CAMINHADAS - UFG_ FINAL.pmd
Transcrição
CAMINHADAS - UFG_ FINAL.pmd
UFG Universidade Federal de Goiás Caminhadas de universitários de origem popular UFG UFG Copyright © 2009 by Universidade Federal do Rio de Janeiro / Pró-Reitoria de Extensão. O conteúdo dos textos desta publicação é de inteira responsabilidade de seus autores. Coordenação da Coleção: Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Inês Sousa Organização da Coleção: Monique Batista Carvalho Francisco Marcelo da Silva Dalcio Marinho Gonçalves Aline Pacheco Santana Programação Visual: Núcleo de Produção Editoria da Extensão – PR-5/UFRJ Coordenação: Claudio Bastos Anna Paula Felix Iannini Thiago Maioli Azevedo C183 Caminhadas de universitários de origem popular : UFG / organizado por Ana Inês Souza, Jorge Luiz Barbosa, Jailson de Souza e Silva. — Rio de Janeiro : Universidade Federal do Rio de Janeiro, Pró-Reitoria de Extensão, 2009. 120 p. ; il. ; 24 cm. — (Coleção caminhadas de universitários de origem popular) Ao alto do título: Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. Parceria: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. ISBN: 978-85-89669-46-7 1. Estudantes universitários — Programas de desenvolvimento — Brasil. 2. Integração universitária — Brasil. 3. Extensão universitária. 4. Comunidade e universidade — Brasil. I. Souza, Ana Inês, org. II. Barbosa, Jorge Luiz, org. III. Silva, Jailson de Souza e, org. VI. Programa Conexões de Saberes : Diálogos entre a Universidade e as Comunidades Populares. V. Universidade Federal de Goiás. VI. Universidade Federal do Rio de Janeiro. VII. Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. CDD: 378.81 Ministério da Educação Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Organizadores Jailson de Souza e Silva Jorge Luiz Barbosa Ana Inês Sousa UFG Pró-Reitoria de Extensão - UFRJ Rio de Janeiro - 2009 Coleção Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Autores Alan Rodrigues de Azevedo Átila Carvalho Dias Ministério da Educação Fernando Haddad Ministro Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade – SECAD André Luiz de Figueiredo Lázaro Secretário Bruna Priscila Brito Ribeiro dos Santos Edilto Rodrigues da Silva Fabiana Leonel de Castro Fran Rodrigues Giselle Vieira dos Anjos Diretoria de Educação para a Diversidade - DEDI Armênio Bello Schmidt Gisely Carvalho Ferraz Coordenação Geral de Diversidade – CGD Leonor Franco de Araújo José Gomes de Vasconcelos Neto Jenhiffer C. de J. Medeiros Kamyla Faria Maia Letícia Alves Domingos Lilian Gomes dos Santos Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares Jorge Luiz Barbosa Jailson de Souza e Silva Luciene Araújo de Almeida Maiana Gomes Magalhães da Silva Marcelo da Silva Rodrigues Coordenação Geral Márcia Daniele de Souza Carvalho Angelita Pereira de Lima Maria Madalena de Oliveira e Sousa Coordenação Geral do Programa Conexões de Saberes/UFG Adalberto Luiz Matias Júnior Adriane Damascena Coordenação Pedagógica Anselmo Pessoa Coordenação de Estrutura e Logística Geovana Reis Coordenação da parceria com o Programa Escola Aberta Edward Madureira Brasil Reitor Benedito Ferreira Marques Vice-Reitor Anselmo Pessoa Neto Pró–Reitor de Extensão Micaelle Juliano Vieira Salathiel Gomes Carvalho Sidiclei Ferreira Leite Taísse Dias Guimarães Souza Tertuliano Rodrigues Pereira Vandimar Marques Damas Prefácio A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de ações que permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental. A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continua, pela melhoria de sua qualidade. No atual governo, o Ministério da Educação persegue de forma intensa e sistemática esses objetivos. Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e, por outro lado, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas universidades públicas. Criado pelo MEC em dezembro de 2004, o Programa é desenvolvido a partir da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade do Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou, inicialmente, uma rede de estudantes de graduação em cinco universidades federais, distribuídas pelo país: UFF, UFMG, UFPA, UFPE e UFRJ. A partir de maio de 2005, ampliamos o Programa para mais nove universidades federais: UFAM, UFBA, UFC, UFES, UFMS, UFPB, UFPR, UFRGS e UnB. Em 2006, o Ministério da Educação assegurou, em todos os estados do país, 33 universidades federais integrantes do Programa, sendo incluídas: UFAC, UFAL, UFG, UFMA, UFMT, UFPI, UFRN, UFRR, UFRPE, UFRRJ, UFS, UFSC, UFSCar, UFT, UNIFAP, UNIR, UNIRIO, UNIVASF e UFRB. Através do Programa Conexões de Saberes, essas universidades passam a ter, cada uma, ao menos 251 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como pesquisadores; construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos estudantes de origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em comunidades populares. Dessa forma, busca-se a formulação de proposições e realização de 1 A partir da liberação dos recursos 2007/2008 cada universidade federal passou a ter, cada uma, ao menos 35 bolsistas. práticas voltadas para a melhoria das condições de permanência dos estudantes de origem popular na universidade pública e, também, aproximar os setores populares da instituição, ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas duas instâncias sociais. Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do Programa: a coleção “Caminhadas” chega a 33 livros publicados, com o lançamento das 19 publicações em 2009, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes das camadas mais desfavorecidas às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor prestígio social. Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção de uma universidade pública efetivamente democrática, um sociedade brasileira mais justa e uma humanidade cada dia mais plena. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade Ministério da Educação Observatório de Favelas do Rio de Janeiro Sumário Apresentação Os donos da história Angelita Pereira de Lima ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 09 Parte 1 - Andar, tropeçar, cair. levantar, saltar obstáculos e ser feliz! Histórias de nossas vidas Caminhada de um universitário liso, leso e louco. Compra fiado e pede o troco Salathyel Gomes Carvalho 13 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Sou negra, sou mais uma para somar Fabiana Leonel de Castro ○ ○ ○ ○ Não é apenas sonho, é muita luta Tertuliano Rodrigues Pereira ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Inegável luta Gisely Carvalho Ferraz ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “Minha história” Maria Madalena de Oliveira e Sousa Em busca do direito de sonhar Adalberto Luiz Matias Júnior ○ ○ Panificadora Santo Cristo José Gomes de Vasconcelos Neto ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 15 ○ ○ ○ 19 22 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 28 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 30 ○ ○ ○ ○ Com várias pedras se forma uma caneta!!! Bruna Priscila Brito Ribeiro dos Santos ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 33 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 35 Parte 2 - Em algum lugar no caminho, um sonho me fez andar Uma história de sonhos, tombos e vitórias Letícia Alves Domingos A orquestra dos sonhos Kamyla Faria Maia ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 43 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 47 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 51 “Pedaços de mim” Luciene Araújo de Almeida O que está em mim Fran Rodrigues ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 54 Parte 3 - A cada dia de luta, não se pode parar, nem desistir. É preciso continuar. Menina do pé de manga Márcia Daniele de Souza Carvalho ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Objetivos e força de vontade fazem a diferença Átila Carvalho Dias ○ ○ ○ ○ ○ ○ Dona da minha história Taísse Dias Guimarães Souza “A espera de um milagre” Alan Rodrigues de Azevedo ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ O testemunho da sobrevivente Jenhiffer C. de J. Medeiros ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Sou pequenina e também gigante Lilian Gomes dos Santos ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 61 67 70 74 77 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 85 Parte 4 - A cada passo, aprendizado e vontade de transformar o mundo O sertão mora em mim Vandimar Marques Damas ○ Educação para romper Edilto Rodrigues da Silva ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 91 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 95 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ O bater das asas de uma borboleta pode causar um tufão do outro lado do planeta Maiana Gomes Magalhães da Silva ○ ○ Longo caminho até a universidade Marcelo da Silva Rodrigues ○ Elogio à mediocridade Micaelle Juliano Vieira ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Não vim até aqui para desistir agora Giselle Vieira dos Anjos “Caminho suave” Sidiclei Ferreira Leite ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 99 104 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ 107 113 115 Apresentação Os donos da história Uma vez, o escritor Umberto Eco nos convidou para fazer “passeios” pelo bosque da ficção1, numa tentativa de mostrar que a entrada nesse bosque é possível mediante um acordo ficcional entre leitor e autor. Esse “acordo” é a aceitação de que os fatos/personagens extraordinários e “irreais” sejam assimilados com base na experiência do mundo real. E assim torna-se possível a vida ficcional. Por caminho e objetivos inversos, convidamos os leitores a fazer um acordo real com os/as autores/as desse Livro Caminhadas. Convidamos a aceitar as realidades aqui narradas como a simbolização possível de uma experiência de vida, e buscar compreender que se trata de uma realidade muitas vezes impensada e invisível, uma quase ficção para universidade pública brasileira. O Livro Caminhadas é uma lente com poder de ampliar as histórias, contadas de próprio punho pelos estudantes de origem popular. As imagens, cenas e fotos aqui descritos revelam o quanto o ensino público superior está despreparado para receber uma parcela importante de jovens que ingressam, por uma estratégia ainda incompreendida, no interior de seus cursos. Essa lente está focada nas trajetórias de 25 bolsistas do Programa Conexões de Saberes da Universidade Federal de Goiás, narradas aqui, com sofrimento e superaração. O movimento proposto foi o de recontar a vida familiar e social, mediada e simbolizada pela trajetória estudantil. A escrita foi um processo de encontros e desencontros: com familiares; lembranças amargas, estrutura social deficiente. Com a infância, amigos, amores e oportunidades agarradas como se tivessem sido “a última chance”. As narrativas contidas nesse livro não podem ser confundidas com dramas individuais. As mães, tão presentes nessas histórias, são mulheres que pertencem a uma sociedade de valores simbólicos que desqualificam ou subjugam o sujeito feminino, o negro, o pobre. Os pais, quase sempre ausentes, são homens impregnados de uma “verdade” masculina perversa e condenados a um jogo de poder em que aos homens não é permitido falhar. Cada texto revela, ainda, uma questão educacional sobre a qual os sistemas públicos de ensino brasileiros silenciam-se: a meritocracia. A vida desses estudantes é pautada, desde o primeiro dia aula, no ensino fundamental, até a colação de grau, por este sistema meritocrático, que muitas vezes abriga preconceitos sociais e raciais. 1 ECO, Umberto. Seis passeios pelo bosque da ficção. Companhia de Letras, São Paulo, 1994. Universidade Federal de Goiás 9 Contraditoriamente, todos os textos mostram o sistema educacional como uma porta entreaberta. A educação formal é considerada um modo de superar a condição social e humana, um vetor dos desejos e vontades. E, ao mesmo tempo, torna-se o próprio obstáculo a ser superado. As estratégias familiares ou individuais para a transposição dessa porta ou, até mesmo, para escancará-la é a transversal desse livro. Angelita Pereira de Lima Coordenadora do Programa Conexões de Saberes da UFG Parte 1 ANDAR, TROPEÇAR, CAIR. LEVANTAR, SALTAR OBSTÁCULOS E SER FELIZ! HISTÓRIAS DE NOSSAS VIDAS Caminhada de um universitário liso, leso e louco. Compra fiado e pede o troco Salathyel Gomes Carvalho * O estudante de origem popular é, acima de tudo, um forte. Desde o nascimento é impossibilitado de ter acesso à educação. Custa a concluir o Ensino Médio e, só se for guerreiro, consegue entrar na universidade pública, que é elitizada, e quando não consegue impedir seu acesso, faz de tudo para que você não conclua seus estudos. Este processo é humilhante. Muitas vezes não temos a grana nem do coletivo, enquanto os colegas vão de carro importado para a aula. E há humilhação de colegas da sala de aula que só olham o próprio nariz e fazem de tudo para nos diminuir. A história que vou contar é de um menino como nós. O nome dele é Salathyel, mais conhecido como Salada. Ele achou que ia conseguir estudar na Universidade Federal de Goiás, coitado! Estuda cedo, trabalha à tarde com o seu pai e ainda é negro. Que rotina! Que hora será que ele estuda? Não sei. Sei que ele tem um objetivo louco, mas tem um objetivo e é o que vale. Seu pai Sr. Edmundo é mecânico de caminhão, “graxeiro”, trabalha o dia “inteirim” para garantir para os filhos o pão que não teve na infância. Sua mãe, Dona Neusa, é manicure, pega sua bicicleta, põe os meninos na garupa, Salada e sua irmã Karol, leva à escola e vai, de casa em casa, arrumar unha a domicílio até dar a hora de buscar as crianças. Certo dia, Salada conseguiu meia bolsa em uma escola particular de Goiânia. Seu tio, João, pagava a mensalidade e seu pai, aos trancos e barrancos, o material didático. Mas parar de trabalhar de jeito nenhum, cabeça vazia é a oficina do Diabo. Salada continuou trabalhando na oficina com seu pai. As notas? Lá embaixo, quase levou bomba. Seu pai o deixou estudar até passar de ano, mas ele tinha que voltar a trabalhar pra não virar vagabundo. Só que até hoje ele não voltou para a oficina mecânica. Resolveu prestar vestibular para Engenharia de Alimentos. Ninguém, nem eu, acreditava que ele iria prestar vestibular, menino ousado! Mas ele é um menino bom e resolveu entrar para a igreja, participar de grupo de jovens e da PJMP, Pastoral da Juventude do Meio Popular. Isso lhe deu um impulso e cada vez mais o menino estudava. Os pais estavam gostando, pelo menos não estava na rua. Mas havia quem dissesse: aquele filho do Edmundo é preguiçoso. Chegou o grande dia do Vestibular 2003 da Universidade Federal de Goiás. Com expectativa total, nosso herói fez a prova e não tirou da cabeça que tinha passado. Sua mãe, com medo da decepção do seu filho, o preparava para o pior. Depois de alguns meses saiu o resultado. E não é de ver que ele passou? Uma galera do grupo de jovens também conse* Graduando em Engenharia de Alimentos pela UFG. Universidade Federal de Goiás 13 guiu. Foi alegria para uns, inveja para outros. O negrinho de Aparecida de Goiânia foi o primeiro universitário de Universidade Federal da família, mesmo sem ter tudo nas mãos. Não teve festa, mas o coração de Salada estava em festa. Até eu dei parabéns para ele, pois eu não acreditava em seu potencial. E agora, era tudo maravilhoso? Mentira. Começaram as aulas e logo o RU, Restaurante Universitário - que saudade do bandejão! - ficou de greve. Mas não custava levar uma marmita pra “facul”, isso pra ele era moleza. Agora, o batalhador enfrenta novos monstros, os alunos do seu curso, integral por sinal. Eles sempre o colocavam no seu lugar, “a ralé”, e deixavam bem claro que ele era da periferia. A universidade não dá espaço na pesquisa para estudantes pobres. Eles não têm tempo, muitas vezes são negros e “negro não pensa”. Salada estudava o dia inteiro e como não tinha papai rico, trabalhava a noite, até “uma da madruga” e entrava na aula sete e meia da manhã do outro dia. Rotina pesada, mas isso era “moleza”, nosso herói já estava acostumado. Em 2006, Salada passou a fazer parte de um grupo de estudantes que enfrentam problemas semelhantes aos seus e tinham a mesma origem. Parecia que ele voltava para a PJMP, mas dessa vez era diferente. Salada já era adulto, já se chamava Salathyel, Arroz. O grupo chama-se Conexões de Saberes, discute ações afirmativas e estuda o acesso e a permanência de estudantes de origem popular na UFG. Lá ele fez vários amigos com objetivos em comum, e luta para que estudantes de sua origem consigam ter acesso a universidade pública, que é deles, e não desistam com qualquer avalanche de pedras do caminho. Agora não tem jeito Salathyel vai se formar. Diploma na mão, família feliz. Mas sua luta não termina. Não sei se vai conseguir um emprego digno, com salário ideal para a sua capacitação. Ele carrega no coração e na pele uma raça linda que desde sempre “levou o Brasil nas costas”. Hoje isso não é reconhecido, mas “eu sou guerreiro, sou trabalhador, todo dia vou encarar com fé em Deus e na minha batalha.”1 1 Trecho de música - “O Rappa” 14 Caminhadas de universitários de origem popular Sou negra, sou mais uma para somar Fabiana Leonel de Castro* “de esgoto a céu aberto e parede madeirite de vergonha eu não morri tô firmão eis me aqui” Racionais MCs “Meu pai veio de Aruanda e minha mãe é Iansã” Bloco Afro Akomabu Fabiana: fava, semente que cresce. Desde que descobri o significado do meu nome me apropriei positivamente dele. Crescer, para mim, é me superar. Crescer não só para o alto, mas para todos os lados, inclusive para baixo. E crescer para baixo é se aprofundar. Esses períodos nem sempre são tranqüilos. Hoje, no 5º ano de Ciências Sociais (complementação em Licenciatura), acredito que esse período na universidade foi o mais transformador e desafiador para mim. Na verdade, alguns períodos do nosso crescimento são tão confusos que nem percebemos que se trata de crescimento. Podemos nos sentir hostis, zangados, chorosos ou histéricos, ou deprimidos. Jamais nos ocorre, a não ser que encontremos por acaso um livro ou uma pessoa capaz de explica, que estamos em processo de mudança, de crescimento espiritual. Sempre que crescemos sentimos como a semente nova deve sentir o peso e a inércia da terra, quando procura sair da casca para se transformar numa planta. Geralmente não é uma sensação agradável. Alice Walker, Vivendo pela palavra Da infância na escola, me lembro de poucas coisas -acho que a memória tratou de apagar parte delas. Até a quarta série estudei em cinco escolas diferentes, por causa de mudanças de casas, que eram de aluguel, e uma mudança de estado, de Goiás para Minas Gerais. Para minha mãe, esta foi uma tentativa mais drástica de transformação, motivada * Graduanda em ciências Sociais pele UFG. Universidade Federal de Goiás 15 principalmente pelo alcoolismo do meu pai e pela doença do meu avô, que estava em Minas. Ela acreditava que a situação mudaria se saísse do ambiente. Das escolas que passei, me lembro que na primeira, de freiras, meninas e meninos não podiam brincar juntos. Na segunda, evangélica, tínhamos que cantar o hino nacional todos os dias, em fila, meninas e meninos também separados. A terceira, já em Minas Gerais, a princípio eu adorei, porque era grande e tinha muitos alunos. No entanto, eu não tinha amigas/os. Aliás, nunca fui comunicativa. Na hora do recreio, se brincava de Xuxa e suas paquitas. Eu não podia brincar porque tinha a pele mais escura que a das outras meninas e tinha o cabelo “de bosta de rolinha” - diziam elas. “A Xuxa e as paquitas têm cabelo liso”. A quarta escola (uma sala de aula para quatro séries distintas) era na fazenda, a seis quilômetros de onde morávamos, percurso que eu (9 anos) e meu irmão (8 anos) fazíamos a pé. Na quinta e última escola da primeira fase, fazendo a quarta série, estudei no bairro que eu morava e morei até me mudar para Goiânia. Essa escola, diferente das outras, era na periferia. Diferente de escolas públicas centrais. A estrutura era precária, não havia laboratórios nem bolas para a educação física e por “coincidência” quase todos os alunos/as eram negros/as. Deles, vários já morreram ou estão presos (homens). Com ajuda dos meus irmãos tentei me lembrar de quem, naquele ciclo de pessoas, continuou a estudar, não conseguimos lembrar de ninguém. Fiz 2ª fase do ensino fundamental e médio em outro colégio. Eu gostava muito dessa escola. Era longe de casa, mas era o preço para se estudar em uma escola com um pouco mais de estrutura. Quando entrei, na quinta série, me lembro das primeiras aulas perdidas porque não podia entrar sem uniforme. Dos 10 aos 17 anos, a escola Estadual Lauriston de Souza foi palco de alegrias e decepções. As últimas semanas do 3° ano do ensino médio foram angustiantes, pois eu estava desesperada sem saber o que faria para continuar estudando. A última noite, em especial, passei acordada sentada no sofá de casa até que meus pais se levantassem. No início do outro ano, minha madrinha (fada-madrinha) me chamou para vir morar com ela em Goiânia. Então, me mudei de Frutal, Minas Gerais, para Goiânia. Em 2003, entrei na UFG depois de um ano de cursinho pago pela minha madrinha. Em troca eu trabalhava no escritório dela. Na primeira semana, apesar da empolgação, me senti sem chão e sem acreditar que tínhamos conseguido. Digo “nós” porque para que eu chegasse até aqui várias pessoas me ofereceram seus ombros, fosse para chorar as dores do caminho ou para subir. Senti-me perdida quanto aos conhecimentos gerais que devia ter e não tinha, quanto às pessoas diferentes de mim que haviam ganhado carro de presente por ter passado no vestibular e eu não sabia nem como iria pagar o ônibus e a xerox. Fico pensando hoje que a tentativa desse modelo de “universidade pública” é nos dizer “esse não é seu lugar”. Felizmente já no primeiro ano conheci o Projeto Passagem do Meio - Qualificação acadêmica para alunas e alunos negras e negros, por meio do professor Alex Ratts, que depois se tornou meu orientador (no sentido mais amplo que essa palavra possa ter) e um amigo muito amado. Fiz a seleção para concorrer a bolsa do Passagem, mas não fui selecionada e fiz parte assiduamente como bolsista voluntária. Posso dizer que esse projeto foi um divisor de águas para mim não só academicamente. No início do segundo ano fui bolsista de iniciação cientifica por seis meses do professor Alex, o que me ajudou muito financeiramente como também para que eu pudesse me aproximar da pesquisa científica, que é o quero continuar fazendo. 16 Caminhadas de universitários de origem popular Gostaria, ainda, de exemplificar, com uma “historinha”, como alunas/os negras/os e sem recursos financeiros vão ser vitimados na universidade hegemonicamente branca que cuida para que os seus continuem se perpetuando como detentores do conhecimento. No inicio de 2004, antes que as aulas se iniciassem, fomos encaminhados pelos coordenadores do Passagem do Meio a falar com professores em nossos departamentos apresentar-lhes histórico e conversar sobre uma possível orientação de PIBIC ou PIVIC (evidente que a bolsa remunerada era a que precisávamos). Iniciamos uma conversa com um professor do departamento, eu e um outro amigo, e saímos dessa reunião com a indicação de que começássemos a escrever, e assim fizemos. Meu amigo apresentou mais vezes rascunhos, do que seria o projeto. Tinha uma grande insegurança para escrever, que permanece ainda hoje. Depois que se iniciaram as aulas surgiu um boato na sala que uma outra aluna (branca) disse que a mãe dela (também professora universitária) era amiga desse professor e havia falado com ele e este garantiu que a bolsa remunerada seria dela. Na véspera da entrega as regras do CNPq mudaram. A partir de então o currículo da/o aluna/o não pontuava mais, só o do professor, e ele indicaria quem seria bolsista remunerada/o e voluntária/o. Com isso ele me avisou que indicaria o meu amigo para PIBIC (ele havia discutido o projeto mais vezes) e nós duas para PIVIC. Quando saiu o resultado a filha da amiga dele era PIBIC e eu e meu amigo PIVIC. Esse foi o primeiro momento estarrecedor para mim na universidade. Pensei em desistir desse PIVIC, mas fui orientada pelos coordenadores do Passagem a não abandonar. Foi uma experiência traumática e o período mais difícil tanto de descontentamento acadêmico, como de muita dificuldade financeira. Tive problemas com notas, pois não tinha dinheiro para xerox. No outro ano consegui, um PIBIC. Ainda no segundo ano, alguns bolsistas voluntários e remunerados deste projeto começaram a se reunir para discutir a formação de um Coletivo de Estudantes Negras/os. A formação do coletivo foi de extrema importância para mim e acredito que também para as outras pessoas do grupo. É o lugar onde nos reconhecemos, onde, com discussões e formações, não nos sentimos sós e fora de lugar. Essa formação, com textos e vivências, é parte fundamental para que façamos nossas escolhas profissionais, afetivas, acadêmicas, temas de pesquisa etc. Posso dizer que sou parte do coletivo e ele é parte de mim. Agora, já no final da graduação, com todas as dúvidas e inseguranças adquiridas e algumas convicções, conheci o Conexões de Saberes, um Programa com uma concepção incrível. Quando conseguirmos colocá-lo em prática em sua amplitude aqui, tenho certeza que muitos alunas/os de origem popular encontrarão força e razão para permanecer na universidade. A UFG foi uma das últimas universidades a integrar o Conexões e, junto a isso, acho que a pouca experiência é a barreira que diariamente temos que transpor. Gostaria de terminar com um rap que não foi feito pensando na universidade, mas em uma prisão. No entanto me apropriando dos estudos de Foucault sobre essas instituições ele faz muito sentido para mim. Acharam que eu estava derrotada1/quem achou estava errado eu voltei tô aqui/ se liga só escuta aí/ao contrário do que você queria tô firmona tô na correria/sou guerreira e não pago pra Universidade Federal de Goiás 17 vacilar sou vaso ruim de quebrar/oitavo anjo do apocalipse tenebroso como um eclipse/é seu pesadelo tá de volta no puro ódio cheio de revolta/vou te apresentar o que você não conhece anote tudo vê se não esquece/você verá que não deixei me envolver pra sobreviver por aqui tem que ser/mesmo no inferno é bom saber com quem se anda senão embaça vira desanda/vejo várias/os irmãs e irmãos tomando back (....) aqui é foda não tem comédia/o clima é de tensão maldade inveja (...) descobri que além de ser um anjo eu tenho cinco inimigos... irmãs e irmãos de atitude moram comigo/manos de estilo (...) Oitavo anjo, 509-E 1 Mudei a letra onde estava no masculino passei para o feminino 18 Caminhadas de universitários de origem popular Não é apenas sonho, é muita luta Tertuliano Rodrigues Pereira* Inicia-se aqui o relato de uma história vivida, sentida na pele e que alimenta sonhos e move barreiras. Nasci mergulhado e afogando em um rio de enfermidades. Aos poucos fui afundando, rodando de hospital em hospital em busca de cura para a pneumonia dupla que me consumia, até chegar ao ponto de ser desenganado pela medicina e meus pais terem que se conformar em levar-me para morrer em casa. Meus pais prepararam o funeral completo (vela, caixão). Mas de forma inexplicável aquele bebê resistiu bravamente até chegar sua cura pelas mãos de um velho conhecedor dos saberes populares que conseguiu fazer uma combinação de ervas que me possibilitou estar vivo. “A vida só pode ser entendida olhando-se para trás. Mas só pode ser vivida olhando para frente.” S. Kierkegaard Morava na roça, por isso só comecei a estudar aos nove anos. Morávamos a 18 quilômetros da cidade. Aos sete anos, comecei a vender leite na cidade pra ajudar a família e por isso não sobrava tempo para a escola: chegava em casa cansado e não tinha forças para voltar. Quando eu estava com nove anos, meu irmão mais velho foi morar em Santa Rosa-MG, que é a cidade que fica mais próxima à fazenda onde morávamos. Aproveitei essa oportunidade e pedi para meus pais me deixarem estudar e morar em Santa Rosa com meu irmão, mas eles não deixaram, meio que preocupados com minha saúde, que ainda não era totalmente normal. “Todo homem, por natureza, quer saber” Aristóteles * Graduando em Filosofia pela UFG. Universidade Federal de Goiás 19 Eu queria estudar de qualquer forma, então meu pai propôs que depois de vender o leite eu deixaria as coisas na casa do meu irmão e iria estudar. Foi aí que tive meu primeiro contato com os estudos na Escola Municipal Professor Zacharias Nunes da Silveira, onde estudei o primeiro e segundo ano do primário. Depois fui para o Colégio Estadual Tenente Salvador Ribeiro, e fiz até o quarto ano do primário. Nessa época eu tinha 13 anos e ouvi falar pela primeira vez em faculdade e que para chegar lá tinha que estudar muito e em colégio bom. Fiquei um pouco abalado, pois colégio particular era totalmente impossível para mim. Foi aí que surgiu a oportunidade de ir morar e estudar em um colégio agrícola de uma ONG italiana chamada OMG (Operação Mato Grosso) que trabalha com educação de jovens. Disseram que o colégio era muito bom, falei com meus pais e eles deixaram. Então eu fui e lá estudei até a oitava série, na cidade de São Salvador ,Tocantins, no Colégio Agrícola Dom Bosco. Saindo de São Salvador eu fui morar em Goiânia com minha irmã por um ano, trabalhando de entregador em um supermercado e estudando à noite. No final do ano de 2002, eu percebi que se continuasse assim eu não conseguiria realizar meu maior sonho, que era cursar filosofia em uma universidade pública. Então eu voltei novamente para Tocantins e fui para Palmas. Lá morei com o Frei Felisberto, um padre amigo da minha família, estudei em um colégio um pouco melhor e pude me dedicar um pouco mais aos meus estudos. Aí fiquei durante todo o ano de 2003. No início de 2004 surgiu uma oportunidade boa, o Frei Felisberto sabendo da minha intenção de estudar, me indicou o Seminário São José em Porto Nacional Tocantins onde ofereciam um estudo muito bom em um colégio chamado Sagrado Coração de Jesus. Eu imediatamente aceitei a idéia, pois era minha oportunidade de fazer o terceiro ano do ensino médio de forma que me daria uma base melhor para o vestibular e fui morar neste seminário durante todo o ano de 2004. Em meados de 2005, voltei a Goiânia para me preparar para o vestibular, fiz um semestre de cursinho nestes mais baratos, que era o que eu conseguia pagar com meu salário de call center em uma empresa de telefonia móvel. “A esperança é o sonho do homem acordado.” Aristóteles No final de 2005, fiz o vestibular da UFG, consegui passar e assim abri a primeira porta para realizar um dos meus maiores sonhos. Dessa forma, cheguei na universidade. Cheguei muito empolgado, mas quando me deparei com os obstáculos de permanência eu notei que não seria nada fácil. Na UFG a assistência estudantil é muito precária. As casas de estudantes não são assistidas como deveria ser pela universidade. Deparei-me com a falta de dinheiro para comprar livros, tomar café da manhã, pagar ônibus, tirar cópias. Isso me levou a continuar trabalhando e não conseguir um bom desempenho no primeiro semestre. No segundo semestre procurei bolsas para me ajudar a me manter e não tinha nenhuma disponível e assim eu fiquei um semestre inteiro em péssimas condições, matei muita aula por falta de dinheiro para ir ao campus e novamente não fui tão bem como esperava. Como negro de baixa renda, é evidente que sofri muitos preconceitos por parte de professores e colegas de sala, mas isso não conseguiu me interromper como infelizmente acontece com tantos outros negros que pelo preconceito e pela depreciação desistem de seus sonhos. Agora que já estou nesse mundo universitário que lamentavelmente não havia 20 Caminhadas de universitários de origem popular me incluído em seus planos, pois foi planejado para uma minoria na qual eu não estou englobado, vou lutar para conseguir vencer e assim ajudar a criar soluções para que esse indispensável meio de difusão de conhecimento (a universidade) chegue a todas as camadas da sociedade. Universidade Federal de Goiás 21 Com várias pedras se forma uma caneta!!! Bruna Priscila Brito Ribeiro dos Santos* “Quando nasci, um anjo torto Desses que vivem na sombra Disse: Vai Bruna! Ser brasileira Nessa terra forasteira Viver uma vida de cão Sonhar, lutar, trabalhar Pra fazer da vida uma lição!” Baseado no “Poema de Sete Faces” de Carlos Drummond de Andrade Meu nome é Bruna Priscila e minha história começa no dia 26 de outubro de 1986, quando nasci no Hospital Samaritano de Goiânia-GO. Minha mãe já tinha perdido três filhos devido a complicações no parto e somente meu irmão (10 anos mais velho que eu) havia escapado. Meu nascimento foi complicado e também tive uma infecção hospitalar que quase me levou a óbito. Eu era muito magra, muito pequena e fraca, mas mesmo assim consegui sobreviver. Morávamos num bairro chamado Vila Alvorada e a nossa casa era muito pequena, com telhas caindo e chão de terra batida. Meus pais me matricularam para fazer a pré-alfabetização no colégio SESI, próximo de casa. Esse colégio era conveniado com a rede estadual de ensino e pagávamos uma taxa irrisória. Estudei lá do pré-alfabetização até a quarta série. Comecei a me destacar nos estudos, amava estudar lia vários livros literários e sempre estava entre as melhores alunas da sala. Terminei a quarta série como aluna destaque pelas notas, esforço e obediência. Na 5ª série, fui matriculada na Escola Estadual Polivalente Tributária Henrique Silva. Minha mãe já sabia da fama das escolas públicas que ficavam perto de casa, e então escolheu uma escola mais longe, em um bairro de classe média alta. Ela julgava que iria me livrar das “más amizades”, das drogas, roubos e brigas. Com a mudança comecei a utilizar o ônibus como meio de transporte. Doce engano da minha mãe!!! A escola era até organizada, distribuía lanches e livros. Em contrapartida, a sala era lotada, com muita bagunça, professores estressados, drogas do lado de fora do portão, brigas violentíssimas. Sem contar que minha primeira nota vermelha * Graduanda em Enfermagem pela UFG. 22 Caminhadas de universitários de origem popular em Matemática foi no primeiro bimestre desse colégio. Não consegui agüentar, chorei tanto que a professora, Gerciara, me deu um trabalho para que eu pudesse recuperar a nota. Mas esse auxílio não me livrou da nota vermelha. Meu mundo desabou e, mesmo com 11 anos, jurei nunca mais tirar nota vermelha e consegui essa proeza até concluir o ensino médio. Enquanto isso, lá em casa, havia muitas brigas, agressões físicas, verbais e morais porque meu pai bebia, traía e batia muito na minha mãe. Eu e meu irmão presenciávamos tudo. Hoje penso que os estudos funcionaram para mim como uma espécie de válvula de escape, para sair do lar conturbado que vivia. Não posso me esquecer de que eu brincava muito na rua perto de casa. Sinceramente, o ato de brincar todos os dias com os pés descalços na terra me proporcionava muita alegria. Brincávamos de queimada, vôlei, futebol, barra manteiga, pique-esconde... Ahhhh, que saudades. Ah! Que saudades eu tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais! Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais!” Casimiro de Abreu (1839-1860), Meus Oito Anos No caminho, o Ensino Médio Antes de concluir a 8ª série, começou o impasse. Meus pais não tinham condições de me matricular em um colégio particular. Eu já me desatinava por medo do vestibular e porque não teria chance de concorrer com os alunos das escolas privadas. Vale ressaltar que eu estava na 8ª série. Então meu amigo Vinicius me falou que estava fazendo cursinho para cursar o Ensino Médio no Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás, CEFET-GO. Todos diziam que o ensino de lá era bom, que havia vários laboratórios (informática, biologia, química) e o melhor: ERA DE GRAÇA. Conversei com minha mãe. Ela pegou dinheiro emprestado no banco e pagou o cursinho. De agosto a novembro eu estudava de segunda a sábado. Minha rotina era ir à escola de manhã, voltar para casa de ônibus, almoçar, ir para o cursinho de ônibus e voltar somente às cinco horas da tarde. Neste cursinho percebi que meu colégio era fraquíssimo. Havia várias matérias que eu nunca tinha visto. Ufaaaa... essa correria me rendeu aprovação no CEFET-GO e também um refluxo esofágico e, conseqüentemente, emagrecimento. Tornei-me uma pessoa muito ansiosa, fechada com meus sentimentos e triste. Vale a pena citar uma pessoa que teve fundamental importância nessa minha primeira aprovação e na minha vida inteira: minha mãe. Mesmo com as dificuldades de casa, com constantes agressões, com pressão no serviço e o mundo desmoronando em sua cabeça ela sempre falava que acreditava em mim, que me via vencendo na vida, que os estudos eram a única coisa que ela podia me dar e que ninguém iria tomar. Lembro-me de Universidade Federal de Goiás 23 um dia que eu estava muito ansiosa querendo desistir do cursinho, me achando pequena demais. Ela me colocou em seu colo e falou “Filha, ou você carrega pedra, ou você carrega uma caneta. Qual você pretende carregar para o resto da sua vida???” Ela me fortaleceu e me fortalece até hoje, sou profundamente grata a essa mulher que muitas vezes deixou de comer para nos alimentar, que passou frio para nos cobrir. Nossa, como amo minha mãe! Ao entrar no CEFET-GO, passei a conviver com pessoas dos mais variados estilos. Tive acesso a coisas que antes não tinha, como entrar para o time oficial de vôlei onde eu era levantadora (meus 1,59 não permitia mais que isso), fazer aulas de informática, dança, filosofia e sociologia. Minha paixão pelos estudos continuava e logo encontrei a biblioteca do CEFET. Meu hábito de ler foi aperfeiçoado, tive contato com vários autores de renome internacional e nacional como Machado de Assis, Sidney Sheldon, Carlos Drummond de Andrade, Álvares de Azevedo... Lia de tudo um pouco e descobri que amava contos e poemas. Mas, mesmo no CEFET, a carência do ensino publico era evidente. Greves de 9 meses, laboratórios de biologia e química em reformas (nunca conheci esses laboratórios), constante rotação de professores, drogas, bebidas. No 2° ano do Ensino Médio, conheci Eduardo. Nos apaixonamos e começamos a namorar. Ele era meu amigo, confidente, pai e meu amor. Ele me ajudou a amenizar os efeitos que a proximidade do vestibular me causava. Então chegou o 3° ano. Nesse ano meus pais se separaram. Isso mudou totalmente a estrutura de casa, minha mãe virou a provedora do lar. O dinheiro que ela recebia como telefonista dava só pra pagar as contas de água, luz, telefone e colocar comida em casa. Meu pai não nos ajudava em nada e meu irmão havia casado e morava nos fundos de casa com sua esposa e sua filha. Pensei em começar a trabalhar, mas minha mãe queria que eu concluísse o Ensino Médio primeiro. Nessa época, eu não sabia o que fazer. Sonhava em ter um curso superior... um diploma... a tão sonhada caneta que minha mãe falava... mas só conseguia ver pedras desmoronando em cima de mim. “Nunca me esquecerei desse acontecimento na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra Tinha uma pedra no meio do caminho no meio do caminho tinha uma pedra.” Carlos Drummond de Andrade, No Meio do Caminho Driblando as pedras Seis meses antes do vestibular, pensamentos de fracasso, desanimo e desespero faziam morada em meu coração. Foi em uma dessas crises que fui apresentada a uma pessoa especial: JESUS CRISTO. Sempre ouvia falar dEle, mas foi a partir do momento que questionei a existência do AMOR DE DEUS que pude ter a convicção de que esse amor é verdade! 24 Caminhadas de universitários de origem popular Comecei a estudar a Bíblia e falar com JESUS diariamente. Conhecer JESUS mudou minha vida totalmente, consegui forças para superar a separação dos meus pais, descobri um amor que é demasiadamente grande e conheci o caminho da fé !!! “ O amor tudo sofre, tudo crê , tudo espera, tudo suporta” I Corintios 13:7 Descobri, então, que haveria uma prova no Colégio COC (um colégio de classe média alta) que distribuiria bolsas para os primeiros colocados. Como não tinha nada a perder fui fazer a prova e adivinha... ganhei uma bolsa integral no semi-extensivo preparatório para o vestibular! Pensei que, finalmente, iria disputar de igual para igual com todos, uma vaga na universidade. Eu sentia na pele a desigualdade socioeconômica do país e passei a refletir muito sobre a expressão “INJUSTIÇA SOCIAL”. Isso me causava um sentimento de indignação fortíssimo. Minha rotina era acordar 5:30, ir para o cursinho, que terminava 12:30, pegar carona com um amigo que estava na mesma situação que eu. Chegava no CEFET 12:50, almoçava em 10 minutos e entrava na aula do CEFET as 13:00. Às 18:00, saía da aula e chegava em casa às 19:00. Tomava banho, comia e estudava até meia noite ou três horas da manhã, dependendo do dia e do cansaço. “Como dois e dois são quatro sei que a vida vale a pena embora o pão seja caro e a liberdade pequena ” Ferreira Gullar, Dois e dois: quatro Essa rotina diária, e a péssima alimentação que tinha, agravou meu problema de refluxo e as pessoas começaram a suspeitar de gravidez (já que eu só vomitava). Estava muito ansiosa, debilitada e pesava 40 quilos. Fiquei em um estágio tão deplorável que minhas amigas e primos achavam que eu poderia estar também com anorexia. Minha mãe não me deixava estudar tanto e isso me deixava nervosa, fraca e extremamente hiper-ativa. Depois de passar muito mal, eu diminui minha rotina de estudos e não mais estudava a noite. Consegui insenção da taxa para fazer o vestibular da UFG. Nessa época a taxa era de 90 reais e eu não tinha nem a metade do dinheiro. Na hora de decidir meu curso (ate então queria algum curso da área de biológicas mas não sabia qual), pedi para DEUS me orientar e mais uma vez pude ver a mão dele agindo na minha vida. Prestei vestibular para Enfermagem e a concorrência naquele ano era de 19,22 por vaga. No dia da prova estava quase morrendo, nada parava no meu estomago. Fazia ânsia de vômito a todo instante. Quando cheguei na sala, meus pés e minhas mãos suavam e tremiam. Tentava disfarçar para minha família não perceber, mas creio que foi impossível. Fiz a prova e consegui passar para a segunda etapa. Todos já me parabenizavam, afirmando que já era uma vitória conseguir passar na na primeira fase da UFG. Fiz a segunda etapa mais tranqüila e, no ano de 2005, consegui ser aprovada no vestibular para enfermagem em 3° lugar. Universidade Federal de Goiás 25 Foi uma alegria imensa, minha família vibrava... todos me parabenizavam... tinta, sujeira, comemoração no Vaca Brava ( um parque onde os vestibulandos se reúnem após o resultado do vestibular), sair pulando e gritando igual a uma doida. Nossa que alegria! Todo meu esforço havia sido compensado. Tenho que destacar uma frase da minha cunhada no dia do resultado: “Bruna, você é a primeira pessoa que eu conheço que é pobre e que estudou em colégio público a vida toda, que passa na UFG de primeira e ainda em terceiro lugar! Você tem é que apanhar mesmo, sua sortuda!” Analisando agora percebo que em todos momentos JESUS estava comigo. “A felicidade é como a gota de orvalho numa pétala de flor Brilha tranqüila Depois de leve oscila E cai como uma lágrima de amor” Vinicius de Moraes, Felicidade. Na faculdade, novas dificuldades e novos caminhos Pensam que foi só alegria a partir daí?!? Não mesmo... mal começou o ano e os problemas voltaram. O dinheiro era escasso, meu pai não nos ajudava e minha mãe teve que se submeter a uma cirurgia. Lembram-se do meu namorado? Pois é, ele terminou comigo no dia da minha festa de comemoração da UFG. Estranho, né?!? Até hoje não sei porque ele fez isso. Entrei na faculdade tentando pegar o mundo com as mãos e descobri uma realidade totalmente diferente da que já havia vivido. Pessoas de um nível mais elevado que o meu, outro estilo de vida. Comecei a me sentir um peixe fora d’água e tive que lidar frente a frente com o preconceito que, até então, não havia percebido. Tinha a sensação de que algumas colegas tinham nojo de mim pq eu não tinha condições de voltar para casa e tomar banho. Então ficava o dia inteiro suja e suada na faculdade. Meu irmão passou a me ajudar financeiramente. Ele se transformou em um pai pra mim. E só de pensar que ele nem concluiu o Ensino Médio me dói o coração. Minha auto-estima estava muito baixa, estava sobrecarregada e não conseguia estudar mais com tanto afinco, pois gastava horas dentro dos ônibus. Minhas notas despencaram. Foi aí que soube do programa Conexões de Saberes. No início não tinha muita idéia do que seria, mas me inscrevi e fui selecionada. Nesse programa encontrei pessoas maravilhosas, que marcaram minha vida com suas experiências. Pude começar a formar a minha própria identidade, me aceitar como uma estudante de origem popular, conhecer valores importantes e ajudar em casa nas despesas. Consigo pagar o xerox e ainda comprar coisas que julgo importantes pra mim. Sou grata ao PCS por tudo... E pra concluir posso afirmar com toda convicção que: DEUS É O CARAAAAAA!!!!! “DE TUDO, FICARAM TRÊS COISAS: a certeza de que estamos sempre começando... a certeza de que é preciso continuar... 26 Caminhadas de universitários de origem popular a certeza de que seremos interrompidos antes de terminar... PORTANTO DEVEMOS fazer da interrupção um caminho novo... da queda um passo de dança... do medo, uma escada... do sonho, uma ponte... da procura... um encontro” Fernando Sabino, Poema da Reconciliação. Universidade Federal de Goiás 27 Inegável luta Gisely Carvalho Ferraz* Gisely Carvalho Ferraz, estudante de origem popular, ingressou em uma universidade pública. Seus pais nasceram pobres, mas conseguiram oferecer a seus três filhos, a oportunidade de estudar. Em uma casa de palha, com mais 14 irmãos, numa cidadezinha do Maranhão, morava sua mãe. Chegou a cursar até a quarta série e apenas dois de seus irmãos conseguiram, com a ajuda de parentes, concluir o 2° grau. Quando criança vendia cocada de casa em casa, para ajudar no orçamento doméstico. Mais tarde na função de manicure conseguia dinheiro para a despesa de seus três filhos. O pai de Gisely começou a trabalhar na roça ainda menino. Alguns amigos da família, percebendo seu esforço e honestidade, ofereceram um emprego na cidade e a partir desse, vieram outros melhores, até que conseguiu uma vaga no Banco do Estado de Goiás (BEG). A esperança de oferecer melhores condições de estudo aos filhos, motivou seus pais a migrarem do interior do Tocantins para Goiânia. As críticas ao sotaque nortista eram praticamente inevitáveis na pré-escola, mas isso era apenas uma das dificuldades vividas pelas crianças nessa nova cidade. O frio que passaram naquela época, na ida para a escolinha às seis horas da manhã, foi uma coisa inesquecível. Ainda necessitavam tomar dois ônibus, sempre cheios, num trajeto longo e desgastante até chegar à escola. O sistema de meritocracia já se fazia presente em seu novo colégio. Constava no boletim de cada aluno da quarta série sua colocação perante os outros colegas, baseada nas notas que obtinham. A frase ’’Este é um aluno nota dez” era comum naquela escola, e trazia a idéia que sua nota significava seu próprio valor. Foram as boas notas que isentaram Gisely das “advertências” por jogar água do vaso sanitário nos colegas, entre outras traquinagens que cometia. Com a mudança de colégio, uma outra realidade se mostrou aos seus olhos. Os colegas do colégio anterior, disputavam quem possuía a mochila mais bonita e a roupa mais cara. Os colegas desse novo colégio, brigavam para levar a merenda escolar que sobrava, para a casa. Alguns se sentiam constrangidos em dizer onde moravam. A violência era algo bastante presente. Confronto entre gangues, ameaças e brigas, até mesmo entre as meninas, eram * Graduanda em Enfermagem pela UFG. 28 Caminhadas de universitários de origem popular comuns em frente ao colégio. A polícia muitas vezes necessitava intervir. Conviveu com a falta de professores, com as constantes greves e com a desmotivação de alguns alunos, o que, por conseguinte, gerava descontentamento dos professores. Tudo isso, causava uma grande dificuldade de transformar aquele ambiente em um lugar favorável à educação. A aprovação no Centro Federal de Educação Tecnológico de Goiás (CEFET) no ano 2000 significou liberdade, oportunidade de crescimento pessoal e melhor qualidade de ensino. No entanto, o maior legado desse período, foi sem dúvida, seus amigos (tão amados) dos quais ela jamais esquecerá, e lutará para nunca perder o contato. Eles foram alguns dos responsáveis por fazer dessa época a melhor de sua vida. Uma gastrite nervosa foi o resultado da ansiedade causada pelo vestibular e, pelos inúmeros compromissos: curso pré-vestibular, curso de inglês e curso técnico de meio ambiente à noite. As infecções de garganta e as viroses eram freqüentes em conseqüência do estresse. A rotina de acordar às 5 horas e enfrentar dois ônibus lotados até chegar ao cursinho, também contribuíram para isso. Os médicos se transformaram em conselheiros: “Se continuar assim, não conseguirá passar no vestibular”. Contrariando algumas expectativas, não por falta de estudo mas pelo estresse, Gisely conseguiu ser aprovada para o curso de enfermagem. A princípio se assustou com a excessiva cobrança dos professores em “ser o melhor” e com intensa rivalidade entre as colegas de classe. E esse continua sendo um dos motivos do desconforto que sente ali. Observou que a maioria de suas colegas são de classe média, o que reflete a realidade do acesso a universidade em nosso país, onde os mais pobres dificilmente conseguem chegar a universidade. O Conexões de Saberes representou para ela uma fonte valiosa de aprendizagem, que provavelmente não teria em outro espaço da universidade. Além de a bolsa possibilitar a compra de livros indispensáveis a seu curso e o acesso à Internet. Universidade Federal de Goiás 29 “Minha história” Maria Madalena de Oliveira e Sousa* Meu nome é Maria Madalena de Oliveira e Sousa, estou no 7º período do curso de Educação Musical – Ensino Musical Escolar da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás, onde cheguei no ano de 2004. Sempre gostei muito de estudar. Desde pequena adorava brincar de escolinha e minha parceira de brincadeiras e melhor amiga foi minha mãe, Dona Izaura Evangelista Tolêdo. Sempre me lembro de meus pais, e sinto uma enorme saudade; sou agradecida a eles por terem me dado a chance de viver e ser feliz a partir de meus três meses de idade quando me escolheram para ser sua filha. Meu pai, Sr. Sebastião Lázaro de Oliveira, era jardineiro e funcionário público; trabalhava como zelador em colégios da rede estadual de ensino. Ele me ensinou coisas sobre as plantas e a terra, e também a ler e a escrever. Com os dois aprendi valores como amor, respeito e honestidade. Minha relação com a música é muito forte. Me lembro de aos 3 anos ter ouvido uma música dos Beatles e me sentir triste com aquela melodia. Nunca me esqueci daquela emoção que até hoje, depois de adulta, ainda sinto ao ouvir “Hey Jude”. E para cada situação tenho uma música a ser associada, por exemplo: o nome de meu filho Daniel, escolhido quando ouvi a música de mesmo nome, do cantor Elton John. Eu tinha mais ou menos 8 anos. Quando iniciei meus estudos pela primeira vez, foi um fracasso. Não conseguia ficar longe de minha mãe, me sentia muito insegura. A escola era enorme e todas aquelas crianças assustadas, ou chorando, ou correndo pelo pátio, me deixavam com medo. A professora, uma ilustre desconhecida e insensível. Não fiquei nenhum dia pois pulei o muro e voltei correndo e chorando para casa. Estava com 7 anos. Meus pais só me colocaram na escola novamente quando completei 10 anos e a partir daí não parei. Sempre fui o orgulho de meus pais, só tirava boas notas e nunca reprovei. Acho que a única coisa que nunca tive nesta época foi a oportunidade de participar da banda de música, porque era preciso pagar pelo uniforme e meus pais não tinham dinheiro, e eu nem sequer cheguei a comentar nada lá em casa para não deixá-los constrangidos ou obrigados a mais uma dívida. Bom, quando estava no ensino médio, conheci minha alma gêmea. Namoramos e noivamos em dois anos, e assim terminamos o terceiro ano Técnico em Contabilidade. Casamos. Ainda não entendo porque fiz este curso que nunca me serviu pra nada. Acho que é porque gostava de matemática. Mas não tinha nada a ver comigo. * Graduanda em Educação Musical pela UFG. 30 Caminhadas de universitários de origem popular Eu sonhava com música, respirava música. Não tinha idéia de como conseguiria chegar a faculdade porque não podíamos pagar um curso específico de música e não havia escolas do gênero na rede pública. Então, deixei de lado meu sonho e me contentei em fazer um curso básico de violão oferecido pelo SESI por 3 meses, pagando uma pequena taxa mensal. Estava com meus 20 anos. Segui minha vida normalmente. Chegaram os filhos: Ana Luiza, Daniel, Lucas e Estêvão. Com a ajuda de meu marido e de meus pais conseguia conciliar o tempo entre eles e o trabalho na Secretaria de Ação Social do Estado de Goiás. Em 1994, minha mãe faleceu devido a um enfisema pulmonar. Aí então tudo se tornou meio sem graça. Éramos muito ligadas e tive muita dificuldade em aceitar esta situação. Em 1996, Euvaldo, meu marido, me falou sobre um coral no SESC da rua 19, e que estavam aceitando novos coristas. Entrei. Reiniciava assim meu sonho de me tornar uma musicista. Algum tempo depois consegui passar em um teste do Centro Livre de Artes, órgão da Prefeitura Municipal de Goiânia, para fazer musicalização e violão. Neste período tive mais uma grande perda em minha vida, meu pai. E pelo mesmo problema que minha mãe: enfisema pulmonar. Desta vez fiquei mal. Senti que realmente não conseguiria superar isso. Meus pais eram muito importantes para mim e eu não sabia como seria dali pra frente. Mas lá estava Euvaldo pra me ajudar a superar mais esta fase ruim. Passados 3 anos, tempo de conclusão do curso de musicalização, resolvi apostar até onde iria chegar e entrei para o curso preparatório do Centro Livre de Artes para o teste de nível, específico para o vestibular de música da UFG. Apesar de ter ficado afastada da escola há mais ou menos 18 anos (terminei meu 2º grau no ano de 1984), resolvi fazer minha inscrição para o teste e para o vestibular. Estava muito incrédula quanto a minha capacidade e nem me dei ao trabalho de conferir o resultado. Meu professor de violão, Randal Cordeiro, foi quem me ligou parabenizando pelo meu êxito. Fui uma das 6 alunas do Centro Livre de Artes que conseguiu passar no teste da Escola de Música da UFG. O restante do vestibular nem me interessava mais pois nem havia me preparado. Mas, para minha grande surpresa, passei na primeira e na segunda fase das provas que me habilitariam para o curso de Educação Musical – Ensino Musical Escolar, da Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal de Goiás. Entretanto, me manter no curso estava se tornando mais difícil do que todo o processo de ingresso na EMAC. Primeiro, conciliar trabalho e estudo. Trabalhava nesta época na Fundação de Apoio à Pesquisa – FUNAPE, como digitadora, e minha superior imediata não teve a menor sensibilidade quanto a minha situação. Por dois dias na semana tinha aulas em um pedaço do período vespertino e chegava atrasada consequentemente. Não teve conversa, ela foi taxativa: ou o emprego ou a faculdade. Com as despesas com xerox, transporte e alimentação, eu desempregada por ousar querer adquirir um conhecimento tão sonhado e ainda sendo menos um a contribuir com o orçamento da família, pensei: o sonho acabou, tenho que desistir do curso. Mas alguém lá em cima estava olhando por mim. Uma de minhas professoras, Silvana Rodrigues, me avisou sobre as inscrições para um novo programa de extensão denominado Conexões de Saberes, destinado a estudantes de baixa renda e oriundos de escolas públicas, de origem popular. Foi uma correria porque já era o último dia de inscrição e eu moro distante da faculdade, não estava com nenhum documento a não ser a identidade. Mas deu tudo certo, fui contemplada e estou aqui, no último ano do meu curso e simultaneamente, com mais 27 amigos com quem posso compartilhar minhas experiências, minhas frustra- Universidade Federal de Goiás 31 ções, minhas expectativas. Sem medo de me sentir diferente devido a minha cor ou a minha condição financeira. “...e nossa história não estará pelo avesso assim, sem final feliz. Teremos coisas bonitas pra contar. E até lá, vamos viver, temos muito ainda por fazer. Não olhe pra trás – apenas começamos, o mundo começa agora – apenas começamos.” Legião Urbana 32 Caminhadas de universitários de origem popular Em busca do direito de sonhar Adalberto Luiz Matias Júnior* Meus avós maternos criaram todos os seis filhos na roça, no cabo da enxada. Uma vida pequena. Preciosa mas pequena. Minha mãe, graças à minha avó, terminou o magistério e se formou professora, profissão que exerceu até recentemente se aposentar. Meu pai, filho de paulistas, veio pra Goiás para trabalhar com meu tio, seu irmão mais velho, que era torneiro mecânico. Estudou só até a 4ª (quarta) série primária, aprendeu a profissão do irmão e venceu na vida pelo trabalho. Com o tempo meu pai conseguiu ter sua própria oficina, e foi nessa época que nós nos mudamos de Itapuranga-GO, onde nasci, a aproximadamente 180 km da capital, para Itapaci-GO, cidade ao norte do estado, onde meus pais, na época recém casados, foram tentar a vida. Moramos lá mais de vinte anos, onde eu fiz todo meu primeiro grau, e onde estão os melhores momentos da minha infância e adolescência. Assim que terminei a oitava série, eu era um garoto provinciano, filho de uma professora e um pai visionário, que saía do interior para a cidade grande, em busca do direito de sonhar os seus sonhos e o de toda sua família que não cabia dentro de si. Fui pra Anápolis-GO morar com meus padrinhos e estudar em um colégio que me oferecesse condições de ingressar em uma Universidade, sonho dos meus pais, que não tiveram essa oportunidade, e que desde cedo eu compreendi que a única forma de conseguir realizá-lo era ser aprovado em uma Universidade Pública, uma vez que não teriam condições jamais de arcar com as despesas de uma Universidade particular pra me formar. Sempre esteve muito claro tudo isso pra mim, e foi o que me fez estudar como um louco os três anos do colegial que passei no Colégio Estadual Frei João Batista, em Anápolis, que embora fosse público, oferecia um ensino de qualidade, e tive a oportunidade de estar perto de pessoas de origem semelhante à minha, que comungavam comigo dos mesmos ideais, e viam a vida da mesma janela que eu. Conhecer pessoas que movem o mundo, promovem o amor, e nos ajudam a superar nossos dramas e demônios, faz toda diferença, e não posso deixar de registrar que depois de conviver intensamente com cada uma delas, algumas in memoriam, elas têm uma influência imensurável na pessoa em que me tornei. Pessoas fortes e sensíveis que nunca deixaram que a pobreza e a miséria espiritual fossem maiores que a material. Com o término do segundo grau, e a frustração do primeiro vestibular, veio a maratona angustiante de cursinho, e posso dizer que foi o período da minha vida em que mais me lembrei de Deus e de como Ele move todas as coisas dentro e fora de nós. Hoje me lembro com carinho e gratidão daquele tempo, mas com saudades hipócritas, porque me sentia * Graduando em Direito pela UFG. Universidade Federal de Goiás 33 solitário, de coração, muitas vezes, partido, procurando um caminho pra seguir, uma direção, diante daquele cadáver que me sorria debochado, o vestibular. Minha família sempre acreditou na educação como meio de transformação do universo ao nosso redor. E filho de professora, eu acabava estudando um pouco mais. Hoje vejo como essa pedagogia foi imprescindível para que eu conseguisse romper esse ciclo de exclusão e ser o primeiro da minha família a vir a ser um “doutorzinho”, como meu pai sempre brincava, num orgulho que saltava aos olhos do “velho”. Não tive escolha, meus pais e eu sempre tivemos certeza para qual curso eu estava me preparando, e agradeço a eles por não terem me dado outra opção, embora só mais tarde eu tenha me dado conta de que a escolha de um curso como o de Direito, para um garoto pobre como eu, faria tudo ser muito mais difícil. Ao todo foram quatro anos de privações e muito estudo, contando o colegial e o período de cursinho, muitos conselhos, e muito apoio dos meus pais e padrinhos, sem os quais eu não teria conseguido, e para os quais faço da minha trajetória uma dedicação diária. No início do segundo ano de faculdade uma série de acontecimentos abalou minha família. Nas vésperas de comemorar bodas de prata meus “velhos” se separaram e logo depois meu pai veio, inesperadamente, a falecer, de uma forma que arrasou a todos nós. Dias difíceis, que fizeram com que minha mãe e meu irmão viessem para Anápolis, para ficarem mais perto da minha madrinha, uma fada nas nossas vidas, e de mim, na vã tentativa de preencher aquele vazio que meu pai tinha nos deixado de repente. Minha mãe passou por um longo processo até se recuperar da perda, e foi na Faculdade de Direito que eu encontrei mais do que colegas de profissão, encontrei amigos. O Direito me pariu de novo. É o meu segundo pai. Ensinou-me que a dignidade da pessoa humana, é o princípio basilar. Que Direitos Humanos somos nós que promovemos, cada um dentro do seu microcosmos. Disciplinou-me. Ensinou-me a colocar o respeito acima dos meus preconceitos, e a entender que aquele que eu vejo diferente, diferente também ele me vê. Uma das belas lembranças que trago na memória é a da minha mãe lendo a bíblia pra mim. E foi aí que aprendi o que era o Socialismo e despertei para a vontade de fazer Direito e para a questão da Justiça Social. Compreendi que para mudar o sistema é necessário fazer parte dele, estar no centro do processo, e não à sua margem. Só assim é possível acreditar que “amanhã, mesmo que uns não queiram a luminosidade, alheia a qualquer vontade, há de imperar...”. Tenho consciência de que estou em um curso historicamente elitizado, e do meu papel nele. Sei da minha origem e das dificuldades que pessoas como eu passam para conseguirem um lugar ao sol. Pra mim não foi nada fácil chegar até aqui. Na faculdade me sinto apoiado, e poucos são aqueles que tentam me fazer sentir como se ali não fosse o meu lugar, porque na visão deles o Direito é um instrumento de dominação das elites. A justificativa para essas pessoas é a de que o mal, assim como o bem, também se propaga. É o que dá equilíbrio à vida. Embora elas sejam exceções. A educação que eu recebi dos meus pais e a oportunidade que eles me deram de poder estudar e ingressar em uma Universidade Pública me dignifica muito, e fortalece a idéia de que só a educação pode nos levar à lugares inimagináveis. “Encare seus medos e viva seus sonhos...” 34 Caminhadas de universitários de origem popular Panificadora Santo Cristo José Gomes Vasconcelos Neto * Batedeira ligada. Vinte quilos de farinha, um tanto de açúcar, um pouco menos de sal, adicionar água e deixar misturando por cerca de trinta minutos. Enquanto isso pese o fermento e espere a massa dar liga para acrescentá-lo. Não pare, separe as estufas e fôrmas melhores, passe óleo vegetal na mesa e prepare a balança. Com a massa pronta, retire o grande bolo da batedeira, separe em unidades de 5 kg, distribua cada unidade separadamente até preencher por igual a superfície de um maquinário de fatiar. O resultado são trinta pedaços menores. Vejo minha mãe com uma faca de corte na mão, junto à balança no preparo das bolas de massa com cinco quilos. Marcella, minha irmã, está sentada em um tamborete a espera desta etapa do serviço, preocupada com alguma coisa que possa aparecer, olha para o alto, sempre no rumo da janela daquela cozinha de padaria. A televisão está ligada, na ânsia pelo último jornal do dia e sem poder visualizá-la. Com a massa reduzida em centenas de pedacinhos do mesmo tamanho, estique a massa e deixe uma das pontas mais finas. Um cilindro duplo era o que produzia os pães crus enrolados em si próprios. Depois de distribuídos nas formas, fechar a estufa e esperar o fermento fazer a massa crescer. O pão francês leva de 3 a 4 horas para inchar e ficar no ponto certo de assar. Minha irmã, com onze anos, é quem encaixa os pães na fôrma. Faz o serviço em cima do tamborete em que há pouco estava sentada. Não porque seja pequena e tente ficar do tamanho da máquina. O motivo são os ratos. Ratos grandes e esfomeados que sempre davam o ar da graça nas sessões de trabalho na noite de Goiânia. Minha mainha, Léa, termina de preparar a massa doce e vem ajudar a preencher as fôrmas. Ouvia-se o noticiário juntamente com o ruído das máquinas. O expediente da noite na padaria começava mais ou menos 23:00 e para mim acabava lá pelas 4:00 da madrugada. A Marcella se deitava umas 2:00. Já minha mãe virava a noite, para deixar tudo pronto até a abertura das portas às 5:30m da manhã. Com o pão de sal pronto para crescer em paz e a massa das quitandas quase prontas para o manuseio, partimos para a etapa mais divertida do trabalho. Fazer roscas trançadas, compridas, redondas, pequenas, médias, grandes, pães de fôrma, bolinhas de pães de milho, roscas com frutas cristalizadas e outros. Desta vez o peso da massa era irregular. Se vendíamos uma rosca por quinze centavos de real era um peso. Massas maiores, menores, de 200 gramas, 2 kg todas com diferentes * Graduando em Comunicação Social-Jornalismo pela UFG. Universidade Federal de Goiás 35 finalidades. Era divertido manusear e desenhar aqueles alimentos. Mas sinceramente, este era um curto espaço de tempo. Tudo devidamente preparado, misturo a massa de pão de queijo e deito na cama improvisada ao lado de minha irmã. Quando minha mãe nos chama, algumas fornalhas já estão assadas. Tudo ajeitado e com a padaria aberta, deixo minha família e vou para casa tomar banho. Tinha 13 anos e não estudava em escola pública. A minha mãe, Dona Léa, pagava caro para eu estudar em colégio particular. Quando a situação apertava e eu cogitava sair do Colégio Adventista, não aceitava ouvir duas vezes. O nome, Panificadora Santo Cristo, veio de quando morávamos em Leopoldo de Bulhões-GO, com o mesmo ramo de comércio. Meus pais vieram de Pernambuco com meus tios mais ou menos na década de 1980. No interior de Goiás, tive uma vida sossegada e feliz. Nosso carro era uma Kombi para transporte de mercadorias, mas nossos passeios eram confraternizados sempre com muitas pessoas que eram boas demais. Quando Fernando Henrique Cardoso se tornou presidente do Brasil o comércio se modificou e vendas especializadas perderam espaço. O que antes era mercadinho ou supermercado foi adotado pelos hipermercados. Passaram a produzir pães de sal e aumentar a concorrência. Atravessamos momentos difíceis que culminaram na separação de meus pais. Com isso, no final de 1996 e sem meu pai, mudamos para o Jardim Guanabara, em Goiânia. Alugamos uma casa que de bicicleta demorava uns 20 minutos da padaria. Cada um tinha a sua e nossas idas em casa eram mínimas, só para dormir mesmo. Minha casa era perto de um batalhão do Exército e todos os dias de manhã eu passava na frente dele. Trocas de turno na guarita, exercícios e corrida em volta do campo de futebol, recepções com banda marcial e muitos jovens chegando de ônibus coletivo. Depois pegava uma rua de terra e passava do lado de uma das cabeceiras da pista do Aeroporto Santa Genoveva. Ao final das aulas matutinas, voltava para a panificadora, almoçava, e só então liberava minha mãe para o descanso. Minha irmã podia ir para a aula e eu ficava no estabelecimento com as portas abertas até as 21 horas. Preparado para fechar a panificadora, permanecia à espera do padeiro, para ele trabalhar. Segunda-feira, quase meia-noite, nem acredito o padeiro não vem de novo. Minha família volta, guardo as bicicletas, fecho a última porta, e penso em mais uma noite em claro. Não quero nem saber, aula amanhã nem pensar. Trabalho, estudo, trabalho Neste colégio, o Colégio Adventista, convivi com um grupo social e religioso que nunca tinha tido muita proximidade: os evangélicos adventistas. Os adventistas têm toda uma particularidade que os diferenciam dentro do segmento protestante. Não comem carne animal, a base do nome adventista (advento) é a volta de Jesus e acreditam que o sábado é o dia da semana criado por Deus para descanso e adoração, e assim não fazem nada neste dia a não ser orar. Foi uma época boa, mas de religião não aprendi nada. O que aprendi tem a ver com o convívio social. Enquanto que as idéias bíblicas não me seduziam, a união, participação e companheirismo que ali havia me deixavam protegido e adaptado. Sempre sentei no fundo da classe e me relacionava com todos do colégio. Era uma turma em que a maioria estava junta desde o ano anterior e que menos da metade era adventista. Enquanto não dava atenção para matemática e física, adorava ler os livros de geografia e história. Houve uma época em que três alunos (contando comigo) começaram a se juntar no recreio para cantar. Pegávamos o balde de lixo, que era improvisado como 36 Caminhadas de universitários de origem popular batuque, e cantávamos de tudo. Logo vários outros alunos apareciam, muitos de outras salas. Sei que aquilo nunca tinha acontecido naquele colégio, foi algo inesperado e que quebrou a rotina dos intervalos de aula. Ficamos mais de um ano fazendo isso e a direção nunca conseguiu reclamar, pois era uma reunião saudável e divertida que nunca deu problema. Lembro-me que dentre os funcionários do colégio havia dois deficientes físicos, queridos por todos e quem eram importantes para o funcionamento da escola. Tínhamos aulas de religião e toda quinta os alunos eram reunidos, num auditório, para ouvir sobre fé e o evangelho. O colégio era grande e simples, tinha suas regras educacionais religiosas, duas quadras e vista bonita, que dava pra ver lá longe. Mesmo estudando neste colégio particular, meus amigos eram de uma realidade muito mais dura. Minha convivência pessoal era maior e mais forte no bairro em que morava. Então transitava em vivências diferentes. Daquela de estudantes que viviam para estudar, com almoço pronto e cama arrumada. E aqueles que estudavam com o estímulo oferecido pelo ensino público de nosso país. Saía pela noite do bairro indo aos colégios públicos para encontrar os amigos e, muitas vezes, chegava na hora errada, porque a aula tinha acabado mais cedo, geralmente por falta de professor. Outras vezes ficava mais fácil de encontrar a galera, pois as aulas estavam paralisadas por causa de greve. Onde eu estudava isso não acontecia. Outro episódio bastante comum era o abandono dos estudos. Era muito difícil algum amigo meu que terminasse um ano letivo. Fora que a maior parte já estava uns dois três anos atrasados. Enquanto no Colégio Adventista a tarde dos meus colegas era ocupada com alguma atividade, no meu setor a maioria não tinha ofício. Poucos trabalhavam regularmente. Passavam as tardes em frente do ginásio de esporte a conversar, tirar saltos, pegar rabeira na avenida, e procurar o que fazer. E eu sempre estava na panificadora, era só ir lá. Todos os trabalhos de colégio eram interrompidos por algum freguês. O dia-a-dia neste período de minha vida era de pouca diversão. Mas conheci um grande número de pessoas e fiz amizades inesquecíveis. O que vivi neste período faz parte do que sou hoje. Valores humanos, olhar a pessoa por dentro, no fundo dos olhos, sem observar vestuário e modos. Na padaria da minha mãe, onde trabalhava de dia e a noite, mantinha contato com os outros comerciantes e neste convívio os laços se tornam fraternos. O dono do pregão, o chaveiro e seus filhos, a mecânica, do conserto de bicicletas, da lanchonete concorrente, os funcionários da loteria, enfim, todos trocavam experiências e vivências. Nas minhas horas de lazer adorava procurar rádios alternativas que na época ainda eram chamadas de piratas. Conheci o termo rádios comunitárias a partir de um locutor dessas rádios. Mas meu maior desejo era não