CAMINHADAS - UFG_ FINAL.pmd

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CAMINHADAS - UFG_ FINAL.pmd
UFG Universidade Federal
de Goiás
Caminhadas de universitários de origem popular
UFG
UFG
Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão.
O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores.
Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
Organização da Coleção:
Monique Batista Carvalho
Francisco Marcelo da Silva
Dalcio Marinho Gonçalves
Aline Pacheco Santana
Programação Visual:
Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ
Coordenação:
Claudio Bastos
Anna Paula Felix Iannini
Thiago Maioli Azevedo
C183
Caminhadas de universitários de origem popular : UFG / organizado por Ana Inês Souza,
Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009.
120 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular)
Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e
as Comunidades Populares.
Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro.
ISBN: 978-85-89669-46-7
1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração
universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I.
Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI.
Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares.
V. Universidade Federal de Goiás. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatório
de Favelas do Rio de Janeiro.
CDD: 378.81
Ministério da Educação
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares
Organizadores
Jailson de Souza e Silva
Jorge Luiz Barbosa
Ana Inês Sousa
UFG
Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ
Rio de Janeiro - 2009
Coleção
Presidente da República
Luiz Inácio Lula da Silva
Autores
Alan Rodrigues de Azevedo
Átila Carvalho Dias
Ministério da Educação
Fernando Haddad
Ministro
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e
Diversidade – SECAD
André Luiz de Figueiredo Lázaro
Secretário
Bruna Priscila Brito Ribeiro dos Santos
Edilto Rodrigues da Silva
Fabiana Leonel de Castro
Fran Rodrigues
Giselle Vieira dos Anjos
Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI
Armênio Bello Schmidt
Gisely Carvalho Ferraz
Coordenação Geral de Diversidade – CGD
Leonor Franco de Araújo
José Gomes de Vasconcelos Neto
Jenhiffer C. de J. Medeiros
Kamyla Faria Maia
Letícia Alves Domingos
Lilian Gomes dos Santos
Programa Conexões de Saberes:
diálogos entre a universidade e
as comunidades populares
Jorge Luiz Barbosa
Jailson de Souza e Silva
Luciene Araújo de Almeida
Maiana Gomes Magalhães da Silva
Marcelo da Silva Rodrigues
Coordenação Geral
Márcia Daniele de Souza Carvalho
Angelita Pereira de Lima
Maria Madalena de Oliveira e Sousa
Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFG
Adalberto Luiz Matias Júnior
Adriane Damascena
Coordenação Pedagógica
Anselmo Pessoa
Coordenação de Estrutura e Logística
Geovana Reis
Coordenação da parceria com o Programa Escola Aberta
Edward Madureira Brasil
Reitor
Benedito Ferreira Marques
Vice-Reitor
Anselmo Pessoa Neto
Pró–Reitor de Extensão
Micaelle Juliano Vieira
Salathiel Gomes Carvalho
Sidiclei Ferreira Leite
Taísse Dias Guimarães Souza
Tertuliano Rodrigues Pereira
Vandimar Marques Damas
Prefácio
A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.
A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela
melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma
intensa e sistemática esses objetivos.
Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta
contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um
lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,
por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas.
Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na
cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse
Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de
Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou,
inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos
o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS,
UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os
estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC,
UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar,
UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB.
Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma,
ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como
pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em
comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de
1
A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao
menos 35 bolsistas.
práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem
popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição,
ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais.
Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do
Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19
publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes
e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses
livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que
contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das
camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os
cursos com menor prestígio social.
Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais
justa e uma humanidade cada dia mais plena.
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Ministério da Educação
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro
Sumário
Apresentação
Os donos da história
Angelita Pereira de Lima
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Parte 1 - Andar, tropeçar, cair. levantar, saltar obstáculos e ser feliz!
Histórias de nossas vidas
Caminhada de um universitário liso, leso e louco. Compra fiado e pede o troco
Salathyel Gomes Carvalho
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Sou negra, sou mais uma para somar
Fabiana Leonel de Castro
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Não é apenas sonho, é muita luta
Tertuliano Rodrigues Pereira
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Inegável luta
Gisely Carvalho Ferraz
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“Minha história”
Maria Madalena de Oliveira e Sousa
Em busca do direito de sonhar
Adalberto Luiz Matias Júnior
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Panificadora Santo Cristo
José Gomes de Vasconcelos Neto
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Com várias pedras se forma uma caneta!!!
Bruna Priscila Brito Ribeiro dos Santos
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Parte 2 - Em algum lugar no caminho, um sonho me fez andar
Uma história de sonhos, tombos e vitórias
Letícia Alves Domingos
A orquestra dos sonhos
Kamyla Faria Maia
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“Pedaços de mim”
Luciene Araújo de Almeida
O que está em mim
Fran Rodrigues
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Parte 3 - A cada dia de luta, não se pode parar, nem desistir. É preciso continuar.
Menina do pé de manga
Márcia Daniele de Souza Carvalho
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Objetivos e força de vontade fazem a diferença
Átila Carvalho Dias
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Dona da minha história
Taísse Dias Guimarães Souza
“A espera de um milagre”
Alan Rodrigues de Azevedo
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O testemunho da sobrevivente
Jenhiffer C. de J. Medeiros
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Sou pequenina e também gigante
Lilian Gomes dos Santos
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Parte 4 - A cada passo, aprendizado e vontade de transformar o mundo
O sertão mora em mim
Vandimar Marques Damas
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Educação para romper
Edilto Rodrigues da Silva
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O bater das asas de uma borboleta pode causar um tufão
do outro lado do planeta
Maiana Gomes Magalhães da Silva
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Longo caminho até a universidade
Marcelo da Silva Rodrigues
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Elogio à mediocridade
Micaelle Juliano Vieira
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Não vim até aqui para desistir agora
Giselle Vieira dos Anjos
“Caminho suave”
Sidiclei Ferreira Leite
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Apresentação
Os donos da história
Uma vez, o escritor Umberto Eco nos convidou para fazer “passeios” pelo bosque da
ficção1, numa tentativa de mostrar que a entrada nesse bosque é possível mediante um
acordo ficcional entre leitor e autor. Esse “acordo” é a aceitação de que os fatos/personagens extraordinários e “irreais” sejam assimilados com base na experiência do mundo real.
E assim torna-se possível a vida ficcional.
Por caminho e objetivos inversos, convidamos os leitores a fazer um acordo real com
os/as autores/as desse Livro Caminhadas. Convidamos a aceitar as realidades aqui narradas
como a simbolização possível de uma experiência de vida, e buscar compreender que se
trata de uma realidade muitas vezes impensada e invisível, uma quase ficção para universidade pública brasileira.
O Livro Caminhadas é uma lente com poder de ampliar as histórias, contadas de
próprio punho pelos estudantes de origem popular. As imagens, cenas e fotos aqui descritos
revelam o quanto o ensino público superior está despreparado para receber uma parcela
importante de jovens que ingressam, por uma estratégia ainda incompreendida, no interior
de seus cursos.
Essa lente está focada nas trajetórias de 25 bolsistas do Programa Conexões de Saberes da Universidade Federal de Goiás, narradas aqui, com sofrimento e superaração. O movimento proposto foi o de recontar a vida familiar e social, mediada e simbolizada pela
trajetória estudantil. A escrita foi um processo de encontros e desencontros: com familiares;
lembranças amargas, estrutura social deficiente. Com a infância, amigos, amores e oportunidades agarradas como se tivessem sido “a última chance”.
As narrativas contidas nesse livro não podem ser confundidas com dramas individuais. As mães, tão presentes nessas histórias, são mulheres que pertencem a uma sociedade de valores simbólicos que desqualificam ou subjugam o sujeito feminino, o negro, o pobre. Os pais, quase sempre ausentes, são homens impregnados de uma “verdade” masculina perversa e condenados a um jogo de poder em que aos homens não é
permitido falhar.
Cada texto revela, ainda, uma questão educacional sobre a qual os sistemas públicos
de ensino brasileiros silenciam-se: a meritocracia. A vida desses estudantes é pautada,
desde o primeiro dia aula, no ensino fundamental, até a colação de grau, por este sistema
meritocrático, que muitas vezes abriga preconceitos sociais e raciais.
1
ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Companhia de Letras, São Paulo, 1994.
Universidade Federal de Goiás
9
Contraditoriamente, todos os textos mostram o sistema educacional como uma porta
entreaberta. A educação formal é considerada um modo de superar a condição social e
humana, um vetor dos desejos e vontades. E, ao mesmo tempo, torna-se o próprio obstáculo
a ser superado. As estratégias familiares ou individuais para a transposição dessa porta ou,
até mesmo, para escancará-la é a transversal desse livro.
Angelita Pereira de Lima
Coordenadora do Programa Conexões de Saberes da UFG
Parte 1 ANDAR, TROPEÇAR, CAIR.
LEVANTAR, SALTAR OBSTÁCULOS
E SER FELIZ!
HISTÓRIAS DE NOSSAS VIDAS
Caminhada de um universitário liso, leso e
louco. Compra fiado e pede o troco
Salathyel Gomes Carvalho *
O estudante de origem popular é, acima de tudo, um forte. Desde o nascimento é
impossibilitado de ter acesso à educação. Custa a concluir o Ensino Médio e, só se for
guerreiro, consegue entrar na universidade pública, que é elitizada, e quando não consegue
impedir seu acesso, faz de tudo para que você não conclua seus estudos. Este processo é
humilhante. Muitas vezes não temos a grana nem do coletivo, enquanto os colegas vão de
carro importado para a aula. E há humilhação de colegas da sala de aula que só olham o
próprio nariz e fazem de tudo para nos diminuir.
A história que vou contar é de um menino como nós. O nome dele é Salathyel, mais
conhecido como Salada. Ele achou que ia conseguir estudar na Universidade Federal de
Goiás, coitado! Estuda cedo, trabalha à tarde com o seu pai e ainda é negro. Que rotina! Que
hora será que ele estuda? Não sei. Sei que ele tem um objetivo louco, mas tem um objetivo
e é o que vale. Seu pai Sr. Edmundo é mecânico de caminhão, “graxeiro”, trabalha o dia
“inteirim” para garantir para os filhos o pão que não teve na infância. Sua mãe, Dona Neusa,
é manicure, pega sua bicicleta, põe os meninos na garupa, Salada e sua irmã Karol, leva à
escola e vai, de casa em casa, arrumar unha a domicílio até dar a hora de buscar as crianças.
Certo dia, Salada conseguiu meia bolsa em uma escola particular de Goiânia. Seu tio,
João, pagava a mensalidade e seu pai, aos trancos e barrancos, o material didático. Mas
parar de trabalhar de jeito nenhum, cabeça vazia é a oficina do Diabo. Salada continuou
trabalhando na oficina com seu pai. As notas? Lá embaixo, quase levou bomba. Seu pai o
deixou estudar até passar de ano, mas ele tinha que voltar a trabalhar pra não virar vagabundo. Só que até hoje ele não voltou para a oficina mecânica.
Resolveu prestar vestibular para Engenharia de Alimentos. Ninguém, nem eu, acreditava que ele iria prestar vestibular, menino ousado! Mas ele é um menino bom e resolveu
entrar para a igreja, participar de grupo de jovens e da PJMP, Pastoral da Juventude do Meio
Popular. Isso lhe deu um impulso e cada vez mais o menino estudava. Os pais estavam
gostando, pelo menos não estava na rua. Mas havia quem dissesse: aquele filho do Edmundo
é preguiçoso.
Chegou o grande dia do Vestibular 2003 da Universidade Federal de Goiás. Com
expectativa total, nosso herói fez a prova e não tirou da cabeça que tinha passado. Sua mãe,
com medo da decepção do seu filho, o preparava para o pior. Depois de alguns meses saiu o
resultado. E não é de ver que ele passou? Uma galera do grupo de jovens também conse* Graduando em Engenharia de Alimentos pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
13
guiu. Foi alegria para uns, inveja para outros. O negrinho de Aparecida de Goiânia foi o
primeiro universitário de Universidade Federal da família, mesmo sem ter tudo nas mãos.
Não teve festa, mas o coração de Salada estava em festa. Até eu dei parabéns para ele, pois
eu não acreditava em seu potencial.
E agora, era tudo maravilhoso? Mentira. Começaram as aulas e logo o RU, Restaurante
Universitário - que saudade do bandejão! - ficou de greve. Mas não custava levar uma
marmita pra “facul”, isso pra ele era moleza. Agora, o batalhador enfrenta novos monstros,
os alunos do seu curso, integral por sinal. Eles sempre o colocavam no seu lugar, “a ralé”, e
deixavam bem claro que ele era da periferia. A universidade não dá espaço na pesquisa para
estudantes pobres. Eles não têm tempo, muitas vezes são negros e “negro não pensa”.
Salada estudava o dia inteiro e como não tinha papai rico, trabalhava a noite, até “uma da
madruga” e entrava na aula sete e meia da manhã do outro dia. Rotina pesada, mas isso era
“moleza”, nosso herói já estava acostumado.
Em 2006, Salada passou a fazer parte de um grupo de estudantes que enfrentam problemas semelhantes aos seus e tinham a mesma origem. Parecia que ele voltava para a PJMP,
mas dessa vez era diferente. Salada já era adulto, já se chamava Salathyel, Arroz. O grupo
chama-se Conexões de Saberes, discute ações afirmativas e estuda o acesso e a permanência
de estudantes de origem popular na UFG. Lá ele fez vários amigos com objetivos em comum, e luta para que estudantes de sua origem consigam ter acesso a universidade pública,
que é deles, e não desistam com qualquer avalanche de pedras do caminho.
Agora não tem jeito Salathyel vai se formar. Diploma na mão, família feliz. Mas sua
luta não termina. Não sei se vai conseguir um emprego digno, com salário ideal para a sua
capacitação. Ele carrega no coração e na pele uma raça linda que desde sempre “levou o
Brasil nas costas”. Hoje isso não é reconhecido, mas “eu sou guerreiro, sou trabalhador,
todo dia vou encarar com fé em Deus e na minha batalha.”1
1
Trecho de música - “O Rappa”
14
Caminhadas de universitários de origem popular
Sou negra, sou mais uma para somar
Fabiana Leonel de Castro*
“de esgoto a céu aberto e parede
madeirite de vergonha eu não morri
tô firmão eis me aqui”
Racionais MCs
“Meu pai veio de Aruanda e minha
mãe é Iansã”
Bloco Afro Akomabu
Fabiana: fava, semente que cresce. Desde que descobri o significado do meu nome me
apropriei positivamente dele. Crescer, para mim, é me superar. Crescer não só para o alto,
mas para todos os lados, inclusive para baixo. E crescer para baixo é se aprofundar. Esses
períodos nem sempre são tranqüilos. Hoje, no 5º ano de Ciências Sociais (complementação
em Licenciatura), acredito que esse período na universidade foi o mais transformador e
desafiador para mim.
Na verdade, alguns períodos do nosso crescimento são tão
confusos que nem percebemos que se trata de crescimento.
Podemos nos sentir hostis, zangados, chorosos ou histéricos, ou
deprimidos. Jamais nos ocorre, a não ser que encontremos por
acaso um livro ou uma pessoa capaz de explica, que estamos em
processo de mudança, de crescimento espiritual. Sempre que
crescemos sentimos como a semente nova deve sentir o peso e a
inércia da terra, quando procura sair da casca para se
transformar numa planta. Geralmente não é uma sensação
agradável.
Alice Walker, Vivendo pela palavra
Da infância na escola, me lembro de poucas coisas -acho que a memória tratou de
apagar parte delas. Até a quarta série estudei em cinco escolas diferentes, por causa de
mudanças de casas, que eram de aluguel, e uma mudança de estado, de Goiás para Minas
Gerais. Para minha mãe, esta foi uma tentativa mais drástica de transformação, motivada
* Graduanda em ciências Sociais pele UFG.
Universidade Federal de Goiás
15
principalmente pelo alcoolismo do meu pai e pela doença do meu avô, que estava em
Minas. Ela acreditava que a situação mudaria se saísse do ambiente.
Das escolas que passei, me lembro que na primeira, de freiras, meninas e meninos
não podiam brincar juntos. Na segunda, evangélica, tínhamos que cantar o hino nacional
todos os dias, em fila, meninas e meninos também separados. A terceira, já em Minas
Gerais, a princípio eu adorei, porque era grande e tinha muitos alunos. No entanto, eu não
tinha amigas/os. Aliás, nunca fui comunicativa. Na hora do recreio, se brincava de Xuxa
e suas paquitas. Eu não podia brincar porque tinha a pele mais escura que a das outras
meninas e tinha o cabelo “de bosta de rolinha” - diziam elas. “A Xuxa e as paquitas têm
cabelo liso”. A quarta escola (uma sala de aula para quatro séries distintas) era na fazenda,
a seis quilômetros de onde morávamos, percurso que eu (9 anos) e meu irmão (8 anos)
fazíamos a pé.
Na quinta e última escola da primeira fase, fazendo a quarta série, estudei no bairro
que eu morava e morei até me mudar para Goiânia. Essa escola, diferente das outras, era na
periferia. Diferente de escolas públicas centrais. A estrutura era precária, não havia laboratórios nem bolas para a educação física e por “coincidência” quase todos os alunos/as eram
negros/as. Deles, vários já morreram ou estão presos (homens). Com ajuda dos meus irmãos
tentei me lembrar de quem, naquele ciclo de pessoas, continuou a estudar, não conseguimos
lembrar de ninguém.
Fiz 2ª fase do ensino fundamental e médio em outro colégio. Eu gostava muito dessa
escola. Era longe de casa, mas era o preço para se estudar em uma escola com um pouco mais
de estrutura. Quando entrei, na quinta série, me lembro das primeiras aulas perdidas porque
não podia entrar sem uniforme. Dos 10 aos 17 anos, a escola Estadual Lauriston de Souza
foi palco de alegrias e decepções. As últimas semanas do 3° ano do ensino médio foram
angustiantes, pois eu estava desesperada sem saber o que faria para continuar estudando. A
última noite, em especial, passei acordada sentada no sofá de casa até que meus pais se
levantassem. No início do outro ano, minha madrinha (fada-madrinha) me chamou para vir
morar com ela em Goiânia. Então, me mudei de Frutal, Minas Gerais, para Goiânia.
Em 2003, entrei na UFG depois de um ano de cursinho pago pela minha madrinha. Em
troca eu trabalhava no escritório dela. Na primeira semana, apesar da empolgação, me senti
sem chão e sem acreditar que tínhamos conseguido. Digo “nós” porque para que eu chegasse até aqui várias pessoas me ofereceram seus ombros, fosse para chorar as dores do caminho
ou para subir. Senti-me perdida quanto aos conhecimentos gerais que devia ter e não tinha,
quanto às pessoas diferentes de mim que haviam ganhado carro de presente por ter passado
no vestibular e eu não sabia nem como iria pagar o ônibus e a xerox. Fico pensando hoje
que a tentativa desse modelo de “universidade pública” é nos dizer “esse não é seu lugar”.
Felizmente já no primeiro ano conheci o Projeto Passagem do Meio - Qualificação
acadêmica para alunas e alunos negras e negros, por meio do professor Alex Ratts, que
depois se tornou meu orientador (no sentido mais amplo que essa palavra possa ter) e um
amigo muito amado. Fiz a seleção para concorrer a bolsa do Passagem, mas não fui selecionada e fiz parte assiduamente como bolsista voluntária. Posso dizer que esse projeto foi
um divisor de águas para mim não só academicamente. No início do segundo ano fui
bolsista de iniciação cientifica por seis meses do professor Alex, o que me ajudou muito
financeiramente como também para que eu pudesse me aproximar da pesquisa científica,
que é o quero continuar fazendo.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Gostaria, ainda, de exemplificar, com uma “historinha”, como alunas/os negras/os e
sem recursos financeiros vão ser vitimados na universidade hegemonicamente branca que
cuida para que os seus continuem se perpetuando como detentores do conhecimento. No
inicio de 2004, antes que as aulas se iniciassem, fomos encaminhados pelos coordenadores
do Passagem do Meio a falar com professores em nossos departamentos apresentar-lhes
histórico e conversar sobre uma possível orientação de PIBIC ou PIVIC (evidente que a
bolsa remunerada era a que precisávamos).
Iniciamos uma conversa com um professor do departamento, eu e um outro amigo, e
saímos dessa reunião com a indicação de que começássemos a escrever, e assim fizemos.
Meu amigo apresentou mais vezes rascunhos, do que seria o projeto. Tinha uma grande
insegurança para escrever, que permanece ainda hoje. Depois que se iniciaram as aulas
surgiu um boato na sala que uma outra aluna (branca) disse que a mãe dela (também professora universitária) era amiga desse professor e havia falado com ele e este garantiu que a
bolsa remunerada seria dela. Na véspera da entrega as regras do CNPq mudaram. A partir de
então o currículo da/o aluna/o não pontuava mais, só o do professor, e ele indicaria quem
seria bolsista remunerada/o e voluntária/o.
Com isso ele me avisou que indicaria o meu amigo para PIBIC (ele havia discutido o
projeto mais vezes) e nós duas para PIVIC. Quando saiu o resultado a filha da amiga dele era
PIBIC e eu e meu amigo PIVIC. Esse foi o primeiro momento estarrecedor para mim na
universidade. Pensei em desistir desse PIVIC, mas fui orientada pelos coordenadores do
Passagem a não abandonar. Foi uma experiência traumática e o período mais difícil tanto de
descontentamento acadêmico, como de muita dificuldade financeira. Tive problemas com
notas, pois não tinha dinheiro para xerox. No outro ano consegui, um PIBIC.
Ainda no segundo ano, alguns bolsistas voluntários e remunerados deste projeto começaram a se reunir para discutir a formação de um Coletivo de Estudantes
Negras/os. A formação do coletivo foi de extrema importância para mim e acredito
que também para as outras pessoas do grupo. É o lugar onde nos reconhecemos, onde,
com discussões e formações, não nos sentimos sós e fora de lugar. Essa formação, com
textos e vivências, é parte fundamental para que façamos nossas escolhas profissionais,
afetivas, acadêmicas, temas de pesquisa etc. Posso dizer que sou parte do coletivo e ele
é parte de mim.
Agora, já no final da graduação, com todas as dúvidas e inseguranças adquiridas e
algumas convicções, conheci o Conexões de Saberes, um Programa com uma concepção incrível. Quando conseguirmos colocá-lo em prática em sua amplitude aqui, tenho
certeza que muitos alunas/os de origem popular encontrarão força e razão para permanecer na universidade. A UFG foi uma das últimas universidades a integrar o Conexões
e, junto a isso, acho que a pouca experiência é a barreira que diariamente temos que
transpor.
Gostaria de terminar com um rap que não foi feito pensando na universidade, mas
em uma prisão. No entanto me apropriando dos estudos de Foucault sobre essas instituições ele faz muito sentido para mim.
Acharam que eu estava derrotada1/quem achou estava errado eu
voltei tô aqui/ se liga só escuta aí/ao contrário do que você
queria tô firmona tô na correria/sou guerreira e não pago pra
Universidade Federal de Goiás
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vacilar sou vaso ruim de quebrar/oitavo anjo do apocalipse
tenebroso como um eclipse/é seu pesadelo tá de volta no puro ódio
cheio de revolta/vou te apresentar o que você não conhece anote
tudo vê se não esquece/você verá que não deixei me envolver pra
sobreviver por aqui tem que ser/mesmo no inferno é bom saber
com quem se anda senão embaça vira desanda/vejo várias/os
irmãs e irmãos tomando back
(....)
aqui é foda não tem comédia/o clima é de tensão maldade inveja
(...)
descobri que além de ser um anjo
eu tenho cinco inimigos...
irmãs e irmãos de atitude moram comigo/manos de estilo (...)
Oitavo anjo, 509-E
1
Mudei a letra onde estava no masculino passei para o feminino
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Caminhadas de universitários de origem popular
Não é apenas sonho, é muita luta
Tertuliano Rodrigues Pereira*
Inicia-se aqui o relato de uma história
vivida,
sentida na pele e que alimenta sonhos e
move barreiras.
Nasci mergulhado e afogando em um rio de enfermidades. Aos poucos fui afundando,
rodando de hospital em hospital em busca de cura para a pneumonia dupla que me consumia, até chegar ao ponto de ser desenganado pela medicina e meus pais terem que se
conformar em levar-me para morrer em casa. Meus pais prepararam o funeral completo
(vela, caixão). Mas de forma inexplicável aquele bebê resistiu bravamente até chegar sua
cura pelas mãos de um velho conhecedor dos saberes populares que conseguiu fazer uma
combinação de ervas que me possibilitou estar vivo.
“A vida só pode ser entendida olhando-se para trás.
Mas só pode ser vivida olhando para frente.”
S. Kierkegaard
Morava na roça, por isso só comecei a estudar aos nove anos. Morávamos a 18
quilômetros da cidade. Aos sete anos, comecei a vender leite na cidade pra ajudar a
família e por isso não sobrava tempo para a escola: chegava em casa cansado e não tinha
forças para voltar. Quando eu estava com nove anos, meu irmão mais velho foi morar em
Santa Rosa-MG, que é a cidade que fica mais próxima à fazenda onde morávamos. Aproveitei essa oportunidade e pedi para meus pais me deixarem estudar e morar em Santa
Rosa com meu irmão, mas eles não deixaram, meio que preocupados com minha saúde,
que ainda não era totalmente normal.
“Todo homem, por natureza, quer saber”
Aristóteles
* Graduando em Filosofia pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
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Eu queria estudar de qualquer forma, então meu pai propôs que depois de vender o
leite eu deixaria as coisas na casa do meu irmão e iria estudar. Foi aí que tive meu primeiro
contato com os estudos na Escola Municipal Professor Zacharias Nunes da Silveira, onde
estudei o primeiro e segundo ano do primário. Depois fui para o Colégio Estadual Tenente
Salvador Ribeiro, e fiz até o quarto ano do primário.
Nessa época eu tinha 13 anos e ouvi falar pela primeira vez em faculdade e que para
chegar lá tinha que estudar muito e em colégio bom. Fiquei um pouco abalado, pois colégio
particular era totalmente impossível para mim. Foi aí que surgiu a oportunidade de ir morar
e estudar em um colégio agrícola de uma ONG italiana chamada OMG (Operação Mato
Grosso) que trabalha com educação de jovens. Disseram que o colégio era muito bom, falei
com meus pais e eles deixaram. Então eu fui e lá estudei até a oitava série, na cidade de São
Salvador ,Tocantins, no Colégio Agrícola Dom Bosco.
Saindo de São Salvador eu fui morar em Goiânia com minha irmã por um ano, trabalhando de entregador em um supermercado e estudando à noite. No final do ano de 2002, eu
percebi que se continuasse assim eu não conseguiria realizar meu maior sonho, que era
cursar filosofia em uma universidade pública. Então eu voltei novamente para Tocantins e
fui para Palmas. Lá morei com o Frei Felisberto, um padre amigo da minha família, estudei
em um colégio um pouco melhor e pude me dedicar um pouco mais aos meus estudos. Aí
fiquei durante todo o ano de 2003.
No início de 2004 surgiu uma oportunidade boa, o Frei Felisberto sabendo da minha
intenção de estudar, me indicou o Seminário São José em Porto Nacional Tocantins onde
ofereciam um estudo muito bom em um colégio chamado Sagrado Coração de Jesus. Eu
imediatamente aceitei a idéia, pois era minha oportunidade de fazer o terceiro ano do
ensino médio de forma que me daria uma base melhor para o vestibular e fui morar neste
seminário durante todo o ano de 2004. Em meados de 2005, voltei a Goiânia para me
preparar para o vestibular, fiz um semestre de cursinho nestes mais baratos, que era o que eu
conseguia pagar com meu salário de call center em uma empresa de telefonia móvel.
“A esperança é o sonho do homem acordado.”
Aristóteles
No final de 2005, fiz o vestibular da UFG, consegui passar e assim abri a primeira porta
para realizar um dos meus maiores sonhos. Dessa forma, cheguei na universidade.
Cheguei muito empolgado, mas quando me deparei com os obstáculos de permanência eu notei que não seria nada fácil. Na UFG a assistência estudantil é muito precária. As
casas de estudantes não são assistidas como deveria ser pela universidade. Deparei-me com
a falta de dinheiro para comprar livros, tomar café da manhã, pagar ônibus, tirar cópias. Isso
me levou a continuar trabalhando e não conseguir um bom desempenho no primeiro semestre. No segundo semestre procurei bolsas para me ajudar a me manter e não tinha nenhuma
disponível e assim eu fiquei um semestre inteiro em péssimas condições, matei muita aula
por falta de dinheiro para ir ao campus e novamente não fui tão bem como esperava.
Como negro de baixa renda, é evidente que sofri muitos preconceitos por parte de
professores e colegas de sala, mas isso não conseguiu me interromper como infelizmente
acontece com tantos outros negros que pelo preconceito e pela depreciação desistem de
seus sonhos. Agora que já estou nesse mundo universitário que lamentavelmente não havia
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Caminhadas de universitários de origem popular
me incluído em seus planos, pois foi planejado para uma minoria na qual eu não estou
englobado, vou lutar para conseguir vencer e assim ajudar a criar soluções para que esse
indispensável meio de difusão de conhecimento (a universidade) chegue a todas as camadas da sociedade.
Universidade Federal de Goiás
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Com várias pedras se forma uma caneta!!!
Bruna Priscila Brito Ribeiro dos Santos*
“Quando nasci, um anjo torto
Desses que vivem na sombra
Disse: Vai Bruna! Ser brasileira
Nessa terra forasteira
Viver uma vida de cão
Sonhar, lutar, trabalhar
Pra fazer da vida uma lição!”
Baseado no “Poema de Sete Faces”
de Carlos Drummond de Andrade
Meu nome é Bruna Priscila e minha história começa no dia 26 de outubro de 1986,
quando nasci no Hospital Samaritano de Goiânia-GO. Minha mãe já tinha perdido três
filhos devido a complicações no parto e somente meu irmão (10 anos mais velho que eu)
havia escapado. Meu nascimento foi complicado e também tive uma infecção hospitalar
que quase me levou a óbito. Eu era muito magra, muito pequena e fraca, mas mesmo assim
consegui sobreviver.
Morávamos num bairro chamado Vila Alvorada e a nossa casa era muito pequena, com
telhas caindo e chão de terra batida. Meus pais me matricularam para fazer a pré-alfabetização no colégio SESI, próximo de casa. Esse colégio era conveniado com a rede estadual de
ensino e pagávamos uma taxa irrisória. Estudei lá do pré-alfabetização até a quarta série.
Comecei a me destacar nos estudos, amava estudar lia vários livros literários e sempre
estava entre as melhores alunas da sala. Terminei a quarta série como aluna destaque pelas
notas, esforço e obediência.
Na 5ª série, fui matriculada na Escola Estadual Polivalente Tributária Henrique Silva.
Minha mãe já sabia da fama das escolas públicas que ficavam perto de casa, e então escolheu uma escola mais longe, em um bairro de classe média alta. Ela julgava que iria me
livrar das “más amizades”, das drogas, roubos e brigas. Com a mudança comecei a utilizar
o ônibus como meio de transporte.
Doce engano da minha mãe!!! A escola era até organizada, distribuía lanches e livros.
Em contrapartida, a sala era lotada, com muita bagunça, professores estressados, drogas do
lado de fora do portão, brigas violentíssimas. Sem contar que minha primeira nota vermelha
* Graduanda em Enfermagem pela UFG.
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Caminhadas de universitários de origem popular
em Matemática foi no primeiro bimestre desse colégio. Não consegui agüentar, chorei tanto
que a professora, Gerciara, me deu um trabalho para que eu pudesse recuperar a nota. Mas
esse auxílio não me livrou da nota vermelha. Meu mundo desabou e, mesmo com 11 anos,
jurei nunca mais tirar nota vermelha e consegui essa proeza até concluir o ensino médio.
Enquanto isso, lá em casa, havia muitas brigas, agressões físicas, verbais e morais
porque meu pai bebia, traía e batia muito na minha mãe. Eu e meu irmão presenciávamos
tudo. Hoje penso que os estudos funcionaram para mim como uma espécie de válvula de
escape, para sair do lar conturbado que vivia.
Não posso me esquecer de que eu brincava muito na rua perto de casa. Sinceramente, o ato de brincar todos os dias com os pés descalços na terra me proporcionava
muita alegria. Brincávamos de queimada, vôlei, futebol, barra manteiga, pique-esconde... Ahhhh, que saudades.
Ah! Que saudades eu tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!”
Casimiro de Abreu (1839-1860), Meus Oito Anos
No caminho, o Ensino Médio
Antes de concluir a 8ª série, começou o impasse. Meus pais não tinham condições de
me matricular em um colégio particular. Eu já me desatinava por medo do vestibular e
porque não teria chance de concorrer com os alunos das escolas privadas. Vale ressaltar que
eu estava na 8ª série.
Então meu amigo Vinicius me falou que estava fazendo cursinho para cursar o Ensino
Médio no Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás, CEFET-GO. Todos diziam
que o ensino de lá era bom, que havia vários laboratórios (informática, biologia, química)
e o melhor: ERA DE GRAÇA.
Conversei com minha mãe. Ela pegou dinheiro emprestado no banco e pagou o cursinho. De agosto a novembro eu estudava de segunda a sábado. Minha rotina era ir à escola
de manhã, voltar para casa de ônibus, almoçar, ir para o cursinho de ônibus e voltar somente
às cinco horas da tarde. Neste cursinho percebi que meu colégio era fraquíssimo. Havia
várias matérias que eu nunca tinha visto.
Ufaaaa... essa correria me rendeu aprovação no CEFET-GO e também um refluxo
esofágico e, conseqüentemente, emagrecimento. Tornei-me uma pessoa muito ansiosa, fechada com meus sentimentos e triste.
Vale a pena citar uma pessoa que teve fundamental importância nessa minha primeira aprovação e na minha vida inteira: minha mãe. Mesmo com as dificuldades de casa,
com constantes agressões, com pressão no serviço e o mundo desmoronando em sua
cabeça ela sempre falava que acreditava em mim, que me via vencendo na vida, que os
estudos eram a única coisa que ela podia me dar e que ninguém iria tomar. Lembro-me de
Universidade Federal de Goiás
23
um dia que eu estava muito ansiosa querendo desistir do cursinho, me achando pequena
demais. Ela me colocou em seu colo e falou “Filha, ou você carrega pedra, ou você
carrega uma caneta. Qual você pretende carregar para o resto da sua vida???” Ela me
fortaleceu e me fortalece até hoje, sou profundamente grata a essa mulher que muitas
vezes deixou de comer para nos alimentar, que passou frio para nos cobrir. Nossa, como
amo minha mãe!
Ao entrar no CEFET-GO, passei a conviver com pessoas dos mais variados estilos.
Tive acesso a coisas que antes não tinha, como entrar para o time oficial de vôlei onde eu era
levantadora (meus 1,59 não permitia mais que isso), fazer aulas de informática, dança,
filosofia e sociologia.
Minha paixão pelos estudos continuava e logo encontrei a biblioteca do CEFET.
Meu hábito de ler foi aperfeiçoado, tive contato com vários autores de renome internacional e nacional como Machado de Assis, Sidney Sheldon, Carlos Drummond de
Andrade, Álvares de Azevedo... Lia de tudo um pouco e descobri que amava contos e
poemas.
Mas, mesmo no CEFET, a carência do ensino publico era evidente. Greves de 9 meses,
laboratórios de biologia e química em reformas (nunca conheci esses laboratórios), constante rotação de professores, drogas, bebidas.
No 2° ano do Ensino Médio, conheci Eduardo. Nos apaixonamos e começamos a
namorar. Ele era meu amigo, confidente, pai e meu amor. Ele me ajudou a amenizar os
efeitos que a proximidade do vestibular me causava.
Então chegou o 3° ano. Nesse ano meus pais se separaram. Isso mudou totalmente a
estrutura de casa, minha mãe virou a provedora do lar. O dinheiro que ela recebia como
telefonista dava só pra pagar as contas de água, luz, telefone e colocar comida em casa. Meu
pai não nos ajudava em nada e meu irmão havia casado e morava nos fundos de casa com
sua esposa e sua filha.
Pensei em começar a trabalhar, mas minha mãe queria que eu concluísse o Ensino
Médio primeiro.
Nessa época, eu não sabia o que fazer. Sonhava em ter um curso superior... um diploma... a tão sonhada caneta que minha mãe falava... mas só conseguia ver pedras desmoronando em cima de mim.
“Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.”
Carlos Drummond de Andrade, No Meio do Caminho
Driblando as pedras
Seis meses antes do vestibular, pensamentos de fracasso, desanimo e desespero faziam
morada em meu coração. Foi em uma dessas crises que fui apresentada a uma pessoa especial: JESUS CRISTO. Sempre ouvia falar dEle, mas foi a partir do momento que questionei
a existência do AMOR DE DEUS que pude ter a convicção de que esse amor é verdade!
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Caminhadas de universitários de origem popular
Comecei a estudar a Bíblia e falar com JESUS diariamente. Conhecer JESUS mudou minha
vida totalmente, consegui forças para superar a separação dos meus pais, descobri um amor
que é demasiadamente grande e conheci o caminho da fé !!!
“ O amor tudo sofre, tudo crê , tudo espera, tudo suporta”
I Corintios 13:7
Descobri, então, que haveria uma prova no Colégio COC (um colégio de classe média
alta) que distribuiria bolsas para os primeiros colocados. Como não tinha nada a perder fui
fazer a prova e adivinha... ganhei uma bolsa integral no semi-extensivo preparatório para o
vestibular! Pensei que, finalmente, iria disputar de igual para igual com todos, uma vaga na
universidade. Eu sentia na pele a desigualdade socioeconômica do país e passei a refletir
muito sobre a expressão “INJUSTIÇA SOCIAL”. Isso me causava um sentimento de indignação fortíssimo.
Minha rotina era acordar 5:30, ir para o cursinho, que terminava 12:30, pegar carona
com um amigo que estava na mesma situação que eu. Chegava no CEFET 12:50, almoçava
em 10 minutos e entrava na aula do CEFET as 13:00. Às 18:00, saía da aula e chegava em
casa às 19:00. Tomava banho, comia e estudava até meia noite ou três horas da manhã,
dependendo do dia e do cansaço.
“Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena ”
Ferreira Gullar, Dois e dois: quatro
Essa rotina diária, e a péssima alimentação que tinha, agravou meu problema de
refluxo e as pessoas começaram a suspeitar de gravidez (já que eu só vomitava). Estava
muito ansiosa, debilitada e pesava 40 quilos. Fiquei em um estágio tão deplorável que
minhas amigas e primos achavam que eu poderia estar também com anorexia. Minha mãe
não me deixava estudar tanto e isso me deixava nervosa, fraca e extremamente hiper-ativa.
Depois de passar muito mal, eu diminui minha rotina de estudos e não mais estudava
a noite. Consegui insenção da taxa para fazer o vestibular da UFG. Nessa época a taxa era de
90 reais e eu não tinha nem a metade do dinheiro.
Na hora de decidir meu curso (ate então queria algum curso da área de biológicas mas
não sabia qual), pedi para DEUS me orientar e mais uma vez pude ver a mão dele agindo na
minha vida. Prestei vestibular para Enfermagem e a concorrência naquele ano era de 19,22
por vaga.
No dia da prova estava quase morrendo, nada parava no meu estomago. Fazia ânsia
de vômito a todo instante. Quando cheguei na sala, meus pés e minhas mãos suavam e
tremiam. Tentava disfarçar para minha família não perceber, mas creio que foi impossível.
Fiz a prova e consegui passar para a segunda etapa.
Todos já me parabenizavam, afirmando que já era uma vitória conseguir passar na na
primeira fase da UFG. Fiz a segunda etapa mais tranqüila e, no ano de 2005, consegui ser
aprovada no vestibular para enfermagem em 3° lugar.
Universidade Federal de Goiás
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Foi uma alegria imensa, minha família vibrava... todos me parabenizavam... tinta,
sujeira, comemoração no Vaca Brava ( um parque onde os vestibulandos se reúnem após o
resultado do vestibular), sair pulando e gritando igual a uma doida. Nossa que alegria! Todo
meu esforço havia sido compensado.
Tenho que destacar uma frase da minha cunhada no dia do resultado: “Bruna, você é a
primeira pessoa que eu conheço que é pobre e que estudou em colégio público a vida toda,
que passa na UFG de primeira e ainda em terceiro lugar! Você tem é que apanhar mesmo, sua
sortuda!” Analisando agora percebo que em todos momentos JESUS estava comigo.
“A felicidade é como a gota
de orvalho numa pétala de flor
Brilha tranqüila
Depois de leve oscila
E cai como uma lágrima de amor”
Vinicius de Moraes, Felicidade.
Na faculdade, novas dificuldades e novos caminhos
Pensam que foi só alegria a partir daí?!? Não mesmo... mal começou o ano e os problemas voltaram. O dinheiro era escasso, meu pai não nos ajudava e minha mãe teve que se
submeter a uma cirurgia. Lembram-se do meu namorado? Pois é, ele terminou comigo no dia
da minha festa de comemoração da UFG. Estranho, né?!? Até hoje não sei porque ele fez isso.
Entrei na faculdade tentando pegar o mundo com as mãos e descobri uma realidade
totalmente diferente da que já havia vivido. Pessoas de um nível mais elevado que o meu,
outro estilo de vida.
Comecei a me sentir um peixe fora d’água e tive que lidar frente a frente com o
preconceito que, até então, não havia percebido. Tinha a sensação de que algumas colegas
tinham nojo de mim pq eu não tinha condições de voltar para casa e tomar banho. Então
ficava o dia inteiro suja e suada na faculdade.
Meu irmão passou a me ajudar financeiramente. Ele se transformou em um pai pra
mim. E só de pensar que ele nem concluiu o Ensino Médio me dói o coração.
Minha auto-estima estava muito baixa, estava sobrecarregada e não conseguia
estudar mais com tanto afinco, pois gastava horas dentro dos ônibus. Minhas notas
despencaram.
Foi aí que soube do programa Conexões de Saberes. No início não tinha muita idéia
do que seria, mas me inscrevi e fui selecionada.
Nesse programa encontrei pessoas maravilhosas, que marcaram minha vida com suas
experiências. Pude começar a formar a minha própria identidade, me aceitar como uma
estudante de origem popular, conhecer valores importantes e ajudar em casa nas despesas.
Consigo pagar o xerox e ainda comprar coisas que julgo importantes pra mim. Sou grata ao
PCS por tudo...
E pra concluir posso afirmar com toda convicção que: DEUS É O CARAAAAAA!!!!!
“DE TUDO, FICARAM TRÊS COISAS:
a certeza de que estamos sempre começando...
a certeza de que é preciso continuar...
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Caminhadas de universitários de origem popular
a certeza de que seremos interrompidos antes de terminar...
PORTANTO DEVEMOS
fazer da interrupção um caminho novo...
da queda um passo de dança...
do medo, uma escada...
do sonho, uma ponte...
da procura... um encontro”
Fernando Sabino, Poema da Reconciliação.
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Inegável luta
Gisely Carvalho Ferraz*
Gisely Carvalho Ferraz, estudante de origem popular, ingressou em uma universidade
pública. Seus pais nasceram pobres, mas conseguiram oferecer a seus três filhos, a oportunidade de estudar.
Em uma casa de palha, com mais 14 irmãos, numa cidadezinha do Maranhão, morava
sua mãe. Chegou a cursar até a quarta série e apenas dois de seus irmãos conseguiram, com
a ajuda de parentes, concluir o 2° grau. Quando criança vendia cocada de casa em casa, para
ajudar no orçamento doméstico. Mais tarde na função de manicure conseguia dinheiro para
a despesa de seus três filhos.
O pai de Gisely começou a trabalhar na roça ainda menino. Alguns amigos da família,
percebendo seu esforço e honestidade, ofereceram um emprego na cidade e a partir desse,
vieram outros melhores, até que conseguiu uma vaga no Banco do Estado de Goiás (BEG).
A esperança de oferecer melhores condições de estudo aos filhos,
motivou seus pais a migrarem do interior do Tocantins para
Goiânia. As críticas ao sotaque nortista eram praticamente
inevitáveis na pré-escola, mas isso era apenas uma das dificuldades
vividas pelas crianças nessa nova cidade. O frio que passaram
naquela época, na ida para a escolinha às seis horas da manhã, foi
uma coisa inesquecível. Ainda necessitavam tomar dois ônibus,
sempre cheios, num trajeto longo e desgastante até chegar à escola.
O sistema de meritocracia já se fazia presente em seu novo colégio. Constava no
boletim de cada aluno da quarta série sua colocação perante os outros colegas, baseada nas
notas que obtinham. A frase ’’Este é um aluno nota dez” era comum naquela escola, e trazia
a idéia que sua nota significava seu próprio valor. Foram as boas notas que isentaram Gisely
das “advertências” por jogar água do vaso sanitário nos colegas, entre outras traquinagens
que cometia.
Com a mudança de colégio, uma outra realidade se mostrou aos seus olhos. Os colegas
do colégio anterior, disputavam quem possuía a mochila mais bonita e a roupa mais cara. Os
colegas desse novo colégio, brigavam para levar a merenda escolar que sobrava, para a casa.
Alguns se sentiam constrangidos em dizer onde moravam. A violência era algo bastante
presente. Confronto entre gangues, ameaças e brigas, até mesmo entre as meninas, eram
* Graduanda em Enfermagem pela UFG.
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Caminhadas de universitários de origem popular
comuns em frente ao colégio. A polícia muitas vezes necessitava intervir.
Conviveu com a falta de professores, com as constantes greves e com a desmotivação
de alguns alunos, o que, por conseguinte, gerava descontentamento dos professores. Tudo
isso, causava uma grande dificuldade de transformar aquele ambiente em um lugar favorável à educação.
A aprovação no Centro Federal de Educação Tecnológico de Goiás (CEFET) no ano
2000 significou liberdade, oportunidade de crescimento pessoal e melhor qualidade de
ensino. No entanto, o maior legado desse período, foi sem dúvida, seus amigos (tão amados)
dos quais ela jamais esquecerá, e lutará para nunca perder o contato. Eles foram alguns dos
responsáveis por fazer dessa época a melhor de sua vida.
Uma gastrite nervosa foi o resultado da ansiedade causada pelo vestibular e, pelos
inúmeros compromissos: curso pré-vestibular, curso de inglês e curso técnico de meio ambiente à noite. As infecções de garganta e as viroses eram freqüentes em conseqüência do
estresse. A rotina de acordar às 5 horas e enfrentar dois ônibus lotados até chegar ao cursinho, também contribuíram para isso. Os médicos se transformaram em conselheiros: “Se
continuar assim, não conseguirá passar no vestibular”.
Contrariando algumas expectativas, não por falta de estudo mas pelo estresse, Gisely
conseguiu ser aprovada para o curso de enfermagem. A princípio se assustou com a excessiva cobrança dos professores em “ser o melhor” e com intensa rivalidade entre as colegas
de classe. E esse continua sendo um dos motivos do desconforto que sente ali. Observou
que a maioria de suas colegas são de classe média, o que reflete a realidade do acesso a
universidade em nosso país, onde os mais pobres dificilmente conseguem chegar a universidade.
O Conexões de Saberes representou para ela uma fonte valiosa de aprendizagem, que
provavelmente não teria em outro espaço da universidade. Além de a bolsa possibilitar a
compra de livros indispensáveis a seu curso e o acesso à Internet.
Universidade Federal de Goiás
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“Minha história”
Maria Madalena de Oliveira e Sousa*
Meu nome é Maria Madalena de Oliveira e Sousa, estou no 7º período do curso de
Educação Musical – Ensino Musical Escolar da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, onde cheguei no ano de 2004.
Sempre gostei muito de estudar. Desde pequena adorava brincar de escolinha e minha
parceira de brincadeiras e melhor amiga foi minha mãe, Dona Izaura Evangelista Tolêdo.
Sempre me lembro de meus pais, e sinto uma enorme saudade; sou agradecida a eles por
terem me dado a chance de viver e ser feliz a partir de meus três meses de idade quando me
escolheram para ser sua filha. Meu pai, Sr. Sebastião Lázaro de Oliveira, era jardineiro e
funcionário público; trabalhava como zelador em colégios da rede estadual de ensino. Ele
me ensinou coisas sobre as plantas e a terra, e também a ler e a escrever. Com os dois aprendi
valores como amor, respeito e honestidade.
Minha relação com a música é muito forte. Me lembro de aos 3 anos ter ouvido uma
música dos Beatles e me sentir triste com aquela melodia. Nunca me esqueci daquela
emoção que até hoje, depois de adulta, ainda sinto ao ouvir “Hey Jude”. E para cada
situação tenho uma música a ser associada, por exemplo: o nome de meu filho Daniel,
escolhido quando ouvi a música de mesmo nome, do cantor Elton John. Eu tinha mais ou
menos 8 anos.
Quando iniciei meus estudos pela primeira vez, foi um fracasso. Não conseguia ficar
longe de minha mãe, me sentia muito insegura. A escola era enorme e todas aquelas crianças
assustadas, ou chorando, ou correndo pelo pátio, me deixavam com medo. A professora,
uma ilustre desconhecida e insensível. Não fiquei nenhum dia pois pulei o muro e voltei
correndo e chorando para casa. Estava com 7 anos. Meus pais só me colocaram na escola
novamente quando completei 10 anos e a partir daí não parei.
Sempre fui o orgulho de meus pais, só tirava boas notas e nunca reprovei. Acho que a
única coisa que nunca tive nesta época foi a oportunidade de participar da banda de música,
porque era preciso pagar pelo uniforme e meus pais não tinham dinheiro, e eu nem sequer
cheguei a comentar nada lá em casa para não deixá-los constrangidos ou obrigados a mais
uma dívida.
Bom, quando estava no ensino médio, conheci minha alma gêmea. Namoramos e
noivamos em dois anos, e assim terminamos o terceiro ano Técnico em Contabilidade.
Casamos. Ainda não entendo porque fiz este curso que nunca me serviu pra nada. Acho que
é porque gostava de matemática. Mas não tinha nada a ver comigo.
* Graduanda em Educação Musical pela UFG.
30
Caminhadas de universitários de origem popular
Eu sonhava com música, respirava música. Não tinha idéia de como conseguiria chegar a faculdade porque não podíamos pagar um curso específico de música e não havia
escolas do gênero na rede pública. Então, deixei de lado meu sonho e me contentei em fazer
um curso básico de violão oferecido pelo SESI por 3 meses, pagando uma pequena taxa
mensal. Estava com meus 20 anos. Segui minha vida normalmente. Chegaram os filhos:
Ana Luiza, Daniel, Lucas e Estêvão. Com a ajuda de meu marido e de meus pais conseguia
conciliar o tempo entre eles e o trabalho na Secretaria de Ação Social do Estado de Goiás.
Em 1994, minha mãe faleceu devido a um enfisema pulmonar. Aí então tudo se tornou meio
sem graça. Éramos muito ligadas e tive muita dificuldade em aceitar esta situação.
Em 1996, Euvaldo, meu marido, me falou sobre um coral no SESC da rua 19, e que
estavam aceitando novos coristas. Entrei. Reiniciava assim meu sonho de me tornar uma
musicista. Algum tempo depois consegui passar em um teste do Centro Livre de Artes,
órgão da Prefeitura Municipal de Goiânia, para fazer musicalização e violão. Neste período
tive mais uma grande perda em minha vida, meu pai. E pelo mesmo problema que minha
mãe: enfisema pulmonar. Desta vez fiquei mal. Senti que realmente não conseguiria superar
isso. Meus pais eram muito importantes para mim e eu não sabia como seria dali pra frente.
Mas lá estava Euvaldo pra me ajudar a superar mais esta fase ruim.
Passados 3 anos, tempo de conclusão do curso de musicalização, resolvi apostar até
onde iria chegar e entrei para o curso preparatório do Centro Livre de Artes para o teste de
nível, específico para o vestibular de música da UFG. Apesar de ter ficado afastada da escola
há mais ou menos 18 anos (terminei meu 2º grau no ano de 1984), resolvi fazer minha
inscrição para o teste e para o vestibular. Estava muito incrédula quanto a minha capacidade e nem me dei ao trabalho de conferir o resultado. Meu professor de violão, Randal
Cordeiro, foi quem me ligou parabenizando pelo meu êxito. Fui uma das 6 alunas do Centro
Livre de Artes que conseguiu passar no teste da Escola de Música da UFG. O restante do
vestibular nem me interessava mais pois nem havia me preparado. Mas, para minha grande
surpresa, passei na primeira e na segunda fase das provas que me habilitariam para o curso
de Educação Musical – Ensino Musical Escolar, da Escola de Música e Artes Cênicas da
Universidade Federal de Goiás.
Entretanto, me manter no curso estava se tornando mais difícil do que todo o processo
de ingresso na EMAC. Primeiro, conciliar trabalho e estudo. Trabalhava nesta época na
Fundação de Apoio à Pesquisa – FUNAPE, como digitadora, e minha superior imediata não
teve a menor sensibilidade quanto a minha situação. Por dois dias na semana tinha aulas em
um pedaço do período vespertino e chegava atrasada consequentemente. Não teve conversa, ela foi taxativa: ou o emprego ou a faculdade. Com as despesas com xerox, transporte e
alimentação, eu desempregada por ousar querer adquirir um conhecimento tão sonhado e
ainda sendo menos um a contribuir com o orçamento da família, pensei: o sonho acabou,
tenho que desistir do curso.
Mas alguém lá em cima estava olhando por mim. Uma de minhas professoras, Silvana
Rodrigues, me avisou sobre as inscrições para um novo programa de extensão denominado
Conexões de Saberes, destinado a estudantes de baixa renda e oriundos de escolas públicas,
de origem popular. Foi uma correria porque já era o último dia de inscrição e eu moro
distante da faculdade, não estava com nenhum documento a não ser a identidade. Mas deu
tudo certo, fui contemplada e estou aqui, no último ano do meu curso e simultaneamente,
com mais 27 amigos com quem posso compartilhar minhas experiências, minhas frustra-
Universidade Federal de Goiás
31
ções, minhas expectativas. Sem medo de me sentir diferente devido a minha cor ou a minha
condição financeira.
“...e nossa história não estará pelo avesso assim, sem final feliz.
Teremos coisas bonitas pra contar. E até lá, vamos viver, temos
muito ainda por fazer. Não olhe pra trás – apenas começamos, o
mundo começa agora – apenas começamos.”
Legião Urbana
32
Caminhadas de universitários de origem popular
Em busca do direito de sonhar
Adalberto Luiz Matias Júnior*
Meus avós maternos criaram todos os seis filhos na roça, no cabo da enxada. Uma vida
pequena. Preciosa mas pequena. Minha mãe, graças à minha avó, terminou o magistério e se
formou professora, profissão que exerceu até recentemente se aposentar. Meu pai, filho de
paulistas, veio pra Goiás para trabalhar com meu tio, seu irmão mais velho, que era torneiro
mecânico. Estudou só até a 4ª (quarta) série primária, aprendeu a profissão do irmão e
venceu na vida pelo trabalho.
Com o tempo meu pai conseguiu ter sua própria oficina, e foi nessa época que nós
nos mudamos de Itapuranga-GO, onde nasci, a aproximadamente 180 km da capital, para
Itapaci-GO, cidade ao norte do estado, onde meus pais, na época recém casados, foram
tentar a vida. Moramos lá mais de vinte anos, onde eu fiz todo meu primeiro grau, e onde
estão os melhores momentos da minha infância e adolescência.
Assim que terminei a oitava série, eu era um garoto provinciano, filho de uma professora e um pai visionário, que saía do interior para a cidade grande, em busca do direito de
sonhar os seus sonhos e o de toda sua família que não cabia dentro de si.
Fui pra Anápolis-GO morar com meus padrinhos e estudar em um colégio que me
oferecesse condições de ingressar em uma Universidade, sonho dos meus pais, que não
tiveram essa oportunidade, e que desde cedo eu compreendi que a única forma de conseguir
realizá-lo era ser aprovado em uma Universidade Pública, uma vez que não teriam condições jamais de arcar com as despesas de uma Universidade particular pra me formar.
Sempre esteve muito claro tudo isso pra mim, e foi o que me fez estudar como um
louco os três anos do colegial que passei no Colégio Estadual Frei João Batista, em Anápolis,
que embora fosse público, oferecia um ensino de qualidade, e tive a oportunidade de estar
perto de pessoas de origem semelhante à minha, que comungavam comigo dos mesmos
ideais, e viam a vida da mesma janela que eu.
Conhecer pessoas que movem o mundo, promovem o amor, e nos ajudam a superar
nossos dramas e demônios, faz toda diferença, e não posso deixar de registrar que depois de
conviver intensamente com cada uma delas, algumas in memoriam, elas têm uma influência
imensurável na pessoa em que me tornei. Pessoas fortes e sensíveis que nunca deixaram que
a pobreza e a miséria espiritual fossem maiores que a material.
Com o término do segundo grau, e a frustração do primeiro vestibular, veio a maratona
angustiante de cursinho, e posso dizer que foi o período da minha vida em que mais me
lembrei de Deus e de como Ele move todas as coisas dentro e fora de nós. Hoje me lembro
com carinho e gratidão daquele tempo, mas com saudades hipócritas, porque me sentia
* Graduando em Direito pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
33
solitário, de coração, muitas vezes, partido, procurando um caminho pra seguir, uma direção, diante daquele cadáver que me sorria debochado, o vestibular.
Minha família sempre acreditou na educação como meio de transformação do universo ao nosso redor. E filho de professora, eu acabava estudando um pouco mais. Hoje vejo
como essa pedagogia foi imprescindível para que eu conseguisse romper esse ciclo de
exclusão e ser o primeiro da minha família a vir a ser um “doutorzinho”, como meu pai
sempre brincava, num orgulho que saltava aos olhos do “velho”.
Não tive escolha, meus pais e eu sempre tivemos certeza para qual curso eu estava me
preparando, e agradeço a eles por não terem me dado outra opção, embora só mais tarde eu
tenha me dado conta de que a escolha de um curso como o de Direito, para um garoto pobre
como eu, faria tudo ser muito mais difícil.
Ao todo foram quatro anos de privações e muito estudo, contando o colegial e o período
de cursinho, muitos conselhos, e muito apoio dos meus pais e padrinhos, sem os quais eu não
teria conseguido, e para os quais faço da minha trajetória uma dedicação diária.
No início do segundo ano de faculdade uma série de acontecimentos abalou minha
família. Nas vésperas de comemorar bodas de prata meus “velhos” se separaram e logo depois
meu pai veio, inesperadamente, a falecer, de uma forma que arrasou a todos nós.
Dias difíceis, que fizeram com que minha mãe e meu irmão viessem para Anápolis,
para ficarem mais perto da minha madrinha, uma fada nas nossas vidas, e de mim, na vã
tentativa de preencher aquele vazio que meu pai tinha nos deixado de repente. Minha mãe
passou por um longo processo até se recuperar da perda, e foi na Faculdade de Direito que
eu encontrei mais do que colegas de profissão, encontrei amigos.
O Direito me pariu de novo. É o meu segundo pai. Ensinou-me que a dignidade da
pessoa humana, é o princípio basilar. Que Direitos Humanos somos nós que promovemos,
cada um dentro do seu microcosmos. Disciplinou-me. Ensinou-me a colocar o respeito
acima dos meus preconceitos, e a entender que aquele que eu vejo diferente, diferente
também ele me vê.
Uma das belas lembranças que trago na memória é a da minha mãe lendo a bíblia pra
mim. E foi aí que aprendi o que era o Socialismo e despertei para a vontade de fazer
Direito e para a questão da Justiça Social. Compreendi que para mudar o sistema é necessário fazer parte dele, estar no centro do processo, e não à sua margem. Só assim é possível
acreditar que “amanhã, mesmo que uns não queiram a luminosidade, alheia a qualquer
vontade, há de imperar...”.
Tenho consciência de que estou em um curso historicamente elitizado, e do meu
papel nele. Sei da minha origem e das dificuldades que pessoas como eu passam para
conseguirem um lugar ao sol. Pra mim não foi nada fácil chegar até aqui.
Na faculdade me sinto apoiado, e poucos são aqueles que tentam me fazer sentir como
se ali não fosse o meu lugar, porque na visão deles o Direito é um instrumento de dominação
das elites. A justificativa para essas pessoas é a de que o mal, assim como o bem, também se
propaga. É o que dá equilíbrio à vida. Embora elas sejam exceções.
A educação que eu recebi dos meus pais e a oportunidade que eles me deram de
poder estudar e ingressar em uma Universidade Pública me dignifica muito, e fortalece a
idéia de que só a educação pode nos levar à lugares inimagináveis.
“Encare seus medos e viva seus sonhos...”
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Caminhadas de universitários de origem popular
Panificadora Santo Cristo
José Gomes Vasconcelos Neto *
Batedeira ligada. Vinte quilos de farinha, um tanto de açúcar, um pouco menos de sal,
adicionar água e deixar misturando por cerca de trinta minutos. Enquanto isso pese o
fermento e espere a massa dar liga para acrescentá-lo.
Não pare, separe as estufas e fôrmas melhores, passe óleo vegetal na mesa e prepare a
balança. Com a massa pronta, retire o grande bolo da batedeira, separe em unidades de 5 kg,
distribua cada unidade separadamente até preencher por igual a superfície de um maquinário
de fatiar. O resultado são trinta pedaços menores.
Vejo minha mãe com uma faca de corte na mão, junto à balança no preparo das bolas
de massa com cinco quilos. Marcella, minha irmã, está sentada em um tamborete a espera
desta etapa do serviço, preocupada com alguma coisa que possa aparecer, olha para o alto,
sempre no rumo da janela daquela cozinha de padaria. A televisão está ligada, na ânsia pelo
último jornal do dia e sem poder visualizá-la.
Com a massa reduzida em centenas de pedacinhos do mesmo tamanho, estique a
massa e deixe uma das pontas mais finas. Um cilindro duplo era o que produzia os pães crus
enrolados em si próprios. Depois de distribuídos nas formas, fechar a estufa e esperar o
fermento fazer a massa crescer. O pão francês leva de 3 a 4 horas para inchar e ficar no ponto
certo de assar.
Minha irmã, com onze anos, é quem encaixa os pães na fôrma. Faz o serviço em cima
do tamborete em que há pouco estava sentada. Não porque seja pequena e tente ficar do
tamanho da máquina. O motivo são os ratos. Ratos grandes e esfomeados que sempre davam
o ar da graça nas sessões de trabalho na noite de Goiânia. Minha mainha, Léa, termina de
preparar a massa doce e vem ajudar a preencher as fôrmas. Ouvia-se o noticiário juntamente
com o ruído das máquinas.
O expediente da noite na padaria começava mais ou menos 23:00 e para mim acabava
lá pelas 4:00 da madrugada. A Marcella se deitava umas 2:00. Já minha mãe virava a noite,
para deixar tudo pronto até a abertura das portas às 5:30m da manhã.
Com o pão de sal pronto para crescer em paz e a massa das quitandas quase prontas
para o manuseio, partimos para a etapa mais divertida do trabalho. Fazer roscas trançadas,
compridas, redondas, pequenas, médias, grandes, pães de fôrma, bolinhas de pães de milho,
roscas com frutas cristalizadas e outros.
Desta vez o peso da massa era irregular. Se vendíamos uma rosca por quinze centavos
de real era um peso. Massas maiores, menores, de 200 gramas, 2 kg todas com diferentes
* Graduando em Comunicação Social-Jornalismo pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
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finalidades. Era divertido manusear e desenhar aqueles alimentos. Mas sinceramente, este
era um curto espaço de tempo.
Tudo devidamente preparado, misturo a massa de pão de queijo e deito na cama
improvisada ao lado de minha irmã. Quando minha mãe nos chama, algumas fornalhas já
estão assadas. Tudo ajeitado e com a padaria aberta, deixo minha família e vou para casa
tomar banho. Tinha 13 anos e não estudava em escola pública. A minha mãe, Dona Léa,
pagava caro para eu estudar em colégio particular. Quando a situação apertava e eu cogitava
sair do Colégio Adventista, não aceitava ouvir duas vezes.
O nome, Panificadora Santo Cristo, veio de quando morávamos em Leopoldo de
Bulhões-GO, com o mesmo ramo de comércio. Meus pais vieram de Pernambuco com meus
tios mais ou menos na década de 1980. No interior de Goiás, tive uma vida sossegada e feliz.
Nosso carro era uma Kombi para transporte de mercadorias, mas nossos passeios eram confraternizados sempre com muitas pessoas que eram boas demais.
Quando Fernando Henrique Cardoso se tornou presidente do Brasil o comércio se
modificou e vendas especializadas perderam espaço. O que antes era mercadinho ou supermercado foi adotado pelos hipermercados. Passaram a produzir pães de sal e aumentar a
concorrência. Atravessamos momentos difíceis que culminaram na separação de meus pais.
Com isso, no final de 1996 e sem meu pai, mudamos para o Jardim Guanabara, em Goiânia.
Alugamos uma casa que de bicicleta demorava uns 20 minutos da padaria. Cada um
tinha a sua e nossas idas em casa eram mínimas, só para dormir mesmo. Minha casa era perto
de um batalhão do Exército e todos os dias de manhã eu passava na frente dele. Trocas de
turno na guarita, exercícios e corrida em volta do campo de futebol, recepções com banda
marcial e muitos jovens chegando de ônibus coletivo. Depois pegava uma rua de terra e
passava do lado de uma das cabeceiras da pista do Aeroporto Santa Genoveva.
Ao final das aulas matutinas, voltava para a panificadora, almoçava, e só então liberava minha mãe para o descanso. Minha irmã podia ir para a aula e eu ficava no estabelecimento com as portas abertas até as 21 horas. Preparado para fechar a panificadora, permanecia à espera do padeiro, para ele trabalhar. Segunda-feira, quase meia-noite, nem acredito o
padeiro não vem de novo. Minha família volta, guardo as bicicletas, fecho a última porta, e
penso em mais uma noite em claro. Não quero nem saber, aula amanhã nem pensar.
Trabalho, estudo, trabalho
Neste colégio, o Colégio Adventista, convivi com um grupo social e religioso que nunca
tinha tido muita proximidade: os evangélicos adventistas. Os adventistas têm toda uma particularidade que os diferenciam dentro do segmento protestante. Não comem carne animal, a base
do nome adventista (advento) é a volta de Jesus e acreditam que o sábado é o dia da semana
criado por Deus para descanso e adoração, e assim não fazem nada neste dia a não ser orar.
Foi uma época boa, mas de religião não aprendi nada. O que aprendi tem a ver com o
convívio social. Enquanto que as idéias bíblicas não me seduziam, a união, participação e
companheirismo que ali havia me deixavam protegido e adaptado. Sempre sentei no fundo
da classe e me relacionava com todos do colégio. Era uma turma em que a maioria estava
junta desde o ano anterior e que menos da metade era adventista.
Enquanto não dava atenção para matemática e física, adorava ler os livros de geografia e história. Houve uma época em que três alunos (contando comigo) começaram a se
juntar no recreio para cantar. Pegávamos o balde de lixo, que era improvisado como
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Caminhadas de universitários de origem popular
batuque, e cantávamos de tudo. Logo vários outros alunos apareciam, muitos de outras salas.
Sei que aquilo nunca tinha acontecido naquele colégio, foi algo inesperado e que quebrou a
rotina dos intervalos de aula. Ficamos mais de um ano fazendo isso e a direção nunca conseguiu reclamar, pois era uma reunião saudável e divertida que nunca deu problema.
Lembro-me que dentre os funcionários do colégio havia dois deficientes físicos, queridos por todos e quem eram importantes para o funcionamento da escola. Tínhamos aulas
de religião e toda quinta os alunos eram reunidos, num auditório, para ouvir sobre fé e o
evangelho. O colégio era grande e simples, tinha suas regras educacionais religiosas, duas
quadras e vista bonita, que dava pra ver lá longe.
Mesmo estudando neste colégio particular, meus amigos eram de uma realidade muito
mais dura. Minha convivência pessoal era maior e mais forte no bairro em que morava.
Então transitava em vivências diferentes. Daquela de estudantes que viviam para estudar,
com almoço pronto e cama arrumada. E aqueles que estudavam com o estímulo oferecido
pelo ensino público de nosso país.
Saía pela noite do bairro indo aos colégios públicos para encontrar os amigos e,
muitas vezes, chegava na hora errada, porque a aula tinha acabado mais cedo, geralmente
por falta de professor. Outras vezes ficava mais fácil de encontrar a galera, pois as aulas
estavam paralisadas por causa de greve. Onde eu estudava isso não acontecia. Outro episódio bastante comum era o abandono dos estudos. Era muito difícil algum amigo meu que
terminasse um ano letivo. Fora que a maior parte já estava uns dois três anos atrasados.
Enquanto no Colégio Adventista a tarde dos meus colegas era ocupada com alguma
atividade, no meu setor a maioria não tinha ofício. Poucos trabalhavam regularmente. Passavam as tardes em frente do ginásio de esporte a conversar, tirar saltos, pegar rabeira na
avenida, e procurar o que fazer. E eu sempre estava na panificadora, era só ir lá. Todos os
trabalhos de colégio eram interrompidos por algum freguês.
O dia-a-dia neste período de minha vida era de pouca diversão. Mas conheci um
grande número de pessoas e fiz amizades inesquecíveis. O que vivi neste período faz parte
do que sou hoje. Valores humanos, olhar a pessoa por dentro, no fundo dos olhos, sem
observar vestuário e modos.
Na padaria da minha mãe, onde trabalhava de dia e a noite, mantinha contato com os
outros comerciantes e neste convívio os laços se tornam fraternos. O dono do pregão, o
chaveiro e seus filhos, a mecânica, do conserto de bicicletas, da lanchonete concorrente, os
funcionários da loteria, enfim, todos trocavam experiências e vivências.
Nas minhas horas de lazer adorava procurar rádios alternativas que na época ainda
eram chamadas de piratas. Conheci o termo rádios comunitárias a partir de um locutor
dessas rádios. Mas meu maior desejo era não ter que abrir aquela panificadora todos os dias.
Eu sempre estava ligado a saldos, gastos, dívidas e tudo era muita responsabilidade e
seriedade e não queria arcar com essas atitudes.
Família, vida nova e o Encontro
Quando passei para o Segundo ano do Ensino Médio, minha mãe perdeu o comércio
e ficamos a ver navios. Mas uma tia nos ajudou, ofereceu uma bolsa de estudos e pagou os
dois anos finais do Ensino Médio. Saímos do Jardim Guanabara e fomos morar no Parque
Amazônia onde vivemos até hoje. Este foi um momento muito delicado de minha vida
familiar, pois minha mãe entrou numa crise depressiva muito forte.
Universidade Federal de Goiás
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Uma mulher, chefe de família, trabalhadora que agora ficava o dia inteiro dentro de
casa por ser considerada velha (na época 42 anos) para o mercado de trabalho. Era uma
mudança brusca no rumo de sua vida. Foi duro, mas não menos enriquecedor. Não tinha
vergonha de andar a pé, ganhar cesta de alimentos, receber livros de donativo, cortar cabelo
em casa e ser presenteado com roupas usadas. Fazia disso minha força e o bom é que
ganhava muita roupa.
Mais uma vez parei em um colégio particular. Desta vez o nível de vida dos meus
colegas de sala era muito mais alto. Estudava próximo ao Parque Vaca Brava no Colégio
Campus. Na época, celular era para poucos e na minha turma grande parte o tinha. Computador, nem imaginava o que era, e uma parte já se deliciava com os bate-papos on-line. Nunca
tive problemas de convivência, era o que era e não me preocupava com essas diferenças.
Foi quando conheci minha esposa. Estudávamos juntos e começamos a namorar de
imediato. Fernanda, meu bem, que sempre cuidou de mim com aquele olhar apaixonado.
Quando passei a viver com a Fernanda tinha aonde ir, com quem ficar, abraçar, sorrir. Ela
trouxe alegria para minha casa, minha mãe gostou e gosta muito dela. Acho que até mais do
que de mim. Não tenho ciúmes não, na verdade eu gosto de vê-la na minha família.
No terceiro ano, tinha dúvidas do curso que escolheria, só decidi no dia de preencher
a inscrição, mas tinha certeza da instituição que tentaria estudar: a Universidade Pública.
Para chegar à Universidade Federal de Goiás tentei três vestibulares e nunca prestei
em universidade particular. Sabia que não tinha condições de pagar um curso superior. Era
questão de honra passar na UFG.
