A identidade de um “povo enfermo”: a dialética

Transcrição

A identidade de um “povo enfermo”: a dialética
A identidade de um “povo enfermo”: a dialética identidadealteridade na construção da
Nação boliviana
Alessandra Gonzalez de Carvalho Seixlack
[Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História
Social da Cultura Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro]
SEIXLACK, A. G de C. A identidade de um “povo
enfermo”: a dialética identidade-alteridade na
construção da Nação boliviana. Revista Anima, v.
2, n. 3, 2012, p. 4-17.
Resumo
O processo de construção da identidade pressupõe
o diálogo, o confronto e a interação com o “outro”.
Assim sendo, o par identidade-alteridade é indissociável e nos permite traçar semelhanças e diferenças entre “além” e “aquém”, definindo o que somos em aproximação ou contraposição àqueles
que vivem ao nosso redor. Sendo constantemente
(re)construída em função do contexto e dos “outros” com os quais nos deparamos, a questão da
identidade não pode ser discutida fora do âmbito
da história. Portanto, a partir da análise do livro
Pueblo Enfermo, escrito por Alcides Arguedas
(1879-1946) no ano de 1909, objetiva-se abordar a
dialética identidade-alteridade no contexto da
primeira década do século XX na Bolívia. Busca-se
identificar como a identidade nacional boliviana,
ao ser formulada pela casta governante, dialogava
e interagia com a alteridade indígena quechaymara
e com a alteridade do branco europeu.
Palavras-chave: identidade, alteridade, Nação
boliviana
Abstract
The process of construction of identity presupposes
the dialogue, the confrontation and the interaction
with the “other”. As such, the pair identity-alterity
is indivisible and allows us to draw similarities and
differences between “beyond” and “beneath”,
defining ourselves by approximation or contraposition to those around us. By being constantly
(re)built through context and the “others” that we
face, the matter of identity cannot be discussed
outside the domains of history. Therefore, by analyzing the book Pueblo Enfermo, written by Alcides
Arguedas (1879-1946) in the year of 1909, we
objectify the approach of the identity-alterity dialectic in the context of the first decade of the XXth
century Bolivia. The aim is to identify in which way
Bolivian national identity, to be formulated by the
ruling caste, dialogued and interacted with both
the Indian quechaymara alterity and the white
European alterity.
Keywords: identity, alterity, bolivian Nation
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Considerações iniciais: teorizações acerca da identidade
Em setembro de 1815, durante o exílio em Kingston, o Libertador Simón Bolívar (17831830) redige a Carta de Jamaica, documento no qual realiza uma análise histórica sobre as
lutas de emancipação que vinham sendo conduzidas pelos “patriotas” no continente americano desde o ano de 1810. Em meio à defesa de um projeto de unificação dos novos Estados
e à tentativa de obter a cooperação europeia com o ideal da independência latinoamericana, um aspecto que adquire notoriedade no discurso de Bolívar é a sua preocupação
com a questão da construção de uma identidade propriamente criolla:
...mas nosotros, que apenas conservamos vestigios de lo que otro tiempo
fué, y que por otra parte no somos indios ni europeos, sino una especie
media entre los legítimos propietarios del país y los usurpadores españoles: en suma, siendo nosotros americanos por nacimiento y nuestros derechos los de Europa, tenemos que disputar éstos a los del país y mantenernos en él contra la invasión de los invasores; así nos hallamos en el caso
más extraordinario y complicado… (BOLÍVAR, 1815, grifo meu)
Tal constatação do Libertador evidencia sua inquietude diante da necessidade, imposta
pelo contexto de emancipação em relação à metrópole, de definição de quem seriam os
criollos; caso esse considerado extraordinário e complicado, já que os criollos não poderiam
ser definidos como “a raça primitiva da América”, tampouco como “os odiosos e tiranos espanhóis”. Carente de antecedentes históricos pré-definidos sobre o qual se constituir e associada à noção de uma “espécie intermediária”, a identidade criolla delinear-se-ia a partir do
diálogo e da interação com as duas alteridades mencionadas por Bolívar – o branco europeu
(o espanhol) e o índio –, mediante um processo de construção que pressupõe o incorporar e
o negar; o contrapor-se e o assemelhar-se.
A questão da construção de uma nova identidade, problematizada por Simón Bolívar
na Carta de Jamaica, representa aqui um ponto de partida tanto para uma breve discussão
acerca da proposta, levada a cabo sobretudo por historiadores e antropólogos, de alterar a
compreensão do sentido do termo identidade, quanto para a apresentação do objeto de
estudo e das intenções desse artigo.
“Dizer o outro é enunciá-lo como diferente – é enunciar que há dois termos, a e b, e
que a não é b [...] Mas a diferença não se torna interessante senão a partir do momento em
que a e b entram num mesmo sistema” (HARTOG, 1999: p.229). A percepção de que somos
diferentes e possuímos características/atributos próprios só se constitui a partir do momento em que nos deparamos com o “outro”. Portanto, a capacidade de nos compreendermos
enquanto entes diferenciados se dá através da experiência do contato, que torna possível
classificar, sistematizar e representar o “outro” com o qual nos confrontamos e nos aproximamos em um contexto histórico específico, ao mesmo tempo em que elaboramos reflexões acerca de nós mesmos. Isso equivale a dizer que é o encontro com a alteridade que nos
permite criar nossa identidade; identidade essa que não existe por si só, por ser sempre concebida de modo interativo e dialógico com aqueles “outros” que nos cercam. Assim, o par
identidade-alteridade é indissociável e nos permite traçar semelhanças e diferenças entre
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“além” e “aquém”, definindo o que somos em aproximação ou contraposição àqueles que
vivem ao nosso redor (HARTOG, 1999).
