Ayaan Hirsi Ali: uma cidadã multicultural nos limites da

Transcrição

Ayaan Hirsi Ali: uma cidadã multicultural nos limites da
CENTRO UNIVERSITÁRIO DE BELO HORIZONTE – UNI-BH
VICTOR COSTA HASTENREITER
AYAAN HIRSI ALI:
Uma Cidadã Multicultural nos Limites da (In)tolerância
Belo Horizonte
2008
VICTOR COSTA HASTENREITER
AYAAN HIRSI ALI:
Uma Cidadã Multicultural nos Limites da (In)tolerância
Monografia apresentada ao Curso de Relações
Internacionais do Centro Universitário de Belo Horizonte
– UNI BH.
Orientador: Rui Edmar Ribas
Belo Horizonte
2008
VICTOR COSTA HASTENREITER
AYAAN HIRSI ALI:
Uma Cidadã Multicultural nos Limites da (In)tolerância
Monografia apresentada ao Curso de Relações
Internacionais do Centro Universitário de Belo Horizonte –
UNI BH.
Orientador: Rui Edmar Ribas
Monografia defendida e aprovada em:
Banca examinadora:
______________________________________________
Prof. Alexandra do Nascimento Passos
______________________________________________
Prof. Flávio Alexander Delaqua Lucas
Agradeço as mulheres da minha vida: Symône,
Marísia, Thaís, Claudia, Carolina e Carmem
Lúcia que vêm me dando tantas forças nos
momentos mais difíceis dos meus estudos, e ao
meu pai com sua esperança sempre presente.
Herói é alguém que deu a própria vida
por algo maior que ele mesmo”.
Martin L. King Jr, 1963
RESUMO
O trabalho apresentado tem como objetivo fazer algumas indagações, questionamentos
e reflexões, numa perspectiva inter-transdisciplinar, sobre a relação entre liberdade religiosa e
(in)tolerância tendo como protagonista Ayaan Hirsi Ali, considerada nos dias de hoje uma das
100 personalidades mais influentes do mundo.
Ayaan traz à tona questões atuais polêmicas relacionadas à “incompatibilidade (?)”
dos Estados muçulmanos, na sociedade moderna (Estados Liberais Democráticos), onde
prevalecem
governos ditos totalitários e integralistas - que não respeitam
os direitos
individuais básicos para o exercício pleno da liberdade humana, principalmente na
preservação da liberdade religiosa e política.
A intolerância apresenta-se hoje como uma “ferramenta” para as ações e objetivos de
grupos religiosos e políticos, espalhados pelo mundo, fomentadores do fundamentalismo nas
mais diversas tradições culturais.
A posição do Estado Democrático Liberal frente a esta demanda social
multiculturalista crescente, tem como exemplo principal a não interação de grupos
muçulmanos fechados dentro de territórios estrangeiros. Esta é matéria de estudo tratada neste
trabalho acadêmico, não sob forma de questionamento moral e ético da cultura islâmica, mas
sim pela abordagem das condições plenas para o exercício da liberdade individual como a
crítica, as preferências religiosas, a adequação às tradições e posições políticas típicas das
sociedades democráticas liberais multiculturalistas.
PALAVRAS CHAVE:
Liberdade – (in)tolerância – cidadania – identidade - multiculturalismo
Uma cidadã multicultural nos limites da (in)tolerância
“ Falamos de nosso coração, de nossas intenções, como se nos pertencessem;
mas é um poder desconhecido que nos conduz, que nos deita no túmulo à sua
vontade, e não sabemos sequer de onde vem, nem para onde vai
( HÖLDERLIN, Hyperion ).”
Sumário
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 9
1 LIBERDADE RELIGIOSA, TOLERÂNCIA E INTOLERÂNCIA: SUA EVOLUÇÃO,
CONCEITOS E PRÁTICAS NA MODERNIDADE ....................................................................... 12
1.1 O conceito de modernidade e o homem Moderno ...................................................................... 12
1.2 A dinâmica da sociedade moderna: O direito a negação............................................................. 13
1.3 A Não Resposta do Relativismo Total: O Trauma Moderno ...................................................... 15
1.4 Tolerância e Intolerância Religiosa no Mundo Moderno: Conceito e Prática ............................ 16
1.5 O Estado Moderno Democrático Liberal e a Liberdade Religiosa frente a Intolerância ............ 18
2 INTOLERÂNCIA NAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS: CAMINHOS PARA O
FUNDAMENTALISMO NA MODERNIDADE .............................................................................. 24
2.1 A liberdade Religiosa frente a intolerância ................................................................................. 24
2.2 A Igreja Católica e a Concepção de Tolerância .......................................................................... 25
2.3 Fundamentalismo Protestante em Estados Democráticos ........................................................... 27
2.4 Tolerância e Intolerância na Tradição Islâmica .......................................................................... 29
3 AYAAN HIRSI ALI: A LUTA PELA LIBERDADE HUMANA DE UMA JOVEM SOMÁLI
MUÇULMANA SOBRE O PALCO DA MODERNIDADE ........................................................... 34
3.1 Apresentando a Personagem: Ayaan Hiris Ali ............................................................................ 34
3.2 Bases de sua crítica ..................................................................................................................... 35
3.3 O Encanto do Iluminismo: O Islã Também Precisa de Um Voltaire? ........................................ 40
3.4 A liberdade para Ayaan Hirsi Ali: Um compromisso ideário ..................................................... 42
3.5 O Assassinato de Theo Van Gogh: Um golpe a sociedade liberal holandesa: Como ser tolerante
ao intolerável (A neutralidade do Estado Moderno) ......................................................................... 44
CONSIDERAÇÕES FINAIS: ............................................................................................................ 49
REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 53
“ A experiência da diferença gera tensões e resistências que podem ser analisadas
sob uma perspectiva exclusivamente sociopolítica, como sendo conflitos pela
redistribuição do poder, recursos econômicos, meios de produção, controle social.
Mas o multiculturalismo coloca questões mais fundamentais, relativas à capacidade
de um sistema social integrar uma diferença autêntica, que não seja comandada por
cima, nem pausterizada para se tornar digerível. Os principais modelos de espaço
social multicultural parecem ter uma dificuldade intrínseca de integralizar a
diferença. Mesmo o modelo maximalista propõe somente um deslocamento – e não
a resolução do problema. O monoculturalismo não está abandonado, mas
reproduzido e aplicado a cada grupo”. (Andrea: p. 171-172)
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INTRODUÇÃO
A liberdade, condição inerente ao homem, que defronta-se com tabus e entraves ao
longo da história, é o principal objetivo desta monografia. A liberdade, nas suas múltiplas
nuanças, manifesta no direito de “ser” em sua plenitude, um ser politicamente livre,
ideologicamente livre e principalmente dono de seus olhares e opiniões sobre o mundo que o
cerca. Ser um homem livre e ter o direito de sua própria consciência, de pensar e reproduzir
aquilo que o atormenta ou o encanta, aquilo que desperta sua percepção, sinaliza na busca do
caminho da sua verdade entendida como decorrente do seu posicionamento diante de si e de
todos.
Barreiras ideológicas, políticas e religiosas atreladas à intolerância fazem parte do
grande muro que impede seres pensantes e críticos de seu tempo a construírem o seu saber e
dividir ideais por onde passam. Transpor estes obstáculos é tarefa árdua, pois nela se depara a
estupidez que venda os olhos dos homens e os impede de enxergar o novo, o diferente e talvez
atingir o caminho da paz. A liberdade é algo a se conquistar, é uma luta histórica enfrentada
por gêneros e raças, mulheres e homens.
A crítica é um direito, a dúvida deve ser fomentada, a vontade de saber deve estar
sempre aliada á liberdade assim como a subjetividade deve ser respeitada por todos tendo
como referência seus padrões culturais e as invariantes universais. Dentre essas destacamos: o
direito à vida, o direito de pertencer a um grupo étnico, o direito de ir-e-vir, o direito ao
trabalho, à justiça, à manifestação das convicções político-filosóficas, ao trabalho, ao estudo,
ao entretenimento, etc.
Na história dos homens, pessoas se destacam em determinadas épocas, por levantarem
e questionarem questões até então delicadas e dotadas de uma força moral forte e até certo
ponto legitimada, seja pelo Estado, pela religião ou pela moralidade social. Barreiras são
colocadas ao chão, ideologias são questionadas, verdades podem se desfazer num sopro, tudo
isso sempre acontece com o despertar da consciência de um ser, que pode vir a transgredir seu
tempo e sua sociedade.
A busca pela liberdade é um direito natural do homem. É fato que, o conceito de
liberdade é um tema vasto e complexo, a essência do trabalho será o enfoque da liberdade
perante as ideologias, políticas e preceitos religiosos que até hoje ditam e enquadram grande
parte da liberdade dos seres humanos. A busca por essa liberdade, no campo do saber do
querer ou não acreditar, da autocrítica e análise da vida política dos homens em sua historia é
a liberdade, em foco na presente monografia.
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Não é nossa intenção questionar ou condenar a religião muçulmana, nem afirmar que
sociedades ocidentais democráticas modernas são sinônimo de liberdade humana. O exercício
pleno de tolerância política e religiosa não pode ficar condicionado aos valores da civilização
ocidental apropriados pela ideologia do eurocentrismo e difundida pelo mundo, em negativo
fotográfico – da expansão ultramarina de fins do século XV aos dias atuais.
A análise do indivíduo inserido nas sociedades modernas tem nos seus parâmetros o
questionamento de valores e preceitos pré-estabelecidos, ora pela religião, ora pelo estado ou
pela soma dos dois.
O conceito de cidadania universal será apresentada e correlacionada com o direito do
homem frente à tolerância e o respeito pela diversidade e pluralidade religiosa.
A liberdade do direito a crítica política e religiosa é o tema principal, e como
ilustração será apresentada a história de Ayaan Hirsi Ali – uma jovem somali fervorosa,
crítica às práticas e costumes de uma chamada linha “radical islâmica”, que defende os
direitos da mulher muçulmana no mundo todo.
Em 2002, tornou-se deputada na Holanda, país no qual, segundo ela, apresentou-lhe o
que é ser um indivíduo livre político e religioso. Foi lá que, em 2005, juntamente com seu
amigo Theo Van Gogh, que produziu e escreveu o roteiro do documentário intitulado
“Submissão – Parte I”, na qual faz severas críticas ao islã sobre questões do direito da mulher
muçulmana.
O documentário gerou revolta em grande parte da comunidade muçulmana em toda a
Europa, principalmente em solo holandês. Theo van Gogh foi brutalmente assassinado por um
jovem muçulmano à luz do dia, em Amsterdã: além de três tiros fatais, o jovem cravou em seu
peito, com um punhal, uma carta endereçada a Ayaan ameaçando-a de morte por desrespeitar
e desmoralizar valores atribuídos ao islamismo.
Nesse cenário Ayaan, por ameaças freqüentes de morte, teve que deixar o Estado
holandês e seguir suas atividades políticas nos EUA onde mora até hoje.
A história de vida desta protagonista/personagem intrigante e fascinante não será
abordada como um exemplo dos males de que certos costumes e crenças muçulmanas
prejudiquem os direitos das mulheres em nome do islã e vá contra aos direitos universais do
homem.
A intenção de mostrar a história tão especial de Ayaan Hirsi Ali é uma tentativa de
contribuir pelas garantias do ser humano, hoje, viver a sua liberdade no campo político e
religioso sem enfrentar entraves proporcionados pela intolerância e práticas discriminatórias
de grupos e instituições religiosas, sejam elas muçulmanas, católicas ou judaicas.
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Qual é o preço hoje de ser livre, de ter o direito ao culto religioso, de ter o direito de
não acreditar, de ter o direito de olhar sob um novo ângulo, enfim de exercermos o conceito
que será abordado ao longo da monografia, o princípio da cidadania universal, que tem como
ponto de partida o direito a pluralidade religiosa.
No primeiro capítulo, será abordado o conceito de tolerância e intolerância e qual a
sua relação com a sociedade moderna.
Ainda no primeiro capítulo, abordarei a importância de um Estado Democrático para
o exercício do direito do homem e suas liberdades (dentro da modernidade), o conceito de
modernidade terá como base os princípios de Agnes Heller.
No segundo capítulo, a questão da intolerância e tolerância frente às tradições
religiosas, um ensaio sobre como enfrentar a intolerância em um mundo de pluralidade
religiosa.
Já no terceiro capítulo, abordarei e farei uma análise da obra de Ayaan Hirsi Ali e sua
crítica ao islã juntamente com os preceitos anteriormente abordados como o direito a
liberdade religiosa e política perante a sociedade e o Estado Democrático Liberal e o que
representa hoje pertencer a uma sociedade multicultural tolerante.
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1
LIBERDADE
RELIGIOSA,
TOLERÂNCIA
E
INTOLERÂNCIA:
SUA
EVOLUÇÃO, CONCEITOS E PRÁTICAS NA MODERNIDADE
1.1 O conceito de modernidade e o homem Moderno
Ao falar de um homem “moderno”, primeiramente, é preciso esclarecer o que vem a
ser a chamada “modernidade” e ainda mais, o que havia antes da modernidade.
Para o estudo da monografia apresentada, é preciso deixar claro qual o conceito de
modernidade a ser trabalhado e abordado em uma perspectiva social.
Para Heller (1999) quando falamos de um mundo moderno estamos abordando
questões recentes à nossa sociedade, fenômenos sociais que provocaram uma mudança na
estrutura do arranjo social até então vigente.
Assim, Heller aborda a diferença entre um mundo pré-moderno e um mundo moderno:
Há uma diferença estrutural fundamental para todas as civilizações pré-modernas, de
um lado, e todas as modernas de outro. As civilizações pré-modernas apresentam um
tipo de estratificação hierárquica bem determinada e, aparentemente, sem a
mobilidade na origem. Homens e mulheres nascem em posições e camadas sociais
específicas, e, de modo geral, a trajetória de vida de uma pessoa é determinada pelas
condições de vida que cercam o seu nascimento. (HELLER, 1999, p.23).
Com a fala acima se pode notar que a grande mudança, o muro, que separa uma
sociedade moderna de uma pré-moderna é o seu arranjo social. Enquanto uma sociedade se
apresenta estratificada sem uma possibilidade de mudança em sua estrutura, a outra apresenta
uma mobilidade capaz de mudar a estrutura social até então vigente, homens e mulheres não
pertencem a uma função pré-determinada por um edifício social fechado sem possibilidade de
um rearranjo. A tradição tem grande espaço no mundo pré-moderno, já no mundo moderno, a
tradição é passível de uma releitura, uma crítica, um novo olhar, uma possibilidade de
mudança.
