Figuras e figurinhas em 1964: antes e depois do golpe

Transcrição

Figuras e figurinhas em 1964: antes e depois do golpe
Figuras e figurinhas em 1964: antes
e depois do golpe contra o Brasil
CARLOS LOPES
Aqui estão reunidas todas as seções deste trabalho, publicado entre 16 de abril e 27 de junho de
2014 na HORA DO POVO. Provavelmente, mereceria revisão (e ampliação) em vários pontos, sobretudo
a inclusão de trechos que foram escritos, mas, pelas características de uma publicação em jornal,
acabaram por ser retirados, pois tornariam a leitura mais difícil. No entanto, por falta de tempo, limiteime a algumas correções de estilo, com uma exceção - que, por sinal, não estava escrita: na sétima parte,
incluí referência a algumas considerações de Celso Furtado, em um de seus livros de memórias.
A dedicatória está ao final. Pensei, além disso, em colocar uma epígrafe – e foi quase óbvia a
lembrança da frase de Kurtz em “The Heart of Darkness” (O Coração das Trevas), de Joseph Conrad,
popularizada pela interpretação de Marlon Brando, na adaptação cinematográfica de Francis Ford
Coppola (“Apocalypse Now”): “The horror! The horror!”. Conrad, nessa frase, claramente sintetizou a
essência desumana do colonialismo.
Porém, pensando bem, mais apropriada, pelo decorrer dos acontecimentos após 1964, e,
principalmente, após 1985, é aquela que foi usada por Eloy Dutra, em seu livro sobre a interferência da
CIA nas eleições de 1962. Tem, além disso, a vantagem da autoria nacional:
O Brasil não é “isso”. É “isto”. O Brasil, senhores, sois vós. O Brasil é esta assembleia. O Brasil é este
comício imenso, de almas livres. Não são os comensais do erário. Não são as ratazanas do Tesouro. Não
são os mercadores do parlamento. Não são as sanguessugas da riqueza pública. Não são os falsificadores
de eleições. Não são os compradores de jornais. Não são os corruptores do sistema republicano. Não são os
oligarcas estaduais. Não são os ministros da tarraxa. Não são os presidentes de palha. Não são os
publicistas de aluguel. Não são os estadistas de impostura. Não são os diplomatas de marca estrangeira.
São as células ativas da vida nacional. E a multidão que não adula, não teme, não corre, não recua, não
deserta, não se vende. Não é a massa inconsciente, que oscila da servidão à desordem, mas a coesão
orgânica das unidades pensantes, o oceano das consciências, a mole das vagas humanas, onde a
Providência acumula reservas inesgotáveis de calor, de força e de luz para a renovação das nossas
energias. É o povo, num desses movimentos seus, em que se descobre toda a sua majestade.
RUY BARBOSA
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Alguns meses depois do 1º de abril de 1964, Stanislaw Ponte Preta, em seu “Primeiro Festival da
Besteira que Assola o País” (FEBEAPÁ 1), escreveu uma síntese da situação do país: “... estreou no Teatro
Municipal de São Paulo a peça clássica ‘Electra’, tendo comparecido ao local alguns agentes do DOPS
para prender Sófocles, autor da peça e acusado de subversão, mas já falecido em 406 a.C. Era junho e o
pensador católico Tristão de Ataíde, o mesmo Alceu de Amoroso Lima, uma das personalidades mais
festejadas da cultura brasileira, chegava à mesma conclusão da flor dos Ponte Preta em relação à burrice
reinante, ao declarar, numa conferência: ‘A maior inflação nacional é de estupidez’.” Foi uma ditadura,
antes de tudo, burra, sem subestimar os seus crimes – as prisões, torturas e assassinatos, que nos últimos
dias têm aparecido em certa mídia, aquela que, submissa a Washington, é mais responsável por esse
regime que infelicitou o país do que até os militares que o apoiaram.
Entre tantos depoimentos ou textos valiosos, assim como algumas capitulações retardadas, a
questão decisiva foi colocada pelo ex-ministro do Trabalho do governo João Goulart, Almino Afonso:
‟Quem ignora a presença americana no golpe militar de 1964 está perdido no tempo”.
Alguns apresentaram como prova de que os EUA nada tiveram a ver com a questão o seguinte
trecho do livro da historiadora norte-americana Phyllis R. Parker sobre a “Operação Brother Sam” (a
ajuda militar dos EUA ao golpe de Estado): “Não há provas de que os Estados Unidos instigaram,
planejaram, dirigiram ou participaram da execução do golpe de 1964. Cada uma dessas funções parece ter
competido a Castelo Branco e seus companheiros de farda. Ao mesmo tempo, há sugestivas evidências de
que os Estados Unidos aprovaram e apoiaram a deposição militar de Goulart quase que desde o princípio.
Os Estados Unidos reforçaram o seu apoio ao elaborar planos militares preventivos que poderiam ter sido
úteis para os conspiradores, se houvesse surgido a necessidade”.
A senhora Parker fez um bom trabalho ao confirmar, a partir de documentos e fontes norteamericanas, que a “Operação Brother Sam” existiu – veja-se o seu livro “1964: O papel dos Estados
Unidos no Golpe de Estado de 31 de Março”, Civilização Brasileira, Rio, 1977.
Mas é evidente que Castelo – ou, por exemplo, Lacerda – não teriam empreendido o golpe sem
incentivo e apoio do governo dos EUA, inclusive com um agente da CIA, Vernon Walters, visitando o então
chefe do Estado Maior do Exército na calada da noite. Sem isso, no máximo haveria um putsch ao estilo
Jacareacanga ou Aragarças. Por parte de Castelo, nem isso, pois sempre optou por ficar quieto ou ao lado
do governo em qualquer situação que implicasse um risco à sua carreira (v. “Lembranças de 1964: o
Brasil, o golpe de Estado e a verdade”, HP 23, 25, 30 de maio e 1º de junho de 2012).
Além disso, é a própria Phyllis R. Parker (posteriormente auto-descrita como “uma jovem inocente
de 27 anos” na época em que o escreveu) que diz em seu livro: “O programa de ação norte-americano
parece estruturado para beneficiar os Estados Unidos – política, econômica e militarmente – mas, ao que
tudo indica, sem maior consideração pelo impacto de seus empreendimentos sobre a integridade das
instituições de outros povos. Segundo esse critério, os direitos reivindicados pela Declaração da
Independência soam cada vez mais como princípios que se aplicam somente aos Estados Unidos e seus
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cidadãos, frequentemente à custa do sacrifício desses mesmos direitos em outras nações”.
Estamos de acordo em que o “programa de ação” da casta dominante nos EUA é sempre o oposto
do que é dito – as operações encobertas são, precisamente, o centro da política norte-americana.
Portanto, fugir ao conteúdo do golpe – ao seu caráter pró-imperialista, antinacional, portanto,
antidemocrático, antipopular – passou a ser o objetivo de todos os caifases do mercado. Um deles, o
“historiador” oficial do PSDB, ao modo das mariposas que não encontram a saída da sala em que se
meteram, exumou o próprio pretexto dos golpistas (e dos americanos) como se fosse teoria, ou, pior,
verdade histórica: o de que, em 1964, o golpista era Jango – e não os que deram o golpe, rasgaram a
Constituição, castraram o Congresso e o STF, promoveram uma erupção de sangue, etc., e cassaram o
direito do povo escolher seu governo durante mais de 20 anos.
No entanto, foi a submissão a Washington, Wall Street, etc., que ficou mais evidente no – e após – o
golpe de 1964, mais evidente até para os golpistas, daí a histeria com que os menos desavergonhados
procuravam abafar, inclusive dentro de si, o que qualquer um era capaz de ver e sentir. Daí os berros à
uma suposta defesa de uma suposta “civilização ocidental e cristã”, que, todos sabiam, era apenas o
alinhamento por baixo do imperialismo norte-americano.
O objetivo golpista, as perseguições, a estupidez a que se referiu o pensador católico Tristão de
Ataíde, e a evidente participação da CIA e do Departamento de Estado, foram um escândalo na época.
Para isso, ninguém precisou saber, como se sabe hoje, que, no dia 30 de março de 1964, o secretário de
Estado dos EUA, Dean Rusk, enviara um telegrama à sua embaixada com as últimas instruções para o
golpe. Entre outras coisas, dizia: “É altamente desejável que as ações das Forças Armadas sejam
legitimadas pelo Congresso brasileiro ou por outros meios que criem um ar de legitimidade” (grifo
nosso).
[O original do telegrama, nessa parte, é: “It is highly desirable, therefore, that if action is taken by
the armed forces such action be preceded or accompanied by a clear demonstration of unconstitutional
actions on the part of Goulart or his colleagues or that legitimacy be confirmed by acts of the Congress (if it
is free to act) or by expressions of the key governors or by some other means which gives substantial claim
to legitimacy” (cf. State Department telegram 1296 to American Embassy, Rio de Janeiro, March 30,
1964, 9:52 p.m.)].
Uma gravação, apresentada no documentário “O Dia que Durou 21 Anos”, de Camilo Tavares,
registra Rusk dizendo, sobre o golpe no Brasil: “Apoio aéreo pode ser fornecido imediatamente se houver
campo de pouso em Recife ou outro lugar no Nordeste do Brasil capaz de receber aviões de grande porte”.
Mas, talvez, o diálogo mais impagável (até certo ponto...) seja aquele, depois do golpe, entre Lyndon
Johnson e o conselheiro para segurança nacional McGeorge Bundy – um fariseu absoluto, capaz de
decidir, como presidente do “comitê 303”, os assassinatos e ações encobertas da CIA, desde que sua
imagem pública fosse a de reitor de Harvard: McGeorge Bundy: “Há uma diferença entre Gordon, que
quer que seja entusiasta, e nosso ponto de vista na Casa Branca, de que o senhor deveria ser cauteloso
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enquanto este cara (Castelo Branco) está botando gente em cana”.
Johnson: “Acho que tem gente que precisa ir em cana aqui e lá também. Gostaria que tivessem
colocado alguns em cana antes que tomassem Cuba”.
McGeorge Bundy: “Uma mensagem mais rotineira seria mais desejável”.
Johnson: “Eu gostaria de um certo entusiasmo”.
McGeorge Bundy: “Vai ser publicado...”
Johnson: “Eu sei, mas estou me lixando”.
O que estava em jogo era perfeitamente conhecido na época – ou seja, na luta que antecedeu ao
golpe. Quase um ano antes, escrevia o deputado federal Sérgio Magalhães (PTB-GB), presidente da
Frente Parlamentar Nacionalista: “A verdadeira causa da miséria em que se encontra o povo brasileiro,
com a subida constante do custo de vida, o desemprego, o subdesenvolvimento, os déficits e os
compromissos externos, é a transferência de riqueza para o exterior através da atuação dos monopólios
estrangeiros.
“Talvez sejamos atualmente a nação mais sacrificada do mundo pelo imperialismo voraz e
desumano que leva tudo por caminhos vários: pelo comércio exterior, pelas inversões de capitais, pelos
empréstimos externos, pelo contrabando, pelo falso faturamento, pela especulação cambial, pelos
empréstimos de bancos oficiais, pelas ajudas econômicas, pelos acordos internacionais, pelas sociedades de
financiamentos e investimentos, pelas indústrias estrangeiras instaladas com favores excepcionais e por
todas as modalidades de monopólios.
(…)
“Através do IBAD fraudaram as eleições e agora financiam os monopolistas a campanha de insultos
pessoais contra os nacionalistas, na falta de argumentos para justificar a dominação econômica
estrangeira. Já estão mesmo na fase do desespero. Perderam a compostura.” (Sérgio Magalhães,
“Perderam a Compostura”, O Semanário, nº 341, ano VIII, Rio de Janeiro, 11 a 17 de Julho de 1963).
Sérgio Magalhães foi um dos homens mais íntegros e melhor preparados de sua geração. Alguns de
nós o conhecemos depois da anistia, quando ele voltou à vida pública. Apesar de ter sua trajetória cortada
pela ditadura, continuava o mesmo sujeito sério que foi descrito por tantos nas décadas de 50 e 60. É
interessante – porque bastante precisa – a sua avaliação do fracasso do Plano Trienal, de autoria nada
menos que de Celso Furtado: “Temos procurado romper o atraso da política brasileira trazendo para
discussão o problema da dominação econômica estrangeira. Recentemente, conseguimos a aprovação, em
primeira discussão, do projeto que suprime a garantia do Tesouro Nacional e dos estabelecimentos oficiais
de crédito aos empréstimos tomados no exterior por empresas de capitais estrangeiros. É um dos projetos
que faz parte do plano de emancipação econômica. Grande parte da nossa dívida externa resulta desses
favores a empresas estrangeiras. Outros colegas também têm obtido êxito quando levantam os problemas
concretos, de cuja solução depende a libertação econômica do País.
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“A experiência está demonstrando que esse é um bom caminho para elevar o nível da política
brasileira, reduzindo-se, ao mesmo tempo, o poder econômico estrangeiro, criando-se condições para o
planejamento do desenvolvimento independente e diminuindo-se o ritmo do aumento do custo da vida.
“O fracasso do Plano Trienal resultou, precisamente, da falta de providências para conter a atuação
dos trustes e monopólios internacionais. Já se fala em novo Plano. Que a lição seja aproveitada. Não é
fazendo concessões a monopólios estrangeiros para depois mendigar empréstimos externos, que se consegue
resolver o problema da carestia de vida. A verdade está aos olhos de todos. Planeje-se o desenvolvimento
com base na iniciativa estatal, protegendo-se a iniciativa privada brasileira e disciplinando-se a iniciativa
estrangeira, subordinando-a ao interesse nacional, que os objetivos visados serão alcançados em prazo
curto” (O Semanário, nº 360, Rio de Janeiro, 21 a 27 de Novembro de 1963).
Da mesma forma, sua avaliação sobre as consequências do assassinato de Kennedy. Pode-se, talvez,
censurar um certo pessimismo ou fatalismo – que ele tentaria superar nos meses seguintes – mas jamais
que ignorasse o perigo: “Tudo indica que a luta pela emancipação dos povos latino-americanos vai
ingressar num período crítico após o assassinato do Presidente Kennedy.
“Ao que se sabe, por enquanto, a corrente mais reacionária dos EUA não estava satisfeita com a
orientação do ex-Presidente. A política oficial de não intervenção armada para garantir interesses dos
poderosos grupos econômicos, de coexistência pacifica e de respeito pela autodeterminação dos povos,
enfim, a política de paz mundial estava em choque com o capitalismo na sua etapa imperialista. A
contradição estava matando o sistema capitalista organizado na base da exploração dos países
subdesenvolvidos. A revolução cubana, a situação na Venezuela, a revogação dos contratos petrolíferos na
Argentina, a lei de remessa de lucros no Brasil foram golpes sucessivos na estabilidade do sistema
imperialista, já abalado por outros acontecimentos, após a Segunda Guerra Mundial.
“[O assassinato de Kennedy] Equivale ao golpe de Estado, à mudança da política.
“É possível que a contradição entre as correntes reacionárias, a exaltada e a moderada, não tenha
sido resolvida com o crime de morte, e que a luta interna nos EUA prossiga durante algum tempo. Há o
problema racial que não é para ser desprezado. Talvez o novo Presidente tenha dificuldade para por as
cartas na mesa. O mais certo, porém, é que a soberania dos países latino-americanos está sob ameaça de
uma ofensiva sem precedentes. (…) A primeira conseqüência da nova política norte-americana será o golpe
nas nossas instituições democráticas para facilitar os acordos antinacionais e fazer calar a voz dos
nacionalistas” (O Semanário, nº 361, Rio de Janeiro, 28 de novembro a 4 de dezembro de 1963).
Com efeito, o ânimo de Kennedy em relação a um golpe de Estado no Brasil era diferente daquele
de Johnson, como aparece em outra gravação, uma conversa com o embaixador no Brasil, Lincoln Gordon:
Kennedy: “Você acha que Goulart, se tivesse poder, agiria?” Gordon: “Acho que faria algo como Perón.”
Kennedy: “Um ditador.”
Gordon: “Um ditador pessoal e populista.”
Kennedy: “Acho que não posso fazer nada com ele ali.” Gordon: “Acho que pode.”
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O leitor não deve se espantar (ou pode até se espantar) com a ignorância ou cinismo de Johnson,
que não sabia (ou não lhe convinha saber) das pessoas “em cana” sob a ditadura de Batista, sustentada
pelos EUA em Cuba – ou a de Kennedy, que não sabia que Perón foi duas vezes eleito pelo povo (depois
seria pela terceira vez). O imperialismo norte-americano não é conhecido pela sua cultura – nem a mais
elementar. Ou por seu amor à verdade.
Mas, continuemos.
“O Semanário”, jornal fundado por Oswaldo Costa em 1956, expressava a posição nacionalista do
PTB de Jango.
A manchete da edição em que saiu o primeiro artigo, que mencionamos, do deputado Sérgio
Magalhães – irmão de Agamenon Magalhães, ex-ministro de Getúlio e ex-governador de Pernambuco – era
uma convocação contra o “golpe fascista”, financiado com “dinheiro americano”, sustentada pela seguinte
chamada de primeira página: “O governo, afinal, resolveu tomar conhecimento da existência do golpe
tramado pelos ‘gorilas’, com dinheiro do IBAD e dos norte-americanos, através do Fundo do Trigo. Em
importante pronunciamento feito à Nação, o sr. Darci Ribeiro, chefe da Casa Civil da Presidência da
República, apontou o governador Carlos Lacerda, como entidade financiadora, atribuindo a este o
levantamento de recursos da ordem de cinco bilhões de cruzeiros para comprar jornais, rádios e televisões
e compor um ‘Congresso de serviçais, de paus-mandados dos donos do dinheiro’. O governo fez suas
portanto, as conclusões a que já chegou a Comissão Parlamentar de Inquérito. Esperamos que as
autoridades tomem medidas enérgicas, providenciando o fechamento imediato do IBAD e neutralizando a
ação dos ‘gorilas’. O povo, no que lhe diz respeito, saberá mobilizar-se. Sobre o assunto, leiam a
reportagem de Edmar Morel, na última página, e outros artigos nas páginas 5 e 7 deste número.“ É
compreensível que leitores mais jovens não saibam – ou saibam pouco – do que se trata. O IBAD
(”Instituto Brasileiro de Ação Democrática”) foi uma operação da CIA, antes de 1964, com o objetivo de
fraudar as eleições e subornar o Congresso com dinheiro vindo do exterior.
Porém, leitores, melhor será, aqui, seguir o conselho do “Semanário” e passar a palavra ao grande
repórter Edmar Morel.
Há dois relatos de Morel sobre o assunto: aquele publicado em seu livro “O Golpe Começou em
Washington” e aquele publicado, um ano antes, 1963, em “O Semanário”. Apesar deste último ser mais
imperfeito, por várias razões, preferimos publicá-lo, porque é um texto escrito no calor da batalha (se nos
é permitido um pequeno lugar-comum), no qual o leitor mais jovem poderá ter uma ideia da imprensa
nacionalista antes de 1964 – como previu Sérgio Magalhães, silenciá-la seria um dos principais objetivos
do golpe de Estado. Em uma ou outra questão, nos socorreremos usando o texto escrito após o golpe.
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Há poucos repórteres no mundo que conseguiram recuperar um quase esquecido acontecimento
histórico, e, inclusive, dar a ele um nome definitivo.
Edmar Morel foi um desses poucos. Antes de sua reportagem sobre o levante de João Cândido e seus
companheiros, a Revolta da Chibata era, na historiografia, tratada como apenas um motim de
marinheiros negros, ocorrido no início do governo Hermes da Fonseca – às vezes, até mesmo com simpatia,
mas à distância, maior ou menor, mas sempre considerável. Havia, é verdade, algo notável nesse levante: a
defesa dos amotinados por parte do mais célebre brasileiro de sua época, Ruy Barbosa.
O livro de Morel, lançado em 1959, mudou esse quadro, inclusive dando um sentido especial a
tentativas anteriores de resgatar o levante. Morel rompia com as limitações desses precursores – e dava um
nome ao acontecimento, no próprio título do livro: “A Revolta da Chibata”.
Voltaremos, ainda, nesta série, a Edmar Morel, sua obra e sua vida. No momento, estas palavras
serão, esperamos, suficientes para apresentar aos mais jovens o autor da reportagem abaixo, originalmente
publicada em “O Semanário”, edição de 11 a 17 de julho de 1963, sobre as atividades do IBAD – uma
operação da CIA estourada pelo governador Arraes, pelo Congresso e pelo governo Jango, alguns meses
antes do golpe de Estado.
Apenas três observações, para tornar o texto mais inteligível nos dias de hoje: O Pimpinela referido
por Morel é o humorista Silvino Neto, que encarnava um personagem com esse nome na Rádio Nacional –
e elegeu-se vereador pelo PTB, no Rio de Janeiro, sendo o mais votado em 1950. Silvino Neto, pai do
também humorista Paulo Silvino, tinha um talento especial: era um incrível imitador de vozes.
2) O organizador do IBAD, Ivan Hasslocher, desde que voltou ao Brasil, em 1951, vindo dos EUA,
era dono de uma agência de publicidade, a S.A. Incrementadora de Vendas Promotion. Hasslocher fugiu
do país quando estourou o escândalo, reaparecendo cinco meses depois. Em seu depoimento na CPI, nas
palavras do relator, deputado Pedro Aleixo, “obstinou-se na recusa de informar o que havia de substancial
para que a Comissão alcançasse os fins visados por seus instituidores”. Após o golpe de Estado,
desapareceu outra vez. Em 1993, soube-se que, aos 72 anos, Hasslocher dividia seu tempo entre duas
residências, uma em Londres e a outra no Texas. Antes, residira na Indonésia e na Suíça, oficialmente
como funcionário da ONU. Entrevistado, deu uma declaração sobre a época do IBAD: “ganhei muito
dinheiro”. Faleceu no Texas, no ano 2000.
3) Quando Morel escreveu o artigo abaixo, a CPI do IBAD não havia concluído seus trabalhos. Por
isso, os dados que apresenta sobre a ação do IBAD são ainda parciais. Mesmo o depoimento de denúncia
mais impressionante – o do governador de Pernambuco, Miguel Arraes – ainda não ocorrera. Há, no texto,
uma aparente contradição entre considerar que os candidatos nacionalistas foram “massacrados”, e, ao
mesmo tempo, que a ação do IBAD foi um fracasso. Realmente, a maioria dos 250 candidatos a deputado
federal, 600 candidatos a deputado estadual e oito candidatos ao governo estadual que o dinheiro da CIA
bancou em 1962, não foram eleitos. Ao mesmo tempo, houve derrotas nacionalistas importantes – que
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facilitariam o golpe de Estado. A principal aconteceu, exatamente, em um dos Estados no qual o IBAD
mais derramou dinheiro nessas eleições – no Rio Grande do Sul, onde, na sucessão do governador Leonel
Brizola, o candidato do PTB, Egydio Michaelsen, foi derrotado por Ildo Meneghetti (com a preciosa ajuda
divisionista, numa eleição sem segundo turno, da candidatura de um ex-petebista, Fernando Ferrari,
fundador do Movimento Trabalhista Renovador – Meneghetti teve 502.356 votos; Michaelsen, 480.131 e
Ferrari, que também se dizia trabalhista, 290.384 votos).
C.L.
EDMAR MOREL
O câncer do IBAD não resistiu a uma simples investigação parlamentar. O tumor maligno estourou,
porém, desgraçadamente, já havia contaminado grande parte do organismo nacional, principalmente esta
imprensa reconhecidamente safada que vende a sua opinião a quem pagar melhor.
E o IBAD — Instituto Brasileiro de Ação Democrática – na sua obra de corrupção era generoso. O
tesoureiro da sociedade, Artur Oscar Junqueira, ex-presidente da Caixa Econômica Federal no tempo do
calamitoso Jânio Quadros, depois de dar um desfalque no organismo que tudo fez para asfixiar a imprensa
livre do Brasil, confessou, perante a Comissão Parlamentar de Inquérito, que financiou a campanha de
250 deputados nas últimas eleições, sendo gastos mais de cinco bilhões de cruzeiros em favor do que havia
de mais reacionário, de mais sórdido, de mais antinacional.
Na Guanabara as despesas montaram em 330 milhões de cruzeiros. Os rádios, e Tvs, receberam
150 milhões.
Artur Junqueira, que também foi candidato suficientemente derrotado, pois não conseguiu 3.000
votos, isto é, um décimo da votação que o Pimpinela obteve em 1950, declarou: “Recebi o dinheiro através
de cheques do Banco Real do Canadá”.
A PODRIDÃO
O IBAD representa, em última análise, uma sucursal do Departamento de Estado de Washington,
dirigida pelo deputado João Mendes, latifundiário da pior espécie na Bahia e que tudo tem feito para
impedir a Reforma Agrária com a Reforma da Constituição.
A princípio funcionou, salvo engano, num edifício da rua 7 de Setembro e cedo foram conhecidos os
lacaios dos ianques contra os interesses nacionais.
Ninguém escapou à sanha policialesca desta “gang”. Tudo fizeram para fechar a imprensa
nacionalista do país, exercendo todo o seu poderio econômico, com pressões de toda a ordem. A “Última
Hora”, por exemplo, mensalmente, através do pasquim “Ação Democrática”, publicação do IBAD, tinha os
nomes das firmas anunciantes no pelourinho, sob o título: “As classes produtoras e o financiamento do
comunismo”. Outra vítima foi o “Jornal do Brasil”.
Organizações eminentemente nacionais, como Cruzeiro do Sul, Banco Nacional de Minas Gerais,
instituições como a Rede Ferroviária Federal, Petrobrás, Companhia Vale do Rio Doce, Governo do Estado
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do Rio de Janeiro, Lóide Aéreo Nacional, Departamento Nacional de Estradas de Rodagens foram
apontadas pelo pasquinleco “Ação Democrática” como antros de agentes de Moscou, financiando aqueles
jornais. Era o boicote organizado. O SEMANÁRIO, que não vive de publicidade, sofreu torpe exploração,
apontado como órgão que recebia ordens do Kremlin. Tamanha imbecilidade só poderia partir dos
retardados mentais do IBAD.
O fato é que a podridão do IBAD contaminou muita gente. O pasquim [”Ação Democrática”] é
impresso na mesma oficina que imprime as Listas Telefônicas da Light. De tão ricos que são, jamais
pleitearam o uso do papel de linha d’água, preferindo o acetinado. A distribuição da tal revista é gratuita.
Em alguns números apregoam que a tiragem é de 210.000 exemplares. Em outras não dizem nada.
Os nacionalistas que disputaram cargos eletivos foram massacrados pelo poderio econômico do
IBAD. Só no Rio dispunha de mais de 170 caminhonetes.
Em Pernambuco, o lugar-tenente Frutuoso Osório Filho, para combater a candidatura popular de
Miguel Arraes, derramou 650 milhões de cruzeiros. Mas o povo deu a resposta aos cavalos de aluguéis dos
ianques, elegendo Arraes. Diz o sr. Artur Junqueira que o dinheiro foi dado por 70 indústrias paulistas...
Toda esta imprensa que agora grita contra a Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar a
máquina de corrupção do IBAD, recebeu dinheiro do IBAD para desacreditar a Petrobrás, os
nacionalistas, homens do gabarito de Barbosa Lima Sobrinho, Elói Dutra, Sérgio Magalhães e tantos
outros colaboradores da primeira linha de O SEMANÁRIO, “Última Hora”, “Jornal do Brasil” etc.
COMO FUNCIONA
Geralmente a “Ação Democrática” sai com 24 páginas, sendo que numa delas [sai] um artigo de
Teófilo Andrade, que dispensa apresentação. Outro “habituée” das colunas do pasquinleco é o Padre
Calazans, que recebendo documentação forjada na redação da “Ação Democrática”, denunciou que a FAB
estava entregue a comunistas.
Nem os sacerdotes escaparam ao espírito policialesco da quadrilha que montou o Q.G. À Avenida
Marechal Câmara 271, onde funciona a redação de “Ação Democrática”, cujos diretores são Ivan
Hasslocher, fllho do velho e incorrigível galinha-verde Paulo Hasslocher, da Câmara dos 40, e que
encerrou a sua carreira diplomática de Embaixador do Brasil na corte de Trujillo; Frutuoso Osório Filho,
Diretor Geral; Gabriel Chaves de Melo, Chefe de Redação; Floriano da Silveira Maciel, redator
trabalhista; e, como não poderia deixar de acontecer, o nauseabundo Eugênio Gudin, como “consultor da
redação” ao lado de Edgard Teixeira Leite.
Nunca teve venda avulsa, embora anuncie que o exemplar custa Cr$ 30,00. Também não tem
publicidade, o que é desnecessário, já que os dólares entram a granel, através de canos de 12 polegadas. O
único anunciante é o dr. Milton de Almeida, especializado em ouvidos, nariz e garganta.
Mas quem manda mesmo é o deputado João Mendes, homem multo rico, mas que não tem tanto
dinheiro assim para gastar com 250 candidatos. Dinheiro mesmo é do americano. Dinheiro fácil, dinheiro
que inundou jornais e corrompeu centenas de candidatos a cargos eletivos, no último pleito quase todos
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derrotados.
Jamais deixou de atacar nas suas colunas os srs. João Goulart, Hermes Lima, Miguel Arraes,
Francisco Julião, Leonel Brizola, Osny Duarte Pereira, Prestes, brigadeiro Francisco Teixeira e outros
brasileiros que lutam contra o imperialismo.
Os super-homens da corja são Kennedy, Pena Boto (última exumação dos ibadianos), Sílvio Heck,
marechal Denys e outros marechais de pijama, mandados para casa, pela vontade do povo.
REDE DE CORRUPÇÃO
A malta do IBAD, sempre sob a batuta do deputado João Mendes, figura por demais inexpressiva
do Parlamento Nacional, usa dois processos: calúnia e intimidação.
Calúnia quando cita as firmas comerciais que anunciam em “Última Hora” e aponta outros jornais,
como O SEMANÁRIO, como agentes de Moscou.
Intimidação quando promete represálias através de uma pseudo-resistência democrática dos
trabalhadores livres e movimento sindical democrata que congrega a escória do sindicalismo, uma espécie
de sarjeta que emerge do esgoto social.
Uma das suas vítimas principais é a UNE, com sucessivos pedidos de informação feitos por
deputados, cujas candidaturas foram financiadas pelo IBAD.
A imprensa “sadia”, ordinária até à medula, sempre mamou nas tetas do IBAD. E mama alto.
Urgia organizar uma rede de estações de rádio, a fim de levar a corrupção aos mais longínquos recantos
do país, onde não existe imprensa. Foi criado um programa radiofônico, intitulado “A Semana em Revista”
e irradiado pelas seguintes estações, a peso de ouro: Rádio Rio-Mar, de Manaus; Rádio Difusora, de Belém;
Rádio Educadora, de Bragança, no Pará; Rádio Difusora, de São Luís; Rádio Clube, de Teresina; Rádio
Educadora, de Parnaíba; Radio Iracema, de Fortaleza; Rádio Nordeste, de Natal; Rádio Difusora, de
Mossoró; Rádio Caturité, de Campina Grande; Rádio Difusora, de Maceió: Rádio Liberdade, de Aracaju;
Rádio Cultura, de Salvador; Rádio Sociedade, de Salvador; Rádio Itatiaia, de Belo Horizonte; Rádio
Espírito Santo, de Vitória; Rádio Globo, do Rio; Rádio Vera Cruz, do Rio; Rádio Sul Fluminense, de Barra
Mansa; Rádio Record, de São Paulo e mais 42 estações do interior de São Paulo, Paraná, Santa Catarina,
Rio Grande do Sul, inclusive a Rádio Sociedade Gaúcha, de Porto Alegre, emissoras de Mato Grosso, Goiás
e Acre. O programa tinha o patrocínio do Instituto Brasileiro de Ação Democrática, conforme anúncio da
própria “Ação Democrática”.
O PREÇO DA INFÂMIA
É claro que esta tecla de acusar todo mundo de comunista, por não rezar pela cartilha do IBAD,
não surte mais efeito. Pena Boto bateu neste teclado, durante longos anos e acabou desmoralizando, por
completo, o rendoso negócio. Nisto não há nem originalidade, pois o repugnante espancador de presos
Serafim Braga, hoje Delegado de Polícia, sempre fez isto desde que a sua vítima não anunciasse no seu
imundo jornaleco “A Situação”.
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O Papa João XXIII tivesse vivido no Brasil e teria sido acusado pela quadrilha do IBAD como
comunista. Sacerdotes dos mais ilustres tiveram os seus nomes apontados como agentes de Moscou,
inclusive o grande Bispo de Santo André, D. Jorge Marcos de Oliveira, miseravelmente acusado pelo
alcaguete graduado Válter Domingos Claro, presidente da arapuca em São Paulo. Mas o grande D. Jorge
foi fulminante ao declarar: - “Espero receber, dentro de muito breve, um convite da ‘família democrática’
para assistir ao enterro do IBAD e não irei chorando, não. Irei sorrindo, vendo a mais promissora aurora
de um Brasil cristão”.
CADEIA PARA A "GANG"
O povo deve depositar a sua confiança na Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar a obra
de corrupção do IBAD na vida pública do país. Lá estão homens como Elói Dutra e José Aparecido, que
embora pertencendo à UDN, o partido que mais recebeu propinas do IBAD, tem tido uma atuação das
mais patrióticas, não se submetendo às injuncões do partido da eterna vigilância. Foi eleito pelo povo,
para defender os interesses do povo.
Chegou a hora de arrancar a máscara desta camarilha que fez do combate ao comunismo uma das
mais lucrativas indústrias das últimos anos. Esta súcia vai prestar contas com a Justiça. Homens mais
poderosos do que os lacaios dos norte-americanos, assalariados de Washington, já caíram nas redes da
polícia.
A tal publicação já tem quatro anos, com pouco menos de 50 números. Sempre atacou a Reforma
Agrária e a Petrobrás. Continua insultando os brasileiros que não querem o Brasil atrelado como carro de
boi aos ianques, financia o MAC (Movimento Anticomunista), reduto de profissionais do anti-comunismo,
aprendizes de feiticeiro. É uma publicação nociva aos interesses nacionais.
A Justiça houve por bem fechar a chamada imprensa marrom. E o que é a “Ação Democrática”
senão uma imprensa preta contra os interesses do Brasil? A Comissão Parlamentar de Inquérito deve
levantar a escrita da suspeita publicação, para ver a sua fonte de renda.
Não basta, evidentemente, apurar a fonte do dinheiro suspeito. A Nação precisa conhecer os nomes
dos 250 candidatos que receberam dinheiro da Standard Oil e outros grupos norte-americanos, dinheiro
para destruir a Petrobrás e outras instituições nacionais.
Devem ser ouvidos pela Comissão Parlamentar de Inquérito os gerentes e diretores de publicidade
dos jornais que sofreram pressão por parte da matilha, cujo chefe, Ivan Hasslocher, está foragido.
SUPREMA AUDÁCIA
A malta do IBAD atingiu os limites da audácia quando fez instalar, no próprio recinto do Congresso
Nacional, um aparelho de gravação clandestino, a fim de obter a voz dos parlamentares nacionalistas
para, em seguida, usá-la ao bel-prazer em trechos isolados, quando é sabido que toda oração, utilizada
parcialmente, perde o sentido.
Ante a reação popular contra os métodos fascistas do IBAD, derrotando seus candidatos e elegendo
parlamentares progressistas, as agências de publicidade norte-americanas, usadas, a princípio, como força
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de pressão para impedir a expansão dos jornais nacionalistas, chutaram o IBAD, fazendo voltar a
programação dos seus anúncios aos jornais que caíram no índex da “gang”. Assim, embora severamente
advertidos pelo IBAD, aquelas organizações norte-americanas resolveram não dar murro em ponta de
faca.
Ninguém desconhece que as agências de publicidade estrangeiras são fatores de corrupção, já que
algumas exercem o controle da orientação política de jornais. Basta lembrar o triste e vergonhoso episódio
de “A Noite”, que em troca de 2 milhões de cruzeiros por mês, permitia à agência Promotion, do IBAD,
controlar todas as suas páginas.
De qualquer maneira, os ianques da Coca-Cola, Shell, Sidney Ross, Willys Overland, da Parker,
Frigoríficos Wilson, International Business Machine, Esso, Grupos Light, Wemag, Verolme, Dunlop, Fiat
Lux, Frigorífico Anglo, Alitalia, Mercedes Benz e outros, saíram da canoa furada do IBAD, agora, às voltas
com a Justiça.
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3
A reportagem de Edmar Morel seria amplamente confirmada pelos acontecimentos posteriores.
Em 1977 – portanto, 13 anos depois – o embaixador dos EUA durante a conspiração e execução do golpe,
Lincoln Gordon, declarou que a CIA bancou a oposição ao presidente Goulart porque “isso era mais ou
menos um hábito, naquele período. (…) A CIA estava acostumada a ter fundos políticos. Tudo começou na
Itália, em 1948, quando dinheiro americano ajudou o fortalecimento da democracia cristã”.
Logo, foi tudo uma questão de hábitos e costumes... Inclusive um golpe de Estado encoberto, como
a Operação Gládio na Itália – e em outros países europeus – logo após a II Guerra Mundial.
Mas é interessante (porque essa é a parte verdadeira) que Gordon compare a ação da CIA, através
do IBAD, à Operação Gládio, engendrada nos EUA para instalar no poder – onde ficou por mais de 40
anos – uma cafua de antigos fascistas, mafiosos e outros ladrões, contra o povo italiano.
Posteriormente, em 2001, Gordon seria até mais explícito, em seu livro “Brazil’s Second Chance:
En Route toward the First World”, uma tentativa inútil de maquiar o juízo histórico, àquela altura já
definitivo, sobre o seu papel na instalação da ditadura no Brasil: “... fui favorável à proposta de dar,
através da Agência Central de Inteligência (CIA), alguma assistência financeira aos candidatos ao
Congresso que tinham uma atitude amigável com relação aos Estados Unidos. (…) estávamos preocupados
com o movimento no Congresso, liderado pelo ‘grupo compacto’ do PTB, no sentido de acrescentar
cláusulas ao projeto de lei sobre a remessa de lucros, proibindo as companhias estrangeiras de acrescentar
à sua base de capital os lucros retidos. (…) Essa preocupação me levou a endossar a sugestão da CIA de
que se fornecesse dinheiro a candidatos amigáveis, seguindo o precedente da Itália logo após a guerra,
que, segundo se acreditava amplamente, tinha impedido uma vitória eleitoral dos comunistas naquele
país”.
Quanto à magnitude dessa “assistência financeira”, diz Gordon, na entrevista de 1977:
“Certamente foi muito mais de 1 milhão de dólares, e eu não ficaria surpreso se tivesse chegado a 5
milhões de dólares. Mas não era uma importância enorme, não eram dezenas de milhões de dólares ”
(entrevista a Roberto Garcia, Veja, 09/03/1977, grifo nosso).