É justamente devido ao fato da identidade ser delineada a partir do confronto, do encontro e da interação, sendo (re)construída em função do contexto e dos “outros” com os
quais nos deparamos, que se torna impossível discutir a identidade fora do âmbito da história. Por muito tempo a antropologia e a própria disciplina histórica tenderam a uma conceituação essencialista, fixa e permanente da identidade, segundo a qual cada indivíduo ou
grupo seria dotado de um núcleo interior que permaneceria essencialmente o mesmo ao
longo de sua existência. Dessa forma, o conceito de identidade possuía uma dimensão estruturante, que obscurecia os processos de transformação em prol do predomínio de preceitos
estanques e ahistóricos.
Contudo, a mudança constante e acelerada que caracteriza as sociedades modernas
não tardaria a revelar a falta de operacionalidade dessa concepção naturalizante de identidade. Simultaneamente ao seu esvaziamento vem sendo consolidada no campo teóricometodológico a compreensão da identidade como um constructo e como uma “celebração
móvel”, “formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos
representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam” (HALL, 2004: p.13).
Nesse sentido, a identidade, dotada de uma dimensão processual, fluida e dialógica, responderia a condições socioeconômicas, políticas e históricas específicas, sofrendo constantemente deslocamentos, reelaborações e descontinuidades; afastar-se-ia assim da concepção
de pureza, autenticidade e essência para ingressar no terreno da história 1. Em suma, a relevância conferida ao circunstancial e ao contexto contribuiria para sublinhar tanto a historicidade da identidade quanto a importância da perspectiva diacrônica para a compreensão da
dinâmica social2
Ancorando-se nas novas perspectivas teóricas acerca da identidade, o presente artigo
buscará abordar a dialética identidade-alteridade em um contexto histórico específico – a
primeira década do século XX na Bolívia –, a partir da leitura de capítulos3 do livro Pueblo
Enfermo, escrito pelo pacenho Alcides Arguedas (1879-1946) e publicado no ano de 1909.
Tendo como base esse ensaio, que alerta para as debilidades de uma sociedade profundamente cindida, objetiva-se analisar como a identidade nacional boliviana, ao ser formulada e
forjada pela casta governante, dialogava e interagia com a alteridade indígena quechaymara
e com a alteridade do branco europeu4. Qual a atitude assumida pela classe dominante5 bo1
Tal reconfiguração conceitual não ocorre apenas no campo da identidade, mas também em relação a termos
como cultura, que passa a ser associada à noção de “fluxo” (deslocamento espaço-temporal), aproximando-se
assim da perspectiva historiográfica. (Hannerz, 1997).
2
Sobre as mudanças de abordagem acerca da identidade e os esforços da antropologia de recuperação da
dimensão espaço-temporal das transformações na dinâmica social, cf. Guillermo Wilde (WILDE, 2004).
3
Os capítulos a serem analisados neste artigo são: Psicologia de la raza indígena; Psicologia de la raza mestiza;
Psicologia regional e Psicologia del caracter indoespañol.
4
É importante frisar que o termo “alteridade do branco europeu”, tal como aqui utilizado, não pressupõe a
existência de uma única forma de “ser europeu”, assim como o termo “alteridade indígena” não negligencia a
existência de grupos étnicos nativos com substantivas diferenças entre si, sendo os quechuas e os aymarás os
mais numerosos na Bolívia. Porém, uma vez que este não é o foco do trabalho, não se realizará uma caracterização mais detalhada da diversidade étnica boliviana.
5
Categoria utilizada pelo historiador Antonio Mitre para referir-se à estrutura social boliviana de inícios do
século XX. Cf. Antonio Mitre (MITRE, 2003, 2010).
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liviana ao se deparar com o “outro” que representava a maioria avassaladora do país e ao se
comparar com o “outro” atrelado ao Velho Continente? O “boliviano”, na visão desses homens, seria definido a partir da assemelhação ou da diferenciação em relação ao branco
europeu e aos grupos indígenas que habitavam o território boliviano? Essas são algumas das
questões problematizadas por Arguedas em seu livro.
A identidade de um “povo enfermo”: Alcides Arguedas e a busca pela
unidade nacional
O dia em que façamos dos índios professores e mentores, teus herdeiros já
podem começar a escolher outra nacionalidade e se tornar chineses ou suecos, porque então a vida não lhes será possível nessas alturas. O índio nos
sufoca com sua maioria
Palavras do “Patrão”, Raza de Bronce, 1919
No ano de 1884 chegava ao fim a Guerra do Pacífico, conflito armado que envolveu as
Repúblicas do Chile, do Peru e da Bolívia e que teve conseqüências nefastas para esta última,
como a perda da província de Antofagasta e de uma saída soberana para o oceano Pacífico.
Foi no contexto de uma Bolívia moral e economicamente devastada pela guerra que Alcides
Arguedas escreveu Pueblo Enfermo, livro de caráter notadamente ensaístico, que intencionava fornecer aos bolivianos “la explicación de nuestra actual desgracia” (ARGUEDAS, 1986:
p.10) e buscar a solução para os inúmeros males existentes no país.