Como aborda Heller (1999), a vida pré-moderna era legitimada pela tradição, não
havia uma alternativa à crítica, nem há uma possibilidade de questionamentos, a
desconstrução não era uma possibilidade para o homem habitante da pré-modernidade.
(Inseri o espaço de parágrafo) Podemos notar então que pertencer há um mundo
moderno é ter a possibilidade de questionamento e a crítica à estrutura social até então
vigente, é este o aspecto a ser abordado no trabalho: quais os instrumentos que garantem e
preservam o direito do homem moderno a exercer sua crítica seja perante as instituições ou os
movimentos religiosos e políticos que percorrem toda a vida social vigente.
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Mas como todo processo de mudança social não é um fator simples e corriqueiro da
vida humana, pode-se chegar ao seguinte questionamento, onde (historicamente) aconteceu a
passagem da pré-modernidade para até então chamada modernidade?
Heller (1999) aborda que o arranjo pré-moderno sobreviveu muitos milhares de anos e
poderia ter sobrevivido mais, seu edifício foi desconstruído na Europa, do fim do período
medieval em diante até o século XX.
Conforme Heller (1999, p.28) “todos os padrões históricos, a transformação foi muito
rápida na Europa, embora neste caso, pelo menos, a mudança rápida tenha sido impulsionada
por energias locais”. Para o autor energias locais, foram as formas ou o modo como se
alteraram as instituições modernas e as formas de vida presentes até então. Essa força motora
impulsionou e derrubou a ordem estabelecida.
Conclui-se que a modernidade é regida por uma nova dinâmica social, que teve sua
percussão na Europa. Esta nova dinâmica tem em seu centro a desconstrução de processos e
costumes sociais vigentes até então.
1.2 A dinâmica da sociedade moderna: O direito a negação
Como abordado no tópico acima, a funcionabilidade, ou seja, a dinâmica que rege uma
sociedade moderna está centrada na desconstrução e na mudança de regras e costumes ditos
como normais e corriqueiros da vida social até então.
Assim aborda Heller:
A dinâmica moderna se caracteriza por uma negação constante e pela justaposição,
pela crítica e pela idealização. Por exemplo: “esta instituição é injusta: deixe-nos ter
outra; esta estória não é verdadeira, é ficção: há uma outra verdade; isto não é uma
virtude: apenas interesses. (HELLER, 1999, p.26)
Dessa forma entende-se que a dinâmica e a manutenção da modernidade é medida pelo
fator negação, é a negação ou a instituições, governos, regimes e religiões entre outros que
perfazem todo o modo de vida de um ser pertencente à modernidade.
Negar tradições, ideologias e modelos religiosos é então o mais perfeito exemplo desta
dinâmica social moderna.
Ser um indivíduo contrário às regras ou simplesmente negá-las não é tarefa fácil. Até
que ponto esta liberdade de negar pode ser exercida pelo indivíduo a frente do Estado ou a
instituições de cunho religioso? Toda esta questão é um fator recente na história da
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humanidade, a existência de proteção jurídica supre a proteção do indivíduo moderno
contestador e contrário a certas tradições?
Não existe uma resposta simples para esta questão, mas o que existe são diferentes
formas de lidar com esta dinâmica, ou seja, a liberdade individual e política infelizmente não
acontecem de forma similar em todas as sociedades do mundo.
Existem sociedades mais tolerantes que outras, aparatos institucionais que garantam a
proteção ao indivíduo contestador ou negador não são presentes em certos Estados e nem em
sua própria sociedade.
Heller (1999) deixa claro que a dinâmica social moderna não pode operar sem uma
liberdade individual e política. Podemos constatar que viver em um tempo moderno
infelizmente não é sinônimo de liberdade individual garantida ora pelo Estado ora por
instituições, ainda há muito a ser conquistado. É importante lembrar que ao longo dos anos
instituições que auxiliam, abordam e denunciam Estados que não garantem o poder de
liberdade política e individual vêm crescendo e tomando conta de discussões cada vez mais
influentes no cenário mundial.
Mas garantir o direito a negação, não necessariamente traz respostas ideológicas e até
religiosas para o ser moderno. Ao mesmo tempo em que temos a liberdade por uma busca
ideológica e espiritual, não há uma resposta para as angústias e incertezas boiando nesse mar
de possibilidades que cerca a modernidade.
Ter a garantia de uma liberdade de expressão política, religiosa entre outras não tira do
Estado ou de instituições o poder de garantir uma moral comum e de resguardá-la para a boa
convivência entre os indivíduos. O relativismo moral (produto da liberdade moderna) pode ser
um respaldo negativo que pelo fato de ser moderna não esconde processos totalitários e até
mesmo antidemocráticos.
Heller aborda:
A modernidade coletivista não conhece a contingência. A idéia comum era (e ainda
é, onde o totalitarismo prevalece), a de que a dinâmica da modernidade e o arranjo
social moderno podem operar suavemente, ou ainda melhor, sem a liberdade
individual e política. Mas não podem. (HELLER, 1996, p.28)
O autor ainda deixa evidente que o totalitarismo não faz só parte do mundo moderno,
mas que também opera em outras instâncias como a Religião, onde se podem encontrar
processos totalitários que deixam de lado direitos de contestação. A desconstrução moderna,
de costumes e valores, não pode ser definida como uma desconstrução de uma moral comum
e de processos éticos que regem todos os seres de uma sociedade.
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Como afirma Heller (1999), não se pode conceber um mundo moderno sem poderes
morais, pois são estes que regulam todo o processo sociológico vigente em nossas vidas. Tal
afirmação deixa claro que viver em uma sociedade moderna não é viver sem regras e
processos ético-morais para com o outro. Viver na modernidade deve ser sinônimo de respeito
e tolerância.
1.3 A Não Resposta do Relativismo Total: O Trauma Moderno
Como dissertado ao longo do primeiro capítulo, o direito à liberdade política e
religiosa é uma característica da modernidade, mas é presente e importante notar que a
proteção ao indivíduo contestador e pensador não traz uma resposta às suas angústias e
incertezas sobre as ideologias, religião e processos políticos. Ao mesmo tempo em que
questionamos o direito à liberdade, não há uma resposta para nossas perguntas e aflições cada
vez mais presentes no homem moderno. O sentimento de se viver em um novo arranjo
moderno pode ser ilustrado em um fala de Heller: “A casa cai, mas seus antigos habitantes
permanecem perto das ruínas, sem encontrar apoio nas paredes que já não existem, é o
grande perigo de caos” (HELLER, 1999, p.32,).
A modernidade não oferece um caminho, mas vários, que inclusive podem abrir
caminhos a processos negativos como o já elucidado totalitarismo, que, seja por parte do
Estado, seja por parte de instituições e correntes religiosas, dita a ordem a ser seguida como
uma verdade absoluta no meio de um mundo de incertezas.
Como aborda Heller (1999), viver na incerteza é traumático, viver na incerteza de
significados é ainda mais. Esse campo vasto de incertezas causa um trauma de conseqüências
psicológicas e resultados sócio-políticos perigosos.
Assim é apontado:
O trauma moderno não é um acontecimento, mas um estado de coisas, pois é
contínuo. Pode-se esperar que seus sintomas emergirão e reemergirão constantemente.
Em nosso tempo encontra-se entre esses sintomas o fundamentalismo, o fato triste de
que cinqüenta anos depois do nazismo as pessoas ainda falem, livre e naturalmente, a
linguagem da raça pelo mundo inteiro e a emergência de uma biopolítica que contribui
para guerras locais bastante ferozes. (HELLER,1999,p.33)
Nessa postulação fica-nos claro que em tempos modernos indivíduos procuram um
sentido de significado a sua existência. Nessa busca, ele pode escolher verdades oferecidas
seja por um viés ideológico político ou por escolhas religiosas, que em muitos casos cai sobre
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uma roupagem radical e intolerante que não reconhece o direito a crítica e a contestação de
sua verdade seguida a ferro e fogo.
A soma de uma busca pela verdade e por respostas a dúvidas e angústias pode resultar
em uma visão radical de escolha de uma verdade, e esta pode ser defendida como a única
verdade aceitável devendo ser seguida por todos. É nesta lógica que encontramos no caminho
da modernidade o chamado Fundamentalismo que, aliado a intolerância, causa hoje guerras e
desavenças por todo o mundo.
A definição de tolerância e intolerância, assim como a definição de fundamentalismo,
são objetos de discussão e análise nesta monografia.
1.4 Tolerância e Intolerância Religiosa no Mundo Moderno: Conceito e Prática
Para abordarmos o conceito de intolerância é preciso previamente conceituar o que
vem a ser a tolerância e seu uso na sociedade moderna.
Em Lima (2002), a tolerância é umas das tantas virtudes1 necessárias para elevar o ser
humano à condição de civilidade. Ela faz parte de um processo ético de indivíduos e grupos
cujo objetivo é levá-los a prática da manutenção do bem e a ordem de convivência social.
Para exercer a tolerância é preciso entender o que significa um “ser virtuoso”, que se
entende por uma pessoa com disposição a praticar o bem.
Podemos concluir que, para a idealização de uma cidadania universal, deve-se ter
como característica principal o uso da tolerância. Rouanet (2003) vê a tolerância como uma
passagem para um estágio mais civilizado e menos mecânico de convívio das diferenças, mas
ao mesmo tempo deixa claro que as diferenças não devem ser apenas toleradas, porque, do
contrário, elas se reduziriam a um sistema de guetos estanques, que se comunicariam no
espaço público; deve ser uma virtude que cause interpenetração entre os diferentes.
Partindo deste suposto, pode-se notar que ser um indivíduo tolerante é ser um
indivíduo que faz desta virtude um ato constante em sua vida.
Rouanet (2003) aborda em sua dissertação que este ato constante de tolerância deve
ser entendido como ações de prevenção e educação2 na convivência social. No fundo a
1
No sentido de ética, virtude é o que faz que um sujeito aja de forma a fazer o bem para si e para os outros. A
partir da modernidade, se entende que a virtude é a disposição moral para o bem, ou a “força de resolução que o
homem revela na realização de seu dever” (Kant). São virtudes: a justiça, a moderação, a prudência, a coragem, a
tolerância, a generosidade, a humildade, a fidelidade, a polidez, etc..(Disponível em www.libraire.hpg.ig.br)
2
Educação pode ser entendida como aprendizagem cultural no que diz respeito ao exercício da tolerância, ou
seja aprender no processo educacional de todo o individuo a aceitar a conviver com o outro e como ele pensa.
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tolerância é uma espécie de prevenção contra o dogmatismo, para que este não vire fanatismo
na dimensão pessoal, fundamentalismo na dimensão religiosa e totalitarismo na dimensão de
Estado ou de Governo.
Para conceituarmos a intolerância devemos analisá-la não somente como conceito,
mas, acima de tudo, como prática, assim como a questão da tolerância.
Como destaca Rouanet,
Quem se pretende possuir a verdade, ou melhor a certeza, termina sendo intolerante
em aceitar outros posicionamentos, se fechando a escuta de tudo que apresente
diferente ou incompreensível ou esquema conceitual de fala e ação. (ROUANET,
2003)
Fica exposto pelo autor:
O moralista, por exemplo, é intolerante com os que possuem valores diferentes do
seu; em verdade, sabemos se tratar de um moralista quanto sofremos a imposição
de seus valores, baseado em sua certeza moral. O moralista carrega a ambição de
impor a todos, universalizando seus valores como certo. Enfim, toda a intolerância
tende ao totalitarismo (integrismo, em matéria religiosa). Ser intolerante é manter
uma atitude de ódio sistemático e de agressividade irracional com relação a
indivíduos e grupos específicos, à sua maneira de ser, a seu estilo de vida e às suas
crenças e convicções. (ROUANET,2003)
Quando abordamos os conceitos de tolerância e intolerância no presente trabalho,
estamos enfocando o mundo moderno, ou seja, estamos falando de uma cultura mundial para
a convivência pacífica de indivíduos em um mesmo território, sendo que se entenda como
direito primordial a liberdade política e religiosa do ser moderno. Torna-se necessário, então,
a prática da tolerância entre os indivíduos do mesmo território ou não.
Como abordado acima, quando falamos de tolerância estamos falando também de uma
coexistência pacífica entre pessoas. Essa coexistência faz parte do mundo moderno, e, para
que esta prática seja exercida, é necessária uma cultura comum dos direitos do homem, como
fator fundamental o direito Político e Religioso.
Para a garantia destes direitos, torna-se ainda necessária a participação do Estado e de
Instituições nacionais ou internacionais que tenham como principal objetivo a manutenção
pacífica dessas diversidades advindas da era moderna.
Como ferramenta moderna para lidar com esta problemática a Democracia Liberal é
uma das maiores conquistas do homem político moderno.
A seguir no próximo tópico será abordada a relação entre Democracia, religião e
intolerância.
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1.5 O Estado Moderno Democrático Liberal e a Liberdade Religiosa frente à
Intolerância
Como aborda Schnapper (2000, p.144) “a boa vontade não é suficiente para instaurar
a tolerância entre os homens que possuem crenças e práticas diferentes entre si”, segundo ele
é necessário a garantia das instituições. Assim, falar de um contexto moderno é falar de um
Estado Democrático Moderno Liberal, é preciso que haja uma relação saudável entre o
público e privado e a sua distinção para que uma não se oponha a outra, uma vez que, em uma
sociedade dita como moderna deve manter essa relação sempre em equilíbrio e harmonia pelo
interesse de todos em uma sociedade.
Deste ponto de vista, a separação entre Estado e Igreja torna-se necessária e
importante. De acordo com Schnapper (2000), essa separação entre público e privado deve
primordialmente garantir a liberdade de homens e mulheres quanto ao ato de praticar sua
religião.
Schnapper (2000,p.146) conclui que “Cabe a uma Nação Democrática Moderna o
princípio de fazer com que vivam juntos cidadãos iguais enquanto cidadãos, mas também
indivíduos portadores de historias e de culturas diferentes”.
Nesse ponto de vista, pode-se chegar a idéia de que cabe ao Estado garantir a liberdade
religiosa dentro de seu território, assim como uma tolerância frente a diferentes religiões
(indivíduos), exercendo deveres e direitos típicos de uma cidadão pertencente ao Estado
Moderno. Dentro desse mesmo Estado, podemos encontrar diferentes etnias, múltiplas
identidades culturais e diferentes ideologias.
Ou seja, para Schnapper (2000) o Estado deve transcender a essa diversidade cultural,
ele deve garantir a perfeita harmonia de convivência dentro deste caldeirão cultural da
modernidade. Para dar nome a esta abordagem de “caldeirão cultural”, Schnapper consolida
como “multiculturalismo”.
Assim o autor aborda:
A idéia do multiculturalismo da vida social está implícita na própria definição de
Nação. Ela reagrupa populações que mantêm inevitavelmente ligações históricas ou
religiosas particulares. O projeto nacional não impede que os nacionais tenham
como referência, as múltiplas identidades culturais ou ideológicas.
