vítima de
tuberculose. Foi um panfletário anticlerical e defensor acérrimo da implantação da República.
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01
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03
01 Cartoon da época da revista Os Cantores da Rua com o avô Diamantino Pereira
02 / 03 Avô Diamantino Pereira
Raízes
da educação, o republicanismo empenhava-se na construção de um cidadão
informado, consciente e participativo, com vista à preservação da própria República.
Para isso, era preciso apagar da mente dos portugueses quaisquer laivos de lembrança
da monarquia. Assim, as principais tarefas implicavam uma revolução cultural, de
combate ao grande inimigo - o catolicismo -, e uma laicização da sociedade. A escola
primária passou a ser vista como o lugar privilegiado para a formação do cidadão. Até
então, a esmagadora maioria do povo português não sabia ler nem escrever, pois nunca
havia frequentado a escola. O combate ao analfabetismo e o projecto de formação dos
cidadãos assumiam grande importância no discurso e práticas políticas republicanas.
Assim, deu-se início a diversas iniciativas de alfabetização tanto de crianças como
de adultos, apareceram as primeiras escolas móveis conduzidas pelo método João de
Deus e outras experiências de educação popular que surgiram nos bairros operários,
como creches, escolas operárias, escolas oficinas, como foi o caso da Escola Oficina
nº 1, situada no Bairro da Graça, em Lisboa, criada por uma associação maçónica2.
A par de toda esta proliferação de conhecimento e dos valores laico-republicanos entre
as classes populares, existia também um mundo paralelo, cultural, boémio, reservado
aos amantes da noite. É no contexto desta Lisboa mal-afamada que Diamantino
Pereira se movia.
As casas de jogo clandestino, os grupos de contrabando, os bordéis, a vida boémia e
marginal estavam cada vez mais presentes nas ruas da cidade e nos velhos bairros da
Mouraria, Alfama e Castelo. Este universo da ilegalidade, frequentado outrora pela
classe trabalhadora que se reunia nestes ambientes de diversão nas horas do lazer,
seduziam a nova burguesia em clara expansão, com os seus postos de trabalho na
Administração Pública, Indústria e Comércio. Apareciam novos espaços mais refinados
e novos géneros musicais, entre os quais o fado, que não exigia grande cultura musical
e que, ao mesmo tempo, entretinha e divertia o público. Foi a época de crescimento
das publicações literárias e musicais, do aparecimento de vários fados e das primeiras
exibições de peças musico-teatral nos teatros portugueses e da revista portuguesa3.
Assim, amante da vida noturna e frequentador assíduo das casas de fado, de bares e
tabernas que só fechavam ao raiar do dia, parava pouco tempo em casa. A vida boémia
e de estrelato que escolheu viver ditou a distância emocional com o filho que, sentindose abandonado, só perdoou as muitas ausências do pai já depois de adulto, quando
este, na velhice, afastado dos palcos e esquecido pelo público, recolhia tampas de
cortiça para sobreviver. Por cada cem tampinhas recolhidas e entregues, a Companhia
de Previdência, situada na Avenida 24 de Julho, em Lisboa, pagava-lhe um escudo. Era
2 Joaquim Pintassilgo, Experiências Republicanas e Intervenções Educativas (O Exemplo da Iª República Portuguesa, 1910 -1926), Universidade de Lisboa, p.p 2-3.
3 Luiz Francisco Rebelo, História do Teatro de Revista em Portugal, 1º Volume, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1984.
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Carlos Pereira
Júnior
Carlos Pereira
Estrela
António Costa
Alcina Abreu
Ermelinda
Barreto
Carlos
Diamantino
José Barreto
Diamantino
Pereira
Saudade
de Jesus
Raízes
Rodrigo
Daniel
Catarina
Rui
Mila
Maria Adelina
José Costa
Emília Candeias
António Pereira
António Pereira
Maria Palmira
Helena
António Pereira
Júnior
Maria
da Piedade
José Gonçalves
Assunção
Castanheira
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Carlos Pereira
01
02
01 Carlos Pereira
com os pais em Pomares
02 Avô António Pereira
com Carlos Pereira ao colo
Raízes
uma exploração, mas era disso que o antigo artista dependia para sobreviver.
Órfão de mãe desde tenra idade, Carlos Diamantino Pereira foi criado pela avó, mãe
do seu pai. Chamava-se Joaquina e era empregada doméstica de uma famosa vidente,
moradora no Beco do Loureiro, em Alfama. O jantar em casa da avó Joaquina era
frugal. Em cima da mesa só havia pão e chá, pois o dinheiro não chegava para mais.
Carlos Diamantino Pereira entrou para a escola primária numa fase de reacendimento
da tensão política no país. Corria o ano de 1926. A instabilidade da República abrira
caminho ao golpe militar desencadeado pelo marechal Gomes da Costa a 28 de Maio
de 1926, a partir de Braga. Era o princípio da ditadura militar.
A falta do apoio paternal e as graves dificuldades financeiras que a avó e o neto viviam
condicionaram o percurso escolar do rapaz. Só lhe foi permitido estudar até à quarta
classe. Saiu dos bancos da escola ainda criança para ir trabalhar como empregado
de armazém de uma mercearia. Estudar era um luxo dos privilegiados. Os mais
desfavorecidos eram vistos como força de braços para ajudarem na precária economia
familiar. Valia-lhes a preciosa ajuda da mulher que dizia falar com os mortos e que
quase que de forma natural, se torna na madrinha do rapaz.
Do lado da mãe, os registos remontam aos bisavós, habitantes de Pomares, uma
pequena aldeia localizada junto à Serra do Açor, e que só fez parte do concelho de
Arganil, a partir de 1855. A vida era difícil para os habitantes desta aldeia perdida num
vale, onde os caminhos estreitos e íngremes dificultavam a passagem dos carros de
bois que traziam do litoral o peixe e o sal para levarem no regresso a carne, o queijo e
os lanifícios. No Verão, a paisagem serrana dava de comer aos rebanhos dos pastores
das terras baixas que fugiam da escassez das ervas e arbustos em busca de novos
campos de pastagem, verdejantes, densos e húmidos.
O isolamento geográfico impedia a chegada de mercadorias básicas. As carências
alimentares em proteínas eram responsáveis pelo fraco desenvolvimento físico dos
beirões. Era gente pequenina, de baixa estatura.
Os habitantes dedicavam-se, sobretudo, à agricultura, à criação de gado, à apicultura
e, em alguns casos, à construção civil. É o caso do bisavô materno de Carlos Pereira,
que dava pelo nome de José Gonçalves. Era construtor civil e a ele se devem algumas
obras públicas, não apenas em Pomares, mas também nas aldeias vizinhas que
sobreviveram ao tempo. Uma delas, a ponte de granito que atravessa a Ribeira da
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Carlos Pereira
Raízes
“...com uma pose
bastante rígida, cabelo
loiro, olho azul...dava
nas vistas não só para
quem cruzava com ele,
mas também junto do
elemento feminino que
era bastante apreciador
da sua pose”
Carlos Palhoto
O amigo do Instituto
Superior Técnico
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Carlos Pereira
Moura, precisamente numa povoação que dá, ainda hoje, pelo nome de Foz da Moura.
O bisavô já tinha atravessado a barreira dos 90 anos, quando Carlos o conheceu, nas
suas idas à aldeia, durante as férias de Verão. Recorda-o como um excelente contador
de histórias, com o talento de reunir à sua volta os bisnetos e os netos que, ávidos
de magia, se sentavam e ali ficavam, quietos, horas a fio a ouvirem histórias sobre
cavaleiros e dragões, fadas e feiticeiros, bruxas e princesas. Não havia limites para a
imaginação do ancião que, sempre que era possível, acompanhava estes momentos
com um copo de aguardente de bagaço, tão típico da gente beirã.
A bisavó, Maria da Assunção Castanheira, governava a casa, sempre de forma muito
rígida e com uma fácies de autoridade que roçava, mesmo para os bisnetos mais novos,
uma fórmula mesclada de clara antipatia, produzindo não raras vezes o temor de
todas as crianças. Estavam-lhe reservadas as lides domésticas e a educação dos filhos.
Tinha sete para criar e educar. A filha mais velha, Maria da Piedade Gonçalves, que
veio a tornar-se avó de Carlos Pereira, dedicava-se à lavoura, cultivando as pequenas
parcelas de terreno que pertenciam à família, acumulando com as tarefas de tomar
conta e cuidar dos seis irmãos mais novos. As dificuldades da interioridade só eram
ultrapassadas por uma vida comunitária, onde todos os habitantes se ajudavam. Foi
no forno comunitário da aldeia que Maria da Piedade encetou namoro com António
Pereira, aquele viria a ser seu marido e avô de Carlos Pereira. Era ali que as mulheres,
combinadas à vez, faziam o seu pão e nos dias especiais, como a Páscoa, coziam
o tradicional folar. Sempre que saía uma fornada de diversas mulheres, cada uma
delas marcava a massa com o dedo, com um pau ou com uma rolha. Assim, sabiam
sempre qual o pão que lhes pertencia depois de cozido. O dono do forno, o forneiro,
ficava encarregue de trazer a lenha, tratar do forno e de cozer o pão. Depois de as
mulheres amassarem a massa, era o forneiro que, com ajuda de uma pá, distribuía os
pães dentro do forno. Quando estivessem cozidos, retirava-os e colocava-os em cima
de um tabuleiro, cobertos com um pano para não ficarem rijos. Quando as mulheres
regressavam para irem buscar os seus pães pagavam-lhe, oferecendo-lhe um pão ou,
se tivesse sorte, com algum dinheiro. Era assim que ganhava a vida e sustentava os
seus.
António Pereira nasceu numa dessas famílias de padeiros. Os Pereiras eram os
padeiros lá da aldeia. A vida não se anunciou fácil para esta família. António era o mais
velho de cinco irmãos. Tinha apenas 12 anos quando o pai, com mesmo nome que
o dele e conhecido nas redondezas por ser um exímio tocador de bandolim, faleceu.
O seu irmão mais novo tinha vindo ao mundo na semana anterior. Por ser o mais
velho, coube-lhe assumir todos os encargos da casa e ficar à frente do negócio de
Raízes
fazer pão. Ainda criança, era ele quem sustentava os irmãos mais novos, dando-lhes de
comer, e também à sua mãe, Palmira Pereira, que Carlos tão bem recorda: «Esta minha
bisavó, metro e meio de altura, rija como o ferro, mas muito doce e terna (contraste
completo com a bisavó Assunção), fazia o melhor feijão temperado que alguma vez
comi. A panela de ferro de três pernas postava-se no chão da cozinha com a fogueira
por baixo, ficando horas a cozer o feijão. Vim a saber anos mais tarde que apenas usava
como temperos o sal, a folha de loureiro, o cravinho da Índia e, quando o feijão estava
quase completamente cozinhado, juntava uma dose generosa de azeite onde o dito
feijão terminava a respectiva cozedura. No fim, antes de servir, um golpe de vinagre e
uma mexedela rápida completavam esta delícia gastronómica. Contaram-me ainda que
este vinagre era também muito especial. Ainda não há muitos anos atrás, um primo da
minha mãe – por sinal o primeiro engenheiro formado na família (eu fui o segundo)
– me contou a seguinte história: no momento das partilhas, após a morte da bisavó
Palmira, o pai dele, o tal irmão do meu avô, de nome Manuel e que tinha uma semana
de vida quando o pai de ambos faleceu, pediu aos irmãos se não se importavam que ele
ficasse com a talha onde se mantinha - creio que desde tempos imemoriais - uma mãe
de vinagre que a bisavó Palmira utilizava para o tempero final do seu feijão; no dizer
deste meu segundo primo – Eng. Ferreira Pereira (aliás, recentemente falecido) - era de
um sabor e de uma qualidade absolutamente invulgares. Nestas coisas da gastronomia,
provavelmente também existem algumas regras que a genética preserva…».
Quando António e Maria da Piedade decidem casar-se, resolvem, igualmente,
abandonar o sopé da Serra do Açor para irem viver em Lisboa, a fim de melhorarem
as suas condições de vida, regressando à terra, no Verão, durante as épocas festivas,
para reviver o passado e reencontrarem os familiares.
Chegados à cidade, instalaram-se no tradicional Bairro de Alfama. Ali, as mulheres
eram quase todas domésticas e os homens eram operários não especializados,
contramestres e trabalhadores braçais. António Pereira não fugiu à regra. O trabalho
de padeiro deu lugar a outro, ainda mais duro, mais exigente: o de estivador.
Fortemente marcada pela actividade portuária, as ruas, becos e ruelas de Alfama
eram frequentadas por marinheiros, despachantes e funcionários da alfândega.
Diariamente, António Pereira carregava dezenas de sacas de carvão às costas, cada
uma pesava 60 quilos, no cais de Santa Apolónia. Depois de cada jornada de trabalho,
chegava a casa exausto, completamente enfarruscado, como se tivesse saído de dentro
de uma chaminé mascarrada.
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Carlos Pereira
O casal não sentiu dificuldades de integração. Gerações anteriores de gente beirã
já haviam migrado para Alfama, em busca de melhores remunerações, atraídas
pelas actividades marítimas e pela estiva. Vinham de toda a parte, especialmente da
Pampilhosa da Serra e da Lousã. Mas também vinha gente do Minho e da Galiza.
Uns, pelas mãos dos outros, ajudavam-se e iam ali parar, à actividade portuária4.
Do casamento nasceram duas crianças: António Pereira (Júnior) veio ao mundo em
1920 e, cinco anos mais tarde, em 1925, nasceu Maria Adelina Gonçalves Pereira.
António Pereira e Maria da Piedade ensinaram aos filhos os preceitos da religião
católica e os princípios da fé cristã. Iam todos os domingos à missa, celebrada na Igreja
de São Vicente de Fora, para receber os ensinamentos de Deus. Apesar da diferença
de idades, o relacionamento entre os dois irmãos era muito afectuoso. António Pereira
(Júnior) tinha um cuidado extremo com a irmã. Encarregava-se dela quando os pais
não estavam em casa. Foi ele quem lhe leu as primeiras histórias infantis e ainda
ajudava-a nos trabalhos da escola. Ela admirava-o pela sua paciência e gentileza. Eram
irmãos simpáticos, alegres e muito queridos entre os vizinhos. Aqueles laços fraternos
pareciam inquebráveis. Na casa dos Pereira não faltava afeto, a única escassez que
se sentia era de ordem monetária: o magro orçamento familiar dava apenas para o
essencial.
O défice português havia-se agravado bastante com o empréstimo externo que o
antecessor de Salazar, o general Sinel de Cordes, pediu para fazer face às dificuldades
do País. Além do défice orçamental, Portugal deparava-se ainda com um problema de
dívida pública, inflação e desvalorização da moeda.
A 25 de Março de 1928, Óscar Carmona, único candidato presidencial, legitimou
o primeiro de cinco mandatos, num escrutínio em que só tiveram direito de voto
cidadãos com mais de 45 anos. Foi nessas eleições que a ditadura militar deu lugar à
ditadura nacional, estandarte do Estado Novo, que amordaçou Portugal por mais de
40 anos e que assinalou também a ascensão de António de Oliveira Salazar, professor
de Direito na Universidade de Coimbra, e que assumia, por enquanto, a pasta das
Finanças5.
O jovem ministro viu-lhe reconhecido o direito de vetar sobre todos os aumentos
de despesa. No espaço de um ano, Salazar pareceu resolver a tradicional situação
deficitária do país, acabando por ficar conhecido como o ‘obreiro da Pátria’.
4 António Firmino da Costa, Entre o Cais e o Castelo: Identidade Cultural num Tecido Inegualitário, Revista Crítica de Ciências Sociais, n.º 14, Novembro de 1984, p.p. 84-85.
5 Rui Ramos, Nuno Gonçalo Monteiro, Bernardo Vasconcelos e Sousa, História de Portugal, A Esfera dos Livros, 2009, 7º Volume, pp. 54.
Raízes
E nem mesmo as más notícias que chegavam dos Estados Unidos, com o crash da Bolsa
de Valores, a 29 de Outubro de 1929, e que teve repercussões graves nas economias
europeias, dando origem à Grande Depressão, pareciam abalar o pequeno “paraíso”
à beira-mar plantado. Salazar “esforçava-se” por manter os portugueses isolados do
resto do mundo.
No Verão de 1932, mais precisamente no dia 5 de Julho, consolidou definitivamente o
seu poder, assumindo a chefia do Governo e tornando-se o primeiro civil a liderar um
Executivo desde o golpe militar de 1926.
O professor da Universidade de Coimbra, antigo seminarista e militante do Centro
Católico Português, gostava de se apresentar como um «pobre, filho de pobre» que
chegou à chefia do governo. Na sua ascensão ao poder, contou com a amizade do
Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira que chefiava a Igreja Católica desde 1930 e com
o apoio de Óscar Carmona e dos activistas leigos dos movimentos católicos. Todos
apreciavam a sua repulsa perante o passado liberal e republicano.
A 11 de Abril de 1933, entrou em vigor a nova Constituição – que mantinha
a separação de poderes da Igreja e do Estado –, e a 29 de Agosto do mesmo ano
foram também promulgados outros diplomas importantes que fortaleceram o regime
autoritário de Oliveira Salazar, nomeadamente a instituição da censura prévia à
Imprensa e a necessidade de se pedir autorização ao governo para serem realizadas
reuniões e constituídas associações. O ano ficou ainda marcado pela criação da Polícia
de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) e do Secretariado de Propaganda Nacional
(SPN).
O aparelho repressivo fascista ia-se estruturando tanto em Portugal, como em alguns
países da Europa. Na Alemanha, o Partido Nazi conhecia uma ascensão no Parlamento,
encabeçado por Hitler, que se tornou Chanceler a 30 de Janeiro de 1933. O Partido
Nacional-Socialista foi declarado partido único e os sindicatos foram proibidos. O
Führer passou a reprimir sem contemplações quem pudesse ameaçar o seu poder
absoluto.
Três anos mais tarde, em 1936, estala a guerra civil em Espanha. De um lado a
Frente Popular, uma coligação de esquerda que reunia os republicanos radicais, os
comunistas e os anarquistas, e do outro os nacionalistas de direita, liderados por
Franco. Salazar apoiou a campanha militar do ditador espanhol que saiu vitorioso, em
1939. No mesmo ano, as tropas da Alemanha nazi entraram na Polónia, elevando para
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Carlos Pereira
outro patamar as ambições expansionistas de Hitler e, com isso, abriram caminho à
Segunda Guerra Mundial. A Europa transformava-se num autêntico teatro de guerra.
Apesar da simpatia que nutria pelos alemães, Salazar apostou num dissimulado jogo
diplomático com todos os intervenientes, que veio a revelar-se decisivo, poupando
Portugal da guerra. Cedeu aos aliados a Base das Lajes, na Ilha Terceira, mas continuou
a exportar volfrâmio para os alemães para o fabrico de armamento6.
Em plena Segunda Guerra Mundial, o país estava mergulhado na mais profunda
miséria e obscurantismo. Havia dificuldades de abastecimento de mercadorias,
racionamento de consumo e escassez de combustíveis.
Numa conjuntura de crise, miséria e desemprego, as carências alimentares eram uma
realidade assustadora que se estendia a todo o país. Os problemas de salubridade e de
higiene agudizavam o dia-a-dia dos mais desfavorecidos. Os bairros operários eram
focos de disseminação de doenças.
António Pereira e Maria da Piedade foram terrivelmente surpreendidos quando a
respiração ofegante e irregular do filho anunciou um futuro com presságios de
brevidade. O olhar pálido e um jogo pouco sadio que alternava entre convulsões e
momentos de delírio não deixavam margem para dúvidas. O jovem estava tuberculoso
e a doença em fase avançada.
Maria Adelina é retirada da casa dos pais para se evitar o perigo de contágio e é levada
para junto dos padrinhos de baptismo. Apesar do esforço dos médicos que o visitavam
em casa e que tudo fizeram para salvá-lo com os meios e conhecimentos disponíveis,
António Pereira (Júnior) não resistiu à força da doença e acabou por falecer alguns
dias depois, em 1941. Tinha apenas 21 anos. «Recordo-me de a minha mãe me dizer
que devia o facto de estar viva, a ter sido retirada a tempo da casa dos seus pais e ido
viver para casa do Padrinho Evaristo e da Madrinha Cecília, tanto mais que estes
tinham também uma filha dois anos mais velha do que a minha mãe – por sinal com
o mesmo nome, Maria Adelina - o que de certa forma, creio eu, para a minha mãe,
atenuava o desgosto pela doença do irmão, a quem naturalmente toda a gente previa
vir a ter um final trágico e doloroso. Mesmo no meio desta fase negra da família, a
forma como foi adoptada a designação familiar das duas meninas era muito terna: a
mais velha era a Lina e a minha mãe, mais nova, a Linita».
Foi um tempo estranho para a família. A consciência da morte foi um choque para
todos. Para António Pereira e Maria da Piedade foram muitos meses de luto, uma
6 Rui Ramos, Nuno Gonçalo Monteiro, Bernardo Vasconcelos e Sousa, História de Portugal, A Esfera dos Livros, 2009, 7º Volume, pp. 89-90.
Raízes
mistura de apatia e indiferença perante o mundo. Afinal, tinham perdido um filho.
Valeu-lhes o apoio da irmã de António Pereira, Cecília, e do marido, Evaristo, um
negociante abastado. Eram eles os padrinhos de Maria Adelina e viviam também
em Lisboa. O casal, como gozava de uma condição financeira confortável, além de
lhes ter acolhido a filha em casa, ofereceu trabalho a António Pereira como padeiro/
pasteleiro numa das suas pastelarias. Aos poucos, a vida dos avós de Carlos Pereira foi
melhorando e a dor atenuando.
Maria Adelina regressou à casa dos pais. Refém dos preconceitos da época, apenas
estudou até à quarta classe, pois o liceu era, preferencialmente, só para os rapazes.
Sob a égide da religião católica, inculcava-se nas massas que o papel da mulher na
sociedade estava reservado ao lar, devendo esforçar-se por ser uma boa esposa, uma
boa mãe e submissa ao marido. A mulher ideal deveria ser cristã e ao serviço do
Estado Novo. Por isso, quando atingiu 16 anos, iniciou um curso de modista, uma
das profissões mais abraçadas pelas jovens, na década de quarenta, em pleno Estado
Novo. Era uma espécie de preparação para a vida doméstica. Diariamente, a jovem
saía de casa, em Alfama, e calcorreava a calçada portuguesa até ao Chiado. É por esta
altura que Carlos Diamantino Pereira e Maria Adelina se conhecem e começam a
namorar. O rapaz já não era empregado de armazém. Trabalhava como arquivista nos
escritórios da inglesa Avery Berkel, uma multinacional que comercializava balanças.
Até ao casamento, como também era praxe na época, as regras de convivência entre
namorados eram bastante apertadas. Carlos Diamantino ficava do lado de fora da casa
e Maria Adelina lá dentro, à janela. O namoro era presenciado pela mãe da rapariga
que dedicadamente policiava a conversa entre os dois jovens.
Quando Carlos Diamantino pediu a mão de Maria Adelina em casamento, os pais
da rapariga não se opuseram, muito embora o dinheiro para construir uma vida em
comum fosse escasso. O ordenado do rapaz não permitia grandes luxos e o da rapariga
era quase inexistente, por força da ainda pouca experiência que tinha na arte do corte
e costura. Sem grande margem para malabarismos financeiros, o jovem casal vai viver
para casa dos pais dela. E é nessa casa dos avós maternos que Carlos Pereira nasce.
Corria o ano de 1947.
No mundo, os olhos estão virados para a “Guerra Fria». Com a capitulação da
Alemanha perante os aliados, em 1945, os Estados Unidos e a União Soviética
disputaram a hegemonia política, económica e militar no mundo. Era o embate entre
o sistema socialista soviético e o sistema capitalista americano. Salazar, mais uma vez,
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26
Carlos Pereira
jogou com a base das Lages para acalmar os ânimos dos americanos e dos ingleses,
caso os tanques soviéticos atravessassem a Europa. Por isso, a ditadura conservadora
que se vivia no país saía incólume aos olhos do mundo e até, talvez, mais consolidada.
A fragilidade transformada em força
A chegada de Carlos Pereira ao mundo foi vivida com grande alegria por parte dos
pais. Afinal, tratava-se do primeiro filho do casal e a vida encarregar-se-ia depois
que fosse o único. «Estranhamente, ou talvez não, nasci com este aspecto – louro
e com olhos azuis, de um azul realmente muito intenso – que nada tinha que ver,
nem com a minha mãe, nem com o meu pai, ambos moderadamente morenos e com
olhos castanhos. Vim a perceber, quando estudei as leis de Mendel e o “enigmático
jogo cromossomático”, que apenas tinha 25 % de probabilidades de ter nascido com
estas características. Mais: posteriormente, um médico informou-me que, dadas as
características dos grupos sanguíneos dos meus progenitores – o meu pai 0 positivo
e a minha mãe 0 negativo – a probabilidade de ter graves deficiências à nascença era
muito elevada, se tivesse nascido nas restantes (e maioritárias) 75 % de possibilidades
permitidas pelo dito “jogo”».
Carlos era uma criança sossegada, tranquila. O ambiente em casa seria perfeito
não fossem os problemas respiratórios assíduos do menino. Não só estes ataques o
deixavam demasiado exausto, como roubavam frequentemente noites de sono aos
pais. A falta de higiene, demasiadas pessoas em espaços combinados, bairros com
fossas a céu aberto e uma má alimentação eram os responsáveis pela disseminação de
doenças respiratórias que atacavam, sobretudo, os mais novos. Lisboa era uma cidade
suja, fétida, sobretudo num bairro pobre como Alfama.
A vida corria um bocadinho melhor para Carlos Diamantino e Maria Adelina. Ele tinha
mudado de emprego, estava agora a trabalhar no Sindicato de Seguros, e ela ajudava
em algumas despesas da casa com os seus trabalhos de costura que, entretanto, foram
aumentando. Assim, como a pressão sobre o orçamento familiar diminuiu, o casal
aproveitou para mudar de casa. Continuaram a viver em Alfama, perto dos avós de Carlos,
mas numa casa alugada, na Rua das Escolas Gerais, na freguesia de S. Vicente de Fora.
Foi precisamente nesta rua que em 1290 nasceu a primeira universidade portuguesa,
às mãos de D. Diniz, o rei letrado e poeta que fundou os estudos gerais. No entanto,
a universidade não ficou na capital por muito tempo. Entre avanços e recuos, entre
Lisboa e Coimbra, a indecisão sobre que cidade deveria acolher a universidade
Raízes
permaneceu até 1384, ano em que D. João I determinou que a universidade ficaria
permanentemente na cidade de Lisboa. Com poderes para atribuir graus de Bacharel,
Licenciatura e Doutoramento, desde 1377 -, concedidos pelo papa Gregório IX -, a
universidade manteve-se em S. Vicente de Fora até 1537, altura em que regressou a
Coimbra e onde se manteve como o único estabelecimento de ensino superior até 1911.
É já quando estão a viver na casa nova que Carlos manifesta os primeiros sintomas da
tuberculose. Febres elevadas, dificuldades respiratórias, perda de peso e suores frios
que não desaparecem. Tinha apenas três anos. Os pais, desesperados, procuram a
ajuda dos médicos que, perante os sintomas evidentes, logo lhe diagnosticam a doença.
A notícia teve um impacto forte sobre Maria da Piedade que, ao relembrar a morte do
filho, vítima de tuberculose, desmaia. Felizmente, apesar de graves, nem a pneumonia,
nem a tuberculose, eram já consideradas doenças incuráveis, pois desde 1944 que a
Cruz Vermelha fazia a distribuição de ampolas de penicilina pelo país.
Todos os dias, de manhã e à tarde, durante meio ano, o farmacêutico Arnaldo deslocavase a casa do pequeno Carlos para lhe administrar uma injeção de estreptomicina (uma
variedade de penicilina). Carlos já lhe conhecia os passos por causa das botas com
protectores metálicos, bem ao uso na época, destinadas à protecção da sola de cabedal
de desgaste mais rápido - sonoridade esta que era completada com a imagem da bata
imaculadamente branca, a qual por sua vez contrastava com a imagem negra da dor
causada pelas injecções, que o farmacêutico diariamente lhe administrava. A injecção
era de tal forma dolorosa, que chorava a plenos pulmões e só acalmava quando a mãe
lhe atenuava o sofrimento com um saco de gelo. Os médicos disseram aos pais que o
filho escapou por milagre. Nunca mais teve doenças.
Quando os resquícios da tuberculose despareceram, Carlos pode brincar em casa, num
ambiente aconchegado. Apesar de não ter sido uma criança inundada de brinquedos,
as recordações dos primeiros anos da infância, ao colo dos pais e dos avós, ainda hoje
o enternecem.
A combatividade que Carlos Pereira mostrou perante a doença, deu-lhe uma força interior
extraordinária que explorou ao longo da vida, tanto a nível pessoal, como profissional.
Cartilha maternal ou arte de leitura
«Ora a verdadeira palavra do homem é a palavra escrita, porque só ella é immortal. Mas
enquanto o ensino da palavra fallada é o encanto de mães e filhos, o ensino da palavra
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28
Carlos Pereira
escrita é o tormento de mestres e discípulos. Estranha diversidade em coisas tão irmãs! (...)
Pois apressemo’nos também nós a ensinar palavras, e acharemos a mesma amenidade»7. É
assim que João de Deus8, poeta e pedagogo português introduz a primeira lição do
seu método de ensino - a Cartilha Maternal – um guia considerado inovador à época,
destinado a servir de base ao ensino da leitura às crianças.
Tal como muitas outras mães, Maria Adelina utiliza o método de João de Deus
para ensinar o filho Carlos a juntar as primeiras letras. Extremamente exigente e até
autoritária no que toca à educação, surpreende-se com a evolução do filho. Carlos
mostra grande aptidão para as letras e aprende a ler e a escrever com grande facilidade.
Tinha apenas cinco anos.
Quando entra para a escola, dois anos mais tarde, em 1954, já sabe ler e escrever, o
que lhe dá grande vantagem em relação às outras crianças. Os pais matriculam-no na
escola “A Voz do Operário”9, no Bairro da Graça, perto de casa.
O primeiro dia de aulas revelou-se, no entanto, um pouco traumatizante. A professora
sentou o pequeno Carlos ao lado do Jorge Manuel, um menino que era seu vizinho,
mas que era rufia, brigão, desordeiro e malcomportado, e que passou toda a manhã a
pontapeá-lo e a sujar-lhe a bata, sempre muito subtilmente. Ora, a professora, a dona
Lívia de Andrade Ramos, casada com Aníbal Ramos, professor de ginástica, não deu
por nada. O rapaz ficou triste, sentindo-se humilhado. A mãe, que o esperava em casa
no intervalo do almoço, ficou lívida de aflição quando viu o filho entrar pela porta
adentro lavado em lágrimas. Carlos explicou-lhe o que se tinha passado na escola e
a mãe aconselhou-o a ripostar na mesma moeda. À tarde, de regresso aos bancos da
escola, e obediente à mãe, Carlos não hesitou. Ao primeiro pontapé sofrido, empurrou
o Jorge Manuel da carteira abaixo. O vizinho nunca mais o incomodou, mas Carlos
teve azar. A dona Lívia assistiu a tudo e não lhe perdoou a façanha. A primeira reguada
do ano coube ao menino Carlos.
Era estudioso e tirava as notas mais altas a todas as disciplinas: Matemática, Língua
Portuguesa, História e Geografia. No recreio, era extrovertido, falador e comunicativo
com os outros miúdos. Jogava à bola e ao berlinde. Era traquina e fazia trinta por uma
linha. Carlos revelou-se um aluno exemplar, o que lhe valeu, anos mais tarde, um
sincero pedido de desculpas por parte da dona Lívia, no qual terá declarado que o
7 João de Deus, Cartilha maternal ou arte de leitura, Imprensa Nacional, Lisboa, 1878, p.p 2.
8 João de Deus Ramos Nogueira nasceu a 8 de Março de 1830 em São Bartolomeu de Messines. Em 1876, após dez anos de trabalho intenso na criação de um método de
leitura, João de Deus edita a Cartilha Maternal, servir de base ao ensino da leitura às crianças. O objectivo era que o ensino fosse feito pelas mães, daí o nome de Cartilha
Maternal. Este método de iniciação à leitura tornou-se rapidamente no preferido pelos professores e ainda hoje mantem alguns seguidores. João de Deus faleceu em 11 de
Janeiro de 1895. Um ano antes, já bastante doente, foi agraciado pelo rei D. Carlos com a condecoração Grã Cruz de Santiago.
9 As escolas da “Voz do Operário” são propriedade da Sociedade de Instrução e Beneficência Voz do Operário, que foi fundada em 1883 com o objetivo principal de
publicar um jornal que fosse o porta-voz dos operários da indústria tabaqueira, em particular e dos restantes operários, em geral. De carácter mutualista, a Sociedade
engloba assistência social médica, bem como um fundo de maneio para operários sinistrados ou despedidos, entre outras medidas sociais.
Raízes
01
02
03
01, 02 e 03 Carlos Pereira na Voz do Operário
29
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Carlos Pereira
01
02
01 Vista de Pomares
02 Casa de Pomares
Raízes
Jorge Manuel era, afinal, um aluno incorrigível e que chumbava ano após ano.
As escolas de “A Voz do Operário”, baseadas nos fundamentos de um ensino laico,
tinham sido criadas para alfabetizar os filhos de operários, durante a Iª República.
Apesar da censura imposta pelo Estado Novo e de todas as dificuldades que daí
decorria, a escola não deixou de prosseguir com os seus pilares fundamentais: os alunos
eram estimulados a desenvolver um raciocínio crítico, fundamentado e de consciência
política. A instrução era considerada sinónima de inteligência e emancipação. O
objectivo principal da escola era o de preparar os filhos de operários para que no
futuro atingissem cargos de topo na sociedade portuguesa.
Pelo contrário, nas escolas do Estado, o pensamento era totalmente diferente. A
escola deveria servir como um aparelho de doutrinação e não de identificação de
talento intelectual. O regime de Oliveira Salazar estava empenhado na criação de uma
escola nacional, um instrumento de controlo social, que mantivesse o povo submisso
e resignado. A reaproximação entre a escola e a igreja, a adopção do livro único e a
redução do tempo da escolaridade obrigatória e dos planos curriculares faziam parte
das características da escola salazarista.
Foi na escola primária que Carlos tomou pela primeira vez, contacto com um
pensamento anticlerical. Até então, sob a orientação da mãe, encarregue da sua
educação, estudava em casa os princípios morais e católicos que a ordem social
estabelecida disseminava. Este contraste de ensinamentos deixará para sempre marcas
na personalidade de Carlos Pereira. Irá aguçar-lhe o discernimento e sentido de justiça.
Muitas vezes, quando as aulas terminavam, Carlos ia para casa dos avós. É com o avô
Pereira que o pequeno Carlos vem a estabelecer uma ligação especial e uma amizade
muito singular. Carlos guardará para sempre na memória a figura imponente do
avô, sentado à cabeceira da mesa, com o seu velho bandolim comodamente assente
nas pernas. No pequeno instrumento bem afinado, os seus dedos voavam sobre as
cordas em movimentos rápidos e imperceptíveis, dando vida a acordes límpidos e
cristalinos. «É difícil imaginar como é que o meu avô, com aquele corpo de homem
beirão, pequeno e entroncado, com aqueles dedos curtos e grossos conseguia tocar
um instrumento de cordas com uma transparência e uma sonoridade extraordinárias».
De facto, o avô Pereira era dotado deste talento, intenso e delicado. A habilidade
para tocar instrumentos herdou-a do pai, mas a paixão que sentia pela música
e pela composição musical transmitiu-a ao neto. Os dois tinham uma grande
31
32
Carlos Pereira
afinidade emocional. O avô concedia à criança a maior importância, respondendo,
pacientemente, a todas as suas perguntas. Para Carlos, o avô era o livro da sabedoria
que desmistificava todos os enigmas. «A cumplicidade e afinidade emocional entre
mim e o meu avô pode bem ser avaliada neste episódio, para mim, verdadeiramente
inesquecível: uma tarde, o meu avô estava a tomar conta de mim porque a minha mãe
tinha saído por qualquer motivo, e eu pedi ao meu avô para jogar a bola, claro, na
sala, que era o maior compartimento da casa. A minha mãe já tinha dito, vezes sem
conta, que não queria jogos de bola na sala; e a razão era simples e compreensível:
nos aparadores da sala, a minha mãe tinha em exposição, entre outros objectos de
vidro, um conjunto de seis copos com jarro que tinha tido como oferta de casamento,
e do qual guardava uma grande estima e tinha receio que uma bolada mal calculada
pudesse partir alguma coisa. Mas o meu avô não resistia a um pedido meu e… lá
fomos jogar à bola para a sala, antes da chegada da minha mãe. E está-se mesmo a
ver o que aconteceu: numa jogada de maior intensidade, dei uma biqueirada na bola
e… zás! Um dos copos do serviço que a minha mãe tanto estimava, fez-se em mil
pedaços. O meu avô disse-me: “Oh rapaz! Quando a tua mãe chegar quem lhe diz o
que aconteceu sou eu, ouviste?” E assim foi. Quando a minha mãe chegou, o meu avô
disse-lhe: “Oh rapariga! Olha que ouve aqui um pequeno acidente: o rapazote e eu
estávamos a jogar a bola e eu descuidei-me… e pronto, partiu-se um copo! Mas antes
isso que ter partido a cabeça!” Claro que a minha mãe ficou na dúvida se teria sido ou
não eu a partir o copo, mas com a versão do meu avô, ela não lhe disse nada. Limitouse a dizer: “Quantas vezes eu não disse já a vocemecê que na sala não se pode jogar à
bola? Depois dá isto! E logo o serviço que eu mais gosto!” Depois do episódio, nunca
mais falei disto com o meu avô. A minha mãe, porém, quando às vezes falava dos
copos que eram e foram presença constante no aparador da sala, sempre dizia: “Não
sei se foste tu ou o teu avô, só sei que fiquei com a meia dúzia de copos incompleta!”
Até hoje mantenho na minha casa os cinco copos que se ficaram intactos… mas que
também, curiosamente, nunca vi a minha mãe utilizar, ao contrário do que, algumas
vezes, acontece actualmente na minha casa».
Quando chegava a casa, ao final do dia, depois do trabalho, o avô ainda tinha energia
suficiente para ensinar ao neto os segredos dos acordes. Começavam com exercícios
simples, para relaxar, improvisos de pouca qualidade que serviam para descontrair,
até acertarem o compasso numa simbiose perfeita. O avô Pereira via em Carlos o
companheiro das aventuras musicais que o seu próprio filho não foi. António Pereira
(Júnior) nunca teve sensibilidade para a música, ao contrário de Carlos que aprendeu
a cantar e a tocar viola muito cedo. Se em pequeno, por volta dos cinco anos, Carlos já
trauteava algumas canções, em adolescente já compunha as próprias letras.
Raízes
Durante umas férias de Verão, em Pomares, Carlos, o avô e mãe, chegaram a actuar
para familiares e amigos. Nesta brincadeira, Carlos ficou encarregue da viola, o avô
comandava o bandolim, enquanto a mãe punha a melhor voz para dar vida ao fado “A
minha casinha”, de Amália Rodrigues.
O momento foi gravado numa bobine antiga pelo Padre Carlos Diniz Cosme, um
clérigo da aldeia que vivia na Cidade do Vaticano, em Itália. O registo sonoro sobreviveu
ao tempo e pode ser ouvido (utilize o seu smartphone e leia o QRCode em baixo).
Foi a primeira aventura de Carlos Pereira no mundo mágico da música.
33
2
VICENTINOS
OS
E
O
PRAZER
DO CON H E
CIMENTO
Os vicentinos e o prazer do conhecimento
Foi nas estreitas e labirínticas vielas de Alfama que Carlos cresceu. Bairro à parte,
fechado sobre si próprio, as suas casinhas de paredes brancas e telhados vermelhos
escorregam, encavalitadas, pela encosta abaixo do Castelo de S. Jorge até ao limite do
Rio Tejo.
Alfama sempre teve vida própria, os moradores fazem da rua o ponto de encontro para
socializarem. Há sempre gente na rua, há sempre alguém a atravessar os caminhos
estreitos e empedrados que separam os pequenos prédios. A distância é tão curta que
um vizinho é capaz de espreitar da sua janela e ser um espectador assíduo do que se
passa na casa do vizinho da frente. Os homens conversam à esquina, bem como as
mulheres que, em pequenos círculos, se juntam à porta dos prédios para saberem das
últimas novidades do bairro. As vendedoras de peixe, de frutas, de legumes e da fava
rica, anunciavam-se com os seus típicos pregões e, ao cair da noite, há sempre alguém
a cantar e a animar as casas de fado que foram nascendo nos espaços térreos dos
prédios. Em Alfama, diz-se, toda a gente canta o fado.
Os moradores cruzavam-se diariamente no largo do Chafariz de Dentro, pois era aqui
que a vida do bairro se centrava. Às duas igrejas, a de São Miguel e a de Santo Estevão,
somavam-se ainda as tascas, os restaurantes, os cafés, as leitarias, as barbearias e as
casas de fado. Muitas destas casas de comércio pertenciam aos migrantes que, bem
sucedidos na estiva, conseguiam capital suficiente para se estabelecerem por conta
própria.
Era o caso do carvoeiro, de origem galega, que tinha a sua oficina no rés-do-chão do
prédio onde Carlos nascera. Quase sempre enfarruscado, o homem era alvo de troça e
motivo de risada de toda a rapaziada do bairro, que quando ali passava não se continha
em piadas por causa da sua cara sempre negra do carvão. O galego, de tão gozado,
já nem ligava às provocações e continuava a sua vida, tranquilo, como se nada fosse.
Mas as personagens caricatas de Alfama não se ficavam por aqui. Na porta ao lado,
o senhor Manuel, dono de uma mercearia, era localmente conhecido como o “Rei do
Sebo”. Claro que, tal como o nome sugere, a limpeza e o asseio naquela mercearia era
uma coisa que não abundava. As prateleiras onde estavam armazenados os produtos
não viam um pano do pó desde o tempo da outra senhora, a manteiga tinha um ar
rançoso e a hortaliça amontoada em caixotes de madeira, não raras vezes, apresentavase com um ar podre e um cheiro pestilento. Mas, ao contrário do carvoeiro galego que
era uma paz-de-alma, o senhor Manuel deixava-se facilmente acirrar quando alguém,
desde a rua, sonoramente o chamava por “Oh! Rei do Sebo!”. Lembra Carlos que
o homem, de tão irado, logo «atiçava o cão que lhe fazia companhia na mercearia
35
36
Carlos Pereira
e o pessoal desatava a correr pela rua abaixo, até perder a mercearia de vista». O
cão, de resto, era tão ou mais feio que o dono que, ainda por cima não soube dar ao
canídeo um nome um pouco mais digno da sua fidelidade: «Este cão tinha um nome
absolutamente a condizer com o seu aspecto: “Se puderes”! Era o “Se puderes”! E
a malta dizia que ele era o “Se puderes comer, comes, se não puderes, não comes!».
A rua era assim o local de convívio dos moradores. Era também na rua, aos fins-de-semana, que Carlos jogava com os amigos - umas vezes futebol, outras vezes hóquei,
sobretudo quando se realizava na Suíça o célebre Torneio de Montreux. Com umas
balizas improvisadas, a criançada aperfeiçoava os remates, não fosse a bola de trapo
derrubar as flores coloridas delicadamente plantadas nos vasos que enfeitavam as
varandas dos vizinhos ou sujar a roupa imaculadamente estendida em arames e que
ainda hoje caracterizam o bairro.
Durante a semana, dedicava-se aos estudos. Em 1959, aos 12 anos, entrou para o
Liceu Gil Vicente, instituição criada em 1914, com base nos ideais republicanos e que
funcionava na antiga cerca do Mosteiro de S. Vicente, na Rua da Verónica, no Bairro
da Graça.
Apesar do ar frágil, de corpo franzino, era um jovem irrequieto, com uma inteligência
lúcida e carácter decidido. De cabelo loiro muito claro, os olhos grandes, redondos,
de um azul claro translúcido, aureolavam- lhe o rosto. Carlos foi um aluno modelo.
Concluiu o 1º e o 2º ano do liceu com notas brilhantes. Ficava fascinado com as
matérias lecionadas, com o conhecimento que os professores levavam para a sala de
aula. A Matemática, a sua disciplina favorita, permitia-lhe pensar o universo. Aplica-se
afincadamente nos estudos e procura compreender os assuntos que eram ministrados,
um hábito que traz do tempo da escola primária «A Voz do Operário». Distinguiuse nas aulas por intervir com frequência, mas quase sempre de forma construtiva.
Entregou-se ao estudo com grande seriedade e permaneceu no quadro de honra quase
de forma ininterrupta.
O cirurgião de ortopedia pediátrica Pedro Miguéis ainda hoje se recorda de Carlos
como um “aluno opinioso e participativo”. Frequentaram a mesma turma desde o
terceiro ao sétimo ano do liceu e a imagem de ver aquele aluno «sentado nas cadeiras
ao fundo da sala, o mais distante possível do professor» sempre o intrigou. Ficou a
saber muitos anos mais tarde, por força de uma amizade que ainda hoje os une, que
esta mania se devia ao facto de o rapaz querer controlar tudo o que se passava à sua
volta, revelando já uma tendência para observar, sem lhe escapar qualquer detalhe.
Os vicentinos e o prazer do conhecimento
01
02
01 Folheto do Programa
da Récita de Finalistas
02 Almoço Antigos Alunos
do Liceu Gil Vicente de 1967
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38
Carlos Pereira
01
02
01 Carlos Pereira e Mila
02 Capa de Conto Policial
Romance Inacabado
de Carlos Pereira
Os vicentinos e o prazer do conhecimento
Foi no liceu que desenvolveu uma paixão pela literatura, revelando uma maturidade
literária pouco comum nos jovens daquela idade. Pela primeira vez, toma contacto
com a obra lírica de Camões, poeta que lhe servirá da referência ao longo da vida e que
o inspira a escrever os primeiros poemas, soltos, ingénuos, ainda sem a consistência
que outros viriam a ter no futuro. Carlos chegou, inclusive, a criar sonetos perfeitos e a
obra «Os Lusíadas» foi a sua “bíblia” épica de cabeceira durante muitos e muitos anos.