Graduado em Direito e em Ciências Políticas, Alcides Arguedas foi escritor, historiador,
político e embaixador da Bolívia em Paris, Londres e Madrid. Precursor do movimento indigenista latino-americano, Arguedas atentava em seus textos para a condição degradante em
que se encontravam os camponeses indígenas, realidade essa que gerava conflitos entre
índios e proprietários e instabilidade política no país. O incessante avanço dos latifúndios
sobre as terras comunais, principalmente no Altiplano e nos vales interandinos, assim como
a carga de contribuições que pesava sobre os nativos (tributo territorial, prestação viária
para a construção e conserto das estradas vicinais, e o serviço militar) foram responsáveis
pela onda de levantamentos que se alastrou na Bolívia ao longo da fase oligárquica (18891914)6. Visando restaurar os direitos ancestrais sobre a terra, combater a exploração e conquistar espaços de participação política, os indígenas organizavam revoltas armadas de
grandes proporções e massacres contra os latifundiários, fazendo com que o terror e o desassossego aflorassem entre a casta governante.
Portanto, apesar de acreditar que a enfermidade do povo boliviano atrelava-se a graves vícios historicamente enraizados, como a corrupção, a megalomania, o alcoolismo, o
egoísmo, a imoralidade, a fragilidade de sentimentos e a violência, Alcides Arguedas parece
considerar o esforço da classe dominante em estruturar o Estado-nação sobre paradigmas
raciais, que degeneravam a imagem do índio, o principal fator que desgraçava a Bolívia e
6
Cronologia utilizada pelo historiador Antonio Mitre para referir-se ao contexto de predomínio dos grandes
proprietários de terra sobre a vida política da Bolívia. Cf. Antonio Mitre (2003, 2010).
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comprometia sua estabilidade política, pois implicava na existência de uma sociedade profundamente cindida e na incapacidade de criação de uma identidade nacional coesa. Assim
sendo, Pueblo Enfermo problematiza a questão da construção da identidade boliviana no
início do século XX, alertando para a impossibilidade de se fundar a unidade da Nação7 a
partir da crença na superioridade racial e retomando o próprio discurso sobre a raça para
realizar tenazes críticas às oligarquias governantes e ao seu modo de pensar e agir.
Os estudos científicos sobre as diferenças raciais 8, elaborados por teóricos como Arthur de Gobineau e Gustave Le Bon, obtiveram ampla penetração entre as castas dominantes ao longo do século XIX e das primeiras décadas do século XX na Bolívia, transformando o
discurso acerca da superioridade racial em um paradigma ideológico para a construção do
Estado-nação e da identidade nacional boliviana. A existência de uma suposta hierarquia
racial, que legitimava a posição privilegiada da raça branca em comparação às demais, resultou na elaboração de uma identidade boliviana assentada no diálogo racialmente condicionado com os elementos europeu e indígena. Portanto, as teorias raciais que orientavam a
ação política das oligarquias teriam um papel decisivo na estruturação tanto de relações
hierárquicas entre as raças no país, como do confronto que o “boliviano” travaria com a alteridade do branco europeu e com a alteridade indígena quechaymara, constituindo-se nesse processo enquanto identidade diferenciada a partir da incorporação ou da negação desses “outros”.
De acordo com um censo publicado pelo governo boliviano em 1900, a população do
país encontrava-se distribuída em quatro raças principais: “1º. La indígena; 2º. La blanca,
descendiente de la extranjera, principalmente de la española; 3º. La mestiza, que es fruto de
las dos anteriores; y 4ª. La negra, cuja proporción es bastante reducida” (ARGUEDAS, 1986:
p.35). Contudo, Alcides Arguedas alerta para certa inadequação existente nessa categorização racial do povo boliviano, a partir do momento em que
en Bolivia [... ], salvo la extremada perspicacia de los autores de dicho censo, no se sabría precisar, ni aun deslindar, las diferencias existentes entre
las llamadas raza blanca y raza mestiza. Fisicamente ambas se parecen, o
mejor, son una (ARGUEDAS, 1986: p.36, grifo do autor).
A semelhança entre raça branca e raça mestiça ressaltada por Arguedas, decorrente do
baixo fluxo migratório europeu recebido pelo país e do alto grau de cruzamento e penetração entre os sangues índio e branco, levava-o a considerar que a raça branca, “salvo detalles
de orden moral, puede ser perfectamente incorporada a la mestiza” (ARGUEDAS, 1986:
p.38). Nesse sentido, o autor destaca a quase absoluta impossibilidade de se falar em uma
raça branca pura na Bolívia de inícios do século XX, pois
7
Utilizo ao longo do artigo a “Nação” como letra maiúscula por tratá-la como um conceito, atrelado ao contexto histórico específico analisado: a primeira década do século XX na Bolívia. A História conceitual alemã (Begriffsgeschichte) destaca a importância do contexto para o estudo dos processos sincrônicos e diacrônicos.
Sobre essa abordagem teórica, cf. Reinhart Koselleck (KOSELLECK, 1992).
8
No âmbito das teorias raciais o termo “raça” é compreendido sob o viés do determinismo biológico, destacando a prevalência dos elementos hereditários sobre os elementos históricos e dos traços inatos sobre as
transformações histórico-culturais. Sobre a politização das teorias raciais cf. Renato da Silveira (SILVEIRA,
1999).