Após a primeira tentativa não coroada, arrumei um emprego de carteira assinada que
me levou a fazer cursinho noturno. Foi muito bom, pois trabalhei e estudei no Centro de
Goiânia e convivi com uma rotatividade muito maior e variada de pessoas. Trabalhava na
Roma Embalagens, próximo ao antigo Mercado Central de Goiânia.
Por mais que as pessoas me desanimassem, eu sabia que estaria na UFG. Tinha que ser
assim. Nesta fase me apeguei mais na leitura e afinei meu gosto por geopolítica. No serviço,
ouvia uma rádio que discutia política a manhã inteira. Passei a ler os livros literários com
gosto, não por obrigação.
No meu segundo vestibular, após a primeira fase, estava pronto, era desta vez, iria ser
um universitário. A prova escrita parecia feita a dedo para mim. Tudo relacionado a conflitos étnicos. Oriente Médio, Farc, ETA, IRA, ex - Iugoslávia, etc.
Fiquei tão empolgado com a prova, que nem lia o final das perguntas, já ia escrevendo. De repente o desastre, troquei várias questões de lugar. Fiz uma bagunça total e dancei.
Isso me abalou muito e pensei em desistir. Fiquei sem estudar e não cogitava mais fazer um
curso superior. Foi no mesmo ano em que me alistei no Exército.
No dia de me apresentar aos militares, deixei que Deus
“resolvesse”. Esperei até o final para ver os nomes escolhidos, até
pensei em conversar para ser voluntário, mas um cara fez isso antes
de mim, levou um carão e então fui embora sem nenhuma certeza
futura.
Mas depois de seis meses de indecisões e pressão de mãe e namorada, saí do emprego,
entrei num cursinho novamente e estudei muito. Passava horas em biblioteca pública,
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Caminhadas de universitários de origem popular
deixava de almoçar, aprendi a ler dentro de ônibus e com o seguro desemprego fiz assinatura de uma revista mensal, a Caros Amigos. No fim deu certo e me tornei acadêmico de
Comunicação Social em 2003. Era uma felicidade total.
A transformação que a universidade provoca é sem precedentes. A liberdade de atividades é muito maior. Com muito custo te faz adulto, pensar no futuro com força e determinação. Em conseqüência, muda muito de sua inocência e humildade. Tira certo prazer de
viver. Te deixa mais frio, ruim, chato e individual. É preciso ter consciência e percepção
desses pontos negativos, e notei estas mudanças em mim.
No início você se empolga, as dificuldades financeiras ficam esquecidas e o aprendizado recompensa o esforço. Mas com o tempo as exigências e independência pesam o que
não era mundo real se junta e faz seus anseios e necessidades serem presentes.
Depois de dois anos de total descrença profissional, fui selecionado para o Conexões
de Saberes de Goiás, que me trouxe mais consciência de minha responsabilidade como
cidadão. Pude colocar meu conhecimento em xeque e ver que tenho importância para a
vida.
No meu grupo de bolsistas antes de tudo procuro, como sempre foi em toda minha
vida, me relacionar com todos. Nas reuniões procuro sempre estar participando das discussões e incentivando os outros a estarem também emitindo idéias. O jornalismo passa hoje
por um momento obscuro e transformador.
O Conexões faz parte desta mudança, pois posso exercitar o que acredito e desenvolvo
como idéia de comunicação social. Trabalho com a interação na internet por meio de emails e um blog, além de incentivar a atividade em grupo ao fazer as cabeças pensantes
colocarem em prática o que pensam. Outro ponto em que ação é o registro por imagem e
palavras de nossos encontros. Tudo o que vivo e faço no PCS-Goiás já está nos meus planos
de exercício em sociedade.
Procuro escutar, com novo prazer, as pessoas que encontro no cotidiano. Saber o que
pensam, como vêem o mundo, a vida e suas problemáticas. Dizem que a revolução nos dias
de hoje é individual. O Conexões de Saberes mostra para mim que não. A união ainda faz a
força. E nós unidos, confiantes, acreditando nas mudanças, podemos trazer para as gerações
futuras uma Universidade e coletividade mais democrática, afirmativa e popular.
Universidade Federal de Goiás
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Parte 2 EM ALGUM LUGAR
NO CAMINHO,
UM SONHO
ME FEZ ANDAR
Uma história de sonhos, tombos e vitórias
Letícia Alves Domingos*
Minha mãe sempre me dizia que eu não deveria sonhar alto, pois se o meu sonho não
se realizasse, meu tombo seria muito grande. O problema é que eu sempre gostei de sonhar
e nunca tive medo de cair...
Desde julho do ano de 2006, por meio do Programa Conexões de Saberes, começo a
repensar alguns fatos que marcaram a minha história escolar, a precariedade da escola pública, a quase inacessibilidade da Universidade pública e, sobretudo, a dificuldade de permanência após o ingresso nessas instituições. Tais fatos infelizmente não fizeram parte somente da minha história vida, mas de diversos alunos de origem popular como eu.
Sou Letícia Alves Domingos, hoje estudante universitária negra e de origem popular,
componho juntamente com outras 24 pessoas o quadro de bolsistas no referido programa na
Universidade Federal de Goiás. Filha de um casal que formou suas famílias ainda muito
jovens, ele 16 e ela 15 anos, mas que construíram juntos uma história de luta e determinação. Minha mãe, Lusia Alves Ferreira, cursou até a sexta série do primeiro grau e é empregada doméstica, enquanto meu pai, Eliomar Antônio Domingos, fez até a sétima série e é
trabalhador rural.
Meus pais apesar de não terem um alto nível de escolaridade sempre proporcionaram
a mim e às minhas duas irmãs Eliene e Luciene o acesso a escola. Ensinaram-nos a importância de coisas que realmente são importantes na vida, o respeito aos seres humanos, aos
outros seres vivos e ao meio ambiente, a solidariedade, a união e a divisão. Sempre nos
mostraram o melhor caminho a seguir e dentre esses, o que nos conduziria a uma vida mais
digna e que nos ofereceria maiores opções, a educação. Além disso, fizeram de tudo para
que não nos faltassem os principais elementos de auxílio nessa caminhada: lápis, borracha,
caderno, livros e, quando podiam, uma mochila.
Tive também uma enorme influência religiosa na minha história, fui católica até os
treze anos, pois era a religião da minha família. Fiz até catequese e primeira comunhão. Aos
treze anos conheci, por intermédio de uma vizinha, uma igreja protestante, que passei a
freqüentar a partir daí. Meus pais sempre respeitaram as nossas escolhas e não fizeram
objeção à minha mudança de religião.
Considero a presença da Igreja importante no que concerne a perda de timidez, sociabilidade, solidariedade. Desempenhava atividades com comunidades populares e trabalhos com crianças. Em relação a questões que perpassam a religião e entram no campo
* Graduanda em Ciências Biológicas pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
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individual de fé, acredito que Deus teve um lugar importantíssimo na minha motivação. Foi
preciso muita esperança, diante de alguns empecilhos, para que eu pudesse continuar estudando e ingressar numa Universidade pública.
A minha infância foi marcada pela vida na zona rural, o que me traz ótimas recordações. O acordar bem cedinho e buscar o leite no curral, brincar com minhas irmãs e primas
no quintal e nos brejos perto de casa, subir nas árvores, tomar banho no córrego e outras
aventuras. Algumas pessoas são indissociáveis desse período: minha avó materna, que até
a sua passagem sempre morou conosco, meus avós paternos, onde passávamos os finais de
semana. Lembro-me com muita saudade daquele rancho de madeira coberto com palha
onde moravam, dormíamos sempre ao som das vocalizações dos anfíbios e acordávamos
com o canto dos pássaros.
Aprendi a ler e escrever com aquela que também me ensinou a comer, andar, falar, minha
querida mãe. Apesar de estar sempre ocupada cuidando dos afazeres domésticos, tratando das
galinhas no quintal, dando atenção à minha avó que era doente, e a cinco crianças, ainda
arrumava um tempo para me ensinar a ler e escrever. Fazia isso, pois eu já estava com sete anos,
mas ainda não tinha condição de ser matriculada numa escola. Não havia transporte que me
levasse para a cidade localizada a 11 quilômetros de onde morávamos.
Fui para a escola quando completei oito anos, mas nunca tive dificuldades em relação
à aprendizagem. Enquanto meus colegas começavam a desenhar as primeiras letras, eu já as
conhecia e com elas formava palavras. Por esse motivo, iniciei meus estudos na primeira
série. Nesse período, eu e minha prima Patrícia acordávamos às 4h 30min da manhã, íamos
acompanhadas pelo meu pai esperar a Kombi e que nos levaria até a escola. Estudava em
São João da Paraúna-GO no Colégio Estadual Cônego Trindade, e aí permaneci até a quarta
série. No entanto, a partir da segunda série estudávamos no período vespertino. Não havia
nesse período um transporte único que nos conduzisse à escola. Eram os mais variados:
carros dos pais de alunos que moravam em fazendas vizinhas, ônibus, Kombi, caminhão
basculante e até ambulância.
Na quinta série, fui morar com uma tia em Paraúna-GO para continuar os estudos, pois
não havia tal série no período em que o transporte nos buscava para a escola em São João.
Estudava no Colégio Estadual Otaviano de Moraes e lá permaneci até a oitava série ininterruptamente. Entretanto nesse intervalo de quatro anos muita coisa importante aconteceu
na minha vida, perdi meu avô paterno, minha avó materna, meus pais se mudaram algumas
vezes de fazenda e eu tive o meu primeiro emprego, o qual merece detalhes.
Morei e trabalhei na casa de uma senhora em Paraúna, tinha quatorze anos, fazia
sétima série. Dona Jozefa era uma pessoa muito querida, de quem me lembro com carinho e
saudade, pois hoje já não mais está entre nós. Eu desempenhava nessa casa todas as tarefas
domésticas e fazia companhia a ela que já era idosa e viúva havia muito tempo. Só visitava
meus pais nos fins de semana, pois estes continuavam morando na fazenda. Em relação à
escola nesse período, tive bom desempenho, estudava no período matutino e a escola
localizava em frente a casa onde morava.
Meu segundo emprego ocorreu aos 16 anos já estava no primeiro ano do Ensino
Médio, trabalhei como caixa de um pequeno supermercado em Paraúna, nesse período tive
certa dificuldade na escola. O tempo que tinha para me dedicar às tarefas e estudar para as
provas era pouco. Sacrificava, portanto, as madrugadas e fins de semana. Mas não desisti,
tinha um sonho que não seria interrompido pelo cansaço do trabalho.
44
Caminhadas de universitários de origem popular
Quando estava no segundo ano do Ensino Médio tive a oportunidade de estudar na
escola particular da cidade, o Colégio Juarez de Melo. Ele oferecia melhores oportunidades
uma vez que a realidade daquela escola onde estudava infelizmente era marcada pela falta
de professores e insuficiência do conteúdo programado. Consegui uma bolsa de 50%, o
restante pagava com o que tinha economizado como caixa, emprego que não poderia continuar mantendo uma vez que nessa escola era predominantemente matutino com
complementação à tarde.
Obviamente precisei da ajuda dos meus pais para pagar a mensalidade na nova escola.
A mudança de escola foi extremamente importante para a concretização do meu sonho que
até ali era simplesmente estudar para ser “alguém na vida”. Nesse colégio eram concluídos
praticamente todos os conteúdos programados para cada série. Além disso, foi lá que ouvi
sobre vestibulares e a possibilidade de estudar numa universidade pública. Aí sim meu
sonho deixou de ser simplesmente um sonho, havia possibilidade que agarrei com todas as
forças fazendo o que é necessário para sua realização: estudando.
Estudei todo o segundo ano com a bolsa de 50%, entretanto, no terceiro ano não
tínhamos mais condições de manter com os gastos dessa escola. Estava decidida a voltar
para a dura realidade da escola pública. Descontentes com a minha saída da escola a direção
me contemplou com uma bolsa integral. O ano de 2002 foi de muito esforço e dedicação
para que, ao seu fim, eu pudesse fazer o tão falado vestibular. Na época das inscrições não
tinha dinheiro, então os professores da escola se juntaram cada doando o que podiam e
pude pagar a inscrição do vestibular na UFG.
Não posso retirar desse processo pessoas maravilhosas que entraram na minha vida
um casal maravilhoso Marcos e Sílvia. Eles foram as pessoas que deram muito mais que um
empurrão para o meu ingresso na universidade, mostraram-me que eu realmente era capaz e
me ajudaram no que foi preciso principalmente na motivação.
Fiz a prova e obtive sucesso apenas na primeira fase, na segunda foi uma decepção
total, me senti extremamente incapaz. Praticamente não resolvi nenhum exercício de Química que era uma das específicas para o curso que escolhi Ciências Biológicas.
Em 2003, com a ajuda de amigos e dos meus familiares, me mudei para Aparecida de
Goiânia-GO, onde poderia fazer um curso preparatório e assim realizar outro vestibular.
Morei nesse ano com uma tia materna, a quem sou muito grata. Esse período não foi fácil,
tinha algumas dificuldades para me deslocar naquela cidade grande, uma vez que sempre
morara no interior, sem contar a violência e a saudade dos meus pais. Nunca me esqueci,
uma semana antes do vestibular da UFG, tive minha carteira roubada no ônibus que me
levava do colégio onde fazia cursinho para a casa onde morava. Fiquei desesperada, mas
Graças a Deus, jogaram-na com todos os documentos no ônibus então pude recuperá-la.
O vestibular de novo, o medo de mais uma reprovação me atormenta. Era inconcebível a idéia de meus pais continuarem me mantendo em outra cidade para fazer um cursinho.
Mas isso não aconteceu, dessa vez obtive sucesso tanto na primeira fase quanto na segunda.
Passei com 19 anos para o curso de Ciências Biológicas na Universidade Federal de Goiás,
motivo de muita alegria para mim e meus familiares. Nesse momento pensei que meu sonho
realmente se realizara.
Na universidade encontrei outras dificuldades. Como poderia permanecer num curso
integral sem trabalhar? Vi também que a universidade é pública, mas não é gratuita, existem
taxas, e os livros da área que escolhi são muito caros, comprar algum seria praticamente
Universidade Federal de Goiás
45
impossível, me formaria com xérox. E ainda tem o inglês que descobri que é fundamental
para a conclusão desse curso e que infelizmente não tenho a base necessária.
Agora tenho uma bolsa no programa Conexões de saberes, e com ela, a ajuda dos meus
queridos pais e outras queridas pessoas vou me mantendo na Universidade. Até já comprei
dois livros, um usado, mas outro não, novinho: meu querido “Ridley”. Agora sonho com um
“Raven” e outras coisinhas mais, me formar, fazer mestrado, doutorado...
46
Caminhadas de universitários de origem popular
A orquestra dos sonhos
Kamyla Faria Maia *
“Não vou buscar a esperança na linha do
horizonte
nem saciar a sede do futuro
da fonte do passado nada espero e tudo quero
sou quem toca, sou quem dança,
quem na orquestra desafina
quem delira sem ter febre
sou o par e o parceiro
das verdades à desconfiança”
Gerson Conrad e Paulinho Mendonça
Aos meus onze anos, depois de ter desistido de ser apresentadora de TV ou atriz,
decidi que queria ser jornalista, ou melhor, correspondente internacional. Mas não bastava
só isso, eu queria me formar pela Universidade Federal de Brasília (UNB), que na época era
a melhor instituição nessa área.
Para uma criança os sonhos são sempre possíveis, basta crescer. Entretanto quando
eu cresci pude perceber que não era fácil chegar ao meu objetivo. Hoje estou lutando para
alcançar o meu sonho e já dei muitos passos em direção a ele, mas pelo meu caminho
existiram e ainda existem barreiras que atrapalharam a caminhada. Mas sei que não estou
sozinha, pois vários são os componentes da orquestra da minha vida.
Mesmo antes da minha decisão eu já estava construindo minha história. Desde
pequena gostava de estudar, me satisfazia com boas notas e com o primeiro lugar da classe,
mesmo que o início da vida escolar tenha sido um pouco traumática. Primeiramente porque
eu não queria estudar, e depois porque minha primeira professora era um verdadeiro carrasco. Por sorte as outras professoras, em sua maioria, eram boas e me ensinaram muitas coisas
importantes ainda hoje.
Além delas também tive minha mãe como um auxílio, pois ela sempre olhava minhas
tarefas, conversava sobre as aulas e muitas vezes até corrigia as professoras. Sem esquecer
meu irmão mais velho, que sempre foi muito inteligente, e me ensinava várias coisas, coisas
que muitas vezes eram adiantadas para minha idade e eu nem conseguia entender.
* Graduanda em Comunicação Social-Jornalismo pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
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Primeiros instrumentos: família, escola, amigos
Nos primeiros anos escolares, entre 1991 e 1992, meus pais tiveram condições de
pagar escolas particulares e eu não tinha dificuldades para chegar até elas. Entretanto a vida
foi ficando mais difícil e a condição financeira do meu pai foi piorando. Mudamos para um
bairro mais afastado do centro de Goiânia, mas ainda pude estudar em uma escola particular
no meu bairro. Em um certo momento ficou difícil pagar a mensalidade de dois filhos e
então meu irmão e eu fomos para o ensino público.
Em 1996, fui para a Escola Municipal Leão de Ramos Caiado. Minha mãe ficou
muito preocupada, porque sempre via na televisão que o ensino público era ruim e que as
crianças eram mais violentas. Eu acabei levando esse medo comigo para o primeiro dia de
aula na terceira série. Estranhei algumas coisas, mas acabei gostando de tudo, das professoras, dos amigos...
Por incrível que pareça essa escola era muito melhor que a escola em que havia
estudado antes, pois tinha professoras bem mais preparadas que as da escola particular. Tive
até uma professora que escrevia para o jornal O Popular (talvez por isso tenha escolhido
minha profissão exatamente nessa época). A razão dessa superioridade pode estar relacionada a localidade da escola, que ficava num setor central em Goiânia.
No mesmo ano tivemos que nos mudar novamente. Meu pai estava endividado por
causa de vários problemas, dentre eles os gastos com a operação de apendicite que eu havia
feito no ano anterior, e por isso teve que vender nossa casa. Viemos morar em uma pequena
chácara que meu pai havia ganho de herança do meu avô, onde moramos até hoje.
Com a mudança perdi meus amigos e a rua onde eu adorava brincar. Quase não saía de
casa porque a chácara é muito afastada e o bairro mais próximo é um pouco perigoso. Acabei
ficando meio solitária e intensificando um hábito que acabara de ganhar, a leitura. Com dez
anos acho que era a pessoa que mais lia no mundo, de poesia infantil a Memórias Póstumas de
Brás Cubas. Os livros eram meus melhores companheiros no silêncio da minha casa.
Nessa época, meu pai começou seu esforço para nos dar a melhor condição de estudo
que a sua situação possibilitava. Sempre nos levava de carro a escola e, às vezes, tinha que
esperar horas por causa dos nossos horários diferentes. Eu também tinha que esperar muito,
sempre era a primeira a chegar e a última a sair.
Quando entrei para a quinta série mudei para outra escola que também era bem localizada, entretanto era maior, com alunos bem mais velhos do que eu. Demorei um pouco
para me acostumar com os alunos e com o ambiente da instituição. Nessa escola, chamada
Escola Municipal Maria Tomé Neto, o ensino era bem pior, os professores faltavam a muitas
aulas e não terminavam a matéria a ser dada.
A vida se tornou ainda mais difícil, pois meu pai perdeu o emprego de técnico em
eletrônica de um banco. A partir de então ele passou a trabalhar mais na chácara e a fazer
serviços em várias áreas, de pedreiro a eletricista. Além disso passamos a receber a ajuda da
minha avó, que é aposentada e mora na chácara ao lado da nossa.
Em 1999, mudei para o Colégio Estadual Polivalente Pio XII e as coisas continuaram
difíceis. Professores que faltavam, greves, bagunça dos alunos.... não posso dizer que eu era
uma santa, mas ficava chateada quando não tinha aula, gostava de ir para a escola, principalmente porque lá eu tinha meus únicos amigos. E foi exatamente por causa desses amigos
que tive que mudar novamente de escola.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Envolvida em várias confusões na oitava série, quase fui suspensa. Minha mãe teve
que segurar a minha barra sem que meu pai soubesse (até hoje ele não sabe). Então ela achou
melhor que eu fizesse o processo seletivo para o Ensino Médio do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás (CEFET), porque lá os alunos seriam diferentes. Eu não gostei
da idéia, pois não queria me separar dos meus amigos e porque achava que não conseguiria
fazer novos.
Apesar de não estar muito contente, não quis contrariar minha mãe. Então estudei
feito louca para a prova. Passava doze horas por dia tentando aprender sozinha o que não
tinha sido ensinado entre a quinta e a oitava. O esforço foi recompensado com a segunda
colocação na lista de aprovados e com a melhor ensino a que tive acesso.
Aprendendo a reger a vida
O ano de 2002 veio com muitas mudanças e expectativas. No primeiro dia de aula,
depois de longas férias provocadas pela greve de três meses no ano anterior, levei trote dos
veteranos e peguei meu primeiro ônibus sozinha. Comecei a me achar adulta, já que o
ensino era bem diferente, não havia nenhuma coordenadora para ficar vigiando os atos dos
alunos, cada aula tinha uma sala diferente e podíamos entrar e sair quando quiséssemos.
A partir de então comecei a ir para o colégio de ônibus, mas meu pai ainda tinha que
me auxiliar. Como moramos muito longe ele me levava até o ponto final de uma linha mais
rápida para o centro da cidade, que mesmo assim demorava em média uma hora. Então
conheci melhor algumas dificuldades de um estudante de origem popular: ônibus lotado e
demorado, acordar às cinco da manhã, ter que sair sempre com duas horas de antecedência...
A idéia que os alunos fossem diferentes foi um grande engano, meu e de minha mãe.
No CEFET havia até mais confusões que na escola anterior, e meu lado meio conturbado me
levava a estar sempre nelas. Apesar de ter passado por muitos apuros, me diverti muito, fiz
ótimas amizades, que mantenho até hoje, e fui muito feliz.
Sempre fui chamada de ‘cdf’, já que eu estudava muito e sempre ajudava meus amigos
a passar de ano. Explicava matérias, dava cola, fazia e corrigia as redações, etc. Mas
também recebia ajuda em algumas matérias, como Física e Química. Por ser boa aluna todo
mundo sempre achava que eu fosse passar no vestibular de primeira e riam de mim quando
eu dizia ter medo da prova.
Embora seja difícil comparar o ensino público com o particular, posso dizer que tive boa
uma educação no CEFET e pude praticar vários esportes; tive acesso a aulas de música, teatro,
informática, filosofia e sociologia. Acima de tudo eu aprendi a ter responsabilidade própria,
sem precisar da cobrança de ninguém, e a buscar sempre mais do que estava sendo ensinado.
Regendo os sonhos
Aos quinze anos tive que iniciar minha decisão quanto a carreira profissional e, como
o sonho de ser jornalista ainda existia, decidi que iria prestar vestibular para esse curso
quando fosse a hora. Embora eu estivesse no primeiro ano do Ensino Médio, tive minha
primeira e assustadora experiência com o vestibular no Processo de Avaliação Seriada da
UNB (PAS). A prova era bem difícil, mas eu consegui boa pontuação e mantive as esperanças de alcançar meus objetivos.
Na etapa seguinte também tive uma pontuação alta, mas na última fase me saí mal
apesar de ter estudado muitas horas, até mesmo de madrugada, e não consegui passar. Essa
Universidade Federal de Goiás
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foi minha primeira decepção. Fiquei muito triste e achei que tudo estava perdido. No final
do Terceiro Ano, fiz o vestibular da Universidade Federal de Goiás (UFG), meio desanimada
e sem muitas expectativas, uma vez que não havia me preparado especificamente para ele.
Por não ter feito cursinho e ter estudado em escola pública, achava que haveria muitos
concorrentes mais preparados do que eu. Mesmo que eu não esperasse muito, no dia do
resultado fiquei ansiosa e, para minha surpresa, consegui passar. Foi um alívio e uma decepção ao mesmo tempo, pois eu sonhava com a UNB... mas é claro que não ia deixar de me
orgulhar pela conquista.
Sei que muitos como eu não tiveram a mesma alegria e por isso agradeço muito a ajuda
dos meus pais, que foram os principais responsáveis pela vitória, por terem permitido que
eu me dedicasse exclusivamente ao estudo. Sou grata a minha mãe por dedicar sua vida aos
filhos e por ter me ensinado que eu deveria estudar e ao meu pai por me oferecer as melhores
condições de estudo, mesmo com muitas dificuldades.
Novos palcos, novos desafios
Entrei para a UFG e no segundo dia de aula comecei um relacionamento com meu
grande companheiro, Fernando. Acabei me acomodando e percebendo que me sustentar em
Brasília não seria fácil, por isso não tentei novamente o vestibular lá e decidi me esforçar no
meu curso aqui. Nesses dois anos cursados tive algumas decepções quanto ao curso, tive
vontade de abandonar tudo e fazer outra faculdade, mas ainda me mantenho no caminho.
Muitas vezes me senti sem esperança de conseguir me formar uma boa profissional,
pois enfrentei várias dificuldades, como a solidão de me sentir um estranho no ninho e de
não me achar competente o bastante, ter de acordar as cinco da manhã, pegar muitos ônibus,
percorrer um longo trajeto até a faculdade, chegar em casa exausta e não conseguir estudar,
não ter um computador para fazer trabalhos e pesquisas, etc. Mas isso não me fez desistir e
nem me faz uma aluna pior.
As dificuldades estão sendo em grande parte superadas, por causa da minha força de
vontade, do empenho dos meus pais, pelo ombro amigo do Fernando e também pelo Programa Conexões de Saberes. Sei que talvez não consiga ser uma correspondente internacional,
mas sei que vou fazer de tudo para que eu possa alcançar o mais alto que puder, sem abaixar
a cabeça por causa dos empecilhos.
A cada dia dou mais um passo importante e vou aprendendo que aquela menina
solitária e intimidada pode tocar como deseja a própria vida. Que mesmo com barreiras
emocionais e sociais, não posso desistir, pois tenho habilidades. A universidade foi o
começo de uma nova vida, mais independente e confiante, de alguém que está começando a conhecer o mundo.
“Moça, diz pra mim como vai você
é preciso força pra sonhar
e perceber que a estrada vai”
Marcelo Camelo
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Caminhadas de universitários de origem popular
“Pedaços de mim”
Luciene Araújo de Almeida *
Como diz a musica:
“Quando eu nasci veio um anjo safado.
O chato dum querubim.
E decretou que eu estava predestinado,
a ser errado assim,
já de saída a minha estrada entortou até o fim”.
Chico Buarque
Se eu vou até o fim, não sei dizer, mais posso dizer do que já se foi, ao menos um
pouco.
Para muitas pessoas passar no vestibular é um sonho que não será realizado. Para
outras o vestibular é um simples processo seletivo, para o qual foram preparados por toda a
vida. Mas há aqueles e aquelas que sonham com essa “Torre de Babel”, sonham com tanta
força, se esforçam tanto, que acabam tornando-o realidade. Comigo foi assim, muita luta
para transpor essa barreira chamada vestibular. Agora o mais triste vocês não sabem, estando
aqui dentro da universidade, eu me sentia mais infeliz. Calma, amiga ou amigo leitor, eu
posso explicar!
Sou uma dessas pessoas que o sistema tenta eliminar logo de cara. Sabe como diz a
musica:
“Quando, seu moço, nasceu meu rebento
não era o momento dele rebentar.
Já foi nascendo com cara de fome,
eu não tinha nem nome pra lhe dar”.
Chico Buarque
Mas graças a duas pessoas maravilhosas eu tive a oportunidade de “vingar”. Minha
infância foi relativamente tranqüila, sempre fui muito moleca, e qualquer lata ou pau logo
se transformava em brinquedo. Minha alfabetização foi igual à de milhares de crianças, que
têm esta oportunidade, as boas e velhas cartilhas behavoristas onde repetir e copiar o que já
estava pronto era a formula para aprender.
* Graduanda em Letras pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
51
Mas os momentos tranqüilos ficaram na mais tenra infância, e até hoje não sei se foram
realmente tranqüilos ou eu que enxerguei dessa forma. Sou mulher, negra e durante boa
parte da minha vida, gorda. Criada em uma família de brancos e brancas, todos magros de
olhos claros. Posso dizer que desde muito cedo conheci o preconceito de uma forma muito
dura. Durante um período de minha vida deixei que me desvalorizassem, mas não me
lembro nem quando nem porque eu resolvi mudar essa historia. Mas posso dizer que o que
passei me ajudou a desenvolver uma forma de driblar a dor, e eu segui sorrindo .
Morávamos em Goiânia quando terminei o segundo grau, por motivos financeiros
e desejando muito entrar em uma universidade, fui para Sampa, tentar um emprego, e
também, deixar pra trás algumas feridas que aqui eu não conseguia cicatrizar. Foram anos
bons mais também difíceis. Após dois anos em São Paulo, estava me sentindo como uma
pessoa que o sistema escraviza em um trabalho alienado e alienante. Às vezes me sentia
como “Macabeia”, com a permissão de Clarice, que, sem força pra lutar contra essa máquina
esmagadora, apenas via os dias passar. Mas dentro de mim à vontade de lecionar sempre foi
muito grande, desde criança minha brincadeira favorita era imitar as professoras, adorava
dar aulas para minhas amigas. Sendo assim resolvi prestar o primeiro vestibular para Letras
na USP, sabia que seria muito difícil, mas eu queria muito e iria me esforçar. Foi um ano de
estudo, mas não passei nem na primeira fase. No ano seguinte resolvi que faria cursinho,
com uma bolsa que consegui com muita insistência, eu trabalhava durante o dia e estudava
de noite. Foi mais um ano de estudo e passei na primeira fase, mas a segunda não me
permitiu entrar.
Passei a acreditar que não conseguiria nunca entrar em uma universidade pública.
Fiquei um ano sem estudar, mas a USP sempre martelava na minha cabeça, eu sempre ia à
palestra ministrada por professores da USP, que eram abertas para a comunidade em geral,
sonhava com aquele campus. Por fim, decide voltar a Goiânia onde poderia estudar em
tempo integral. Eu voltei para a casa de meus pais, e essa volta não foi nada tranqüila, pois
minha família convive há muitos anos com o alcoolismo de meu pai e as crises depressivas
de mamãe. Mas com a determinação que eu tinha, nada poderia me tirar do caminho da USP.
Foi mais um ano de estudo, um estudo solitário, uma vez que não conhecia ninguém que
iria prestar o vestibular da USP. Eu lia as análises pela internet, fiz minhas próprias apostilas
e estudei. Um ano dentro do quarto, um ano dentro de mim... eu já não sabia mais se
estudava tanto para passar na USP ou para não pensar nos problemas que enfrentávamos...
um ano de muita solidão -meus livros foram meus maiores companheiros... há, é claro, o
Simba, um cachorro que eu arrumei para me apoiar, vale dizer que quando vim embora para
Goiânia deixei o Homem que acreditava ser o companheiro de uma longa e apaixonada
caminhada.
Chegou a época das inscrições e meus pais me disseram pra prestar na UFG também. Já
que estava estudando tanto, que mal teria? Fiz a prova da Federal de Goiás primeiro e fui
muito bem. Viajei para São Paulo muito confiante, algo dentro de mim (o conhecimento é
claro) me dizia que iria passar. E assim aconteceu. Fui aprovada na USP para Letras e
também passei para a UFG, senão não estaria escrevendo essa caminhada.
O drama começou aí, com meus pais doentes, eu sem emprego em São Paulo e outras
coisas que me resguardo de dizer. Não fui para a USP e fiquei na Federal e Goiás. Agora,
amiga/amigo leitor, você pode entender porque meu primeiro ano na UFG foi tão doloroso,
não que o curso de Letras de Goiás não seja bom, espero que me entendam, é que eu
52
Caminhadas de universitários de origem popular
realmente sonhei e batalhei muito pela outra. Mas já que estava aqui e o meu sonho maior
sempre foi ser professora, resolvi fazer o curso. No primeiro ano, a grande surpresa. Pensava
que tudo seria mais fácil, que por estar fazendo uma universidade pública não teria mais que
me preocupar com dinheiro para estudar. Grata ilusão. Esse espaço de produção de conhecimento é tão excludente quanto seu processo de seleção. Os livros são caros e a biblioteca
não supre a demanda dos alunos, os professores acreditam que todos e todas tiveram a
mesma formação, sendo assim cobram unidade dos alunos e alunas. Unidade essa que
sabemos não ser nada real. O recurso é o ilegal, xerox, mas um curso de Letras não é nada
barato, o volume de fotocópias é muito grande e falta dinheiro pra tanto. E você acha que os
professores e professoras acreditam quando você diz que não leu um texto porque não tinha
dinheiro? Claro que não, eles acham que você é relaxada, que não está interessada em
aprender, coisa e tal. Fora que a estudante de origem popular tem que trabalhar, outro
agravante que prejudica a qualidade do curso. Posso dizer que trabalhei mais que estudei
nesses três anos de faculdade. Fiz muita prova sem ler os livros indicados. Passei noites em
claro tentando recuperar o tempo perdido, antes das provas, mas não adianta muito. Sei que
não sou o que a faculdade entende de boa aluna, apenas sou mais uma.
Com a oportunidade que o programa Conexões de Saberes oferece hoje posso me dedicar um pouco mais aos estudos, sei que não dá pra recuperar o tempo perdido, mas dá pra não
perder mais tempo. Estou no último ano, todas as inseguranças passam pela minha cabeça,
sempre me pergunto se irei conseguir um bom emprego, se irei ser uma boa profissional e
outras coisas. Mas como disse no início, posso dizer do que vivi, o que virá basta esperar...
Universidade Federal de Goiás
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O que está em mim
Fran Rodrigues*
Eu já quis ser bailarina, professora e odontóloga. Esse último nome me parecia tão
bonito que, por volta dos sete anos, passei a repeti-lo cada vez que alguém me perguntava
o que queria ser quando crescesse. Com o decorrer da infância, nos livros e dicionários,
porém, conheci outras palavras. E outras. E outras... até que um dia, ainda no início da
adolescência, descobri o que queria. “Jornalista! É isso que eu vou ser”.
Escolhi o jornalismo porque as palavras me fascinam. Admiro o modo como são
capazes de compartilhar sonhos, de socializar idéias, de descrever pessoas e também
realidades que podem ser recriadas, diferentes e melhores. Escrever é o que mais gosto de
fazer na vida. Cada texto me parece um desafio, uma tentativa de extrair ainda mais da
capacidade que as palavras têm de dizer o mundo. Por isso me alegro, não sem as tensões
próprias dos desafios, pela oportunidade de usar as palavras para compartilhar minha
própria história.
Começo por 2006, que pode, sem dúvida, ser considerado o ano mais significativo até
aqui. Muitas coisas aconteceram. Cursei o terceiro ano da faculdade com maior dedicação,
muito aprendizado, questionamentos e mudanças. Foi o ano em que me reconheci como
EUOP, fato responsável por uma série de transformações. Nas palavras Estudante Universitário de Origem Popular, encontrei uma identidade e isso me possibilitou compreender mais
sobre meu passado e, a melhor parte, redefinir o futuro.
Escudo de amor
Minha mãe é técnica em Laboratório e trabalha, desde os 18 anos, como funcionária concursada pelo estado na área da saúde. Meu pai, nascido e criado na zona rural, fez
até a oitava série do ensino fundamental. Já foi garimpeiro em Mato Grosso, feirante,
vendedor de sapatos, vigilante e motorista. Isso tudo, sem nunca deixar de sonhar. Não
posso falar de mim, sem mencionar (e repetir) essas duas pessoas que sempre foram
meus maiores incentivadores e os grandes responsáveis pela conquista de entrar em
uma universidade pública.
Casal jovem e com duas filhas pequenas, cada um trazia consigo uma história de
dificuldades. Perceberam logo no início que a falta de estudo os marginalizava e dificultava seu crescimento. Então, decidiram em conjunto que a educação das filhas seria a maior
prioridade de suas vidas. E assim fizeram. Como a idade mínima de ingresso na escola
pública era de sete anos, o que meus pais consideravam tardio, adicionado ao fato de que
* Graduanda em Comunicação Social-Jornalismo pela UFG.
54
Caminhadas de universitários de origem popular
ambos precisavam trabalhar para garantir o sustento da casa, minha irmã e eu começamos a
estudar em uma escolinha privada quando eu tinha três anos.