Foi nestes primeiros anos da descoberta liceal que começou a escrever um romance, a
que perdeu o rasto durante todos estes longos anos, até há muito pouco tempo. «Tratase de um romance, vivido na primeira pessoa, com uma componente autobiográfica
muito marcante. O reencontro com este manuscrito que julgava perdido vai certamente
motivar-me a reencontrar uma nova fórmula para a conclusão do texto que iniciei
quando tinha 16 ou 17 anos de idade. Veremos se vai ser possível!», confidencia.
As letras foram depois ultrapassadas quando, já no 7º ano, teve aulas no laboratório de
Biologia. Foi quando se apercebeu, pela primeira vez, da importância das Ciências. As
aulas eram o passaporte para um mundo desconhecido, rico, ousado, uma caminhada
emocionante em busca de uma explicação para os mistérios da vida. «Lembro-me
perfeitamente de, no último ano, na disciplina de Ciências Naturais, ter sido o único
que conseguiu, com a ajuda de uma pinça, isolar a rádula, o dente que os caracóis têm
e usam para raspar as folhas de que se alimentam».
Muitos temas o absorviam: A literatura, as ciências, o desporto, o desenho. Carlos era
um jovem eclético, com uma sede de adquirir uma cultura geral impressionante. Ávido
de conhecimento, lia e escrevia poesia, prosa, dedicava tempo à música, ao desporto,
ao mesmo tempo em que despertava um espírito de revolta contra as injustiças sociais.
Apesar de ter sido criado quando se vivia e se aprendia o espírito humanista e
democrático, a ditadura impôs os seus princípios e demitiu alguns professores
republicanos e antifascistas do Liceu Gil Vicente.
Todavia, a medida não foi totalmente eficaz. A semente dos ideais liberais estava
demasiado enraizada naquela instituição e havia outros professores que levavam para
dentro da sala de aula as suas opiniões, ainda que de forma velada, tal como recorda
Carlos Pereira: «Desde cedo que a minha formação se desenvolveu através da acção
educativa de um conjunto de professores do Liceu Gil Vicente. Eles canalizavam para
os alunos a opinião que tinham do que era o regime, do que era a vida e de como as
pessoas se deveriam comportar em sociedade. Não defendiam abertamente posições,
limitavam-se a contrapor e a exemplificar o que acontecia noutros lugares, onde as
39
40
Carlos Pereira
Os vicentinos e o prazer do conhecimento
“Com o Carlos, pode
fazer-se imensas coisas.
...Um dia, veio-me
com a ideia de formar
um grupo de cinema
para fazermos oito
milímetros.
...Claro que ele era
o realizador.
...Foi um período
óptimo, extremamente
rico.”
Pedro Miguéis
O amigo médico Vicentino
do grupo dos 7+1
41
42
Carlos Pereira
cabeças e os pensamentos eram outros. Faziam o contraponto entre aquilo que era
a História do País, as lutas que se travaram em 1383/1385, a história de Miguel de
Vasconcelos10 e a sua cumplicidade com os espanhóis no século XVII, e, portanto,
através de alguns exemplos, faziam uma crítica muito contida, mas que para nós,
alunos, era muito perceptível. Creio que muitos de nós hoje teríamos certamente,
perante os acontecimentos da nossa sociedade actual, uma postura crítica tão intensa e
forte, como a que tivemos, naquela época, relativamente à figura sinistra antipatriótica
e de vendilhão da Pátria, como foi a personificada por Miguel de Vasconcelos, a que a
história se encarregou de qualificar como traidor».
Esses professores que conheceu no Liceu Gil Vicente foram determinantes para o seu
desenvolvimento político e para a construção de um espírito atento às inquietações
do seu tempo: «Recordo-me essencialmente de dois professores que considero
terem sido os responsáveis por aquelas que viriam a ser as minhas opções políticas
e ideológicas. O professor de História - Walter de Vasconcelos-, e o de Filosofia - o
professor Aguilar. Foram dois professores que me marcaram muito. Eles davam-nos
uma liberdade imensa nas aulas e nós podíamos exprimir as nossas opiniões sem
quaisquer restrições».
O amigo Pedro Miguéis também se recorda bem destes tempos e do que significava
ser aluno vicentino naquela época: «O Liceu Gil Vicente era uma casa de fortíssimas
tradições académicas, de amizade, de participação. Uma mescla de carácter humano,
de gente que vinha de vários meios sociais, de várias proveniências, e que ali, por força
do excelente ensino dos nossos mestres, éramos envolvidos numa única dinâmica de
futuros homenzinhos».
A época era de reunião de forças. Foi mais ou menos nesta altura que o movimento
estudantil universitário começou a assumir uma feição contestatária e a resistência
ao regime opressor por parte dos estudantes também chegou aos bancos do liceu.
Em breve, as lutas haveriam de se tornar bastante revolucionárias. Alunos mais
velhos, audazes e corajosos, escalavam durante a noite os muros do liceu e colavam
cartazes exigindo a libertação dos estudantes que já haviam sido presos pela PIDE.
Ou, sorrateiramente, à porta da escola, distribuíam panfletos contra o regime. Foi da
forja do Liceu Gil Vicente que grandes intelectuais oposicionistas do regime das mais
diversas áreas do saber se destacaram, entre os quais, o historiador Vitorino Magalhães
Godinho, o neurologista Luís Bigotte de Almeida, e os escritores Mário Cesariny,
Mário de Carvalho, José Gomes Ferreira, António Gedeão e José Saramago.
10 Miguel de Vasconcelos (1590-1640) foi um político português que defendeu o domínio espanhol sobre Portugal. Morreu às mãos dos partidários da Restauração, a 1
de Dezembro de 1640. Alto funcionário da administração dos Filipes, em 1634 foi nomeado escrivão da Fazenda do Reino e, um ano depois, a vice-rainha Margarida de
Saboia (Duquesa de Mântua) nomeou-o Secretário de Estado.
Os vicentinos e o prazer do conhecimento
01
02
Caricaturas de Carlos Pereira
sobre a mãe (01) e pai (02)
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Carlos Pereira
Caricaturas de Carlos Pereira
sobre a mãe e o Padre Cunha
Os vicentinos e o prazer do conhecimento
Nos outros liceus, o ambiente de autoritarismo era maior, os professores não tinham
qualquer tipo de autonomia. Deveriam apenas servir os interesses do Estado, numa
estreita obediência aos valores e princípios estabelecidos pelos quais se deveria pautar
toda a actividade educativa. A moral e os bons costumes proibiam a existência de
liceus mistos, imperando a separação dos géneros.
A reforma do ensino, promulgada a 17 de Setembro de 1947, definiu que o ensino
liceal deveria ter um carácter simultaneamente humanista, educativo e de preparação
para a vida, ressalvando que os dois últimos anos do curso eram especialmente
destinados a preparar os alunos para o ingresso em escolas superiores. As reformas
foram, sobretudo, curriculares. Procurou-se simplificar os programas para adaptá-los
melhor às orientações da ditadura, reduzindo o tempo de frequência, e a separação
entre o ensino liceal, mais elitista, e o ensino técnico. O enciclopedismo programático
e o processo de memorização a que o aluno estava sujeito -, objectivos definidos no
século XIX para o ensino liceal -, mantiveram-se no decurso do regime do Estado
Novo11. O certo é que os hábitos de leitura incomodavam o fascismo. Assim, todas as
iniciativas culturais exigiam pedido de permissão perante o estrito controlo do Estado,
com a excepção da Fundação Gulbenkian.
Nos liceus, estavam proibidas todas as actividades juvenis exteriores à Mocidade
Portuguesa, criada em 19 de Maio de 1936, pelo Decreto-Lei nº 26 611, do Regimento
da Junta de Educação Nacional, e que era parte integrante da educação da juventude.
Os seus objectivos, enquadrados no espírito do regime do Estado Novo, eram o de
«enraizar uma nova mentalidade» que defendesse a trilogia «Deus, Pátria e Família»12.
Jovens dos sete aos catorze anos eram obrigados a filiar-se na Mocidade Portuguesa e a
frequentar as suas actividades, nas quais se privilegiavam três disciplinas fundamentais
para levar a cabo a idealização do regime. Além da educação moral, onde se procurava
fomentar os valores do Estado Novo e onde se estimulava o sentimento de pertença de
grupo através do enaltecimento dos feitos históricos da nação e do sentido nacionalista,
a educação física aparecia como a disciplina que fomentava o espírito de grupo e
a preparação dos jovens para o exército. Estavam assim criados os mecanismos de
socialização escolares, essenciais à edificação do ideal nacionalista. Todos os sábados
de manhã, os jovens recebiam instrução que compreendia o içar da bandeira, marchas
militares, exercícios físicos, palestra patriótica e cantar o hino da Mocidade.
Dentro de muros, o Liceu Gil Vicente também teve os seus informadores da PIDE.
11 Áurea Adão, Maria José Remédios, Memória para a frente e... O resto é lotaria dos exames. A reforma do ensino liceal em 1947, Revista Lusófona de Educação, 2008,
p.p. 41-64.
12 A Mocidade Portuguesa Feminina, pela obra das Mães, foi criada em Dezembro de 1937 e propunha-se formar a nova mulher, boa católica e portuguesa, futura mãe
e esposa obediente, através da educação moral e cívica, física e social. Maria Baptista Guardiola, então reitora do Liceu Maria Amália Vaz de Carvalho, foi nomeada pelo
regime para estar à frente deste movimento.
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Carlos Pereira
Alguns professores e alunos mais liberais foram sempre alvo de vigilância da polícia
política. Outros docentes e funcionários havia os que andavam de mãos dadas
com o regime. Corria até o boato que o reitor e Comissário Nacional Adjunto da
Mocidade Portuguesa, Joaquim Romão Duarte, partidário de formas repressivas e
discretas, conhecido como o Quim das Cancelinhas – pois mandava colocar cancelas
de madeiras em todas as esquinas do liceu para que os alunos dos diferentes ciclos não
se misturassem -, era um agente informador PIDE.
Fiéis do regime, os reitores dos liceus representavam a autoridade e a defesa dos ideais
do Estado Novo. Nomeados pelo Governo, eram uma espécie de figura disciplinadora
que impunham a ordem entre os professores e os alunos.
A disciplina era assim o pilar para o sucesso da aprendizagem. Era concebida
para fomentar e interiorizar comportamentos que tinham como meta a criação do
homem ideal, capaz de assumir o seu papel na sociedade. A postura em sala de aula
ou no pátio deveria ser rigorosamente acatada pelos alunos. Não havia lugar para
incumprimentos. A falta de pontualidade não era aceite e havia uma inflexibilidade
quanto ao incumprimento das regras e normas adoptadas pelo reitor do Liceu.
A influência do reitor pulava os muros do liceu. As regras deveriam ser respeitadas no
percurso entre a instituição e a casa. Caso houvesse algum incumprimento, o mesmo
merecia honras de ocorrência disciplinar. O reitor também exercia domínio sobre as
famílias dos alunos, em particular, e sobre a comunidade, em geral.
Na relação com as famílias, era o reitor que prestava todas as informações relativas
ao aproveitamento, assiduidade e comportamento dos estudantes. Na relação com a
comunidade, a ligação fazia-se através dos dias comemorativos e festas locais, garantido
assim a influência do liceu e do reitor fora dos limites do espaço físico da instituição.
A identidade do reitor acabava por se confundir com a do próprio liceu. Foi por causa
desta imagem de respeito e de autoridade que os reitores tinham na comunidade que
Carlos e os seus companheiros de aula conseguiram livrar-se da esquadra. Corria o
ano de 1965 e Carlos estava no antigo 7º ano do liceu, em vésperas de se candidatar à
universidade. «Um dia, eu e os meus colegas, vestidos de bata branca – a aula prática
de Ciências Naturais tinha sido anulada por falta do respectivo professor - fomos
para o Jardim da Graça ler em voz alta os textos que tínhamos que fixar para o teste
do dia seguinte. Mas, entretanto, a polícia apareceu, a vociferar que aquilo era uma
perturbação da ordem pública, e que um ajuntamento com mais de três pessoas, estava
Os vicentinos e o prazer do conhecimento
proibido. Com a brutalidade que lhes era conhecida, levaram-nos para a Esquadra das
Mónicas. Mas quando um dos rapazes se identificou perante o chefe da esquadra, o
oficial, aflito, mandou-nos a todos embora. É que esse tal jovem era filho do reitor do
Liceu e não ficava bem prenderem o aluno. Não estivemos lá dez minutos. Foi a minha
primeira forma de confrontação com a polícia».
Com um percurso exemplar, Carlos ficou dispensado dos exames de aptidão à
faculdade, porque a média das suas notas era elevada. As portas da universidade
estavam agora abertas para o jovem de Alfama. Escolheu entrar para o Instituto
Superior Técnico, em Lisboa.
O Desporto
Carlos também estava atento a outras actividades lúdicas e desportivas que se
desenrolavam no Liceu, apesar de toda a responsabilidade que colocava nos estudos.
À excepção das actividades físicas desenvolvidas pela Mocidade Portuguesa, onde é
dada um pouco mais de atenção, a actividade desportiva era no início do Estado Novo
secundária para o regime político. Em 1942, o Estado Novo criou a Direcção-geral de
Educação Física, Desportos e Saúde Escolar (DGEFDSE), o organismo que tutelava
todo o desporto nacional e em 1943, lançou as leis bases do desporto, proibindo o
profissionalismo. O desporto ficou assim aprisionado, sem apoio financeiro.13 Mas,
com o passar do tempo, Salazar passou a ver no desporto uma forma de a juventude se
afastar dos temas políticos. Nem todas as modalidades profissionais eram acarinhadas
pelo poder, mas o futebol já vinha ganhando uma importância social muito grande.
Embora sendo contra a profissionalização da prática desportiva, Salazar procurou
aproveitar a popularidade do futebol para promover o país. Tal como a televisão, a
rádio e o cinema, também o futebol deveria servir como hino patriótico.
Os rivais lisboetas - Benfica e Sporting - dominavam o panorama nacional e o pai
de Carlos era um adepto ferrenho do leonino. Foi ele quem transmitiu a paixão
pelo clube ao filho. As primeiras memórias que Carlos guarda do futebol português
remontam a 1953, tinha apena seis anos. Foi o ano em que o Sporting, conquistou
pela segunda vez a Taça de “O Século” - prémio criado por João Pereira da Rosa,
director daquele jornal -, para homenagear a equipa que vencesse o campeonato
nacional três vezes seguidas, cinco alternadas ou aquela que tivesse mais títulos ao
fim de 10 anos, a fim de dinamizar ainda mais o futebol português. O Sporting havia
vencido os campeonatos de 1951, 1952, 1953, tornando-se o vencedor desta taça, mas
13 O Estado Novo e o Futebol, Ricardo Serrado, Prime Books, 2012.
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Carlos Pereira
ganhou ainda o campeonato de 1954, consagrando-se tetracampeão. Era a época dos
jogadores Carlos Gomes, Caldeira, Passos, Vasques, Travassos, entre tantos outros.
Carlos recorda-se de ir para a rua com os pais, no meio da multidão, para saudar
os jogadores campeões, eufóricos, que seguiam dentro de um jipe de caixa aberta
exibindo a imponente taça, que de tão pesada eram precisos dois homens para carregála. «Lembro-me que estávamos algures perto da Rua das Pretas, pois sabíamos do
trajecto dos jogadores para a sede do Sporting, na Rua do Passadiço. E, a dada altura,
a meio da subida, um dos jogadores distraiu-se e com a inclinação do jipe, a taça quase
que caiu para o chão, não fossem os reflexos rápidos de Manuel Passos, o capitão da
equipa, a segurá-la. Nunca mais esqueci esta imagem». Aos oito anos, por vontade de
seu pai, que nunca escondeu o orgulho de o filho também ser leão de coração, Carlos
já era sócio do Sporting. Quando havia jogos importantes, a família Pereira seguia um
ritual enternecedor: Saíam de casa, apanhavam o eléctrico para a Praça da Figueira e
depois iam a pé até aos Restauradores, onde apanhavam o autocarro para o Estádio
José Alvalade, inaugurado em 1956. Mas, entretanto, no caminho, à passagem das
Portas de Santo Antão, o pai de Carlos fazia sempre questão de passar pela centenária
“Ginjinha Sem Rival”, onde bebia o seu licor de ginjinha, reservando a ginja para o
filho que se deliciava com aquela fruta. Não raras vezes, quando o Sporting ganhava,
o pai, feliz da vida, presenteava a família com uns deliciosos pastéis de nata ao jantar
que comprava na pastelaria aonde o avô Pereira trabalhava.
A paixão que tinha pelo futebol e pelo desporto, em geral, traduzia-se nos vários
momentos do dia-a-dia. Não só jogava futebol à porta de casa com os amigos, até
ficar extenuado, como chegava mais cedo ao liceu para jogar mais um pouco antes
de as aulas começarem. Apesar de muito jovem, a sua preparação física dava nas
vistas. E foi então que o professor de Ginástica do liceu reparou nas suas aptidões
físicas para o atletismo. «Fiz uma aprendizagem em dois tipos de salto: O salto em
cumprimento e o salto em altura. Foi neste último que obtive um progresso bastante
curioso. Rapidamente saltei do 1,20m, para 1,30m, depois para 1,60m e 1,70m. Ou
seja, eu já saltava uma altura praticamente igual à minha».
O professor chegou a sugerir que o rapaz se inscrevesse nos campeonatos federativos,
mas a mãe, Maria Adelina, autoritária e controladora no que dizia respeito à educação
do filho, foi peremptória na proibição de tal coisa. O pai não foi tido nem achado para se
pronunciar sobre o assunto. E Carlos, desgostoso com a mãe, não lhe restou alternativa
que não fosse anuir. «Fiquei, por isso, com a actividade desportiva circunscrita aos
campeonatos inter-turmas de andebol, que causava enorme mobilização de quase
todos os colegas de todas as turmas. Aí, como eram actividades directamente ligadas
com o liceu, a minha mãe não podia impedir a minha participação».
Os vicentinos e o prazer do conhecimento
01
03
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01 / 02 Carlos Pereira
com o Grupo Objectivo
na Serra da Estrela
03 Caricatura de Carlos
Pereira sobre Rui Aço
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Carlos Pereira
Carlos Pereira nos Dragões Negros
Os vicentinos e o prazer do conhecimento
O temperamento autoritário de Maria Adelina manifestou-se em diversas ocasiões.
Por alturas de um aniversário de Carlos, ofereceu ao filho umas botas novas para
que o rapaz pudesse ir para a escola sem correr o risco de molhar os pés e aparecer
constipado. É claro que para Carlos nem lhe passou pela cabeça que as botas deveriam
chegar a casa impecáveis. Com a cabeça fixada no futebol, deu tantos chutos na bola
de trapo, que as ditas botas ficaram com um aspecto feio, sem brilho. Quando chegou a
casa, a mãe nem queria acreditar no que via. A façanha valeu-lhe um valente raspanete
e a impossibilidade de ir assistir a um jogo de futebol no Estádio do Lumiar, apesar do
esforço do pai em convencer a mãe do contrário. Mas sem sucesso. Maria Adelina era
irredutível nas suas decisões.
Carlos não se deixava abater. Magoado, mas orgulhoso, sobretudo ousado, um dos
aspectos mais marcantes do seu carácter, recuperava o tempo de castigo a jogar futebol de
qualquer maneira. Na rua, na estrada, com ou sem botas. A audácia manifestava-se nos
actos mais simples. Outras vezes, ao repouso imposto pela mãe, Carlos respondia com
uma fome devoradora de livros que encontrava à mão. Preferia os clássicos de aventura, os
de Alexandre Dumas e os de Júlio Verne, que lhe alimentavam o imaginário fértil.
Os Dragões Negros
No bairro de Alfama, Carlos mostrava ser um jovem culturalmente activo. Por volta
de 1965, com 18 anos, criou os Dragões Negros, um grupo musical que pretendia
ser um arremedo do Shadows, o quarteto de rock instrumental britânico que, em
parceria directa ou indirecta com Cliff Richard, fez sucesso nos anos 60. Foram eles
os precursores da música com guitarras eléctricas e amplificadores e que abriram
caminho aos Beatles que também se revelaram nesta década.
Já o nome “Dragões Negros” surgiu em homenagem aos Gatos Negros, o grupo
musical de sucesso dos anos 60, liderado pelo excêntrico Victor Gomes, considerado
um ícone do rock’n’roll português. Os Gatos Negros foram um caso de verdadeiro
sucesso com as suas guitarras estridentes. As raparigas desmaiavam perante a imagem
rebelde do cantor e os rapazes queriam ser como ele. Vestidos de cabedal preto da
cabeça aos pés, os Gatos Negros deixaram uma marca de irreverência, de rebeldia, no
imaginário de muitos jovens portugueses.
Também os Dragões Negros pretendiam alcançar a fama e a atenção das miúdas
do bairro de Alfama. Carlos assumia a viola solo, outro Carlos, mais conhecido por
Pencudo, estava encarregue da viola de acompanhamento, e o Henrique, tocava bateria.
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Carlos Pereira
O panorama musical português dos anos sessenta era um pequeno universo em que
se consumiam avidamente as novidades que a miúde surgiam do exterior, ora porque
passavam na televisão, ora na rádio, ora pelos discos que alguém trazia de Londres
ou Paris. Como a maioria dos censores não dominava a língua inglesa, a tolerância
na rádio às novidades vindas do estrangeiro era maior e os grandes nomes da música
britânica e americana foram editados em Portugal. As novidades foram depressa
alvo de imitação. Artistas e bandas locais foram os primeiros a decalcar os originais
importados.
Tal como os Shadows, também os Dragões Negros se apresentavam em palco, de fato
completo igual para todos os membros da banda e um corte de cabelo rockabilly. Os
casacos dos jovens foram ornamentados por um dragão que Maria Adelina desenhou
e cozeu delicadamente. Mal começava a tocar, Carlos sentia-se rebelde, não porque
as músicas tivessem alguma intervenção política, mas porque o simples facto de se ter
uma banda já era considerado um acto de irreverência. Era uma espécie de momento
contracultura que o jovem gostava de saborear.
Embora nunca tenha pertencido de forma permanente, um quarto elemento juntouse ao grupo. João Rito passou a acompanhar os Dragões Negros nas suas diversas
deambulações artísticas. Dono de uma voz límpida e vibrante, quando cantava
encobria as dificuldades técnicas e instrumentais com que os jovens músicos se
deparavam. Existem registos do quarteto que ainda hoje podem ser ouvidos (utilize o
seu smartphone e leia o QRCode da página ao lado).
Com instrumentos musicais primários e a ensaiar aos fins-de-semana, os Dragões
Negros chegaram a dar concertos e outros espectáculos nas associações recreativas,
culturais e educativas de Alfama, como era o caso do Patronato da Infância ou da Casa
da Pampilhosa.
Era ali que os migrantes daquela zona da Beira, indiferentes à vida do bairro, se
encontravam para manifestarem as suas referências culturais e estarem mais perto
da “terra”. Depois do jantar, os sócios daquela colectividade reuniam-se para beber a
bica e o bagaço, ver televisão, jogar às cartas e ao dominó, e dinamizar outras práticas
culturais e desportivas.
A Boa-União e o Ginásio Clube de Alfama eram outras colectividades muito
frequentadas pelos moradores. A primeira, fundada em 1870, a mais antiga do
bairro, era responsável pela organização das marchas populares. Quando o Verão se
Os vicentinos e o prazer do conhecimento
anunciava, as Festas dos Santos Populares, em especial a de Santo António, saíam à
rua. Tal como hoje, os moradores colocavam pequenas barraquinhas nas ruas e becos,
e vendiam vinho, pão, sardinhas e chouriço assado. As ruas enfeitavam-se com balões
coloridos e iluminados. As mulheres vendiam quadras e manjericos e havia até quem
construísse um altar para o Santo António. Os bailes eram sempre animados por um
moderno conjunto de rock que nascia no bairro.
O maior entusiasta dos Dragões Negros era o avô de Carlos que não se cansava das
actuações do neto. Com uma vida financeira bastante mais folgada, depois de ter sido
convidado para ser sócio da pastelaria onde trabalhava, António Pereira desfrutava
de uma vida mais tranquila e mais caseira. Quando não estava em Pomares, a olhar
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Carlos Pereira
pelas obras da casa – escolhida como o porto de abrigo dele e da mulher para quando
chegasse o tempo da aposentadoria -, estava em Alfama, a calcorrear as colectividades,
orgulhoso do progresso musical dos Dragões Negros.
As actividades extracurriculares de Carlos eram sempre vistas de forma reservada e
desconfiada por parte da mãe, como próprio se recorda: «A minha vida era ir e vir
das aulas, estudar em casa, ver televisão até às dez da noite e depois ir para a cama.
Portanto, todas as aventuras, em geral, e a dos Dragões Negros, em particular, tinham
que ser apresentadas à minha mãe de forma muito cautelosa e prudente. Não era fácil
vencer a resistência que ela sentia a tudo o que não se encaixava nos parâmetros que
idealizara para a vida em família».
Educada nos preceitos religiosos, Maria Adelina era devota dos valores da obediência,
disciplina e piedade. Adepta do regime do Estado Novo e do seu carácter patriótico e
ordeiro, sempre teceu grandes elogios a Oliveira Salazar, ainda que mais tarde tenha
mudado radicalmente de opinião. Para a mãe de Carlos, o ditador era um homem
solitário, bondoso e astuto que assumiu as rédeas da nação com as próprias mãos e que
livrou o País da IIª Guerra Mundial. Para Maria Adelina, tal como para tantas outras
mulheres, Salazar era o homem que acabava com os desacatos, com as dívidas do país,
que valorizava a moeda. Salazar parecia merecer a gratidão da dimensão feminina.
Também beirão e filho de agricultores de Santa Comba Dão, recolhia simpatizantes
entre os migrantes rurais que se vinham estabelecendo em Lisboa.
A Carlos valia-lhe a compreensão do pai que, apesar de partilhar dos mesmos ideais
políticos que a mãe, era mais brando e afável. Era com o pai que gostava de conversar
e com quem sentia uma maior afinidade.
Os vicentinos e o prazer do conhecimento
Caricatura de Carlos Pereira
sobre Marcelo Caetano
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Documentos de época desenvolvidos por CP
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L E G A D O
Tremes,
Tens comichão no corpo,
sentes vermes,
ousas falar e sufocas!
Sobre ti vês sempre bocas
desdentadas a chorar!
Cheiras o ar
em redor
onde há estertor ...
... odor a podre inalas
quando as balas disparadas
vão furar corpos torcidos,
decepados
carcomidos
e inchados
resultados de outras liças!
Tudo é fétido, insalubre e muribundo
parecendo que chegaste ao fim do mundo!
Já só tens as areias movediças
como legado ancestral
de uma civilização que tu odeias e
onde só
te tens sentido sempre mal
Documento de época desenvolvido por CP (manuscrito passado a limpo)
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Engenharia
Civil E A
O CURSO DE
PELA
paixão
Medicina
O curso de Engenharia Civil e a paixão pela Medicina
O sonho de ser médico cirurgião foi abruptamente interrompido, quando o pai
exigiu que se matriculasse em Engenharia Electrotécnica, no Instituto Superior
Técnico (IST), em Lisboa. Carlos não teve como fugir ao futuro vaticinado. O curso
de Engenharia era, na altura, distinto dos demais e a família havia feito demasiados
sacrifícios para que agora o rapaz deitasse tudo a perder.
Curioso por natureza, apaixonado por anatomia, leitor ávido e atento de revistas
científicas, a impossibilidade de seguir a vocação, a de querer salvar vidas, afigurouse como o seu primeiro grande desgosto que lhe deixa marcas até hoje: «Eu deveria
ter sido médico e não sou. O meu pai quis que eu seguisse engenharia e eu não tive
escolha. Na altura, não era fácil contrariar a vontade dos pais».
Era a segunda vez que os pais lhe trocavam as voltas ao futuro. Uns anos antes, a mãe
também o havia proibido de ser piloto de aviões, quando Carlos sonhava voar sobre
as nuvens e as montanhas, tocar as estrelas e descobrir novos mundos. Um dia, ao ler
o jornal, reparou num anúncio de recrutamento de candidatos para o curso de piloto
comercial de aviões, lançado pelos Transportes Aéreos Portugueses (TAP). Nessa
mesma noite, durante o jantar, com o pai e a mãe sentados à mesa, ousou confessar
que gostaria de se candidatar ao curso. Do lado da mãe, ouviu um sonoro «nem penses
nisso!». A conversa acabou por ali e o jantar decorreu sem viço. «A minha mãe não tinha
medo, tinha pavor dos aviões e, portanto, jamais iria consentir que o seu único filho
levasse uma vida, para ela, recheada de perigos. A minha mãe recusou-se sempre a andar
de avião. Ao contrário, o meu pai, tinha um desejo imenso de fazer essa experiência.
Um dia, já depois de ter terminado o curso e já ter uma vida mais estabilizada, ofereci
uma viagem de avião ao Porto ao meu pai e a minha mãe foi ter com ele ao Porto, onde
passaram o fim-de-semana, mas de comboio. Está tudo dito, não é?».
Maria Adelina e Carlos Diamantino Pereira fizeram alguns sacrifícios em nome da
educação do filho. Longe de ser uma família abastada, o dinheiro que Carlos Diamantino
ia aforrando ao longo do ano com as sucessivas promoções no sindicato de seguros
era investido no filho. A mãe, que deixou durante uns tempos os trabalhos de costura,
voltou a aceitar encomendas para fora porque o orçamento em casa não chegava para
cobrir todas as despesas. «Os meus pais fizeram questão que eu estudasse, apesar das
dificuldades financeiras que isso representava lá em casa. Todo o meu percurso escolar
e universitário, devo-o a eles porque investiram em mim. Sacrificaram-se por mim».
Carlos entrou para o Instituto Superior Técnico em 1966. Tinha 19 anos. O IST era
considerado um estabelecimento de ensino de referência e um alforge de talentos. O
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Carlos Pereira
01
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Carlos Pereira com o pai (01)
e com a Mãe (02) em Alcochete
O curso de Engenharia Civil e a paixão pela Medicina
curso de Engenharia Electrotécnica era particularmente difícil, trabalhoso e exigente,
o que provocava muitas desistências e mudanças para outros cursos. Foi o que
aconteceu com Carlos. No final do primeiro ano lectivo, pediu autorização ao pai
para mudar para Engenharia Civil, em função das más notas que obteve. «Decidi
mudar de curso porque a electricidade é algo que não se vê, é algo muito isotérico.
Sabemos como funciona, mas não vemos. Consegui convencer o meu pai que se não
trocasse Engenharia Electrotécnica por Engenharia Civil nunca mais terminaria o
curso superior. Ele lá concedeu o meu desejo e eu mudei de curso. Consegui convencer
o meu pai que se não trocasse Engenharia Electrotécnica por Engenharia Civil nunca
mais terminaria o curso superior. Ele lá concedeu o meu desejo e eu mudei de curso.
Neste tema, o irmão do meu pai - o meu tio José Augusto Barreto Pereira, também já
falecido -, deu-me algum apoio; ele era um quadro importante em Portugal da empresa
de elevadores Schindler, e proporcionou-me, a mim e ao meu pai, uma visita às obras
do Palácio de Justiça de Lisboa, à época em construção, e onde a empresa dele tinha
uma participação importante. Creio que a grandeza da obra ajudou a convencer o meu
pai para a mudança de curso que lhe pedia. Depois as coisas correram muito melhor».
Carlos passou a familiarizar-se com a Engenharia Civil, mas a paixão pelo bisturi
acompanhou-o ao longo de cinco anos de curso, sem nunca esconder dos amigos
e dos colegas o fascínio pelo acto cirúrgico e o quanto gostaria de ter sido médico
cirurgião.
Esse gosto era de tal forma profundo que em duas ou três ocasiões – já depois da
licenciatura terminada - foi assistir a intervenções cirúrgicas no Hospital de Santa
Maria, a convite de Pedro Miguéis, amigo e especialista de medicina pediátrica,
normalmente em blocos operatórios dirigidos por médicos que também tinham sido
Vicentinos. De alguma forma, estes convites eram uma prática muito comum entre a
comunidade médica como recorda Pedro Miguéis: «Os homens desta arte tinham um
grande sentido pedagógico que era o de trazer os cidadãos comuns ao contacto íntimo
com os factos e mostrar-lhes uma realidade que, habitualmente, os filmes e as séries
apenas fantasiam. Julgo que, de forma inconsciente, até porque era bastante novo na
altura, desenvolvi esse sentido pedagógico, com grande gosto para o Carlos».
Aprendiz incansável, Carlos ficava fascinado com o acto cirúrgico e questionava-se
até onde poderia chegar a evolução da ciência para cuidar e tratar do ser humano.
Mas mais do que isso, a paixão que os médicos colocavam na profissão deixava-o sem
palavras. Com ou sem instrumentos cirúrgicos, com mais ou menos conhecimento
sobre a evolução natural de determinada enfermidade, a dedicação de um médico
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Carlos Pereira
em aliviar o sofrimento de um doente parecia-lhe um lição de humildade infinita:
«Já era engenheiro, já trabalhava na Consulmar e ia assistir às cirurgias apenas por
gosto. Adorava observar os cirurgiões, a maneira como actuavam e como se fazia a
intervenção cirúrgica».
Uma das operações que Carlos guarda na memória foi a de um doente a quem tinha
sido diagnosticado cancro no esófago. O homem tinha mais de 50 anos, e o tumor já
só lhe permitia engolir alimentos líquidos. Pedro Miguéis disponibilizou uma bata,
luvas e máscara para Carlos poder entrar no bloco operatório. Após as operações
de desinfecção do tórax, a cirurgia teve início com uma incisão de bisturi na zona
imediatamente abaixo do externo e cuidadosamente acima do diafragma. O passo
seguinte foi abrir uma incisão no esófago, imediatamente acima do esfíncter esofágico.
Nesse momento da intervenção deu entrada no bloco o chefe de equipa – Fernando
Veiga Fernandes - que também tinha sido aluno do Liceu de Gil Vicente. Foi ele quem
explicou a Carlos o processo operativo já em curso, recorrendo a imagens de raios
X, onde se verificava claramente o estrangulamento do canal esofágico do paciente.
A cirurgia foi complexa e longa, durou mais de três horas. O doente, sob o feito da
anestesia geral, tinha acabado de entregar a vida às mãos daqueles médicos. A cirurgia
era inovadora e consistiu, basicamente, na introdução de um tubo de plástico dentro
do esófago, que tinha como objectivo resistir à pressão que o carcinoma exercia sobre
o canal esofágico, reabrindo-o e permitindo a passagem de alimentos não apenas
líquidos; os riscos eram altos, mas a cirurgia decorreu tal e qual os cirurgiões tinham
previsto. Não houve sobressaltos, o estado de saúde do doente permaneceu sempre
estável e a operação foi considerada um sucesso. «O homem ainda viveu durante
algum tempo e passou a ingerir tanto alimentos sólidos como líquidos. E eu fiquei
espantado com o tipo de intervenção que foi feito na sala de operações, no qual o
cancro foi atacado através da barriga».
Sem escolha possível, Carlos foi adquirindo gosto por algumas cadeiras, como a de
Hidráulica, e tornou-se num aluno brilhante, pleno de entusiasmo e energia. Era
um jovem que dava nas vistas até porque, segundo o colega e amigo Carlos Palhoto,
também ele estudante no IST, «era perfeitamente impossível de não se dar por aquele
rapaz de cabelo loiro e olho azul, sempre com uma pose bastante rígida que tinha êxito
não só a nível académico, mas também junto do elemento feminino que era bastante
apreciador da sua pose».
A década de 60 foi marcada por uma agitação social. Carlos viveu com grande
O curso de Engenharia Civil e a paixão pela Medicina
01
02
01 Carlos Pereira
no molhe de Portimão
02 Carlos Pereira na gincana
da Sociedade de Melhoramentos
da Freguesia de Pomares
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Carlos Pereira
O curso de Engenharia Civil e a paixão pela Medicina
“O Carlos é o grande
companheiro. O Carlos
e a Zélia. Nós eramos
conhecidos pelo tripé.
A nossa função era,
agregar, dar testemunho
das nossas vidas.”
Rui Aço
O amigo pintor do Grupo
de jovens Objectivo
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80
Carlos Pereira
intensidade as crises académicas que marcaram o rumo do País e que espoletaram o
activismo estudantil e a sua politização.
Os estudantes universitários desejavam um ensino superior de qualidade, com
melhores condições de estudo, reclamavam a liberdade de reunião e de associação,
lutavam contra a desactualização pedagógica, a transmissão de conteúdos arcaicos
e reacionários e contra os valores tradicionais defendidos pela ditadura fascista.
Os estudantes criticavam fortemente o fraco índice democrático na frequência das
universidades, a guerra colonial e o autoritarismo prepotente do regime fascista.
Os alunos estudavam, namoravam e conspiravam nos cafés. Conversas em código,
em surdina, não fosse andar por ali um informador da PIDE em serviço. De manhã,
frequentavam as aulas de engenharia, à tarde, assistiam às aulas de política da
Associação de Estudantes, onde urdiam contra a ditadura, desejando a independência
das colónias e a construção de uma nova sociedade, como recorda o amigo Carlos
Palhoto: «No Técnico, muita coisa aconteceu, momentos bons, momentos maus, mas
ultrapassávamos todos os obstáculos, munidos de um espírito de que iríamos talvez
mudar o mundo. Enfim, uma utopia perfeita. Recordo-me que no último ano a polícia
e a PIDE estavam dentro do Instituto e nós fizemos uma greve geral aos exames. Tudo
isso foram momentos que nos uniram, além daquela vontade comum de tirarmos o
nosso curso e de nos formarmos para irmos mudar o mundo, com a nossa energia e
a nossa vontade».
O sonho de uma sociedade mais justa, livre e fraterna era justificação suficiente para
correrem o risco de prisão e de serem submetidos a sessões de tortura, caso fossem
apanhados pela PIDE. A tortura do sono e da estátua, as bofetadas, as ameaças e
humilhações eram apenas algumas das práticas repressivas. Os discursos dos dirigentes
associativos eram tanto mais apreciados quanto mais radicais e inflamados. As leituras
consideradas subversivas, como Marx ou Lenine, estavam proibidas em Portugal,
mas sobreviviam nos limites da marginalidade. Os alunos universitários tinham-nos
escondidos em guarda-fatos, armários e gavetas possibilitando-se um conhecimento
das obras desses autores até então praticamente impossível de encontrar no País.
A substituição de Salazar por Marcello Caetano em Setembro de 1968, e o surgimento
da denominada “primavera marcelista”, parecia anunciar uma liberalização da política
repressiva, mas os estudantes desconfiavam das boas intenções da reforma marcelista,
acusando-a de ser uma ferramenta de sedução e captação para as fileiras do regime.
Por isso, a partir das eleições legislativas de 1969 – as primeiras realizadas após a saída
O curso de Engenharia Civil e a paixão pela Medicina
de António de Oliveira Salazar da Presidência do Conselho, que decorreram num
clima de aparente abertura política - e até ao final do regime, o movimento estudantil
tornou-se cada vez mais politizado e radicalizado. O primeiro indício ocorreu com a
crise académica de 1969 na Universidade de Coimbra. Na cerimónia de inauguração
do Departamento de Matemática, o ministro das Obras Públicas, Rui Sanches, deu
por terminada a sessão sem dar a palavra a Alberto Martins, na altura presidente da
Direção-geral da Associação Académica de Coimbra, que se levantou para falar em
nome dos estudantes. À saída, a comitiva do governo foi vaiada pela multidão de
universitários. Alberto Martins foi preso pela PIDE nessa mesma noite e, durante a
madrugada, registaram-se confrontos com a polícia de choque e diversas detenções
de estudantes. Nos meses seguintes, os boicotes aos exames sucederam-se e as greves
também.
Mas já em Dezembro de 1968, por ordem de José Hermano Saraiva, na altura ministro
da Educação Nacional, a PIDE também tinha ocupado a Associação de Estudantes
do Instituto Superior Técnico de Lisboa, acusada pelo regime de “subversiva”. No
dia seguinte, foi decretado o “luto académico”, como resposta àquela ação violenta
do regime fascista. Os acontecimentos internacionais como o Maio de 196814 em
Paris tiveram também uma influência considerável, junto da juventude estudantil
politicamente mais esclarecida.
O regime procurou responder a alguns destes problemas com a nomeação de Veiga
Simão para ministro da Educação Nacional, em Janeiro de 1970, substituindo o
desacreditado José Hermano Saraiva, conotado com a repressão estudantil associada
à Crise de Coimbra de 1969. Com a nomeação de Veiga Simão pretendia-se também
modernizar o Ensino Superior, mas a reforma do ensino não surtiu os efeitos
pretendidos e a contestação estudantil continuou a aumentar.
Entre 1969 e 1974, a Direcção Geral de Segurança (DGS) – novo nome da PIDE
– encerrou quase todas as associações de estudantes do País, apreendendo os
seus arquivos. Em Janeiro de 1971, as portas do Instituto Superior Técnico foram
14 A França dos anos 60 estava sob o comando do então Presidente General Charles de Gaulle. Era um país fechado e conservador que vivia sob o reflexo das perdas
sofridas na Segunda Guerra Mundial. Maio de 68 foi o movimento iniciado pelos estudantes universitários contra as políticas de De Gaulle e teve réplicas nos demais
países desenvolvidos, desde a vizinha Alemanha Ocidental, até aos EUA e o Japão. Durante 30 dias os estudantes formaram trincheiras para confrontar a polícia e dar
novos significados às palavras “liberdade, rebeldia e novos tempos”. Tudo começou na Universidade de Nanterre, nos arredores de Paris, no dia 02 de Maio de 1968.
Grupos de esquerda, revoltados, decidiram opor-se contra a sociedade de consumo, o ensino tradicional e a insuficiência de saídas profissionais. Dias depois, estudantes
entram em conflito com a polícia contra o encerramento de outra universidade francesa, a Sorbonne, iniciando-se assim um clima de provocação e de repressão. Unidos, os
estudantes e trabalhadores decretaram greve geral de vinte e quatro horas como protesto contra as políticas trabalhistas e sociais do general De Gaulle. No dia 20 de Maio
a mobilização atinge seu auge quando Paris amanhece sem serviços; o número de grevistas havia chegado aos dez milhões e a Universidade de Sorbonne era palco de uma
nova batalha onde as palavras eram as armas. A classe patronal vê-se obrigada a garantir um aumento de 10% dos salários e de 35% do salário mínimo. Os sindicatos aceitam,
mas os operários mantêm a greve. Apesar deste primeiro passo para a paz social, o presidente Charles de Gaulle considera a situação incontrolável e no dia 24 de Maio,
dissolve a Assembleia, reaparecendo aos microfones da rádio no dia 30 de Maio, a convocar os franceses a votarem nas eleições legislativas de Junho. De Gaulle vence, mas
a situação política, essa, continuou agitada. “Nada será como antes de Maio de 68”. Passados alguns anos, esta ideia mantém-se viva. As instituições políticas não caíram,
mas tremeram, e os franceses repensaram o seu próprio futuro. Houve, acima de tudo, uma alteração das mentalidades. Os costumes evoluíram, a divulgação de trabalhos
efetuados na área das ciências sociais e humanas é uma realidade, a voz das minorias faz-se ouvir e houve uma crescente emancipação das mulheres. Tudo heranças do
movimento contestatário de 68. Ver Maio de 68. In Infopédia [Em linha]. Porto: Porto Editora, 2003-2014. [Consult. 2014-06-02].
Disponível na www: <URL: http://www.infopedia.pt/$maio-de-68>. 81
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Carlos Pereira
encerradas, ao mesmo tempo em que a Universidade Clássica de Lisboa estava em
alvoroço e milhares de estudantes da Universidade de Coimbra faziam greve em
protesto contra a prisão de oito colegas. A polícia do regime não dava tréguas ao meio
académico. Os alunos que se envolvessem em manifestações ou que distribuíssem
panfletos com ideias consideradas subversivas deveriam ser fotografados ou filmados,
para posterior identificação e alvos de interrogatório. Um ano e meio depois, em Maio
de 1972, o Instituto Superior Técnico volta a ser alvo das intervenções da polícia de
choque, desta vez com a ajuda de cães.15
É claro que estas convulsões não eram mencionadas na imprensa, pois tudo o que
dissesse respeito a estudantes ou ao movimento estudantil era logo cortado pelo lápis
azul dos censores.
Foi durante este período político e socialmente conturbado que Carlos frequentou
o ensino superior, mas o mérito e o esforço foram reconhecidos no 4º ano do curso,
quando foi selecionado para estagiar no Laboratório Nacional de Engenharia Civil
(LNEC). A selecção era feita com base na média das notas e Carlos era um dos alunos
com a média mais elevada.
Quando se preparava para aceitar o estágio, o jovem universitário recebeu outro
convite, desta vez para trabalhar numa empresa privada. O convite partiu de Eduardo
Pereira, que havia sido seu professor no IST, homem simples e afável – filho de família
de pescadores de Sesimbra -, cem por cento engenheiro e dedicado professor dos seus
alunos. Casado com a carreira académica, científica e mais tarde - após o 25 de Abril política, o Eng. Eduardo Pereira era também um dos sócios fundadores da Consulmar,
empresa de consultadoria de projectos de Engenharia Civil, sobretudo na área das
infraestruturas portuárias e obras de protecção costeira.
Ávido de ganhar experiência, Carlos aceitou os dois convites, Assim, pouco antes de
terminar a licenciatura, em 1972, dedicava doze horas semanais ao estágio no LNEC,
e dava os seus primeiros passos na Consulmar, onde fazia outras tantas horas.
O Grupo 7 + 1
Quando não estava nas aulas ou a fugir à frente da polícia de choque, Carlos estava
reunido com os seus colegas e amigos na Secção Fotográfica da Associação de
Estudantes. Durante horas, ficavam numa câmara escura, dedicando-se aos mistérios
15 João Madeira, Luís Farinha, Irene Flunser Pimentel, Vítimas de Salazar - Estado Novo e a Violência Política, A Esfera dos Livros, 3ª Edição, 2010, p.p. 321-326.
O curso de Engenharia Civil e a paixão pela Medicina
da imagem fotográfica. Entre ampliadores, lentes e lâmpadas, os estudantes esclareciam
entre si algumas questões técnicas de fotografia, sobretudo, aquelas ligadas à actividade
de laboratório. Tiravam o rolo da máquina na câmara escura e colocavam-no dentro
de um recipiente. Depois, adicionavam o revelador e o fixador. No final, as fotografias
reveladas sobre o negativo de prata eram penduradas em fios espalhados na sala, como
se de estendais da roupa se tratassem.