(SCHNAPPER,2000,p.145).
Dessa forma, para uma vivência em uma sociedade multicultural regida por um Estado
Democrático Moderno Liberal é preciso a nítida distinção entre o público e o privado.
19
Schnapper aponta a por ele chamada “ordem” nesta distinção de público e privado. O
autor a caracteriza da seguinte maneira:
Ela (ordem) está fundada sobre a distinção entre público e o privado. Na ordem do
privado, a livre afirmação das identidades e dos referenciais particulares, graças as
quais o homem dá um sentindo a sua existência – em particular a sua relação com o
transcendente e a sua adesão a uma igreja -; na do público, a
unidade/igualdade/universalidade da cidadania do indivíduo. (SCHNAPPER, 2000,
p.143)
Enquanto um ser na esfera privada, este indivíduo, acima citado, tem o direito de
exercer sua religião dentro de sua liberdade individual, enquanto que, em uma esfera pública,
este mesmo indivíduo deve manter um princípio de cidadania universal, a qual exige a
necessidade de respeito para como as diferenças do outro, seja ela religiosa ou não, dentro ou
fora de seu Estado. A cidadania é citada pelo autor como uma unidade em que exista a
tolerância e respeito dentro de uma lógica multiculturalista.
Schnapper elucida da seguinte forma este contexto:
Todo o cidadão dispõe dos mesmos direitos, deve cumprir as mesmas obrigações e
obedecer as mesmas leis, sejam quais forem sua raça, seu sexo, sua Religião, suas
características econômicas e sociais, ou o fato de pertencerem a esta ou àquela
coletividade histórica particular. (SCHNAPPER,2000, p.146)
É importante lembrar que apesar da garantia de liberdades e direitos frente a uma
sociedade democrática multicultural não faz com que o indivíduo seja menos preso a tradições
particulares, cabe a este indivíduo assumir a sua cidadania universal e exercer sua tolerância
frente a esta sociedade moderna a qual ele esta inserido.
Ele deve seguir a ordem democrática da cidadania, assim aborda: “O princípio da
cidadania, característico da sociedade moderna política, hoje fundamentada a legitimidade
política e constitui a fonte de vínculo social, viver juntos é ser cidadãos juntos”
(SCHNAPPER, 2000, p.145, grifo nosso).
Por isso torna-se importante a separação entre público e privado sendo um dos pilares
da organização política moderna. Schnapper (2000) enfatiza que a fronteira entre público e
privado não é fixada uma vez por todas, ela é continuamente renegociada.Mas, como aborda o
autor, em todas as nações democráticas permanece o princípio essencial de que, seja qual for a
religião a que pertençam, todos são igualmente cidadãos. Ainda na questão Estado e Igreja, a
Democracia é o campo em que estas duas instituições convivem e se adéquam sobre preceitos
e demanda da sociedade moderna, processos históricos fazem parte dessa convivência, ou
20
seja, a cada rumo que a história segue a relação Estado-Igreja é transformada e adequada a
uma realidade nova, e ainda, a cada nova etapa da história, ficam-se resquícios de uma sobre a
outra.
Cada democracia espalhada pelo mundo tem em sua história própria a forma de
relação entre Estado e Igreja. Como exemplo, Schnapper aponta:
As outras democracias têm formas diferentes de separação entre Estado e Igreja. O
presidente dos EUA jura sobre a Bíblia e pede a benção de Deus para suas Forças
Armadas, quando entram em guerra. Na Alemanha, a Igreja Católica e a protestante
obtêm seus recursos por intermédio dos impostos pagos pelos fiéis à coletoria de
impostos públicos e, até recentemente, alguns documentos de identidade
mencionavam a filiação religiosa. A rainha da Inglaterra é chefe da Igreja
Anglicana e escocesa, e, em algumas escolas públicas inglesas, todas as manhãs os
alunos fazem uma prece comum (SCHNAPPER, 2000, p.145).
Schnapper deixa claro que quais forem as formas de uma herança histórica dessa
relação Igreja-Estado ainda presentes em uma sociedade moderna, a sua ordem democrática
deve ser mantida nas bases de uma relação na preservação de direitos e regras independentes
de filiações religiosas ou ideológicas. Para o autor, a neutralidade do Estado é algo essencial
para a dinâmica moderna, ou seja, o vínculo social do indivíduo para com o Estado já não é
mais totalmente religioso e sim político.
É neste cenário que podemos encontrar minorias religiosas que dentro de um Estado
Democrático Liberal podem exercer sua cidadania plena, conquistarem direitos e exercer
deveres dentro de uma sociedade Multicultural, enfim, ser um cidadão perante o Estado e ter
sua liberdade religiosa respeitada.
Podemos então chegar à idéia de que a liberdade religiosa3 é sem dúvida uma
conquista do indivíduo moderno, mas que, ao mesmo tempo, ainda haja a necessidade por
parte de um Estado de direito sobre um viés democrático a garantia deste direito tido para a
maioria dos autores abordados, como condição mínima para uma cidadania plena. Para ele , a
“neutralidade religiosa da esfera pública, isto é, da esfera comum a todos, é, até hoje o único
princípio que permite viverem juntas populações religiosamente distintas” (SCHNNAPPER,
2000, p.147).
3
A liberdade religiosa é tratada no seguinte trabalho sobre o conceito de Irwin Cotler, no qual todo o indivíduo
tem direito à liberdade de religião e de crença; portanto a liberdade de ter ou não religião, de se converter, e de
manifestar a sua religião – individualmente ou no seio de uma comunidade – por intermédio de um culto, de
regras, de práticas e de ensinamentos. (COTLER,2000,P.66)
21
Dessa forma, Shnapper finaliza a questão tratada neste tópico a respeito de cidadania
em um mundo moderno sob a seguinte óptica:
A cidadania está baseada, de fato, na idéia de que, para além de suas diferenças e
desigualdades, para além da legitima variedade de suas referências culturais ou
morais e de suas fidelidades religiosas ou históricas, todos os homens são iguais em
dignidade e devem ser tratados de igual maneira, jurídica e politicamente.
(SCHNAPPER, 2000, p.144)
Enfrentar a intolerância frente a uma sociedade multiculturalista tem sido um dos
objetivos principais dos Estados que apresentam em seu território um pluralismo religioso
crescente, como dito antes. A forma de como este Estado lidará com a pluralidade religiosa é
ditada pela sua dinâmica democrática, formas de governo e do modus agendi para a
preservação aos Direitos do Homem da carta das Nações Unidas no seu território.
Ao falar dos Direitos do Homem neste trabalho é importante apontar que a liberdade
religiosa é um dos direitos mais fundamentais do homem. Como aborda John Humpherly
(2000), “A liberdade de culto é a mais antiga liberdade da qual a comunidade internacional
tem a mais longa experiência”.
Passando para o plano internacional, fica claro que é dever de países signatários de leis
internacionais sobre os direitos do homem protegerem tal direito sobre todas as formas e
garantir a tolerância, não só perante a religião, mas também como às chamadas liberdades
fundamentais para todos sem distinção de raça, de sexo, de língua e à liberdade de
pensamento.
(Inseri o espaço de parágrafo) Como aborda Irwin Cotler (2000), a liberdade de crença
está expressa em todas as leis internacionais sobre os direitos do homem. Como ilustração,
Cotler deixa a mostra algumas das principais leis sobre os direitos do homem na qual é
abordada a liberdade religiosa:
Na carta das Nações Unidas, que proclama, desde o preâmbulo, sua determinação
de “praticar a tolerância” e afirma, entre seus fins, o respeito aos direitos do homem
às liberdades fundamentais para todos sem distinção de raça, de sexo, de língua ou
de religião”; no artigo 18 da Declaração Universal Dos Direitos Do Homem, que
afirma que “todo o individuo tem direito à liberdade de pensamento, de consciência
e de religião”; na convenção de 1948 sobre a prevenção do crime de genocídio e
suas sanções, que visa proteger o direito elementar à existência de qualquer grupo
étnico e religioso; na prescrição específica dos acordos de Genebra que protege os
direitos religiosos em épocas de conflito armado; no Pacto Internacional dos
Direitos Politicos e Civis, cujo artigo 18 especifica a proteção a liberdade de Culto
presente na declaração, e cujo o artigo20(2) proíbe “qualquer justificativa a favor...
do ódio religioso que constitui um incentivo à discriminação”, no artigo 15 (1) do
Tratado Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, que afirma a
necessidade de assegurar a “tolerância e a amizade entre todos... os grupos
religiosos”; no artigo 9 da Convenção Européia sobre os Direitos do Homem, no
22
artigo 1º da Convenção da UNESCO sobre a discriminação na educação; no artigo
4 da Convenção sobre a abolição de qualquer forma de discriminação racial, que
obriga os Estados-Membros a promulgarem uma lei contra a incitação ao ódio
racial; na convenção de 1979 sobre a abolição da discriminação em relação às
mulheres; e finalmente, na Convenção sobre os direitos da criança. (COTLER,
2000, p.61)
Apesar de toda esta multiplicidade de proteção à liberdade religiosa sobre a ótica de
uma legislação internacional, encontramos inúmeras violações sobre a liberdade religiosa
espalhadas pelo mundo. Como aborda Cotler (2000,p.61), “A intolerância religiosa gerou
mais guerras, misérias e sofrimentos, que qualquer outro tipo de discriminação ou de
preconceito”.
Voltando a idéia de Schnapper sobre cidadania em uma sociedade moderna, podemos
acrescentá-la à idéia de Cotler que acredita na chamada por ele “cidadania planetária”, que
nada mais é que a soma dos direitos fundamentais dos Homens em uma posição internacional,
ou seja, o direito a liberdade religiosa entre outros direitos que o cidadão pertencente a um
Estado Democrático Liberal tem, seriam postos além fronteiras, um direito comum a todos os
homens do mundo independente a qual Estado ou regime político-governamental estejam
inseridos. Assim, Cotler postula:
O cerne dessa cidadania planetária está no reconhecimento de certas normas a que
todos devemos nos dobrar: o morticínio, a tortura, a escravidão, o expurgo étnico, a
violação e o racismo não podem ser defendidos por nenhuma crença que respeite a
humanidade e a religião. (COTLER, 2000, p.63)
Aliado a estes pensamentos, podemos ainda chegar a uma noção de “cultura mundial
dos direitos do homem”, levantada por Cotler.
De acordo com Cotler (2000), essa cultura mundial foi levantada em 1993, na
Conferência Internacional dos Direitos do Homem, realizada em Viena.
Sobre a noção de uma cultura mundial dos Direitos do Homem ele deixa claro que:
A concepção de uma cultura mundial deve incluir a noção de liberdade de culto
como uma das expressões dessa cultura comum. Resumindo: esse princípio é o
princípio básico de uma cultura de tolerância, que serve de antídoto contra a
intolerância religiosa, contra aqueles que utilizariam a religião como cobertura para
a violação dos direitos do homem. (COTLER, 2000, p.63)
Para finalizar o seguinte capítulo, podemos chegar à idéia de que cabe ao Estado
Moderno Democrático Liberal, garantir ao seu cidadão a liberdade religiosa baseada na
tolerância à “diferença”, ou seja, sua neutralidade deve ser mantida por meio jurídico e pela
23
separação Público-Privado, pessoas ligadas a diferentes segmentos religiosos possuem
direitos e deveres dentro do Estado, tornando-se cidadãos de fato e de direito.
E cabe ao Estado respeitar normas e acordos internacionais no que se refere à
Liberdade do Homem tendo como princípio básico a liberdade de culto, a idéia de cidadania
dentro de um Estado deve ser transpassada ao campo internacional como uma “cidadania
planetária” que engloba direitos comuns em todo território do planeta no que se diz respeito a
princípios básicos à liberdade humana tendo como uma das principais características a
liberdade à religião.
24
2 INTOLERÂNCIA NAS TRADIÇÕES RELIGIOSAS: CAMINHOS PARA O
FUNDAMENTALISMO NA MODERNIDADE
2.1 A liberdade Religiosa frente à intolerância
Para o desenvolvimento do segundo capítulo é preciso antes de tudo esclarecer que o
conceito de intolerância presente na sociedade moderna não é uma característica somente
aderida à liberdade religiosa e política, é preciso entender que a intolerância está presente em
vários âmbitos da sociedade e em diferentes graus de atuação.
Faz parte da proposta desta monografia trabalhar com este preceito no que se diz
respeito a liberdade religiosa e política do individuo pertencente a um Estado democrático
moderno, portanto é também preciso deixar claro que
a intolerância não é um fator
pertencente a um religião em especial e nem a uma determinada sociedade ou Estado.
A intolerância religiosa faz parte da história humana, não é a intenção deixar claro que
determinada doutrina é menos ou mais intolerante que a outra, a proposta do presente capítulo
é fazer uma análise histórica dos processos enfrentados no passado e ainda no presente de
religiões que possuem em sua história fatos e ações de intolerância, e como estas lidaram com
todo este processo, pois como já dito acima, toda religião pode possuir um viés, uma conduta
que leva a intolerância.
Existe uma diferente abordagem no que se refere à intolerância frente a diferentes
religiões, mas é certo de que em todas elas a questão da neutralidade entre verdade e erro
pode possuir características próprias que levam ou não a ações de intolerância.
René Rémond (2000) deixa esta questão clara, como aborda em sua fala:
Toda civilização forte, quando não é contrariada pela razão e pela determinação,
tende a intolerância, por um motivo quase natural. Talvez as crenças ainda mais,
por motivos nem sempre insignificantes, que devem ser identificados, porque é
neles que se origina a intolerância. (RÉMOND, 2000, p.82)
Ainda Segundo Rémond, o interesse pelo outro pode-se tornar um fator de intolerância
no que se refere a uma prática religiosa. Assim ele aborda:
Quando se deseja verdadeiramente a felicidade do outro, sente-se ardente a
necessidade de partilhar com ele a verdade que se considera como um bem
superior, queremos transmiti-la a ele, instruí-lo na fé, a ponto de ignorar sua
vontade e liberdade, assim o recurso a imposição torna-se legítimo. (RÉMOND,
2000, p.82)
25
2.2 A Igreja Católica e a Concepção de Tolerância
Noções e práticas contra ou a favor à intolerância como já dito, podem desenvolver
diferentes aspectos históricos sobre várias ordens religiosas, a Igreja Católica pode valer-se de
um bom exemplo de constatação histórica no seu processo de assimilação e aceitação, ou seja,
de uma tolerância em aspectos sócio-cultuais advindos de mudanças sociais em distintas
épocas, assim como o uso da intolerância também pode ser encontrado em sua história.