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las razas, por otra parte y como lo han hecho notar Novicow, Lacombe, Colajanni, Finot y otros, han podido existir puras, en tiempos de la prehistoria; hoy, sea por pacífica penetración, por conquista o cualesquiera otras
causas, se han fundido, hecho una, por decirlo así, y sólo quedan resabios
en sitios aún no invadidos por la actividad de los pueblos colonizadores, y
su cultura es poco menos que rudimentaria (ARGUEDAS, 1986: pp.37-38,
grifo do autor)
Por conseguinte, embora a raça branca houvesse fisicamente desaparecido com a mestiçagem, Arguedas identificava na classe governante uma resistência de “ordem moral” em
legitimar seu caráter fundamentalmente mestiço, já que “una gran parte de este pueblo
dícese de descendencia española aunque en el fondo sea de origen indígena con poco o casi
nada de sangre azul en las venas” (ARGUEDAS, 1986: p.37, grifo do autor). Assim sendo,
mesmo que fossem descendentes da raça indígena e que em suas veias corresse “pouco ou
quase nada de sangue azul”, as oligarquias bolivianas recusavam-se a se reconhecerem como mestiças, pois acreditavam que a posse de antepassados indígenas conferir-lhes-ia um
estigma inapagável. Logo, a noção de que o índio exerceria uma nefasta influência no enxerto espanhol impedia que a identidade nacional boliviana fosse associada ao hibridismo e à
mestiçagem9. Nesse contexto específico, os “bolivianos” definir-se-iam pelo compartilhamento da diferença racial em relação aos índios. Formulada e forjada em consonância com a
ideologia e com os interesses da casta dominante, a identidade boliviana implicaria no distanciamento e na negação da alteridade indígena quechaymara, ao mesmo tempo em que
tendia à aproximação e à incorporação dos padrões raciais e culturais da alteridade europeia. O boliviano se reconheceria enquanto ente diferenciado a partir do confronto e do diálogo
com o “outro” índio e com o “outro” europeu: rechaçado, aquele representava uma alteridade irredutível ao “eu”; exaltado, este praticamente se transmutava em extensão e em
parte integrante do “eu”.
Arguedas insiste em destacar a ausência de plausibilidade no discurso adotado pela
casta governante boliviana; embora a Bolívia houvesse recebido pouquíssima imigração europeia e constituíssem os indígenas a maioria avassaladora da população, insistia-se em representá-la como um país europeizado, negando-se qualquer grau de mestiçagem de seu
povo e considerando-se a diversidade étnica um obstáculo ao progresso:
… ese municipio *Oruro] *…+ votaba una ordenanza obligando al indio a
abandonar el traje típico para vestir a la europea cual si la transformación
racial fuera sólo cuestión de ropa. Es que hay varias maneras de comprender el progreso *…+ en Bolivia el municipio de Oruro dictaba esa ordenanza
aboliendo el traje nacional en los indios para dar muestras de progreso lo-
9
Os termos “hibridismo” e “mestiçagem” são aqui empregados no sentido biológico de uma composição racial
mista da população. Sabemos que no mundo contemporâneo a dimensão exclusivamente biológica dessas
categoriais perde sua operacionalidade, pois não permite pensar as dinâmicas de contato intercultural, nem a
adoção de posições de identificação deslocadas, múltiplas e hifenizadas na sociedade globalizada. Sobre o
processo de mestiçagem e de interação entre as culturas na contemporaneidade cf. Serge Gruzinski (GRUZINSKI, 2001).
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cal y obligándoles a vestir ‘el traje moderno de los pueblos civilizados
(ARGUEDAS, 1986: pp.69-70, grifo meu)
Portanto, para que a Bolívia ingressasse no conjunto das nações civilizadas (por nações
civilizadas, entendam-se nações europeias), era imprescindível tanto dissociá-la de qualquer
manifestação cultural que trouxesse à memória sua origem indígena quanto dissimular o
caráter mestiço de grande parte do seu povo. Assim sendo, desenvolveu-se ali uma configuração bipolar da ideia de nação, que remetia à existência, sob a cobertura do Estado, de duas repúblicas dispostas hierarquicamente, uma de criollos e outra de índios10, de modo que a
classe dominante, em consonância com o arsenal ideológico da época, identificava a Nação
boliviana exclusivamente com as instituições políticas, representações culturais e padrões
raciais da Europa. Ao fim e ao cabo, o sistema de duas repúblicas resultava em uma dominação implacável da “raça branca” sobre a raça indígena, enquanto o mestiço (e seu tipo representativo, o cholo11) poderia facilmente penetrar no círculo oligárquico, já que “el cholo
(raza mestiza) en cuanto se encumbra de un medio ya es señor, y, por lo tanto, pertenece a
la raza blanca” (ARGUEDAS, 1986: p.36, grifo do autor). Por conseguinte, embora o mestiço
carregasse a imagem da ilegitimidade na sociedade boliviana, sê-lo não implicava em uma
barreira racial e social intransponível, semelhante àquela imposta aos indígenas, pois
los mestizos no encuentran gran oposición cuando invaden el círculo arbitrario y convencional creado por un pequeño grupo que se considera superior en sangre, no porque la calidad de ésta sea distinta a la otra injertada,
sino por la nominación, el solo distintivo que allí parece caracterizar esta
diferencia que se pretende ver en la población indígena boliviana. Una familia X o Z, por ejemplo, salida de las clases bajas y mezclada a la que dispone de prestigio, por serie de causas políticas o económicas, llega a crearse una situación especial y de hecho entra a formar parte de las altas clases
sociales, y su descendencia ya pertenecerá a la nobleza y aun no dejará de
vanagloriarse por ello (ARGUEDAS, 1986: p.36, grifo do autor)
Uma vez enriquecido, o mestiço confundia-se facilmente com o branco, de modo que
os “senhores de hoje”, os quais se dirigiam com desprezo aos cholos de baixo, constituíam
na realidade os “mestiços de ontem”. Portanto, os índios eram os únicos que permaneciam
excluídos desse “jogo de mobilidade”, jamais participando dessa metamorfose racial e social.