Carlos, que tinha uma Kodak, dedicava-se a registar momentos de lazer com a família
e os amigos, assim como deu início à execução de fotografias macro, de pequenos
animais e, sobretudo, de pedras, em geral e minerais, em particular. Ainda hoje, quando
olha para algumas destas fotografias, amareladas pela acção do tempo, as sensações
antigas tornam-se presentes e as memórias despertam-no para outros tempos: «Foi
por volta desta altura que comecei a ganhar um gosto especial pela mineralogia. Iniciei
uma colecção de pedras e minerais que ainda hoje fazem parte do meu dia-a-dia. Cada
vez que entro ou saio de casa, tenho o prazer de olhar para minha colecção de minerais,
colocados numa vitrine no hall. A colecção foi avançando, com aquisições e ofertas,
todas elas com uma história particular, como os diversos minerais que obtive na única
visita que realizei às minas da Panasqueira, no maciço central de Portugal! Quem não
se lembra do volfrâmio e do que ele representou social, económica e politicamente
para o nosso País?»
A Secção Fotográfica foi, mais tarde, responsável pela realização de várias exposições
fotográficas, revelando as mais diversas realidades do país aos olhos dos estudantes.
Da fotografia ao cinema, foi um pequeno passo. Numa época em que era raro terse máquina de filmar, Carlos Pereira recebeu uma do pai, como presente de mérito
quando entrou para a universidade. Carlos deliciou-se a filmar as cenas caricatas da
conhecida semana de recepção aos caloiros e de todas as actividades da Associação
de Estudantes.
Com alguns colegas de curso, decidiu então criar um grupo de cinema, com o objectivo
de fazerem filmes. Inspirado por Artur Francisco Varatojo, que marcou gerações de
leitores, espectadores e ouvintes através do seu alter-ego “Inspector Varatojo”, e ainda
pelas aventuras de “O Santo”, protagonizado pelo actor britânico Roger Moore,
Carlos não se limitava a pegar na câmara para filmar. Os seus filmes eram pensados
ao pormenor porque, sendo filmes mudos, a imagem teria que saber passar toda a
mensagem. Assim, encenava tudo até ao detalhe para que os espectadores não se
distraíssem com superficialidades e ficassem agarrados à história.
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Carlos Pereira
Carlos começou a apaixonar-se pelo cinema ainda muito jovem. Quando estudava
no Liceu Gil Vicente, entre os seus 14 e 18 anos, assistia com frequência às matinés
que decorriam numa das salas de “A Voz do Operário” e, de quando em vez, também
assistia às sessões duplas que aconteciam no Cinema Royal, perto do Bairro de
Alfama. Em qualquer destas salas, passavam filmes americanos de aventuras. Eram
actores como Errol Flynn, John Wayne ou Humphrey Bogart, que o fascinavam,
que o motivavam a ir ao cinema, pois, tal como muito jovens da sua geração, ficava
encantado com aqueles heróis que lutavam por causas justas.
O grupo desmembrou-se quando Carlos chegou ao 3º ano do curso. Alguns dos
antigos colegas, mais velhos, licenciaram-se e saíram do IST. A paixão pelo cinema,
contudo, não esmoreceu. O vazio deu lugar a outros novos estudantes e juntos criaram
um núcleo de cinema mais sólido, a que deram o nome de Grupo 7+1. Esta designação
ficou a dever-se ao facto de o grupo, inicialmente composto por sete estudantes do
IST, ter aceitado a entrada de um oitavo elemento - Pedro Miguéis -, que frequentava
a Faculdade de Medicina, mas que era amigo de Carlos desde os tempos do Liceu Gil
Vicente.
À moda do mistério policial, juntaram-lhe outro ingrediente - o medo-, influência de
Alfred Hitchcock, o mestre do cinema de suspense, cujos filmes inundavam as salas de
cinema e a própria televisão em Portugal. «Hitchcock foi sempre um dos realizadores
de cinema que eu mais admirei ao longo da vida. Gostava de toda aquela manipulação
que ele fazia com o telespectador, onde aplicava toda a sua mestria e experiência».
Inspirado nas obras cinematográficas do realizador, Carlos e o primeiro grupo a que
acima se fez referência, realizaram o filme “A Mão do Crime”, um enredo narrativo
‘hitchcockiano’ mudo, onde os jovens universitários esforçaram-se por juntar doses de
emoção, perigo e situações psicologicamente perturbadoras (utilize o seu smartphone
e leia o QRCode 1 na página ao lado).
Habituado a estar do lado de fora da câmara – era Carlos quem filmava e realizava -,
mas com o Grupo 7+1 saltou para dentro do ecrã para protagonizar “Contrastes”,
um filme que pretendia mostrar a diferença entre a vida rotineira de um funcionário
de uma empresa, engolido pelo stress, afogado em reuniões, em contraste com o
fim-de-semana, em que se respirava ar puro, liberdade e tranquilidade. Era Carlos
quem ficava responsável por escrever o argumento, o guião, tratar da produção e
dos cenários. Os filmes eram feitos sem dinheiro, filmados em casa, com dois focos
de luz precários e pouco mais. Encarregue das áreas do som e da Luz, o médico
O curso de Engenharia Civil e a paixão pela Medicina
Pedro Miguéis garante que aquele período catapultou-o para uma forma maior de
conhecimento «que fez com que mais tarde, passasse a ver cinema sob um ponto
de vista técnico», acrescentando que «foi um período óptimo, extremamente rico,
liderado por Carlos que, sendo o realizador, fazia chegar ao grupo as ideias de forma
perfeitamente tranquila e, principalmente, muito eficaz» (utilize o seu smartphone e
leia o QRCode 2 desta página).
Nas ruas de Lisboa, também um grupo de inexperientes entusiastas do cinema,
todavia profissionais, quase todos formados nas principais escolas de cinema europeu,
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Carlos Pereira
consolidava o chamado cinema novo, influenciados pela nouvelle vague do cineasta
francês Jean Luc Godard. Esta geração promoveu uma reinvenção do cinema
português mesmo antes da revolução política e social de Abril de 1974. Algumas
obras de autores como João César Monteiro ou Paulo Rocha foram reconhecidas em
prestigiados festivais de cinema internacionais. Paulo Rocha realizou em 1963 “Verdes
Anos”, um filme musicado por Carlos Paredes, no qual mostra uma Lisboa realista
e sufocada, actualizando o cinema português. Seguiram-se Fernando Lopes com
“Belarmino”, em 1964, e António de Macedo com “Domingo à Tarde”, em 1965. Esta
viragem marcava um total afastamento em relação ao cinema de comédia, de tradição
portuguesa e de cultura popular, como foi o retumbante sucesso de “A Canção de
Lisboa”, de Cottineli Telmo, protagonizado por Vasco Santana e Beatriz Costa.
A acompanhar estes acontecimentos cinematográficos, a música também conhecia
um papel importante. José Afonso e Adriano Coreia de Oliveira surgiam com um novo
movimento musical, interventivo, para acompanhar os tempos e os sonhos de muitos
portugueses. A actuação dos cantores de intervenção era também alvo de censura. A
Direcção Geral de Espectáculos (DGE) alertava frequentemente a DGS da realização
de espectáculos, alguns deles clandestinos, onde eram apresentadas canções cujas
letras não tinham sido submetidas à apreciação do lápis censor.
No campo da literatura e da poesia, também se levantavam armas contra a ditadura e a
guerra colonial. As palavras de poetas como Ary dos Santos, Natália Correia e Manuel
Alegre feriam mais o regime do que qualquer bala disparada por uma espingarda.
O grupo “O Objectivo”
O Padre José Correia da Cunha era visita de casa dos Pereira. Todas as sextas-feiras
ia jantar lá a casa. Antigo capelão da marinha e crítico do sistema vigente estava mais
do lado dos pobres do que dos ricos e era apontado por muitos como sendo protocomunista, mas ninguém se atrevia a enfrentá-lo.
Era o único dia da semana em que era possível falar-se de política lá em casa. Os pais
de Carlos, defensores de Salazar e do seu regime, não eram dados a grandes aberturas,
a ideias diferentes que pusessem em causa as verdades tradicionais e absolutas em
que acreditavam. O filho nunca pode expressar abertamente as suas convicções
políticas, mas o Padre Cunha, sendo um homem do Clero, gozava de outro estatuto,
principalmente junto de Maria Adelina, católica praticante, presença assídua na Igreja
de S. Vicente de Fora.
O curso de Engenharia Civil e a paixão pela Medicina
O sacerdote lá ia dando a entender que as opiniões do filho estavam mais perto da
verdade do que as convicções dos pais. Maria Adelina e Carlos Diamantino ficavam
cada vez mais intrigados com aquelas conversas alimentadas a pão caseiro com queijo
da serra e regadas com bom vinho, à hora do jantar. «Eu só podia discutir política no
Instituto Superior Técnico, com os meus colegas. Em casa, com os meus pais, era
impossível. Só passei a fazê-lo na presença do Padre Cunha».
O Padre era um homem de coragem e o seu entusiasmo pelas causas sociais ainda hoje
são recordadas. No Bairro de S. Vicente de Fora toda a gente se lembra dele. Frontal
e generoso era também muito respeitado pelo empenho, valentia e dádiva pessoal que
colocava nos projectos humanitários e de solidariedade social que levava a cabo.
E foi num desses jantares que o Padre Cunha – preocupado com inexistência de um
projecto paroquial que apoiasse os jovens em termos sociais após a celebração da
comunhão solene até à idade de se casarem – se lembrou de criar um movimento
que os protegesse de alguns perigos que a sociedade já apresentava. Foi nesta altura
que começaram a surgir as primeiras situações relacionadas com álcool e drogas na
juventude.
O grupo “O Objectivo” constituiu-se assim em 31 de Outubro de 1971. Foi lá que
Carlos conheceu Rui Aço, artista plástico, e a que viria mais tarde a tornar-se mulher
deste, Zélia, dois amigos que haviam de ficar para o resto da vida. Rui Aço era, na
altura, desenhador das Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento (OGFE),
em Santa Clara, e Zélia, Educadora de Infância e catequista. Os três lideravam o “O
Objectivo” e tinham a difícil tarefa de desviar os jovens de caminhos perigosos. «Nós
éramos conhecidos pelo tripé, a nossa função o de dar testemunho das nossas vidas»,
conta Rui Aço, o mais velho do grupo, que via em Carlos «um grande companheiro
de percurso» e no “O Objectivo” «um espaço fundamental para trazer de volta muitos
jovens que estavam dispersos e perdidos».
Sob o olhar atento, mas por vezes distanciado do Padre Cunha, dadas as múltiplas
tarefas paroquiais a que tinha de dar resposta, outro sacerdote – o Padre Ismael
Sanchez foi por isso incumbido de acompanhar o Grupo mais de perto.
O grupo reunia-se numa sala da Paróquia em S. Vicente de Fora. Com uma energia
contagiante de quem acreditava que poderia mudar o mundo, Carlos, Rui e Zélia
dinamizaram um grupo de cerca de 30 jovens, organizaram actividades de estudo,
criaram um jornal de parede, promoveram cursos de alfabetização de adultos e festas
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Carlos Pereira
de solidariedade para os mais carenciados.
Rodeados de alguns cuidados, os três líderes discutiam, em colectivo, com os outros
jovens, questões sobre as quais se entendia serem necessários alguns esclarecimentos,
nomeadamente de ordem política, tal como recorda Carlos: «O “O Objectivo” é muito
marcado por isto. Havia um conjunto de informações que passava de forma não
oficial a que tínhamos acesso e que utilizávamos para formar os jovens. No fundo,
mostrávamos um ponto de vista político distinto do que eles absorviam em casa».
E, aos poucos, o grupo ia contribuindo para o alargamento da consciência cívica e
política daqueles jovens.
O Concílio Vaticano II, que decorreu entre Outubro de 1962 e Dezembro de 1965,
reconheceu aos leigos da Igreja Católica novas responsabilidades no que dizia respeito
à vida da igreja e à luta pela paz. Este tema tornou-se um aspecto central nas actividades
dos católicos progressistas.
As estruturas e movimentos de oposição ao Estado Novo acolhiam cada vez mais
estes católicos que punham em causa a actuação hierárquica episcopal e a sua relação
intimista com regime. A par das juventudes católicas – operária, universitária e
estudantil (JOC, JUC e JEC) -, surgiam outros movimentos menores, todos contra
a ideologia do regime. Muitos deles chegaram a denunciar os crimes do regime
salazarista, organizavam acções de protesto, através de encontros e publicações
clandestinas, assim como de cartas abertas e abaixo-assinados públicos. Mais uma
vez, a questão colonial estava no centro de todas as tensões. Apesar de ser a conta
gotas por causa do crivo da censura, os ecos das tomadas de posição de alguns bispos
e missionários do Ultramar que se revoltavam contra aquela guerra, chegavam a
Portugal e clarificavam ainda mais o espírito dos católicos progressistas.
A igreja estava desarticulada da sociedade civil, limitando-se a ser um espaço de
práticas litúrgicas e respeito pela ordem estabelecida. A reflexão sobre fé, política ou
cidadania era inexistente. O debate teológico era um vazio, não havia lugar para a
participação individual e consciente e o pluralismo partidário estava proibido.
O “O Objectivo” teve uma importância tal a nível nacional que na comemoração do
primeiro aniversário, os jovens receberam a visita do Patriarca de Lisboa, D. António
Ribeiro. A existência do grupo permitia uma aprendizagem a todos os níveis, fora das
instituições de ensino e religiosas, tal como recorda Carlos: «Uma das razões que eu
acho que contribui para o afastamento das pessoas da igreja é a incapacidade que esta
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tem de dar resposta social às necessidades das pessoas, limitando-se muitas vezes à
banalização de rituais de significado reduzido para a vida comum. O Objectivo tentava
dar essa componente de resposta social que as pessoas procuravam».
A crueldade da polícia política que chegava a exercer domínio sobre as direcções de
todo o tipo de grupos de carácter associativo e a censura totalitária que abrangia todo
o tipo de publicações e acções culturais exigiam cuidados redobrados. Por isso, Carlos
empenhava-se na transformação das palavras nos textos que escrevia para que a
mensagem não fosse interceptada e considerada subversiva por agentes informadores
da PIDE. É disso exemplo, o texto que escreveu sobre Palma Inácio16, utilizando o
anagrama “Uma Palma para Ocinai”. Revelando uma personalidade de grande
maturidade, os seus textos escritos desta altura são mordazes, irónicos e lúcidos, com
uma componente política muito vincada. O jovem universitário observava e registava
com clareza de espírito o isolamento de Portugal e a opressão a que os portugueses
estavam sujeitos, como descreve em “A Porta Vigiada”.
O ambiente que se vivia em Portugal era fértil e serviu também para dar vida aos filmes
de animação produzidos e realizados pelo Grupo Objectivo. “A Banda”, animado
com botões pintados com as cores da bandeira de Portugal, retratava uma banda
filarmónica que ordeiramente desfilava e tocava até chegar a um coreto, onde eram
cercados por outros botões, os espectadores. No fundo, o filme de animação pretendia
caricaturar a derrota do regime perante a população (utilize o seu smartphone e leia o
QRCode na página ao lado).
A acção dos católicos na luta contra a ditadura ia-se alastrando, construindo pontes
com muitos outros sectores da sociedade portuguesa – trabalhadores, intelectuais,
estudantes – independentemente das suas crenças religiosas. O seu impacto foi muito
maior do que o número de pessoas directamente envolvidas. As actividades culturais
e formativas do “O Objectivo” perduraram até 1975, ano em que o grupo se desfez.
16 Hermínio da Palma Inácio (1922-2009) - Revolucionário português, antifascista, amante da Liberdade, lutou contra o Estado Novo. É conhecido por ter protagonizado
em 1956 o desvio de um avião da TAP, que sobrevoou Lisboa, Barreiro, Setúbal, Beja e Faro a baixa altitude para lançar panfletos contra a ditadura.
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Quadrante
Câmbio
A Primavera política de 68 está no fim.
Sem ter existido completamente. A mudança acelera-se em tudo.
Em quase tudo.
A “democracia” social será derrubada por uma ditadura militar.
Há-de correr sangue.
Especialmente de inocentes.
Mas nesse sangue se edificará uma nova Pátria.
Uma Pátria plana.
De todos.
Se assim não for, é que não o merecemos.
Documentos de época desenvolvidos por CP (manuscritos passados a limpo)
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Internacional
A Crise Energética
Muita tinta tem corrido por esse mundo fora, desde que, no final do ano passado,
os árabes resolveram fechar a torneira do petróleo para o chamado mundo ocidental,
dando origem a uma enorme crise energética e, mais do que isso, económica.
Observadores políticos, economistas, historiadores e sociólogos interpretaram esta
atividade, cada um de acordo com a sua formação.
Não nos interessa aqui dizer se, o facto em si mesmo, se reveste de características
essencialmente políticas, económicas ou outras, mas antes observá-lo e tirar algumas
conclusões dum ângulo talvez ainda pouco focado.
Deus, ao criar o homem, ordenou-lhe que povoasse e submetesse toda a terra.
Daqui se conclui que os bens naturais não pertencem em exclusivo a determinado
homem, a determinado país, mas sim a todos os homens e a todos os países.
Pode parecer com isto que queremos enfileirar ao lado dos que consideram a atitude
dos árabes como uma usurpação de determinado bem (o petróleo) e que, portanto,
todos e qualquer homem, todo e qualquer país tem inigualável direito de acesso.
E se em teoria começarmos com este princípio, na prática e no mundo de hoje,
aceitámos e concordamos com a resolução dos árabes.
É bem fácil, de resto, explicar porquê, servindo-nos de exemplos muito conhecidos,
como seja o do café no Brasil, e o Trigo nos Estados Unidos.
Quantas vezes se tem tido conhecimento que várias toneladas de café ou de trigo
são queimadas ou simplesmente lançadas ao mar, com o fim de manter
determinadas cotações de mercado a nível internacional?
Não serão o café e o trigo bens naturais a que todos os homens devam ter acesso?
E quantas pessoas, por esse mundo desiquilibrado, passam fome? E visto se passa
em nações ditas civilizadas, como estranhar a atitude dos países árabes que desde
sempre têm sido considerados, no concerto das nações, como países menores?
De tudo isto, três coisas apetece concluir:
O curso de Engenharia Civil e a paixão pela Medicina
1- que o homem está ainda muito longe de ser o homem universal para que foi
criado, apesar de até já ir à lua,
2- que toda a economia dos países ditos civilizados se alicerça, afinal, num sistema
de exploração dos países considerados menores.
3- que enquanto existir a exploração do homem pelo homem, não se podem
considerar de todos, os bens que a cada um pertence.
Como D. António Ribeiro, concluímos dizendo quem “quem mais alto estiver ou
mais longe se situar, seja o primeiro a descer e meter-se no caminho do encontro”.
Grupos Económicos
Grupo CUF
Mais de 100 empresas integradas. Mais de um décimo de capital parcial de todas
as sociedades existentes em Portugal, ou seja, cerca de oito milhões e meio de contos
de capital nominal num conjunto de 90 empresas.
Grupo Espírito Santo
Os seus depósitos – os maiores de toda a banca – ultrapassam os 30 milhões
de contos e a sua carteira comercial mais de 18 milhões de contos. Nos “corpos”
gerentes de 20 grandes “sociedades” encontram-se membros da família. O capital
nominal totaliza mais de quatro milhões de contos.
Grupo Champalimaud
De momento, o grupo possui 12 grandes empresas industriais, um grande banco
e a única companhia de seguros. O seu capital nominal é de quase dois milhões
e meio de contos.
Grupo Português do Atlântico
Três bancos a quem cabem 15% dos capitais dos próprios, 15% da carteira
comercial e 16%da banca comercial portuguesa. Uma companhia de seguros
e várias sociedades de investimento. Da refinação do petróleo à produção de cimento
e celulose, ao fabrico de cerveja e de vinho, oito empresas com cerca de dois milhões
e meio de contos de capital.
Grupo Borges & Irmão
Cerca de 40 sociedades em Portugal, com um capital nominal perto de dois
milhões de contos. Possui bancos, uma companhia de seguros, várias sociedades
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114
Carlos Pereira
de investimento, fábricas de pneus, produtos químicos, têxteis e metalúrgicas,
laboratórios farmacêuticos, frota de pesca, empresas de construção civil, agências
de publicidade e de viagens, hotéis e jornais.
Grupo BIP ou Jorge de Brito
Centrado no Banco Internacional Português, estende-se ao Crédito Predial
Português, aos seguros, à construção civil, aos transportes, à Indústria Cerâmica
e aos jornais.
Grupo José da Costa
Sede na Rinchoa, num bairro de lata. Família de oito pessoas, pai, mãe e seis filhos.
Tem interesses nas indústrias de limpezas de casa e de construção civil; ela é mulher
a dias (descontando para a caixa) e ele servente de pedreiro. Oito bocas para
sustentar diariamente, com um capital mensal de cerca de 450 mil centavos.
O curso de Engenharia Civil e a paixão pela Medicina
“Hitchcock foi sempre
um dos realizadores
de cinema que eu mais
admirei ao longo da
vida. Gostava de toda
aquela manipulação
que ele fazia com o
telespectador, onde
aplicava toda a sua
mestria e experiência.”
Carlos Pereira sobre a inspiração
para o filme “A Mão do Crime”
115
4
MUNDO
O
REAL
O mundo real
Os livros e os cadernos deram lugar à régua e ao compasso, numa trajectória
ascendente. A teoria deu lugar à prática e o divertimento deu lugar à responsabilidade.
A rebeldia, essa, permaneceu intacta e para sempre. Determinado, responsável e com
um entusiasmo ímpar, Carlos desdobrava-se nos dois empregos.
De manhã, estagiava no afamado Laboratório Nacional de Engenharia Civil (LNEC),
criado em 1946, pelo Ministério das Obras Públicas e pelo Centro de Estudos de
Engenharia Civil, anexo ao Instituto Superior Técnico, e, à tarde, na Consulmar, uma
empresa de consultadoria de projectos de engenharia civil, especializada em obras
marítimas e portuárias, e que com apenas um ano de existência - criada em 1970 -, já
tinha garantido um lugar de prestígio no sector.
Atarefado, entregava-se ao trabalho com um absoluto rigor cartesiano. Sabia que todo
o seu esforço valeria a pena e, mal tivesse uma oportunidade, largaria o emprego no
sector público. Não tanto pelo dinheiro, dizia, mas pelas milhentas burocracias a que
um organismo do Estado está sujeito e que impede a rapidez de funcionamento.
No LNEC, o jovem universitário ensaiava os primeiro passos no Serviço de Hidráulica,
ajudando na elaboração da tese para especialista de Silveira Ramos – que viria a
tornar-se num engenheiro de renome – e que vinha desenvolvendo a sua actividade
profissional nas áreas da engenharia costeira e portuária.
Por sorte, passado poucos meses, em Maio de 1972, com um aumento exponencial
do volume de trabalho na Consulmar – à conta do mega-projecto da construção do
Porto de Sines -, o Eng. Eduardo Pereira propôs-lhe um salário maior em troca de
mais horas ao serviço da empresa. «A minha opção pela Consulmar não se deve tanto
aos aspectos económicos que, evidentemente, eram importantes, mas, sobretudo,
pela minha incapacidade de me adaptar ao funcionalismo público. Lembro-me que
para pedir uma borracha ou qualquer outro tipo de material, era preciso preencher
um requerimento. Isso marcou-me muito! Foi por causa dessa imagem negativa
experienciada no sector público que abracei com as duas mãos a Consulmar e o sector
privado».
Na Consulmar, Carlos ficou enquadrado numa equipa de engenheiros coordenada
por Silveira Ramos com quem se voltava a cruzar, desta vez numa empresa privada.
Sobrinho do Professor Eng. Vasco Costa - um dos fundadores da Consulmar -, o
seu superior hierárquico do LNEC havia sido recentemente convidado para assumir
cargos de responsabilidade na coordenação de grandes projectos portuários e costeiros,
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Carlos Pereira
como era o caso do Projecto do Porto de Sines, em que a Consulmar estava envolvida
e onde, em horário pós-laboral, Silveira Ramos coordenava um conjunto de jovens
engenheiros ou finalistas no desenvolvimento dos diversos projectos.
Especializada em obras marítimas e portuárias, a Consulmar procurava consolidar a sua
afirmação no mercado português, através de projectos de grandes dimensões como era
o caso do Projecto do Porto de Sines. A adjudicação do trabalho foi conseguida graças
ao enorme prestígio do Professor Vasco Costa e ao Eng. Eduardo Pereira que tinha já
uma significativa capacidade de intervenção nos organismos do Estado. «O Projecto
do Porto de Sines foi desenvolvido por um consórcio internacional constituído por
três Empresas de projecto (duas portuguesas – a Consulmar e a Lusotecna – e uma
inglesa, a Bertlin), mas neste consórcio, sem dúvida, a participação da Consulmar era
enormemente relevante, assumindo claramente a liderança da equipa projectista na
qual tive o privilégio de participar, primeiro ainda como estagiário e, mais tarde, como
engenheiro júnior».
O Eng. Eduardo Pereira, depois da Revolução de 25 de Abril, envolveu-se na política
e chegou mesmo a ocupar diversos cargos no I e IX Governo Constitucional, como
ministro da Habitação, Urbanismo e Construção e ministro da Administração Interna,
respectivamente.
Carlos estava encantado com a Engenharia Civil, com a arte de criar e de ver a
obra feita, terminada, através de uma linguagem lógica e matemática, despojada de
subjectividade, apenas assente em criatividade e cálculos rigorosos. Com a régua de
escalas e traços afiados, os desenhos eram feitos manualmente, com uma precisão
milimétrica. Os computadores ainda não estavam democratizados e o autocad estava
longe de ser uma realidade.
Na Consulmar, a referência profissional de Carlos era o professor Vasco Costa, o seu
mestre, que havia sido seu professor de Hidráulica Marítima, no Instituto Superior
Técnico. Carlos relembra o professor Vasco Costa como um homem que colocava o
seu conhecimento à disposição dos alunos e dos engenheiros com quem trabalhava,
sem evidências de vaidade. «Para mim, o professor Vasco Costa é o exemplo de
cientista puro que eu conheci de perto. Era o homem que buscava na Matemática e na
Física a justificação para todas as situações e solicitações que lhe colocavam na vida.
Ele passava o tempo a escrever e a receber papers técnicos do mundo inteiro, para
emitir as suas considerações».
O mundo real
À frente do seu tempo, a par do progresso e apreciador das tecnologias que iam surgindo,
o professor Vasco Costa foi um dos primeiros técnicos no mundo a procurar traduzir
em linguagem matemática aquilo que é a acostagem de navios de grande dimensão, os
petroleiros. Carlos recorda-se como o professor era estimado entre a comunidade de
engenheiros internacional: «Como os japoneses são os maiores construtores daquilo
que são as defensas -, as bóias que se colocam entre a estrutura do cais e o casco do
navio -, e como o professor Vasco Costa havia desenvolvido várias teorias matemáticas
para o cálculo que os engenheiros fazem para dimensionar essas defensas, havia
grupos de engenheiros japoneses que vinham a Portugal cumprimentarem o professor
Vasco Costa e ficavam honradíssimos pelo simples facto de tirarem uma fotografia ao
lado dele, na sala de reuniões da Consulmar».
Com uma grande capacidade de visão futurista, o professor Vasco Costa era um
homem muito focado na perseguição dos seus objectivos, o que provocava em Carlos
um sentido de admiração ainda maior: «Era um homem sempre com a cabeça num
patamar diferente. Lembro-me que um dia eu estava no gabinete com o colega Ferreira
da Costa e ele, do alto dos seus 70 anos, entra no nosso gabinete e pergunta: ‘Quem
é que aqui na casa sabe turco?’ Ao que o Ferreira da Costa, meio atónito, respondeu:
‘Ninguém!’ e ele retorquiu imediatamente: ‘que maçada!’ Deu meia volta, saiu e bateu,
com a porta com o mesmo rompante com que tinha entrado, apenas porque, para
ele, na Consulmar deveria obrigatoriamente haver resposta para tudo! Até para o
conhecimento da língua turca!»
As quartas-feiras eram noites de tertúlia para aqueles engenheiros. Depois de saírem
do trabalho, Carlos e os colegas jogavam uma partida de Futebol de Salão, num
complexo desportivo, nos Olivais, e que acabava sempre numa grande jantarada no
Velho Mirante, um restaurante típico, muito conhecido pelos grelhados que servia e
que existia para os lados da Pontinha. Por ali, passavam projectos de grandes obras,
sonhos imensos, gargalhadas infindáveis, debates políticos, novos políticos, num
ambiente animado e salutar. «Era um grupo que mesclava jovens com mais maduros,
engenheiros com técnicos de desenho e, às vezes, incluía até militares. Não quero
deixar de referir alguns dos participantes nestes encontros, metade desportivos e outra
metade gastronómicos: o Romano, o Luís Miguel, o Peixeiro, o Santana, o Zé Emílio,
o Sérgio, o Soares, o Beirão e, claro, sempre apoiados na bancada pela colega Idalina!»
Carlos tinha uma remuneração horária, de acordo com as horas que eram registadas
diariamente. Trabalhava arduamente e, ao mesmo tempo, poupava dinheiro para
comprar um carro. O Fiat 128 foi o seu primeiro automóvel que comprou com a ajuda
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Carlos Pereira
O mundo real
“Na entrada do avião,
éramos o senhor director
e o senhor engenheiro,
e um dia depois já nos
tratávamos pelos nomes
próprios. A partir daí
fortaleceu-se e criou-se
uma grande amizade
que perdura até hoje.”
Henrique Fonseca Ferreira
O amigo da aviação comercial
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Carlos Pereira
Carlos Pereira na tropa em Mafra
Cadete 1ºCiclo COM
O mundo real
dos pais que lhe ofereceram um terço do dinheiro. A outra metade pediu-a emprestada
ao seu padrinho de Crisma e padrinho de baptismo da mãe, o “Padrinho Evaristo”,
tal como era carinhosamente tratado, tanto dentro da família, como até por elementos
fora dela, o tal dono das pastelarias que continuava a gozar de uma excelente condição
financeira. Carlos liquidou a dívida – cerca de 40 contos – em apenas dez meses.
O serviço militar obrigatório e a vida suspensa
Em Janeiro de 1974, tinha Carlos 27 anos, quando recebeu a chamada para cumprir o
serviço militar. Recém-formado – tinha terminado a licenciatura em Outubro de 1972
– foi obrigado a suspender o seu trabalho como engenheiro na Consulmar.
Assentou praça na Escola Prática de Infantaria, em Mafra, onde cumpriu os primeiros
três meses de instrução militar como Cadete do COM (Curso de Oficiais Milicianos).
A licenciatura dava-lhe essa garantia, o que tornava o serviço militar menos penoso.
Chegado ao largo do majestoso Convento de Mafra, observou uma impressionante
agitação. As ruas movimentadas com os recrutas, afoitos, carregados com sacos às
costas, despediam-se dos familiares, já saudosos. Jovens vindos de todo o território
nacional – que ia do Norte ao Sul do País, colónias africanas e Timor - e das mais
diversas origens. Uns, com curso superior, tal como ele, candidatos a cadetes e, mais
tarde, aspirantes e alferes, outros, mal sabiam ler e escrever. Quando terminassem a
recruta, seriam cabos e a seguir furriéis. Esta era a realidade da hierarquia militar a que
Carlos, habituado à sua liberdade, dentro do que era possível num país agrilhoado por
uma dura ditadura, teria que se adaptar.
Depois de atravessarem as portas de armas, os rapazes foram conduzidos à parada
militar, onde estavam reunidos todos os mancebos. Era ali que os jovens soldados
eram distribuídos em grupos pelas respectivas camaratas. Era logo ali que começavam
as diferenças. Cadetes para um lado, soldados para outro. Não havia misturas, nem
na instrução, nem mesmo na messe. Depois, ouviram um rol de palavras doces vindo
de alguns graduados que exaltavam o amor à pátria, à família e o dever da obediência
cega aos superiores hierárquicos.
É claro que para os jovens, vindos de meios desfavorecidos, pobres, rurais, com
parcos recursos económicos, aquele palavreado todo sabia a mel. Pelo menos ali inculcavam-lhes na cabeça - era a oportunidade que tinham de se fazerem homens,
de se alimentarem um pouco melhor e de aprenderem um pouco mais que não fosse
pegar na enxada, lavrar a terra e dar de comer aos animais.
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Carlos Pereira
Na camarata de Carlos, onde se amontoavam cerca de 40 cadetes num ambiente
de ar saturado havia estudantes de Engenharia, Arquitectura e Direito. Alguns já
exerciam a profissão, mas a realidade mostrava-lhes que durante meio ano iriam ser
todos soldados. Diariamente, ao raiar da manhã, um sonoro e estridente clarinete
tocava para que os jovens se reunissem na parada para a formatura, onde era dada a
ordem para o pequeno – almoço, o que deixava Carlos agoniado: «Eu fiquei logo mal
impressionado com tudo aquilo quando vi ratazanas a passearem por cima do pão
que íamos comer. As bananas que nos colocam à frente eram castanhas, espapaçadas,
as laranjas estavam todas amachucadas. Ali não éramos ninguém, ou melhor, éramos
carne para canhão».
A recruta, essa, foi muito dura, chuvosa e muito enlameada. As fortes chuvas de
Janeiro ganhavam ainda mais intensidade na zona acidentada da Tapada de Mafra.
Com a farda colada ao corpo, totalmente encharcada, Carlos e os companheiros de
pelotão eram obrigados a rastejar na lama, às ordens de um tenente. Outras vezes,
faziam-no em passo de corrida por aqueles montes inclinados e escorregadios,
sobrecarregados com o peso da G3 nos braços, o capacete a mochila e o cantil. Os
exercícios prolongavam-se pela noite dentro, à mercê de um Janeiro gélido, com
chuvas fustigantes. Os soldados quase que tombavam de tão exaustos que ficavam.
Chegavam ao quartel, já de rastos, na esperança que o dia seguinte fosse menos difícil.
Carlos guarda as piores recordações destes tempos: «O pior de tudo foi a semana de
campo. Saíamos do quartel e dirigimo-nos para a Tapada de Mafra, onde iríamos ficar
e pernoitar durante uma semana, sem ir ao quartel. Dormíamos no chão, em grupos
de três, debaixo de uma tenda improvisada, mal amanhada por três panos, onde mal
cabiam três cadetes. Foi uma semana de chuva copiosa. Como não cabíamos ali os
três, deitávamos e acordávamos todos os dias com os pés fora da tenda e sempre
completamente encharcados».
A moral dos jovens diminuía à passagem daqueles dias difíceis. Agravada com o
cansaço físico, com as saudades da família, com a acção psicológica que os graduados
exerciam sobre os soldados, com as marchas militares que explodiam dos altifalantes
estrategicamente colocados no quartel.
Carlos tentava evitar a todo o custo a zona dos lavatórios e das casas de banho, tal
eram as fracas condições de higiene que ali se respiravam. «Tudo era absolutamente
horrível. Era a primeira vez que estava a ter um contacto directo com o que era a
realidade do país do ponto de vista social, educacional, e das regras higiénicas mais
básicas. Vi situações que pensava não existirem em parte alguma e que, para mim, são
inenarráveis. Tudo aquilo me causava asco».
O mundo real
Carlos Pereira
Alferes (Oficial Miliciano)
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Carlos Pereira
Terminada a primeira semana de tortura, os militares que conseguissem provar que
tinham quarto alugado em Mafra, podiam pedir a licença de pernoita e sair do quartel
às seis da tarde, regressando apenas na manhã seguinte, às sete da matina. Carlos
não teve dificuldade em encontrar, em Mafra, uma senhora que, conivente com os
jovens militares e, ao mesmo tempo, beneficiada das regras militares, alugava o mesmo
quarto a uns cinco ou seis mancebos. Era uma prática que muitas famílias vinham
mantendo há anos e que lhes dava um rendimento extra certinho. «A partir da segunda
semana de tropa passei a ir a casa todos os dias e aos fins-de-semana também. Às seis
da tarde, eu e os meus camaradas mentíamo-nos no carro e seguíamos para Lisboa,
cada um para a sua casa. Ficava relativamente barato porque dividíamos a gasolina
entre todos».
Carlos já estava casado com a Mila – a sua primeira mulher – que conheceu numa festa
de fim de ano no Clube Militar Naval e que, naquela altura, já estava de esperanças.
Carlos e Mila viviam num pequeno apartamento alugado na Rua do Vale de Santo
António, perto de Santa Apolónia. «Eu aproveitava todos os momentos para estar com
a minha família. Ao fim-de-semana, tomava um belo banho de imersão, com uns sais
de banho e bebia um gin tónico, um pequeno luxo que não dispensava e que me dava
muito prazer».
O rigor da formatura, tanto para sair diariamente como para ir de fim-de-semana
exigia farda, botas e cabelo impecáveis, pormenores que não assustavam os jovens
militares quando a ânsia de abandonar o quartel falava mais alto, como Carlos bem se
lembra: «Em Lisboa, levantava-me às cinco horas da manhã para estar em Mafra, na
formatura, devidamente fardado, às sete e meia da manhã, impreterivelmente. Mas eu
preferia esse sacrifício a passar lá a noite».
Embora correspondesse afirmativamente às ordens dos comandantes no que dizia
respeito aos testes físicos, Carlos nunca se deixou envolver por qualquer tipo de fervor
patriótico e militar. «Eu odiava toda a politiquice que estava na base da necessidade de
os jovens terem que ir, obrigatoriamente, à tropa».
Não só estava contra uma guerra injusta que hipotecava a juventude de muitos jovens
portugueses, como também lhe desagradara o facto de sido obrigado a suspender
a sua vida civil, a vida familiar e a vida profissional, pois já fazia parte do quadro
permanente da Consulmar, com óptimas perspectivas de progredir na carreira. «As
dificuldades financeiras foram outro constrangimento. Lembro-me que auferia na
Consulmar cerca de doze contos e quinhentos escudos e quando fui para tropa, durante
O mundo real
a recruta, ganhava menos de mil escudos. Só quando passei a aspirante, dobraram-me
o ordenado para dois contos e qualquer coisa. Mas para pagar a renda da casa, que era
de quatro contos, tive sempre que mexer nas poupanças que fui fazendo ao longo de
dois anos, até ir para a tropa».
O tempo que esteve em Mafra «se pudesse, apagava-o da memória», garante. A passagem
por lá só teve algum sentido porque teve a oportunidade de conviver e aprender com
rapazes da sua idade, com experiências de vida totalmente diferentes da sua, umas mais
ricas outras mais pobres, mas onde as barreiras sociais não tinham lugar.
Terminados esses três primeiros meses de recruta, Carlos foi fazer a especialidade na
Escola Prática de Engenharia, em Tancos, Santarém. Foi-lhe atribuída a especialidade
de construções de engenharia, pois já exercia a sua actividade profissional como
engenheiro civil. Com sorte, livrou-se da especialidade de atirador, a mais temida por
todos os jovens soldados, pois era aquela que abria mais portas ao Ultramar e a um
cenário de guerra tenebroso.
Em Tancos, encontrou oficiais educados e respeitadores, que em nada se assemelhavam
à rudeza e à falta de formação dos que estavam em Mafra. As condições eram
incomparavelmente superiores. Em cada quarto dormiam apenas três ou quatro
soldados. As instalações sanitárias eram impecáveis e até havia cerejas para a sobremesa,
que Carlos recorda como sendo «deliciosamente inesquecíveis», acrescentando que
«aquilo era uma escola de engenheiros e havia um conjunto de regalias absolutamente
ímpares em relação ao que era Mafra. Todos os oficiais que nos davam instrução
e que faziam parte da Escola de Engenharia eram, na realidade, engenheiros de
carreira militar. Portanto, havia ali um relacionamento de respeito entre pares que,
evidentemente, em Mafra não existia».
Em Tancos, voltou a jogar às cartas. Quando era criança, durante as férias de Verão
em Pomares, aprendera com o pai e o avô os truques da sueca. Depois, treinava
com alguns amigos para melhorar o jeito. Mas ali, na Escola Prática de Engenharia,
o jogo era outro, mais complexo. Ali jogava-se bridge. Aprendeu vendo os oficiais
jogarem, durante a noite, quando estes se reuniam à volta de uma mesa na messe
de oficiais. Ao contrário do que acontecia em Mafra, os cadetes podiam frequentar
aquele espaço, como qualquer oficial. Jogar bridge era uma espécie de culto entre
aqueles militares e havia quase que uma regra implícita de que todos os engenheiros
daquele aquartelamento deveriam aprender a jogar. «Foi em Tancos, com os meus
camaradas e oficiais que eu aprendi a jogar bridge e hoje é o único jogo de cartas que
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Carlos Pereira
me dá verdadeiro prazer jogar. É um jogo absolutamente incrível, indescritível e que
me apaixona verdadeiramente».
Um País em convulsões
As políticas reformistas de Marcello Caetano haviam falhado. O regime não tinha
respostas para fazer face à crise que se abria em todas as frentes: as Finanças, as Forças
Armadas, a guerra, a agitação social e política, o crescente isolamento internacional.17
A primeira tentativa de derrube do regime aconteceu no dia 16 de Março de 1974
e apanhou de surpresa os jovens cadetes em Mafra. Era sábado. Tinham acabado de
fazer a formatura e preparavam-se para sair quando chegou uma ordem do comando
para que se trancassem as portas do quartel e que não fosse permitida a saída de
nenhum cadete para fim-de-semana. Carlos lembra-se deste dia como se fosse hoje:
«Já não fui de fim-de-semana para Lisboa. Nem eu nem nenhum dos meus camaradas
que viviam, tal como eu, na capital. Ficámos apreensivos e desconfiados, circulavam
os mais diversos rumores, mas nada de concreto. Mesmo quem tivesse rádio, podia
ouvir um pouco do que se estava a passar, mas a informação era escassa e controlada
pelos meios de censura do regime».
A verdade é que a poucos quilómetros de Lisboa, mais concretamente na zona das
Caldas da Rainha, uma coluna de militares saída do Regimento de Infantaria 5 foi
neutralizada pelas forças governamentais quando se preparava para marchar sobre
Lisboa e derrubar o regime. A política ultramarina governamental causava bastante
contestação entre os militares, ganhando ainda mais importância quando os generais
Costa Gomes e António de Spínola, chefe e o vice-chefe do Estado Maior das Forças
Armadas, respectivamente, faltaram à cerimónia de apoio a Marcello Caetano,
organizada dois dias antes, a 14 de Março, por um grupo de generais dos três ramos
das Forças Armadas, em São Bento e que ficou conhecida como “A Brigada do
Reumático”, tal era a média etária dos generais e brigadeiros presentes na cerimónia.
A audácia da ausência custou-lhes o cargo. Ambos foram demitidos pelo chefe de
governo, mas a demissão de Spínola provocou uma indignação gritante em alguns
oficiais, que tentaram um golpe de Estado.
A tentativa não foi totalmente em vão. Apesar do insucesso, foi o primeiro anúncio de
que, em breve, uma verdadeira mudança poderia acontecer em Portugal. E aconteceu.
Um mês e alguns dias depois, no dia 25 de Abril de 1974, um grupo de jovens capitães
levou a cabo um golpe de Estado que derrubou a ditadura que amordaçava e dominava
17 Maria Inácia Rezola, 25 de Abril – Mitos de uma revolução, A Esfera dos Livros, 2007, p.p. 26.
O mundo real
Portugal há mais de 40 anos, mudando radicalmente o rumo e a história do País. As
portas da democracia abriam-se, finalmente, para os portugueses.
Os ecos do Movimento dos Capitães de Abril depressa irromperam pela Escola
Prática de Engenharia adentro, aguçando o espírito dos jovens cadetes que, embora
impedidos de participar directamente nas movimentações porque ainda não eram
oficiais, muitos, individualmente, declararam adesão ao movimento dos Capitães de
Abril. «Nós não tivemos participação directa nas movimentações de 25 de Abril, mas
no dia seguinte, a recruta ficou suspensa e cada um de nós ficou incumbido, em
grupos de cinco ou seis de estar envolvido em certo tipo de posições, como controlar
entradas e saídas do quartel. Na nossa unidade, o capitão Silvestre estava ligado ao
movimento e perguntou-nos quem é que queria ser voluntário e aderir ao movimento
dos capitães. E nós alinhámos, claro!»
O que começou como um golpe militar, transformou-se numa revolução popular,
com milhares de portugueses a saírem à rua, eufóricos, revolucionários, à conquista
da Liberdade e de uma profunda transformação da sociedade.
À passagem da coluna de blindados da Escola Prática de Cavalaria de Santarém,
liderada por Salgueiro Maia, que seguia triunfante em direcção a Lisboa, à conquista
do Largo do Carmo, centenas de populares não hesitaram em juntar-se àquele
momento especial que iria mudar as suas vidas para sempre. Ansiosos, aguardavam
a rendição de Marcello Caetano, refugiado no quartel-general da GNR, juntamente
com outros membros do governo.
Legitimado pelo Movimento das Forças Armadas e pela população, o general Spínola
recebeu o poder das mãos de Marcello Caetano e, obtida a rendição, Marcello Caetano
foi escoltado até à Pontinha num chaimite. Tirando alguns elementos da PIDE que
dispararam sobre populares que se manifestavam na Rua António Maria Cardoso,
atingindo mortalmente quatro pessoas, o regime caiu sem oferecer resistência.
No dia seguinte, assumindo a liderança enquanto Presidente da Junta de Salvação
Nacional, Spínola apresentou ao país, o programa do Movimento das Forças Armadas,
onde estavam previstos a formação de um governo provisório que convocasse
uma Assembleia Constituinte, a elaboração de novos cadernos eleitorais de acordo
com as regras democráticas, uma nova constituição que substituísse a de 1933 e o
estabelecimento de instituições democráticas. O documento garantia também a
liberdade de reunião, associação e de expressão, uma amnistia para todos os presos
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Carlos Pereira
políticos e a abolição da censura e de todas as organizações e autoridades repressivas
do Estado Novo.
O Programa do Movimento das Forças Armadas (MFA) previa ainda políticas
económicas e sociais que melhorassem a qualidade de vida dos portugueses. Mas à
margem do conhecimento dos capitães, o programa foi beliscado quando Spínola não
aceitou a referência explícita do direito à autodeterminação das colónias portuguesas,
fazendo apenas uma breve referência que era necessária uma política ultramarina que
conduzisse à paz.
O documento que deveria servir como uma extensão de sucesso do golpe revolucionário
parecia ser demasiado abrangente, ambíguo, passível de diversas interpretações, que
buscava o consenso geral, mas carecia de determinação e de clarificação. Esta falta de
clareza condicionou o processo revolucionário. Políticos e militares não se entendiam
e o País viveu socialmente agitado nos dois anos seguintes.
