PDF - Jornal Plástico Bolha

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PDF - Jornal Plástico Bolha
1
plástico bolha
aparentemente insólito...
Distribuição Gratuita
Nesta edição:
Marília Rothier
Sabrina martinez
Gregório Duvivier
ana chiara
Mary Blaigdfield
Alluana ribeiro
pAULO gRAVINA
Constanza de córdova
Alice Sant´anna
heinz langer
Luiz Coelho
henrique meirelles
Lasana Lukata
Sueli Rios
Milene Portela
Isabel Diegues
Rosa Mattos
Marcela Sperandio Rosa
Lázaro Cassar
yuri amorim
Ano 2 - Número 11 - Abril/2007
Se quando dissemos que o ano seria cheio
de novidades, você pensou que era brincadeira, saiba
que estávamos falando sério.
Neste número Marília Rothier, professora
de Letras da PUC-Rio, nos presenteou com um Aos
alunos com carinho tão especial, que todo o jornal
precisou ser reformulado para ficar à sua altura.
Dobramos de tamanho; a tiragem ficou ainda maior;
o slogan foi rebatizado a partir das palavras de seu
texto; estreamos novas colunas, com novos parceiros;
tudo para receber mais e mais pessoas na divertida
ciranda das escritas e leituras, reescritas e releituras.
Ana Cristina Chiara, professora de Letras
da UERJ com quem já havíamos flertado em uma
entrevista na edição de número 8, retorna ao jornal
como colaboradora, com uma série de poemas sobre
mulheres da literatura na coluna Mulheres-Damas.
Os Invasores de Corpos Frederico Coelho e
Mauro Gaspar Filho, da pós-graduação de Letras da
PUC-Rio, apresentam o Manifesto Sampler, que será
publicado aos pedaços, ao longo das próximas
edições.
Entrevistamos Sabrina Martinez, da
Gemini Vídeo, responsável pela tradução de diversos
programas da TV a cabo, que deu boas dicas sobre o
mercado de legendagem para a TV.
Na estréia da nova coluna Puzzles,
recortamos um trecho de um e-mail da professora
de estudos da linguagem da PUC-Rio, Helena
Martins, contando interessantes curiosidades da
biografia do filósofo Ludwig Wittgenstein.
A coluna Subjetivas, de Gregório Duvivier,
ficou maior e, para comemorar, vem com duas novas
receitas, bem ao seu estilo. Nosso companheiro
Rodrigo N.C. continua notório com novo conto na
celebrada coluna Notas Cáusticas. Alluana Ribeiro
escreveu um ensaio original sobre a peça Frederico
Garcia Lorca: pequeno poema infinito. No Clique Aqui,
confira uma boa dica sobre os sebos on-line.
No mais, contos, poemas, além da saga de
Mary Blaigdfield, a mulher que não queria falar sobre
o...
Juntamos diversas peças neste quebracabeças: Ana Chiara, Rodrigo N.C., Helena Martins,
Gregório, Marília... mas a última peça só se encaixa
agora, quando você tem o plástico bolha nas mãos.
O PIANO COM A CAPA PRETA OPRESSORA
empacotado,
o piano se impede de piar,
de pintar melodias de pontos,
pranto de energia puntiforme
que pontuadamente, ou não,
se espalham pelas pradarias de meu corpo:mente.
Marcela Sperandio Rosa
SUICIDA PÓS-MODERNO
por sua causa Raquel
ele foi para a frente dos carros
mas eram carros de brinquedo
por sua causa
ele pulou da ponte Rio-Niterói
mas praticando bungee jump
por sua causa
ele ia tomar chumbinho
mas deu ao rato mesmo:
não se deve cobiçar as coisas alheias
Lasana Lukata
SIMPLESMENTE
INACREDITÁVEL
Marilena Moraes
fred Coelho
Mauro gaspar
Rodrigo N.C.
Helena Martins
a estrada é sinuosa mas eu não
enjôo
ao contrário – escolho
palavras & acordes
que te embalam
no banco de trás.
Alice Sant’anna
Heinz
Lange
r
2
Aos alunos com carinho
Instigante — este é o adjetivo que me vem, imediatamente, à cabeça,
quando penso na convivência com os estudantes de Letras da PUC. Para
ficar, como propõe o poeta, no “reino das palavras”, começo afirmando que
tédio e monotonia são termos que desapareceram do meu vocabulário,
nesses dez anos de trânsito constante e animado entre aulas, cumprimentos
de corredor, seminários, um café no balcão, uma conversa mais tranqüila
para orientação de trabalho. Tudo parece rápido e passageiro, as tarefas se
acumulam, as turmas se sucedem a cada semestre, quase que se pode ver os
jovens amadurecendo; mas ficam lembranças muito fortes, experiências
decisivas de aprendizagem. No fim de cada curso ou período de orientação,
quando dou um balanço nas horas de trabalho, encontro, invariavelmente,
um saldo positivo a meu favor. Aprendo muito com esses meninos e
meninas, que me cercam; percebo pontos de vista alternativos, deixo-me
fascinar por autores que jamais haviam-me atraído, descubro caminhos
incríveis de raciocínio, sem contar a variedade de estilos de discurso de que,
mesmo inconscientemente, vou-me apropriando. Só espero que, daqui a
algum tempo, quando também contabilizarem os ganhos e despesas
(intelectuais e afetivos) dos anos de estudo de Letras, os alunos de hoje
encontrem haveres produtivos.
É mais que um privilégio, nessa altura de minha vida, poder envolverme com um trabalho, que me põe ativa e alerta, pois, embora contratada
como professora, a prática me convoca, de fato, é para aprender. Vou sendo
surpreendida por uma variedade de novos conhecimentos, que me alcançam,
nas tarefas formais e na informalidade das trocas com amigos, professores
e alunos, indistintamente, mas com a distinção de ser acolhida num grupo,
onde a curiosidade é permanente e todos se dispõem a falar do que acabaram
de descobrir. E como é que se exercita a nova aprendizagem? Escrevendo,
ou melhor, entrando na ciranda, sem começo nem fim, de escrita e leitura, de
comentário dos discursos ouvidos ou lidos, que se escrevem para ser, por
sua vez, divulgados e comentados. A ciranda não pára, mas tem momentos
de lentidão e momentos vibrantes — estes são os da troca imediata, no
diálogo e na interlocução (mais livre e também mais exigente) que se faz
mediada pela internet ou pelos periódicos impressos. O jornal é, com certeza,
um espaço cobiçado, pois a palavra dita no calor da hora ganha destaque
sobre a permanente. Nessa parte, em especial, alegre da ciranda, onde fui
recebida e vou-me deixando levar, circula, com a potência, que lhe imprime
a inventividade de seu redator e colaboradores, um veículo, aparentemente
insólito, mas de solidez confiável pela competência, demonstrada no
cumprimento de suas propostas — o Plástico Bolha. Nenhuma
responsabilidade é maior do que ocupar uma coluna, quando convidado,
neste jornal. De minha parte, fiquei feliz com a honra do convite, mas venho
adiando o privilégio, que não deixa de ser uma tarefa exigente. Leio os
números anteriores e reflito: estarei pronta?