ter que abrir aquela panificadora todos os dias. Eu sempre estava ligado a saldos, gastos, dívidas e tudo era muita responsabilidade e seriedade e não queria arcar com essas atitudes. Família, vida nova e o Encontro Quando passei para o Segundo ano do Ensino Médio, minha mãe perdeu o comércio e ficamos a ver navios. Mas uma tia nos ajudou, ofereceu uma bolsa de estudos e pagou os dois anos finais do Ensino Médio. Saímos do Jardim Guanabara e fomos morar no Parque Amazônia onde vivemos até hoje. Este foi um momento muito delicado de minha vida familiar, pois minha mãe entrou numa crise depressiva muito forte. Universidade Federal de Goiás 37 Uma mulher, chefe de família, trabalhadora que agora ficava o dia inteiro dentro de casa por ser considerada velha (na época 42 anos) para o mercado de trabalho. Era uma mudança brusca no rumo de sua vida. Foi duro, mas não menos enriquecedor. Não tinha vergonha de andar a pé, ganhar cesta de alimentos, receber livros de donativo, cortar cabelo em casa e ser presenteado com roupas usadas. Fazia disso minha força e o bom é que ganhava muita roupa. Mais uma vez parei em um colégio particular. Desta vez o nível de vida dos meus colegas de sala era muito mais alto. Estudava próximo ao Parque Vaca Brava no Colégio Campus. Na época, celular era para poucos e na minha turma grande parte o tinha. Computador, nem imaginava o que era, e uma parte já se deliciava com os bate-papos on-line. Nunca tive problemas de convivência, era o que era e não me preocupava com essas diferenças. Foi quando conheci minha esposa. Estudávamos juntos e começamos a namorar de imediato. Fernanda, meu bem, que sempre cuidou de mim com aquele olhar apaixonado. Quando passei a viver com a Fernanda tinha aonde ir, com quem ficar, abraçar, sorrir. Ela trouxe alegria para minha casa, minha mãe gostou e gosta muito dela. Acho que até mais do que de mim. Não tenho ciúmes não, na verdade eu gosto de vê-la na minha família. No terceiro ano, tinha dúvidas do curso que escolheria, só decidi no dia de preencher a inscrição, mas tinha certeza da instituição que tentaria estudar: a Universidade Pública. Para chegar à Universidade Federal de Goiás tentei três vestibulares e nunca prestei em universidade particular. Sabia que não tinha condições de pagar um curso superior. Era questão de honra passar na UFG. Após a primeira tentativa não coroada, arrumei um emprego de carteira assinada que me levou a fazer cursinho noturno. Foi muito bom, pois trabalhei e estudei no Centro de Goiânia e convivi com uma rotatividade muito maior e variada de pessoas. Trabalhava na Roma Embalagens, próximo ao antigo Mercado Central de Goiânia. Por mais que as pessoas me desanimassem, eu sabia que estaria na UFG. Tinha que ser assim. Nesta fase me apeguei mais na leitura e afinei meu gosto por geopolítica. No serviço, ouvia uma rádio que discutia política a manhã inteira. Passei a ler os livros literários com gosto, não por obrigação. No meu segundo vestibular, após a primeira fase, estava pronto, era desta vez, iria ser um universitário. A prova escrita parecia feita a dedo para mim. Tudo relacionado a conflitos étnicos. Oriente Médio, Farc, ETA, IRA, ex - Iugoslávia, etc. Fiquei tão empolgado com a prova, que nem lia o final das perguntas, já ia escrevendo. De repente o desastre, troquei várias questões de lugar. Fiz uma bagunça total e dancei. Isso me abalou muito e pensei em desistir. Fiquei sem estudar e não cogitava mais fazer um curso superior. Foi no mesmo ano em que me alistei no Exército. No dia de me apresentar aos militares, deixei que Deus “resolvesse”. Esperei até o final para ver os nomes escolhidos, até pensei em conversar para ser voluntário, mas um cara fez isso antes de mim, levou um carão e então fui embora sem nenhuma certeza futura. Mas depois de seis meses de indecisões e pressão de mãe e namorada, saí do emprego, entrei num cursinho novamente e estudei muito. Passava horas em biblioteca pública, 38 Caminhadas de universitários de origem popular deixava de almoçar, aprendi a ler dentro de ônibus e com o seguro desemprego fiz assinatura de uma revista mensal, a Caros Amigos. No fim deu certo e me tornei acadêmico de Comunicação Social em 2003. Era uma felicidade total. A transformação que a universidade provoca é sem precedentes. A liberdade de atividades é muito maior. Com muito custo te faz adulto, pensar no futuro com força e determinação. Em conseqüência, muda muito de sua inocência e humildade. Tira certo prazer de viver. Te deixa mais frio, ruim, chato e individual. É preciso ter consciência e percepção desses pontos negativos, e notei estas mudanças em mim. No início você se empolga, as dificuldades financeiras ficam esquecidas e o aprendizado recompensa o esforço. Mas com o tempo as exigências e independência pesam o que não era mundo real se junta e faz seus anseios e necessidades serem presentes. Depois de dois anos de total descrença profissional, fui selecionado para o Conexões de Saberes de Goiás, que me trouxe mais consciência de minha responsabilidade como cidadão. Pude colocar meu conhecimento em xeque e ver que tenho importância para a vida. No meu grupo de bolsistas antes de tudo procuro, como sempre foi em toda minha vida, me relacionar com todos. Nas reuniões procuro sempre estar participando das discussões e incentivando os outros a estarem também emitindo idéias. O jornalismo passa hoje por um momento obscuro e transformador. O Conexões faz parte desta mudança, pois posso exercitar o que acredito e desenvolvo como idéia de comunicação social. Trabalho com a interação na internet por meio de emails e um blog, além de incentivar a atividade em grupo ao fazer as cabeças pensantes colocarem em prática o que pensam. Outro ponto em que ação é o registro por imagem e palavras de nossos encontros. Tudo o que vivo e faço no PCS-Goiás já está nos meus planos de exercício em sociedade. Procuro escutar, com novo prazer, as pessoas que encontro no cotidiano. Saber o que pensam, como vêem o mundo, a vida e suas problemáticas. Dizem que a revolução nos dias de hoje é individual. O Conexões de Saberes mostra para mim que não. A união ainda faz a força. E nós unidos, confiantes, acreditando nas mudanças, podemos trazer para as gerações futuras uma Universidade e coletividade mais democrática, afirmativa e popular. Universidade Federal de Goiás 39 Parte 2 EM ALGUM LUGAR NO CAMINHO, UM SONHO ME FEZ ANDAR Uma história de sonhos, tombos e vitórias Letícia Alves Domingos* Minha mãe sempre me dizia que eu não deveria sonhar alto, pois se o meu sonho não se realizasse, meu tombo seria muito grande. O problema é que eu sempre gostei de sonhar e nunca tive medo de cair... Desde julho do ano de 2006, por meio do Programa Conexões de Saberes, começo a repensar alguns fatos que marcaram a minha história escolar, a precariedade da escola pública, a quase inacessibilidade da Universidade pública e, sobretudo, a dificuldade de permanência após o ingresso nessas instituições. Tais fatos infelizmente não fizeram parte somente da minha história vida, mas de diversos alunos de origem popular como eu. Sou Letícia Alves Domingos, hoje estudante universitária negra e de origem popular, componho juntamente com outras 24 pessoas o quadro de bolsistas no referido programa na Universidade Federal de Goiás. Filha de um casal que formou suas famílias ainda muito jovens, ele 16 e ela 15 anos, mas que construíram juntos uma história de luta e determinação. Minha mãe, Lusia Alves Ferreira, cursou até a sexta série do primeiro grau e é empregada doméstica, enquanto meu pai, Eliomar Antônio Domingos, fez até a sétima série e é trabalhador rural. Meus pais apesar de não terem um alto nível de escolaridade sempre proporcionaram a mim e às minhas duas irmãs Eliene e Luciene o acesso a escola. Ensinaram-nos a importância de coisas que realmente são importantes na vida, o respeito aos seres humanos, aos outros seres vivos e ao meio ambiente, a solidariedade, a união e a divisão. Sempre nos mostraram o melhor caminho a seguir e dentre esses, o que nos conduziria a uma vida mais digna e que nos ofereceria maiores opções, a educação. Além disso, fizeram de tudo para que não nos faltassem os principais elementos de auxílio nessa caminhada: lápis, borracha, caderno, livros e, quando podiam, uma mochila. Tive também uma enorme influência religiosa na minha história, fui católica até os treze anos, pois era a religião da minha família. Fiz até catequese e primeira comunhão. Aos treze anos conheci, por intermédio de uma vizinha, uma igreja protestante, que passei a freqüentar a partir daí. Meus pais sempre respeitaram as nossas escolhas e não fizeram objeção à minha mudança de religião. Considero a presença da Igreja importante no que concerne a perda de timidez, sociabilidade, solidariedade. Desempenhava atividades com comunidades populares e trabalhos com crianças. Em relação a questões que perpassam a religião e entram no campo * Graduanda em Ciências Biológicas pela UFG. Universidade Federal de Goiás 43 individual de fé, acredito que Deus teve um lugar importantíssimo na minha motivação. Foi preciso muita esperança, diante de alguns empecilhos, para que eu pudesse continuar estudando e ingressar numa Universidade pública. A minha infância foi marcada pela vida na zona rural, o que me traz ótimas recordações. O acordar bem cedinho e buscar o leite no curral, brincar com minhas irmãs e primas no quintal e nos brejos perto de casa, subir nas árvores, tomar banho no córrego e outras aventuras. Algumas pessoas são indissociáveis desse período: minha avó materna, que até a sua passagem sempre morou conosco, meus avós paternos, onde passávamos os finais de semana. Lembro-me com muita saudade daquele rancho de madeira coberto com palha onde moravam, dormíamos sempre ao som das vocalizações dos anfíbios e acordávamos com o canto dos pássaros. Aprendi a ler e escrever com aquela que também me ensinou a comer, andar, falar, minha querida mãe. Apesar de estar sempre ocupada cuidando dos afazeres domésticos, tratando das galinhas no quintal, dando atenção à minha avó que era doente, e a cinco crianças, ainda arrumava um tempo para me ensinar a ler e escrever. Fazia isso, pois eu já estava com sete anos, mas ainda não tinha condição de ser matriculada numa escola. Não havia transporte que me levasse para a cidade localizada a 11 quilômetros de onde morávamos. Fui para a escola quando completei oito anos, mas nunca tive dificuldades em relação à aprendizagem. Enquanto meus colegas começavam a desenhar as primeiras letras, eu já as conhecia e com elas formava palavras. Por esse motivo, iniciei meus estudos na primeira série. Nesse período, eu e minha prima Patrícia acordávamos às 4h 30min da manhã, íamos acompanhadas pelo meu pai esperar a Kombi e que nos levaria até a escola. Estudava em São João da Paraúna-GO no Colégio Estadual Cônego Trindade, e aí permaneci até a quarta série. No entanto, a partir da segunda série estudávamos no período vespertino. Não havia nesse período um transporte único que nos conduzisse à escola. Eram os mais variados: carros dos pais de alunos que moravam em fazendas vizinhas, ônibus, Kombi, caminhão basculante e até ambulância. Na quinta série, fui morar com uma tia em Paraúna-GO para continuar os estudos, pois não havia tal série no período em que o transporte nos buscava para a escola em São João. Estudava no Colégio Estadual Otaviano de Moraes e lá permaneci até a oitava série ininterruptamente. Entretanto nesse intervalo de quatro anos muita coisa importante aconteceu na minha vida, perdi meu avô paterno, minha avó materna, meus pais se mudaram algumas vezes de fazenda e eu tive o meu primeiro emprego, o qual merece detalhes. Morei e trabalhei na casa de uma senhora em Paraúna, tinha quatorze anos, fazia sétima série. Dona Jozefa era uma pessoa muito querida, de quem me lembro com carinho e saudade, pois hoje já não mais está entre nós. Eu desempenhava nessa casa todas as tarefas domésticas e fazia companhia a ela que já era idosa e viúva havia muito tempo. Só visitava meus pais nos fins de semana, pois estes continuavam morando na fazenda. Em relação à escola nesse período, tive bom desempenho, estudava no período matutino e a escola localizava em frente a casa onde morava. Meu segundo emprego ocorreu aos 16 anos já estava no primeiro ano do Ensino Médio, trabalhei como caixa de um pequeno supermercado em Paraúna, nesse período tive certa dificuldade na escola. O tempo que tinha para me dedicar às tarefas e estudar para as provas era pouco. Sacrificava, portanto, as madrugadas e fins de semana. Mas não desisti, tinha um sonho que não seria interrompido pelo cansaço do trabalho. 44 Caminhadas de universitários de origem popular Quando estava no segundo ano do Ensino Médio tive a oportunidade de estudar na escola particular da cidade, o Colégio Juarez de Melo. Ele oferecia melhores oportunidades uma vez que a realidade daquela escola onde estudava infelizmente era marcada pela falta de professores e insuficiência do conteúdo programado. Consegui uma bolsa de 50%, o restante pagava com o que tinha economizado como caixa, emprego que não poderia continuar mantendo uma vez que nessa escola era predominantemente matutino com complementação à tarde. Obviamente precisei da ajuda dos meus pais para pagar a mensalidade na nova escola. A mudança de escola foi extremamente importante para a concretização do meu sonho que até ali era simplesmente estudar para ser “alguém na vida”. Nesse colégio eram concluídos praticamente todos os conteúdos programados para cada série. Além disso, foi lá que ouvi sobre vestibulares e a possibilidade de estudar numa universidade pública. Aí sim meu sonho deixou de ser simplesmente um sonho, havia possibilidade que agarrei com todas as forças fazendo o que é necessário para sua realização: estudando. Estudei todo o segundo ano com a bolsa de 50%, entretanto, no terceiro ano não tínhamos mais condições de manter com os gastos dessa escola. Estava decidida a voltar para a dura realidade da escola pública. Descontentes com a minha saída da escola a direção me contemplou com uma bolsa integral. O ano de 2002 foi de muito esforço e dedicação para que, ao seu fim, eu pudesse fazer o tão falado vestibular. Na época das inscrições não tinha dinheiro, então os professores da escola se juntaram cada doando o que podiam e pude pagar a inscrição do vestibular na UFG. Não posso retirar desse processo pessoas maravilhosas que entraram na minha vida um casal maravilhoso Marcos e Sílvia. Eles foram as pessoas que deram muito mais que um empurrão para o meu ingresso na universidade, mostraram-me que eu realmente era capaz e me ajudaram no que foi preciso principalmente na motivação. Fiz a prova e obtive sucesso apenas na primeira fase, na segunda foi uma decepção total, me senti extremamente incapaz. Praticamente não resolvi nenhum exercício de Química que era uma das específicas para o curso que escolhi Ciências Biológicas. Em 2003, com a ajuda de amigos e dos meus familiares, me mudei para Aparecida de Goiânia-GO, onde poderia fazer um curso preparatório e assim realizar outro vestibular. Morei nesse ano com uma tia materna, a quem sou muito grata. Esse período não foi fácil, tinha algumas dificuldades para me deslocar naquela cidade grande, uma vez que sempre morara no interior, sem contar a violência e a saudade dos meus pais. Nunca me esqueci, uma semana antes do vestibular da UFG, tive minha carteira roubada no ônibus que me levava do colégio onde fazia cursinho para a casa onde morava. Fiquei desesperada, mas Graças a Deus, jogaram-na com todos os documentos no ônibus então pude recuperá-la. O vestibular de novo, o medo de mais uma reprovação me atormenta. Era inconcebível a idéia de meus pais continuarem me mantendo em outra cidade para fazer um cursinho. Mas isso não aconteceu, dessa vez obtive sucesso tanto na primeira fase quanto na segunda. Passei com 19 anos para o curso de Ciências Biológicas na Universidade Federal de Goiás, motivo de muita alegria para mim e meus familiares. Nesse momento pensei que meu sonho realmente se realizara. Na universidade encontrei outras dificuldades. Como poderia permanecer num curso integral sem trabalhar? Vi também que a universidade é pública, mas não é gratuita, existem taxas, e os livros da área que escolhi são muito caros, comprar algum seria praticamente Universidade Federal de Goiás 45 impossível, me formaria com xérox. E ainda tem o inglês que descobri que é fundamental para a conclusão desse curso e que infelizmente não tenho a base necessária. Agora tenho uma bolsa no programa Conexões de saberes, e com ela, a ajuda dos meus queridos pais e outras queridas pessoas vou me mantendo na Universidade. Até já comprei dois livros, um usado, mas outro não, novinho: meu querido “Ridley”. Agora sonho com um “Raven” e outras coisinhas mais, me formar, fazer mestrado, doutorado... 46 Caminhadas de universitários de origem popular A orquestra dos sonhos Kamyla Faria Maia * “Não vou buscar a esperança na linha do horizonte nem saciar a sede do futuro da fonte do passado nada espero e tudo quero sou quem toca, sou quem dança, quem na orquestra desafina quem delira sem ter febre sou o par e o parceiro das verdades à desconfiança” Gerson Conrad e Paulinho Mendonça Aos meus onze anos, depois de ter desistido de ser apresentadora de TV ou atriz, decidi que queria ser jornalista, ou melhor, correspondente internacional. Mas não bastava só isso, eu queria me formar pela Universidade Federal de Brasília (UNB), que na época era a melhor instituição nessa área. Para uma criança os sonhos são sempre possíveis, basta crescer. Entretanto quando eu cresci pude perceber que não era fácil chegar ao meu objetivo. Hoje estou lutando para alcançar o meu sonho e já dei muitos passos em direção a ele, mas pelo meu caminho existiram e ainda existem barreiras que atrapalharam a caminhada. Mas sei que não estou sozinha, pois vários são os componentes da orquestra da minha vida. Mesmo antes da minha decisão eu já estava construindo minha história. Desde pequena gostava de estudar, me satisfazia com boas notas e com o primeiro lugar da classe, mesmo que o início da vida escolar tenha sido um pouco traumática. Primeiramente porque eu não queria estudar, e depois porque minha primeira professora era um verdadeiro carrasco. Por sorte as outras professoras, em sua maioria, eram boas e me ensinaram muitas coisas importantes ainda hoje. Além delas também tive minha mãe como um auxílio, pois ela sempre olhava minhas tarefas, conversava sobre as aulas e muitas vezes até corrigia as professoras. Sem esquecer meu irmão mais velho, que sempre foi muito inteligente, e me ensinava várias coisas, coisas que muitas vezes eram adiantadas para minha idade e eu nem conseguia entender. * Graduanda em Comunicação Social-Jornalismo pela UFG. Universidade Federal de Goiás 47 Primeiros instrumentos: família, escola, amigos Nos primeiros anos escolares, entre 1991 e 1992, meus pais tiveram condições de pagar escolas particulares e eu não tinha dificuldades para chegar até elas. Entretanto a vida foi ficando mais difícil e a condição financeira do meu pai foi piorando. Mudamos para um bairro mais afastado do centro de Goiânia, mas ainda pude estudar em uma escola particular no meu bairro. Em um certo momento ficou difícil pagar a mensalidade de dois filhos e então meu irmão e eu fomos para o ensino público. Em 1996, fui para a Escola Municipal Leão de Ramos Caiado. Minha mãe ficou muito preocupada, porque sempre via na televisão que o ensino público era ruim e que as crianças eram mais violentas. Eu acabei levando esse medo comigo para o primeiro dia de aula na terceira série. Estranhei algumas coisas, mas acabei gostando de tudo, das professoras, dos amigos... Por incrível que pareça essa escola era muito melhor que a escola em que havia estudado antes, pois tinha professoras bem mais preparadas que as da escola particular. Tive até uma professora que escrevia para o jornal O Popular (talvez por isso tenha escolhido minha profissão exatamente nessa época). A razão dessa superioridade pode estar relacionada a localidade da escola, que ficava num setor central em Goiânia. No mesmo ano tivemos que nos mudar novamente. Meu pai estava endividado por causa de vários problemas, dentre eles os gastos com a operação de apendicite que eu havia feito no ano anterior, e por isso teve que vender nossa casa. Viemos morar em uma pequena chácara que meu pai havia ganho de herança do meu avô, onde moramos até hoje. Com a mudança perdi meus amigos e a rua onde eu adorava brincar. Quase não saía de casa porque a chácara é muito afastada e o bairro mais próximo é um pouco perigoso. Acabei ficando meio solitária e intensificando um hábito que acabara de ganhar, a leitura. Com dez anos acho que era a pessoa que mais lia no mundo, de poesia infantil a Memórias Póstumas de Brás Cubas. Os livros eram meus melhores companheiros no silêncio da minha casa. Nessa época, meu pai começou seu esforço para nos dar a melhor condição de estudo que a sua situação possibilitava. Sempre nos levava de carro a escola e, às vezes, tinha que esperar horas por causa dos nossos horários diferentes. Eu também tinha que esperar muito, sempre era a primeira a chegar e a última a sair. Quando entrei para a quinta série mudei para outra escola que também era bem localizada, entretanto era maior, com alunos bem mais velhos do que eu. Demorei um pouco para me acostumar com os alunos e com o ambiente da instituição. Nessa escola, chamada Escola Municipal Maria Tomé Neto, o ensino era bem pior, os professores faltavam a muitas aulas e não terminavam a matéria a ser dada. A vida se tornou ainda mais difícil, pois meu pai perdeu o emprego de técnico em eletrônica de um banco. A partir de então ele passou a trabalhar mais na chácara e a fazer serviços em várias áreas, de pedreiro a eletricista. Além disso passamos a receber a ajuda da minha avó, que é aposentada e mora na chácara ao lado da nossa. Em 1999, mudei para o Colégio Estadual Polivalente Pio XII e as coisas continuaram difíceis. Professores que faltavam, greves, bagunça dos alunos.... não posso dizer que eu era uma santa, mas ficava chateada quando não tinha aula, gostava de ir para a escola, principalmente porque lá eu tinha meus únicos amigos. E foi exatamente por causa desses amigos que tive que mudar novamente de escola. 48 Caminhadas de universitários de origem popular Envolvida em várias confusões na oitava série, quase fui suspensa. Minha mãe teve que segurar a minha barra sem que meu pai soubesse (até hoje ele não sabe). Então ela achou melhor que eu fizesse o processo seletivo para o Ensino Médio do Centro Federal de Educação Tecnológica de Goiás (CEFET), porque lá os alunos seriam diferentes. Eu não gostei da idéia, pois não queria me separar dos meus amigos e porque achava que não conseguiria fazer novos. Apesar de não estar muito contente, não quis contrariar minha mãe. Então estudei feito louca para a prova. Passava doze horas por dia tentando aprender sozinha o que não tinha sido ensinado entre a quinta e a oitava. O esforço foi recompensado com a segunda colocação na lista de aprovados e com a melhor ensino a que tive acesso. Aprendendo a reger a vida O ano de 2002 veio com muitas mudanças e expectativas. No primeiro dia de aula, depois de longas férias provocadas pela greve de três meses no ano anterior, levei trote dos veteranos e peguei meu primeiro ônibus sozinha. Comecei a me achar adulta, já que o ensino era bem diferente, não havia nenhuma coordenadora para ficar vigiando os atos dos alunos, cada aula tinha uma sala diferente e podíamos entrar e sair quando quiséssemos. A partir de então comecei a ir para o colégio de ônibus, mas meu pai ainda tinha que me auxiliar. Como moramos muito longe ele me levava até o ponto final de uma linha mais rápida para o centro da cidade, que mesmo assim demorava em média uma hora. Então conheci melhor algumas dificuldades de um estudante de origem popular: ônibus lotado e demorado, acordar às cinco da manhã, ter que sair sempre com duas horas de antecedência... A idéia que os alunos fossem diferentes foi um grande engano, meu e de minha mãe. No CEFET havia até mais confusões que na escola anterior, e meu lado meio conturbado me levava a estar sempre nelas. Apesar de ter passado por muitos apuros, me diverti muito, fiz ótimas amizades, que mantenho até hoje, e fui muito feliz. Sempre fui chamada de ‘cdf’, já que eu estudava muito e sempre ajudava meus amigos a passar de ano. Explicava matérias, dava cola, fazia e corrigia as redações, etc. Mas também recebia ajuda em algumas matérias, como Física e Química. Por ser boa aluna todo mundo sempre achava que eu fosse passar no vestibular de primeira e riam de mim quando eu dizia ter medo da prova. Embora seja difícil comparar o ensino público com o particular, posso dizer que tive boa uma educação no CEFET e pude praticar vários esportes; tive acesso a aulas de música, teatro, informática, filosofia e sociologia. Acima de tudo eu aprendi a ter responsabilidade própria, sem precisar da cobrança de ninguém, e a buscar sempre mais do que estava sendo ensinado. Regendo os sonhos Aos quinze anos tive que iniciar minha decisão quanto a carreira profissional e, como o sonho de ser jornalista ainda existia, decidi que iria prestar vestibular para esse curso quando fosse a hora. Embora eu estivesse no primeiro ano do Ensino Médio, tive minha primeira e assustadora experiência com o vestibular no Processo de Avaliação Seriada da UNB (PAS). A prova era bem difícil, mas eu consegui boa pontuação e mantive as esperanças de alcançar meus objetivos. Na etapa seguinte também tive uma pontuação alta, mas na última fase me saí mal apesar de ter estudado muitas horas, até mesmo de madrugada, e não consegui passar. Essa Universidade Federal de Goiás 49 foi minha primeira decepção. Fiquei muito triste e achei que tudo estava perdido. No final do Terceiro Ano, fiz o vestibular da Universidade Federal de Goiás (UFG), meio desanimada e sem muitas expectativas, uma vez que não havia me preparado especificamente para ele. Por não ter feito cursinho e ter estudado em escola pública, achava que haveria muitos concorrentes mais preparados do que eu. Mesmo que eu não esperasse muito, no dia do resultado fiquei ansiosa e, para minha surpresa, consegui passar. Foi um alívio e uma decepção ao mesmo tempo, pois eu sonhava com a UNB... mas é claro que não ia deixar de me orgulhar pela conquista. Sei que muitos como eu não tiveram a mesma alegria e por isso agradeço muito a ajuda dos meus pais, que foram os principais responsáveis pela vitória, por terem permitido que eu me dedicasse exclusivamente ao estudo. Sou grata a minha mãe por dedicar sua vida aos filhos e por ter me ensinado que eu deveria estudar e ao meu pai por me oferecer as melhores condições de estudo, mesmo com muitas dificuldades. Novos palcos, novos desafios Entrei para a UFG e no segundo dia de aula comecei um relacionamento com meu grande companheiro, Fernando. Acabei me acomodando e percebendo que me sustentar em Brasília não seria fácil, por isso não tentei novamente o vestibular lá e decidi me esforçar no meu curso aqui. Nesses dois anos cursados tive algumas decepções quanto ao curso, tive vontade de abandonar tudo e fazer outra faculdade, mas ainda me mantenho no caminho. Muitas vezes me senti sem esperança de conseguir me formar uma boa profissional, pois enfrentei várias dificuldades, como a solidão de me sentir um estranho no ninho e de não me achar competente o bastante, ter de acordar as cinco da manhã, pegar muitos ônibus, percorrer um longo trajeto até a faculdade, chegar em casa exausta e não conseguir estudar, não ter um computador para fazer trabalhos e pesquisas, etc. Mas isso não me fez desistir e nem me faz uma aluna pior. As dificuldades estão sendo em grande parte superadas, por causa da minha força de vontade, do empenho dos meus pais, pelo ombro amigo do Fernando e também pelo Programa Conexões de Saberes. Sei que talvez não consiga ser uma correspondente internacional, mas sei que vou fazer de tudo para que eu possa alcançar o mais alto que puder, sem abaixar a cabeça por causa dos empecilhos. A cada dia dou mais um passo importante e vou aprendendo que aquela menina solitária e intimidada pode tocar como deseja a própria vida. Que mesmo com barreiras emocionais e sociais, não posso desistir, pois tenho habilidades. A universidade foi o começo de uma nova vida, mais independente e confiante, de alguém que está começando a conhecer o mundo. “Moça, diz pra mim como vai você é preciso força pra sonhar e perceber que a estrada vai” Marcelo Camelo 50 Caminhadas de universitários de origem popular “Pedaços de mim” Luciene Araújo de Almeida * Como diz a musica: “Quando eu nasci veio um anjo safado. O chato dum querubim. E decretou que eu estava predestinado, a ser errado assim, já de saída a minha estrada entortou até o fim”. Chico Buarque Se eu vou até o fim, não sei dizer, mais posso dizer do que já se foi, ao menos um pouco. Para muitas pessoas passar no vestibular é um sonho que não será realizado. Para outras o vestibular é um simples processo seletivo, para o qual foram preparados por toda a vida. Mas há aqueles e aquelas que sonham com essa “Torre de Babel”, sonham com tanta força, se esforçam tanto, que acabam tornando-o realidade. Comigo foi assim, muita luta para transpor essa barreira chamada vestibular. Agora o mais triste vocês não sabem, estando aqui dentro da universidade, eu me sentia mais infeliz. Calma, amiga ou amigo leitor, eu posso explicar! Sou uma dessas pessoas que o sistema tenta eliminar logo de cara. Sabe como diz a musica: “Quando, seu moço, nasceu meu rebento não era o momento dele rebentar. Já foi nascendo com cara de fome, eu não tinha nem nome pra lhe dar”. Chico Buarque Mas graças a duas pessoas maravilhosas eu tive a oportunidade de “vingar”. Minha infância foi relativamente tranqüila, sempre fui muito moleca, e qualquer lata ou pau logo se transformava em brinquedo. Minha alfabetização foi igual à de milhares de crianças, que têm esta oportunidade, as boas e velhas cartilhas behavoristas onde repetir e copiar o que já estava pronto era a formula para aprender. * Graduanda em Letras pela UFG. Universidade Federal de Goiás 51 Mas os momentos tranqüilos ficaram na mais tenra infância, e até hoje não sei se foram realmente tranqüilos ou eu que enxerguei dessa forma. Sou mulher, negra e durante boa parte da minha vida, gorda. Criada em uma família de brancos e brancas, todos magros de olhos claros. Posso dizer que desde muito cedo conheci o preconceito de uma forma muito dura. Durante um período de minha vida deixei que me desvalorizassem, mas não me lembro nem quando nem porque eu resolvi mudar essa historia. Mas posso dizer que o que passei me ajudou a desenvolver uma forma de driblar a dor, e eu segui sorrindo . Morávamos em Goiânia quando terminei o segundo grau, por motivos financeiros e desejando muito entrar em uma universidade, fui para Sampa, tentar um emprego, e também, deixar pra trás algumas feridas que aqui eu não conseguia cicatrizar. Foram anos bons mais também difíceis. Após dois anos em São Paulo, estava me sentindo como uma pessoa que o sistema escraviza em um trabalho alienado e alienante. Às vezes me sentia como “Macabeia”, com a permissão de Clarice, que, sem força pra lutar contra essa máquina esmagadora, apenas via os dias passar. Mas dentro de mim à vontade de lecionar sempre foi muito grande, desde criança minha brincadeira favorita era imitar as professoras, adorava dar aulas para minhas amigas. Sendo assim resolvi prestar o primeiro vestibular para Letras na USP, sabia que seria muito difícil, mas eu queria muito e iria me esforçar. Foi um ano de estudo, mas não passei nem na primeira fase. No ano seguinte resolvi que faria cursinho, com uma bolsa que consegui com muita insistência, eu trabalhava durante o dia e estudava de noite. Foi mais um ano de estudo e passei na primeira fase, mas a segunda não me permitiu entrar. Passei a acreditar que não conseguiria nunca entrar em uma universidade pública. Fiquei um ano sem estudar, mas a USP sempre martelava na minha cabeça, eu sempre ia à palestra ministrada por professores da USP, que eram abertas para a comunidade em geral, sonhava com aquele campus. Por fim, decide voltar a Goiânia onde poderia estudar em tempo integral. Eu voltei para a casa de meus pais, e essa volta não foi nada tranqüila, pois minha família convive há muitos anos com o alcoolismo de meu pai e as crises depressivas de mamãe. Mas com a determinação que eu tinha, nada poderia me tirar do caminho da USP. Foi mais um ano de estudo, um estudo solitário, uma vez que não conhecia ninguém que iria prestar o vestibular da USP. Eu lia as análises pela internet, fiz minhas próprias apostilas e estudei. Um ano dentro do quarto, um ano dentro de mim... eu já não sabia mais se estudava tanto para passar na USP ou para não pensar nos problemas que enfrentávamos... um ano de muita solidão -meus livros foram meus maiores companheiros... há, é claro, o Simba, um cachorro que eu arrumei para me apoiar, vale dizer que quando vim embora para Goiânia deixei o Homem que acreditava ser o companheiro de uma longa e apaixonada caminhada. Chegou a época das inscrições e meus pais me disseram pra prestar na UFG também. Já que estava estudando tanto, que mal teria? Fiz a prova da Federal de Goiás primeiro e fui muito bem. Viajei para São Paulo muito confiante, algo dentro de mim (o conhecimento é claro) me dizia que iria passar. E assim aconteceu. Fui aprovada na USP para Letras e também passei para a UFG, senão não estaria escrevendo essa caminhada. O drama começou aí, com meus pais doentes, eu sem emprego em São Paulo e outras coisas que me resguardo de dizer. Não fui para a USP e fiquei na Federal e Goiás. Agora, amiga/amigo leitor, você pode entender porque meu primeiro ano na UFG foi tão doloroso, não que o curso de Letras de Goiás não seja bom, espero que me entendam, é que eu 52 Caminhadas de universitários de origem popular realmente sonhei e batalhei muito pela outra. Mas já que estava aqui e o meu sonho maior sempre foi ser professora, resolvi fazer o curso. No primeiro ano, a grande surpresa. Pensava que tudo seria mais fácil, que por estar fazendo uma universidade pública não teria mais que me preocupar com dinheiro para estudar. Grata ilusão. Esse espaço de produção de conhecimento é tão excludente quanto seu processo de seleção. Os livros são caros e a biblioteca não supre a demanda dos alunos, os professores acreditam que todos e todas tiveram a mesma formação, sendo assim cobram unidade dos alunos e alunas. Unidade essa que sabemos não ser nada real. O recurso é o ilegal, xerox, mas um curso de Letras não é nada barato, o volume de fotocópias é muito grande e falta dinheiro pra tanto. E você acha que os professores e professoras acreditam quando você diz que não leu um texto porque não tinha dinheiro? Claro que não, eles acham que você é relaxada, que não está interessada em aprender, coisa e tal. Fora que a estudante de origem popular tem que trabalhar, outro agravante que prejudica a qualidade do curso. Posso dizer que trabalhei mais que estudei nesses três anos de faculdade. Fiz muita prova sem ler os livros indicados. Passei noites em claro tentando recuperar o tempo perdido, antes das provas, mas não adianta muito. Sei que não sou o que a faculdade entende de boa aluna, apenas sou mais uma. Com a oportunidade que o programa Conexões de Saberes oferece hoje posso me dedicar um pouco mais aos estudos, sei que não dá pra recuperar o tempo perdido, mas dá pra não perder mais tempo. Estou no último ano, todas as inseguranças passam pela minha cabeça, sempre me pergunto se irei conseguir um bom emprego, se irei ser uma boa profissional e outras coisas. Mas como disse no início, posso dizer do que vivi, o que virá basta esperar... Universidade Federal de Goiás 53 O que está em mim Fran Rodrigues* Eu já quis ser bailarina, professora e odontóloga. Esse último nome me parecia tão bonito que, por volta dos sete anos, passei a repeti-lo