De acordo com Rémond (2000), a Igreja Católica passou por processos circunstanciais
que a fizeram levar a uma mudança de abordagem de vários preceitos e normas que
imperavam em seus seguidores. Como exemplo, o autor elucida a Revolução Francesa como
fator histórico que fez com que a tradição Católica passasse por uma reestruturação e um
rearranjo de sua linguagem e abordagem. Questões que envolviam o liberalismo (político e
ideológico) e a liberdade religiosa tiveram que se correlacionar com uma demanda cada vez
mais crescente de processos de tolerância.
Porém, tais acontecimentos não necessariamente trouxeram um avanço no que se diz
respeito à tolerância, poderiam surgir-se processos de intolerância frente a estas demandas, ou
seja, reações negativas e de proteção a tradições hora então até o momento não relativizadas
como no caso do Catolicismo.
Rémond aborda:
Por razões circunstanciais, por uma reação contra a revolução francesa e sua
inspiração, o magistério católico aferrou-se a uma afirmação de intransigência, e
condenou a liberdade, até quanto princípio. Ao seu ver, o liberalismo era a fonte de
todos os erros e todos os males que afligiam a sociedade.Era a herança do espírito
de livre exame, a autoridade religiosa englobava em uma reprovação, sem
gradações, os três R: Renascença, Reforma e Revolução. (RÉMOND,1998,p.82)
Com esta afirmativa pode-se chegar então a constatação histórica de intolerância da
religião católica frente a mudanças sociais e ideológicas ocorridas durante a história do
homem. Mas essa reprovação e condenação de novos preceitos sociais passaram por uma
mudança em sua ordem de abordagem e, a partir do século XX, a Igreja Católica começa a
manter uma linguagem bem diferente e hoje assume sob um viés de tolerância sua
responsabilidade a Declaração dos Direitos do Homem dentro do direito a liberdade religiosa.
Rémond relata:
A responsabilidade tomada pela Igreja Católica no inicio do século XX sobre a
Declaração dos Direitos do Homem e a reivindicação da liberdade religiosa não
26
somente para ela apenas, mas para todas as crenças; e não como um privilégio
decorrente de sua ligação com a verdade, mas por aplicação do direito comum
(RÉMOND, 2000, p.83).
Mas, para tal reviravolta ocorrida, há uma crítica no que se diz respeito à intenção
destas mudanças. E qual a finalidade para tal, quais seriam os motivos e as considerações
para a mudança de postura e uma abertura a tolerância?
Seria a tolerância uma resposta simplesmente circunstancial para a manutenção de
poder católico em seus seguidores?
Como aborda Rémond (2000), tal mudança poderia simplesmente significar uma
obediência para um plano estratégico, no caso ceder-se a concessões oportunistas, assim essa
mudança não afetaria convicções irrevogáveis, mas sim uma mudança na sua forma de
apresentação. Para ele, essa mudança é um resultado de dois fatores distintos, duas iniciativas:
uma exógena e outra endógena.
A primeira seria uma homenagem ao princípio da realidade, “A experiência abriu os
olhos para a perversidade das ideologias” (Rémond, 2000, p.83). Diante de fatores sociais
políticos como regimes totalitários, as autoridades eclesiásticas católicas, segundo Rémond,
perceberam que havia perigos mais temíveis para sua Igreja do que somente a questão do
princípio da liberdade, principalmente ao princípio da liberdade religiosa, ou seja, ao
liberalismo.
Ao mesmo tempo, operava-se uma mudança interna do grupo eclesiástico católico
com uma finalidade mais decisiva, mais fundamental para encarar essa nova realidade social
decorrente, como já elucidado, de uma vertente liberal.
Toda essa mudança foi expressa em 1965, na declaração sobre a liberdade religiosa,
adotada pelo concílio do Vaticano II. Para Rémond (2000,p.84), “esse ano é marcado como
uma data capital na história da tolerância”.
Rémond aborda em sua obra a conclusão sobre todo o processo histórico de mudança
na ordem eclesiástica católica:
Se a igreja católica se converteu a liberdade religiosa, é porque chegou a uma
compreensão maior: a de que o ato de fé, sendo um ato de consciência pessoal,
deveria ser um ato essencialmente livre, e qualquer constrangimento, seja social ou
político, só pode viciá-lo. (RÉMOND, 2000, p.85)
Pode-se, sobre esta fala do autor, voltar à discussão abordada no capitulo I, sobre a
distinção do público e privado, com o fato da tolerância católica à liberdade religiosa, ou seja,
a liberdade do indivíduo em acreditar ou não em uma determinada doutrina não pode em
27
nenhum momento ser condenada ou conduzida sob forma de repressão ou condenação por
parte de uma instituição religiosa ou pelo próprio Estado, sendo este a principal característica
do pensamento liberal.
Para Rémond (2000, p.84), “não cabe ao Estado reconhecer e proclamar a verdade,
não lhe cabe ditar escolhas ao indivíduo, sua incompetência obriga-o a manter-se neutro”.
Contudo não se pode dizer que os católicos como um todo seguiram tal evolução,
houve resistências e oposições, mas é fato que uma mudança de tal ordem ocorrida no
catolicismo pode ser um convite para pensar que é possível uma mudança passível de uma
análise profunda de conceitos, atitudes e regras que consigo podem fazer com que a tolerância
seja o fio condutor de uma vivência religiosa pacífica. Assim ilustra Rémond:
Podemos tirar uma lição desta história e conservar uma idéia, é a de que o
imprevisível pode acontecer.Que a igreja, durante tanto tempo, a mais refratária à
tolerância, tenha realizado neste século, uma virada fundamental, é um convite a
não duvidarmos da sabedoria dos homens e a prova dos progressos alcançados pela
idéia de tolerância em nossa época.(RÉMOND,2000,p.85)
2.3 Fundamentalismo Protestante em Estados Democráticos
Não se pode falar de uma intolerância nas tradições religiosas sem abordar o
fundamentalismo, isso vale para todas as culturas, todas as ideologias assim como para todas
as religiões.
Nota-se hoje um discurso dominante na Europa e em grande parte da América de que
o fundamentalismo seja exclusivamente pertencente ao islã, fato que não é real: o
fundamentalismo pode ser encarado como um fenômeno social moderno que abrange grande
parte das religiões e seus seguidores em todo o mundo.
Assim como a intolerância, o fundamentalismo sempre existiu nas tradições religiosas
e pode ser entendido “como a interpretação literal de textos ditos sagrados, sem contextualizálos, extraindo deduções alegóricas e subjetivas como a única verdade universalmente válida”
(BARROS, 2007, p.3).
Esta interpretação literal, desprovida de nenhum contexto histórico, faz e fizeram parte
de algumas comunidades cristãs, dentre elas, podemos citar o fundamentalismo na tradição
protestante norte-americana. De acordo com Barros (2007), em meados do século XIX, alguns
seguidores norte-americanos do protestantismo passaram a se sentir ameaçados pelas
mudanças que tomavam conta da sociedade, como forma de oposição aos protestantes mais
liberais. Começaram, então, a defender uma interpretação literal da Bíblia. Em 1915, um
28
grupo de professores teólogos da universidade americana de Princeton publicou uma coleção
intitulada “Fundamentals: a testimony of the truth”.
A partir disto, os seguidores deste novo protestantismo passaram a se denominar
Fundamentalistas. De acordo com Sulivan (2007), o termo fundamentalista rotula desde os
extremistas islâmicos até seguidores de seitas apocalípticas atuais.
Desta forma, o fundamentalismo protestante norte-americano tem em seu cerne o
chamado “Inerrancy of the Bible” traduzido para uma expressão em português: “a Bíblia não
pode estar errada”.
O fundamentalismo protestante estadunidense, em Von Thaden (2000), tem como
característica principal, dentre seus seguidores, o por ele intitulado “três grandes medos dos
conservadores religiosos contemporâneos”, onde ele destaca:
O fundamentalismo protestante americano esta está associado a três medos dos seus
conservadores: o medo de perder o rumo nas complicadas estruturas do mundo
moderno, o medo de perder a identidade religiosa em um processo de secularização
aparentemente irreversível, e o medo, enfim, de se entregar a uma ilimitada
pluralidade de valores, segundo o princípio do anything goes. (VON
THADEN,2000,p.78)
Como demonstra Von Thaden (2000), a sociedade alemã também enfrenta processos
de intolerância e fundamentalismo religioso em tempos modernos. Para o autor, o debate na
Alemanha ganhou poder e atenção no episódio de resistência praticada pelos nazistas contra a
por eles denominada “contaminação ideológica”. Von Thaden aponta esta passagem em sua
obra:
De fato, o grupo nacional-socialista da igreja Protestante, autodenominado
Deustsche Christen (Cristãos Alemãs), dedicou-se a purificar o Novo testamento de
seus elementos judaicos, a exemplo dos marcionitas na primitiva cristandade. Em
decorrência, a oposição viu-se forçada a defender o texto integral da Bíblia e a
reavivar certas posições ultrapassadas do confessionalismo protestante do século
XIX, o que paralisou o desenvolvimento de um liberalismo teológico. (VON
THADEN,2000,p.80)
Contra um liberalismo teológico4 advindo de processos históricos sociais do mundo
moderno, movimentos de intolerância com um viés fundamentalista fazem parte da realidade
social de muitos Estados Democráticos Ocidentais, estas manifestações não ficam presentes
somente a dimensão religiosa, é transposta também para terrenos da cultura política do país e
4
A idéia de liberalismo teológico é representada pela análise de Rudolf Von Thaden que em sua obra aborda
que as posições de uma teologia liberal tiveram dificuldades de se ouvir depois da guerra.
Von Thaden ilustra como exemplo pensadores como Karl Barthe e Enerst Troeltsch que foram acusados na
Alemanha do século XX de relativistas por movimentos protestantes fundamentalistas alemãs.
29
atingem questões fundamentais para a sociedade civil, esta última abordada no primeiro
capítulo do trabalho.
A sociedade alemã é novamente citada por Von Thaden, em sua obra, quando aborda
exemplos de novos grupos fundamentalistas que operam contra as manifestações de
liberalismo e pluralismo religioso:
O exemplo mais flagrante dessa nova manifestação de antiliberalismo é o
movimento Kein anderes Evangelium (“Nenhum outro evangelho”).Originou-se de
uma encarniçada luta contra o relativismo ético de um protestantismo majoritário,
secularizado – que quer acender uma vela a Deus e outra ao Diado – e acabou
lutando contra qualquer pluralismo, seja religioso ou cultural.Esse movimento tem
sistematicamente, voz ativa nos grandes grupos protestantes na Alemanha, os
Evangelische Kirchentage, onde é exigida a exclusão dos não crentes e dos nãoortodoxos.Age segundo o espírito da missão, e não o segundo o espírito do diálogo;
é contra a tolerância em matéria de fé e define o outro como inquietante.
(VON THADEN,2000,p.79)
2.4 Tolerância e Intolerância na Tradição Islâmica
Fica notável a percepção de que movimentos de intolerância que levam a costumes e
ações fundamentalistas não são produtos diretamente relacionados ao islã. Como exemplo
abordado pelos autores acima citados, todas as religiões estão passíveis de movimentos
separatistas, intolerantes e fundamentalistas que tem como objetivo impor uma “verdade
universal” condenando o outro e muitas vezes a própria morte e a privações de diretos
fundamentais para uma vida de liberdade individual.
Todas as religiões podem buscar em suas tradições tanto o melhor quanto o pior sobre
o que oferecem a cerca da tolerância.
Mohammed Talbi (2000) aborda e defende em sua obra que o Corão5 é o único texto
sagrado que afirma sem rodeios e com clareza a escolha de liberdade religiosa do indivíduo.
Desta forma ele ilustra:
Que se saiba, o Corão é o único texto sagrado que afirma sem rodeios, sem
ambigüidades e com inteira clareza, o direito à liberdade religiosa.
Ouçamos:
5
O corão é o livro sagrado para os muçulmanos e reúne as revelações de Maomé, assim os muçulmanos, do
mesmo modo que os judeus e os cristãos possuem seu texto sagrado.
O corão só foi escrito depois da morte de Maomé, seus 114 capítulos (suras) foram arranjados de maneira tal que
os mais longos vêm em primeiro, mesmo os que Maomé recebeu numa data posterior aos mais curtos. A exceção
é a sura 1, no inicio do corão.(HELLERN,V.; NOTAKER, H; GAARDER,2002,p.118)
30
-Nenhuma obrigatoriedade em religião!O caminho da retidão distingue-se
por si mesmo do caminho do desvio (Corão, 18, 29.)
- Aquele que apresenta sua face a Deus enquanto age para o bem, terá sua paga
junta ao senhor.Por isso, não temais, que não sereis desapontados (Corão,2,112.)
- A cada um de vós demos um cânone (Shiratan), uma via (minhajan). Se Deus
tivesse querido ele teria feio de vós uma comunidade única: mas ele queria
experimentar-vos em seus dons.Fazei, pois, prática de boas ações. Para Deus, para
todos vós, é o Retorno.
Então, por Ele sereis informados sobre vossas diferenças
(Corão, 5, 48). (TALBI,2000,p.57)
Ainda para Talbi (2000), o mundo muçulmano não apresenta movimentos de
intolerância e fundamentalismo diferentes do mundo cristão ou judeu, a grande diferença
encontra-se no fato de que o mundo muçulmano não acompanhou o por ele denominado
movimento do pêndulo6, passado pela maioria dos países europeus ocidentais.
Este mundo (muçulmano) que ainda em grande parte não passou por tal processo
social encontra-se, de acordo com Talbi (2000, p.56), “bruscamente desnorteado, diante dos
mais descomedidos excessos da modernidade, sem terem sidos beneficiados por esta
passagem para uma sociedade pluralista e democrática”.
Assim, encontramos hoje Estados muçulmanos em que a separação público-privado
não possui uma característica democrática, liberal, privando indivíduos à uma liberdade
política e religiosa dentro de seu território.
Dizer que a causa de grandes movimentos de intolerância religiosa aliada a grupos de
ações fundamentalistas são frutos de Estados não democráticos sem distinção entre religião e
política pode-se valer para os Estados muçulmanos pela própria constatação histórica do islã
sobre a questão da liberdade individual do homem, traz hoje muitas discussões e estudos
sobre o caso.
É delicado afirmar a conclusão acima citada, pois tal constatação pode ser passível de
inúmeras interpretações e linhas de estudos sobre variadas vertentes, tanto teológicas,
sociológicas, políticas e históricas.