De imediato, preparar-se para escrever no Plástico Bolha soa como um
contra-senso: o que o jornal propõe é uma brincadeira atraente, uma desculpa
cômoda para a leitura quase compulsiva de puro prazer. E quem disse que o
jogo sedutor é fácil? Quem se ilude com a suposta gratuidade do humor?
Estudantes que imaginam e conseguem manter, pelos doze meses do ano,
quatro páginas de graça inteligente são nada menos que gênios obstinados.
Conseguem, no dia a dia da escola, a proeza de divertir-se — e divertir um
número imponderável de leitores — com o mais rigoroso dos trabalhos!
Plástico Bolha, visto por esse ângulo, é uma metáfora perfeita para o conceito
de “literatura” — uma articulação inesperada de signos comuns, cotidianos,
sem compromisso com referências legitimadas como verdadeiras e, por isso
mesmo, produtores de um saber atraente, cujo sabor — marcado pelo toque
ácido da crueldade crítica — é difícil recusar. De minha parte, reconheço a
impossibilidade de inventar um texto com as vantagens do útil e do fútil.
Pois o texto, oferecido como plástico bolha, é o que encadeia as palavras de
modo a protegê-las dos choques da incompreensão e, ao mesmo tempo,
revela o gosto disfarçado dessas palavras, obrigando seu receptor a agarrá-las
num ímpeto, com todo o gosto e nenhuma cerimônia.
(Encantada com o convite e a oportunidade de também soprar
algumas frases compondo minha pequena bolha, nesse conjunto plástico
que explode a qualquer toque – mesmo apressado e leve —, quero entrar no
ritmo dos ruídos alegres, mostrando, no final das contas, que aprendi a lição
dos meus alunos.)
Marília Rothier
Professora de Literatura Brasileira
Subjetivas
por Gregório Duvivier
Série Receitas
Bater palmas
Para se bater palmas é preciso,
e nesse ponto seremos bastante
rígidos, duas mãos, que podem não
estar inteiras: os dedos, no caso,
fazem pouca ou nenhuma diferença.
Em seguida, levar de cada mão
a palma em direção à outra palma,
da outra mão, de modo a produzir
barulho. Este produto do encontro
de cada palma será batizado
de palmas (a total ausência de
originalidade não é minha.)
Quanto a gostar ou não gostar do objeto
aplaudido, confesso: pouco importa.
Janela
Duas Mãos
inspirado na Volta do Filho Pródigo de Rembrandt
A que afaga, a que sustenta.
A de fada, a calejada.
Em ombros, caídas.
Em outro, acolhida.
Tudo na moldura
Envolto em púrpura.
Disposições distintas,
Díspares.
Tudo resumido,
No mudo acolhido.
Nessas duas
Eram outras.
Dois pincéis,
Destoantes tons
Distantes impressões.
Tudo na moldura
Ainda envolto em púrpura.
Luiz Coelho
plástico bolha
produzido pelos alunos da
graduação de Letras da PUC-Rio
Tiragem: 8.000
Impresso na CUT Graf
Editor
Lucas Viriato
Editora Assistente
Marilena Moraes
Conselho Editorial
Luiz Coelho; Gregório Duvivier;
Isabel Diegues
Erguer, antes de tudo, uma parede –
a parede no caso é importantíssima,
pois as janelas só existem sobre
paredes, as janelas sobre nada
são também nada e não são sequer vistas.
Em seguida quebrá-la até fazer
nela um grande buraco, não maior
que a parede, pois precisamos vê-la,
nem menor que seus braços – as janelas
sobre as quais não se pode debruçar
não são janelas, são buracos. Pronto.
Ou quase: agora basta construir
um mundo do outro lado da parede,
para que possas vê-lo, emoldurado.
Comissão
Julia Barbosa; Isabel Wilker;
Paulo Gravina; Mauro Rebello;
André Sigaud; Flora Bonfanti
Revisão
Rubiane Valério
Coordenação
Luiza Vilela
Equipe
Márcia Brito; Marcelo Tapajós;
Rebecca Liechocki; Camila Justino;
Marcela Rosa; Esthér Oliver; Henrique
Meirelles; Andrew McAlister
Colaboradores
Bruno Giorgi; Felipe Gomes; LuizaVilela;
Raquel Pereira; Luane Pontes; Esther Ruth;
Isabel Diegues; Gregório Duvivier; Julia
Barbosa; Luiz Coelho; Marilena Moraes;
Glaucia Sposito; Léa Diva Vilela
Envie seus textos para:
[email protected]
Instantâneo
O circo acende sob a tenda
As crianças crescem nas arquibancadas
Os leões bailam sobre o picadeiro
CORRUPIO
Um breve ensaio sobre a peça de
teatro Frederico García Lorca:
pequeno poema infinito
Quando el rio es lento y se cuenta com
uma buena bicicleta o caballo si es posible
bañarse dos (y hasta três, de acuerdo
com las necesidade higiénicas de cada
quien) veces en el mísmo rio.
Augusto Monterroso
As bocas abertas
das crianças
dos leões
do pipoqueiro
(que passou a noite em claro
com o tiroteio no morro)
em casa não tem palhaço
não tem pipoca
nem bailarina
só malabaristas
Isabel Diegues
Salgada
Ensaio
3
Alluana Ribeiro
Rosa Mattos
Dissimuladamente,
Sal,
Te permito penetrar
Meus poros
E assim
Se alojar
Em mim.
E me enobreço
Desse cheiro
Que adquiro
E saboreio
O prazer inenarrável
De teu estar;
Embora já saiba
Que apesar
De tua satisfação-instinto
Em minha pele fazer ninho,
O mar te chama.