Gordon, um sujeito difícil de classificar, mesmo considerando as aberrações que o imperialismo
norte-americano frequentemente oferece ao mundo, joga com números ao longo do tempo, porque sabe
que a maioria das pessoas não conseguirá conceber o que isso significava naquela época. Mas, US$ 5
milhões equivaliam a 0,03% do PIB brasileiro de 1962, gasto numa única eleição. Como parcela do PIB
brasileiro de 2013, equivaleria a US$ 672 milhões.
[Esta forma de atualizar o “valor” do dólar, por seu “poder econômico” (economic power) – isto é,
enquanto parcela do PIB – é abordada pelo professor norte-americano Samuel H. Williamson em “Seven
Ways to Compute the Relative Value of a U.S. Dollar Amount, 1774 to present”, MeasuringWorth, 2014.
Williamson, que leciona história econômica, dedica-se à cliometria (econometria histórica). No caso do
IBAD, é inadequada a atualização do dispêndio de dólares pelo Consumer Price Index (CPI), pois os
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candidatos entreguistas não eram objetos de consumo encontráveis nos supermercados dos EUA. Por isso,
usamos uma das sugestões de Williamson, apenas substituindo o PIB dos EUA pelo do Brasil, porque,
obviamente, o dinheiro foi gasto aqui – e não lá.]
Note-se que a resposta de Gordon que reproduzimos acima foi logo após afirmar que “se formos
discutir as eleições de 1962, não vou querer negar a presença de dinheiro de origem americana. Quanto a
1964, não vou dizer que não tenha havido 1 ou 2 dólares americanos. Mas não me lembro de nada
substancial e certamente isso seria improvável”.
Apesar da quantia mencionada por Gordon (US$ 5 milhões) não ser pequena, poderíamos esperar
qualquer coisa dele, menos que falasse a verdade.
Assim é que Philip Agee, na época em ascensão dentro da CIA e amigo pessoal do chefe do “Ramo
Brasil da Divisão para o Hemisfério Ocidental” (”Brazil Branch in Western Hemisphere Division”), em
seu famoso livro, anota, em sete de outubro de 1962:
“... as eleições brasileiras que estão ocorrendo hoje são o clímax de uma das maiores operações de
ação política já realizadas pela Divisão para o Hemisfério Ocidental (…) a estação do Rio de Janeiro e
suas muitas bases nos consulados através do país têm estado envolvidas, a maior parte do ano, numa
campanha multimilionária de dólares” (cf. Philip Agee, “Inside the Company: CIA Diary”, Bantam
Books, 1976).
Mais adiante, no dia 10 de fevereiro de 1964, Agee encontrou-se, em Washington, com James
Beatty Noland, chefe de operações da CIA no Brasil, e tem com ele uma longa conversa noite adentro.
Noland diz a Agee que “o Brasil é o mais sério problema para nós na América Latina – mais sério, na
verdade, que Cuba, desde a crise dos mísseis” (cf. idem).
Em seguida:
“... uma das principais operações de ação política da estação do Rio, o IBAD e uma organização
relacionada, a Adep, gastaram, durante a campanha eleitoral de 1962, pelo menos o equivalente a algo
como 12 milhões de dólares (…), possivelmente chegando a 20 milhões de dólares” (idem).
Vinte milhões de 1962 seriam, seguindo o professor Williamson, um “poder econômico” equivalente
a US$ 2,2 bilhões (US$ 2.239.895.470) no Brasil de 2013 – mais de meio século depois. Parece mais real,
considerando a importância que a submissão do Brasil tinha para a CIA e para os monopólios norteamericanos – e que foram bancados 250 candidatos a deputado federal, 600 candidatos a deputado
estadual e 8 aos governos estaduais. Além disso, a julgar pelo enriquecimento de Hasslocher, o mandachuva do IBAD, e outros enriquecimentos, nem todo o dinheiro foi gasto em campanhas eleitorais.
O IBAD, como declarou Lincoln Gordon, era uma tentativa de repetir no Brasil a Operação Gládio,
realizada pelos EUA na Itália – um golpe de Estado encoberto para aboletar no poder uma camarilha
subserviente aos interesses monopolistas e financeiros norte-americanos.
Porém, a Itália tinha, como ainda tem, um regime parlamentarista. O que também é verdade para o
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Brasil na época da operação IBAD. A volta ao presidencialismo somente ocorreu em janeiro de 1963.
Por isso, o IBAD tinha como um dos seus objetivos a “manutenção sob qualquer preço,
inicialmente, do parlamentarismo” (cf. CPI DO IBAD, p. 9944). Nos documentos já conhecidos do
Departamento de Estado e da CIA, considera-se um “golpe” do presidente o plebiscito que acabou com o
parlamentarismo e restituiu a Jango as prerrogativas presidenciais que a Constituição de 1946 lhe
garantia.
Evidentemente, o Ato Adicional que instalara o parlamentarismo – depois da renúncia de Jânio
Quadros e da junta que quis impedir a posse do vice-presidente João Goulart – era já um golpe na
Constituição aprovada em 1946, contra o país e o povo. Tanto assim que 82% dos eleitores, quando,
finalmente, foram consultados, no plebiscito de 6 de janeiro de 1963, votaram pelo presidencialismo
(9.457.488 votos por este, contra 2.073.582 recebidos pelo parlamentarismo). Evidentemente, nem todos
que votaram pelo presidencialismo eram eleitores de Jango. Era, de forma insofismável, a rejeição, por
maioria esmagadora, do último vestígio institucional da tentativa de golpe de 1961.
No entanto, o governo dos EUA – um governo mais do que presidencialista, um governo imperial –
achava que acabar com o parlamentarismo golpista era um “golpe” de Jango. O resultado é que seus
serviçais internos foram esmagados pela votação plebiscitária.
Era a terceira derrota após a renúncia de Jânio – a primeira fora a própria posse de Jango na
Presidência.
A segunda derrota fora o fracasso da operação IBAD em 1962, apesar de cerca de 150 dos
candidatos a deputado federal amamentados pela CIA terem sido eleitos (numa Câmara de Deputados
com 409 cadeiras) e - segundo Agee ouviu do chefe da CIA no Brasil - dois governadores em Estados
decisivos: Ildo Meneghetti, no Rio Grande do Sul, e Adhemar de Barros, em São Paulo (” os resultados das
eleições foram misturados, com candidatos apoiados pela estação [da CIA] sendo eleitos governadores em
São Paulo e no Rio Grande, ambos Estados-chave, mas um apoiador esquerdista de Goulart foi eleito
governador no crítico Estado nordestino de Pernambuco”.
[No original de Agee: “Results of the elections were mixed, with station-supported candidates
elected governors in São Paulo and Rio Grande, both key states, but a leftist supporter of Goulart was
elected governor in the critical north-east state of Pernambuco”.]
Dos Estados em que o IBAD concentrou sua corrupção, seus candidatos ao governo foram
derrotados, além de Pernambuco, também no Amazonas, Sergipe e no antigo Estado do Rio de Janeiro,
sediado em Niterói. No Ceará, Bahia e Piauí venceram udenistas – mas não se pode dizer que fossem
tremendos oposicionistas ao governo Jango.
Quanto a São Paulo, a eleição foi polarizada pelo ex-governador Adhemar de Barros e pelo expresidente Jânio Quadros. Em termos de alianças, foi a eleição mais complicada do país: Adhemar, que
teve 39,8% dos votos, concorreu pela coligação PSP-PSD-PRP; Jânio, com 35,9% foi apoiado pela coligação
PTN-MTR; o PTB uniu-se à UDN, ao PDC e ao PR, em torno do candidato José Bonifácio (21,8% dos
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votos) e Cid Franco, do PSB, obteve 1,1% dos votos” (v. Regina Sampaio, “Adhemar de Barros e o PSP”,
São Paulo, Global, 1982).
Portanto, a derrota principal dos nacionalistas foi no Rio Grande do Sul – o Estado natal do
presidente da República e do líder da resistência legalista de 1961, Leonel Brizola, que, nessa eleição,
concorrendo pelo Estado da Guanabara, seria o deputado federal mais votado da História da República.
Porém, a CIA não conseguiu travar o aumento da votação no PTB, partido do presidente Jango. E,
também, ao contrário da Itália, sua operação foi estourada quase em seguida.
Vejamos, primeiro, os resultados.
Em 1962, na última eleição antes da ditadura, pela primeira vez, desde que o quadro partidário
fora definido, em 1945, o PTB conquistou mais votos para a Câmara dos Deputados do que a UDN,
partido de Carlos Lacerda e outros golpistas.
Um rápido balanço:
O PSD, maior partido político do país desde 1945, teve uma queda de 303.902 votos em relação à
eleição de quatro anos antes. Passou de 3.861.068 (33,5% dos votos para deputado federal) em 1958 para
3.557.166 (29,3%) em 1962.
A UDN aumentou sua votação em 304.779 votos: foi de 2.389.211 (20,7%) em 1958 para 2.693.990
(22,2%) em 1962.
O PTB teve um aumento de 729.206 votos para a Câmara dos Deputados. Passou de 2.316.058
(20,1%) em 1958 para 3.045.264 (25,1%) em 1962.
O PTB, portanto, aumentara sua votação para a Câmara em +31,4%, enquanto o aumento de votos
da UDN fora de apenas +12,8%. Com isso, o PTB deslocara a UDN e passara a ser o segundo maior
partido político do país, em termos de votação para a Câmara dos Deputados (cf. Jairo Nicolau, “ Partidos
na República de 1946: Velhas Teses, Novos Dados”, trabalho apresentado no XXVII Encontro Anual da
Anpocs, out. 2003).
Refletindo a votação, as cadeiras da Câmara ficaram assim distribuídas, em comparação com a
eleição anterior: o PSD caiu de 36,5% dos deputados (1958) para 29,8% (1962) – embora, como o número
total de vagas da Câmara aumentou (de um total de 326 para um total de 409 deputados), sua bancada
passou de 119 para 122 deputados.
O PTB, que em 1958 conquistara 19,3% das cadeiras (63 deputados) aumentou sua parcela, em
1962, para 26,25% (107 deputados). Ganhou, portanto, 44 cadeiras.
A UDN, que tinha 21,5% (70 deputados) foi para 23,7% (97 deputados). Ganhou 27 deputados.
Havia outros 10 partidos, mas esses resultados, dos três maiores, são suficientes para mostrar a
tendência predominante, pois os três partidos maiores receberam 76,6% dos votos para a Câmara dos
Deputados, conquistando 79,8% das cadeiras.
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Apenas mencionaremos que o Partido Social Progressista (PSP), do governador de São Paulo,
Adhemar de Barros, perdeu três cadeiras: de 25 deputados (7,7%) em 1958, foi para 22 deputados (5,4%)
em 1962. Ao mesmo tempo, o Partido Democrata Cristão passou de 7 deputados (2,1%) para 19 (4,6%).
Não entraremos, aqui, pois já o fizemos anteriormente, nas questões econômicas de fundo – maior
penetração dos monopólios multinacionais dentro do país, entre elas – que, naquela época, conduziram o
país à crise.
Mais importante, aqui, é que os resultados acima mostram que o povo – e o eleitorado, o que
naquela época não era a mesma coisa: a proibição do voto aos analfabetos era uma exclusão política real
de uma parte importante da população, visto que a taxa de analfabetismo, verificada no Censo de 1960,
era de 39,7% - estava optando crescentemente pela alternativa representada pelo presidente Goulart.
Existe, numa certa historiografia, a argumentação de que esse era um quadro basicamente
estagnado porque, em 1962, os “blocos ideológicos” - basicamente três: “direita” (PRP, PR e UDN),
“centro” (PL, PSD e PDC) e “esquerda” (PTB, PSB, PCB mais pequenos partidos trabalhistas) –
receberam uma votação semelhante à de 1958.
O problema é que essa construção de “blocos” é artificial, não corresponde à realidade da época.
Aliás, se faltasse alguma prova, bastaria a atitude da CIA e dos monopólios multinacionais antes, durante
e depois dessas eleições para nos assegurar que a situação estava em rápida mudança – e não era no
sentido propício ao entreguismo ou à manutenção da dependência que nos asfixiava.
A própria UDN, o partido em que se concentravam os entreguistas e advogados dos interesses
monopolistas norte-americanos, estava em crise – como ficou claro na CPI do IBAD.
Certamente, aqui reside uma forte objeção à nossa avaliação geral, de que a operação IBAD foi um
fracasso da CIA. Realmente, é possível perguntar: se o PTB e as forças anti-imperialistas estavam
crescendo, imagine-se o que elas não teriam alcançado se a CIA não despejasse milhões de dólares no
processo eleitoral. Neste sentido, pode-se dizer, a CIA conseguiu adiar uma definição no Brasil até que
fosse possível dar o golpe.
Seria verdade, se a CIA tivesse o poder de predizer em 1962 o que aconteceria dois anos depois. Mas
ela não teve, como não tem, esse poder. Pelo contrário, a operação IBAD deixou seus promotores e
participantes em situação crítica, logo a seguir.
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O que eram os “ibadianos” - os que foram bancados pela CIA e pelas multinacionais – ficará claro
para os leitores mais jovens, se reproduzirmos alguns materiais da época.
Por exemplo, eis um trecho de uma carta – encontrada nos arquivos do SNI pelo historiador Álvaro
Larangeira – do governador Ildo Meneghetti, do Rio Grande do Sul, a Castelo Branco, com data de 18 de
abril de 1964, três dias após Castelo entrar no Planalto e 17 dias depois do golpe de Estado. Diz
Meneghetti:
“A Constituição do Estado, como também os estatutos de organização do funcionalismo, e em
particular, da Polícia, tem impedido as operações de limpeza que se fazem imperiosamente necessárias. A
situação apresenta-se, desta forma, sumamente grave, não pelo presente – que é tranquilo – mas pelo
futuro que poderá manifestar-se conturbado. Daí a necessidade de medidas excepcionais, que o meu
Governo, de comum acordo com o comando militar, sugere através da presente, seja a decretação do Estado
de sítio para esta região, seja a delegação de poderes ao governo e às autoridades federais daqui para a
elaboração de um Ato Institucional Estadual que possa dar, às forças locais da revolução democrática, o
instrumento saneador que se faz indispensável para nossa ação.
“Finalmente, pondero a Vossa Excelência sobre a necessidade de que os mandatos dos
parlamentares e prefeitos comprometidos – e ainda atuando sob a proteção de imunidades, cuja relação
segue pelos portadores, sejam imediatamente cassados.“ (v. fotocópia em Juremir Machado da Silva, “O
golpismo gaúcho em 1964”, Correio do Povo, 23/09/2013).
Porém, isso foi após o golpe. Encerradas as eleições de 1962, esse chiqueiro fascista, que era o
regime ideal dos “ibadianos” e de seus mentores norte-americanos, era ainda um desejo pervertido – e não
uma realidade.
Logo em seguida, o escândalo estourou.
O requerimento para a CPI do IBAD foi apresentado pelo deputado Paulo de Tarso (PDC-SP) no
dia 19 de abril de 1963. Assinavam-no 145 deputados.
Havia, naquele momento, 29 CPIs funcionando na Câmara. A do IBAD seria (e foi) a trigésima. Na
época não havia o atual limite de cinco para o número de CPIs que podem funcionar ao mesmo tempo.
Também ao contrário de hoje, as CPIs não tinham “poderes de investigação próprios das
autoridades judiciais”, o que impediu a quebra de sigilo nas contas-correntes do IBAD, Adep, Promotion e
outras marcas usadas pela CIA. As contas eram em filiais de bancos externos: no Royal Bank of Canada,
Bank of Boston e National City Bank of New York.
A possibilidade de que a investigação gorasse era grande – e ficou maior quando a CPI foi instalada,
em 30 de maio, porque a maioria de seus membros era de deputados que receberam dinheiro da CIA na
campanha eleitoral. Entre eles, o relator, Laerte Vieira (UDN-SC), e o presidente da Comissão, Peracchi
Barcelos (PSD-RS) – que Brizola derrotara nas eleições de 1958 ao governo gaúcho, e que, depois, sob a
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ditadura, seria ministro do Trabalho e, finalmente, governador biônico do Rio Grande do Sul.
Dos nove membros titulares da CPI, os que queriam investigar a fundo as atividades do IBAD eram
apenas três: Eloy Dutra (PTB-GB), também vice-governador do Estado da Guanabara; Rubens Paiva
(PTB-SP), vice-presidente da Comissão; e José Aparecido, que, apesar de pertencer à UDN de Minas, teve
uma participação brilhante desde o início (”O IBAD é a trama mais sinistra de nossa história republicana,
uma conspiração contra a soberania do país”, declarou Aparecido em entrevista à “Última Hora”, no dia
17 de agosto de 1963).
Entre os suplentes, estavam os deputados Benedito Cerqueira (PTB-GB) e João Dória (PDC-BA),
que passaria a ser titular quando o deputado Armando Rollemberg (PDC-SE) foi nomeado para o
Tribunal Federal de Recursos, o antecessor do STJ.
Em setembro, na véspera do depoimento de Ivan Hasslocher - o obscuro chefe do IBAD -, os
“ibadianos” aprovaram a suspensão da CPI, sob o pretexto de que o presidente da República atropelara o
Congresso, ao proibir as atividades do IBAD/Adep antes do fim dos trabalhos da Comissão.
Com apoio do líder da UDN, deputado Adauto Lúcio Cardoso – um dos candidatos udenistas que
Hasslocher proibira explicitamente que o IBAD/Adep oferecesse “ajuda” - o Congresso escolheu novos
membros para a Comissão: Ulysses Guimarães (PSD-SP) passou a presidi-la, no lugar de Peracchi
Barcelos; Pedro Aleixo (UDN-MG) substituiu Laerte Vieira como relator; e também entraram para a
Comissão: Bocayuva Cunha (PTB-RJ), José Maria Alckmin (PSD-MG), Getúlio Moura (PSD-RJ),
Temperani Pereira (PTB-RS), Adauto Lúcio Cardoso (UDN-GB), Bento Gonçalves (PSP-MG), Franco
Montoro (PDC-SP), Lenoir Vargas (PSD-SC), Affonso Celso (PTB-RJ), Manuel Taveira (UDN-MG),
Cantídio Sampaio (PSP-SP) e Geremias Fontes (PDC-RJ).
Conta Eloy Dutra:
“O Congresso mostrou que ainda não se tornara um órgão castrado. A atuação que teve, naquele
momento crítico do caso IBAD, não deixa margem a dúvidas quanto à vitalidade de alguns dos seus
membros. Tão logo os ibadianos, que predominavam na CPI do IBAD, resolveram suspender as atividades
da Comissão, à véspera do depoimento do chefete ibadiano Ivan Hasslocher, muitos observadores
chegaram a pensar que a batalha pendia para o lado das siglas e dos indivíduos a soldo do IBAD.
Entretanto, registrou-se apenas um momento de suspense. A alegação ibadiana de que os trabalhos da CPI
deveriam ser interrompidos em face do decreto presidencial que mandou fechar a ADEP e o IBAD,
“esvaziando e desrespeitando o Congresso em sua missão de apurar a verdade”, correspondeu a atitude
firme da Câmara, que renovou em alto nível todos os membros da CPI, por iniciativa dos próprios líderes
de partidos, bem como a enfatização das medidas tomadas na área do Executivo. Ao Executivo, ainda,
coube a enérgica atitude de firmar sua disposição de não permitir o surgimento de metástases do câncer
ibadiano – sob pena de ação judicial para coibir as fraudes às determinações do decreto que cerrou as
portas do IBAD e da ADEP. É que certos setores afirmaram que iriam fundar novos movimentos para
prosseguir ‘em defesa da democracia’, mantendo no ar os programas de rádio do IBAD e, mais ainda,
editando sua revista...“ (Eloy Dutra, “IBAD, Sigla da Corrupção”, Civilização Brasileira, Rio, 1963, p. 44).
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Com isso, os “ibadianos” deixaram de ser maioria na CPI. Porém, a maior parte do trabalho foi
realizada ainda quando eles estavam com a maioria. Deve-se àqueles cinco deputados (Rubens Paiva, Eloy
Dutra, José Aparecido, Benedito Cerqueira e João Dória) não permitirem que a CPI morresse, quando
outros, como disse o deputado Dória, se comportavam como advogados do IBAD. O mais notável, na
primeira fase da CPI, é como aqueles deputados conseguiram acuar os “ibadianos”.
Quando o “Correio da Manhã”, em 19 de julho, publicou uma lista de 111 deputados que receberam
dinheiro do IBAD, as reações foram da histeria ao ridículo, frequentemente acumulando os dois. Por
exemplo, declarou o deputado mineiro Abel Rafael, do partido fascista PRP (Partido de Representação
Popular, dirigido por Plínio Salgado): “Pertencer àquela lista é uma honra, porque a fina flor desta Casa lá
está. (...) Não acho absolutamente crime uma pessoa receber auxílio de terceiros, todo mundo aqui recebe ”
(cit. Jason Tércio, “Rubens Paiva”, Perfis Parlamentares nº 67, Edições Câmara, Brasília, 2013, p. 81).
Os “terceiros” do deputado integralista eram a CIA e uma série de multinacionais: Texaco, Shell,
General Electric, IBM, Coca-Cola, Pfizer, Ciba, Shering, Bayer, Standard Brands, British Tobacco,
Remington Rand, Belgo-Mineira, Allgemeine Elektricitäts-Gesellschaft (AEG) – e mais 138 outras, como
seria comprovado em seguida.
A lista incluía cinco membros da CPI, os deputados Laerte Vieira, Arnaldo Cerdeira, Anísio Rocha,
Régis Pacheco, Benedito Vaz e Peracchi Barcelos – que, aliás, confessou o crime como se fosse uma rara
virtude. Além disso, incluía o deputado Armando Falcão – depois, talvez, o mais notório ministro da
Justiça da ditadura -, o deputado Aliomar Baleeiro, ilustre prócer da UDN, e o presidente da Câmara,
Ranieri Mazzilli, que também era, depois da renúncia de Jânio, o vice-presidente de facto da República.
Réu confesso, o presidente do lacerdista “clube da lanterna”, Amaral Neto (UDN-GB), proferiu
uma peça oratória apaixonada em defesa do IBAD, que ficou conhecida como “O Discurso da Mala” (por
razões diferentes daquelas que fizeram um famoso assassinato ser chamado de “o crime da mala”...).
Amaral Neto era tão puxa-saco de Lacerda que era chamado de “vice-corvo” por Samuel Wainer, do
“Última Hora”. Corvo era o apelido de Lacerda, desde que, em maio de 1954, com aquele inevitável ar de
fariseu, comparecera, trajando preto dos pés à cabeça, ao enterro de um repórter do jornal “A Noite”,
Nestor Moreira, espancado brutalmente dentro de uma delegacia.
Como o objetivo nosso é, principalmente, expor fatos que os mais jovens não conhecem ou não têm
meios ou a oportunidade de conhecer, façamos aqui um breve parênteses, pois é impossível separar certas
escolhas políticas do próprio caráter de quem faz essas escolhas.
Alguns de nós, certamente, ainda lembram da época em que Amaral Neto era o titular de um dos
principais programas da Globo, uma infecta e ridícula bajulação da ditadura denominada “Amaral Neto
Repórter”.
Porém, mesmo aqueles que têm uma memória dita elefantina, provavelmente não lembram de
como surgiu o apelido pelo qual esse elemento ficou conhecido. A maioria, se perguntada sobre esse
palpitante tema, provavelmente dirá que ele surgiu no “Pasquim”, um pouco antes da prisão de quase
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toda a sua redação, em 1970. Nós assim acreditávamos. Porém, não é verdade.
O apelido surgiu no “Correio da Manhã” - um jornal moderado, muitas vezes conservador, que
apoiara o golpe de 1º de abril, mas passou rapidamente para a oposição à ditadura.
No dia 13 de maio de 1964, na página 2, aquele jornal carioca publicou um texto intitulado
“Retrato falado de um amoral”. Reproduziremos aqui a sua íntegra, pois, talvez, seja um dos textos
mais memoráveis – e, no entanto, de mais apagada memória – da imprensa brasileira:
“Um leitor de São Paulo escreveu-nos denunciando algumas torpes calúnias, proferidas por um
lumpen da política carioca, num programa de televisão paulista, contra o CORREIO DA MANHÃ.
“Procuramos então conhecer a ficha desse criminoso comum, hoje acobertado por imunidades
parlamentares. E colhemos as seguintes informações: “Seu verbete começa na Marinha Mercante, por onde
andou, aí nos anos 40. Alcaguete, traficante de tóxicos (atravessador), chantagista e mistificador,
costumava ainda dar o ‘golpe’ do marido ultrajado, forjando simulacros de flagrante de adultério. Era
ligado a três delinquentes juvenis, um dos quais de nome Alfredo, que foi, depois, funcionário do IAPM.
Certa feita chegou a promover uma farsa de ectoplasma, em que ele próprio se fez fotografar coberto de
uma túnica branca e transparente, como estando a encarnar – hélas! - o espírito de Vitor Hugo.
“Após o término da Segunda Guerra Mundial, ingressou na política pela porta dos fundos, como
informante de uma embaixada estrangeira. Posto na ilegalidade o Partido Comunista, começou ele sua
militância de anticomunista profissional. Daí saltou para o jornalismo marrom, editando uma revista de
escândalos, que se sustentava com o produto da chantagem.
“Em 1955, foi o principal acusado no inquérito encaminhado pelo DOPS à 23ª Vara Criminal, por
haver cometido crime de tentativa de subversão da ordem pública, de mistura com extorsões praticadas por
meio de insistentes ameaças. Nessa ocasião, confessou ao delegado Olavo Rangel que conspirava para
impedir a posse dos eleitos no pleito de 3 de outubro daquele ano.
“Prosseguindo em suas aventuras, conseguiu nada menos que um mandato de vereador e, em
seguida, de deputado, de que se tem utilizado como uma gazua de ouro. Assim é que, na Assembleia
Legislativa da Guanabara, envolveu-se na negociata dos impostos sonegados por exportadores de café,
advogando e conseguindo anistia para uma dívida de 6 bilhões de cruzeiros, em prejuízo dos cofres
públicos. Logo após quis demonstrar a inocência do governo Carlos Lacerda, de que era líder, na negociata
do ‘ferro velho’, acabando por confirmar que carros novos foram vendidos a cinco cruzeiros o quilo, como
se fossem sucata.
“Documento assinado pelos então vereadores Jair Martins, José Romero, Ubaldo de Oliveira e
Mourão Filho, exibido na televisão em 22 de novembro de 1960, acusava-o de ter oferecido, entre outras
coisas, 300 nomeações para os quadros do funcionalismo da Assembleia em troca de apoio parlamentar ao
chefe do governo, de quem era sócio e servidor. Para servir ao mesmo senhor, esteve envolvido no rumoroso
caso da permuta de terreno da Avenida Chile com o prédio de um vespertino da Rua do Lavradio.
“Em 1958, num acesso oratório, afirmou publicamente que o sr. Lacerda se havia ‘vendido’, ao
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candidatar-se a deputado, abandonando a ideia do golpe de Estado, enquanto que ele – conforme se tem
visto – deu o ‘golpe’ parlamentar para melhor se vender.
“Educado na escola da chantagem, sua língua não poupa sequer o mais alto tribunal do País.
Referindo-se à liminar concedida pelo ministro Ary Franco, do STF, à antiga Câmara de Vereadores, sobre
a inconstitucionalidade do Ato Institucional nº 1, declarou então: ‘Esta sentença pode e deve ser
desrespeitada, porque foi dada entre copos de uísque e champanha, nos bares de Brasília’. Essa agressão
brutal e absurda bem revela o estofo moral desse indivíduo, que hoje é bastante conhecido em certos
círculos por este feliz trocadilho: amoral nato”.
Esse era, na época, o principal parlamentar lacerdista, conhecido, depois do golpe de Estado, como
“alter ego do sr. Carlos Lacerda, candidato das forças moralistas ao Governo do Estado da Guanabara, e
porta-voz, na Câmara Federal, do movimento de 1º de abril” (Maia Neto, “Brasil – Guerra Quente na
América Latina”, Civilização Brasileira, 1965).
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O principal depoimento da CPI do IBAD foi prestado pelo governador de Pernambuco, Miguel
Arraes, nos dias 22 e 23 de agosto de 1963. Os presentes – inclusive o repórter Edmar Morel –
descreveram como “impressionante” o testemunho de Arraes, pela abundância de fatos e documentos
incontestáveis que basearam a sua candente denúncia. No que reproduzimos nesta página, os cortes
foram pequenos, e apenas por razões de espaço.
“Sou democrata e nacionalista. Por isso, venho depor nesta Comissão Parlamentar de Inquérito na
esperança de que sejam tomadas medidas efetivas para coibir a interferência do poder do dinheiro no
processo eleitoral”, iniciou Arraes.
“Entendo que democracia é o governo do povo e não de grupo ou de parcelas da população. Sendo
assim, as eleições já seriam falhas, porque delas não participam milhões de brasileiros analfabetos. Numa
cidade de um milhão de habitantes, como o Recife, votam apenas 20% - e do processo de escolha deixa de
participar exatamente a população mais necessitada. Em municípios onde domina o latifúndio canavieiro,
votam pequena parcela dos habitantes da cidade e poucos trabalhadores do campo. Não chega a 10% o
número de eleitores nos engenhos.
“Essa distorção do processo democrático em decorrência da estrutura legal do país, se não é
aceitável, tem que ser, pelo menos, compreendida. Isso decorre, porém, da esperança de que os próprios
dirigentes reconheçam a necessidade das mudanças e as realizem, usando as próprias condições que a
Constituição estabelece para tanto.
“Há os que assim pensam e não dispõem dos meios para fazer. Há também os que pensam
exatamente o contrário, isto é, os que pretendem conservar os privilégios, a qualquer preço e de qualquer
forma. Como dispõem de meios, passaram a se organizar e a utilizar todos os recursos para deformar o
nosso já precário sistema eleitoral, através de organizações, como o IBAD.
“Foi, agora, iniciado um processo para apurar a retenção de títulos eleitorais na zona pobre do
Recife, onde se acaba de derramar dinheiro, cobertores e sandálias, visando a distorcer o pleito municipal.
“Esse tipo de influência visa, sem dúvida, às camadas semialfabetizadas, não esclarecidas, que a
extrema necessidade tornou imediatista. A mãe de família tem que resolver naquele dia ou já devia ter
resolvido muito antes problemas que angustiam sua família: a falta de roupa para os filhos, o aluguel do
mocambo que atrasou alguns meses e toda a série de aflições que não permitem uma prolongada espera
pelas reformas de base, pela liquidação do desemprego e pela estabilização do custo de vida.
“Os democratas insistem em pregar ao povo a necessidade de reformas que possam resolver a
situação do país, como único caminho válido para o desenvolvimento em benefício de todos. Enquanto
isso, os grupos mais retrógrados procuram, a troco de dinheiro, confundir e mistificar e, sobretudo,
controlar e dominar os meios de divulgação, alguns dos quais se conseguem se manter independentes
gracas a condições especiais. Além disso, como ocorreu no Recite e está sendo apurado pelo TRE,
procuram influir nas camadas mais pobres, acenando com o imediato, que nada resolve, mas aparece com
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a força de um pão diante de um faminto.
“Essa distorção dos fatos se comprova através do que se tem dito de Pernambuco nos últimos
tempos. Fala-se em intranquilidade, em agitação e chovem as acusações ao Governo de pretender
promovê-la, quando nos esforçamos exatamente em promover a pacificação. A maior prova disso é o
entendimento, jamais feito entre usineiros e trabalhadores do campo, que acaba de ser realizado.
‘Se tudo continuar dessa forma, teremos cada vez menos condições de falar e a democracia se
afogará na comoção. Isso é exatamente o que pretendem os golpistas que sempre lutaram contra ela.
“A documentação de que dispomos é incontestável. Estribados no sigilo bancário, os responsáveis
procuram esconder a origem do dinheiro, os gastos imoderados e suas finalidades. Aqui estão, entretanto,
as provas.
“Nunca, em qualquer tempo, se mobilizaram em Pernambuco recursos financeiros tão compactos
como na campanha eleitoral de 62, visando a eleger um representante do poder econômico para o Governo
do Estado. A batalha que ganhamos contra o sr. João Cleofas foi a mais áspera e renhida de quantas já se
travaram em Pernambuco.
“Do lado do representante do poder econômico, todos os recursos foram utilizados: da intriga à
calúnia; da tentativa de calar a nossa voz à compra desbragada de consciências. Armou-se, em
Pernambuco, nos meses que antecederam a outubro de 1962, a mais brutalmente dispendiosa máquina
publicitária de que se tem notícia no Estado.
“Para se ter uma ideia do que se passou, basta lembrar um fato, ainda dos dias iniciais da
campanha.
“Quando o então governador Cid Sampaio preferiu o nome de um de seus secretários, o sr. Paulo
Maciel, ao do sr. João Cleofas, afastou-se este, num recuo estratégico, para uma de suas fazendas, na
cidade de Vitória de Santo Antão. Durante quinze dias a fio, o Recife foi coberto de dísticos, cartazes,
faixas, com um único slogan: “O povo gosta de Cleofas” Durante quinze dias a fio, em todas as estações
de rádio, sem exceção, de manhã, de tarde, de noite, de madrugada, transmitiu-se, de cinco em cinco
minutos, o slogan invariável: “O povo gosta de Cleofas”. Era quase a propaganda subliminar... Mas o
povo terminou mesmo não o elegendo.
“Já então se tinha mobilizado, e atuava desenvoltamente, com todos os largos recursos de que pôde
dispor, para atirar-se contra mim e eleger, fosse de que modo fosse, o meu adversário, essa monstruosa
máquina de corrupção eleitoral que se tornou conhecida pela sigla tristemente famosa de IBAD: o
chamado Instituto Brasileiro de Ação Democrática.
“Dinheiro em larga escala; veículos do último tipo, equipados com alto-falantes; contratos fabulosos
com jornais, estações de TV e emissoras de rádio; ofertas generosas em dinheiro e vasto material de
propaganda a quantos candidatos à deputação federal ou estadual formassem ao seu lado, tudo foi
utilizado com prodigiosa liberalidade. Nada se poupou. Não se poupou sequer o padre Vanderlei Simões,
meu atual secretário da Agricultura. Panfletos mentirosos, acusando-o de desobedecer ao arcebispo, foram
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espalhados à larga.
“Depois do pleito, conseguimos reunir alguma documentação esparsa, fragmentária, da ação do
IBAD em Pernambuco. Tudo isso forma um compacto dossiê, reunido em dois volumes, que ora vos trago
para que o examineis, confrontando com o que já conseguistes.
“O superintendente, em Pernambuco, do Instituto Brasileiro de Ação Democrática, era o sr.
Frutuoso Osório Filho, que lá permaneceu durante toda a campanha. Com procuração ampla, para atuar
em Pernambuco, dos srs. Ivan Hasslocher, Carlos Lavínio Reis e Barthelmy Beer, diretores da S.A
Incrementadora de Vendas Promotion, com sede na rua Marechal Câmara, 271, 8.° andar, grupo 801, o sr.
Frutuoso Osório Filho movimentou, em Pernambuco, entre 30 de maio de 62 a 1º de outubro do mesmo
ano, nada menos de Cr$ 308.057.100,00 e possivelmente mais Cr$ 107.000.000,00, de que temos algumas
referências.
“O coordenador-geral da “Promotion” em Pernambuco, coronel reformado Astrogildo Correia,
movimentou só no Banco Mineiro da Produção, exatamente Cr$ 63 353 247,60. Canhoto de 46 cheques
encontram-se na documentação reunida.
“Uma figura secundária, como o sr. Adeildo Coutinho Beltrão, movimentou, só no Banco Mineiro
da Produção, Cr$ 26.720.000,00. O sr. Adeildo informou que também movimentou recursos financeiros de
vulto no Banco Nacional do Norte.
“Estas são algumas das figuras que controlavam os recursos financeiros do IBAD, da “Promotion”
e da Adep em Pernambuco.
“A Adep, subsidiária do IBAD, deu ajuda financeira e cobertura publicitária através da imprensa,
rádio e TV, e ainda por meio de faixas e cartazes, a sete candidatos a deputado federal e a trinta e um
candidatos a deputado estadual.
“Elegeram-se, com a ajuda do IBAD, os deputados federais Costa Cavalcanti, Augusto Novais, Aldo
Sampaio, Arruda Câmara, José Meira c Aurino Valois. Não se reelegeu, apesar da ajuda, o ex-deputado
federal José Lopes de Siqueira Santos.
“Elegeram-se para a Assembleia Legislativa, com ajuda do IBAD, quatorze deputados estaduais:
Antônio Correia, Felipe Coelho, Suetone Alencar, Olímpio Ferraz, Francisco Sampaio Filho, Antônio Luís
Filho, Draiton Nejaim, Olímpio Mendonça, Antônio Barreto Sampaio, Elias Libânio, Adauto José de Melo,
Antônio Farias e Audomar Ferraz. Não se elegeram, apesar da ajuda do IBAD, os candidatos Aderval
Torres, Agripino Almeida, Luís Oliveira, Álvaro Costa Lima, Clodomir Moreira, Arnaldo P. Oliveira, José
Emídio Lima, Justino Alves Bezerra, Clóvis Correia, Antônio Pinto Ramalho, Francisco de Assis Barros,
Jurandir Barros, Dídimo Guerra, Constâncio Maranhão e Francisco Falcão.
“Para se ter ideia da largueza de recursos que o IBAD ostentava, bastará dizer que o sr. Lael
Sampaio, irmão do governador Cid Sampaio, recebeu, de uma só vez, através do cheque n.° 78.43.93,
contra o Banco Mineiro da Produção, a importância de cinco milhões de cruzeiros. Cheque emitido a 30 de
julho de 62.
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“Até o candidato João Cleofas, pessoalmente, sacou do IBAD: dois milhões. Cheque ref. 35, série
XXVIII, n.° 64.74.02. Emitido a 4 de setembro de 1962.
“As verbas utilizadas na imprensa, no rádio e na TV foram amplas.
“Para fazer o jogo do sr. Cleofas, o sr. Rui Cabral, produtor do programa semanal “Cadeira de
Engraxate”, na TV Canal 2 (Rádio Jornal do Comércio), recebeu do IBAD um milhão de cruzeiros. Na
documentação apreendida, o seu programa, ao lado de outros três, figura com a classificação de
“negociável”.
“O produtor de TV Fernando Castelão (”Você faz o Show” - Canal 2) recebeu do IBAD Cr$
200.000,00 somente para declarar que ia votar no sr. Cleofas.
“O sr. Severino Barbosa, do “Dramas da Cidade”, transmitido pela Rádio Clube de Pernambuco,
recebeu do IBAD, somente no mês de agosto de 62, a quantia de Cr$ 670.000,00.
“E até no Interior do Estado a ação corruptora do IBAD se fez sentir. No programa de aniversário
da Rádio Difusora de Caruaru, Geraldo Liberal e Florisa Rossi receberam Cr$ 30.000,00 para declararem,
pura e simplesmente, que iam votar no sr. Cleofas.
“Quero ressalvar que os nomes citados são de pessoas (a lista total é ampla) que receberam
dinheiro irregularmente. Alguns jornalistas e radialistas prestaram serviços profissionais no “bureau”
eleitoral do candidato, e não podem ser incriminados.