Assim, na sociedade boliviana de inícios do século XX seria inconcebível “imaginar um índio
ministro, deputado ou presidente *...+ Antes ‘teriam que ser invertidas todas as leis da mecânica celeste’” (MITRE, 2003: p.132). Impossibilitados de se mimetizarem fazendo-se brancos, os indígenas permaneciam como uma alteridade irredutível no interior da sociedade
boliviana, subjugados e dominados por uma classe governante que, se reconhecendo como
gente blanca, ocupava o topo da hierarquia social. Conclui-se que, nesse contexto, a raça
10
Sobre o sistema de duas repúblicas na Bolívia cf. Antonio Mitre. (MITRE, 2010).
Segundo Arguedas, o nome “cholo” provém do costume adotado por um cavalheiro espanhol, que havia
viajado pela Itália, de chamar os mestiços de “jovencitos”. A palavra “cholo” significa “pequeno e digno de
proteção”.
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representava o principal fundamento do poder social e político das castas dominantes12; o
mito da superioridade racial constituía a base da ascendência das oligarquias sobre os índios,
justificando a exploração da população indígena, o avanço do latifúndio sobre suas terras, o
aumento da cobrança de tributos e o emprego maciço da violência física:
Para seres de semejante psicología, el indio es arcilla vil, larva de inmundos
bichos, lo despreciable de la fauna humana. Si alguna utilidad se puede sacar de él, es hacerle servir de bestia económica y pasiva. Lo explotan, por lo
tanto, hasta lo inconcebible. De lo que ante todo se preocupan, es de despojarle de su dinero, y esto impunemente, aunque nunca faltan pretextos
bien atendibles y muy excusables: las contribuciones, los impuestos *…+
Hoy, quien quiera obtener servicios de un indio, ya sabe la manera de proceder. Es simple: consiste en descargar buena tanda de golpes sobre sus
espaldas; y si le rompe la cabeza o hace sangrar alguno de sus miembros,
mucho mejor: así será servido con mayor diligencia… (ARGUEDAS, 1986:
p.55)
Percebe-se aqui a articulação entre a divisão racial e a estrutura de poder existente na
Bolívia: a superioridade dos patrões enquanto raça legitimava sua atitude autoritária e arbitrária perante os grupos indígenas. O índio, alteridade que a identidade boliviana se esforçava por negar, era equiparado a um animal/objeto a ser explorado, sendo visto
con absoluta indiferencia por los poderes públicos, y sus desgracias sólo
sirven para inspirar rumbosos discursos a los dirigentes políticos; pero en el
fondo están convencidos de que [la pobre raza] sólo puede servir para ser
explotada… (ARGUEDAS, 1986: p.69).
Entretanto, se a casta governante classificava, sistematizava e compreendia o índio
enquanto alteridade, forjando nesse confronto a identidade nacional boliviana, Arguedas
salienta que a maneira como os índios representavam e definiam para si os “brancos” não
era muito diferente: os patrões, responsáveis pelo sofrimento e pela pobreza que assolavam
as comunidades nativas, constituíam para os indígenas o “outro” a ser negado e combatido13. Tal relação nos permite perceber como a construção da identidade/alteridade não é
feita via fluxo unidirecional, constituindo um processo de tradução recíproca do “outro” a
partir do “eu”14. Assim sendo, o “branco” também representava uma alteridade para o índio,
que, diante de sua presença, permanecia muitas vezes desconfiado, impenetrável e distante.
Para Arguedas, os canais de comunicação pacífica entre exploradores e explorados estavam
cessando, já que o índio não mais se submetia e confiava naquele que o reprimia violentamente. Resultado de um longo processo de animosidade e de dominação, na Bolívia de iní12
Sobre a raça enquanto categoria discursiva em torno da qual se organiza um sistema de poder socioeconômico, de exploração e de exclusão cf. Stuart Hall (HALL, 2003).
13
Para Arguedas, a aversão em relação aos brancos era especialmente forte entre os índios aymará, já que os
quéchuas demonstravam em certos momentos maior adaptabilidade à vida comum com o “branco”, embora
estivessem igualmente submetidos à brutalidade e à exploração.
14
Para uma abordagem mais teórica acerca dos processos de tradução recíproca cf. Cristina Pompa. (POMPA,
2003).
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cios do século XX índios e “brancos” constituíam alteridades mútuas e experienciavam uma
quase total impossibilidade de negociação. Não havendo praticamente espaço para o trabalho de mediação a que aspira toda ideologia política, o índio buscava libertar-se do jugo explorador mediante a organização de grandes rebeliões e massacres, que atemorizavam a
classe dominante.