Ao grito de tua mãe
Tu não podes negar,
E assim me arrastas
Ao seio materno,
Sedento de tua nobreza identidade
De tua natureza, santidade,
E assim: mergulhada te deixo
Para que mergulhada
Ainda mais te tenha,
Eu, aderida ao eterno ciclo de tua estadia
Em meu corpo:
Teu-meu retorno
À causa
Mar.
De uma das 50 nascentes de
Granada brota a primeira lágrima. Com o
vento, desliza pelo rosto, pelas encostas,
ganha força e vira rio de três margens. Ao
acariciar cada uma delas a água faz um
som diferente - ritmo forte de correnteza.
E nós estamos naqueles espaços do rio,
de meio a meio, sempre dentro da canoa,
para dela não saltar, nunca mais.
É novembro, mas nesta Granada
venta nas quatro estações. A brisa refresca
quando o menino e a menina loira catam
pedrinhas brancas, mas causa frio quando
ela precisa ficar nua para lavar sua única
roupa. Frio no corpo da menina, no
coração do menino, frio no teatro. Todos
vestem seus casacos mas a menina não
tem o que vestir. Venta; e tudo que não é
mais necessário se desfaz. Resta apenas a
poesia e o respeito ao que as coisas
comunicam sem o auxílio das palavras.
Ah menina, você vai ser como sua mãe e
seus filhos vão ser como você...
Resta um respeito de criança, de um
pobre garoto apaixonado e silencioso que,
quase como o maravilhoso Verlaine, tem
dentro uma açucena impossível de regar.
O rio por aí se estendendo grande, fundo,
calado que sempre. Ele não pode dar
palavras nem água para sua flor. Mas
quando o ancinho penetrou o solo seco,
abriu caminhos para o ar entrar. E a terra
se tornou rarefeita, leve, cheia de poesia.
Ali Lorca encontrou a arte.
Façam completo silêncio, paralisem
os negócios, garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe. Suas pétalas não
se abrem. Seu nome não está nos livros.
Ela nasceu do que é suficiente. Garanto
que uma flor nasceu: a açucena de Lorca
apareceu quando Zé abriu as janelas e
ventou no teatro.
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○
Duplo Particípio
Há conjugação mais triste
Do que a do verbo morrer?
É semelhante a perder
No particípio do ter.
Há conjugação mais triste
Do que a do verbo morrer?
É semelhante a romper
No particípio do ser.
Paulo Gravina
O que eu trago
Eu costuro uma colcha de retalhos, multicolorida, divertida como riso
fácil de criança, que enche os olhos e o coração como roda gigante, com
pedacinhos disformes, cortados minuciosamente, outros rasgados com desleixo
proposital, confirmado e reafirmado, com forro da cor da lua, que aquece no
verão e esfria no inverno. Se alguém a puxa pra cima, ela descobre os pés, e se
pra baixo vai, a cabeça fica ao vento. Nem nisso ela tem audácia, não almeja
comprimento, ser pequena é só vantagem, portátil é tremenda qualidade, vai a
toda parte e comigo está em lugares diversos, eu a estendo e a amasso nas
oscilações do meu temperamento-maré.
Eu tenho um calabouço mágico, que se refestelou em pó de pirlimpimpim,
e de relance se mostra paraíso, oásis utópico, céu dos deuses, e quando lá
adentra enfeitiçado, a névoa se desfaz cruelmente. É lugar com cheiro e presença
infecta de mofo, úmido, molhado, gélido com direito a vento ártico, chão
escorregadio e paredes sem cor, lisas, sem forma, sem prumo, sem graça. O pédireito adjetiva-se humilhante de tão baixo, que triste ambiente com direito à vista
apenas pro rodapé de gelo. Não há como descansar, pernas esticadas e joelhos
sem flexão, tocar o chão é desaconselhável e insano, talvez os sensores dele
possam ser disparados e então se iniciará um processo vagaroso de aproximação
de paredes. Não há intuito de reduzir a pó, mas tão-somente garantir a inércia e
a desesperadora impossibilidade de fuga.
Eu apresento orgulhosamente minha caixa madrepérola, sem fundo,
com abertura fácil, mas delicada e frágil, muito frágil. Invólucro de surpresas,
guarda perdidos e achados raros, e não há só uma chave; esperançosas cópias
já foram lançadas por aí. O que a abre não é tão-somente a combinação segredofechadura, o ABRE-TE SÉSAMO encerra o mistério. Vislumbrar seu conteúdo
requer espetáculo mínimo, de palavras certinhas, gestos exatos, intenções que
agradem à proprietária e brilho no olhar ininterrupto. Tudo que lá dentro está é
interessante e ao mesmo tempo, trivial, é diferente e é comum, simples e complexo.
Atraente caixa de Pandora cospe labaredas, asperge cristais de neve, ela chove
sobriedade e pontua desejo escandaloso, ela dissemina esdrúxulas moribundas
dúvidas, mas murmureja exuberantes certezas pulsantes.
Eu convido com sorriso, e mais à frente cobro lágrimas, quero e preciso
do suor, do arder e do choro, eu construo uma base de diamantes, e depois tiro
o chão, dou o céu, mas puxo o tapete, de uma vez só, de uma severa vez só.
(Des)Complico-me pela negação: eu não sou de vidro mas um peteleco por
vezes é nocaute, eu não sou brisa e não sou Babilônia, não sou João Bobo e
nem consigo manter olhos estatelados o tempo todo, não sou coisa única e
definida, não sou fechada porém tenho fronteiras, não sou chegada à oratória e
não só cerro os lábios, não sou atípica e nem vulgar, não sou perfume importado
e nunca serei nariz empinado.
Eu trajo uma alma aflita, cujo passatempo lúdico é o mexer e remexer
nas questões cruciais da minha existência Fênix. Transporto um tempero ácido
com gosto residual doce, exótico e inesquecível. Ser mulher é desafio meu
rotineiro, cansativo e horripilante, e por causa disso e apesar disso, faço e
desfaço rimas, eu vendo versos, negocio vocábulos, troco letras e coloco linhas
em escambo.
Prazer, sou indigna do rótulo de escritora, eu troco em miúdos escritos
esses ventos que correm, formam e dilaceram meu labirinto.
Eu escrevo porque não basta dizer a mim e não conheço paz.
Eu escrevo porque já não cabe aqui, e não sei o que é silêncio.