Ao relembrar minha história, percebo que apesar de não ter sentido muito na pele, visto
que meus pais me serviram de escudo, desde aquela época a vida foi muito difícil, cheia de
renúncias e privações para nos oferecer o máximo, o limite de suas possibilidades. Em nenhum momento me lembro de vê-los se queixando por isso. Pelo contrário, sua alegria era o
ritual diário de nos ouvir contar quantas coisas tínhamos aprendido na escola.
Ficavam tristes pelo fato de não poderem oferecer tudo que pedíamos, já que a inocência infantil não nos permitia entender porque os coleguinhas tinham sempre brinquedos
legais e nós não. Também me recordo, com grande arrependimento, que minha irmã e eu
pedíamos a meu pai que nos deixasse um pouco distante da escola para que os colegas não
nos vissem sair do carro, uma Variante Vermelha ano 77 sem o banco da frente e com o
assoalho visivelmente danificado. Eu costumava dizer que tínhamos um carro famoso:
“Igual o do Fred Flintstone”.
Muito presente, minha mãe corrigia e assinava todas as tarefas escolares, ia às reuniões com professores para acompanhar nosso rendimento e, sempre que possível, nos
presenteava com livrinhos infantis para incentivar o gosto pela leitura. Lembro-me também
das inúmeras conversas em que meu pai me estimulava a querer aprender sempre mais. Ele
conseguia fazer com que até mesmo uma ida ao supermercado ou meu espanto perante um
pedinte na rua se transformassem em campanha em prol da valorização da escola.
A duras penas, conseguiram nos manter até o fim da quarta série. Depois disso, mesmo
com todos os esforços, fez-se necessário que fôssemos para o sistema público de ensino.
Nessa época, estudar já era minha grande paixão. Não sei se apenas pela insistência da
criação, mas posso dizer, sem modéstia, que sempre fui boa aluna e procurava dar o melhor
de mim. Cada boletim era como um troféu que eu entregava a mim mesma e a minha família
em retribuição a todo o sacrifício que faziam.
Além de estudar, também tínhamos responsabilidades na limpeza da casa e nos trabalhos em que meu pai se envolvia. Quando ele conseguiu comprar uma pequena chácara na
periferia de Goiânia, por exemplo, a família toda foi convocada para fazer a limpeza do
lugar e construção das estruturas que ele pretendia manter ali. No fim de cada dia, havia
marcas de carrapato e muriçoca por todas as partes do corpo exausto, mas eles tinham a
preocupação de fazer tudo parecer uma grande festa.
Ainda crianças, minha irmã e eu também chegamos a trabalhar na feira com meus
pais. Primeiro vendemos alface, depois carne de porco e galinhas, produtos cultivados
por nós mesmos na terra que meu pai comprara. Engarrafar leite e vendê-lo na região
também já fez parte de nossas atividades conjuntas e confesso que à medida que crescia,
essas coisas deixavam de parecer divertidas. Minha infância foi assim, não tão difícil,
brincando de trabalhar e estudando por prazer, como meus pais haviam ensinado.
No meio do caminho tinha um vestibular...
A cada ano que passava, aumentavam as expectativas de cursar uma universidade, e
eu sabia que precisava ser gratuita, visto que não havia recursos para custear uma faculdade
privada. Estudei até a oitava série no Instituto de Educação de Goiás, mas pensando no
vestibular, procurei entrar em uma escola melhor. Soube da fama do CEFET e estudei para
o processo seletivo do ensino médio que na época teve concorrência de 19 alunos por vaga.
Universidade Federal de Goiás
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Passei! Devo dizer que sou muito grata por isso. Grata a Deus, grata à vida, ao meu próprio
esforço e mais uma vez, grata aos meus pais, que me deram todo o apoio que precisava
naquele momento.
Estudar no CEFET me aproximou muito do sonho da formação superior mas, ao
mesmo tempo, foi um choque. Ali foi o lugar em que, já sem os olhos de criança, me deparei
com a diferença social e a desigualdade de oportunidades. Queria muito aprender outros
idiomas, mas não era possível. Queria, como os outros, ir ao cinema e viajar para a praia nas
férias. Impossível também. Os livros, não podia comprar todos. Morar em uma chácara, ter
que atravessar uma erosão antes de pegar o ônibus para ir à escola e, por vezes, chegar suada
e com o sapato sujo de barro não era nada fácil, principalmente na minha cabeça recémchegada à adolescência.
Foi realmente um choque, mas nada que tenha me impedido de continuar. Eu tinha
uma meta e sabia, talvez por causa daqueles discursos paternos tão cheios de amor, que as
dificuldades seriam muitas, mas não me impediriam de vencer. Sem muitas perguntas, me
adaptei àquelas diferenças e procurei usufruir ao máximo daquele aprendizado que dificilmente teria em outras instituições de ensino público. Seis meses antes do término do ensino
médio, decidi fazer um curso pré-vestibular junto com o terceiro ano para tentar garantir
uma vaga no curso de jornalismo da UFG.
Escolhi o cursinho mais barato que pude encontrar. Com algum esforço, e muita
disposição, foi possível pagar. Dividir-me entre a escola, o cursinho e as outras atividades
que realizava foi “psicologicamente complexo”. Eu acabara de completar 16 anos e sentia
sobre mim o peso do futuro. Entrar na universidade, além de um sonho meu, era também o
sonho de uma família inteira e, por isso, sentia a pressão involuntária que a expectativa das
pessoas gerava sobre mim. Dedicada, porém insegura, não acreditava que conseguiria passar, afinal o bicho do vestibular que estava pintado na minha mente era muito maior do que
eu poderia suportar.
Passei na 1ª fase e parecia ser a única a não acreditar que também seria aprovada na 2ª.
Apesar de todos os incentivos da família e amigos, eu ainda tinha muito medo. Até então
ninguém da minha família havia cursado uma universidade pública e parecia que isso
estava demasiadamente distante da minha realidade. Que bom que eu estava errada! Depois
de dois meses, que pareceram séculos, saiu o resultado. Lembro-me de ligar chorando no
trabalho da minha mãe para dar-lhe a notícia e de ouvir uma resposta igualmente banhada
em lágrimas.
O choro era de alegria, de gratidão. Era algo como um rito de passagem, um choro de
crescimento. Valeu a pena todo aquele preparo desde a infância até as madrugadas em claro
e os passeios trocados por horas de estudo. Era minha história com um final feliz. Eu agora
era uma universitária e todos os meus sonhos pareciam mais próximos. Hoje percebo que
minha atitude naquela ocasião foi no mínimo ingênua. Certamente o momento merecia
comemoração, mas estava longe de ser um final, muito menos um final feliz.
Permanecer, o grande desafio
Na universidade, um sentimento de completa estranheza me atingiu, quase fatalmente. A desigualdade social foi o elemento mais preponderante, mas não o único. O fato de ser
mais nova que os demais, a incompatibilidade que senti em relação ao ambiente, a timidez
que parecia me impossibilitar de exercer a profissão que escolhi, a situação de desemprego
56
Caminhadas de universitários de origem popular
que meu pai passou a enfrentar, o longo percurso diário até o campus e aquele ônibus lotado
e caótico, foram elementos que se somaram e me fizeram imaginar que eu não estava no
lugar certo.
Pensei em tentar outro curso e até mesmo em desistir de tudo. Sentia-me inferior aos
demais e incapacitada de dar continuidade àquele projeto. Não consigo mensurar com
precisão esses sentimentos, mas acredito que a sensação de incapacidade tenha sido muito
maior que a felicidade pela aprovação no vestibular. De algum modo, que eu não entendia
ao certo, o sonho de uma vida estava se dissipando em poucos meses. Já não sabia sequer se
conseguiria concluir a graduação, portanto, pensar em mestrado ou doutorado chegava a
ser absurdo.
Na vida financeira, enfrentávamos a maior dificuldade de todos os tempos. Eu não
tinha dinheiro sequer para tirar o xerox que os professores pediam em todas as disciplinas.
Às vezes, deixava de comparecer à aula por causa disso. Sabia que se pedisse dinheiro aos
meus pais, ou tirariam de coisas importantes ou se sentiriam mal por não ter a quantia
necessária. E eu já não era aquela criança sem entendimento que pedia iogurte no supermercado. Para melhorar a situação, digitava trabalhos escolares e dava aulas de reforço. Aprendi
a filmar e fazer edição de vídeo. Também cheguei a ser responsável pelo jornal de uma
associação. O dinheiro era pouco, mas ajudava.
Na maioria das vezes, tinha boas notas e resultados, mas não me sentia bem. Faltava
algo. Faltava me sentir parte daquilo. E aí entra o Conexões de Saberes. Conhecer o
programa, me inserir no grupo na condição de voluntária e assim perceber quantas pessoas se encontravam na mesma situação que eu, me fez acreditar novamente no meu potencial e reacender todos os sonhos que haviam se perdido. Inclusão, oportunidade e confiança são algumas das palavras que, embora já conhecidas, só passaram a fazer sentido
depois do PCS.
Antes, eu estava na universidade, mas agora ela está em mim. Apesar de reconhecer
minhas limitações e saber que para um EUOP o caminho é mais longo, hoje tenho a força de
que preciso para não desistir de sonhar e ver em cada dia a realização gradativa do projeto
de vida que tracei. Em crescimento contínuo, vou seguindo sem lamentar, agora com orgulho de ser quem sou e da minha origem, com um conceito muito mais amplo do que é
“vencer na vida”, com uma crença renovada nas pessoas e em mim mesma, e com vontade
de prosseguir e alcançar. Muita vontade.
Universidade Federal de Goiás
57
Parte 3 A CADA DIA DE LUTA
NÃO SE PODE PARAR,
NEM DESISTIR.
É PRECISO CONTINUAR.
Menina do pé de manga
Márcia Daniele de Souza Carvalho*
Nasci em 30 de abril de 1984, às 11h50 da manhã. Mas minha história começa para
mim um pouco depois, na infância, a partir das primeiras lembranças que tenho da
vida. Morávamos em uma casa pequena de quatro cômodos: dois quartos, cozinha e um
banheiro. O quintal era um tanto grande, com muitas árvores, muito verde. A paisagem
do bairro era toda assim, com ruas ainda não pavimentadas e vários lotes baldios. O setor
é o São Judas Tadeu, localizado na região norte de Goiânia, nas proximidades do Campus
II da UFG. Desde cedo o espaço da universidade se tornava familiar. Nossa casa foi uma
das primeiras a existir na rua do bairro quase deserto. Para lá nos mudamos em 1985 e
assim meu pai, vendedor autônomo, conseguiu comprar o imóvel próprio, onde residimos ate hoje.
As personagens dessa fase da minha história eram: meu pai, Edvaldo Cícero de
Carvalho, minha mãe, Neuma Sônia de Souza Carvalho e meu irmão, Marcos Tadeu de
Souza Carvalho. Minha família até então se estruturava de uma forma tanto quanto tradicional: O pai que trabalha e leva o sustento da família e a mãe que cuida do lar e das
crianças. Minha mãe possuía o segundo grau completo, com habilitação técnica em contabilidade e, antes do casamento, trabalhava fora, era independente. Mas depois se manteve no lar, e um dos motivos era o fato de sermos pequenos e, claro, precisar de alguém
que cuidasse de nós.
Meu pai fez até o segundo ano do curso técnico em administração de empresas. Era
comerciante, tinha um ponto de vendas no camelódromo do centro e um outro na feira
hippie de Goiânia.
A estrutura do bairro, apesar de muitos problemas, possibilitava certa liberdade
infantil que hoje vejo que poucas crianças possuem. Tive uma infância quase rural,
correndo pelas ruas, brincando com terra, e subindo em árvores, aliás, essa era uma das
coisas que mais gostava de fazer. Sempre brincava no pé de manga, e era de lá que costumava avistar o Campus da Universidade. Juro! Passei a infância toda olhando aqueles
prédios e imaginando o dia em que estaria lá.
Primeiros marcos, conquistas e vitórias
Como o tempo é curto pra contar muitas coisas, vou tentar dividir minha história em
“marcos”. O primeiro é 1990. Esse talvez tenha sido o maior marco da minha vida. Completei seis anos, mas isso não foi o mais marcante. Foi nesse ano que fui à escola pela primeira
vez. Lembro que foi uma das coisas mais emocionantes dessa parte da minha vida. Sempre
* Graduanda em História pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
61
quis ir à escola, aprender ler, escrever. Antes de nos matricular, minha mãe já havia
iniciado nosso processo de alfabetização em casa, comprava sempre um caderno de caligrafia nos colocava pra copiar nossos nomes e a ler A-E-I-O-U. Talvez tenha sido isso que
favoreceu pra que meus primeiros contados com as lições não fossem tão difíceis mas, ao
contrário, eram muito estimulantes.
Estudei pela primeira vez no Núcleo Educacional da ASUFEGO. Era uma escolinha
primária conveniada com a UFG. Meu pai pagava uma mensalidade não muito alta. O
ensino de modo geral era bom, apesar da professora muito estressada que eu tinha no jardim
II, “Tia Clara”. Ela dava beliscão, sacudia e empurrava a cabeça dos alunos quando erravam
a lição. Hilário, né? Eu tinha que contar isso, pois é um tipo de coisa não deveria acontecer
em um colégio vinculado a uma Universidade, que geralmente dispõe de todo um projeto
de “formulação didático-pedagógico” adequado. Mas tirando a parte da tia Clara, nós
gostávamos muito do colégio, que tinha campo de areia, parquinho, tínhamos aulas de
natação. A localização era boa, ficava dentro do Campus, no clube do SINT-UFG. O lugar
era muito arborizado, estávamos sempre em contato com a natureza. Íamos pra escola no
ônibus escolar, o “ônibus do Baiano” que pegava e levava a gente na porta de casa. Desfrutávamos de certo conforto nessa época.
Entretanto, além da ida pra escola, o que marcou bastante nesse ano foi um grande
acontecimento. A morte do meu pai. Edivaldo Cícero de Carvalho, 29 anos, comerciante,
casado, pai de dois filhos pequenos, morre assassinado com três tiros, dois no peito e um de
raspão no queixo. O crime aconteceu na Praça Tamandaré, setor Oeste, região sul da cidade.
O motivo do crime foi banal, uma pequena discussão, um pequeno desentendimento entre
a vítima e um sujeito que não se sabe nem o nome ou mesmo a placa da moto, utilizada
durante o crime. Foi assim que meu irmão e eu nos tornamos órfãos. Falar disso é meio
complicado, é difícil entender ou definir o que aconteceu da forma que aconteceu. Eu, com
seis anos, ainda não tinha refletido o suficiente sobre a morte. Cresci tendo que pensar sobre
isso o tempo todo, tentar entender, fazer um esforço pra compreender o mundo e as pessoas
de modo geral. Um dos meus primeiros e freqüentes questionamentos foi sobre a “morte”.
Nossa família se desestruturou desde então. Uma das personagens de minha história
deixa de fazer parte do enredo, abandona o plano físico e passa ocupar continuamente o
psicológico. Quase tudo mudou. Minha mãe ainda desestabilizada psicologicamente é que
assume a direção da família. Deixa o lar e começa a trabalhar no Camelódromo e na feira, no
lugar do meu pai. Não poderia deixar de falar dela aqui. A dona Neuma, uma personagem de
grande relevância nessa minha história. Mesmo cercada tantos problemas e tanta dor, ela conseguia ser para nós, ou pelo menos para mim, o maior ponto de apoio. Sempre que precisei ela
esteve lá, do meu lado, independentemente de qualquer coisa que pudesse haver.
Pra gente, meu irmão e eu, as coisas também mudaram. Tivemos que mudar de escola,
pois, além de ficar mais difícil pra continuar pagando a mensalidade da ASUFEGO, era
complicada também a ida e volta da escola. Passamos a estudar então em uma instituição
pública localizada no centro da cidade, a Escola Estadual Gracinda de Lourdes, que
ficava perto do Camelódromo, assim ficava fácil pra minha mãe levar e buscar a gente.
Foi uma época de algumas dificuldades, inclusive financeiras. Passamos várias etapas até
recuperar do choque. Não tivemos apenas o sofrimento com a morte, mas também com
outras coisas que se desencadearam em função disso, prefiro ser sutil, não pretendo entrar
em detalhes.
62
Caminhadas de universitários de origem popular
Sobre o Gracinda de Lourdes, tenho boas recordações. Já no pré aprendi ler e escrever,
tinha um rendimento um pouco melhor que as outras crianças, não sei se ter estudado antes
na ASUFEGO contribuiu pra isso. Mas eu também me esforçava muito, tinha muita vontade
de aprender, e nunca a perdi, mesmo em meio a frustrações. A tia Ediene sempre me elogiava, meus desenhos, a pintura, a letra... e eu, claro, ficava toda orgulhosa.
Na terceira série, quando já estava alfabetizada, comecei a ter apreço pela escrita,
tinha muito prazer em escrever, gostava de inventar “historinhas”, muitas delas “fantásticas”, sobre vacas que voavam animais que iam à escola, bem próprias de uma criança de
mente fértil como eu. A professora Marta ria muito das coisas que eu escrevia, lia sempre em
voz alta pra turma toda. Tirava excelentes notas em redação, falava que quando crescesse
iria ser escritora e acreditava de verdade nisso. Apesar das boas lembranças, nessa escola tive
o primeiro contato com a decadência do ensino público. Havia carência de coisas básicas
de manutenção da escola, faltavam materiais de limpeza, merenda, entre outras coisas.
Lembro de várias vezes em que a diretora fez campanha entre os alunos com o objetivo de
arrecadar coisas básicas de sobrevivência da escola. Sempre levávamos de casa, detergente,
sabão, verduras para a sopa etc. E também tínhamos que pagar o caixa escolar que nessa
época que custava 4 reais mensais.
Em 1995, concluí a quarta série no Gracinda, o colégio não oferecia o ginásio. Esse
ano também foi o começo de uma certa estabilidade em casa. Minha mãe havia alugado o
ponto do Camelódromo e vendido o da feira , começou a trabalhar como fotógrafa em uma
empresa que ficava no centro, onde recebia relativamente bem. Foi uma fase de um
certo equilíbrio financeiro em casa. No entanto, continuei a estudar em instituição pública.
Colégio particular poderia oferecer despesas que iriam além do orçamento.
Em 1996, depois de uma tentativa frustrada de entrar no Lyceu de Goiânia, que tinha
como regime de seleção o sorteio de vagas, fui para o Colégio Estadual Rui Barbosa, que
ficava na avenida Goiás, no centro, onde cursei ate a oitava série. Ao contrário do Gracinda,
não tenho tantas boas recordações do Rui Barbosa. Recordo-me de muita desorganização e
até casos de violência entre alunos. Houve até uma briga que culminou na morte de um
aluno. Havia também confrontos de torcidas organizadas na porta do colégio. Além disso,
salas lotadas, muito barulho durante as aulas, professores visivelmente desqualificados – e
esse era um dos principais problemas. Um único professor chegou a ministrar cinco disciplinas, sem ter formação em nenhuma. Ou seja, qualidade zero! Eram freqüentes também as
trocas de professores de algumas disciplinas, não dando continuidade no processo de aprendizagem. E não vou nem falar sobre a qualidade decadente da infra-estrutura física.
Esse período da minha história foi bem complicado, não saberia analisá-lo bem ainda
mais em poucas linhas. Só poderia dizer que foi uma fase de desmotivação, não tinha
estímulo para ir às aulas mesmo permanecendo assídua. Nas salas de aula não havia sequer
“um” ventilador e fazia um calor de matar, imagina! Eu estudava no período vespertino.
Eram momentos de descontrolável preguiça. A única coisa que me mantinha estimulada era
a minha curiosidade em relação ao mundo. Eu sabia que havia várias perguntas a serem
feitas e várias respostas a serem encontradas. Lia algumas coisas independentemente da
escola, me mantinha informada, apesar de tudo, minha vontade de aprender não ficou
esquecida por completo. Porém, nesse recorte de tempo, a prática e o gosto pela leitura
ficaram esquecidos. Não me lembro de fazer muitas redações durante o ensino
fundamental, salvo as vezes que escrevia no diário. É! O diário foi uma fuga, nessa época
tive sérias crises de auto-estima e fui me tornando um pouco introspectiva.
Universidade Federal de Goiás
63
Já na sétima série, ainda estudando no mesmo colégio, decidi que assim que terminasse o fundamental tentaria ingressar no CEFET. Sabia que era preciso procurar instituições
públicas que ainda oferecessem qualidade de ensino. Cursando a oitava série cheguei a
fazer um cursinho de um semestre pra fazer a prova que, pelo nível de ensino oferecido pelo
colégio, seria difícil. Nesta época, o CEFET era bem disputado. Porém não obtive sucesso
na prova e fui para o Lyceu de Goiânia. Dessa vez consegui, mas ainda com muita dificuldade. O colégio não tinha mais o esquema de sorteio e, segundo o diretor, as salas de primeiro
ano estavam com o número extrapolado de alunos. Mesmo assim, com muita persistência,
em 2000 me matriculei no colégio.
Era evidente a diferença entre um colégio e outro. Esse era um tempo em que o Lyceu
ainda era referência se comparado aos demais colégios públicos. Em 2001, por exemplo,
foi um dos colégios públicos que mais “aprovou” alunos no vestibular em Goiânia. No
começo tive algumas dificuldades até me habituar ao sistema do colégio. Uma das minhas
dificuldades foram os livros do Ensino Médio, que eram caros e era difícil acompanhar a
turma sem eles. Consequi comprá-los já quase no meio do ano ainda sim não comprei todos.
Entretanto, mesmo tendo o nível melhor em educação, em comparação ao Rui Barbosa, por exemplo, o colégio também não se desvinculava da famosa, muito falada e pouco
resolvida ”Crise da Rede Pública de Ensino”, e já passava por diversos problemas característicos. Passei por duas greves durante o ensino médio, uma em 2000, assim que entrei, e
outra logo em seguida em 2001. O colégio sofria também com falta de professores. No
primeiro ano ficamos ate o mês de abril sem professor de História. E professor de Química
nem se fala! Esse nunca tinha, sempre era algum da biologia brincando de improvisar
Química, e todo ano durante o andamento do curso mudava o professor. Conclusão: Nunca
aprendi Química em toda a minha vida! O colégio aos poucos diminuía seu número de
alunos, greves, alto níveis de reprovação, entre outros e muitos problemas. As salas eram
fechadas e sua qualidade aos poucos foi diminuindo.
Mas apesar de tudo o colégio manteve certo nível de qualidade, graças à eficácia e a
dedicação de muitos professores que sempre, de alguma forma, tentavam burlar a crise. Tive
ótimos e inesquecíveis professores no Lyceu, Maria vitória (biologia), Flavio (sociologia),
Leopoldo (matemática), Vital (filosofia), Maria Lucy (português) Robson (geografia, mas
lecionou história devido à falta de professores), Wanda (Biologia) dentre outros, que mesmo mal remunerados lecionavam com prazer, tendo em vista um propósito maior. Posso
dizer que aprendi muito, não somente coisas referentes ao conteúdo didático mais principalmente sobre o mundo, a vida e aos valores humanos. Agradeço-os pela paciência e a
força de vontade, pelas vezes que deram aulas durante os sábados em conseqüência da
alteração da grade que nos desprivilegiaria no vestibular. E sem receber por elas! E os
perdôo por quase sempre fazerem parte do comando de greve que deixava a gente sem aula.
Tenho ótimas lembranças do Lyceu. Foi lá que recuperei minha auto-estima, me animei mais em estudar, fiz amigos que mantenho ate hoje, Daniela Rezende, Deborah Cintra,
Graziela Apolinário, Danilo (o Cabelo). Até recuperei meu gosto pela escrita! Tenho
“altos textos” e poemas escritos dessa época em um caderno antigo. Em 2002 terminei o
Ensino Médio, fiz vestibular no mesmo ano, como experiência, mas sem muita perspectiva de passar já de primeira. Sabia que seria preciso estudar mais, correr atrás do que não
me foi oferecido. Escolhi como primeira opção “Design de Moda” - não falei da minha
habilidade em desenhar! Sempre tive muito gosto por artes. Porém não passei na prova de
64
Caminhadas de universitários de origem popular
aptidão, e a segunda opção foi “Publicidade e Propaganda”, que escolhi aleatoriamente.
Como já era esperado não fui aprovada. Tinha planos de no próximo ano fazer cursinho e
me dedicar de verdade.
Desenrolando histórias
Em 2003, aconteceu um fato que também posso considerar um “marco” em minha
vida. Marcos, meu irmão mais velho, foi baleado com um tiro na barriga por seu, até então,
melhor amigo. O acidente foi durante uma brincadeira “sem graça” enquanto estavam embriagados. Ele ficou na UTI do HUGO (Hospital de Urgências de Goiânia) em estado grave
mas sobreviveu, quase que por um milagre. E sabe como é, né? Essas coisas acabam mexendo nas estruturas tanto físicas quanto psicológicas de uma família. Parte do meu ano de
estudos foi perdida, tive que ficar em casa tomando conta dele enquanto minha mãe trabalhava, não pude fazer cursinho devido à falta de grana que isso e outras coisas desencadearam.
Estudei o pouco que deu, consegui também fazer um curso de desenho e pintura pra me
preparar melhor pro bendito teste de aptidão.
Fiz vestibular novamente pra Design de Moda. Desta vez passei no teste de aptidão.
Mas que falta de sorte! Zerei a disciplina de Química já na primeira fase. Pois é, ”a Química”, que maldição! 2004, foi mais tranqüilo, apesar das novas dificuldades financeiras que
começavam surgir. Nesse ano não dava mesmo pra fazer cursinho, mais uma vez estudei por
conta própria, em casa, na biblioteca, em livros, em outros materiais que ganhei de amigas
que já tinham feito vestibular. Neste ano comecei a freqüentar mais o espaço da universidade que fica perto de casa. Foi aí que comecei fazer parte do grupo de estudos do professor
Alex Ratts, do Instituto de Estudos Ambientais-IESA. O grupo tratava de questões étnicas,
mais especificamente a questão da situação do afro-descendente no Brasil. Interessou-me
muito, uma vez que, filha de mãe negra, aliás, “da negra mais bonita do Brasil”, o preconceito racial sempre fez sentido em minha vida.
Através das discussões passei a refletir melhor sobre a questão de modo geral e principalmente sobre mim enquanto afro-descendente. Participar do grupo fez crescer meu interesse pelas Ciências Humanas. No final do ano, já próxima a data de inscrições, desisti do
curso de Design e decidi que faria História. E foi o que fiz.Nesse ano fiz dois vestibulares, na
UFG e na UEG. Ufa! Dessa vez não zerei Química, e nenhuma outra matéria. Fui aprovada
em ambos. Então em 2006, a garotinha do pé-de-manga, que sempre olhava o Campus de
longe, imaginando o dia em que estaria ali, se matricula na Universidade Federal, no curso
de História. O curso não é exatamente como que eu esperava, mas de forma geral, eu gosto.
No andamento do curso algumas dificuldades começaram a surgir. A empresa que
minha mãe trabalhava faliu, as coisas começaram a ficar difíceis. Cheguei até pensar em
trancar a faculdade. Mas como sempre em minha vida, não desisti. É aí que o Conexões de
Saberes entra em minha vida. Fiquei sabendo da seleção de bolsas e considerei que pudesse
ser uma oportunidade. O mais importante, no entanto, é como o programa significou algo
mais pra mim. Possibilitou-me trabalhar e discutir sobre temas que me interessam muito e
que tinham ficado de lado, porque quase não se discute “Ações Afirmativas” na academia.
Outro ponto interessante do programa, é colocar a serviço da sociedade, a produção de
conhecimento. Tenho muitas expectativas em relação ao Conexões e a todo o processo que
surge no país de democratização da universidade e de melhoria do ensino público de base,
que se encontra em estado de calamidade. Espero de alguma forma, contribuir com esse
Universidade Federal de Goiás
65
processo. Pois quem esteve lá sabe muito bem o que significa estar lá.
E olha só! A garotinha que queria ser escritora escreve sua vida que não deixa de ser
“fantástica” mesmo que cada conto não tenha tido sempre um final feliz ou uma narrativa
instigante. Mesmo que em muitos momentos nos fartamos dela, tendo vontade de pular
alguns capítulos ou simplesmente fechar o livro sem chegar até o final . Mas a vida é assim!
Um desenrolar, não só de uma, mas de várias histórias, uma reunião de contos cheios de
emoções, carências, desilusões, mas também de felicidades, perspectivas e realizações, e
temos que vive-las uma a uma, sem pressa, e sem desânimo, mesmo quando o capítulo se
torna fadigoso, mesmo quando as palavras se tornam incompreensíveis fazendo com que
tenhamos que voltar ao começo para só depois seguir para as etapas seguintes, concluir a
história e iniciar uma outra.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Objetivos e força de vontade
fazem a diferença
Átila Carvalho Dias*
Me chamo Átila Carvalho Dias. Bem, você que esta iniciando a leitura deste relato
deve está pensando que se trata de um garoto, por causa do nome. Mas se trata de uma
garota. Apesar deste nome ser empregado, na maioria das vezes, como nome próprio do
gênero masculino, ele também é usado no gênero feminino. A razão coerente que levou meu
pai a colocar este nome em mim eu não sei bem. Só sei que ele resolveu colocar por causa de
um filme que assistiu, no qual havia um guerreiro chamado Átila. Quando menina, confesso
que odiava meu nome. Queria ter um nome normal, comum, como qualquer outra menina;
até cheguei a dizer para meu pai que quando eu crescesse iria ao cartório trocar de nome.
Essa questão do nome passou: aprendi a relevar o estranhamento que as pessoas
manifestavam quando ouviam meu nome, já que eu sou uma garota e o nome é do gênero
oposto. Hoje conheço outras mulheres que têm o mesmo nome que eu. E em um trabalho
etimológico (estudo da origem e significado de palavras) que uma amiga fez, descobriu-se
que Átila significa pessoa que gosta de se adornar, e minha personalidade tem essa característica, pois amo estar “bem” vestida, de modo que o que eu use esteja harmonizado. Vejo
que um nome não faz muita diferença, pois o que fará a diferença serão os objetivos e a força
de vontade para alcançar os sonhos. Posso dizer que sou uma guerreira e vencedora, pois
sendo de origem popular, estou fazendo faculdade em uma instituição federal e tenho
vencido, de forma não dramática, todos os obstáculos que a vida coloca na frente de quem
tem essa origem.
Meu pai se chama Lourival e minha mãe, Maria Aparecida. Ambos não concluíram o
antigo primário. Meu pai é padeiro e minha mãe costureira e eles, principalmente minha
mãe, sempre lutaram para que eu me dedicasse aos estudos.
Sou primogênita e negra. Nasci na capital de Goiás, Goiânia, no ano de 1987 e meus
pais só tiveram outro filho, Leonardo, em 1992, 5 anos após meu nascimento. Do período
em que fui filha única não tenho muitas recordações. Lembro-me que morávamos em um
barracão de 2 cômodos no lote onde meu avô paterno mora (tenho grande carinho por meu
avô, uma pessoa muito querida e que sempre me apoiou).
Ao iniciar a vida escolar, minha mãe já me ensinara a escrever meu nome e as vogais.
Aos 4 anos comecei a estudar na Escola Irmão Áureo, próxima à minha casa, e que ficava no
meu bairro, Jardim Nova Esperança. Ao findar do ano letivo, por motivos pessoais, minha
mãe me transferiu para outra escola, que se chamava CECOM. Esta escola, onde estudavam
crianças da periferia, era um projeto de extensão da Universidade Católica de Goiás. Nela
* Graduando em Letras pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
67
estudei do pré-alfabetização até concluir o primário, pois a escola não oferecia as séries
posteriores. Lá fui muito feliz. As turmas eram pequenas, os professores eram legais e todos
eram amigos; a escola parecia uma grande família. Sempre fui a 1ª da turma (graças a minha
mãe que me incentivava nos estudos), terminava as atividades e então ajudava os coleguinhas que tinham dificuldades.
Ao terminar a 4ª série, fiquei com medo de encarar a segunda fase do Ensino Fundamental, pois a professora dizia que teríamos muitos professores e que não seria mais como no
primário. Mudei de escola, fui estudar na única escola estadual do meu bairro, o Colégio
Estadual Robinho Martins de Azevedo. A 5ª série realmente era um pouco diferente do
primário. Mas as crianças eram da minha idade, poucos eram mais velhos e logo conquistei
novas amizades.
O ensino fundamental foi feito com muita tranqüilidade. Na metade da 8ª série, um
moço foi ao colégio no qual eu estudava fazer propaganda de seu cursinho preparatório para
o exame de seleção do CEFET. Até então, nunca ouvira falar da escola técnica. Me interessei,
fiz o cursinho e o exame, mas não passei. A média de corte foi de 40 pontos e fiz só 37.
Continuei na escola estadual e fiz o Ensino Médio. No 2º ano estava muito bem nos estudos,
porém, no 3º ano meu rendimento caiu drasticamente, a maior causa foi uma ilusão amorosa.
Desde o 2º ano já havia decidido que queria cursar fisioterapia, mas antes cursaria
letras, pois me apaixonei por espanhol, esse idioma tão envolvente e com características
belíssimas. Além do fato de que minha professora dessa matéria era muito competente e
também me incentivou no meu sonho. Em outubro de 2004, me inscrevi em uma maratona
preparatória para o vestibular (o curso era particular). Me inscrevi também em 3 vestibulares: na Universidade Católica de Goiás (UCG) para letras, na Universidade Federal de Goiás
(UFG), para letras; e, por último, na Universidade Estadual de Goiás (UEG) para fisioterapia.
Fui aprovada na UCG e reprovada na UEG.
Vestibular da UFG
No dia do exame do vestibular me lembrei de levar tudo, com exceção da carteira de
identidade e dinheiro (não levei dinheiro, pois meu pai me levou ao local da prova e,
depois, me buscaria). Pensei que não me seria permitida a realização da prova, devido a
esse contratempo. Queria desistir, mas pensei: E se essa for minha chance? E se essa for a
faculdade que é para eu estudar? Se eu desistir vou perder a grande oportunidade. Então
consegui forças. Conversei com uma monitora e ela me tranqüilizou um pouco, mas eu
ainda teria que providenciar a chegada de minha carteira de identidade. Sai pedindo a
todos um cartão telefônico emprestado, ninguém tinha. Até que uma mulher me deu dinheiro para comprar um cartão. Fui comprá-lo, mas não tinha lugar que vendesse cartão. A
solução foi ligar a cobrar para a casa de uma amiga, liguei e pedi que ela avisasse minha
mãe. Enquanto o documento não chegava, fui para as proximidades da sala, onde seria
ministrado o exame. O nervosismo era tanto que bebi uma garrafinha inteira de água que
eu havia levado. Chegou o momento do início do processo, dois monitores verificaram
meu comprovante de inscrição, o qual possuía foto, e me permitiram entrar na sala. Após
uma hora meu documento chegou e tudo se tranqüilizou.
No dia do resultado meu nome estava na lista dos aprovados, fiquei muito feliz. Mas
ainda tinha a 2 ª fase, que era no “canetão”. Fiz a 2ª etapa. Não fiquei com muitas esperanças
na minha aprovação. Porém, no dia do resultado, fui a uma lan-house conferí-lo. Eu havia
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Caminhadas de universitários de origem popular
passado (era o meu primeiro ano de tentativa no vestibular, e eu só tinha 17 anos). Soltei um
grito bem alto de alegria e o moço que estava ao meu lado estranhou. Mas a emoção foi
muito grande, afinal eu passara em uma universidade pública e poderia estudar, pois se não
fosse assim não poderia continuar meus estudos, já que meus pais não possuem renda
suficiente para pagar faculdade particular.
No dia da matrícula, fui pintada pelo pessoal da calourada. Quando as aulas iniciaram,
comecei vender bombons e cremosinho na hora do intervalo. Também aos domingos trabalhava em uma feira livre vendendo os cremosinhos, e o dinheiro que eu conseguia era para
pagar as xérox (que não eram poucas), o ônibus e os lanches. Mas eu até me divertia, pois
logo conheci várias pessoas do curso de letras. Uma outra dificuldade foi que os professores
e alguns alunos falavam de temas que eu não estava inteirada. Por exemplo: marxismo,
mitologia grega, lingüística, etc. Nesse momento vi que o conhecimento que eu trazia era
pequeno se comparado ao exigido. E para poder participar das discussões teria que me
esforçar muito mais que outros, já que meu tempo era menor pois gastava 3 horas (de ida e
vinda) no percurso casa-faculdade-casa. Aos poucos fui me inteirando e fazendo parte daquele novo mundo. Ainda tenho dificuldades em alguns assuntos, entretanto, aos poucos,
continuo abrangendo meus conhecimentos e o Conexões foi mais uma porta que se abriu
para que eu tivesse acesso a mais conhecimentos, como, por exemplo: ações afirmativas,
convívio com pessoas de outras áreas, outras visões, etc.