António Spínola foi nomeado Presidente da República pelo órgão máximo do poder –
a Junta de Salvação Nacional – cargo que exerceu entre 15 de Maio e 30 de Setembro
de 1974, dia em que se demitiu por estar descontente com a orientação de esquerda
que a política nacional ia assumindo.
Em Julho de 1974, Carlos passou a aspirante, tendo como primeira tarefa a de dar
instrução a soldados, todos eles com profissões ligadas à construção civil e que tinham
sido colocados na Escola Prática de Engenharia. Como comandante de pelotão,
era Carlos quem instruía os jovens soldados que eram electricistas, carpinteiros e
pedreiros. «Foi uma experiência interessante. Mais uma vez, a partilha de saberes que
existia no grupo foi de grande valor para mim».
Os exercícios físicos continuavam a estar na ordem do dia, apesar de o clima ser
bastante agreste para os militares. As tardes são de uma canícula insuportável e as
noites são de um gelo arrepiante. Durante o dia, os soldados refugiavam-se junto às
margens do rio para se refrescarem e elaborarem os planos de ataque. «Recordo-me
que foi durante esta fase que tive a melhor preparação física de sempre. Um vez por
semana, o pelotão ao invés de fazer um dia de ginástica normal ou ir para a carreira de
tiros, fazia um cross pela zona da Barquinha, em Constança. Eu era o mais velho de
todos e era um dos últimos para não dizer o último a dar o chamado abafa».
O mundo real
As convulsões adensam-se
«No dia 11 de Março de 1975, eu e um colega saímos do quartel para bebermos um
aperitivo. Eram horas de almoço e as actividades paravam ao meio-dia. Estávamos já
nós a tomar o nosso martini quando começámos a ver uns aviões a sobrevoar a zona.
Achámos estranho porque a base aérea de Tancos, que fica ao lado da escola Prática
de Engenharia, era suposto estar também em paragem para o almoço», recorda Carlos.
É que nessa altura, Carlos desconhecia ainda a chegada de Spínola à Base Aérea nº
3, em Tancos, durante aquela madrugada. Spínola saiu derrotado de uma tentativa
de golpe militar com o objectivo de travar os avanços do Partido Comunista e foi
obrigado a procurar apressadamente refúgio em Espanha.
Após o afastamento de Spínola do cargo de Presidente da República, as contradições
entre políticos e militares agudizaram-se. Enquanto os primeiros defendiam o modelo
democrático-socialista, de base parlamentar, os segundos eram pela revolução
socialista de base popular, sob a égide militar. O Partido Comunista Português (PCP)
e os militares mais radicais reforçaram as posições no controlo dos postos-chave do
aparelho do Estado, o que provocou a reacção de Spínola e dos seus apoiantes que
optaram pela tentativa de derrubar o poder instituído.
Só quando viu na televisão as reportagens de Adelino Gomes a dar conta da agitação
que se passava no País é que Carlos se apercebeu do agoirado golpe. Regressou
de imediato ao quartel e encontrou o capitão Silvestre que o pôs a par de toda a
situação do que se estava a passar na Base Aérea de Tancos. «Foram definidas funções
e eu e os meus soldados ficámos responsáveis pela estação de comboios em Tancos.
Cada comboio que passava, parava, e era inspeccionado. Entrávamos numa ponta
do comboio e saíamos na outra a ver se víamos alguma coisa. Nessa altura já havia
indivíduos em fuga, nomeadamente o próprio Spínola».
Spínola e os oficiais implicados no golpe conseguiram fugir para a Espanha, de
helicóptero, a partir da Base Aérea de Tancos. Carlos prossegue nas lembranças desse
dia: «Enquanto o comandante da base estava a ser preso porque estava envolvido
no golpe, nós fomos apreender e rebocar as viaturas civis, estacionadas junto ao
restaurante Pôr-do-sol na Barquinha, que foram usadas e abandonadas pelo Spínola e
os seus apoiantes mais próximos».
Os objectos pessoais de António Spínola chegaram mesmo a passar pelas mãos de
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Carlos Pereira
Carlos que, no dia seguinte, depois da rendição da Base Aérea, entrou lá dentro para
dar apoio aos camaradas: «Uma das coisas que eu tive nas mãos foi a mala onde o
Spínola guardou os seus apetrechos de higiene e roupa interior. Num fundo falso da
mala, estava a barba postiça que ele usou para se disfarçar e entrar na base aérea».
O caminho estava agora aberto aos sectores mais radicais do Movimento das
Forças Armadas que até fez uma assembleia em Tancos, em parte por causa do
«comportamento exemplar» da Escola Prática de Engenharia. A Junta de Salvação
Nacional e o Conselho de Estado deram lugar ao Conselho da Revolução, que se
manteve como órgão de soberania até 1982.
É nessa assembleia que Carlos reencontrou o então General Pinto Soares, homem
ligado ao movimento dos capitães, e que havia sido seu colega no Instituto Superior
Técnico, como aluno da Academia Militar. Reconhecendo-o de imediato, o militar de
alta patente perguntou a Carlos se não preferia estar em Lisboa, ouvindo de imediato
do outro lado «então não quero! É claro que quero!».
Um mês depois deste encontro, chegou uma ordem de marcha para Carlos se
apresentar no Regimento da Pontinha, destacado para prestar serviço nos Serviços
de Apoio ao Conselho da Revolução (SACR). Juntamente com outro aspirante,
licenciado em Economia, ficou responsável pelo sector da construção.
O Movimento das Forças Armadas assinou a 11 de Abril de 1975 um acordo
constitucional com os partidos - PS, PPD, PCP, MDP/CDE e FSP – e que integraria
os princípios do MFA e as medidas políticas, entretanto, tomadas, como o caso das
nacionalizações.
Mas sectores mais radicais continuavam a intensificar as suas acções. No 1.º de Maio
de 1975, Mário Soares e Salgado Zenha foram impedidos de discursar e a Intersindical
apresentou-se como central única dos trabalhadores, com o apoio do MFA e do PCP. O
jornal República foi ocupado pelos trabalhadores conotados com a extrema-esquerda.
Alegando não conseguir impor a legalidade no jornal, o PS abandonou o IV Governo
Provisório. O PPD seguiu-lhe o exemplo. Estes acontecimentos provocaram a queda
do IV Governo e a consequente formação do V Governo Provisório, regulado por uma
base partidária muito restrita: PCP e MDP/CDE.18 «Foi uma fase muito interessante
da minha vida porque vivi por dentro de todas aquelas convulsões do Verão Quente».
18 História Universal de Portugal 2.0, Texto Editora, 2002.
O mundo real
A Assembleia do MFA aprovou o «Documento-Guia da Aliança Povo-MFA», favorável
ao poder popular, a 8 de Julho de 1975, e um mês depois o Comando Operacional
do Continente (COPCON) elaborou um documento na mesma linha de orientação.
A 6 de Agosto pronunciaram-se os militares moderados. Nove militares do Conselho
da Revolução, entre eles Melo Antunes, Vasco Lourenço e Vítor Alves com o apoio de
outros militares como Ramalho Eanes e Salgueiro Maia, apresentaram ao Presidente
da República, o General Costa Gomes, o que ficou conhecido como «Documento dos
Nove», no qual defendiam um projecto nacional de transição para o socialismo que
tivesse em linha de conta as liberdades, direitos e garantias fundamentais.19 «Nesta fase
o meu dia começava às 08h30 da manhã e acabava às duas, três da manhã no Palácio
de Belém. O general Loureiro dos Santos, que posteriormente veio a ser o Chefe do
Estado Maior das Forças Armadas, era na altura o meu chefe e comandante directo e
era um dos elementos do grupo dos Nove. Lembro-me que o general Costa Gomes
era um homem de uma dimensão inimaginável como militar. Era um homem com
cultura, com bom senso e com uma dimensão humana acima da média. Foi ele quem
deu ordem para a retirada das forças portuguesas de Timor. Eu assisti directamente a
essa conversa entre ele e o governador de Timor, para que se evitasse uma carnificina
que não faria qualquer sentido».
Num curto espaço de tempo, o MFA ficou dividido em três grupos com programas
e apoios partidários diferentes: O grupo Gonçalvista alinhado com o PCP, a esquerda
radical populista liderada por Otelo Saraiva de Carvalho e o Grupo dos Nove,
liderado por Melo Antunes e com o apoio do PS. O MFA tinha perdido a sua unidade
e o país era invadido por uma panóplia de planos.20 «Apesar de ter sido uma fase
fisicamente esgotante, foi um privilégio o de ter tido acesso à informação e àquilo
que são os verdadeiros corredores do poder. Foi uma experiência rica. Apesar de
tudo, havia um respeito mútuo independentemente da patente, da qualificação que a
pessoa tivesse. As pessoas respeitavam-se. É claro que havia opiniões divergentes, mas
isso é absolutamente natural. Havia um sentido de democracia claro em praticamente
toda a gente, havia uma franja que depois se verificou estar ligado a movimentos
bombistas que andaram a aterrorizar o país e que também tinha os seus protectores
e representantes até mesmo no SACR, mas era uma minoria. Eu julgo que o respeito
que havia tem muito que ver com aquilo que é a instituição militar, onde as pessoas,
acima de tudo, se respeitam umas às outras».
19 História Universal de Portugal 2.0, Texto Editora, 2002.
20 Maria Inácia Rezola, 25 de Abril – Mitos de uma revolução, A Esfera dos Livros, 2007, p.p. 222.
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Carlos Pereira
A ocupação da Rádio Renascença por parte das forças da extrema-esquerda, os
ataques às sedes de partidos marxistas, no Norte e Centro do país, a divisão entre os
militares, as greves, criaram um cenário de instabilidade que marcou o «Verão quente»
e conduziu ao 25 de Novembro. Logo após a tentativa de golpe protagonizada por
unidades militares afectas ao PCP ter sido travada pelas tropas coordenadas por
Ramalho Eanes e outros militares moderados, o 25 de Novembro foi o início de um
caminho favorável à estabilidade e à consolidação de um regime político de democracia
parlamentar.21 Para Carlos, ficou a lembrança da atitude e o comportamento de Melo
Antunes: «Considero que foi um homem que teve um papel importantíssimo, um
pilar de manutenção do relacionamento entre as pessoas. Apesar do desencanto e das
desilusões, conseguiu manter tudo dentro de uma plataforma de convivência social,
apesar de tudo, estimável. Se não tivesse sido o Melo Antunes, não sei se Portugal não
tinha entrado numa guerra civil».
As primeiras eleições em democracia para Presidência da República aconteceram a 27
de Junho de 1976. Os portugueses pronunciaram-se a favor de Ramalho Eanes, contra
as candidaturas de Otelo Saraiva de Carvalho, Pinheiro Azevedo e Octávio Pato. E,
um mês depois, Mário Soares é eleito primeiro-ministro. Mas nessa altura, já Carlos
havia passado à disponibilidade com a patente de Tenente e regressado à sua vida civil.
21 História Universal de Portugal 2.0, Texto Editora, 2002.
O mundo real
Caricatura de Carlos Pereira
sobre o General Spínola.
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AGARRAR O
DESTINO
AS
COM DUAS
MÃOS
Agarrar o destino com as duas mãos
Deu à filha o nome de Ana Catarina, em homenagem a Catarina Eufémia, a assalariada
rural, de 26 anos, ferida mortalmente a tiro, em 1954, às mãos de um soldado da
GNR, nos campos alentejanos de Baleizão, no concelho de Beja. Carregava nos braços
o filho de oito meses. Juntamente com outras agricultoras, a jovem teve a ousadia
de fazer greve, exigindo aos latifundiários que a jorna fosse mais bem paga. Acabou
morta, deixando três filhos por criar, mas o seu nome será para sempre relembrado
como um símbolo de resistência ao Estado Novo.
Ana Catarina nasceu a 27, de Maio, de 1975, em pleno Processo Revolucionário
em Curso (PREC). A cumprir serviço militar em Tancos, Carlos não desfrutou dos
primeiros dias de vida da filha, da doçura da paternidade, tal como tinha sonhado.
«Foi uma fase difícil, complicada, do ponto de vista familiar», relembra. Os conflitos
do PREC e a sua posição militar nos Serviços de Apoio ao Concelho da Revolução,
exigiam a sua total dedicação. Reuniões atrás de reuniões, até altas horas da madrugada,
não lhe deixavam grande tempo para acompanhar as alegrias do lar. Só mesmo em
1976, depois de ter passado à disponibilidade, soube o que era estar presente nos
momentos especiais, em família: as primeiras palavras, os primeiros passos da filha, as
primeiras brincadeiras.
Foi num contexto social e familiar mais harmonioso que Carlos regressou à sua vida
profissional. De volta à Consulmar, é alocado à equipa da Consulmar que dava apoio
ao Gabinete da Área de Sines (GAS), mais concretamente à equipa de fiscalização da
obra, então chefiada pelo engenheiro Ventim Ramos.
Na década de 70, o governo de Marcello Caetano decidiu instalar no concelho de
Sines um grande complexo portuário industrial, composto por uma refinaria, uma
petroquímica, uma siderurgia e um porto oceânico.
A privilegiada localização de Sines, sobretudo devido às enormes profundidades
existentes a reduzidas distâncias da costa, ideais para a acostagem de navios graneleiros
de grandes dimensões - nomeadamente os superpetroleiros que os japoneses, à época,
não paravam de construir, aumentando progressivamente as respectivas dimensões
(200 mil, 250 mil, 300 mil dwt - deadweight tonnes) - Sines reunia globalmente óptimas
condições para a construção de uma infraestrutura desta dimensão, um porto de águas
profundas capaz de receber os novos navios petroleiros de grandes dimensões que
nenhum outro porto na Europa tinha condições de receber. Estava-se em plena fase
de encerramento do canal de Suez, o abastecimento de petróleo à Europa fazia-se pela
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Carlos Pereira
01
02
01 Catarina, filha de Carlos Pereira
02 Desenho de Catarina para o pai
Agarrar o destino com as duas mãos
rota do Cabo, dispendiosa pelo enorme aumento da distância da zona de produção sobretudo o Médio Oriente - à zona de consumo.
Para levar a cabo o empreendimento, Marcello Caetano criou, em 1971, através do
Decreto-Lei n.º 270/71, o Gabinete da Área de Sines (GAS), um instituto público
com funções de planeamento e de coordenação da construção da obra e directamente
dependente do presidente do Conselho.
Apesar da queda da ditadura, o III Governo Provisório decidiu dar continuidade aos
vários projectos iniciados e até aos anos oitenta foram lançadas centenas de empreitadas,
suportadas pelo investimento público. Entre as principais obras destacavam-se as
instalações portuárias, transportes e comunicações, habitação e saneamento básico.
Com uma vertente muito mais técnica, os engenheiros da Consulmar prestavam
apoio à fiscalização das obras do Porto de Sines, a pedido dos engenheiros do GAS,
mais focados nas questões administrativas. A complexidade e dimensão da obra
exigiam a presença constante de um engenheiro no local, com grande conhecimento
em engenharia de estruturas. O engenheiro Abel de Jesus Camelo foi inicialmente
o escolhido para estar presente em Sines, na frente de obra, como representante
da Consulmar. Só vinha a Lisboa, aos fins-de-semana e ficava até segunda-feira de
manhã, período em que se deslocava aos escritórios da Consulmar para reunir com os
colegas e fazer o ponto de situação. Todavia, a construção do molhe Oeste, uma obra
marítima, exigia também o conhecimento especializado de engenharia hidráulica, área
que o Eng. Camelo não dominava. Por isso, era o Eng. Silveira Ramos quem colmatava
essa lacuna, com uma visita a Sines uma vez por semana, indo e vindo no mesmo dia.
Com 29 anos, Carlos dava apoio na rectaguarda. Era ele quem fazia a ponte entre o
escritório da Consulmar, em Lisboa, e obra de Sines. Foi assim durante muitos meses,
até ao dia em que o Eng. Camelo apresentou a demissão em virtude de ter aceitado
uma proposta de trabalho tentadora vinda de outra empresa.
Perante o lugar vazio, Silveira Ramos decidiu colocar Carlos na frente de obra, pois
era o engenheiro com mais conhecimento sobre aquele projecto e o mais habilitado a
conversar com especialistas de outras áreas. A valorização profissional foi sempre uma
trave mestra dos valores da Consulmar e o engenheiro, desde que havia regressado ao
trabalho, foi determinado em aprofundar os seus conhecimentos. Não se satisfazendo
com a superficialidade dos temas, apostou na formação contínua e frequentou diversas
acções de formação de pós-graduação - nomeadamente no LNEC, onde participou,
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Carlos Pereira
entre outros, no programa Nato Advanced Study Institute on Estuary Dynamics - e
tantos outros sobre praias, esporões marítimos e obras costeiras. Absorvia toda a
informação de forma intensa.
Pleno de confiança aceitou o convite. Além da sua capacidade de liderança e da
vontade de determinar o seu próprio destino, também tinha o desejo de proporcionar
todo o bem-estar à família. «É claro que aceitei a proposta com muito bom agrado!
Até porque, como tinha vindo da tropa há relativamente pouco tempo e estava com
as finanças em baixo, o subsídio suplementar que a Consulmar me atribuía por estar
deslocado de Lisboa, ajudava-me a equilibrar as contas em casa. Portanto, lá fui».
Alugou um quarto no centro histórico de Sines e logo tratou de conhecer melhor a
região. Considerada na altura como a praia de banhos do Alentejo, a preferida dos
grandes lavradores de Beja e arredores, Sines continuava a ser uma vila piscatória,
com alguma agricultura e algum turismo balnear.
A instalação do complexo de Sines não foi bem acolhida pelos habitantes, especialmente
pelos pescadores, que viram no empreendimento uma pressão ambiental sobre os recursos
marítimos, e pelos agricultores, cujas terras foram expropriadas para a construção do
complexo. Nem mesmo a indemnização era suficiente para deixá-los calados. O dinheiro
não chegava para uma vida confortável. Obrigados a trabalhar por conta de outrem em
biscates mal pagos, os agricultores sentiram-se lesados com o negócio.
Naquela época, Sines assistiu a um aumento demográfico da população, com a
chegada de técnicos vindos de Lisboa e de Setúbal, operários qualificados e não
qualificados, portugueses regressados das ex-colónias e também cabo-verdianos, que
permaneceram temporariamente ali até ao término das obras.
Com a família em Lisboa, Carlos dedicava-se exclusivamente ao trabalho. De manhã,
levantava-se bem cedo, tomava o pequeno-almoço num café, no centro da vila, e
seguia directamente para a obra. Quando chegava ao local, participava nas visitas
diárias constantes que se realizavam à obra. Participava nas reuniões internas - apenas
com os técnicos do GAS - e externas, com o empreiteiro italiano, conhecida empresa
do Vaticano denominada Condotte D’Acqua. «Destas reuniões, umas revestiam-se de
aspectos técnicos invulgares mesmo se considerados a nível mundial - já que pela
primeira vez no mundo se utilizavam nesta obra os DOLOS, blocos artificiais de
protecção de 40 toneladas nunca antes utilizados - e outras de aspectos administrativos
Agarrar o destino com as duas mãos
complexos, a que a presença da empresa italiana emprestava tonalidades sicilianas não
poucas vezes detectadas».
As obras avançavam à medida que crescia o relacionamento de Carlos com a
vila, com os moradores de Sines, com os pescadores, com os agricultores, com os
operários, com os comerciantes. Aprendia tanta coisa com eles, sobre história, sobre
a cultura local, especialmente sobre comida. Deixava-se deliciar com o melhor peixe
e o melhor marisco da região. À hora de almoço, escolhia um restaurante qualquer e
experimentava o peixe frito, o peixe de escabeche, a caldeirada de peixe, a açorda, a
sopa de tomate, enquanto observava, de longe, os pescadores mais velhos a jogarem às
cartas e ao dominó, ao ritmo de valentes tragos de vinho e aguardente. O engenheiro
recém-chegado era acarinhado pela população.
À noite, quando chegava a casa e se o corpo permitia, dedicava-se à leitura, a escrever
algumas anotações, a fixar em desenhos as memórias que guardava dos colegas que
trabalhavam com ele. Riscava, apagava, recomeçava. As obras iam ganhando rostos.
Caricaturou-os, atribuiu-lhes “nomes de guerra”. Só quando olhava pela janela e
dava-se conta da escuridão da noite, do silêncio da rua é que se apercebia do tardio da
hora. Continuaria os desenhos no dia seguinte se o corpo voltasse a permitir.
A obra decorria em bom ritmo até que uma tempestade de enormes dimensões
se abateu sobre a costa Oeste de Portugal. Este temporal ocorrido no Inverno de
1978 provocou no Molhe Oeste estragos de elevadas proporções. A intempérie fez
com que o complexo não se mantivesse fiel ao projecto inicialmente previsto; foram
feitas alterações ao perfil e desenvolvimento do molhe em relação ao inicialmente
projectado e adoptaram-se diferentes blocos de protecção do quebra-mar. Mas apesar
deste sobressalto, o porto sempre foi visto como um complexo que iria ter um papel
importante na economia do País. Por isso, a continuação das obras nunca esteve em
causa.
O Gabinete da Área de Sines confiava na experiência de determinadas equipas de
engenheiros para elaborarem os projectos e apresentarem soluções que levassem a obra
avante. Carlos participava nessas equipas de profissionais. A formação académica na
área da engenharia hidráulica, as horas de formação e a diligência com que participava
nos trabalhos eram suficientes para deixar tranquilo o engenheiro Almeida Santos –
um dos responsáveis pelo GAS na frente de obra em Sines – quanto ao andamento das
obras, dispensando-se, ao mesmo tempo, a presença semanal anteriormente constante
do Eng. Silveira Ramos.
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Carlos Pereira
Agarrar o destino com as duas mãos
Caricaturas de Carlos Pereira
sobre os colegas da Consulmar
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Carlos Pereira
Sem saber, o Eng. Almeida Santos havia criado uma situação desconfortável
entre Carlos e o próprio chefe que, sentindo-se numa posição de dispensa e de
subalternidade, acusou-o de exceder o âmbito das suas competências em Sines.
O conflito estava instalado e os riscos que Carlos corria eram enormes, mas o seu
espírito combativo impedia-o de se esconder, muito menos o de evitar confrontos,
principalmente se acreditava nas suas razões. «O facto de eu não ter necessitado tanto
de apoio dos escritórios da Consulmar como fazia o meu anterior colega Abel Jesus
Camelo gerou alguma conflitualidade, até pela maneira como o Eng. Silveira Ramos
colocou a questão, dizendo que eu estava a “exorbitar”. Obviamente, que pedi a minha
demissão».
Quando recebeu a carta de pedido de demissão, o professor Vasco Costa chamou-o ao
gabinete e tentou demovê-lo de tal decisão, pois não queria desperdiçar o talento e a
potencialidade do seu engenheiro, mas o espírito frontal e rectilínio de Carlos não lhe
permitiu voltar com a palavra atrás.
Tudo aconteceu em Março de 1979. Carlos ainda ficou mais um mês na Consulmar para
passar as pastas ao engenheiro substituto, o Eng. Rui Godinho da Silva, recentemente
entrado na Consulmar. Mas novos projectos profissionais iriam aparecer.
As infraestruturas do Porto de Sines ficaram concluídas nos anos oitenta e o Gabinete
de Área de Sines foi extinto formalmente em 1988. As suas competências foram
transferidas para outros organismos do Estado e para as próprias autarquias.
Missão em África: Cabo-Verde
Quando saiu da Consulmar, Carlos desenvolveu alguns contactos junto de amigos e
profissionais da Engenharia e depressa se apercebeu que a solução passaria por aceitar
um emprego numa ex-colónia. As novas independências, com a criação dos novos
ministérios, precisavam gente para pôr a máquina administrativa dos respectivos
Estados a funcionar.
Sem delonga, aceitou o convite do Eng. Rui Dantas Ferreira, um amigo de longa
data, para ingressar na CIPRO - Consultores Internacionais em Projectos de
Desenvolvimento – ao abrigo de um contrato de cooperação com Cabo Verde que
se iria prolongar por três anos. O objectivo deste acordo era o de instalar na Cidade
da Praia, na Ilha de Santiago, um equipa de arquitectos e engenheiros que pudessem
dar apoio e formar o corpo técnico do Ministério das Obras Públicas de Cabo Verde,
Agarrar o destino com as duas mãos
composto na sua maioria por quadros que não tinham, salvo raras excepções, formação
superior nem competências para desenvolver tarefas que não fossem administrativas,
como a fiscalização de obras.
Tinha apenas 32 anos e a possibilidade de uma carreira internacional vislumbrava-se
no horizonte. Acreditou que na vida, às vezes, é preciso dar um passo trás para dar
dois em frente. A perspectiva de poder aplicar os seus conhecimentos, como também
de transmiti-los a quem o rodeasse e de pôr em prática toda a sua bagagem técnica em
benefício das necessidades de um povo carente, parecia-lhe muito interessante. Além
disso, ainda saía da Consulmar, onde ganhava 12 contos e quinhentos por mês, para
ir para Cabo Verde ganhar 35 mil escudos.
Carlos ficou como o responsável da delegação portuguesa da CIPRO que tinha na
sua estrutura mais arquitectos do que engenheiros. Todavia, há já algum tempo que
a administração da CIPRO queria inverter essa situação, por isso deu um cargo de
responsabilidade e de direcção a um engenheiro. «Penso que isto aconteceu porque
os engenheiros têm uma perspectiva e uma capacidade maior para gestão do que os
arquitectos. Admito, no entanto, que também possa ter havido alguma componente de
decisão política. Eu era uma pessoa de esquerda, tinha trabalhado muito de perto com
o MFA e talvez isso jogasse bem junto das novas independências, porque era o oposto
de tudo o que tinha que ver com o colonialismo e com o passado».
Quando chegou à Ilha de Santiago, não encontrou as cores do seu imaginário africano.
Afinal, a Cidade da Praia não era verde, era castanha, cor de ocre, e a vegetação muito
escassa. Uma espécie de semideserto. A cor do mar, essa, era de um verde cristalino.
A viagem fazia-se através da Ilha do Sal, a única com aeroporto internacional e que
servia as restantes nove ilhas que constituem o arquipélago de Cabo Verde. Ficou
instalado numa casa, perto da praia, alocada pelo Governo de Cabo Verde à CIPRO.
Para quebrar as saudades, a mulher, na altura funcionária pública, pedia anualmente
uma licença de três meses sem vencimento para ir visitar o marido e a pequena Ana
Catarina, com apenas quatro anos de idade, acompanhava a mãe nestas viagens.
Era a primeira vez que estava em África e depressa constatou a herança portuguesa na
arquitectura colonial, nos passeios com a calçada portuguesa, nos jardins e no Forte
de São Filipe na Cidade Velha, com os seus canhões apontados para o mar, prontos a
defender a soberania lusitana. E claro, no crioulo, amordaçado pela língua portuguesa.
Carlos não era indiferente às condições precárias, à pobreza, à miséria, ao sofrimento
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Carlos Pereira
Agarrar o destino com as duas mãos
“Eu sou demasiado
optimista, ele é
realista, pragmático,
disciplinador, veio
enraizar uma parceria
muito intensa, forte,
que perdura e vai
perdurar durante
muito tempo.”
João Frazão
O amigo e sócio em África
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Carlos Pereira
da população por não ter o que comer. Na rua, sentia que as grandes secas tinham
deixado marcas de horror naquele povo. As nuvens no céu não eram, no entanto, um
prenúncio de aguaceiros e os mais conscientes costumavam dizer que até poderia verse chover no mar e não cair uma gota de água em terra.
Por isso, sempre que chovia os cabo-verdianos celebravam como se de um milagre
se tratasse. A chuva era o melhor presente que a população poderia receber, era sinal
de boas colheitas e de comida. Aos primeiros chuviscos, os habitantes abriam covas e
atiravam as sementes, cobrindo-as de terra com a ajuda dos pés. Depois aguardavam
ansiosos por boas colheitas de milho e de feijão. Também plantavam mandioca, batata
doce e abóbora. Quando chovia, a ilha transformava-se. Os tons castanhos davam
lugar a um verde exuberante, as plantas cresciam, as crianças brincavam ruidosamente
na rua, os velhos sorriam, a terra fertilizava.
Cabo Verde tem duas estações, a das chuvas, que vai de Agosto a Setembro, e a
estação seca, de Outubro a Julho. Em Fevereiro, os cabo-verdianos sofrem ainda a
influência das tempestades de areia e nuvens de poeira vindas do deserto do Sahara
e que impedem o tráfego aéreo sobre o arquipélago. Esses mesmos ventos que fazem
as areias do deserto atravessar o oceano e atingir o arquipélago, arrastam milhões de
gafanhotos, responsáveis por devastar as culturas agrícolas e que ainda hoje deixa
Carlos arrepiado: «Foi uma das experiências mais horríveis da minha vida. Onze
quilómetros de trajecto, dentro de um táxi, entre a Pousada de Santa Maria, em
Morabeza, no Sul da Ilha do Sal, e o aeroporto, em que ia ouvindo o esmagamento da
carapaça crocante dos gafanhotos debaixo das rodas do carro. Ainda hoje me arrepio
com esse som, assim como de ter sido a única vez em que vi os limpa-para-brisas de
um carro servirem, não para limpar a água da chuva, mas os restos amarelados dos
gafanhotos esmigalhados contra o vidro».
Tomou contacto com uma realidade longe da sua, onde era preciso criar as mais
básicas condições, desde esgotos, passando por escolas e casas. O desenvolvimento de
Cabo Verde sempre esteve condicionado por causa dos problemas do abastecimento
de água potável, situação que resultava das características climáticas do país, ou seja, de
chuvas raras e, sobretudo, irregulares. Desde os tempos coloniais que o abastecimento
era feito por fontanários, galerias, cisternas, mas com o aumento da população e o
crescimento da urbanização, o problema agudizou-se. Era preciso combater a escassez
de água através de processos de dessalinização e melhorar o abastecimento público.
Decorria o ano de 1979 e Portugal iniciava um processo de cooperação com África,
Agarrar o destino com as duas mãos
em particular, com Cabo Verde – que havia sido a colónia africana mais pobre do
império português -, para onde enviou um grande número de cooperantes, entre
os quais, médicos, professores e engenheiros. Com poucos recursos económicos, a
falta de água potável, juntamente com a escassez de terra arável, provocavam um
estrangulamento económico e uma dependência pouco saudável de bens alimentares
vindos do estrangeiro. A frágil economia do país só era sustentável através de uma
forte ajuda internacional, reforçada com acordos de cooperação e das contínuas
remessas dos emigrantes.
Na altura em que Carlos foi para Cabo Verde, o Partido Africano para a Independência
da Guiné Bissau e Cabo Verde (PAIGC) era o único partido legítimo, representante
dos povos destes dois países. O PAIGC nasceu do sonho de um filho da terra, Amílcar
Cabral22, que ansiava pela independência das duas colónias, liberto do jugo português.
A divulgação de ideias nacionalistas pelo líder da revolução, juntamente com o seu
irmão Luís Cabral e Aristides Pereira - que veio a tornar-se o primeiro Presidente da
República de Cabo Verde -, conduziu à independência do arquipélago a 5 de Julho de
1975.
Carlos deslocava-se assim entre os dois países, no âmbito das missões do Ministério
das Obras Públicas porque eram únicas para os dois países. Embora, não tenha as
melhores recordações do País por causa do clima extremamente quente, não esqueceu
um almoço de ostras, generosamente oferecido pelos homens do PAIGC. «Criadas no
lodo, as ostras eram atiradas para cima de um braseiro para abrirem muito levemente
e com a ajuda de um martelo terminava-se o trabalho. Foi um delicioso almoço a que
eu sobrevivi».
O PAIGC governou até 1980, altura em que a unificação terminou por força de um
golpe de Estado, perpetrado por Nino Vieira23, então Comissário Principal do governo
de Bissau, contra o primeiro presidente da Guiné-Bissau, Luís Cabral24, irmão de
Amílcar Cabral. O golpe provocou o corte de relações entre os dois países e o sonho
de união entre Cabo Verde e a Guiné Bissau desapareceu para sempre. Na sequência
destes acontecimentos, o braço cabo-verdiano do PAIGC fundou o Partido Africano
para a Independência de Cabo Verde (PAICV), momento que assinalou o início do
desenvolvimento do país através da liberalização da sua economia e abertura ao mundo.
22 Amílcar Cabral (1924 – 1973), político guineense, fundou o Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC) em 1956. Licenciou-se em
Agronomia em 1948, em Lisboa, onde colaborou na implantação do Centro de Estudos Africanos. Morreu assassinado em Janeiro de 1973, em Conacri, sem ter assistido
à independência de Cabo Verde e da Guiné Bissau.
23 Nino Vieira (1939 – 2009), guerrilheiro, político e general guineense, foi militante do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC),
juntamente com Amílcar Cabral e Aristides Pereira. Apesar de ter tido a honra de ler a proclamação da independência da República da Guiné-Bissau, em Setembro de 1973,
o chefe de Estado eleito foi Luís Cabral, irmão de Amílcar Cabral. Em Novembro de 1980, tornou-se presidente do Conselho da Revolução, ao desencadear um golpe contra
o presidente Luís Cabral. Depois de ter sido destituído do cargo e após vários anos no exílio, concorreu às eleições presidenciais de 2005 e tornou-se de novo o presidente
da Guiné-Bissau. Foi assassinado em Março de 2009 por militares rebeldes.
24 Luís Cabral (1931 – 2009) foi um dos fundadores do Partido Africano para a Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde (PAIGC), juntamente com o irmão, Amílcar
Cabral, e com Aristides Pereira. Em 1973, assumiu a chefia do partido e ocupou, em simultâneo, o cargo de presidente do Conselho de Estado da República da GuinéBissau até 1980, altura em que foi deposto em virtude de um golpe de Estado.
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Carlos Pereira
Através da cooperação internacional e de uma ampla participação da sociedade caboverdiana, assistiu-se a um importante programa de plantações florestais que cobriu
quase a totalidade do arquipélago, no qual Carlos também participou. As campanhas
para restaurar os ecossistemas através de trabalhos de reflorestação e de conservação
de solos e águas eram promovidas pelo Ministério da Agricultura, mas abertas a todos
os trabalhadores dos outros ministérios do País que quisessem participar. Carlos esteve
envolvido no programa de voluntariado durante os anos de 1980 e 1981, na Ilha de
Santiago, onde ajudou à construção de várias obras de engenharia agrícola, entre os
quais os socalcos que seguravam as águas das chuvas e impediam que as terras aráveis
fossem arrastadas para o mar.
Animado e imbuído de um espírito fraterno, fiscalizou obras, deu formação
profissional aos quadros dos ministérios, transmitiu os seus conhecimentos para a
tarefa da reconstrução nacional para que a dependência destes fosse cada vez menor
em relação aos países cooperantes.
Apesar dos obstáculos, das dificuldades do País, dos poucos recursos existentes,
dos materiais de construção que chegavam a conta-gotas, Carlos não desaminava e
empenhava-se para que as tarefas planeadas fossem executadas. As relações de amizade
que construiu com os técnicos cabo-verdianos e a boa-vontade destes atenuavam as
agruras do trabalho. Rapazes novos, inteligentes, cheios de entusiasmo por participarem
em tal nobre tarefa de reconstrução do país, eram de uma dedicação exemplar. A
tarefa era gigantesca. Os dias de trabalho eram extenuantes para todos, inclusive para
Carlos que se atirava com gosto, tanto para trabalhos de acompanhamento de obras,
no campo, como para o trabalho mais minucioso de projecto no gabinete.
Carlos foi dirigir a equipa de cooperantes portugueses, constituída por arquitectos,
desenhadores e engenheiros, todos mais velhos do que ele, na casa dos quarenta e
muitos. Foi escolhido com o aval de Ângelo Correia25, engenheiro de formação, e
na altura, administrador da CIPRO, mas contra a opinião do arquitecto Manuel
Salgado26, também ele administrador da CIPRO, «que queria ter dado a direcção a um
dos seus amigos arquitectos que faziam parte da equipa».
Arquitectos e engenheiros quase sempre trabalharam em campos opostos, é histórica a
rivalidade entre as duas classes profissionais. Os arquitectos entendiam a determinação
e a confiança de Carlos como uma afronta, mostrando muitas dificuldades em aceitar
25 Ângelo Correia, político e governante português. Apesar de ser formado em Engenharia no Instituto Superior Técnico, desenvolveu toda a sua carreira na área da gestão.
Amigo de Francisco Sá Carneiro foi também um dos fundadores do Partido Popular Democrático (PPD), em Maio de 1974.
26 Manuel Salgado, arquiteto português, nasceu em 1941. Formou-se na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, em 1966. Recebeu vários prémios por projectos de
arquitectura. Desde 2007, é vereador do pelouro do Urbanismo e Planeamento Estratégico da Câmara Municipal de Lisboa.
Agarrar o destino com as duas mãos
as suas ordens. Ainda mais, quando o jovem engenheiro tinha apenas 33 anos. À
excepção do desenhista Manuel Carvalho com quem ainda hoje mantém laços de
amizade, todos os restantes arquitectos sentiram-se ultrapassados e passaram a ver
em Carlos um alvo a abater. Cerca de oito meses depois de ali terem chegado, os
arquitectos deram início a uma «guerra surda, com a cumplicidade do arquitecto
Manuel Salgado».
A Lisboa chegava a informação de que o director da delegação portuguesa da
CIPRO em Cabo Verde não tinha competências para exercer a sua função, era pouco
trabalhador, e passava o tempo ora na praia, ora a jogar ténis, ora a jogar bridge.
Carlos ignorava o que se passava.
Um dia, o presidente da CIPRO - o engenheiro Blanco Nogueira -, e o arquitecto
Manuel Salgado apareceram de surpresa na Cidade da Praia. Foram lá certificar-se do
que realmente estava a acontecer. Sem nada comunicarem, foram falar directamente
com o ministro das Obras Públicas de Cabo Verde que para espanto dos dois
portugueses, teceu rasgados elogios à competência, disponibilidade e brio profissional
de Carlos e críticas duras aos arquitectos e à restante equipa, por terem uma atitude
de pouco compromisso não só com Carlos, mas também com todo o projecto. «Isto
foi uma vitória retumbante. Para mim, aquele encontro representou o reconhecimento
válido do meu trabalho e das minhas competências profissionais. Uma espécie de
tribunal onde todas as dúvidas se dissiparam».
Com a verdade reposta e defendida a dignidade pessoal e profissional, Carlos regressou
ainda mais confiante. Desde então, ficou a amizade com o Eng. Blanco Nogueira, o
homem que tinha ido a Cabo Verde para demiti-lo, mas que perante as evidências de
um excelente trabalho, ficou de mãos atadas e, de alguma forma, vexado. «Ele teria
perto de 70 anos e viu-se naquela situação ridícula. Passou a ver-me quase como um
filho, pois eu tinha apenas 33 anos, e sempre teve grande consideração pelas minhas
opiniões».
O espírito de grupo melhorou bastante, os arquitectos e os desenhadores «passaram a
andar mansinhos como cordeiros» e as tarefas mais difíceis foram ultrapassadas, sem
nunca mais questionarem a liderança. No entanto, Carlos nunca esqueceu que o seu
futuro profissional poderia ter ficado altamente comprometido, caso aquela tramóia
tivesse sido levada avante. A relação com Manuel Salgado ficou para sempre beliscada.
Quando o contrato de cooperação chegou ao fim, em 1982, Carlos regressou a Lisboa,
integrando os quadros da CIPRO como director comercial.
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Carlos Pereira
A paixão pela rádio e o Pão com Chouriço
Os “papos-secos” surgiram às mãos de Carlos, de Manuel Lopes, engenheiro, e
de Sérgio Ribeiro27, economista e representante da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), em Cabo Verde. Divertidos, mordazes, cáusticos, brilhantes, criaram
o “Pão com Chouriço”, um programa radiofónico que pretendia animar e aconchegar
os portugueses cooperantes – “os chouriços” - que viviam em Cabo Verde. Semelhante
aos «Parodiantes de Lisboa», transmitido na Rádio Peninsular, o “Pão com Chouriço”
era uma forma de quebrar o isolamento e atenuar as saudades de casa (utilize o seu
smartphone e leia o QRCode na página ao lado).
Irreverentes, os “papos-secos” abordavam de forma pouco ortodoxa os temas políticos,
sociais e morais da sociedade portuguesa, recorrendo a piadas complexas e revelando
um absoluto domínio da língua portuguesa, desde Gil Vicente a Camões. Na verdade,
os três funcionavam como uma elite culta e informada, um pólo cultural português
no meio da sociedade cabo-verdiana. Não poderia haver mais sabor nacional que os
nomes “papos-secos” e “pão com chouriço”.
Carlos era o autor dos textos humorísticos que faziam sorrir quem os ouvia. Sem
orçamento, improvisavam os sons, com cadeiras, com copos e até mesmo com o corpo.
Os programas, com cerca de 30 minutos, contavam com diversas rubricas, como
entrevistas, notícias, discos pedidos, sempre conduzidos pelos divertidos locutores
“papos-secos”. «Fizemos vários programas. Nós pegávamos em músicas antigas, por
exemplo, a canção da Beatriz Costa “Agulha e dedal” ou a do “Santo António” do
filme Pátio das Cantigas e construíamos versos novos sobre as figuras portuguesas
que estavam em Cabo Verde. O Coronel Moura que foi dirigir a Empresa Pública de
Abastecimento (EMPA) foi uma das nossas vítimas. Eu cantava e o Manuel tocava.
Era divertidíssimo».
Depois de terminarem o programa, reuniam os amigos mais chegados em casa e,
num ambiento íntimo, repleto de energia e bom-humor, apresentavam a obra. É
claro que não havia quem não soltasse gargalhadas sinceras ao ouvir as biografias
das “vítimas”, bem caricaturadas, com recurso a uma linguagem que enfatizava as
características físicas e emocionais mais relevantes, a entrevista em “O Chouriço da
Semana”, “chouricionário – o dicionário dos chouriços, com as deliciosas explicações
do professor Efigénio Mariposa, ou a cómica novela “A Corte”, narrativa que se
desenrola na corte de D. Duarte, no século XVI, rábula feita com Duarte Vaz Pinto,
na altura o Embaixador de Portugal em Cabo Verde.
27 Sérgio Ribeiro – Economista e membro do Partido Comunista Português. Foi deputado no Parlamento Europeu entre 1994 e 1999.
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Carlos Pereira
Documentos de época desenvolvidos pelo Arqº. Sérgio Coelho
sobre o programa de rádio “Pão com Chouriço”
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Carlos Pereira
Os “papos-secos” divertiam-se a fazer o que mais gostavam: fazer rir. Escolhiam
as personagens e os ambientes e partiam para a criação dos textos. Depois do
levantamento das músicas que iriam utilizar, não descuravam os elementos da
linguagem radiofónica: os efeitos sonoros, o silêncio, nem mesmo a inflexão das vozes.
Cabo Verde assumia-se como o ambiente ideal para o nascimento de projectos artísticos
como o “Pão com Chouriço”, pois o arquipélago já havia sido muito inspirador em
termos culturais, com ecos que se perpetuaram no tempo. A cidade do Mindelo, na
Ilha de Santiago conheceu nos anos 30 um movimento literário, intitulado Claridade,
que marcou o início do modernismo cabo-verdiano. Foi um movimento intelectual
que dava relevo à cultura nacional e tinha como principais representantes os escritores
Baltasar Lopes, Manuel Lopes, António Aurélio Gonçalves, Teixeira de Souza e
Gabriel Mariano. Do ponto de vista literário, o movimento procurou afastar-se do
cânone português, dando mais relevo à consciência coletiva cabo-verdiana e outros
elementos culturais sufocados pelo colonialismo português.
Estes filhos da terra formavam um grupo de elite, eram jovens esclarecidos que atentos
à miséria, à fome, ao sofrimento manifestado pelo povo da Ilha, denunciavam a
desastrosa administração portuguesa, durante o regime fascista de António de Oliveira
Salazar. Em 1936 e muito silenciosamente por causa da PIDE, o grupo lançou a
revista Claridade, uma espécie de farol que teria a missão de iluminar a sociedade
cabo-verdiana através do conhecimento científico e da cultura.
Os três anos que passou em Cabo Verde, Carlos viveu-os como momentos de profunda
amizade à terra. As memórias daquela África guardou-as no coração e, mais tarde,
compilou-as num conjunto de crónicas intituladas “Tons Tropicais”, publicadas uns
anos mais tarde na revista SOL, quando regressou ao continente africano. Em Lisboa,
o “Pão com Chouriço” deu lugar ao “Coiso” - outro programa de rádio idealizado
por Carlos, gravado em cassete -, que procurava manter a salvo o espírito de amizade
e de fraternidade de todo aquele grupo de desenraizados que um dia se cruzou em
Cabo Verde (utilize o seu smartphone e leia o QRCode 1 na página do lado). Foi
igualmente imbuído deste espírito que Carlos realizou o filme “A Pátria” (utilize o seu
smartphone e leia o QRCode 2 na página do lado).
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QRCode 1
QRCode 2
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Carlos Pereira
Documentos de época desenvolvidos por CP
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Agarrar o destino com as duas mãos
“Nós pegávamos
em músicas antigas,
por exemplo, a canção
da Beatriz Costa
“Agulha e Dedal”...
e construíamos versos
novos sobre as figuras
portuguesas que
estavam em Cabo
Verde. Eu cantava
e o Manuel tocava.
Era divertidíssimo .”
Carlos Pereira sobre o programa
de rádio “Pão com Chouriço”
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CEE
A
EA
DOS
RECON
VERSAo
MATADOUROS
A CEE e a reconversão dos matadouros
Os dias começavam cedo para Carlos. À saída do carro, estacionado por volta das sete
da manhã à porta de edifícios, normalmente mal tratados, uma mistura de sons e odores
pútridos despertavam-lhe os sentidos. Lá dentro, o chão manchado de sangue e cheio
de dejectos de animais uniam-se numa harmonia capaz de causar náuseas. O mugido
dos bois e das vacas, frenético, ofegante, denunciava o sofrimento. Gritavam de dor
a cada golpe cruel que lhes era desferido violentamente na parte superior do crânio.
O gesto era repetido sucessivamente até o animal já não ter forças para espernear
e cair inconsciente. Era este o cenário que Carlos assistia diariamente quando, de
Norte a Sul do País, visitou pequenas explorações de produção e de matança de gado
ungulado28 e cavalos.