Eu escrevo, escrevo e escrevo porque nunca coube em mim.
Milene Portela
Anjos Urbanos
uma comédia veneno
de Rosane Svartman
direção Isabel Diegues
com Anna Markun e Juliana Martins
de 4 de maio à 24 de junho
sex. e sab. 21h e dom. 20h
Teatro Maria Clara Machado (Planetário da Gávea)
4
Condição
O nome era Rodolfo:
chegou numa caixa,
pequenos furos, laçarote azul.
Rotina de sol, pernas, alguma
caça. Tudo era chato e fácil, quase
óbvio: se espreguiçar de manhã
sob o sol amarelo, fixar o olhar
num ponto ao pé da escada, dormir
quatorze horas por dia.
O difícil mesmo
era se acostumar
com a condição de
gato.
Constanza de Córdova
Sumiregusa (Violeta Selvagem)
Henrique Meirelles
Para além dos confins de meus jardins externos, se encontra a flor que
sobreviveu ao dilúvio dos tempos antigos. Suas pétalas únicas são luas
silenciosas que cobrem céus sem estrelas. Seu odor, perfume lúdico, viaja por
mares profundos, terras distantes e topos malditos. Sua luz guia tolos por entre
as árvores gigantes e imponentes. Seu caule de seda, letal, nasceu dos fios de
cabelo das mais belas fadas e seu pólen, etéreo, é o manjar dos Deuses
decadentes. Eis meu maior tesouro. Eis meu maior tormento. Eis aqui minha
blasfêmia. Eis meu desejo crescente.
Para além dos confins de meus jardins externos, existe, em silêncio, a Violeta
Selvagem. Dama lírica das noites quentes, rainha impura entre as sílfides
cintilantes e transparentes. Sua aura emana luz de eclipse, com gosto das frutas
sagradas e, ao pé do verão, constelações de pecados surgem ao seu redor,
incandescentes. Sua voz é orvalho em teia de aranha furta-cor e seus desejos,
em lua crescente, se tornam raivosas tormentas de amor.
Para além dos confins de meus jardins externos, reside aquela de quem
sou aprendiz. Seu doce veneno corre em veias estranhas, de demônios, de padres
e em labirintos sutis. Sua beleza já espalhou o caos. Sua tristeza já plantou a dor.
Suas raízes sustentam palácios, mas só lhe falta a posse do amor. Lá, bem para
além de meus jardins, se encontra aquela que conquistei inutilmente por eras.
Aquela que, ao vestir seu manto, não quis ouvir a música das esferas. Lá, bem
para além de meus jardins externos, governa aquela que possui meus dias e
minhas noites como bobagens. Aquela que possui minh’alma presa em suas
pétalas roxas de violeta... Violeta Selvagem...
m u l h e r epors - d a m a s
Ana Chiara
Amor cortês
Perdoa-me causar-te mágoa
Desta humana, amarga, demora!
– de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa
Cecília Meireles
Sou tua vassala, querida,
Estendo um tapete, fico de quatro
Mordo fronha
Por tuas cantigas, teus romanceiros,
Tuas mãos deixando escorrer teus sonhos
Tão tristinha...
Teus olhos de cristal, pastora de nuvens,
Tua vaga música.
Todo este instrumental da sublimação dos nossos corpos
Sofrendo a beleza de espumas, nuvens, poeira
Mas agora, chega, donzela,
Vem cá e faz!
Posto que está frente a frente
Mi’a seo’ra, dona cousa
Seo’ra dona do mundo
Si non me calo, mi’a seo’ra
Mi’a dor me cala mais fundo.
Mi’a seo’ra, Dona Fea
Seo’ra de D. Manoel
Si non me calo, mi’a seo’ra
Mi’a dor me cala no céu.
Mi’a seo’ra renascentista
No seu palácio de ouro me enterro
Seo’ra de toda ametista
Si non me calo, mi’a nobre tão quista
Mi’a dor me cala no inferno.
Lázaro Cassar
Banca da PUC
Tel.: 2512-7109
5
Puzzles
INVASORES DE CORPOS: MANIFESTO SAMPLER
É PRECISO NASCER
Mais que um. É preciso ser sempre mais que um
para falar, é preciso que haja várias vozes.
Que importa quem fala?
A verdadeira atividade literária não pode ter a
pretensão de desenrolar-se dentro de molduras. A atuação
literária significativa só pode instituir-se em rigorosa
alternância de agir e escrever.
A crítica tem que falar na língua dos artistas. Pois
os conceitos do cenáculo são senhas. E somente nas senhas
soa o grito de batalha.
O escritor não diz mais do que pensa (e pensa mais
do que diz).
O crítico não é o intérprete de épocas artísticas
passadas. O crítico é um estrategista na batalha da literatura.
O leitor-ouvinte está entregue aos seus próprios
recursos.
FOTOGRAMA I:
CORTAR O CORDÃO UMBILICAL
Escrever não se aloja em si mesmo.
Não ponho aspas. As palavras são minhas. Não
importa quem fala. Sou quem pode dizer o que disse. Fui eu
quem escreveu. Agora abro as comportas e deixo que elas,
as palavras, as vozes, se espichem, se multipliquem, se
fortaleçam. Aglutinação pela dispersão. Ele(s) redige(m), mas
sou quem escreve. Um corpo em disponibilidade para si e
para o outro. Todo es de todos, a palavra é coletiva e é
anônima.
Nosso prazer não tem sido mais do que o ossário
natal do tempo morto. Pensar e escrever novamente como
uma violência e um prazer. Ser feliz significa poder tomar
consciência de si mesmo sem susto.
A ESTÉTICA SAMPLER nasce da física. Somos
movidos por impulsos elétricos espúrios provenientes de
atividade elétrica na atmosfera terrestre.
A escrita sampler é uma OPERAÇÃO. Não é um
projeto, mas a realização constante dessa operação.
O que “é incorporado” vira ruína junto com “o que já
existe”. Só sobra o abismo do desgarrado. O novo solto sem
referências. Esse é o bom sample: sem pai nem mãe. A escrita
como regime errante da letra órfã. O escritor não é mais
soberano, é também presa dessa letra órfã que circula. Só
uma letra órfã pode pedir uma escrita viva. Pelas mudanças
a que se expõe, a escrita sampler adquire uma espécie de
desarraigamento crônico: nunca mais se sentirá em casa, em
lugar nenhum, permanecerá psicologicamente mutilada. É
preciso nascer, sair do plasma que cobre os corpos invadidos,
romper o cordão umbilical. Você abre os olhos: sua mãe está
ali, deitada sobre a cama. Seu pai segura o cordão umbilical.