Essas novas vivências têm me ajudado como indivíduo que faz parte desse mundo
moderno, que tem tratado de temas tão variados, sem falar na fragmentação que está presente em todas as áreas do conhecimento. Hoje, quando meus professores falam de gênero,
orientação sexual, raça, etnia e ações afirmativas, eu já posso participar das discussões e
sem falar que ultimamente tem-se trabalhado, na educação, com temas transversais, ou seja,
o educador precisa ter conhecimento de gênero, orientação sexual, raça, etnia, ações afirmativas etc. E agora eu tenho, e isso me será muito favorável na minha formação acadêmica e
profissional. Mesmo com todas as dificuldades que um estudante de origem popular tem
que enfrentar para permanecer na Universidade é possível fazer com que esse caminho se
torne menos espinhoso com ações como a que o Conexões de Saberes realiza. Mas é necessário atingir um público maior para que todos tenham oportunidade de crescer e frutificar.
Universidade Federal de Goiás
69
Dona da minha história
Taísse Dias Guimarães Souza*
Meu nome é Taísse, nasci em Goiânia no dia 11/03/1984. Nesta época minha mãe
estava em um momento muito difícil, pois descobriu que estava grávida de mim quando
minha irmã tinha apenas 5 meses, o que foi um choque. Com tamanha dificuldade financeira e duas filhas pequenas, uma terceira gravidez chegava a ser desesperadora.
Minha mãe, Marilú Dias, nasceu em Goianira, cidade a 22 Km de Goiânia. Até os 20
anos, ela morou com seus pais em uma fazenda, mas quando completou 21, encantada com
as promessas da cidade grande, resolveu trabalhar em Goiânia. Morou sozinha, conseguiu
serviço de doméstica, conheceu um rapaz com quem começou a namorar e pouco tempo
depois engravidou de minha irmã mais velha, Fernanda. O rapaz não assumiu a criança,
meus avós não aceitaram a idéia de ter uma filha mãe solteira e isso foi um terrível desconforto para toda a família. Depois de dar à luz e sem apoio dos pais, Marilú decidiu morar com
sua irmã Antônia, que estava na mesma situação. Nessa época as duas mães e seus bebês
passaram a dividir um cômodo em Goiânia. Após nove anos minha mãe conheceu meu pai.
José Estolano nasceu na Paraíba, atualmente tem 79 anos e é aposentado como servente de obras civis do estado de Goiás. Ele teve 11 filhos no primeiro casamento e, depois de
algum tempo separado, conheceu minha mãe dentro de um ônibus em Goiânia. Os dois
decidiram morar juntos e tiveram duas filhas, Polyanne e eu, e casaram-se 14 anos depois.
Sofremos muito com meu pai. Ele bebia, ficava com a mulherada e sempre foi um pai muito
ausente. Não por não estar presente fisicamente e sim porque ele chegava em casa, mas não
falava nada, não se importava com as nossas vidas, não nos dava atenção, era como se não
tivéssemos pai. Nunca podíamos contar com ele, e se alguma coisa ele fazia por nós, era
debaixo de muita insistência da minha mãe. A crise financeira era grande, pois morávamos
em quatro cômodos, éramos oito pessoas: minha mãe e meu pai num quarto e eu, minha tia,
suas duas filhas e minhas duas irmãs noutro quarto, a dificuldade era imensa.
Com apenas três meses de idade comecei a passar o dia em uma creche enquanto
minha mãe trabalhava. Sofri vários problemas de saúde no período em que freqüentei esta
creche. Foi lá que comecei a ser alfabetizada, com cinco anos. Eu tinha uma professora
muito má, que chegava a me dar medo. Neste momento minha mãe conseguiu comprar um
lote em Aparecida de Goiânia e a patroa dela nos ajudou a construir um barraco lá. A
mudança da cidade de Goiânia para Aparecida de Goiânia dificultou ainda mais a nossa ida
para a creche. Acordávamos cinco horas da manhã e enfrentávamos ônibus lotados, era uma
tristeza, como sofríamos! Aos seis anos saí da creche, pois estava na hora de ir para escola.
* Graduanda em Biblioteconomia pela UFG.
70
Caminhadas de universitários de origem popular
Eu e minha irmã fomos para uma escolinha particular para fazer a primeira série juntas, só
que nos primeiros três meses a professora notou que nem eu nem a minha irmã Polyanne
sabíamos ler, então voltamos para a pré-alfabetização. Cursamos o pré e a primeira série na
escolinha particular.
Na segunda série tivemos que ir para escola pública, já que minha mãe não tinha
condições para pagar escola para nós. Foi muito ruim, estava acostumada com escola pequena, e a nova era enorme, muitos meninos bagunceiros e grandes, que por qualquer coisa
nos agrediam. Então minha mãe me transferiu para uma escolinha pública que estava sendo
inaugurada no meu bairro, tinha poucos alunos, na minha sala somente 10. Comecei a me
sentir a vontade, fiquei nesta escola pública até a oitava série.
Durante este período, com treze anos, eu comecei a me envolver com a igreja evangélica, e, dentro da igreja, senti a necessidade de conhecer mais a Deus. Apesar dessa instituição ter me ajudado muito, percebi que aquela concepção de igreja não resolveria os meus
problemas existenciais. Eu precisava de algo mais. Com a ausência paterna, projetei em
Deus os problemas que sofria com a figura do meu pai: eu sabia que Ele existia, mas estava
sempre distante de mim. Mas não me conformei com aquela situação de sentir Deus de
modo tão distante. Comecei a buscar a realidade com Deus, pois queria conhecê-lo de fato
e não só de ouvir falar. Queria a realidade do viver de Cristo em mim. Nessa busca eu
encontrei vida, consciência, equilíbrio e sentido para minha existência.
Graças a Deus, consegui perceber o limite entre o que era de Deus e o que o homem
fazia no lugar de Deus. Foi quando decidi romper com a instituição e me apegar tão somente
em Jesus. Isso foi uma revolução para minha vida, de modo que passei a enfrentar novos
desafios e viver algo novo em Deus, um caminho desconhecido. Sofri muito preconceito
por causa desta decisão, mas com o passar do tempo e tendo por base o princípio “conhecereis
a verdade e ela vos libertará”, vejo que essa foi a melhor decisão da minha vida. Disso tirei
forças para enfrentar desafios, dificuldades que surgiram me fizeram ver o meu caos de uma
forma diferente e de criar meios para contornar todas minhas limitações, inclusive sociais.
Nos moldes da escola pública era considerada boa aluna e não reprovei em nenhum
ano. Porém, quando cursei a oitava, estava totalmente desmotivada. Minhas irmãs mais
velhas já tinham parado de estudar e eu não sentia nenhuma motivação nenhuma para
continuar. Exatamente nessa época, surgiu a oportunidade de estudar na Fundação Bradesco
de Aparecida de Goiânia. Nossa! Quando entrei pela primeira vez naquela escola tão linda
foi como um sonho. Eu desejei tanto estudar lá e consegui. Minha alegria foi tão grande que
ultrapassa a capacidade das palavras. Ser selecionada nesse processo renovou o meu desejo
de estudar. Para uma aluna de origem popular e negra estudar numa escola de alta qualidade
de ensino e tecnologia avançada, recebendo gratuitamente todos os materiais escolares, o
uniforme completo, informática, alimentação, artes, música e esportes significou mais que
uma oportunidade, algo inexplicável.
Terminei a oitava série e concluí todo ensino médio na Fundação. Durante esse período, me profissionalizei no curso de cabeleireira que a Fundação oferecia de graça para
alunos e comunidade. A atividade informal de cabeleireira me supriu financeiramente até o
início do terceiro ano. Eu arrumava cabelos na casa das pessoas e sobrava um tempinho para
estudar. Como ganhava muito pouco, tive que trabalhar de secretária o dia inteiro e estudar
a noite. Isto foi o inicio do meu pesadelo, pois passei a não ter tempo para me dedicar os
estudos e minhas notas foram lá em baixo, justamente no fim do terceiro ano, quando era
Universidade Federal de Goiás
71
ainda mais importante estudar. Tal realidade fez com que me sentisse incapaz de prestar
vestibular na Universidade Federal de Goiás. Via muitos dos meus amigos pelo menos
tentando, e eu nada.
Fui um fracasso no serviço de secretária onde eu estava trabalhando. No final do ano
perdi o emprego, mas graças a Deus passei de ano. Não prestei vestibular, fiquei tão
frustrada que no ano seguinte eu não consegui exercer nenhum trabalho formal e não
estudei. Me mantive apenas com meu serviço de cabeleireira. Um ano depois, a Fundação
Bradesco me chamou novamente para fazer um curso Técnico em Gestão Organizacional.
Foi neste momento que conseguir ver o mundo em minha volta de modo diferente. Aproveitei cada detalhe desse curso, que era uma oportunidade única de mudar o rumo da
minha história profissional.
Este curso técnico me ajudou no aumento da auto-estima. Os professores nos estimulavam a ser empreendedores e a buscar os nossos objetivos. Neste momento, senti que
poderia fazer um cursinho e prestar o vestibular na UFG, apesar disso ainda ser um desafio. Minha família achava impossível passar na UFG, mas não me importei e continuei
rumo a meu objetivo. Vejo que Deus sempre colocou pessoas certas no meu caminho para
me ajudar. Uma dessas pessoas é hoje o meu esposo. Na época em que era só meu amigo,
me ajudou muito e foi um exemplo para mim, pois também é de origem popular, oriundo
de escola pública, e, com muito esforço e dificuldade financeira, conseguiu passar na
UFG. Ele cedeu todos os seus livros e me ensinou matemática, física e química. Foi um
período angustiante e de sofrimento. Tinha que trabalhar, fazer cursinho, estudar e fazer o
curso técnico.
Alguns dias antes de fazer a prova do vestibular, Teddy e eu, começamos a namorar.
Foi muito bom, pois me deu mais inspiração para fazer a prova. Foi a primeira vez que tentei
prestar o vestibular. Nunca tinha tentado antes, porque eu sabia que não passaria. Foi
maravilhoso quando saiu o resultado da minha aprovação, pois tinha me esforçado muito.
Antes de sair o resultado, as pessoas pensavam que todo aquele esforço era em vão, mas,
graças a Deus, nada foi em desperdiçado. Consegui passar no vestibular, sair bem no curso
técnico, pagar o cursinho e ainda namorar a pessoa que eu amo.
Quando cheguei na Universidade foi uma decepção, pois, além de tudo, os cursos
menos concorridos são preteridos em relação aos demais. Me sentia perdida. Ninguém
dava nada para meu curso, pois ele era para gente pobre, que não tinha como entrar num
curso melhor, então fazia esse. Ainda tinha o problema da distância. Da minha casa à
Universidade tinha que atravessar Goiânia inteira. Os ônibus são tão lotados que pensei
em desistir de estudar. Mas logo pensei: “Foi tão difícil chegar...Desistir agora?” Então
continuei, mesmo que com dificuldades cada vez maiores, já que percebi que muito mais
difícil que entrar, é permanecer.
No primeiro ano de faculdade tive que trabalhar em um salão de beleza, pois sem uma
renda fixa não tinha condição alguma de manter os estudos. Minha família estava com
muitas dívidas e eu precisava trabalhar. Trabalhava todos os dias e aos sábados trabalhava
14 horas seguidas, com um único intervalo de 5 minutos. O dia inteiro em pé, sem
tempo sequer para almoçar, cheguei num nível de estresse tão grande que fui parar no
hospital, pois fiquei muito doente. Foi terrível. Nessa época meus pais se separaram e as
contas se acumularam. Tive que pegar empréstimos para pagar a luz que estava atrasada
havia três meses.
72
Caminhadas de universitários de origem popular
Minhas notas estavam péssimas, mas venci com a graça a Deus. Saí do salão no qual
era praticamente escrava. Recebia muito pouco e a dona do estabelecimento não me pagava
direito. Fui para outro salão, onde passei a trabalhar menos. A dificuldade então passou a ser
a distância. Saí também desse salão e ganhei a bolsa do Conexões de Saberes.
O programa foi uma benção na minha vida, pois além me ajudar financeiramente ao
ponto de possibilitar o sonho de me casar, ainda mudou minha visão de mundo ao ampliar
meus horizontes e gerar a compreensão da minha realidade. Passei a me sentir inclusa no
projeto de uma nova sociedade. Hoje valorizo minhas origens, não sinto vergonha nem do
que sou nem do meu curso, pois tudo isso se tornou de grande valor para mim.
Universidade Federal de Goiás
73
“À espera de um milagre”
Alan Rodrigues de Azevedo*
– Alô! Gostaria de falar com Alan!
– Sou eu, quem está falando?
–É a Cleide, estou te ligando pra dizer que saiu o resultado da UFG.
Nesse momento meu coração disparou: era um misto de ansiedade, medo, angústia.
Seria diferente desta vez? Ou iria começar todo meu sofrimento de novo? Era o fim de anos
de espera, ou tinha chegado meu grande dia? Todos esses pensamentos assaltaram minha
mente naqueles poucos segundos.
–Alan, Alan! Você está na linha?
–Estou, pode falar. Passei ou não passei? Estou preparado!
–Na verdade, eu não sei direito...
Nessa hora meu coração pulou do peito. Ela sabia sim do resultado e estava com medo
de me dizer que eu não havia passado. Era só o que passava na minha cabeça. Ela estava sem
coragem pra me dar a triste noticia. E ligou pra quê? Pra rir da minha cara? Pra me consolar?
Pra chorar comigo?
–Fale logo, não estou suportando essa angústia!
Não entendi minha insistência. Eu não acreditaria em nada do que ela dissesse! Se
falasse: “Alan, você não passou”, eu ia odiá-la por ter sido a portadora daquela notícia
trágica, mas preferiria ficar com a ingenuidade de pensar que ela estava enganada. Mas, e se
ela dissesse que eu passei? Também não acreditaria. Nessas horas fico possuído pelo espírito de São Thomé e só acredito naquilo que eu mesmo posso ver. Então, pra quê tanta
insistência? O melhor era desligar aquele telefone e correr atrás do resultado.
–Alan, eu realmente não sei. Acabou de sair o resultado e a internet está congestionada.
– Muito obrigado Cleide. Vou desligar para conferir com meus próprios olhos.
– Boa sorte!
– Valeu.
Desliguei o telefone e um monte de teorias de perseguição se insinuava. Se saiu o
resultado e ninguém me ligou é porque não passei! E agora? Vou ficar aqui nesse martírio
e angústia, esperando que algum ser humano iluminado se encoraje e me ligue? Decidi que
ninguém podia fazer por mim aquilo que era minha obrigação.
– Estou saindo pra olhar o resultado do vestibular da UFG! - Comuniquei minha chefe
do trabalho.
* Graduando em Medicina pela UFG.
74
Caminhadas de universitários de origem popular
– Saiu o resultado?
– Saiu! – Gritei de longe pra não dar tempo de ela tentar me impedir de sair no meio do
expediente.
Fui para o ponto de ônibus. Meu destino era o Centro de Seleção da UFG. Queria ir até
lá pra ver com meus próprios olhos o resultado. Aquele caminho nunca tinha sido tão longo.
Foram os 20 minutos mais longos da minha vida até chegar ao resultado. Quando desci no
ponto, na Praça Universitária, parece que minhas energias foram todas sugadas pelo medo.
Pessoas correndo, outros gritando, alguns chorando. Precisava correr pra acabar de uma vez
por todas aquela angústia mortífera que eu sentia.
Ao chegar no mural do Centro de Seleção, meus olhos corriam desesperadamente em
busca do meu nome. Avistei de longe: Medicina. Está lá o meu curso! Nesse momento devo
fazer uma pausa pra registrar que nessas horas odiava meu nome começar pela letra A. Eu
não podia me iludir muito. Logo no início saberia se o meu nome estava ou não na lista dos
aprovados. Continuei correndo os meus olhos, e: Adriana Machado Mendonça, Aída Frenner
Costa, Alan Rodrigues de Azevedo. O quê? Sou eu mesmo? Não é possível! A primeira
lágrima rolou dos meus olhos. Não acreditei, precisava confirmar pelo número da identidade. Não podia ser verdade! Confirmado: SSP-BA. Era eu mesmo! Comecei a chorar e a gritar.
Minha felicidade era grande demais pra caber dentro de mim. Era 31 de janeiro de 2003.
Tinha chegado o meu grande dia.
Precisava repartir aquela alegria com alguém. O delicioso gosto da vitória me enchia
de coração. Corri para um telefone público pra ligar para os meus pais, na Bahia. Minha
irmã mais velha atendeu o telefone e quando lhe dei a notícia, ela também não conteve a
emoção. Choramos muito juntos, pelo telefone, naquele dia. Mainha estava trabalhando e
paínho estava na roça. Ela foi a primeira a saber.
A nossa emoção era maior porque nos lembrávamos da música que dizia:
“Vai valer a pena,
ter amanhecido,
ter me machucado,
ter me socorrido...”.
Ivan Lins
Toda minha luta contra um sistema desleal de disputa havia terminado. Eu acabava de
transpor a barreira da desigualdade. Aquele menino pobre, nascido em Caetité, no sertão da
Bahia, era agora, acadêmico de Medicina na UFG.
Toda minha vida de luta contra a maré pra chegar até ali tinha me levado ao
melhor destino que podia imaginar. Rompemos o muro que me separava da universidade e me tornei o primeiro daquela família a entrar numa Universidade Federal. Não foi
fácil. Foram 3 anos de espera. Já estava em outro curso superior, já que não podia pagar
cursinho e muito menos passar mais tempo “à espera de um milagre”. Milagre? Sim,
milagre. Analisando toda minha vida e as oportunidades que tive, muitos dirão que foi
um milagre.
Entretanto, foi um milagre conquistado a cada dia por mim e por minha família. Não
foi como aqueles milagres que a gente levanta as mãos para o céu e espera a bênção. Ah, não
foi mesmo. Foram muitas batalhas, muitas renúncias, muitas feridas, algumas cicatrizes.
Universidade Federal de Goiás
75
Foram anos de muito sofrimento compartilhados com as pessoas que lutaram, choraram e
agora, venceram comigo: mainha, painho e minhas irmãs.
E a luta? Essa não pára. E nem poderia! Eu continuo nadando contra a corrente. Um
aluno de origem popular em um curso totalmente elitizado.
–Hoje nós vamos dar início ao estudo prático da semiologia médica. Já dividi os leitos
do hospital entre vocês. Alan, você ficou com o leito 1A da Medicina Tropical.
– E o que eu devo fazer?
– Vá até lá, entreviste o paciente internado e faça o exame clínico completo. Você tem
20 minutos pra fazer isso. Essa é nossa primeira avaliação.
– O senhor não avisou que seríamos avaliados!
– Seu tempo está correndo doutor!
Fui ao leito destinado. Era meu primeiro contato com o paciente. Agora, do outro
lado. Naquele instante, como um flashback, lembrei da minha tia. Eu tinha 10 anos. Ela
sofria de câncer e já estava em fase terminal, mal se alimentava. Não conseguia realizar sua
higiene pessoal sozinha. Me chamava no canto da cama e pedia pra que eu abanasse as
moscas que já estavam tomando conta do seu corpo. Naquele dia, como em outros, passei a
tarde “cuidando” dela. Ela se foi, mas me deixou o desejo e a missão de cuidar das pessoas,
aliviar seu sofrimento e, quando possível, curar sua doença.
– Alan, terminou o exame?
– Mais ou menos professor!
– Como mais ou menos?
– Não tenho estetoscópio, nem esfigmomanômetro e nem martelo neurológico.
– Não tem por quê?
– O senhor quer mesmo saber? Não tive condições financeiras de adquirir o material!
– Você tem que aprender a determinar suas prioridades!
Não iria adiantar dizer a ele que não era uma questão de prioridade. A Faculdade
ignora a existência de alunos de baixa renda em seu corpo discente. Mais uma vez, mesmo
com a emoção de estar de frente ao meu primeiro paciente, a Universidade tentava me dizer
que eu não devia estar ali. Mas essa era apenas mais uma etapa e eu sabia que, mais uma vez,
chegaria ao final.
76
Caminhadas de universitários de origem popular
O testemunho da sobrevivente
Jenhiffer C. de J. Medeiros *
Eu tenho memórias, lembranças de outras
ruas, outros lugares, muitas experiências
que contribuíram ora de forma saudável,
ora de forma amarga para o que eu sou hoje.
Eu seria injusta se esquecesse dessas
histórias antes de mim, esse passado que foi
tão importante para minha formação
pessoal e emocional. Tentarei ser breve...
Maria José é filha do Tocantins, nasceu na minúscula Palmeirópolis-TO. Foi criada
pelos avós, pois sua mãe (Maria Célia) prometeu que se tivesse gêmeos, daria um dos filhos
para a avó paterna (dona Belarmina) criar. Dona Belarmina quis a menina e, logo, o menino,
José Maria, foi criado pela Maria Célia.
Maria José adorava sua avó Belarmina e seu avô José Augusto, mas a avozinha querida morreu quando ainda era jovem, e senhor Zé Augusto a terminou de criar. Até hoje ela o
chama de pai: “o pai Zé Augusto”. Eu acredito que ele foi a pessoa mais importante de sua
vida, quem mais a amou.
Ele provou que a amava demais quando cuidou dela na adversidade, talvez uma das
maiores de sua vida. A pequena Maria José, aos 5 anos, teve uma doença grave nos ossos:
osteomielite. Por causa dessa doença grave, os ossos lhe saíam carne a fora. Isso lhe rendeu
alguns buracos pelo corpo e uma má formação no lado esquerdo, principalmente na bacia e
na perna esquerda que é mais curta que a perna direita. Zé Augusto, sem ter muitos recursos,
não pôde evitar o problema físico. Construiu com suas próprias mãos as “muletas” de
madeira para a menina conseguir andar. Até hoje ela gosta do que seu avô inventou e
continua fiel ao formato das muletas de madeira.
Tão jovem, ela superou essa adversidade, mas de certa forma, ela morreu e renasceu.
Se tornou uma moça muito perspicaz e inteligente, tinha lá os seus grilos, mas nada que
lhe tirasse a vontade de ver um próximo dia, a vontade de andar e realizar alguns sonhos.
Ela subia nas árvores, ouvia músicas e jornais no seu rádio, mas adorava uma estação que
falava do Rio de Janeiro enquanto ela imaginava a cidade. Nasceu o desejo de ir para o
Rio algum dia.
* Graduanda em Letras pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
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Veio para Goiânia, ficou amiga de sua mãe, trabalhou algum tempo e garantiu o
benefício do INSS por invalidez. Em 1982, ela foi para o Rio de Janeiro com a cara e a
coragem. Queria ser atriz e até estudou em uma escola especifica, mas desistiu. Ela andava
por toda a cidade sem conhecer nada, só perguntando.
Cícero é filho do Ceará e foi tentar a vida no Rio de Janeiro, estudar. Mas ele não teve
para onde fugir, teve que largar os estudos e trabalhar. Passou fome na cidade maravilhosa,
enfrentou muitas dificuldades. Um dia do ano de 1977, embriagado, ele foi atravessar uma
avenida do centro da cidade - ele me disse certa vez que pensou que daria tempo de correr,
que não aconteceria nada. De fato, uma das pernas conseguiu se apoiar na calçada, a outra
que estava na rua, um carro que ele pensou estar longe, a arrancou. Ele perdeu muito sangue,
não tinha pulso, foram achar artéria para a transfusão na axila. Aos 19 anos, ele ficou sem a
perna esquerda, e tem, como ele mesmo diz, um “cotoco” acima do joelho. Ele “morreu”,
mas como a Maria José, renasceu e continuou a sua caminhada.
Um dia, eles se conheceram num ponto de ônibus no Rio de Janeiro em 1982. Ele a
ajudou a carregar a mala e rapidamente conversaram. Ela disse que era de Goiás, e ele, então,
lhe passou seu endereço, caso aquela linda moça precisasse de ajuda.
O dinheiro acabou e Maria teve que voltar para Goiás, mas voltou carregando o
endereço daqueles olhos azuis que ela havia achado tão educado! Escreveu para ele pedindo ajuda, pois queria morar no Rio de vez. Ele respondeu e a ajudou a voltar. Quando ela
chegou, ele já tinha alugado um casebre barato para ela morar e a partir desse momento o
Cícero e a Maria José começaram a namorar.
Mas um dia apareceu uma mulher grávida na porta da Maria José, a Antônia (vulgo
Lúcia). Ela queria falar com Cícero, mas ele não morava lá. Então Lúcia decidiu contar tudo
para Maria mesmo. Disse que era uma ex-namorada, que morava no Ceará e que o filho que
ela estava esperando era do Cícero.
A Maria José ficou atônita, esperou o rapaz ir lhe visitar e terminaram tudo. Assustada,
ela voltou para Goiás. Algum tempo depois, ele veio para Goiás procurá-la, jurou para
Maria que mal conhecia a mulher e que não sabia do filho. Ele a pediu em casamento, ela
acreditou em suas palavras e como gostava muito dele, aceitou. Se casaram no civil em
julho de 1982. Foram morar de aluguel no Rio de Janeiro novamente.
No início do casamento foi que Maria José conheceu realmente o Cícero: ele era um
homem estúpido, arrogante, tinha muitos problemas psicológicos em decorrência de ter
perdido a perna e bebia. Começou para Maria José uma nova onda de provação, um casamento horrível, com um homem muito ignorante.
Em outubro de 1982, nasceu o Clayton filho da Lúcia e do Cícero, meu meio-irmão.
Cícero ganhou algum dinheiro na loteria e foi demitido. Decidiu comprar um terreno em
Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense onde passou a morar com Maria.
A vida passava e o casamento continuava um suplício. Cícero não queria mudar suas
atitudes de “boêmio” (como ele mesmo diz) e a Maria era alucinada por ele. Ele fazia
constantes viagens ao Ceará, ia sempre. Em 1986, uma surpresa, nasce Shirley, segunda
filha de Cícero com Lúcia, outra meia-irmã.
E eu, onde estou nessa história?
No meio de 1986, minha mãe teve coragem e engravidou. No entanto, ela tinha receio
de ter uma filha completamente sozinha. Eu nasci perto da família, aqui em Goiânia, no
Materno Infantil, em abril de 1987. Segundo minha mãe, Maria José, o meu pai, Cícero, ficou
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Caminhadas de universitários de origem popular
muito bravo quando soube de mim, mas eu era um sonho antigo da minha mãe. Ela persistiu
e não deu ouvidos aos médicos tolos que disseram que ela não poderia ter filhos: me pôs no
mundo, com duas pernas, dois braços, tudo no lugar e muitas gordurinhas distribuídas pelo
corpo pequeno. Ela me registrou num cartório de Goiânia. Deu o nome de Jenniffer, mas a
moça que me registrou não entendeu o segundo “n” de minha mãe e colocou um “h”, resultado: Jenhiffer. Por este fato sou única no mundo, ninguém tem um nome feito o meu.
Minha mãe voltou comigo para Nova Iguaçu, para sua casa, para o marido agressivo e
gritador. Ele nunca bateu em minha mãe, mas gritava e xingava como ninguém!
Em 1992, eu comecei a freqüentar escolinhas particulares, acho que fazia o jardim.
Lembro que rabiscava muito e fazia muitos desenhos. Minha mãe já me ensinava algumas
coisas, a desenhar as letras, rabiscar números.
Como minha mãe não tinha condições de continuar pagando, entrei para a escola
pública em 1993. Comecei fazendo o pré, e era tão difícil! Minha mãe brigava comigo pois
eu não conseguia desenhar os traços. Até hoje eu sou hiperativa e na infância era muito
mais. Os meus pais não compreendiam minha teimosia e eu apanhei bastante. Me tornei a
válvula de escape dos dois; da minha mãe por viver humilhada, do meu pai por qualquer
motivo banal.
Apesar das dificuldades, eu consegui fazer a primeira serie em 1994. Nesse ano fomos
pela primeira vez em Goiás e no Tocantins, nas férias. Nessa viagem conheci meus avós,
meus tios e primos, foi muito bom! Ainda em 1994, nasceu a terceira e última filha do meu
pai com a dona Lúcia, a Jane.
Meu pai fazia constantes viagens ao Ceará. Eu e minha mãe passávamos muitas dificuldades, chegamos a passar fome, os vizinhos nos ajudavam dando um prato de comida.
Eu lembro que assistia aos desenhos, ao programa da Xuxa e chorava de vontade de ter o
que eles tinham.
Minha mãe era uma mulher agressiva, não agüentava minha teimosia e me batia sem
dó. Um dia a professora me perguntou por que eu estava toda roxa, eu fiquei com vergonha
e não respondi.
No fim de 1995, viemos passar o Natal com a família em Goiás. Meu pai decidiu
separar e vender a casa em Nova Iguaçu. Desde então, nunca mais eu vi os rostos queridos
dos meus vizinhos, que eram minha família. Meu pai trouxe a mudança algum tempo
depois.
Em 1996, eu fui matriculada no Colégio Rui Barbosa, no Setor dos Funcionários, ia
fazer a terceira série. Minha mãe foi no Rio de Janeiro buscar a metade do dinheiro da venda
da casa. Ficou uns dias fora e foi horrível para ficar sem minha mãe, eu ficava muito triste.
Quando ela retornou, uns três dias depois ela quebrou a perna esquerda, a mais frágil e todos
disseram que a culpa foi minha. Ela ficou muitos dias internada e eu sofria muito com a
distância, tinha medo que minha mãe morresse.
Passado um mês ela voltou para casa, mais amarga do que nunca, eu não sabia por que,
mas ela destilava todo veneno em cima de mim, falava coisas que hoje são muito difíceis de
lembrar, mas que foram muito importantes e contribuíram para minha formação.
Renascer, recomeçar e, no meu caso, crescer
No fim de 1996, minha mãe financiou dois lotes no Setor Veiga Jardim IV, em Aparecida
de Goiânia, onde vivemos até hoje. Nos mudamos em dezembro e na nossa casa não tinha
água, nem luz, mas era muito bom viver no barracão novo.
Universidade Federal de Goiás
79
Em 1997, comecei a quarta série à tarde no Colégio Petrônio Portella, em Aparecida.
Minha mãe me levava de coletivo pra escola, tinha medo que eu me perdesse. O meu pai
continuava no Rio, mandava notícias às vezes, ligava no colégio para falar comigo, me
mandava presentes.
No ano seguinte ele veio à nossa casa, pediu o divórcio à minha mãe, começou a
construir no outro lote - disse que a casa era para mim, me apresentou à cultura protestante
dizendo que era um homem remido pelo “Sangue do Cordeiro”, que agora ele era o
melhor dos seres humanos. Segui a mesma religião e mais tarde me decepcionei, abandonando a igreja.
No colégio, eu não tinha dificuldades com as matérias, eu passava de ano sempre,
nunca reprovei. Meu problema era com os colegas, sofri até o terceiro ano do ensino médio
todo tipo brincadeira, todo tipo de humilhação possível de se imaginar. Mesmo assim, eu
continuava forte, pois eu tinha que chegar em algum lugar!
Antes de começar a quinta série, eu roubava livros de inglês das bibliotecas, das escolas,
ninguém nunca me pegou, melhor pois eu tinha uma vontade enorme de aprender inglês!
O primeiro poema que escrevi foi para um professor de português por quem eu era
apaixonada. Se chamava a flor, inspirado no primeiro poema que li, do Castro Alves: Duas
Rosas. Desde este episódio, nunca mais parei de escrever. Foi nessa época que comecei a
usar óculos por causa da miopia.
Meu pai se mudou para Goiás e morou um tempo com a gente em 1999. Em 2000, ele
trouxe a família do Ceará para morar no estado, em outro bairro é claro, mas meu pai sempre
vinha me visitar.
Em 2000 fiz a sétima série, fui para o matutino, arranjei o primeiro namorado escondido e dava uma de rebelde sem causa. Comecei a querer me revoltar, a fumar. Minha mãe
descobriu tudo e me deu uma boa surra, me fez contar a história do cigarro e do namorado,
me fez terminar com ele, obedeci. Nesse tempo minha mãe começou a mudar e eu também,
ela para melhor, eu para pior.
Comecei a oitava série e os amigos estavam mais mordazes do que nunca. Eu descontava tudo em casa, berrava como uma louca e adquiri o hábito de xingar que cultivo até
hoje. Nesse ano, fiz amizade com a diretora da escola depois que ganhei uma gincana para
o colégio. Todos passaram a me “respeitar”, a tirar dúvidas, pedir cola, coisas assim. Nesse
tempo odiava química: o professor era um estudante universitário e eu não entendia nada
do que ele falava! Deus! Odeio o Linus Paulin até hoje! Eu dizia que queria fazer faculdade
de Inglês, nem sabia que essa faculdade era a de Letras! Às vezes eu dava aulas no lugar da
professora, eu acho que ela deve ter ódio de mim...
No primeiro ano tive o primeiro contato com Espanhol e odiei de cara, nunca gostei de
fazer trabalho, de escrever longas páginas, responder tarefa em casa - nunca fui disso e a
professora de espanhol era cheia dessas coisas! Passei a odiá-la e era recíproco. Nesse ano de
2002, conheci um cara que me motivou muito a aprender inglês. Ele morava em Londres e
eu ficava louca de vontade de conhecer a cidade, louca pra ir pra outro lugar! Do mesmo
jeito que o conheci, ele foi embora. Nunca mais nos falamos.
Dos conflitos para a universidade
Os anos no ensino médio, eu creio, foram os piores. Os professores eram estudantes,
havia muitas greves e eles não sabiam as matérias, só se salvavam uns dois que sabiam
80
Caminhadas de universitários de origem popular
realmente dar aulas. No segundo ano fiquei sabendo o que era vestibular, o que era UFG e
que faculdade particular era a pior coisa que existia no mundo.
As dificuldades continuavam. Minha mãe e eu continuávamos a viver em pobreza
extrema, dependendo da caridade dos parentes, minhas roupas, meus calçados eram usados.
Até os professores zoavam com a minha cara. E os colegas? Deus! Era um inferno que eu
queria acabar logo!
Meu primeiro vestibular foi passar na prova do cursinho comunitário que a igreja ia
promover naquele ano. Consegui passar, ia fazer o cursinho à noite e o terceiro ano de
manhã. Foi o pior ano de todos! Eu queria me livrar da escola, eu queria que o cursinho fosse
para o inferno. Eu estava mais triste e sozinha do que nunca, não por acabar o ensino médio,
mas pela incerteza de um futuro, a angústia de pensar o que eu faria depois.
Quando começamos no ensino médio, eu sentia que as matérias eram mais difíceis e
enfrentar um vestibular era como pular em uma piscina sem água. No terceiro ano não foi
diferente. Eu chegava do cursinho meia-noite e acordava às seis para ir para a escola. Por
fim, não acompanhava o ritmo de nenhum dos dois. Não fazia os simulados a noite, e, de
dia, só conseguia dormir nas aulas.
Uma professora de Biologia na época, não compreendeu minha situação e me deu uma
suspensão de três dias por um motivo ridículo, acho que ela estava de TPM naquele dia, ela
errou meu nome na ficha de suspensão umas três vezes... eu me senti traída, aquela era uma
das poucas professoras que eu admirava e ela estava me colocando num buraco, pois eu
teria prova nos dias de suspensão e aquela situação poderia valer minha vaga na faculdade... mas tudo se resolveu, nunca mais olhei na cara dela, nem ela na minha.
Matei muitas aulas no cursinho, preferia ficar na biblioteca lendo livros e jornais. Eu
fico imaginando minha situação se não tivesse passado no vestibular, minha mãe gastando
tudo o que podia para que eu fizesse o cursinho e eu não valorizava isso. Matava muitas aulas
no colégio também e, resultado: quase reprovei por falta, em física, matemática e espanhol.