Carlos regressou de Cabo Verde em 1982 e era agora diretor comercial ao serviço da
CIPRO, encarregue de visitar os matadouros portugueses que deveriam adaptar os
seus estabelecimentos aos desígnios das normas europeias. Portugal acelerava a sua
integração na Comunidade Económica Europeia (CEE) - tinha apresentado a sua
candidatura de adesão a 28 de Março de 1977 e assinado o acordo de pré-adesão a 3
de Dezembro de 1980. A adesão oficial estaria para breve – 1 de Janeiro de 1986 -, mas
o País teria que fazer antecipadamente um esforço de preparação para o momento de
adesão à CEE.
A CEE impunha directivas no domínio legislativo que abrangiam diversos sectores,
desde o económico, passando pelo fiscal, energia, ambiente e agro-alimentar.
Algumas dessas normas estavam directamente relacionadas com uma nova legislação
comunitária que deveria disciplinar o abate de animais para consumo e definir as
condições da criação de uma rede nacional de abate.
Na altura, não havia muitos técnicos em Portugal com conhecimento especializado
na concepção de matadouros que respeitassem as normas europeias, mas Carlos,
sempre sedento de conhecimento, ofereceu-se para frequentar um curso de
formação –nas instalações da Bureau Smith - em Bruxelas, com a duração de um
mês, como representante da CIPRO. O curso habilitaria a CIPRO, enquanto empresa
de consultadoria de projectos em desenvolvimento, a participar nos projectos que
visavam a transformação dos matadouros municipais. «O programa onde eu participei
chamava-se Reconversão da Rede Nacional de Abate e a CIPRO desenvolveu uma
quantidade de projectos ligados a isto». De facto com a entrada de Portugal na então
CEE, um dos sectores em que o País se encontrava com maior atraso era justamente
o sector pecuário. As unidades de criação e transformação da carne eram não só
de dimensão muito reduzida, como apresentavam condições gerais hígio-sanitárias
28 Animal que tem unhas.
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Carlos Pereira
Carlos Pereira na Conferência
sobre o sector da carne em Portugal
A CEE e a reconversão dos matadouros
muito deficientes, para não dizer completamente inapropriadas e desajustadas à
transformação de produtos para consumo humano. A Administração da CIPRO viu
neste nicho de mercado uma possibilidade a explorar e eu acabei por ser o único
técnico daquela Empresa a disponibilizar-me para avançar com a formação nesta
área».
Quando regressou da Bélgica, Carlos sabia tudo sobre matadouros industriais,
concebidos de acordo com as mais avançadas tecnologias e rigorosas regras hígiosanitárias. O conhecimento que adquiriu no estrangeiro contrastava com a dura
realidade portuguesa, principalmente com as pequenas explorações no interior do
País. Os trabalhadores dos matadouros, homens com pouca escolaridade, encardidos
de sangue até aos ossos, não usavam qualquer tipo de protecção. Nem máscaras, nem
óculos, nem luvas. Nada. Os únicos instrumentos de trabalho eram a sua força de
braços e as facas bem afiadas e pouco higiénicas. Para estes homens, o trabalho no
matadouro era a única fonte de rendimento que servia para sustentar as famílias.
Em Portugal, a política pecuária conheceu um desenvolvimento bastante lento.
Durante os anos 50, antes da indústria do frio, o abate dos suínos era praticado apenas
durante o Inverno por causa da conservação da carne. Os locais de produção dos
animais ficavam relativamente perto dos matadouros, pois não existiam camiões com
câmaras frigoríficas, o que tornava impossível o transporte de carne fresca a longas
distâncias. Para evitar o encarecimento do comércio da carne, as despesas de transporte
deveriam ser encurtadas, razão pelo qual os matadouros se situavam nas proximidades
dos grandes centros. Os matadouros particulares careciam de fiscalização, não havia
limpeza nos estabelecimentos e os bocados de carne que sobravam, quando não eram
levados para casa por algum dos trabalhadores, apodreciam a céu aberto.
Apesar de insuficientes, os anos 70 trouxeram algumas melhorias ao nível da política
pecuária. Foi decretada a criação da Rede Nacional de Abate e a Rede Nacional de
Recolha de Gado, cujo objetivo era promover as condições da estrutura nacional de
matança dos animais, bem como da sua comercialização. As regras de funcionamento
do matadouro já exigiam que os utentes e os funcionários seguissem as regras de
identificação, da marcação dos animais e da utilização das câmaras frigoríficas,
manifestando-se já na altura alguma preocupação relativa ao bem-estar animal e para
algumas regras de boas práticas de higiene pessoal que deveriam ser aplicadas nos
estabelecimentos.
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Carlos Pereira
Às portas da adesão de Portugal na CEE, o Decreto-Lei n.º 304/84 decretou que
os matadouros sob jurisdição da Junta Nacional dos Produtos Pecuários deveriam
passar a funcionar como matadouros da Rede Nacional de Abate de modo a reduzir
a quantidade de matadouros existentes a nível nacional. A criação desta rede de
matadouros tinha dois objectivos principais: assegurar um serviço público de abate
de qualidade e, progressivamente, acabar com as antigas casas de matança e com
os matadouros que então proliferavam pelo País, muitos deles a funcionar em
graves condições de higiene. Era, pois, urgente disciplinar determinadas práticas de
higiene no que respeitava ao abate de animais para consumo público e modernizar as
infraestruturas de abate. Por falta de condições hígio-sanitárias e infraestruturas que
correspondessem aos requisitos impostos, o decreto obrigou pequenas unidades de
produção a reorganizarem-se ou a fecharem forçosamente.
Ao serviço da CIPRO, Carlos procurava sensibilizar os produtores, industriais e
comerciantes de carnes para a importância das condições sanitárias no processo de abate
para que pudessem obter ou manter o licenciamento de abate. As visitas nem sempre
eram fáceis já que muitos dos comerciantes e agricultores se manifestavam contra o
modo como a Junta Nacional dos Produtos Pecuários pretendia aplicar a nova legislação,
receando, ao mesmo tempo, o encerramento dos matadouros públicos e o possível
monopólio dos privados. «Os pequenos produtores olhavam para esta transformação
de forma muito desconfiada, porque sentiam que, à semelhança de outras situações
já anteriormente registadas no sector primário, corriam o risco de ficar nas mãos dos
produtores de maior dimensão e sem capacidade para poderem continuar a produzir os
seus próprios produtos, sobretudo no que se referia à salsicharia»
Muitas das pequenas unidades de produção fecharam, uma vez que os custos
de adaptação às normas comunitárias eram insuportáveis para a maior parte dos
industriais, mantendo-se apenas abertas as empresas que se consideraram ter estrutura
e capacidade para enfrentar as oscilações de mercado e a forte concorrência interna
e externa. Os produtores confiavam nos pareceres do engenheiro que executava
os planos de reconversão dos matadouros com minúcia. «Normalmente após uma
primeira visita aos locais, e depois do primeiro contacto com estes produtores,
estabelecia-se uma base de confiança, seja pela forma como, muitas vezes, se baixavam
expectativas, tornando-as realistas, seja desmistificando medos e receios que, de
forma generalizada, assaltava este conjunto de pequenos industriais demasiadamente
traumatizados por experiências anteriores, sobretudo sempre que se envolviam
entidades bancárias necessárias para avançar com os projectos de reconversão, pelo
menos no que respeitava à necessidade de mobilização inicial dos fundos próprios».
A CEE e a reconversão dos matadouros
Carlos Pereira, ILADAP na conferência
sobre cooperação europeia
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Carlos Pereira
A CEE e a reconversão dos matadouros
“A palavra que
define o Carlos
é inovação, está
sempre pronto para
fazer algo que
ninguém está
à espera. Com
determinação
em chegar onde
pensou chegar”
Pedro Oliveira
O amigo Director Criativo
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Carlos Pereira
As novas infraestruturas deveriam respeitar todas as condições de higiene e segurança
necessárias ao abate de gado ungulado. Os animais deveriam ser abatidos de forma
rápida e indolor através de uma pistola de ar comprimido, deveria haver uma separação
entre a zona limpa e suja, o animal vivo depois de recepcionado deveria fazer um
trajecto progressivo e contínuo sem possibilidades de retorno e sem cruzamentos com
outros animais vivos ou carcaças, deveriam existir instalações para o atordoamento,
sangria e esfola do animal, Instalações frigoríficas para refrigeração e conservação de
carcaças e miudezas, Instalações separadas para lavagem e desinfecção de veículos,
consoante se destinassem ao transporte de gado ou de carnes e tantos outros requisitos.
A livre circulação de géneros alimentícios constituía uma condição fundamental para
a manutenção do mercado interno da CEE e este princípio requeria confiança na
segurança dos géneros alimentícios destinados ao consumo humano, colocados em
livre circulação. As instalações deveriam ser mantidas limpas e construídas de forma
a permitir uma limpeza e desinfecção eficazes, evitando-se a acumulação de sujidades
e a contaminação por via atmosférica. O receio de um surto epidémico provocado
por um matadouro municipal que não reunisse as condições sanitárias e as medidas
higiénicas vigentes criava um verdadeiro estado de alerta, levando a um controlo
absoluto desde a produção até ao transporte e abate dos animais, e ainda durante o
arrefecimento, armazenamento e transporte das carcaças e vísceras.
A relação de amizade e de confiança que mantinha com pequenos produtores de gado
estendeu-se para além da CIPRO, de onde saiu em 1985, quando nos corredores da
empresa se começou a falar em privatização. A CIPRO era detida pelo Instituto de
Participações do Estado (IPE) que era detentor de duas grandes empresas de projecto
– A PROFABRIL do grupo CUF, que empregava cerca de 700 pessoas, e CIPRO
do grupo Borges e Irmão, bastante menor, com apenas 40 trabalhadores. Temendo
que a CIPRO pudesse ser extinta dadas as suas reduzidas dimensões em comparação
com a PROFABRIL, Carlos tratou de negociar uma pequena indemnização e sair por
vontade própria.
Disponível no mercado de trabalho e detentor de todo um conhecimento sobre a Rede
Nacional de Abate e a respectiva reconversão que se exigia, o seu nome era conhecido
no sector agro-alimentar e pecuária, entre pequenos e grandes produtores de gado.
Não teve dificuldade em encontrar emprego. Depois de algumas conversas, aceitou o
convite do seu colega de curso, Lobato Miranda, engenheiro e dono da Estudocivil,
para trabalhar nesta empresa de consultadoria que também desenvolvia projectos na
área agro-alimentar, designadamente, reconversão de matadouros. Foram mais dois
A CEE e a reconversão dos matadouros
anos dedicados ao desenvolvimento de salas de matadouro e de desmancha de carnes.
Trabalhou de perto em projectos de grandes dimensões, como foi o caso das empresas
Saturnino Projecto e Belgados - Sociedade de Gado, onde foi responsável pelas fases
de concepção planeamento e realização de novas infraestruturas de produção e abate
de animais.
A cooperação em Marrocos
Com a adesão do país à Comunidade Económica Europeia, colocou-se um duplo
desafio aos portugueses: o de aprofundarem a sua identidade nacional, mas também o
de fazerem a abertura para o exterior. A evolução do mundo árabe exigia que Portugal
acompanhasse os esforços para reforçar a cooperação na área do Mediterrâneo, em
especial com os países do Magrebe. O objectivo principal desse esforço seria o de
contribuir para o crescimento das economias mediterrânicas mais necessitadas e
para o seu desenvolvimento social, através de uma cooperação global entre o Estado
português, empresários privados e as Organizações Não Governamentais (ONG).
Foi através do Instituto Luso-Africano para o Desenvolvimento e Actividades da
População (ILADAP), uma organização não governamental, que Carlos participou de
uma missão em Casablanca, em Marrocos, onde esteve uma semana, juntamente com
outros empresários portugueses, a preparar um concurso para a construção de um
porto de pesca. À proximidade geográfica, procurava-se estreitar as relações políticas
e culturais através da dinamização do diálogo entre portugueses e marroquinos.
Corria o ano de 1984 e Carlos tinha um vasto conhecimento sobre engenharia costeira
e portuária, obras marítimas e estaleiros que havia adquirido nos tempos da Consulmar.
Foi uma altura muito intensa e desgastante em termos profissionais, pois ora dava
apoio aos matadouros, ora dedicava-se ao projecto e fiscalização de portos de pesca.
«Foi uma fase de afirmação praticamente como freelancer, o que me levou a aceitar
missões para Marrocos, Angola, Costa do Marfim, entre outros países, bem como a
envolver-me como especialista de entidades bancárias internacionais, nomeadamente,
o Banco Mundial, o Banco Africano de Desenvolvimento e a CEE».
Quando pôs os pés na outra margem do Mediterrâneo, não se deixou dominar pelo
choque. Marrocos era um país marcado pela pobreza e de profundas desigualdades
na distribuição da riqueza, mas de uma musicalidade e magia singulares. Aterrou
em Casablanca, cidade portuária e industrial, detentora do maior porto do Norte da
África. Uma mistura de línguas – árabe, francês e espanhol – apoderava-se das ruas
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Carlos Pereira
sujas e acinzentadas que ficavam ainda mais enegrecidas com os prédios degradados e
abandonados. Excepção feita aos edifícios de arquitectura decô, herança da passagem
dos franceses, que preservavam alguma dignidade. A paisagem árida e seca, salpicada
de oliveiras e figueiras, fazia-lhe lembrar-se do Alentejo. Carlos explorou a Velha
Medina, os mercados tradicionais de joias, roupas e especiarias e as grandes avenidas
de figueiras e palmeiras, cercadas de flores. Aquela identidade árabe-muçulmana eralhe familiar. Afinal, tinha vivido toda a sua vida em Alfama, onde a herança daquele
património está bastante presente.
Foi uma semana de trabalho intensivo. Além de Carlos, faziam parte da equipa um
engenheiro francês, especialista em barcos, um dinamarquês, especialista em capturas,
um inglês especialista em técnicas de pescado e um serra leonês, chefe da missão e
representante do banco africano. Juntos, elaboraram diversos estudos sobre o porto
de pesca, projectaram a instalação de diversos equipamentos e redigiram um relatório
com vista ao aumento de receitas daquele interposto comercial, uma vez que o
potencial de desenvolvimento económico para a população, para o estabelecimento de
indústrias e para o comércio da cidade era uma realidade ainda por explorar.
Ao final da tarde, depois do trabalho, Carlos sentava-se na esplanada de um café para
beber um chá de hortelã e observar o movimento da cidade. Ficava pasmado com a
capacidade dos engraxadores e dos encantadores de cobras para entreter os turistas.
Gostava de ver os homens e as mulheres a passear na rua com as suas vestes longas e
coloridas, exóticas. Às vezes deambulava por ruas mais labirínticas para sentir a doce
sensação de impotência, de desnorte, ao tentar ler os letreiros da cidade com aquela
caligrafia perfeita e indecifrável. Como é possível estar geograficamente tão perto de
Portugal e ao mesmo tempo culturalmente tão distante, pensava muitas vezes.
Católico cristão, tolerante em relações a todas as crenças, teve a oportunidade de viver
de perto o pico da cultura islâmica. A cidade iniciaria o Ramadão, o nono mês lunar
do calendário islâmico, no dia seguinte ao seu regresso a Lisboa. Carlos assistiu a um
momento único e inesquecível da devoção de um povo. As mesquitas conheciam um
autêntico frenesim, com os crentes ansiosos das suas orações, num fervor religioso.
Às cinco orações diárias acrescentavam mais uma, a nocturna. Período de renovação
da fé, os habitantes de Casablanca praticavam ainda com mais intensidade os valores
da vida familiar, os valores sagrados e a leitura mais assídua do Alcorão. Praticavam o
jejum durante todo o mês, do alvorecer ao pôr-do-sol, uma espécie de cura dos vícios
do dia-a-dia.
A CEE e a reconversão dos matadouros
À hora certa, as pessoas oravam no meio da rua, nas estações de autocarro. Apesar de se
venderem comidas e bebidas, não se via ninguém a comer ou beber. Quando chegava
o final da tarde, por volta das cinco da tarde, os serviços administrativos e todos os
serviços públicos fechavam e era ver os muçulmanos correrem para as padarias e
mercearias, lojas de fruta e legumes para comprarem e prepararem a refeição que
punha fim ao jejum. A partir das sete da tarde, já as ruas estavam desertas, com as
famílias reunidas em casa. A última refeição acontecia por volta das quatro e meia da
manhã, o pequeno-almoço, e que dava início a mais um dia de jejum.
Amáveis, as relações de amizade com os marroquinos foram muito fáceis. E foi
imbuído deste espírito de convívio que Carlos e a restante equipa aceitaram almoçar
na véspera do Ramadão, em casa do parceiro marroquino que se dizia descendente,
em 37ª geração do profeta Maomé. Foi um momento memorável. Quatro engenheiros
europeus e um africano entravam na casa branca e imaculada de um árabe, deixando
os sapatos na porta da entrada. Como estavam na véspera do início do Ramadão,
foram convidados para uma refeição a meio do dia. A generosidade e fartura à mesa
ditam as regras da hospitalidade árabe. O chão da sala estava coberto de tapetes
coloridos e as paredes decoradas com alguns quadros onde se podiam ler alguns
versículos do alcorão. Os homens sentaram-se no chão, em cima de almofadas, à volta
de uma mesa redonda muito baixa. Antes de começarem a comer e num gesto de
purificação, mergulharam as mãos numa jarra com água e sabonete, estrategicamente
colocada junto à mesa para que pudessem alcançá-la sem se levantarem. A mulher do
marroquino, com a cabeça protegida por um fino lenço de seda e sempre cabisbaixa,
não se juntou à refeição. Estava ali apenas para servir. Quando saía da sala nunca
virava as costas, em sinal de respeito aos homens. A comida foi apresentada num
enorme prato redondo de metal: carne de cabra assada com cuscuz, acompanhado
de leite azedo. Numa outra travessa, legumes e frutas secas que ajudavam a recuperar
as energias para o início de um jejum de longas horas, durante todo um mês. Aquela
refeição tradicional árabe era de um intenso arco-íris de cores e de sabores e de um
aroma agridoce. Comeram com os dedos, sem talheres, apenas com a ajuda de um pão
quente achatado, parecido com uma panqueca. Estava tudo delicioso. Seria a última
refeição antes de seguirem para o aeroporto com destino a Lisboa. Despediram-se do
árabe e da mulher dele com um adeus apressado.
Mal chegaram ao aeroporto, os cinco engenheiros despacharam as malas, mas no
meio de tanta agitação, pessoas a chegar, outras a partir, perderam a noção do tempo.
Quando passaram a porta de embarque e já quase a chegar à manga do avião, o
desapontamento tomou-lhes conta do rosto quando, das enormes janelas da sala de
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Carlos Pereira
espera, avistaram o avião levantar voo e partir. Tinham acabado de perder o voo, com
as malas a bordo.
Só com a roupa do corpo e com algum dinheiro na carteira, arquitectaram um plano
para sair de Casablanca. Era urgente sair de lá o quanto antes. Era já sexta-feira e no
domingo à noite, os cincos engenheiros embarcariam numa outra missão. Partiriam de
Lisboa para Luanda, com posterior estadia de cerca de um mês em Abidjan, na Costa
do Marfim, ao serviço do Banco Africano de Desenvolvimento.
Alugaram um carro em Casablanca e lá foram os cinco pela estrada fora até Tanger, com
o conta-quilómetros quase a disparar. As estradas eram feitas de terra, empoeiradas,
cheias de curva à direita e à esquerda. Quando o dia deu lugar à noite, instalou-se uma
escuridão absoluta. Não havia electricidade nas estradas. A viagem complicou ainda
mais quando se aperceberam que cabras e camelos tinham um péssimo hábito de se
atravessarem no caminho. Levaram cerca de catorze horas para fazer 700 quilómetros.
Saíram de Casablanca às seis da tarde e só chegaram Tanger no dia seguinte, já de
manhã.
Ficaram encantados com aquela cidade vibrante e misteriosa, rendidos à mistura das
culturas marroquina, europeia e africana. Havia uma multidão em Tanger. Pessoas que
vinham de todos os lugares, que não resistiam à beleza dos tradicionais bazares, dos
encantadores de serpentes e das muitas mesquitas que decoram a cidade. Consultaram
os horários do ferryboat que os levaria para Gibraltar, mas depressa concluíram que
o melhor seria viajar de avião, onde poderiam, ao menos, descansar por algum tempo.
Por sorte, conseguiram bilhetes para Madrid com ligação a Lisboa através da Ibéria.
Mas outro infortúnio estava prestes a acontecer. O avião da Ibéria partiu de Tanger
com meia hora de atraso e quando chegaram a Madrid já tinham perdido a ligação
para Lisboa. «Só conseguimos lugar no voo da manhã seguinte, já domingo ao meiodia e nessa mesma noite, embarcámos para Luanda», recorda.
Felizmente, não houve mais atrasos e a viagem correu conforme estava prevista.
Permaneceram três dias em Luanda, em diversas reuniões do Ministério das Pescas.
Ao trabalho de engenharia, Carlos acrescentou ainda os seus dotes de tradutor.
Uma vez que a missão era em francês, tinha que traduzir tudo o que era dito em
francês para inglês e português e vice-versa. Seguiram de Luanda para Abidjan, na
Costa do Marfim, onde ficaram mais três semanas e meia a fazer o relatório final da
missão, na sede do Banco Africano de Desenvolvimento. «Abidjan era considerada,
A CEE e a reconversão dos matadouros
na época, a Veneza de África. Com uma forte influência francesa, dispunha de uma
vida cosmopolita absolutamente inimaginável, sobretudo para uma cidade africana
subsaariana. As ofertas hoteleira e de restauração eram absolutamente únicas.
Lembro-me de descobrir um restaurante no centro da cidade, relativamente próximo
do Hotel Hilton onde ficámos hospedados, cuja cozinha era de tradição vietnamita.
E eu, que durante a minha estada em Cabo Verde, tinha tomado contacto e tinha
ficado conquistado, com este tipo de comida – por intermédio de um casal francês
– aliás, com nome de família bem curioso pois eram, nem mais nem menos, que os
Bidés… tal e qual! Claude e Jacqueline Bidet! - que tinham estado pela cooperação
francesa a viver, alguns anos antes, no Vietnam, e onde a Jacqueline, que era uma
cozinheira fantástica, tinha aprendido a elaboração de várias iguarias da gastronomia
vietnamita -, fiquei evidentemente encantado com a descoberta. Recordo-me muito
bem de, nas noites das nossas partidas de bridge em casa dos Bidés, a Jacqueline
muitas vezes nos surpreender com os seus inesquecíveis nem’s - espécie de croquetes
que se degustam envolvidos numa folha de alface e mergulhados num molho também
vietnamita, resultante da secagem de peixe salgado ao sol. E assim, durante o período
que estivemos em Abidjan, quase dia sim, dia não íamos jantar a esse restaurante, não
dispensando nunca os famosos e deliciosos nem’s, que me recordavam momentos
passados alguns tempos atrás».
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7
O Eng e
nheiro
DOS
NEGÓCIO
EO
SABÕES
O engenheiro e o negócio dos sabões
Portugal estava a mudar. O país pobre, rural e iletrado, saído recentemente de um
processo revolucionário e que durante largos anos dependeu economicamente das
remessas de emigrantes e das colónias africanas, abraçava um novo projecto de
economia de mercado com prenúncios de um futuro de progresso e de modernidade.
A adesão à CEE significou para os portugueses a identificação com uma sociedade
mais aberta e democrática, uma sociedade de bem-estar, no qual as famílias viram
a sua disponibilidade financeira aumentar. O aparecimento de uma classe média
com um poder de compra nunca antes visto potenciou de forma determinante
o aparecimento de um tipo de comércio integrado que revolucionou os hábitos
de consumo dos portugueses. Foi neste contexto de crescimento que nasceram os
primeiros grandes centros comerciais urbanos - espaço privilegiado para as marcas
nacionais e internacionais se fixarem -, e os primeiros hipermercados na periferia das
principais cidades.
Depois de dois acordos com o Fundo Monetário Internacional - o primeiro em 1978
e o segundo em 1983 -, Portugal procurava um reequilíbrio das contas externas, ao
mesmo tempo em que apostava numa política expansionista interna. A conjuntura
de expansão económica que se prolongou no País entre 1986 e 1992, os processos
de liberalização e de reprivatizações com vista a adaptar a economia portuguesa às
normas comunitárias e ainda fluxos financeiros provenientes da União Europeia,
foram determinantes para o aparecimento de empresas de capital estrangeiro.29
Foi o caso da Camp, S.A, empresa catalã, de origem familiar, que em 1986 abriu
uma sucursal em Lisboa denominada Camp Portugal. Era uma empresa de produtos
químicos, sabões e sabonetes, mas o grande negócio eram os detergentes para roupa e
para loiça. Fundada em 1934, em Granollers, por Joseph Camp e os seus seis irmãos,
como uma pequena fábrica de sabão, a empresa tornou-se líder de mercado, em
1954, ao lançar o produto Elena, o primeiro sabão em pó. Após anos de investigação
intensiva e depois de manter a liderança no mercado interno, a empresa mostrou-se determinada em conquistar os mercados estrangeiros, em particular o mercado
africano. Mas uma vez escassos os contactos entre Espanha e África, Portugal assumia-se como a plataforma ideal para se estabelecer essa rede.
Trabalhava na Camp Portugal António de Jesus, antigo contabilista da CIPRO que,
estando a par dos planos de internacionalização da empresa, sugeriu à administração
catalã o nome de Carlos para ser o facilitador dos negócios com África. Os irmãos
Camp concordaram com a sugestão e pediram a António de Jesus que entrasse em
contacto com o engenheiro.
29 Aurízia Anica, Transformações na sociedade portuguesa e integração na CEE, Escola Superior de Educação da Universidade do Algarve, Faro, 1997.
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186
Carlos Pereira
Carlos continuava na empresa Estudocivil, mas curioso com a conversa de António
de Jesus, decidiu falar com a administração da Camp, em Barcelona. Foi recebido por
José Serra, director financeiro do grupo e homem de confiança da administração que,
num acto de transparência, próprio dos grandes profissionais, logo pôs as cartas em
cima da mesa. O objectivo da empresa era procurar expandir o negócio em África e
criar uma parceria na zona de África ocidental, nomeadamente no Senegal, Costa do
Marfim, Guiné Conacri, Guiné Bissau e Cabo Verde. Carlos ficou a reportar ao seu
controler directo – Antoni Pons – que o viria a acompanhar em algumas das deslocações
que, mais tarde, viriam a realizar a África.
Aquele tipo de negócios poderia ser viável, especialmente em Cabo Verde. Mais uma
vez, a privilegiada localização geográfica, as infraestruturas portuárias o clima de
estabilidade e segurança que oferecia catapultava este país para um lugar de destaque
no que tocava a parcerias. Além disso, era o país mais desenvolvido e mais estável do
ponto de vista político e com os índices de corrupção mais baixos de toda a África.
Cabo Verde foi sempre reconhecido pela comunidade internacional como sendo um
país de transparência excepcional. Aliás, ainda hoje é considerado como um dos países
de África onde o apoio financeiro ao desenvolvimento tem tido melhor aproveitamento.
As relações entre Cabo Verde e o Banco Mundial e outras instituições financeiras
como o Fundo Monetário Internacional pautam-se por um conjunto de critérios que
se prendem com a boa governação e com o controlo das finanças públicas. Este tipo de
práticas dá confiança aos investidores privados que têm consciência que ao investirem
em Cabo Verde têm condições mais transparentes e menos complicadas do ponto de
vista financeiro.
Com a rede de contatos que já havia estabelecido em África, Carlos aceitou prestar
uma espécie de consultadoria a meio tempo para a Camp para pôr em prática as
aspirações da empresa e viabilizar o maior número de negócios possível. Assim, em
Janeiro de 1987, instalou-se num gabinete da Sucursal da CAMP em Portugal, no
centro de Lisboa – embora reportando directamente a Barcelona, aos escritórios
centrais da Empresa - e passado dois meses, deslocou-se a Cabo Verde já como assessor
internacional para África do grupo Camp para reunir com o ministro dos Negócios
Estrangeiros e com o ministro da Indústria de Cabo Verde. Das reuniões, resultou a
abertura para a criação de uma unidade de produção de sabão, no Mindelo, na Ilha
de São Vicente. Tal como Espanha usou Portugal para chegar ao mercado Africano,
o objetivo agora era usar Cabo Verde como plataforma para fornecer o mercado de
África Ocidental.
O engenheiro e o negócio dos sabões
Nestas novas funções, Carlos trabalhava diariamente fora dos escritórios da Sucursal
e, frequentemente, fora do País. Desconhecia, por isso, a generalidade dos problemas
que grassavam os corredores da Camp em Portugal. Assim, ficou naturalmente muito
surpreso quando um dia recebeu um telefonema de Barcelona da administração
da Camp a informá-lo que teria que ir com a máxima urgência a Barcelona. Ao
telefonema foi acrescida a proibição de comentar a dita viagem no escritório. Carlos
ficou intrigado, mas mais ainda quando chegou a casa e deparou-se com um bilhete de
avião em cima da mesa. O voo estava reservado para o dia seguinte, às sete da manhã.
Lá partiu.
À sua espera, para além do seu controler directo, Antoni Pons estavam o diretor
financeiro, José Serra, e o diretor-geral do grupo CAMP, Manuel de Luque, «um
homem fantástico, extraordinário, com uma visão de futuro invulgar», segundo Carlos.
A gravidade da situação na delegação de Portugal era bem maior do que aquela que
algum dia poderia ter imaginado. Embora naquela altura fosse prematuro afirmar o que
quer que fosse, havia suspeitas de um desfalque na empresa. Mas não era tudo. Como
as relações entre o português António de Jesus e o diretor-geral em Portugal, Jordi
Camp, neto do fundador, haviam azedado, a administração decidiu por unanimidade
dispensar os dois e convidar Carlos para director-geral.
O convite caiu que nem uma bomba nas mãos do engenheiro que desde que havia
saído de Portugal, no dia anterior, tinha sido constantemente bombardeado com
novidades inesperadas. «De início, não aceitei o convite. Achei que estava num filme!
Não percebia nada sobre detergentes e o meu conhecimento sobre grandes superfícies
era muito escasso, para não dizer nulo, a não ser como utente periódico. Não dominava
o assunto. “Mas os espanhóis insistiram e tranquilizaram-me quando me disseram que
iria ter todo o apoio internacional e que o Antoni Pons, o director internacional e a
quem eu já reportava nas questões de África, viajaria para Portugal quinzenalmente
para me dar apoio».
No dia seguinte, a comitiva composta por José Serra, Antoni Pons e Carlos viajou
para Lisboa. Quando entraram na Camp, já o antigo diretor-geral tinha abandonado
as instalações e viajado para Barcelona e António de Jesus estava a retirar as coisas
pessoais do gabinete para ir embora.
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Carlos Pereira
O engenheiro e o negócio dos sabões
“O Eng. Carlos
Pereira foi muito
importante para
o sucesso da Camp,
deu-lhes quota e
fez uma abertura de
mercado com equipas
de merchandising,
o que deu uma
alavancagem da Camp
no mercado e foi uma
grande mais-valia.”
Helena Gonçalves
A amiga secretária
de direcção da Camp
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Carlos Pereira
Carlos Pereira no lançamento
do amaciador Flor, no Porto
O engenheiro e o negócio dos sabões
Carlos foi apresentado aos colaboradores da Camp como o novo diretor-geral e a notícia
deixou toda a gente quase em estado de choque. «Aquelas pessoas que inicialmente
olhavam para mim e que sempre olharam para mim um bocado de esguelha e até com
algum ar de desprezo porque nunca perceberam muito bem o que é que eu estava ali
a fazer, ficaram estarrecidas».
Com a sua nova posição, ganhou muitos ódios de estimação. Não só porque era
considerado «o homem dos espanhóis», mas também porque foi usufruir de condições
verdadeiramente excepcionais. Tinha direito a residir numa moradia, em Cascais,
propriedade da empresa, direito a jardineiro, empregada doméstica, carro da empresa
– herdou o de Jordi Camp -, e dois excelentes salários, um pago pela Camp Portugal,
outro pela Camp em Espanha.
Mas o engenheiro fez por merecer cada centavo que ganhava. Apesar de a sua
formação nada ter que ver com vendas, ou com detergentes, ou com promoções no
supermercado, Carlos revelou de imediato uma atitude comercial muito activa e um
empenho constante que lhe garantiram excelentes resultados, deixando os restantes
colaboradores sem alternativa que não fosse mudar de opinião a seu respeito. Helena
Gonçalves, na altura secretária da Camp Portugal recorda-se da passagem de Carlos
pela empresa, como tendo sido de «uma grande mais-valia para a empresa», uma vez
que «o Eng. Carlos Pereira conseguiu alavancar a empresa para outro patamar ao abrir
quota de mercado com as equipas de merchandising que ele próprio criou».
Quando em Abril de 1987 subiu a diretor-geral, a quota de mercado da Camp no
sector dos detergentes rondava os 3%. O objectivo da empresa passava por ganhar
quota de mercado com o Colón, o produto-estrela comercializado para lavar roupa.
Era necessário competir com a líder de mercado, a Lever, que comercializava o
detergente preferido das donas de casa portuguesas, o Skip. Comercializado no País
desde 1966, o Skip foi o primeiro detergente para a lavagem mecânica de roupa. Foi
lançado em paralelo com o aparecimento das máquinas de lavar roupa e impôs-se
desde o início como a marca de referência.
As grandes superfícies caracterizam-se pelo investimento constante em marketing. A
oferta, num mesmo local, de uma vasta gama de produtos e a capacidade técnica e
financeira dos primeiros promotores, determina uma profunda mudança nos hábitos
de consumo dos portugueses e consequentemente da forma e dos espaços onde
consumem. A emergência desta indústria revelou ser o motor do desenvolvimento
comercial português nas últimas três décadas.
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Carlos Pereira
Carlos viajou de Norte a Sul do país para conhecer melhor as dinâmicas dos
hipermercados. Desde campanhas publicitárias, cheques de desconto, sorteios,
distribuição de amostras, degustações e promoções no ponto de venda, Carlos tomou
conhecimento das inúmeras ferramentas de comunicação e marketing que estão à
disposição nos hipermercados e que têm como objectivo seduzir os consumidores
para que efectuem a compra. Foram exatamente as promoções no ponto de venda que
lhe chamaram a atenção. Algo não corria bem. Notou que a presença das promotoras,
absolutamente fundamental no lançamento de novos produtos ou fidelização dos
mesmos, não acrescentava qualquer mais-valia à venda dos detergentes. A Camp
costumava subcontratar estas profissionais a empresas de recrutamento de trabalho
temporário que dispunham de equipas de raparigas dinâmicas e experientes,
vocacionadas para promoverem diversas marcas e produtos com a melhor simpatia.
Mas nem sempre a simpatia é suficiente para convencer um cliente. Carlos notou que
em termos de conhecimento e informação dos produtos promovidos, as jovens não
constituíam uma força de vendas, pois desconheciam as suas características principais.
«Apercebi-me que havia pouco profissionalismo nas meninas do merchandising.
Especificamente sabiam muito pouco dos nossos produtos. Foi aí que eu tive uma
ideia, a de contratar essas mesmas raparigas para trabalharem internamente na
Camp e dar-lhes formação. Não só ficava mais barato, como se iriam obter melhores
resultados». Foi exactamente o que aconteceu. As vendas dos detergentes dispararam
e, em menos de três anos, em 1990, a quota de mercado subiu de três para 12%, um
volume de negócio que significava cerca de 4 milhões de contos ao ano.
O crescimento exponencial das vendas permitiu a Carlos passar do anonimato para
uma referência no mundo da distribuição. Chegou, inclusive, a receber um convite
do então diretor-geral da Unilever, Francisco Ferreira, para almoçar. A concorrência
queria conhecer quem era o engenheiro que estava a dar cartas no sector. «O mundo
da grande distribuição é um mundo muito pequeno. Toda a gente se conhecia
porque a rotatividade nas empresas era grande, mas ninguém sabia quem eu era. Eu
e o Francisco ficámos amigos, mesmo estando eu a dar um combate interessante à
Unilever».
Também as campanhas publicitárias eram inovadoras. Os produtos colocados nas
grandes superfícies exigiam uma comunicação mais profissional. Foram contratadas
agências de publicidade, com gente jovem e talentosa, criativa e ambiciosa, para
dar outra vida às mensagens que a Camp queria passar. «As nossas campanhas de
publicidade eram muito vanguardistas. O director-geral aparecia nos anúncios a dar a
cara pelos produtos. Eu cheguei a gravar um spot para cá, essa publicidade ficou feita,
mas nunca chegou a passar».
O engenheiro e o negócio dos sabões
01
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01 Lançamento do amaciador Flor
no Clube dos Empresários em Lisboa
02 Embalagem Colon
03 Embalagem Colon com promoção
03
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Carlos Pereira
Os negócios em África ficaram, entretanto, suspensos. A prioridade era acabar com
os problemas da sucursal em Lisboa e aumentar as vendas. Apesar de o mercado
português não ser significativo, ainda assim a Camp Portugal chegou a ser na Agência
do Saldanha do Banco Fonseca & Burnay o terceiro cliente com um volume médio
de depósitos à ordem superior a cem mil contos. A maior fatia de negócio residia no
mercado interno, em Espanha, onde eram líderes, com mais de 30 % de quota de
mercado.
A logística de armazenamento era qualquer coisa de outro mundo. Quando a Camp
se instalou em Portugal, recebia dois camiões TIR carregados de detergentes por
semana. Em 1989 chegavam ao armazém dois camiões por dia. O armazém ficava,
inicialmente, na zona de Camarate, depois foi transferido para outro, na zona de Porto
Alto, perto de Vila Franca de Xira, por sugestão de Carlos. «Não fazia sentido os
camiões entrarem em Lisboa. Apesar de ser um investimento elevado, compensava
mais comprar um espaço de armazenamento à entrada da cidade».
Quando se colocou a questão de trocar os armazéns, Antoni Pons não se sentiu
confortável em decidir o assunto sem consultar a administração em Barcelona. A visita
a Lisboa de uma delegação do grupo CAMP chefiada pelo respectivo director-geral
do grupo, Manuel de Luque, seria um pretexto para a delegação portuguesa fazer
um brilharete e impressionar os catalães. O dia conjugava na perfeição momentos de
trabalho com os de lazer. De manhã, após a chegada do avião privado da companhia
ao Aeroporto da Portela, visitaram-se o escritório da empresa e, de seguida, o
armazém de Porto Alto que poderia significar uma melhoria em termos de logística
de armazenamento. Antes de apanhar novamente o avião para o Porto - para visitar
as também novas instalações da delegação da Camp no Norte – a delegação catalã foi
surpreendida com um almoço requintado no restaurante Goa, dirigido pelo seu amigo
Homero, estrategicamente reservado por Carlos que sabia da sua paixão por iguarias.
Agradavelmente surpreendido com a forma como foi organizada a visita a Portugal
e depois de ouvir com atenção os argumentos de Carlos, Manuel de Luque decidiu
avançar com a opção pela mudança para o novo armazém. Era mais uma vitória no
currículo do engenheiro.
Em 1989, a Camp é vendida ao grupo alemão Joh. A. Benckiser por 30 mil milhões
de pesetas, numa altura em que se dá a grande concentração da química industrial em
todo o mundo, em geral e na Europa, em particular. Toda a cúpula da Camp iria sair.
Uma vez que Carlos era considerado um homem de confiança dos catalães, também
O engenheiro e o negócio dos sabões
estava incluído na lista. Os alemães iriam ter os seus próprios homens a comandar a
empresa em Portugal.
Quando estava para fechar um acordo de cessão de funções em Portugal, Carlos não
se livrou de um litígio significativo pelo meio. «Quando os alemães me apresentaram a
proposta de rescisão, não queriam incluir no pacote as minhas duas remunerações, a
de Portugal e a de Espanha, nem a casa de Birre, nem a viatura, que a meu ver eram
remunerações permanentes».
Carlos contratou como advogado um velho amigo de Cabo Verde (Francisco Vaz), e
entrou com um processo no Tribunal do Trabalho. Os alemães não desarmaram. Exigiram
a Carlos que abandonasse a moradia de Cascais, mas o engenheiro, não se deixando
intimidar, não cedeu às ameaças. Perante aquela teimosia e verticalidade, os alemães
mandaram cortar a luz na casa, desconhecendo que o alarme da casa estava ligado à
polícia. Ora, quando as baterias suplentes da electricidade se esgotaram, o alarme disparou
e só quando a luz fosse reposta é que o alarme poderia ser silenciado novamente.
Prevendo aqueles golpes baixos, Carlos havia alugado um apartamento em Oeiras,
mas continuava a recusar entregar as chaves da moradia de Cascais. Quando chegou
o dia da audiência, o juiz perguntou-lhe se preferia a indemnização ou se queria
reintegrar os quadros da Camp/Benckiser. Carlos optou pela última hipótese. O juiz
despachou de acordo com a sua vontade.
No dia seguinte, apresentou-se na recepção dos escritórios da empresa como o
director-geral, posição que mantinha anteriormente. Na mão levava a sentença do juiz.
A secretária, meio atónita, meio alarmada, acorreu a chamar alguém, desaparecendo
entre as salas do escritório. Carlos aguardou pacientemente na recepção até que foi
recebido por Rui Saraiva, o novo director-geral português que já estava ao serviço dos
alemães.
Na reunião, Carlos foi claro e peremptório nas suas exigências. Para sair teria que ser
nas suas condições. Como o processo não ficou logo ali definido, mas era bastante
óbvio que o ambiente iria ser insuportável, a empresa dispensou Carlos de aparecer no
local de trabalho. Carlos concordou, mas o texto da carta foi ditado por ele, onde ficou
registada a manutenção das suas funções até o processo estar definitivamente fechado.
«Apesar de ter considerado esta experiência um sucesso do ponto de vista profissional
porque aprendi e revolucionei algumas formas de trabalho, confesso que foi a fase da
195
196
Carlos Pereira
minha vida em que eu aprendi mais sobre sacanagem nas empresas. Naquela Camp
de então, era particularmente refinada».
Para Helena Gonçalves, a saída de Carlos da Camp Portugal representou uma perda
para a empresa até porque «o Eng. foi muito marcante, principalmente por causa do
seu lado humano que tocava todos aqueles que o rodeavam. Considero que a direcção
do engenheiro foi um excelente momento para a Camp, ele contribuiu muito para
o crescimento da empresa e era gratificante ver como todas as pessoas estavam a
crescer, bem como a coesão das equipas».
O processo arrastou-se entre Julho de 1989 e Janeiro de 1990. Finalmente, depois de
ter conseguido a indemnização que achava ser justa, entregou as chaves da casa de
Cascais. Nos meses que se seguiram, aproveitou para viajar e descansar, até porque
a par de todo este tumulto profissional, Carlos enfrentara também as dores de um
primeiro divórcio. O casamento com a Mila, mãe da sua filha Catarina havia terminado
desde há cerca de um ano antes.
O engenheiro e o negócio dos sabões
“As nossas
campanhas
de publicidade
eram muito
vanguardistas.
O director-geral
aparecia nos anúncios
a dar a cara
pelos produtos”.
Carlos Pereira sobre o sucesso
comercial dos produtos da Camp
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8
VISÃO
A
COMERCIAL
NO
MUNDO
CONSTRUÇÃO
DA
CIVIL
A visão comercial no mundo da construção civil
Depois de alguns meses de férias e com as energias redobradas, Carlos voltou a
trabalhar. Um convite inesperado de José Marques Murta, engenheiro, trouxe-o de
volta ao mercado de trabalho como director comercial. A engenharia estava cada vez
mais posta de lado, adormecida, mas decorriam os anos 90 e o sector da construção
vivia uma fase de desenvolvimento, principalmente no domínio das obras públicas. As
empresas portuguesas expandiram-se tanto no território nacional, como no grupo dos
países da Comunidade Económica Europeia.
José Marques Murta era um dos sócios e presidente da Sociedade de Construções H.
Hagen, empresa de construção civil, de origem alemã, fundada em 1950, e adquirida
por um grupo de técnicos portugueses em 1964. Desde então, a H. Hagen vinha a
realizar obras de grande porte como a ponte sobre o Rio Mondego, em Carregal do Sal,
e as pontes sobre o Rio Mira e Ribeira do Guilherme, em Ourique. Na década de 70 foi
responsável pelas obras de construção de diversas centrais térmicas para a Companhia
Portuguesa de Electricidade (CPE) – Tunes, Alto Mira e Barreiro, Hospitais, de edifícios
Públicos para os CTT e instituições bancárias em diversos pontos do país. Na década
de 80 ficou à frente das obras da Torre do Tombo, em Lisboa.
A entrada de Carlos na H. Hagen coincidiu com a entrada da empresa francesa
Campenon Benard na estrutura acionista. Aquela que era uma das maiores empresas de
Obras Públicas e Construção Civil em França - e que fazia parte do grupo de empresas
SGE/ General des Eaux -, adquiriu uma participação de 46% da empresa portuguesa. A
aquisição feita por um grupo internacional iria permitir à H. Hagen maior competividade
e competências mais diversificadas no mundo da construção civil.
Com um curriculum impressionante tanto na área da engenharia como na de medição
de negócios entre parceiros estrangeiros, Carlos era a pessoa indicada para participar
na nova fase de reestruturação da empresa, como director comercial. A sua missão
era potenciar a participação da Hagen no mercado europeu junto dos parceiros. «A
participação do capital francês na estrutura acionista da H. Hagen impunha algumas
alterações significativas, não apenas nas novas formas de abordagem ao mercado, mas
também, na necessidade de um rejuvenescimento da imagem da empresa que sempre
tinha sido pouco trabalhada. Foi essa a principal tarefa que me foi solicitada, embora
durante um período de tempo relativamente curto, já que o grupo General des Eaux
veio a proceder a uma alteração de estratégia que conduziu, em Portugal, à alienação
da sua participação acionista na H. Hagen».