Você está no mundo. Bem-vindo! Mas você não está
devotado apenas ao que o inédito umbigo circunscreve,
o corte do cordão umbilical te lança à perda da pureza,
estás liberto da origem, estás liberto do mito. Invadir o
corpo do mundo, e ser invadido por ele é o que você faz
agora (e para sempre).
Que importa quem fala? A escrita sampler acumula
por afeto, pelo que a afeta, tudo aquilo que vê, ouve e
experimenta à sua soma.
Quem trabalha com a escrita sampler não é aquele
que não tem o que dizer, é aquele que tem coisas demais a
dizer, tem vozes demais falando dentro de si, e as expressa
musicalmente, como um fluxo, como um processador de
linguagens e sensações.
Apropriar para produzir, e não para reproduzir. A
escrita sampler como uma forma de “dobrar” a matéria, a
referência, o sujeito que existe criar uma nova/outra/
diferente subjetivação do texto/música/matéria.
Uma escrita não começa nem conclui, ela se
encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser,
intermezzo. Tem como tecido a conjunção ‘e... e... e...’ Há
nesta conjunção força suficiente para sacudir e desenraizar
o verbo ser. Viajar e se mover a partir do meio, pelo meio,
entrar e sair, não começar nem terminar. Instaurar uma lógica
do E, reverter a ontologia, destituir o fundamento, anular
fim e começo. Uma escrita pragmática. É que o meio não é
uma média; ao contrário, é o lugar onde as coisas adquirem
velocidade. Entre as coisas designa um movimento
transversal que carrega uma escrita e outra. Um “e” que
vem em qualquer lugar: antes, no meio, depois, e cria um
espaço para si, para fora ou para dentro do corpo invadido.
Um estímulo ao que não necessariamente precisa ser
estimulado, a não ser aos olhos de quem está ali invadindo,
e sendo invadido. Não mais imitação, mas captura de
código, mais-valia de código, aumento de valência.
Produzir na abertura de um espaço onde o sujeito
que escreve não pára de desaparecer. A busca do
esvaziamento do eu. O eu não torna-se mais referência
absoluta pois a escrita sampler opera com diversos eus. A
escrita torna-se o exercício do eu + 1, do eu somado a
outros “eus” que falam – refalando – em seus textos. A
escrita sampler esvazia a figura do autor-ego, e seu papel
em relação ao discurso, criando um novo jogo de forças e
oposições possíveis.
A linguagem não pode mais se deixar prender à
teatralidade filosófica do seu objeto. Deve se tornar,
também ela, um atentado por fascinação.
Não significa que, daqui para a frente, não haverá
forma na arte. Significa apenas que haverá uma nova forma,
e que essa forma será de um tipo que admitirá o caos, sem
tentar dizer que o caos é na verdade outra coisa. Encontrar
uma forma que acomode a desordem: eis a tarefa do artista
hoje. As possibilidades analíticas precisam convergir, e
não se digladiar.
Helena Martins
Ué, vocês não sabiam não?
Eles estudaram na mesma escola e
nasceram no mesmo ano, parece que com alguns
dias de diferença. Mas não foram colegas,
porque, ao entrarem nessa escola, o Hitler tinha
repetido um ano, ao passo que o Wittgenstein tinha
saltado um. Há especulações sobre um certo
recalque especial do Hitler com relação ao
brilhantismo do Wittgenstein, a quem ele teria
chamado de “judeu porco” em uma ocasião. Tem
também a história das pretensões artísticas do
Hitler, frustrada quando ele teve sua candidatura
rejeitada em uma escola de arte, numa época em
que o pai do Wittgenstein era um conhecido
mecenas; financiava muitos artistas e
compositores judeus e não judeus (sob
encomenda dele, o G. Klimt pintou um retrato da
irmã do Wittgenstein, etc.) Um pesquisador
australiano polêmico, chamado Kimberly Cornish,
chega a especular que “aquele menino judeu dos
tempos de escola”, que Hitler cita com desprezo
em Mein Kampf, como parte de seu “despertar”
anti-semita, teria sido ninguém menos do que o
nosso W. Mas parece que isso é meio viagem. O
que não é viagem é que W. e sua família foram
vítimas da perseguição nazista, tendo sido
espoliados em grande parte dos seus bens durante
o domínio fascista na Áustria. Para quem quiser
conhecer de forma mais confiável e menos vaga
este e outros aspectos até bem mais intrigantes
da biografia do Wittgenstein, eu recomendo
Wittgenstein: o dever do gênio, obra biográfica
escrita por Ray Monk e traduzida pela Cia. das
Letras em 1995. Outra coisa boa é ver o filme
Wittgenstein, do Derek Jarman (disponível, acho
eu, na locadora do Estação Botafogo).
Helena Martins, em e-mail enviado recentemente
a alguns alunos que se intrigaram com a presença
“improvável” das duas crianças na mesma foto.
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O site reúne os acervos de 465 sebos e livreiros, de 118 cidades, e ainda
coloca à disposição dos leitores cadastrados a própria estante virtual, para vender
livros do seu acervo através do site. Um jeito novo de comprar e vender livros
usados, reunindo o acervo de centenas de sebos ao mesmo tempo!
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Gênesis: Tudo do Nada
Cantiga das meninas das calçadas
De Yuri Amorim
As meninas deslizam
sinuosas, soturnas,
seus corpos franzinos
na navalha do destino,
o meio-fio do colar
da princesinha do mar.
No começo era o nada. O mais absoluto nada. Não havia luz, ar, água. Também não
havia contas pra pagar. Tudo era vácuo. Vago. Vão. Tudo era nada. Então, do nada, o nada se fez
tudo. E se fez tudo por causa de nada: umas poucas palavras danadas.
O universo - ao inverso do que o homem em conversa com si mesmo desconversa - teve
seu berço em versos. Versos proferidos do nada, muito provavelmente pelo Nada, que, ao contrário
do que se espera, é muito mais do que se pensa. Sempre foi difícil aos olhos humanos notar que
na escuridão devastadora, no frio mortal, no mais profundo abissal, também pode haver vida. E
vida inteligente! Pois o nosso Nada, sem muito que fazer naquele imenso nada, resolveu fazer
tudo. E fez em versos. E, pra facilitar a vida do relator, versos em português. Facilitando ainda
mais, versos livres, sem formas nem estruturas pré-determinadas - afinal de contas não havia
nada em que pudesse se basear.