cada vez que alguém me perguntava o que queria ser quando crescesse. Com o decorrer da infância, nos livros e dicionários, porém, conheci outras palavras. E outras. E outras... até que um dia, ainda no início da adolescência, descobri o que queria. “Jornalista! É isso que eu vou ser”. Escolhi o jornalismo porque as palavras me fascinam. Admiro o modo como são capazes de compartilhar sonhos, de socializar idéias, de descrever pessoas e também realidades que podem ser recriadas, diferentes e melhores. Escrever é o que mais gosto de fazer na vida. Cada texto me parece um desafio, uma tentativa de extrair ainda mais da capacidade que as palavras têm de dizer o mundo. Por isso me alegro, não sem as tensões próprias dos desafios, pela oportunidade de usar as palavras para compartilhar minha própria história. Começo por 2006, que pode, sem dúvida, ser considerado o ano mais significativo até aqui. Muitas coisas aconteceram. Cursei o terceiro ano da faculdade com maior dedicação, muito aprendizado, questionamentos e mudanças. Foi o ano em que me reconheci como EUOP, fato responsável por uma série de transformações. Nas palavras Estudante Universitário de Origem Popular, encontrei uma identidade e isso me possibilitou compreender mais sobre meu passado e, a melhor parte, redefinir o futuro. Escudo de amor Minha mãe é técnica em Laboratório e trabalha, desde os 18 anos, como funcionária concursada pelo estado na área da saúde. Meu pai, nascido e criado na zona rural, fez até a oitava série do ensino fundamental. Já foi garimpeiro em Mato Grosso, feirante, vendedor de sapatos, vigilante e motorista. Isso tudo, sem nunca deixar de sonhar. Não posso falar de mim, sem mencionar (e repetir) essas duas pessoas que sempre foram meus maiores incentivadores e os grandes responsáveis pela conquista de entrar em uma universidade pública. Casal jovem e com duas filhas pequenas, cada um trazia consigo uma história de dificuldades. Perceberam logo no início que a falta de estudo os marginalizava e dificultava seu crescimento. Então, decidiram em conjunto que a educação das filhas seria a maior prioridade de suas vidas. E assim fizeram. Como a idade mínima de ingresso na escola pública era de sete anos, o que meus pais consideravam tardio, adicionado ao fato de que * Graduanda em Comunicação Social-Jornalismo pela UFG. 54 Caminhadas de universitários de origem popular ambos precisavam trabalhar para garantir o sustento da casa, minha irmã e eu começamos a estudar em uma escolinha privada quando eu tinha três anos. Ao relembrar minha história, percebo que apesar de não ter sentido muito na pele, visto que meus pais me serviram de escudo, desde aquela época a vida foi muito difícil, cheia de renúncias e privações para nos oferecer o máximo, o limite de suas possibilidades. Em nenhum momento me lembro de vê-los se queixando por isso. Pelo contrário, sua alegria era o ritual diário de nos ouvir contar quantas coisas tínhamos aprendido na escola. Ficavam tristes pelo fato de não poderem oferecer tudo que pedíamos, já que a inocência infantil não nos permitia entender porque os coleguinhas tinham sempre brinquedos legais e nós não. Também me recordo, com grande arrependimento, que minha irmã e eu pedíamos a meu pai que nos deixasse um pouco distante da escola para que os colegas não nos vissem sair do carro, uma Variante Vermelha ano 77 sem o banco da frente e com o assoalho visivelmente danificado. Eu costumava dizer que tínhamos um carro famoso: “Igual o do Fred Flintstone”. Muito presente, minha mãe corrigia e assinava todas as tarefas escolares, ia às reuniões com professores para acompanhar nosso rendimento e, sempre que possível, nos presenteava com livrinhos infantis para incentivar o gosto pela leitura. Lembro-me também das inúmeras conversas em que meu pai me estimulava a querer aprender sempre mais. Ele conseguia fazer com que até mesmo uma ida ao supermercado ou meu espanto perante um pedinte na rua se transformassem em campanha em prol da valorização da escola. A duras penas, conseguiram nos manter até o fim da quarta série. Depois disso, mesmo com todos os esforços, fez-se necessário que fôssemos para o sistema público de ensino. Nessa época, estudar já era minha grande paixão. Não sei se apenas pela insistência da criação, mas posso dizer, sem modéstia, que sempre fui boa aluna e procurava dar o melhor de mim. Cada boletim era como um troféu que eu entregava a mim mesma e a minha família em retribuição a todo o sacrifício que faziam. Além de estudar, também tínhamos responsabilidades na limpeza da casa e nos trabalhos em que meu pai se envolvia. Quando ele conseguiu comprar uma pequena chácara na periferia de Goiânia, por exemplo, a família toda foi convocada para fazer a limpeza do lugar e construção das estruturas que ele pretendia manter ali. No fim de cada dia, havia marcas de carrapato e muriçoca por todas as partes do corpo exausto, mas eles tinham a preocupação de fazer tudo parecer uma grande festa. Ainda crianças, minha irmã e eu também chegamos a trabalhar na feira com meus pais. Primeiro vendemos alface, depois carne de porco e galinhas, produtos cultivados por nós mesmos na terra que meu pai comprara. Engarrafar leite e vendê-lo na região também já fez parte de nossas atividades conjuntas e confesso que à medida que crescia, essas coisas deixavam de parecer divertidas. Minha infância foi assim, não tão difícil, brincando de trabalhar e estudando por prazer, como meus pais haviam ensinado. No meio do caminho tinha um vestibular... A cada ano que passava, aumentavam as expectativas de cursar uma universidade, e eu sabia que precisava ser gratuita, visto que não havia recursos para custear uma faculdade privada. Estudei até a oitava série no Instituto de Educação de Goiás, mas pensando no vestibular, procurei entrar em uma escola melhor. Soube da fama do CEFET e estudei para o processo seletivo do ensino médio que na época teve concorrência de 19 alunos por vaga. Universidade Federal de Goiás 55 Passei! Devo dizer que sou muito grata por isso. Grata a Deus, grata à vida, ao meu próprio esforço e mais uma vez, grata aos meus pais, que me deram todo o apoio que precisava naquele momento. Estudar no CEFET me aproximou muito do sonho da formação superior mas, ao mesmo tempo, foi um choque. Ali foi o lugar em que, já sem os olhos de criança, me deparei com a diferença social e a desigualdade de oportunidades. Queria muito aprender outros idiomas, mas não era possível. Queria, como os outros, ir ao cinema e viajar para a praia nas férias. Impossível também. Os livros, não podia comprar todos. Morar em uma chácara, ter que atravessar uma erosão antes de pegar o ônibus para ir à escola e, por vezes, chegar suada e com o sapato sujo de barro não era nada fácil, principalmente na minha cabeça recémchegada à adolescência. Foi realmente um choque, mas nada que tenha me impedido de continuar. Eu tinha uma meta e sabia, talvez por causa daqueles discursos paternos tão cheios de amor, que as dificuldades seriam muitas, mas não me impediriam de vencer. Sem muitas perguntas, me adaptei àquelas diferenças e procurei usufruir ao máximo daquele aprendizado que dificilmente teria em outras instituições de ensino público. Seis meses antes do término do ensino médio, decidi fazer um curso pré-vestibular junto com o terceiro ano para tentar garantir uma vaga no curso de jornalismo da UFG. Escolhi o cursinho mais barato que pude encontrar. Com algum esforço, e muita disposição, foi possível pagar. Dividir-me entre a escola, o cursinho e as outras atividades que realizava foi “psicologicamente complexo”. Eu acabara de completar 16 anos e sentia sobre mim o peso do futuro. Entrar na universidade, além de um sonho meu, era também o sonho de uma família inteira e, por isso, sentia a pressão involuntária que a expectativa das pessoas gerava sobre mim. Dedicada, porém insegura, não acreditava que conseguiria passar, afinal o bicho do vestibular que estava pintado na minha mente era muito maior do que eu poderia suportar. Passei na 1ª fase e parecia ser a única a não acreditar que também seria aprovada na 2ª. Apesar de todos os incentivos da família e amigos, eu ainda tinha muito medo. Até então ninguém da minha família havia cursado uma universidade pública e parecia que isso estava demasiadamente distante da minha realidade. Que bom que eu estava errada! Depois de dois meses, que pareceram séculos, saiu o resultado. Lembro-me de ligar chorando no trabalho da minha mãe para dar-lhe a notícia e de ouvir uma resposta igualmente banhada em lágrimas. O choro era de alegria, de gratidão. Era algo como um rito de passagem, um choro de crescimento. Valeu a pena todo aquele preparo desde a infância até as madrugadas em claro e os passeios trocados por horas de estudo. Era minha história com um final feliz. Eu agora era uma universitária e todos os meus sonhos pareciam mais próximos. Hoje percebo que minha atitude naquela ocasião foi no mínimo ingênua. Certamente o momento merecia comemoração, mas estava longe de ser um final, muito menos um final feliz. Permanecer, o grande desafio Na universidade, um sentimento de completa estranheza me atingiu, quase fatalmente. A desigualdade social foi o elemento mais preponderante, mas não o único. O fato de ser mais nova que os demais, a incompatibilidade que senti em relação ao ambiente, a timidez que parecia me impossibilitar de exercer a profissão que escolhi, a situação de desemprego 56 Caminhadas de universitários de origem popular que meu pai passou a enfrentar, o longo percurso diário até o campus e aquele ônibus lotado e caótico, foram elementos que se somaram e me fizeram imaginar que eu não estava no lugar certo. Pensei em tentar outro curso e até mesmo em desistir de tudo. Sentia-me inferior aos demais e incapacitada de dar continuidade àquele projeto. Não consigo mensurar com precisão esses sentimentos, mas acredito que a sensação de incapacidade tenha sido muito maior que a felicidade pela aprovação no vestibular. De algum modo, que eu não entendia ao certo, o sonho de uma vida estava se dissipando em poucos meses. Já não sabia sequer se conseguiria concluir a graduação, portanto, pensar em mestrado ou doutorado chegava a ser absurdo. Na vida financeira, enfrentávamos a maior dificuldade de todos os tempos. Eu não tinha dinheiro sequer para tirar o xerox que os professores pediam em todas as disciplinas. Às vezes, deixava de comparecer à aula por causa disso. Sabia que se pedisse dinheiro aos meus pais, ou tirariam de coisas importantes ou se sentiriam mal por não ter a quantia necessária. E eu já não era aquela criança sem entendimento que pedia iogurte no supermercado. Para melhorar a situação, digitava trabalhos escolares e dava aulas de reforço. Aprendi a filmar e fazer edição de vídeo. Também cheguei a ser responsável pelo jornal de uma associação. O dinheiro era pouco, mas ajudava. Na maioria das vezes, tinha boas notas e resultados, mas não me sentia bem. Faltava algo. Faltava me sentir parte daquilo. E aí entra o Conexões de Saberes. Conhecer o programa, me inserir no grupo na condição de voluntária e assim perceber quantas pessoas se encontravam na mesma situação que eu, me fez acreditar novamente no meu potencial e reacender todos os sonhos que haviam se perdido. Inclusão, oportunidade e confiança são algumas das palavras que, embora já conhecidas, só passaram a fazer sentido depois do PCS. Antes, eu estava na universidade, mas agora ela está em mim. Apesar de reconhecer minhas limitações e saber que para um EUOP o caminho é mais longo, hoje tenho a força de que preciso para não desistir de sonhar e ver em cada dia a realização gradativa do projeto de vida que tracei. Em crescimento contínuo, vou seguindo sem lamentar, agora com orgulho de ser quem sou e da minha origem, com um conceito muito mais amplo do que é “vencer na vida”, com uma crença renovada nas pessoas e em mim mesma, e com vontade de prosseguir e alcançar. Muita vontade. Universidade Federal de Goiás 57 Parte 3 A CADA DIA DE LUTA NÃO SE PODE PARAR, NEM DESISTIR. É PRECISO CONTINUAR. Menina do pé de manga Márcia Daniele de Souza Carvalho* Nasci em 30 de abril de 1984, às 11h50 da manhã. Mas minha história começa para mim um pouco depois, na infância, a partir das primeiras lembranças que tenho da vida. Morávamos em uma casa pequena de quatro cômodos: dois quartos, cozinha e um banheiro. O quintal era um tanto grande, com muitas árvores, muito verde. A paisagem do bairro era toda assim, com ruas ainda não pavimentadas e vários lotes baldios. O setor é o São Judas Tadeu, localizado na região norte de Goiânia, nas proximidades do Campus II da UFG. Desde cedo o espaço da universidade se tornava familiar. Nossa casa foi uma das primeiras a existir na rua do bairro quase deserto. Para lá nos mudamos em 1985 e assim meu pai, vendedor autônomo, conseguiu comprar o imóvel próprio, onde residimos ate hoje. As personagens dessa fase da minha história eram: meu pai, Edvaldo Cícero de Carvalho, minha mãe, Neuma Sônia de Souza Carvalho e meu irmão, Marcos Tadeu de Souza Carvalho. Minha família até então se estruturava de uma forma tanto quanto tradicional: O pai que trabalha e leva o sustento da família e a mãe que cuida do lar e das crianças. Minha mãe possuía o segundo grau completo, com habilitação técnica em contabilidade e, antes do casamento, trabalhava fora, era independente. Mas depois se manteve no lar, e um dos motivos era o fato de sermos pequenos e, claro, precisar de alguém que cuidasse de nós. Meu pai fez até o segundo ano do curso técnico em administração de empresas. Era comerciante, tinha um ponto de vendas no camelódromo do centro e um outro na feira hippie de Goiânia. A estrutura do bairro, apesar de muitos problemas, possibilitava certa liberdade infantil que hoje vejo que poucas crianças possuem. Tive uma infância quase rural, correndo pelas ruas, brincando com terra, e subindo em árvores, aliás, essa era uma das coisas que mais gostava de fazer. Sempre brincava no pé de manga, e era de lá que costumava avistar o Campus da Universidade. Juro! Passei a infância toda olhando aqueles prédios e imaginando o dia em que estaria lá. Primeiros marcos, conquistas e vitórias Como o tempo é curto pra contar muitas coisas, vou tentar dividir minha história em “marcos”. O primeiro é 1990. Esse talvez tenha sido o maior marco da minha vida. Completei seis anos, mas isso não foi o mais marcante. Foi nesse ano que fui à escola pela primeira vez. Lembro que foi uma das coisas mais emocionantes dessa parte da minha vida. Sempre * Graduanda em História pela UFG. Universidade Federal de Goiás 61 quis ir à escola, aprender ler, escrever. Antes de nos matricular, minha mãe já havia iniciado nosso processo de alfabetização em casa, comprava sempre um caderno de caligrafia nos colocava pra copiar nossos nomes e a ler A-E-I-O-U. Talvez tenha sido isso que favoreceu pra que meus primeiros contados com as lições não fossem tão difíceis mas, ao contrário, eram muito estimulantes. Estudei pela primeira vez no Núcleo Educacional da ASUFEGO. Era uma escolinha primária conveniada com a UFG. Meu pai pagava uma mensalidade não muito alta. O ensino de modo geral era bom, apesar da professora muito estressada que eu tinha no jardim II, “Tia Clara”. Ela dava beliscão, sacudia e empurrava a cabeça dos alunos quando erravam a lição. Hilário, né? Eu tinha que contar isso, pois é um tipo de coisa não deveria acontecer em um colégio vinculado a uma Universidade, que geralmente dispõe de todo um projeto de “formulação didático-pedagógico” adequado. Mas tirando a parte da tia Clara, nós gostávamos muito do colégio, que tinha campo de areia, parquinho, tínhamos aulas de natação. A localização era boa, ficava dentro do Campus, no clube do SINT-UFG. O lugar era muito arborizado, estávamos sempre em contato com a natureza. Íamos pra escola no ônibus escolar, o “ônibus do Baiano” que pegava e levava a gente na porta de casa. Desfrutávamos de certo conforto nessa época. Entretanto, além da ida pra escola, o que marcou bastante nesse ano foi um grande acontecimento. A morte do meu pai. Edivaldo Cícero de Carvalho, 29 anos, comerciante, casado, pai de dois filhos pequenos, morre assassinado com três tiros, dois no peito e um de raspão no queixo. O crime aconteceu na Praça Tamandaré, setor Oeste, região sul da cidade. O motivo do crime foi banal, uma pequena discussão, um pequeno desentendimento entre a vítima e um sujeito que não se sabe nem o nome ou mesmo a placa da moto, utilizada durante o crime. Foi assim que meu irmão e eu nos tornamos órfãos. Falar disso é meio complicado, é difícil entender ou definir o que aconteceu da forma que aconteceu. Eu, com seis anos, ainda não tinha refletido o suficiente sobre a morte. Cresci tendo que pensar sobre isso o tempo todo, tentar entender, fazer um esforço pra compreender o mundo e as pessoas de modo geral. Um dos meus primeiros e freqüentes questionamentos foi sobre a “morte”. Nossa família se desestruturou desde então. Uma das personagens de minha história deixa de fazer parte do enredo, abandona o plano físico e passa ocupar continuamente o psicológico. Quase tudo mudou. Minha mãe ainda desestabilizada psicologicamente é que assume a direção da família. Deixa o lar e começa a trabalhar no Camelódromo e na feira, no lugar do meu pai. Não poderia deixar de falar dela aqui. A dona Neuma, uma personagem de grande relevância nessa minha história. Mesmo cercada tantos problemas e tanta dor, ela conseguia ser para nós, ou pelo menos para mim, o maior ponto de apoio. Sempre que precisei ela esteve lá, do meu lado, independentemente de qualquer coisa que pudesse haver. Pra gente, meu irmão e eu, as coisas também mudaram. Tivemos que mudar de escola, pois, além de ficar mais difícil pra continuar pagando a mensalidade da ASUFEGO, era complicada também a ida e volta da escola. Passamos a estudar então em uma instituição pública localizada no centro da cidade, a Escola Estadual Gracinda de Lourdes, que ficava perto do Camelódromo, assim ficava fácil pra minha mãe levar e buscar a gente. Foi uma época de algumas dificuldades, inclusive financeiras. Passamos várias etapas até recuperar do choque. Não tivemos apenas o sofrimento com a morte, mas também com outras coisas que se desencadearam em função disso, prefiro ser sutil, não pretendo entrar em detalhes. 62 Caminhadas de universitários de origem popular Sobre o Gracinda de Lourdes, tenho boas recordações. Já no pré aprendi ler e escrever, tinha um rendimento um pouco melhor que as outras crianças, não sei se ter estudado antes na ASUFEGO contribuiu pra isso. Mas eu também me esforçava muito, tinha muita vontade de aprender, e nunca a perdi, mesmo em meio a frustrações. A tia Ediene sempre me elogiava, meus desenhos, a pintura, a letra... e eu, claro, ficava toda orgulhosa. Na terceira série, quando já estava alfabetizada, comecei a ter apreço pela escrita, tinha muito prazer em escrever, gostava de inventar “historinhas”, muitas delas “fantásticas”, sobre vacas que voavam animais que iam à escola, bem próprias de uma criança de mente fértil como eu. A professora Marta ria muito das coisas que eu escrevia, lia sempre em voz alta pra turma toda. Tirava excelentes notas em redação, falava que quando crescesse iria ser escritora e acreditava de verdade nisso. Apesar das boas lembranças, nessa escola tive o primeiro contato com a decadência do ensino público. Havia carência de coisas básicas de manutenção da escola, faltavam materiais de limpeza, merenda, entre outras coisas. Lembro de várias vezes em que a diretora fez campanha entre os alunos com o objetivo de arrecadar coisas básicas de sobrevivência da escola. Sempre levávamos de casa, detergente, sabão, verduras para a sopa etc. E também tínhamos que pagar o caixa escolar que nessa época que custava 4 reais mensais. Em 1995, concluí a quarta série no Gracinda, o colégio não oferecia o ginásio. Esse ano também foi o começo de uma certa estabilidade em casa. Minha mãe havia alugado o ponto do Camelódromo e vendido o da feira , começou a trabalhar como fotógrafa em uma empresa que ficava no centro, onde recebia relativamente bem. Foi uma fase de um certo equilíbrio financeiro em casa. No entanto, continuei a estudar em instituição pública. Colégio particular poderia oferecer despesas que iriam além do orçamento. Em 1996, depois de uma tentativa frustrada de entrar no Lyceu de Goiânia, que tinha como regime de seleção o sorteio de vagas, fui para o Colégio Estadual Rui Barbosa, que ficava na avenida Goiás, no centro, onde cursei ate a oitava série. Ao contrário do Gracinda, não tenho tantas boas recordações do Rui Barbosa. Recordo-me de muita desorganização e até casos de violência entre alunos. Houve até uma briga que culminou na morte de um aluno. Havia também confrontos de torcidas organizadas na porta do colégio. Além disso, salas lotadas, muito barulho durante as aulas, professores visivelmente desqualificados – e esse era um dos principais problemas. Um único professor chegou a ministrar cinco disciplinas, sem ter formação em nenhuma. Ou seja, qualidade zero! Eram freqüentes também as trocas de professores de algumas disciplinas, não dando continuidade no processo de aprendizagem. E não vou nem falar sobre a qualidade decadente da infra-estrutura física. Esse período da minha história foi bem complicado, não saberia analisá-lo bem ainda mais em poucas linhas. Só poderia dizer que foi uma fase de desmotivação, não tinha estímulo para ir às aulas mesmo permanecendo assídua. Nas salas de aula não havia sequer “um” ventilador e fazia um calor de matar, imagina! Eu estudava no período vespertino. Eram momentos de descontrolável preguiça. A única coisa que me mantinha estimulada era a minha curiosidade em relação ao mundo. Eu sabia que havia várias perguntas a serem feitas e várias respostas a serem encontradas. Lia algumas coisas independentemente da escola, me mantinha informada, apesar de tudo, minha vontade de aprender não ficou esquecida por completo. Porém, nesse recorte de tempo, a prática e o gosto pela leitura ficaram esquecidos. Não me lembro de fazer muitas redações durante o ensino fundamental, salvo as vezes que escrevia no diário. É! O diário foi uma fuga, nessa época tive sérias crises de auto-estima e fui me tornando um pouco introspectiva. Universidade Federal de Goiás 63 Já na sétima série, ainda estudando no mesmo colégio, decidi que assim que terminasse o fundamental tentaria ingressar no CEFET. Sabia que era preciso procurar instituições públicas que ainda oferecessem qualidade de ensino. Cursando a oitava série cheguei a fazer um cursinho de um semestre pra fazer a prova que, pelo nível de ensino oferecido pelo colégio, seria difícil. Nesta época, o CEFET era bem disputado. Porém não obtive sucesso na prova e fui para o Lyceu de Goiânia. Dessa vez consegui, mas ainda com muita dificuldade. O colégio não tinha mais o esquema de sorteio e, segundo o diretor, as salas de primeiro ano estavam com o número extrapolado de alunos. Mesmo assim, com muita persistência, em 2000 me matriculei no colégio. Era evidente a diferença entre um colégio e outro. Esse era um tempo em que o Lyceu ainda era referência se comparado aos demais colégios públicos. Em 2001, por exemplo, foi um dos colégios públicos que mais “aprovou” alunos no vestibular em Goiânia. No começo tive algumas dificuldades até me habituar ao sistema do colégio. Uma das minhas dificuldades foram os livros do Ensino Médio, que eram caros e era difícil acompanhar a turma sem eles. Consequi comprá-los já quase no meio do ano ainda sim não comprei todos. Entretanto, mesmo tendo o nível melhor em educação, em comparação ao Rui Barbosa, por exemplo, o colégio também não se desvinculava da famosa, muito falada e pouco resolvida ”Crise da Rede Pública de Ensino”, e já passava por diversos problemas característicos. Passei por duas greves durante o ensino médio, uma em 2000, assim que entrei, e outra logo em seguida em 2001. O colégio sofria também com falta de professores. No primeiro ano ficamos ate o mês de abril sem professor de História. E professor de Química nem se fala! Esse nunca tinha, sempre era algum da biologia brincando de improvisar Química, e todo ano durante o andamento do curso mudava o professor. Conclusão: Nunca aprendi Química em toda a minha vida! O colégio aos poucos diminuía seu número de alunos, greves, alto níveis de reprovação, entre outros e muitos problemas. As salas eram fechadas e sua qualidade aos poucos foi diminuindo. Mas apesar de tudo o colégio manteve certo nível de qualidade, graças à eficácia e a dedicação de muitos professores que sempre, de alguma forma, tentavam burlar a crise. Tive ótimos e inesquecíveis professores no Lyceu, Maria vitória (biologia), Flavio (sociologia), Leopoldo (matemática), Vital (filosofia), Maria Lucy (português) Robson (geografia, mas lecionou história devido à falta de professores), Wanda (Biologia) dentre outros, que mesmo mal remunerados lecionavam com prazer, tendo em vista um propósito maior. Posso dizer que aprendi muito, não somente coisas referentes ao conteúdo didático mais principalmente sobre o mundo, a vida e aos valores humanos. Agradeço-os pela paciência e a força de vontade, pelas vezes que deram aulas durante os sábados em conseqüência da alteração da grade que nos desprivilegiaria no vestibular. E sem receber por elas! E os perdôo por quase sempre fazerem parte do comando de greve que deixava a gente sem aula. Tenho ótimas lembranças do Lyceu. Foi lá que recuperei minha auto-estima, me animei mais em estudar, fiz amigos que mantenho ate hoje, Daniela Rezende, Deborah Cintra, Graziela Apolinário, Danilo (o Cabelo). Até recuperei meu gosto pela escrita! Tenho “altos textos” e poemas escritos dessa época em um caderno antigo. Em 2002 terminei o Ensino Médio, fiz vestibular no mesmo ano, como experiência, mas sem muita perspectiva de passar já de primeira. Sabia que seria preciso estudar mais, correr atrás do que não me foi oferecido. Escolhi como primeira opção “Design de Moda” - não falei da minha habilidade em desenhar! Sempre tive muito gosto por artes. Porém não passei na prova de 64 Caminhadas de universitários de origem popular aptidão, e a segunda opção foi “Publicidade e Propaganda”, que escolhi aleatoriamente. Como já era esperado não fui aprovada. Tinha planos de no próximo ano fazer cursinho e me dedicar de verdade. Desenrolando histórias Em 2003, aconteceu um fato que também posso considerar um “marco” em minha vida. Marcos, meu irmão mais velho, foi baleado com um tiro na barriga por seu, até então, melhor amigo. O acidente foi durante uma brincadeira “sem graça” enquanto estavam embriagados. Ele ficou na UTI do HUGO (Hospital de Urgências de Goiânia) em estado grave mas sobreviveu, quase que por um milagre. E sabe como é, né? Essas coisas acabam mexendo nas estruturas tanto físicas quanto psicológicas de uma família. Parte do meu ano de estudos foi perdida, tive que ficar em casa tomando conta dele enquanto minha mãe trabalhava, não pude fazer cursinho devido à falta de grana que isso e outras coisas desencadearam. Estudei o pouco que deu, consegui também fazer um curso de desenho e pintura pra me preparar melhor pro bendito teste de aptidão. Fiz vestibular novamente pra Design de Moda. Desta vez passei no teste de aptidão. Mas que falta de sorte! Zerei a disciplina de Química já na primeira fase. Pois é, ”a Química”, que maldição! 2004, foi mais tranqüilo, apesar das novas dificuldades financeiras que começavam surgir. Nesse ano não dava mesmo pra fazer cursinho, mais uma vez estudei por conta própria, em casa, na biblioteca, em livros, em outros materiais que ganhei de amigas que já tinham feito vestibular. Neste ano comecei a freqüentar mais o espaço da universidade que fica perto de casa. Foi aí que comecei fazer parte do grupo de estudos do professor Alex Ratts, do Instituto de Estudos Ambientais-IESA. O grupo tratava de questões étnicas, mais especificamente a questão da situação do afro-descendente no Brasil. Interessou-me muito, uma vez que, filha de mãe negra, aliás, “da negra mais bonita do Brasil”, o preconceito racial sempre fez sentido em minha vida. Através das discussões passei a refletir melhor sobre a questão de modo geral e principalmente sobre mim enquanto afro-descendente. Participar do grupo fez crescer meu interesse pelas Ciências Humanas. No final do ano, já próxima a data de inscrições, desisti do curso de Design e decidi que faria História. E foi o que fiz.Nesse ano fiz dois vestibulares, na UFG e na UEG. Ufa! Dessa vez não zerei Química, e nenhuma outra matéria. Fui aprovada em ambos. Então em 2006, a garotinha do pé-de-manga, que sempre olhava o Campus de longe, imaginando o dia em que estaria ali, se matricula na Universidade Federal, no curso de História. O curso não é exatamente como que eu esperava, mas de forma geral, eu gosto. No andamento do curso algumas dificuldades começaram a surgir. A empresa que minha mãe trabalhava faliu, as coisas começaram a ficar difíceis. Cheguei até pensar em trancar a faculdade. Mas como sempre em minha vida, não desisti. É aí que o Conexões de Saberes entra em minha vida. Fiquei sabendo da seleção de bolsas e considerei que pudesse ser uma oportunidade. O mais importante, no entanto, é como o programa significou algo mais pra mim. Possibilitou-me trabalhar e discutir sobre temas que me interessam muito e que tinham ficado de lado, porque quase não se discute “Ações Afirmativas” na academia. Outro ponto interessante do programa, é colocar a serviço da sociedade, a produção de conhecimento. Tenho muitas expectativas em relação ao Conexões e a todo o processo que surge no país de democratização da universidade e de melhoria do ensino público de base, que se encontra em estado de calamidade. Espero de alguma forma, contribuir com esse Universidade Federal de Goiás 65 processo. Pois quem esteve lá sabe muito bem o que significa estar lá. E olha só! A garotinha que queria ser escritora escreve sua vida que não deixa de ser “fantástica” mesmo que cada conto não tenha tido sempre um final feliz ou uma narrativa instigante. Mesmo que em muitos momentos nos fartamos dela, tendo vontade de pular alguns capítulos ou simplesmente fechar o livro sem chegar até o final . Mas a vida é assim! Um desenrolar, não só de uma, mas de várias histórias, uma reunião de contos cheios de emoções, carências, desilusões, mas também de felicidades, perspectivas e realizações, e temos que vive-las uma a uma, sem pressa, e sem desânimo, mesmo quando o capítulo se torna fadigoso, mesmo quando as palavras se tornam incompreensíveis fazendo com que tenhamos que voltar ao começo para só depois seguir para as etapas seguintes, concluir a história e iniciar uma outra. 