“Eis, em síntese, o que foi a ação do IBAD em Pernambuco. Os detalhes, alguns até aparentemente
insignificantes e miúdos, encontram-se no vasto “dossier” que reunimos em Pernambuco: planejamento
publicitário, movimentação bancária, fotos, compromissos assumidos de próprio punho pelos candidatos a
postos eletivos, declarações, impressos, esquemas, fac-símile de vários documentos, relação das viaturas
(todas do último tipo) postos à disposição da campanha eleitoral, cartas, bilhetes, recibos, notas fiscais,
balancetes — tudo está reunido no “dossier” que vos trouxe.
“É bem verdade que nos faltam alguns documentos importantes. O que conseguimos reunir são
peças isoladas de um ‘puzzle’, de um jogo de armar. Faltam muitas peças. Mas o que foi possível reunir aí
está. Dá uma ideia de como se exercitou a ação corruptora do IBAD. Da tremenda pressão que se exerceu
sobre o eleitorado Dos recursos que se mobilizaram para derrotar as forças populares e democráticas de
Pernambuco.
“Valeu tudo contra nós: a calúnia, a injúria e, sobretudo, o dinheiro.
“Quero, por fim, chamar a atenção desta CPI para a relação de firmas contribuintes do IBAD. São
152 ao todo, segundo a relação apreendida.
“Figuram no documentário empresas de petróleo, como a Texaco e a Shell, grande parte da
indústria farmacêutica estrangeira (Pfizer, Ciba, Gross, Shering, Enila, Bayer), a General Electric, IBM,
Coca-Cola, Tecidos Lundgren, Standard Brands, Companhia de Cigarros Sousa Cruz, Remington Rand,
Siderúrgica Belgo-Mineira, Companhia AEG de Eletricidade, Herm Stoltz, Lojas Americanas, empresa de
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perfumes Coty, Federação do Comércio do Recife e três estabelecimentos bancários (Novo Mundo, Irmãos
Guimarães e Nacional do Norte). Os nomes dos representantes dessas empresas também figuram no
documentário apreendido.
“As forças do IBAD estão tentando, agora, à vista das denúncias, das provas e documentos que a
cada dia se avolumam, forjar uma estranha teoria, segundo a qual:
“1) é legitimo que grupos econômicos, para defender seus interesses, se organizem com
instrumentos como o IBAD, IPÊS etc.;
“2) é legitimo que os grupos econômicos, através desses instrumentos, financiem candidaturas de
vereadores, deputados, senadores, prefeitos e governadores, comprometendo-se estes, em troca, a
defender os interesses dos grupos econômicos, apresentados como princípios democráticos, que cumpre
defender e preservar;
“3) é legítimo aos candidatos receber dinheiro para financiamento de suas candidaturas, pois é cada
dia mais caro o preço de uma eleição no Brasil.
“Ora, o preço de uma eleição é cada dia mais caro no Brasil, precisamente porque o preço da
corrupção e do suborno não têm limites. Essa estranha teoria da legitimidade da influência do poder
econômico no processo político, especialmente no processo eleitoral – estribada na qual muitos políticos e
homens públicos estão confessando haver recebido dinheiro do IBAD – essa estranha teoria é uma prova
de que em matéria de corrupção, de suborno, de traição aos legítimos interesses do povo brasileiro, já
atingimos o limite extremo do cinismo, da desfaçatez, incompatível com a dignidade de todo aquele que
recebe um mandato popular.
“Os forjadores dessa teoria, a quem a corrupção deixou sem brios, sem sensibilidade moral, já não
podem nem mesmo perceber que, se os grupos econômicos financiam e compram candidatos é para deles
exigir, uma vez eleitos, privilégios e favores vergonhosos, favores e privilégios que lhes devolvem, com
lucros fabulosos e quase inacreditáveis o dinheiro empregado nas campanhas eleitorais. E fingem
esquecer que é em consequência dessas negociatas que nosso povo a cada dia paga mais caro o pão com
que se alimenta, a casa em que mora. A roupa que veste.
“E o que é mais grave: ávidos de dinheiro e mais dinheiro, insensíveis aos problemas do seu povo e
à soberania de sua pátria, os forjadores e os aproveitadores desses instrumentos e dessa teoria já pouco se
importam de vender seus votos e suas consciências – e com isso nossa independência e nossa soberania – a
grupos econômicos internacionais que outros não são, nem poderiam ser, os financiadores do IBAD, os
promotores da corrupção.
“Os grupos econômicos autenticamente nacionais, esses nem estão interessados em financiar o
IBAD nem teriam os rios de dinheiro que têm, e acintosamente ostentam, os grupos internacionais. Seu
dinheiro provém de financiamentos do Banco do Brasil e de outras agências governamentais de crédito,
seu interesse deve ser o de desenvolver nossas possibilidades de produção e de riquezas, e nossa vergonha
nas bolsas internacionais da corrupção e do suborno.
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“Por tudo isso é que é necessário e é urgente, em nome de nossa honra nacional, que esta Comissão
de Inquérito diga, com todas as letras, que é crime de alta traição:
“1) a organização, no território nacional, de agências internacionais de pressão econômica sobre
nosso processo político e administrativo, tais como o IBAD, IPÊS etc.;
“2) que é crime de alta traição deixar-se subornar, sob qualquer pretexto, por essas agências. E
suborno, no caso, é a tradução do eufemismo ‘financiamento’, a cuja sombra os traidores querem passar
por bons moços inteligentes”.
E Arraes, aplaudido intensamente, encerrou seu depoimento na CPI do IBAD.
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Além do depoimento do governador Arraes, houve mais dois, entre os 34 depoimentos na CPI do
IBAD, que foram decisivos.
Um deles foi o de Arthur Oscar Junqueira, ex-secretário geral da Adep – o braço do IBAD para a
compra de candidatos – que rompera com Hasslocher depois, segundo afirmou, de algumas tentativas
frustradas de descobrir a origem dos recursos distribuídos na campanha eleitoral (a versão de Hasslocher
foi a de que Junqueira teria cometido um desfalque; não encontramos prova, porém, é verdade, por outro
lado, que Junqueira destruiu os documentos do IBAD, inclusive prestações de contas, que estavam em seu
poder, impedindo uma investigação mais precisa pela CPI).
Junqueira forneceu a sua avaliação das quantias, manipuladas pelo IBAD/Adep, à CPI:
DEPUTADO RUBENS PAIVA: Tive conhecimento, através de conversas com outras pessoas, de
que o senhor teria declarado que está convencido de que o IBAD havia empregado cerca de 5 bilhões de
cruzeiros em programas de televisão. Naturalmente, não estou lhe pedindo que me mostre como foram
aplicados 5 bilhões. Quero saber a sua impressão pessoal.
ARTHUR JUNQUEIRA: Quando a gente faz uma estimativa, pode fazê-la aproximadamente.
Quanto à referência a 5 bilhões, se levantássemos a existência do IBAD da data de sua fundação até o
presente momento, talvez ultrapassássemos essa cifra (grifo nosso).
Em seu livro sobre Rubens Paiva, de onde extraímos esse trecho do interrogatório de Junqueira,
Jason Tércio faz uma observação importante: “um apartamento de luxo em Ipanema, com três quartos e
duas salas, custava em média 12 milhões de cruzeiros em 1963”.
Hoje temos a prova de que, além das multinacionais, uma parte não pequena do dinheiro vinha
diretamente da CIA, pois, “documentos liberados em 2004 comprovaram que, durante a campanha
eleitoral de 1962, no Brasil, Gordon se reuniu na Casa Branca com o presidente John Kennedy e o
subsecretário de Estado para Assuntos Interamericanos, Richard Goodwin (…). Foi autorizada a liberação
de US$ 8 milhões para a CIA distribuir a candidatos e organizações de oposição. Cf. The Presidential
Recordings: John F. Kennedy. Charlottesville, VA: Miller Center of Public Affairs, Univ. Virginia” (Jason
Tércio, op. cit., p. 81, nota).
Somente por isso, é possível perceber como as declarações posteriores de Lincoln Gordon eram
mentirosas, mesmo quando ele não podia negar determinados fatos.
Arthur Oscar Junqueira fora um dos organizadores do “Movimento Popular Jânio Quadros” - e
aqui parece residir o erro da CIA, ao recrutar políticos para a estrutura do IBAD. Tudo indica que os
agentes da CIA não perceberam que Jânio Quadros, exatamente por suas características, fora apoiado, em
sua campanha à Presidência, não apenas pelos entreguistas da UDN, mas até por nacionalistas – o que,
aliás, possibilitou também a existência do “Movimento Jan-Jan” (Jânio para presidente e Jango para vicepresidente – na época, a eleição do vice-presidente era independente da eleição do presidente), lançado por
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Dante Pellacani em São Paulo.
Assim, o outro depoimento mais importante da CPI foi o do jurista Carlos Castilho Cabral – exdeputado, ex-presidente da anti-getulista “CPI da Última Hora” e ex-presidente do “Movimento Popular
Jânio Quadros”. Aparentemente – do ponto de vista da CIA – alguém com credenciais impecáveis. Mas...
Relata Edmar Morel:
“Coube ao autor deste livro o privilégio de entrevistar, em primeira mão, o jurisconsulto Castilho
Cabral, durante longas horas, quando o antigo presidente do ‘Movimento Popular Jânio Quadros’ fez
estarrecedora denúncia, narrando, detalhe por detalhe, a visita que recebeu do sr. Ivan Hasslocher, o
inspirador do IBAD, e que se fazia acompanhar do sr. John Foster Dulles Júnior. Nessa ocasião, os dois
prometeram um bilhão de cruzeiros ao sr. Castilho Cabral em troca de ele escolher a dedo candidatos ao
Senado Federal e à Câmara dos Deputados que jurassem não hostilizar o imperialismo norte-americano.
“É bom lembrar que o sr. John Foster Dulles Júnior é o presidente da Hanna, tendo o sr. Lucas
Lopes como cavalo de aluguel. O IBAD dispunha de espantosa quantia em dinheiro, proveniente do Fundo
do Trigo (40%), importância manipulada pelo embaixador Lincoln Gordon, o mentor dos Srs. Ivan
Hasslocher e Foster Dulles” (Edmar Morel, “O Golpe Começou em Washington”, Civ. Bras., 1965).
A Hanna Mining Corporation era um gigantesco monopólio norte-americano de mineração que
açambarcava boa parte do minério de ferro do Brasil - e a quem o notório Roberto Campos, segundo
testemunho de um amigo (dele), pretendia vender a Vale do Rio Doce.
O “fundo do trigo”, à disposição da embaixada norte-americana, era dinheiro para, supostamente,
financiar importações de trigo norte-americano pelo Brasil.
Quanto a “John Foster Dulles Júnior” - aliás, John Foster Dulles II -, era o neto do secretário de
Estado do governo Eisenhower, articulador e executor da “Guerra Fria” (e, não por acaso, advogado dos
Rockefellers e “chairman” da Fundação Rockefeller durante 17 anos). Dulles II era, também, sobrinhoneto do organizador da CIA, Allen Dulles.
Castilho Cabral recusou a proposta de Dulles e Hasslocher. Eles haviam avaliado de modo
desastroso o objeto de seu assédio, como se pôde ver na CPI do IBAD:
DEPUTADO RUBENS PAIVA: V.Exa., em seu depoimento brilhante desta manhã, nos dizia que
ao examinar o problema do IBAD, Adep, etc., encontrou como uma das imposições sérias o fato de essas
entidades resolverem incluir em seu programa a defesa do capital estrangeiro e interferir na linha da
política externa do país. Entendia V.Exa. Que não cabia a entidades dessa natureza tais assuntos. Indago
de V.Exa.: terá isto que ver com alguma eventual simpatia para efeito da obtenção de fundos a ser
conquistada entre as agências do capital estrangeiro em nosso país?
CASTILHO CABRAL: Seria julgamento objetivo muito difícil de produzir neste momento. O que
declarei e que consta da exposição inicial, como de várias passagens desta inquirição, é que constando do
programa publicado pela revista Ação Democrática como sendo da Ação Democrática Parlamentar – e que
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o grupo Hasslocher desejava entrasse com o programa-manifesto da Ação Democrática Popular –,
constando desse folheto um item relativo ao apoio ao capital estrangeiro, eu não concordava com isto,
porque acho que nenhum partido político brasileiro deveria colocar no seu conjunto programático um item
desse tipo, porque tolheria mais tarde a liberdade dos membros desse partido de se pronunciarem no
Parlamento ou fora dele por qualquer restrição ao capital estrangeiro em nosso país (...). Por isso mesmo
constituiu isto uma das razões de minha recusa em dirigir a nova organização.
Desde o princípio, a luta, na CPI, centrou-se na origem dos recursos dispendidos pelo IBAD/Adepe.
Quando os deputados ibadianos levantaram que os recursos eram “nacionais” e vinham da indústria –
portanto, segundo eles, não haveria problemas em recebê-los -, replicou o deputado Rubens Paiva:
“... cerca de metade da indústria dita brasileira na realidade é indústria estrangeira. Acho
inteiramente espúrio se criar neste país, à sombra de grande poder econômico, sobretudo das indústrias
estrangeiras, agências econômicas de grandes monopólios estrangeiros, essas siglas todas que constituem
o próspero parque industrial da indústria anticomunista que, ao que estamos vendo, é talvez daquelas
mais rendosas, que dispõem de maiores recursos” (cf. Jason Tércio, “Rubens Paiva”, Perfis Parlamentares
nº 67, Edições Câmara, Brasília, 2013, p. 69).
A questão, aqui, como destacou, no relatório final, o deputado Pedro Aleixo (UDN-MG), residia no
seguinte:
“Incontestavelmente, tem para nós a maior importância a indagação sobre a origem das
contribuições ou auxílio pecuniário. É que na lei nº 1.164, de 24/07/1950 [o antigo Código Eleitoral, que
antecedeu o atual], está inscrito: ‘É vedado aos partidos políticos: I – Receber, direta ou indiretamente,
contribuição ou auxílio pecuniário ou estimável em dinheiro de procedência estrangeira’“ (cf. Parecer do
relator, Diário do Congresso Nacional, Ano XVIII, Nº 108, Seção I, 14/12/1963, p. 9943).
É verdade que, como também nota o relator, “se, como está expresso nos dispositivos legais
transcritos, não se apurar qual é a procedência das contribuições ou dos auxílios pecuniários, se não forem
individuados os contribuintes, temos que forçosamente concluir que são ilícitos os recursos financeiros,
porque a origem deles não está mencionada” (idem).
No entanto, a questão da origem estrangeira (isto é, norte-americana) do dinheiro derramado pelo
IBAD nas eleições de 1962, continuava a ser o centro da questão – e da luta –, até porque não haveria
necessidade de investigar se o dinheiro fosse de origem lícya. Na verdade, era um daqueles casos, algo
paradoxais, em que é necessário provar uma ilicitude evidente por si mesma.
O resultado é que isso abriu espaço – afinal, o relator era um dos bacharéis da UDN - para um
relatório paulificante. É preciso muita paciência para suportar, logo de início, uma quase interminável e
abstrata dissertação sobre as CPIs na legislação, na doutrina jurídica e na jurisprudência ao redor do
mundo e ao longo da história. Esse introito, felizmente, pode ser ignorado, ou seja, “pulado”. O mesmo,
desgraçadamente, não se pode fazer com outros trechos que repelem o leitor por seu estilo fastidioso...
Apesar disso, o relatório apontava uma série de irregularidades e delitos – e, em vários aspectos,
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era bastante detalhado. Por exemplo, hoje, por sua leitura, é forçoso concluir que não era apenas entre os
parlamentares que a CIA estava atuando através do dinheiro do IBAD. É óbvia a conclusão de que se
estava tentando penetrar no meio militar não somente através da ação pessoal de Vernon Walters, o
futuro diretor da CIA (nessa época, adido militar dos EUA no Brasil e conselheiro de Castelo Branco),
mas também através do IBAD.
Sobre isso, são muito esclarecedores os depoimentos dos generais reformados Victor Moreira Maia e
João Barbato. O primeiro deles fora, inclusive, assessor do marechal Lott na campanha à Presidência.
Por suas qualidades, o relatório do deputado Pedro Aleixo foi aprovado pela CPI, por unanimidade,
em dezembro de 1963. No entanto, permaneciam os defeitos, especialmente a questão da origem
estrangeira do dinheiro, que seria confirmada pelos próprios norte-americanos mais de uma década
depois, e outra – o peso real da interferência do IBAD nas eleições –, que, no relatório, eram, ambas,
muito subestimadas.
Em razão disso, o deputado Temperani Pereira (PTB-RS) apresentou declaração de voto – também
subscrita pelo deputado Affonso Celso (PTB-RJ):
“Se bem não haja a confissão expressa de nenhum dos responsáveis pela máquina corruptora de que
a procedência dos recursos utilizados fosse estrangeira, e inexistindo igualmente uma comprovação
documentada desses recursos (que no inquérito ficaram, no atual estágio de investigação, genericamente
como desconhecidos e ocultos), entretanto, os elementos circunstanciais e indiciários levam-nos a uma
fundada suspeita de que tais recursos eram estrangeiros”.
Depois de citar alguns depoimentos colhidos pela CPI, prossegue o parlamentar gaúcho:
“Arrolemos, a seguir, alguns elementos relativos à formação psicológica, ideológica e comercial do
pró-homem do IBAD, sr. Ivã Hasslocher, elementos que valem no conjunto circunstancial:
“a) vol. 10, fls. 2 096 e seg., declarações do sr. Ivã Hasslocher: até pouco antes de fundar a
“Promotion”, viveu, estudou e trabalhou no exterior (EUA e Europa). Isto é, fundou a “Promotion” (e
depois o IBAD) com título estrangeiro, partindo da vivência e convivência exclusivamente estrangeira, pois
não residira desde menino no Brasil, aqui não estudara, não trabalhara nem fizera ambiente;
“b) declarações do mesmo sr. Ivã Hasslocher, vol. 10 folhas 2.108, em que confessa ter levado, para
uma entrevista, o sr. John Foster Dulles Jr, diretor da Hanna Co., ao senhor Castilho Cabral, então
apontado futuro ministro das Relações Exteriores do presidente Jânio Quadros, já eleito; a apresentação se
fez através do declarante porque, segundo confessou, mantinha relações, cordiais com o dirigente da
empresa estrangeira, ‘feitas um ano antes da apresentação ao sr. Castilho Cabral’;
“c) o fato estranho de, segundo o depoimento do sr. Ivã Haslocher e o do sr. Castilho Cabral, ter o
primeiro proposto ao segundo ‘fizesse os trabalhos eleitorais da ADEP’ (I. Hasslocher), podendo para tanto
dispor ‘de somas superiores a 1 bilhão de cruzeiros, que poderiam até ser elevadas às vésperas das eleições
(C. Cabral), e, segundo o sr. Ivã Hasslocher, o que não foi concretizado ‘porque não teve boa impressão do
sr. Castilho Cabral’, tendo este, por seu turno, afirmado ter recusado o lugar por não haver ficado
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satisfeito com o sigilo mantido pelo sr. Ivã Hasslocher acerca da origem de tão astronômica quantia, e
também porque não concordou com determinados itens do programa da ADEP, principalmente os relativos
à política externa do Pais e à participação do capital estrangeiro na economia nacional,
intransigentemente defendida pelo sr. Ivã Hasslocher (ver depoimento do sr. Castilho Cabral, vol. 10, fls.
1810 e seguintes).
“Assim, entendemos que a inquinação de que o órgão corruptor tinha financiamento estrangeiro
encontrou no inquérito elementos básicos para informar um libelo perfeitamente apto a que se prossiga, no
Poder Judiciário, a averiguação devida do fato” (cf. Declaração de voto, Diário do Congresso Nacional,
ed. cit., p. 9962-9963).
Além disso, sobre a importância da atividade do IBAD na distorção ou desrespeito – através da
corrupção – à verdade eleitoral:
“... embora os resultados perseguidos pelo IBAD não tenham sido alcançados satisfatoriamente, isso
se deveu a causas estranhas à intenção do órgão financiador e dos que foram financiados. (…) Se foi
mínima ou nula a influência do IBAD, como assinala o relator, pela conclusão de que a maioria dos
financiados não conseguiu eleger-se, este é um fato que deve ser saudado e tributado ao esclarecimento
popular. Graças à politização do povo e à desclassificação do órgão subvencionador, já percebida pelo
eleitorado, foi relativamente pequeno, admitimos, o número dos que se elegeram por força exclusiva do
IBAD. Mas não se pode, em termos do bom senso e da experiência política, afirmar que uma propaganda
de milhões de cruzeiros, com faixas, cartazes, vistosos cartazes, viaturas com alto-falantes, propaganda de
rádio e televisão, fosse inoperante naqueles núcleos eleitorais mais influenciáveis pelos meios publicitários.
Não temos dúvida em afirmar a existência de deputados federais que certamente se elegeram graças ao
IBAD.
“Aqui fica positivamente clara a nossa posição. Não inquinamos de fraudulenta a eleição de todos
os candidatos que tiveram financiamento do IBAD. Achamos mesmo que a maioria deles foi mero
instrumento da cavilosa organização, sem ciência e consciência do papel que estava representando. Foram
os ‘inocentes úteis’ que, devidamente esclarecidos, talvez houvessem repudiado aquele financiamento
aviltante, como alguns o fizeram da tribuna da Câmara, posteriormente.
(…)
“Não nos parece possa ser qualificada de ‘simbólica’ a ajuda que o IBAD prestou a candidatos a
postos eletivos; tal conclusão resulta de um raciocínio abstrato e por exclusão, que se nos afigura ao
arrepio das confissões e das evidências” (cf. idem).
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7
Alguns leitores podem indagar por que estamos expondo, com algum detalhe, os acontecimentos
que desembocaram na CPI do IBAD.
Um dos motivos está em nosso título – que é uma citação de Julius Fucik, na sua impressionante
“Reportagem sob a forca”, um dos maiores livros (certamente não pelo número de páginas) da
História da humanidade.
Torturado barbaramente pela Gestapo e esperando a morte, Fucik escreveu:
“Só peço uma coisa: aos que sobreviverem a esta época, que não esqueçam. Não esqueçam nem aos
bons, nem aos maus. Reúnam com paciência os testemunhos dos que tombaram por si e por vocês. Um dia,
o hoje pertencerá ao passado e se falará de uma grande época e dos heróis anônimos que fizeram história.
Quisera que todo mundo soubesse que não houve heróis anônimos. Eram pessoas com nome, com rosto,
com desejos e com esperanças – e a dor do último dos últimos não foi menor do que a do primeiro, cujo
nome perdura. Quisera que todos eles estivessem em torno de vocês, como membros da sua família, como
vocês mesmos.
“Os nazistas exterminaram famílias inteiras de heróis. Amem pelo menos a alguns deles, como se
fossem um filho ou uma filha, e sintam-se orgulhosos dele como de um grande homem que viveu para o
futuro. Cada um dos que serviram fielmente ao futuro e tombaram para fazê-lo mais belo, é uma figura
esculpida em pedra. E cada um daqueles que, com o pó do passado, quiseram construir um dique para
deter a revolução, não são mais que figurinhas de madeira, ainda que tenham os braços carregados de
galões dourados.
“Mas é necessário ver também as figurinhas, vivendo em sua infâmia, em sua imbecilidade, em sua
crueldade e em seu ridículo, porque é um material que nos servirá para o futuro.
“Eu posso dar a vocês somente o material que corresponde à declaração de uma testemunha. É
limitado e sem o transcurso no tempo, tal e como pude vê-lo no pequeno setor em que atuei. Mas contém
traços de uma verdadeira imagem da vida: os traços dos grandes e dos pequenos, das figuras e das
figurinhas” (ext. de Julius Fucik, “Reportaje al pie de la horca”, trad. Esp. Libuse Prokopova, Akal,
Madrid, 1985).
Outro motivo para nosso detalhamento – bem longe de exaustivo – pode ser percebido pelas datas.
De dezembro de 1963, quando foi aprovado o relatório da CPI do IBAD, foram apenas três meses
até o golpe de Estado, a 1º de abril de 1964.
Em 6 janeiro de 1963 ocorrera o plebiscito que devolveu os poderes constitucionais ao presidente
Jango. Portanto, o presidente teve pouco mais de um ano para governar plenamente.
Depois de quatro derrotas (na tentativa de golpe de 1961, nas eleições de 1962, no plebiscito de
1963 e no estouro do IBAD), o imperialismo norte-americano jogou, como se diz em xadrez, uma
“combinação desesperada” – que poderia, perfeitamente, terminar em desastre do ponto de vista de seus
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interesses financeiros e monopolistas.
Como sabem os jogadores de xadrez, uma “desesperada” é uma tentativa tática de reverter uma
desvantagem, geralmente estratégica (”posicional”, como se diz na teoria enxadrística). Não é à toa que
esse recurso tático tem o desespero no próprio nome.
Parece estranho, visto seu poderio militar e econômico, chamar de “desesperada” a tática do
imperialismo norte-americano. Mas não resta dúvida de que a possibilidade do Brasil se libertar, como
disse o chefe operacional da CIA no Brasil a Philip Agee, deixava longe os então recentes acontecimentos
em Cuba. Além de manter e ampliar os interesses norte-americanos já estabelecidos dentro do Brasil, os
EUA não queriam, como observou Celso Furtado em “A Fantasia Desfeita” - seu livro de memórias do
período 1958-1964 - um concorrente econômico e político dentro do que considerava sua área de
influência.
É verdade que não era inevitável o desfecho de 1º de abril. Toda a discussão que se seguiu ao golpe,
sob o caráter do erro cometido, mostra que já naquela época havia uma consciência sobre essa questão.
Hoje, é risível a história de que a “esquerda” deveria ter seguido San Tiago Dantas para evitar o
golpe. A tese parece ser a de que não haveria golpe se todos se submetessem à política norte-americana...
Mas não é verdade. O golpe seria o mesmo, do ponto de vista que interessa: a opressão e pilhagem
sobre a Nação, sobre o povo. Apenas, o lado que poderia resistir estaria silencioso...
Como isso era – e é – impossível, resta observar que a submissão, exceto em aspectos secundários, à
política norte-americana era a característica do que San Tiago chamava de “esquerda positiva”, tão
positiva que não incluía nem Barbosa Lima Sobrinho ou o marechal Osvino Ferreira Alves. No frigir dos
ovos, a “esquerda positiva” de San Tiago resumia-se a ele mesmo. Quanto à “esquerda negativa”, não era
apenas, como já se disse, Brizola e a ala mais nacionalista do PTB – para San Tiago, ela incluía qualquer
um que se opusesse à sua política, que, qualitativamente, pouco se distinguia do receituário do FMI.
[Celso Furtado, no livro que mencionamos, acredita que San Tiago Dantas quisesse colocar alguma
“racionalidade” na política brasileira. No mesmo capítulo, relata um telefonema em que David Rockefeller
“espinafrou” (sic) San Tiago Dantas, ministro da Fazenda do Brasil, por conta de um projeto de lei, de
iniciativa parlamentar, sobre a nacionalização dos bancos. Que San Tiago se deixasse “espinafrar” por um
magnata norte-americano – e que este sentisse espaço para essa “espinafração” - é, precisamente, o
problema de San Tiago Dantas. O que ele achava “racional” sempre era a manutenção do statu quo, no
máximo com alguns adornos. Dificilmente as posições do próprio Furtado nessa época, sobre as “reformas
de base”, sintetizadas em documento entregue a Jango, deveriam parecer sensatas a San Tiago – apesar
de Furtado, certamente, não constituir, longe disso, a ala esquerda do governo. Mas é verdade que San
Tiago apoiou o “Plano Trienal”, de Furtado. Certamente, deve ter achado muito “racionais” as concessões
ao FMI que seu próprio autor, muitos anos depois, reconheceria (ainda que como manobra política para
calar os “técnicos” do Fundo; como ele mesmo aponta, o problema com o FMI nunca foi “técnico”).]
Aqui, apenas acrescentaremos algo já mencionado por vários autores: no dia 1º de abril, a opção do
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presidente de evitar um banho de sangue infrutífero, foi tomada após saber que uma esquadra dos EUA se
aproximava da costa brasileira.
Jango, depois, relataria ao procurador-geral da República de seu governo, Waldir Pires, que, três
dias antes do golpe de Estado, San Tiago Dantas foi ao Palácio das Laranjeiras e disse: “presidente, eu
quis muito conversar com o senhor, vim aqui porque quero que o senhor não permita que isso aconteça. Os
Estados Unidos estão preparados para a guerra civil do Brasil. Tenho muita certeza de que a esquadra
americana do Atlântico Sul se deslocou para perto do Brasil e, se houver uma guerra, os Estados Unidos
fazem a intervenção”.
Como San Tiago Dantas soube disso três dias antes do golpe, quando a “Operação Brother Sam”,
apesar de planejada, não fora ainda deflagrada – o que só aconteceria às 13:50 h do dia 31 de março?
Porém, pode ser um lapso. Segundo Hélio Silva, a visita de San Tiago Dantas ao Palácio das
Laranjeiras foi no final da manhã de 1º de abril. O significado é idêntico ao relatado por Waldir Pires, mas
o tom é até mais sinistro:
“Numa reunião para exame da situação no Palácio das Laranjeiras, o presidente João Goulart
estudava com alguns assessores nomes que poderiam ser indicados para a intervenção federal em Minas.
Foi nesse instante que o professor Clementino San Tiago Dantas interveio: ‘Não devemos nos deixar
perturbar pelas emoções. É hora de nos mantermos com a cabeça fria. Não podemos nos dar
ao luxo de sermos mais imprudentes. Como o senhor deve saber, presidente, o Departamento
de Estado norte-americano hoje não sofre mais a influência da política de Kennedy, sofre
outras influências, bem diversas. Não é impossível que esse movimento de Minas venha a ser
apoiado pelo Departamento de Estado. Não é impossível que ele tenha se deflagrado com o
conhecimento e a concordância do Departamento de Estado. Não é impossível que o
Departamento de Estado venha a reconhecer a existência de um outro governo em território
livre do Brasil’. O presidente quis saber se o professor estava só especulando. ‘Não’, respondeu o
professor” (Hélio Silva, “1964: Golpe ou Contragolpe?”, 4ª ed., Porto Alegre, L&PM, 2014).
Atualmente, existe uma alentada bibliografia sobre San Tiago Dantas – a maior parte, fantasiosa e
muito ignorante.
San Tiago Dantas era profissionalmente um advogado de empresas norte-americanas, autor de um
“parecer jurídico” contra a posse de Getúlio em 1950 – respaldando a posição de Lacerda, e outros
golpistas, completamente ao arrepio da Constituição de 1946 – e ligado aos testas-de-ferro dos
Rockefellers. Foi também um dos redatores do relatório Abbink, da Comissão Abbink-Gouveia de Bulhões
(o nome oficial era “Comissão Brasileiro-Americana de Estudos Econômicos”), que recomendava ao
governo Dutra, entre outras coisas, a privatização das estatais.
Devido à tremenda confusão que ainda permanece, somos obrigados a nos estender mais do que
pretendíamos sobre essa questão. Mas vale a pena.
Expressões usadas por Dantas, do tipo “nacionalismo democrático”, não são conceitos, seja lá de
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que terreno for do conhecimento. Pelo contrário, são chavões, vazios de significado, exceto o de,
tendenciosamente, alcunhar de não-democráticos os nacionalistas, isto é, os que compreendiam a
dominação imperialista como o principal obstáculo tanto ao desenvolvimento nacional quanto à
democracia no Brasil. Se alguma utilidade teve a ditadura instalada em 1964 foi a de não deixar dúvidas,
por oposição, sobre o vínculo inseparável, nos países dependentes, entre nacionalismo e democracia –
afinal, não foram os nacionalistas que perpetraram o golpe nem instalaram a ditadura. Até porque, não
precisavam: muito mais lhes servia a democracia. Exatamente por isso, o imperialismo e seus serviçais
entreguistas a liquidaram.
É uma anomalia – mais ideológica que histórica – a atribuição a Dantas de uma suposta “política
externa independente”, embora seja esse o nome de seu mais conhecido livro, onde, logo em sua
introdução podemos encontrar a postulação de que “[a coexistência pacífica] é uma coexistência
essencialmente competitiva (…). Foi o mundo socialista, e não ocidental, que pretendeu evitar esse contato
competitivo através da instituição do isolamento sistemático, ou seja, da ‘cortina de ferro’. A política de
aproximação com o Ocidente, hoje aceita e encorajada pelos dirigentes soviéticos, vem ao encontro de uma
atitude que o mundo nunca repeliu” (San Tiago Dantas, “Política Externa Independente”, edição
atualizada, Fundação Alexandre Gusmão, Brasília, 2011, p. 12).
Não precisamos transcrever mais, nem demonstrar que essa posição da “política externa
independente” de San Tiago Dantas era, precisamente, a posição do establishment norte-americano, em
especial do ideólogo do Departamento de Estado, George F. Kennan.
Outras afirmações de Dantas não ficariam deslocadas na boca – ou nos textos – de Roberto Campos
ou Eugênio Gudin et caterva.
Por exemplo:
“O maior incremento da iniciativa pública, num país como o nosso, não tem significado um
aumento efetivo de produtividade, mas uma elevação dos custos internos”; ou:
“a empresa estatal surge como um aparelho de destruição do desenvolvimento econômico, sob a
aparência de promovê-lo”; ou:
“o incipiente processo de absorção das atividades econômicas pelo Estado a que estamos sendo
arrastados (…) é por isso uma etapa de transição para o totalitarismo”.
Basta a Petrobrás para expor a inanidade subserviente dessa ideologia – de resto, com endereço
certo: os ouvidos dos monopolistas financeiros norte-americanos e seus representantes políticos. Assim,
há também apelos para que estes sejam mais compreensivos. Por exemplo: “a sobrevivência dos EUA e do
estilo democrático de vida não é possível num mundo onde coexistam níveis exageradamente diversos de
bem-estar social e riqueza”.
Hoje, com a Constituição dos EUA rasgada publicamente pelos “atos antipatrióticos”, não há
ninguém inteligente que associe a “sobrevivência” dos EUA – tal como agora são – e a “sobrevivência” da
democracia. Mas, alto lá: o professor San Tiago Dantas evitou a palavra “democracia”; ao invés, falou de
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“estilo democrático de vida”. O que quer dizer absolutamente nada. Apenas, ele considera que o
“american way of life”, estribado na exploração, miséria e fome da maior parte da Humanidade, é o estilo
de vida ideal para as elites servis dos países periféricos – e chama isso de “estilo democrático”.
Ou, talvez, tal “estilo” seja a expressão de seu sábio ensinamento de que “o direito é a disciplina do
equilíbrio social e sua excelência se mede pela exatidão com que modera e contrasta as forças em trabalho
pela desagregação da sociedade”.
O curioso, aqui, não é a abstração que ele faz da palavra “sociedade”, como se não existissem
sociedades antissociais, isto é, decadentes, que demandam ser reformadas ou revolucionadas. O curioso é
como, mesmo numa sociedade nesse patamar, o professor San Tiago Dantas prega o “equilíbrio social”
pela “moderação” e “contraste” com as forças que trabalham pela mudança. Uma posição rara, pelo
reacionarismo, até mesmo entre aqueles que nunca passaram fome e outras dificuldades – ou nunca foram
violentados em seus direitos.
Dantas, por sinal, após sua entrada no PTB, não negou (talvez porque fosse inútil) as façanhas
anteriores – apenas dizia que “reformulara” suas opiniões. Assim, chegou a ministro das Relações
Exteriores e da Fazenda, e até a candidato (derrotado) ao cargo de primeiro-ministro.
Mas os petebistas que, sobretudo a partir de 1958, denunciaram que Dantas era o mesmo de
sempre, estavam, essencialmente, com a razão – e não é um acaso que seu elogio fúnebre, em setembro de
1964, tenha vindo de Afonso Arinos, tedioso udenista que estivera na primeira linha do golpismo.
Talvez o melhor retrato psicológico de San Tiago Dantas seja, involuntariamente (porque pretendia
ser um elogio), aquele que lhe fez Clarice Lispector em “A Descoberta do Mundo”. Apenas um pequeno
trecho: “... Não posso dizer quantas rosas ele comprou para mim. Sei que eu andava pelas ruas sem poder
carregar tantas, e à medida que eu andava as rosas caiam pelo chão. Se jamais fui bonita foi naquele
amanhecer de Paris com rosas caindo de meus braços plenos”.
Não era apenas em relação a mulheres que, muito injustamente, achavam-se feias que ele exercia
sedução. Há pelo menos um relato de como alguns membros da direção do PCB, na época, ficaram
entusiasmados com Dantas, quando o Brasil, com ele no Ministério das Relações Exteriores, reconheceu a
URSS. Por mais importante que tenha sido – e foi, realmente, importante – tratava-se, para San Tiago, do
equivalente político das flores de Clarice, dirigidas à esquerda. A ponto de quase ser esquecido, por longos
anos, o primeiro-ministro que decidiu a questão – Tancredo Neves – até que ele mesmo o lembrou, na
campanha para a Presidência que derrubou a ditadura.
Essa superficialidade era, em San Tiago Dantas, uma segunda (talvez primeira) natureza. Como se
a vida pudesse ser levada sem conflitos, pela submissão das pessoas à algumas aparências. Assim, depois
de ser um expoente do integralismo, não teve dificuldades em sair da “Câmara dos 40” (o órgão máximo
da Ação Integralista) quando as coisas se tornaram perigosas. Nem de passar de jurisconsulto antigetulista, e de arauto do entreguismo, a vice-líder do PTB na Câmara e ministro petebista das Relações
Exteriores e da Fazenda – sem que nada mudasse, substancialmente, exceto alguma coisa na retórica.
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Somente em 1955, quando o presidente Juscelino quis nomeá-lo para o Ministério da Agricultura,
San Tiago Dantas filiou-se ao PTB – pelo acordo com o PSD, o titular da Agricultura seria indicado pelo
partido de Jango, que, aliás, vetou o nome de seu neo-filiado para o Ministério.
Mas ele somente chamou a atenção dos nacionalistas quando se candidatou a deputado federal por
Minas Gerais e passou a inflacionar os custos da campanha eleitoral. Na verdade, sua chance de obter a
candidatura e se eleger pelo lugar onde sempre atuara (o Distrito Federal, a cidade do Rio de Janeiro)
eram muito poucas. Daí a opção por Minas.
Porém, em 1958, o nacionalismo já ganhara terreno em todos os partidos. Por exemplo, um dos
principais nomes da Frente Parlamentar Nacionalista era o deputado Gabriel Passos, da UDN de Minas.
Depois de uma conferência de Passos (futuro ministro das Minas e Energia de Jango) em
Divinópolis, o prefeito da cidade, Luiz Fernandes de Souza, também da UDN, pediu ao respeitado
jornalista Plínio de Abreu Ramos, ligado ao PTB, que fizesse uma intervenção. Um trecho:
“Os eleitores nacionalistas da UDN já têm um candidato em quem devem votar: é o conferencista
que hoje vos falou, o deputado Gabriel Passos.