Começou achando que todo aquele nada não ia levar a lugar nenhum. Além do mais
achou tudo muito escuro por ali. Pôs-se a compor:
“Sob o manto tenebroso de nada deitem-se infinitas janelas luminosas!”. E assim, de uma
só vez, milhares e milhares de estrelas brotaram no que veio depois a se chamar espaço. Apesar
do susto que tomou, o Nada viu que era bom. Então deixou. Logo percebeu que tinha em mãos
um momento histórico então resolveu inventar alguém para registrar aquilo tudo. Dos versos
seguintes pendeu no espaço sideral alguém a quem resolveu chamar de Paulo Coelho. Mas não
gostou não. Então jogou fora. Na seqüência, corrigindo nos versos as imperfeições que geraram
a aberração, acabou chegando a uma fórmula um tanto mais acertada e o resultado foi o meu
nascimento. Dessa forma eu fui a única criatura viva, além do Nada e do Paulo Coelho, que
testemunhou a criação do universo (ou parte dela).
Com o tempo o poeta Nada foi pegando o jeito da coisa. Em seus versos surgiram os
planetas, a roda, as galáxias, os elefantes, as pizzas e, por fim, a Internet. Depois de uns 5 dias
(ele também já tinha inventado os dias, os minutos e os anos), pensou:
“Sacanagem! Ainda não parei de trabalhar por nem um minuto!”.
Nisso ele inventou o fim de semana. Não foram os melhores versos que o universo já
ouviu, mas vá lá, foi uma puta invenção!
Depois que o Nada, antes de partir pro fim de semana, inventou os nomes dos dias da
semana, nunca mais fez nada! Sabe como é, né? Domingão... nada pro Nada fazer! Ficou
acomodado.
Desde então tem sido isso tudo que a gente conhece: alimentar os peixes, fritar omeletes,
falar besteiras, assistir à televisão, falar besteiras ainda piores e, de vez em quando, pensar no
sentido da vida, na origem do universo e outras coisas mais (“Quem veio primeiro? O ovo ou a
galinha?”).
Diz-se que um dia do nada, o Nada, cansado de tudo, vai dar fim a essa baderna. É o que
muitos preferem chamar de Apocalipse, acreditando naquele papo de que o céu vai se abrir e
anjos com trombeta vão vir separar o joio do trigo. Isso no máximo pode dar em um cereal novo.
Se der tempo.
Entre mesas apinhadas
tulipas alouradas
limões açucarados
flanam as meninas
olhos gulosos, arregalados,
nos petiscos variados.
Tão nuas e famintas,
gafanhotos perdidos
desvalidas na vida,
o imaginário inibido,
choram por comida,
não sonham com vestidos.
Empurradas esfaimadas,
pra fora da calçada
lá está a vilania, não a pé,
negocia, disfarçada,
a troca de ingênuos aromas
por sanduíche e picolé.
No caminho aprendido,
serpentes de pobre luxúria
anjos ou demônios anêmicos
embalsamados de cola, não choram
levantam cotos de saias,
trejeitam, deitam e rolam.
Vão perpassando pela infância
pobres de serem crianças,
mosquinhas drosófilas fatigadas,
em bananas estragadas.
Cecília choraria copiosas gotas,
Nota do autor: Ao abandonar pelo espaço aquilo que chamou de Paulo Coelho, o Nada só não
sabia que estava inventando mais uma coisa tremenda: a literatura esotérica de auto-ajuda. É que o tal
sujeito, depois de vagar pelo universo por milênios infindos, se radicou num planeta chamado Terra e,
por incrível que pareça, se tornou Best-Seller. Alguém definitivamente achou bom.
Sueli Rios
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Entrevista por Marilena Moraes
Traduzindo para a televisão
M. Brito
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SABRINA MARTINEZ é sócia-fundadora da Gemini Vídeo, empresa responsável pela tradução de grande parte das séries e programas a que assistimos na tv a cabo. Professora de Tradução
para Legendagem na PUC-Rio, achou um tempo no atarefado período que antecede a defesa de sua
dissertação de mestrado para conversar com o plástico bolha
Qual a sua formação? Você faz outro tipo de tradução,
além da legendagem para televisão? Qual?
Eu me formei em Comunicação Social (Jornalismo) pela PUC
em 1992. Depois, fiz o curso de Formação de Tradutores
pela CCE (2 anos). Em 2002, fiz a Especialização em Tradução
na PUC e agora estou finalizando o Mestrado em Tradução,
também na PUC. Eu me apaixonei pela tradução ainda na
faculdade de Jornalismo, depois de cursar o quinto período
na Universidade de Missouri através de um intercâmbio
promovido pela PUC. No sétimo período, quando eu era
estagiária do Jornal da PUC, fui cobrir uma palestra com a
Monika Pecegueiro do Amaral. Ela falava sobre a tradução
para legendas com tanto entusiasmo que me contagiou.
Naquele momento eu percebi que também queria trabalhar
com legendas e, assim que me formei, me inscrevi no curso
de Formação de Tradutores. Meu primeiro emprego em
tradução já foi com legendagem. Assim que terminei a
formação, passei no teste da Globosat. Portanto, sempre
trabalhei com legendagem para a TV.
Quais as principais diferenças entre a tradução de cinema
e a de televisão?
As principais diferenças são técnicas. Por exemplo,
enquanto na tradução para a televisão a unidade de
referência básica é o segundo, no cinema, a unidade básica
é o pé de película. Um segundo de um programa de TV
gravado no formato NTSC possui cerca de 30 frames (ou
quadros), enquanto um pé de película contém 16 quadros.
Os legendadores precisam saber essas coisas para fazer o
cálculo de caracteres por segundo (ou pés de película), o
que tanto no cinema quanto na TV fica por volta de 15
caracteres por segundo. Essa é a velocidade média na qual
uma pessoa adulta consegue ler uma legenda. Há algumas
outras diferenças técnicas e de padrões em função das
dimensões das telas, mas, no geral, o trabalho é o mesmo.
Há um fator complicador na tradução para cinema. Muitas
vezes, o tradutor recebe apenas o script original para traduzir.