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200
Carlos Pereira
Carlos trabalhou de perto com Margarida Aparício, na altura assistente comercial na
H. Hagen, que apreciava a visão comercial de Carlos, sempre focado nos objectivos,
mas muito moderno nas abordagens: «Nós mudámos a imagem da empresa, na
medida em que a Hagen tinha acabado de ser comprada pelos franceses, logo teve que
se deixar para trás toda aquela aura de sociedade familiar para dar lugar a uma nova
imagem comercial, dentro do espirito da nova empresa multinacional. Como eu vinha
de uma multinacional, com uma visão comercial ampla e o engenheiro tinha uma
visão comercial muito interessante, penso que os dois conseguimos levar os projectos
a avante, com bons resultados». A equipa contava ainda com a ajuda de Pedro
Oliveira, um designer criativo que havia saído recentemente da H.Hagen para montar
o seu próprio atelier, ficando, no entanto, a trabalhar para a H. Hagen em regime de
freelancer. Para Pedro Oliveira, Carlos foi uma lufada de ar fresco numa empresa
tradicional e cinzenta: «Criei o gabinete de marketing daquela empresa familiar de
construções e posso bem avaliar o que isso significa em termos de complicação de
mudança de mentalidades. Quando o Carlos veio assumir a direcção comercial e a
direcção de novos clientes, ele dá uma dinâmica completamente diferente à empresa
que eu conhecia bem tradicional muito resistente à mudança». A amizade entre os
dois prolongou-se e a relação profissional passou para uma esfera mais pessoal. Hoje,
Pedro Oliveira é uma presença assídua na casa de Carlos: «A ligação entre mim e
o Carlos deu-se precisamente por causa de um forte respeito mútuo em termos de
trabalho. Ele deu continuidade ao trabalho que tinha sido iniciado por mim e que foi
muito relevante para a H. Hagen, numa perspectiva de venda ao consórcio francês que
comprou a empresa».
Tinha-se vindo a assistir a uma tendência de reestruturação empresarial, no qual
através de processos de fusões, empresas de menor dimensão davam origem a grandes
grupos de construção civil. Esta relação era particularmente mais intensa entre
empresas nacionais e espanholas, possibilitado o alargamento do mercado espanhol
ao mercado português.
Assim, as empresas portuguesas de construção civil viram-se obrigadas a adaptaremse às novas políticas de mercado. As estratégias de fusão tinham como objetivo
potenciar a capacidade de competição internacional, principalmente junto dos países
da Comunidade Europeia. Para as pequenas e médias empresas, o caminho era mais
sinuoso. Caso quisessem penetrar o mercado internacional teriam que recorrer à
subcontratação temporária de pessoal qualificado que garantissem a qualidade dos
trabalhos e cumprimentos de prazo, em detrimento dos seus quadros internos. Esta
estratégia permitia dar resposta às empreitadas que iam surgindo, tanto em Portugal
A visão comercial no mundo da construção civil
como no estrangeiro. Bastava que houvesse um engenheiro coordenador a fiscalizar
o andamento das obras. As grandes obras deveriam realizar-se em períodos de tempo
relativamente curtos até porque a evolução da tecnologia e o aparecimento de materiais
mais fáceis de manusear obrigavam a mudanças significativas na organização interna
das empresas, caso quisessem vingar na nova economia.
O processo de integração da H. Hagen e no grupo General des Eaux através da
Campenon Benard, que decorreu entre a partir de 1990, decorreu sem sobressaltos de
maior. Em Fevereiro de 1990, a empresa assumiu a liderança do consórcio construtor
de um dos lotes do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, e uns meses mais tarde a
Campenon Bernard consolidou a sua posição na empresa assumindo a totalidade do
seu capital. A empresa que estava em franca expansão prosseguiu no ano seguinte
com uma tentativa de internacionalização no mercado angolano com a constituição da
Hemoáfrica. A separação da H. Hagen do Grupo General des Eaux deu-se em 2000,
quando a empresa voltou a ser 100% detida por capital português, continuando a sua
consolidação ao intervir em obras importantes no território nacional.
Durante os breves meses em que esteve a participar no processo de integração na
General des Eaux, Carlos foi encarregue pela administração da Hagen de acompanhar
Pierre Baraille, um francês sexagenário, com origens familiares à nobreza francesa
que se insinuava pelos corredores da empresa em Lisboa, com o apoio total da
Administração da H. Hagen e que se apresentava como um investidor interessado
em participar nos sectores agro-alimentar e hoteleiro em Portugal. Carlos recorda
as primeiras impressões como a de um homem elegante, bom comunicador, com
uma conduta distinta e acima de qualquer suspeita. Era ávido nos negócios, tinha
a intenção de comprar em Portugal as cadeias de hotéis ÍBIS e Mercure, ambos de
origem francesa. A transação acabou por não se dar, mas nem por isso os planos de
investimento do francês foram abalados.
Pierre Baraille teve a oportunidade de comprovar o lado empreendedor de Carlos, pois
observou de perto os movimentos do engenheiro aquando do processo de integração da
H. Hagen. Para levar alguns negócios avante, o francês precisava ter a seu lado alguém
organizado, bem-sucedido, determinado, com uma visão ampla dos negócios, e Carlos
reunia todas essas características. Por isso, convidou o engenheiro para seu assessor.
Carlos, que já estava de saída da H. Hagen - a sua missão de acompanhar o processo
de integração estava terminada – não tinha nada a perder. Habituado a dar pareceres
sobre a criação de novos negócios e seduzido pela ideia de integrar um projecto novo
e inovador aceitou a proposta. «Por um lado o facto de viver apenas acompanhado do
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Carlos Pereira
A visão comercial no mundo da construção civil
“A interacção
entre aquilo que ele
programava, o que
fazia e o resultado
a que chegávamos.
Penso que ele tem uma
visão comercial muito
interessante e funcional.
E os resultados estavam
sempre à vista”
Margarida Aparício
A amiga assistente comercial
que o seguiu desde a Hagen
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Carlos Pereira
meu primeiro amigo cão - a que dei o nome de Falcão e me acompanhava para todo
o lado, mas todo o lado mesmo - em conjugação com a ideia que o Sr. Pierre Baraille
transmitia de um empresário com boas ligações ao mundo dos negócios, sobretudo na
área agro-alimentar e hoteleira, e a perspectiva de iniciar a implantação de um grupo
virado para o desenvolvimento e aproveitamento das potencialidades gastronómicas e
climáticas do nosso País, seduziram-me.»
Os primeiros meses de trabalho passaram a correr. A viver em Oeiras, Carlos fazia
viagens frequentes a Coimbra, onde residia Pierre Baraille. Carlos mostrava um
equilíbrio perfeito entre competência e faro para os negócios. Geria as expectativas de
Pierre Baraille e recomendava soluções para alguns assuntos. O trabalho era intenso,
mas o investidor francês era um homem extrovertido, dinâmico e empreendedor, com
um entusiasmo e motivação contagiantes.
Depois de fracassada a tentativa de comprar as cadeias de hotéis, Pierre Barraille
voltava-se agora para uma pequena unidade fabril agro-alimentar, na zona de Valado
de Frades, na Nazaré - a Liosilva. Era na altura a única fábrica de liofilização de
produtos agrícolas e alimentares existente em Portugal. A empresa estava praticamente
na falência, quase a fechar as portas. Os ordenados dos trabalhadores estavam em
atraso, as dívidas aos fornecedores pareciam não ter fim e as dificuldades em obter
créditos bancários eram cada vez maiores.
Pierre Baraille pretendia comprar a empresa, desenvolvê-la para depois rentabilizá-la.
Adquiriu-a por um preço simbólico de um escudo e assumiu todo o passivo de dívidas
da empresa, decidindo manter todos os trabalhadores, incluído a direcção da fábrica,
nessa altura da responsabilidade do Eng. António José Figueiredo Lopes, com quem
Carlos haveria mais tarde vir a cimentar uma amizade que perdura até hoje. Carlos
esteve presente na escritura de aquisição, consciente que aquela era a única forma
de preservar a empresa e os postos de trabalho. Acreditando no projecto, mudou-se
para Alcobaça e colocou a sua rede de contactos à disposição da Liosilva para que
o negócio pudesse florescer. A Unilever, com quem tinha relações privilegiadas do
tempo da Camp, chegou a ser parceira de negócios da Liosilva.
O processo de reconversão da Liosilva passava pela comercialização em grande
escala de produtos inovadores em parceria com as marcas que dominavam o sector
da distribuição das grandes superfícies, neste caso, a Unilever. A Liosilva dedicavase a transformar alimentos – sobretudo legumes e frutas - através de um processo
tecnologicamente avançado e distinto do da simples desidratação, processo este que
mantém a forma, a cor, o aroma, o sabor e os nutrientes originais dos produtos, e que
A visão comercial no mundo da construção civil
se denomina de liofilização. Os alimentos liofilizados são alimentos a que se retira a
água de constituição das células, através da passagem da água do estado sólido para
o estado gasoso, sem passar pelo estado líquido e que se designa, na terminologia da
física, por sublimação. O processo inicia-se por uma congelação dos produtos a - 30º
centígrados. Em seguida os alimentos congelados são colocados em tabuleiros, estes
em charriots que se colocam em câmaras onde se processa a extracção de todo o ar,
isto é, criam-se condições de vácuo extremas. Nestas condições, a água de constituição
existente nas células dos produtos que se encontrava congelada, passa diretamente do
estado sólido para o gasoso, sem romper as paredes celulares, o que permite a total
conservação dos nutrientes.
A Liosilva chegou a produzir ovos mexidos liofilizados em pó, produzidos por este
processo de liofilização, que depois eram comercializados pela Unilever. Através da
liofilização, garantia-se que os ovos tinham um período de validade prolongado, sem
risco de salmonelas. Estes ovos chegavam assim em caixas ao supermercado e depois,
em casa, só era necessário juntar o pó com água numa frigideira quente para obter-se
uma refeição de ovos mexidos.
Apesar de algum sucesso, a falta de liquidez da empresa foi sempre um entrave ao
desenvolvimento do negócio. Carlos ainda conseguiu obter alguns empréstimos
da banca para alavancar a empresa, mas sem grande sucesso. Ao fim de um ano e
meio, a Liosilva entrou em insolvência porque o engenheiro desistira de continuar a
abrir portas quando descobriu que Pierre Baraille era um vigarista, burlão, com um
esquema montado e que vivia de expedientes. Ao que parecia, o investidor francês
tinha um talento nato para ludibriar os próximos e não tinha qualquer problema em
desenvencilhar-se de qualquer um que se atravessasse no seu caminho e lhe atrapalhasse
as ambições. «Aparentemente, já tinha feito outros negócios em situações semelhantes,
nomeadamente em Espanha. De facto, o modus faciende do Sr. Baraille era simples:
Surgia junto das entidades que pretendia seduzir, geralmente com recomendação da
Embaixada ou do Consulado de França, como sendo um investidor e empresário
que pretendia desenvolver áreas de negócio no País. Procurava encontrar empresas
em dificuldades financeiras, adquiria-as por um valor simbólico, mas assumindo a
totalidade dos passivos, criava a expectativa nos credores dessas empresas que iria
dar início a um processo de recuperação das unidades em causa, conseguia créditos
com apoios de terceiros – como foi num dos casos comigo junto do Banco Fonseca
& Burnay, onde eu dispunha de crédito desde a época da CAMP – e depois, como
não havia injecção de capitais próprios que ele dizia estarem sempre para chegar
de França, os projectos terminavam abruptamente, como foi o caso com a Liosilva.
Depois, ele partia para outra».
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Carlos Pereira
Nessa altura, em 1991, a Liosilva entrou em ruptura total e cerca de 60 pessoas
acabaram no desemprego. O processo de insolvência foi objecto de uma penhora a
cargo da Caixa Geral de Depósitos, o principal credor, e que colocou os bens da
empresa à venda. Só em 1993 é que os trabalhadores, depois de muitas vicissitudes,
foram ressarcidos parcialmente dos salários em atraso e das respectivas indemnizações.
Fiel ao seu comportamento padrão, o francês despareceu do mapa sem deixar rasto e
Carlos, com 44 anos, vivia uma situação de desemprego.
Os prazeres da tradição
Amante dos costumes e da herança gastronómica portuguesa, Carlos lançou-se no
desafio de impulsionar pelo país fora os sabores do fumeiro tradicional. O gosto tinhalhe ficado dos tempos da CIPRO, quando andou a visitar matadouros e conheceu os
produtos artesanais nacionais, de alta qualidade e que eram produzidos num ambiente
rural familiar. Durante esse tempo em que andou a visitar instalações de gado, com
vista ao melhoramento das suas condições à luz das novas normas europeias, travou
amizade com dezenas de pequenos produtores nortenhos que a seguir à matança anual
do porco, se dedicavam a confeccionar de forma rudimentar os famosos enchidos.
Tudo se passava num círculo muito restrito de familiares e amigos, mas o engenheiro
era muitas vezes convidado para estas festas de convívio, onde se comemorava a
abundância e se esquecia por alguns momentos o inverno rigoroso e as dificuldades
do ano.
A amizade entre estes produtores e o engenheiro perdurou. Muitos destes produtores
fizeram, mais tarde, as melhorias nos seus estabelecimentos e obtiveram o licenciamento
para produzirem os seus enchidos e presuntos, com equipamentos e tecnologias
modernas, mantendo os métodos tradicionais de fabrico e os sabores característicos
dos produtos. Presunto, salpicão, chouriço de carne, de sangue eram assim fabricados
debaixo de um rigoroso controlo de qualidade, mas a textura, o aroma e o sabor dos
produtos permaneceram inalteráveis.
Nas suas visitas pelos matadouros da região de Trás-os-Montes, Alto Douro e Beira
Alta, Carlos tornou-se mais sensível às questões da identidade cultural e regional,
da importância dos produtos locais, da gastronomia, do artesanato e que conferiam
aquelas gentes uma identidade única e inesquecível. Apercebeu-se de como era
importante promover e divulgar aquela cultura popular que vivia em torno dos
produtos de qualidade, não só de enchidos, mas também do azeite, do vinho, da
castanha, da amêndoa e outros frutos secos.
A visão comercial no mundo da construção civil
Mailing de lançamento do
Fórum da Gastronomia e troféu
do Grande Prémio dos CTT
“ O Melhor em Direct Mail”
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Carlos Pereira
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02
01 Carlos Pereira e Estrela no Festival
Nacional de Gastronomia de Santarém
02 Menção Honrosa pela participação no Festival
Nacional de Gastronomia de Santarém
03 Diploma do Grande Prémio dos CTT
“O Melhor em Direct Mail”
A visão comercial no mundo da construção civil
Carlos procurou trazer para os grandes centros de consumo um pouco daquele mundo
de sabores rurais que conheceu, lançando o Fórum da Gastronomia. Era também uma
forma de dar resposta à sua situação de desemprego e à falta de perspectivas de um
emprego a curto-prazo, uma vez que se vivia a crise da segunda legislatura do governo
de Cavaco Silva, marcada por um abrandamento da economia portuguesa.
Apesar de o governo ter impulsionado seis grandes projectos - a organização da Expo’98;
construção da Ponte Vasco da Gama; introdução do comboio na Ponte 25 de Abril;
construção da Barragem do Alqueva; introdução do gás natural e o novo Aeroporto
da Madeira – o contexto era de uma grave crise económica que só abrandou depois
de 1994. Os portugueses manifestavam-se contra as reformas estruturais introduzidas
por Cavaco Silva, como é o caso da reforma fiscal, com a entrada em vigor do IRS e
IRC, e da privatização das empresas públicas. A contestação social ganhou contornos
mais intensos, na semana em que milhares de portugueses se manifestaram contra o
aumento das portagens bloqueando a Ponte 25 de Abril.
Para lançar o Fórum da Gastronomia, Carlos saiu da casa alugada de Alcobaça
onde estava a viver e comprou uma pequena quinta, de cinco mil metros quadrados,
próxima de São Martinho do Porto. A propriedade pertencia a um alemão que se
dedicava à venda de bacelos para vinhas. Mas o estrangeiro havia comprado outra
propriedade em Montemor-o-Novo e decidira pôr a de São Martinho do Porto à
venda. A quinta era tudo o que Carlos tinha sonhado. Sem ser muito grande, estava
muito bem arranjada. Tinha uma casa habitável e uns armazéns que, depois de
recuperados, seriam o sítio ideal para instalar o Fórum. Carlos comprou a quinta
com parte do dinheiro da indemnização que ganhara da Camp. O restante valor foi
conseguido com recurso a um empréstimo bancário em moeda estrangeira - os juros
eram mais baixos -, através do Banco Português de Fomento.
A vida em S. Martinho do Porto era tranquila e sossegada. Carlos levantava-se pela
manhã e depois do pequeno-almoço tomado percorria a pé a propriedade, sempre
acompanhado do seu cão Falcão. Apesar de citadino, gostava daquele momento de
paz matinal em que desfrutava sem pressas do cheiro da terra húmida e da paisagem
verdejante. Naqueles minutos aproveitava para tomar notas de algumas ideias que
queria acrescentar ao Fórum da Gastronomia. A vida era um pouco mais agitada da
parte da tarde. Acompanhava a evolução das obras no armazém escolhido para instalar
o projecto, resolvia assuntos pendentes no banco, visitava fornecedores e contratava
funcionários. A seu lado estava a Estrela, a segunda mulher com quem veio a casar, e
em quem confiava plenamente para assumir as rédeas do projecto, quando estava mais
ocupado com outros assuntos.
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Carlos Pereira
Aos poucos, o Fórum da Gastronomia ia ganhando forma. Carlos visitava os
produtores locais e comprava os seus produtos artesanais, desde enchidos, queijos,
licores, a compotas. Depois, armazenava-os na quinta, às mãos de uma equipa de sete
pessoas. Com uma estrutura montada de conservação para os produtos perecíveis,
como é o caso dos enchidos ou dos queijos, tinha também um sistema de embalagem
em vácuo para manter os produtos em boas condições de salubridade e cada produto
era acompanhado por uma ficha de identificação, onde constava a origem do produto,
composição e os conselhos para uma melhor conservação e utilização do ponto de vista
gastronómico. Depois e através de uma lista de direct mail era anunciado o cabaz com
os produtos do mês. Uma semana depois da encomenda, os cabazes de produtos eram
entregues ao domicílio, no caso de particulares, ou nas empresas. «Creio que merece
destaque referir a fórmula que presidiu à ideia inicial no lançamento do Fórum da
Gastronomia. De facto, a pesquisa que realizámos no interior do País, para recolha, não
apenas das imagens dos fumeiros tradicionais, mas também dos produtos a divulgar
e a história (para alguns de séculos) que cada um carregava (e não apenas histórias
ligadas ou directamente derivadas da época do ano ou das festas tradicionais a que
estavam ligados), permitiu produzir um veículo de comunicação extraordinariamente
apelativo e, acima de tudo, muito impactante para quem recebeu em casa, via direct
mail, uma embalagem de cartão reciclado, com uma embalagem de serapilheira que
dentro de si continha, uma alheira das terras frias transmontanas, região originária da
verdadeira alheira transmontana. Esta acção de comunicação, para a época inovadora,
conseguiu um grau de penetração extraordinário, acabando por merecer o 1º prémio
de Direct Mail instituído, à época, pelos CTT».
Carlos idealizava todos os pormenores para fazer as delícias dos seus clientes. Nada
era deixado ao acaso, nem mesmo a linha gráfica de todo o projecto que foi confiada
às mãos do seu amigo Pedro Oliveira. «O Projecto da Gastronomia foi muito bem
recebido pelos potenciais clientes. Lembro-me perfeitamente da alegria que foi na
resposta ao primeiro mailing. Obtivemos oito por cento de resposta, o que é bastante,
e atingimos um target específico como Francisco Pinto Balsemão e até o professor
Daniel Serrão, que foram das primeiras pessoas a responder positivamente a este
projecto», conta Pedro Oliveira.
Carlos queria marcar a diferença nas embalagens, na apresentação, nos folhetos. Para
a apresentação da empresa, desenvolveram uma embalagem, dentro da qual seguiam
a brochura de apresentação da empresa, a notas de encomenda, o RSF e as fichas de
identificação dos produtos e ainda uma alheira embalada em vácuo, colocada num
saquinho de serapilheira artesanal. Enviaram para mais de mil potenciais clientes. Foi
A visão comercial no mundo da construção civil
Falcão, companheiro de
Carlos Pereira por vários anos
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Carlos Pereira
um sucesso, principalmente junto das empresas que viam o drama das prendas de
natal aos clientes resolvido.
Eram os anos 90 e a Internet estava a dar os primeiros passos no seu processo de
democratização. Só as universidades, os centros tecnológicos e as grandes empresas
estavam ligados em rede. Mesmo os computadores pessoais eram escassos e a maioria
dos portugueses não dispunha de condições financeiras para adquirir um.
Contudo, a crise resultante da acção dos Governos Cavaquistas e que debilitou o
poder de aquisição da classe média sobretudo radicada nos grandes centros urbanos,
por um lado, e certo desconhecimento por parte destes dos verdadeiros valores e
significado dos produtos tradicionais, fez com que o projecto tivesse tido um percurso
progressivamente declinante, nunca chegando a permitir que o Fórum da Gastronomia
fosse rentável. Nem mesmo a longo-prazo. Daí que Carlos tenha decidido fazer mais
um investimento para tentar viabilizar o projecto.
Em 1994 chegou a um acordo de leasing com o Banco Totta. O investimento que
pretendia fazer era incomparavelmente abaixo do valor da propriedade. Depois
da avaliação feita à quinta, o Banco deu luz verde para um leasing a dez anos.
Assim, recuperou outro armazém que existia na propriedade e transformou-o num
restaurante, dando-lhe também o nome de Fórum da Gastronomia. O restaurante
seguia os mesmos princípios. Cultivar a boa mesa, dando a conhecer o melhor dos
produtos artesanais que se faziam de Norte a Sul do País. O espaço aberto ao público
teve sucesso durante algum tempo, mas acabou por entrar em declínio até uma
situação de insustentabilidade. Carlos acabou por apenas manter abertas as portas do
restaurante mediante reservas prévias.
Pedro Oliveira acredita que o Fórum da Gastronomia era um projecto excelente, mas
que nasceu antes do tempo: «Hoje teria tido um crescimento exponencial, mas na
altura em que foi criado, as pessoas ainda não estavam despertas para uma dimensão
de um projecto com interesse e potencialidade do Fórum da Gastronomia e, por isso,
o sucesso foi muito na altura do lançamento, mas perdeu-se um bocadinho o efeito no
acompanhamento e na sustentação da ideia».
Para compensar o desaire financeiro e cumprir com as amortizações do leasing, Carlos
foi obrigado a regressar às engenharias, desta vez pela mão do engenheiro Oliveira
Miguel que lhe fez um convite para ir trabalhar para a Norma, uma empresa de
A visão comercial no mundo da construção civil
consultoria e estudos de mercado na altura recém-adquirida por antigos colaboradores
do Governo de Macau. Com um conjunto de projectos a decorrerem em Angola,
Moçambique e Guiné-Bissau, nas áreas da Saúde e da Educação, financiados pelo
Banco Mundial, pelo fundo das Nações Unidas para a População e também pela
União Europeia, Carlos surgia como um dos engenheiros mais habilitados para
estar à frente da coordenação de vários destes projectos de apoio às actividades da
população. Ocupou a posição de director internacional. «Ligo-me à Norma porque
tive que encontrar soluções alternativas para garantir que o Fórum da Gastronomia
se mantivesse à tona de água, uma vez que este era, por si só, financeiramente
insustentável.»
Apesar da criação do emprego local e das boas práticas, o Fórum da Gastronomia
não vingou. Talvez porque nasceu numa época de depressão, talvez porque foi um
projecto demasiado inovador, à frente do seu tempo.
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O
REGRE
SSO AS
ORIGENS
O regresso às origens
Um encontro fortuito à porta de um supermercado ditou o destino: o regresso à
Consulmar. A empresa que havia sido a sua escola no mundo da engenharia cruzava
novamente o seu caminho. À sua frente, o engenheiro Almeida Santos não conseguiu
disfarçar o ar surpreso por ver Carlos, passados vinte anos. Ambos integraram a
mesma equipa de fiscalização das obras do molhe Oeste de Sines que tinha estado a
cargo da Consulmar.
Carlos já não era o jovem inexperiente, sempre solícito a realizar todos os serviços,
com uma vontade ávida de consolidar conhecimento. Era agora um homem mais
maduro, pai de família, com múltiplas experiências profissionais acumuladas que lhe
garantiam um currículo sólido e rico.
A conversa foi suave, de circunstância, mas suficientemente frutífera para que se
desenhasse um novo destino profissional na vida de Carlos. A Consulmar havia
ganho, em consórcio com mais 2 empresas de consultoria a fiscalização de uma obra
naquela que seria a futura Expo 98 e procurava um chefe de fiscalização para esse
empreendimento. O perfil de Carlos assentava que nem uma luva para o cargo e, por
feliz coincidência, dois nomes já haviam sido rejeitados por parte da Parque Expo para
a Chefia da equipa.
Carlos enviou-lhe o curriculum e, uma semana depois, recebeu uma chamada do
engenheiro Almeida Santos para se dirigir à Hidroprojecto, um dos gabinetes
consorciados na referida fiscalização. Carlos foi entrevistado pelo engenheiro Gomes
da Silva, já falecido, que não hesitou em contratá-lo.
Já depois de ter acertado as condições de trabalho com a Hidroprojecto, é surpreendido
por um novo telefonema. Desta vez, era o engenheiro Silveira Ramos que não se
conformava ao ver Carlos ser recrutado por outra empresa quando cabia à Consulmar
a chefia da fiscalização. O engenheiro ainda hoje se recorda das palavras de Silveira
Ramos: «Já sei que foste falar com a Hidroprojecto, mas tu és um homem da
Consulmar e eu quero que tu sejas contratado por nós e não pela Hidroprojecto. Tens
alguma coisa a opor?» Carlos apenas fez questão de garantir as mesmas condições que
a Hidroprojecto lhe oferecia. Reconciliava-se o presente com o passado. O engenheiro
que esteve na origem da sua saída da Consulmar era agora o homem que estava na
origem do seu regresso.
Assim, entre Outubro de 1995 e Fevereiro de 1998, Carlos chefiou a fiscalização da
obra da consolidação dos lodos do Rio Tejo até à Foz do Rio Trancão. Reportava a
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216
Carlos Pereira
informação ao engenheiro Fernando Oliveira – curiosamente seu colega de curso que
havia ingressado na Consulmar já após a sua saída em 1979 - que queria estar sempre
informado sobre o andamento da intervenção profunda na margem direita do rio Tejo.
A obra tinha características e exigências técnicas nunca antes realizadas em Portugal.
Na verdade, o objectivo de realizar os aterros sobre os lodos do Tejo, substituindo
também alguns dos solos contaminados por décadas de instalações de armazenagem
de combustíveis fósseis, impunha uma operação de engenharia que se designaria por
“consolidação dos solos pelo método da vibro substituição”. A concretização desta
operação técnica envolvia meios poderosos, “enfiando-se” literalmente no lodo uma
agulha vibradora ligada a uma mangueira com água a alta pressão e suspensa de uma
grua com uma altura mínima de 20 a 25 metros. Sabia-se que o fundo rochoso existente
por baixo dos lodos andava a estas profundidades. À medida que a agulha vibradora
ia afundando no lodo, este em suspensão, ia saindo pelo cimo e, ao mesmo tempo,
no espaço que os lodos agora em suspensão iam deixando abertos, “despejavamse” britas que preenchiam o lugar dos lodos arrastados, constituindo-se verdadeiras
estacas irregulares de britas que desciam até ao fundo rochoso. Logo que as britas
afloravam à superfície, intuía-se que as mesmas tinham atingido o bed rock.
O mega-evento abriria portas ao público no dia 22 de Maio de 1998. A localização da
maior exposição mundial alguma vez vista no País, nas zonas limítrofes de Lisboa e
Loures, permitiu a recuperação de áreas bastante degradadas para vir a ser uma das
zonas residenciais mais nobres da capital.
A vida profissional e pessoal corria-lhe de feição. Carlos era pai pela segunda vez.
O Júnior nasceu no dia 3 de Janeiro de 1996. Não obstante as obras decorrerem em
Lisboa, Carlos e a família continuavam a viver na quinta de São Martinho do Porto. A
Estrela ficou encarregue de manter vivo o Fórum da Gastronomia. Fazia regularmente
a gestão do correio electrónico, tomava conta das encomendas, negociava com
empresas de região a realização de eventos nas instalações do Fórum e mantinha o
contacto com os fornecedores. Mas era a componente financeira que Carlos recebia
da sua actividade de engenharia que permitia amortizar o leasing porque o projecto
dos produtos do fumeiro não libertava recursos suficientes para pagar a dívida.
Quando terminaram as obras da Expo’98, em Fevereiro desse ano, o engenheiro
Silveira Ramos lançou lhe um novo desafio: a consolidação da Consulmar em Angola.
A internacionalização já havia acontecido no início dos anos 80, mas a empresa-mãe
portuguesa continuava a ter que enviar dinheiro para pagar os salários dos técnicos e
dos engenheiros de lá. Era urgente que a actividade da empresa no mercado angolano
se tornasse rentável. Para o engenheiro Silveira Ramos, Carlos era a pessoa ideal para
O regresso às origens
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01 Júnior, filho de Carlos Pereira
02 Desenho de Júnior, sobre a casa do Bouro, para o pai
03 Diploma Melhor Pai do Mundo atribuído pelo Júnior
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Carlos Pereira
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03
01 Carlos Pereira em Angola
02 / 03 Faxes de Carlos Pereira
para o seu filho Júnior
O regresso às origens
pilotar o projecto de constituir uma empresa de direito angolano, dado o conhecimento
que tinha dos negócios em África. Dirigir a nova delegação da empresa em Luanda
exigia que o engenheiro se mudasse de malas e bagagens para Angola.
Depois de conversar com a mulher sobre o impacto que aquela mudança viria a
ter na vida familiar, afinal o Júnior tinha apenas dois anos, chegam à conclusão que
avançar nesse sentido era o passo certo a tomar, até porque continuavam a precisar do
salário de Carlos para financiar o Fórum da Gastronomia e honrar os compromissos
assumidos.
A proposta da Consulmar passava por um contrato sem termo, com entrada directa
nos quadros da empresa, mas Carlos fez questão de juntar ao documento uma adenda
que deveria ser aceite por ambas as partes, no qual ficassem definidos os graus de
competência e de liberdade do engenheiro, exactamente para evitar o episódio já
vivido vinte anos antes, na altura da construção do Porto de Sines.
Por terras angolanas
Partiu para Luanda em Março de 1998, por dois anos seguidos. Os primeiros meses
serviram para perceber o funcionamento do mercado da construção naquele País e
inteirar-se da situação da empresa. Era necessário olhar para a carteira de clientes, para
os Recursos Humanos, perceber os projectos em andamento e prestar mais atenção à
prospecção de novos negócios.
Feito o balanço, estavam reunidas as condições para a Consulmar em Angola dar
lugar à constituição da Ambigest, uma empresa de consultoria em gestão, engenharia
e ambiente, de direito angolano. Aconteceu em Outubro de 1998. Os negócios
começaram a compor-se e em apenas três meses, a Consulmar portuguesa deixou de
enviar dinheiro porque a Ambigest já era financeiramente sustentável.
A Ambigest dedica-se desde o primeiro dia à elaboração de projectos e ao controlo
e fiscalização de obras, tendo no seu portefólio obras de grande dimensão tais como
pontes, estradas, portos e aeroportos. Realiza também estudos de impacte ambiental,
entre outros projectos ligados à engenharia civil.
Carlos começou por ser o director-geral da empresa. Actualmente é o Presidente do
Conselho de Administração e não esconde o orgulho do percurso que tem vindo a
ser feito: «Quando a Ambigest foi criada por um grupo de técnicos portugueses e
angolanos éramos apenas cinco pessoas. Hoje somos mais de trinta. Crescemos muito.
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Carlos Pereira
O regresso às origens
“O Carlos faz
pontes invisíveis,
que não exigem ou
que são sustentadas
por filigranas
que atravessam
quilómetros. E foi isso
que ele fez comigo.
É um homem invulgar
no acolhimento e na
maneira como vive”
Carlos Alberto Vidal,
(Bé para os amigos)
O amigo mais recente
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Carlos Pereira
A Ambigest representa mais de 50% do volume de negócios do Grupo Consulmar e é
hoje uma referência no mercado Angolano».
Em 2005, já a Ambigest funcionava em velocidade de cruzeiro, quando o engenheiro
Silveira Ramos lhe lançou novo desafio: o de replicar a experiência conseguida em
Angola, mas desta vez em São Tomé e Príncipe. Carlos nem olhou para trás. Aceitou.
Na linha do Equador
«As cores, os aromas, as luminosidades, os sons, as texturas são em África únicos! Como
são as pessoas, os convívios, as cumplicidades, os amores… Em África o sol é uma estrela
diferente: grande, quente, luminosa! (...) S.Tomé e Príncipe é, creio para todos, hoje em dia um
desafio: naturais e estrangeiros, mulheres e homens, negros, mulatos ou brancos! Desafio de
ideias, de apostas, de concepções de realizações!» Foram estas as primeiras impressões que
Carlos registou na sua passagem por África, em particular por São Tomé e Príncipe.
As palavras foram escritas na sua coluna Tons Tropicais, aquando da colaboração com
a extinta revista SOL, uma publicação de carácter social, financiada por investidores
são-tomenses. Ao longo de dois anos, Carlos foi partilhando as suas experiências,
aventuras e emoções com os leitores.
Com a incumbência de levar a bom porto esta nova tarefa que lhe era confiada, cria
em 2006 a Consulmé, uma empresa são-tomense, na qual a Ambigest participa como
accionista, bem como alguns parceiros locais. O arquipélago assumia-se como um
local em potência, com perspectivas de futuro, principalmente depois de terem sido
descobertas jazidas de petróleo nas suas águas profundas. A economia da ilha ganhava
outro fulgor.
Em 2007, a Consulmar ganhou o projecto de engenharia para a expansão do aeroporto
internacional de São Tomé e Príncipe, contando com o apoio da angolana Ambigest,
para a execução dos levantamentos topo-hidrográficos e geotécnicos, e da Consulmé,
para alguns aspectos técnicos e de logística local. No entanto, o projecto ficou
temporariamente suspenso por iniciativa do governo são-tomense, quando o preço do
petróleo caiu dramaticamente em 2008. Devido a esta circunstância, estaria em perigo
o financiamento da obra, directamente dependente da exploração petrolífera. Esta só
era viável com o preço do barril em alta, dado o custo dispendioso de se trabalhar em
águas profundas.
O regresso às origens
Com este empreendimento parado, a Consulmé agarrou outros projectos de menor
dimensão, o que dava a Carlos tempo para apreciar melhor a beleza do arquipélago,
conhecer as suas gentes, os seus costumes e superar o divórcio de um casamento que
não sobreviveu à distância.
O contraste da paisagem verdejante, arrebatadora, farta, com o azul turquesa das
águas cristalinas deixavam-no emocionado. Gostava de passear pelo areal singelo das
praias desertas realçado pelo tom escuro das rochas vulcânicas. Era impossível não
se sentir privilegiado perante aquele colosso de natureza. Era algo de magnânimo.
Ficava extasiado com as cores dos mercados de rua, com o sorriso fácil das crianças,
com as mulheres que se passeavam com os filhos às costas, os cestos na cabeça. Nada
o impedia de andar quilómetros e quilómetros a pé, nem mesmo quando sentia a
camisa ensopada de suor pegada à pele. Afinal, encontrava-se na linha imaginária do
Equador, onde o clima tropical e húmido se faz sentir.
Residente, investidor e amante de África, as ilhas de São Tomé e Príncipe nunca
mais lhe saíram do coração. Acompanha de perto o progresso, as oportunidades de
negócio e aplaude os passos que têm sido dados na criação de potencial económico: a
preservação das reservas naturais, a aposta na área do ecoturismo, como a recuperação
das roças de café e cacau, transformando-as em unidades hoteleiras e outras práticas
responsáveis que visam o desenvolvimento e a sustentabilidade do turismo e a defesa
dos valores e do património cultural nacional. A sua forma de estar interventiva, seja
Portugal, Angola ou São Tomé, chama a atenção de quem observa de perto, como é o
caso de António Grácio, amigo português radicado há alguns anos em S. Tomé, que
viu com bons olhos «a transformação de um mero relacionamento profissional para o
campo da amizade».
As ilhas de São Tomé e Príncipe e as suas dezenas de ilhéus são um conjunto único
de rara beleza. Nesta extensa paisagem, animais selvagens, flores belas e exóticas, rios
e riachos fundem-se numa harmonia repleta de vida, de aromas, de sons e de cores.
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Carlos Pereira
O regresso às origens
“O Carlos
aparece
como cliente
e passa
para amigo”
António Grácio
O amigo Director Corporate
do banco BISTP
em São Tomé e Príncipe
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Carlos Pereira
Um breve olhar
Tem sido uma vida rica, repleta de experiências. Umas boas, outras nem tanto. Mas
todas elas merecedoras de serem partilhadas com aqueles que lhe são mais queridos:
os filhos, os amigos, a mulher.
Carlos vive com o filho, Júnior, e com a mulher, Maria, num apartamento, em Cascais,
num condomínio tranquilo. Conheceu-a em Angola, em 2010, durante uma visita do
Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, àquele país. Costuma dizer, em jeito de
brincadeira, que foi a única coisa boa que o Presidente lhe deu.
As portas de casa estão sempre abertas aos amigos que coleccionou ao longo da
vida. Os de cá, os de lá, em Angola, Cabo-Verde e São Tomé e Príncipe. Artistas,
engenheiros, médicos, gentes com os pés na terra são recebidos num ambiente
fraterno, descontraído. As conversas fluem melhor com um copo de uísque na mão
e um charuto - de preferência cubanos -, na outra. Henrique Fonseca Ferreira é
um desses amigos, cuja amizade leva mais de trinta anos. Conheceram-se no Brasil,
numa das muitas viagens de trabalho que Carlos teve que realizar. Henrique Fonseca
Ferreira trabalhava na altura para uma companhia de aviação: «Conheci o Carlos de
uma maneira muito formal porque o meu trabalho era estar sempre em contacto com
directores e administradores de empresas, mas eu e ele nunca tivemos qualquer tipo
de contacto comercial ou profissional, somos simplesmente amigos porque ser amigo
é a palavra mais importante do mundo». Foi através de Henrique que Carlos conheceu
o Carlos Alberto Vidal – conhecido pelos amigos como Bé -, um amigo mais recente,
mas nem por isso com um sentimento de amizade menor. Bem pelo contrário. «O
Carlos faz pontes invisíveis que atravessam quilómetros. E foi isso que ele fez comigo.
Ele fez uma dessas pontes. É um construtor de amizades, é, de facto, um homem
invulgar no acolhimento e na maneira como vive», garante Bé.
Os domingos estão reservados à família. É nesse dia da semana que a filha, Ana Catarina
e o genro Daniel, levam o Rodrigo a visitar o avô. É dia de festa. Os sorrisos juntamse em torno da mesa e relembram as histórias mais caricatas que os caracterizam,
como a do nascimento do Rodrigo que veio ao mundo no dia 7 de Setembro de 2006,
justamente quando Carlos estava de férias, no deserto da Tunísia, debaixo de um céu
iluminado, carregado de estrelas. «Recordo-me perfeitamente desse dia. Estávamos
de férias no Club Med na Tunísia e tínhamos decidido participar numa excursão
ao deserto, onde iríamos andar de camelo, dormir em tendas dos Tuaregues e jantar
tendo o céu como tecto. Recebi então – estava a fumar o meu charuto do dia – um
telefonema a dizer que o meu neto Rodrigo tinha nascido! Olhei para o céu e pensei
O regresso às origens
01
02
03
01 Carlos Pereira com Maria
na sua casa em Cascais
02 Carlos Pereira com Maria no Porto
03 Desenho de Rodrigo, da casa
e do jardim de Cascais
04 Rodrigo, neto de Carlos Pereira
04
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Carlos Pereira
ver nele mais uma estrela do que anteriormente».
Notável pela sua capacidade de aplicação ao trabalho, Carlos é um homem de espírito
grande, que norteia a vida pela excelência. O seu leque de interesses é vasto. Da
História à Política, da Medicina à Engenharia, há espaço para abraçar o mundo. A sua
curiosidade é infinita.
É um homem de causas, de princípios. Ao longo da vida, participou socialmente na
defesa das questões que lhe são caras e dos valores que acredita: o direito à igualdade
e à justiça. É um homem de muitos talentos. Escreve, desenha, compõe. O seu sentido
de humor aguçado é contagiante. Ao seu lado, ninguém é triste. É-lhe difícil suportar
a mentira, a traição. Quando isso acontece, dá primazia ao corte radical e duro.
Continua um apaixonado por futebol, sempre convicto que tem no coração a alma de
leão. Prestes a celebrar sessenta anos de sócio do Sporting, actualmente com n.º 992,
vive com intensidade os noventa minutos de jogo. Sempre que tem oportunidade,
assiste aos jogos no Estádio José Alvalade, onde tem lugar cativo, acompanhado dos
seus amigos mais próximos. Costuma dizer que não abre uma garrafa de champanhe
sempre que o Sporting vence, mas precisa de 24 horas para recuperar quando o
Sporting perde. As derrotas custam-lhe sempre.
Hoje em dia Carlos, embora residindo em Luanda, reparte o tempo a meias com
aquela cidade e a cidade de Cascais, onde agora reside, deslocando-se quase todos
os meses àquela cidade por períodos de quinze dias. Desta forma, não perde a
proximidade aos negócios e ao mesmo tempo mantém os laços de amizade àquela
terra e à sua gente. Há cerca de um ano, por sua sugestão, a Ambigest deixou de ser
uma sociedade de quotas para ser uma sociedade anónima de acções. Esta passagem
permitiu uma dispersão de capital por alguns dos colaboradores-chave da Empresa
e, consequentemente, perspectivar o futuro, assegurando a continuidade do trabalho
e dos negócios, mediante a “injecção de sangue novo” na condução dos destinos da
Empresa, esperando-se que daí resultem maiores benefícios para todos os accionistas.
Além disso, para Carlos «a possível entrada em funcionamento a breve prazo da
Bolsa de Luanda, poderá vir a permitir a abertura do capital de muitas empresas a
todos os cidadãos, podendo estas encontrar os meios financeiros para os projectos
de investimento que o País exige e necessita, a custos menores. A Ambigest, por
enquanto única empresa de direito angolano no sector da consultoria com certificação
de qualidade, reúne condições para poder, no futuro usufruir de boas condições que
a abertura do mercado financeiro virá a proporcionar».
O regresso às origens
Foi em Angola, por volta do ano 2000 que Carlos conheceu o seu amigo e parceiro de
negócios. João Frazão era representante do Montepio Geral, num banco em Angola,
o BCA, e relembra que quando se conheceram a empatia foi imediata: «Fortaleceu-se
uma amizade muito intensa porque, face às minhas características como pessoa e às
características de Carlos, foi muito fácil entender-nos, tanto a nível pessoal como em
termos de desenvolvimento empresarial». João Frazão reconhece o talento que Carlos
tem para os negócios, destacando o seu «pragmatismo» como forma de estar na vida
profissional. «Eu sou demasiado optimista, ele é realista, pragmático, disciplinador. O
Carlos veio enraizar uma parceria muito intensa, forte, que perdura e vai perdurar por
muito tempo porque ele é uma pessoa disciplinadora por natureza e dotado de uma
realidade objectiva», garante o empresário.
Aos 67 anos, a um passo da reforma, cabe agora seguir tantos outros sonhos. Viajar
mais, ir à descoberta de locais que tanto anseia explorar, viver novas experiências,
conhecer outras culturas, outros costumes, abraçar novas proximidades. Passar mais
tempo com o neto, acompanhar de perto o seu crescimento, as suas brincadeiras, as suas
conquistas. Resgatar projectos antigos que estiveram a aguardar uma oportunidade
para ganhar vida.
Com um modo muito especial de estar, tudo o que faz é com convicção. Fiel à sua
rebeldia navega na vida com humor, serenidade e confiança.
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Carlos Pereira
Revista Sol / Coluna Tons Tropicais assinada por CP
em S.Tomé e Príncipe
Novembro 2008
… o desafio foi lançado e aceite… e o futuro ditará a sua longevidade!
Mais do que traçar metas e apontar objectivos, nesta primeira crónica pretendo dar já
o TON do que virá a ser esta coluna.
As cores, os aromas, as luminosidades, os sons, as texturas são em África únicos!
Como são as pessoas, os convívios, as cumplicidades, os amores…
Em África o Sol é uma estrela diferente: grande, quente, luminosa!
Assim pretende também ser – assim o admito – esta revista que dá os primeiros passos
neste País que, se ele existir, só pode ser o Paraíso neste planeta azul!
S. Tomé e Príncipe é, creio para todos, hoje em dia um desafio: naturais e estrangeiros,
mulheres e homens, negros, mulatos ou brancos! Desafio de ideias, de apostas, de
concepções de realizações!
Há momentos na vida dos países, das organizações das pessoas, que são momentos
charneira em que, nada do que foi antes, voltará a ser como era, depois!
Este País atravessa, creio, um desses momentos, e o futuro dirá se estou certo ou não!
Esta revista nasce com brilho, não só por razão de quem lhe dá “corpo”, mas também
por causa da designação que desde logo ostenta!
A linha editorial é conhecida, tanto quanto é possível conhecer alguém com um mês
de “vida activa”.
O espaço para o crescimento está em aberto, o qual aguardava apenas o aparecimento
de alguém, com coragem e determinação para o explorar. Parece-me ser este o caso!
Como em tudo – ou quase tudo – na vida, este momento aparece embebido de uma
adrenalina muito especial para todos! Até me faz lembrar os momentos – por que
certamente todos (ou quase) já passámos, quando chegamos a esta terra: aqueles
momentos finais que antecedem o “landing”… e, invariavelmente, a explosão
traduzida no aplauso, a quem conseguiu – vá-se lá saber à custa do quê (?) – trazer
O regresso às origens
de novo a este planeta azul, o “charuto metálico” onde estivemos enfiados horas …
É por isso, com a mesma sensação de adrenalina em alta que, no dia 10 de Outubro a
Sol iniciou o seu voo no espaço de comunicação que pretende ocupar!
Da mesma forma eu junto a explosão do meu aplauso às ocupantes do “cockpit” de
onde lideram a sua “viagem”!
Os meus votos sinceros de um excelente voo!
Dezembro 2008
… e a saga destes TONS continua, um pouco à semelhança do que é a vida quotidiana
neste continente: uma constante AVENTURA!
Tenho memórias e recordações, as mais variadas, destes quase trinta anos que já levo
de África, ou se quiserem com mais propriedade, que África leva de mim.
Por isso, muitas vezes, o mais difícil é a escolha...
Mas hoje vou falar – “para variar” – de outras Ilhas e de como estabeleci a minha
primeira amizade africana!
Foi o meu primeiro encontro com o Continente: abafado, quente, denso e escuro que
me penetrou nas narinas e me encheu os pulmões, sacudindo-me o corpo naquela
madrugada calma de Junho.