“Os nacionalistas do PTB e do PR se defrontam, em seus partidos, com maior sobrecarga de
responsabilidades. Refiro-me à inclusão do Sr. Walter Moreira Sales na legenda republicana e do Sr. San
Tiago Dantas na legenda trabalhista. O primeiro, além de representante de cerca de 35 empresas e
organizações bancárias norte-americanas no Brasil, todas elas integradas do Grupo Rockefeller, é
criminoso impune e poderoso, incurso em dois graves atentados cometidos recentemente contra a economia
e a segurança do país: na refinaria de sua propriedade, a Capuava, ultrapassou a cota legal de produção
autorizada pela lei 2.004, com o objetivo irrecusável de prejudicar as atividades da Petrobrás. Em seguida,
é apontado e denunciado como especulador do café na Bolsa de Nova Iorque, como um dos beneficiários da
manobra baixista contra a estabilização dos preços do nosso principal produto de exportação.
“E o Sr. San Tiago Dantas?
“É um profissional esperto e velhaco da advocacia administrativa contratado por Walter Moreira
Sales e, ainda por influência de Walter, diretor do ‘Jornal do Comércio’ e vice-presidente da Capuava” (O
Semanário, 22 a 29 de maio de 1958).
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Para o leitor com alguma idade, que passou o dia 1º de abril de 1964, por assim dizer, com o ouvido
colado na rádio Mayrink Veiga – o principal órgão de comunicação dos nacionalistas nesse dia – a menção
de Hélio Silva à chegada de San Tiago Dantas no Palácio das Laranjeiras ao final da manhã, insistindo
que os EUA iam intervir, tem uma ressonância específica: durante toda essa manhã, a expectativa era de
esmagamento rápido da tentativa de golpe.
Ainda que seja necessário não se ater apenas às aparências – daí o cunho relativo do que vem a
seguir – o clima político na manhã daquele dia não pode ser atribuído a notícias falsas. Seria impossível
tal falsificação do ânimo.
Pois era verdade que o general Ladário Pereira Teles chegara a Porto Alegre, assumira o comando
do 3º Exército, a tropa decisiva que impedira o golpe em 1961, e lançara a ordem do dia:
“... acabo de assumir o comando do 3º Exército. Julgo-me perfeitamente conhecido não só pelos
camaradas do 3º Exército como também pelos demais companheiros do Exército brasileiro. Sempre fui
intransigente defensor da lei e da ordem e amante dos princípios democráticos. Aqui me encontro para
cumprir rigorosamente as ordens das autoridades superiores. Todos os sacrifícios faremos para que a lei e
a ordem sejam restauradas em todo o território nacional. Ninguém arrebatará das mãos do preclaro
presidente João Goulart a bandeira da legalidade. O seu mandato é intocável porque é a expressão da
soberania nacional. A força satânica dos privilégios não arrancará, do povo brasileiro, a bandeira das
reformas. Por elas lutaremos, Exército e povo, sempre unidos, sempre uníssonos nos sentimentos, como
temos sido em todo o decorrer da nossa história. Companheiros do 3º Exército, seus patrícios do Rio
Grande do Sul, de Santa Catarina e do Paraná, brava gente brasileira, como representante do
excelentíssimo senhor presidente da República, senhor João Goulart, e sob as ordens do eminente ministro
da Guerra, general de Exército Jair Dantas Ribeiro, conclamamos todos nós a cerrar fileiras na defesa da
ordem, da lei e das instituições. Estou seguro e confiante de que a nossa causa é santa e que ninguém nos
arrebatará essa vitória que já é nossa” (v. íntegra em Hélio Silva, “1964: Golpe ou Contragolpe?“ 4ª
edição, L&PM Editores, 2014).
O governador golpista do Rio Grande do Sul, Ildo Meneghetti, fugira da capital. A 5ª Zona Aérea
(Sul) da FAB, comandada pelo brigadeiro Othelo Ferraz, declarara-se pela legalidade. No Rio, a Vila
Militar, comandada pelo general Oromar Osório (um dos militares que impediram o golpe em 1961),
estava com a Constituição, assim como o comandante do 1º Exército, general Moraes Âncora, e seu
correspondente na FAB, o comandante da 3ª Zona Aérea (Rio), brigadeiro Francisco Teixeira. O
Regimento Sampaio, a unidade de infantaria mais famosa do Exército, partira em direção à divisa com
Minas. Ao sul, as notícias eram de que o general Chrysantho de Miranda Figueiredo chegara a Curitiba
para assumir o comando da Região Militar – essa, entre todas, foi a única notícia que não era verdadeira,
pois o general Chrysantho, legalista que sempre honrou a sua farda, não conseguira assumir o comando
no Paraná.
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Mas, antes de tudo, o comandante do 2º Exército, Amaury Kruel, apesar de um manifesto à meianoite, parecia aguardar que a situação se definisse, não fosse ele, até então, amigo pessoal de Jango – e um
inimigo pessoal, desde a campanha da Itália, de Castelo Branco.
A divisão de Kruel é bastante evidente no relato do ministro da Agricultura, deputado Oswaldo
Lima Filho (PTB-PE): o avião que o transportava, assim como a outros ministros e políticos, em direção a
Brasília, fez uma escala para abastecimento em São Paulo. Os passageiros foram presos, por ordem do
governador Ademar de Barros. Mas, depois que Oswaldo Lima Filho recorreu a Kruel, argumentando que
“a Constituição ainda está em vigor”, foram todos liberados, com um pedido de desculpas – através do
sobrinho do comandante, o então major Vinícius Kruel – e puderam prosseguir até a capital federal.
[cf. Sérgio Augusto Silveira, “Oswaldo Lima Filho – Ação política na trincheira nacionalista”,
AL/PE, Recife, 2001, p. 30. No entanto, há uma imprecisão, nesse livro, que não diminui seus outros
méritos: a escala em São Paulo não foi entre o Rio e Brasília, mas na volta de Porto Alegre para Brasília; e
o ministro da Justiça, Abelardo Jurema, não estava nesse avião, pois fora preso ainda no Rio. V. o relato
do próprio Oswaldo Lima Filho na Câmara, “Diário do Congresso Nacional”, 04/04/1964, p. 2047; o relato
da prisão de Jurema está em seu livro “Sexta-feira, 13”, ed. O Cruzeiro, 1964).]
Também esperando – e até hipotecando solidariedade a Jango – mantinha-se o comandante do 4º
Exército, Justino Alves Bastos, que, em maio de 1958, fora o candidato nacionalista à presidência do
Clube Militar, derrotando nada menos do que Castelo Branco – e reelegendo-se, em 1960, contra outro
conhecido oficial, Peri Bevilacqua, neto de Benjamin Constant (o que mostra quanto o entreguismo estava
em defensiva dentro das Forças Armadas por essa época – ou como a posição nacionalista avançara entre
uma e outra eleição para o Clube Militar: o general Peri Bevilacqua, comparado a Castelo, era um gigante
do nacionalismo e da democracia – como, aliás, mostrou durante a ditadura).
Anotemos, de passagem, que a traição de Kruel e Bastos foi justamente recompensada: dois anos
depois, em 1966, estavam publicamente na vergonha e no ostracismo.
Kruel teve dificuldades para arrastar seus subordinados a romper com a legalidade: além do
general Euryale de Jesus Zerbini, comandante da Infantaria Divisionária de Caçapava, os generais Aluísio
de Miranda Mendes, comandante da 2ª Divisão de Infantaria, e Armando Bandeira de Morais,
comandante da 2ª Região Militar, não concordaram com o golpe. Pressionados, os dois últimos aderiram
sem grande entusiasmo. Zerbini manteve sua posição até o fim. Aliás, até a morte, 18 anos depois.
No dia 2 de abril, em Porto Alegre, o general Ladário disse ao presidente que ainda havia condições
para resistir. Oswaldo Lima Filho, que estava nessa reunião – assim como o ministro do Trabalho,
senador Amaury Silva (PTB-PR), o ministro da Saúde, deputado Wilson Fadul (PTB-MT), e o deputado
Paulo Mincarone (PTB-RS) – relatou que “Jango disse não estar disposto a garantir seu mandato às
custas de uma guerra sangrenta” (op. cit.).
Provavelmente, Jango estava certo. No mesmo dia, depois de ouvir pelo rádio que o presidente do
Senado, Auro de Moura Andrade (PSD-SP), havia declarado vaga a Presidência da República e empossado
nela o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli (PSD-SP), Oswaldo Lima Filho foi para Brasília.
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No dia seguinte, uma sexta-feira, reassumiu o seu mandato e subiu à tribuna da Câmara dos
Deputados como líder em exercício do PTB. O que vem a seguir tem como fonte o “Diário do Congresso
Nacional” de 4 de abril de 1964 (Seção I, páginas 2057 e 2058), de acordo com as notas taquigráficas.
OSWALDO LIMA FILHO (PTB-PE): Volto à tribuna, sem dúvida a mais alta do País, com a
triste e desoladora impressão de quem voltasse a um templo conspurcado, degradado pelos próprios
sacerdotes incumbidos de sua guarda. A posição do presidente do Congresso Nacional, do Exmo. Sr.
presidente efetivo desta Casa, srs. Ranieri Mazzilli e Auro Moura Andrade, representa uma afronta aos
mais legítimos ideais democráticos e, sobretudo, uma afronta à dignidade dos seus pares. O que se
praticou aqui foi uma página de infâmia que degrada o Parlamento brasileiro e que, por muito tempo,
permanecerá à face da Nação como uma mancha irremovível.
(…) o que se fez agora foi qualquer coisa de inominável. A Mesa do Congresso, pelo seu presidente, o
ilustre aristocrata de Andradina, e o senhor presidente perpétuo, Ranieri Mazzilli, mancomunados pelo
ódio, pela vingança, pelas suas ligações à estrutura latifundiária de que é um exemplar e um modelo...
Bocayuva Cunha (PTB-RJ): Herdeiro.
OSWALDO LIMA FILHO: … e herdeiro, diz bem V. Exª, e o outro pelo gozo e uso do poder...
Paulo Mincarone (PTB-RS): Pela ambição.
OSWALDO LIMA FILHO: … ambição, diz o nobre deputado Paulo Mincarone – meu
companheiro na prisão e que já comunicou à Casa essa democracia singular que se instituiu à sombra dos
tanques do general Olímpio Mourão -, mas esses homens comparecem à face do Congresso e, sem ouvir os
seus pares, sem lhes pedir opinião, sem lhes pedir votos, anunciam a vacância do cargo, como que estivesse
o presidente no estrangeiro.
Doutel de Andrade (PTB-SC): Permita-me. Foi, realmente, nobre deputado Oswaldo Lima
Filho, uma decisão que não honra este Congresso Nacional...
OSWALDO LIMA FILHO: Seguramente o desonra.
Doutel de Andrade: … que o deslustra, diz bem V. Exª. Nessa Mesa (…) sentou-se realmente o
senador Auro de Moura Andrade e em três minutos espezinhou a vontade dos brasileiros livremente
revelada nas urnas nas últimas eleições, em três minutos apenas, sem dar a quem quer que fosse o direito
de um protesto, o direito de ao menos exigir, reclamar e reivindicar que as leis fossem obedecidas. Foi,
como disse V. Exª, uma decisão violenta, uma decisão brutal, agressiva, que ficará permanentemente como
uma nódoa neste Congresso.
OSWALDO LIMA FILHO: Àquela altura, sr. presidente, membros do Governo deposto por esse
golpe militar, anunciado com antecedência singular pelo “Washington Post” de há três dias, que o
indicava como solução para a crise brasileira, solução modelar, definitiva, um golpe de Estado, no velho
estilo latino-americano...
Doutel de Andrade: À velha maneira. É textual.
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OSWALDO LIMA FILHO: … à velha maneira, diz bem o nobre deputado Doutel de Andrade – a
essa hora, o sr. presidente da República, o dr. João Goulart, na Casa de Comando do III Exército, reunido
com o general Ladário Pereira Teles, comandante daquele Exército, e o seu Estado Maior, com a presença
dos ministros Wilson Fadul, Amaury Silva e do orador, examinava a forma de reagir contra a sublevação
armada no País. E a essa mesma hora, nessa comédia que se praticava contra a Nação, a interpretação do
presidente do Congresso Nacional dava como fora de cargo, fora do País, abandonando as suas funções, o
presidente da República.
Doutel de Andrade: Permita V. Exª, nobre colega. E com um agravante: à mesa chegara, no
mesmo instante, ofício da Casa Civil da Presidência da República...
Milton Dutra (PTB-RS): … que foi lido à força.
Doutel de Andrade: … que, diz V. Exª muito bem, foi lido à força aqui, comunicando que se
encontrava em território nacional, o Presidente constitucional do Brasil. Ainda mais, nobre deputado: este
Presidente ainda permanece em território nacional.
Milton Dutra: Não se afastou dele um minuto sequer.
Doutel de Andrade: Perfeitamente. Sua Exª não se afastou um minuto sequer do território
nacional. Temos, portanto, uma situação esdrúxula neste país: o Presidente eleito, na plenitude de todas as
suas prerrogativas, se encontra em território nacional, e um Sr. Senador da República, mancomunado com
outros parlamentares, entende, a seu bel-prazer, em nome de seus interesses, das suas paixões, das suas
vaidades ou da sua herança, de torná-lo assim ilegítimo e apeá-lo do poder. Esta a situação exata porque
está passando, hoje, a nação brasileira.
OSWALDO LIMA FILHO: Agradeço o aparte do nobre deputado Doutel de Andrade.
Mas, sr. Presidente, de tal maneira está peiado, destituído de seus poderes o Congresso Nacional, de
tal forma as garantias institucionais estão ausentes deste País, que é com evidente melancolia que me
dirijo à ilustre Casa a que me honro de pertencer. Mas estas palavras ultrapassarão, creio eu, apesar da
censura que se abate sobre os órgãos de divulgação, as paredes desta Casa para chegar ao povo que lá fora,
violentado, espezinhado, vendo aprisionados os seus melhores filhos, que contempla com revolta, com
indignação, impotente, essa traição...
Por sua importância, voltaremos ao discurso do deputado Oswaldo Lima Filho. Por agora,
reproduziremos as palavras do ex-deputado, ex-ministro e empresário pernambucano Armando Monteiro
Filho:
“Viver, todos nós vivemos, dar à vida a dimensão maior e ter por objetivo servir a
humanidade é um privilégio de grandes homens. Oswaldo Lima Filho foi um grande homem e
terá sempre o respeito e a admiração dos seus contemporâneos e, creio, que das gerações
futuras que estudarem a história de Pernambuco e do Brasil” (prefácio para “Oswaldo Lima Filho
– Ação política na trincheira nacionalista”).
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Todos os que conheceram Oswaldo Lima Filho, sem dúvida, concordariam – e concordam.
Quando, em 11 de abril de 1964, o Ato Complementar nº 3 passou para a reserva os primeiros 122
oficiais (77 do Exército, 31 da FAB e 14 da Marinha), o país estava perdendo alguns dos mais brilhantes e
patrióticos soldados que jamais estiveram nas fileiras das nossas Forças Armadas.
A melhor síntese, seria do general Ladário Pereira Teles, primeiro da lista no “ato nº 3”:
“Como em todas as arengas ‘golpistas’, o tema era o combate ao comunismo, em que, se afirmava, o
país ia ser lançado. Aqui devo deixar consignado o meu testemunho a esse respeito. Sendo um dos generais
da confiança do presidente João Goulart, tendo participado de várias reuniões com sua excelência, cabeme afirmar, peremptoriamente, em solene declaração para a História, que jamais me foi insinuado por sua
excelência qualquer movimento ou tendência para ferir a legalidade ou as instituições. Sempre ouvi do
preclaro presidente as afirmações mais categóricas de que seria intransigente defensor da legalidade, das
instituições vigentes e da democracia. Soldado do glorioso Exército de Caxias e Osório, fui, obstinada e
intransigentemente, por convicção e até por temperamento, defensor da lei e das nossas instituições. Assim
decorreram os meus hoje 45 anos de serviço ao Exército e à pátria. Nunca tive vocação para traidor. Filho
de abastado estancieiro no Rio Grande do Sul, formei-me soldado em contato com o povo, sentindo suas
agruras e as suas justas reivindicações sociais. Educado dentro dos princípios democráticos, formei o meu
espírito e os meus sentimentos nesse ambiente. Sempre fui medularmente democrata. Jamais poderia
defender um governo comprometido com o comunismo. Tenho hoje a perfeita certeza de que a invocação do
combate ao comunismo, e a miserável campanha movida nesse sentido, é obra de alguns inconscientes, de
muitos fanáticos e de uma malta de farsantes a serviço de políticos ‘sem votos’ e dos interesses de pessoas e
grupos ligados à espoliação do povo brasileiro pelos interesses estrangeiros”.
Oito meses após o golpe, o general Ladário, resistindo às ameaças e perseguições, faleceu no Rio de
Janeiro. Declarou sua esposa, dona Celina Teles, que Ladário “recebera um telefonema informando-o da
prisão do sr. Leocádio Antunes, ex-presidente do BNDE e seu grande amigo. O interlocutor admitia a
prisão iminente, também, do general e do engenheiro Hélio de Almeida, ex-ministro da Viação. Depois do
telefonema o oficial ficou bastante emocionado, não revelou à família o nome do interlocutor e disse que
ele, general, só morto sairia de sua casa, que não seria preso pelo DOPS. Adoeceu e [dois dias depois] teve o
enfarte” (Correio da Manhã, 06/12/1964).
Compareceram às homenagens fúnebres, 11 generais da ativa – inclusive o chefe do Estado Maior
das Forças Armadas, Peri Bevilácqua, e um representante do chefe do Estado Maior do Exército, general
Décio Palmeiro de Escobar – e figuras exponenciais, como o marechal Osvino Ferreira Alves, excomandante do 1º Exército, ex-presidente da Petrobrás, e, provavelmente, o mais popular dos oficiaisgenerais, logo após o marechal Lott; o enérgico general Ênio da Cunha Garcia, comandante da 2ª Divisão
de Cavalaria no 3º Exército, durante a campanha contra a tentativa de golpe de 1961; e o almirante
Hercolino Cascardo, primo de Ladário e famoso líder do levante no encouraçado São Paulo, durante a
Revolução de 1924.
Não houve discursos. Todos os oficiais, com exceção do representante do general Escobar, estavam
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à paisana. A família não recusou honras militares. Mas é verdade que não as pediu.
Seis dias depois, a Candelária ficou repleta de militares e civis, durante a missa em homenagem ao
general que tanto dignificara o Exército de Caxias.
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O pronunciamento do deputado Oswaldo Lima Filho, no dia 3 de abril de 1964, foi, com certeza, o
discurso mais corajoso e importante da resistência ao golpe de Estado no parlamento – somente muitos
anos depois ouviu-se, no mesmo recinto, algo comparável ao libelo do ministro da Agricultura de Jango,
ou de alguns dos aparteantes. É verdade que, entre os últimos, além dos gigantes, houve também alguns
micróbios. Vejamos um dos primeiros.
Paulo Mincarone (PTB-RS): “É oportuno agora perguntar, Sr. Deputado, ao Presidente da
União Democrática Nacional, deputado Bilac Pinto, e ao deputado Herbert Levy, que por diversas vezes
denunciaram desta tribuna à Nação que o Presidente da República estava distribuindo armas aos
camponeses, aos sindicatos, ao povo: ‘mas que armas estas?’. Foram aquelas que eles usaram contra o
Poder Constitucional, contra o Presidente da República, destituindo-o? Foram as armas que garantiram
rasgarem eles vergonhosamente a Constituição, como fizeram? Veja V. Ex.ª que nunca, nos últimos anos, a
Nação viveu na sua plenitude dias de tanta democracia, de tanta liberdade e de tanto respeito aos
cidadãos, à pessoa humana. E agora, Deputado, os homens da ‘eterna vigilância’ não têm coragem cívica
de ocuparem este microfone e de condenarem o que foi feito aqui, na calada da madrugada, quando o
Presidente, ainda no território nacional, como permanece até hoje, foi declarado ausente. Os sábios, os
doutos da União Democrática Nacional, que nesta casa são tantos e que a qualquer avanço à Constituição
ou às leis são os primeiros a se levantarem, sua voz protestando contra aquilo que nem sequer passou pela
cabeça do Presidente João Goulart – infringir a lei ou a Constituição – agora eles silenciam porque convém
a eles, porque está dentro do gabarito que eles desejavam. Era isso que eles desejavam, apear do poder um
homem, através dos processos mais escusos, mais ilícitos, mais antidemocráticos. Aqui fica, Deputado, o
registro desta parte. Nós queremos saber onde estão as armas dos sindicatos, dos camponeses, do povo,
enfim, distribuídas pelo Presidente João Goulart. As armas, sim, eles as usaram para rasgar a
Constituição do Brasil.”
A história de que Jango distribuía armas tinha origem na CIA e na embaixada dos EUA – como é
evidente pelos documentos norte-americanos desclassificados (embora apenas parcialmente) e já
divulgados, inclusive, implícita e evidentemente, o telegrama do secretário de Estado, Dean Rusk, que
mencionamos na primeira parte deste texto (v. HP 16/04/2014).
Era essa a justificativa para o golpe e a intervenção no Brasil – como de costume, totalmente falsa.
A “defesa da Constituição” era o motivo para se rasgar a Constituição...
A expressão “eterna vigilância” é uma referência ao lema da UDN, desde as campanhas eleitorais
derrotadas (por Dutra, em 1945; por Getúlio, em 1950) de Eduardo Gomes à Presidência: “O preço da
liberdade é a eterna vigilância” - uma tradução literal do inglês (é parte da natureza, se é que assim se
pode chamar uma perversão, do entreguismo que seus sequazes não sejam capazes de elaborar nem
mesmo um lema próprio, traduzindo-o diretamente do inglês falado pelos norte-americanos do
“Rearmamento Moral” - a que logo aderiu um dos ídolos da UDN, Juarez Távora, candidato à Presidência
contra Juscelino).
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Lima Filho era católico e insuspeito de simpatias para com o comunismo. Antes de 1964, dentro do
PTB, era considerado um moderado. Mas era também um dos homens mais decentes que já estiveram no
parlamento e na vida política brasileira. Nesta parte – e na próxima – transcreveremos trechos do seu
pronunciamento (e alguns apartes), de acordo com as notas taquigráficas, sem revisão dos oradores,
publicadas no “Diário do Congresso Nacional” de 4 de abril de 1964, páginas 2058-2063.
Eis a essência – ou o mais importante:
OSWALDO LIMA FILHO: “Alguns companheiros mal-avisados imaginam que o golpe decorreu
de posições radicais do Presidente, apoiando os insubordinados da Marinha que, diga-se de passagem, se
levantavam contra um regime obsoleto, do tempo do Império, que impede, como aqui lembrou o deputado
Vieira de Melo, que um inferior olhe até com maus olhos para um superior.
“Não se enganem os ingênuos, não se iludam os incautos, a conspiração não é de hoje. Eu a
denunciei ao sr. Presidente João Goulart há mais de um ano. Industriais de Pernambuco há mais de seis
meses me procuraram para denunciar que militares trafegavam em trajes civis pelo Recife, mês a mês,
conspirando, levantando as guarnições, preparando-as para o golpe. Em novembro estava eu em Foz do
Iguaçu. Ali fui procurado pelo nosso companheiro do PTB local, que me informava e se propunha a depor
em juízo, que o governador Adhemar de Barros mandara ali caminhões com um oficial da Força Pública e
que, durante três noites nas barrancas do Rio Paraná, recebiam metralhadoras, que atravessavam e
vinham do Paraguai.
“Levei ao conhecimento do Presidente e do Ministro da Guerra. O ministro Carvalho Pinto,
insuspeito para testemunhar, conhece essa minha denúncia. Foi verificá-la e dentro de uma semana
procurou-me para dizer: ‘Ministro Lima, a sua denúncia é perfeita. Tenho confirmação. Esses oficiais
realmente lá estiveram. Tenho os nomes. Adquiriram metralhadoras na calada da noite. Trouxeram-nas
do Paraguai, transportaram-nas para São Paulo e as estão distribuindo para todo o Brasil’. Era
novembro, senhores, e não houvera reunião dos sargentos com João Goulart; não houvera indisciplina na
Marinha.
“Mas não sou eu quem o diz; quem o diz é o ilustre general Olímpio Mourão, comandante da
intentona.
“Está aqui a página do crime. Ela não tem nada a ver com a sedição da Marinha. Nada a ver com a
acusação de aproximação do Presidente com os comunistas. É aqui o corpo de delito da sedição fascista
que se levantou no Brasil. Estão aqui, no jornal O Globo, insuspeitíssimo pela reação, declarações do
general Mourão, verbis entre outras: ‘Em janeiro de 1963’ – medite bem a Câmara – ...‘em certos
momentos da campanha do plebiscito, senti que se iniciava um processo de comunização do País’.
“Vejam bem. Em janeiro. Ninguém falava nisso. A essa época, o nobre deputado Herbert Levy
considerava o Presidente João Goulart um modelo de dirigente democrático e a UDN fazia parte do
governo parlamentarista.
(…)
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“A essa época, nenhuma das acusações e dos protestos que atualmente se levantam estava de pé. A
essa época, o rosário, que é a mais cara das nossas lembranças de católico, não estava convertido em
instrumento de reação e dos privilégios que se encastelam na ordem social dominante.
O deputado observou em seguida que a questão podia ser resumida na tentativa de impedir o
Governo Jango de seguir a tendência de “atender o povo, de corrigir a dominação dos monopólios
internacionais no Brasil. E de passagem seja dito aquilo a que já se referia o ‘Washington Post’ há poucos
dias: aconselhava um golpe de Estado no Brasil, como solução, à velha maneira, para os nossos
problemas”.
Porém, voltemos ao início, quando o deputado Oswaldo Lima Filho retomou a palavra, após o
aparte, que transcrevemos, do deputado Paulo Mincarone:
“Penso que a essa altura nenhum dos grandes partidos nacionais sinceramente democráticos esteja
acreditando e tentando imaginar-se dono desse golpe. (…) já agora aqueles que, pela sua ingenuidade,
pelo seu ódio rancoroso ao ex-Presidente, pela sua entranhada inspiração retrógrada, pelo seu ódio às
reformas sociais, pela sua vinculação às velhas estruturas arcaicas, serviram de instrumento e de escudo
ao golpe, já agora põem de molho as barbas e temem, porque sobre eles também se levanta o espectro da
ditadura, que é o que ameaça este País.
O comentário veio de uma voz no plenário: “Otários”.
Era o deputado Alberto Guerreiro Ramos, baiano que concorreu às eleições pelo PTB do Estado da
Guanabara, e um dos intelectuais mais conhecidos do país – na verdade, um dos mais influentes do
mundo. Ex-assessor do Presidente Getúlio Vargas, secretário do Grupo Executivo de Amparo à Pequena e
Média Indústria da Presidência (grupo depois incorporado ao BNDE), autor de “O Problema Nacional do
Brasil”, “A Redução Sociológica”, “Mito e verdade da revolução brasileira” e vários outros livros
importantes, era um dos fundadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB) e diretor do seu
Departamento de Sociologia.
OSWALDO LIMA FILHO: Na realidade, a Nação brasileira de há muito não tinha outra escolha,
tinha de marchar para a solução de seus graves problemas sociais.(…).
O deputado e ministro da Agricultura de Jango passa, em seguida, à denúncia das arbitrariedades:
… o governador [de Sergipe] Seixas Dória preso em Alagoas...
Vários: Na Bahia.
OSWALDO LIMA FILHO: Na Bahia. O governador Miguel Arraes, de cuja orientação tanto
divergi, eleito com meu apoio, seguramente eleito pela maioria do povo pernambucano, deposto pelo golpe
militar imposto à Assembleia e, desgraçadamente, à Assembleia do meu Estado, onde comecei minha vida
pública, também violentada, cercada pelos tanques e pelas metralhadoras do general Justino para votar o
impeachment, página indecorosa nos anais da Assembleia Legislativa no Palácio Joaquim Nabuco...
Arruda Câmara (PDC-PE): V. Ex.ª me permite um aparte?
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Monsenhor Alfredo de Arruda Câmara era um sacerdote católico pernambucano – e um dos
parlamentares mais reacionários do Congresso. Sua obra mais conhecida (talvez única) intitulava-se
“Contra o Comunismo”. Era chamado de “padre-jagunço” - entre outras peculiaridades, por andar sempre
armado.
Esse monsenhor com pouco odor de santidade – mas nomeado Protonotário Apostólico (isto é,
membro da Cúria Romana) pelo Papa Pio XII – tinha, ao que se saiba, uma desgraça na vida que lhe
tirava o sono: um sobrinho com o mesmo sobrenome, Diógenes de Arruda Câmara, que era, ainda naquela
época, logo depois de Prestes, o comunista mais famoso do país.
Em abril de 1964, Arruda Câmara – o comunista, não o padre – estava afastado do PCB, após os
acontecimentos que sucederam ao XX Congresso do PCUS. No entanto, em suas “Memórias”, conta
Gregório Bezerra (que, além de suas qualidades de caráter, era insuspeito de simpatias por Arruda):
“Quando se deu o golpe, no dia 1º de abril de 1964, eu estava reunido com mais de oitenta
militantes do partido e delegados sindicais de Palmares, discutindo algumas medidas práticas imediatas.
(…) Para chegar à capital do estado, tive de furar a barreira das tropas do Exército, que já tinham
ocupado o posto fiscal de Prazeres. Era de manhã, muito cedo. A cidade de Recife estava calma; fui para
casa, a fim de trocar a chapa do jipe e tomar café. Em menos de uma hora, tendo me despedido dos meus
familiares, estava pronto para procurar contato com os camaradas do Comitê Estadual. Estranhei a
calmaria da cidade. Fui até a redação da Folha do Povo, mas não encontrei nenhum camarada.
Perguntei ao porteiro se tinha algum recado para mim: nada. Quando vou saindo, dou de cara com o
camarada Diógenes de Arruda Câmara, que diz: “- Vim apresentar-me para a luta. Cumprirei qualquer
tarefa que o partido me confiar. Disponham de mim para tudo! “Eu tinha o pé atrás com relação a esse
companheiro, conforme contei, mas, diante de sua atitude de homem de partido, passei a respeitá-lo como
verdadeiro revolucionário comunista, embora discordando de seus métodos de trabalho”.
No dia 3 de abril, o deputado Oswaldo Lima Filho respondeu ao pedido de aparte do deputado
Arruda Câmara (o padre, não o comunista).
OSWALDO LIMA FILHO: Com prazer.
Arruda Câmara: Ouço o discurso de V. Ex.ª com a consideração que sempre votei a V. Ex.ª pelo seu
passado, pela sua inteligência e cultura.
OSWALDO LIMA FILHO: Agradeço a V. Ex.ª.
Arruda Câmara: Mas V. Ex.ª comete, nesta hora, uma grave injustiça contra a Assembleia do
nosso Estado, legitimamente eleita, como eleito foi o Sr. Miguel Arraes, num pleito livre, dos mais livres
que já se verificaram em nossa terra. A Assembleia Estadual de Pernambuco não votaria jamais sob
pressão.
OSWALDO LIMA FILHO: Mas votou.
Arruda Câmara: Não votou.
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OSWALDO LIMA FILHO: V. Ex.ª não pode negar os fatos.
Arruda Câmara: Votou livremente, com espírito de independência.
Sérgio Magalhães (PTB-GB): Por que não votou antes [do golpe]?
Arruda Câmara: Porque não quis votar. Votou no instante que cumpria votar, como este Congresso
não votou nem votará sob pressão de ninguém.
(…)
OSWALDO LIMA FILHO: V. Exa. Sabe o respeito e a consideração que lhe tenho e a amizade que
nos une, apesar das diferenças ideológicas que nos separam. Mas indago de V. Ex.ª que processo estranho
foi esse de impeachment que se votou em vinte e quatro horas, sem obediência às normas legais, com a
Assembleia cercada pelo Exército e ocupada pelas Forças Armadas? Sem audiências das comissões? V. Ex.ª
sabe que o processo de impeachment, votado legalmente, leva pelo menos 45 dias, obedecida a tramitação.
Arruda Câmara: Não é essa a prática no Brasil. Vou refrescar a memória de V. Ex.ª. V. Ex.ª se
lembra de como foi votado o impeachment do Sr. Carlos Luz e o do Sr. Café Filho? Eu nunca disse que os
nobres colegas, naquela feita, votaram sob pressão, apesar de haver tanques e tropas nas ruas e às portas
da Câmara.
Esse era um exemplo da dialética de monsenhor Arruda, igualando o “impeachment” - após o
marechal Lott ter frustrado, em 11 de novembro de 1955, o golpe de Estado – de dois golpistas que
conspiravam para impedir a posse do Presidente constitucionalmente eleito, Juscelino Kubitschek, com o
seu oposto: um golpe de Estado para derrubar o Presidente eleito constitucionalmente, João Goulart.
OSWALDO LIMA FILHO: (…) àquela altura o Congresso agia por decisão sua, por maioria
absoluta. Assumiu a responsabilidade de seu voto e o fazia para assegurar o mandato do Presidente eleito
cuja posse se queria impedir. Agora o que se faz é estabelecer um golpe militar para retirar do poder um
Presidente eleito pela maioria da nação e confirmado por 10 milhões de votos, num plebiscito histórico que
honrou o País (muito bem, muito bem, aplausos demorados).
Arruda Câmara: Foi tão eleito pelo povo quanto o sr. Café Filho. Os mandatos foram igualmente
legítimos.
(…)
OSWALDO LIMA FILHO: V. Ex.ª me interrompeu, agora ouça por obséquio. É preciso que V, Exª
responda por todos os crimes do acusado. Sabe V. Ex.ª que o processo de impedimento, quando legal e
quando obedecendo às normas legais, termina com o julgamento político? E a esta hora, no Nordeste, no
velho presídio para onde se remetiam no passado, há 30 anos, os criminosos dos piores crimes – para lá
não se mandou sequer [o cangaceiro] Antônio Silvino, para lá não se mandaram muitos dos criminosos
mais célebres do passado, só aqueles criminosos impiedosos eram para lá remetidos -, pois é para essa
prisão insalubre da ilha de Fernando de Noronha que se remeteu agora o governador Miguel Arraes e o
prefeito Pelópidas Silveira... Pergunto ao nobre deputado Arruda Câmara: isto também é digno para
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Pernambuco? Ver o seu governador remetido ao presídio dos criminosos mais degradados do Brasil? V.
Ex.ª devia corar diante do episódio, porque Pernambuco, que viveu uma vergonha, termina de ter seu
governador preso e remetido a um presídio de criminosos degradados! (Palmas prolongadas.)
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A discussão na Câmara dos Deputados, no dia 3 de abril de 1964, encaminhou-se rapidamente para
abordar a repressão, que naquele momento começava a afogar em sangue vários pontos do território
nacional, assim como asfixiá-lo no seu conjunto:
OSWALDO LIMA FILHO: Sr. Presidente, falava o ilustre Deputado Monsenhor Arruda Câmara
nos episódios de 10 de novembro de 1955. E eu me lembrava, vinham à minha memória, as cenas daquele
movimento. Isso representava e representa um opróbrio para os vencedores de hoje, porque, naquela época,
o Presidente Carlos Luz, deposto, tinha toda a liberdade e comparecia, no dia seguinte, ao Congresso
Nacional para dar a sua palavra; os seus ministros depostos vinham ao Congresso e tinham inteira
liberdade de trânsito e de opinião. Não havia prisões e não houve prisões, e o regime se estabeleceu em sua
plenitude democrática. O senhor Carlos Lacerda, com garantias asseguradas, se pôs, como sempre, em
fuga para a embaixada de Cuba [sob a ditadura de Batista], mas todos os membros do governo deposto
eram garantidos e tinham assegurada a sua liberdade. Pois os vencedores de hoje, ainda mal
madrugavam no poder, e já recolhiam o ministro da Justiça, cuja prisão eu vi efetuada, como se se tratasse
de um criminoso comum (…).
Em 1955 o povo ficou imune. Hoje, onde está o povo? Em São Paulo, 100 líderes sindicais, hoje a
imprensa noticia, são presos e recolhidos às enxovias. No Recife há mais de mil presos. A juventude
pernambucana – e aqui chamo a atenção de meu ilustre colega de representação [monsenhor Arruda
Câmara] – é espingardeada e morta, e o sangue generoso dos estudantes de Pernambuco tinge as ruas do
Recife.
Osmar Grafulha (PTB-RS): Devem ser cristãos.
OSWALDO LIMA FILHO: Não compreendo como o espírito cristão, generoso, altivo e bravo do
Monsenhor Arruda Câmara possa se comprometer na defesa desse regime hediondo.
Depois de outros aparteantes, ouviu-se a resposta:
Arruda Câmara: A pimenta e a sarna na pele alheia, para V. Exª, são refresco.
OSWALDO LIMA FILHO: Isto, nobre colega, é ensinamento evangélico (risos) sobre o qual
proponho que nós, do Congresso Nacional de agora, passemos a meditar. O meu caro e prezado amigo,
Monsenhor Arruda Câmara, protonotário apostólico de S. Santidade, o Papa, sacerdote a quem muitas
vezes ouvi comovido, no púlpito, representante de Cristo – que disse que a quem se batesse numa face se
oferecesse a outra -, vem para aqui e diz que pimenta nos olhos dos outros é refresco.
Arruda Câmara: Quem diz não sou eu, quem diz é o povo, e no passado, V. Ex.ªs achariam pouco,
quando se tratava do sr. Café Filho.
OSWALDO LIMA FILHO: É, senhores, o triste, o desgraçado sinal dos tempos! Onde está o
espírito evangélico de V. Ex.ª? V. Ex.ª, a esta hora, devia estar nesta tribuna, pedindo, para este país, paz,
tranquilidade, concórdia (muito bem, palmas). Perdoe-me, Monsenhor Arruda Câmara, mas V. Ex.ª
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envergonha a um católico como eu.
Arruda Câmara: Protesto!
OSWALDO LIMA FILHO: V. Ex.ª deveria estar ocupando aquela tribuna para reclamar aos
poderosos do Brasil que pensassem no povo, que pensassem nas crianças de Governador Valadares, porque
este é o fato mais nefando desse golpe dos banqueiros, que se aliaram hoje – os nacionais e os associados
do Chase Manhattan, que se locupletam e se servem da economia da Nação -, os banqueiros e os grandes
trustes, para este golpe. Quais foram as primeiras vítimas desse golpe? Quem primeiro morreu?
A resposta veio do líder do PTB.
Doutel de Andrade: Foram as crianças de Governador Valadares.
Na tarde do dia 30 de março de 1964, jagunços chefiados por latifundiários – e armados pelo
governador da Guanabara, Carlos Lacerda (os latifundiários, até então, consideravam o governador de
Minas, Magalhães Pinto, um vacilante) – atacaram com bombas e balas a sede do Sindicato dos
Trabalhadores Rurais de Governador Valadares, que funcionava na “Sapataria Popular”, uma pequena
loja de sapateiro que era o sustento do presidente do Sindicato, Francisco Raimundo da Paixão, um
camponês sem terra, conhecido como Chicão.
Posteriormente, o chefe dos jagunços, orgulhando-se de atirar em pessoas desarmadas – inclusive
crianças –, diria que “a revolução que estava programada para o dia 1º de abril, começou dois dias antes
em Governador Valadares” (cf. Ana Carneiro e Marta Cioccari, “Retrato da Repressão Política no Campo –
Brasil 1962-1985”, MDA e SDH, Brasília, 2010, p. 202).