Nesse ano fiz o Enem, tentei isenção da taxa do vestibular na UEG e na UFG, consegui
isenção total na UEG e na UFG não. Fiz todos esses vestibulares todos para Letras, a bolsa
do Prouni eu tentaria para jornalismo. Eu passei em todos, mas fiquei pela primeira vez, de
recuperação na escola, faltavam três pontos na média para eu passar em espanhol. Deus, eu
odeio espanhol até hoje!
Consegui passar na escola, não fiz minha matrícula na UEG, o resultado do vestibular
da UFG só ia sair em fevereiro de 2005. Então fui fazer minha matrícula na Camburi, onde
ganhei a bolsa para estudar jornalismo. No primeiro dia de aula, contei para uma menina
minha situação, que estava esperando o resultado da federal. Mal terminei de falar isso, ela
me disse que não trocaria a federal por nenhuma faculdade do estado e faria até o “pior” dos
cursos na federal. Eu confesso que quando ouvi aquilo fiquei tocada, senti um estalo na
mente e pensei, se eu passar, tenho que pensar bastante no que é melhor para mim!
Quando fui conhecer o Campus II para fazer a segunda fase do vestibular, me impressionei com a distância e com a estrutura das faculdades. O prédio da Letras era um dos
melhores, mesmo assim a impressão que eu tive da UFG ficou maculada, por isso queria
estudar onde tinha ganhado a bolsa.
No outro dia saiu o resultado, acordei cedo fui comprar o jornal, quando olhei na lista,
meu nome não estava. Mas quando olhei direito, descobri que eu estava olhando na lista de
engenharia de alimentos e é claro que meu nome não estaria lá, pois eu prestei pra Letras!
Universidade Federal de Goiás
81
Finalmente olhei na lista de Letras matutino e lá estava um dos maiores nomes da lista:
Jenhiffer Carvalho de Jesus Medeiros. Soltei um berro, sai correndo querendo chorar, as
pessoas me olhavam como louca e eu balbuciava: passei na federal, eu passei... eu fui a
única que tinha passado no vestibular da UFG, naquela turma de terceiro ano.
Por causa disso, minha madrinha me deu o computador de sua filha, pois ela tinha um
notebook e não precisaria mais do antigo computador. Num primeiro momento fiquei muito feliz com o gesto, afinal seria de grande valia na faculdade e eu pensava que jamais
possuiria um computador, mesmo que fosse velho. Depois, senti meu orgulho e dignidade
feridos, porque eu percebi que minha madrinha me deu esse “presente” não por eu ter
passado no vestibular, mas por que o computador não teria mais serventia em sua casa e ela
não poderia mais lucrar com ele. Para não jogar fora me deu. No entanto esse presente meio
louco serviu e me serve até hoje, sou grata pela “intenção” que ela teve.
Nunca mais apareci na faculdade onde me matriculei, só avisei que tinha passado na
federal e que não iria mais estudar lá.
Quem disse que as dificuldades acabaram?
Uma tia avó deu o dinheiro da matrícula, minha mãe não tinha, pois o dinheiro de seu
beneficio mal dava pra pagar as contas. Juntei todos os documentos e fui fazer a matrícula
sem o certificado. O secretário da escola, disse que dava para fazer só com o histórico, só que
quando cheguei na faculdade a Margareth da secretaria da faculdade de Letras avisou que
não poderia fazer a matrícula sem o certificado, lá vou eu ficar desesperada...
Fui na escola buscar o certificado e o secretário falou “umas” na minha cara. Me deu
vontade de gritar, até de mata-lo. Então eu lhe disse, com toda calma do mundo, que eu
perderia a vaga e tentaria no próximo ano. Ele, então, ficou sem graça e disse que daria um
jeito. Acho que estava querendo fazer chacota com a minha cara.
No último dia para fazer a matrícula, busquei o certificado e fui na faculdade. Graças
a Deus deu tudo certo. Os veteranos lambrecaram minha cara, sujaram minhas costas, voltei
para casa toda feliz e imunda. Eu era estudante de Letras, eu ia fazer o que eu sempre sonhei:
Inglês! Mas eu não sabia que devido minha colocação no vestibular eu iria para o Espanhol.
Quando descobri, meu mundo acabou, me deu uma vontade de morrer, uma descrença... eu
teria que suportar estudar espanhol por mais dois anos, mas eu tinha pelo menos que tentar!
Nos primeiros meses de faculdade, eu me senti confusa com o ritmo: ninguém chamava
a atenção, não tinha uniforme, não tinha chamada, não tinha sinal para sair e o professor
estudava com você um ano e mal sabia seu nome. O ritmo da faculdade, para mim, era alucinado.
Fiquei muito confusa no primeiro ano, meio perdida, quase reprovei várias matérias.
As dificuldades vieram: dinheiro para xerox, dinheiro para livro, dinheiro para ônibus. Para chegar no Campus II eu pegava seis ônibus por dia, aquilo cansava de mais, cansa
até hoje, pois ainda não disponho de um meio de transporte mais eficaz...
Eu odiava ir para a faculdade estudar espanhol, eu sonhava com inglês! Meu maior
sonho, minha maior vontade era estudar inglês, pois eu sempre fui dedicada nessa matéria
na escola e já estava em um nível bom. Tentei passar em um exame para trocar de língua
estrangeira na faculdade, mas minha nota foi ridícula e continuei no espanhol.
No fim do ano, arranjei um emprego por experiência, seriam só três meses, mas com
dois eu fui demitida. O trabalho exigia eficiência e rapidez, foi na época do Natal que me
demitiram, fiquei triste, mas foi melhor, pois por causa desse emprego eu estava abandonando a faculdade, que estava sempre em cima da linha e eu quase reprovando.
82
Caminhadas de universitários de origem popular
No ano seguinte, 2006 eu pus na cabeça que eu iria fazer inglês com os novatos, mas
eu teria que estudar a tarde, teria que pegar matéria de português, matérias gerais, inglês e
espanhol, dava pra ficar louca, mas assim eu fiz. Eu amava meu curso, mas era como se ele
fosse um bolo sem o recheio. Eu precisava estudar inglês, senão não teria valido a pena
tudo o que eu fiz para ter chegado aonde cheguei.
Então, vieram mais dificuldades: eu não podia trabalhar, meu tempo estava todo ocupado
com a faculdade e não tinha bolsa alimentação, mais uma despesa: o Restaurante Universitário.
No fim do semestre tentei monitoria de Latim e não consegui, tentei outras coisas e
não consegui. Minha mãe tinha que pedir dinheiro emprestado para me sustentar, o meu pai
vinha sempre me visitar, me dava uns trocados, mas ele também não tinha quase nada, pois
gastava com putaria na rua (ele expulsou a família de casa e morava sozinho).
Foi então que eu vi um edital no mural da Letras. Na minha cabeça ler aquele edital
teve o seguinte significado: se você é pobre, saiu de escola pública e está pensando em
largar a faculdade, seus problemas se acabaram, o Programa Conexões de Saberes quer te
dar uma oportunidade!!!
Enfim minha miséria social serviria para alguma coisa: ganhar aquela bolsa que eu
merecia! Eu pensava que ninguém merecia mais do que eu, pois minha mãe mal tinha 270
reais para nos sustentar, pois estava pagando um empréstimo e nós duas vivemos em situação muito difícil mesmo. Ela até hoje não quitou as prestações de nosso barraco e temos
muito medo de ser despejadas.
Preenchi a ficha de inscrição, coloquei todas as cópias de documentos e larguei dentro
do caderno para levar depois. Um dia vi uma colega com a ficha e lembrei que tinha que
deixar a ficha na PROEC. Fomos juntas.
Passou uns dias, estava fazendo prova, terminei em menos de dez minutos, pois eu
queria olhar na internet se tinha sido selecionada para o programa! O meu nome estava na
lista, enorme como sempre e pela segunda vez na vida sai gritando e pulando, chorando e
correndo! Eu não sabia o que fazer, agradecia a Deus e dava murros nas paredes!
Fui inserida do programa, participei de todas as reuniões. Alguns problemas foram
resolvidos, mas uns professores não gostaram muito, pois tive que matar umas aulas.
Lembro de que a primeira coisa que eu comprei para minha casa foi um chuveiro,
pois tomávamos banho na água fria.
O grupo da UFG ficou a par do que seriam as atividades a serem efetuadas, mas foi no
fim do ano de 2006, quando nós fomos para o seminário nacional, que eu percebi a
grandiosidade do Conexões, e senti orgulho de fazer parte daquilo.
Teve o lado financeiro que foi muito bom para me ajudar, mas o Conexões me fez sentir
importante. Esse programa me trouxe uma dignidade que eu nunca tive, uma autonomia que
eu pensava que nunca teria. Até meus professores de graduação têm certa estima pelas minhas
idéias. Por isso, e por muito mais, eu sou grata e nem consigo mensurar o quanto.
Desde que eu entrei para o Conexões, senti orgulho de minhas origens e da minha
origem popular, mas sempre com uma vontade enorme de mudar minha condição social, de
ser uma cidadã digna, uma vontade maior do que todas que já senti de ver minha mãe bem,
pois ela foi a pessoa que mais me apoiou sempre, uma vontade de lutar contra essas injustiças que existem, pensar e pensar em “n” maneiras de fazer do nosso mundo um lugar melhor.
Não sei se terei êxito, meu maior medo é do futuro, mas estou aí para receber os murros e
afagos da vida, morrendo com dor, mas sobrevivendo sempre.
Universidade Federal de Goiás
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Eu vejo um horizonte trêmulo
Eu tenho os olhos úmidos
Eu posso estar completamente enganado
Eu posso estar correndo pro lado errado
Mas a dúvida é o preço da pureza
E é inútil ter certeza...
Engenheiros do Hawai
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Caminhadas de universitários de origem popular
“Sou pequenina e também gigante”
Lilian Gomes dos Santos*
Quem sou eu? Uma verdadeira salada mista ou um misto de belos encontros.
Goianiense; filha de goianos; neta de baianos e mineiros; bisneta de italianos, índios e
espanhóis. O resultado de todas essas permutas gênicas é essa criaturinha de vinte e três
anos, estudante de biologia e bolsista do Conexões de Saberes, meio através do qual vos
falo neste momento.
Nasci no milênio passado – falando assim me sinto como Matusalém – o ano era 1983,
no primeiro dia do mês de novembro. Meu pai, Guerson Gomes, um homem de meia-idade,
divorciado, pai de seis filhos já adultos. Minha mãe, Euripea Ferreira dos Santos, uma
jovem de dezoito anos, cheia de planos, recém chegada do interior do Estado. Seus planos
deram lugar a dois filhos e a uma união informal de doze anos.
Como já tinha sido militar, trabalhador rural e motorista do transporte coletivo de
Goiânia para “cuidar” da nova família, meu pai, vivia de “rendas”. Alugava barracões e nos
supria com o básico do básico, já que ele não permitia que mamãe arrumasse um emprego.
“Mulher minha cuida é de casa!” - palavras dele.
Comíamos mal, vestíamos mal, calçávamos mal e sempre estudamos – eu e meu irmão
Lindomar – em escolas públicas. Cansada das constantes brigas, humilhações, traições e da
dependência financeira, minha mãe, que já costurava em casa, conseguiu vaga em uma
confecção e passou a trabalhar fora, mas não sem brigas, desconfianças, perseguição e
ciúmes do Sr. Guerson. Era 1994; nesse ano minha mãe começou a ter um salário, fomos
expulsos de casa por ele, passamos a morar em três cômodos alugados por ela e em dezembro ele teve um infarto agudo do miocárdio. Morreu aos sessenta e quatro anos e nos deixou
a ver o navio afundar.
Peripécias
Enquanto corria o processo de inventário para partilha da casa com os outros seis
filhos do Guerson, continuávamos a morar no barracão do Setor dos Funcionários e a estudar no Colégio Estadual Rui Barbosa, que depois passou a se chamar Colemar Natal e Silva,
situado no Setor Aeroporto.
De 1993 a 1998, ou melhor da terceira a oitava série no CNS – como dizia minha
amiga Valéria por ter vergonha do novo nome do colégio – fiz grandes amigas (os), brinquei
demais, aprendi muito e comi muita merenda que, aliás, fazia uma tremenda falta quando
* Graduanda em Ciências Biológicas-Licenciatura pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
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acabava porque era nosso café da manhã e o almoço de vários colegas. Durante esse período
tínhamos o grande privilégio de poder ir a pé até a escola. Meia hora de caminhada e
pronto; já estávamos lá. Não dependíamos do precário, caótico, oneroso e monopolizado
transporte público de Goiânia. Quantas saudades!!!!!!!!!!!!!
Mas depois de praticamente três anos de processo, de 1995 a 1998, saiu o resultado do
inventário. A casa foi vendida, o dinheiro dividido em nove partes (entre os oito filhos e
mamãe) e para nós sobraram dezesseis mil reais. Após meses de procura minha mãe encontrou uma casa por esse valor na Vila João Vaz; região noroeste para alguns, região Campinas
para outros. Regionalizações à parte, o certo é que não precisaríamos mais pagar aluguel,
por outro lado, para ir a qualquer parte dependemos dos GOLF’S (grandes ônibus lotados e
fedidos) de Goiânia.
Mudamos para o novo endereço, nova realidade, novos vizinhos, nenhuma amizade. Sentia, e na verdade ainda sinto, falta do Setor dos Funcionários, da rua P-7, da casa
de número 84, em frente ao ex-barracão. Falta não da construção física, mas de todos os
bons momentos e pessoas que lá ficaram. Entre estas a moradora do 84, minha amiga
Carina Marques.
Após a tempestade percebemos que pessoas especiais são colocadas em nosso caminho. Companheiras de todas as horas. A Carminha, mãe da Carina, não deixava de repartir
conosco as compras do supermercado ou da feira, que sempre chegavam em ótima ocasião,
principalmente, quando as dívidas apertavam e mal sobrava para a comida. Carina estava
terminando o segundo ano do Ensino Médio e iria mudar de colégio. Eu, egressa do Ensino
Fundamental, não sabia onde estudar. Só ouvia descrições desoladoras das escolas públicas
que tinham nível médio. Com chance nenhuma de ir para a rede particular me matriculei no
Liceu de Goiânia, mas sem grandes esperanças de um dia entrar na Universidade.
No dia de matrícula da Carina, eu e mamãe fomos acompanhá-la. Era o primeiro
ano de funcionamento do colégio e o dono, Marcos Araújo, já havia sido professor dela.
Creio que para aumentar o número de alunos matriculados, ele nos ofereceu duas bolsas
parciais e eu quase morri de felicidade sem levar em consideração os sacrifícios que mamãe
teria de fazer para pagar cento e tantos reais só de mensalidade, fora o transporte e a comida!
E agora, José?
Já no primeiro dia de aula no Colégio Protágoras senti na pele, e no estômago, as
distâncias entre ensino público e privado. As salas de aula eram amplas, possuíam ar-condicionado, quadro negro sem rachaduras, banheiros com papel higiênico, sabonete líquido e
papel toalha. Não existia a possibilidade de sairmos mais cedo por falta de professor, pelo
contrário, na maioria dos dias tínhamos aula ou prova à tarde além, é claro, das aulas da
manhã. E a merenda? Bem, para lanchar ou almoçar era “só” pagar.
Era óbvia e notória a diferença de conteúdo entre poucos de nós, bolsistas, oriundos
do sistema público e a maioria proveniente da rede particular. Fora os estranhamentos
iniciais, consegui conquistar ótimas amizades. Rafael, Ulisses, Paulo, Cíntia, Ariane, Jürgen,
Rafaela Sayuri são apenas alguns dos vários amigos (as) que muito me ajudaram, inclusive,
quando faltava grana para comer.
E foi ali, mais especificamente, no primeiro ano que meus olhos se encantaram pela
beleza e grandiosidade da vida. Um amor à primeira vista pela biologia. Minha professora, Beth, era fantástica...não tinha mais jeito. Fui cativada pelas mitocôndrias, membra-
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Caminhadas de universitários de origem popular
nas, citoesqueletos, cromossomos, proteínas, briófitas, angiospermas, vertebrados e
invertebrados.
Não sei ao certo se por influência da Carina, que foi estudar Engenharia da Computação na Unicamp, vontade de sair de Goiânia por uns tempos, desconhecimento da nossa
UFG, inocência (burrice) em achar que conseguiria me manter financeiramente longe de
casa ou a conjugação de todos esses fatores levou-me a prestar, no final do terceiro ano em
2001, o vestibular para Ciências Biológicas na Universidade de Campinas e não na Federal
daqui. Beleza, passei na primeira fase! Tomei pau na segunda!
Essa foi apenas a primeira das quatro tentativas frustradas no vestibular da Unicamp,
que é anual. Vez após outra eu via o sonho da minha vida; a possibilidade de “ser” alguém
fazendo aquilo que realmente gostasse, de ajudar mamãe a ter uma vida mais decente sem
precisar trabalhar de doze a quinze horas por dia em cima de máquinas de costura; esbarrar
na crueldade de um sistema de avaliação excludente, arcaico, que nega a enormes parcelas
da população o direito ao saber crítico/científico ou as condena a insaciável fome de dinheiro das Instituições PRIVADAS.
Quando o terceiro ano acabou, não pude fazer cursinho, afinal tinha feito mamãe
contrair uma dívida impagável (até hoje) de seis mil reais com o Protágoras. Consegui
emprego no restaurante da mãe da Ariane, amiga lá do colégio. O cargo, atendente; as
funções, pesar a comida, fazer sobremesas, limpar, cortar, picar, descascar, lavar... decidimos, Cíntia e eu, fazer o vestibular do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet-Go)
para o curso de Química Agro-Industrial no primeiro semestre de 2002. Passamos. Logo vi
que trabalhar o dia todo e estudar à noite não seria tarefa fácil. Saía de casa às 7:00 e
chegava às 23:30. O curso oferecia excelentes perspectivas no mercado de trabalho, mas
não me fazia feliz. Antes do término do primeiro período, abandonei o Cefet.
A reviravolta e o Conexões
Depois de quase dois anos no restaurante Ver o Peso, pedi as contas. Com o dinheiro
do meu seguro desemprego, paguei um semestre de cursinho no centro da cidade. Estava eu
lá, no final de 2003, fazendo a prova da UFG para – adivinhem – Biologia modalidade
Bacharelado. Em fevereiro veio nova decepção. Queria sumir, desaparecer do mapa, desistir
de vez e tudo abandonar. Afinal de contas era minha quinta reprovação em vestibulares,
praticamente todos meus colegas estavam na Universidade e eu?! Naquele momento era a
criatura mais desolada e deprimida da face da Terra.
Por uma miríade de improváveis coincidências, conheci em abril de 2004 um atrevido
estudante do segundo ano de Biologia-Licenciatura da UFG. Daí uma semana, eu e meu
carecão, Leonardo Guimarães Sandim, estávamos namorando. Serei a ele eternamente grata
por ter resgatado em mim a esperança e o desejo de ser um dia bióloga.
Só para variar um pouco em 2004 nós estávamos no aperto financeiro. Costurando em
casa, eu ajudava mamãe e acabei conseguindo juntar os pesados R$ 90,00 da taxa de inscrição do vestibular UFG; porque apesar de tentar, não ganhei isenção. Não foi moleza não.
Em cada calça overlocada, ou seja, fechada na máquina de overlock, eu ganhava R$ 0,30.
Quer dizer, só para a inscrição precisei fechar trezentas calças. É serviço, meninas (os)!
Vencido o primeiro grande obstáculo, que nós EUOP’S (estudantes universitários de
origem popular) enfrentamos em relação ao vestibular, a inscrição, parti para a primeira fase
com a cara e a coragem. Fui para a segunda fase e no segundo dia, depois da prova de
matemática, pensei cá comigo: bombei de novo.
Universidade Federal de Goiás
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Como foi bom estar errada e ver Lilian Gomes dos Santos na lista dos aprovados, na
coluna de Ciências Biológicas – Licenciatura/Noturno. Os outros R$ 90,00 da matrícula o
Leo pôde pagar para mim e, a partir de então, começava em março o novo ano de 2005. Um
dos mais felizes da minha vida, o ano em que entrei na Universidade Federal de Goiás.
Em pouquíssimo tempo eu descobriria que chegar à universidade pública era apenas
uma entre as múltiplas faces do problema chamado estudante universitário(a) pobre. Todos
os percalços do acesso à educação superior de qualidade cedem lugar aos da permanência
em uma instituição que apesar de ser pública não é gratuita em seus detalhes.
Freqüentar um curso noturno no Campus II da UFG é, sem dúvida, um grande desafio.
Ele está situado no extremo norte da Capital, a aproximadamente quinze quilômetros de
distância do centro da cidade e a oito quilômetros da minha casa. Ou seja, uma hora de
ônibus; só um detalhe, são dois na ida e mais dois na volta. A iluminação é precária; ir à
biblioteca, que é distante do nosso instituto, só se for em grupo. Só agora, no quinto
período de curso, é que temos a secretaria a nossa disposição para resolver os problemas
acadêmicos. Antes, somente no diurno. Materiais didáticos como retroprojetores e datashows quase nunca estão disponíveis. Faltam técnicos para os laboratórios de aula-prática
porque quase ninguém se habilita a trabalhar a noite.
Em junho de 2006, fiquei sabendo pela professora Lisbeth Oliveira da Faculdade de
Comunicação e Biblioteconomia do edital de um programa de extensão que visava melhores condições de acesso e permanência na universidade para alunos de origem popular.
Arrumei toda a papelada e fiz a inscrição. Dentre os oitenta inscritos fui uma das vinte e
cinco selecionadas...que alegria!!! Sou conexista desde então.
Receber a bolsa foi e é um presente. Posso me dedicar a meu curso sem precisar
cumprir uma jornada dupla de trabalhadora e estudante, como muitas (os) outras (os)
colegas necessitam fazer. Posso ampliar meus conhecimentos a partir de estudos e discussões sobre temas como as ações afirmativas, exclusão/inclusão, raça e racismo, identidade, etnia, gênero entre tantos outros que, sobremaneira, contribuem para a formação humana que não temos em cursos como o meu. Posso custear o aprendizado de uma língua
estrangeira no Centro de Línguas da UFG, comprar livros e periódicos até então tão
distantes de minhas possibilidades, pagar minhas passagens no transporte coletivo, almoçar ou lanchar no Campus.
Mas, principalmente, tenho em minhas mãos a imensa oportunidade de contribuir
para belas transformações por meio de um projeto de extensão inovador, que dá vez e voz a
nós EUOP’S e cuja importância vai muito além de nos jogar no mercado de trabalho ou na
pós-graduação, como outras bolsas por aí. É inovador porque batalha junto à Academia e ao
Estado para que, cada vez mais, pessoas como eu e você possam adentrar no fantástico
universo do conhecimento e passá-lo adiante.
E ao final de tudo, queridas (os), parafraseando Marisa Monte, só espero que vocês
não tenham se perdido ao entrar no meu infinito particular porque em alguns instantes sou
pequenina e também gigante.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Parte 4 A CADA PASSO,
APRENDIZADO E
VONTADE DE
TRANSFORMAR
O MUNDO
O sertão mora em mim
Vandimar Marques Damas*
Sempre que tenho que narrar sobre minha tristonha história, de tantas caminhadas,
combates e sofrimento, há momentos em que tenho vontade de parar, de colocar um ponto.
Mas continuo, pois minha história nunca terá um final. Narrar não é fácil, como já dizia o
jagunço Riobaldo, de Grande sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Às vezes faltam
palavras, e quando elas surgem, fico me perguntado: será que esta é a melhor palavra para
colocar aqui? Elas têm um imenso significado para mim. “É que toda ação principia mesmo
é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo”
(JGR). O tempo para o qual minha mente se volta, é um tempo que é marcado por acontecimentos simples e banais, mas que têm um significado imenso para mim. Mas vou contar
para vocês, mas o que vou narrar é um algo vazio e sem graça. Às vezes eu tento reinventar
o meu passado para que ele fique mais ‘contável’.
Sair do encanto
Durante o período em que eu estava estudando para o vestibular, imaginava que as
portas se abririam para mim caso eu conseguisse entrar para a universidade. Mas descobri
que esta é apenas uma pequena etapa que devemos percorrer para conquistar aquilo que
tanto almejamos.
Assim que entrei na Universidade o meu principal objetivo era seguir a carreira acadêmica. Meus meus sonhos eram fazer um bom mestrado e um bom doutorado. Mas, como diz
Riobaldo, há momentos em que a gente “carece de acordar de repente de alguma espécie de
encanto. É que as pessoas e as coisas não são de verdade.”
Assim, com o passar do tempo, eu percebi que não seria tão fácil realizar meus sonhos,
uma vez que conseguir uma bolsa de pesquisa não é para todos e sim para aqueles que estão
bem preparados e que possuem “boas” relações com os professores dentro da universidade.
É importante saber que só a vaga na universidade não basta. São necessárias políticas
para assistir este estudante, como bolsas de permanêcia, moradia, alimentação, assistência
médica e odontológica. Infelizmente, a UFG não contempla isso. A moradia estudantil
deixa muito a desejar e a alimentação, às vezes, não é comestível. A vida não é fácil para
aqueles que vêm do interior e por isso a assistência estudantil é de suma importância para a
nossa permanência na universidade. Mas por outro lado a Casa do Estudante Universitário,
além de ter me hospedado, foi uma extensão da universidade, pois foi lá que eu aprendi a
* Graduando em Ciências Sociais pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
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conviver com o diferente e aprendi a respeitar a diversidade. Mas não foi fácil, como reflete
Riobaldo: “Viver perto das pessoas é sempre dificultoso, na face dos olhos”.
Atualmente o Estado tem que lidar com diversos grupos sociais que lutam por reconhecimento. Conseqüentemente, esses grupos exigem políticas de combate a exclusão
social. Assim, o programa Conexões de Saberes é uma importante política que vem para
tentar resolver os problemas do acesso e da permanência na universidade pública, que
atingem a população jovem de baixa renda. Este programa surge com uma proposta nova,
pois além da bolsa ele dá a oportunidade para que nós, estudantes de baixa renda, possamos
realizar uma pesquisa e publicar. Nem mesmo um programa de PIBIC possibilita isso. Assim, eu vejo a minha participação no Conexões como um momento de mudanças tanto na
minha vida pessoal, quanto acadêmica. Isso me ajudou a continuar acreditando que pensar
numa pós-graduação não é um sonho irreal.
Foi na universidade que eu fiz as verdadeiras amizades e tenho certeza que irão prevalecer por toda eternidade. Também foi na universidade que comecei a fazer as seguintes perguntas: ‘Deus existe? Se ele existe onde está ele?’ Eu pensava que na universidade seria o lugar
onde poderíamos romper com as nossas crenças e tradições, e esquecer o lugar de onde
viemos. E com o passar do tempo eu percebi que a cidade não consegue acabar com o Sertão.
Acho que carregaremos o sertão sempre dentro da gente e mesmo que um dia tentemos arrancálo de dentro de nós e fugir para bem longe, ele vai estar lá, nos esperando, pois a nossa
existência depende da existência do sertão. Riobaldo afirmava que “... entre Quem-Quem e
Solidão; e muitas idas marchas: sertão sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de
repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo.
Nascer para ser
O percurso que fiz durante toda a minha vida foi um percurso difícil e não foram
poucas as decepções. Mas me orgulho de chegar aonde cheguei e de dizer “não me merecem” para aqueles que me dispensaram. Após cada decepção eu tentava encontrar algo para
me consolar e acabei aprendendo a gostar da leitura, da música, do cinema, do teatro e da
pintura. Senti que a arte é um artifício esplêndido que nos ajuda, mesmo que de maneira
fugaz, a superar a realidade nua e crua, o jagunço Riobaldo nos passa a seguinte mensagem
“Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém nos ensina: o
beco para a liberdade se fazer. Sou um homem ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não
é cousa terrível?” (JGR). Eu me orgulho de ter feito esta caminhada sozinho, apesar de que
quando me lembro do meu passado eu me sinto profundamente melancólico. Mas o importante é que tudo passou e agora se inicia uma nova etapa na minha vida e com outras
conexões, “nasci para ser” (JGR).
A minha infância e adolescência foram períodos conturbados da minha vida – creio
que é por isso que não sinto saudades da minha infância e nem da adolescência. Achava a
vida sempre triste. O meu nascimento foi marcado pela morte trágica do meu irmão. A minha
família era muito pobre e morávamos na zona rural de Niquelândia-GO. Os meus pais
viviam constantemente brigando. Com seis anos, eu e minha família já estávamos morando
na cidade, mas as brigas continuavam. Até que um dia meu pai resolveu agredir minha mãe
e minha irmã. Eu, ao ver isso, passei a sentir medo do meu pai. Se ele chegava perto de mim,
eu saía correndo com medo que ele me batesse também. A imagem da agressão que meu pai
fez a minha mãe nunca saiu da minha cabeça. Mas o que mais admiro em relação a isso tudo,
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Caminhadas de universitários de origem popular
é que ela tomou a atitude de sair de casa não aceitando assim, continuar sendo agredida por
meu pai. “Tem trechos da vida que amolece a gente” (JGR).
Andanças
Minha mãe. Ela saiu de casa, me levou consigo e nunca mais voltou para casa. Ela
deixou para trás dois irmãos e duas irmãs, todos mais velhos do que eu. Eu fiquei algum
tempo sem ver meus irmãos e minhas irmãs. Fomos morar no local em que ela trabalhava.
Passados alguns meses, recebemos a notícia de que um dos meus irmãos tinha morrido
enquanto tomava banho em um rio. O local onde ela trabalhava era muito longe da escola,
portanto eu ficava impossibilitado de morar como ela. Assim, logo após a morte do meu
irmão minha mãe me levou para casa da minha tia, pois lá era mais fácil para eu estudar.
Tudo isso, a solidão e a certeza de que tudo estava em ruínas, provocou imensa tristeza na
minha mãe. Acho que é como Diadorim afirmou: “mulher é um ser muito sofrido”.
Minha tia exerceu grandes influências na minha vida. Morei apenas um ano com ela
e depois fui morar como meu pai, com quem fiquei mais um ano. Mas a mulher dele não ‘ia
muito com minha cara’ e logo tive que sair de lá. Voltei a morar com minha mãe, fiquei um
ano com ela. Depois, fui morar seis meses com um irmão, mas acabei voltando a morar com
minha tia. A minha adolescência foi marcada por constantes mudanças de um lugar para
outro e assim “fui aprendendo a achar graça no dessossego” (JGR).
No período em que morei com minha tia, eu vivia muito preso e só podia sair para
trabalhar para a escola e para igreja. Eu levava uma vida muito monótona, não vivia nada de
diferente. A minha única diversão era ler. Comecei a ler as enciclopédias que tinha lá em
casa e os livros de história e, é claro, a Bíblia. A igreja protestante teve grande influência na
minha formação.
Morei com minha tia cinco anos, mas infelizmente ela veio a falecer e novamente eu
fiquei sem lugar certo para ficar. Passei alguns meses na casa de um e depois na casa de
outro, até que um dia, uma irmã me chamou para ir morar com ela em Rondônia, na fronteira
com a Bolívia. Fiquei com ela alguns meses e depois fui para a Bolívia. Mudar para lá foi
muito importante para mim. Eu estava saindo de um lugar em que morei durante quinze
anos da minha vida, sem nunca ter saído, e, de repente, eu vou para um lugar totalmente
diferente. Isso para mim era o máximo!
Depois eu decidi vir para Goiânia, mas meu irmão me chamou para ir conhecer um
acampamento de sem-terra no entorno do DF. Ao chegar, decidi ficar um dia mas acabei
morando por um ano morando no acampamento. Nesse lugar eu tive o primeiro contato com
as lutas defendidas pelos movimentos sociais. Mas lá eu via situações de extrema pobreza
e muitas pessoas não tinham nada para comer e dependiam apenas de uma cesta básica que
o governo mandava. Mas apesar da fome e da miséria em que viviam elas não desistiam e
seguiam firme lutando em busca da terra.
Resolvi sair do acampamento e fui morar com minha mãe em Niquelândia por dois
anos. Depois fui para Brasília estudar, mas fiquei apenas um ano na capital do país. Voltei
para a casa de minha mãe. Enquanto eu morava com ela, trabalhava mais de doze horas por
dia em um supermercado como repositor de mercadorias. O tempo que sobrava, eu usava
para estudar para o vestibular e também fazia um curso de línguas.
1999 foi o ano da morte do meu pai, ele já estava muito fraco devido duas cirurgias
que ele tinha feito no coração. Tentei vestibular três vezes, a primeira para Relações Inter-
Universidade Federal de Goiás
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nacionais e a segunda para Ciências Políticas, ambas na UNB. Na terceira vez, fiz a prova
para Ciências Sociais na UFG, onde estudo atualmente.
O real da vida
Para mim, passar no vestibular não foi fácil, uma vez que eu vim de uma escola
pública do interior de Goiás e, como já relatei, tinha que trabalhar muitas horas por dia quase não sobrava tempo para estudar e nem dinheiro para fazer um cursinho. Acho que não
é necessário explicar como o é ensino em uma escola pública do interior. No momento em
que vamos prestar vestibular é que vemos o quanto estamos despreparados para competir,
pois fazemos parte de um processo de exclusão que nos priva de determinadas oportunidades básicas, como educação. Por isso o sistema de cota é de suma importância para facilitar o
acesso de estudantes negros e alunos oriundos de escolas pública na universidade pública.
Diante da dificuldade que enfrentamos nesses momentos chegamos a pensar que
somos inadaptados para as condições normais de vida que são exigidas para um ser humano
que se julga preparado para vida e para o mercado. E quando descobrimos essas dificuldades, nos sentimos isolados e impotentes. Nos enchemos de amargura e uma forte sensação
de que vamos fracassar, sentimos medo de errar. Riobaldo perguntou certa vez: “A vida
disfarça?” Não, ela não disfarça. “No real da vida, as coisas acabam com menos formato,
nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é
muito perigoso... mas me escute. A gente vamos chegar lá” (JGR).
Assim eu encerro a minha narração e espero que tenha narrado o essencial de minha
história, embora eu tenha omitido por menores e detalhes interessantes. “Porque não narrei
nada à toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco
meu veste roupa. O senhor ponha enredo”.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Educação para romper
Edilto Rodrigues da Silva
Caro leitor(a), quero convidá – lo(a) a conhecer a minha historia, nas não apenas como
mais uma de um Estudante Universitário de Origem Popular(EUOP). Gostaria que, com ela
eu passasse uma mensagem de confiança, persistência e busca. A busca pelo ser-mais, como
sujeito de transformação do mundo e não de adaptação a ele.
Em 1983 meus pais saíram da zona rural para nos colocar na escola, na cidade. Somos
um total de 5 filhos, dentre os quais 3 homens e 2 duas mulheres: Luilson, Edilson, Edilto
(eu), Josilene e Maria da Conceição. Quero ressaltar que, muito antes da escola, já tínhamos
uma educação informal, especialmente por parte da minha mãe Maria da Natividade, que
usando papelão e carvão nos ajudou a fazer os primeiros traços da escrita. Como diz Carlos
Rodrigues Brandão: “A educação acontece em vários lugares e há vários tipos de educação,
é uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam”.
Na cidade, enfrentamos muitas dificuldades pois minha mãe tinha apenas a primeira fase
do ensino fundamental, ou seja a 4ª série. Já meu pai, Jazias Viana da Silva, trabalhava na
agricultura, e a vida na cidade não é fácil, principalmente para quem não está “preparado” , o
que nos forçou a ter certas responsabilidades “antes do tempo”. Não podíamos ter tudo que
desejávamos e isso, aliado às dificuldades, nos tornou mais autônomos e unidos para ajudar.
Na escola, ia tudo correndo bem. A persistência, a vontade e a competência, principalmente do meu irmão Edílson, que manteve uma trajetória de sucesso na escola, eram notáveis. Não passo deixar de citar que ele foi sempre minha referência como aluno e também
professor. Nossa infância foi maravilhosa, não podemos reclamar: liberdade. Mas não quero
dizer que meus pais eram negligentes, ao contrário, eles nos acompanhavam intensamente
na escola ou em qualquer outro lugar, estavam sempre presentes, principalmente minha
mãe. Para ela, a mudança seria pelo viés da educação, nossa possibilidade. Por isso suas
ações, orientações e perspectivas nos fizeram perceber isto, tanto que a escola sempre foi o
nosso compromisso pessoal e a levávamos muito sério.