Na escuridão que tudo engolia – apesar de estar num aeroporto – vislumbrei um
edifício longo, de um só piso e com aspecto de relativamente boa conservação.
Avancei pela placa na direcção dele e procedi às formalidades habituais: vacinas,
passaporte, declaração de divisas e – espantem-se – com relativa rapidez, porque fui o
primeiro passageiro a chegar do avião, hábito que haveria de guardar até hoje!
À minha volta o calor e, sobretudo, a humidade faziam as suas vítimas! Apetecia-me tirar o casaco e a gravata mas não o fiz, talvez porque os outros em redor de
mim também o não fizeram! E quase todos tinham razões de sobra para o fazer –
dentro daqueles fatos de veludo ou bombazina azul, que não escondiam totalmente
as camisas vermelhas sangue, sobre as quais baloiçavam gravatas de bolinhas e riscas
verdes! Percebi que eram emigrantes na Holanda.
Observava com minúcia o que me rodeava e dei conta que os olhares na minha
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Carlos Pereira
direcção aumentavam em espiral! Passei eu a ser o observado!
Estava nisto, sem saber muito bem para quem olhar, quando um miúdo negro,
descalço, camisa fora dos calções e abotoada apenas nos dois últimos, se me dirigiu
num francês rudimentar:
- Messiú! Les bilhetes! Mim tome les males!
Era isso! Decretaram que eu era de outra nacionalidade que não portuguesa!
E esta é outra situação – tal como tentar ser o primeiro a chegar à aerogare – que me
acompanha até hoje, sendo que neste caso… a “culpa” é minha!
A audiência de olhos aumentou ainda em direcção a mim, certamente aguardando
a minha resposta para, finalmente, saberem o que é que um “tipo” como eu estava
ali a fazer, para além de suar as estopinhas e, certamente, dar indícios de pouca
tranquilidade.
A franqueza do olhar do meu interlocutor e o esboço de sorriso que fugazmente lhe
bailou nos lábios, deu-me o impulso para lhe dizer alto e bom som:
- Se falas português… ? eu também… ! e assim vai ser mais fácil para os dois, não achas?
E pronto! Tinha acabado de fazer o meu primeiro amigo em África!
Desde essa madrugada de Junho, escura, quente, densa e húmida, e durante os quase
três anos que vivi nesse País, sempre mantive fielmente o meu “bagageiro privativo”…
pelo menos naquele aeroporto!
Janeiro 2009
Um brusco solavanco do táxi fez-me recordar que o Hotel não tardaria a surgir.
Preparava-me para a minha primeira experiência, no ramo da hotelaria (como
hóspede, claro!) em África!
Virámos à direita, numa curva em gancho, corremos ao longo de um muro enfeitado
com árvores de escassa folhagem e caprichosamente inclinadas para a direita,
descrevemos um U muito fechado e… entrámos no Hotel!
O táxi parou junto à recepção e estendi uma nota de cem para pagar aquela aventura,
ouvindo uma resposta que passaria a ser um dos ex-líbris do meu futuro quotidiano:
- Ká tên tróco sinhô!
Entrei no que pomposamente era apelidado de recepção, pensando que iria encontrar
O regresso às origens
solução para o problema do troco.
Ele levantou-se e olhou algures para um ponto imaginário acima do meu ombro
esquerdo! Olhei instintivamente para trás – era a parede – reflectindo só então que o
funcionário era vesgo!
Vesgo e, desgraçadamente também não tinha troco de cem!
Voltei ao táxi onde o motorista (indicado pelo Chefe Santos, figura de que vos falarei
noutra crónica) e “especializado”na condução de viaturas… mais p’ra lá do que p’ra
cá, me aguardava na maior tranquilidade e sonolência que, de resto, o adiantado da
hora justificava perfeitamente. Dei-lhe a nota de cem e ocorreu-me o que me pareceu
uma ideia genial:
- Venha buscar-me amanhã às nove e depois acertamos as contas!
- Sim sinhô – foi a resposta que obtive, seguida de um cheiro pestilento a gasóleo mal
queimado e um barulho de latas a bater que deve ter acordado os hóspedes do Hotel…
se é que os havia! E havia!
- Temos o 7 e o 23 – disse o vesgo, como se o número do quarto tivesse para mim
algum significado àquela hora da noite. Encolhi os ombros, dando-lhe confiança para
uma decisão que, forçosamente, iria ser sua.
Segui-o e entrámos no barracão seguinte. Accionou o que devia ser um interruptor;
luz… nada e aí apressou-se a dizer em tom de desculpa:
- Esti avarió hoji e o lectricista ká tevi tempo di dá um revisada – emitindo em seguida
uma gargalhada esganiçada a que eu, naquele momento, estava muito longe de
apreender o significado!
Entrei no quarto depois dele… e já só tive tempo de ver três baratas a esconderem-se!
Indicou-me a casa de banho – em frente do quarto do outro lado do corredor – desejou-me boa noite e saiu, dando a sensação de ter ficado exausto com o desempenho físico
dos últimos 5 minutos.
O quarto pareceu-me o Paraíso! Podia finalmente tirar o casaco, a gravata e descalçar
os sapatos!
Atravessei o corredor e fui à casa de banho para me refrescar. Era ENORME!
Podia dar-se um baile lá dentro aí para umas 30 pessoas!
Dirigi-me ansioso à torneira do lavatório e rodei-a.
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Carlos Pereira
Um estremeção violento percorreu a canalização, o tecto pareceu-me ter abanado, um
ronco surdo e cavo saiu pela parede… e a água que saltou da torneira chegou para me
humedecer levemente as mãos! E de água naquela noite… foi tudo! Voltei ao quarto
e deitei-me.
Curiosamente tinham colocado um candeeiro público – dos raros existentes e sem a
lâmpada fundida – mesmo em frente da janela do meu quarto! A intensidade da luz
era tal que poderia ler o jornal da noite se fosse esse o meu desejo naquele momento!
Desafortunadamente, não era e só então percebi a razão de ser e o verdadeiro alcance
da frase: - Temos o 7 e o 23!
Fevereiro 2009
Após os trágicos acontecimentos do 11 de Setembro, as regras de segurança e de
controlo dos passageiros em todos os aeroportos do mundo foram alteradas de forma,
em alguns casos, drástica!
E eu, que passo uma boa parte da minha vida em viagens intercontinentais, não só
assisti ao agravamento das rotinas nos aeroportos, como também constatei que, em
vários Países Africanos, as alterações às regras e às normas, foram sendo introduzidas
de uma forma, como dizer… muito macia,… muito confiável, numa palavra, muito
peculiar, mas progressiva!
À medida que o tempo foi passando – embora nunca mais se tenha regressado ao
ponto de partida – a verdade é que se foi instalando um “clima” mais brando nas
inspecções electrónicas da bagagem de mão. E isto um pouco por todo o lado.
Umas vezes a fivela do cinto fazia apitar (não o comboio, como na canção popular)
mas o “íman” gigante do controlo,… outras vezes não!
Uma vez presenciei uma “novela” com uma senhora que tinha um soutien com
aplicações metálicas, com que a máquina embirrou, não parando de apitar, enquanto
noutras ocasiões nem os relógios de pulso, nem os óculos de sol motivavam o mais
pequeno apito, por menor que fosse.
Enfim, variações tão significativas que, um dia perguntei ao funcionário de segurança
de um dos aeroportos a razão para tais variações, ao que ele solicitamente me
informou:”…depende da regulação da máquina!”
O regresso às origens
Aí julguei ficar a saber que “a coisa” estava a entrar no bom caminho! Era tudo uma
questão de “regulação”!
Eis senão quando, na sequência de um alerta registado – se bem me lembro – algures
num aeroporto Europeu (onde mais poderia ter sido?), passaram a ser proibidos
os líquidos e os “pastosos” em volumes superiores a 100 ml/mg, medida decretada
pelos “especialistas” da UE, (certamente “familiares” daqueles que, há uns anos atrás,
decretaram a bitola uniformizadora para as peras, as maçãs, as laranjas, os limões,
enfim, todas as frutas e todos os legumes de todos os tipos e qualidades), mas a que a
“jovem crise financeira, económica e empresarial de 2008” veio por termo.
Os preliminares das viagens aéreas, pelo menos em alguns aeroportos e em
determinados momentos do calendário, tornaram-se verdadeiras aventuras!
E se de aventuras vos falo, nas viagens de carreiras normais, imaginem o que não será
nas viagens oficiais de altos dirigentes, de uns Países a Outros, sobretudo quando
devidamente acompanhadas por comitivas de empresários, investidores e gestores,
“topo de gama”!
Participei, de perto, numa destas viagens, não de ida… mas de regresso… ! E claro, já
sei, vão querer saber o porquê, mas, sobretudo, o como!
Sem entrar em detalhes, nem referenciando nomes nem lugares, o que pensariam os
nossos leitores da aplicação das regras de segurança de uma viagem oficial, do tipo
daquelas a que acima me referi?
Pois bem! Fiquem calmos! Nada de “exames prévios”, de “apitos inopinados” de
máquinas, mais ou menos reguladas, ou reguladoras! Absolutamente nada!
Bem, nada, também não é bem assim! De facto, fundamental, decisivo e indispensável
foi adoptar-se uma “atitude” séria, uma “postura corporal” hirta, um “cenário”
clássico escuro e um “apêndice cervical” berrante.
Eis a receita para o sucesso de qualquer verdadeiro “penetra”, ainda que na mais
organizada, controlada e exigente viagem oficial de um qualquer Dirigente “topo de
gama” a outro qualquer País em processo de “aceleração dinâmica”.
Bem! Mas também confesso, que uma parte não desprezível do sucesso desta
“operação” se ficou a dever, de modo irrefutável, às características genéticas com que
os meus progenitores “decidiram” dotar-me! Porque se eu tivesse tez morena, bigode
preto e olhos escuros… sei lá o que me teria sucedido!
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Carlos Pereira
Assim, e até este momento, fiquei com uma excelente recordação do que constituiu a
minha primeira e única experiência de “penetra”, em viagens oficiais!
Março 2009
Acordei com um estremeção violentíssimo e um barulho ensurdecedor... que
progressivamente crescia de intensidade.
Estava a acordar da minha primeira noite em África, e sentia-me completamente,
desorientado...
Abri muito os olhos – como que para tentar perceber, através deles onde estaria e o
que estaria a acontecer – mas só dei conta que o barulho não parava de aumentar.
As poucas células cinzentas que de imediato iniciaram o trabalho de mais um dia,
desenvolveram actividade suficiente para me explicarem que “aquele barulho
ensurdecedor”... era o ruído de um avião!
Por breves instantes pensei, sinceramente, no que seria o acidente do ano!
“Um avião repleto de passageiros, algures no Atlântico, esborrachando-se sobre um
Hotel com vários hóspedes... de uma ilha quase inabitada!”
Não mexi, sequer, um músculo... e preparei-me para o estrondo final.
O ruído atingiu o clímax... e rapidamente... perdeu-se no espaço...
O avião da Aeroflot acabava de descolar pontualmente!
Nesse momento dei conta de que estava completamente ensopado em suor. Eram
7 da manhã e, à semelhança da noite da chegada, só que agora o Sol, entrava às
toneladas pela janela do quarto.
Fiquei na sorna mais algum tempo, até que uma pequena dúvida começou a ganhar
corpo e a monopolizar o meu pensamento: Será que iria ter água... ao menos para
lavar a cara?
A experiência na noite da chegada não tinha sido brilhante quanto à água, e pensei:
“Que me estará reservado, neste aspecto líquido, para hoje!”
Já tinha ouvido, ao longe, ruídos no corredor que davam a entender que o dia, para
alguns hóspedes, já tinha começado.
Subitamente assaltou-me uma ideia: “ E se eles gastam a água toda? “ como já estava
bem desperto, pensei que o melhor era ir, de imediato, à casa de banho! E fui!
O regresso às origens
Atravessei o corredor e entrei no “salão de baile”.
Olhei para as torneiras com desconfiança. Não se ouvia um único ruído! ... Mas só
então dei conta de que tinha os pés plantados numa poça de água que, “o salão de
baile”, caprichosamente acumulava à entrada da porta. Decidi-me abrir a torneira e
dei-lhe duas voltas. Do crivo cheio de buraquinhos com a dimensão da ponta de um
alfinete... uma meia dúzia deles não estavam entupidos.
Mas havia água!
Concedi-me, então, momentos de rara felicidade, ensaboando generosamente todos
os centímetros quadrados do meu corpo.
Voltei a rodar a torneira e a água, com alguma relutância, deixou-se cair sobre mim com
uma lentidão que parecia antever o fim próximo que a esperava na fossa lá por baixo,
na companhia pouco agradável, das substâncias que, habitualmente a sobrenadam.
Mas eu borrifei-me para o problema da água e para o fatalismo irreversível da sua
trajectória, porque tinha outro problema a enfrentar! Tirar o sabão que me cobria,
quase por completo, todo o corpo!
Dentro do quadrado do duche, procurava acertar com o corpo ensaboado nos
esguichos que saíam do crivo, cada um na sua direcção.
Tirar o sabão das curvas que a natureza colocou precisamente do lado oposto àquele
de onde a água caía... foi uma tarefa que me fez suar!
Melhor ou pior, acabei por sair daquele quadrado e comecei a enxugar-me.
Só então me ocorreu como tinha sido estúpido!
Podia ter tirado muito mais facilmente o sabão das ditas curvas... fazendo calmamente
o pino!
Reconfortou-me, contudo, a ideia da natureza também não ter sido mais esperta do
que eu, pois não tinha tido a perspicácia de colocar as ditas curvas, num lugar mais
acessível à água!
Empate técnico, portanto!
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Carlos Pereira
Abril 2009
Ao fim de meia dúzia de TONS TROPICAIS, admito que existam vários TONS
de vozes, eventualmente pronunciando-se em surdina, não só sobre os conteúdos
abordados, mas também sobre a forma de os transmitir!
E se em relação aos conteúdos a responsabilidade não me pode ser exclusivamente
imputada, (a vida muitas vezes proporciona-nos oportunidades quase inesperadas) em
relação à forma, admito sem dificuldade, que ela representa um estilo de comunicação
muito pessoal.
Acredito que para quem conheça os Trópicos, as narrativas apresentadas não
constituam novidade de maior, mas também julgo ser legítimo pensar que muitas
vezes muitos de nós (para não dizer quase todos), passamos por situações e cruzamos
espaços, aos quais não damos o valor e a atenção de que muitas, quer umas, quer
outros, eram merecedores.
Aquele meu primeiro pequeno almoço em África ficou marcado também por alguns
caprichos de que a aviação comercial é tão fértil. Mas vamos à história.
Ao sair do barracão onde se situava o quarto 23, dei comigo embasbacado a olhar as
árvores que mais se assemelhavam a esqueletos torcidos, todos inclinados na direcção
oposta à do vento. E o “Hotel”… bem o hotel era uma antiga instalação militar dos
tempos coloniais!
O Restaurante do Hotel ficava numa outra dependência da antiga instalação militar.
Mal entrei, dei conta que todos os olhares convergiram sobre mim; porém desta vez,
com a experiência da noite anterior do aeroporto, avancei com decisão para uma mesa
num canto, sentei-me de costas para a parede e fiquei de frente para a assistência,
olhando-os com firmeza. E num ápice, como que por encanto, uns após outros, os
olhos que me miravam, desviaram-se para outros centros de atenção, fosse a mesa
própria, fossem rostos alheios.
O empregado acercou-se de mim com pão, manteiga e compota (ainda não tinha sido
instaurada a modalidade do “buffet”). Aproveitei e pedi café.
Verifiquei imediatamente que a manteiga era holandesa e a compota sul africana, mas
de boa qualidade!
O café recompôs-me como só ele sabe!
A minha atenção centrou-se, entretanto, numa mesa onde se falava um espanhol
O regresso às origens
a que os meus ouvidos não estavam habituados.
Deduzi ser a tripulação de um avião, por causa das fardas que os vestiam, de resto com
muita originalidade!
As assistentes do ar vestiam calças de malha agarradas ao corpo de um azul eléctrico
que feria a vista, enquanto as camisolas eram às riscas horizontais vermelhas e brancas.
Um bocado berrante, concordo!
E nisto, fiz outra dedução! Aquelas cores… aquela língua de um espanhol diferente…
deviam ser cubanos!
E eram, confirmei mais tarde!
Mastigava já a última fatia de pão, quando os tripulantes se levantaram e se dirigiram
para a saída do Restaurante.
Então, ao olhar para as calças azuis das assistentes, recordei-me das peripécias do meu
duche matinal, e ocorreu-me, de imediato, uma pergunta:
- Como conseguiriam elas tirar o sabão daquelas curvas avantajadamente maiores do
que as minhas com que a natureza, talvez por malandrice, as dotou?
Será que sabiam fazer o pino?
Maio 2009
Os hábitos e costumes em África – sobretudo a que adopta a língua Portuguesa como
modo oficial de comunicação – encerram variantes e cores humanas muito próprias,
muito “Africanas”, muito marcadas de TONS TROPICAIS.
Após uma viagem nocturna de mais de sete horas de avião – fora os tempos de espera
no aeroporto de partida e, quantas vezes no de chegada – o descanso de um par de
horas é, não apenas indispensável mas, acima de tudo, justo.
Numa das minhas idas para África, depois de duas ou três horas de repouso, sou
acordado com o toque da campainha na porta do meu apartamento. Fui abrir… e
deparei com alguém que me disse:
- Sinhôr Inginhéiro! Istou ditido!
Ao seu lado alguém com um uniforme da polícia local acompanhava o meu interlocutor
que se apresentava de T shirt branca meio suja, calções e chinelas de enfiar o dedo!
Ainda mal refeito da “surpresa matinal”, continuei a ouvir algumas explicações rápidas:
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Carlos Pereira
- Esta noiti, tivi uma confusão no meu quintali e fui ditido! Tem aqui a chávi do seu jipi!
Estendi a mão, recebi a chave do meu Honda, enquanto o policial e o seu detido,
chamavam o elevador e desciam, sem eu saber muito bem para onde!
… e só no dia seguinte vim a conhecer a totalidade da história, que nem tinha sido,
afinal, demasiadamente grave!
Nestas paragens, o fim de semana é sempre aproveitado para dar “elasticidade” não só
ao estômago… mas também aos braços, e quando esta “elasticidade” atinge níveis de
agressividade maiores do que o normalmente tolerado – e isso acaba quase sempre por
acontecer – a intervenção das forças policiais, torna-se naturalmente… obrigatória!
Pois foi o que aconteceu… a única variante significativa foi que o detido deveria ter
ido ao aeroporto entregar-me a viatura – e a respectiva chave – e a essa hora estava
às voltas, à cabeça dele e dos policiais que o haviam detido, para tentar justificar… o
injustificável!
Mas acabou por conseguir atingir os objectivos… cerca de cinco horas mais tarde,
revelando tenacidade, persistência e determinação!
Também é justo reconhecer que a solução do caso esteve muito dependente da
mudança de turno na esquadra, sem o que, provavelmente, teria estado várias horas
mais, esperando a chegada da chave do carro.
O que mais espanta e merece reflexão nesta curta história é sem dúvida o sentido
de responsabilidade do detido – que sabia que eu iria chegar e tinha necessidade da
viatura cuja chave estava em seu poder – e que tudo tentou, ao longo de toda a noite
anterior, para explicar, na esquadra para onde tinha sido conduzido, a necessidade da
entrega da chave da viatura em causa, e ao mesmo tempo a brandura dos costumes
destas terras que permitem que um detido se desloque acompanhado pelo piquete
policial de serviço apenas para fazer chegar ao seu destino… a chave de uma viatura
que deveria ser entregue a alguém, neste caso eu, à chegada ao aeroporto!
Não creio que esta situação fosse possível acontecer noutras latitudes!
São as características muito próprias dos TONS TROPICAIS.
O regresso às origens
Junho 2009
As pessoas que têm de África um conhecimento indirecto ou superficial, desconhecem
um sem número de situações, ditos, tradições, costumes e vivências, que preenchem
muito do quotidiano de quem cá trabalha e por cá vive…
Vem esta introdução a propósito de um dos mais usados e típicos conceitos
utilizados quase por toda a gente, de forma generalizada, que dá pela designação de
“CACIMBADO”, e que pretende significar que o agente objecto de tal designação,
ficou transtornado da cabeça por causas atribuíveis ao clima.
Cacimbo é a designação que se dá à estação do ano mais seca, caracterizada sobretudo
por noites um pouco mais frias e húmidas, que aqui se designa por Inverno, embora
as temperaturas, mesmo à noite, raramente baixem dos 14 graus.
Cacimbados, tenho conhecido muitos, cada um com as suas características e,
sobretudo, com o seu cacimbo muito próprio.
Numa das minhas viagens em África, saltitando de aeroporto em aeroporto e de País
em País, participei numa pequena história que vou partilhar convosco, que fez rir toda
a gente que a ela presenciou e que ilustra, de certa forma ainda que muito branda, as
múltiplas maneiras de que o fenómeno do referido cacimbo se pode manifestar.
O almoço tinha terminado e antecipávamos a partida para o aeroporto, na sempre
agradável companhia de um último café, um requintado cognac francês e um saboroso
charuto cubano, quando alguém do grupo, com a entoação muito própria da sua zona
de origem – o maciço calcário estremenho – catapultou para o ar, com a plena força
dos seus pulmões … a seguinte afirmação:
- Eh! Pá! Mas o que é isto? Oh! Jovem! Isto no mínimo é uma escarreta! Afirmação feita,
olhando para o conteúdo do balão onde, supostamente deveria repousar, envolvido
pelas paredes aquecidas do cristal, um cognac francês das melhores origens…
Fez-se um silêncio momentâneo e sepulcral a que se seguiram, ainda que de forma
meio contida, afirmações do tipo:
- Na! Não pode ser! O senhor está a ver mal! – dizia um!
- O quê? Uma quê? – perguntou outra a quem a falta de familiaridade com o termo
usado, levava a fazer esta interrogação.
… mais um comentário ou outro, mais um sorriso brando e algumas palavras de
moderada contenção, até que alguém perguntou:
-… E não será o reflexo do tampo da mesa no fundo do balão?
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Carlos Pereira
Silêncio ensurdecedor de partir ouvidos, no meio do qual, a entoação do maciço
calcário estremenho, embora muitos decibéis abaixo da explosão anterior, se ouviu,
afirmando:
-… Ah! Pois é! São as meias-luas escovadas no tampo de aço inox da mesa que dão
este reflexo no fundo do balão de cristal! Risada geral inevitável!
Objectivamente não haveria razões para a confusão visual a que, os efeitos escovados,
em forma de meia-lua no aço inox de um simples tampo de mesa de bar, tinha
conduzido!
Daí que a única justificação plausível que encontrei para a ilusão de óptica verificada
tenha sido a do efeito do tal cacimbo, a que todos, uns mais do que outros, de tempos
a tempos, somos sujeitos.
Julho 2009
Os TONS TROPICAIS que têm sido escritos, sempre se referiram a situações e
vivências ocorridas na “margem esquerda do Oceano Atlântico” (se considerarmos
que Ele corre de Norte para Sul), ou seja… em África!
Desta vez a crónica vai fazer referência exactamente a situações vividas na “margem
direita” do Atlântico, na América do Sul, destino normalmente privilegiado de Sol,
mar e praia… e muito calor tropical… e não só!
Numa das minhas viagens – por acaso desta vez simplesmente para descanso – resolvi
meter-me numa “aventura”, de que me não arrependo, mas que a época do ano em
que foi vivida, aconselha a não repetir!
À chegada, as formalidades decorreram sem qualquer sobressalto e dentro de tempos
de espera perfeitamente aceitáveis.
A recepção foi como estava estabelecido: guia, segurando um cartaz com o meu nome
(figura proporcionada de mulher quarentona, enxuta de carnes, simpática e faladora)
e motorista do tipo negrão avantajado em todas as dimensões – altura, largura… e
profundidade!
Este início não prenunciava a experiência que iria viver… poucas horas mais tarde!
O regresso às origens
A viagem no veículo à disposição foi de comodidade razoável, mas de muito agradável
iniciação – paisagem muito bonita, mata atlântica praticamente virgem, sem vestígios de
“alarvidades” urbanísticas e tráfego sem qualquer tipo de congestionamentos.
A guia lá foi, de forma muito diligente e didáctica, transmitindo o que de mais
importante havia para fazer referência nas zonas por onde íamos avançando – e a
distância a percorrer desde o aeroporto até ao destino final haveria de atingir quase os
sessenta quilómetros – fazendo daquele primeiro impacto (depois de quase 9 horas de
viagem) um momento agradável.
A via rápida por onde circulávamos, dispunha junto das respectivas bermas, de
muitas informações imobiliárias que davam conta dos vários condomínios, resorts e
empreendimentos turísticos a que a mesma dava acesso. Porém, olhando na linha do
horizonte, não se descortinava qualquer tipo de construção! Apenas a mata atlântica,
de um verde que fazia doer os olhos e com uma densidade que nem a luminosidade
do Sol conseguia romper!
O local para onde me levavam – e que para mim continuava a ser completamente
desconhecido – foi-me sendo apresentado como um local quase único, não só do
ponto de vista ambiental mas, sobretudo, como um local onde, socialmente, tinha sido
possível inverter a lógica tradicional da forma de vida das populações, que colocavam
em risco várias vertentes do eco sistema local, adaptando-a a um conceito novo de
convivência harmónica com a natureza, conseguindo com essa alteração, promover
condições de vida de melhor nível do que o existente anteriormente.
Para que conste – e porque me parece de elementar justiça referi-lo – o projecto em
causa dá pelo nome de TAMAR!
A chegada ao hotel não registou factos particularmente dignos de nota – as
formalidades habituais do preenchimento da ficha hoteleira, da fotocópia do passaporte
a apresentação do cartão de crédito destinado ao pagamento final… e condução ao
apartamento que me estava destinado, e onde, naquele momento, eu estava longe de
pensar, iria viver uma experiência, no mínimo, pouco agradável!
Mas, o resto da história, continuará na próxima crónica!
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Carlos Pereira
Agosto 2009
Viajei desde a recepção até ao meu alojamento, num carrinho movido a energia
eléctrica, dando-se assim também neste domínio, justiça à designação do local como
Eco Resort!
E a distância correspondeu a uns cinco minutos bem medidos!
O quarto era grande, com uma cama generosa de dimensões e comodidade, dispondo
de um “banheiro” muito amplo, com compartimentos separados para o duche e para
as atitudes mais prosaicas que todos realizamos, diariamente, sentados… excepto,
evidentemente os turcos!
Uma varanda de madeira, tipo balcão, corria a toda a largura do quarto, oferecendo a
comodidade de uma cama de rede de baloiço, tão habitual nestas latitudes.
Procedi às rotinas habituais após chegada a um novo lugar: arrumei as roupas,
organizei os utensílios de higiene pessoal no “banheiro”, coloquei no recato do cofre
existente, os bens dignos de tal protecção, e que no meu caso pessoal atingem as caixas
de charutos de que, sobretudo em viagens de repouso e relaxe, jamais abdico!
Com a velocidade do avião e a direcção do voo, tinha ganho naquele dia 4 horas de luz
diurna. Pensei, por isso, em aproveitá-las.
Daí à decisão do duche foi um pequeno passo e uma decisão fácil!
Abri a torneira da água, aguardei que a temperatura do líquido atingisse o valor de
comodidade mínimo exigível e… da torneira começou a jorrar… um líquido cor de
sangue, que se encarniçava cada vez mais à medida que ia saindo, provavelmente por
algum acaso julgando que eu era adepto de clubes daquela cor! Mas não sou e… ali
fiquei especado… á espera que a crise passasse!
Mas o facto é que não passou!
O chão do quadrado do duche era já uma enorme “poça de sangue”, cada vez mais
vermelho… porém de temperatura horrivelmente baixa!
Liguei para a recepção e fui imediatamente atendido com toda a cortesia.
O regresso às origens
Explicaram-me que a manutenção se deslocaria de imediato para resolver a situação,
do que sinceramente naquele instante… duvidei! Cá para mim, estava na presença
de uma ruptura na canalização, em zona de terra vermelha que lhe deveria servir de
“cama”, e que contaminava, de forma muito intensa, o que pressupostamente deveria
ser um caudal de líquido insípido, incolor e inodoro que me rejuvenesceria, no mínimo,
as quatro horas que havia ganho à custa da máquina que me transportara.
Fechei a torneira e aguardei!
Passaram uns 20 minutos… e nenhuma notícia, nem positiva, nem negativa.
Voltei a girar a torneira… mas a cor ainda se mantinha, talvez menos intensa … mas
ainda muito colorida para meu gosto!
Tomei então uma decisão drástica! Fui à recepção, pessoalmente, o que me levou uns
10 minutos a pé!
E foi a confusão generalizada!
Não sabiam a razão de ser de tal anomalia, que era a primeira vez que uma situação
destas ocorria, que os serviços de manutenção estavam a envidar todos os esforços no
sentido de a corrigir… e pátáti… pátátá!
Corri então mais um risco: o de dar uma sugestão, que me pareceu a mais adequada,
mas que se veio a revelar… de grande incomodidade!
Sugeri a mudança de quarto, até porque me tinha dado conta que o Resort estaria em
muito baixa ocupação!
Aprendi porém, que em lugares e situações inesperadas como a que estava a viver,
o melhor será sempre deixar a iniciativa… a quem tem a obrigação profissional de a
tomar.
Mas essa é a parte final da história… que fica para os próximos TONS TROPICAIS.
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Carlos Pereira
Setembro 2009
… de facto, até pareceu que eu tinha acabado de fazer a descoberta do ano!
Que sim senhor, que tinham disponibilidade de quartos, que até me iam colocar do
lado oposto do Resort, onde estavam as obras em curso e até me fariam um upgrade
no alojamento para, de alguma maneira, me compensarem dos incómodos por que
estava a passar!
Foi mobilizada uma equipa de governantas para transportarem as minhas roupas que
estavam todas colocadas nos cabides, bem como o resto das tralhas pessoais!
Todos a bordo do carrinho eléctrico e… mais uma viagem até ao quarto “acidentado”.
Mal iniciámos o percurso ouve-se, ainda um pouco ao longe, o ribombar de um trovão!
Pensei cá p’ra mim! Boa! Agora só faltava mesmo… era uma chuvada das valentes!
E ela não se fez esperar muito! Mas já lá vamos!
Uma vez de novo no quarto, os oito braços disponíveis carregaram com facilidade
todas as minhas tralhas, tendo eu optado por controlar algumas coisas mais sensíveis,
nomeadamente equipamentos fotográficos e de vídeo, relógios, computador e charutos!
Voltámos ao nosso meio de transporte ecologicamente irrepreensível, transportando
toda a “bagagem” também junto de cada um dos passageiros – eu incluído – e início
de nova viagem!
Para caracterizar melhor o meio de transporte a que venho a fazer referência, bastará
dizer que a viatura em causa era em tudo semelhante às que equipam os campos de
golfe e são utilizadas para transportar os jogadores … de buraco em buraco!
Pois bem! Passados que eram duzentos ou trezentos metros… uma chuvada tremenda
das bem tropicais, desabou em cima do carrinho, do motorista, das governantes, das
camisas, das calças… e de mim próprio!
E não havia mais nada a fazer, senão… continuar a caminho do quarto alternativo!
E cada vez mais a chuva caía impiedosamente, pretendendo indicar-nos uma qualquer
razão para o seu súbito aparecimento - que eu não compreendia naquele momento mas a que agora penso ter, pelo menos descortinado, uma razão plausível!
O regresso às origens
Claro que o carrinho eléctrico continuou o seu caminho sem nenhuma anomalia
de funcionamento, nem mecânica, nem electronicamente falando, mas os seus
ocupantes… e as minhas roupinhas… coitados… ficámos ensopados, pelo menos, até
ao mais interior de nós próprios!
Chegámos finalmente ao novo bloco de quartos onde tinham decidido alojar-me!
A governanta que dirigia a operação de “trasladação” das roupas e outras tralhas,
olhava com ar desapontado para o estado caótico em que as minhas camisas de linho,
as calças, as bermudas e a restante roupa, se encontravam…! E abanava a cabeça, da
esquerda p’rá direita, em movimento reprovador de enorme sofrimento!
De repente, olhando directamente os meus olhos, disse-me, com um brilho especial
nos seus próprios olhos:
- Sinhô! Vô levá p’rá lêvandaria suas rôpas p’rá cuidá délas!
… E eu ainda meio atordoado por todos os acontecimentos vividos na última hora,
limitei-me a concordar com um movimento de cabeça, tendo então concluído que, de
facto, nada acontece por acaso, e que aquela valente borrasca tinha tido a sua razão
de ser!
…É que as minhas camisas, calças e restante roupa, após mais de 8 horas encafuadas
numa maleta num porão de avião, estavam mesmo a necessitar de um tratamento de
ferro de engomar… e a chuvada, providenciou esse tratamento que, para mim, veio a
ser a custo zero!
Afinal… nem tudo foi uma completa e total “inundação”!
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Carlos Pereira
Outubro 2009
Afinal… o tempo passa mesmo muito depressa!
Parece que ainda foi ontem que este desafio foi por mim aceite e, de repente, esta
crónica, completa um ano inteiro de colaboração na “nossa” Revista SOL.
Espero que a Directora me permita também considerar esta Revista… como um
pouco “minha”, sobretudo no sentido de que reconheço o esforço e a determinação
que tem sido colocada por quem dirige a SOL, ao longo deste primeiro ano de vida,
para manter vivo o sonho imaginado e concretizado… há um ano atrás!
E todos sabemos como uma aventura como esta comporta riscos.
De vária ordem, de múltiplas dimensões e, por vezes, de consequências imprevisíveis!
Como já estão a reparar – os leitores desta coluna, se eles existem – a crónica de hoje
tem um tom diferente do habitual. Não só porque um ano é sempre motivo para
celebração, mas também razão para balanço.
Sobre a celebração, já acima deixei algumas palavras de regozijo pela efeméride,
desejando que o projecto da SOL prossiga o seu caminho, mantendo a qualidade e
independência editorial que até agora tem sido a sua imagem de marca.
Claro que existem aspectos em que é possível melhorar! Nunca nada está perfeito e a
ambição da excelência deve ser sempre um princípio norteador de qualquer actividade
humana!
Pelo meu lado, revendo o conjunto de crónicas produzido, creio que se pode considerar
que os objectivos propostos foram, pelo menos parcialmente, alcançados!
A ideia de que se partiu para os TONS TROPICAIS está patente, se não em todas,
pelo menos na maior parte das crónicas.
A ideia de que os trópicos influenciam o comportamento humano, parece-me ser uma
evidência que perpassa transversalmente o conjunto das crónicas.
E não se pode circunscrever esta evidência a um determinado continente, quanto mais
a um País.
O regresso às origens
Creio mesmo que a generalidade dos leitores, ao longo das crónicas, deve ter tentado
descortinar os locais a que as diferentes histórias se referiam; e admito que em alguns
casos tal terá sido possível, sobretudo por quem conheça um pouco do que é a minha
actividade profissional nos últimos 20 anos.
Mas a ideia de não dizer claramente os lugares onde as memórias se escreveram,
tinha o objectivo de transmitir exactamente a ideia de que “elas” eram praticamente
independentes dos locais onde ocorreram!
E feito este discurso um pouco à laia de balanço, preparemo-nos para o próximo ciclo
de mais 12 meses!
Este novo ciclo, no que aos TONS TROPICAIS se refere, irá manter o tom e a cor
tropical, talvez com algumas nuances e marcas de contemporaneidade, sobretudo ao
nível das histórias narradas.
E, portanto, a promessa da continuidade da crónica, aqui fica assumida!
Assim a Direcção Editorial o pretenda e a Revista mantenha a regularidade “nas
bancas”
Parabéns pelo 1º aniversário.
Novembro 2009
Ao longo destas crónicas, um dos temas que nunca abordei, foi o dos “amores” em
África – e… não foi simplesmente por acaso!
De facto, para poder falar sobre este tema, torna-se indispensável dispor de “alguma
experiência” sobre ele mas, mais do que isso, conhecer alguma coisa do ambiente
cultural e tradicional africano, em que “os amores” são “desencadeados, aprofundados,
desenvolvidos e… concretizados!”
África é um continente muito peculiar no que se refere a este tema, não só por razões
climáticas, mas acima de tudo por razões que têm a ver com a naturalidade com que,
culturalmente, o amor é encarado, assumido e vivido, a maior parte das vezes muito
profundamente…
Esta naturalidade com que o amor - aqui por estas terras – se deixa desenvolver, não
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Carlos Pereira
é comparável com nenhuma outra fórmula conhecida – pelo menos por mim – em
outras paragens…
E quando se fala de amor, fala-se evidentemente, desde o conglomerado de olhares,
sorrisos, segredos ciciados que pautam os momentos da descoberta, passando pela
ansiedade com que se espera a concretização do primeiro encontro a dois, até à entrega
mútua das vontades, desejos e sentidos, muitas vezes guardados durante momentos de
espera longa e ansiosa! Mas vamos à crónica de hoje!
Num lugar algures neste continente, numa esplanada, noite após jantar, bebia um café!
De repente, da escuridão da noite, surge um Lancia branco, muito desportivamente
conduzido por uns cabelos alourados, compridos e anelados que indicavam o fim (ou
o princípio) de uma mulher alta e elegante, numa palavra… vistosa!
O carro parou com ruído de pneus indiciador de que a velocidade de que vinha
animado era a que habitualmente se pratica por estas paragens, ou seja, superior à que
o bom senso aconselharia.
De dentro do carro saíram quatro mulheres, todas “indígenas”, que se dirigiram para
uma mesa da esplanada onde me encontrava!
Como quase todos os naturais destas paragens, as vozes das quatro falando entre
si, produziram uma algazarra de nível sonoro significativo e de fonética – para mim
naqueles momentos – pouco perceptível!
Não raro, intervalando risinhos e sorrisos marcados por alguma malícia, iam olhando –
alternadamente – para a mesa onde eu me encontrava, observando-me com a atenção
que um rápido passar de olhos permite.
Percebi que, por todo o “enquadramento da cena”, não poderiam ser uma “gentinha
qualquer”, porque Lancias brancos naquelas paragens não são propriamente
alcançáveis com facilidade … e nem toda a gente vai à noite, num dia sem história…
tomar um simples café!
Mais tarde viria a saber que a condutora do Lancia pertencia a uma família de
comerciantes poderosos do País.
Pelo meu lado, a intervalos espaçados, ia olhando na direcção da mesa delas e ia
confirmando o aumento progressivo, quer do ritmo, quer da sonoridade da conversa
e das gargalhadas atiradas para o ar da noite.
O regresso às origens
Registei que uma delas aparentemente apresentava – pelo menos à distância a que
me encontrava – características de liderança do grupo, registo que mais tarde viria a
confirmar!
Repentinamente – coisa que por estes lugares também é muito comum acontecer –
ou seja quando se espera que o “show… goes on” – terminado o café, puseram-se a
mostra-me o “filme” todo ao contrário…
Saíram todas juntinhas, com todas as cores que traziam em cima, as gargalhadas que
despejavam a intervalos bem ritmados, com os tais cabelos alourados, compridos e
anelados que indicavam o fim (ou o princípio) de uma mulher vistosa a comandar o
quadrunvirato de que o frenesim era a característica mais em evidência.
E assim como vieram… se foram… no Lancia branco dos cabelos esvoaçantes!
Não sei, ainda hoje, se foi só por isto, mas foi com certeza também por isto que, meses
mais tarde – já mais enturmado nos hábitos da terra - eu começaria a chamá-las “O
Grupo das Frenéticas”! Mas isso… são outras histórias…!
Dezembro 2009
Catarina – a Grande – foi imperatriz da Rússia, tendo como nome próprio Sofia
Augusta Frederica de Anhalt-Zerbst.
É sobejamente conhecido o seu comportamento e a sua reputação, não só como
Imperatriz de todas as Rússias, mas também pela forma como ascendeu ao poder
– destronando e atraiçoando o verdadeiro Imperador, o Czar Pedro III, também seu
marido, com uma panóplia de amantes e súbditos, qual deles de nome mais pomposo:
Sergei Saltykov, Gregório Grigoryevich Orlov, Stanislaw Augusto Poniatowski,
Alexandre Vassilchikov, entre outros.
Consta, não sei se veridicamente se de forma lendária, que nas noites longas e frias
da Rússia da época, enquanto a Imperatriz se “divertia” nos seus aposentos, com os
variados súbditos e amantes,… o Czar… recortava figurinhas de papel… num dos
aposentos do Palácio de Inverno, em São Petersburgo.
Como tudo isto é “tão carinhosamente diferente”… nos trópicos!
A história que hoje vos relato, ocorreu ainda no século passado, e tem contornos
caracterizadores de uma forma de estar e ser… do amor… nos trópicos.
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Carlos Pereira
Seriam 20 H e, inesperadamente, a porta do meu apartamento suportou três ou quatro
batidas rápidas de nós dos dedos… de alguém…
Acabava de regressar de uma viagem doméstica de avião e preparava-me para tomar
um duche refrescante, já com a toalha de banho ao redor da cintura.
Espreitei pelo ralo da porta e vi uma figura de mulher, minha conhecida, mas
totalmente inesperada, sobretudo naquele momento… e àquela hora da noite!
Abri naturalmente a porta… e ela entrou.
Do seu metro e cinquenta de altura e do seu sorriso luminoso, olhou-me de frente!
Eu, ainda estupefacto pelo seu aparecimento, devia estar com um ar completamente
“parvo” mas, sobretudo, interrogativo. Não me saiu, por isso, uma palavra da boca!
Ela, sentindo o verdadeiro efeito do seu aparecimento, não anunciado e, acima de
tudo, inesperado, tomou a palavra para, frontalmente me dizer:
- Eu sabia que a tua mulher hoje ia viajar e, como tenho muita vontade de estar
contigo… vim mal soube que tinhas chegado a casa…!
E eu, que não me circula pelas veias sangue azul, nem muito menos de imperador…
não fiz qualquer esforço para encontrar uma tesoura!
Porque mesmo que a encontrasse… não tinha, em casa, figurinhas de papel… para
recortar!
Janeiro 2010
As ilhas, quaisquer que elas sejam, mas sobretudo as que se situam sob influência dos
trópicos, apresentam características muito próprias, sobretudo no que respeita aos
códigos de conduta social.
O isolamento físico e psicológico em que se encontram, a vastidão oceânica que se
perde na lonjura do horizonte, determinam pensamentos, ideias, atitudes e decisões…
mas acima de tudo potenciam… a partida, a vontade de encontrar e descobrir novos
espaços,… menos finitos,… menos líquidos,… mais densos !!
As formas de que se revestem estes “sonhos de partida” são as mais diversas: a busca
de novos saberes, o reencontro de famílias dispersas, uma nova dimensão profissional,
um novo amor!
O regresso às origens
Estes “sonhos de partida” num grande número de casos cria condições de solidão
que, somadas ao isolamento natural, dá origem a comportamentos distintos e, em
alguns casos, únicos e quase exclusivos destes “momentos” de terra espalhados pelos
oceanos!
A comunicabilidade, o à vontade no estabelecimento de diálogo com estranhos, a
disponibilidade para dar informação, são características muito comuns destas paragens
e, na maior parte dos casos, são origem de novos relacionamentos de curto, médio ou
mesmo longo prazo!
Uma vez, cortar o cabelo, que os já mais de 2 meses após a chegada tinham alargado
em comprimento e volume, levaram-me a estabelecer o conhecimento com uma das
componentes do, por mim apelidado, Grupo das frenéticas.
O salão de cabeleireiro em causa ficava bem no centro da cidade, e até então fora
usado exclusivamente para tratamento de cabelos de senhoras!
Entrei num dia e numa hora de menor movimento – porque corria menor exposição
ao ridículo perante uma negativa – e deparei com 4 ou 5 caras deixando transparecer
uma admiração incomensurável!
Depois da minha pergunta óbvia: Que sim! Que podia ali cuidar do cabelo!
Que não havia, de resto, outro Salão na cidade com condições adequadas…
Sentei-me rodeado de 4 lindas mulheres: a proprietária do Salão, as empregadas e
uma amiga da primeira.
Quem eu era?
Quem eu não era?
O que estava ali a fazer?
Se tinha família ou estava sozinho?
Quanto tempo iria ficar por lá?
… Enfim! Um inquérito à maneira, cobrindo toda a gama de informação necessária e
suficiente à minha caracterização. E lá me cortaram o cabelo!
Não desgostei do corte, confesso com sinceridade, não sei se apenas e mais
propriamente pelo corte em si, se pela evolução que eu já antevia, que aquele primeiro
encontro no Salão podia vir a potenciar! E, de facto, veio…!
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Carlos Pereira
Fevereiro 2010
Em todas as latitudes por onde se vão consumindo as vidas de cada um de nós, existem
figuras incontornáveis que perduram para sempre na nossa memória.
Nem sempre todas elas pelos melhores motivos, mas quase sempre pela originalidade
dos seus comportamentos.
São os “cromos” da nossa caderneta de coleccionador de figuras… da vida!
Conheci, ao longo destes anos de vida nos trópicos, pessoas dignas de figurar no meu
repositório de memórias que guardo, com carinho!
Algumas com admiração, muitas com a originalidade que resulta dos seus
comportamentos quase todos irrepetíveis, pelo menos no meu percurso de vida!
Hoje vou contar-vos uma história, verídica como todas as que tenho transposto para
estas crónicas, única pela sua originalidade e inesquecível, pelos factos que vão ter
oportunidade de tomar conhecimento.
O Zeca – figura de que guardo o apelido de família, porque estas crónicas irão sempre
manter estrita reserva de localização geográfica e de identificação pessoal – era um
caso único do que se poderá designar por “Dono da Noite”.
Fui “indicado e dirigido” para o Zeca – por um amigo comum – diplomata de carreira,
com quem mantive uma amizade profunda, vários interesses comuns e uma paixão
invulgar: O gosto pelo “bridge”.
Um dia, numa deslocação à cidade cuja noite o Zeca comandava, num final de semana,
O Zeca veio ter comigo ao hotel para conversar e tomar um café… de fim de dia… e
início de noite!
A conversa foi sem muito por que a recordar.
Há medida que o tempo ia passando languidamente, fui-me dando conta que toda
a gente que passava pela esplanada que nos proporcionava mesa, cadeira e café,
cumprimentava, sorria e dirigia uma saudação ao meu companheiro de noite.
Ele, solícito, ia-me fazendo, de vez em quando, apresentações de algumas destas pessoas,
mediante um critério que eu, naquele momento, não podia compreender.