Sucintamente: em fevereiro de 1964, o ministro da Agricultura, Oswaldo Lima Filho, estivera em
Governador Valadares e comunicara aos trabalhadores que o governo concordava com a proposta do
Sindicato de realizar um projeto de reforma agrária na fazenda que pertencia ao Ministério – e que se
achava abandonada – naquele município.
Nenhuma propriedade privada seria, portanto, atingida. Pelo contrário, como disse e repetiu
publicamente o presidente do Sindicato, Chicão – inclusive no programa da rádio oficial de Governador
Valadares, que era, duas vezes por semana, feito pelos trabalhadores -, o número de proprietários iria
aumentar com a reforma agrária, à custa de uma propriedade pública abandonada desde o fim do governo
Getúlio. Não havia planos, ainda, para estender a reforma agrária a propriedades além dessa fazenda.
Falava-se de algumas, nenhuma pertencente a brasileiros: as terras improdutivas do grupo inglês Vestey
(Frigorífico Anglo), as terras, que também nada produziam, da Grã-duquesa de Luxemburgo (de onde
saíram, aliás, os dois chefes dos jagunços) e as terras sem uso da empresa belga Bekaert (Belgo Mineira).
Apesar disso, os latifundiários ficaram em pé de guerra. Infelizmente, com apoios e estímulos nem
um pouco cristãos, como relata um dos participantes daquela guerra, diretor do jornal “O Combate”:
“Jogando fora todo seu prestígio ao lado de fazendeiros, o Bispo da cidade e grande parte do clero,
passaram a fazer pronunciamentos diários, pelos jornais e rádios e nos púlpitos, justificando com
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argumentos religiosos a campanha da Associação Rural, contra a reforma agrária e os sindicatos rurais.
Foi lançada até a ‘Campanha Sou Cristão’, de feroz anticomunismo, conclamando todos os católicos ‘a
negar todo seu apoio às organizações extremistas como o Sindicato dos lavradores, que só tem contribuído
para tirar a tranquilidade da família valadarense’. Novenas, terços eram realizados nas principais igrejas
‘para esclarecer os fiéis contra a insidiosa campanha da reforma agrária’. Procissões eram convocadas
com vasta publicidade, chamando os cristãos a ‘defender a família e a liberdade ameaçadas pelo
comunismo ateu’. A ‘Campanha Sou Cristão’ se alastrava por todos os educandários de religiosos, com
realização diária de palestras contra ‘o comunismo e sua técnica de subversão, que tira proveito do
idealismo da juventude e sua inexperiência da vida’ “ (Carlos Olavo da Cunha Pereira, “Nas Terras do
Rio sem Dono”, Codecri, Rio, 1980).
Depois de várias rodadas de negociação, marcou-se o dia 31 de março de 1964 para o começo da
entrega aos camponeses das terras da fazenda do Ministério da Agricultura.
Na véspera, os latifundiários atacaram, com suas milícias.
Estavam bem armados. Havia 800 camponeses, incluindo as famílias, em frente à sede do Sindicato
– todos desarmados, com exceção de algumas “garruchinhas”, menos de 10, pois nem mesmo os poucos
que estavam dentro do Sindicato quando a turba chegou, puderam, todos, armar-se.
Mas, voltemos.
Doutel de Andrade: Foram as crianças de Governador Valadares.
OSWALDO LIMA FILHO: Foi a mulher do líder Chicão, camponês humilde de Governador
Valadares, cuja senhora foi morta dentro da cadeia de Governador Valadares.
Saldanha Derzi (UDN-MT): Aliás, é sapateiro.
OSWALDO LIMA FILHO: Sapateiro...
Bocayuva Cunha (PTB-GB): Mulher de sapateiro pode ser assassinada.
OSWALDO LIMA FILHO: Esse aparte, deputado Saldanha Derzi, é uma vergonha para a
Câmara. Matou-se a mulher de um humilde líder camponês de Governador Valadares, mas, para o nobre
deputado Saldanha Derzi, poder-se-ia fazê-lo, era a mulher de um sapateiro...
Paulo Mincarone: Chicão não é latifundiário, não é proprietário de terras.
OSWALDO LIMA FILHO: Este é, desgraçadamente, o sinal dos tempos, da gente que venceu no
Brasil. (Muito bem.)
Saldanha Derzi: V. Ex.ª me permite?
OSWALDO LIMA FILHO: Matam a mulher de um camponês em Governador Valadares.
Sapateiro, sim. Que desonra há em ser sapateiro?
Saldanha Derzi: Apenas retifiquei o que V. Ex.ª disse. Não era a senhora de um camponês, mas de
um sapateiro.
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PRESIDENTE (Affonso Celso): Não são permitidos apartes sem licença do orador e nem os srs.
Deputados podem apartear da bancada. Devem solicitar o aparte do orador e ocupar o microfone.
OSWALDO LIMA FILHO: Este homem não teve a felicidade de nascer latifundiário. (Muito
bem.) O deputado Saldanha Derzi possui em Mato Grosso um milhão de hectares e ele [Chicão] é um
humilde camponês. Discordo dos processos do Sr. Chicão. Há 10 dias tive com o Sr. Chicão uma discussão
séria no Ministério da Agricultura, com o testemunho dos deputados Alceu de Carvalho e Milvernes Lima.
Dizia eu que o processo de divisão da Fazenda Três Cruzes, que eu estava realizando, por ordem do
Presidente João Goulart, deveria ser feito ordenadamente, com a divisão dos lotes, com a cessão de gado
aos camponeses, com seleção dos que tivessem vocação agrícola e famílias mais numerosas. Estava
escolhendo um técnico em agronomia, para que ali se realizasse um modelo de reforma agrária, que
honrasse o Governo e os camponeses brasileiros. E ele, na sua impaciência, de quem representa uma
massa que sofre há 100 anos, não compreendia essa espera de 30 dias. Discordei dele. Fui veemente, nos
atritamos, mas este homem, ao sair, me procura e me comove, dizendo: ‘ministro, o sr. me desculpe. Eu sou
homem ignorante’ - e ao lembrar suas palavras me emociono, pela sinceridade que elas representavam. E
me diz: ‘ministro, desculpe o analfabeto e o ignorante. Mas o rigor da minha exigência é porque eu falo por
gente que está dormindo embaixo das pontes de Governador Valadares’. Pois esse homem se reunira para
distribuir o quê? Armas, como disse o deputado Herbert Levy? Armas, como disse o deputado Bilac Pinto?
Não, eles se reuniram com os camponeses, no sindicato, para distribuir feijão, que lhes fora doado pela
Aliança pelo Progresso, dos norte-americanos. Mandaram feijão para ser distribuído no sindicato. Ali ele é
atacado, é ferido, um filho seu, de tenra idade, é recolhido à cadeia com a mulher e de lá a arrancam e
fuzilam essa mulher ferida. Este, o crime que exemplifica esse golpe de banqueiros...
Depois de um rápido entrevero com o udenista Saldanha Derzi – que garantiu ter menos terras do
que o Presidente João Goulart - aparteou outra vez o deputado Paulo Mincarone:
“V. Ex.ª não foi desmentido, nobre deputado Oswaldo Lima Filho. O nobre aparteante diz que tem
menos de 10% do que o sr. João Goulart, em terras, mas não declarou o que tem. V. Ex.ª disse que S. Ex.ª
tem um milhão de hectares, mas o nobre deputado não negou. Portanto, é verdade. E não importa que o Sr.
João Goulart tenha 10 milhões ou 100 milhões de hectares, pois desejava fazer a reforma agrária e, para
isso, dava as suas fazendas, entregava seus campos. Entretanto, o nobre deputado que aparteou V. Ex.ª há
pouco não dá sequer boa tarde, nem cumprimenta ninguém, porque não abre a mão para fazê-lo.“
Depois de novo aparte de Saldanha Derzi, protestando que suas propriedades eram “muito
pequenas”, prosseguiu o orador:
OSWALDO LIMA FILHO: Há um engano que precisa ficar aqui dissolvido e eliminado. Eu não
citei o fato de o sr. deputado Saldanha Derzi ser possuidor de terras como crime, como fato desonroso.
Apenas disse que era S. Ex.ª um afortunado em tê-las. Não considero que o fato de alguém ser possuidor
de terras o impeça de adotar posição favorável ao progresso social do Brasil. Joaquim Nabuco, patrono da
Abolição, começou a vida com os escravos que a sua tia e mãe de criação lhe deu do Engenho Massangana.
A estrutura social que aí está não fomos nós que a criamos. Foram os nossos antepassados. Mas o
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criminoso, o errado, é pretender impor pela força essa estrutura contra os interesses nacionais, que exigem
a sua reforma. O criminoso e até anticristão é não dar ao camponês humilde, faminto, o direito de
reivindicar a reforma dessa estrutura, que é a responsável pela sua fome, pelo analfabetismo, pela doença,
pelo baixo padrão de vida em que vegetam 40% da população brasileira.
No dia 1º de abril, em Governador Valadares, foram assassinados Otávio Soares Ferreira da Cunha
e seu filho Augusto Soares da Cunha. Outro filho de Otávio, Wilson, bastante ferido, sobreviveu. Os três,
principalmente o último, apoiavam a luta de Chicão.
Somente 30 anos depois os assassinos seriam apontados – pela Comissão Especial sobre Mortos e
Desaparecidos Políticos (CEMDP): três fazendeiros que haviam sido nomeados “para prestarem serviços
localizando e interceptando elementos comunistas e conduzindo-os à Delegacia em virtude do ‘Estado de
Guerra’ em que se encontrava o Estado de Minas Gerais, aliás expressamente declarado pelo general
Olímpio Mourão Filho, comandante, da 4ª Região Militar, a cujo mando foi incorporada a PMMG”.
O relator do caso na Comissão, Nilmário Miranda, observa, muito justamente:
“A ‘convocação’ dos três fazendeiros para prestar serviços de natureza policial (…) teria ocorrido às
8h da manhã do dia 1º/04/1964, apenas uma hora antes da ocorrência criminosa, cabendo deixar em
aberto, portanto, a possibilidade de essa convocação ter sido tão somente um expediente formal forjado a
posteriori”.
Ao lado da “Sapataria popular”, além da sede do Sindicato, estava a residência de seu presidente:
“A minha família foi correr com as crianças, recebeu tiros pelas costas ” - relatou Chicão, quando
reapareceu publicamente, 15 anos depois, e concedeu entrevista ao semanário “Movimento” (ed. 14 a 20
de maio de 1979).
Depois de anos na clandestinidade, fora, em 1970, preso em Porto Alegre, torturado barbaramente,
e, depois de 50 dias inconsciente, com uma lesão permanente na coluna, solto pelo aparato de repressão.
Conseguiu, então, sair do Brasil, voltando em fevereiro de 1979, ano da Anistia.
Na entrevista, além de esclarecer que sua mulher, ferida gravemente no ataque dos latifundiários,
conseguira sobreviver – assim como sua filha de quatro anos, atingida por uma bala no rosto -, ele contou
que a milícia dos latifundiários somente não havia massacrado todos os que se refugiaram dentro do
Sindicato, devido à intervenção de um coronel da PM, referido por Chicão como “Simão” ou “Simões”, que
impediu que a chacina fosse até ao fim.
Em 2005, a Revista Sem Terra (edição de maio/junho) fez outra entrevista com Francisco
Raimundo da Paixão – aos 74 anos, ele, em Belo Horizonte, era diretor da Associação Nacional dos
Perseguidos Políticos.
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Diante da 7ª Auditoria, em Recife, a Drª Mércia de Albuquerque Ferreira fez as suas alegações
finais: “Sob todos os aspectos, esse processo é uma monstruosidade jurídica. Há, nele, graves nulidades,
tanto de forma como de conteúdo. Sua peça informativa – o inquérito policial-militar – tem manchas de
sangue. Do sangue de espancamentos de réus e de testemunhas”.
O cliente da Drª Mércia era Gregório Bezerra, um homem branco, de olhos claros, que fora o
deputado federal mais votado em Recife – e o segundo mais votado de Pernambuco – nas eleições para a
Constituinte de 1946.
Mais de três décadas após o golpe de 64, quando a Câmara dos Deputados homenageou Gregório
Bezerra, o orador – e proponente – da homenagem, deputado Eduardo Campos, expressaria o consenso
absoluto do país ao descrever Gregório como “uma figura de primeiro plano de nossa História, que
conseguiu fazer de sua existência uma síntese de todas as lutas libertárias de seu tempo, um modelo de
todos os compromissos com o País e seu povo. Um homem de uma coragem pessoal que inspirou muitos e o
tornou um ícone para os que hesitam e temem. Um homem de uma dedicação patriótica somente igual a
todos os patriotas do passado e do presente nesta nossa sofrida terra”.
Ainda nas palavras do orador, Gregório se tornara “um dos poucos heróis populares” reconhecidos
por todos, era “homem do povo, herói nacional”: “‘Triste de um povo que precisa de heróis’, dizia Brecht,
em frase mais citada do que compreendida. Dizemos nós: feliz daquele que, precisando de heróis, tem um
Gregório Bezerra para entronizar no panteão das grandes figuras de sua história. (…) Gregório foi
precisamente a prova de quanto o povo brasileiro avançou na construção da sua identidade e da sua
capacidade de luta (cf. Diário da Câmara, ano LV, nº 051, 22/03/2000, p. 11653).
Quando, na presença de seu filho, Jurandir, essa sessão da Câmara o homenageou, Gregório já
falecera havia 17 anos. Como disse, na mesma ocasião, a deputada Luíza Erundina, a Câmara reconhecia
“um grande brasileiro, um grande democrata, um guerreiro pela democracia e pelas liberdades em nosso
País. Homens como Gregório Bezerra (…) são emblema, símbolo, referência para as gerações sucessivas às
suas. (...) Gregório Bezerra está vivo, não só na nossa memória, no nosso coração, na nossa mente, mas,
sobretudo, na história real do povo brasileiro” (cf. idem, p. 11654).
Gregório, libertado quando da captura do embaixador norte-americano pelo MR8 e ALN, e banido
do país pela ditadura em 1969, voltaria em triunfo ao Brasil, em 1979.
Era esse o homem que, preso em abril de 1964, torturado publicamente por um psicopata,
enfrentava um dos julgamentos mais injustos – mais monstruosos, na palavra precisa usada pela Drª
Mércia – da história do país.
“Muitos dos denunciados”, continuou a advogada, diante da Auditoria, “sofreram os piores
suplícios – que a Nação conheceu, em detalhes. Gregório quase foi morto. Suas torturas foram filmadas e
rodadas nos vídeos das televisões do Recife, num espetáculo de circo romano”.
57
(…)
“... a denúncia dos autos é inepta. Nela conta-se uma história que não se coaduna nem se ajusta às
provas do processo. Enquanto a denúncia se refere ao delito de atentado à segurança interna do País, com
auxílio ou subsídio de Estado estrangeiro (Art. 2º, inciso III, da Lei de Segurança do Estado), nos autos
nenhuma testemunha alude a tal crime, absolutamente. (…) nada há, em seus depoimentos, que se reporte
ao delito de atentado à segurança interna do País, nem se fala, mesmo de longe, de nenhum Estado ou
País estrangeiro. E, no entanto, a Promotoria Militar insiste na classificação inicial, quando das razões
finais.
“A denúncia caracteriza-se pela vagueza de expressões e pelo amontoado de palavras que nada têm a
ver com a situação de cada um dos denunciados. Dois terços da denúncia são gastos numa espécie de
‘prolegômenos da subversão’, no mundo e no Brasil, com citações duvidosas de Lenin, de Marx e de Fidel
Castro.
(…)
“Quanto a Gregório Lourenço Bezerra, comete-se a inverdade – permita-se-me a expressão – de
afirmar que ele foi incendiário do 15º Regimento de Infantaria, da Paraíba, aí pelos idos de 1947.
“Ora, Doutos Julgadores, nessa mesma Auditoria, Gregório foi absolvido por unanimidade! E
quem pediu a absolvição de Gregório, por falta absoluta de provas, foi o hoje Procurador Geral da Justiça
Militar, o doutor Eraldo Gueiros Leite.
“No que diz respeito ao processo ora em exame, nada existe que possa incriminar Gregório pelo
delito previsto no art. 2º, inciso III, da Lei de Segurança do Estado. Seu maior crime, Doutos Julgadores,
é o de pensar diferente. É o chamado delito de opinião, crime que os códigos não condenam. Crime de
impunidade democrática. Crime dos homens livres e das Nações soberanas.
“Peço aos ilustrados membros do Conselho Permanente de Justiça que levem em conta a bravura
moral desse homem, digno do nosso maior respeito. Hoje, injustiçado. Amanhã, quem sabe? Glorificado. A
um homem desses não se deve apontar as grades da prisão. Nela, o homem poderá fisicamente tombar;
mas o ideal do homem ressurgirá por cima de suas fraquezas materiais, continentes.
“Faça-se justiça a esse homem do povo, absolvendo-o, exculpando-o das penas da lei.
(…)
“Contra Gregório há, somente, a alegação de ser comunista. Ele o é, confessadamente. Mas isso é,
porventura, crime? “Os Tribunais brasileiros, tanto civis como militares, consideram que o fato de ser
comunista não constitui crime.
“Por isso, Doutos Julgadores, peço a absolvição de Gregório Lourenço Bezerra. E o faço como
mulher, como mãe e como advogada – cônscia do meu dever perante a civilização humana.
Em suas memórias, Gregório conta como conheceu a Drª Mércia:
58
“Certo dia, estava conversando com minha companheira, pois era dia de visitas. Aproximou-se uma
senhora grávida, já caminhando com dificuldade, e disse: ‘- Gregório, sei que está sem advogado. Venho
me oferecer para fazer a sua defesa. Você me aceita como sua defensora?’. Olhei para a majestosa figura
de senhora grávida, às vésperas de dar à luz e respondi emocionado e com muito respeito, pois a oferta
espontânea vinha numa situação política pesada, na qual muitos advogados fugiam de mim, com receio de
passarem pelos vexames a que tinha sido submetido o Dr. Juarez: ‘– Aceito, com todo o prazer, a senhora
como minha defensora. Só lhe peço que não se decepcione com a minha condenação a 20 anos, pois isso é
inevitável, ainda que fosse defendido pelo melhor advogado do Brasil’.
“– Voltarei amanhã com a procuração para você assinar, certo?
“E, de fato, no dia seguinte estava novamente ali. Passei a ter uma defensora e uma amiga correta
e pontual durante todo o tempo que fiquei na Casa de Detenção”.
Trinta e seis anos depois, a Drª Mércia contaria por que se ofereceu para advogada de um
perseguido político – uma escolha que mudaria sua vida.
“Decidi que tinha que fazer alguma coisa por Gregório Bezerra, defendê-lo, quando o vi ameaçado
de ser enforcado em Casa Forte, todo ensanguentado.”
O acontecimento que fez a Drª Mércia se apresentar para defender Gregório Bezerra foi um dos
mais ignominiosos da História do Brasil – e também um dos mais heroicos.
Nas palavras de Gregório:
[NOTA: utilizamos, no texto que se segue, que é uma condensação, não somente o relato que
Gregório fez em suas “Memórias”, mas também aquele de sua entrevista, publicada em fevereiro de 1979,
a “O Pasquim”]
“A massa camponesa estava psicologicamente preparada para a luta. Principalmente em
Pernambuco, onde queriam defender o governo Arraes e o Governo da República. Não queriam perder as
conquistas obtidas durante dois anos de luta titânica. O governo de Arraes foi o mais democrático e
progressista que já houve em Pernambuco. E por isso mesmo era considerado comunista e acusado de
cubanizar todo o estado.
“Quando cheguei dentro da Usina Pedrosa, fui preso pelo capitão Rego Barros, comandante de um
grupo de policiais armados de metralhadoras. Não tive condições de reagir. [o capitão Rego Barros] me
tratou como um oficial deve tratar um preso político. Mais adiante fui assaltado por um destacamento do
20º Batalhão de Caçadores e um grupo de 15 pistoleiros comandados por José Lopes de Siqueira Santos,
um assassino de camponeses. Houve algumas discussões e quiseram me liquidar ali mesmo, porém
desistiram, graças ao protesto do capitão que tinha me prendido, dizendo que estava a serviço do Exército,
que seguia ordens do coronel Ivan Rui, o novo Chefe de Polícia, e que se me liquidassem seria um crime.
“... Fui então conduzido para o quartel de Motomecanização, no bairro da Casa Forte. Estava à
minha espera o comandante, coronel Villocq. Recebeu-me a golpes de cano de ferro na cabeça, tendo eu
por isso desmaiado. Enquanto esse sádico me batia com a barra de ferro, outros me desferiam pontapés e
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coronhadas por todo o corpo, especialmente no estômago, barriga e testículos. Fui arrastado pelas pernas
e jogado num xadrez. Ali, os verdugos diziam que eu ia receber uma ‘sessão espírita’. O tarado Villocq
babava pelos cantos da boca, qual um cão hidrófobo. Continuava a bater-me com o cano de ferro, a
desferir pontapés. Eu estava estendido no solo, já banhado em sangue. Meu torturador tinha o rosto, as
mãos e a túnica salpicados com meu sangue. Mas ainda não se satisfazia a sua sanha demente. Dizia:
“- Isto é o início, bandido! É só para esquentar! Tu vais me pagar o velho e o novo! - e desferia
novos golpes.
“Vendo-me estendido no solo do xadrez, ordenou que seus lacaios me segurassem para poder
continuar golpeando meu estômago, barriga e testículos. E cada vez lhe escorria mais baba pelos cantos
da boca, batizando-me com termos pornográficos que nem as mulheres mais decaídas do baixo meretrício
seriam capazes de pronunciar.
“Por várias vezes, tentou introduzir a barra de ferro em meu corpo, mas não o conseguiu, porque
eu concentrava toda a minha força para defender-me de semelhante ignomínia. Quando já estava todo
machucado na cabeça e no baixo ventre, os dentes todos arrebentados e a roupa encharcada de sangue,
despiram-me, deixando-me com um calção esporte. Deitaram-me de barriga. Villocq pisou na minha nuca
e mandou seu grupo de bandidos sapatearem sobre meu corpo. A seguir, puseram-me numa cadeira e três
sargentos seguraram-me por trás, enquanto Villocq, com um alicate, ia arrancando meus cabelos. Logo
depois, puseram-me de pé e obrigaram-me a pisar numa poça de ácido de bateria. Em poucos segundos,
estava com a sola dos pés em carne viva. Toda pele tinha sido destruída. A dor que senti era tanta, que se
estivesse com as mãos livres, apesar de todo amassado, seria capaz de agarrar com Villocq e morrermos
juntos.
“Amarraram três cordas no meu pescoço e saíram me arrastando até a rua. Um me puxava pra
direita, outro para esquerda e outro pra trás. Eu sentindo a corda penetrando cada vez mais no meu
pescoço. Ainda tinha forças pra procurar retrair a musculatura do pescoço, porém vez por outra
afrouxava. Diante do CPOR o coronel Villocq fez um comício, concitando alunos, soldados e oficiais a me
lincharem porque eu era um bandido, um assassino, um terrorista que queria fazer a revolução comunista
para entregar o Brasil a Moscou. Repetiu que eu tinha um plano terrorista para matar queimadas todas
as crianças da Casa Forte.
“Como não foi atendido no seu comício, paralisou ônibus, trem, bicicleta, automóveis, caminhões,
tudo, e ficou aquela massa concentrada diante daquele espetáculo medieval. Ele gritava para a massa :
‘lincha esse bandido! Mate-o! Joguem garrafas, pedaços de ferro, dê pedradas neste bandido que é
monstro! Queria incendiar o bairro para queimar crianças! Está inativo, não pode atacar nem defender,
mate-o!’. E a massa não atendia. Mandava a massa olhar para mim e todos só olhavam para frente.
“Enfurecido, batia no meu corpo com uma barra de ferro e dizia: ‘Eu sou ibadiano, filho da puta!’.
Os sargentos faziam coro: ‘Nós somos ibadianos também, Gregório! Tu queria nos entregar, bandido! Vai
nos pagar caro!’. Saíram me arrastando até o jardim da Casa Forte, onde Villocq fez outro comício,
concitando a me linchar. Mais uma vez ninguém lhe atendeu, o que me encorajava, me dava ânimo, me
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dava uma vontade louca de resistir. Só tinha mesmo a minha moral, porque fisicamente não estava me
governando. Aí um sargento propôs que Villocq me levasse ao pátio de sua casa, onde havia numerosas
famílias com moças e senhoras. Mas foi uma besteira que ele fez.
“Tinha realmente muitas moças e senhoras que viram meu calção ensanguentado e meu corpo
jorrando sangue. Todos ficaram horrorizados. A própria senhora do Villocq foi tomada de crise nervosa,
chorando até enlouquecer. Ele batia nas fendas dos ferimentos da minha cabeça e o sangue esguichava,
tingindo de vermelho toda a fisionomia. Gritava: ‘Este é o tratamento que nós damos a comunistas! Você
está chorando por causa deste bandido? Venha assistir seu enforcamento agora mesmo na Praça da Casa
Forte!’.
“No meio de um grupo de moças e senhoras tinha uma com um lenço encarnado na cabeça como
proteção contra o sol e de repente o coronel partiu pra cima dela: ‘Você não tem vergonha não? Tá usando
o símbolo de Moscou na cabeça!´. Aí, arrancou com toda brutalidade o lenço da cabeça da moça, o que
chocou todas as pessoas presentes. Trouxe o lenço e amarrou no meu pescoço de modo que tampasse
minha aparência de semi-degolado. A essa altura eu já não sentia mais nada. Os olhos pesavam toneladas,
queria abri-los e não podia.
“Sentia frio e muita sede. As pernas pareciam que pesavam milhares de toneladas. E lá se foram
me arrastando novamente.
“Aí houve vários protestos. Dom Távora, bispo de Natal, várias Madres Superioras de colégios e
conventos, padres, pastores protestantes, e inclusive elementos da burguesia que não me conheciam
foram ao general Alves Bastos. Dois generais da reserva assistiram àquele quadro e foram ao general
dizer que se era uma questão de fuzilamento que me fuzilassem, mas não praticassem um ato medieval
publicamente, em plena luz do dia, porque aquilo denegria as tradições do Exército Nacional e
desmoralizavam as Forças Armadas. Houve um grande clamor. O rádio anunciava que eu estava sendo
trucidado na Praça da Casa Forte e a multidão foi pra as ruas e as praças, encaminhado-se para lá. Fui
inclusive filmado e esta jornada foi para a televisão de noite. Com isto o general Alves Bastos mandou o
coronel Ibiapina me tirar das garras do seu comparsa. Quando Ibiapina encontrou-se com aquele desfile
medieval tirou o lenço do meu pescoço e afrouxou os laços de corda porque eu quase não respirava mais.
“Quando pude respirar, fiquei alegre cá com meus botões, porque senti que tinha vida e que eu
queria viver. Aí me aceitaram no Forte das Cinco Pontas. Me jogaram três baldes de água pela cabeça, um
sargento me fez um curativo na cabeça – mas não nas outras partes do corpo – limparam ligeiramente o
sangue do rosto.
“Minhas juntas estavam todas inchadas. Pra ir ao banheiro, saía engatinhando e quando chegava
não conseguia urinar porque os testículos e a próstata estavam totalmente arrebentados. A agonia terrível
de querer urinar sem poder. Suava, suava e doía. Lutei uma noite toda para conseguir urinar até que
chegou um momento em que fui massageando a próstata com a mão que estava melhor e senti que algo
rasgou-se no seu interior. Começou a sair sangue pisado pela via urinária. Na medida em que eu dava uma
massagem violenta, aquele jato de sangue pisado ia engrossando, engrossando... às cinco horas da manhã
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já saía sangue e urina e meu estado começou a aliviar. A febre era altíssima, muita dor de cabeça, senti
que tava ruim mesmo. Mas consegui escapar. De oito em oito dias minha filha vinha me visitar e me
levava caldo de lima e água de coco, além dos remédios que os médicos amigos me mandavam. Graças a
essa solidariedade, principalmente de minha filha, estou aqui batendo papo com vocês. Mas foi duro”.
62
12
Após sua volta ao Brasil, estive algumas vezes na casa de Gregório Bezerra – graças a dois amigos
pernambucanos, Paulo Resende e Mano Teodósio, que eram próximos a ele e a Prestes. Realizei com
Gregório uma entrevista, publicada no então semanário HORA DO POVO.
Minhas impressões não são diferentes das que outros, inclusive o futuro deputado e governador
Eduardo Campos, registraram. Como este não é um texto de memórias, exceto quando elas auxiliam a
compreensão de determinados fatos, limito-me a relatar um episódio – que não me foi contado por
Gregório, um homem, aliás, de modéstia invulgar.
Um colega, médico de Gregório, era também médico da esposa de seu torturador, Villocq, que se
tornara diretor de uma usina de açúcar, depois de destruir sua carreira no Exército (quem o promoveria a
general, depois dos acontecimentos de Casa Forte?) e passar pela Secretaria de Segurança de Pernambuco.
Quem é médico – e tem mais que poucos anos de profissão – já passou, certamente, por situação
semelhante: a atendente marcou consultas com esses dois pacientes, uma em seguida à outra, ignorando
quem eram.
Quando Gregório chegou, notou que o médico estava algo mais agitado que de costume. Perguntou
o que estava acontecendo e o médico disse a ele que a esposa de Villocq acabara de sair – embora não
tivesse falado, era evidente a sua angústia diante da possibilidade de um encontro entre esses seus dois
pacientes. Mas ficou surpreendido com o que ouviu: “Que pena que ela já foi embora”, disse Gregório. “Eu
gostaria de agradecer a ela. Talvez tenha salvo a minha vida, quando não suportou ver o seu marido me
torturando nas ruas de Casa Forte”.
Ao ser informado pela filha, Edna, que seu neto estava sendo torturado, o marechal Lott
respondeu: “o meu Exército não faz essas coisas”. Era verdade – assim como eram verdadeiras as
informações de Edna Lott.
O Exército de Caxias não se confunde com as ações criminosas de Villocq e quejandos. Os
acontecimentos de Recife têm, a esse respeito, uma importância, como diriam alguns, emblemática.
Primeiro, por sua data: o dia seguinte ao golpe de Estado.
Segundo, por sua vítima, um, hoje reconhecido, herói nacional.
Terceiro, pela covardia do carrasco, não somente nos crimes do dia 2 de abril de 1964. Dezenove
anos depois, entrevistado pela historiadora Eliane Moury Fernandes, ele negou o que todos viram –
inclusive pela televisão. Como era impossível negar completamente a parte pública das torturas a
Gregório Bezerra, disse ele: “[Gregório] saiu comigo com a cordinha no pescoço, de leve... Não apertei”.
Difícil é saber o que é mais repugnante: se a covardia ou se o deboche.
Porém, há uma quarta razão pela qual aquele dia prenunciaria os anos que se seguiram: o completo
fracasso em sujeitar ou quebrar um homem do povo brasileiro.
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Ao fim daquele dia, em meio aos sofrimentos, Gregório triunfou. Foi ele, massacrado, quem saiu,
por assim dizer, de cabeça erguida. Por outro lado – aliás, pelo mesmo – a ditadura fora marcada para
sempre como o regime da tortura, como o regime que, para servir a um poder econômico e político
estrangeiro, cometeria os piores crimes contra o povo do Brasil.
Villocq era um doente. Por isso, pode parecer aos leitores que estamos nos detendo demasiado nesse
elemento. Mas ele condensou, logo no primeiro momento da ditadura, e de forma especialmente
monstruosa, aquilo no que o imperialismo queria transformar os militares brasileiros. Que não tenha
conseguido, que mesmo um dos principais participantes de 1964, o general Antonio Carlos de Andrada
Serpa, ex-ministro do Estado Maior das Forças Armadas, o tenha percebido em sua autocrítica (”em 1964
nós seguramos a vaca para os americanos mamarem”), é um mérito dos oficiais e soldados brasileiros,
assim como do povo de que fazem parte.
Depois da tortura, seguiu-se a farsa judicial.
Mesmo do ponto de vista estritamente formal, demonstrou a Drª Mércia, o processo contra
Gregório e outros era uma aberração tipicamente fascista: “Réus há, nesse processo – Doutos Julgadores –
que, sendo funcionários públicos, nunca foram requisitados à repartição de origem. Outros que, revéis, não
tiveram o direito de constituir advogados. Outros que respondem a dois e três processos pelos mesmos
crimes. Ainda outros que, já condenados, estão sob ameaças de novas condenações, pelos mesmos fatos.
Ainda outros que, tendo sido considerados isentos de culpa, em processos arquivados na Justiça Civil, se
acham, agora, nas vésperas de um julgamento ou de uma possível condenação pelos mesmos motivos que
foram tidos como insubsistentes, do ponto de vista penal, em juízos competentes.
“Um ex-Secretário de Estado do Governo Miguel Arraes foi excluído do processo pelo justo
reconhecimento de foro especial. Dois outros, porém, nele permanecem, sem motivo plausível.
“Testemunhas houve que, sendo funcionários públicos, não foram requisitados à repartição
competente. Outras que, residindo fora da jurisdição dessa Auditoria, não foram ouvidas por precatória,
indeferindo-se, nesse sentido, requerimentos expressos e fazendo-se constar de ata tal cerceamento ao
direito de defesa”.
E, referindo-se ao fato de que o suposto principal acusado, o governador Miguel Arraes – dos quais
os outros, inclusive Gregório, seriam cúmplices – fora excluído do processo, ela acusou os acusadores:
“Corremos o risco de assistir a uma estranha cissiparidade: a cabeça de um lado e o resto do corpo
de outro, num esquartejamento que encheria de satisfação aos sádicos espancadores dos acusados”.
Naquela época, o sr. Joaquim Barbosa ainda não entrara em cena, com sua versão da teoria do
domínio do fato. Nem por isso era menos teratológica a Justiça da ditadura.
A Drª Mércia era uma pessoa religiosa – ou, mais exatamente, cristã. Começou suas alegações finais
com uma citação da Bíblia, mais especificamente, do profeta Isaías (”Disse o Senhor: – Sabeis qual o
jejum que eu apresento? É romper as cadeias injustas, desatar as cordas do jugo, repartir alimentos com
os famintos, mandar embora, livres, os oprimidos e quebrar toda espécie de servidão”).
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Mais adiante, citaria o Livro dos Salmos: ‘Ouve-me, quando eu clamo, ó Deus da minha justiça; na
angústia me deste largueza. Tem misericórdia de mim e ouve a minha oração’.”
Nessa época, a Drª Mércia era muito jovem. Gregório era o seu primeiro cliente “político”. Ela fora
tocada pelo horror dos primeiros momentos do golpe, exatamente pelo fato que mais condensou esse
horror, a tortura pública de Gregório Bezerra. Decidira, portanto, lutar. Por isso se oferecera para
defender aquele réu. Entretanto, ela não sabia ainda o que viria, a que extremos aquela erupção de
bestialidade, que o general e historiador Nelson Werneck Sodré compararia à fúria de Calibã – a
personificação do mal e da selvageria no Shakespeare de “A Tempestade” - poderia chegar.
Lá por 1978 ou 1979, em Timbaúba, cidade da zona da mata pernambucana na divisa com a
Paraíba, um ex-preso político, que também fora cliente da Drª Mércia, relatou-me um fato ocorrido em
1973: ele chegara à residência da advogada, em Recife, e a encontrara fortemente abalada. Contou que
vira, no necrotério, seis corpos barbaramente mutilados e um feto, arrancado do ventre da mãe – eram as
vítimas, soube-se depois, da chacina da Granja São Bento, delatadas pelo “cabo” Anselmo: Soledad Barret
Viedma, 28 anos; Pauline Philippe Reichstul, 26 anos; Jarbas Pereira Marques, 24 anos; Eudaldo Gomes
da Silva, 26 anos; Evaldo Luiz Ferreira de Souza, 31 anos; José Manoel da Silva, 33 anos, além do filho
ainda não nascido de Soledad.
Mércia conhecia Jarbas Pereira Marques, que, como registrou posteriormente, “três dias antes da
prisão procurou-me à noite e entregou fotografias da família, uma fotografia que dizia ser o cabo Anselmo,
Carteira do Trabalho, Certidão de Casamento, Certidão de Nascimento e Certificado de Reservista, [disse]
que estava para ser preso e me disse que Fleury se encontrava no Recife com a sua equipe, e que o cabo
Anselmo usava os nomes de Daniel, Jadiel, Américo Balduíno, era companheiro de Soledad, mas ele já
havia descoberto que esta pessoa era infiltrado na organização, daí porque estava muito assustado, porque
já havia conversado com Ayberé Ferreira de Sá e este fora preso, conversado com Martinho Leal Campos e
este fora preso e com José de Moura e Fontes, que fora preso também, e com outras pessoas que ele não
citou os nomes (…). No dia 08.01.73, a mãe dele chegou muito aflita ao anoitecer e me disse que ele teria
sido retirado por dois homens da livraria” - onde Jarbas trabalhava.
A Drª Mércia tentou encontrar Jarbas – e achara o seu corpo deformado, com outros cinco, mais
um feto, no necrotério.
O relato que ouvi em Timbaúba impressionou-me tanto, que acabei por colocar um ponto de
interrogação, quando lembrava dele. Era difícil dormir com aquelas imagens na cabeça – embora, nem eu,
nem o meu interlocutor, as tivéssemos visto. Mas eu não tinha razão em duvidar. Apenas, como no poema
de Eliot, às vezes a espécie humana – ou, pelo menos, alguns de seus indivíduos – não consegue suportar
tanta realidade.
Em 1996, a Drª Mércia prestou depoimento sobre o caso na Secretaria de Justiça de Pernambuco. O
que me surpreendeu, ao lê-lo, foi como a pessoa que me relatara o caso conseguira reproduzir com tanta
fidelidade aquela coleção de horrores (o leitor que quiser conhecer o relato completo da Drª Mércia, pode
acessar www.dhnet.org.br, onde ele se encontra reproduzido).
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Nós pretendíamos poupar aos leitores menção a esses fatos posteriores, considerando que a história
de Gregório Bezerra era já suficiente. Porém, já que apareceu uma cepa de canalhas que tem se esmerado
em embelezar a ditadura, talvez seja útil ver um exemplo da sua benignidade...
Mas, voltemos ao julgamento de Gregório Bezerra. Em suas alegações finais, a Drª Mércia
fundamentou a sua escolha:
“Como mulher e mãe, sinto-me à vontade para funcionar em causas que dizem respeito à Liberdade
Individual. Não funciono, aqui, como ‘inocente inútil’, mas com a consciência plena de haver assumido a
defesa de um grande, embora discutido líder popular. Sei das enormes restrições que se fazem à pessoa do
acusado, do ponto de vista político e ideológico. Mas sei, também, da sua grandeza moral, da sua
responsabilidade, numa época em que a coerência e a firmeza de atitudes são confundidas com fanatismo e
obstinação.