66 Caminhadas de universitários de origem popular Objetivos e força de vontade fazem a diferença Átila Carvalho Dias* Me chamo Átila Carvalho Dias. Bem, você que esta iniciando a leitura deste relato deve está pensando que se trata de um garoto, por causa do nome. Mas se trata de uma garota. Apesar deste nome ser empregado, na maioria das vezes, como nome próprio do gênero masculino, ele também é usado no gênero feminino. A razão coerente que levou meu pai a colocar este nome em mim eu não sei bem. Só sei que ele resolveu colocar por causa de um filme que assistiu, no qual havia um guerreiro chamado Átila. Quando menina, confesso que odiava meu nome. Queria ter um nome normal, comum, como qualquer outra menina; até cheguei a dizer para meu pai que quando eu crescesse iria ao cartório trocar de nome. Essa questão do nome passou: aprendi a relevar o estranhamento que as pessoas manifestavam quando ouviam meu nome, já que eu sou uma garota e o nome é do gênero oposto. Hoje conheço outras mulheres que têm o mesmo nome que eu. E em um trabalho etimológico (estudo da origem e significado de palavras) que uma amiga fez, descobriu-se que Átila significa pessoa que gosta de se adornar, e minha personalidade tem essa característica, pois amo estar “bem” vestida, de modo que o que eu use esteja harmonizado. Vejo que um nome não faz muita diferença, pois o que fará a diferença serão os objetivos e a força de vontade para alcançar os sonhos. Posso dizer que sou uma guerreira e vencedora, pois sendo de origem popular, estou fazendo faculdade em uma instituição federal e tenho vencido, de forma não dramática, todos os obstáculos que a vida coloca na frente de quem tem essa origem. Meu pai se chama Lourival e minha mãe, Maria Aparecida. Ambos não concluíram o antigo primário. Meu pai é padeiro e minha mãe costureira e eles, principalmente minha mãe, sempre lutaram para que eu me dedicasse aos estudos. Sou primogênita e negra. Nasci na capital de Goiás, Goiânia, no ano de 1987 e meus pais só tiveram outro filho, Leonardo, em 1992, 5 anos após meu nascimento. Do período em que fui filha única não tenho muitas recordações. Lembro-me que morávamos em um barracão de 2 cômodos no lote onde meu avô paterno mora (tenho grande carinho por meu avô, uma pessoa muito querida e que sempre me apoiou). Ao iniciar a vida escolar, minha mãe já me ensinara a escrever meu nome e as vogais. Aos 4 anos comecei a estudar na Escola Irmão Áureo, próxima à minha casa, e que ficava no meu bairro, Jardim Nova Esperança. Ao findar do ano letivo, por motivos pessoais, minha mãe me transferiu para outra escola, que se chamava CECOM. Esta escola, onde estudavam crianças da periferia, era um projeto de extensão da Universidade Católica de Goiás. Nela * Graduando em Letras pela UFG. Universidade Federal de Goiás 67 estudei do pré-alfabetização até concluir o primário, pois a escola não oferecia as séries posteriores. Lá fui muito feliz. As turmas eram pequenas, os professores eram legais e todos eram amigos; a escola parecia uma grande família. Sempre fui a 1ª da turma (graças a minha mãe que me incentivava nos estudos), terminava as atividades e então ajudava os coleguinhas que tinham dificuldades. Ao terminar a 4ª série, fiquei com medo de encarar a segunda fase do Ensino Fundamental, pois a professora dizia que teríamos muitos professores e que não seria mais como no primário. Mudei de escola, fui estudar na única escola estadual do meu bairro, o Colégio Estadual Robinho Martins de Azevedo. A 5ª série realmente era um pouco diferente do primário. Mas as crianças eram da minha idade, poucos eram mais velhos e logo conquistei novas amizades. O ensino fundamental foi feito com muita tranqüilidade. Na metade da 8ª série, um moço foi ao colégio no qual eu estudava fazer propaganda de seu cursinho preparatório para o exame de seleção do CEFET. Até então, nunca ouvira falar da escola técnica. Me interessei, fiz o cursinho e o exame, mas não passei. A média de corte foi de 40 pontos e fiz só 37. Continuei na escola estadual e fiz o Ensino Médio. No 2º ano estava muito bem nos estudos, porém, no 3º ano meu rendimento caiu drasticamente, a maior causa foi uma ilusão amorosa. Desde o 2º ano já havia decidido que queria cursar fisioterapia, mas antes cursaria letras, pois me apaixonei por espanhol, esse idioma tão envolvente e com características belíssimas. Além do fato de que minha professora dessa matéria era muito competente e também me incentivou no meu sonho. Em outubro de 2004, me inscrevi em uma maratona preparatória para o vestibular (o curso era particular). Me inscrevi também em 3 vestibulares: na Universidade Católica de Goiás (UCG) para letras, na Universidade Federal de Goiás (UFG), para letras; e, por último, na Universidade Estadual de Goiás (UEG) para fisioterapia. Fui aprovada na UCG e reprovada na UEG. Vestibular da UFG No dia do exame do vestibular me lembrei de levar tudo, com exceção da carteira de identidade e dinheiro (não levei dinheiro, pois meu pai me levou ao local da prova e, depois, me buscaria). Pensei que não me seria permitida a realização da prova, devido a esse contratempo. Queria desistir, mas pensei: E se essa for minha chance? E se essa for a faculdade que é para eu estudar? Se eu desistir vou perder a grande oportunidade. Então consegui forças. Conversei com uma monitora e ela me tranqüilizou um pouco, mas eu ainda teria que providenciar a chegada de minha carteira de identidade. Sai pedindo a todos um cartão telefônico emprestado, ninguém tinha. Até que uma mulher me deu dinheiro para comprar um cartão. Fui comprá-lo, mas não tinha lugar que vendesse cartão. A solução foi ligar a cobrar para a casa de uma amiga, liguei e pedi que ela avisasse minha mãe. Enquanto o documento não chegava, fui para as proximidades da sala, onde seria ministrado o exame. O nervosismo era tanto que bebi uma garrafinha inteira de água que eu havia levado. Chegou o momento do início do processo, dois monitores verificaram meu comprovante de inscrição, o qual possuía foto, e me permitiram entrar na sala. Após uma hora meu documento chegou e tudo se tranqüilizou. No dia do resultado meu nome estava na lista dos aprovados, fiquei muito feliz. Mas ainda tinha a 2 ª fase, que era no “canetão”. Fiz a 2ª etapa. Não fiquei com muitas esperanças na minha aprovação. Porém, no dia do resultado, fui a uma lan-house conferí-lo. Eu havia 68 Caminhadas de universitários de origem popular passado (era o meu primeiro ano de tentativa no vestibular, e eu só tinha 17 anos). Soltei um grito bem alto de alegria e o moço que estava ao meu lado estranhou. Mas a emoção foi muito grande, afinal eu passara em uma universidade pública e poderia estudar, pois se não fosse assim não poderia continuar meus estudos, já que meus pais não possuem renda suficiente para pagar faculdade particular. No dia da matrícula, fui pintada pelo pessoal da calourada. Quando as aulas iniciaram, comecei vender bombons e cremosinho na hora do intervalo. Também aos domingos trabalhava em uma feira livre vendendo os cremosinhos, e o dinheiro que eu conseguia era para pagar as xérox (que não eram poucas), o ônibus e os lanches. Mas eu até me divertia, pois logo conheci várias pessoas do curso de letras. Uma outra dificuldade foi que os professores e alguns alunos falavam de temas que eu não estava inteirada. Por exemplo: marxismo, mitologia grega, lingüística, etc. Nesse momento vi que o conhecimento que eu trazia era pequeno se comparado ao exigido. E para poder participar das discussões teria que me esforçar muito mais que outros, já que meu tempo era menor pois gastava 3 horas (de ida e vinda) no percurso casa-faculdade-casa. Aos poucos fui me inteirando e fazendo parte daquele novo mundo. Ainda tenho dificuldades em alguns assuntos, entretanto, aos poucos, continuo abrangendo meus conhecimentos e o Conexões foi mais uma porta que se abriu para que eu tivesse acesso a mais conhecimentos, como, por exemplo: ações afirmativas, convívio com pessoas de outras áreas, outras visões, etc. Essas novas vivências têm me ajudado como indivíduo que faz parte desse mundo moderno, que tem tratado de temas tão variados, sem falar na fragmentação que está presente em todas as áreas do conhecimento. Hoje, quando meus professores falam de gênero, orientação sexual, raça, etnia e ações afirmativas, eu já posso participar das discussões e sem falar que ultimamente tem-se trabalhado, na educação, com temas transversais, ou seja, o educador precisa ter conhecimento de gênero, orientação sexual, raça, etnia, ações afirmativas etc. E agora eu tenho, e isso me será muito favorável na minha formação acadêmica e profissional. Mesmo com todas as dificuldades que um estudante de origem popular tem que enfrentar para permanecer na Universidade é possível fazer com que esse caminho se torne menos espinhoso com ações como a que o Conexões de Saberes realiza. Mas é necessário atingir um público maior para que todos tenham oportunidade de crescer e frutificar. Universidade Federal de Goiás 69 Dona da minha história Taísse Dias Guimarães Souza* Meu nome é Taísse, nasci em Goiânia no dia 11/03/1984. Nesta época minha mãe estava em um momento muito difícil, pois descobriu que estava grávida de mim quando minha irmã tinha apenas 5 meses, o que foi um choque. Com tamanha dificuldade financeira e duas filhas pequenas, uma terceira gravidez chegava a ser desesperadora. Minha mãe, Marilú Dias, nasceu em Goianira, cidade a 22 Km de Goiânia. Até os 20 anos, ela morou com seus pais em uma fazenda, mas quando completou 21, encantada com as promessas da cidade grande, resolveu trabalhar em Goiânia. Morou sozinha, conseguiu serviço de doméstica, conheceu um rapaz com quem começou a namorar e pouco tempo depois engravidou de minha irmã mais velha, Fernanda. O rapaz não assumiu a criança, meus avós não aceitaram a idéia de ter uma filha mãe solteira e isso foi um terrível desconforto para toda a família. Depois de dar à luz e sem apoio dos pais, Marilú decidiu morar com sua irmã Antônia, que estava na mesma situação. Nessa época as duas mães e seus bebês passaram a dividir um cômodo em Goiânia. Após nove anos minha mãe conheceu meu pai. José Estolano nasceu na Paraíba, atualmente tem 79 anos e é aposentado como servente de obras civis do estado de Goiás. Ele teve 11 filhos no primeiro casamento e, depois de algum tempo separado, conheceu minha mãe dentro de um ônibus em Goiânia. Os dois decidiram morar juntos e tiveram duas filhas, Polyanne e eu, e casaram-se 14 anos depois. Sofremos muito com meu pai. Ele bebia, ficava com a mulherada e sempre foi um pai muito ausente. Não por não estar presente fisicamente e sim porque ele chegava em casa, mas não falava nada, não se importava com as nossas vidas, não nos dava atenção, era como se não tivéssemos pai. Nunca podíamos contar com ele, e se alguma coisa ele fazia por nós, era debaixo de muita insistência da minha mãe. A crise financeira era grande, pois morávamos em quatro cômodos, éramos oito pessoas: minha mãe e meu pai num quarto e eu, minha tia, suas duas filhas e minhas duas irmãs noutro quarto, a dificuldade era imensa. Com apenas três meses de idade comecei a passar o dia em uma creche enquanto minha mãe trabalhava. Sofri vários problemas de saúde no período em que freqüentei esta creche. Foi lá que comecei a ser alfabetizada, com cinco anos. Eu tinha uma professora muito má, que chegava a me dar medo. Neste momento minha mãe conseguiu comprar um lote em Aparecida de Goiânia e a patroa dela nos ajudou a construir um barraco lá. A mudança da cidade de Goiânia para Aparecida de Goiânia dificultou ainda mais a nossa ida para a creche. Acordávamos cinco horas da manhã e enfrentávamos ônibus lotados, era uma tristeza, como sofríamos! Aos seis anos saí da creche, pois estava na hora de ir para escola. * Graduanda em Biblioteconomia pela UFG. 70 Caminhadas de universitários de origem popular Eu e minha irmã fomos para uma escolinha particular para fazer a primeira série juntas, só que nos primeiros três meses a professora notou que nem eu nem a minha irmã Polyanne sabíamos ler, então voltamos para a pré-alfabetização. Cursamos o pré e a primeira série na escolinha particular. Na segunda série tivemos que ir para escola pública, já que minha mãe não tinha condições para pagar escola para nós. Foi muito ruim, estava acostumada com escola pequena, e a nova era enorme, muitos meninos bagunceiros e grandes, que por qualquer coisa nos agrediam. Então minha mãe me transferiu para uma escolinha pública que estava sendo inaugurada no meu bairro, tinha poucos alunos, na minha sala somente 10. Comecei a me sentir a vontade, fiquei nesta escola pública até a oitava série. Durante este período, com treze anos, eu comecei a me envolver com a igreja evangélica, e, dentro da igreja, senti a necessidade de conhecer mais a Deus. Apesar dessa instituição ter me ajudado muito, percebi que aquela concepção de igreja não resolveria os meus problemas existenciais. Eu precisava de algo mais. Com a ausência paterna, projetei em Deus os problemas que sofria com a figura do meu pai: eu sabia que Ele existia, mas estava sempre distante de mim. Mas não me conformei com aquela situação de sentir Deus de modo tão distante. Comecei a buscar a realidade com Deus, pois queria conhecê-lo de fato e não só de ouvir falar. Queria a realidade do viver de Cristo em mim. Nessa busca eu encontrei vida, consciência, equilíbrio e sentido para minha existência. Graças a Deus, consegui perceber o limite entre o que era de Deus e o que o homem fazia no lugar de Deus. Foi quando decidi romper com a instituição e me apegar tão somente em Jesus. Isso foi uma revolução para minha vida, de modo que passei a enfrentar novos desafios e viver algo novo em Deus, um caminho desconhecido. Sofri muito preconceito por causa desta decisão, mas com o passar do tempo e tendo por base o princípio “conhecereis a verdade e ela vos libertará”, vejo que essa foi a melhor decisão da minha vida. Disso tirei forças para enfrentar desafios, dificuldades que surgiram me fizeram ver o meu caos de uma forma diferente e de criar meios para contornar todas minhas limitações, inclusive sociais. Nos moldes da escola pública era considerada boa aluna e não reprovei em nenhum ano. Porém, quando cursei a oitava, estava totalmente desmotivada. Minhas irmãs mais velhas já tinham parado de estudar e eu não sentia nenhuma motivação nenhuma para continuar. Exatamente nessa época, surgiu a oportunidade de estudar na Fundação Bradesco de Aparecida de Goiânia. Nossa! Quando entrei pela primeira vez naquela escola tão linda foi como um sonho. Eu desejei tanto estudar lá e consegui. Minha alegria foi tão grande que ultrapassa a capacidade das palavras. Ser selecionada nesse processo renovou o meu desejo de estudar. Para uma aluna de origem popular e negra estudar numa escola de alta qualidade de ensino e tecnologia avançada, recebendo gratuitamente todos os materiais escolares, o uniforme completo, informática, alimentação, artes, música e esportes significou mais que uma oportunidade, algo inexplicável. Terminei a oitava série e concluí todo ensino médio na Fundação. Durante esse período, me profissionalizei no curso de cabeleireira que a Fundação oferecia de graça para alunos e comunidade. A atividade informal de cabeleireira me supriu financeiramente até o início do terceiro ano. Eu arrumava cabelos na casa das pessoas e sobrava um tempinho para estudar. Como ganhava muito pouco, tive que trabalhar de secretária o dia inteiro e estudar a noite. Isto foi o inicio do meu pesadelo, pois passei a não ter tempo para me dedicar os estudos e minhas notas foram lá em baixo, justamente no fim do terceiro ano, quando era Universidade Federal de Goiás 71 ainda mais importante estudar. Tal realidade fez com que me sentisse incapaz de prestar vestibular na Universidade Federal de Goiás. Via muitos dos meus amigos pelo menos tentando, e eu nada. Fui um fracasso no serviço de secretária onde eu estava trabalhando. No final do ano perdi o emprego, mas graças a Deus passei de ano. Não prestei vestibular, fiquei tão frustrada que no ano seguinte eu não consegui exercer nenhum trabalho formal e não estudei. Me mantive apenas com meu serviço de cabeleireira. Um ano depois, a Fundação Bradesco me chamou novamente para fazer um curso Técnico em Gestão Organizacional. Foi neste momento que conseguir ver o mundo em minha volta de modo diferente. Aproveitei cada detalhe desse curso, que era uma oportunidade única de mudar o rumo da minha história profissional. Este curso técnico me ajudou no aumento da auto-estima. Os professores nos estimulavam a ser empreendedores e a buscar os nossos objetivos. Neste momento, senti que poderia fazer um cursinho e prestar o vestibular na UFG, apesar disso ainda ser um desafio. Minha família achava impossível passar na UFG, mas não me importei e continuei rumo a meu objetivo. Vejo que Deus sempre colocou pessoas certas no meu caminho para me ajudar. Uma dessas pessoas é hoje o meu esposo. Na época em que era só meu amigo, me ajudou muito e foi um exemplo para mim, pois também é de origem popular, oriundo de escola pública, e, com muito esforço e dificuldade financeira, conseguiu passar na UFG. Ele cedeu todos os seus livros e me ensinou matemática, física e química. Foi um período angustiante e de sofrimento. Tinha que trabalhar, fazer cursinho, estudar e fazer o curso técnico. Alguns dias antes de fazer a prova do vestibular, Teddy e eu, começamos a namorar. Foi muito bom, pois me deu mais inspiração para fazer a prova. Foi a primeira vez que tentei prestar o vestibular. Nunca tinha tentado antes, porque eu sabia que não passaria. Foi maravilhoso quando saiu o resultado da minha aprovação, pois tinha me esforçado muito. Antes de sair o resultado, as pessoas pensavam que todo aquele esforço era em vão, mas, graças a Deus, nada foi em desperdiçado. Consegui passar no vestibular, sair bem no curso técnico, pagar o cursinho e ainda namorar a pessoa que eu amo. Quando cheguei na Universidade foi uma decepção, pois, além de tudo, os cursos menos concorridos são preteridos em relação aos demais. Me sentia perdida. Ninguém dava nada para meu curso, pois ele era para gente pobre, que não tinha como entrar num curso melhor, então fazia esse. Ainda tinha o problema da distância. Da minha casa à Universidade tinha que atravessar Goiânia inteira. Os ônibus são tão lotados que pensei em desistir de estudar. Mas logo pensei: “Foi tão difícil chegar...Desistir agora?” Então continuei, mesmo que com dificuldades cada vez maiores, já que percebi que muito mais difícil que entrar, é permanecer. No primeiro ano de faculdade tive que trabalhar em um salão de beleza, pois sem uma renda fixa não tinha condição alguma de manter os estudos. Minha família estava com muitas dívidas e eu precisava trabalhar. Trabalhava todos os dias e aos sábados trabalhava 14 horas seguidas, com um único intervalo de 5 minutos. O dia inteiro em pé, sem tempo sequer para almoçar, cheguei num nível de estresse tão grande que fui parar no hospital, pois fiquei muito doente. Foi terrível. Nessa época meus pais se separaram e as contas se acumularam. Tive que pegar empréstimos para pagar a luz que estava atrasada havia três meses. 72 Caminhadas de universitários de origem popular Minhas notas estavam péssimas, mas venci com a graça a Deus. Saí do salão no qual era praticamente escrava. Recebia muito pouco e a dona do estabelecimento não me pagava direito. Fui para outro salão, onde passei a trabalhar menos. A dificuldade então passou a ser a distância. Saí também desse salão e ganhei a bolsa do Conexões de Saberes. O programa foi uma benção na minha vida, pois além me ajudar financeiramente ao ponto de possibilitar o sonho de me casar, ainda mudou minha visão de mundo ao ampliar meus horizontes e gerar a compreensão da minha realidade. Passei a me sentir inclusa no projeto de uma nova sociedade. Hoje valorizo minhas origens, não sinto vergonha nem do que sou nem do meu curso, pois tudo isso se tornou de grande valor para mim. Universidade Federal de Goiás 73 “À espera de um milagre” Alan Rodrigues de Azevedo* – Alô! Gostaria de falar com Alan! – Sou eu, quem está falando? –É a Cleide, estou te ligando pra dizer que saiu o resultado da UFG. Nesse momento meu coração disparou: era um misto de ansiedade, medo, angústia. Seria diferente desta vez? Ou iria começar todo meu sofrimento de novo? Era o fim de anos de espera, ou tinha chegado meu grande dia? Todos esses pensamentos assaltaram minha mente naqueles poucos segundos. –Alan, Alan! Você está na linha? –Estou, pode falar. Passei ou não passei? Estou preparado! –Na verdade, eu não sei direito... Nessa hora meu coração pulou do peito. Ela sabia sim do resultado e estava com medo de me dizer que eu não havia passado. Era só o que passava na minha cabeça. Ela estava sem coragem pra me dar a triste noticia. E ligou pra quê? Pra rir da minha cara? Pra me consolar? Pra chorar comigo? –Fale logo, não estou suportando essa angústia! Não entendi minha insistência. Eu não acreditaria em nada do que ela dissesse! Se falasse: “Alan, você não passou”, eu ia odiá-la por ter sido a portadora daquela notícia trágica, mas preferiria ficar com a ingenuidade de pensar que ela estava enganada. Mas, e se ela dissesse que eu passei? Também não acreditaria. Nessas horas fico possuído pelo espírito de São Thomé e só acredito naquilo que eu mesmo posso ver. Então, pra quê tanta insistência? O melhor era desligar aquele telefone e correr atrás do resultado. –Alan, eu realmente não sei. Acabou de sair o resultado e a internet está congestionada. – Muito obrigado Cleide. Vou desligar para conferir com meus próprios olhos. – Boa sorte! – Valeu. Desliguei o telefone e um monte de teorias de perseguição se insinuava. Se saiu o resultado e ninguém me ligou é porque não passei! E agora? Vou ficar aqui nesse martírio e angústia, esperando que algum ser humano iluminado se encoraje e me ligue? Decidi que ninguém podia fazer por mim aquilo que era minha obrigação. – Estou saindo pra olhar o resultado do vestibular da UFG! - Comuniquei minha chefe do trabalho. * Graduando em Medicina pela UFG. 74 Caminhadas de universitários de origem popular – Saiu o resultado? – Saiu! – Gritei de longe pra não dar tempo de ela tentar me impedir de sair no meio do expediente. Fui para o ponto de ônibus. Meu destino era o Centro de Seleção da UFG. Queria ir até lá pra ver com meus próprios olhos o resultado. Aquele caminho nunca tinha sido tão longo. Foram os 20 minutos mais longos da minha vida até chegar ao resultado. Quando desci no ponto, na Praça Universitária, parece que minhas energias foram todas sugadas pelo medo. Pessoas correndo, outros gritando, alguns chorando. Precisava correr pra acabar de uma vez por todas aquela angústia mortífera que eu sentia. Ao chegar no mural do Centro de Seleção, meus olhos corriam desesperadamente em busca do meu nome. Avistei de longe: Medicina. Está lá o meu curso! Nesse momento devo fazer uma pausa pra registrar que nessas horas odiava meu nome começar pela letra A. Eu não podia me iludir muito. Logo no início saberia se o meu nome estava ou não na lista dos aprovados. Continuei correndo os meus olhos, e: Adriana Machado Mendonça, Aída Frenner Costa, Alan Rodrigues de Azevedo. O quê? Sou eu mesmo? Não é possível! A primeira lágrima rolou dos meus olhos. Não acreditei, precisava confirmar pelo número da identidade. Não podia ser verdade! Confirmado: SSP-BA. Era eu mesmo! Comecei a chorar e a gritar. Minha felicidade era grande demais pra caber dentro de mim. Era 31 de janeiro de 2003. Tinha chegado o meu grande dia. Precisava repartir aquela alegria com alguém. O delicioso gosto da vitória me enchia de coração. Corri para um telefone público pra ligar para os meus pais, na Bahia. Minha irmã mais velha atendeu o telefone e quando lhe dei a notícia, ela também não conteve a emoção. Choramos muito juntos, pelo telefone, naquele dia. Mainha estava trabalhando e paínho estava na roça. Ela foi a primeira a saber. A nossa emoção era maior porque nos lembrávamos da música que dizia: “Vai valer a pena, ter amanhecido, ter me machucado, ter me socorrido...”. Ivan Lins Toda minha luta contra um sistema desleal de disputa havia terminado. Eu acabava de transpor a barreira da desigualdade. Aquele menino pobre, nascido em Caetité, no sertão da Bahia, era agora, acadêmico de Medicina na UFG. Toda minha vida de luta contra a maré pra chegar até ali tinha me levado ao melhor destino que podia imaginar. Rompemos o muro que me separava da universidade e me tornei o primeiro daquela família a entrar numa Universidade Federal. Não foi fácil. Foram 3 anos de espera. Já estava em outro curso superior, já que não podia pagar cursinho e muito menos passar mais tempo “à espera de um milagre”. Milagre? Sim, milagre. Analisando toda minha vida e as oportunidades que tive, muitos dirão que foi um milagre. Entretanto, foi um milagre conquistado a cada dia por mim e por minha família. Não foi como aqueles milagres que a gente levanta as mãos para o céu e espera a bênção. Ah, não foi mesmo. Foram muitas batalhas, muitas renúncias, muitas feridas, algumas cicatrizes. Universidade Federal de Goiás 75 Foram anos de muito sofrimento compartilhados com as pessoas que lutaram, choraram e agora, venceram comigo: mainha, painho e minhas irmãs. E a luta? Essa não pára. E nem poderia! Eu continuo nadando contra a corrente. Um aluno de origem popular em um curso totalmente elitizado. –Hoje nós vamos dar início ao estudo prático da semiologia médica. Já dividi os leitos do hospital entre vocês. Alan, você ficou com o leito 1A da Medicina Tropical. – E o que eu devo fazer? – Vá até lá, entreviste o paciente internado e faça o exame clínico completo. Você tem 20 minutos pra fazer isso. Essa é nossa primeira avaliação. – O senhor não avisou que seríamos avaliados! – Seu tempo está correndo doutor! Fui ao leito destinado. Era meu primeiro contato com o paciente. Agora, do outro lado. Naquele instante, como um flashback, lembrei da minha tia. Eu tinha 10 anos. Ela sofria de câncer e já estava em fase terminal, mal se alimentava. Não conseguia realizar sua higiene pessoal sozinha. Me chamava no canto da cama e pedia pra que eu abanasse as moscas que já estavam tomando conta do seu corpo. Naquele dia, como em outros, passei a tarde “cuidando” dela. Ela se foi, mas me deixou o desejo e a missão de cuidar das pessoas, aliviar seu sofrimento e, quando possível, curar sua doença. – Alan, terminou o exame? – Mais ou menos professor! – Como mais ou menos? – Não tenho estetoscópio, nem esfigmomanômetro e nem martelo neurológico. – Não tem por quê? – O senhor quer mesmo saber? Não tive condições financeiras de adquirir o material! – Você tem que aprender a determinar suas prioridades! Não iria adiantar dizer a ele que não era uma questão de prioridade. A Faculdade ignora a existência de alunos de baixa renda em seu corpo discente. Mais uma vez, mesmo com a emoção de estar de frente ao meu primeiro paciente, a Universidade tentava me dizer que eu não devia estar ali. Mas essa era apenas mais uma etapa e eu sabia que, mais uma vez, chegaria ao final. 76 Caminhadas de universitários de origem popular O testemunho da sobrevivente Jenhiffer C. de J. Medeiros * Eu tenho memórias, lembranças de outras ruas, outros lugares, muitas experiências que contribuíram ora de forma saudável, ora de forma amarga para o que eu sou hoje. Eu seria injusta se esquecesse dessas histórias antes de mim, esse passado que foi tão importante para minha formação pessoal e emocional. Tentarei ser breve... Maria José é filha do Tocantins, nasceu na minúscula Palmeirópolis-TO. Foi criada pelos avós, pois sua mãe (Maria Célia) prometeu que se tivesse gêmeos, daria um dos filhos para a avó paterna (dona Belarmina) criar. Dona Belarmina quis a menina e, logo, o menino, José Maria, foi criado pela Maria Célia. Maria José adorava sua avó Belarmina e seu avô José Augusto, mas a avozinha querida morreu quando ainda era jovem, e senhor Zé Augusto a terminou de criar. Até hoje ela o chama de pai: “o pai Zé Augusto”. Eu acredito que ele foi a pessoa mais importante de sua vida, quem mais a amou. Ele provou que a amava demais quando cuidou dela na adversidade, talvez uma das maiores de sua vida. A pequena Maria José, aos 5 anos, teve uma doença grave nos ossos: osteomielite. Por causa dessa doença grave, os ossos lhe saíam carne a fora. Isso lhe rendeu alguns buracos pelo corpo e uma má formação no lado esquerdo, principalmente na bacia e na perna esquerda que é mais curta que a perna direita. Zé Augusto, sem ter muitos recursos, não pôde evitar o problema físico. Construiu com suas próprias mãos as “muletas” de madeira para a menina conseguir andar. Até hoje ela gosta do que seu avô inventou e continua fiel ao formato das muletas de madeira. Tão jovem, ela superou essa adversidade, mas de certa forma, ela morreu e renasceu. Se tornou uma moça muito perspicaz e inteligente, tinha lá os seus grilos, mas nada que lhe tirasse a vontade de ver um próximo dia, a vontade de andar e realizar alguns sonhos. Ela subia nas árvores, ouvia músicas e jornais no seu rádio, mas adorava uma estação que falava do Rio de Janeiro enquanto ela imaginava a cidade. Nasceu o desejo de ir para o Rio algum dia. * Graduanda em Letras pela UFG. Universidade Federal de Goiás 77 Veio para Goiânia, ficou amiga de sua mãe, trabalhou algum tempo e garantiu o benefício do INSS por invalidez. Em 1982, ela foi para o Rio de Janeiro com a cara e a coragem. Queria ser atriz e até estudou em uma escola especifica, mas desistiu. Ela andava por toda a cidade sem conhecer nada, só perguntando. Cícero é filho do Ceará e foi tentar a vida no Rio de Janeiro, estudar. Mas ele não teve para onde fugir, teve que largar os estudos e trabalhar. Passou fome na cidade maravilhosa, enfrentou muitas dificuldades. Um dia do ano de 1977, embriagado, ele foi atravessar uma avenida do centro da cidade - ele me disse certa vez que pensou que daria tempo de correr, que não aconteceria nada. De fato, uma das pernas conseguiu se apoiar na calçada, a outra que estava na rua, um carro que ele pensou estar longe, a arrancou. Ele perdeu muito sangue, não tinha pulso, foram achar artéria para a transfusão na axila. Aos 19 anos, ele ficou sem a perna esquerda, e tem, como ele mesmo diz, um “cotoco” acima do joelho. Ele “morreu”, mas como a Maria José, renasceu e continuou a sua caminhada. Um dia, eles se conheceram num ponto de ônibus no Rio de Janeiro em 1982. Ele a ajudou a carregar a mala e rapidamente conversaram. Ela disse que era de Goiás, e ele, então, lhe passou seu endereço, caso aquela linda moça precisasse de ajuda. O dinheiro acabou e Maria teve que voltar para Goiás, mas voltou carregando o endereço daqueles olhos azuis que ela havia achado tão educado! Escreveu para ele pedindo ajuda, pois queria morar no Rio de vez. Ele respondeu e a ajudou a voltar. Quando ela chegou, ele já tinha alugado um casebre barato para ela morar e a partir desse momento o Cícero e a Maria José começaram a namorar. Mas um dia apareceu uma mulher grávida na porta da Maria José, a Antônia (vulgo Lúcia). Ela queria falar com Cícero, mas ele não morava lá. Então Lúcia decidiu contar tudo para Maria mesmo. Disse que era uma ex-namorada, que morava no Ceará e que o filho que ela estava esperando era do Cícero. A Maria José ficou atônita, esperou o rapaz ir lhe visitar e terminaram tudo. Assustada, ela voltou para Goiás. Algum tempo depois, ele veio para Goiás procurá-la, jurou para Maria que mal conhecia a mulher e que não sabia do filho. Ele a pediu em casamento, ela acreditou em suas palavras e como gostava muito dele, aceitou. Se casaram no civil em julho de 1982. Foram morar de aluguel no Rio de Janeiro novamente. No início do casamento foi que Maria José conheceu realmente o Cícero: ele era um homem estúpido, arrogante, tinha muitos problemas psicológicos em decorrência de ter perdido a perna e bebia. Começou para Maria José uma nova onda de provação, um casamento horrível, com um homem muito ignorante. Em outubro de 1982, nasceu o Clayton filho da Lúcia e do Cícero, meu meio-irmão. Cícero ganhou algum dinheiro na loteria e foi demitido. Decidiu comprar um terreno em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense onde passou a morar com Maria. A vida passava e o casamento continuava um suplício. Cícero não queria mudar suas atitudes de “boêmio” (como ele mesmo diz) e a Maria era alucinada por ele. Ele fazia constantes viagens ao Ceará, ia sempre. Em 1986, uma surpresa, nasce Shirley, segunda filha de Cícero com Lúcia, outra meia-irmã. E eu, onde estou nessa história? No meio de 1986, minha mãe teve coragem e engravidou. No entanto, ela tinha receio de ter uma filha completamente sozinha. Eu nasci perto da família, aqui em Goiânia, no Materno Infantil, em abril de 1987. Segundo minha mãe, Maria José, o meu pai, Cícero, ficou 78 Caminhadas de universitários de origem popular muito bravo quando soube de mim, mas eu era um sonho antigo da minha mãe. Ela persistiu e não deu ouvidos aos médicos tolos que disseram que ela não poderia ter filhos: me pôs no mundo, com duas pernas, dois braços, tudo no lugar e muitas gordurinhas distribuídas pelo corpo pequeno. Ela me registrou num cartório de Goiânia. Deu o nome de Jenniffer, mas a moça que me registrou não entendeu o segundo “n” de minha mãe e colocou um “h”, resultado: Jenhiffer. Por este fato sou única no mundo, ninguém tem um nome feito o meu. Minha mãe voltou comigo para Nova Iguaçu, para sua casa, para o marido agressivo e gritador. Ele nunca bateu em minha mãe, mas gritava e xingava como ninguém! Em 1992, eu comecei a freqüentar escolinhas particulares, acho que fazia o jardim. Lembro que rabiscava muito e fazia muitos desenhos. Minha mãe já me ensinava algumas coisas, a desenhar as letras, rabiscar números. Como minha mãe não tinha condições de continuar pagando, entrei para a escola pública em 1993. Comecei fazendo o pré, e era tão difícil! Minha mãe brigava comigo pois eu não conseguia desenhar os traços. Até hoje eu sou hiperativa e na infância era muito mais. Os meus pais não compreendiam minha teimosia e eu apanhei bastante. Me tornei a válvula de escape dos dois; da minha mãe por viver humilhada, do meu pai por qualquer motivo banal. Apesar das dificuldades, eu consegui fazer a primeira serie em 1994. Nesse ano fomos pela primeira vez em Goiás e no Tocantins, nas férias. Nessa viagem conheci meus avós, meus tios e primos, foi muito bom! Ainda em 1994, nasceu a terceira e última filha do meu pai com a dona Lúcia, a Jane. Meu pai fazia constantes viagens ao Ceará. Eu e minha mãe passávamos muitas dificuldades, chegamos a passar fome, os vizinhos nos ajudavam dando um prato de comida. Eu lembro que assistia aos desenhos, ao programa da Xuxa e chorava de vontade de ter o que eles tinham. Minha mãe era uma mulher agressiva, não agüentava minha teimosia e me batia sem dó. Um dia a professora me perguntou por que eu estava toda roxa, eu fiquei com vergonha e não respondi. No fim de 1995, viemos passar o Natal com a família em Goiás. Meu pai decidiu separar e vender a casa em Nova Iguaçu. Desde então, nunca mais eu vi os rostos queridos dos meus vizinhos, que eram minha família. Meu pai trouxe a mudança algum tempo depois. Em 1996, eu fui matriculada no Colégio Rui Barbosa, no Setor dos Funcionários, ia fazer a terceira série. Minha mãe foi no Rio de Janeiro buscar a metade do dinheiro da venda da casa. Ficou uns dias fora e foi horrível para ficar sem minha mãe, eu ficava muito triste. Quando ela retornou, uns três dias depois ela quebrou a perna esquerda, a mais frágil e todos disseram que a culpa foi minha. Ela ficou muitos dias internada e eu sofria muito com a distância, tinha medo que minha mãe morresse. Passado um mês ela voltou para casa, mais amarga do que nunca, eu não sabia por que, mas ela destilava todo veneno em cima de mim, falava coisas que hoje são muito difíceis de lembrar, mas que foram muito importantes e contribuíram para minha formação. Renascer, recomeçar e, no meu caso, crescer No fim de 1996, minha mãe financiou dois lotes no Setor Veiga Jardim IV, em Aparecida de Goiânia, onde vivemos até hoje. Nos mudamos em dezembro e na nossa casa não tinha água, nem luz, mas era muito bom viver no barracão novo. Universidade Federal de Goiás 79 Em 1997, comecei a quarta série à tarde no Colégio Petrônio Portella, em Aparecida. Minha mãe me levava de coletivo pra escola, tinha medo que eu me perdesse. O meu pai continuava no Rio, mandava notícias às vezes, ligava no colégio para falar comigo, me mandava presentes. No ano seguinte ele veio à nossa casa, pediu o divórcio à minha mãe, começou a construir no outro lote - disse que a casa era para mim, me apresentou à cultura protestante dizendo que era um homem remido pelo “Sangue do Cordeiro”, que agora ele era o melhor dos seres humanos. Segui a mesma religião e mais tarde me decepcionei, abandonando a igreja. No colégio, eu não tinha dificuldades com as matérias, eu passava de ano sempre, nunca reprovei. Meu problema era com os colegas, sofri até o terceiro ano do ensino médio todo tipo brincadeira, todo tipo de humilhação possível de se imaginar. Mesmo assim, eu continuava forte, pois eu tinha que chegar em algum lugar! Antes de começar a quinta série, eu roubava livros de inglês das bibliotecas, das escolas, ninguém nunca me pegou, melhor pois eu tinha uma vontade enorme de aprender inglês! O primeiro poema que escrevi foi para um professor de português por quem eu era apaixonada. Se chamava a flor, inspirado no primeiro poema que li, do Castro Alves: Duas Rosas. Desde este episódio, nunca mais parei de escrever. Foi nessa época que comecei a usar óculos por causa da miopia. Meu pai se mudou para Goiás e morou um tempo com a gente em 1999. Em 2000, ele trouxe a família do Ceará para morar no estado, em outro bairro é claro, mas meu pai sempre vinha me visitar. Em 2000 fiz a sétima série, fui para o matutino, arranjei o primeiro namorado escondido e dava uma de rebelde sem causa. Comecei a querer me revoltar, a fumar. Minha mãe descobriu tudo e me deu uma boa surra, me fez contar a história do cigarro e do namorado, me fez terminar com ele, obedeci. Nesse tempo minha mãe começou a mudar e eu também, ela para melhor, eu para pior. Comecei a oitava série e os amigos estavam mais mordazes do que nunca. Eu descontava tudo em casa, berrava como uma louca e adquiri o hábito de xingar que cultivo até hoje. Nesse ano, fiz amizade com a diretora da escola depois que ganhei uma gincana para o colégio. Todos passaram a me “respeitar”, a tirar dúvidas, pedir cola, coisas assim. Nesse tempo odiava química: o professor era um estudante universitário e eu não entendia nada do que ele falava! Deus! Odeio o Linus Paulin até hoje! Eu dizia que queria fazer faculdade de Inglês, nem sabia que essa faculdade era a de Letras! Às vezes eu dava aulas no lugar da professora, eu acho que ela deve ter ódio de mim... No primeiro ano tive o primeiro contato com Espanhol e odiei de cara, nunca gostei de fazer trabalho, de escrever longas páginas, responder tarefa em casa - nunca fui disso e a professora de espanhol era cheia dessas coisas! Passei a odiá-la e era recíproco. Nesse ano de 2002, conheci um cara que me motivou muito a aprender inglês. Ele morava em Londres e eu ficava louca de vontade de conhecer a cidade, louca pra ir pra outro lugar! Do mesmo jeito que o conheci, ele foi embora. Nunca mais nos falamos. Dos conflitos para a universidade Os anos no ensino médio, eu creio, foram os piores. Os professores eram estudantes, havia muitas greves e eles não sabiam as matérias, só se salvavam uns dois que sabiam 80 Caminhadas de universitários de origem popular realmente dar aulas. No segundo ano fiquei sabendo o que era vestibular, o que era UFG e que faculdade particular era a pior coisa que existia no mundo. As dificuldades continuavam. Minha mãe e eu continuávamos a viver em pobreza extrema, dependendo da caridade dos parentes, minhas roupas, meus calçados eram usados. Até os professores zoavam com a minha cara. E os colegas? Deus! Era um inferno que eu queria acabar logo! Meu primeiro vestibular foi passar na prova do cursinho comunitário que a igreja ia promover naquele ano. Consegui passar, ia fazer o cursinho à noite e o terceiro ano de manhã. Foi o pior ano de todos! Eu queria me livrar da escola, eu queria que o cursinho fosse para o inferno. Eu estava mais triste e sozinha do que nunca, não por acabar o ensino médio, mas pela incerteza de um futuro, a angústia de pensar o que eu faria depois. Quando começamos no ensino médio, eu sentia que as matérias eram mais difíceis e enfrentar um vestibular era como pular em uma piscina sem água. No terceiro ano não foi diferente. Eu chegava do cursinho meia-noite e acordava às seis para ir para a escola. Por fim, não acompanhava o ritmo de nenhum dos dois. Não fazia os simulados a noite, e, de dia, só conseguia dormir nas aulas. Uma professora de Biologia na época, não compreendeu minha situação e me deu uma suspensão de três dias por um motivo ridículo, acho que ela estava de TPM naquele dia, ela errou meu nome na ficha de suspensão umas três vezes... eu me senti traída, aquela era uma das poucas professoras que eu admirava e ela estava me colocando num buraco, pois eu teria prova nos dias de suspensão e aquela situação poderia valer minha vaga na faculdade... mas tudo se resolveu, nunca mais olhei na cara