Mas como abordado e ilustrado ao longo do segundo capítulo, o Estado Democrático
liberal não deixa de certa forma uma condição totalmente ótima para a ação e preservação da
liberdade política e religiosa do indivíduo, uma vez que podemos encontrar dentro destes,
ações de grupos intolerantes e fundamentalistas religiosos que atuam dentro destas sociedades
6
O movimento do pêndulo é caracterizado por Mohammed Talbi (1999) como o movimento de transição para a
modernidade no qual países ocidentais fomentados por revoluções sociais e culturais como o iluminismo
passaram por profundas mudanças ideológicas, políticas e religiosas tendo como resposta a processos
democráticos que fazem parte hoje de grande parte do mundo ocidental e que trazem a garantia de direitos e
deveres civis organizados sobre uma ótica dos direitos fundamentais do homem moderno.
31
modernas e que ocasionam certos desconfortos sociais e disputas políticas causando ameaças
a paz social dentro do próprio Estado.
A garantia democrática liberal não pode ser tida como um produto sócio-moral
ocidental para comparação com Estados muçulmanos, pelo simples fato de que esse “produto”
não proporcionou a sua própria sociedade uma garantia de uma liberdade pacífica livres de
conflitos para a liberdade política e religiosa de seu cidadão, lembrando como exemplo
abordado no início do capítulo a vertente fundamentalista protestante presentes em Países
como Alemanha e Estados Unidos da América.
Pode-se, contudo, prevalecer de constatações históricas acerca da premissa de que
Estados muçulmanos possuem, em sua própria formação e tradição, bases para uma falta de
liberdade
política
religiosa
abrindo
caminho
para
processos
de
intolerância
e
fundamentalismo partindo da própria política governamental em que não existe uma
separação concreta entre religião e política.
Como exemplo, Hellern et al (2002) relata que todas as obrigações religiosas morais e
sociais do homem estão estabelecidas na sagrada lei muçulmana, a chamada Xariá7. É de
acordo com este conjunto de leis que muitos Estados muçulmanos atuam em seus governos.
“Em 1972 a Líbia introduziu uma lei de justiça criminal apoiada na Xária, ela inclui, por
exemplo, a proibição de servir e beber álcool, a punição para os ladrões é a amputação da mão
direita” (HELLERN, V.; NOTAKER, H; GAARDER, J.). Nem todos os Estados muçulmanos
possuem hoje seus conjuntos de leis e normas que ditam economicamente e socialmente suas
relações. Em épocas mais recentes, a proximidade com o ocidente ocasionou certas mudanças
em sua ordem jurídica, como exemplifica Hellern et al:
A Turquia é uma exceção no mundo muçulmano. Depois que o Califa foi deposto,
Mustafá Kemal “Ataturk” construiu com seu povo um Estado Moderno em linhas
ocidentais, onde o Estado e a religião foram devidamente separados. Em 1926 a
xariá foi substituída nesse país por um código civil que julga as pessoas segundo
uma lei comum, independentemente de religião.(HELLERN; NOTAKER;
GAARDER, 2002, p.132)
7
A xariá significa “caminho para o oásis”, caminho denominado correto pelos muçulmanos para a conduta
humana, que foi mostrado por Deus ao homem. A lei sagrada se expressa sobretudo no corão, que é muito mais
que um texto religioso.Trata-se de um livro de leis que contém instruções fixas e regidas sobre o governo da
sociedade, a economia, o casamento, a moral, o status da mulher etc.(HELLERN,V.; NOTAKER, H;
GAARDER,2002,p.118)
32
Voltando ao pensamento de Mohammed Talbi (2000), pode-se analisar que poucos
foram os Estados islâmicos que passaram por esse movimento do chamado pêndulo, mesmos
estes tiveram sua transformação e reajuste de forma tardia no mundo moderno. Sobre o uso da
Xária, o autor faz uma crítica pertinente sobre a questão da passividade de interpretações de
textos sagrados por grupos fundamentalistas e ainda deixa claro sua posição citada ao longo
do presente capítulo de que o Corão possui passagens com bases sólidas a tolerância religiosa,
mas que não o faz escapar de deturpações de todos os lados. Talbi (2000, p57) deixa claro:
“Mas como as leis, os textos mais explícitos e mais sagrados são feitos para serem
deturpados. Os textos do Corão não escaparam a essa regra e não impediram que a
intolerância florescesse na casa do Islã”.
Como prova histórica de tolerância em um mundo mulçumano Talbi apresenta em sua
obra:
Mas, afinal, se em alguns momentos, as afrontas na terra do islã foram humilhantes
e difíceis de suportar, se também ocorreu sangue, não se podem mencionar nem
limpeza étnica, nem inquisição oficialmente organizada como conversão
sistemática, nem as residências forçadas, nem a expulsão integrada e maciça, nem
genocídio e é claro, nenhum holocausto ou outro Shoah. Após a conquista de
Jerusalém, foi Omar Primeiro (581-644) quem autorizou aos judeus a se instalarem
novamente ali.As colaborações em todas as áreas particularmente no plano
intelectual e até nos confrontos filosófico-religiosos, foram com freqüência
fecundadas em Cordobra, no Kairuan como em Bagdá, onde no século X,
floresceram os círculos de controvérsias de Kalam. Um piedoso faqîh andaluz, Ibn
Sadi, conta escandalizado, que esses círculos reuniam pessoas de todas as
confissões, até mesmo os ateus, que se cumprimentavam mutuamente com a maior
cortesia, e introduziam suas discussões juntamente com muçulmanos ali presentes,
limitando-se as controvérsias aos argumentos da razão e ao que pode ser objeto de
analise e de silogismo” (TALBI, 2000, p.57).
Com este relato do autor, fica clara que a definição de uma intolerância com pulsos
fundamentalistas pode ser evitada em qual campo seja e qual época possa pertencer uma
sociedade e seus governantes. As tradições religiosas não podem ser sinônimo de intolerância
nem ao uso de grupos e correntes fundamentalistas, sejam estes pertencentes na concepção do
próprio Estado e na manutenção de uma ordem moral social, a neutralidade deve transcender
acima de tudo.
Processos de intolerância e de fundamentalismo só tendem a sufocar o dinamismo da
civilização atual e levam a males sociais que não garantem a tolerância e a liberdade para todo
o cidadão comum pertencente ou não a um viés iluminista do mundo ocidental europeu.
Tendências totalitárias podem fazer parte tanto de uma esfera religiosa separada da política ou
sob uma forma unificada encontrada na maioria dos Estados muçulmanos, as tradições
33
religiosas ocupam historicamente grande parte da vida social do homem. São elas quem as
manipula e faz dela instrumentos morais e políticos usados seja por um aparato democrático
ou até mesmo por regimes totalitários.
Para Talbi (1999), estas tendências geram um tipo de integralismo intolerante e
fundamentalista dentro das próprias tradições religiosas. Assim, voltando aos termos usados
no início do capítulo, toda corrente religiosa tem em seu cerne questões negativas e positivas,
ou seja, encontramos o melhor e o pior, seja dentro do islã, do catolicismo, judaísmo ou
protestantismo. É sob a forma de uma instrumentalização que o indivíduo se faz no direito de
usar a seu favor e do seu grupo, para legitimar-se de preceitos e práticas tidas como verdades
absolutas e incumbidas de uma proteção divina não tolerante a questionamentos e
subjetividades, torna-se então um fator de integralismo que se alimenta da pior forma da
tradição religiosa.
Talbi deixa para a reflexão de seus leitores, que o integralismo é totalmente hostil a
liberdade individual de pensamento do homem, e que movimentos como o “islamismo
radical”, termo utilizado em sua obra, sobre grupos fundamentalistas islâmicos que pregam
como instrumento principal a aplicação livre de contextualização histórica e social do Xária
em quase todos os aspectos da vida social islâmica, fomentam um caminho a intolerância e ao
fundamentalismo que somente servem para criar e disseminar uma visão simplista com
aspectos violentos e práticas que não se encontram com os valores pregados acerca dos
princípios fundamentais da liberdade individual de todo o ser humano.
Assim o autor expõe sobre tal:
O integralismo prega a volta da Xária, isto é, à doutrina do “islamismo radical” que
fundamentou a intolerância e a violência. A corrente moderna prega a volta do
Corão, que fundamentou a tolerância e a coexistência pacifica a respeito ao
pluralismo e às diferenças. Para nós, não resta a menor dúvida de que a última
corrente acabará por vencer, e o islã não deixará de dar sua contribuição para
superar a atual “crise de valores” e para a elaboração da nova ética que só poderá se
global, planetária e respeitadora das diversidades e das liberdades individuais.
(TALBI, 1999, p.59)
Assim, as diferentes tradições religiosas não podem ser por si só culpadas pela
intolerância ao diferente e pelas ações e processos sociais fundamentalistas, os textos ditos
sagrados possuem inúmeras traduções e interpretações ao longo da história humana, cabe ao
homem o seu uso e interpretação. Ações políticas totalitárias e integralistas não surgem de
textos ditos sagrados, mas sim da vontade humana e suas mais complexas aspirações e
desejos.
34
3 AYAAN HIRSI ALI: A LUTA PELA LIBERDADE HUMANA DE UMA JOVEM
SOMÁLI MUÇULMANA SOBRE O PALCO DA MODERNIDADE
3.1 Apresentando a Personagem: Ayaan Hirsi Ali
A história de Ayaan Hirsi Ali apresentada em sua autobiografia intitulada “Infiel Ayaan Hirsi Ali: A história de uma mulher que desafiou o islã” é sem dúvida um dos relatos
mais interessantes e cativantes sobre a busca da liberdade de um indivíduo pertencente a
modernidade.
A liberdade buscada por nossa personagem tem como base princípios básicos da
liberdade humana, um destes princípios é a chamada liberdade religiosa conceituada no
primeiro capítulo do trabalho.
Ayaan Hirsi Ali defende a busca pelos direitos da mulher no islã e tem como meta
criticar arduamente tradições islâmicas que, ao seu olhar, servem de entrave para o
desenvolvimento intelectual e moral de pessoas que são oprimidas e levadas a acreditar em
uma verdade única, despida de sensibilidade e contextualização crítica.
Sua crítica infere diretamente ao Corão e ao profeta Maomé, que por ela são as causas
de tanta violência e intolerância em países muçulmanos.
Suas armas para esta luta incluem o ideário de filósofos e políticos do Iluminismo e as
garantias provindas pelo Estado Democrático liberal de países como a Holanda, que tem em
sua história atual a crescente onda de migrações muçulmanas em seu território.
Não cabe a este trabalho ir ao encontro da crítica de Ayaan ao Islã, mas sim uma
análise de como esta luta pela liberdade de princípios básicos para a liberdade humana pode
passar por entraves sociais, políticos e principalmente religiosos pertencentes a diversas
sociedades espalhadas pelo mundo moderno.
Como a própria Ayaan relata, em sua autobiografia, a busca pela liberdade religiosa
dentro de um Estado muçulmano não foi tarefa fácil e ainda não é, ao longo de seu
crescimento como mulher dúvidas e angústias não tiveram respostas, pois nestas estavam
contidas questões intoleráveis aos olhos do islã, sua submissão era uma condição terrível e
que a fazia cada vez mais olhar o mundo a sua volta como um lugar de provações, tudo em
nome da tradição religiosa que a cercava.
Hoje Ayaan leva sua crítica a todo mundo e desperta a ira de conservadores islâmicos
por onde passa, vive sob proteção armada 24 horas, pois recebe ameaças diariamente,
principalmente de muçulmanos que vivem em territórios ocidentais.
35
Nascida na Somália, Ayaan fugiu de seu país com um sentimento de busca e ao
mesmo tempo uma fuga na procura de uma liberdade de contestar, de escolher caminhos
próprios nascidos de sua vontade e anseio pela vida.
Ayaan é rotulada por fervorosos críticos islâmicos como “infiel”, pois renegou
tradições e regras do islamismo e ao mesmo tempo é exaltada por personalidades políticas e
religiosas, principalmente da Europa, onde teve início sua carreira política na Holanda.
3.2 Bases de sua crítica
As bases da crítica feita ao islã por Ayaan vão ao encontro da intolerância ao
multiculturalismo presente hoje em um mundo globalizado moderno, para ela o atual islã não
é compatível com o ideal de sociedades democráticas presentes em grande parte do ocidente,
se encontra hoje o islã sobre um regime totalitário e infrator de vários propósitos referidos aos
direitos humanos principalmente à questão da proteção aos diretos da mulher.
Para Ayaan, somente é possível reverter tal situação se Estados muçulmanos passarem
a adotar regimes democráticos liberais e a defesa dos mesmos sobre a garantia de direitos
civis, para isso é necessário a separação de uma moral religiosa e a atividade política. Em uma
entrevista concebida a revista Veja, Ayaan expõe explicitamente sua idéia:
O Islã atual é incompatível com o estado de direito das democracias ocidentais. A
sobrevivência das democracias ocidentais depende da sua vitalidade em defender os
valores liberais. A escolha que o século XXI oferece aos muçulmanos é clara:
modernidade ou regime tribal. Eu proponho às comunidades islâmicas fazer uma
reflexão crítica da sua doutrina religiosa, a exemplo dos fiéis de todas as grandes
religiões. Se dizem que é preciso rezar cinco vezes ao dia, vamos demonstrar,
empiricamente, que isso é impraticável no âmbito de uma vida moderna. Eu proponho
às comunidades islâmicas reter a espada que corta a cabeça de quem pensa por si
mesmo. Onde não se pode criticar, todos os elogios são suspeitos. Caso eu estivesse
num país muçulmano, já estaria morta8
Nessa fala pode-se perceber o quanto é importante para Ayaan um aparato jurídicoinstitucional democrático que garanta ao indivíduo sua liberdade de contestação, o que ela
chama como mostrado na fala acima de “pensar por si mesmo”, ou seja, ter um acesso a uma
crítica desprovida de uma moral impositora que dita possuir uma verdade sem campo de
contextualização e que exerce tal controle sobre o indivíduo pertencente a esse regime.
8
Entrevista concebida a revista veja, disponível em: www.veja.abril.com.br/220605/entrevista.html
36
Críticas ao islã não faltam quando se trata de Ayaan Hirsi Ali, mas é notável sua
posição também ao ocidente, para ela grande parte de acontecimentos no mundo muçulmano,
que vão contra as práticas dos direitos humanos, poderiam ser evitados por parte de líderes
religiosos e representantes políticos de Estados laicos ocidentais. Quando perguntada sobre a
reação da platéia que assistiu a exibição de seu filme “Submissão Parte I” (no qual são
apresentadas cenas de impacto com corpos femininos agredidos e mutilados), Ayaan diz que
grande parte da massa intelectual e política do ocidente tenta tapar os olhos sobre questões
delicadas envolvendo infrações aos direitos humanos no mundo muçulmano, para ela isso
acontece devido ao relativismo ocidental, que tapa os olhos para tamanhas atrocidades contra
um indivíduo contestador e crítico de seu tempo, assim ela aborda em sua resposta:
O pessoal que acha ter o monopólio dos bons sentimentos. Na verdade, eles padecem
do velho paradoxo da Revolução Francesa, que promoveu os direitos humanos em
casa, mas manteve a escravidão nas colônias. Em nome da convivência multicultural,
do respeito às tradições de outrem, esses intelectuais do Ocidente hesitam em colocar
em evidência a situação subjugada da mulher dentro do Islã. Eles têm receio de
ofender, de suscitar cólera, e assim ajudam a perpetuar o sofrimento e a injustiça. Ora,
aqui não cabem relativismos. Abuso e mutilação sexual são crimes, e ponto final.