“Acompanhei o processo desde o início, nestes dois anos e meio de prolongadas audiências, de idas e
vindas a essa Auditoria Militar, sem me descurar, um instante sequer, da grave responsabilidade histórica
de defender Gregório Bezerra. Outros, de minha profissão, ficaram no caminho – intimidados ou atônitos.
Eu resolvi prosseguir, embora enfrentando dissabores, comentários mesquinhos, acerbas críticas e
aleivosias diversas. Fiz juramento de não transigir no exercício de minha atuação de advogada. E não
transigirei, quaisquer que venham a ser as dificuldades e ameaças. Maior do que a minha resistência
física, é o meu grande amor – de mulher, de mãe, de simples criatura humana – ao Homem, que é o templo
de Deus, segundo os evangelhos. E o Homem é uma criatura una, indivisível – quaisquer que sejam as
contingências da vida, as crenças, o modo de encará-las, a fé e a própria negação da fé. Há mil formas de
acreditar na vida. Como existem mil formas de destruí-las – pelo medo, pela covardia, pelo
individualismo, pela vaidade”.
Gregório Bezerra estava certo, quando disse à Drª Mércia que, independente de seu esforço, seria
condenado a 20 anos de cadeia. Sem prova alguma de qualquer ato criminoso, ao contrário dos que o
torturaram, foi condenado a 19 anos de cadeia. Como já mencionamos, ele foi libertado quando
guerrilheiros do MR8 e ALN capturaram o embaixador dos EUA e trocaram-no por 15 presos políticos.
Gregório, aliás, sempre se mostrou muito grato aos “jovens aos quais devo a minha liberdade” - como se
referiu a eles no discurso que fez, logo após sua volta a Recife, no Diretório Central dos Estudantes da
UFPE, naquela época localizado numa transversal da avenida Conde da Boa Vista, no centro da cidade.
O grau de ferocidade estabelecido de 1964 em diante foi inédito na história republicana do país.
Resta saber por quê. A rigor, um golpe entreguista que carecia de apoio suficiente para estabilizar o
regime que pariu, manteve-se, desde o início, pelo terrorismo.
Fazendo o balanço do ano, na edição de 31 de dezembro de 1964, o conservador “Correio da
Manhã”, ainda o maior jornal carioca, publicaria mais um “mea culpa” (o primeiro fora no editorial de 1º
de setembro, intitulado “Tortura e Insensibilidade”), ainda que bastante hipócrita, pois tentava colocar
nas costas de Jango a responsabilidade pela posição do próprio jornal, ao apoiar o golpe – através dos
editoriais “Basta!“, de 31 de março, e “Fora!“, de 1º de abril de 1964.
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[A propósito, a autoria desses editoriais tornar-se-ia uma brasa a queimar os dedos dos
editorialistas do “Correio”; a julgar por seus depoimentos posteriores, quase se poderia concluir que o
texto foi escrito sem que ninguém o escrevesse – v. João Amado, “Da redação do Jornal do Brasil para as
livrarias: Os idos de março e a queda em abril, a primeira narrativa do golpe de 1964”, IFCH/UERJ, Rio
de Janeiro, 2008.]
Porém, apesar de fugir da sua responsabilidade, o novo editorial do Correio da Manhã, que portava
o título de “Fim e Começo”, registrava:
“A Constituição, em vez de ser defendida, foi grosseiramente violada pelo Ato Institucional (…). A
defesa da Democracia foi feita mediante cassação indiscriminada de mandatos e direitos políticos,
desrespeito às decisões da Justiça, demissões em massa, prisões arbitrárias, tortura de presos políticos.
(…) A contradição é manifesta: pretendia-se restabelecer a Democracia e ela está sendo destruída. Como?
Por quê? Para quê? A resposta encontra-se na imposição da impopularíssima política externa, que na
ONU vota a favor do apartheid e no Brasil permite a aerofotogrametria das nossas potencialidades por
aviões de país estrangeiro; e na imposição da mais impopular política econômico-financeira.
“A nova Lei de Remessa de Lucros, a compra da AMFORP, o decreto da Hanna deram tudo aos
estrangeiros. E que se deu aos brasileiros?
“Imoderada alta do custo de vida, agravada pela tola liberação dos preços e pelo impiedoso
congelamento dos salários; aumento escorchante dos impostos diretos e indiretos – tudo para diminuir o
poder aquisitivo do povo e fazer pagar as despesas da deflação pelos assalariados. Na mesma ordem ou
desordem de ideias falsas, a paralisação das obras públicas e as restrições do crédito, que arruinam a
indústria e o comércio e fomentam o desemprego. Para isso foi imposto o regime de força, pois medidas tão
hostis ao povo seriam impossíveis em regime democrático. (…) O regime de força bruta instalou-se para
realizar essa política brutal. Mas a força nunca é solução de problema nenhum. Nunca pode ‘normalizarse’, pois no dia em que deixar de ser exercida, cairá como um castelo de cartas. Estes dias são escuros, mas
como as últimas horas da noite antes da aurora.”
Certamente o editorialista não previa que aquelas últimas horas da noite iriam demorar mais 20
anos. No entanto, apesar disso, ele estava certo.
Ainda mais certo estava quanto ao que motivava o caráter terrorista da ditadura: ele tinha origem,
diretamente, na política subserviente ao imperialismo norte-americano, que era o objetivo do golpe de
Estado. A tal ponto que seriam os próprios torturadores norte-americanos que seriam os instrutores do
aparato de repressão.
67
13
Logo após o golpe de 1º de abril, expandiu-se um odioso festival de pusilanimidade, em que
deputados estaduais e vereadores cassavam colegas, e também a governadores e prefeitos, com a intenção
(muitas vezes frustrada) de conservar seus mandatos à custa do mandato alheio – e de vergonhosos
espetáculos de submissão.
Eis uma notícia da época:
“Depois de darem impressionante demonstração de seu desejo de integrarem-se na Revolução,
trabalhando ininterruptamente durante mais de 24 horas, a fim de votarem o ‘impeachment’ do exgovernador Badger Silveira e do ex-vice-governador João Baptista da Costa, além da alteração do
Regimento Interno na Assembleia e do artigo 35 da Constituição, para possibilitar a eleição do general
Paulo Torres e do deputado Simão Mansur, os deputados fluminenses anunciaram que irão descontar um
dia de seus salários em favor da União. Esse último fato constitui demonstração inédita da disposição de
integração da Assembleia” (UH, 07-05-1964).
Seria famosa a cassação do prefeito de Recife, Pelópidas Silveira, eleito pela coligação PSB-PTB:
“Na tarde do dia 02/04/1964, após minha prisão, a Câmara Municipal, onde eu era apoiado por 20
vereadores contra 5, decretou o meu impedimento, por 20 vereadores contra um. Esse foi preso.“ (Pelópidas
Silveira, depoimento ao CPDOC/FGV, 1978).
O vereador que votou contra a cassação de Pelópidas, Jarbas de Holanda, não somente saiu preso
da Câmara, como foi condenado a cinco anos de cadeia “por crime contra a segurança nacional”. Somente
saiu da prisão em 1968, quando a Drª Mércia Albuquerque conseguiu um habeas-corpus.
O próprio Pelópidas fora preso um dia antes da cassação, por recusar-se a renunciar. Tentaram
processá-lo, mas o auditor da Justiça Militar “rejeitou a denúncia, como inepta. Porque a denúncia dizia
apenas que não havia nada contra o engenheiro Pelópidas Silveira, apenas constava dos autos que tinha
sido apoiado pelos comunistas em campanhas eleitorais. (…) o promotor recorreu ao Superior Tribunal
Militar que, por unanimidade, manteve a decisão (...). Agora, no inquérito [policial-militar], era uma série
de perguntas que não visavam esclarecer nada, ou por outra, não visavam apresentar acusação contra
nada. (…) tanto que à última pergunta: ‘O senhor tem alguma coisa a alegar em sua defesa?’, eu disse:
‘Não, porque não fui acusado de nada.’ E foram 85 perguntas: conhece fulano? O que acha de fulano? O
que acha da linha russa? Coisas assim” (idem).
Em seguida, a ditadura passaria a cassar os que cassaram Pelópidas – a começar pelo presidente da
Câmara de Vereadores do Recife.
Os golpistas mostravam-se especialmente histéricos com o governo de Arraes e a mobilização
camponesa dos anos 50 e 60.
No entanto, nenhuma lei fora transgredida. A revolução de Arraes constituiu-se, pelo contrário, em
aplicar a lei, acabando com a escravidão – não é justo chamá-la de “semi-escravidão” - no campo
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pernambucano (v., p. ex., os depoimentos incluídos por Christine Rufino Dabat em “Moradores de
Engenho – Relações de trabalho e condições de vida dos trabalhadores rurais na zona canavieira de
Pernambuco segundo a literatura, a academia e os próprios atores sociais”, Ed. Universitária, Recife,
2007).
Assim, pela primeira vez o trabalhador da zona da mata passou a receber salário, o que
impulsionou a indústria de bens de consumo da região. O fato mais lembrado, de impacto humano
colossal, foi a substituição da “cama de varas”, feita pelo próprio camponês, por camas fabricadas pela
indústria moveleira local. Um quarto de século antes, Graciliano Ramos escrevera, em “Vidas Secas”:
“Sinhá Vitória desejava possuir uma cama igual à de seu Tomás da bolandeira. Doidice. Não dizia nada
para não contrariá-la, mas sabia que era doidice. Cambembes podiam ter luxo? (…) Sinhá Vitória dormia
mal na cama de varas”.
Em apenas um ano de governo Arraes, os trabalhadores rurais podiam, finalmente, comprar uma
cama – o sonho de Sinhá Vitória, que seu marido, Fabiano, um dia achara inatingível, tornara-se real.
Mas os golpistas queriam apagar a História – e à custa de sangue.
Não por coincidência, o Nordeste era a principal preocupação do governo norte-americano quanto
ao Brasil. Poucos anos depois, Robert Kennedy, ao opor-se à guerra no Vietnã, falaria que, com a política
norte-americana vigente, dentro em breve os EUA estariam enviando soldados para o Nordeste brasileiro.
Antes do governo Arraes, Washington tentara penetrar no Nordeste através de colaboracionistas
nos governos estaduais, passando por cima do governo federal. A região tornou-se o foco da USAID no
Brasil – e, claro, da “Aliança para o Progresso”. Depois, a CIA deslancharia a operação IBAD, que teve
como um de seus principais objetivos, impedir a vitória de Arraes nas eleições de 1962.
Essa preocupação com o Nordeste brasileiro era pública, com artigos na primeira página do “The
New York Times”, escritos por seu mais famoso correspondente, Tad Szulc (v. Ricardo Alaggio Ribeiro, “A
Aliança para o Progresso e as relações Brasil-EUA”, IFCH/UNICAMP, Campinas, SP, 2006).
Arraes acabou com a política estadual de relacionar-se com os EUA diretamente, como se o governo
federal não existisse. Ele percebia com clareza o interesse norte-americano no Nordeste. Como disse em
seu discurso de posse, “o câncer do Nordeste está preocupando os norte-americanos, que pensam que
nossas doenças podem ser politicamente contagiosas e contaminar os nossos vizinhos. Então eles nos dão
leite em pó – se ingenuamente ou não, eu não sei – como se nossa fome fosse diferente da sua, como se ela
não estivesse constantemente renascendo, como acontece no mundo todo. Isto é humor negro; não é
engraçado, nem resolve, nem poderá resolver a situação angustiosa de uma família nordestina”.
Somente quem provou o leite em pó da “Aliança para o Progresso” (infelizmente, é o nosso caso)
tem plenas condições de apreciar toda a ironia do governador Arraes: esse leite era um refugo da produção
dos EUA realmente inesquecível – por seu gosto horroroso.
Em 1979, ou, mais provavelmente, 1980, tentei estabelecer um número para os assassinados no
campo pernambucano durante e após o golpe de Estado. Pretendia escrever algo sobre aqueles crimes, que
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me pareciam esquecidos – no que, aliás, eu não tinha razão.
Desisti da ideia, depois de conversar, na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), com
Fernando Azevedo – que, posteriormente, publicaria seu livro sobre as ligas camponesas (v. Fernando
Antonio Azevedo, “As Ligas Camponesas”, Paz e Terra, 1982).
Disse-me ele que o número dos que foram, mortos ou vivos, encerrados em fornos nas usinas era
impossível de saber. A mesma coisa disseram vários sobreviventes da época, na zona da mata
pernambucana. Lembro-me especialmente de um relato que ouvi em Joaquim Nabuco – uma pequenina
cidade que parecia plantada no meio de um canavial, na Zona da Mata Sul.
Depois de 1º de abril de 1964, o principal instrumento para infernizar a vida de líderes populares
ou operários, políticos, intelectuais, artistas, pessoas que, simplesmente, não concordavam com o golpe –
ou qualquer um que, por infelicidade, caísse na antipatia de algum inspetor de quarteirão da ditadura –
foram os IPMs (iniciais de “inquérito policial militar”) que proliferaram, qual bactérias, de Norte a Sul.
A desordem era tanta que Castelo Branco, no dia 28 de abril, criou uma “Comissão Geral de
Investigações” (CGI) para coordenar esses IPMs, que chegavam a centenas.
Para presidente dessa CGI, foi nomeado o marechal Estevão Taurino de Rezende Neto, até então
responsável por uma “CGI informal”, um estranho IPM, mãe de todos os IPMs, para “apurar fatos e as
devidas responsabilidades de todos aqueles que, no País, tenham desenvolvido ou ainda estejam
desenvolvendo atividades capituláveis nas Leis que definem os crimes militares e os crimes contra o
Estado e a Ordem Política e Social” (cf. ato complementar nº 9, 14/04/1964).
O responsável pela proliferação de IPMs foi o próprio Taurino, ao declarar que “cada corporação,
órgão ou entidade, por iniciativa própria deveria abrir inquéritos sobre os fatos havidos anteriormente”.
Sobre a situação, quando da criação da CGI, ele declarou:
“Deverei receber a relação de todos os presos políticos e estudar cada caso, em particular, para
enviar à Justiça. Já tenho comigo a relação dos presos do Exército, na Guanabara, faltando as dos
Estados e os que estão sob a responsabilidade da Marinha, Aeronáutica e Polícia Estadual da Guanabara.
Em navios temos o general-de-brigada Newton Lemos, quatro coronéis, 15 tenentes-coronéis, 9 majores, 18
capitães, 18 primeiros-tenentes, 4 segundos-tenentes, um subtenente, um primeiro-sargento, 7 segundossargentos, 30 terceiros-sargentos, quatro civis e, entrados para a lista posteriormente, mais um primeirotenente, três capitães, dois terceiros-sargentos, o general-de-brigada Artur de Barros e um tenente-coronel.
Nas fortalezas de Artilharia da Costa, temos o vice-almirante Cândido da Costa Aragão, os generais
Euríalo Jesus Zerbini, Luís Tavares da Cunha Melo e Crisanto de Figueiredo, o contra-almirante
Washington Frazão Braga, o general-de-brigada Assis Brasil, dois coronéis, um major, três capitães, os
civis Antônio Celso Nogueira Monteiro, Neiva Moreira e João Pinheiro Neto, e mais três majores” (cf.
Edmar Morel, “O Golpe Começou em Washington”, Civ. Bras., 1965, Rio, p. 147).
Taurino de Rezende era conhecido por um projeto para fundar o serviço agropecuário do Exército,
vetado por Jango – que, aliás, conversou com o então general sobre os motivos do veto. Além disso, fora
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oficial de confiança do marechal Lott, quando ministro da Guerra, e chefe do inquérito que apurou a
intentona de Aragarças, a tentativa golpista de Burnier – depois notório pelo plano terrorista de explodir
o gasômetro do Rio, usando os oficiais do Para-Sar, e pelo bárbaro assassinato de Stuart Angel Jones. Na
época de Aragarças, dezembro de 1959, seu plano era bombardear os Palácios do Catete e das Laranjeiras.
O marechal Taurino, a bem dizer, não era mau sujeito. Em 1964, tomou algumas providências para
coibir os aspectos mais desumanos da repressão, tirou os presos militares dos navios e esvaziou o estádio
Caio Martins, em Niterói, que se tornara um depósito de presos políticos, liberando os que, sem processo,
tinham mais que 30 dias de prisão.
Taurino reuniu a imprensa para pedir que não o retratassem como “o carrasco de tudo isso aí”. Foi
inútil porque, ao mesmo tempo, uma de suas primeiras medidas na CGI foi autorizar “a prisão preventiva
de testemunhas dos IPMs no período compreendido até 50 dias antes de seus depoimentos” (cf.
CPDOC/FGV, DHBB). Além de pregar, pelos jornais, a prorrogação do período de cassações (pelo primeiro
Ato Institucional, esse período terminava em 9 de junho) e a “punição” de Tancredo Neves.
Porém, sua trajetória no cargo terminou abruptamente, quando se soube que, por ordem do chefe
do IPM da SUDENE, seu filho estava preso, em Recife, como “subversivo” e “comunista”.
O filho do marechal era o economista Sérgio Cidade de Rezende, professor da Universidade
Católica de Pernambuco. O IPM da SUDENE fora instalado por ordem do chefe da CGI – ou seja, pelo pai
do preso.
Taurino declarou imediatamente à imprensa que seu filho era “um idealista como eu, e não é
corrupto nem subversivo nem comunista. Sérgio é um homem honrado em toda a acepção da palavra.
Orgulho-me extraordinariamente desse meu filho”.
Muito justo, mas... por que os filhos de outros pais, que também estavam presos, não seriam,
igualmente, “idealistas”? É óbvio que isso lhe foi abertamente cobrado, inclusive pela imprensa que
apoiava o golpe – esta para dizer que Sérgio Cidade de Rezende era, realmente, um “subversivo”, e que o
marechal era um frouxo.
Qual era o crime do professor Rezende? Eis uma rápida síntese:
“A perseguição contra Sérgio foi desencadeada por causa de uma manifestação por escrito que ele
divulgou em sala de aula, entre seus 26 alunos, no dia 26 de junho de 1964, fazendo uma análise crítica
da situação política nacional. Inicialmente, o manifesto dizia que os estudantes, sendo parte da minoria de
privilegiados que cursa a universidade, tinham a obrigação de pensar para tomar uma posição perante a
sociedade. Em seguida, caracterizava a situação vigente pelo domínio de um ‘grupo minoritário’ com o
apoio das ‘forças mais retrógradas da sociedade’ que constituiu uma ditadura que cassa mandatos, cassa
direitos políticos e cassa a palavra, pois não tem condições de enfrentar um confronto de ideias, por causa
da fragilidade daquilo que defende. Aos ‘revolucionários’ brasileiros, que se arvoravam à condição de
donos da verdade, o professor chamou de ‘gorilas’, e contra eles e sua verdade absoluta resistiam aqueles
que não queriam ver interrompida a marcha que conduzia o Brasil à independência política e econômica,
71
nem queriam testemunhar a destruição da liberdade de pensar pelo obscurantismo. Ao final, dizia: ‘A
vocês estudantes cabe uma responsabilidade, uma parcela de decisão dos destinos da sociedade e para isto
têm que optar entre ‘gorilizar-se’ ou permanecerem seres humanos. A estes cabe a honra de defender a
democracia e a liberdade’.” (v. Claudia Paiva Carvalho, “Intelectuais, cultura e repressão política na
ditadura brasileira (1964-1967): relações entre direito e autoritarismo”, Faculdade de Direito/UNB,
Brasília, 2013, p. 148).
Sérgio teve a sua prisão decretada no dia 9 de julho. Por força de habeas corpus do Superior
Tribunal Militar (STM), foi solto no dia 29 – e preso outra vez no dia seguinte, na presença do pai,
marechal Taurino de Rezende, por um meganha conhecido como “o fanático da rua Aurora”, cuja ambição
declarada era “prender o arcebispo de Pernambuco”, Dom Hélder Câmara (v. CM, 01/08/1964).
A nova prisão de Sérgio era “por estar implicado em outras acusações em inquéritos paralelos” (cf.
telegrama ao STF de Mourão Filho, CM 01/09/1964).
No dia 14 de agosto, também o STF concedeu, por unanimidade, habeas corpus a Sérgio Cidade de
Rezende, mas ele foi preso pela terceira vez, “para não prejudicar averiguações para apurar a
rearticulação comunista” (cf. Mourão Filho, idem).
A 22 de julho, o marechal Taurino de Rezende declarara que “a revolução não pode ser
desmoralizada pelas arbitrariedades e violências cometidas em seu nome”.
Foi exonerado por Castelo Branco.
Já são muito conhecidas as respostas de Oscar Niemeyer no ridículo IPM do Partido Comunista (é
impressionante como tanto papel foi desperdiçado: a íntegra desse IPM tem 29.530 páginas, onde o leitor
pode chegar à conclusão de que o Partido Comunista existia – e nada mais; cf. cópia no acervo do Projeto
Brasil Nunca Mais).
Ninguém estava livre de uma aporrinhação, mesmo sem IPM, se algum imbecil quisesse alentar o
seu currículo fascista com o prestígio dos outros. Por exemplo:
“A atriz Cacilda Becker, intimada pelo DOPS para prestar esclarecimentos sobre atividades
subversivas no meio teatral, compareceu ontem à Delegacia vestindo um modelo Dior, elegantíssima, em
companhia de seu marido, o ator Walmor Chagas, e de outros integrantes do elenco que dirige. Cacilda
respondeu todas as perguntas com muita calma durante 4 horas, encantando até os inquisidores. A atriz
confirmou que realmente, em 1947, a convite de Jorge Amado, declamou no Teatro Municipal do Rio o
poema ‘Mães de Stalingrado’, apresentação que repetiu no Vale do Anhangabaú, esclarecendo que isso
aconteceu logo após a vitória das Nações Unidas contra o nazi-fascismo e que o poema, muito aplaudido
pelo povo, exaltava as mães que perderam seus filhos na defesa da Liberdade.
“Cacilda Becker relatou a seguir que em 1948 foi eleita Segunda Tesoureira do Centro Paulista de
Estudos do Petróleo e que é fundadora do Teatro Brasileiro de Comédia. Acredita que tenha assinado o
Manifesto Apelo por um Pacto de Paz, bem como outros que foram organizados durante o II Festival da
Juventude Paulista, em 1953. Disse ainda, respondendo a pergunta, que não participou do Congresso de
72
Mulheres em Copenhague, negando que tivesse qualquer contato com mulheres comunistas. Os policiais
passaram a perguntar sobre as pessoas que Cacilda Becker conhecia e ela disse que realmente conhecia o
vereador Rio Branco Paranhos, que apresentou projeto à Câmara Municipal, a seu pedido, solicitando a
doação de terreno para um hospital de crianças com defeito físico. Afirmou conhecer também Rossini
Camargo Guarnieri apenas como maestro, Clóvis Graciano, como pintor, Flávio Rangel, como diretor de
teatro, e Caio Prado Júnior, como editor de livros. Encerrou seu depoimento afirmando que seu teatro tem
como objetivo único a arte pela arte e a cultura (...)” (UH, 09-05-1964).
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14
Alguns anos depois, Juscelino Kubitschek contaria que, ao saber da sua decisão de votar em Castelo
Branco, na “eleição” indireta para presidente de 11 de abril de 1964, o senador Victorino Freire (PSDMA) falou: “não dou três meses para você se arrepender”.
O comentário de JK é típico da sua afável personalidade: “como o Victorino estava otimista ao falar
em três meses!”.
O senador pelo Maranhão votaria em um candidato, a rigor, inexistente, o ex-presidente Eurico
Dutra, que tinha fama (não muito justificada) de legalista. Mas suas desconfianças em relação a Castelo
Branco mostraram-se quase proféticas.
A descrição de Edmar Morel é mais do que pertinente:
“Quando o marechal Castelo Branco assumiu o Governo, às 15h10m do dia 15 de abril, perante o
Congresso Nacional, o Brasil era um apreciável campo de concentração e as Embaixadas do Uruguai,
México, Peru, Bolívia, Iugoslávia e outras estavam superlotadas [com asilados políticos] (...) O Presidente
declarou, em breve discurso, que seu Governo se pautaria pelo cumprimento à Constituição e que o Estado
‘não será estorvo à iniciativa privada’. Agiria como um verdadeiro escravo das leis do País e que teria
procedimento de Chefe de Nação, sem tergiversações, ‘no processo para a eleição de um brasileiro, a quem
entregarei o cargo a 31 de janeiro de 1966’.” (Edmar Morel, “O Golpe Começou em Washington”,
Civilização Brasileira, Rio, 1965, pág. 142).
Castelo desmentiria, uma a uma, as próprias palavras.
Sua “eleição” era perfeitamente ilegal, instituída por uma “lei” (nº 4.321), posterior ao golpe de
Estado, cujo projeto foi apresentado ao Senado no dia 6 de abril de 1964, no mesmo dia lido em plenário,
no mesmo dia enviado à Comissão de Constituição e Justiça do Senado – e, aí, relatado, aprovado e
reenviado à Mesa, que o remeteu de volta ao plenário, onde foi aprovado em dois turnos, enviado à
comissão de redação e aprovado, em redação final, tudo no mesmo dia, e remetido à Câmara – onde, no dia
seguinte, foi lido em plenário, depois apreciado, relatado e aprovado pela Comissão de Constituição e
Justiça da Câmara, reenviado à Mesa, que o remeteu ao plenário, onde foi aprovado e enviado à Comissão
de Redação da Câmara para a versão definitiva – e, na mesma noite desse glorioso dia 7 de abril, foi
sancionado pelo presidente da República de fachada, Ranieri Mazzilli (cf. Anais do Senado, Livro
4/1964, DCN 07/04/1964, p. 745 e Atos do Poder Legislativo, 1964, vol. 3, p. 20).
Se o leitor achou este parágrafo anterior algo vertiginoso, a culpa não é nossa, estimado amigo.
Mas, dois dias depois, o Ato Institucional, assinado pela junta – que era quem mandava realmente
no país – mudaria os procedimentos da lei tão velozmente aprovada, depois de discussão tão profunda...
Prenunciando o que viria, a perseguição política estendeu-se à Igreja. Até o então bispo de Natal,
Dom Eugênio Sales – futuramente, Cardeal Arcebispo do Rio de Janeiro – foi acusado de comunista e
ameaçado, por se declarar a favor da reforma agrária. Chantageado para celebrar um “Te Deum” pela
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vitória do golpe, Dom Eugênio “recusou-se. Afirmou que rezaria missa apenas pelo fato de não ter havido
derramamento de sangue” (Morel, p. 148).
Sacerdotes e leigos católicos eram presos em todo o país. Personalidades católicas eminentes, como
Sobral Pinto e Tristão de Ataíde (Alceu de Amoroso Lima), protestavam. Mas aquela figurinha
insignificante, Jaime de Barros Câmara – na época, cardeal do Rio, onde impedira o bispo-auxiliar, Dom
Hélder Câmara, de continuar a exercer o seu apostolado (por intervenção do próprio papa Paulo VI, Dom
Hélder fora transferido, no início de março de 1964, para o Arcebispado de Olinda e Recife) – pregava o
ódio sem limites: “A tolerância que acoberta os facínoras favorece a ousadia para o mal, incentiva outros a
seguirem os mesmos caminhos e gera a insegurança pública. (…) quando os criminosos permanecem
impunes, não há paz nem ordem, desaparecem as garantias de vida e de bens, de honra e dignidade”, disse
Barros Câmara, na mesma noite em que a rádio da Arquidiocese de Olinda e Recife foi fechada, para
impedir D. Hélder de falar ao povo de Pernambuco (o Arcebispo iria dar uma aula no curso de “educação
de base” que instituíra ao assumir a nova missão – cf. Morel, pág. 147).
Era essa a garantia “de bens” apoiada pelo cardeal Câmara.
JK, então senador por Goiás, foi cassado pela ditadura no dia 14 de junho de 1964, por ato assinado
pelo homem em quem votara para presidente – e que, para cabalar o seu voto, decisivo na bancada do
PSD, jurara fidelidade eterna à democracia.
Juscelino não foi o único democrata que votou em Castelo. Por exemplo, a bancada do PTB no
Senado, com exceção de um senador – exatamente o líder da bancada, Arthur Virgílio Filho, do Amazonas,
que declarou-se “líder sem liderados”, se absteve, e, após o AI-5, foi cassado – votou em Castelo (cf.
Diário do Congresso Nacional, 12/04/1964, p. 98/99).
Da mesma forma, a bancada do PSD na Câmara, com votação por Castelo encaminhada pelo líder o jurista e ex-ministro da Justiça Martins Rodrigues, do Ceará, também cassado após o AI-5.
Na argumentação dos que foram contra o golpe, mas votaram em Castelo, este era o menos pior –
ou era a garantia de que as eleições presidenciais do ano seguinte não seriam canceladas.
Há, inclusive, uma história – não pudemos comprovar a veracidade – de que JK tentou convencer
Tancredo Neves a votar em Castelo com o argumento de que “... ele é um intelectual do Exército, já leu
muitos livros”, recebendo como resposta: “O problema é que ele leu os livros errados”.
[NOTA: a resposta parece típica de Tancredo, mas o argumento não parece típico de Juscelino,
sobretudo considerando que tanto ele quanto seu interlocutor eram bons leitores - e ambos sabiam dessa
característica do outro, portanto, nenhum deles ficaria impressionado porque alguém “leu muitos livros”.
Em sua obra “Castello, a marcha para a ditadura”, página 263, Lira Neto dá a entender que a fonte dessa
história seria uma coluna publicada na época por Carlos Castello Branco. Mas não a encontramos em
nenhuma das colunas desse jornalista.]
Infelizmente, a demagogia pseudo-democrática de Castelo somente servia como fachada a um
regime mais do que impopular – e como terraplenagem para o estabelecimento de uma ditadura
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abertamente terrorista.
A maioria da bancada do PTB na Câmara decidiu-se pela abstenção. Ao todo, 72 parlamentares,
inclusive Tancredo – e, não seria justo esquecer, José Sarney, apesar de udenista – se abstiveram. Cinco
votaram em candidatos inexistentes (cf. lista completa dos que se abstiveram na primeira página do
Correio da Manhã de 12/04/1964).
O discurso mais significativo da sessão foi o do líder do Partido de Representação Popular, deputado
Plínio Salgado:
“Meu partido se orgulha de jamais ter dado legenda a comunistas ou a linhas auxiliares do
Comunismo; meu partido se orgulha de ter vindo de raízes, desde quanto levantamos, pela primeira vez no
Brasil, a bandeira anticomunista; meu partido se orgulha de ter sido a primeira agremiação,
anteriormente denominada Ação Integralista Brasileira, que alertou a Nação para o perigo que, então, se
aflorava e que viera gradativamente a crescer até ameaçar o fundamento das nossas instituições; meu
partido se orgulha de, num momento em que combatia o Comunismo internacional (…) ter também
[combatido] uma Carta Constitucional outorgada por uma ditadura que implantava às avessas o mesmo
totalitarismo que combatíamos ao combater o Comunismo internacional. (…) Nessas condições, meu
partido, nesse momento histórico da Nação, continua no mesmo lugar: nenhum de nós mudou, estivemos
sempre firmes nesta batalha. Por isso é que, quando as forças políticas e militares da Nação se
conglomeram em torno de uma candidatura, que, certamente trará ao Brasil, vitoriosa, a restauração da
Constituição e o respeito ao Congresso Nacional, candidatura essa que não esteve nos cartazes das ruas,
nos comícios populares, meu partido declara que votará no General Castelo Branco!“ (Muito bem! Muito
bem! Palmas) – cf. DCN, 12/04/1964, p. 98).
Juscelino foi cassado porque, se candidato em 1965, ganharia as eleições. Depois da cassação e de
um breve período no exterior, começaria o seu calvário: as sessões intermináveis de interrogatório em que
um dos presidentes mais populares da História da República não tinha direito, sequer, a uma cadeira,
obrigado a sentar num banquinho sem encosto para ouvir, durante horas e horas, os seus próprios
discursos na campanha eleitoral de 1955, entre insultos – sob a forma de perguntas – sobre fantasiosos
desvios de dinheiro ou ligações com os comunistas.
Tão cedo quanto 21 de abril de 1964 – portanto, 20 dias após o golpe de Estado e 10 dias depois da
“eleição” indireta – o colunista Carlos Castello Branco escrevia, no “Jornal do Brasil”:
“O Governador Carlos Lacerda já escolheu o seu novo alvo preferencial. Todo o seu poder de fogo
está dirigido no momento contra o Sr. Juscelino Kubitschek, para uma evidente operação de limpeza com
vistas à sucessão presidencial. Sua campanha baseava-se, até a Revolução, no fato de ser êle o contraste
mais nítido ao Sr. João Goulart e ao que este representava. Daqui por diante, ele volta a um tema antigo
em circunstâncias renovadas: o Sr. Juscelino Kubitschek. O Sr. Ademar de Barros não o interessa, pois
está evidentemente marginalizado no processo político. O novo Governo da República, ainda que dele
venha a divergir e ainda que venha a colocar-se em atitude hostil à política oficial, não lhe oferecerá como
tema de batalha as mesmas vantagens que lhe oferece o ex-Presidente da República. Nem o atual Governo,
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por mais que marche em sentido oposto ao do lacerdismo, oferecerá riscos à marcha do Governador da
Guanabara para a Presidência da República” (Carlos Castello Branco, “Juscelino agora é o alvo de
Lacerda”, JB, 21/04/1964).
O colunista não adquiriu sua fama – que cresceu nos anos posteriores – devido ao brilhantismo de
estilo ou à acurácia de análise. A compreensão do momento político jamais foi o seu forte. Mas, somos
obrigados a reconhecer, Carlos Castello Branco era muito bom em escrever o que todos sabiam. Em
algumas circunstâncias, pode ser uma qualidade.
O mais sintético retrato de Lacerda, naqueles dias, foi esboçado, pouco depois, por Carlos Heitor
Cony:
“... temos um notório exemplo do intelectual frustrado que já pode ser conceituado como um
criminoso político. O Sr. Carlos Lacerda, depois de um estágio na subliteratura – com a agravante de
reincidir nas horas vagas -, enveredou pelo crime: já prega o fechamento do Congresso e a abolição da
liberdade de imprensa” (entrevista a “O Cruzeiro”, ed. 03/10/1964).
Candidato da UDN à Presidência, Lacerda não seria beneficiado com a cassação de Juscelino. As
eleições presidenciais foram canceladas um mês após a cassação de JK, com a “prorrogação” do mandato
de Castelo, na madrugada de 17 de julho, por apenas um voto – de um deputado udenista bêbado, que foi
introduzido no plenário quando o presidente da Mesa do Congresso, Auro de Moura Andrade, já encerrara
a sessão, declarando derrotada a “prorrogação do mandato” de Castelo Branco.
Durante 90 minutos, no Congresso, travou-se uma luta, que por pouco não chegou ao desforço
físico, sobre a aceitação ou não daquele voto, mais etílico que udenista, fora do tempo regimental.
Ao final, o voto foi aceito – e, no dia seguinte, mesmo na imprensa reacionária, o comentário mais
suave é que se tratara de “um gol de Valido”.
A origem da expressão, hoje em desuso, é a partida final do campeonato carioca de 1944, entre
Flamengo e Vasco. No fim do segundo tempo, Augustín Valido, jogador argentino que era ponta-direita do
Flamengo, apoiou-se no zagueiro vascaíno Rafanelli, outro argentino, para dar uma cabeçada e marcar o
gol que, apesar de irregular, deu o tricampeonato ao seu time. Alguns flamenguistas levantam até hoje
que o gol de Valido teria sido regular, porém, o mais famoso (e estridente) deles – Ary Barroso, que
irradiava o jogo – declarou que melhor ainda seria se o gol tivesse sido com a mão...
Infelizmente, a “prorrogação” de um mandato, que nem existia, não era tão divertida quanto a
final do campeonato carioca. Era apenas coerente com o sr. Plínio Salgado defendendo as instituições, ou
falando de suas “raízes”, para saudar um presidente cuja principal virtude era não ter passado “pelos
comícios populares ou cartazes da rua”...
Mesmo assim, não deixou de ser engraçado, até na época, o discurso de Castelo Branco (o ocupante
do Planalto, não o colunista) na Voz do Brasil do dia 24 de julho, sobre a “prorrogação” do seu mandato:
“Apesar da minha repetida rejeição à ideia, muitos políticos trabalharam para a sua consecução,
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formando-se mesmo uma corrente favorável e ponderável no meio revolucionário e político. Agora, é uma
situação de fato. Pessoal e politicamente, preferia terminar o meu mandato a 31 de janeiro de 1966.
Procurarei, então, cumprir o mandato até 15 de março de 1967”.
Para quem não tinha mandato algum, pois era apenas o resultado de um golpe de Estado – e de
suas relações com Vernon Walters, depois diretor da CIA – Castelo era um artista. Parece até que os
autores da submissa emenda da “prorrogação” (os udenistas Afonso Arinos e João Agripino) poderiam
apresentá-la sem contar com a sua aprovação.
Somente aí, Lacerda descobriu algumas coisas surpreendentes: primeiro, que era contra a maioria
absoluta nas eleições para presidente e vice-presidente da República (com a prorrogação do mandato de
Castelo, fora aprovada uma emenda, de autoria do líder da ala jovem do PSD, deputado Ulysses
Guimarães, instituindo a maioria absoluta: com Juscelino cassado, a proposta dificultava a eleição do
candidato da UDN).
A falta de maioria absoluta na votação para presidente fora o argumento de Lacerda – e da UDN –
durante 20 anos, para tentar impedir, sucessivamente, a posse de Getúlio, Juscelino e Jango, apesar da
Constituição de 1946 não estabelecer essa condição para declarar os eleitos.
Agora, Lacerda descobrira que “votando a maioria absoluta e a prorrogação, o Congresso está
votando pela ditadura militar que fatalmente se estabelecerá no país (…). Votada a prorrogação, não
haverá eleição em 66 nem tão cedo”.
Era verdade, mas ninguém fizera mais por essa ditadura, inclusive intrigando alguns militares
contra presidentes legalmente eleitos, do que Carlos Lacerda. Nas duas décadas anteriores, ele recorrera a
tudo – e a qualquer coisa – para chegar a esse resultado, desde a falsificação conhecida como “carta
Brandi” (atribuindo a Jango uma conspiração com Perón para instalar no Brasil uma “república
sindicalista”) até a difamação da vida pessoal de nacionalistas, à agressão pura e simples de gente honrada
que lhe parecesse um obstáculo a seus objetivos e à participação com destaque em todas as tentativas de
golpe anteriores.
Por alguma razão, Lacerda acreditava que o papel dos militares brasileiros era instalar uma
ditadura para levá-lo ao poder. Talvez, em um sujeito doentio, fosse apenas porque não conseguia chegar à
Presidência pelas eleições. Talvez até a sua subserviência em relação à casta financeira dos EUA, lhe
parecesse apenas um meio para chegar ao poder. No campo das ilusões doentias, tudo é possível. O fato é
que, como mostraram os seus últimos e deprimentes anos de vida, sua única razão de existir era a fixação
na Presidência da República – ou, mais precisamente, como disse alguém, em ser o ditador de uma
ditadura fascista.
Ao apoiar o cancelamento das eleições, a direção da UDN tornou-se, de súbito, “anti-lacerdista”.