Os cafés cederam naturalmente lugar aos primeiros whiskies da noite e já próximo da
entrada do dia seguinte, três jovens mulheres – qual delas o mais belo exemplar do género
feminino – foram convidadas a sentar-se na nossa mesa pelo “comandante” da noite.
O regresso às origens
Rapidamente o grupo foi alargando… mais e mais… e já quando praticamente ocupávamos
toda a esplanada do Hotel o Zeca, com o vozeirão que a dimensão do seu próprio corpo
indiciava antes mesmo dele abrir a boca, atirou: - Vamos dançar!
… e como um único corpo, todos nos levantámos das cadeiras! O Zeca fez um sinal ao
“garçon” e fomos para os carros, arrumando-nos 4 a 4, viatura por viatura!
O percurso foi curto – uns 10 minutos através da cidade – até à chegada à discoteca
cuja entrada se situava ao final de uma rampa de inclinação bastante acentuada.
A nossa entrada foi épica!
O Zeca, mantendo o comando das operações instruiu de imediato o funcionário da
entrada:
- Não entra mais ninguém! Esta noite é só para nós! A despesa é minha! E a música
somos nós que escolhemos!
Os empregados foram-nos precedendo a caminho de uma das salas (havia duas) que,
após a nossa entrada, foi fechada a qualquer outro cidadão!
A música começou a correr lânguida, densa e quase tão excitante quanto o álcool e os
corpos que se envolviam ao ritmo das luzes e da música…
… as memórias, mesmo estas tão únicas e já tão distantes, e que merecem referência
especial no roteiro das nossas vidas… devem manter sempre uma reserva e uma
contenção que permita, ao leitor, deixar fluir a sua própria imaginação sobre os factos
narrados!
Sei que a noite terminou já quase de dia!
Sei que, apesar do álcool consumido, consegui, antes de voltar ao hotel, encontrar
todas as peças da roupa que levava à chegada à discoteca!
Sei que na manhã seguinte – creio mesmo que já seria tarde – o meu quarto de hotel
albergava um par de pernas mais do que na noite anterior!
E nesse dia, ao final da tarde, regressei à minha cidade de partida, não voltando até
hoje a ver a figura dessa noite: O Zeca, amigo do diplomata, que comigo adorava jogar
“bridge”.
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Carlos Pereira
Março 2010
O Gigi foi, seguramente, o melhor rebequeiro (violinista) que conheci até hoje!
Alfaiate – de profissão – marreco – de aspecto físico, ninguém, à primeira vista diria a
sensibilidade e a competência musical que fluía, daqueles dedos bem engelhados, nas
noites de sexta feira do velho D’Jonsa!
Não é fácil descrever por palavras o sentimento que pairava quando o Gigi fazia soar
as primeiras notas musicais!
O ruído quase ensurdecedor que todos os clientes – uns mais… outros menos turvados
pelos vapores do álcool – produziam, as gargalhadas sonoras que ritmicamente pautavam
aquele antro de vida nocturna, com paredes de alvenaria e tecto estelar, parava como se
alguém, com um simples gesto tivesse desligado a “ficha”!
Ouvia-se, unicamente, o gemido da rebeca, afinada e dolente, que tinha o condão raro de,
num ápice, transformar aquele bar popular de gente simples, em “galinheiro” de ouvintes
musicais, tal era o arrepio que a música causava nas peles de quem por ali se encontrava,
bebendo, conversando, rindo ou preparando a segunda parte da noite de sexta!
O Gigi tinha sempre a acompanhá-lo mais dois músicos – com idades talvez para serem
seus netos – um no cavaquinho e outro na viola de acompanhamento, também de boa
capacidade musical mas cuja sonoridade produzida apenas servia para dar uma roupagem
mais colorida aos sons que aqueles dedos engelhados extraíam daquela rebeca, velha quase
como o tempo, mas lustrosa como se fora uma última réstia de luz solar.
Claro que como todos os músicos – ou artistas, de forma mais generalizada – o Gigi
tinha umas noites melhores do que outras e, habitualmente, com o avançar das horas e
a entrada no novo dia, a sensibilidade e o virtuosismo cresciam, ouvindo-se melodias,
sonoridades e desfrutando-se de imagens musicais quase únicas!
Tornei-me frequentador, mais ou menos assíduo, das noites de sexta-feira no Bar do
D’Jonsa.
Mas era sobretudo pelo Gigi que me deslocava até lá.
Cheguei a ter com ele uma certa intimidade, não só porque era frequentador assíduo,
mas também porque, uma vez por outra (mais p’rá frente passou a ser sempre),
mandava pagar uma rodada de bebida aos músicos.
E eles, como demonstração do seu reconhecimento, tocavam as peças que eu tinha
dado mostras de serem mais do meu agrado!
O regresso às origens
Recordo-me de uma noite, passados cerca de 5 anos, e depois de ter mudado de local
para dar início a um novo desafio profissional, ter passado pelo mesmo bar, num dia
qualquer à noite (sei que não era sexta-feira) e ter perguntado pelo Gigi, porque não
o vi no grupo dos músicos.
Informaram-me que tinha deixado de tocar ali, fazia já quase dois anos!
Fora chamado para outros desempenhos… certamente num lugar também sem
tecto… mas seguramente também sem paredes de alvenaria… e onde a única coisa
que deve fluir… sãos acordes musicais!
A sensação que guardo de África, dos seus ritmos e da sua música, não seria a mesma
se não tivesse tido o privilégio de ter conhecido o virtuoso Gigi!
Abril 2010
… Um HOPE ! que haveria de se tornar familiar no futuro, seguido de um concerto de
gargalhadas baças e desafinadas, fez-me voltar a cabeça na direcção do bar.
Ao longo do período de calendário que já havia passado por aquelas terras, fui-me
habituando a conhecer – em alguns casos até com uma alguma profundidade – aquela
“Orquestra dos Desafinados”, cuja característica principal (para não dizer… única)
era fazer, ao longo de cada comprido fim-de-semana… um único dia, retirando da
bebida lenitivo para os seus males, consolação para angústias e compensação para
desejos não realizados.
Aquele HOPE ! - de que já me haviam feito relato pormenorizado e minucioso pareceu-me assentar que nem uma luva, como divisa, ao “cavaleiro do céu” que…
com aquela interjeição, me convidava para uma bebida, sem nunca anteriormente nos
termos dirigido a palavra, sequer!
Dirigi-me cauteloso para o bar.
Do banco alto do bar, de onde escorria um corpo muito mais sensível ao desgaste
provocado por duas directas seguidas, do que ao volume de álcool absorvido por
aquele estômago sempre ávido e com sede, o Zezinho saltou para o chão com uma
dificuldade comparável à do saltador em altura, após uma passagem sobre a fasquia a
dois metros do solo, à boa maneira do Dick Fosbury.
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Carlos Pereira
- Uh… Uh… Engenheiro… Cá… Cá… - gaguejava o Zezinho tentando apresentarme ao “colega de orquestra” que, corajosamente, desafiando a Lei da Gravidade… me
estendeu a mão num desequilíbrio matematicamente controlado, dizendo:
- Comandante Honório! Muito gosto! – e sem parar, virando-se para o barista
comandou imperialmente:
- Oh Pedro! Um whisky duplo aqui p’ró Sr. Engenheiro!
A cena que se seguiu é uma daquelas que nunca mais se esquecem!
O Comandante Honório era um homem sem dúvida culto, bem-falante e competente…
mas intervalava estas características pessoais, com a dedicação à orquestra dos
longos fins-de-semana rigorosamente preenchidos por “àquela música”, durante os
quais se soltavam arremedos palavrosos que fariam corar o mais façanhudo guarda-republicano do meu País.
Nestes momentos dava ideia de que em pleno desenvolvimento de uma qualquer
partitura que mentalmente teria à sua frente, não havia maestro algum que evitasse
a introdução deliberada daqueles compassos que, aparentemente, nada tinham a ver
com o espectáculo. Vão já perceber ao que me refiro!
- Então o Sr. Engenheiro gosta desta terra? – perguntou-me o Comandante num
vozeirão que me pareceu vários decibéis acima do necessário.
Ia começar a responder quando, um recém-chegado – que de resto eu não conhecia
– interpelou o Comandante. Este, virando para o intruso os olhos raiados de sangue e
fazendo um gesto largo com a mão onde se mantinha, absolutamente seguro, o copo
da bebida, gritou para o intruso, num vozeirão ainda mais forte:
- É pá! Não me fodas! Não vês que estou a falar com o sr. Engenheiro? – e rapidamente
virou o olhar na minha direcção, observando-me!
No silêncio curto que se seguiu, recordo-me de ouvir ao longe a gargalhada desafinada
e gaguejante do Zezinho.
Respondi, em tom deliberadamente baixo que: -De facto, pelo que até então conhecera,
não só não tinha razões de queixa, como até achava as pessoas abertas e acolhedoras, não
deixando de referir a particularidade da existência de praia, praticamente todo o ano!
Na esplanada junto ao bar onde este “concerto” se desenrolava, várias mesas estavam
ocupadas, muitas das quais por senhoras, que se mostravam, nestes momentos de
“chok music”, algo incomodadas…
E o Comandante prosseguiu: Mas o sr. Engenheiro também é com certeza cooperante?
O regresso às origens
E coopera cá em quê?
Risada geral, com a tentativa de intervenção do Zezinho pelo meio a dizer:
- Tu… Tu… nã… nã… - mas eu interrompi e disse:
- Enganou-se Comandante! Eu sou empresário, não estou ligado à cooperação!, e lá
lhe fui explicando resumidamente a razão da minha presença naquele País.
Enquanto eu falava, os movimentos rítmicos para cima e para baixo da
cabeça,repercutiam, de forma lânguida daquele corpo normalmente rígido mas agora
quase totalmente em estado plástico…
- Já vejo que o meu nobre amigo não veio p’ra cá p’ra arranjar um emprego!
Oh Pedro! Mais um whisky p’ró sr. Engenheiro!
Recusei com firmeza:
- Não! Agora não bebo mais! Além disso seria a minha vez de pagar uma rodada, mas
se não se importam – e passei a falar também para o Zezinho – terei muito gosto em
continuar esta conversa outro dia e em pagar a rodada que agora me competia.
- Tem razão! – concordou o Comandante no que me pareceu ser uma fugaz pausa
de lucidez!
- Eu hoje já estou muito bêbado!
Despedi-me e dirigi-me para o meu quarto do hotel.
Mais tarde – estava quase a adormecer, um já familiar HOPE!
Recordou-me que a música lá fora, continuava a bom ritmo!
Maio 2010
Ia começar a responder quando, um recém-chegado – que de resto eu não conhecia
– interpelou o Comandante. Este, virando para o intruso os olhos raiados de sangue e
fazendo um gesto largo com a mão onde se mantinha, absolutamente seguro, o copo
da bebida, gritou para o intruso, num vozeirão ainda mais forte:
- É pá! Não me fodas! Não vês que estou a falar com o sr. Engenheiro? – e rapidamente
virou o olhar na minha direcção, observando-me!
No silêncio curto que se seguiu, recordo-me de ouvir ao longe a gargalhada desafinada
e gaguejante do Zezinho.
Respondi, em tom deliberadamente baixo que: -De facto, pelo que até então conhecera,
não só não tinha razões de queixa, como até achava as pessoas abertas e acolhedoras, não
deixando de referir a particularidade da existência de praia, praticamente todo o ano!
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Carlos Pereira
Na esplanada junto ao bar onde este “concerto” se desenrolava, várias mesas estavam
ocupadas, muitas das quais por senhoras, que se mostravam, nestes momentos de
“chok music”, algo incomodadas…
E o Comandante prosseguiu: Mas o sr. Engenheiro também é com certeza cooperante?
E coopera cá em quê?
Risada geral, com a tentativa de intervenção do Zezinho pelo meio a dizer:
- Tu… Tu… nã… nã… - mas eu interrompi e disse:
- Enganou-se Comandante! Eu sou empresário, não estou ligado à cooperação!, e lá
lhe fui explicando resumidamente a razão da minha presença naquele País.
Enquanto eu falava, os movimentos rítmicos para cima e para baixo da cabeça,
repercutiam, de forma lânguida daquele corpo normalmente rígido mas agora quase
totalmente em estado plástico…
- Já vejo que o meu nobre amigo não veio p’ra cá p’ra arranjar um emprego!
Oh Pedro! Mais um whisky p’ró sr. Engenheiro!
Recusei com firmeza:
- Não! Agora não bebo mais! Além disso seria a minha vez de pagar uma rodada, mas
se não se importam – e passei a falar também para o Zezinho – terei muito gosto em
continuar esta conversa outro dia e em pagar a rodada que agora me competia.
- Tem razão! – concordou o Comandante no que me pareceu ser uma fugaz pausa de
lucidez!
- Eu hoje já estou muito bêbado!
Despedi-me e dirigi-me para o meu quarto do hotel.
Mais tarde – estava quase a adormecer, um já familiar HOPE! Recordou-me que a
música lá fora, continuava a bom ritmo!
Junho 2010
Para quem viaja muito como eu, a partir de um determinado momento, as viagens
acabam por se tornar rotina e, não raro, derivam para um somatório de situações
e momentos cansativos que se sucedem, ritmicamente, sendo às vezes o momento
seguinte mais desagradável e cansativo que o anterior.
Como contraponto a esta realidade, também existem viagens que se tornam
inesquecíveis, não apenas as grandiosas ou as mais celebradas, mas também aquelas
em que a coincidência de pequenos detalhes fará delas recordação inapagável.
Já passaram mais de três anos e estaria disponível para voltar a viver e a desfrutar de
O regresso às origens
todos os momentos únicos então vividos.
E eles foram tantos e tão especiais que não chegariam três ou quatro crónicas destas
para os narrar. Vou tentar em duas transmitir-vos, com alguma aproximação descritiva,
as sensações sentidas e as imagens registadas!
Desde logo uma primeira nota para a sensação de desconhecido que todo o grupo –
onde eu também estava integrado – partilhava. Embora sabendo o destino final – que
seria o regresso ao ponto de partida dois dias após o início da viagem – a verdade é
que o desconhecido era o padrão, a imagem de marca daquela viagem.
E que viagem…
Um primeiro lugar atravessado deu-me a conhecer ao vivo a existência, ainda nos dias
de hoje, de humanos com cultura e hábitos de vida únicos – os trogloditas! Pessoas
que vivem em cavernas, que têm hábitos de vida primitivos e com alimentação à base
de pão ázimo, azeite, carne e leite de cabra e mel. Tivemos o privilégio de partilhar,
com alguns deles, uma refeição bem ligeira e frugal… mas de suficiente valor calórico.
Paradoxalmente, o lugar onde estas populações vivem, foi cenário, na década
de 90, para a rodagem da história da “Guerra das Estrelas” e constituiu paragem
retemperadora e refrescante de todo o grupo, do calor escaldante das primeiras horas
depois do meio dia.
Os quilómetros percorridos sucediam-se e o mar de areia era visualmente interminável!
O sol reflectia-se na superfície arenosa sem fim, desprendendo brilhos de intensidade
que eu nunca vira! Os olhos doíam-me! O calor era abrasador, apenas suportável pelo
oportuno desempenho do ar condicionado do 4X4!
Ao fim de três horas, paragem para uma bebida refrescante… chá de menta, claro,
medianamente quente.
De repente – como que saindo do nada – um grupo de camelos com os seus tratadores
começou a tomar forma na linha do horizonte que começava a ficar alaranjado.
Percebi então que a fase seguinte do trajecto seria realizada utilizando aquele meio de
transporte: Camelos!
A operação de montar um animal destes, não sendo difícil, requer um pouco de força
e alguma flexibilidade corporal. Depois de estar… lá em cima… no primeiro andar,
tudo se processa de forma segura e até talvez, um pouco paradoxalmente, sente-se um
razoável conforto.
Foi o percurso final daquele dia até ao acampamento que nos esperava a cerca de uma
hora de distância, ou seja uns 6 ou 7 quilómetros.
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Carlos Pereira
Julho 2010
A chegada ao acampamento foi outro momento inesquecível, até por estar já bem
próximo o momento do pôr-do-sol.
As tendas alinhadas de um lado e outro de uma avenida imaginária, sem pavimento
nem passeios, mas com candeeiros de iluminação pública – tochas ardentes que
delimitavam o espaço de circulação – conduziam os recém chegados a uma clareira
onde predominava como elemento central uma mesa rectangular preparada para o
jantar com cerca de trinta lugares.
As instalações sanitárias – que as havia – estavam separadas por sexo e as paredes eram
constituídas por folhas de palmeira espetadas na areia, desempenhando perfeitamente,
do ponto de vista visual, a função para que tinham sido concebidas. Como tecto…
o azul cada vez mais escuro do céu; a iluminação… milhares de pontos de luz nele
embutidos.
Dentro das I.S. havia uma zona com 2 de lavatórios, outra com 2 sanitas e uma outra
com uma base para chuveiro. O depósito de água que alimentava todo este “complexo
sanitário” a céu aberto, estava localizado no topo de uma estrutura de madeira pousada
directamente na areia com cerca de 4 metros de altura.
Era já noite fechada! Foi feita a distribuição das pessoas pelas tendas. Cinco por cada
uma! Dentro das tendas, alinhados perpendicularmente às paredes laterais, colchões
de espuma directamente colocados sobre a areia e com um cobertor dobrado por
cima. O espaço que restava era para circulação entre colchões e acesso aos mesmos.
Saí da tenda que me calhou em sorte e olhei o céu! Foi uma imagem única que até hoje
retenho na minha memória. A noite estava escuríssima e os pontos brilhantes de vários
Sóis, à distância de anos-luz daquele deserto, pareciam diamantes cintilando. Alguns
com as tonalidades resultantes da polarização da luz!
Havia instantes em que um desses pontos se deslocava dentro no nosso campo visual,
dando razão de ser à definição popular de Estrela Cadente. Observei vários num curto
espaço de tempo.
Momentos mais tarde tive a notícia, via celular, que o meu neto tinha nascido, precisamente
naqueles instantes em que olhava os “diamantes” a deslocarem-se na escuridão…
O regresso às origens
Agosto 2010
O jantar estava a ser preparado.
Refrescámo-nos nas I.S. existentes e vestimo-nos para jantar!
Porque apesar do isolamento do lugar… mesmo um chá no deserto deve ser tomado
com um mínimo de cerimónia e requinte!
Uma mesa rectangular com cerca de trinta lugares e uma profusão de velas imensa iria
servir para o “banquete”!
Saladas, carnes frias, pão e queijo, serviram de primeiro impacto saciador da fome
que todos, naquele momento, já demonstravam… embora uns mais do que outros…!
Depois um cordeiro assado com legumes e batatas, completou o espaço ainda em
aberto nos estômagos ávidos de comida!
Frutas e tartes de frutas, completaram uma refeição comida em pleno deserto, depois do
que não faltou um café coado e, para os que assim pretenderam, um digestivo a concluir.
No meu caso, o digestivo foi… evidentemente acompanhado por um charuto Cubano
Cohiba que ficou sendo o único que, até agora tive o prazer de desfrutar em pleno
deserto, sob um céu único de estrelas… miríades de estrelas!
O repouso surgiu para cada um, na razão inversa do cansaço que cada um sentia!
A madrugada impôs uma alvorada precoce, que tinha como objectivo assistir ao
nascer do Sol!
E isso, foi outra experiência única que tive o privilégio de viver.
Não existem palavras para descrever o movimento ascensional do Sol no horizonte
longínquo! O movimento do astro rei parece saído de um filme mudo dos anos 20 ou
30 do século passado, com movimentos bruscos e repentinos, de que não se sente o
movimento contínuo que, de facto, o Sol cumpre!
A paleta de cores é indescritível! Todas as cores do universo estão presentes naqueles
curtos instantes que separam a noite do dia!
A sensação inicial de “um fogo” no horizonte vai-se desvanecendo, dando lugar à
luminosidade natural de um novo dia!
As cores da paisagem inicialmente pardas e cinzentas, ganham o seu alento natural,
num matizado de amarelos, ocres e laranjas inesquecíveis!
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Carlos Pereira
Não há palavras para descrever a beleza de um nascer do Sol no deserto!
Como não há palavras para descrever a felicidade que eu senti, naqueles dias, por
ter tido o privilégio de ser avô, no meio de uma beleza e de uns momentos tão
deslumbrantes como os que acabo de vos descrever!
Tenho vontade de voltar ao deserto!
Mas ainda não sei quando…
… nem se e quando… voltarei a ser avô!
Setembro 2010
Depois deste espectáculo esplendoroso, ainda muitas surpresas nos estavam reservadas
para aquele dia que tinha começado cedo e iria terminar… tarde!
A travessia do deserto no sentido inverso ao da ida no dia anterior, era feita por um
percurso diferente, através de uma estrada construída sobre um lago… salgado, cujo
nível se situa abaixo do mar!
A estrada desenrolava-se ao longo de mais de cinquenta quilómetros… sempre em
linha recta e sempre plana. Aliás, foi-nos explicado, que a construção da estrada
se tinha revestido de dificuldades técnicas enormes, uma vez que os movimentos
periódicos do plano de água salgado tornavam quase impossível a estabilização do
aterro sobre o qual a estrada fora construída.
A solução deste problema foi um pouco como a história do ovo do Colombo, ou seja,
os técnicos decidiram escavar poços a intervalos regulares de ambos os lados da dita
estrada, e com este artifício, obtiveram como resultado uma diminuição da pressão
sobre o eixo da estrada, conseguindo, assim, a sua estabilização. Os poços funcionam
como válvulas que permitem regular as variações de pressão originadas pela oscilação
do nível da água!
Absolutamente genial mas também… de uma simplicidade indesmentível!
A condução do nosso 4x4 ao longo daquela via tornava-se, como é fácil de imaginar,
extremamente cansativa e monótona, não apenas pela contínua linha recta que o
traçado definia, mas ainda pelo reflexo do sol em ambos os lados da estrada sobre o
plano de água que, em diversos troços, mais se assemelhava a um espelho do que a um
lago, devido à elevadíssima densidade de sal!
O regresso às origens
Depois desta estrada que parecia interminável – e que efectuámos com uma pequena
paragem para desentorpecer as pernas numa zona mais alargada do trajecto –
começaram a surgir no horizonte umas colinas de cor parda e que nos iriam permitir
viver outra experiência inesquecível!
Desde logo a aproximação à linha do horizonte prometia-nos a possibilidade de
descanso dos reflexos brilhantes nos olhos, mas… não só!
É que, à medida que nos aproximávamos, a cor amarela claro da areia do deserto,
começava a ser pontuada por minúsculos pontos – que àquela distância pareciam
negros – mas que eram… nem mais… nem menos… que palmeiras indicadoras da
proximidade de um extenso oásis! E que oásis!
Eu creio que dificilmente alguém consegue imaginar o que eu tive a possibilidade de
ver e de viver!
No meio de um imenso mar de areia, subitamente, de um conjunto de rochas mais ou
menos anarquicamente “plantadas” sobre a areia, jorrava água de uma transparência e
de uma frescura inigualável, formando uma cascata, como se de um rio em plena fase
da sua juventude se tratasse… e o lago, que esta água formava na base das rochas de
onde, parecia por milagre, brotar, servia de piscina refrescante para os caminhantes que
das profundezas do deserto… brotavam… emergiam… um pouco como aquela água!
Foi uma sensação de deslumbramento e de quase plena consciência da nossa própria
dimensão! Da nossa própria pequenez!
Do meio do nada… do meio do deserto mais inóspito, mais escaldante, mais amarelo e
seco… surgia aquela pausa líquida, pontual, diminuta… mas ao mesmo tempo, refrescante,
retemperadora e essencial para o prolongamento e a continuidade da jornada!
Esta viagem pelo deserto constituiu, para mim, um enorme manancial de ensinamentos
de que guardo inestimável e, espero, inesquecível memória!
Todos, mesmo todos, atravessamos o nosso deserto da vida!
Porém poucos, creio que muito poucos, encontram os oásis que nos permitem
retemperar forças e reiniciar o caminho!
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Carlos Pereira
Outubro 2010
Das minhas andanças pelos trópicos tenho coleccionado amigos das mais variadas
origens e com as mais variadas profissões que se possa imaginar.
Um deles, técnico muito qualificado da FAO e já no final da carreira profissional, era
especialista em – vejam bem – SAUTERELLES, ou seja… gafanhotos.
Este francês - basco de origem - era verdadeiramente um conhecedor do mundo,
excepcional jogador de bridge e especialista em gafanhotos.
Durante as variadas ocasiões que tive a oportunidade de com ele conversar, os temas
da nossa conversa acabavam quase sempre por se circunscrever, umas vezes ao bridge
– de que também sou adepto – e aos gafanhotos, área que sempre me intrigou e de
cujas histórias, por ele contadas, sempre julguei representarem um certo exagero,
seja na dimensão, seja no grau de destruição que resultam, após a passagem de uma
“nuvem destes seres quase mitológicos”.
Passados uns anos e depois de já ter perdido o contacto com este amigo, tive uma
oportunidade única de confirmar as histórias que ele me tinha narrado!
Havia chegado a um aeroporto internacional na “margem esquerda do Atlântico” e
apressei-me a sair da aerogare, chamando um táxi para me conduzir ao hotel onde iria
permanecer por quase 24 horas, até à ligação aérea seguinte.
Já dentro do táxi, estranhei a cor amarelo-acastanhado no para brisas - que mais me
parecia um filtro contra o Sol - mas não fiz qualquer comentário, tanto mais que a tal
coloração também poderia significar, sem direito a admiração especial, excesso de pó
acumulado ao longo de alguns dias de trajectos em estradas mais poeirentas. Mas não era!
Mal começámos a rodar na estrada, já fora da zona do parque do aeroporto, comecei a
ouvir como que um esmigalhar de cascas de nozes ou um outro qualquer fruto seco…
E foi então que me dei conta, desde o banco de trás do táxi, do que de facto estava a
presenciar!
Olhando para a estrada à distância, o que se via era uma mancha amarelo-esverdeada
que cobria todo o leito da estrada, de onde o negro do asfalto desaparecera.
Uma enorme nuvem de gafanhotos cobria totalmente o asfalto e tudo o resto em
redor, levando à frente, no seu contínuo movimento em direcção ao Sol, tudo que de
verde existisse por perto.
O regresso às origens
O táxi, à medida que avançava, esmigalhava cada vez mais e mais gafanhotos, com
um ruído desagradável e provocando um cheiro ácido de que consigo, ainda hoje,
recordar-me!
Mas a visão mais estranha, desagradável e nojenta, posicionava-se bem em frente dos
meus olhos, no para brisas do táxi!
Os gafanhotos que não eram apanhados pelo rodado do táxi e levantavam voo a tempo
de evitarem ser cilindrados… esmigalhavam-se contra o para brisas, deixando após o
impacto uma torrente de um líquido amarelo pegajoso e nojento que as escovas do
dito, ao moverem-se para a direita e para a esquerda, apenas conseguiam colorir todo
o vidro de forma mais homogénea!
Tive uma sensação de vómito permanente durante o trajecto de cerca de 20 Kms até
ao hotel.
Consegui, com algum custo, fechar as janelas traseiras do táxi para evitar entradas de
criaturas de asas abertas e olhos esbugalhados para junto de mim, tanto mais que não
iriam partilhar o custo da corrida… comigo… e a nuvem de gafanhotos manteve-se
com a densidade e a dimensão que acima referi, durante quase todo o trajecto.
Já à porta do hotel, o porteiro sorriu ao ver a minha cara provavelmente enjoada, mas
de certeza pálida e disse, com a maior das tranquilidades:
- Hoje é um dia especial! Temos os saltitões connosco! Vamos ter um ano farto!
Foi então que me recordei do meu amigo especialista.
Do que ele me narrara nas noites de conversa, após um bridge mais ou menos bem
conseguido, fumando um calmo charuto e beberricando uma bebida de fim de dia, ou
noite, como preferirem.
Da dimensão das nuvens de gafanhotos, da sua actuação conjunta, da razia que
ficava… após a sua passagem!
Naquele lugar parece que já havia uns anos largos que os gafanhotos não apareciam,
pelo menos naquelas quantidades.
E logo haviam de ter passado por ali, no dia de uma escala que, as minhas andanças
profissionais, me obrigam a fazer com alguma regularidade.
Hoje, olho para esta experiência com uma visão distinta do nojo e do mau estar que
senti e que acima vos descrevi.
Hoje sinto que tive – como provavelmente poucos – o privilégio de ter assistido “a um
espectáculo” a que se acede sem bilhete, sem reserva prévia e a preço zero, podendo
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Carlos Pereira
dispor, mais tarde, de uma história para contar com o seu quê de estranho e invulgar
e a que apenas os trópicos… dão guarida!
Novembro 2010
Para quem vive em África é habitual o convívio com carências de vários tipos,
nomeadamente de água e de energia, não apenas nos lugares mais isolados (no interior
das florestas ou nas larguezas das savanas), mas também – por mais paradoxal que
pareça – em algumas das grandes cidades Africanas.
Esta realidade que é muito comum, causa de início alguma admiração a quem, como
nós Europeus, está habituado à quase infalibilidade de funcionamento do interruptor
da luz e da torneira do lavatório, com que privamos quotidianamente nas nossas terras
de origem.
Em certos lugares de África, porém, ao fim de pouco tempo, habituamo-nos a conviver
com realidades como o gerador a gasóleo, a bomba de água e o respectivo tanque,
os camiões de abastecimento destes dois preciosos (e caros) líquidos, com os quais
conseguimos ter acesso àqueles bens essenciais e de primeira necessidade.
Mas para além destas realidades a que temos de nos habituar, existem por vezes outras
a que de modo inesperado… temos de fazer face, conviver e… ultrapassar!
Vem esta lengalenga a propósito de um episódio por mim directamente vivido, a que
achei alguma graça, mas que sobretudo, me confirmou (se porventura eu ainda tivesse
dúvidas) que o fenómeno do “cacimbado”… de facto existe e não é tão invulgar
quanto se possa imaginar.
Era um domingo como tantos outros. E como todos os domingos saí de casa para
fazer o meu exercício na praia.
Quando me preparava para sair do estacionamento, a garagem estava bloqueada com um
enorme camião que despejava combustível para um tanque qualquer, ali mesmo ao lado.
Pressuroso, o motorista dirigiu-se-me com um diálogo, mais ou menos assim:
- É francês?
Eu disse que não com a cabeça. Ele continuou:
- Então é inglês?
O regresso às origens
Eu voltei a dizer que não com a cabeça, e aí ele, já com pouca convicção perguntou
muito duvidoso:
- Será que é português? Então e já cá está há muito tempo?
Eu acenei com a cabeça afirmativamente e ele continuou, sem interrupções, com este
monólogo:
- Sabe? Estamos a despejar 4 mil litros de gasóleo. Já vai quase nos 2 mil, isto já não
leva muito tempo, mais uns dez minutos. Pois sabe, eu também tenho família em
Portugal, ou melhor, em Lisboa, na zona do Conde Barão, próximo do Cais do Sodré,
conhece? Eu também lá tinha a minha tia (e eu pensei: mas eu não tenho tias, porquê
o também?), mas faleceu há uns meses atrás, coitada (aí pensei: bolas, mas eu não sou
cangalheiro!). A minha mãe ainda lá vive, mas eu já lá não vou há quase 2 anos. O meu
irmão é que também morreu há 2 meses (desta vez pensei: dois mortos em menos
de um fósforo!) com um problema de estômago complicado. Tinha um cancro, mas
aquilo foi o resultado da bebida, sabe? Ele bebia muito e você já sabe como são estas
coisas! (desta vez pensei que eu deveria ter cara de médico, para ter de saber destas
coisas?) Um dia está-se bem, mas no outro descobre-se o mal e um gajo vai desta nem
sabe bem como! E eu era muito amigo do meu irmão, não sei se está a ver (sim! Eu
pensei que de facto não sou ceguinho, portanto…!) mas já não estava com ele há mais
de 2 anos! E olhe (mas eu estava a olhar… nem tirei nunca os olhos do tipo…)! Nem
tive coragem de ir funeral dele! Aquilo ia ser complicado para mim, a minha mãe, os
vizinhos, a minha outra irmã, enfim… acabei por decidir ficar e acho que foi o melhor
que fiz! (e aí pensei: como também devem ter pensado, se soubessem, os passageiros
do avião que tivessem levado contigo ao lado durante todo o voo)
Bem…! Durante toda esta história, eu mantive-me de olhos arregalados, ouvindo
atentamente o meu interlocutor, acenando umas vezes com a cabeça afirmativamente,
outras encolhendo os ombros, e devo ter dito aí umas duas ou três vezes… pois!
Entretanto um dos ajudantes fez sinal ao nosso homem e ele, interrompendo o
monólogo disse:
- Espere só um momento! – como se eu pudesse sair dali mesmo que quisesse (e claro
que queria, mas…) e dirigiu-se à mangueira do camião que estava a verter algum
combustível para o chão, dando-lhe um toque para evitar o derrame.
O contador da bomba do camião continuava no seu ritmo lento mas constante… 2
120, 2 121, 2 122, 2 123… o que me deu a entender que ainda ali iria ficar largos
minutos à mercê do motorista.
Fechei o vidro da janela para evitar o cheiro do combustível, que se sentia no ar cada
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Carlos Pereira
vez com maior intensidade, e preparei-me para a espera.
Mas afinal… não esperei muito! De facto, uns 15 ou 20 segundos após ter fechado o
vidro, o nosso motorista dirigiu-se-me de novo, fazendo diligentemente o movimento de
rotação com a mão, pedindo-me para abrir o vidro! Pelos vistos queria mais conversa!
Eu, obedientemente, abri o vidro e ele disse logo:
- Tenha cuidado ao sair! Não pise com os pneus a mancha do gasóleo que caiu no
chão! Pode entrar em derrapagem o que é perigoso!
Pronunciei então - depois dos pois de circunstância a que acima já me referi - a minha
primeira… e única palavra digna de registo: Obrigado
Ele… abriu muito os olhos – como se eu tivesse falado chinês – e voltou para o camião!
Foi aí que eu me dei mais uma vez conta da acção do cacimbo nas mentes das pessoas!
E também amaldiçoei a tecnologia que ainda não produziu viaturas com asas, porque
se o tivesse já feito, a ver se eu não passava a voar baixinho sobre a mancha de gasóleo!
Ai não que não passava!
O regresso às origens
“Reunir todas
as coisas que fiz
na vida até hoje,
para as poder
incluir no livro,
foi um cu de boi.”
Carlos Pereira e o seu habitual
termo que caracteriza dificuldade
271
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Carlos Pereira
Acerca do retrato do Carlos Pereira
e dos quatro heterónimos visuais
Neste retrato (ainda) vou desenhando
uma sucessão de delírios cénicos embrenhando-me
na transpessoalidade do desenhado,
quer na semelhança quer na diversidade.
Deste retrato inacabado outros desenhos
dele (têm) surgido. Destaco quatro, fragmentados,
onde a relação do meu ver se objectiva,
ou seja, desenhei-os de dentro para fora.
São quatro heterónimos visuais de Carlos Pereira.
Rui Aço, pintor
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Carlos Pereira
Epílogo ?
Fui convidado, pelo amigo que dá título a este livro, para escrever o “posfácio”. Uma
honra, um privilégio ter tal distinção. Rapidamente, caí em mim e percebi que tal coisa
não poderia fazer; Um “posfácio” é uma advertência, um texto de teor explicativo que
é colocado no fim do livro, que adverte ou explica o que for conveniente mencionar.
— “Mas este livro não tem fim”. Ao que o Carlos retorquiu: — “Inventaste esta, agora
desembrulha-te (bem, não foi bem esta a palavra, mas...)”.
Então, não sendo “posfácio” o que poderia ser? Epílogo? Gosto mais da palavra, é mais
“fun”, mas vai dar ao mesmo, ou pior - “Epílogo” (do grego epílogos - conclusão, pelo
latim epilogus) é um texto no final de uma obra literária ou dramática, que constitui a
sua conclusão ou remate. Era usada para dar a conhecer o desfecho dos acontecimentos
relatados, o destino final das personagens da história ou, em dissertações e/ou ilações
finais de um conjunto de ideias apresentadas ou defendidas – Luís de Camões usou
este recurso nos seus “Os Lusíadas”.
Ora, para além de estarmos outra vez a falar de fim, não se trata de uma obra
literária, muito menos de um drama e também não vou falar sobre o desfecho dos
acontecimentos ou o destino final das personagens da história.
Do que eu gostava era de algo que vai começar, que é novo. Tratando-se de um livro
teria mais a ver com “Prefácio” (latim praefatio, o que se diz em primeiro lugar). Um
texto preliminar que antecede a parte principal de uma obra – Preâmbulo, preliminar,
prólogo. Mas o “Prefácio” não era da minha lavra, já tinha sido escrito e muito bem
escrito, por sinal. Então, para não fugir muito, poderia ser preâmbulo, preliminar
ou prólogo. Das três, a que menos me suava a livros era “preliminar” (aquilo que
precede e prepara). Precede? Sim! Ir adiante, na frente, em primeiro lugar... no futuro.
“— Eureka! É isto!” – O Carlos é isto. Então o meu “epílogo” (não o sendo) é que
este livro é o “preliminar” de uma coisa boa, um prazer que aí vem, adiante. O que
não posso adiantar é o que vai acontecer. Provavelmente, o CP também não. Mas uma
coisa é certa, irá ser algo feito com muito prazer e sempre adiante. Agora e num futuro
próximo e mais distante, agarrem nos smartphones, façam a leitura do QR Code aqui
ao lado (www.livrocarlospereira.com) e adiante, para o que o CP vai fazer no futuro.
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Pedro Oliveira
O amigo Director Criativo
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Carlos Pereira
Agradecimentos
Uff !!!
Então julgavam que estávamos no fim, não? Puro engano…
Chegámos ao momento dos agradecimentos, é verdade, mas as “modernidades”
de hoje permitem-nos manter em aberto projectos como este, prolongando-os no
tempo… enquanto houver desejo, força e discernimento para tal !!
O site onde este livro está alojado vai permitir-me ir mantendo actualizado “o ponto
de situação” de Nov/2014 que agora concluí; e com ele (e com a minha vontade), as
actualizações futuras irão sendo produzidas à medida dos acontecimentos.
Feita esta observação, passemos aos agradecimentos.
Embora não pretendendo ser exaustivo, existe um conjunto alargado de referências
que não quero nem posso deixar de fazer!
Aos meus pais! Sem eles eu não estaria aqui e não seria a pessoa que fui sendo, quase
sempre com o seu apoio!
Ao meu avô António Pereira que me ensinou a tocar viola e ao meu avô Diamantino
(curiosamente também) Pereira, de quem devo ter herdado os genes da boa disposição
(aliás transmitida em primeira mão ao meu pai), com que invariavelmente abordo o
dia a dia!
Às mulheres que me deram filhos - a Mila e a Estrela - esta que infelizmente já não
se encontra entre nós, e por quem mantenho carinho e amizade e de quem guardo
bastantes recordações!
À minha filha Ana Catarina que já me deu de presente um neto, o Rodrigo que,
para além de dispor do sobrenome de família a genética, na sua sábia e independente
actuação, se encarregou de dar o traço dos Pereiras!
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Ao meu filho Carlos - que para mim será sempre o Júnior que imaginei e não consegui
concretizar por mecanismos burocráticos e razões conservadoras de Conservatórias,
que apenas justificam a sua existência com recurso a poderes discricionários que se
vão perpetuando neste País - de quem espero um dia ter também um neto que possa
manter e prolongar, por mais uma geração, a continuidade da família!
À Maria, minha actual mulher e companheira, que muito me impulsionou e incentivou
no avanço e concretização deste projecto, e com quem tenho partilhado, com muita
felicidade, estes últimos quatro anos de vida em comum!
À Dona Lívia Andrade Ramos, minha professora de instrução primária, que de forma
decisiva me deu a conhecer, a utilizar e a amar a nossa língua!
À Dr.a Olímpia Silva (tradicionalmente conhecida por Jibóia) - professora de francês
do primeiro ciclo do meu querido LGV – cujos ensinamentos e exigência me permitem
ainda hoje ter o francês como segunda língua materna!
Ao Dr. Pinho da Almeida que me despertou para a Física e a Química!
Ao Dr. Oliveira Maia - o nosso Batatóides - que me deu a conhecer a mineralogia,
a geologia e as ciências naturais, desde a cristalografia (do sistema orto-rômbico ao
triclínico), à geologia (com o seu inesquecível complexo xisto-grauváquico anteordovícico) passando, claro está pela paramécia de biquini (lembras-te Pedro?), pela
rádula do caracol, pelo coração palpitante da rã acabadinha de abrir... !
Aos Dr.es Valter de Vasconcelos e Aguilar, responsáveis pelo meu despertar como
cidadão para o conhecimento histórico dos nossos pais fundadores e para as
necessidades de transformação económica, social e cultural que o nosso Portugal
ainda hoje exige e impõe a todos nós!
Ao Dr. Martins Eleutério que me deu grandes ajudas nas matemáticas gerais do IST
e a quem eu fiz, certa tarde, uma demonstração da função matemática Rotacional,
aparentemente a contento...
Ao Prof. Edgar Cardoso, com quem descobri a importância dos pequenos pormenores
nas obras de arte de engenharia!
Ao Prof. Vasco Costa, com quem eu aprendi o gosto pelas ondas, marés e demais
correntes!
Ao Padrinho Evaristo e à madrinha Lina que com o seu inestimável apoio me permitiram
iniciar a actividade profissional ainda como estudante finalista de engenharia!
Ao Eng. Eduardo Pereira meu Prof. do IST que me levou a conhecer a Consulmar,
Empresa sem a qual eu não teria sido o que fui e como sou!
Ao Eng. Silveira Ramos, de quem guardo memória inapagável e com quem aprendi a
forma de vir a ser e a fazer o que sou e fiz!
Ao Eng. Dantas Ferreira que me abriu as portas da África, através da Cipro!
Ao Eng. Blanco Nogueira que teve a coragem de me apoiar, tendo de mim um
conhecimento limitado, na primeira acção de cooperação da Cipro junto dos PALOP’s.
Ao António de Jesus que me deu a conhecer a Empresa Camp, SA, a família Camp, a
cidade de Barcelona, em geral e a zona de Granollers, em particular!
Aos Dr.es Antoni Pons, Joseph Serra e Manuel de Luque, respectivamente director
internacional, director financeiro e director geral do Grupo Camp, SA, a quem devo a
aposta que fizeram em mim para responsável da Sucursal da Empresa em Portugal!
Ao Eng. Marques Murta que me confiou liderar a transformação da imagem comercial
da H. Hagen no início dos anos 90, no sector da construção civil e obras públicas!
Ao meu amigo, infelizmente já desaparecido, Joaquim de Oliveira Miguel que me
desafiou para o relançamento da actividade da Norma em África!
Ao meu colega Almeida Santos pelo convite que me permitiu o regresso - algo
inesperado - à Consulmar, através do Projecto do Parque do Tejo e do Trancão,
convite aliás aproveitado pelo Eng. Silveira Ramos para me recontratar!
Aos meus colegas de Administração da Consulmar - Carlos Abecasis, Amaro E. S. (nos
tempos que vão correndo será melhor manter estes sobrenomes apenas em iniciais) e
J. P. Fernandes, pelo incondicional apoio sempre dado à criação e gestão da Ambigest!
Aos colegas da Consulmar com quem profissionalmente mais interagi ao longo dos
anos, nomeadamente Eng.os Ferreira da Costa, Rui Godinho, Bandeira de Melo,
Mário Cabral, Luís Peixeiro, Idalina Caetano, Pedro Martins e ainda J. C. Pereira,
Nené, Fernanda Pereira, Manuela Malaquias, José A. Romano, Céu Cipriano, Luís
Miguel, Ana Maria, Conceição Trigueiro, João Prado, Regina Crespo, Ana Domingos,
não esquecendo o chefe Breda, o Heitor e o sempre Santana, de quem de todos sempre
guardarei a memória da disponibilidade para as diversas tarefas a executar e o respeito
profissional que sempre manifestaram por mim!
Aos meus colegas e colaboradores da Ambigest Fátima Cristina, Arnaldo Gonçalves,
Teófilo Pereira, Irina Frutuoso, Maria José Sousa, Daniel Magalhães, Luisa Massa,
Rozita Gaspar, Carlos Valério, Paulo Correia, Jorge Catumbela, José Cunha, Martinho,
Bulica e Agnelo Oliveira, sem a participação e empenho dedicado dos quais a Ambigest
não teria atingido as performances que atingiu, nomeadamente a Certificação de
Empresa de Qualidade, onde a Bureau Veritas, através das suas colaboradoras Sónia
Bastos e Dalila Velado, viriam a desempenhar um papel decisivo. Sónia Bastos viria,
de resto, a tornar-se colaboradora permanente da Ambigest, após a obtenção da
certificação acima referida. Uma palavra ainda para o apoio com que sempre pude
contar dos meus amigos Eng. Carlos Teixeira (Cagi) e Dr. João Frazão.
A todos os que directamente mais participaram neste projecto, com ênfase especial
para o Cirurgião-Prefaciador Pedro Miguéis (com largas referências ao longo do
texto), para o pintor e amigo Rui Aço, autor do retrato que se inclui no livro, à Ana
Rita Madruga, responsável por uma parte muito alargada do texto e, sobretudo, das
referências históricas e enquadramento conjuntural das diferentes épocas!
Aos amigos que se dispuseram a dar testemunhos pessoais, sacrificando para isso uma
tarde das respectivas vidas (embora a troco dum almocinho, factor nunca dispiciendo
nos tempos que vão correndo) e que agora enumero: João Frazão, António Grácio,
Helena Gonçalves, Rui Aço, Carlos Palhoto, Henrique Fonseca Ferreira, Carlos
Alberto Vidal (Bé para os amigos), Margarida Aparício e Pedro Miguéis!
Sem a participação e envolvimento empenhado, desde a primeira hora, do Pedro
Oliveira, este projecto dificilmente seria concretizável num prazo, apesar de tudo, tão
curto! O Pedro, para além de ser o criativo de serviço, acabou por ser o autor do título
do livro que, sinceramente, ninguém ousará considerar como pouco original. O meu
agradecimento muito especial ao Pedro Oliveira!
Finalmente uma palavra de agradecimento para o meu Sporting não poderia faltar!
Agradeço a disponibilidade dispensada na montagem de toda esta operação e respectiva
logística associada, permitindo que este evento possa ter um brilho muito especial!
A todos o meu mais sincero obrigado!
Carlos Pereira
POR
LADOS
VISTO
TODOS
1
OS
280
O ROMANTICO
( SÓ ESSE DÁ OU TR O LI VR O)

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