Hoje, agora, já! Tampouco deve ser tolerado o assédio, a perseguição da qual são
vítimas os homossexuais muçulmanos. Os ocidentais não podem fazer vista grossa
nem calar, como já fizeram durante a existência dos gulags soviéticos. O Islã não
viveu o Iluminismo. As sociedades islâmicas enfrentam os mesmos problemas do
cristianismo anterior ao século XVIII. Ainda não se estabeleceu o justo equilíbrio
entre razão e religião.9
Ayaan, na mesma entrevista, chama o islã de Fascista10 e diz que parte da intolerância
e crescentes correntes fundamentalistas são, em grande parte, culpa do profeta Maomé e do
Corão, assim ela elucida:
O problema é o Corão e o profeta Maomé. É a mensagem à qual está sujeito 1,2
bilhão de indivíduos no mundo. O Islã não é só uma religião, mas uma civilização.
Seu aspecto político e social, regido por códigos severos, contém sementes fascistas.
É um sistema que espolia as liberdades do indivíduo e intervém na sua privacidade
sem admitir ser contestado. Nenhum muçulmano é livre para questionar a sua crença
religiosa. Ao contrário da Bíblia e do Talmude, livros sagrados dos monoteísmos
abraâmicos semelhantes ao islamismo, qualquer exegese do Corão é inadmissível. Os
muçulmanos devem crer, cegamente. Eu aprendi a decorar o Corão desde a infância,
posso recitar suras inteiras. Algumas delas servem para justificar a violência, liberar a
consciência dos seus autores e também dos observadores passivos. Segundo o livro
9
Entrevista concebida a revista veja, disponível em : www.veja.abril.com.br/220605/entrevista.html
10
Apregoando de um intenso fervor nacionalista, o movimento fascista ( do latim fascio=feixe), surgido em
1919, logo após o findar da primeira guerra mundial, transformou-se num fenômeno político internacional.Tendo
seu epicentro na Itália, mergulhada em profunda crise sócio-política, dali o fascismo, tornando-se hegemônico
sobre os demais partidos da ultra-direita, expandiu-se, com maior ou menor presença, por quase todo o
mundo.No entanto, em cada lugar em que se organizou assumiu uma denominação, um líder e uma simbologia
própria, que diferia das demais agremiações da mesma ideologia (site consultado www.educaterra.com.br)
37
sagrado do islamismo, os fiéis devem aspirar, em permanência, ao conhecimento. O
mesmo livro diz que Alá sabe tudo. Toda fonte de conhecimento está contida no
Corão. Pergunto, como conciliar as duas exigências? Qualquer comunidade que vive
segundo os preceitos de Maomé e do Corão torna-se patológica.11
Logo após os atentados as torres gêmeas em 11 de setembro de 2001, o mundo teve
acesso às ações de grupos terroristas sob o viés fundamentalista que deram mais força a
cultura do medo na sociedade americana, o mundo muçulmano e sua corrente intolerante a
costumes ocidentais democráticos logo veio à tona e suscitou preconceitos e aversões da
sociedade ocidental, principalmente a européia e norte americana, esse novo arcabouço social
separou ainda mais as duas culturas e trouxe consigo, ao mundo, rivalidades pautadas em
preceitos rasos e sem bases relevantes para críticas e condenações, tanto pelo ocidente quanto
para o mundo muçulmano.
Como abordado no capítulo 2, as correntes fundamentalistas nas tradições religiosas
não necessariamente fazem parte de uma tradição específica islâmica, mas sim tornam-se
presentes em grande parte das religiões sobre o uso político e moral adotados por grupos e
líderes de caráter integralista e totalitário, é nesta idéia que Ayaan apóia-se, porém deixa uma
questão bem clara quando se trata de um fundamentalista islâmico: “Em teoria, nada
diferencia um fanático cristão ou judeu de um fanático muçulmano. Na prática, eles se sentem
mais à vontade no Islã”. ( veja.abril.com.br/220605/entrevista.html)
Indagada sobre o motivo pelo qual um fundamentalista sentir-se mais a vontade no islã
Ayaan retrucou:
Além de encontrar justificativa religiosa farta, a crítica dos membros de sua
própria crença é quase nula. Quando o papa se posiciona contra o uso de
contraceptivos, católicos do mundo inteiro contestam sem sofrer represálias.
A cantora Madonna desperta antipatia em puritanos com a canção Like a
Prayer, mas sua cabeça não está a prêmio. Ninguém degolou os humoristas
do Monty Python por ter realizado o filme A Vida de Brian, uma sátira
sobre Jesus Cristo exibida no mundo todo. Esse espaço de tolerância não
existe no mapa do Islã, mesmo que muito almejado em silêncio. O Islã está
como o pai do terrorista Mohamed Atta depois dos atentados de 11 de
setembro de 2001. Traumatizado, desamparado, cego. "Meu filho não tem
nada a ver com isso. Foi obra da CIA, dos judeus!" O pai não se deu conta da
parte maléfica do filho. Recuso que uma religião, outrora pacífica, plena de força e
energia, tenha no seu âmago o fanatismo e a violência.12
A idéia da falta de espaço para a tolerância é presente na postura de Ayaan ao islã,
esse espaço torna-se possível através de um arcabouço institucional, pautado na neutralidade
11
Entrevista concebida a revista veja, disponível em: www.veja.abril.com.br/220605/entrevista.html
12
Entrevista concebida a revista veja, disponível em: www.veja.abril.com.br/220605/entrevista.html
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do Estado por parte de sua sociedade livre em âmbitos como o direito a crença de religiões
que não afetam sua cidadania, pois não será esta a responsável pela falta ou excesso de diretos
civis do indivíduo moderno.
Pode-se encontrar um paradigma na fala de Ayaan ao indagar sobre a falta de espaço
para a tolerância dentro de uma sociedade muçulmana, ao mesmo tempo em que faz uma
crítica à falta de um espaço para as práticas da tolerância. Ayaan revela que grande parte de
acontecimentos sociais graves ocorridos por ações de intolerância por parte de imigrantes
muçulmanos, em sociedades multiculturalistas como a holandesa, são em grande quantidade,
culpa de um relativismo cultural exacerbado por parte de Estados liberais e que abrem espaço
para atitudes que coloquem em risco a paz democrática.
Seu discurso político incide sobre a posição de que Estados Democráticos do ocidente
não podem mais manter-se neutros a acontecimentos que levam risco a sua própria nação por
atentados de fundamentalistas quase em sua maioria islâmicos, atitudes políticas de inserção e
interação de imigrantes em territórios como o holandês devem ser analisados e postos em
prática antes que todo esse contexto transforme-se em uma convulsão social, sem precedentes,
em sociedades que buscam a liberdade individual como fonte básica do convívio harmônico e
pacífico com o outro.
São essas as bases principais de Ayaan para sua crítica ao islã, ter o direito de
contestar, não crer e levantar questões subjetivas a costumes e práticas vindas de uma
sociedade totalmente regida sobre um aparato moral, impositora, intolerante a crítica e a
reajustes de demandas e costumes recentes de uma sociedade.
Esse espaço é assim totalmente propício ao surgimento de grupos fundamentalistas,
que podem usar da violência contra outros grupos sociais com bases políticas e religiosas
diferentes da sua, seja fora ou dentro de seu território.
Em todas as falas apresentadas, Ayaan deixa clara sua total incompatibilidade com a
moral islâmica e a sua não separação do âmbito político e religioso, defendendo assim a
estrutura de Estados laicos democráticos, protetores de direitos básicos ao ser humano, seja
qual for sua religião, sexualidade ou cor.
Como demonstrado também, Ayaan é direta ao afirmar que a culpa é totalmente vinda
do Corão e suas práticas ditadas pelo profeta Maomé, para ela a liberdade religiosa e política
não é presente em Estados islâmicos justamente por esta intolerância do corão.
Algumas colocações podem parecer fortes e notadas de uma negação dura e irredutível
à religião islâmica e seus costumes, nota-se nas falas de Ayaan uma aversão ao islã
39
Contra ela também existem duras críticas dentre as quais se destaca a questão de sua
mutilação genitália, quando tinha apenas 12 anos de idade. Em sua autobiografia Ayaan relata
com detalhes todo o sofrimento que teve que passar apoiado pela sua avó materna, ela relata:
Na Somália, como em muitos outros países africanas e do oriente próximo, as
meninas são purificadas mediante a ablação da genitália. Não há outro modo
de descrever esse procedimento que costuma ocorrer por volta dos 5 anos de
idade. Uma escavados, raspados ou, nos lugares mais benevolentes,
simplesmente cortados ou extraídos o clitóris e os pequenos lábios da garota,
geralmente toda região é costurada de modo a formar uma grossa faixa de
tecido, um cinto de castidade feito da própria carne da criança. Um pequeno
orifício no lugar adequado permite um fino fluxo de urina. Só com muita
força é possível alargar o tecido cicatrizado pelo coito. (ALI, 2007,p.57)
Contudo, não se pode dizer que o fato de sua mutilação esteja totalmente voltado para
costumes puramente islâmicos. Sobre esse assunto, Ayaan recebe duras críticas sobre uma
possível disseminação de conceitos errôneos sobre práticas e costumes islâmicos, mas o que
muitos não sabem é que a própria Ayaan relata esta observação em seu livro:
A mutilação dos órgãos genitais femininos é anterior ao islã. Nem todos os
muçulmanos adotam essa prática, e alguns povos que a adotam não
professam o islamismo. Mas na Somália, onde virtualmente todas as meninas
são submetidas à clitorectomia, o procedimento sempre justifica em nome do
islã. As garotas incircuncisas estão fadadas a ser possuídas pelo diabo, a se
entregar ao vício e à perdição, a se prostituir. Os imames não desestimulam
essa prática: conserva a pureza das mulheres. (ALI,2007,p.58)
Para Ayaan sua base de contestação é clara, não é possível uma prática da liberdade do
homem moderno sem os instrumentos político-sociais provindos de um Estado Democrático
Moderno Liberal tolerante ao multiculturalismo e a pluralidade religiosa, infelizmente, para
ela, o mundo islâmico não possui ainda em sua história quase nenhum destes princípios que
abrem o caminho para liberdades humanas básicas, dentro delas a liberdade política e
religiosa.
40
3.3 O Encanto do Iluminismo: O Islã Também Precisa de Um Voltaire?
Ayaan formou-se em Ciências Políticas pela tradicional universidade de Leiden, na
Holanda, e foi lá que, com seus estudos e leituras cada vez mais crescentes e aguçados,
conheceu teorias políticas, acontecimentos de fatos históricos importantes e começou sua
paixão por escritores e filósofos iluministas.
Assim ela relata em sua autobiografia:
Por mais que me dissessem que a Ciência Política era uma péssima escolha, eu
adorava o curso. Podia ser árido para os outros, mas não para mim. Desde menina,
absorvera fragmentos daquela história: democracia, justiça, nação, guerra. Agora,
com o ensino bom e sério, começava a conceber a boa governança como um
processo, como algo que se desenvolvera. (ALI, 2007,P.339).
Ao longo dos anos estudando em Leiden, Ayaan começou a construir suas bases
políticas que mais tarde fariam parte da legitimação de seu discurso contra posturas
integralistas e totalitárias de Estados, que são regidos sobre uma moral religiosa intolerante,
sua paixão pela história social e política da Holanda a fizera ser uma defensora de ideologias
trazidas em grande parte do Iluminismo, que teve como berço a sociedade holandesa na qual
ela ia construindo aos poucos sua identidade contestadora.
A premissa de que o mundo muçulmano detém fatores de intolerância e um atraso a
mecanismos sócios culturais básicos para a concepção de uma sociedade moderna e
democrática não é defendida somente por Ayaan, são muitos os escritores que hoje abordam a
necessidade de um “Iluminismo para o mundo muçulmano”.
Mohammed Arkoun (1999, p.193), descreve o Iluminismo como uma “ruptura de
ordem semântica, moral, jurídica e política, entre a instância divina e a instância humana
(soberania popular) de legitimação”.
Foi no Iluminismo que a Europa ocidental tornou-se livre da razão dogmática,
separando-se entre o campo da fé (religião) e o campo da razão (ciência).
Para Arkoun (1999), a base de um pensamento iluminista13 torna-se necessária para
que haja uma evolução no pensamento crítico político de uma sociedade, para ele as
sociedades muçulmanas não passaram por essa “revolução mental” e hoje padecem de um
13
O pensamento iluminista teve como base uma revolução intelectual que se efetivou na Europa, esse
movimento representou o ápice das transformações culturais iniciadas no século XIV pelo movimento
renascentista.Para os iluministas só através da razão o homem poderia alcançar o conhecimento a convivência
harmoniosa em sociedade, a liberdade individual e a felicidade. (PAZZIANATO;SENISE,200,p.98)
41
pensamento arraigado por uma ordem teológico-jurídica ligada diretamente a regras e ordens
do corão, assim ele ilustra:
As sociedades dominadas pelo fato islâmico não participaram dessa revolução
mental que acarreta a privatização progressiva, a marginalização. No contexto
islâmico, o pensamento filosófico esboçou uma tendência para substituir uma
racionalidade trans-religiosa por uma racionalidade teológica – jurídica,
estreitamente ligada a palavra de Deus no Corão. (ARKOUN,1999,p.192)
Dentro os pensadores iluministas foi por Voltaire14 que Ayaan se interessou mais, a
idéia de liberdade individual iluminista promovida por tal foi presente em discussões
fervorosas entre Ayaan e demais pensadores que a conheciam e abordavam sua causa.