Lembro de um fato que para mim foi marcante: certa vez perdi minhas sandálias e
minha mãe, indignada, me tirou da escola. Mas uma lição ficou: a responsabilidade com os
materiais escolares e tudo mais que era importante para continuar nas aulas, pois era muito
difícil adquiri-los. Os pais têm um papel fundamental na educação: oferecer segurança e,
conseqüentemente, a liberdade que faz crescer. Com os meus pais isso não foi diferente.
* Graduando em Pedagogia pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
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Tivemos muito incentivo e apoio, o que nos proporcionou a garra, a ajuda mútua e determinação. Essa relação, o diálogo, foi o que fez a diferença na nossa educação.
Uma nova visão do mundo
Minha memória guarda poucos professores, acho que são aqueles deixaram marcas
em mim, em especial a professora de literatura na oitava serie Elizabeth Carneiro da Silva.
Naquela série, em 1993, minha identidade sofreu uma alteração. Pela literatura, assumi uma
atitude mais crítica, reflexiva e sobre tudo política. Hoje entendo porque agia daquela
forma em algumas circunstâncias! Passei a enxergar as coisas com inconformismo, pois
compreendia a estrutura sob a qual a sociedade está fundada, e desde então percebi o papel
que deveria desempenhar na sociedade, como um atitude crítica, isto é, dizer não aos “préconceitos”, aos fatos e às idéias das experiências de cotidiano, dizer não às crenças, coisas
que temos como verdadeiras, óbvias, sem antes questionar.
O seres humanos seguem regras e normas de conduta, possuem valores morais, religiosos, políticos, artísticos, vivem em na companhia de seus semelhantes e procuram distanciar-se dos diferentes dos quais descordam e com os quais entram em conflito.
Quando concluí o ensino médio, o que eu mais queria era sair daquela cidade, Monte
do Carmo-TO, pois ali eu sabia que não poderia realizar meus sonhos e conquistar meus
objetivos. No ano que terminei o curso secundário (1996), fiz concurso pela prefeitura
local, ficando com a segunda colocação das 4 vagas, mais infelizmente a politicagem costumeira do interior não permitiu que eu tomasse posse do cargo de auxiliar administrativo.
Revoltei-me com isto e a minha vontade de sair da cidade foi ao extremo, mas antes me
arrisquei como professor de uma escola na zona rural do município. Não demorou muito e
entrei em conflito com os gestores, particularmente com o prefeito e a secretária de educação. As más condições de trabalho, o salário miserável e a falta de equipamento me impulsionaram a criticá-los e exigir mais atenção com a escola em geral. Como não me submeti às
suas condições, expondo suas atitudes em relação à escola, o descaso, fui considerado uma
ameaça e por esse motivo não “servia” para sua companhia.
Em 1997, meu desejo se realizara, fui primeiramente para o Maranhão e depois para
São Paulo. Uma coisa fazia muita falta, a minha família, aquilo que mais valorizo e que de
fato tem maior importância, especialmente a minha mãe. Com este vazio, queria me reencontrar, pois uma coisa era eu sem minha família, e outra sem Ela. Mas a faculdade era uma
prioridade na minha vida, e cada dia mais eu compreendia o sistema como um obstáculo
para atingir meu objetivo.
Em 1998, me mudei para Goiânia. Agora mais próximo da minha família e também
daquela que seria minha companheira. Ela é da mesma cidade que eu. Quando fui para São
Paulo, ela veio para Goiânia. Já nos conhecíamos desde 1995, quando estagiei na sua sala,
na Escola Mestra Bela. Diante de tudo isso, fiquei mais aliviado e pude concentrar meus
esforços no meu foco principal.
Da luta à conquista: oportunidades, dificuldades e acertos
Aqui tive que enfrentar outras dificuldades: aluguel, falta de trabalho e, no início,
falta de ajuda financeira. Pensava que a única maneira de entrar na universidade pública
seria me preparando com um cursinho particular o pré-vestibular. Assim, achava muito
difícil conseguir, pois o dinheiro que ganhava não era suficiente para pagar. Mas busquei
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Caminhadas de universitários de origem popular
informações sobre políticas de acesso na universidade. Por duas vezes tentei a isenção da
taxa de inscrição para o vestibular, pois sempre no período de inscrição não tinha como
pagar. Em 2002 não consegui, mas em 2003 tentei outra vez e fui contemplado. Minha
preocupação então era como preencher as lacunas deixadas pelo ensino insuficiente no
ensino médio. Precisava estudar conteúdos que não vi antes.
Resolvi estudar em casa, mas antes que eu começasse, saiu um cursinho preparatório no
jornal, promovido pelo estado, juntamente com duas universidades, a Federal e a Estadual de
Goiás. Era o “cursinho do povo”, com fascículos semanais e o melhor de tudo, era gratuito!
Assim estudava em casa e uma vez por mês tínhamos um “aulão” num ginásio da cidade, o
Grande Arena. Professores davam palestras e orientavam como fazer as provas revisando os
conteúdos de maneira prazerosa. A primeira fase do vestibular foi tranqüila, me lembrava do
que um professor disse “procure errar menos e não acertar tudo”. Assim passei na primeira
etapa. Na segunda, foi melhor ainda, pois as questões não eram de múltipla escolha, eram no
“canetão” e escrever, pra mim, era chance dobrada e me senti mais seguro nas provas.
Enquanto aguardava o resultado foi para a casa dos meus pais no Tocantins. Minha
irmã, que tinha voltado antes para Goiânia, me avisou do resultado. Tinha passado no curso
de PEDAGOGIA, concorrendo com sete por vaga. No primeiro momento não houve grande
euforia da minha família, por que já era esperado, era só uma questão de oportunidade, e
quando a tive confirmei a força que a educação familiar tem, em manter sempre o foco
naquilo que é melhor para nós e este era um dos meus principais objetivos de vida. Recebi
parabéns de muitas pessoas, inclusive dos meus ex-professores do Colégio Estadual Padre
Gama, onde fiz o ensino fundamental e o ensino médio.
O primeiro ano da faculdade foi de adaptação. Pelo meu perfil socioeconômico me
sentia estranho naquele ambiente. Podia ver as atitudes de alguns professores, discretos mas
preconceituosos. Isso não abalou minha vontade, minha auto-estima. Por outro lado, eu
tinha colegas que me amparavam moralmente, o que me ajudou a superar essas situações,
me fazendo mais forte e tolerante com este tipo de comportamento. Mas o repudiava em
minhas falas, visto que conhecia textos de Marx, Dhurkeim e outros.
Mais dificuldades se revelavam: textos didáticos, alimentação, condução e as taxas
cobradas pela universidade. Enfim, me sentia forçado a sair. As políticas de acesso e permanência “eram” muito tímidas e insuficientes, e além dos mais, estão sempre permeadas por
interesses daqueles que dirigem as instituições dentro da universidade. Quem mais se dá
bem são aqueles que têm representantes nas instituições acadêmicas. Já ouvi muitos falarem, e sei de alguns casos também, onde a influência social e política favorecem. Sabem a
quem? Onde acontece?(...) Vergonhoso e imoral e que me revolta muito. Isso tem que parar,
mas para isso temos que assumir compromisso com a cidadania e a democracia, sendo cada
vez mais questionadores dessa realidade.
Antes de conhecer o Programa Conexões de Saberes, trabalhava de dia com servente
de construção e a noite ia para aula de bicicleta, pedalando cerca de 20 km. Era muito
desgastante, mas o que eu ganhava só dava para as necessidades básicas. Reprovei em duas
disciplinas por falta, quando chovia muito era impossível ir para a aula.
Hoje, tenho dois filhos com a minha ex-aluna, citada anteriormente, Elizabeth Cunha
de Oliveira. Meu primeiro filho tem 7 anos e está na segunda série. Seu nome é Laurício
Rodrigues de Oliveira. O segundo se chama Samuel Rodrigues de Oliveira e tem 3 anos. O
terceiro filho é uma menina, e nasceu no dia 2 de fevereiro de 2007, Laryssa Vitória. Eles são
Universidade Federal de Goiás
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muito importantes pra mim, tenho aprendido muito com eles e ela, uma vez que meu curso
é para lidar com crianças, principalmente.
Estou a quase oito meses no Conexões de Saberes e tem sido muito bom ter uma bolsa
de ajuda, pois agora tenho mais tempo para estudar. Por outro lado, o programa veio somar
forças na luta por uma melhor educação, mais políticas de acesso e permanência para os
estudantes de origem popular e mais oportunidades, bem como na luta contra a ideologia
dominante, que condiciona as pessoas a considerar o atual modelo de sociedade como ideal.
Não é! O melhor é aquele em que todos têm oportunidades e condições de se desenvolverem
sem ser estereotipados como “coisas”. Participo de um movimento popular que luta por
moradia, onde cobramos das autoridades a efetivação das políticas habitacionais e todas as
infra-estruturas necessárias para que uma família possa ter um mínimo de dignidade.
Estou no quarto ano do curso de Pedagogia, ou seja, primeira etapa do ensino superior,
mas quero fazer uma especialização e um mestrado em políticas educacionais. Não quero
deixar meus irmãos vagando por ai! Luilson mora com minha irmã mais nova, que também é
professora e trabalha como vice-diretora em um núcleo de ensino rural em Monte do Carmo –
TO. O Edílson é um grande professor na mesma cidade e fez Geografia, na UFT. A Josilene não
fez faculdade ainda, mas tem o magistério - 2º Grau. Ela foi para a Espanha no dia 9 de
fevereiro de 2006, minha irmã preferida e grande amiga, que sempre me apoiou direta ou
indiretamente, e mesmo longe continua a me ajudar nos momentos de grande sufoco. Minha
mãe, aposentada, mora com meu pai numa “fazendinha” herdada dos meus avós.
Antes de terminar gostaria de agradecer todas as pessoas que, de alguma forma, me
incentivaram e acreditaram em mim: meus pais, meus irmãos, meus colegas da Faculdade de
Educação, do “Conexões de Sabedores” e professores, a todos os docentes que no discurso
e na prática se comportaram eticamente. Finalizando quero mencionar que a educação é um
direito de todos, mas é preciso que exerçam seus direitos que eles sejam efetivados. Se a
deixarmos nas mãos daqueles a direcionam para apenas a pequena parcela da sociedade (os
privilegiados), sempre teremos desigualdades e falta de oportunidades. A educação é um
dos meios de superação do “homem-coisa” para um “ser-mais.”
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Caminhadas de universitários de origem popular
O bater das asas de uma borboleta pode
causar um tufão do outro lado do planeta1
Maiana Gomes Magalhães da Silva *
Itapuranga fica em Goiás, mas quando era pequena minha mãe me respondeu que
ficava no fim do mundo. Imaginei um enorme abismo no fim da cidade, quero dizer, no fim
do mundo de Itapuranga. Esta concepção de cidade é a de uma mulher, agora minha mãe, a
Zezé, como a chamam algumas pessoas.
Esta mulher, quando era menina teve sua essência aprisionada e dilacerada por preconceitos de um conservadorismo exacerbado, filho do tradicional e cruel coronelismo
goiano. Confesso que este é um traço marcante do lugar, apesar de ter vivido pouco tempo
por lá, foi o suficiente para perceber que o respeito à dignidade humana está intimamente
ligado à cor de sua pele, à classe social e a uma moral puritana baseada na pior qualidade de
cristianismo que se tem notícia. Fomos exiladas. Nos mudamos para Goiânia, a capital do
estado, não me lembro bem quando. Éramos Eu e Ela. De origem popular, mulheres e negras,
ela com ressalva de ser mãe solteira, um rótulo massacrante que até me fez, algumas vezes,
sentir-me culpada por ter nascido tão tranqüilamente em um momento tanto inoportuno.
Eu nasci em Itapuranga, no dia 19 de fevereiro de 1984. Neste ano, excepcionalmente,
não houve horário de verão, provavelmente para eu nascer uma autêntica aquariana. A
comunicação, os livros, a liberdade! E com tudo isso, um sentimento de inadequação que
insistia em me perseguir.
“Não me convidaram pra essa festa pobre,
que os homens armaram pra me convencer...”
Brasil, de Cazuza.
Primeiro dia de aula, escola nova e algumas instruções de sobrevivência, entre elas:
“Maiana, se alguém perguntar qual a profissão de sua mãe, diga que sou secretária”. Minha
mãe não era secretária desse tipo que atende telefone, ela era uma secretária doméstica,
mulher, mãe solteira e desventurada pelas peripécias que a vida impôs a ela. Maria José
Gomes de Souza.
1
“Efeito Borboleta, um termo que se refere às condições iniciais dentro da Teoria do Caos, Faz parte
da Teoria do caos”. (Wikipedia).
* Graduanda em Geografia pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
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Dentro do possível se guiou pelo chavão “Estudo ninguém tira” e me garantiu até a 4ª
série em escolas particulares a custo de muitas privações. Em 1994 nasceu minha irmã,
Juliana Brisa Gomes Magalhães e assim se formou nossa família.
Meu pai, Antônio César da Silva teve uma presença, digamos, esporádica em minha
existência. Não sei exatamente com o quê ele teve responsabilidade na vida, mas creio que
foi com poucas coisas e eu não estava inclusa em nenhuma delas.
Em 1994 ingressei no ensino público estadual em um colégio tradicional de Goiânia
chamado Colégio Estadual Rui Barbosa, que inclusive teve seu terreno vendido recentemente a uma empresa privada, ação que fomenta a lógica de tirar os pobres do centro e
amontoá-los nas periferias, fora do campo de visão da burguesia goiana, capital nacional
das camionetes de luxo. Cursei do Ensino Fundamental ao Médio neste lugar que foi no
mínimo especial para mim. Foi lá que construí belas amizades que duram até hoje e foi
também o ponto de partida da minha trajetória de militância, quando era secundarista.
Minha adolescência foi marcada por questionamentos, sobretudo sociais. Transformei minha indignação por este mundo de carcarás em amor para transformar a Mãe Terra em um
lugar mais feliz e justo.
Esta militância meio atravessada pela imaturidade gerou algumas situações até engraçadas. Certa vez, no embalo das emoções geradas pela ânsia de mudar o mundo, minha mãe
ficou preocupada com esse “tal” movimento estudantil que eu “havia me envolvido...”. Ela
imaginava que isso era uma espécie de seita ou coisa semelhante, pois segundo ela eu estava
ficando maluca, fanática, entre outras qualidades nada admiráveis de se escrever aqui.
Ela tentava me “explicar” que aquilo tudo que eu estava vivendo aconteceu na verdade na década de 60, e que a ditadura tinha acabado, portanto aquele esforço era desnecessário, não havia revolução para acontecer. Pediu-me para fazer uma difícil escolha aos 15
anos: eu deveria escolher entre continuar no movimento estudantil ou sair de casa. Se eu
escolhesse o movimento estudantil, que arrumasse minhas malas naquele exato momento.
Saiu aborrecida, batendo a porta, convencida que aquela condição me afastaria compulsoriamente da militância. Quando ela retornou, eu tinha uma mala pronta e estava decidida a
mudar o mundo! Minha mãe relevou naquele momento meu acesso “Che Guevara”, mas
continuou rasgando minhas correspondências às escondidas.
Do jornalzinho da escola ao Programa Conexões de Saberes foi uma árdua caminhada.
A Universidade para mim era um local impenetrável, a menos que eu tivesse dinheiro ou
uma boa formação escolar, ou seja, não era definitivamente um lugar pra mim. Ela, juntamente com a escola pública, são crias perfeitas deste sistema sócio-político-econômico
perverso e demagogo.
A escola pública é na verdade uma comédia, que seria cômica se não fosse trágica. Ela
camufla o significado do conhecimento, o torna enfadonho e no fim não nos dá condições
de continuar, pois o vestibular separa, na verdade, aqueles que tiveram condições para
pagar pelo conhecimento daqueles que não tiveram. O vestibular quer saber das aulas que
nunca tive na escola, dos temas que os professores desqualificados (vítimas deste próprio
sistema perverso) nunca abordaram ou julgaram que éramos pouco competentes para entender. Desta forma, eles nos ensinaram como não ter auto-estima para continuar. Esse preceito
foi e está sendo desenvolvido com maestria e requinte pelas escolas públicas. O vestibular
quer saber o que eu não tive tempo de aprender, pois tive meu primeiro emprego aos onze
anos de idade.
100
Caminhadas de universitários de origem popular
Dos onze anos até o primeiro ano da universidade trabalhei quase ininterruptamente.
Quando entrei na universidade resolvi “chutar o balde” e viver com o mínimo possível para
me dedicar totalmente aos estudos. Decidi fazer uma universidade e não uma faculdade.
Isso me custou vários apertos, e em um deles tive que me mudar para a Casa do Estudante
Universitário I, onde moro atualmente.
Lá pude ver que a minha vida não é muito diferente dos meus 105 colegas de casa,
estudantes de origem popular. Nesta labuta coletiva da casa, parece-me que sua trilha sonora é assinada por Chico Buarque.
Até o fim
“Quando eu nasci veio um anjo safado
O chato do Querubim.
Que decretou que eu tava predestinado
A ser todo ruim...
Já de saída minha estrada entortou...
Mas vou até o fim!”
Minha primeira informação sobre a UFG foi dada por uma colega, quando eu fazia o
primeiro ano do Ensino Médio. Eu perguntei como era a universidade, aquela do governo.
Ela me respondeu que era cheia de carros e que era só pra gente rica. Já fui me programando:
seria uma cientista social quando trabalhasse o suficiente para pagar uma faculdade. Na
verdade, concluí meu ensino médio sem saber muito bem como fazer para conseguir isto.
Enquanto @s prim@s e algumas amigas estavam fazendo cursinho ou vestibular, eu me
encontrava perdida, sem expectativa alguma, na asfixia do vácuo existente entre o ensino
médio e a Universidade.
Aos dezessete anos me mudei para São José dos Campos, interior de São Paulo em um
surto de paixão fumegante e quase patológica por um ex-companheiro e lá tomei certas
decisões, pois a partir de então precisava me manter sozinha. Entre elas foi escrever uma
carta a uma tia, irmã de meu pai, a tia Lúzia, para que ela pedisse a ele que pagasse uma
faculdade para mim, visto que nós não tínhamos contato, assim como hoje.
Pedi assim mesmo, de qualquer jeito, pois eu não imaginava as implicações de estudar
em uma instituição privada. Não tinha noção de custos materiais e psicológicos de estar em
um ambiente como aquele, além de não comungar da mesma realidade que a maioria daqueles clientes, pois são tratados como tal.
O conhecimento é um produto muito caro e está sendo comercializado de uma forma
mercadológica de baixíssimo nível. Vem com código de barras e difunde a reprodução dos
padrões elitistas e repressores do paradigma passado, e também vem engessado, pronto e
acabado como um jornal da Rede Globo.
Iniciei um curso de Direito na Universidade Paulista, somente por constar as seguintes
palavras na grade curricular: “Sociologia”, “Ciências Políticas”, “Filosofia” e para aproveitar
aquela “miraculosa” chance de continuar estudando. Mesmo que não gostasse do curso, eu
achava que precisava adquirir aquele pacote com código de barras para poder me sustentar.
Depois de algum tempo as coisas desandaram e ficou insustentável continuar. Com
todas as despesas, inclusive de moradia, alimentação, transporte, livros, etc. tive que escolher entre permanecer na universidade ou no planeta Terra como um ser humano vivo.
Universidade Federal de Goiás
101
Acredito que não seja difícil compreender que optei por não estudar e morar, me alimentar
e outras coisas que as pessoas geralmente fazem para sobreviver. Abandonei a pseudouniversidade tecnicista e burguesa, UNIP. Fui expurgada daquela empresa assim como
minha mãe foi exilada de Itapuranga.
Depois de um ano, retornei à Goiânia e resolvi estudar para o próximo processo seletivo da UFG sem saber exatamente o que queria estudar. Fiz quatro meses de cursinho e
neste tempo percebi o quão a escola pública havia me enganado. Tinha que aprender o que
as outras pessoas estavam simplesmente recordando. Eu trabalhava pela manhã e ia para o
cursinho às 14h para o plantão de dúvidas (e quantas dúvidas!) só saia às 22h30min de lá.
Ingressei na Universidade Federal de Goiás em 2005, no curso de Geografia, aos 20
anos de idade. Descobri que a soma das coisas que me interessavam tem este nome: Geografia. Curso atualmente o quinto período do Bacharelado em Análise Ambiental e vivo uma
correria considerável, pois mudar o mundo demanda muito tempo.
Dentro da Universidade as coisas não ficaram mais fáceis. O xérox e a condução eram
fortes empecilhos para a minha permanência no curso. Estes impecilhos foram superados na
medida do possível com a ajuda de pessoas muito especiais, que por gratidão gostaria de
citá-las: Leca e Simião, meus tios; Saulo, Bruna, Diogo, Thaís e Micaelle, meus amigos que
nunca falharam na hora da carona, do “rango”, do xérox, dos devaneios a cerca da realidade,
entre outras coisas.
O Conexões de Saberes contribuiu significantemente com a consolidação da minha
identidade de Estudante de Origem Popular (EOP). Associando isso a outras vivências propiciadas pelo ingresso na Universidade, pude ter consciência de várias outras situações opressoras, seja humana, animal, ou simplesmente opressão planetária. Ela está espalhada na atmosfera por todos os lados. Foi na academia que pude conhecer uma forma diferente de pensar, por
um novo paradigma, o da Complexidade, que me fez inclusive compreender como a academia
é excessivamente obsoleta. Chamo-a “carinhosamente” de “velha coroca”, porém sou grata
pela oportunidade de reconhecer isso, ela mesma proporcionou essa descoberta.
Dentro deste arcabouço secular chamado Universidade, me sinto muito oprimida enquanto estudante de origem popular, mas esta tirania não é suficiente para me fazer calar,
pois tenho consciência que eu não sou clandestina, sou legítima e me recuso a me resignar
a esta estrutura opressora e cartesiana que se impõe à nossa sociedade. Eu não fui privilegiada pela maior bolsa da universidade através do Programa Conexões de Saberes, como disse
o Pró-Reitor dos Assuntos Comunitários da UFG, mostrando com esta afirmativa qual a
lógica instalada e reproduzida dentro da academia. Não é privilégio fazer parte de uma
maioria que maquiavelicamente é chamada de minoria, que teve suas oportunidades
restringidas em favorecimento da elite branca e burguesa que descaradamente governa
todo o mundo.
Percebi, e hoje consigo pontuar, que minha angústia é uma realidade a de muitas
estudantes e que isto é um círculo vicioso que deve ser quebrado pelas próprias vítimas
desta engrenagem, guiadas pelo princípio mais belo que a humanidade pode possuir: o da
AMOROSIDADE.
“Amor, palavra que liberta”
Marisa Monte
102
Caminhadas de universitários de origem popular
Esta caminhada é longa, bonita e intensa. Somos todos e todas
arquitet@s da realidade, nas palavras de Paulo Freire: O mundo
não é. Ele está sendo.
Juliana Brisa Gomes Guimarães
Universidade Federal de Goiás
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Longo caminho até a universidade
Marcelo da Silva Rodrigues*
Sou o caçula, sétimo filho do casal Geni Caetano Rodrigues e Sebastiana Rosa Silva
Rodrigues. Meus irmãos são Túlio, Leila, Gicele, Adriana, Alexandre e Mara, minha irmã
gêmea.
Meu pai, homem sábio, amoroso e trabalhador, pequeno produtor rural graças à reforma agrária do governo federal, foi, ao longo de minha criação, carvoeiro, açougueiro e
desempregado. Meu pai foi alfabetizado por sua mãe, pois meu avô achava que estudo não
era necessário. Para ele, “filho era para trabalhar”, tanto que teve onze filhos com minha
avó.
Minha mãe, amor transformado em matéria, para complementar a renda familiar, foi
biscoiteira, costureira e dona de casa. Concluiu a quarta série do ensino primário.
Meus irmãos são exemplos de luta e amor à família, especialmente o Túlio e a Leila,
irmãos mais velhos que sacrificaram a infância e a adolescência, substituindo quando necessário o papel de meus pais, trabalhando para complementar a renda familiar e ensinando
o valor e a necessidade da educação para os mais novos.
Minha família é exemplo cooperação mútua, seja nos afazeres domésticos ou auxiliando meus pais nos empreendimentos comerciais como açougue, carvoaria e entrega dos
biscoitos nos bares das cidades onde moramos.
Já passamos unidos por diversos problemas financeiros e de saúde, como o alcoolismo
do meu pai, a dependência química do meu irmão Alexandre, a gravidez sem planejamento
da minha irmã Adriana e um tumor na cabeça de meu irmão Túlio. Todas as alegrias, conquistas e dificuldades serviram para saber o quanto a família é importante.
Vida
Fui educado em estabelecimentos de ensino público, do ensino fundamental ao ensino médio. Já passei por diversas escolas em diversas cidades, umas boas, outras péssimas.
Minha família em busca de melhores condições e oportunidades, e às vezes correndo mesmo de cobradores, deu-nos a oportunidade de morar em diversas cidades como
Carmo do Paranaíba-MG, Iporá-GO, Goiânia e Unaí-MG. Também morei em várias casas
de bairros diferentes na mesma cidade.
A maior parte de minha vida tive que conciliar escola e trabalho. Assim, comecei a
trabalhar muito cedo, por volta dos dez anos, entregando e vendendo pão de queijo na rua
* Graduando em Agronomia pela UFG.
104
Caminhadas de universitários de origem popular
para minha mãe. Depois trabalhei como balconista, digitador, telefonista, açougueiro –
igual a meu pai, em fotocopiadora, como prestador de serviços em um banco, vendedor de
atacadista - no lugar do meu irmão, quando ele estava doente, segurança e garçom nos finais
de semana, para cobrir as despesas da faculdade.
Mesmo mudando tanto de casa, cidade, escola e emprego, fui muito feliz, brinquei,
estudei e namorei. Essas conquistas são fruto de uma base familiar onde todos, mesmo nas
mais diversas dificuldades, acreditam num futuro melhor.
Por que agronomia?
Devido às deficiências e falta de qualidade das escolas onde estudei foi difícil entrar
numa universidade pública. Foram necessários muita perseverança, muito estudo e, principalmente, acreditar na minha capacidade para que eu pudesse superar as minhas deficiências emocionais e financeiras.
Escolhi agronomia porque eu e minha família temos uma ligação muito forte com o
campo. Meu pai, assentado da reforma agrária, ensinou o valor da terra não como um bem
material, mas como um bem social que gera vida para a nossa geração e as futuras.
Acredito que o curso de agronomia seja responsável, juntamente com outros cursos
voltados para a área de ciências agrárias, por discutir e problematizar as temáticas relacionadas à produção agrícola de alimentos. Acredito também que é necessário compreender o
meio rural tanto quanto as questões socioeconômicas e ambientais para que possamos ter
uma melhor qualidade de vida.
Entrei na universidade
Quando se entra na universidade, somos, como dizia Raul Seixas, “inocente, puro e
besta”. Achamos que tudo vai dar certo, que vamos ficar ricos, que o mundo gira ao nosso
redor, tendo o ego muito inflamado. O choque de realidade chega cedo, quando você
percebe que não tem dinheiro para tirar xerox, tomar café da manhã, que seus pais não têm
a mínima condição de mandar dinheiro, que seus colegas são pequenos burgueses e não
ligam para sua vida e muito menos para a do colega ao lado; quando percebe que seu curso
não gera conhecimento para o bem de toda a sociedade, pois a maioria das pesquisas é
financiada por empresas multinacionais que voltam a atenção para os grandes produtores
rurais, não produzindo conhecimento para o pequeno produtor. Este realmente precisa de
conhecimentos para maximizar sua produção e não ser engolido pelo grande produtor.
Diante disso, chega a se questionar: “Como vou estudar se não consigo me alimentar?”.
Encontrei a minha paz
No meio do desespero total, conversando com alguns colegas veteranos, descobri a
CEU (Casa do Estudante Universitário), e passei pelo processo seletivo, depois de arrumar
vários documentos, um verdadeiro atestado de pobreza. A maioria dos candidatos que
necessitam da moradia é excluída pela burocracia desse processo, por não conseguirem
comprovar que são de baixa renda.
Através dos meus amigos ceusianos, descobri que a universidade tem assistência
estudantil como alimentação e moradia, mas não para todos que precisam. Tenho a impressão que a universidade não encara a assistência estudantil como um direito do estudante,
mas como uma obrigação ou mordomia.
Universidade Federal de Goiás
105
Foi na CEU que descobri a diversidade regional, étnica e sexual. Também foi lá que
tive o primeiro contato com o movimento estudantil e fui motivado a participar do DCEUFG e da coordenação da CEU 3.
Luto para que todos tenham acesso a uma universidade pública, gratuita e de qualidade e para que não seja privilégio de alguns fazer parte dela. Estou engajado nesta luta a três
anos, desde que entrei na universidade.
Participei de projetos sociais na minha área como melhoramento de milho, cana-deaçúcar, mandioca e reforma de pastagem na Associação do Projeto de Assentamento Curral do
Fogo, onde meu pai reside, utilizando as técnicas que aprendi na faculdade de agronomia.
Há oito meses participo do Conexões de Saberes, onde reforço este time de estudantes
de origem popular que, como eu, lutam pelos mesmos objetivos, que são a democratização
do conhecimento, o acesso e a permanência de estudantes de origem popular na universidade pública.
106
Caminhadas de universitários de origem popular
Elogio à mediocridade
Micaelle Juliano Ribeiro*
Nasci em Goiânia. Estudo Geografia no Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da
UFG, onde sou membro do Conselho Diretor, e estou no 7º período. Prestei vestibular três
vezes e em 2004 fui “aprovado” aos 25 anos. Sou morador desde setembro de 2005 na Casa
do Estudante Universitário I, e membro do Conselho Deliberativo da mesma. E também,
presidente da Secretaria Estadual das Casas de Estudantes do Estado de Goiás. E sou bolsista do PCS (Programa Conexões de Saberes) desde o lançamento em junho de 2006. E me
considero afro descendente.
Mamãe, mamãe não chore... a vida é assim mesmo...
Veja as contas do mercado, pague as prestações
Ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos
Seja feliz, seja feliz... mamãe, mamãe não chore...
Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz, mamãe seja feliz.
Caetano e Torquato Neto
Impossível falar de mim sem me remeter e explicar um pouco da história de minha
mãe. Senti essa necessidade pelo lado emocional e também, enquanto fonte importante
para o resgate e compreensão da minha história. O nome escolhido para batizá-la foi Juliana.
Nome singelo e simples que não corresponde à vida trágica e difícil que se apresentou
sempre ante ela, e por isso, hoje, esse nome, significa pra mim: Coragem, pois minha mãe me
deu a vida dela!
Em uma fazenda do interior de Goiás entre as cidades de Diolândia e Cruzelândia,
nasce à menina Juliana. Da família naquela época o único que sabia ler era seu avô paterno
que conseguiu esta proeza sem freqüentar escola e em idade avançada. Ele era o curandeiro
da região e o primeiro e único espiritualista da família, antes de mim.
Juliana é a quarta filha de um casal que teve mais sete filhos, dos quais as duas últimas
são gêmeas e que após cinco meses de nascimento perderam sua mãe, dona Ambrosina.
Juliana estava com treze anos nesse momento. A causa da morte na época jamais poderia ser
identificada, mas Juliana lembra perfeitamente dos inchaços corpóreos constantes, sinais
de pressão arterial alta e muito provavelmente, de eclâmpsia, como as causas complicadoras,
que levaram a óbito no nascimento de seu terceiro filho, que também faleceu.
* Graduanda em Geografia pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
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Com mais ou menos quinze anos Juliana veio para Goiânia com uma família na qual
trabalhava sem remuneração como doméstica desde a cidade de Diolândia. Retornando nas
férias a esta cidade para rever os familiares, conheceu um rapaz mineiro, e nos primeiros
momentos de encontro, houve um interesse mútuo entre eles, ao ponto de Juliana relatar tal
interesse ao seu grande amigo e pai, que a advertiu severamente com o argumento de que
ele já tinha namorada. Mas isso, não foi suficiente para evitar o beijo ao se encontrarem em
uma festividade do colégio da cidade.
Pronto! Nasceu uma história bonita, breve, e ou mesmo tempo triste! E apesar do
encontro, Juliana retornou a Goiânia pra continuar sua vida e Geraldo também continuou a
sua, chegando a noivar com a namoradinha. Mas dois anos depois, faltando vinte dias para
seu casamento em Diolândia, ele desmarcou tudo e seguiu para Goiânia com o principal
objetivo de reencontrar Juliana e dela fazer sua companheira mulher.
Assim, reencontraram-se e com sete anos de namoro em 1975 acontece o casamento e
nascimento em 1977 do primeiro filho, em um parto complicadíssimo, tão grave que o médico
que acompanhou o pré-natal de Juliana, ao ver as condições da paciente na última consulta,
e nos últimos exames, constatou que o parto era de altíssimo risco, com indícios claros de
eclâmpsia devido à pressão arterial. E o pior, o médico disse a Geraldo que se achava incompetente para realizar aquele parto, o máximo que poderia fazer era salvar a Juliana ou o
rebento! E nessa situação Geraldo fez sua escolha totalmente passional, escolheu um outro
médico! Ele não tinha dúvidas, queria os dois, queria o impossível para muitos, menos para
ele e para o Dr. Diogo, um outro médico que ao analisar os primeiros exames de Juliana, pediu
que ela e a sala de cirurgia fossem preparadas em no máximo vinte minutos.
Quando, seu moço, nasceu meu rebento
Não era o momento dele rebentar...
Chico Buarque
E nessas condições eu nasci! Condições desfavoráveis que me perseguiram e que
persistem podendo ser explicadas em grande parte pelo sócio-econômico precário de meu
núcleo familiar. Condições tão comuns a certa parcela da população que sobrevive mais do
que vive! E que apesar de tudo, e de todos, estão aí, mostrando a sua cara em cenários onde
sua presença não é bem quista, como nas universidades federais do Brasil. Então, o contexto
de minha vida já está iniciado e a minha história propriamente dita, pode começar.
Nasci leonino, com todas as características admiráveis e as insuportáveis de um legítimo leonino. Tenho e vivo uma história que se eu lhe enfrentar, de uma outra maneira, serei
engolido por ela! É guerra! É muito como o Guimarães Rosa refletiu sobre a vida, que ela faz
de tudo, agradável ou não, para lhe retirar como resposta a coragem.
Depois que meus pais se casaram, foram morar em uma vila periférica de Goiânia que
possuía uma péssima reputação por ser região de tráfico e usuários de drogas. Então, todo o
preconceito em cima dos usuários se estendia sobre a região. Não havia expectativas ou
horizontes para nós, crianças e adolescentes da Vila Santa Helena. Ás vezes, somente a cruel
esperança. A “realidade” nada permitia além da necessidade da busca de trabalho para
ajudar na renda familiar. Se terminássemos o ensino médio já era um grande feito.
Meu pai trabalhava como vendedor de produtos alimentícios e ao chegar a casa auxiliava minha mãe na administração de um bar-mercearia que era nossa principal fonte de
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Caminhadas de universitários de origem popular
renda. Esse bar e a nossa casa eram a mesma coisa! Minha mãe cuidava da casa, de mim, do
meu irmão e de todos nossos muitos cachorros. Dentre eles, alguns inesquecíveis, mas todos
eles muito necessários para a proteção da casa. A região exigia tal medida. Nela havia
lugares de muita pobreza e muitas pessoas dali possuíam poucas alternativas de sobrevivência e dentre elas, o roubo.
Minha mãe só sabia que eu tinha que estudar para “ser alguém na vida”. Meu irmão
nunca quis estudar, e eu sempre quis e adorava o mundo da escola, dos amigos, das letras,
das artes, da TV, da música, de todo o começo de ano comprar os cadernos com seu adorável
cheiro de novo, e os lápis-de-cor, que eram pra mim a compra fundamental! Adorava bancas
de revista, mesmo sem saber ler nem meu próprio nome. Adorava ficar ali, dentro de uma.
Juliana, coitada, tinha que esperar ou me bater pra irmos embora.
Na briga entre minhas escolhas e as dificuldades, o resultado até agora é que sou o
primeiro e único membro da família que cursa e tem possibilidades de concluir um curso em
uma universidade federal. Esse dado me orgulha até certo ponto, mas o que ele mais me
suscita é a revolta diante do infame sistema público de ensino brasileiro, que tem como
“produto final” a supressão da grande maioria daqueles que por ele passa.