Mas não adiantou muito: depois do estrondoso fracasso nas eleições para governador em 1965, a
ditadura acabou com a própria UDN, dissolvendo os partidos pelo AI-2. Restou, aos seus próceres,
algumas conversas depressivas:
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“Os Srs. Aliomar Baleeiro e Ernâni Sátiro [presidente da UDN] falaram-se, ontem, depois de
alguns meses de mal-estar entre ambos. ‘Presidente, o que será feito do patrimônio da UDN?’, perguntou o
Sr. Baleeiro. ‘Vou pedir a você e ao Oscar Correia que estudem o caso de liquidação da sociedade civil
União Democrática Nacional’. (…) É ideia do Sr. Baleeiro sugerir a doação dos arquivos do Partido ao
Instituto Histórico e Geográfico” (Carlos Castello Branco, JB, 28/10/1965).
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Nosso objetivo nesta série é, principalmente, expor para os mais jovens alguns materiais históricos
que lhes permitam formar um juízo próprio sobre o passado do país de que fazem parte, ao invés de
absorverem passivamente o que, em geral, é apenas tendenciosidade ideológica – em geral esmagada ou,
neo-ditatorial. O que não quer dizer que não coloquemos também nossa análise, interpretação, opinião ou
mesmo, impressões. Mas é preciso que aqueles que nasceram depois conheçam o que fizeram os homens e
mulheres daquele tempo difícil.
Um mês após a “eleição” indireta de Castelo Branco, a cassação de Juscelino era dada como certa
por todos os jornais – e em todos os meios políticos. Em 2010, o udenista Rondon Pacheco, que foi chefe da
Casa Civil no breve governo Costa e Silva, diria, sobre a cassação de JK, que “eles achavam que a eleição
do Juscelino revogaria a Revolução. E ele era invencível naquela hora” (cf. Ronaldo Costa Couto,
“Juscelino Kubitschek”, Câmara/Senado, 2011, p. 169).
Esse “eles” é bem característico: como se toda a responsabilidade estivesse nos militares – e os
lacerdistas, a começar pelo próprio Lacerda, nada tivessem a ver com essa canalhice...
Em sua entrevista ao CPDOC/FGV, Ernesto Geisel, que foi chefe do Gabinete Militar no governo
Castelo Branco, é mais específico: “Sua atuação [de Juscelino] em 1961, aconselhando o Jango a vir
tomar posse do governo, fazia dele um adversário da revolução” (grifo nosso).
Geisel estava credenciado para fazer esse relato, pois foi, também, chefe do gabinete de Odílio
Denys, quando este, e demais membros da junta de 1961, tentaram impedir a posse de Jango, após a
renúncia de Jânio Quadros.
Além disso, Juscelino foi um dos seis senadores (houve também 55 deputados) que se opuseram ao
ato adicional de 1961 (a emenda parlamentarista). Para ele, e com razão, essa emenda equivalia a um
golpe de Estado, depois que o golpe já fora derrotado pela “campanha da legalidade” - liderada por Brizola
e pelo general (depois marechal) Machado Lopes, comandante do III Exército.
Nas palavras de JK, em sua declaração de voto no Senado, a 2 de setembro de 1961:
“... se tivesse dependido de minha vontade, a Constituição teria sido respeitada, assumindo o poder
presidencialista o cidadão João Belchior Marques Goulart, eleito em pleito livre exatamente para o fim de
substituir o presidente da República nos seus impedimentos, ou assumir o governo em sua falta definitiva.
Antes, lutei com todo o ardor pelo respeito à legalidade quando eu próprio representava essa legalidade.
Não posso omitir-me ou renegar agora minhas convicções. Não passaria eu de um legalista em causa
própria se mudasse de ponto de vista ao sabor de circunstâncias e caprichos de uma conjuntura.
“O mesmo raciocínio, a mesma coerência, a mesma consciência da sinceridade que devo ao meu
país no respeito a mim mesmo levam-me a não votar pela extinção do regime presidencialista. (…) “Nada
me parece mais melancólico em nossa futura paisagem política do que privar-se o povo de escolher de
modo direto o seu presidente. As últimas campanhas presidenciais haviam adquirido um aspecto
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educativo e altamente cívico. Os candidatos e o povo travavam diálogo em praça pública, debatiam os mais
graves problemas nacionais. O povo brasileiro – mesmo naquela parte constituída de criaturas esquecidas
e sem voz nas decisões, marcadas e amortecidas pelas dificuldades de vida – passou a indagar o que dele
queriam e a formular, depois de longo silêncio, as suas queixas, as suas reclamações e as suas aspirações.
“(...) Só o povo pode decidir sobre o seu próprio destino. Mudar o regime, adotar instituições novas
sem consulta ao povo, é um erro. Ele é o único, no regime democrático, capaz de fixar as normas de nossa
vida política. O povo não foi ouvido. O povo não sabe o que foi decidido no atropelo dessas votações
realizadas em 24 horas. A mudança é fruto de uma pressão inaceitável no regime que praticamos. Esta a
razão fundamental por que voto contra. Fico fiel ao povo – aos seus mandamentos, ao seu voto, que foi
dado pelo presidencialismo” (cf. DCN, Seção II, 03/09/1964).
Três anos depois, na noite de 3 de junho de 1964, após o toque da campainha, ouviu-se, no plenário
do Senado, a voz de seu presidente, o medíocre Auro de Moura Andrade (PSD/SP):
PRESIDENTE: Acha-se inscrito o Senhor Senador Juscelino Kubitschek. Sua Excelência ocupará
a hora do Expediente, a fim de falar em explicação pessoal. Assim sendo, nos termos do Regimento
Interno, Sua Excelência não poderá ser aparteado. Tem a palavra o Senhor Senador Juscelino Kubitschek.
A cassação de Juscelino fora decidida alguns dias após o seu voto favorável a Castelo Branco. No dia
seis de maio – portanto, menos de um mês depois – o “Correio da Manhã” registrava, na primeira página:
“O general Mourão Filho, comandante da 4ª Região, concedeu ontem entrevista em que, negandose a responder sobre a situação do sr. Juscelino Kubitschek, afirmou de si mesmo: ‘Em matéria de política,
não entendo nem falo nada. Sou uma vaca fardada’.”
O “Correio da Manhã”, logo abaixo dessa declaração, inseriu a seguinte nota:
“A definição que o general deu de si mesmo causou estranheza na redação. Procuramos confirmála, na suposição de algum empastelamento no telex. A confirmação foi categórica.”
Como sabemos por suas memórias, Mourão Filho estava muito longe – mas muito longe mesmo –
de ser uma pessoa modesta. Entretanto, ele nascera na mesma cidade de JK. Seria difícil pisar outra vez
em Diamantina, se aparecesse publicamente como cassador do filho mais ilustre e mais popular da terra.
Logo em seguida, outro egresso do integralismo, o deputado Raimundo Padilha (UDN-RJ) – exmembro do Conselho Nacional Integralista, ex-führer da Ação Integralista no Rio e um dos assaltantes do
Palácio Guanabara no putsch de 1938 – iniciou, na Comissão de Relações Exteriores da Câmara, uma
estúpida investigação sobre supostos favorecimentos financeiros aos países socialistas, durante a
Presidência Kubitschek.
No dia 12 de maio, nos corredores do Ministério da Justiça, o secretário da Segurança de Lacerda,
Gustavo Borges – um dos participantes da lastimável “república do Galeão”, na tentativa de golpe contra
o presidente Getúlio, em 1954 – forneceu aos jornalistas um espetáculo ao estilo das entrevistas de
Ribbentrop ou Goebbels, declarando que o governo já estava apetrechado para “liquidar o sr. Juscelino
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Kubitschek” (sic). Segundo Borges, havia um dossier que faria JK “dar com os costados na cadeia” e ele,
Borges, “apenas aguardava ordens para cumprir a missão de prender o ex-presidente da República, fato
que lhe ensejaria muita alegria” (CM 13/05/1964).
No dia 25 de maio de 1964, a cassação de JK era praticamente o único assunto político importante.
Juscelino, então, divulga um manifesto à Nação:
“Venho suportando em silêncio, com o pensamento voltado para a consolidação das instituições
democráticas, a atoarda crescente de um esquema de calúnias e difamações montado contra mim (...).
Repito o que já disse em outro momento difícil de minha vida: Deus poupou-me o sentimento do medo.
“(…) tenho um limite, que me é traçado pela obrigação de proteger e defender o meu conceito de
homem público e a minha honra pessoal. (…) chegou a hora de fazer face aos que, mais do que a mim,
querem amesquinhar na minha pessoa as tradições democráticas do povo brasileiro e o próprio renome do
Brasil.
“Chegou a hora de dizer que não recuarei em hipótese alguma. Não me intimidarei. Não deixarei de
lutar, como um homem cuja força repousa apenas na identificação com os ideais de ponderável parte da
opinião nacional. O processo terrorista que escolheram os meus adversários políticos não é indicado para
obter de mim qualquer renúncia. Pelo terror não me levarão a uma desistência, renegação ou covardia.
Quem exerceu a Presidência da República governando seu país com justiça exemplar, trabalho e
perseverança sabe que o dever lhe impõe continuar a conduzir a sua vida sem capitulações e hesitações
vergonhosas.
“Sempre respeitei sem discrepância todos os que me fizeram oposição. Governei com aguçado
sentido de que o Brasil não me pertencia. Presidi as eleições como um juiz e passei por fim o cargo ao meu
sucessor, que era também o candidato oposicionista e meu adversário. Se há algo que definiu, do ponto de
vista político, a minha presidência, foi a fidelidade ao regime, a lealdade com que defendi as instituições e
resguardei a paz da família brasileira.
“Lutei sem descanso, sem interrupção, pela independência econômica desta nação. (…) Meu
julgamento, o povo já o fez e estou certo de que está desejoso de fazê-lo novamente ao primeiro ensejo. É só
por isso que se movem contra mim os meus detratores. Não procuram eles atingir apenas um candidato,
mas golpear o próprio regime democrático.
“Fique certa, entretanto, a Nação, de que não deixarei acusações sem resposta. E de que saberei, de
uma ou de outra maneira, cumprir o meu dever.
“Rio de Janeiro, 25 de maio de 1964,
“Juscelino Kubitschek de Oliveira.”
No dia seguinte - segundo o depoimento de Geisel - na presença de Adhemar de Barros, governador
de São Paulo, Costa e Silva, aos berros, exigiu de Castelo Branco a cassação imediata de Juscelino. No dia
3 de junho, Costa e Silva formalizou (era apenas uma formalidade, até porque já havia anunciado o
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resultado para a imprensa) o pedido de cassação do mandato – e dos direitos políticos, por 10 anos – de JK
ao Conselho de Segurança Nacional.
À noite, Juscelino foi à tribuna do Senado:
O SR. JUSCELINO KUBITSCHEK (para explicação pessoal) (Lê o seguinte discurso):
“Senhor Presidente, na previsão de que se confirme a cassação dos meus direitos políticos, que
implicaria na cassação do meu direito de cidadão, julgo do meu dever dirigir, desta tribuna, algumas
palavras à nação brasileira. Faço-o agora, para que – se o ato de violência vier a consumar-se – não me
veja eu privado do dever de denunciar o atentado que na minha pessoa vão sofrer as instituições livres.
Não me é licito perder uma oportunidade que não me pertence, mas pertence a tudo que represento nesta
hora.
“Julgo, sem jactância, ser este um dos mais altos momentos da minha vida pública. Comparo-o ao
instante em que recebi a faixa presidencial, depois de uma luta sem tréguas contra forças de toda ordem,
inclusive as da calúnia, que em vão tentaram deter a vontade do povo brasileiro. Naquela ocasião, assumi,
perante a minha própria consciência, a determinação de não me deixar guiar por ressentimentos, por
mágoas, por mais justas que fossem. Perante Deus, perante o povo, diante desta Casa, posso afirmar que,
presidente da República durante 5 anos, zelei pela paz do Brasil, não autorizando, não permitindo, não
pactuando com qualquer atentado à liberdade de quem quer que fosse e agindo sempre com dignidade
administrativa. Neste momento, sinto uma perfeita correlação entre a minha ação presidencial e a iníqua
perseguição que me estão movendo. É que a mesma causa continua viva, a mesma causa da defesa das
instituições livres pela qual lutei.
“(...) Sou ainda o mesmo cidadão, ontem detentor do governo, Chefe Constitucional das Forças
Armadas, aquele que amparou e promoveu os seus mais ferrenhos adversários. Hoje, sou um homem
desarmado, sem possibilidade de reação material, mas disposto a reagir com a energia, a determinação e a
coragem dos que combatem para cair de pé. Não tenho de que me defender. Pela própria mecânica do Ato
Institucional, aos fulminados não é dado acesso às peças acusatórias. Voltam-se, assim, os revolucionários
do Brasil contra as mais sagradas conquistas do Direito.
“Não sei exatamente do que me acusam. Só recolhi boatos e murmúrios de velhas histórias já
desfeitas e desmoralizadas por contestações irretorquíveis. Já a Nação vive sob os efeitos do terror. E aqui
expresso a minha solidariedade aos que estão sofrendo processos de inquirição que lembram os momentos
mais dramáticos por que passou a humanidade. Se me forem retirados os direitos políticos, como se
anuncia em toda parte, não me intimidarei, não deixarei de lutar. Do ponto de vista de minha biografia, só
terei do que me orgulhar desse ato.
(…)
“Por que, então, Sr. Presidente, é o caso de perguntar-me, se me deveria envaidecer de tão grande
privilégio – o de ser o alvo principal da luta antidemocrática – por que me invade neste instante uma
tristeza das mais terríveis por que já passei em toda a minha acidentada vida pública? Essa tristeza nasce,
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sem dúvida, de que, se por um lado me oferecem uma oportunidade de glória, por outro lado ferem o nosso
país, humilhando na minha pessoa a nossa civilização, degradando-nos no conceito das demais nações
livres e fazendo da revolução algo que merecerá o repúdio de todos os democratas do mundo.
“É com esse terrível sentimento de pesar que espero a consumação da iniquidade que anunciam
para breve. Meu voto, aqui, já serviu para eleger o atual Presidente da República, em cujo espírito
democrático confiei, mas meu sacrifício, exigido pelo ódio e pela incompreensão, servirá para ajudar, numa
nova luta, em favor da paz e da dignidade do povo brasileiro. Mais uma vez, tenho nas mãos a bandeira da
democracia que me oferecem, neste momento em que, com ou sem direitos políticos, prosseguirei na luta,
em favor do Brasil.
“(...) Homem do povo, levado ao poder sempre pela vontade do povo, adianto-me apenas ao
sofrimento que o povo vai enfrentar, nestas horas de trevas que já estão caindo sobre nós. Mas delas
sairemos para a ressurreição de um novo dia, dia em que se restabelecerão a justiça e o respeito à pessoa
humana.
“... querendo-o eu ou não, a semente da injustiça, do arbítrio, da maldade, da crueldade, da violação
da pessoa humana, do desrespeito, medrará, crescerá, dará frutos, e, depois, como tem acontecido
invariavelmente, o castigo chegará, levando tudo de vencida.
(…)
“... o golpe, que na minha pessoa de ex-chefe de Estado querem desfechar, atingirá a vida
democrática, a vontade livre do povo. Não me estão ferindo pessoalmente, mas a todos que se julgam no
direito de escolher a quem desejam escolher para presidir o seu destino.
“Este ato é um ato de usurpação, e não ato de punição. (...) Muito mais do que a mim, cassam os
direitos políticos do Brasil.
(…)
“Não somos nós, brasileiros, esses decapitadores, ávidos de mergulharem nas vidas alheias, no que
elas têm de mais inviolável, para oferecer à degradação pública os seus homens de Estado, os que lutaram
pelo engrandecimento do seu País. (…)
“Diante do povo brasileiro, quero declarar que me reinvisto de novos e excepcionais poderes neste
momento, para a grande caminhada da liberdade e do engrandecimento nacional.” (Muito bem! Muito
bem.! Palmas prolongadas. O orador é vivamente cumprimentado).
No dia 8 de junho, após a sua cassação, JK escreveria:
“O vendaval de insânias arrastará na sua violenta arrancada mesmo os meus mais rancorosos
desafetos. Um por um, eles sentirão os efeitos da tirania que ajudaram a instalar no poder.”
Ele estava certo.
84
16
Em novembro de 1963, a situação que se desenvolvia – e, sobretudo, os seus perigos – estava, pelo
menos em traços gerais, clara para muitos setores das forças nacionais, inclusive para o presidente da
República. Nesse mês, alguns dias após o assassinato de Kennedy, o presidente João Goulart afirmou, em
entrevista à revista “Manchete”:
“Estamos vivendo, neste momento, a mais grave crise por que já passou o Brasil em toda a sua
história republicana. Caminhamos, aceleradamente, para um desfecho que, se não for evitado a tempo,
virá abalar, em termos definitivos e imprevisíveis, a própria estrutura da nação, comprometendo todas as
suas atuais conquistas e arruinando as suas imensas potencialidades futuras”.
Essa declaração fez com que a UDN promovesse uma barulhada no Congresso, acusando Jango de
“golpista”. Da mesma forma, a mídia pró-ianque. Entretanto, Lacerda e Ademar de Barros, sentindo-se
denunciados – ou seja, em posição de fraqueza – preferiram redobrar as ameaças golpistas contra o
presidente. Em Miami, onde participava de uma reunião da famigerada SIP, o sr. Júlio de Mesquita, dono
do “Estadão”, declarou que Jango seria derrubado em breve. Comentando o discurso do líder da UDN,
Adauto Lúcio Cardoso, assinalava Oswaldo Costa, diretor do jornal “O Semanário”:
“Nas ameaças de Lacerda, de Ademar e do Julinho Mentira, o dr. Adauto (…) nada viu que lhe
eriçassem os cabelinhos dos pruridos legalistas. Viu, porém, bichos de sete cabeças nos apelos à reflexão e
ao bom-senso feitos pelo Presidente da República, no sentido de que se evitassem desfechos caóticos e
subversivos para a crise” (O Semanário, 28/11 a 04/12/1963).
Às vezes, perde-se uma batalha não por falta de clareza, mas por falta de força – embora, o mais
comum é não ter força por falta de clareza. No final de 1963, e início de 1964, talvez o que não estivesse
claro fosse o caminho para conseguir a unidade das forças nacionais.
Já abordamos, em outro artigo, o papel da penetração do capital estrangeiro, durante o governo
Juscelino, na origem e na sustentação do golpe de Estado de 1964 (cf. “Lembranças de 1964: o Brasil, o
golpe de Estado e a verdade 3”, HP 30/05/2012).
Resta dizer que foi essa penetração, inédita na História do país, que levou a luta política a um
acirramento também inédito após 1930, inclusive quando comparado aos acontecimentos de agosto de
1954. Era basicamente por essa razão que Jango definia a situação como “a mais grave crise por que já
passou o Brasil em toda a sua história republicana”.
Porém, a respeito de Juscelino, sua trajetória foi no sentido de melhor assumir a questão nacional.
Pode não ter sido suficiente para as necessidades do país, e pode-se até mesmo considerar que era tarde
demais – entretanto, assim foi.
Hoje, algumas coisas estão quase totalmente esquecidas. Exatamente por isso, merecem ser
lembradas, para que a grandeza de alguns homens – e a pequenez de outros – fique plenamente nítida.
Logo no início de seu mandato, ao lado de seus grandes planos (sua visão sempre foi mais longe que
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a de seus auxiliares, com uma exceção: o vice-presidente João Goulart, com quem dialogou em pé de
igualdade e que foi, com o marechal Lott, um dos sustentáculos do seu governo), havia uma quase
obsessão na política de Juscelino: encontrar um caminho que evitasse traumas semelhantes aos que,
apenas dois anos antes, conduziram ao martírio do presidente Getúlio.
Quinze anos após a conclusão de seu governo, já cassado pela ditadura, esse problema permanecia
na mente de Juscelino:
“Ao contrário do que acontecera a Getúlio Vargas, que chegara ao Governo fortíssimo e fora se
enfraquecendo com o passar dos anos, eu conquistava terreno à medida que me aproximava do fim do
quinquênio” (cf. Juscelino Kubitschek, “Por que construí Brasília”, SF, Brasília, p. 221).
Ou, no mesmo livro, ao referir-se à anistia concedida aos golpistas de Jacareacanga e à demissão de
dois chefes de polícia que eram seus amigos pessoais, JK explica que as medidas “expressavam um sincero
desejo de pacificar o país, traumatizado pelos acontecimentos que se seguiram ao suicídio do Presidente
Getúlio Vargas” (p. 267/268).
Não resta muita dúvida sobre quem, antes de todos, estava “traumatizado” com aqueles
acontecimentos: o próprio Juscelino (tão traumatizado que, no texto, significativamente, ele remete não à
morte de Getúlio, mas ao que se seguiu, apesar de que, esses acontecimentos que se seguiram, foram
aqueles que lhe garantiram a posse na Presidência).
Entretanto, ao mesmo tempo, Juscelino também se considerava um continuador de Getúlio –
inclusive em seu mais famoso projeto, a construção de Brasília (JK relata: “Coube a Getúlio Vargas, que
voltara à Presidência da República, trazido pelo voto popular, assinar o Decreto nº 32.976, de 8 de junho
de 1953, que criava a Comissão de Localização da Nova Capital”).
No primeiro momento, porém, prevaleceu o primeiro aspecto. Daí, por exemplo, o seu discurso de
19 de junho de 1956, na comemoração do centenário de Ribeirão Preto:
“O nacionalismo discriminador, obsessivo, áspero, agressivo, que vê no estrangeiro um inimigo, um
espião, uma força negativa; o nacionalismo exclusivista que pretende recusar a colaboração alienígena é
uma aberração, uma contradição com tudo o que formou o Brasil, país que soube vencer e conquistar a
todos os que aqui vieram pela sua força íntima, pela fraternidade de seu povo, pelas possibilidades de uma
vida útil, pelos horizontes que apresenta a todos. (…) Não podemos deixar-nos envenenar pelo jacobinismo
estreito que pretende isolar o nosso povo dos outros povos.”
Como observaram muitos nacionalistas, JK não estava falando de um problema real – nenhum
nacionalista jamais opusera o Brasil ao “estrangeiro” em geral, isto é, a todos e quaisquer outros países.
Esse nunca foi o nosso problema. O que ele estava fazendo era, ilusoriamente, diluir o imperialismo,
sobretudo norte-americano, numa bacia fantasiosa que denominava “colaboração alienígena”. Aliás, o
adjetivo escolhido para essa “colaboração” acabava por demonstrar a tentativa inconsciente de considerar
que os gatos eram lebres. Já naquela época, “alienígena” era uma palavra estranha para designar uma
“colaboração” amistosa. Da mesma foma que as duas palavras juntas (“colaboração alienígena”)
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mostravam a divisão de quem emitia semelhante expressão.
Enfim, com esse discurso, JK estava colocando uma pecha sobre o nacionalismo – o que é mais
claro no trecho final, ao evocar os fantasmas que certos setores sociais enxergavam (e ainda enxergam) na
Revolução Francesa, especialmente em seu período jacobino.
Evidentemente, o nosso problema não era isolacionismo – ou uma política excessivamente
nacionalista – nem foi isso que conduziu à crise de agosto de 1954. O nosso problema era, e continua
sendo, o oposto.
No entanto, ao contrário da atual presidente, o percurso de JK foi, em meio à vicissitudes e
solavancos, para a esquerda. Compare-se o trecho acima com este outro, sobre as relações de seu governo,
três anos após, com o FMI:
“As exigências feitas pelo Fundo eram as seguintes: execução de um Plano de Estabilização
Monetária, cujos itens principais eram a fixação de preços, não muito altos, para o café, e o lançamento, no
câmbio livre, de todas as importações.
(...)
“Em face da minha resistência, o Fundo alargou sua intransigência e desse choque de pontos de
vista resultou o rompimento do meu governo com o Fundo Monetário Internacional. Assim agi porque os
itens, que consubstanciavam aquelas exigências, constituíam, sem a menor dúvida, a súmula de um
programa, tendo como objetivo a aniquilação do Brasil. Pretendia-se paralisar o país — cuja extensão
territorial é imensa – tornando proibitivo o uso da gasolina. E quanto ao trigo e aos fertilizantes? As
consequências seriam, igualmente, desastrosas. O povo, já subalimentado, veria o pão desaparecer de sua
mesa; e a nossa ronceira agricultura mais ronceira iria tornar-se por falta de fertilizantes que lhe
aumentassem a produtividade e, em consequência, condenar-se-ia à estagnação a população rural, que
representava dois terços do volume demográfico brasileiro.
“Na época, o Fundo era presidido pelo Sr. Jacobson, representante da Suécia e intransigente
defensor das ideias monetaristas. Ele me visitou certa vez. Na palestra que mantivemos, condenou tudo
quanto eu vinha realizando em favor do desenvolvimento do país, insinuando que a diretriz, que deveria
seguir, deveria ser a de procurar reduzir a inflação a 6%, nem que, para isso, tivesse de paralisar todas as
obras programadas, inclusive a construção de Brasília. De nada valeram os meus argumentos, o que me
obrigou a romper com o Fundo Monetário Internacional.
“Assim, assumi a responsabilidade pelo rompimento com absoluta tranquilidade. O passo que dei
era, de fato, grave, pois ele implicaria o fechamento automático, para o Brasil, das portas de todas as
agências financeiras internacionais. Mesmo assim, prossegui na rota traçada e concluí, nos prazos
prefixados, não só todas as obras programadas, mas, igualmente, construí Brasília e fiz a transferência da
sede do governo” (cf. Juscelino Kubitschek, “Por que construí Brasília”, SF, Brasília, 2000, p. 457/458).
[Celso Furtado – em “A Fantasia Desfeita” - fornece um relato extremamente interessante do
rompimento do governo JK com o FMI. Mas deixaremos esse relato para um artigo posterior.]
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É agora mais fácil, a partir das posições de Juscelino ao final de seu governo, perceber porque os
entreguistas lhe votavam tão grande ódio. Ele fizera o país crescer – o que também correspondia à sua
sensibilidade em relação ao povo. Ao contrário de certas interpretações, o crescimento desses anos se deu
em função, sobretudo, do investimento público – e não das concessões ao capital estrangeiro.
É, aliás, o que JK defende implicitamente ao final de seu livro “Por Que Construí Brasília”, em
capítulo intitulado “A questão do subdesenvolvimento”:
“... o grosso do Programa de Metas se concentrou em energia e transportes. Neles se incluíram obras
como Furnas, Três Marias e toda a série de importantes estradas pavimentadas que revolucionaram o
sistema de transporte do Brasil. Acredito que muitos brasileiros não se dão conta até hoje do real alcance
dessas obras e do extraordinário esforço despendido pelo meu governo, para que elas fossem realizadas.
Alguns dos projetos significaram, na realidade, uma mudança de escala para a técnica e a engenharia
brasileiras, pois integraram definitivamente o nosso país na era das grandes barragens e dos sistemas
elétricos interligados. Outro exemplo pode ser encontrado nas usinas siderúrgicas que foram erguidas. Só
a Cosipa e a Usiminas, produzindo hoje [1975] quase dois milhões de toneladas de aço, adicionaram à
economia nacional o dobro da quantidade que produzíamos de aço, quando assumi as rédeas do governo.
Isto quer dizer que, se não fosse essa iniciativa do meu quinquênio, o Brasil teria entrado em colapso, no
que diz respeito a esse setor vital da atividade industrial.
“O mínimo que posso afirmar, portanto, é que ao período de investimentos do pós-guerra foram
acrescentados mais cinco anos, nos quais imensa massa de recursos foi plantada, sob cuidadosa
orientação e vigilância, nos pontos estruturalmente fracos da nossa economia. (…) tão pronto quanto
possível, reorientou-se parte desse esforço, disciplinando-o na direção do objetivo de se atender a menor
ganho econômico imediato e se procurar maior justiça social na distribuição de recursos. Criou-se, para
isso, a Sudene, cujo impacto benéfico se tem feito sentir plenamente, nos últimos anos, ao ponto de ter
proporcionado ao Nordeste uma taxa de desenvolvimento compensatório de seu atraso, isto é, mais rápida
do que a registrada nos demais setores da economia nacional”.
Entretanto, as concessões ao capital estrangeiro foram suficientes para açular – e sustentar - as
múmias do entreguismo, que desde 1930-32 eram sistematicamente derrotadas. Uma interessante
matéria da época é bastante esclarecedora:
“Em artigo na edição em língua portuguesa do ‘New York Times’, o inefável ‘professor’ Eugênio
Gudin atacou a indústria nacional em dois de seus maiores empresários, Matarazzo e José Ermírio de
Morais, a ambos acusando de esgotarem seus esforços e recursos ‘nas campanhas com que tratam de
afastar a concorrência para manutenção de suas posições monopolísticas’. Não sabemos que campanhas
são essas, mas o gato velho da ‘Bond and Share’ pôs logo adiante o rabo de fora, ao basear as suas
elucubrações entreguistas num conceito de seu patrão, Nelson Rockefeller, segundo o qual (o governador do
Estado de Nova York devaneava sobre a ‘Aliança para o Progresso’) cumpre remover (na América Latina)
‘os controles e regulamentos que restringem o empreendimento e mantêm a posição monopolística de
indústrias de alto custo de produção’. Indústrias de alto custo de produção são, para os gringos, as
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indústrias de capital nacional de nossas repúblicas, que eles tudo fazem para arruinar, derrubando, onde
podem, as barreiras alfandegárias que as protegem.
“O antimonopolismo e o antiprotecionismo do sr. Rockefeller atingem as raias do cinismo, sabido
como ele e seus irmãos detêm as rédeas do controle de um dos dois ou três maiores trustes do mundo e são
cidadãos de um país, cuja indústria deitou raízes e prosperou à sombra da mais alta proteção aduaneira.
É da gente morrer de tanto rir, vendo a ‘Standard Oil’ - logo a ‘Standard Oil’! - investir, como Dom
Quixote contra os moinhos de ventos, sobre monopólios existentes em nações exploradas e dominadas por
ela e outros trustes ianques, cada qual mais rapace, exigindo de seus governos, em nome da ‘livre
empresa’, a ‘liberdade de concorrência’, isto é, a abolição dos controles cambiais, o que já conseguiram na
totalidade de nossos países, a redução ao mínimo das tarifas e outras garantias para a ‘livre competição’,
livre contanto que os países socialistas sejam postos fora da lei desse ‘mercado livre’ e, com eles, os
industriais ‘nativos’...
“Na defesa do vergonhoso e revoltante processo espoliativo da pátria onde nasceu por engano, o
decrépito ‘professor’ Gudin não se peja de fazer a apologia da famigerada Instrução 113 da SUMOC, de
sua autoria, ou melhor, da autoria do Secretário-Adjunto do Departamento de Estado, Herbert May, que a
ditou para o sr. Otávio Gouvêa de Bulhões, quando por aqui andou, com a missão de ajudar os ‘patriotas’
da UDN a derrubar Getúlio e, depois, de ‘orientar’ o governo do nauseabundo Café Filho. A Instrução
destinava-se, escreve Gudin, ‘a remover os obstáculos à entrada dos empreendimentos, da técnica e do
capital estrangeiros’, isto é, a facilitar a dominação imperialista sobre o nosso país. Esse resultado foi
plenamente conseguido. Nossa indústria foi desnacionalizada. Das 66 maiores empresas industriais que
funcionam entre nós, 32 são controladas pelos gringos, 19 pelo Estado e 15 apenas pela iniciativa privada
brasileira. E o pouco que ainda resta em nossas mãos vai rapidamente sendo transferido para as
munhecas ávidas dos gringos. Ainda recentemente, o ex-ministro do Trabalho, sr. João Pinheiro Neto,
citava os casos da ‘Vulcan’, indústria de plásticos nacional, comprada pela ‘Imperial Chemical’, e da
‘Pulvolac’, indústria nacional de leite em pó, comprada pela ‘Nestlé’. Até a ‘Gessy’ (sabonetes), a ‘Caracu’
(cerveja) e a ‘Cica’ (doces) já se foram, juntamente com o Banco Hipotecário Lar Brasileiro, adquirido pelo
Chase Bank de David Rockefeller, maninho de Nelson e, como este e o velho Gudin, partidário acérrimo
das ‘economias abertas’... para eles.
“Mas, convenhamos, a culpa não é só dos gringos. A culpa é maior dos industriais brasileiros, que,
com raras exceções, têm medo de agarrar pelos chifres o touro, que calmamente se vai servindo deles com
molho do ‘anticomunismo’ preparado expressamente pelo IBAD para facilitar o ‘mastigo’ imperialista
(“Rockefeller contra nossa indústria”, O Semanário, 23 a 19 de maio de 1963).
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Alguns leitores manifestaram estranheza por nossa afirmação de que, no dia 2 de abril, quando o
general Ladário Telles “disse ao presidente que ainda havia condições para resistir”, Jango estava
“provavelmente certo” quando respondeu “não estar disposto a garantir seu mandato às custas de uma
guerra sangrenta” (HP 09/05/2014).
Não pretendíamos, com esse trecho, proferir um julgamento geral sobre as decisões, desde o início
do golpe, do presidente Goulart. Como está claro (embora não tanto que não provocasse a estranheza
mencionada), referíamo-nos a um momento específico: ao dia 2 de abril, com o Rio, São Paulo, Recife,
Brasília – e praticamente todo o território nacional, com exceção de parte do Rio Grande do Sul – já
tomados pelos golpistas, e, ao contrário de 1961, com a coesão no Sul claramente prejudicada. Ladário
sabia que não se tratava de um problema militar – a decisão somente cabia ao presidente. Apresentar a
alternativa, equivalia, para o general, a dizer que, fosse qual fosse a decisão, estaria pronto a cumpri-la.
Quando à decisão do dia anterior, após a visita de San Tiago Dantas ao Palácio Laranjeiras (v. HP
07/05/2014), em uma declaração posterior – mencionada por Jorge Ferreira em sua biografia de Jango, e,
também, por Raul Ryff, em sua entrevista ao CPDOC/FGV – o presidente teria dito que, se soubesse o que
viria, teria resistido.
Mas esse é o problema, expresso por tantos verbos no condicional (aliás, futuro do pretérito):
ninguém sabia o que viria. Por isso são, no mínimo, excêntricos aqueles depoimentos que atribuem à
supostas falhas de Jango a responsabilidade pelo golpe de 1964. Os responsáveis pelo golpe foram os
golpistas – e seus mandantes. Não contarão com nossa ajuda para se livrar dessa carga.
Não é possível condenar os homens por agir de acordo com a consciência que tinham em
determinado momento. O que se pode fazer é analisar as insuficiências passadas, para que não se repitam
no futuro.
Ninguém, no primeiro momento, encarou o golpe de 1964 como diferente de algumas rupturas
anteriores, onde logo se encontrava um caminho para voltar à “normalidade”.
Aqui, tocamos em outro elemento que desmoraliza as versões neo-ditatoriais, de que o golpe teria
sido uma resposta a outro golpe, vindo de Jango ou da “esquerda”: todas as tentativas de romper com a
ordem legal, de outubro de 1945 até abril de 1964, partiram de um único lado.
A legalidade, apesar de todas as limitações da Constituição de 1946, era a legalidade nacional,
uma decorrência, ao longo de anos de História, do Estado nacional construído a partir da Revolução de
30. Terminado o Estado Novo, período mais agudo de conflito com as forças antinacionais que tentavam
restaurar o statu quo, a Constituição de 1946 dotara o país de instituições que, bem ou mal,
correspondiam ao Estado nacional edificado nos 15 anos do primeiro governo Getúlio.
Hoje, devido às críticas que se fizeram à Constituição de 1946, frequentemente é esquecida essa sua
essência e origem. No entanto, sua marca aparecia, por exemplo, no seguinte dispositivo dessa
90
Constituição:
“Art. 148: A lei reprimirá toda e qualquer forma de abuso do poder econômico, inclusive as uniões
ou agrupamentos de empresas individuais ou sociais, seja qual for a sua natureza, que tenham por fim
dominar os mercados nacionais, eliminar a concorrência e aumentar arbitrariamente os lucros”.
No período que se seguiu, sempre a tentativa de romper com a legalidade partiu do lado próimperialista – e a defesa da legalidade sempre foi a bandeira das forças nacionais. A urgência, na primeira
metade da década de 60, de avançar o quadro institucional – aumentar a democracia formal, com uma
reforma da Constituição, adaptando-a às necessidades concretas do país, após 18 anos de mudanças
econômicas e desenvolvimento político – apenas reforça esse fato, pois a reforma sempre foi concebida
como um aperfeiçoamento da legalidade existente e (exceto um ou outro exaltado sem condições de
determinar a tendência principal) estritamente por via congressual, inclusive no discurso de Jango no
comício da Central do Brasil (v. HP 23/03/2012 e 28/03/2012).
Não foi de João Goulart que partiram os atos de banditismo institucional.
Na introdução de 1895 para “Lutas de Classe em França de 1848 a 1850”, Friedrich Engels
escreveu algo muito pertinente:
“A ironia da história mundial coloca tudo de cabeça para baixo. (…) Os partidos da ordem, como
eles chamam a si mesmos, perecem na legalidade que eles mesmos estabeleceram. Gritam, desesperados,
com Odilon Barrot: ‘la legalité nous tue’, a legalidade é a nossa morte, enquanto nós, com essa legalidade,
tornamos mais volumosos os nossos músculos e mais coradas as nossas bochechas, com a aparência de
vida eterna. E, se nós não somos loucos de lhes fazer o favor de permitir que nos arrastem para a luta de
rua, serão eles que romperão essa legalidade” (Karl Marx und Friedrich Engels, Werke, Band 7, Dietz
Verlag, Berlin, 1960, p. 525).
A posição dos nacionalistas mais consequentes é bastante bem expressa por Osny Duarte Pereira,
em livro de 1962:
“... [a falsificação da democracia pelo poder econômico] não significa que devamos abolir a
democracia e recorrer a uma ditadura. Ao contrário, deveremos apegar-nos à defesa das liberdades, para
que, esclarecendo um número cada vez maior de brasileiros, um dia, os esclarecidos sejam maioria e os
monopólios não mais possam fazer as leis no Brasil” (cf. Osny Duarte Pereira, “Quem Faz as Leis no
Brasil?“, Cadernos do Povo Brasileiro, Vol. 3, Civilização Brasileira, Rio, 1962).
Assim, o golpe de outubro 1945, açulado publicamente pelo embaixador dos EUA, Adolf Berle
Júnior (v. o comportamento abana-rabo dos entreguistas no livro de Stanley Hilton, “O Ditador e o
Embaixador”, Rio, Record, 1987), é sucedido pela derrota do candidato da UDN, Eduardo Gomes. O viravira antinacional do governo Dutra tem como resultado a eleição de Getúlio em 1950 (outra vez com a
derrota da UDN e de Eduardo Gomes). A tentativa de golpe em 1954 é exorcizada pelo contragolpe de 11
de novembro de 1955, que garantiu a posse do presidente eleito, Juscelino Kubitschek.