dela, nem ela na minha. Matei muitas aulas no cursinho, preferia ficar na biblioteca lendo livros e jornais. Eu fico imaginando minha situação se não tivesse passado no vestibular, minha mãe gastando tudo o que podia para que eu fizesse o cursinho e eu não valorizava isso. Matava muitas aulas no colégio também e, resultado: quase reprovei por falta, em física, matemática e espanhol. Nesse ano fiz o Enem, tentei isenção da taxa do vestibular na UEG e na UFG, consegui isenção total na UEG e na UFG não. Fiz todos esses vestibulares todos para Letras, a bolsa do Prouni eu tentaria para jornalismo. Eu passei em todos, mas fiquei pela primeira vez, de recuperação na escola, faltavam três pontos na média para eu passar em espanhol. Deus, eu odeio espanhol até hoje! Consegui passar na escola, não fiz minha matrícula na UEG, o resultado do vestibular da UFG só ia sair em fevereiro de 2005. Então fui fazer minha matrícula na Camburi, onde ganhei a bolsa para estudar jornalismo. No primeiro dia de aula, contei para uma menina minha situação, que estava esperando o resultado da federal. Mal terminei de falar isso, ela me disse que não trocaria a federal por nenhuma faculdade do estado e faria até o “pior” dos cursos na federal. Eu confesso que quando ouvi aquilo fiquei tocada, senti um estalo na mente e pensei, se eu passar, tenho que pensar bastante no que é melhor para mim! Quando fui conhecer o Campus II para fazer a segunda fase do vestibular, me impressionei com a distância e com a estrutura das faculdades. O prédio da Letras era um dos melhores, mesmo assim a impressão que eu tive da UFG ficou maculada, por isso queria estudar onde tinha ganhado a bolsa. No outro dia saiu o resultado, acordei cedo fui comprar o jornal, quando olhei na lista, meu nome não estava. Mas quando olhei direito, descobri que eu estava olhando na lista de engenharia de alimentos e é claro que meu nome não estaria lá, pois eu prestei pra Letras! Universidade Federal de Goiás 81 Finalmente olhei na lista de Letras matutino e lá estava um dos maiores nomes da lista: Jenhiffer Carvalho de Jesus Medeiros. Soltei um berro, sai correndo querendo chorar, as pessoas me olhavam como louca e eu balbuciava: passei na federal, eu passei... eu fui a única que tinha passado no vestibular da UFG, naquela turma de terceiro ano. Por causa disso, minha madrinha me deu o computador de sua filha, pois ela tinha um notebook e não precisaria mais do antigo computador. Num primeiro momento fiquei muito feliz com o gesto, afinal seria de grande valia na faculdade e eu pensava que jamais possuiria um computador, mesmo que fosse velho. Depois, senti meu orgulho e dignidade feridos, porque eu percebi que minha madrinha me deu esse “presente” não por eu ter passado no vestibular, mas por que o computador não teria mais serventia em sua casa e ela não poderia mais lucrar com ele. Para não jogar fora me deu. No entanto esse presente meio louco serviu e me serve até hoje, sou grata pela “intenção” que ela teve. Nunca mais apareci na faculdade onde me matriculei, só avisei que tinha passado na federal e que não iria mais estudar lá. Quem disse que as dificuldades acabaram? Uma tia avó deu o dinheiro da matrícula, minha mãe não tinha, pois o dinheiro de seu beneficio mal dava pra pagar as contas. Juntei todos os documentos e fui fazer a matrícula sem o certificado. O secretário da escola, disse que dava para fazer só com o histórico, só que quando cheguei na faculdade a Margareth da secretaria da faculdade de Letras avisou que não poderia fazer a matrícula sem o certificado, lá vou eu ficar desesperada... Fui na escola buscar o certificado e o secretário falou “umas” na minha cara. Me deu vontade de gritar, até de mata-lo. Então eu lhe disse, com toda calma do mundo, que eu perderia a vaga e tentaria no próximo ano. Ele, então, ficou sem graça e disse que daria um jeito. Acho que estava querendo fazer chacota com a minha cara. No último dia para fazer a matrícula, busquei o certificado e fui na faculdade. Graças a Deus deu tudo certo. Os veteranos lambrecaram minha cara, sujaram minhas costas, voltei para casa toda feliz e imunda. Eu era estudante de Letras, eu ia fazer o que eu sempre sonhei: Inglês! Mas eu não sabia que devido minha colocação no vestibular eu iria para o Espanhol. Quando descobri, meu mundo acabou, me deu uma vontade de morrer, uma descrença... eu teria que suportar estudar espanhol por mais dois anos, mas eu tinha pelo menos que tentar! Nos primeiros meses de faculdade, eu me senti confusa com o ritmo: ninguém chamava a atenção, não tinha uniforme, não tinha chamada, não tinha sinal para sair e o professor estudava com você um ano e mal sabia seu nome. O ritmo da faculdade, para mim, era alucinado. Fiquei muito confusa no primeiro ano, meio perdida, quase reprovei várias matérias. As dificuldades vieram: dinheiro para xerox, dinheiro para livro, dinheiro para ônibus. Para chegar no Campus II eu pegava seis ônibus por dia, aquilo cansava de mais, cansa até hoje, pois ainda não disponho de um meio de transporte mais eficaz... Eu odiava ir para a faculdade estudar espanhol, eu sonhava com inglês! Meu maior sonho, minha maior vontade era estudar inglês, pois eu sempre fui dedicada nessa matéria na escola e já estava em um nível bom. Tentei passar em um exame para trocar de língua estrangeira na faculdade, mas minha nota foi ridícula e continuei no espanhol. No fim do ano, arranjei um emprego por experiência, seriam só três meses, mas com dois eu fui demitida. O trabalho exigia eficiência e rapidez, foi na época do Natal que me demitiram, fiquei triste, mas foi melhor, pois por causa desse emprego eu estava abandonando a faculdade, que estava sempre em cima da linha e eu quase reprovando. 82 Caminhadas de universitários de origem popular No ano seguinte, 2006 eu pus na cabeça que eu iria fazer inglês com os novatos, mas eu teria que estudar a tarde, teria que pegar matéria de português, matérias gerais, inglês e espanhol, dava pra ficar louca, mas assim eu fiz. Eu amava meu curso, mas era como se ele fosse um bolo sem o recheio. Eu precisava estudar inglês, senão não teria valido a pena tudo o que eu fiz para ter chegado aonde cheguei. Então, vieram mais dificuldades: eu não podia trabalhar, meu tempo estava todo ocupado com a faculdade e não tinha bolsa alimentação, mais uma despesa: o Restaurante Universitário. No fim do semestre tentei monitoria de Latim e não consegui, tentei outras coisas e não consegui. Minha mãe tinha que pedir dinheiro emprestado para me sustentar, o meu pai vinha sempre me visitar, me dava uns trocados, mas ele também não tinha quase nada, pois gastava com putaria na rua (ele expulsou a família de casa e morava sozinho). Foi então que eu vi um edital no mural da Letras. Na minha cabeça ler aquele edital teve o seguinte significado: se você é pobre, saiu de escola pública e está pensando em largar a faculdade, seus problemas se acabaram, o Programa Conexões de Saberes quer te dar uma oportunidade!!! Enfim minha miséria social serviria para alguma coisa: ganhar aquela bolsa que eu merecia! Eu pensava que ninguém merecia mais do que eu, pois minha mãe mal tinha 270 reais para nos sustentar, pois estava pagando um empréstimo e nós duas vivemos em situação muito difícil mesmo. Ela até hoje não quitou as prestações de nosso barraco e temos muito medo de ser despejadas. Preenchi a ficha de inscrição, coloquei todas as cópias de documentos e larguei dentro do caderno para levar depois. Um dia vi uma colega com a ficha e lembrei que tinha que deixar a ficha na PROEC. Fomos juntas. Passou uns dias, estava fazendo prova, terminei em menos de dez minutos, pois eu queria olhar na internet se tinha sido selecionada para o programa! O meu nome estava na lista, enorme como sempre e pela segunda vez na vida sai gritando e pulando, chorando e correndo! Eu não sabia o que fazer, agradecia a Deus e dava murros nas paredes! Fui inserida do programa, participei de todas as reuniões. Alguns problemas foram resolvidos, mas uns professores não gostaram muito, pois tive que matar umas aulas. Lembro de que a primeira coisa que eu comprei para minha casa foi um chuveiro, pois tomávamos banho na água fria. O grupo da UFG ficou a par do que seriam as atividades a serem efetuadas, mas foi no fim do ano de 2006, quando nós fomos para o seminário nacional, que eu percebi a grandiosidade do Conexões, e senti orgulho de fazer parte daquilo. Teve o lado financeiro que foi muito bom para me ajudar, mas o Conexões me fez sentir importante. Esse programa me trouxe uma dignidade que eu nunca tive, uma autonomia que eu pensava que nunca teria. Até meus professores de graduação têm certa estima pelas minhas idéias. Por isso, e por muito mais, eu sou grata e nem consigo mensurar o quanto. Desde que eu entrei para o Conexões, senti orgulho de minhas origens e da minha origem popular, mas sempre com uma vontade enorme de mudar minha condição social, de ser uma cidadã digna, uma vontade maior do que todas que já senti de ver minha mãe bem, pois ela foi a pessoa que mais me apoiou sempre, uma vontade de lutar contra essas injustiças que existem, pensar e pensar em “n” maneiras de fazer do nosso mundo um lugar melhor. Não sei se terei êxito, meu maior medo é do futuro, mas estou aí para receber os murros e afagos da vida, morrendo com dor, mas sobrevivendo sempre. Universidade Federal de Goiás 83 Eu vejo um horizonte trêmulo Eu tenho os olhos úmidos Eu posso estar completamente enganado Eu posso estar correndo pro lado errado Mas a dúvida é o preço da pureza E é inútil ter certeza... Engenheiros do Hawai 84 Caminhadas de universitários de origem popular “Sou pequenina e também gigante” Lilian Gomes dos Santos* Quem sou eu? Uma verdadeira salada mista ou um misto de belos encontros. Goianiense; filha de goianos; neta de baianos e mineiros; bisneta de italianos, índios e espanhóis. O resultado de todas essas permutas gênicas é essa criaturinha de vinte e três anos, estudante de biologia e bolsista do Conexões de Saberes, meio através do qual vos falo neste momento. Nasci no milênio passado – falando assim me sinto como Matusalém – o ano era 1983, no primeiro dia do mês de novembro. Meu pai, Guerson Gomes, um homem de meia-idade, divorciado, pai de seis filhos já adultos. Minha mãe, Euripea Ferreira dos Santos, uma jovem de dezoito anos, cheia de planos, recém chegada do interior do Estado. Seus planos deram lugar a dois filhos e a uma união informal de doze anos. Como já tinha sido militar, trabalhador rural e motorista do transporte coletivo de Goiânia para “cuidar” da nova família, meu pai, vivia de “rendas”. Alugava barracões e nos supria com o básico do básico, já que ele não permitia que mamãe arrumasse um emprego. “Mulher minha cuida é de casa!” - palavras dele. Comíamos mal, vestíamos mal, calçávamos mal e sempre estudamos – eu e meu irmão Lindomar – em escolas públicas. Cansada das constantes brigas, humilhações, traições e da dependência financeira, minha mãe, que já costurava em casa, conseguiu vaga em uma confecção e passou a trabalhar fora, mas não sem brigas, desconfianças, perseguição e ciúmes do Sr. Guerson. Era 1994; nesse ano minha mãe começou a ter um salário, fomos expulsos de casa por ele, passamos a morar em três cômodos alugados por ela e em dezembro ele teve um infarto agudo do miocárdio. Morreu aos sessenta e quatro anos e nos deixou a ver o navio afundar. Peripécias Enquanto corria o processo de inventário para partilha da casa com os outros seis filhos do Guerson, continuávamos a morar no barracão do Setor dos Funcionários e a estudar no Colégio Estadual Rui Barbosa, que depois passou a se chamar Colemar Natal e Silva, situado no Setor Aeroporto. De 1993 a 1998, ou melhor da terceira a oitava série no CNS – como dizia minha amiga Valéria por ter vergonha do novo nome do colégio – fiz grandes amigas (os), brinquei demais, aprendi muito e comi muita merenda que, aliás, fazia uma tremenda falta quando * Graduanda em Ciências Biológicas-Licenciatura pela UFG. Universidade Federal de Goiás 85 acabava porque era nosso café da manhã e o almoço de vários colegas. Durante esse período tínhamos o grande privilégio de poder ir a pé até a escola. Meia hora de caminhada e pronto; já estávamos lá. Não dependíamos do precário, caótico, oneroso e monopolizado transporte público de Goiânia. Quantas saudades!!!!!!!!!!!!! Mas depois de praticamente três anos de processo, de 1995 a 1998, saiu o resultado do inventário. A casa foi vendida, o dinheiro dividido em nove partes (entre os oito filhos e mamãe) e para nós sobraram dezesseis mil reais. Após meses de procura minha mãe encontrou uma casa por esse valor na Vila João Vaz; região noroeste para alguns, região Campinas para outros. Regionalizações à parte, o certo é que não precisaríamos mais pagar aluguel, por outro lado, para ir a qualquer parte dependemos dos GOLF’S (grandes ônibus lotados e fedidos) de Goiânia. Mudamos para o novo endereço, nova realidade, novos vizinhos, nenhuma amizade. Sentia, e na verdade ainda sinto, falta do Setor dos Funcionários, da rua P-7, da casa de número 84, em frente ao ex-barracão. Falta não da construção física, mas de todos os bons momentos e pessoas que lá ficaram. Entre estas a moradora do 84, minha amiga Carina Marques. Após a tempestade percebemos que pessoas especiais são colocadas em nosso caminho. Companheiras de todas as horas. A Carminha, mãe da Carina, não deixava de repartir conosco as compras do supermercado ou da feira, que sempre chegavam em ótima ocasião, principalmente, quando as dívidas apertavam e mal sobrava para a comida. Carina estava terminando o segundo ano do Ensino Médio e iria mudar de colégio. Eu, egressa do Ensino Fundamental, não sabia onde estudar. Só ouvia descrições desoladoras das escolas públicas que tinham nível médio. Com chance nenhuma de ir para a rede particular me matriculei no Liceu de Goiânia, mas sem grandes esperanças de um dia entrar na Universidade. No dia de matrícula da Carina, eu e mamãe fomos acompanhá-la. Era o primeiro ano de funcionamento do colégio e o dono, Marcos Araújo, já havia sido professor dela. Creio que para aumentar o número de alunos matriculados, ele nos ofereceu duas bolsas parciais e eu quase morri de felicidade sem levar em consideração os sacrifícios que mamãe teria de fazer para pagar cento e tantos reais só de mensalidade, fora o transporte e a comida! E agora, José? Já no primeiro dia de aula no Colégio Protágoras senti na pele, e no estômago, as distâncias entre ensino público e privado. As salas de aula eram amplas, possuíam ar-condicionado, quadro negro sem rachaduras, banheiros com papel higiênico, sabonete líquido e papel toalha. Não existia a possibilidade de sairmos mais cedo por falta de professor, pelo contrário, na maioria dos dias tínhamos aula ou prova à tarde além, é claro, das aulas da manhã. E a merenda? Bem, para lanchar ou almoçar era “só” pagar. Era óbvia e notória a diferença de conteúdo entre poucos de nós, bolsistas, oriundos do sistema público e a maioria proveniente da rede particular. Fora os estranhamentos iniciais, consegui conquistar ótimas amizades. Rafael, Ulisses, Paulo, Cíntia, Ariane, Jürgen, Rafaela Sayuri são apenas alguns dos vários amigos (as) que muito me ajudaram, inclusive, quando faltava grana para comer. E foi ali, mais especificamente, no primeiro ano que meus olhos se encantaram pela beleza e grandiosidade da vida. Um amor à primeira vista pela biologia. Minha professora, Beth, era fantástica...não tinha mais jeito. Fui cativada pelas mitocôndrias, membra- 86 Caminhadas de universitários de origem popular nas, citoesqueletos, cromossomos, proteínas, briófitas, angiospermas, vertebrados e invertebrados. Não sei ao certo se por influência da Carina, que foi estudar Engenharia da Computação na Unicamp, vontade de sair de Goiânia por uns tempos, desconhecimento da nossa UFG, inocência (burrice) em achar que conseguiria me manter financeiramente longe de casa ou a conjugação de todos esses fatores levou-me a prestar, no final do terceiro ano em 2001, o vestibular para Ciências Biológicas na Universidade de Campinas e não na Federal daqui. Beleza, passei na primeira fase! Tomei pau na segunda! Essa foi apenas a primeira das quatro tentativas frustradas no vestibular da Unicamp, que é anual. Vez após outra eu via o sonho da minha vida; a possibilidade de “ser” alguém fazendo aquilo que realmente gostasse, de ajudar mamãe a ter uma vida mais decente sem precisar trabalhar de doze a quinze horas por dia em cima de máquinas de costura; esbarrar na crueldade de um sistema de avaliação excludente, arcaico, que nega a enormes parcelas da população o direito ao saber crítico/científico ou as condena a insaciável fome de dinheiro das Instituições PRIVADAS. Quando o terceiro ano acabou, não pude fazer cursinho, afinal tinha feito mamãe contrair uma dívida impagável (até hoje) de seis mil reais com o Protágoras. Consegui emprego no restaurante da mãe da Ariane, amiga lá do colégio. O cargo, atendente; as funções, pesar a comida, fazer sobremesas, limpar, cortar, picar, descascar, lavar... decidimos, Cíntia e eu, fazer o vestibular do Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet-Go) para o curso de Química Agro-Industrial no primeiro semestre de 2002. Passamos. Logo vi que trabalhar o dia todo e estudar à noite não seria tarefa fácil. Saía de casa às 7:00 e chegava às 23:30. O curso oferecia excelentes perspectivas no mercado de trabalho, mas não me fazia feliz. Antes do término do primeiro período, abandonei o Cefet. A reviravolta e o Conexões Depois de quase dois anos no restaurante Ver o Peso, pedi as contas. Com o dinheiro do meu seguro desemprego, paguei um semestre de cursinho no centro da cidade. Estava eu lá, no final de 2003, fazendo a prova da UFG para – adivinhem – Biologia modalidade Bacharelado. Em fevereiro veio nova decepção. Queria sumir, desaparecer do mapa, desistir de vez e tudo abandonar. Afinal de contas era minha quinta reprovação em vestibulares, praticamente todos meus colegas estavam na Universidade e eu?! Naquele momento era a criatura mais desolada e deprimida da face da Terra. Por uma miríade de improváveis coincidências, conheci em abril de 2004 um atrevido estudante do segundo ano de Biologia-Licenciatura da UFG. Daí uma semana, eu e meu carecão, Leonardo Guimarães Sandim, estávamos namorando. Serei a ele eternamente grata por ter resgatado em mim a esperança e o desejo de ser um dia bióloga. Só para variar um pouco em 2004 nós estávamos no aperto financeiro. Costurando em casa, eu ajudava mamãe e acabei conseguindo juntar os pesados R$ 90,00 da taxa de inscrição do vestibular UFG; porque apesar de tentar, não ganhei isenção. Não foi moleza não. Em cada calça overlocada, ou seja, fechada na máquina de overlock, eu ganhava R$ 0,30. Quer dizer, só para a inscrição precisei fechar trezentas calças. É serviço, meninas (os)! Vencido o primeiro grande obstáculo, que nós EUOP’S (estudantes universitários de origem popular) enfrentamos em relação ao vestibular, a inscrição, parti para a primeira fase com a cara e a coragem. Fui para a segunda fase e no segundo dia, depois da prova de matemática, pensei cá comigo: bombei de novo. Universidade Federal de Goiás 87 Como foi bom estar errada e ver Lilian Gomes dos Santos na lista dos aprovados, na coluna de Ciências Biológicas – Licenciatura/Noturno. Os outros R$ 90,00 da matrícula o Leo pôde pagar para mim e, a partir de então, começava em março o novo ano de 2005. Um dos mais felizes da minha vida, o ano em que entrei na Universidade Federal de Goiás. Em pouquíssimo tempo eu descobriria que chegar à universidade pública era apenas uma entre as múltiplas faces do problema chamado estudante universitário(a) pobre. Todos os percalços do acesso à educação superior de qualidade cedem lugar aos da permanência em uma instituição que apesar de ser pública não é gratuita em seus detalhes. Freqüentar um curso noturno no Campus II da UFG é, sem dúvida, um grande desafio. Ele está situado no extremo norte da Capital, a aproximadamente quinze quilômetros de distância do centro da cidade e a oito quilômetros da minha casa. Ou seja, uma hora de ônibus; só um detalhe, são dois na ida e mais dois na volta. A iluminação é precária; ir à biblioteca, que é distante do nosso instituto, só se for em grupo. Só agora, no quinto período de curso, é que temos a secretaria a nossa disposição para resolver os problemas acadêmicos. Antes, somente no diurno. Materiais didáticos como retroprojetores e datashows quase nunca estão disponíveis. Faltam técnicos para os laboratórios de aula-prática porque quase ninguém se habilita a trabalhar a noite. Em junho de 2006, fiquei sabendo pela professora Lisbeth Oliveira da Faculdade de Comunicação e Biblioteconomia do edital de um programa de extensão que visava melhores condições de acesso e permanência na universidade para alunos de origem popular. Arrumei toda a papelada e fiz a inscrição. Dentre os oitenta inscritos fui uma das vinte e cinco selecionadas...que alegria!!! Sou conexista desde então. Receber a bolsa foi e é um presente. Posso me dedicar a meu curso sem precisar cumprir uma jornada dupla de trabalhadora e estudante, como muitas (os) outras (os) colegas necessitam fazer. Posso ampliar meus conhecimentos a partir de estudos e discussões sobre temas como as ações afirmativas, exclusão/inclusão, raça e racismo, identidade, etnia, gênero entre tantos outros que, sobremaneira, contribuem para a formação humana que não temos em cursos como o meu. Posso custear o aprendizado de uma língua estrangeira no Centro de Línguas da UFG, comprar livros e periódicos até então tão distantes de minhas possibilidades, pagar minhas passagens no transporte coletivo, almoçar ou lanchar no Campus. Mas, principalmente, tenho em minhas mãos a imensa oportunidade de contribuir para belas transformações por meio de um projeto de extensão inovador, que dá vez e voz a nós EUOP’S e cuja importância vai muito além de nos jogar no mercado de trabalho ou na pós-graduação, como outras bolsas por aí. É inovador porque batalha junto à Academia e ao Estado para que, cada vez mais, pessoas como eu e você possam adentrar no fantástico universo do conhecimento e passá-lo adiante. E ao final de tudo, queridas (os), parafraseando Marisa Monte, só espero que vocês não tenham se perdido ao entrar no meu infinito particular porque em alguns instantes sou pequenina e também gigante. 88 Caminhadas de universitários de origem popular Parte 4 A CADA PASSO, APRENDIZADO E VONTADE DE TRANSFORMAR O MUNDO O sertão mora em mim Vandimar Marques Damas* Sempre que tenho que narrar sobre minha tristonha história, de tantas caminhadas, combates e sofrimento, há momentos em que tenho vontade de parar, de colocar um ponto. Mas continuo, pois minha história nunca terá um final. Narrar não é fácil, como já dizia o jagunço Riobaldo, de Grande sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Às vezes faltam palavras, e quando elas surgem, fico me perguntado: será que esta é a melhor palavra para colocar aqui? Elas têm um imenso significado para mim. “É que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo” (JGR). O tempo para o qual minha mente se volta, é um tempo que é marcado por acontecimentos simples e banais, mas que têm um significado imenso para mim. Mas vou contar para vocês, mas o que vou narrar é um algo vazio e sem graça. Às vezes eu tento reinventar o meu passado para que ele fique mais ‘contável’. Sair do encanto Durante o período em que eu estava estudando para o vestibular, imaginava que as portas se abririam para mim caso eu conseguisse entrar para a universidade. Mas descobri que esta é apenas uma pequena etapa que devemos percorrer para conquistar aquilo que tanto almejamos. Assim que entrei na Universidade o meu principal objetivo era seguir a carreira acadêmica. Meus meus sonhos eram fazer um bom mestrado e um bom doutorado. Mas, como diz Riobaldo, há momentos em que a gente “carece de acordar de repente de alguma espécie de encanto. É que as pessoas e as coisas não são de verdade.” Assim, com o passar do tempo, eu percebi que não seria tão fácil realizar meus sonhos, uma vez que conseguir uma bolsa de pesquisa não é para todos e sim para aqueles que estão bem preparados e que possuem “boas” relações com os professores dentro da universidade. É importante saber que só a vaga na universidade não basta. São necessárias políticas para assistir este estudante, como bolsas de permanêcia, moradia, alimentação, assistência médica e odontológica. Infelizmente, a UFG não contempla isso. A moradia estudantil deixa muito a desejar e a alimentação, às vezes, não é comestível. A vida não é fácil para aqueles que vêm do interior e por isso a assistência estudantil é de suma importância para a nossa permanência na universidade. Mas por outro lado a Casa do Estudante Universitário, além de ter me hospedado, foi uma extensão da universidade, pois foi lá que eu aprendi a * Graduando em Ciências Sociais pela UFG. Universidade Federal de Goiás 91 conviver com o diferente e aprendi a respeitar a diversidade. Mas não foi fácil, como reflete Riobaldo: “Viver perto das pessoas é sempre dificultoso, na face dos olhos”. Atualmente o Estado tem que lidar com diversos grupos sociais que lutam por reconhecimento. Conseqüentemente, esses grupos exigem políticas de combate a exclusão social. Assim, o programa Conexões de Saberes é uma importante política que vem para tentar resolver os problemas do acesso e da permanência na universidade pública, que atingem a população jovem de baixa renda. Este programa surge com uma proposta nova, pois além da bolsa ele dá a oportunidade para que nós, estudantes de baixa renda, possamos realizar uma pesquisa e publicar. Nem mesmo um programa de PIBIC possibilita isso. Assim, eu vejo a minha participação no Conexões como um momento de mudanças tanto na minha vida pessoal, quanto acadêmica. Isso me ajudou a continuar acreditando que pensar numa pós-graduação não é um sonho irreal. Foi na universidade que eu fiz as verdadeiras amizades e tenho certeza que irão prevalecer por toda eternidade. Também foi na universidade que comecei a fazer as seguintes perguntas: ‘Deus existe? Se ele existe onde está ele?’ Eu pensava que na universidade seria o lugar onde poderíamos romper com as nossas crenças e tradições, e esquecer o lugar de onde viemos. E com o passar do tempo eu percebi que a cidade não consegue acabar com o Sertão. Acho que carregaremos o sertão sempre dentro da gente e mesmo que um dia tentemos arrancálo de dentro de nós e fugir para bem longe, ele vai estar lá, nos esperando, pois a nossa existência depende da existência do sertão. Riobaldo afirmava que “... entre Quem-Quem e Solidão; e muitas idas marchas: sertão sempre. Sertão é isto: o senhor empurra para trás, mas de repente ele volta a rodear o senhor dos lados. Sertão é quando menos se espera; digo. Nascer para ser O percurso que fiz durante toda a minha vida foi um percurso difícil e não foram poucas as decepções. Mas me orgulho de chegar aonde cheguei e de dizer “não me merecem” para aqueles que me dispensaram. Após cada decepção eu tentava encontrar algo para me consolar e acabei aprendendo a gostar da leitura, da música, do cinema, do teatro e da pintura. Senti que a arte é um artifício esplêndido que nos ajuda, mesmo que de maneira fugaz, a superar a realidade nua e crua, o jagunço Riobaldo nos passa a seguinte mensagem “Tem uma verdade que se carece de aprender, do encoberto, e que ninguém nos ensina: o beco para a liberdade se fazer. Sou um homem ignorante. Mas, me diga o senhor: a vida não é cousa terrível?” (JGR). Eu me orgulho de ter feito esta caminhada sozinho, apesar de que quando me lembro do meu passado eu me sinto profundamente melancólico. Mas o importante é que tudo passou e agora se inicia uma nova etapa na minha vida e com outras conexões, “nasci para ser” (JGR). A minha infância e adolescência foram períodos conturbados da minha vida – creio que é por isso que não sinto saudades da minha infância e nem da adolescência. Achava a vida sempre triste. O meu nascimento foi marcado pela morte trágica do meu irmão. A minha família era muito pobre e morávamos na zona rural de Niquelândia-GO. Os meus pais viviam constantemente brigando. Com seis anos, eu e minha família já estávamos morando na cidade, mas as brigas continuavam. Até que um dia meu pai resolveu agredir minha mãe e minha irmã. Eu, ao ver isso, passei a sentir medo do meu pai. Se ele chegava perto de mim, eu saía correndo com medo que ele me batesse também. A imagem da agressão que meu pai fez a minha mãe nunca saiu da minha cabeça. Mas o que mais admiro em relação a isso tudo, 92 Caminhadas de universitários de origem popular é que ela tomou a atitude de sair de casa não aceitando assim, continuar sendo agredida por meu pai. “Tem trechos da vida que amolece a gente” (JGR). Andanças Minha mãe. Ela saiu de casa, me levou consigo e nunca mais voltou para casa. Ela deixou para trás dois irmãos e duas irmãs, todos mais velhos do que eu. Eu fiquei algum tempo sem ver meus irmãos e minhas irmãs. Fomos morar no local em que ela trabalhava. Passados alguns meses, recebemos a notícia de que um dos meus irmãos tinha morrido enquanto tomava banho em um rio. O local onde ela trabalhava era muito longe da escola, portanto eu ficava impossibilitado de morar como ela. Assim, logo após a morte do meu irmão minha mãe me levou para casa da minha tia, pois lá era mais fácil para eu estudar. Tudo isso, a solidão e a certeza de que tudo estava em ruínas, provocou imensa tristeza na minha mãe. Acho que é como Diadorim afirmou: “mulher é um ser muito sofrido”. Minha tia exerceu grandes influências na minha vida. Morei apenas um ano com ela e depois fui morar como meu pai, com quem fiquei mais um ano. Mas a mulher dele não ‘ia muito com minha cara’ e logo tive que sair de lá. Voltei a morar com minha mãe, fiquei um ano com ela. Depois, fui morar seis meses com um irmão, mas acabei voltando a morar com minha tia. A minha adolescência foi marcada por constantes mudanças de um lugar para outro e assim “fui aprendendo a achar graça no dessossego” (JGR). No período em que morei com minha tia, eu vivia muito preso e só podia sair para trabalhar para a escola e para igreja. Eu levava uma vida muito monótona, não vivia nada de diferente. A minha única diversão era ler. Comecei a ler as enciclopédias que tinha lá em casa e os livros de história e, é claro, a Bíblia. A igreja protestante teve grande influência na minha formação. Morei com minha tia cinco anos, mas infelizmente ela veio a falecer e novamente eu fiquei sem lugar certo para ficar. Passei alguns meses na casa de um e depois na casa de outro, até que um dia, uma irmã me chamou para ir morar com ela em Rondônia, na fronteira com a Bolívia. Fiquei com ela alguns meses e depois fui para a Bolívia. Mudar para lá foi muito importante para mim. Eu estava saindo de um lugar em que morei durante quinze anos da minha vida, sem nunca ter saído, e, de repente, eu vou para um lugar totalmente diferente. Isso para mim era o máximo! Depois eu decidi vir para Goiânia, mas meu irmão me chamou para ir conhecer um acampamento de sem-terra no entorno do DF. Ao chegar, decidi ficar um dia mas acabei morando por um ano morando no acampamento. Nesse lugar eu tive o primeiro contato com as lutas defendidas pelos movimentos sociais. Mas lá eu via situações de extrema pobreza e muitas pessoas não tinham nada para comer e dependiam apenas de uma cesta básica que o governo mandava. Mas apesar da fome e da miséria em que viviam elas não desistiam e seguiam firme lutando em busca da terra. Resolvi sair do acampamento e fui morar com minha mãe em Niquelândia por dois anos. Depois fui para Brasília estudar, mas fiquei apenas um ano na capital do país. Voltei para a casa de minha mãe. Enquanto eu morava com ela, trabalhava mais de doze horas por dia em um supermercado como repositor de mercadorias. O tempo que sobrava, eu usava para estudar para o vestibular e também fazia um curso de línguas. 1999 foi o ano da morte do meu pai, ele já estava muito fraco devido duas cirurgias que ele tinha feito no coração. Tentei vestibular três vezes, a primeira para Relações Inter- Universidade Federal de Goiás 93 nacionais e a segunda para Ciências Políticas, ambas na UNB. Na terceira vez, fiz a prova para Ciências Sociais na UFG, onde estudo atualmente. O real da vida Para mim, passar no vestibular não foi fácil, uma vez que eu vim de uma escola pública do interior de Goiás e, como já relatei, tinha que trabalhar muitas horas por dia quase não sobrava tempo para estudar e nem dinheiro para fazer um cursinho. Acho que não é necessário explicar como o é ensino em uma escola pública do interior. No momento em que vamos prestar vestibular é que vemos o quanto estamos despreparados para competir, pois fazemos parte de um processo de exclusão que nos priva de determinadas oportunidades básicas, como educação. Por isso o sistema de cota é de suma importância para facilitar o acesso de estudantes negros e alunos oriundos de escolas pública na universidade pública. Diante da dificuldade que enfrentamos nesses momentos chegamos a pensar que somos inadaptados para as condições normais de vida que são exigidas para um ser humano que se julga preparado para vida e para o mercado. E quando descobrimos essas dificuldades, nos sentimos isolados e impotentes. Nos enchemos de amargura e uma forte sensação de que vamos fracassar, sentimos medo de errar. Riobaldo perguntou certa vez: “A vida disfarça?” Não, ela não disfarça. “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso... mas me escute. A gente vamos chegar lá” (JGR). Assim eu encerro a minha narração e espero que tenha narrado o essencial de minha história, embora eu tenha omitido por menores e detalhes interessantes. “Porque não narrei nada à toa: só apontação principal, ao que crer posso. Não esperdiço palavras. Macaco meu veste roupa. O senhor ponha enredo”. 