Meus pais, familiares, primos e amigos de infância tiveram em sua grande maioria,
menos opções que eu! E nisso, Juliana foi o diferencial! Minha mãe extrapola qualquer
conceito leonino, sacrificando-se em vida, dedicando-se ao trabalho. Sem esse sacrifício
nunca poderia estar na UFG. Nunca! Se eu tivesse outra mãe de força menor, que não
conseguisse amortecer a realidade à minha volta, eu não conseguiria ser na federal um
acadêmico que contraria todas as formas de exclusão que ela mantém! Sem a força dela
nunca teria a oportunidade de vivenciar uma outra realidade, intangível até então, em meu
meio e família.
Em fevereiro de 1984 as coisas mudaram radicalmente. Tinha quase sete anos quando
meu pai faleceu. Foi um golpe brutal da vida! Lembro perfeitamente da minha mãe e seu
desespero silencioso ao chorar pela perda. Meu irmão na época tinha quatro anos e sentiu
muito o fato, aparentemente, mais do que eu. Outra vez, a guerreira pioneira que saiu do
interior de Goiás, e a partir disso, tornou-se o esteio no transladar de toda a família para
Goiânia, estava no chão! Levou um tiro no coração e só não morreu porque tinha duas
crianças para “criar”. Mas levantou-se, a pesar-lhe na costa um triste destino. Daí em diante,
meu núcleo familiar foi dor, brigas e lutos durante muito tempo.
A mochila colorida na costa e a cabeça cheia de brincadeiras...
O pátio das escolas, as tias do lanche, os lanches esquisitos!
A vida deveria ser mais tranqüila! Afinal, era infância?
Depois de concluir a quarta série, estudei em vários colégios, todos estaduais, grandes
e de baixa qualidade, onde sempre faltavam professores de química e física. As idéias dos
professores de história e geografia que me chamaram a atenção ao longo do tempo. Terminei meu Ensino Médio em um dos tradicionais colégios estaduais de Goiânia, mas que
apesar disso tinha nível de exigência baixo. E o pior, havia pouco incentivo aos estudantes
para prosseguirem nos estudos, causando em muitos uma descrença nos estudos. Com tudo
isso, a universidade não existia pra mim. Mas é fato! Em toda minha história na rede estadual de ensino, pouco recebi de informação sobre universidade. Pelo contrário, as escolas
me colocaram longe das federais.
Universidade Federal de Goiás
109
Em 1997, terminei o ensino médio com 20 anos e sem nenhum “sonho” de entrar em
universidade, este só surgiu anos mais tarde, quando alguns novos amigos estavam pleiteando seus ingressos e começaram a me incentivar. Nessa época, já estava morando em um
setor ainda mais periférico, problemático e violento, chamado Solange Parque. Então, no
ano de 1999, no primeiro semestre, comecei um pré-vestibular, muito animado, obstinado,
disposto a superar qualquer obstáculo! O primeiro foi: como pagar? Minha mãe não demonstrou empolgação em assumir esse compromisso, tendo que sustentar toda a casa, meu
irmão e eu. Não deu outra! Terminei o cursinho, mais não terminei de pagá-lo. Lembro-me
que fazia o percurso de mais de sete quilômetros de minha casa ao cursinho de bicicleta, de
segunda a sábado.
Nem a constatação das minhas grandes deficiências que dificilmente iriam ser supridas pelo cursinho, nem esse esforço físico diário desgastante, nem a incompreensão de
muitos familiares. Nada impedia meu intuito! A única coisa que conseguiu me parar foi a
falta de dinheiro! Nessa época vivíamos da aposentadoria de minha mãe, e esse cursinho
era um luxo insustentável e uma faculdade particular era incogitável! Por que sabia que
não teria a menor condição para pagar os estudos, apesar do fácil acesso. Acreditava que
minha maior dificuldade seria em passar no vestibular da UFG. Hoje sei que isso é um
ledo engano. Então, em virtude desses fatos, tive que conter o meu desejo. A “realidade”
me obrigava.
Comecei o ano de 2000 trabalhando e não estudei em nenhum cursinho, e não
passei no teste de aptidão para Design gráfico, nem para a minha segunda opção, Filosofia. Em 2001, estudei desenho e história da arte e obtive aprovação no teste de aptidão e
na primeira fase, mas na segunda fui reprovado. Consegui trabalho no final de 2002, mas
depois de três meses fui despedido. Então me voltei inteiramente aos estudos para obter
minha aprovação definitiva. Com o acerto deste último trabalho pude procurar um cursinho no inicio de 2003.
No primeiro dia de busca a um cursinho, visitei em seu trabalho uma grande amiga do
ensino médio, que se chama Abelâine. Ela tentou algumas vezes medicina veterinária na
UFG, infelizmente “sem sucesso”! É mais uma pessoa nobre de origem popular que o sistema alienante brasileiro de ensino barrou. A essa amiga contei sobre meus propósitos e ela,
além de me apoiar, me apresentou uma pessoa que me ajudou muito!
Assim conheci Dona Maria, que é costureira. Dentre suas clientes está uma empresaria
da rede de ensino de pré-vestibulares de Goiânia. Por esse intermédio, consegui bolsa com
50% de desconto no pré-vestibular e comecei a estudar no horário matutino. Posteriormente, passei a assistir ilegalmente as aulas do curso de específica de português e as aulas do
cursinho noturno. Então, eu chegava às 7:00 e só saía às 21:00 da escola! Até que começou
uma maior vigilância, mas nesse momento eu já conhecia a profª. Lúcia e expliquei minha
situação e vontade, e ela sem, pestanejar, me liberou para que eu estudasse gratuitamente
em qualquer curso que existisse em seu estabelecimento. Com isso, aproveitei 2003 para
exclusivamente estudar.
No segundo semestre desse mesmo ano, fiquei estudando em casa. Nesse período já
tinha maior compreensão e respeito ao meu objetivo, mas havia a pressão “subliminar”
familiar sobre mim e minha mãe. Ela sofreu mais, principalmente por eu não estar trabalhando. Apesar de tudo eu permanecia tranqüilo, pois tinha me preparado bem. Estava consciente de todo o processo e das dificuldades que superei e as que ainda não estavam superadas,
110
Caminhadas de universitários de origem popular
no caso, as exatas! Mas colocando tudo na balança o peso para minha aprovação era maior.
E isso se confirmou! Fui “aprovado”. Minha escolha foi geografia pela reflexão entre as
matérias que me limitavam, as que sempre gostei e as que menos gostei, e por não haver na
época o curso de Psicologia na UFG.
Universidade, cidades, horizontes, poucas pluralidades, algumas
obscenidades tantas dificuldades, vagos espaços, desvairadas mentes
lutas, belas alegrias, belos encontros e muros muitos,
altos, intransponíveis, resistentes, arcaicos, fixos, os ditos
“acadêmicos”.
que me separam do meu próprio eu! Que “explicam” o você de você!
e ao mesmo tempo é o não! E ao mesmo tempo me nega o conhecer!
O ano de 2004 foi meu primeiro ano na UFG. As dificuldades para o meu acesso foram
muitas e comprovadas pelas “desaprovações” nos vestibulares. Agora, estando nela, as
dificuldades reais apareceram! Muitas vezes ideológicas, com finalidades de manutenção
do elitismo dessa instituição através, por exemplo, do pouco apoio aos EUOP’S (estudantes
universitários de origem popular), que romperam a primeira barreira, que é o vestibular,
com sua falsa indistinção no processo “seletivo”!
Nesse primeiro ano a minha busca por uma bolsa para permanecer exclusivamente
estudando foi exaustiva. Nesse momento, Jô, minha amiga de curso e moradora de Casa
de Estudante como eu, me disse uma coisa surpreendente até então: “O Estado tem o
dever de nos proporcionar a melhor formação possível! E nós, estudantes de baixa renda,
temos que exigir isso!”. Seja pela meritocracia e/ou nas outras formas que a IFES insiste
em manter, a conseqüência é a inevitável não permanência dos EUOP’S que conseguiram
“pular os muros institucionais”. Não existe, por exemplo, uma circulação e divulgação
das poucas e insuficientes ações da Procom (Pró-Reitoria de Assuntos da Comunidade
Universitária) que visam à assistência aos EUOP’S, mediante alguns programas com bolsas remuneradas. Não vejo e não sinto respeito e preocupação da UFG para com estes
estudantes. Minha luta e história acadêmica dentro desta instituição comprovam isso. E
não estou esperando final feliz!
A tão buscada bolsa que me proporcionaria uma permanência mais tranqüila pois me
auxiliaria na questão financeira, só veio no segundo semestre de 2005, por indicação direta
da reitora da época. Caso contrário, eu não teria conseguido esta bolsa “trabalho”, que é
uma das poucas na UFG que não funciona na lógica meritocrática. Ela tem como critério o
estudante ser de baixa renda, mas é péssima tanto pelo valor baixíssimo R$120,00 no
máximo), quanto pela proposta geral da mesma, onde o bolsista tem que pagar horas trabalhando em departamentos da UFG semanalmente, suprindo o déficit de funcionário.
É horrível ter que enfrentar essas condições quase sempre sozinho. Às vezes compartilhei com pessoas de maior compreensão como o prof. Alex Ratts, ou com pessoas em
mesma situação, como a amiga Maiana Gomes. Mesmo agora, desde junho de 2006 como
bolsista do Conexões, continuo a enfrentar as mesmas dificuldades que antes eu enfrentava.
A única diferença é que na questão financeira, elas estão atenuadas, porque no dia a dia,
ainda continuo me equilibrando em uma tênue linha que me liga à conclusão do curso.
Universidade Federal de Goiás
111
Tenho uma óbvia identificação com o programa porque ele trata de temas que dizem
respeito e respondem às dificuldades que vivo. Prevejo na busca por um mestrado a maior
das batalhas contra essa meritocracia. Através da lógica do “mérito” responsabiliza-se unicamente o individuo sobre seu sucesso ou fracasso, desconsiderando o meio e legitimando
a desigualdade que se mascara na pretensa neutralidade da “seleção” via vestibular. Vejam
meu caso! Pelo o ensino que tive do Estado, cursos como Direito ou Medicina não existem
para mim em termos de possibilidades de ingresso. Ou seja, meu horizonte de vida, realização, crescimento foi nefastamente achatado.
O Conexões UFG completa um ano sem apresentar real intervenção nesses mecanismos que sedimentam a desigualdade e isso me perturba muito. Dentro do que o programa
se propõe a fazer, as responsabilidades são muitas. Para enfrentá-las creio que no grupo,
tanto na coordenação, quanto nos bolsistas, falta um melhor preparo teórico-intelectual,
uma suficiente dedicação, e uma identificação com a temática do programa, e isto, que
para mim é o que está sendo o entrave maior para nossas realizações. Falta engajamento,
doação, coração!
Assim, meu questionamento em uma conjuntura institucional e federal é com relação
à utilização da meritocracia, onde a universidade não usa o mérito para a nomeação de
cargos e programas, e provavelmente, se utiliza de mecanismos de negociação política
partidária dos mesmos. Assim, podemos estar elogiando a mediocridade.
Não estou PCS para receber o “salário” mensal! Estou para construir uma universidade
diferente desta inaceitável que hoje é! Rejeito esta longínqua e inalcançável “ilha federal”
àqueles de mesma situação social que a minha. E me motivo a estar ainda no Conexões por
acreditar que este programa possa ser o meio para transformar este quadro para os próximos
euop’s “náufragos” que chegam a duras penas a UFG e que são discriminados e impedidos
pelo elitismo de permanecer e concretizar esse direito humano e civil à educação com
qualidade! Direito esse que por enquanto nos é dificultado, negado!
É para isso que pra mim o Conexões UFG deve existir, e é por isso que eu critico e
irrito! Luto por ações afirmativas e desejo ver o Conexões UFG lutando também.
“Você deve notar que não tem mais tutu e dizer que não está
preocupado.
Você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado.
Você deve estampar sempre um ar de alegria e dizer: tudo tem
melhorado! Você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está
desempregado. Você merece, você merece. Tudo vai bem, tudo legal.
Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé se acabarem com teu Carnaval?
Você deve aprender a baixar a cabeça e dizer sempre: “Muito
obrigado”.
São palavras que ainda te deixam dizer por ser homem bem
disciplinado. Deve, pois só fazer pelo bem da Nação tudo aquilo
que for ordenado. Pra ganhar um Fuscao no juízo final e diploma
de bem comportado. Você merece, você..
“Comportamento Geral” Gonzaga Jr.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Não vim até aqui para desistir agora
Giselle Vieira dos Anjos*
Como todas as crianças, brinquei e curti muito minha infância. Fiz algumas traquinices, que muitas vezes deixavam meus pais irritados. Cresci em um lar simples e sem regalia,
mas meu pai nunca deixou faltar algo para nós, sempre tínhamos o necessário para viver.
Meu pai é um homem simples e trabalhador, cursou apenas o primário e por esse
motivo nunca conseguiu um bom emprego. Então, ele tenta sobreviver como o próprio
negócio que administra (vendedor de churrasquinho) na mesma cidade que moramos,
Aparecida de Goiânia-GO.
Minha mãe sempre foi a “senhora do lar”. Certa vez até tentou trabalhar de doméstica,
mas foi por pouco tempo, pois eu e meu irmão éramos ainda pequenos e não tinha quem
cuidasse de nós. Nesta mesma época, meu irmão quebrou o braço, e então ela decidiu não
trabalhar fora enquanto a gente não crescesse.
O tempo passou e chegou a época de estudar. Fui matriculada em uma escola pública,
onde iniciei a alfabetização. Fiquei apenas uma semana nessa série, logo me passaram para
o pré – forte, pois eu já conhecia as vogais, o alfabeto e sabia juntar algumas letras. Isso
porque minha mãe me ensinava em casa.
Nesta época ainda morávamos de aluguel e vivíamos mudando de casa. Conseqüentemente, eu tinha que mudar de colégio. Entretanto isso nunca atrapalhou meu desempenho
na escola. Sempre fui uma boa aluna e gostava muito de ir as aulas, apesar de que as escolas
em que estudei não eram tão boas. Sabe como é o perfil das escolas publicas... não têm
muito a oferecer aos alunos, a não ser professor, quadro, giz e carteira para se sentar.
Muitos professores bons e compromissados cruzaram meu caminho. Uma professora
com quem aprendi muito, principalmente gramática, foi Maria Silvéria, que me deu aula de
português na sexta série. Outros professores também foram muito importantes e contribuíram bastante para a minha formação. Em contraste, tive professores péssimos que não tinham nenhum interesse em ensinar.
Outro aspecto negativo na minha vida escolar foram as greves na rede pública. Passávamos até meses sem ter aula. Como é de se esperar, nós, estudantes, sempre saíamos prejudicados, pois os professores atropelavam o conteúdo e ficávamos sem aprender muitas coisas.
O sonho de cursar uma faculdade estava muito distante, não acreditava na possibilidade
de estudar na UFG (Universidade Federal de Goiás) e nas particulares nem cogitava prestar o
vestibular, pois sabia que meu pai não daria conta de pagar as mensalidades, que são tão caras.
* Graduanda em Enfermagem pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
113
Embora meus pais reconhecessem que cursar uma faculdade é um privilegio da minoria, eles
nunca desistiram de me apoiar e incentivar a estudar. Almejavam um futuro melhor para mim.
No entanto nunca exigiram que eu trabalhasse para ajudar nas despesas de casa.
Enquanto estava cursando o ensino fundamental, ainda não tinha me dado conta de
que teria que enfrentar um vestibular. Apenas quando cheguei ao 3º ano do Ensino Médio é
que decidi me dedicar à prova. Então fiz um cursinho preparatório paralelo ao 3º ano.
Neste período de tanta pressão e vestibular se aproximando, me senti muito apreensiva. Não estava preparada para enfrentar toda aquela rotina: escola, cursinho e ficar estudando até de madrugada. Além disso tinha que enfrentar a distância da minha casa ao cursinho,
um percurso que durava quase duas horas. Entretanto o meu alvo era ingressar em uma
Universidade Pública, então se dependesse de mim, iria até o fim.
Por fim, chegou o dia tão esperado, a primeira etapa do vestibular 2004 da UFG. Por
incrível que pareça eu estava muito tranqüila neste dia. Uma semana depois saiu o resultado
e meu nome estava na lista dos aprovados na 1ª etapa. Fiquei muito feliz mas sabia que
estava por vir uma barreira muito maior, a 2ª etapa, com redação, literatura, física, química,
matemática e biologia, tudo isso no “canetão”!
Por fim, em fevereiro de 2004, saiu a relação dos aprovados. Para minha surpresa meu
nome estava entre os aprovados para o curso de enfermagem na UFG. Que grande alegria!
Nem parecia ser realidade.
As dificuldades começaram mesmo com o ingresso na Universidade. A distância do
campus universitário até minha casa e ter que ficar o dia inteiro na faculdade foram grandes desafios! Além disso, tinha gastos com a alimentação, ônibus e xérox e meu pai não
estava financeiramente preparado para me sustentar em um curso integral. Até passou pela
minha cabeça desistir de tudo, mas não poderia fazer descaso desse grande mérito que
havia conseguido.
Notando meu esforço duas tias minhas decidiram me ajudar financeiramente. Então
mudei para perto da faculdade. Sem dúvida foi a melhor coisa, apesar da solidão que senti
longe da minha família.
Mais de 14 anos se passaram desde aqueles primeiros momentos em que comecei a
aprender a juntar as letras e nunca imaginava que um dia poderia escrever este memorial.
Sem dúvida isso é muito gratificante para mim. É um privilégio concedido pelo Programa
Conexões do Saberes, projeto que abriu um leque de oportunidades de aprendizagem e
discussões acerca de temas sociais.
Enfim, vivemos em uma sociedade meritocrática e se quisermos conseguir alguma
coisa, temos que nos esforçar muito e aproveitar toda a oportunidade que aparecer, senão o
conhecimento científico ficará monopolizado pela camada elitista e sempre seremos subalternos a eles.
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Caminhadas de universitários de origem popular
“Caminho suave”
Sidiclei Ferreira Leite*
“Não sou nada,
Nunca serei nada
Não posso querer ser nada
À parte isso tenho em mim
todos os sonhos do mundo”
Fenando Pessoa em
“Tabacaria” por Álvaro de Campos
Dezembro era o mês. O ano? Não me lembro! Mas creio que era 1979. Morávamos na
fazenda de meu avô materno, Alberto Leite Sobrinho, e numa tarde vi meu pai chegar com
alguns pacotes e entre os presentes de natal estava uma cartilha. Havia também cadernos,
lápis e borracha.
Estava tudo organizado para que eu e minha irmã mais nova fossemos para escola em
fevereiro do ano seguinte. Se tratava de uma escola na zona rural, próxima a sede da fazenda
Lavrada, onde moravam os meus avós maternos, Aberto e Sidonila, cuja segunda filha,
Limercy era professora. Tia Cy, como é chamada, cuidava de todo o trabalho na escola,
desde as matrículas até a organização da sala, que cuidadosamente era disposta em filas de
acordo com a série, sendo que os alunos menores ficavam nas primeiras cadeiras.
Concluí a primeira etapa da minha vida acadêmica nesta escola. Neste período o que
mais me atraía era a volta da escola para casa. Eram dois quilômetros de caminhada por uma
estrada no meio do cerrado onde não era difícil encontrar murici, mamacadela, goiabinha,
jatobá, marmelada, cajuzinho, araçá, curriola e outros frutos do cerrado. Essas delícias, às
vezes eram disputadas a tapas, mas se me recordo bem, ninguém chegou a se ferir seriamente.
Longos e felizes anos, até que um dia fui acordado antes da sete da manhã. Deveria
acompanhar meu pai, Jaci Gomes Ferreira, na capina da roça de arroz que agonizava no
meio do mato. Juro que nunca apreciei esse tipo de trabalho, mas continuei até por volta dos
doze anos, quando fui morar num garimpo de ouro com meu tio Jorge. O garimpo do Bié
ficava no mesmo município a uns 95 km da fazenda onde ainda moravam meus avós, tios,
pais e meus quatro irmãos mais novos, cujos nomes são Beatriz, Oberdã, Geam e Patrícia, a
última com sérios problemas de saúde (hoje curada e mãe de dois lindos garotos).
* Graduando em Filosofia pela UFG.
Universidade Federal de Goiás
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Foi a primeira vez que me afastei da casa paterna, fiquei no garimpo por mais ou
menos dois anos e neste período as visitas à família eram pouco freqüentes, pois o trabalho
era muito e nem sempre o jipe podia descer a serra. As chuvas em abundância dificultavam
ainda mais qualquer viagem, então eu permanecia na região das minas por meses até que um
dia, depois que Fábio, filho mais novo do tio Jorge, incendiou o barraco, a mina foi vendida
e migramos para a capital.
Morando na cidade, pude voltar a estudar, fui matriculado no Colégio Estadual Rui
Barbosa, na quinta série. Não cheguei a concluir, pois a convivência com meus tios tinha se
tornado não muito boa e acabei voltando para a fazenda Lavrada.
De volta à convivência com meus pais e irmãos, meu espírito já se tornara inquieto,
pois, passei por experiências adversas e até mesmo extremas. Como é sabido, em regiões de
garimpos a violência é corriqueira, tive que me habituar a ver cadáveres e muitas brigas. Na
capital o contato com essa vertente do comportamento humano cessou, mas, acabei por
aprender outras coisas, inclusive a cozinhar e fazer o trabalho de garçom no restaurante do
tio Jorge, aprendizado esse que mais tarde, com um pouco de aperfeiçoamento, me fez um
profissional na arte culinária.
A fazenda Lavrada de propriedade do meu avô Alberto (vulgo Betinho), pai da Rosa
Izabel, que por sinal é minha mãe e que ainda não tinha sido apresentada, ficava no município de Pilar de Goiás e, como é de se presumir, era um espaço pouco atrativo para um
adolescente cheio de vontade de mudar o mundo. Com muita insistência, meus pais permitiram que eu voltasse para Goiânia e comigo trouxesse minha irmã Bia.
A capital
Desta vez fui morar na casa da tia Maria, irmã de minha mãe. Era final da década de
1980. Chegamos no meio do ano e só voltei à escola no ano seguinte. Minha irmã havia
regressado à fazenda, ela tinha outros planos. Preferiu fugir de casa com um rapaz dez anos
mais velho, com quem teve duas filhas e vive até hoje.
Matriculei-me no Colégio Estadual Damiana da Cunha para cursar a quinta série no
turno noturno. Concluí o ano com êxito, mas como o colégio ficava longe só chegava em
casa próximo da meia noite e o trabalho durante o dia na fábrica de pipocas era exaustivo.
Resolvi me matricular num colégio próximo de casa e então comecei o ano seguinte no
Colégio Estadual Joaquim de Carvalho Ferreira, uma instituição absolutamente desorganizada, com alunos violentos e pouca coisa à fazer.
Não foi difícil fazer amigos e com eles pude experimentar uma quantidade incrível de situações novas. Comecei a usar drogas e a beber. Já chegava em casa de madrugada, fui advertido seriamente, mas já era tarde, minhas notas estavam péssimas e a
recuperação só foi possível graças a insistência da tia Maria. Terminei o ano passando para
a sétima série e com o sentimento de que o mundo estava errado e eu tinha a obrigação
de mudá-lo.
A sociedade capitalista mantém uma estrutura que em nada me agrada: minha grana
era pouca, morava na periferia e via as pessoas em conflitos com a polícia para terem o
direito a uma moradia. Enfim, minha rebeldia aumentava na mesma medida que conseguia
visualizar essas mazelas e me sentia o próprio nada, incapaz, debilitado e covarde.
Fazia de tudo para ser o nada que o sistema me havia reservado o dever de ser e por
isso, passei dois anos sem ir à escola, trabalhava de madrugada e durante o dia fumava
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Caminhadas de universitários de origem popular
maconha e me embebedava com os amigos. Mudei mais uma vez de emprego e resolvi
morar sozinho.
Na ocasião trabalhava num grande restaurante e tinha um salário razoável. Aluguei
um barracão numa região mais afastada, passei na loja comprei um colchão e fui para o
endereço aguardar a entrega. Minha vida começava a mudar e neste momento era preciso
aumentar a atenção nas minhas ações, pagar as minhas próprias contas e decidir o que
fazer para melhorar o futuro. Foi quando fui convidado por um amigo à participar de um
curso de teatro na antiga Escola Técnica Federal de Goiás, hoje CEFET (Centro Federal
de Educação Tecnológica).
No ano seguinte (1996) voltei para o Colégio Damiana da Cunha e as dificuldades
eram muitas. Conciliar trabalho, escola e as aulas de teatro que terminavam as 18h. Precisava pegar um ônibus para chegar ao colégio, o tempo não era o suficiente e então tirava a
maquiagem no ônibus e trocava de roupa na calçada da escola, chegava a ficar só de cuecas
porque o porteiro não permitia a entrada com calça de lycra, era preciso usar jeans.
Foram dois anos nesse ritmo intenso. Cheguei a ter problemas de saúde, estava muito
magro, com olheiras e dificuldades para concentração e, seguindo o conselho de um professor, resolvi mudar para um local mais próximo e assim chegaria em casa mais cedo, possibilitando algumas horas a mais de sono. Excelente idéia! Podia agora começar o curso de
dança contemporânea, o que me renderia mais cansaço.
Terminei esta etapa da minha vida acadêmica, assim como exposto, ou seja, o caminho traçado até este ponto nada tinha de suave, era preciso então redirecionar minha vida.
Troquei o cargo de auxiliar de cozinha um com maior rentabilidade, desta vez eu era
responsável pela confecção dos pratos frios em um grande restaurante de Goiânia. Deixei as
aulas de dança e mudei de colégio, isto é, me matriculei no Colégio Estadual José Honorato,
na rua 59, no Centro, bem perto do CEFET.
No Zézão, como chamávamos o colégio, cursei todo o segundo grau, fui reprovado
no primeiro ano e consegui fazer dois bons amigos, um louco e o outro mentiroso, que me
desculpem, Fernando Melo e Christiano Max Beline, mas, não minto e muito menos
estou louco.
Ainda fui membro do grêmio estudantil, me filiei a um partido e passei a me inteirar do
funcionamento da escola. Desisti de me tornar ator profissional, neste caso, por me deparar
com aqueles que envergonham os profissionais das Artes Cênicas em Goiás.
Quando passei para o segundo ano, meus objetivos mudaram e surgia a necessidade
de fazer um curso superior, mas por ignorância, não tinha a menor idéia do que fazer e como
eu tinha uma admiração imensa pela sabedoria da professora de português e literatura,
Maria Vera, pensava em cursar Letras e me tornar poeta. Como a crítica não perdoa, mudei
de idéia e Psicologia na Universidade Católica de Goiás passou a ser meu intento.
Maratona do vestibular
As drogas e a bebida já não faziam parte da minha vida, me afastei da maioria das
pessoas, me tornando assim um bitolado em trabalhar e economizar, para em fim ter um
pouco de tranqüilidade financeira na faculdade. Sabia que as mensalidades eram caras e
passar entre os primeiros e conseguir uma bolsa era uma possibilidade remota. Quase me
matei de trabalhar e no ano que terminei o segundo grau, fiz as provas para o curso de
Filosofia na UnB (Universidade de Brasília) e UFG (Universidade Federal de Goiás), en-
Universidade Federal de Goiás
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quanto aguardava os resultados deixei o trabalho, pois tinha economizado o suficiente para
um ano ou mais.
Nada consegui na UnB e fiquei em 4º lugar na fila de espera da UFG, foi um desespero
total! Não tenho nenhuma habilidade com cálculos. Física e Matemática sempre me deram
muito trabalho e era preciso melhorar meu conhecimento nestes campos. Comecei a estudar
feito um louco sozinho, passava de dez a doze horas diárias estudando.
Faltava alguns meses para as provas da UFG, consegui uma bolsa num curso pré-vestibular que a UEG (Universidade Estadual de Goiás) proporcionou a alunos de origem popular.
Lá o que me interessava era somente aprender trigonometria, o professor era péssimo, perdia
muito tempo assediando as menininhas e pouco me ajudou. Continuei a estudar sozinho.
Vovô Betinho acabava de vender a fazenda Lavrada e vir morar em Goiânia, meus pais
vieram primeiro e se instalaram numa casa emprestada do meu avô no mesmo bairro que eu
morava, na ocasião eu morava com a tia Cy. Um mês depois chegavam meus avós e para que
não ficassem sós, fui morar com eles e o ritmo dos estudos não cessou, passei na primeira
fase do vestibular da UFG e mais ou menos um mês depois fiz as provas da segunda etapa e
para minha surpresa, não continha nenhuma questão de exatas, creio que foi o único ano em
que isso aconteceu.
O resultado final só viria a ser conhecido algum tempo depois e por isso a jornada de
estudos continuava, pois as provas do vestibular da UEG ainda estavam por fazer e eu
estava inscrito para uma vaga do curso de História.
A ansiedade e a obrigação de estudar tornava os dias uma loucura. Eu tinha poucas
pessoas com quem conversar e o desespero aumentava. Foi então que o Fernando sugeriu
que eu fosse trabalhar uns dias no restaurante do pai dele, o Sr. Antônio de Pádua, sendo que
essa atividade me ajudaria a passar os dias e eles não precisariam contratar alguém para
cobrir o período de férias de um dos colaboradores.
Era um sábado, quando começou o almoço uma das clientes, cuja sobrinha tinha feito
as provas da segunda etapa. Ela me perguntou se eu já tinha conferido a lista de aprovados
e eu não pensei duas vezes antes de deixar todo mundo sem atendimento. Corri para a loja
onde uma das clientes trabalha e tinha um ponto de acesso a Internet, a página da UFG
estava congestionada e eu confuso: volto para dar seqüência ao trabalho no restaurante ou
vou a procura desta lista? Fui a procura da lista e uma hora depois consegui abrir a página
e conferir meu nome.
Não pude conter o choro e a euforia, liguei pra casa e contei a novidade o que também
levou boa parte da família a chorar, em especial as mulheres. Voltei ao restaurante peguei
minhas coisas e ao chegar em casa, a faca, com a qual cortaram meus cabelos estava afiada.
Novos desafios
A documentação já estava pronta. E não tive dificuldade para efetivar a matrícula, no
entanto, o primeiro ano de faculdade foi um ano de provações, tive sérios problemas com a
didática de alguns professores, não entendia a linguagem usada nas aulas e os professores
não permitiam uma aproximação informal, ou seja, não podia contar com orientações.
O ritmo das leituras era apertado e os trabalhos se acumulavam. Por mais que eu
tentasse não conseguia, tinha medo de ser ridicularizado em público, pois, não raras vezes
pude ver e ouvir um dos professores humilhar meus(minhas) colegas por pequenos erros de
português e se me dissessem para desistir de estudar Filosofia e fazer um curso de corte e
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Caminhadas de universitários de origem popular
costura o pavor poderia ficar pior. Pedi ajuda ao Pablo, um colega de origem semelhante,
mas de inteligência brilhante e o coração do tamanho do mundo. Tudo deu certo, passei
com provas de segunda época.
Iniciou o segundo ano e as minhas dificuldades eram outras. Faltava grana para o
ônibus e a bicicleta passou a ser o meio de transporte. Quarenta minutos para ir de casa ao
Campus II da UFG e uma hora e meia para voltar, visto que não tinha dinheiro para o almoço
e com a volta o relevo não colaborava. Não agüentava mais, vendi meu skate e tive como
pagar as passagens de ônibus por mais ou menos um mês. No mesmo período, fiquei devendo na copiadora e escolhia caminhos alternativos para que a moça não me cobrasse.
Como o curso de Filosofia é predominantemente de manhã, resolvi buscar trabalho,
deixei currículos em vários estabelecimentos de ensino e algum tempo depois consegui
uma vaga num colégio particular como professor de História. O salário não compensava,
mas era o suficiente para aliviar os gastos que minha avó resolveu fazer com minhas passagens e alimentação.
Terminei o segundo ano com reprovações e comecei o terceiro com um pouco mais de
comodidade, sendo que, assumi também as aulas de geografia e com o salário dava até para
comprar um livro ou outro. Consegui isenção no RU (Restaurante Universitário) e fui convidado para ser bolsista PIVIC, aceitei o trabalho voluntário.
Neste mesmo ano viajei duas vezes por conta da universidade, e tais viagens me custaram o emprego, mas não me arrependo! Nunca concordei com o trabalho escravo, pois, existem outras formas mais dignas de garantir a sobrevivência. Procurei trabalho sem sucesso,
mas, com a ajuda de alguns amigos e a habilidade com as panelas, passei a preparar jantares e
almoços em confraternizações e no mês de dezembro de 2005 não me faltou o que cozinhar.
O ano de 2006 começou e eu estava convicto de que seria mais uma batalha a ser
vencida. E de fato foi um dos períodos mais difíceis. Meus avós se mudaram para uma
chácara e não tive escolha, fui morar com meus pais e os dois irmãos. As cobranças não
tardaram, era preciso conseguir um trabalho e ajudar com as despesas de casa. Meu tempo
era pouco, tinha o estágio a ser concluído e aulas no período noturno, em resumo, não havia
como trabalhar e aceitei ajuda de tios e logo em seguida o Christiano me ofereceu trabalho
aos domingos na Feira Hippie (Uma das maiores feiras da América Latina. Acontece aos
domingos na praça dos Trabalhadores em Goiânia com comidas tipicamente goianas,
vestuário e artesanato).
O esgotamento físico e o estresse eram visíveis. Eu já não estava suportando as aulas
e os professores. Tinha consciência de que não conseguiria formar no final do ano, deixei o
estágio e mais umas duas disciplinas, concluí os relatórios finais de PIVIC e só voltei à
faculdade no momento em que as faltas passaram a acenar para reprovações.
Conversa de corredor: aprendizagem
Os corredores da faculdade são sempre o melhor lugar para jogar conversa fora, falar
da vida alheia e contar piadas e confesso sem nenhuma timidez que muito me apraz essas
atividades. E foi num momento desses que minha orientadora de PIVIC passou e percebeu
minha empolgação com a atividade acima citada. Repreendeu-me seriamente. – Você deve
procurar algo sério pra fazer! Venha até a minha sala para conversarmos!
Ela não tinha muito pra dizer. Foi direta me entregando umas três ou quatro folhas, as
quais continha um edital e ficha de inscrição para seleção de bolsistas de um programa
Universidade Federal de Goiás
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chamado Conexões de Saberes. - Mexa-se! O prazo para inscrições só vai até amanhã e você
tem muitos documentos para reunir. Saí da sala desanimado, mas fiz a inscrição e só li o
edital depois que fique sabendo que estava entre os 25 selecionados.
Era abril de 2006 e a vida começava a me proporcionar emoções fortíssimas, estava
por descobrir que a universidade abriga um número significativo de indivíduos com histórias muito semelhantes a minha. Como membro do Conexões de Saberes tive a oportunidade de conhecer pessoas que, mesmo sem as condições favoráveis ao bem viver, lutam com
todas suas forças em prol do bem comum, isto é, do respeito à dignidade humana, por um
mundo mais justo e feliz.
A rotina de trabalho no Programa Conexões de Saberes foi intensa, mas sem queixas,
segui cumprindo minhas tarefas e admito que fiz leituras e participei de atividades que
muito me agradaram. Desde a realização do Seminário Local estou meio atônito com as
dimensões do projeto e a cada dia me sinto mais comprometido.
Como a vida não é composta só de fatos e atividades prazerosas, do mesmo modo que
todos os seres viventes, estamos a navegar rumo ao desconhecido, de onde ninguém jamais
regressou. O fato de nascermos nos garante uma viagem, para o nada, céu ou o inferno, de
acordo com nossas ações ou crenças, esta última para quem acredita.
E pelo que sei, meu pai acreditava. Não se tratava de um religioso fervoroso, mas tinha
sua fé, que não foi o bastante para curar lhe um câncer, linfoma de Hodgkim, que segundo
os médicos, na maioria dos casos é fatal. Não foi diferente com meu velho, pouco menos de
três meses se passaram entre os primeiros sintomas e a primeira internação, que durou uma
semana. A quimioterapia não mais poderia ajudá-lo e ele inevitavelmente teve que partir.
É chegada a hora do embarque e implorar para que fiquem um pouco mais é puro
egoísmo. Então nos restam as flores como último presente, o choro como consolo, as imagens como recordação da breve existência e os ensinamentos, que tendem a preencher o
vazio que a ausência do pai deixa.
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Caminhadas de universitários de origem popular

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