Nessa sociedade profundamente cindida, a inexistência de algo que aproximasse exploradores e explorados e de uma brecha por onde constituir o pacto entre eles levava os
índios a “desconfiar siempre y eternamente, primero de los que ejercen autoridad, después
del cura y luego del patrón, porque no siempre los patrones son buenos, ni humanos, ni piadosos” (ARGUEDAS, 1986: p.55). Na visão de Arguedas, os limites de diálogo entre patrões e
índios tornavam iminente a eclosão de uma “guerra de raças”, que ameaçava desagregar
ainda mais a sociedade boliviana. Se aparentemente o índio comportava-se de modo submisso, vivendo “sin entusiasmos, sin anhelos, en quietismo netamente animal” (ARGUEDAS,
1986: p.45), por trás dessa atitude fluía o antigo ódio da raça, prestes a quebrar a tênue ordem social, pois “cuando se siente muy abrumado o se atacan sus mezquinos intereses, entonces protesta, se irrita y lucha con extraordinaria energía” (ARGUEDAS, 1986: p.45). Longe
de se resignar com sua condição de pobreza e exploração, o índio perseguia com avidez a
sua vingança, respondendo à brutalidade e à violência da classe dominante com sublevações, assassinatos e roubos:
Sojuzgado, pues, el indio por diferentes creencias contradictorias, enteramente sometido al influjo material y moral de sus yatiris, de los curas, patrones y funcionarios públicos, su alma es depósito de rencores acumulados de muy atrás *…+ Cuando dicha explotación, en su forma agresiva y
brutal, llega al colmo y los sufrimientos se extreman hasta el punto de que
padecer más sale de las lindes de la humana abnegación, entonces el indio
se levanta, olvida su manifiesta inferioridad, pierde el instinto de conservación, y oyendo a su alma repleta de odios, desfoga sus pasiones y roba, mata, asesina con saña atroz. Autoridad, patrón, poder, cura, nada existe para
él. La idea de la represalia y del castigo, apenas si le atemoriza, y obra igual
que el tigre de feria escapado de la jaula (ARGUEDAS, 1986: p.49)
Ansioso por se libertar da servidão e do jugo do patrão, o índio abandonaria sua aparente passividade e conformidade, sendo impelido pelo ódio e pelo desejo de vingança a
empregar a violência física para alcançar seus fins. Portanto, em uma sociedade boliviana
marcada pelo intenso conflito entre as raças – entre “brancos” e índios, entre exploradores e
explorados –, Arguedas atenta para a problemática da construção de uma identidade nacional coesa. Ao promover uma definição de “nação” baseada em conteúdos excludentes de
natureza racial e ao adotar a ideia de superioridade da raça branca como um paradigma ideológico, a casta governante atribuía ao indígena uma imagem de inferioridade, barbaridade,
esterilidade e incompatibilidade com a modernidade e com a civilização, transformando-o
em uma alteridade radical a ser negada; ao mesmo tempo, espelhava-se no europeu e em
seus padrões culturais e raciais para forjar a identidade boliviana, incorporando-o e assimilando-o enquanto elemento conformador do “ser boliviano”. Nesse sentido, Arguedas atesta
a impossibilidade de fundar a unidade da Nação boliviana sobre a crença na superioridade
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racial, pois, além de impedir a integração do índio, eliminando-o da configuração nacional
político-simbólica, intensifica a rivalidade entre as raças:
El medio geográfico y la raza – lo hemos dicho – son los factores predominantes que han contribuido para que Bolivia, el menos conocido de los
pueblos sudamericanos, haya llevado esa vida sin relieve y llena de agitaciones estériles y destructoras en el campo de la política (ARGUEDAS, 1986:
p.313)
Assim sendo, o autor considera que somente uma ideia superior à de raça seria capaz
de aglutinar o conjunto da sociedade – índios, “brancos” e cholos –, contribuindo para a estabilidade política da Bolívia e para a transformação do índio em um aliado. Torna-se aqui
bastante nítido como Arguedas abala os pilares do regime oligárquico apoiando-se justamente sobre o mito da raça; logo, em Pueblo Enfermo, o discurso sobre a raça é retomado e
projetado como forma de crítica aos grupos dominantes. O autor aborda a questão da raça
de modo distinto a teóricos como Gustave Le Bon, já que não considera os elementos históricos como consequência dos elementos hereditários. Nessa chave de compreensão, Arguedas rompe com o determinismo biológico que alimentava a ideologia das castas governantes
e consolida a noção de que o temperamento dos grupos é forjado pela sedimentação de
práticas sociais. Nesse sentido, após séculos de exploração, o caráter do índio teria adquirido
la dureza y la aridez del yermo. También sus contrastes, porque es duro,
rencoroso, egoísta, cruel, vengativo y desconfiado cuando odia. Sumiso y
afectuoso cuando ama. Le falta voluntad, persistencia de ánimo, y siento
profundo aborrecimiento por todo lo que se le diferencia (ARGUEDAS,
1986: p.42)
Por conseguinte, o literato pacenho deslegitima o argumento segundo o qual a raça
indígena possuiria traços inatos que determinavam sua inferioridade perante os “brancos”,
chegando à conclusão de que a origem das diferenças sociais entre patrões e índios poderia
ser encontrada na história boliviana, e não na ideia de superioridade racial. Arguedas destaca que a chegada dos invasores espanhóis, brutais e dominados por apetites ferozes, teria
levado os índios a buscarem “su defensa en los vicios femeninos de la mentira, de la hipocresía, la disimulación y el engaño”, ressaltando todavia que “estos mismos vicios no son
innatos en la raza. Los ha adquirido por contagio” (ARGUEDAS, 1986: p.64). Portanto, o estado de pobreza, de submissão e de vícios em que se encontravam os grupos indígenas da Bolívia não poderia ser justificado pelo viés da inferioridade racial, mas sim pelo processo de
exploração levado a cabo pelos conquistadores europeus e pelos patrões, que transformou
o índio em um indivíduo “receloso y desconfiado, feroz por atavismo, cruel, parco, miserable, rapiñesco” (ARGUEDAS, 1986: p.45).