Ele não tem o auxílio das imagens para a tradução, o que
dificulta imensamente o seu trabalho. Ou seja, enquanto o
original nesse caso é o script impresso, no caso da
legendagem para TV, o original é sempre o arquivo de
imagens.
Quais as principais qualidades do bom tradutor de
legendas? Que formação precisa ter, além de conhecer os
programas de computação utilizados? Um bom tradutor
de textos pode ser, automaticamente, um bom tradutor de
legendas?
Vou começar pela última pergunta. Não. Um bom tradutor
de textos não necessariamente se adapta automaticamente
à legendagem. Isso acontece principalmente por causa do
nível extremo de resumo exigido pela tradução para
legendas. Enquanto que na tradução de textos pode-se
recorrer a notas do tradutor e a traduções explicativas, na
legendagem as coerções espaço-temporais impedem isso,
o que faz com que muitos tradutores de textos não se
acostumem à tradução para legendas. Quanto às qualidades
de um bom legendador, é importante que ele tenha formação
em Letras ou áreas afins e que conheça intimamente o
português e seus diferentes registros, assim como, é claro,
a língua da qual traduzirá. É vital que ele tenha um ótimo
ouvido, poder de síntese e que seja ágil, pois os prazos do
mercado de tradução para TV são em geral muito curtos.
O profissional tem de ser eclético e aceitar trabalhos sobre
assuntos diversos?
Se ele for, melhor para ele. Nos últimos anos, a TV por
assinatura foi inundada de programas sobre culinária, por
exemplo. Na minha empresa, temos muita dificuldade de
encontrar tradutores versados em culinária que aceitem
traduzir uma série dessas. O mercado precisa de tradutores
de culinária! E também de tradutores com familiaridade com
games, por exemplo. Esse é outro assunto do qual todo
tradutor foge. Hoje em dia, um legendador que entenda de
games e de cozinha é disputadíssimo pelo mercado.
Sendo o Brasil um grande consumidor de programas
estrangeiros, que requerem legenda, o mercado só tende
a crescer? Quais os principais softwares utilizados?
Sim, a tendência do mercado é crescer, principalmente com
a popularização do DVD, que comporta versões legendadas
em até 32 línguas de um mesmo filme. Ou seja, até 32
tradutores podem participar da legendagem de um mesmo
filme! No Brasil, os softwares mais usados hoje são o Horse
e o Subtitle Workshop, que pode ser baixado gratuitamente
pela internet.
Para canções e poesias, por exemplo, a maioria dos
clientes pede que o tradutor priorize o conteúdo, e não
a forma. Ou seja, o importante não é quebrar a cabeça
buscando uma rima ou tentando manter a métrica do
original, mas tentar passar o conteúdo da mensagem
presente no original. Se essa mesma pergunta fosse
dirigida a um tradutor para dublagem, a resposta seria
completamente diferente.
Quais as principais dificuldades do profissional de
legendagem no Brasil?
Os glossários sempre auxiliam o tradutor, assim como os
consultores para assuntos específicos. Mas a internet é
sem dúvida a melhor fonte de pesquisa e auxílio ao tradutor.
Sabendo como e onde pesquisar, encontra-se praticamente
de tudo na internet, inclusive dicionários de gírias e dialetos
muito bons.
Não existem cursos de formação de legendadores, o que,
a meu ver, é um problema. O mercado ainda é bastante
amador. Existem cursos e oficinas de treinamento, mas
eles costumam ser rápidos, de poucas horas de duração,
e a legendagem é um tipo de tradução tão peculiar, tão
específico e que exige o desenvolvimento de tantas
habilidades, que, na minha opinião, apenas um curso
extenso de formação seria capaz de realmente suprir o
mercado de profissionais bem-preparados. No Brasil,
uma das poucas universidades que oferecem uma
disciplina de Tradução para Legendagem na graduação
é a PUC. Acho que é assim que a formação do legendador
deve começar, na universidade.
Há legendas feitas em português no exterior para consumo
no Brasil. São sempre ruins, feitas por amadores?
Qual o seu conselho para quem está interessado em
traduzir legendas?
Alguns canais de TV por assinatura legendam seus
programas no exterior, sim, mas recentemente, devido
principalmente às reclamações constantes na imprensa,
temos notado um esforço por parte desses canais de
concentrar a legendagem de seus programas para consumo
no Brasil aqui mesmo. Essa é uma providência recente.
Vamos ver se vai dar resultado.
Observar as legendas da TV e do cinema, tendo sempre
em mente que as coerções de espaço e tempo exigem
que o legendador sintetize em pelo menos 30% o
original. Sabendo isso, fica mais fácil entender por que
muitas vezes os tradutores usam o recurso da paráfrase
ou deixam tantas informações de fora das legendas.
Quem tem interesse em traduzir para legendas deve
procurar desenvolver as habilidades que já mencionei,
como agilidade com o computador, poder de síntese,
redação, ouvido, etc., além das competências exigidas
de todo tradutor, é claro.
A quem o profissional recorre se tem de legendar um filme
sobre um grupo específico, com um dialeto próprio? Ele
deve formar glossários? Quais as melhores fontes?
O tradutor tem de ser humilde e não meter a colher no
original? Como ele faz no caso de canções e poesias?
Esse é um assunto polêmico e que depende muito do tipo
de tradução, do público-alvo e das exigências do cliente.
Generalizações são sempre perigosas. No caso da
legendagem, é praticamente impossível não meter a colher,
devido ao nível de resumo exigido nesse tipo de tradução.
Fundada em 2000, a Gemini Vídeo oferece curso de treinamento
de 40h para novos profissionais, através de seu centro de
formação em legendagem. Os interessados podem fazer contato
pelo e-mail [email protected]
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Contos de Mary Blaigdfield – A mulher que não queria falar sobre o Kentucky
De Lucas Viriato
O Café estava mais cheio naquela manhã,
disso ela tinha certeza. E o clima do lugar estava
diferente também. Uma atmosfera estranha no
ar, pessoas que nunca havia visto ali, garçonetes
novas. Tudo muito estranho, como um sinal de
que algo de ruim estava prestes a acontecer.
Ela caminhou por entre as mesas até
chegar no seu cantinho preferido, sua mesa de
sempre, e se deparar com uns estrangeiros ali
sentados. Maldita imigração, maldita globalização
– pensou, nervosa. Caminhou até o outro canto
do Café e sentou-se em uma mesa qualquer.