94 Caminhadas de universitários de origem popular Educação para romper Edilto Rodrigues da Silva Caro leitor(a), quero convidá – lo(a) a conhecer a minha historia, nas não apenas como mais uma de um Estudante Universitário de Origem Popular(EUOP). Gostaria que, com ela eu passasse uma mensagem de confiança, persistência e busca. A busca pelo ser-mais, como sujeito de transformação do mundo e não de adaptação a ele. Em 1983 meus pais saíram da zona rural para nos colocar na escola, na cidade. Somos um total de 5 filhos, dentre os quais 3 homens e 2 duas mulheres: Luilson, Edilson, Edilto (eu), Josilene e Maria da Conceição. Quero ressaltar que, muito antes da escola, já tínhamos uma educação informal, especialmente por parte da minha mãe Maria da Natividade, que usando papelão e carvão nos ajudou a fazer os primeiros traços da escrita. Como diz Carlos Rodrigues Brandão: “A educação acontece em vários lugares e há vários tipos de educação, é uma fração do modo de vida dos grupos sociais que a criam e recriam”. Na cidade, enfrentamos muitas dificuldades pois minha mãe tinha apenas a primeira fase do ensino fundamental, ou seja a 4ª série. Já meu pai, Jazias Viana da Silva, trabalhava na agricultura, e a vida na cidade não é fácil, principalmente para quem não está “preparado” , o que nos forçou a ter certas responsabilidades “antes do tempo”. Não podíamos ter tudo que desejávamos e isso, aliado às dificuldades, nos tornou mais autônomos e unidos para ajudar. Na escola, ia tudo correndo bem. A persistência, a vontade e a competência, principalmente do meu irmão Edílson, que manteve uma trajetória de sucesso na escola, eram notáveis. Não passo deixar de citar que ele foi sempre minha referência como aluno e também professor. Nossa infância foi maravilhosa, não podemos reclamar: liberdade. Mas não quero dizer que meus pais eram negligentes, ao contrário, eles nos acompanhavam intensamente na escola ou em qualquer outro lugar, estavam sempre presentes, principalmente minha mãe. Para ela, a mudança seria pelo viés da educação, nossa possibilidade. Por isso suas ações, orientações e perspectivas nos fizeram perceber isto, tanto que a escola sempre foi o nosso compromisso pessoal e a levávamos muito sério. Lembro de um fato que para mim foi marcante: certa vez perdi minhas sandálias e minha mãe, indignada, me tirou da escola. Mas uma lição ficou: a responsabilidade com os materiais escolares e tudo mais que era importante para continuar nas aulas, pois era muito difícil adquiri-los. Os pais têm um papel fundamental na educação: oferecer segurança e, conseqüentemente, a liberdade que faz crescer. Com os meus pais isso não foi diferente. * Graduando em Pedagogia pela UFG. Universidade Federal de Goiás 95 Tivemos muito incentivo e apoio, o que nos proporcionou a garra, a ajuda mútua e determinação. Essa relação, o diálogo, foi o que fez a diferença na nossa educação. Uma nova visão do mundo Minha memória guarda poucos professores, acho que são aqueles deixaram marcas em mim, em especial a professora de literatura na oitava serie Elizabeth Carneiro da Silva. Naquela série, em 1993, minha identidade sofreu uma alteração. Pela literatura, assumi uma atitude mais crítica, reflexiva e sobre tudo política. Hoje entendo porque agia daquela forma em algumas circunstâncias! Passei a enxergar as coisas com inconformismo, pois compreendia a estrutura sob a qual a sociedade está fundada, e desde então percebi o papel que deveria desempenhar na sociedade, como um atitude crítica, isto é, dizer não aos “préconceitos”, aos fatos e às idéias das experiências de cotidiano, dizer não às crenças, coisas que temos como verdadeiras, óbvias, sem antes questionar. O seres humanos seguem regras e normas de conduta, possuem valores morais, religiosos, políticos, artísticos, vivem em na companhia de seus semelhantes e procuram distanciar-se dos diferentes dos quais descordam e com os quais entram em conflito. Quando concluí o ensino médio, o que eu mais queria era sair daquela cidade, Monte do Carmo-TO, pois ali eu sabia que não poderia realizar meus sonhos e conquistar meus objetivos. No ano que terminei o curso secundário (1996), fiz concurso pela prefeitura local, ficando com a segunda colocação das 4 vagas, mais infelizmente a politicagem costumeira do interior não permitiu que eu tomasse posse do cargo de auxiliar administrativo. Revoltei-me com isto e a minha vontade de sair da cidade foi ao extremo, mas antes me arrisquei como professor de uma escola na zona rural do município. Não demorou muito e entrei em conflito com os gestores, particularmente com o prefeito e a secretária de educação. As más condições de trabalho, o salário miserável e a falta de equipamento me impulsionaram a criticá-los e exigir mais atenção com a escola em geral. Como não me submeti às suas condições, expondo suas atitudes em relação à escola, o descaso, fui considerado uma ameaça e por esse motivo não “servia” para sua companhia. Em 1997, meu desejo se realizara, fui primeiramente para o Maranhão e depois para São Paulo. Uma coisa fazia muita falta, a minha família, aquilo que mais valorizo e que de fato tem maior importância, especialmente a minha mãe. Com este vazio, queria me reencontrar, pois uma coisa era eu sem minha família, e outra sem Ela. Mas a faculdade era uma prioridade na minha vida, e cada dia mais eu compreendia o sistema como um obstáculo para atingir meu objetivo. Em 1998, me mudei para Goiânia. Agora mais próximo da minha família e também daquela que seria minha companheira. Ela é da mesma cidade que eu. Quando fui para São Paulo, ela veio para Goiânia. Já nos conhecíamos desde 1995, quando estagiei na sua sala, na Escola Mestra Bela. Diante de tudo isso, fiquei mais aliviado e pude concentrar meus esforços no meu foco principal. Da luta à conquista: oportunidades, dificuldades e acertos Aqui tive que enfrentar outras dificuldades: aluguel, falta de trabalho e, no início, falta de ajuda financeira. Pensava que a única maneira de entrar na universidade pública seria me preparando com um cursinho particular o pré-vestibular. Assim, achava muito difícil conseguir, pois o dinheiro que ganhava não era suficiente para pagar. Mas busquei 96 Caminhadas de universitários de origem popular informações sobre políticas de acesso na universidade. Por duas vezes tentei a isenção da taxa de inscrição para o vestibular, pois sempre no período de inscrição não tinha como pagar. Em 2002 não consegui, mas em 2003 tentei outra vez e fui contemplado. Minha preocupação então era como preencher as lacunas deixadas pelo ensino insuficiente no ensino médio. Precisava estudar conteúdos que não vi antes. Resolvi estudar em casa, mas antes que eu começasse, saiu um cursinho preparatório no jornal, promovido pelo estado, juntamente com duas universidades, a Federal e a Estadual de Goiás. Era o “cursinho do povo”, com fascículos semanais e o melhor de tudo, era gratuito! Assim estudava em casa e uma vez por mês tínhamos um “aulão” num ginásio da cidade, o Grande Arena. Professores davam palestras e orientavam como fazer as provas revisando os conteúdos de maneira prazerosa. A primeira fase do vestibular foi tranqüila, me lembrava do que um professor disse “procure errar menos e não acertar tudo”. Assim passei na primeira etapa. Na segunda, foi melhor ainda, pois as questões não eram de múltipla escolha, eram no “canetão” e escrever, pra mim, era chance dobrada e me senti mais seguro nas provas. Enquanto aguardava o resultado foi para a casa dos meus pais no Tocantins. Minha irmã, que tinha voltado antes para Goiânia, me avisou do resultado. Tinha passado no curso de PEDAGOGIA, concorrendo com sete por vaga. No primeiro momento não houve grande euforia da minha família, por que já era esperado, era só uma questão de oportunidade, e quando a tive confirmei a força que a educação familiar tem, em manter sempre o foco naquilo que é melhor para nós e este era um dos meus principais objetivos de vida. Recebi parabéns de muitas pessoas, inclusive dos meus ex-professores do Colégio Estadual Padre Gama, onde fiz o ensino fundamental e o ensino médio. O primeiro ano da faculdade foi de adaptação. Pelo meu perfil socioeconômico me sentia estranho naquele ambiente. Podia ver as atitudes de alguns professores, discretos mas preconceituosos. Isso não abalou minha vontade, minha auto-estima. Por outro lado, eu tinha colegas que me amparavam moralmente, o que me ajudou a superar essas situações, me fazendo mais forte e tolerante com este tipo de comportamento. Mas o repudiava em minhas falas, visto que conhecia textos de Marx, Dhurkeim e outros. Mais dificuldades se revelavam: textos didáticos, alimentação, condução e as taxas cobradas pela universidade. Enfim, me sentia forçado a sair. As políticas de acesso e permanência “eram” muito tímidas e insuficientes, e além dos mais, estão sempre permeadas por interesses daqueles que dirigem as instituições dentro da universidade. Quem mais se dá bem são aqueles que têm representantes nas instituições acadêmicas. Já ouvi muitos falarem, e sei de alguns casos também, onde a influência social e política favorecem. Sabem a quem? Onde acontece?(...) Vergonhoso e imoral e que me revolta muito. Isso tem que parar, mas para isso temos que assumir compromisso com a cidadania e a democracia, sendo cada vez mais questionadores dessa realidade. Antes de conhecer o Programa Conexões de Saberes, trabalhava de dia com servente de construção e a noite ia para aula de bicicleta, pedalando cerca de 20 km. Era muito desgastante, mas o que eu ganhava só dava para as necessidades básicas. Reprovei em duas disciplinas por falta, quando chovia muito era impossível ir para a aula. Hoje, tenho dois filhos com a minha ex-aluna, citada anteriormente, Elizabeth Cunha de Oliveira. Meu primeiro filho tem 7 anos e está na segunda série. Seu nome é Laurício Rodrigues de Oliveira. O segundo se chama Samuel Rodrigues de Oliveira e tem 3 anos. O terceiro filho é uma menina, e nasceu no dia 2 de fevereiro de 2007, Laryssa Vitória. Eles são Universidade Federal de Goiás 97 muito importantes pra mim, tenho aprendido muito com eles e ela, uma vez que meu curso é para lidar com crianças, principalmente. Estou a quase oito meses no Conexões de Saberes e tem sido muito bom ter uma bolsa de ajuda, pois agora tenho mais tempo para estudar. Por outro lado, o programa veio somar forças na luta por uma melhor educação, mais políticas de acesso e permanência para os estudantes de origem popular e mais oportunidades, bem como na luta contra a ideologia dominante, que condiciona as pessoas a considerar o atual modelo de sociedade como ideal. Não é! O melhor é aquele em que todos têm oportunidades e condições de se desenvolverem sem ser estereotipados como “coisas”. Participo de um movimento popular que luta por moradia, onde cobramos das autoridades a efetivação das políticas habitacionais e todas as infra-estruturas necessárias para que uma família possa ter um mínimo de dignidade. Estou no quarto ano do curso de Pedagogia, ou seja, primeira etapa do ensino superior, mas quero fazer uma especialização e um mestrado em políticas educacionais. Não quero deixar meus irmãos vagando por ai! Luilson mora com minha irmã mais nova, que também é professora e trabalha como vice-diretora em um núcleo de ensino rural em Monte do Carmo – TO. O Edílson é um grande professor na mesma cidade e fez Geografia, na UFT. A Josilene não fez faculdade ainda, mas tem o magistério - 2º Grau. Ela foi para a Espanha no dia 9 de fevereiro de 2006, minha irmã preferida e grande amiga, que sempre me apoiou direta ou indiretamente, e mesmo longe continua a me ajudar nos momentos de grande sufoco. Minha mãe, aposentada, mora com meu pai numa “fazendinha” herdada dos meus avós. Antes de terminar gostaria de agradecer todas as pessoas que, de alguma forma, me incentivaram e acreditaram em mim: meus pais, meus irmãos, meus colegas da Faculdade de Educação, do “Conexões de Sabedores” e professores, a todos os docentes que no discurso e na prática se comportaram eticamente. Finalizando quero mencionar que a educação é um direito de todos, mas é preciso que exerçam seus direitos que eles sejam efetivados. Se a deixarmos nas mãos daqueles a direcionam para apenas a pequena parcela da sociedade (os privilegiados), sempre teremos desigualdades e falta de oportunidades. A educação é um dos meios de superação do “homem-coisa” para um “ser-mais.” 98 Caminhadas de universitários de origem popular O bater das asas de uma borboleta pode causar um tufão do outro lado do planeta1 Maiana Gomes Magalhães da Silva * Itapuranga fica em Goiás, mas quando era pequena minha mãe me respondeu que ficava no fim do mundo. Imaginei um enorme abismo no fim da cidade, quero dizer, no fim do mundo de Itapuranga. Esta concepção de cidade é a de uma mulher, agora minha mãe, a Zezé, como a chamam algumas pessoas. Esta mulher, quando era menina teve sua essência aprisionada e dilacerada por preconceitos de um conservadorismo exacerbado, filho do tradicional e cruel coronelismo goiano. Confesso que este é um traço marcante do lugar, apesar de ter vivido pouco tempo por lá, foi o suficiente para perceber que o respeito à dignidade humana está intimamente ligado à cor de sua pele, à classe social e a uma moral puritana baseada na pior qualidade de cristianismo que se tem notícia. Fomos exiladas. Nos mudamos para Goiânia, a capital do estado, não me lembro bem quando. Éramos Eu e Ela. De origem popular, mulheres e negras, ela com ressalva de ser mãe solteira, um rótulo massacrante que até me fez, algumas vezes, sentir-me culpada por ter nascido tão tranqüilamente em um momento tanto inoportuno. Eu nasci em Itapuranga, no dia 19 de fevereiro de 1984. Neste ano, excepcionalmente, não houve horário de verão, provavelmente para eu nascer uma autêntica aquariana. A comunicação, os livros, a liberdade! E com tudo isso, um sentimento de inadequação que insistia em me perseguir. “Não me convidaram pra essa festa pobre, que os homens armaram pra me convencer...” Brasil, de Cazuza. Primeiro dia de aula, escola nova e algumas instruções de sobrevivência, entre elas: “Maiana, se alguém perguntar qual a profissão de sua mãe, diga que sou secretária”. Minha mãe não era secretária desse tipo que atende telefone, ela era uma secretária doméstica, mulher, mãe solteira e desventurada pelas peripécias que a vida impôs a ela. Maria José Gomes de Souza. 1 “Efeito Borboleta, um termo que se refere às condições iniciais dentro da Teoria do Caos, Faz parte da Teoria do caos”. (Wikipedia). * Graduanda em Geografia pela UFG. Universidade Federal de Goiás 99 Dentro do possível se guiou pelo chavão “Estudo ninguém tira” e me garantiu até a 4ª série em escolas particulares a custo de muitas privações. Em 1994 nasceu minha irmã, Juliana Brisa Gomes Magalhães e assim se formou nossa família. Meu pai, Antônio César da Silva teve uma presença, digamos, esporádica em minha existência. Não sei exatamente com o quê ele teve responsabilidade na vida, mas creio que foi com poucas coisas e eu não estava inclusa em nenhuma delas. Em 1994 ingressei no ensino público estadual em um colégio tradicional de Goiânia chamado Colégio Estadual Rui Barbosa, que inclusive teve seu terreno vendido recentemente a uma empresa privada, ação que fomenta a lógica de tirar os pobres do centro e amontoá-los nas periferias, fora do campo de visão da burguesia goiana, capital nacional das camionetes de luxo. Cursei do Ensino Fundamental ao Médio neste lugar que foi no mínimo especial para mim. Foi lá que construí belas amizades que duram até hoje e foi também o ponto de partida da minha trajetória de militância, quando era secundarista. Minha adolescência foi marcada por questionamentos, sobretudo sociais. Transformei minha indignação por este mundo de carcarás em amor para transformar a Mãe Terra em um lugar mais feliz e justo. Esta militância meio atravessada pela imaturidade gerou algumas situações até engraçadas. Certa vez, no embalo das emoções geradas pela ânsia de mudar o mundo, minha mãe ficou preocupada com esse “tal” movimento estudantil que eu “havia me envolvido...”. Ela imaginava que isso era uma espécie de seita ou coisa semelhante, pois segundo ela eu estava ficando maluca, fanática, entre outras qualidades nada admiráveis de se escrever aqui. Ela tentava me “explicar” que aquilo tudo que eu estava vivendo aconteceu na verdade na década de 60, e que a ditadura tinha acabado, portanto aquele esforço era desnecessário, não havia revolução para acontecer. Pediu-me para fazer uma difícil escolha aos 15 anos: eu deveria escolher entre continuar no movimento estudantil ou sair de casa. Se eu escolhesse o movimento estudantil, que arrumasse minhas malas naquele exato momento. Saiu aborrecida, batendo a porta, convencida que aquela condição me afastaria compulsoriamente da militância. Quando ela retornou, eu tinha uma mala pronta e estava decidida a mudar o mundo! Minha mãe relevou naquele momento meu acesso “Che Guevara”, mas continuou rasgando minhas correspondências às escondidas. Do jornalzinho da escola ao Programa Conexões de Saberes foi uma árdua caminhada. A Universidade para mim era um local impenetrável, a menos que eu tivesse dinheiro ou uma boa formação escolar, ou seja, não era definitivamente um lugar pra mim. Ela, juntamente com a escola pública, são crias perfeitas deste sistema sócio-político-econômico perverso e demagogo. A escola pública é na verdade uma comédia, que seria cômica se não fosse trágica. Ela camufla o significado do conhecimento, o torna enfadonho e no fim não nos dá condições de continuar, pois o vestibular separa, na verdade, aqueles que tiveram condições para pagar pelo conhecimento daqueles que não tiveram. O vestibular quer saber das aulas que nunca tive na escola, dos temas que os professores desqualificados (vítimas deste próprio sistema perverso) nunca abordaram ou julgaram que éramos pouco competentes para entender. Desta forma, eles nos ensinaram como não ter auto-estima para continuar. Esse preceito foi e está sendo desenvolvido com maestria e requinte pelas escolas públicas. O vestibular quer saber o que eu não tive tempo de aprender, pois tive meu primeiro emprego aos onze anos de idade. 100 Caminhadas de universitários de origem popular Dos onze anos até o primeiro ano da universidade trabalhei quase ininterruptamente. Quando entrei na universidade resolvi “chutar o balde” e viver com o mínimo possível para me dedicar totalmente aos estudos. Decidi fazer uma universidade e não uma faculdade. Isso me custou vários apertos, e em um deles tive que me mudar para a Casa do Estudante Universitário I, onde moro atualmente. Lá pude ver que a minha vida não é muito diferente dos meus 105 colegas de casa, estudantes de origem popular. Nesta labuta coletiva da casa, parece-me que sua trilha sonora é assinada por Chico Buarque. Até o fim “Quando eu nasci veio um anjo safado O chato do Querubim. Que decretou que eu tava predestinado A ser todo ruim... Já de saída minha estrada entortou... Mas vou até o fim!” Minha primeira informação sobre a UFG foi dada por uma colega, quando eu fazia o primeiro ano do Ensino Médio. Eu perguntei como era a universidade, aquela do governo. Ela me respondeu que era cheia de carros e que era só pra gente rica. Já fui me programando: seria uma cientista social quando trabalhasse o suficiente para pagar uma faculdade. Na verdade, concluí meu ensino médio sem saber muito bem como fazer para conseguir isto. Enquanto @s prim@s e algumas amigas estavam fazendo cursinho ou vestibular, eu me encontrava perdida, sem expectativa alguma, na asfixia do vácuo existente entre o ensino médio e a Universidade. Aos dezessete anos me mudei para São José dos Campos, interior de São Paulo em um surto de paixão fumegante e quase patológica por um ex-companheiro e lá tomei certas decisões, pois a partir de então precisava me manter sozinha. Entre elas foi escrever uma carta a uma tia, irmã de meu pai, a tia Lúzia, para que ela pedisse a ele que pagasse uma faculdade para mim, visto que nós não tínhamos contato, assim como hoje. Pedi assim mesmo, de qualquer jeito, pois eu não imaginava as implicações de estudar em uma instituição privada. Não tinha noção de custos materiais e psicológicos de estar em um ambiente como aquele, além de não comungar da mesma realidade que a maioria daqueles clientes, pois são tratados como tal. O conhecimento é um produto muito caro e está sendo comercializado de uma forma mercadológica de baixíssimo nível. Vem com código de barras e difunde a reprodução dos padrões elitistas e repressores do paradigma passado, e também vem engessado, pronto e acabado como um jornal da Rede Globo. Iniciei um curso de Direito na Universidade Paulista, somente por constar as seguintes palavras na grade curricular: “Sociologia”, “Ciências Políticas”, “Filosofia” e para aproveitar aquela “miraculosa” chance de continuar estudando. Mesmo que não gostasse do curso, eu achava que precisava adquirir aquele pacote com código de barras para poder me sustentar. Depois de algum tempo as coisas desandaram e ficou insustentável continuar. Com todas as despesas, inclusive de moradia, alimentação, transporte, livros, etc. tive que escolher entre permanecer na universidade ou no planeta Terra como um ser humano vivo. Universidade Federal de Goiás 101 Acredito que não seja difícil compreender que optei por não estudar e morar, me alimentar e outras coisas que as pessoas geralmente fazem para sobreviver. Abandonei a pseudouniversidade tecnicista e burguesa, UNIP. Fui expurgada daquela empresa assim como minha mãe foi exilada de Itapuranga. Depois de um ano, retornei à Goiânia e resolvi estudar para o próximo processo seletivo da UFG sem saber exatamente o que queria estudar. Fiz quatro meses de cursinho e neste tempo percebi o quão a escola pública havia me enganado. Tinha que aprender o que as outras pessoas estavam simplesmente recordando. Eu trabalhava pela manhã e ia para o cursinho às 14h para o plantão de dúvidas (e quantas dúvidas!) só saia às 22h30min de lá. Ingressei na Universidade Federal de Goiás em 2005, no curso de Geografia, aos 20 anos de idade. Descobri que a soma das coisas que me interessavam tem este nome: Geografia. Curso atualmente o quinto período do Bacharelado em Análise Ambiental e vivo uma correria considerável, pois mudar o mundo demanda muito tempo. Dentro da Universidade as coisas não ficaram mais fáceis. O xérox e a condução eram fortes empecilhos para a minha permanência no curso. Estes impecilhos foram superados na medida do possível com a ajuda de pessoas muito especiais, que por gratidão gostaria de citá-las: Leca e Simião, meus tios; Saulo, Bruna, Diogo, Thaís e Micaelle, meus amigos que nunca falharam na hora da carona, do “rango”, do xérox, dos devaneios a cerca da realidade, entre outras coisas. O Conexões de Saberes contribuiu significantemente com a consolidação da minha identidade de Estudante de Origem Popular (EOP). Associando isso a outras vivências propiciadas pelo ingresso na Universidade, pude ter consciência de várias outras situações opressoras, seja humana, animal, ou simplesmente opressão planetária. Ela está espalhada na atmosfera por todos os lados. Foi na academia que pude conhecer uma forma diferente de pensar, por um novo paradigma, o da Complexidade, que me fez inclusive compreender como a academia é excessivamente obsoleta. Chamo-a “carinhosamente” de “velha coroca”, porém sou grata pela oportunidade de reconhecer isso, ela mesma proporcionou essa descoberta. Dentro deste arcabouço secular chamado Universidade, me sinto muito oprimida enquanto estudante de origem popular, mas esta tirania não é suficiente para me fazer calar, pois tenho consciência que eu não sou clandestina, sou legítima e me recuso a me resignar a esta estrutura opressora e cartesiana que se impõe à nossa sociedade. Eu não fui privilegiada pela maior bolsa da universidade através do Programa Conexões de Saberes, como disse o Pró-Reitor dos Assuntos Comunitários da UFG, mostrando com esta afirmativa qual a lógica instalada e reproduzida dentro da academia. Não é privilégio fazer parte de uma maioria que maquiavelicamente é chamada de minoria, que teve suas oportunidades restringidas em favorecimento da elite branca e burguesa que descaradamente governa todo o mundo. Percebi, e hoje consigo pontuar, que minha angústia é uma realidade a de muitas estudantes e que isto é um círculo vicioso que deve ser quebrado pelas próprias vítimas desta engrenagem, guiadas pelo princípio mais belo que a humanidade pode possuir: o da AMOROSIDADE. “Amor, palavra que liberta” Marisa Monte 102 Caminhadas de universitários de origem popular Esta caminhada é longa, bonita e intensa. Somos todos e todas arquitet@s da realidade, nas palavras de Paulo Freire: O mundo não é. Ele está sendo. Juliana Brisa Gomes Guimarães Universidade Federal de Goiás 103 Longo caminho até a universidade Marcelo da Silva Rodrigues* Sou o caçula, sétimo filho do casal Geni Caetano Rodrigues e Sebastiana Rosa Silva Rodrigues. Meus irmãos são Túlio, Leila, Gicele, Adriana, Alexandre e Mara, minha irmã gêmea. Meu pai, homem sábio, amoroso e trabalhador, pequeno produtor rural graças à reforma agrária do governo federal, foi, ao longo de minha criação, carvoeiro, açougueiro e desempregado. Meu pai foi alfabetizado por sua mãe, pois meu avô achava que estudo não era necessário. Para ele, “filho era para trabalhar”, tanto que teve onze filhos com minha avó. Minha mãe, amor transformado em matéria, para complementar a renda familiar, foi biscoiteira, costureira e dona de casa. Concluiu a quarta série do ensino primário. Meus irmãos são exemplos de luta e amor à família, especialmente o Túlio e a Leila, irmãos mais velhos que sacrificaram a infância e a adolescência, substituindo quando necessário o papel de meus pais, trabalhando para complementar a renda familiar e ensinando o valor e a necessidade da educação para os mais novos. Minha família é exemplo cooperação mútua, seja nos afazeres domésticos ou auxiliando meus pais nos empreendimentos comerciais como açougue, carvoaria e entrega dos biscoitos nos bares das cidades onde moramos. Já passamos unidos por diversos problemas financeiros e de saúde, como o alcoolismo do meu pai, a dependência química do meu irmão Alexandre, a gravidez sem planejamento da minha irmã Adriana e um tumor na cabeça de meu irmão Túlio. Todas as alegrias, conquistas e dificuldades serviram para saber o quanto a família é importante. Vida Fui educado em estabelecimentos de ensino público, do ensino fundamental ao ensino médio. Já passei por diversas escolas em diversas cidades, umas boas, outras péssimas. Minha família em busca de melhores condições e oportunidades, e às vezes correndo mesmo de cobradores, deu-nos a oportunidade de morar em diversas cidades como Carmo do Paranaíba-MG, Iporá-GO, Goiânia e Unaí-MG. Também morei em várias casas de bairros diferentes na mesma cidade. A maior parte de minha vida tive que conciliar escola e trabalho. Assim, comecei a trabalhar muito cedo, por volta dos dez anos, entregando e vendendo pão de queijo na rua * Graduando em Agronomia pela UFG. 104 Caminhadas de universitários de origem popular para minha mãe. Depois trabalhei como balconista, digitador, telefonista, açougueiro – igual a meu pai, em fotocopiadora, como prestador de serviços em um banco, vendedor de atacadista - no lugar do meu irmão, quando ele estava doente, segurança e garçom nos finais de semana, para cobrir as despesas da faculdade. Mesmo mudando tanto de casa, cidade, escola e emprego, fui muito feliz, brinquei, estudei e namorei. Essas conquistas são fruto de uma base familiar onde todos, mesmo nas mais diversas dificuldades, acreditam num futuro melhor. Por que agronomia? Devido às deficiências e falta de qualidade das escolas onde estudei foi difícil entrar numa universidade pública. Foram necessários muita perseverança, muito estudo e, principalmente, acreditar na minha capacidade para que eu pudesse superar as minhas deficiências emocionais e financeiras. Escolhi agronomia porque eu e minha família temos uma ligação muito forte com o campo. Meu pai, assentado da reforma agrária, ensinou o valor da terra não como um bem material, mas como um bem social que gera vida para a nossa geração e as futuras. Acredito que o curso de agronomia seja responsável, juntamente com outros cursos voltados para a área de ciências agrárias, por discutir e problematizar as temáticas relacionadas à produção agrícola de alimentos. Acredito também que é necessário compreender o meio rural tanto quanto as questões socioeconômicas e ambientais para que possamos ter uma melhor qualidade de vida. Entrei na universidade Quando se entra na universidade, somos, como dizia Raul Seixas, “inocente, puro e besta”. Achamos que tudo vai dar certo, que vamos ficar ricos, que o mundo gira ao nosso redor, tendo o ego muito inflamado. O choque de realidade chega cedo, quando você percebe que não tem dinheiro para tirar xerox, tomar café da manhã, que seus pais não têm a mínima condição de mandar dinheiro, que seus colegas são pequenos burgueses e não ligam para sua vida e muito menos para a do colega ao lado; quando percebe que seu curso não gera conhecimento para o bem de toda a sociedade, pois a maioria das pesquisas é financiada por empresas multinacionais que voltam a atenção para os grandes produtores rurais, não produzindo conhecimento para o pequeno produtor. Este realmente precisa de conhecimentos para maximizar sua produção e não ser engolido pelo grande produtor. Diante disso, chega a se questionar: “Como vou estudar se não consigo me alimentar?”. Encontrei a minha paz No meio do desespero total, conversando com alguns colegas veteranos, descobri a CEU (Casa do Estudante Universitário), e passei pelo processo seletivo, depois de arrumar vários documentos, um verdadeiro atestado de pobreza. A maioria dos candidatos que necessitam da moradia é excluída pela burocracia desse processo, por não conseguirem comprovar que são de baixa renda. Através dos meus amigos ceusianos, descobri que a universidade tem assistência estudantil como alimentação e moradia, mas não para todos que precisam. Tenho a impressão que a universidade não encara a assistência estudantil como um direito do estudante, mas como uma obrigação ou mordomia. Universidade Federal de Goiás 105 Foi na CEU que descobri a diversidade regional, étnica e sexual. Também foi lá que tive o primeiro contato com o movimento estudantil e fui motivado a participar do DCEUFG e da coordenação da CEU 3. Luto para que todos tenham acesso a uma universidade pública, gratuita e de qualidade e para que não seja privilégio de alguns fazer parte dela. Estou engajado nesta luta a três anos, desde que entrei na universidade. Participei de projetos sociais na minha área como melhoramento de milho, cana-deaçúcar, mandioca e reforma de pastagem na Associação do Projeto de Assentamento Curral do Fogo, onde meu pai reside, utilizando as técnicas que aprendi na faculdade de agronomia. Há oito meses participo do Conexões de Saberes, onde reforço este time de estudantes de origem popular que, como eu, lutam pelos mesmos objetivos, que são a democratização do conhecimento, o acesso e a permanência de estudantes de origem popular na universidade pública. 106 Caminhadas de universitários de origem popular Elogio à mediocridade Micaelle Juliano Ribeiro* Nasci em Goiânia. Estudo Geografia no Instituto de Estudos Sócio-Ambientais da UFG, onde sou membro do Conselho Diretor, e estou no 7º período. Prestei vestibular três vezes e em 2004 fui “aprovado” aos 25 anos. Sou morador desde setembro de 2005 na Casa do Estudante Universitário I, e membro do Conselho Deliberativo da mesma. E também, presidente da Secretaria Estadual das Casas de Estudantes do Estado de Goiás. E sou bolsista do PCS (Programa Conexões de Saberes) desde o lançamento em junho de 2006. E me considero afro descendente. Mamãe, mamãe não chore... a vida é assim mesmo... Veja as contas do mercado, pague as prestações Ser mãe é desdobrar fibra por fibra os corações dos filhos Seja feliz, seja feliz... mamãe, mamãe não chore... Eu quero, eu posso, eu quis, eu fiz, mamãe seja feliz. Caetano e Torquato Neto Impossível falar de mim sem me remeter e explicar um pouco da história de minha mãe. Senti essa necessidade pelo lado emocional e também, enquanto fonte importante para o resgate e compreensão da minha história. O nome escolhido para batizá-la foi Juliana. Nome singelo e simples que não corresponde à vida trágica e difícil que se apresentou sempre ante ela, e por isso, hoje, esse nome, significa pra mim: Coragem, pois minha mãe me deu a vida dela! Em uma fazenda do interior de Goiás entre as cidades de Diolândia e Cruzelândia, nasce à menina Juliana. Da família naquela época o único que sabia ler era seu avô paterno que conseguiu esta proeza sem freqüentar escola e em idade avançada. Ele era o curandeiro da região e o primeiro e único espiritualista da família, antes de mim. Juliana é a quarta filha de um casal que teve mais sete filhos, dos quais as duas últimas são gêmeas e que após cinco meses de nascimento perderam sua mãe, dona Ambrosina. Juliana estava com treze anos nesse momento. A causa da morte na época jamais poderia ser identificada, mas Juliana lembra perfeitamente dos inchaços corpóreos constantes, sinais de pressão arterial alta e muito provavelmente, de eclâmpsia, como as causas complicadoras, que levaram a óbito no nascimento de seu terceiro filho, que também faleceu. * Graduanda em Geografia pela UFG. Universidade Federal de Goiás 107 Com mais ou menos quinze anos Juliana veio para Goiânia com uma família na qual trabalhava sem remuneração como doméstica desde a cidade de Diolândia. Retornando nas férias a esta cidade para rever os familiares, conheceu um rapaz mineiro, e nos primeiros momentos de encontro, houve um interesse mútuo entre eles, ao ponto de Juliana relatar tal interesse ao seu grande amigo e pai, que a advertiu severamente com o argumento de que ele já tinha namorada. Mas isso, não foi suficiente para evitar o beijo ao se encontrarem em uma festividade do colégio da cidade. Pronto! Nasceu uma história bonita, breve, e ou mesmo tempo triste! E apesar do encontro, Juliana retornou a Goiânia pra continuar sua vida e Geraldo também continuou a sua, chegando a noivar com a namoradinha. Mas dois anos depois, faltando vinte dias para seu casamento em Diolândia, ele desmarcou tudo e seguiu para Goiânia com o principal objetivo de reencontrar Juliana e dela fazer sua companheira mulher. Assim, reencontraram-se e com sete anos de namoro em 1975 acontece o casamento e nascimento em 1977 do primeiro filho, em um parto complicadíssimo, tão grave que o médico que acompanhou o pré-natal de Juliana, ao ver as condições da paciente na última consulta, e nos últimos exames, constatou que o parto era de altíssimo risco, com indícios claros de eclâmpsia devido à pressão arterial. E o pior, o médico disse a Geraldo que se achava incompetente para realizar aquele parto, o máximo que poderia fazer era salvar a Juliana ou o rebento! E nessa situação Geraldo fez sua escolha totalmente passional, escolheu um outro médico! Ele não tinha dúvidas, queria os dois, queria o impossível para muitos, menos para ele e para o Dr. Diogo, um outro médico que ao analisar os primeiros exames de Juliana, pediu que ela e a sala de cirurgia fossem preparadas em no máximo vinte minutos. Quando, seu moço, nasceu meu rebento Não era o momento dele rebentar... Chico Buarque E nessas condições eu nasci! Condições desfavoráveis que me perseguiram e que persistem podendo ser explicadas em grande parte pelo sócio-econômico precário de meu núcleo familiar. Condições tão comuns a certa parcela da população que sobrevive mais do que vive! E que apesar de tudo, e de todos, estão aí, mostrando a sua cara em cenários onde sua presença não é bem quista, como nas universidades federais do Brasil. Então, o contexto de minha vida já está iniciado e a minha história propriamente dita, pode começar. Nasci leonino, com todas as características admiráveis e as insuportáveis de um legítimo leonino. Tenho e vivo uma história que se eu lhe enfrentar, de uma outra maneira, serei engolido por ela! É guerra! É muito como o Guimarães Rosa refletiu sobre a vida, que ela faz de tudo, agradável ou não, para lhe retirar como resposta a coragem. Depois que meus pais se casaram, foram morar em uma vila periférica de Goiânia que possuía uma péssima reputação por ser região de tráfico e usuários de drogas. Então, todo o preconceito em cima dos usuários se estendia sobre a região. Não havia expectativas ou horizontes para nós, crianças e adolescentes da Vila Santa Helena. Ás vezes, somente a cruel esperança. A “realidade” nada permitia além da necessidade da busca de trabalho para ajudar na renda familiar. Se terminássemos o ensino médio já era um grande feito. Meu pai trabalhava como vendedor de produtos alimentícios e ao chegar a casa auxiliava minha mãe na administração de um bar-mercearia que era nossa principal fonte de 108 Caminhadas de universitários de origem popular renda. Esse bar e a nossa casa eram a mesma coisa! Minha mãe cuidava da casa, de mim, do meu irmão e de todos nossos muitos cachorros. Dentre eles, alguns inesquecíveis, mas todos eles muito necessários para a proteção da casa. A região exigia tal medida. Nela havia lugares de muita pobreza e muitas pessoas dali possuíam poucas alternativas de sobrevivência e dentre elas, o roubo. Minha mãe só sabia que eu tinha que estudar para “ser alguém na vida”. Meu irmão nunca quis estudar, e eu sempre quis e adorava o mundo da escola, dos amigos, das letras, das artes, da TV, da música, de todo o começo de ano comprar os cadernos com seu adorável cheiro de novo, e os lápis-de-cor, que eram pra mim a compra fundamental! Adorava bancas de revista, mesmo sem saber ler nem meu próprio nome. Adorava ficar ali, dentro de uma. Juliana, coitada, tinha que esperar ou me bater pra irmos embora. Na briga entre minhas escolhas e as dificuldades, o resultado até agora é que sou o primeiro e único membro da família que cursa e tem possibilidades de concluir um curso em uma universidade federal. Esse dado me