Em suma, em seu programa de cura do “povo enfermo”, Alcides Arguedas dirige tenazes críticas à classe dominante e à sua incapacidade de forjar a unidade da Nação boliviana.
Ao converter em ideologia as teorias científicas sobre as diferenças raciais, a casta governante definia a identidade boliviana a partir do diálogo e do confronto com a alteridade do
branco europeu e com a alteridade indígena quechaymara: enquanto aquela era celebrada,
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constituindo uma fonte de inspiração e um modelo de conversão para os “bolivianos”, esta
era radicalmente negada, sendo classificada como possuidora de alto grau de dessemelhança e de inferioridade em relação aos “bolivianos”. Diante desse nítido apartamento entre as
raças, Arguedas alerta para a ameaça que uma sociedade profundamente cindida representava tanto para a construção de uma Nação coesa quanto para o alcance de um mínimo consenso entre patrões e índios. Portanto, além de refletir sobre a condição de exploração dos
grupos indígenas e sobre as consequências nefastas de sua marginalização, Arguedas combate a tese de que a raça indígena possuiria traços inatos de degradação e de inferioridade,
buscando regenerar a imagem do índio na sociedade boliviana. E recorda que, ao ser recrutado para defender a Bolívia na Guerra do Chaco15, “donde el indio supo luchar y morir por
una patria que desconoce y que nunca hizo nada por él” (ARGUEDAS, 1986: p.71), foi o
índio, “el pobre indio, el paria, el explotado, el que nunca pide nada para si, quien soportó,
hasta el último casi todo el peso de la campaña” (ARGUEDAS, 1986: p.72).
Considerações finais: O despertar de uma nova identidade boliviana
Bolivia no está enferma de otra cosa que de ilogismo y del absurdo de conceder la fuerza y la superioridad aquienes no la poseen y de negar los eternos derechos de la fuerza a sus legitimos representantes
Franz Tamayo
Em Pueblo Enfermo, Alcides Arguedas retrata que, na primeira década do século XX na
Bolívia, o índio era representado e classificado pela casta governante como o “outro negativo”, alteridade a ser combatida e negada. Nesse contexto, a “branquidão” somática e cultural constituía um bem a ser perseguido, pois simbolizava a ascensão social, enquanto a “indianidade” era considerada um estigma desvalorizador. Dessa forma, a identidade nacional
boliviana caracterizava-se por uma recuperação extremamente negativa da imagem indígena. Entretanto, vimos que as identidades não são entidades fixas, autônomas e autosuficientes, mas sim “flexíveis e, em casos extremos, contingentes às qualidades do contexto, que fazem avançar ou retroceder suas fronteiras segundo os ciclos históricos de expansão econômica e abertura dos espaços de poder governamental” (GARCÍA LINERA, 2010:
p.184). É bem verdade que até o início do século XXI a estigmatização por meio da indianização era oficialmente legitimada pelo Estado boliviano, naturalizando práticas de exclusão
econômica e legitimando monopólios político-culturais. O Estado republicano, que se definia
como monoético, monocultural e monolinguístico, recusava-se a incorporar as comunidades
indígenas à vida nacional. Todavia, podemos identificar na ascensão de Evo Morales Ayma
ao governo, no ano de 2006, um início de transformação dessa realidade excludente e racista e o despertar de uma nova identidade nacional boliviana.
15
Conflito entre Bolívia e Paraguai, ocorrido entre os anos de 1932 e 1935. Assim como a Guerra do Pacífico, a
Guerra do Chaco deixou marcas indeléveis na sociedade boliviana, devido à perda e à anexação de parte do
território boliviano pelos paraguaios. Arguedas refere-se a essa guerra já que o livro analisado, em sua terceira
edição, contém novos comentários feitos pelo autor no ano de 1936.
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Em um país onde 62% dos habitantes se autoidentificam como integrantes de um povo
originário16, a eleição do líder cocalero17 Evo Morales com 53.7% dos votos (o maior percentual obtido por uma chapa presidencial desde a restauração da democracia em 1982) possui
um significado sem precedentes na história boliviana. A chegada de um indivíduo que se
reconhece como descendente dos aymarás à presidência da Bolívia representou o ponto de
partida tanto para a tentativa de implementação de um governo que permitisse a inserção
do indígena na sociedade civil boliviana, quanto para o esforço de fundação de uma nova
identidade nacional boliviana, que recuperasse positivamente a figura do índio e valorizasse
as tradições indígenas. Já em seu discurso de posse, proferido em La Paz no dia 22 de janeiro
de 2006, Morales explicita sua crítica àquele modo de pensar historicamente enraizado na
Bolívia, que nega o reconhecimento dos grupos indígenas como membros integrantes da
Nação boliviana:
Los pueblos indígenas – que son mayoría de la población boliviana –, para
la prensa internacional, para que los invitados sepan: de acuerdo al último
censo del 2001, el 62.2% de aymarás, de quechuas, de mojeños, de chipayas, de muratos, de guaraníes. Estos pueblos, históricamente hemos sido
marginados, humillados, odiados, despreciados, condenados a la extinción. Esa es nuestra historia; a estos pueblos jamás los reconocieron como
seres humanos, siendo que estos pueblos son dueños absolutos de esta
noble tierra, de sus recursos naturales *…+ Amenazados, condenados al exterminio estamos acá, estamos presentes. Quiero decirles que todavía hay
resabios de esta gente que es enemiga de los pueblos indígenas, queremos
vivir en igualdad de condiciones con ellos, y por eso estamos acá para
cambiar nuestra historia, este movimiento indígena originario no es concesión de nadie; nadie nos ha regalado, es la conciencia de mi pueblo, de
nuestro pueblo (grifo meu)
Tais críticas de Evo Morales elucidam duas importantes pautas de seu governo: a superação da condição de opressão, marginalização e humilhação dos povos indígenas e a luta
pelo reconhecimento da igualdade de condições. Entretanto, Morales não busca resolver
esse problema histórico mediante vinganças ou criação de novas discriminações; o presidente argumenta que o movimento indígena originário não é excludente, estando comprometido a respeitar e admirar “todos los sectores, sean profesionales o no profesionales, intelectuales y no intelectuales, empresarios y no empresarios”, pois “todos tenemos derecho a
vivir en esta vida, en esta tierra”. Nesse sentido, o governo de Evo Morales propõe-se a fundar um Estado boliviano multinacional, multicivilizatório e pluricultural18, no qual a diversi16
Dados do censo boliviano de 2001. Disponível em: <http://www.ine.gob.bo/indice/indicadores.aspx>.