Em 2001, Ayaan participou de um fórum de discussões em Amsterdã que tinha como
análise a relação do islã com o ocidente, muitos dos participantes ali presentes concordavam
que ao contrário de um pensamento mais popular, o Islã era um movimento pacífico e que o
mundo ocidental era responsável por grandes mazelas na história humana, e de que era hora
de um novo Voltaire para o Ocidente, sobre esta passagem Ayaan relata:
Um após o outro, os oradores aceitaram a premissa de que havia a necessidade de
um novo Voltaire para o Ocidente. Denunciaram tudo quanto havia errado no
hemisfério: a arrogância em invadir outros países, o neo-colonialismo, a decadência
de sistemas que criava sociedades voltadas para o consumo etc. (ALI,2007,p.391)
Estava presente no mesmo fórum um professor iraniano de direito penal, Afshin
Ellian, dentro da discussão ele propôs como tema a necessidade de uma renovação crítica no
islã, passando a discussão para a platéia ali presente, causou uma grande arena de debates, foi
no meio dessa arena que Ayaan pediu a atenção para sua colocação em apoio a proposta do
professor e assim disse, como aborda em seu livro:
Vejam quantos Voltaire o Ocidente tem. Não nos recuse também ao direito de ter
um. Vejam as nossas mulheres e vejam nossos países.Vejam que estamos todos
fugindo e pedindo asilo aqui, e que alguns, na sua loucura, agora resolveram jogar
aviões nos edifícios.Concedam-nos um Voltaire, porque verdadeiramente estamos
vivendo nas trevas dos obscurantismo(ALI,2007,p.392).
Dentro destas colocações Ayaan pode ser enquadrada como uma espécie de defensora
de um ideal iluminista e que de fato, como já abordado, o mundo muçulmano deve passar por
14
Voltaire um dos mais importantes iluministas de sua época criticava o absolutismo de direito divino, propondo
a participação da burguesia esclarecida no governo, como forma de garantir a paz e a liberdade, tanto política
quanto religiosa.Suas idéias não só influenciaram os teóricos da revolução francesa, como vários governantes
europeus que, seguidores de sua proposta de reforma, ficaram conhecidos como déspotas esclarecidos.(
PAZZIANATO;SENISE,200,p.100).
42
uma mudança crítica e consensual de sua sociedade, para a realização desta tarefa é necessário
mais do que tudo um despertar de todos pertencentes a este mundo, dito por ela responsável
por grandes confrontos e causadores de infringirem o direito a liberdade do indivíduo.
3.4 A liberdade para Ayaan Hirsi Ali: Um compromisso ideário
A palavra liberdade parece, ao ler-mos sua autobiografia, como uma procura
incessante e uma fonte motora que impulsiona a vida de Ayaan Hirsi Ali. Como ela mostra
em sua obra, grande parte desta conquista ocorreu na sua chegada à Holanda, país pelo qual se
tornou cidadã e em 2002 entrou para política como deputada, sendo uma das principais
influências no parlamento em que atuava. Em sua meta de governo, Ayaan propôs uma
medida de investigação sobre assassinatos em nome da honra, cometidos em grande parte por
imigrantes muçulmanos em terreno holandês, esses assassinatos tinham como principais
vítimas mulheres muçulmanas que sofriam agressões chegando até a própria morte causada na
grande maioria por seus maridos também muçulmanos.
Foi no terreno holandês que Ayaan teve contato com o que realmente significa ser um
indivíduo livre, contestador de questões como costumes e culturas da sociedade que a cerca,
poder estudar, expor idéias e disseminar discussões era uma das tantas possibilidades
asseguradas por essa liberdade, enfim, uma liberdade de expressar livremente seus ideais.
Sobre essa possibilidade e abertura ela comenta em seu livro:
A liberdade de expressão que encontrei na Holanda – a liberdade de pensar – é
desconhecida no meu país de origem, trata-se de um direito e de uma prática com
os quais sempre sonhei quando menina. Sejam quais forem seus defeitos, nenhuma
nação compreende mais o principio de liberdade de expressão do que a n a
Holanda. Esse princípio está de tal modo enraizado na cultura holandesa que o país
optou por me proteger das ameaças de morte, muito embora os membros do
governo declarassem constantemente que discordavam das minhas idéias. Devo
dizer que estou muito agradecida: tenho a sorte e o privilégio de ser holandesa.
(ALI,2007,p.490).
Ao longo de sua autobiografia, Ayaan relata que deve grande parte de sua concepção
de liberdade ao convívio com a sociedade holandesa e com seus estudos sobre a política de
países ocidentais, produtos de movimentos como o Iluminismo, que a ajudaram a
compreender a importância empírica de um espaço para que nele seja fomentado o ideal de
uma liberdade plena, sem opressões e imposições morais. A Holanda para Ayaan é sinônimo
de liberdade e foi lá que a liberdade tomou sua maior essência:
43
Entendi o porquê do apego tão profundo dos holandeses à liberdade.Em muitos
aspectos, aquele país foi o berço do iluminismo europeu.Há quatrocentos anos,
quando pensadores do continente romperam os fortes laços do dogma eclesiástico
que constrangiam a mente das pessoas, a Holanda foi o centro do livre pensamento.
O Iluminismo separou a cultura européia das suas raízes mergulhadas em antigas
idéias de magia, realeza, hierarquia social e preponderância do clero, para enxertála em um tronco grande e forte que sustentava a igualdade de cada individuo e o seu
direito a opiniões livres e ao autogoverno – desde que isso não ameaçasse a paz
cívica e a liberdade alheia. Foi em Leiden que o Iluminismo se afirmou. Em
Leinden os holandeses conquistaram a liberdade.E também foi em Leinden que
esse compromisso com a liberdade se penetrou em mim.(ALI,2007,p.341)
Ali (2007) considera que a liberdade não pode estar ligada a sujeição do indivíduo
para com um regime de governo ou uma religião, o indivíduo deve primeiramente ser
respeitado em sua escolha e poder exercer seu papel de cidadão dentro do seu Estado.
Assim como Sujeição não é bem vista por Ayaan, a Submissão também não pode ser
mantida nem tolerada por nenhum indivíduo, pois é na submissão que Ayaan considera um
ponto de oposição à liberdade humana e é na submissão que se encontra uma das raízes do
islã.
De acordo com Hellern et al (2002), a palavra árabe islã significa submissão, na qual é
uma questão básica para tornar-se um muçulmano, ser muçulmano é se submeter à vontade de
Alá. Submissão para Ayaan é sinônimo de deixar de lado uma vontade pessoal, ser
muçulmano torna-se, para ela, um ser submisso a uma religião opressora da liberdade
individual. Sua infância, adolescência e início da vida adulta foram marcados pela submissão
em relação a suas tradições familiares, tudo devido ao islã, sendo a semente para todas as suas
dificuldades em se tornar um indivíduo de livre pensamento, contestações e atitudes, dessa
maneira ela expõe em seu relato:
No islã a ordem era ser escrava de Alá: submeter-me, assim, idealmente, despojarme de vontade pessoal. Não ser um individuo livre.Comportar-me bem por temor
ao inferno;não ter ética pessoal.Se Deus significava o que havia de bom, e satanás,
o que havia de ruim, ambos estavam em mim. Eu queria desenvolver o meu lado
bom - a disciplina, a generosidade, o amor – e eliminar o mau, a raiva, a inveja, a
preguiça, a crueldade. (ALI,2007,p.401).
Ali (2007) deixa claro que a liberdade só pode ser alcançada sob a vivência de um
mundo moderno, para tal foi preciso, como no caso Europeu, uma transição e transição não é
uma questão fácil e de simples assimilação, leva-se tempo e sabedoria.
A transição para a modernidade torna-se para Ali (2007, p.435) “uma papel árduo à
sociedade muçulmana, pois seus valores são incompatíveis com os direitos humanos e valores
liberais, preserva-se uma mentalidade feudal arrimada em conceitos tribais de honra e
44
vergonha”. Com os relatos e falas apresentados ao longo do tópico, pode-se chegar a uma
idéia próxima do que seja para Ayaan a liberdade: torna-se liberdade, um compromisso
ideário de todo o indivíduo que não se sujeita ou se submete à intolerância como forma de
vida social e intelectual, todo o ser deve valer-se em manter a sua verdade e não usar desta
uma arma de oposição, passando por cima de princípios que levam a uma convivência
harmônica e protetora de uma paz social.
Ser livre é ter o acesso à liberdade de expressão e contestação abatinada de
condenações morais seja por viés religioso ou político e que traga ao ser em questão um
amparo a suas angústias e dúvidas quanto a sua vida.
3.5 O Assassinato de Theo Van Gogh: Um golpe a sociedade liberal holandesa: Como ser
tolerante ao intolerável (A neutralidade do Estado Moderno).
Em fevereiro de 2003, Ayaan Hirsi Ali conheceu o famoso cineasta herdeiro da
família Van Gogh, seu nome era Theo, contestador social ativo na Holanda era famoso por
declarações fortes e produções polêmicas de documentários em sua maioria sobre uma sátira
da vida moderna holandesa.
Theo Van Gogh tinha a mesma percepção de Ayaan sobre o perigo que a sociedade
holandesa atravessava com a crescente onda de imigrações muçulmanas e suas percepções de
intolerância por parte destes dentro do modo de vida cultural holandês, como exemplo, certa
vez Theo foi ameaçado por um libanês com o nome de Abu Jahjah líder da chamada Liga
Árabe Européia, composta por jovens muçulmanos que vivam sob teto europeu. Theo fora
convidado a participar de um fórum de discussão sobre migração muçulmana e processos de
integração em Amsterdã, no qual seria o mediador, mas sua participação não foi aceita, pois
Abu Jahjah estava participando e alegou que caso Theo Van Gogh participasse se recusaria a
integrar ao grupo de discussão.
Ayaan relata esta passagem “Theo ficou indignado e chamou Abu Jahjah de cafetão
do profeta” (2007, p.443). Um homem de muita sensibilidade e crítico a certos pensamentos
holandeses era como Ayaan o via, assim ela o descreve:
Theo tinha muita sensibilidade, uma antena ligada para os sinais de sofrimento, ao
passo que a maioria dos holandeses insistia em acreditar que tudo era bom e
agradável. Ele achava que as pessoas não se atreviam a dizer muita coisa por medo
de ofender.Via-se como um personagem de Fassbinder: o bobo da corte.Sua casa
era uma desordem sem fim, mas ele se concentrava intensamente no trabalho.Era
45
um poço de contradições, um homem impossível e, em certos aspectos um gênio.
(ALI, 2007,p.444)
Em um de seus muitos encontros, Theo Van Gogh pediu para que Ayaan escrevesse
um roteiro para seu novo documentário, que abordaria sob um aspecto que ele mesmo ainda
não havia decidido valores islâmicos que iam contra uma cultura liberal como a da Holanda.
Depois de muita insistência por parte de Ayaan e discussões sobre o tema, os dois
chegaram a um consenso e, finalmente, o propósito assim como nome e roteiro do
documentário que ficaram prontos em pouco tempo.
O filme tinha como base mostrar a relação do indivíduo com Alá, como era a forma de
adorar e ser submisso ao mesmo tempo a partir de palavras e regras impostas a seus
seguidores, como fundamento o filme basicamente trataria da relação submissão e islã. Ayann
descreve da seguinte forma a intenção do filme:
O filme que eu e Theo fizemos Submissão Parte I, falava sobretudo da relação do
individuo com Alá.No islã, ao contrário do cristianismo e do judaísmo, a relação do
individuo com Deus é de submissão total de pensamentos e atos que dele declarasse
proibidos no Corão.Para modernizar o islã e adaptá-lo aos ideais contemporâneos,
seria necessário dialogar com deus e até divergir das regras divinas; mas no islã, tal
como foi concebido, discordar de Alá é uma insolência, pois pressupõe igualdade
com ele. (ALI, 2007, p.445)
Como abordado na fala acima, o documentário teve o titulo de “Submissão Parte I” foi
rodado em pouco tempo e com um custo baixo, o roteiro teve como base pequenas histórias
de mulheres que se sujeitavam as palavras do corão e tinham uma vida de limitações e
submissão a vontade do profeta. Em algumas partes do filme, as atrizes apareciam seminuas
com versos do corão tatuados em seus corpos.
Sobre boas críticas o filme foi apresentado na Holanda e em alguns países da Europa,
em setembro de 2004,Ayaan teve a notícia de que um jovem marroquino muçulmano que
morava com os pais nos arredores de Amsterdã teria escrito uma carta de repúdio ao
documentário e ameaças diretas a ela e a Theo Van Gogh. Alertado sobre o perigo,Theo Van
Gogh não deu importância ao fato, o filme foi lançado semanas mais tarde na TV Holandesa.
Em primeiro de novembro de 2004, Theo Van Gogh foi surpreendido pelo mesmo
jovem que meses antes havia ameaçado sua vida e de Ayaan, esse jovem, com o nome de
Muhammed Boyeri, disparou cerca de três tiros contra Theo Van Gogh e com punhal cortou
sua garganta, como ato final cravou o mesmo em seu peito com uma carta intitulada a Ayaan
Hiris Ali. Tudo isso sobre a luz do dia, em uma das avenidas mais movimentadas de
Amsterdã.
46
Toda a nação holandesa, assim com o Ayaan Hirsi Ali, ficou em choque com o
assassinato e o requinte de crueldade do assassino, não se via um acontecimento tão chocante
na Holanda como esse ocorrido há muito tempo em uma sociedade que tinha como um de
seus princípios a convivência harmônica em um ambiente muticulturalista. Ayaan relata: “O
país inteiro estava chocado com o fato de alguém ser assassinado daquele jeito – ainda mais
na Holanda – apenas por ter feito um filme” (2007, p.455).
O fato causou uma perplexidade de forma profunda na sociedade, a partir deste
momento pessoas perguntavam o porquê da morte de uma pessoa que exerceu a sua liberdade
à critica de forma aberta e democrática, Ayaan tinha a resposta.
Como apontado no início do capítulo, grande parte da crítica de Ayaan é feita também
à sociedade ocidental, principalmente européia, que a cada ano vem recebendo legal ou
ilegalmente um número crescente de imigrantes vindo de todas as partes do planeta à procura
de uma condição econômica mais atrativa e regimes políticos mais abertos à liberdade
individual, dentro destes, grande parcela vinda de países islâmicos.
A imigração cresce a cada ano na Europa e, junto com ela, cresce também um vazio de
instrumentos político-sociais para lidar com a interação de culturas diferentes convivendo em
um mesmo território.
Assassinatos como o de Theo Van Gogh podem torna-se um ato crescente tanto na
sociedade holandesa quanto nas sociedades democráticas liberais espalhadas por toda a
Europa. A convivência com diferentes culturas e religiões em um mesmo território não pode
ter como resultados uma afronta à liberdade individual de indivíduos pertencentes uma
sociedade moderna, como o ocorrido na Holanda.
“Esse vazio de um aparato político-social que faça a interação de diferentes culturas
em um mesmo território, faz com que a Europa entre em um processo de doença
social” tendo como resultado a intolerância cultural e religiosa dentro de seu
território democrático” (A situação dos refugiados no mundo, Acnur,1997,p. 91).