orgulha até certo ponto, mas o que ele mais me suscita é a revolta diante do infame sistema público de ensino brasileiro, que tem como “produto final” a supressão da grande maioria daqueles que por ele passa. Meus pais, familiares, primos e amigos de infância tiveram em sua grande maioria, menos opções que eu! E nisso, Juliana foi o diferencial! Minha mãe extrapola qualquer conceito leonino, sacrificando-se em vida, dedicando-se ao trabalho. Sem esse sacrifício nunca poderia estar na UFG. Nunca! Se eu tivesse outra mãe de força menor, que não conseguisse amortecer a realidade à minha volta, eu não conseguiria ser na federal um acadêmico que contraria todas as formas de exclusão que ela mantém! Sem a força dela nunca teria a oportunidade de vivenciar uma outra realidade, intangível até então, em meu meio e família. Em fevereiro de 1984 as coisas mudaram radicalmente. Tinha quase sete anos quando meu pai faleceu. Foi um golpe brutal da vida! Lembro perfeitamente da minha mãe e seu desespero silencioso ao chorar pela perda. Meu irmão na época tinha quatro anos e sentiu muito o fato, aparentemente, mais do que eu. Outra vez, a guerreira pioneira que saiu do interior de Goiás, e a partir disso, tornou-se o esteio no transladar de toda a família para Goiânia, estava no chão! Levou um tiro no coração e só não morreu porque tinha duas crianças para “criar”. Mas levantou-se, a pesar-lhe na costa um triste destino. Daí em diante, meu núcleo familiar foi dor, brigas e lutos durante muito tempo. A mochila colorida na costa e a cabeça cheia de brincadeiras... O pátio das escolas, as tias do lanche, os lanches esquisitos! A vida deveria ser mais tranqüila! Afinal, era infância? Depois de concluir a quarta série, estudei em vários colégios, todos estaduais, grandes e de baixa qualidade, onde sempre faltavam professores de química e física. As idéias dos professores de história e geografia que me chamaram a atenção ao longo do tempo. Terminei meu Ensino Médio em um dos tradicionais colégios estaduais de Goiânia, mas que apesar disso tinha nível de exigência baixo. E o pior, havia pouco incentivo aos estudantes para prosseguirem nos estudos, causando em muitos uma descrença nos estudos. Com tudo isso, a universidade não existia pra mim. Mas é fato! Em toda minha história na rede estadual de ensino, pouco recebi de informação sobre universidade. Pelo contrário, as escolas me colocaram longe das federais. Universidade Federal de Goiás 109 Em 1997, terminei o ensino médio com 20 anos e sem nenhum “sonho” de entrar em universidade, este só surgiu anos mais tarde, quando alguns novos amigos estavam pleiteando seus ingressos e começaram a me incentivar. Nessa época, já estava morando em um setor ainda mais periférico, problemático e violento, chamado Solange Parque. Então, no ano de 1999, no primeiro semestre, comecei um pré-vestibular, muito animado, obstinado, disposto a superar qualquer obstáculo! O primeiro foi: como pagar? Minha mãe não demonstrou empolgação em assumir esse compromisso, tendo que sustentar toda a casa, meu irmão e eu. Não deu outra! Terminei o cursinho, mais não terminei de pagá-lo. Lembro-me que fazia o percurso de mais de sete quilômetros de minha casa ao cursinho de bicicleta, de segunda a sábado. Nem a constatação das minhas grandes deficiências que dificilmente iriam ser supridas pelo cursinho, nem esse esforço físico diário desgastante, nem a incompreensão de muitos familiares. Nada impedia meu intuito! A única coisa que conseguiu me parar foi a falta de dinheiro! Nessa época vivíamos da aposentadoria de minha mãe, e esse cursinho era um luxo insustentável e uma faculdade particular era incogitável! Por que sabia que não teria a menor condição para pagar os estudos, apesar do fácil acesso. Acreditava que minha maior dificuldade seria em passar no vestibular da UFG. Hoje sei que isso é um ledo engano. Então, em virtude desses fatos, tive que conter o meu desejo. A “realidade” me obrigava. Comecei o ano de 2000 trabalhando e não estudei em nenhum cursinho, e não passei no teste de aptidão para Design gráfico, nem para a minha segunda opção, Filosofia. Em 2001, estudei desenho e história da arte e obtive aprovação no teste de aptidão e na primeira fase, mas na segunda fui reprovado. Consegui trabalho no final de 2002, mas depois de três meses fui despedido. Então me voltei inteiramente aos estudos para obter minha aprovação definitiva. Com o acerto deste último trabalho pude procurar um cursinho no inicio de 2003. No primeiro dia de busca a um cursinho, visitei em seu trabalho uma grande amiga do ensino médio, que se chama Abelâine. Ela tentou algumas vezes medicina veterinária na UFG, infelizmente “sem sucesso”! É mais uma pessoa nobre de origem popular que o sistema alienante brasileiro de ensino barrou. A essa amiga contei sobre meus propósitos e ela, além de me apoiar, me apresentou uma pessoa que me ajudou muito! Assim conheci Dona Maria, que é costureira. Dentre suas clientes está uma empresaria da rede de ensino de pré-vestibulares de Goiânia. Por esse intermédio, consegui bolsa com 50% de desconto no pré-vestibular e comecei a estudar no horário matutino. Posteriormente, passei a assistir ilegalmente as aulas do curso de específica de português e as aulas do cursinho noturno. Então, eu chegava às 7:00 e só saía às 21:00 da escola! Até que começou uma maior vigilância, mas nesse momento eu já conhecia a profª. Lúcia e expliquei minha situação e vontade, e ela sem, pestanejar, me liberou para que eu estudasse gratuitamente em qualquer curso que existisse em seu estabelecimento. Com isso, aproveitei 2003 para exclusivamente estudar. No segundo semestre desse mesmo ano, fiquei estudando em casa. Nesse período já tinha maior compreensão e respeito ao meu objetivo, mas havia a pressão “subliminar” familiar sobre mim e minha mãe. Ela sofreu mais, principalmente por eu não estar trabalhando. Apesar de tudo eu permanecia tranqüilo, pois tinha me preparado bem. Estava consciente de todo o processo e das dificuldades que superei e as que ainda não estavam superadas, 110 Caminhadas de universitários de origem popular no caso, as exatas! Mas colocando tudo na balança o peso para minha aprovação era maior. E isso se confirmou! Fui “aprovado”. Minha escolha foi geografia pela reflexão entre as matérias que me limitavam, as que sempre gostei e as que menos gostei, e por não haver na época o curso de Psicologia na UFG. Universidade, cidades, horizontes, poucas pluralidades, algumas obscenidades tantas dificuldades, vagos espaços, desvairadas mentes lutas, belas alegrias, belos encontros e muros muitos, altos, intransponíveis, resistentes, arcaicos, fixos, os ditos “acadêmicos”. que me separam do meu próprio eu! Que “explicam” o você de você! e ao mesmo tempo é o não! E ao mesmo tempo me nega o conhecer! O ano de 2004 foi meu primeiro ano na UFG. As dificuldades para o meu acesso foram muitas e comprovadas pelas “desaprovações” nos vestibulares. Agora, estando nela, as dificuldades reais apareceram! Muitas vezes ideológicas, com finalidades de manutenção do elitismo dessa instituição através, por exemplo, do pouco apoio aos EUOP’S (estudantes universitários de origem popular), que romperam a primeira barreira, que é o vestibular, com sua falsa indistinção no processo “seletivo”! Nesse primeiro ano a minha busca por uma bolsa para permanecer exclusivamente estudando foi exaustiva. Nesse momento, Jô, minha amiga de curso e moradora de Casa de Estudante como eu, me disse uma coisa surpreendente até então: “O Estado tem o dever de nos proporcionar a melhor formação possível! E nós, estudantes de baixa renda, temos que exigir isso!”. Seja pela meritocracia e/ou nas outras formas que a IFES insiste em manter, a conseqüência é a inevitável não permanência dos EUOP’S que conseguiram “pular os muros institucionais”. Não existe, por exemplo, uma circulação e divulgação das poucas e insuficientes ações da Procom (Pró-Reitoria de Assuntos da Comunidade Universitária) que visam à assistência aos EUOP’S, mediante alguns programas com bolsas remuneradas. Não vejo e não sinto respeito e preocupação da UFG para com estes estudantes. Minha luta e história acadêmica dentro desta instituição comprovam isso. E não estou esperando final feliz! A tão buscada bolsa que me proporcionaria uma permanência mais tranqüila pois me auxiliaria na questão financeira, só veio no segundo semestre de 2005, por indicação direta da reitora da época. Caso contrário, eu não teria conseguido esta bolsa “trabalho”, que é uma das poucas na UFG que não funciona na lógica meritocrática. Ela tem como critério o estudante ser de baixa renda, mas é péssima tanto pelo valor baixíssimo R$120,00 no máximo), quanto pela proposta geral da mesma, onde o bolsista tem que pagar horas trabalhando em departamentos da UFG semanalmente, suprindo o déficit de funcionário. É horrível ter que enfrentar essas condições quase sempre sozinho. Às vezes compartilhei com pessoas de maior compreensão como o prof. Alex Ratts, ou com pessoas em mesma situação, como a amiga Maiana Gomes. Mesmo agora, desde junho de 2006 como bolsista do Conexões, continuo a enfrentar as mesmas dificuldades que antes eu enfrentava. A única diferença é que na questão financeira, elas estão atenuadas, porque no dia a dia, ainda continuo me equilibrando em uma tênue linha que me liga à conclusão do curso. Universidade Federal de Goiás 111 Tenho uma óbvia identificação com o programa porque ele trata de temas que dizem respeito e respondem às dificuldades que vivo. Prevejo na busca por um mestrado a maior das batalhas contra essa meritocracia. Através da lógica do “mérito” responsabiliza-se unicamente o individuo sobre seu sucesso ou fracasso, desconsiderando o meio e legitimando a desigualdade que se mascara na pretensa neutralidade da “seleção” via vestibular. Vejam meu caso! Pelo o ensino que tive do Estado, cursos como Direito ou Medicina não existem para mim em termos de possibilidades de ingresso. Ou seja, meu horizonte de vida, realização, crescimento foi nefastamente achatado. O Conexões UFG completa um ano sem apresentar real intervenção nesses mecanismos que sedimentam a desigualdade e isso me perturba muito. Dentro do que o programa se propõe a fazer, as responsabilidades são muitas. Para enfrentá-las creio que no grupo, tanto na coordenação, quanto nos bolsistas, falta um melhor preparo teórico-intelectual, uma suficiente dedicação, e uma identificação com a temática do programa, e isto, que para mim é o que está sendo o entrave maior para nossas realizações. Falta engajamento, doação, coração! Assim, meu questionamento em uma conjuntura institucional e federal é com relação à utilização da meritocracia, onde a universidade não usa o mérito para a nomeação de cargos e programas, e provavelmente, se utiliza de mecanismos de negociação política partidária dos mesmos. Assim, podemos estar elogiando a mediocridade. Não estou PCS para receber o “salário” mensal! Estou para construir uma universidade diferente desta inaceitável que hoje é! Rejeito esta longínqua e inalcançável “ilha federal” àqueles de mesma situação social que a minha. E me motivo a estar ainda no Conexões por acreditar que este programa possa ser o meio para transformar este quadro para os próximos euop’s “náufragos” que chegam a duras penas a UFG e que são discriminados e impedidos pelo elitismo de permanecer e concretizar esse direito humano e civil à educação com qualidade! Direito esse que por enquanto nos é dificultado, negado! É para isso que pra mim o Conexões UFG deve existir, e é por isso que eu critico e irrito! Luto por ações afirmativas e desejo ver o Conexões UFG lutando também. “Você deve notar que não tem mais tutu e dizer que não está preocupado. Você deve lutar pela xepa da feira e dizer que está recompensado. Você deve estampar sempre um ar de alegria e dizer: tudo tem melhorado! Você deve rezar pelo bem do patrão e esquecer que está desempregado. Você merece, você merece. Tudo vai bem, tudo legal. Cerveja, samba, e amanhã, seu Zé se acabarem com teu Carnaval? Você deve aprender a baixar a cabeça e dizer sempre: “Muito obrigado”. São palavras que ainda te deixam dizer por ser homem bem disciplinado. Deve, pois só fazer pelo bem da Nação tudo aquilo que for ordenado. Pra ganhar um Fuscao no juízo final e diploma de bem comportado. Você merece, você.. “Comportamento Geral” Gonzaga Jr. 112 Caminhadas de universitários de origem popular Não vim até aqui para desistir agora Giselle Vieira dos Anjos* Como todas as crianças, brinquei e curti muito minha infância. Fiz algumas traquinices, que muitas vezes deixavam meus pais irritados. Cresci em um lar simples e sem regalia, mas meu pai nunca deixou faltar algo para nós, sempre tínhamos o necessário para viver. Meu pai é um homem simples e trabalhador, cursou apenas o primário e por esse motivo nunca conseguiu um bom emprego. Então, ele tenta sobreviver como o próprio negócio que administra (vendedor de churrasquinho) na mesma cidade que moramos, Aparecida de Goiânia-GO. Minha mãe sempre foi a “senhora do lar”. Certa vez até tentou trabalhar de doméstica, mas foi por pouco tempo, pois eu e meu irmão éramos ainda pequenos e não tinha quem cuidasse de nós. Nesta mesma época, meu irmão quebrou o braço, e então ela decidiu não trabalhar fora enquanto a gente não crescesse. O tempo passou e chegou a época de estudar. Fui matriculada em uma escola pública, onde iniciei a alfabetização. Fiquei apenas uma semana nessa série, logo me passaram para o pré – forte, pois eu já conhecia as vogais, o alfabeto e sabia juntar algumas letras. Isso porque minha mãe me ensinava em casa. Nesta época ainda morávamos de aluguel e vivíamos mudando de casa. Conseqüentemente, eu tinha que mudar de colégio. Entretanto isso nunca atrapalhou meu desempenho na escola. Sempre fui uma boa aluna e gostava muito de ir as aulas, apesar de que as escolas em que estudei não eram tão boas. Sabe como é o perfil das escolas publicas... não têm muito a oferecer aos alunos, a não ser professor, quadro, giz e carteira para se sentar. Muitos professores bons e compromissados cruzaram meu caminho. Uma professora com quem aprendi muito, principalmente gramática, foi Maria Silvéria, que me deu aula de português na sexta série. Outros professores também foram muito importantes e contribuíram bastante para a minha formação. Em contraste, tive professores péssimos que não tinham nenhum interesse em ensinar. Outro aspecto negativo na minha vida escolar foram as greves na rede pública. Passávamos até meses sem ter aula. Como é de se esperar, nós, estudantes, sempre saíamos prejudicados, pois os professores atropelavam o conteúdo e ficávamos sem aprender muitas coisas. O sonho de cursar uma faculdade estava muito distante, não acreditava na possibilidade de estudar na UFG (Universidade Federal de Goiás) e nas particulares nem cogitava prestar o vestibular, pois sabia que meu pai não daria conta de pagar as mensalidades, que são tão caras. * Graduanda em Enfermagem pela UFG. Universidade Federal de Goiás 113 Embora meus pais reconhecessem que cursar uma faculdade é um privilegio da minoria, eles nunca desistiram de me apoiar e incentivar a estudar. Almejavam um futuro melhor para mim. No entanto nunca exigiram que eu trabalhasse para ajudar nas despesas de casa. Enquanto estava cursando o ensino fundamental, ainda não tinha me dado conta de que teria que enfrentar um vestibular. Apenas quando cheguei ao 3º ano do Ensino Médio é que decidi me dedicar à prova. Então fiz um cursinho preparatório paralelo ao 3º ano. Neste período de tanta pressão e vestibular se aproximando, me senti muito apreensiva. Não estava preparada para enfrentar toda aquela rotina: escola, cursinho e ficar estudando até de madrugada. Além disso tinha que enfrentar a distância da minha casa ao cursinho, um percurso que durava quase duas horas. Entretanto o meu alvo era ingressar em uma Universidade Pública, então se dependesse de mim, iria até o fim. Por fim, chegou o dia tão esperado, a primeira etapa do vestibular 2004 da UFG. Por incrível que pareça eu estava muito tranqüila neste dia. Uma semana depois saiu o resultado e meu nome estava na lista dos aprovados na 1ª etapa. Fiquei muito feliz mas sabia que estava por vir uma barreira muito maior, a 2ª etapa, com redação, literatura, física, química, matemática e biologia, tudo isso no “canetão”! Por fim, em fevereiro de 2004, saiu a relação dos aprovados. Para minha surpresa meu nome estava entre os aprovados para o curso de enfermagem na UFG. Que grande alegria! Nem parecia ser realidade. As dificuldades começaram mesmo com o ingresso na Universidade. A distância do campus universitário até minha casa e ter que ficar o dia inteiro na faculdade foram grandes desafios! Além disso, tinha gastos com a alimentação, ônibus e xérox e meu pai não estava financeiramente preparado para me sustentar em um curso integral. Até passou pela minha cabeça desistir de tudo, mas não poderia fazer descaso desse grande mérito que havia conseguido. Notando meu esforço duas tias minhas decidiram me ajudar financeiramente. Então mudei para perto da faculdade. Sem dúvida foi a melhor coisa, apesar da solidão que senti longe da minha família. Mais de 14 anos se passaram desde aqueles primeiros momentos em que comecei a aprender a juntar as letras e nunca imaginava que um dia poderia escrever este memorial. Sem dúvida isso é muito gratificante para mim. É um privilégio concedido pelo Programa Conexões do Saberes, projeto que abriu um leque de oportunidades de aprendizagem e discussões acerca de temas sociais. Enfim, vivemos em uma sociedade meritocrática e se quisermos conseguir alguma coisa, temos que nos esforçar muito e aproveitar toda a oportunidade que aparecer, senão o conhecimento científico ficará monopolizado pela camada elitista e sempre seremos subalternos a eles. 114 Caminhadas de universitários de origem popular “Caminho suave” Sidiclei Ferreira Leite* “Não sou nada, Nunca serei nada Não posso querer ser nada À parte isso tenho em mim todos os sonhos do mundo” Fenando Pessoa em “Tabacaria” por Álvaro de Campos Dezembro era o mês. O ano? Não me lembro! Mas creio que era 1979. Morávamos na fazenda de meu avô materno, Alberto Leite Sobrinho, e numa tarde vi meu pai chegar com alguns pacotes e entre os presentes de natal estava uma cartilha. Havia também cadernos, lápis e borracha. Estava tudo organizado para que eu e minha irmã mais nova fossemos para escola em fevereiro do ano seguinte. Se tratava de uma escola na zona rural, próxima a sede da fazenda Lavrada, onde moravam os meus avós maternos, Aberto e Sidonila, cuja segunda filha, Limercy era professora. Tia Cy, como é chamada, cuidava de todo o trabalho na escola, desde as matrículas até a organização da sala, que cuidadosamente era disposta em filas de acordo com a série, sendo que os alunos menores ficavam nas primeiras cadeiras. Concluí a primeira etapa da minha vida acadêmica nesta escola. Neste período o que mais me atraía era a volta da escola para casa. Eram dois quilômetros de caminhada por uma estrada no meio do cerrado onde não era difícil encontrar murici, mamacadela, goiabinha, jatobá, marmelada, cajuzinho, araçá, curriola e outros frutos do cerrado. Essas delícias, às vezes eram disputadas a tapas, mas se me recordo bem, ninguém chegou a se ferir seriamente. Longos e felizes anos, até que um dia fui acordado antes da sete da manhã. Deveria acompanhar meu pai, Jaci Gomes Ferreira, na capina da roça de arroz que agonizava no meio do mato. Juro que nunca apreciei esse tipo de trabalho, mas continuei até por volta dos doze anos, quando fui morar num garimpo de ouro com meu tio Jorge. O garimpo do Bié ficava no mesmo município a uns 95 km da fazenda onde ainda moravam meus avós, tios, pais e meus quatro irmãos mais novos, cujos nomes são Beatriz, Oberdã, Geam e Patrícia, a última com sérios problemas de saúde (hoje curada e mãe de dois lindos garotos). * Graduando em Filosofia pela UFG. Universidade Federal de Goiás 115 Foi a primeira vez que me afastei da casa paterna, fiquei no garimpo por mais ou menos dois anos e neste período as visitas à família eram pouco freqüentes, pois o trabalho era muito e nem sempre o jipe podia descer a serra. As chuvas em abundância dificultavam ainda mais qualquer viagem, então eu permanecia na região das minas por meses até que um dia, depois que Fábio, filho mais novo do tio Jorge, incendiou o barraco, a mina foi vendida e migramos para a capital. Morando na cidade, pude voltar a estudar, fui matriculado no Colégio Estadual Rui Barbosa, na quinta série. Não cheguei a concluir, pois a convivência com meus tios tinha se tornado não muito boa e acabei voltando para a fazenda Lavrada. De volta à convivência com meus pais e irmãos, meu espírito já se tornara inquieto, pois, passei por experiências adversas e até mesmo extremas. Como é sabido, em regiões de garimpos a violência é corriqueira, tive que me habituar a ver cadáveres e muitas brigas. Na capital o contato com essa vertente do comportamento humano cessou, mas, acabei por aprender outras coisas, inclusive a cozinhar e fazer o trabalho de garçom no restaurante do tio Jorge, aprendizado esse que mais tarde, com um pouco de aperfeiçoamento, me fez um profissional na arte culinária. A fazenda Lavrada de propriedade do meu avô Alberto (vulgo Betinho), pai da Rosa Izabel, que por sinal é minha mãe e que ainda não tinha sido apresentada, ficava no município de Pilar de Goiás e, como é de se presumir, era um espaço pouco atrativo para um adolescente cheio de vontade de mudar o mundo. Com muita insistência, meus pais permitiram que eu voltasse para Goiânia e comigo trouxesse minha irmã Bia. A capital Desta vez fui morar na casa da tia Maria, irmã de minha mãe. Era final da década de 1980. Chegamos no meio do ano e só voltei à escola no ano seguinte. Minha irmã havia regressado à fazenda, ela tinha outros planos. Preferiu fugir de casa com um rapaz dez anos mais velho, com quem teve duas filhas e vive até hoje. Matriculei-me no Colégio Estadual Damiana da Cunha para cursar a quinta série no turno noturno. Concluí o ano com êxito, mas como o colégio ficava longe só chegava em casa próximo da meia noite e o trabalho durante o dia na fábrica de pipocas era exaustivo. Resolvi me matricular num colégio próximo de casa e então comecei o ano seguinte no Colégio Estadual Joaquim de Carvalho Ferreira, uma instituição absolutamente desorganizada, com alunos violentos e pouca coisa à fazer. Não foi difícil fazer amigos e com eles pude experimentar uma quantidade incrível de situações novas. Comecei a usar drogas e a beber. Já chegava em casa de madrugada, fui advertido seriamente, mas já era tarde, minhas notas estavam péssimas e a recuperação só foi possível graças a insistência da tia Maria. Terminei o ano passando para a sétima série e com o sentimento de que o mundo estava errado e eu tinha a obrigação de mudá-lo. A sociedade capitalista mantém uma estrutura que em nada me agrada: minha grana era pouca, morava na periferia e via as pessoas em conflitos com a polícia para terem o direito a uma moradia. Enfim, minha rebeldia aumentava na mesma medida que conseguia visualizar essas mazelas e me sentia o próprio nada, incapaz, debilitado e covarde. Fazia de tudo para ser o nada que o sistema me havia reservado o dever de ser e por isso, passei dois anos sem ir à escola, trabalhava de madrugada e durante o dia fumava 116 Caminhadas de universitários de origem popular maconha e me embebedava com os amigos. Mudei mais uma vez de emprego e resolvi morar sozinho. Na ocasião trabalhava num grande restaurante e tinha um salário razoável. Aluguei um barracão numa região mais afastada, passei na loja comprei um colchão e fui para o endereço aguardar a entrega. Minha vida começava a mudar e neste momento era preciso aumentar a atenção nas minhas ações, pagar as minhas próprias contas e decidir o que fazer para melhorar o futuro. Foi quando fui convidado por um amigo à participar de um curso de teatro na antiga Escola Técnica Federal de Goiás, hoje CEFET (Centro Federal de Educação Tecnológica). No ano seguinte (1996) voltei para o Colégio Damiana da Cunha e as dificuldades eram muitas. Conciliar trabalho, escola e as aulas de teatro que terminavam as 18h. Precisava pegar um ônibus para chegar ao colégio, o tempo não era o suficiente e então tirava a maquiagem no ônibus e trocava de roupa na calçada da escola, chegava a ficar só de cuecas porque o porteiro não permitia a entrada com calça de lycra, era preciso usar jeans. Foram dois anos nesse ritmo intenso. Cheguei a ter problemas de saúde, estava muito magro, com olheiras e dificuldades para concentração e, seguindo o conselho de um professor, resolvi mudar para um local mais próximo e assim chegaria em casa mais cedo, possibilitando algumas horas a mais de sono. Excelente idéia! Podia agora começar o curso de dança contemporânea, o que me renderia mais cansaço. Terminei esta etapa da minha vida acadêmica, assim como exposto, ou seja, o caminho traçado até este ponto nada tinha de suave, era preciso então redirecionar minha vida. Troquei o cargo de auxiliar de cozinha um com maior rentabilidade, desta vez eu era responsável pela confecção dos pratos frios em um grande restaurante de Goiânia. Deixei as aulas de dança e mudei de colégio, isto é, me matriculei no Colégio Estadual José Honorato, na rua 59, no Centro, bem perto do CEFET. No Zézão, como chamávamos o colégio, cursei todo o segundo grau, fui reprovado no primeiro ano e consegui fazer dois bons amigos, um louco e o outro mentiroso, que me desculpem, Fernando Melo e Christiano Max Beline, mas, não minto e muito menos estou louco. Ainda fui membro do grêmio estudantil, me filiei a um partido e passei a me inteirar do funcionamento da escola. Desisti de me tornar ator profissional, neste caso, por me deparar com aqueles que envergonham os profissionais das Artes Cênicas em Goiás. Quando passei para o segundo ano, meus objetivos mudaram e surgia a necessidade de fazer um curso superior, mas por ignorância, não tinha a menor idéia do que fazer e como eu tinha uma admiração imensa pela sabedoria da professora de português e literatura, Maria Vera, pensava em cursar Letras e me tornar poeta. Como a crítica não perdoa, mudei de idéia e Psicologia na Universidade Católica de Goiás passou a ser meu intento. Maratona do vestibular As drogas e a bebida já não faziam parte da minha vida, me afastei da maioria das pessoas, me tornando assim um bitolado em trabalhar e economizar, para em fim ter um pouco de tranqüilidade financeira na faculdade. Sabia que as mensalidades eram caras e passar entre os primeiros e conseguir uma bolsa era uma possibilidade remota. Quase me matei de trabalhar e no ano que terminei o segundo grau, fiz as provas para o curso de Filosofia na UnB (Universidade de Brasília) e UFG (Universidade Federal de Goiás), en- Universidade Federal de Goiás 117 quanto aguardava os resultados deixei o trabalho, pois tinha economizado o suficiente para um ano ou mais. Nada consegui na UnB e fiquei em 4º lugar na fila de espera da UFG, foi um desespero total! Não tenho nenhuma habilidade com cálculos. Física e Matemática sempre me deram muito trabalho e era preciso melhorar meu conhecimento nestes campos. Comecei a estudar feito um louco sozinho, passava de dez a doze horas diárias estudando. Faltava alguns meses para as provas da UFG, consegui uma bolsa num curso pré-vestibular que a UEG (Universidade Estadual de Goiás) proporcionou a alunos de origem popular. Lá o que me interessava era somente aprender trigonometria, o professor era péssimo, perdia muito tempo assediando as menininhas e pouco me ajudou. Continuei a estudar sozinho. Vovô Betinho acabava de vender a fazenda Lavrada e vir morar em Goiânia, meus pais vieram primeiro e se instalaram numa casa emprestada do meu avô no mesmo bairro que eu morava, na ocasião eu morava com a tia Cy. Um mês depois chegavam meus avós e para que não ficassem sós, fui morar com eles e o ritmo dos estudos não cessou, passei na primeira fase do vestibular da UFG e mais ou menos um mês depois fiz as provas da segunda etapa e para minha surpresa, não continha nenhuma questão de exatas, creio que foi o único ano em que isso aconteceu. O resultado final só viria a ser conhecido algum tempo depois e por isso a jornada de estudos continuava, pois as provas do vestibular da UEG ainda estavam por fazer e eu estava inscrito para uma vaga do curso de História. A ansiedade e a obrigação de estudar tornava os dias uma loucura. Eu tinha poucas pessoas com quem conversar e o desespero aumentava. Foi então que o Fernando sugeriu que eu fosse trabalhar uns dias no restaurante do pai dele, o Sr. Antônio de Pádua, sendo que essa atividade me ajudaria a passar os dias e eles não precisariam contratar alguém para cobrir o período de férias de um dos colaboradores. Era um sábado, quando começou o almoço uma das clientes, cuja sobrinha tinha feito as provas da segunda etapa. Ela me perguntou se eu já tinha conferido a lista de aprovados e eu não pensei duas vezes antes de deixar todo mundo sem atendimento. Corri para a loja onde uma das clientes trabalha e tinha um ponto de acesso a Internet, a página da UFG estava congestionada e eu confuso: volto para dar seqüência ao trabalho no restaurante ou vou a procura desta lista? Fui a procura da lista e uma hora depois consegui abrir a página e conferir meu nome. Não pude conter o choro e a euforia, liguei pra casa e contei a novidade o que também levou boa parte da família a chorar, em especial as mulheres. Voltei ao restaurante peguei minhas coisas e ao chegar em casa, a faca, com a qual cortaram meus cabelos estava afiada. Novos desafios A documentação já estava pronta. E não tive dificuldade para efetivar a matrícula, no entanto, o primeiro ano de faculdade foi um ano de provações, tive sérios problemas com a didática de alguns professores, não entendia a linguagem usada nas aulas e os professores não permitiam uma aproximação informal, ou seja, não podia contar com orientações. O ritmo das leituras era apertado e os trabalhos se acumulavam. Por mais que eu tentasse não conseguia, tinha medo de ser ridicularizado em público, pois, não raras vezes pude ver e ouvir um dos professores humilhar meus(minhas) colegas por pequenos erros de português e se me dissessem para desistir de estudar Filosofia e fazer um curso de corte e 118 Caminhadas de universitários de origem popular costura o pavor poderia ficar pior. Pedi ajuda ao Pablo, um colega de origem semelhante, mas de inteligência brilhante e o coração do tamanho do mundo. Tudo deu certo, passei com provas de segunda época. Iniciou o segundo ano e as minhas dificuldades eram outras. Faltava grana para o ônibus e a bicicleta passou a ser o meio de transporte. Quarenta minutos para ir de casa ao Campus II da UFG e uma hora e meia para voltar, visto que não tinha dinheiro para o almoço e com a volta o relevo não colaborava. Não agüentava mais, vendi meu skate e tive como pagar as passagens de ônibus por mais ou menos um mês. No mesmo período, fiquei devendo na copiadora e escolhia caminhos alternativos para que a moça não me cobrasse. Como o curso de Filosofia é predominantemente de manhã, resolvi buscar trabalho, deixei currículos em vários estabelecimentos de ensino e algum tempo depois consegui uma vaga num colégio particular como professor de História. O salário não compensava, mas era o suficiente para aliviar os gastos que minha avó resolveu fazer com minhas passagens e alimentação. Terminei o segundo ano com reprovações e comecei o terceiro com um pouco mais de comodidade, sendo que, assumi também as aulas de geografia e com o salário dava até para comprar um livro ou outro. Consegui isenção no RU (Restaurante Universitário) e fui convidado para ser bolsista PIVIC, aceitei o trabalho voluntário. Neste mesmo ano viajei duas vezes por conta da universidade, e tais viagens me custaram o emprego, mas não me arrependo! Nunca concordei com o trabalho escravo, pois, existem outras formas mais dignas de garantir a sobrevivência. Procurei trabalho sem sucesso, mas, com a ajuda de alguns amigos e a habilidade com as panelas, passei a preparar jantares e almoços em confraternizações e no mês de dezembro de 2005 não me faltou o que cozinhar. O ano de 2006 começou e eu estava convicto de que seria mais uma batalha a ser vencida. E de fato foi um dos períodos mais difíceis. Meus avós se mudaram para uma chácara e não tive escolha, fui morar com meus pais e os dois irmãos. As cobranças não tardaram, era preciso conseguir um trabalho e ajudar com as despesas de casa. Meu tempo era pouco, tinha o estágio a ser concluído e aulas no período noturno, em resumo, não havia como trabalhar e aceitei ajuda de tios e logo em seguida o Christiano me ofereceu trabalho aos domingos na Feira Hippie (Uma das maiores feiras da América Latina. Acontece aos domingos na praça dos Trabalhadores em Goiânia com comidas tipicamente goianas, vestuário e artesanato). O esgotamento físico e o estresse eram visíveis. Eu já não estava suportando as aulas e os professores. Tinha consciência de que não conseguiria formar no final do ano, deixei o estágio e mais umas duas disciplinas, concluí os relatórios finais de PIVIC e só voltei à faculdade no momento em que as faltas passaram a acenar para reprovações. Conversa de corredor: aprendizagem Os corredores da faculdade são sempre o melhor lugar para jogar conversa fora, falar da vida alheia e contar piadas e confesso sem nenhuma timidez que muito me apraz essas atividades. E foi num momento desses que minha orientadora de PIVIC passou e percebeu minha empolgação com a atividade acima citada. Repreendeu-me seriamente. – Você deve procurar algo sério pra fazer! Venha até a minha sala para conversarmos! Ela não tinha muito pra dizer. Foi direta me entregando umas três ou quatro folhas, as quais continha um edital e ficha de inscrição para seleção de bolsistas de um programa Universidade Federal de Goiás 119 chamado Conexões de Saberes. - Mexa-se! O prazo para inscrições só vai até amanhã e você tem muitos documentos para reunir. Saí da sala desanimado, mas fiz a inscrição e só li o edital depois que fique sabendo que estava entre os 25 selecionados. Era abril de 2006 e a vida começava a me proporcionar emoções fortíssimas, estava por descobrir que a universidade abriga um número significativo de indivíduos com histórias muito semelhantes a minha. Como membro do Conexões de Saberes tive a oportunidade de conhecer pessoas que, mesmo sem as condições favoráveis ao bem viver, lutam com todas suas forças em prol do bem comum, isto é, do respeito à dignidade humana, por um mundo mais justo e feliz. A rotina de trabalho no Programa Conexões de Saberes foi intensa, mas sem queixas, segui cumprindo minhas tarefas e admito que fiz leituras e participei de atividades que muito me agradaram. Desde a realização do Seminário Local estou meio atônito com as dimensões do projeto e a cada dia me sinto mais comprometido. Como a vida não é composta só de fatos e atividades prazerosas, do mesmo modo que todos os seres viventes, estamos a navegar rumo ao desconhecido, de onde ninguém jamais regressou. O fato de nascermos nos garante uma viagem, para o nada, céu ou o inferno, de acordo com nossas ações ou crenças, esta última para quem acredita. E pelo que sei, meu pai acreditava. Não se tratava de um religioso fervoroso, mas tinha sua fé, que não foi o bastante para curar lhe um câncer, linfoma de Hodgkim, que segundo os médicos, na maioria dos casos é fatal. Não foi diferente com meu velho, pouco menos de três meses se passaram entre os primeiros sintomas e a primeira internação, que durou uma semana. A quimioterapia não mais poderia ajudá-lo e ele inevitavelmente teve que partir. É chegada a hora do embarque e implorar para que fiquem um pouco mais é puro egoísmo. Então nos restam as flores como último presente, o choro como consolo, as imagens como recordação da breve existência e os ensinamentos, que tendem a preencher o vazio que a ausência do pai deixa. 120 Caminhadas de universitários de origem popular