Por que o clima havia de estar diferente
logo hoje? Justamente hoje, quando ela havia
marcado um encontro tão importante naquele
local, sempre tão pacato.
Sentou no banco de couro vermelho e
chegou bem perto do vidro da janela. Sempre
gostou desse cantinho, desde pequena. Até hoje
se lembra das brigas com o irmão quando os
pais os levavam à lanchonete. Uma eterna luta
pelo cantinho sem saídas e sem entradas, onde
ela estaria segura e isolada. Vivendo no seu
próprio mundo.
Pediu um café bem forte para a
garçonete e começou a se distrair olhando os
carros passarem na rua. Carros de todas as cores,
todos os tipos. Tantos carros, e ela não sabia
nada sobre carros. Mas nem por isso deixava
de se distrair vendo os carros passarem.
- Mary Blaigdfield!
Mary é sugada de volta ao mundo real
assim que se deu conta de que alguém gritará
seu nome. Era quem ela estava esperando.
- Andrezza Pascuoletto!
- Quanto tempo!
- É, faz muito tempo realmente.
- O seu cabelo está diferente.
- É, eu cortei.
- Ficou ótimo.
- Obrigada. Sente-se.
Andrezza Pascuoletto senta-se no banco
em frente ao dela e também se arrasta até o
cantinho, deixando a bolsa e a pasta do seu lado.
- Este lugar é sempre assim?
- Não, hoje está diferente, mais cheio. –
respondeu Mary olhando ao redor – Mas,
Andrezza, nós não combinamos de nos
encontrar aqui para analisar o movimento da
casa. O que você tem para me mostrar?
Andrezza tira a pasta do banco e a
coloca no colo. Começa a procurar algo. É
interrompida pela garçonete trazendo o café de
Mary. Pede um capuccino, e continua a procurar
até tirar de dentro da pasta um envelope pardo,
que coloca na mesa.
- O que é isso? – pergunta Mary,
enquanto adoça o seu café.
- Fotos. Fotos mostrando o momento
em que Larie Boferman aceita dez milhões de
Yuri Guriskch no saguão de um hotel em
Moscou.
- Como você teve acesso a esse
material?
- Eu sou muito próxima de várias
pessoas lá dentro. Tenho influências no projeto.
- Isso não explica o fato de você ter
tido acesso a esse tipo de material.
- O que você queria que eu fizesse?
Recusasse? Dissesse que não estava interessada
neste tipo de informação? – Fala nervosa em
um tom de voz mais elevado, beirando o choro.
- Se acalme, alguém pode prestar
atenção em nós.
- Desculpe...
- Algo me diz que não foram apenas as
fotos que a levaram a marcar esse encontro. Tem
algo mais a dizer?
- Não... ...Quer dizer... ...Tenho sim...
- Então diga logo, cada segundo que
passa é um segundo a menos.
- É sobre algo que uma fonte do projeto
me informou. E diz respeito a você.
- Como assim? – pergunta espantada.
- É algo pessoal, mas, como sou sua
amiga, me senti na obrigação de...
São interrompidas pela garçonete
deixando o capuccino na mesa. A garçonete se
afasta e a conversa continua:
- Andrezza Pascuoletto, ou a senhora
vai direto ao ponto ou eu sou capaz de perder
a cabeça!
- Mary, eu vim aqui para conversar, para
saber se você esta precisando conversar...
- Sobre o quê!?!?
- Sobre... sobre....
- Sobre?????
- Sobre o que ocorreu no Kentucky...
Mas sinta-se à vontade, eu não quero forçar na....
– é interrompida pelo olhar de Mary Blaigdfield
piscando incessantemente. Nos últimos
momentos em que ainda pôde, ela balbuciou:
- Eu... não quero... falar... sobre o
Kentucky.
É, naquele dia o café estava bem
diferente mesmo, mas na verdade ninguém mais
parou para prestar atenção nisso depois do
show de horrores de Mary Blaigdfield.
Convulsões, gritos de dor, histeria, tremedeiras,
soluços. Dessa vez ela chegou a urinar nas calças
em meio à tremedeira. Andrezza, assustada, se
aproximou para ajudar.
Brewewreerr.
O grupo de turistas ficou horrorizado
quando Andrezza Pascuoletto passou toda
engosmentada de preto ao lado deles. Realmente
o fedor era horrível.
Ela é Mary Blaigdfield
e ela não quer falar sobre o Kentucky.
Notas Cáusticas
Mosquito
por Rodrigo N. C.
Certas pessoas são tão relevantes quanto um
mosquito. Mas nem todas são assim tão relevantes; há as
que são menos — e é preciso que se lhes diga isso na
cara, do contrário, andam por aí diminuindo os mosquitos,
que já são pequenos.
(Eis por que teve início a rixa entre essas duas
espécies, muito antes do nascimento do próprio Creso.
Foram os homens os primeiros a ofender a outra parte,
uma vez que, em sua arrogância, diminuíram-na; e a outra
parte, que era a dos mosquitos, que considerava a
diminuição um ataque ao seu direito de existir, declarou
guerra aos homens. E então, as picadas, o inseticida, o
mata-mosquito, a dengue, o jornal dobrado, a leishmaniose
e... O resto está nas crônicas antigas, quem quiser que as
vá ler.).
Pois bem, foi levando em conta esses fatos
históricos que, certa vez, não faz muito tempo, eu não
disse nada a um passante que passeava bem na minha
frente, que nem um mosquito, mas pior do que um
mosquito pelas razões que eu já referi. Não lhe disse nada,
porque não o diria sequer a uma mosca, quanto mais a
uma pessoa. O passante, notando isso, me perguntou:
— Por que é que você tá me tratando que nem
mosquito?
E, novamente, não lhe disse nada; porque ele não
era mosquito, era gente; porque, ainda que ele fosse uma
porcaria de um mosquito, eu não ia responder, porque
mosquitos não falam, nem entendem; e porque os
mosquitos merecem mais respeito do que ele, ainda que
não falem, nem entendam. E porque... Ah!
— Te peguei, bandido! — foi o que eu disse, e
dei com o jornal bem no meio do nariz dele.
Khrónos
Sim, ela quis acreditar
Que o tempo podia parar
Enquanto o marido pagar
Seu rosto não vai enrugar
A toda hora um repuxar
Sem medo de a cara entortar
De tanta injeção de botox
Não passa de mero xerox
Marilena Moraes

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