A esse contexto, de um crescente fechamento de comunidades imigrantes em
território europeu, é encontrado o exemplo da comunidade islâmica em território holandês,
Ayaan coloca a culpa na excessiva tolerância do Estado Holandês que não possui políticas
públicas sociais para lidar com esse fato e ainda mostra que é a sociedade islâmica é a que
mais se fecha dentro do território holandês. Assim ela mostra:
À medida que continuei investigando, tornou-se dolorosamente óbvio que, dentre
todos os imigrantes não ocidentais, os menos integrados, eram os muçulmanos. Em
meio aos estrangeiros, a maior quantidade de desempregados se constituía de
marroquinos e turcos, os mais numerosos grupos maometanos, muito embora sua
47
qualificação média fosse aproximadamente a mesma das demais populações
imigrantes. Visto como um todo, os muçulmanos da Holanda recorriam
desproporcionalmente ao auxílio assistencial e aos benefícios por incapacidade e se
envolviam desproporcionalmente ao crime. (ALI, 2007, p.397).
O assassinato de Theo Van Gogh, por um imigrante muçulmano em solo holandês,
deixa claro para Ayaan a situação na qual passa hoje países receptores de imigrações de todo
o mundo e sua diversidade cultural, a neutralidade do Estado Democrático liberal não pode
mais ser passiva a este tipo de fenômeno social, outro exemplo de uma tolerância por parte de
Estados Democráticos liberais é o caso por ela abordado, envolvendo o artigo 23 da
constituição holandesa, sobre a questão do financiamento a escolas confessionais envolvendo
as de ensino islâmico, ela relata:
Na minha opinião, o governo holandês precisava urgentemente parar de financiar
escolas inspiradas no Corão.Elas rejeitavam os valores dos direitos humanos
universais,os alunos não eram iguais nessas escolas.Além disso, nelas não podia haver
liberdade de expressão nem de consciência.Não desenvolviam a criatividade – arte,
teatro, música – e reprimia a habilidade critica capaz de levar as crianças a questionar
suas crenças. Omitiam os temas que conflitam com a doutrina islâmica como a
evolução e a sexualidade. Ensinavam a decorar, não a questionar, estimulavam a
subserviência nas meninas. (ALI, 2007, p.399)
Tal afirmação traz consigo um fator que pode causar severas críticas a postura acima,
adotada por Ayaan, a questão do fechamento de escolas confessionais de vertente islâmica
que para ela servem de um espaço para uma fomentação de conceitos que vão contra um
ensinamento com base na autocrítica e da tolerância para a convivência pacífica de crianças
muçulmanas em uma sociedade liberal democrática, pode gerar um represália forte de ambos
os lados, assim ela aborda a questão:
Isso criava um dilema. O artigo 23 da Constituição holandesa autorizava as
instituições de ensino confessionais. Fechar somente as muçulmanas, permitindo a
existência de outras escolas privadas, seria discriminação por parte das autoridades.
Eu achava que estava na hora de iniciar um debate o financiamento de todas as
escolas confessionais. A Holanda se transformara em uma sociedade de imigrantes,
com cidadãos das mais diversas origens não ocidentais: hinduístas, budistas,
maometanos. Talvez todas as crianças, inclusive as holandesas, precisassem
aprender a compreender as que eram de outra origem e a conviver com elas. Talvez
fosse conveniente abolir o artigo 23 da constituição. As verbas públicas seriam
mais bem empregadas em escolas ideologicamente neutras e em estimular os alunos
a questionarem e a respeitarem o pluralismo (ALI, 2007,p.399)
Toda essa questão levantada por Ayaan em tentativas práticas para o uso de uma
tolerância frente a costumes de isolamento, principalmente por parte da comunidade islâmica
48
em território holandês, é de total responsabilidade do Estado em questão, mas era necessário
também que a sociedade holandesa como um todo enxergasse o grande perigo de uma
tolerância frente a acontecimentos como o assassinato de Theo Van Gogh, um cidadão
holandês, vítima de uma ação de cunho intolerante a crítica e ao pensamento individual de um
ser pertencente a modernidade, tão duramente alcançada pelos povos ocidentais europeus e
que hoje corre grande perigo de se deteriorar frente a grupos que agem em territórios
estrangeiros democráticos e causam ações que levam um secularização destas sociedade tidas
como liberais e pluralistas.
Observando suas colocações mostradas ao longo do capítulo, é correto afirmar que
Ayaan não prega uma política de opressão aos muçulmanos presentes em território holandês,
mas ações a partir de instrumentos estatais que possam levar a uma interação que não
coloquem em risco toda a dinâmica de uma sociedade que até então vivia harmoniosamente
com uma pluralidade religiosa e cultural.
Na fala que segue, ela expõe sua idéia:
Queria que a Holanda despertasse e parasse de tolerar a opressão de muçulmanos
no seu território; o governo tinha que agir para protegê-las e punir seus opressores.
Queria provocar um debate entre os maometanos sobre a forma de certos aspectos
do islã de modo que eles começassem a questionar e a criticar sua própria fé. Isso
só era possível no ocidente, onde os muçulmanos podiam manifestar abertamente
suas opiniões; em nenhum país islâmico havia a possibilidade de discutir estes
temas livremente. (ALI, 2007, p.420).
A neutralidade de Estados como o da Holanda deve ser revista em tempos atuais como
abordado por Ayaan Hirsi Ali, o golpe através do assassinato de Theo Van Gogh na sociedade
holandesa deve trazer à tona todas essas colocações abordados no decorrer do capítulo, a
liberdade religiosa, assim como a política, dever ser mantida ao alcance de todos, cabe ao
Estado formular caminhos para que essa realidade pelo menos possa ser monitorada de forma
mais forte e impositiva sobre um viés obviamente democrático, caso contrário a liberdade
individual moderna sofrerá sérios danos e perdas ao longo do aumento cada vez maior dessas
interações entre razão, religião e intolerância.
49
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da realização dos três capítulos apresentados no trabalho, pode-se considerar
que a conquista da liberdade do homem é ainda um caminho longo e que a cada passo dado,
maior é o desafio, pois a liberdade cresce cada vez que o homem atinge um espaço novo,
nunca antes alcançado: a cada conquista um novo horizonte se abre dando passagem por
novos caminhos, novas trilhas, novos problemas e novas abordagens.
As conquistas sociais e políticas ocorridas ao longo da historia do homem não
necessariamente trouxeram demandas somente positivas, houve e há muitos erros e acertos,
mas a cada erro e a cada acerto um novo caminho se abre, é neste caminho que o homem
saberá, através de sua liberdade outrora conquistada, lidar e tirar lições de aprendizagem para
caminhar cada vez mais e mais longe rumo a uma chegada ao desconhecido ao inabitado de
sua mente e angustias.
Saber a “hora da chegada”, o “fim do caminho” é a fonte de toda a incerteza humana,
o aparato religioso conforta a uns e a outros não, a vida pode ser uma escolha de valores e
preceitos perceptíveis individuais, mas o caminho da humanidade deve ser um só, o caminho
rodeado por tolerância e respeito ao próximo, é preciso uma coexistência pacífica entre todos
os povos, é preciso de “uma aliança pela paz”.
O conceito de aliança pela paz é extraído do conceito de o “povo da aliança”, esse
conceito é descrito por André Chouraqui (1999) quando aborda a questão da intolerância
frente às religiões do mundo:
Os judeus, os cristãos, os muçulmanos, cada qual por seu lado, pretendem ser o
povo cuja salvação foi anunciada pelos profetas; mas, separados uns dos outros,
deixaram de cumprir a ordem fundamental, a ordem da aliança. Para serem fieis a
seus escritos, deveriam deixar de se opor para ser, conjuntamente, verdadeiramente
o povo da aliança. Sua pacificação e reunião dariam à humanidade mais uma
oportunidade de se livrar dos grandes massacres que a ensangüentam e daqueles
que a ameaçam. (CHOURAQUI, 1999, p.77)
A concepção da modernidade e do homem moderno apresentada no primeiro capítulo,
sobre as elucidações de Agnes Heller, serve de pano de fundo para a análise das interações
entre sociedade multiculturalista, neutralidade do Estado Democrático liberal frente a
processos de intolerância a princípios básicos para a concepção de uma liberdade individual
plena, livre de processos totalitários, integralistas que têm como instrumentos uma leitura
50
livre de contextualização de textos ditos sagrados para diferentes tradições religiosas. Abrindo
caminhos para ações fundamentalistas que em sua maioria trazem a violência pela negação e
imposição de sua verdade “incontestável” do outro.
Não é a finalidade do trabalho apresentar um resultado sobre quais seriam as religiões
com um processo mais aberto às sociedades pluralistas e de governos democráticos liberais. A
principal finalidade é tentar abordar que é possível hoje, mediante aparatos como a questão da
proteção dos direitos individuais advindos da liberdade natural do homem, manter um
arcabouço institucional para que haja interações saudáveis entre seguidores de diferentes
linhas religiosas em um mesmo território. É preciso uma estrutura, um aparato real provindo
pelo Estado Democrático Liberal Moderno, não cabe a esse a construção de uma moral
regularizadora com bases em tradições e costumes religiosos de sua fronteira, é preciso que
todo esse aparato seja edificado sobre um solo multiculturalista com raízes na tolerância,
somente com esse aparato a liberdade individual, seja ela qual for sua nacionalidade, deve ser
garantida e protegida.
O direito civil do cidadão pertencente a um Estado é por particularidade
responsabilidade da jurisprudência interna que rege esse Estado, porém a constatação de uma
necessidade de preceitos comuns a liberdade humana, inerente ao local de origem, deve ser
posta em prática sob o viés da construção de uma cidadania universal apoiada nos princípios
básicos das liberdades naturais do homem.
A criação de uma cidadania universal deve ter como base para sua funcionabilidade a
concepção comum de todos os povos para a formulação de um alicerce montado por um tripé
da sociedade moderna: Paz, Democracia e Tolerância.
O conceito de intolerância e suas práticas ao longo das histórias das tradições
religiosas foram parte do estudo apresentado. Processos de ajustes a demandas sociais podem
ser encontrados como no caso apresentado da religião católica e sua reforma eclesiástica,
também foi apresentado a questão do fundamentalismo protestante em países democráticos
liberais como a Alemanha e Estados Unidos e a questão da tradição islâmica frente a
tolerância e intolerância em confronto com um mundo ocidental moderno.
Com os estudos e exemplos abordados sobre as tradições religiosas pode-se chegar à
análise de que não cabe a uma única vertente religiosa a intolerância de sua tradição, há
portanto uma condição presente em todas, a questão do uso de suas tradições, textos sagrados
51
e costumes que pode valer-se presentes por questões de interesses individuais e políticos para
a obtenção de poderes ou influências com vertente fundamentalista e separatista entre a
sociedade.
A intolerância é produto do homem e esta se encontra em suas mãos de garantir a
presença ou não desta prática, ao longo de processos históricos sociais as religiões ora
apresentaram evoluções, ora retrocessos, acompanhados de segmentos integralistas políticosociais que buscavam uma secularização com bases morais obtidas das tradições, porém sem
uma análise pré-textual e contextualizada dos tempos atuais e seus costumes que passaram por
modificações e readequações históricas sociais.
Como grande ilustração do trabalho, foi apresentado no capítulo 3 a história de Ayaan
Hirsi Ali e sua luta pela liberdade individual, tendo como foco a liberdade religiosa em
confronto com o regime islâmico.
O propósito de Ayaan é fornecer empiricamente bases sólidas de uma inadequação de
Estados Islâmicos para a vivência e contato com o mundo liberal democrático ocidental, para
ela a liberdade individual como a de expressão e a de contestação é impossíveis, graças a
costumes intolerantes de vertente fundamentalista islâmica causadora de infrações aos direitos
do homem, grande parte dessa intolerância vem de acordo com Ayaan do Corão e de palavras
do profeta Maomé.
Ayaan representa para o trabalho apresentado o que é hoje ser um indivíduo livre,
sobre questões como a liberdade política e religiosa e o que isso representa tanto do ponto de
vista pessoal quanto ao ponto de vista sociológico.
Ayaan conclui em sua autobiografia que a sua concepção de liberdade e a conquista
dessa só foi possível em uma sociedade liberal moderna regida sobre a democracia, os
aparatos ótimos para essa conquista podem ser colocados em foco por ela: a passagem de
grande parte da sociedade moderna européia pela corrente iluminista trouxe a sua sociedade
uma luta pela liberdade individual sem a participação moral impositiva da tradição religiosa,
abrindo espaço para a liberdade à crítica do homem em uma sociedade pluralista, complexa,
interdependente e dinâmica, com a noção clara do uso da razão e o desenvolvimento do
pensamento livre.
Ayaan tem sua crítica aberta e direta contra o islã, o Corão é a base fundamental para a
ideologia da intolerância e a submissão ocorrida em quase todos os Estados islâmicos atuais,
52
não foi matéria desse trabalho ir ao encontro de sua posição, mas sim mostrá-la e analisá-la
sobre o ponto de vista da liberdade religiosa e política do homem, as quais são hoje suas
ferramentas para lidar com esta intolerância e a garantia da liberdade individual.
Por outro lado, as condições da existência humana – a própria vida, a natalidade e
a mortalidade, a mundanidade, a pluralidade e o ‘planeta’ – jamais podem
‘explicar’ o que somos ou responder a perguntas sobre o que somos, pelas simples
razão de que jamais nos condicionam de modo absoluto. Esta sempre foi a opinião
da filosofia, em contraposição às ciências – antropologia, psicologia, biologia, etc.
– que também têm no homem o seu objeto de estudo. Mas hoje podemos quase
dizer que já demonstramos, até mesmo cientificamente, que, embora vivamos
agora, e talvez tenhamos que viver sempre, sob condições terrenas, não somos
meras criaturas terrenas.15
Portanto, a liberdade de pensamento é um direto básico ao homem e instrumento para
a construção de sua auto-crítica individual e social, a manutenção para essa liberdade ainda
encontra-se em linhas de desenvolvimentos e conquistas. Ayaan Hirsi Ali demonstra que o
Sistema Político Democrático Liberal do mundo moderno infelizmente não supre a demanda
social atual, não é preciso um novo modelo de ajuste, mas sim uma melhor instrumentalização
destas ferramentas institucionais que tragam um melhor diálogo e compreensão das tradições
religiosas e que levam a garantia da liberdade a todos.
POST SCRIPTUM
“ Se esta palavra é acessível é que nenhuma palavra verdadeira é apenas palavra do sujeito,
já que é sempre para ajudá-lo na mediação a um outro sujeito que ela opera, e que por isso
está aberta à cadeia sem fim – mas não sem dúvida indefinida, pois ela se fecha – das
palavras em que se realiza concretamente, na comunidade humana, a dialética do
reconhecimento. ( J. LACAN)”
15
ARENDT, Hanna. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.19.
53
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