Refere-se ao movimento dos produtores de coca na Bolívia, constituído em sua origem por indígenas do
planalto boliviano e por operários demitidos das minas de Potosi, Oruro e Chiuquisaca. Os cocaleros pleiteiam
a descriminalização da folha de coca junto ao Estado boliviano e aos organismos internacionais. Os camponeses
indígenas atribuem à folha de coca uma conotação cultural, valorizando-a como parte de seu sistema simbólico. Os ex-mineiros, com sua experiência sindical, defendem a produção de coca como uma fonte legítima de
renda.
18
Sobre o projeto de construção de um Estado multinacional e multicivilizatório na Bolívia, cf. Álvaro García
Linera (GARCÍA LINERA, 2010).
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dade étnico-cultural seja verdadeiramente compreendida e as antigas “vozes marginais”
adquiram espaço para manifestação. Na visão do vice-presidente boliviano Álvaro García
Linera, tal compromisso significa romper com a república excludente, isto é,
romper com a esquizofrenia de elites que durante séculos vêm sonhando
em ser modernas e brancas, que copiam instituições e leis modernas para
aplicá-las numa sociedade em que os indígenas são a maioria e a modernidade mercantil e organizativa é inexistente para mais da metade da população (GARCÍA LINERA, 2010: p.196)
A Nova Constituição Política da Bolívia, em vigor desde fevereiro de 2009, consolida as
conquistas obtidas pelos grupos indígenas com a chegada de Morales ao poder. Já em seu
preâmbulo, o novo Estado boliviano é caracterizado como um “Estado de direito plurinacional comunitário”, garantidor do pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e lingüístico, reconhecedor da existência das nações indígenas originárias e assegurador da participação efetiva dos índios em todos os níveis do poder estatal e da economia:
Poblamos esta sagrada Madre Tierra con rostros diferentes, y comprendimos desde entonces la pluralidad vigente de todas las cosas y nuestra diversidad como seres y culturas. Así conformamos nuestros pueblos, y
jamás comprendimos el racismo hasta que lo sufrimos desde los funestos
tiempos de la colonia *…+ Dejamos en el pasado el Estado colonial, republicano y neoliberal. Asumimos el reto histórico de construir colectivamente
el Estado Unitario Social de Derecho Plurinacional Comunitario, que integra y articula los propósitos de avanzar hacia una Bolivia democrática, productiva, portadora e inspiradora de la paz, comprometida con en desarrollo
integral y con la libre determinación de los pueblos (grifo meu)
Ao considerar a diversidade etnográfica e sociológica como característica fundamental
do povo boliviano, a Nova Constituição legitima “las naciones y pueblos indígena originario
campesinos” como integrantes da Nação (artigo 3), assim como proclama seu direito “a la
autonomía, al autogobierno, a su cultura, al reconocimiento de sus instituciones y a la consolidación de sus entidades territoriales” (artigo 2). Dentre as conquistas indígenas encerradas
pela nova ordem constitucional destacam-se: o reconhecimento de todos os idiomas nativos
como idiomas oficiais do Estado, juntamente com o castelhano; a declaração da wiphala19
como símbolo do Estado, juntamente com a bandeira tricolor tradicional; a criação de uma
cota de parlamentares indígenas; a determinação do direito dos índios à terra comunitária e
a legitimação da propriedade exclusiva dos nativos sobre os recursos florestais de sua comunidade.
Contudo, ao propor a integração da figura do índio à identidade nacional boliviana, o
governo Morales depara-se com a forte oposição dos departamentos orientais, liderados por
Santa Cruz, onde grande parte da população permanece se reconhecendo exclusivamente
como descendente de espanhóis e, consequentemente, classificando os indígenas como
“alteridade” presente no interior do território boliviano. Essa mentalidade está expressa na
19
Emblema que simboliza o multiculturalismo dos povos andinos e cuja origem remonta à época pré-incaica.
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frase de Gabriela Oviedo, Miss Bolivia 2003: proveniente do departamento de Santa Cruz,
alegava representar a “la outra Bolívia, la no indígena”, já que “no todos somos indios en
Bolívia, en Santa Cruz somos altos, blancos y sabemos hablar inglés”. Portanto, conclui-se
que os desafios de criação de uma unidade nacional continuam existindo na Bolívia, assim
como “a definição da identidade nacional continua sendo até hoje tema subjacente à disputa política” (MITRE, 2010: p.233), cabendo a Evo Morales enfrentar os desafios de governar
para “todos os bolivianos”.
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