Além do fracasso de intentonas menores, como a tentativa de usar o STF para impedir Getúlio – e,
91
depois, Juscelino – de tomar posse (com base numa suposta necessidade de “maioria absoluta”,
totalmente ilegal) ou os melancólicos putsch de Jacareacanga e Aragarças (o primeiro ocorreu 10 dias após
a posse de JK, que desabafou: “Eu ainda nem tive tempo de errar”. Mas era pelos acertos passados – a
vitória sobre Juarez Távora e o golpismo de Café Filho, Carlos Luz e Lacerda – e pelos possíveis acertos
futuros, que tentavam derrubá-lo).
Nas eleições de 1960, a UDN – inclusive Lacerda – foram obrigados a apoiar um candidato pouco
identificado com o parco ideário (se é que isso existe) entreguista. Um dos próceres da UDN – aliás, um
dos principais –, o ministro das Relações Exteriores do governo Quadros, Afonso Arinos, conhecido pela
abissal chatice de seus discursos, disse, ao menos, uma frase notável: “Jânio foi a UDN de porre”.
Mas a frase não é exata: Jânio não era a UDN. O que Arinos estava descrevendo, dessa forma, era a
inviabilidade do governo de que fazia parte – e, de maneira mais inconsciente ainda, a inviabilidade da
própria UDN, no único momento em que esteve próxima do poder por via eleitoral.
Como já mencionamos, o nacionalismo avançava dentro da própria UDN. Entre os fundadores da
Frente Parlamentar Nacionalista, estavam Seixas Dória (UDN-SE), José Sarney (UDN-MA), Gabriel
Passos (UDN-MG), Adail Barreto (UDN-CE), Djalma Maranhão (UDN-RN). Até o deputado Dix-Huit
Rosado (UDN-RN) filiou-se, também, à Frente Parlamentar Nacionalista.
Não eram udenistas de pouca importância, sobretudo em suas regiões – e o que seria da UDN sem
as suas seções regionais? É verdade que houve deles – por exemplo, o deputado cearense Adail Barreto –
quem rompesse definitivamente com a UDN, por conflito aberto com sua cúpula, e se filiasse ao PTB e
outros partidos. Porém, a maioria, inclusive o ministro das Minas e Energia de Jango, Gabriel Passos,
tenaz defensor da Eletrobrás e da Petrobrás, permaneceu na UDN.
No entanto, o Brasil modificara-se – ou, melhor, foi modificado pela política econômica de
concessões aos monopólios externos, a partir, no governo Café Filho, da gestão de Gudin no Ministério da
Fazenda e Bulhões, na Superintendência da Moeda e do Crédito (SUMOC), antecessora, em vários
sentidos, do atual Banco Central.
Embora o governo Juscelino tenha encerrado o aspecto que, na época, parecia central na política de
Gudin e Bulhões – o bloqueio aos investimentos públicos -, em outro aspecto importante, aquele
condensado na Instrução 113, da SUMOC, essa política não foi alterada. Pelo contrário, foi no governo JK,
sob as condições políticas que já abordamos (v. HP 06/06/2014), que ela foi, infelizmente, levada à prática.
A importância desse problema não pode ser subestimada. Como escrevem duas economistas em
interessante artigo, “pode-se afirmar que o ABC paulista surgiu no bojo desses investimentos” (cf. Ana
Cláudia Caputo e Hildete Pereira de Melo, “A Industrialização Brasileira nos Anos de 1950: Uma Análise
da Instrução 113 da SUMOC”, Est. Econ., São Paulo, 39(3): 513-538, jul-set 2009).
A questão é que a maior parte deles nem ao menos – e com toda razão – seriam considerados
“investimentos” antes da Instrução 113.
Geralmente, e por sólidos motivos, dá-se atenção à primeira parte dessa Instrução, aquela que
92
permite “que a importação de máquinas e equipamentos fosse registrada como investimento direto
estrangeiro, na base de câmbio livre” pelas multinacionais, com sua mais escandalosa consequência: a
entrada no país de máquinas usadas, já obsoletas nos países centrais, como se fossem “investimento
estrangeiro”. Em resumo, uma vampiresca transação de um capital não somente “morto”, mas já
destinado ao sepultamento, que encontrava sobrevida ao sugar as artérias de nossa economia.
Porém, a Instrução 113 continha outra “permissão”, coerente com a anterior, e não menos
escandalosa: permitia que “as remessas de lucros fossem feitas a uma taxa de câmbio preferencial mais
baixa”. Esse sistema de duplo câmbio (um para as importações das máquinas usadas e outro para as
remessas de lucros ao exterior, as duas taxas favorecendo as multinacionais) “elevou substancialmente a
taxa de retorno do investimento estrangeiro” (op. cit., p. 534).
As principais multinacionais beneficiadas foram: GM, Ford, Volkswagen, Bosch, Krupp, Caterpillar,
Pirelli, Goodyear, Firestone, General Electric, Union Carbide, Solvay, Bayer, Pfizer, Kurashiki e Alcan (cf.
Ana Cláudia Caputo e Hildete Pereira de Melo, art. cit., p. 534).
Nada menos que 43,5% do que, acoitado pela Instrução 113, entrou no país entre 1955 e 1963 –
quando o dispositivo foi revogado – tem origem nos EUA, com a Alemanha em longínquo segundo lugar
(18,7%). A maior parte, entrou entre 1957 e 1960 (art. cit. p. 524 e 521).
A conclusão das autoras, depois de analisar as licenças de importação da Carteira de Comércio
Exterior (CACEX) do Banco do Brasil (a antecessora da Secex atual), é bastante interessante:
“Mesmo não sendo quantitativamente expressivos se comparados com os investimentos globais
realizados na economia brasileira entre 1955 e 1963, esses investimentos diretos sem cobertura cambial
desenharam a pata estrangeira do tripé industrial nacional. Estabeleceram-se grandes empresas
multinacionais, diversas empresas nacionais fizeram aliança com o capital estrangeiro e isso mudou o
perfil da indústria brasileira. O capital privado nacional perdeu parcela de sua participação na vida
econômica brasileira, enquanto o capital estrangeiro aumentava sua voz, tanto econômica como
politicamente. Isto não significa afirmar que o capital privado nacional tenha sido prejudicado em termos
absolutos por tal política, mas este declínio relativo deveu-se tanto ao crescimento do setor público como
aos benefícios ao setor estrangeiro oriundos, naqueles anos, das políticas governamentais. Provavelmente,
esta política elevou o tamanho relativo da pata estrangeira do tripé industrial em detrimento do capital
privado nacional e inspira a interpretação da internacionalização da economia brasileira”. (art. cit., p.
535).
O livro já mencionado de Osny Duarte Pereira apresenta um interesse que vai além de seu tema
específico: aparecem nele, com total clareza, o papel de antros como a Consultec e o Ipes, numa obra
publicada dois anos antes do golpe de Estado.
Em especial a Consultec, que se tornaria notória vinte anos depois, com a publicação, em 1981, por
René Dreifuss, de “1964: A Conquista do Estado”, merece menção. Era, dizia Osny, uma “firma de
advocacia administrativa”:
93
“A Consultec emite pareceres sobre solicitação de empréstimos de empresas estrangeiras ao Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico, elabora discursos, projetos de leis, decretos, regulamentos,
convênios (...). Seus membros, além de cargos em postos chaves da administração pública, são muitos deles
diretores de refinarias, empresas automobilísticas, enfim, de grandes entidades com enormes interesses na
administração pública” (Osny, op. cit.).
A ata de transformação da Consultec em sociedade anônima foi lida na Câmara, a 23 de fevereiro
de 1962, pelo deputado paraense Clóvis Ferro Costa (por sinal, da UDN; depois de cassado e após longos
anos de perseguição, Ferro Costa seria, no governo Sarney, Consultor-Geral da República).
Quem eram os acionistas da Consultec?
“Em 1956, das 1.000 ações, 200 estavam com o norte-americano Earle Maury Elrich e as restantes
com seis conhecidos representantes de empresas americanas” (Osny, op. cit.).
Porém, como disse o deputado Ferro Costa, “os negócios dessa organização civil ampliaram-se
tanto, essa empresa se irradiou de tal forma, passou a ser tão dominante na vida pública, e na
administração brasileira, que há pouco tempo, pouco mais de um mês, a sociedade civil se transformou em
sociedade anônima” (cf., Diário do Congresso Nacional, 27/02/1962, Seção I, p. 634).
Em seguida, Ferro Costa leu os nomes dos “acionistas” da Consultec S.A., começando pelo “sr.
Lucas Lopes, ex-presidente do BNDE e ex-ministro da Fazenda, atualmente presidente da HANNA”.
O segundo nome era o do “Embaixador do Brasil nos Estados Unidos da América, o sr. Roberto de
Oliveira Campos”, também ex-presidente do BNDE.
Entre os outros nomes que constavam da ata constitutiva da sociedade anônima Consultec –
publicada, como era obrigatório na época, no Diário Oficial, ed. 12/01/1962 – estavam “Otávio Gouveia de
Bulhões, diretor da SUMOC” e “Mário Henrique Simonsen, do Conselho Nacional de Economia”.
Temos, só até aqui, uma lista de futuros ministros econômicos da ditadura.
Mas o rol também incluía “Alexandre Kafka, do Conselho Nacional de Economia e da Fundação
Getúlio Vargas” - na verdade, Kafka era um funcionário do FMI (seria seu diretor-executivo por 32 anos)
que foi assessor de Gudin no Ministério da Fazenda.
Outro nome era “Glycon de Paiva Teixeira”, outro ex-presidente do BNDE, “assessor da
Companhia Vale do Rio Doce, diretor da Refinaria de Capuava e do grupo econômico que está pesquisando
petróleo na Bolívia” - e defensor, durante décadas, do capital estrangeiro na exploração de nossas jazidas
minerais (inclusive, evidentemente, das petrolíferas).
Eram, também, da Consultec, o colunista econômico João Alberto de Leite Barbosa , de “O Globo”,
e o editor de economia do “Estadão”, Frederico Heller.
Além disso, estavam na ata da Consultec, lida pelo deputado Ferro Costa:
“John Cotrim, presidente de Furnas; Mário Tibau, diretor da CEMIG; Antônio de Abreu Coutinho,
chefe da Divisão da SUMOC encarregada do Balanço de Pagamento; Aniceto Cruz Santos, da Comissão de
94
Marinha Mercante; Dênio Nogueira, chefe do gabinete do sr. Gouveia Bulhões na SUMOC [depois, sob a
ditadura, primeiro presidente do Banco Central]; Gabriel Ferreira Filho, advogado do BNDE; Vítor da
Silva Alves Filho, diretor do BNDE; Edmar de Sousa, chefe do setor de administração do BNDE; Jacinto
Xavier Martins Júnior, da Rede Ferroviária Federal; Teodoro Onega, do Instituto de Tecnologia; João
Batista Pinheiro, diplomata, diretor do BNDE; Mário da Silva Pinto, da CACEX; José Garrido Torres,
representante do governo brasileiro na alta direção do BID e figura de proa do IPES, do departamento
econômico da Fundação Getúlio Vargas e do Conselho Nacional de Economia; Hélio Schitler Silva,
assessor da diretoria do BNDE”.
95
18
O avanço da consciência nacional na primeira metade dos anos 60, a que nos referimos,
correspondia a uma situação objetiva, provocada pela intensa penetração do capital estrangeiro, sobretudo
norte-americano, a partir de 1955. Dois exemplos de suas consequências:
“Entre 1957 e 1959, ‘pereceram ou cessaram a operação 102 empresas industriais farmacêuticas’.
(Publicações do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos do Estado de S. Paulo em ‘Última
Hora’ de 25-1-1960)“ (cf. Osny Duarte Pereira, “Quem Faz as Leis no Brasil?“, CPB, V. 3, Civ. Bras.,
1962).
Entrevistado por “Última Hora”, edição de 05/02/1960, o deputado Unírio Machado (PTB-RS),
posteriormente autor de “A indústria farmacêutica no Brasil: desnacionalização, preço, similares,
fraudes” (1963) e de “20 anos da Indústria da Doença” (1982), relatava:
“Só em 1958 (…) o Laboratório Moura Brasil-Orlando Rangel foi absorvido pelo grupo Siech; o
Laboratório Sanitas foi dominado pela LEO; a Endoquímica pela Mead-Johnson; o Vicente Amato pela
Usofarma e assim sucessivamente”.
Dos 30 laboratórios mais importantes em vendas, mostrava o deputado, somente dois eram agora
“genuinamente nacionais”, contra 28 que eram filiais de multinacionais. Mesmo incluindo as empresas
menores, o capital nacional passara a ser minoritário: 43% contra 57% de empresas externas.
O deputado Unírio Machado seria cassado pela ditadura em 1969.
O outro exemplo, também extraído do livro de Osny Duarte Pereira, é interessante pelo
pioneirismo:
“Parece que ocorre pela primeira vez na História esse episódio. Em vez dos monopólios estrangeiros
trazerem capitais para inverter no Brasil, um país subdesenvolvido, acontece exatamente o contrário. O
Brasil empresta dinheiro aos monopólios, através do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico,
entidade estatal brasileira, para os monopólios inverterem no Brasil, em vez de emprestar a brasileiros
cujos lucros permaneceriam no país” (Osny, idem).
A concessão de empréstimos públicos às empresas estrangeiras foi proibida pelo artigo 39 da Lei de
Remessa de Lucros (Lei nº 4.131), assinada pelo presidente Goulart em setembro de 1962, à exceção de
empresas externas “em setores de atividades e regiões econômicas de alto interesse nacional, definidos e
enumerados em decreto do Poder Executivo, mediante audiência do Conselho Nacional de Economia”.
Essa compreensível exceção foi suficiente para que a ditadura e depois o governo Fernando
Henrique incluíssem, por decreto, como “de alto interesse nacional” praticamente todos os setores em que
as multinacionais estão presentes no Brasil.
Porém, considerando o avanço da consciência nacional na primeira metade da década de 60, como,
então, o golpe foi possível? Obviamente, ele não seria necessário para o imperialismo, se o entreguismo
fosse apoiado pela população – e se a consciência nacional estivesse regredindo, e não avançando. A
96
violência com que foi desencadeado é a própria medida da impopularidade, a tal ponto que a ditadura
decretou, com a dissolução dos partidos, a própria morte da UDN. Agora, ela deixara de ter utilidade e
passara a ser um estorvo. Sua sucessora, a infeliz ARENA, jamais deixou de ser um partido de fancaria,
um pseudo-partido - meramente homologatório, como diria o eloquente senador gaúcho Paulo Brossard.
Além disso, a resistência dos militares ao golpe de Estado (e, portanto, a repressão sobre eles após o
golpe) é ainda bastante subestimada. A atribuição à ditadura de uma qualidade principalmente militar – e
não principalmente pró-imperialista – somente serviu para ofuscar ou esconder o que realmente importa:
o objetivo do golpe, e da ditadura instalada com ele, era “adaptar” o Estado nacional à dependência
econômica do imperialismo, intensificada a partir da última metade da década de 50. Ou, em outras
palavras, tratava-se de “diminuir”, conter ou domar, o caráter “nacional” do Estado – que era, sobretudo,
uma construção da Revolução de 30 – para moldá-lo, em alguma medida, ao crescente predomínio dos
monopólios financeiro-industriais, sobretudo norte-americanos, na economia.
Mas isso só era possível pela violência. Por consequência, houve uma “gigantesca repressão
aplicada aos militares desde o primeiro momento da ditadura” (cf. Cláudio Beserra de Vasconcelos, “A
política repressiva aplicada a militares após o golpe de 1964”, IFCS/UFRJ, 2010, p. 90).
Era a tentativa de expurgar o Estado do que havia nele de mais nacional – desde as lideranças
militares até as equipes de cientistas do Instituto Oswaldo Cruz e do Centro Brasileiro de Pesquisas
Físicas (CBPF), que tornavam o Brasil especialmente respeitado em ciência, e os artistas da Rádio
Nacional, o mais popular e bem sucedido empreendimento da cultura nacional.
Assim, logo na primeira leva de cassações, foram atingidos o marechal Osvino Ferreira Alves e os
generais Luiz Gonzaga de Oliveira Leite, Sampson da Nóbrega Sampaio e Henrique Cordeiro Oest.
Nenhum deles estava mais na ativa das Forças Armadas, mas a ditadura não se contentou com isso:
cassou seus direitos políticos por 10 anos, juntamente com o sargento – e deputado federal pelo PTB da
Guanabara – Antônio Garcia Filho.
Como já mencionamos, o ato complementar nº 3 afastou outros 122 militares – e o nº 4 cassou os
direitos políticos de 37. A começar pelos generais Ladário Pereira Telles, Oromar Osório, Arnaldo Augusto
da Matta, Euryale de Jesus Zerbini, Nelson Werneck Sodré, Albino Silva, Anfrísio da Rocha Lima, Luiz
Tavares da Cunha Mello, Chrysantho de Miranda Figueiredo, Napoleão Nobre, Alfredo Pinheiro Soares
Filho, Argemiro de Assis Brasil, Nairo Villanova Madeira e Ottomar Soares de Lima; pelos almirantes
Pedro Paulo de Araújo Suzano, Cândido da Costa Aragão, José Luiz de Araújo Goyano, Washington
Frazão Braga e Alexandre Fausto Alves de Souza; e pelos brigadeiros Francisco Teixeira, Dirceu de Paiva
Guimarães, Ricardo Nicoll e Epaminondas Gomes dos Santos.
“Entre 1964 e 1970, pude contabilizar um total de 1487 militares punidos, sendo: 53 oficiais
generais, 274 oficiais superiores, 111 oficiais intermediários, 113 oficiais subalternos e 936 entre
sargentos,
suboficiais,
cabos,
marinheiros,
soldados
e
taifeiros.
Tais
expurgos
alteraram
a
representatividade das facções no interior da corporação militar, eliminando o potencial de resistência
nacionalista na caserna às proposições do governo” (cf. Cláudio Beserra de Vasconcelos, “A política
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repressiva aplicada a militares após o golpe de 1964”, IFCS/UFRJ, Rio, 2010, p. 91).
O mesmo autor, em nota sobre suas fontes, ao pé da mesma página, acrescenta:
“... no que se refere aos dados sobre cabos, marinheiros e taifeiros, os números apresentados ainda
estão aquém do real. No caso da Marinha, há atos em que a identificação do afastamento do militar como
punição é clara, em outros, nem tanto. Com relação à Aeronáutica, há vários casos de punições de cabos
revestidas de atos administrativos (...). Creio que, nestes dois casos, chegar a um número exato dos
cassados é muito difícil”.
O que é comum a todos esses homens, tão diversos em outros aspectos? Nos parece correta a
observação do autor que citamos, de que, neles, “sobressai a defesa de uma política nacionalista de
desenvolvimento e de soberania para o Brasil (…) buscou-se atingir aqueles que, ao longo dos anos 19451964, se posicionaram em prol da defesa de uma política nacionalista para o Brasil. (…) da
autodeterminação política e econômica do país” (op. cit., págs. 94, 273 e 274).
Esse autor aborda outra espécie de repressão, especialmente covarde, exercida após o golpe, contra
militares: a daqueles que não haviam participado de nenhum movimento nacionalista ou expressado
publicamente posições nacionalistas, mas – segundo a opinião dos feitores de IPM – poderiam fazê-lo no
futuro. Tratava-se se uma punição preventiva...
Ao ler, nos dias de hoje, o IPM que “investigou” os oficiais da Marinha, por exemplo, é
compreensível a sensação de comicidade que parece transudar daquelas páginas repletas de expressões
caricaturais: “eficientes métodos moscovitas”, “ideias exóticas”, “elevado grau de comunização”,
“partidários do credo vermelho” etc, etc. e etc.
Mas só é engraçado em retrospecto. Não para os militares que enfrentaram essa covarde miséria.
Lá pelas tantas, imputa-se, a um dos ministros da Marinha de Jango, o crime de ter concedido a
Ordem do Mérito Naval à escritora (e deputada estadual, até sua cassação, em 1969) Adalgisa Nery.
Adalgisa, além de deputada, era (e continua sendo) uma das mais conhecidas escritoras brasileiras
– com justa razão. Por que seria um crime conceder a ela a Ordem do Mérito Naval?
Adalgisa era nacionalista e mantinha uma coluna política - “Retrato Sem Retoque”, uma das mais
lidas da “Última Hora”. Também era ex-mulher de Lourival Fontes – diretor do Departamento de
Imprensa e Propaganda (DIP) durante o Estado Novo e chefe da Casa Civil no segundo governo Getúlio.
Antes do golpe, Adalgisa entrara em conflito com Rademaker, que, com a ditadura, tornou-se
ministro da Marinha. O motivo foi uma denúncia que Adalgisa fizera, sobre uma compra de tinta para
pintar navios de guerra.
Em 1969, quando sua medalha foi cassada, Adalgisa devolveu-a, com uma carta, publicada após sua
morte, em 1980, por Carlos Drummond de Andrade:
“Desejo esclarecer que uma coisa estou absolutamente impossibilitada de devolver aos senhores: a
lembrança na minha alma de um dia haver recebido da Marinha do meu país o gesto de carinho ao
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reconhecimento pelo meu amor e respeito à minha pátria.
“Por amor ao meu país, fiz o maior número de coisas nobres que podia a fim de repousar o meu
espírito de todas as que fiz por necessidade. O amor traz encantamento. A necessidade, um pesado cansaço.
É incomensuravelmente consolador sentir, ao anúncio de cada dia, a grandiosidade do meu país, e à noite,
a sua magnífica e inarredável verdade.
“O Senhor, Deus dos Exércitos, concedeu-me como privilégio, um pouco de talento e muita
sensibilidade. Não para usá-los como prestígio à minha efêmera passagem pela vida, mas para que
através da minha pessoa, Ele fosse manifestado aos meus irmãos brasileiros. Sei que bem cumpri essa
missão. Os elogios feitos a mim jamais me impressionaram mais do que as ‘cordiais saudações’ ou
‘respeitosos cumprimentos’ dos finais de cartas. As minhas raízes estão em profundidade e não na
superfície.
“Os responsáveis incumbidos de devassar o comportamento de minha vida pública, sabem tanto
quanto eu que jamais, aproveitando-me da situação de deputada, usufruí do menor benefício pessoal ou
material. Jamais recebi qualquer importância dos cofres públicos, além das que considerava estritamente
dentro da honestidade.
“Isso não constitui virtude. Virtude seria possuir eu uma propensão incontida para atos desonestos
e reprimir essa tendência. Nasci honesta, logo não houve da minha parte esforços para tornar-me honesta.
“Fui, e os senhores sabem, irrepreensivelmente correta em todos os setores que atingem ou
pertencem à coletividade. Sempre fui contra o empreguismo, essa praga nacional, e conservei-me coerente
com essa decisão, não somente quando esposa do Chefe da Casa Civil da Presidência da República,
naquela época, função da mais alta importância, mas também durante os meus mandatos de deputada.
Sou uma brasileira completamente isenta de remorsos por haver um dia aproveitado as muitas e repetidas
oportunidades para cometer fraquezas de caráter ou dar maus exemplos aos meus semelhantes.
“Por vivência e presciência humana e política, sei que a vida não é feita com as tintas claras e puras
das madrugadas em crescimento, mas de pastosas tintas cinzentas que prenunciam as trevas.
“E dentro dessa realidade compreendo, com superioridade de espírito, todas as coisas que a vida
nos dá e todas as que ela nos tira”.
Drummond acrescentou um esclarecimento, lembrando o conflito com Rademaker:
“A alusão a tintas cinzentas não é literária. Adalgisa estranhara que fossem jogadas fora toneladas
de tinta cinza para se comprarem outra de tom mais escuro, na pintura das unidades navais: seria melhor
gastar o dinheiro na assistência a milhares de brasileirinhos abandonados por aí. Seis anos depois de
escrever isto em seu jornal, tiraram-lhe a medalha. Não lhe tiraram a bravura e o amor a seu país”
(Carlos Drummond de Andrade, “Adalgisa, a indômita”, JB, 14/06/1980).
O mais ridículo na repressão aos militares é que seus feitores não desconfiam, jamais, a que
interesses estão servindo. Nem mesmo quando tentam fundamentar o inquérito, aludindo a problemas
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que “perturbavam o equilíbrio da Escola Clássica do Campo Econômico, isto é, do sistema de livre
iniciativa” ou quando pretendem incriminar um oficial, sem que haja provas de delito algum, por ser
“ligado aos elementos denominados ‘nacionalistas’ do Clube Militar” (cf. IPM cit., Rel., p. 1787 e p. 1819).
Há casos em que o presidente do IPM conclui que não há nada contra os indiciados, mas,
“enquadro-os na Lei de Segurança (...) a fim de se evitar que amanhã voltem esses homens às fileiras para
prosseguirem no seu impatriótico e altamente reprovável trabalho de solapamento dos alicerces desta
Força Armada. (…) Cumpre, pois, que não sejam repetidos os erros passados” (cf. IPM cit., p. 1821).
Às vezes, é apenas fofoca, declaradamente, o que se tem contra os indiciados. Sobre um capitão-defragata, filho de um ministro da Marinha de Jango, diz-se o seguinte: “Segundo voz corrente na Marinha,
porém não confirmado neste IPM, era ele o verdadeiro Ministro, o ‘Ministrinho’, chamado pela imprensa”.
Ainda bem que não foi confirmado no IPM... Resta saber, então, por que essa fofoca faz parte de seu
relatório final. Naturalmente, porque a verdade não tem a menor importância.
Da mesma forma, logo em seguida diz-se que o mesmo oficial “é apontado pelo Almirante Carlos
Penna Botto como comunista. Não existem provas de que o indiciado é comunista, apenas a afirmativa,
sem mencionar testemunhas ou fatos, do referido almirante”.
Nunca existiu, no Brasil, o crime de ser comunista. Por isso, a ideia de obter “provas” disso era
uma imbecilidade. Não havia lei ou norma legal para enquadrar tal “crime”.
Porém, o peculiar nesse relato é que todo mundo sabia - como é óbvio pela maneira com que foi
redigido esse trecho do IPM - que, na abalizada opinião de Penna Botto (um ex-integralista adstringente
aos americanos, presidente de algo chamado Cruzada Brasileira Anticomunista), qualquer sujeito que não
fosse um capacho absoluto da casta dominante nos EUA era comunista. Inclusive o general De Gaulle
(”um criptocomunista”) e as “massas”, que eram “pseudocomunistas”, pois votavam em “comunistas”,
mas porque eram “despreparadas para votar” (cf. Carla Simone Rodeghero, “Memórias e avaliações:
norte-americanos, católicos e a recepção do anticomunismo brasileiro entre 1945 e 1964”, IFCH/UFRGS,
Porto Alegre, 2002).
Em relação a outro oficial, na falta de algo de que fosse culpado, diz o relatório do IPM que deveria
ser afastado “mediante qualquer dispositivo de lei” e, se não fosse encontrado esse dispositivo, “não
convindo manter-se um provável futuro desajustado (…) que a ele se aplique o artigo 7.º do Ato
Institucional do Comando Supremo da Revolução” (grifo nosso).
Esse oficial, demitido da Marinha em outubro de 1964, era um tenente com 28 anos.
Sobre três tenentes que cumpriram a ordem, no dia 1º de abril, de apresentar-se ao gabinete do
ministro da Marinha, é dito que “nada grave foi apurado contra esses oficiais”, e, logo em seguida, sobre
um deles, conclui-se que “pelo seu linguajar deixa transparecer que possui alguma leitura de literatura
comunista”. O oficial foi enquadrado no artigo 7º do Ato Institucional “a fim de afastá-lo definitivamente
da vida militar, fazendo-se um bem a ele próprio e à própria Marinha” (IPM cit., p. 1825). O tenente tinha
25 anos quando foi demitido da Marinha.
100
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A hostilidade da ditadura – desde o primeiro momento – aos cientistas e artistas brasileiros foi uma
decorrência de sua hostilidade à Nação.
Muitos anos depois, um dos perseguidos, o extraordinário físico brasileiro José Leite Lopes, exilado
na Universidade de Strasbourg, França, depois de proibido de pesquisar e lecionar no Brasil, definiu a
questão nos seguintes termos:
“Se o projeto nacional do Brasil é abrir as portas para as grandes corporações industriais etc., por
que você vai fazer ciência? Para que fazer ciência? Para que procurar tapar a defasagem, se a indústria
refinada estrangeira já está lá dentro e os cientistas que fazem os computadores e inventam os
computadores estão fora? Se você prepara brasileiro lá dentro, o único emprego que ele terá nesse setor é ir
para fora” (v. Leite Lopes, depoimento, 1977, Rio, CPDOC/FGV, 2010).
A premissa de Leite Lopes é igualmente importante para se entender a atitude do golpe (e não
somente a do golpe e de sua ditadura) em relação à ciência – e, também, ainda que de outro modo, sua
hostilidade à arte e à cultura nacional:
“Nos Estados Unidos, nesses países todos, a indústria tem laboratórios de pesquisa que vão
absorvendo esse pessoal, que vai fazer pesquisa em laboratório de pesquisa de interesse para a indústria,
não somente na universidade. No Brasil isso não existe, porque a indústria é estrangeira. E se amanhã o
capitalismo internacional ficar refinado a ponto de dizer ‘vamos fazer pesquisa também no Brasil,
empregando cientistas brasileiros’, a minha tese é de que isso não interessa ao Brasil porque se está
fazendo pesquisa para interesses estranhos ao Brasil, com poderes de decisão fora”.
A conclusão de Leite Lopes é a seguinte:
“... que esforço fazer para adiantar o Brasil? Essa pergunta não pode ser respondida enquanto não
se perguntar qual esforço deve ser feito, no Brasil, para que não somente a ciência e a tecnologia, como a
economia e tudo mais, se integre no desenvolvimento para o povo brasileiro. (…) uma vez respondido o
problema político, aí vamos pensar no esforço científico”.
Espanta, hoje, no golpe e na ditadura, a tremenda erupção de estupidez, que, inclusive fez o país
regredir em áreas onde estava entre os mais avançados do mundo.
É muito repisada – sobretudo em livros de autores norte-americanos – a história do “ano sabático”
de Richard Feynman, de como o futuro Prêmio Nobel de Física, já tendo no currículo sua participação no
Projeto Manhattan, veio ao Brasil, aprendeu a “tocar frigideira” e desfilou numa escola de samba carioca
no carnaval de 1952. Em alguns, não falta a explicação de que o homem da eletrodinâmica quântica foi
atraído pela beleza de nossas mulatas...
Pode ser verdade – ou pode ser lenda. Pouco se diz, porém, na maioria desses livros, sobre a razão
da escolha de Feyman pelo Brasil, e de sua volta ao nosso país, periodicamente, até 1964: nós tínhamos
uma das comunidades de físicos mais conceituadas do mundo. César Lattes não era caso isolado, como
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mostram os nomes de José Leite Lopes, Mário Schenberg, Jayme Tiomno, Roberto Salmeron, Marcelo
Damy, Elisa Frota-Pessoa – e estes são apenas alguns. A ciência precisa de uma comunidade de cientistas
para que possa florescer. Mas foi à destruição das comunidades científicas, em vários campos do
conhecimento, que a ditadura dedicou um particular afinco.
Além dos físicos, pode-se dizer o mesmo dos cientistas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC), onde a
ditadura instalou uma incapacidade de nome Rocha Lagoa – depois promovido a ministro da Saúde.
O conceito desse elemento, antes de 1964, foi bem expresso pelo professor Herman Lent, homem
conhecido não somente pela coragem, mas, também, pelo rigor:
“O Rocha Lagoa no Instituto estava abaixo da crítica; ninguém dava nada por ele. As pessoas riam
quando se comentava da possibilidade dele vir a ser diretor do Instituto. Os trabalhos dele são umas
drogas” (cf. Herman Lent, depoimento, 1977, Rio, CPDOC/FGV, 2010).
Realmente, foi preciso a derrubada do governo constitucional e a instalação de uma ditadura no
Brasil para que Rocha Lagoa fosse nomeado diretor da maior e mais conceituada instituição de pesquisas
da área biomédica no país.
Na posse de Lagoa no IOC, o primeiro dos ministros da Saúde do regime ditatorial, o lacerdista
Raimundo de Brito (o mesmo que, em 1955, dera abrigo em sua clínica a Café Filho, na tentativa de golpe
contra a posse de Juscelino), anunciou os novos tempos:
“As ideias exóticas, que em Manguinhos foram infiltradas, serão banidas definitivamente, porque
nosso país precisa de homens que nos ajudem a acabar com o sofrimento do povo e não de elementos cujo
único fito é destruir a liberdade, esfacelando o regime democrático. Manguinhos amanhã será uma
colmeia de trabalho e não o que queriam alguns, um foco de ideias subversivas” (v. CM 24/06/1964).
Nessa altura, não precisamos chamar a atenção do leitor para o amor dessa gente à democracia:
tivemos 21 anos desse amor extremoso à liberdade.
Brito já afastara os principais cientistas do IOC das chefias de Divisão: Walter Oswaldo Cruz
(Divisão de Patologia); João Teixeira de Freitas (Helmintologia); Hugo de Souza Lopes (Entomologia);
Herman Lent (Zoologia); Haity Moussatché (Fisiologia); Moacyr Vaz de Andrade (Estatística); Masao
Goto (Micologia); Henrique Veloso (Ecologia); e Fernando Ubatuba (Endocrinologia).
Ao que parece, Lagoa conseguiu ser nomeado presidente do IOC pela bajulação ao cardeal Câmara e
a Dutra. Empossado, fez uma lista de 16 cientistas “subversivos”. Não conseguiu cassá-los. A ditadura
temia a reação internacional à cassação de homens com reputação científica estabelecida em todo o
planeta. Então, começou a perseguição. Com cadeira cativa no CNPq, Lagoa pressionou para que o órgão
cortasse o financiamento às pesquisas dos professores Herman Lent e Haity Moussatché. Até mesmo
jovens que, na época, preferiram evitar qualquer definição política – como relatou depois um deles, o
virologista Hermann Schatzmayr, que seria, 26 anos depois, presidente da instituição – eram perseguidos,
sem que houvesse, aparentemente, algum sentido na perseguição.
Lagoa era especialmente rancoroso contra Walter Oswaldo Cruz – talvez porque Walter fosse filho
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do fundador e patrono do IOC. No entanto, Walter era, também, um pesquisador brilhante em
hematologia: “tinha um laboratório com 50 estagiários, produtivo ao extremo e que foi liquidado pelo ódio
sem nome desse Rocha Lagoa”, relatou Herman Lent, em depoimento ao CPDOC.
Ou, como descreve um trabalho recente:
“A seção dirigida por Walter Oswaldo Cruz foi transferida para local bem menor do que o ocupado,
sob a justificativa de que o espaço que ocupava era maior do que o necessário. Para a transferência foi
necessária força policial porque os pesquisadores que se recusavam a desalojar o antigo lugar foram
acusados de insubordinação. Os cinquenta e oito bolsistas, que sofreram com o corte dos recursos,
abandonaram o laboratório, e este passou a ter somente dezesseis assistentes, em 1966. O mesmo
laboratório, pouco tempo depois, foi alvo de um levantamento realizado por uma comissão de técnicos da
instituição, sob a acusação de que nele havia propaganda subversiva. Durante a revista da comissão só
encontraram material científico. O local seria lacrado e as atividades na área completamente paralisadas
após a morte de Walter Oswaldo Cruz, vítima de ataque cardíaco, em 1967” (cf. Elaine Kabarite Costa,
“Dinâmicas científicas e contingências sociais: um estudo exploratório em Manguinhos”, IOC, Rio, 2011).
As perseguições paralisaram o IOC. Em 1970, depois de assumir o Ministério da Saúde, Rocha
Lagoa patrocinou o “massacre de Manguinhos” - como o professor Lent, um dos atingidos, chamou a
cassação pelo AI-5, com proibição de trabalhar no IOC e em qualquer instituição pública, de dez dos
maiores pesquisadores do país na área de ciências biológicas, todos com justa fama internacional: Haity
Moussatché, Herman Lent, Masao Goto, Augusto Cid de Mello Perissé; Hugo Souza Lopes, Moacyr Vaz de
Andrade, Sebastião José de Oliveira, Fernando Braja Ubatuba, Tito Cavalcanti e Domingos Arthur
Machado Filho (v. Herman Lent, “O Massacre de Manguinhos”, Avenir, 1978).
Os laboratórios destes cientistas foram desmontados.
[NOTA: Por razões familiares (minha mãe era amiga de sua esposa, Arcelina Mochel, e, sobretudo,
de sua cunhada, Eline Mochel, que também era médica), conheci o professor Masao Goto. Não era apenas
um grande pesquisador, mas um grande médico, com uma preocupação humana que se traduzia menos
em palavras que na gentileza, realmente indescritível, com que tratava os mais humildes. Proibir homens
como este de trabalhar e contribuir para o seu país não está entre os menores crimes da ditadura.]
O que se tornou a instituição de Oswaldo Cruz nessa época, é bem exemplificado por um discurso
de Geisel, cinco anos depois, na V Conferência Nacional de Saúde (1975), colocando como um dos objetivos
do seu governo “a recuperação da Fundação Oswaldo Cruz” (cf. Jaime L. Benchimol (coord.), “Febre
amarela: a doença e a vacina, uma história inacabada”, Rio, Ed. FIOCRUZ, 2001, p. 330).
Naquele momento, o país enfrentava uma epidemia de meningite.
Testemunho eloquente é o de Vinícius da Fonseca, designado pelo ministro da Saúde de Geisel,
Paulo de Almeida Machado, para a recuperação de Manguinhos – isto é, para presidente da Fundação
Oswaldo Cruz.
Vinícius não era médico, mas economista, e trabalhara na Secretaria de Planejamento da
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Presidência (Seplan) com João Paulo dos Reis Velloso, na elaboração do II Plano Nacional de
Desenvolvimento (II PND).
Seu depoimento apresenta interesse sob vários aspectos, inclusive a relação do II PND com a Saúde
Pública. Existem opiniões suas com que pode-se ou não concordar, mas isso, aqui, não é importante. Eis
como descreve a situação, quando tomou posse:
“Manguinhos estava morto. Quando eu assumi, o dr. Paulo de Almeida Machado, ministro da
Saúde, disse de viva voz para a plateia: ‘Esse aqui é o homem que vai ressuscitar esse cadáver insepulto’.
Palavras dele. (…) Eu vim a saber do famoso ‘massacre de Manguinhos’ já como presidente da fundação.
Parece incrível isso! Cassar os direitos políticos de um pesquisador como o Herman Lent, o Haity
Moussatché e outros, meu Deus, tem sentido isso? Realmente, não fazia o menor sentido. A minha
interpretação é de que havia problemas profundamente pessoais, ódios acumulados durante anos.
“(…) quando houve a revolução de 1964 o Rocha Lagoa dominou o Instituto Oswaldo Cruz. (…) Ele
se apossou de Manguinhos com o grupo dele, de extrema direita, sei lá se tinha ideologia nisso. Em 1970,
ele foi chamado pelo Costa e Silva para ser ministro da Saúde e se aproveitou do ministério para fazer o
chamado ‘massacre’ “ (cf. “Um estranho no ninho – memórias de um ex-presidente da Fiocruz”,
depoimento a Wanda Hamilton e Nara Azevedo, in História, Ciências, Saúde Vol. VIII (1), março/junho
2001, p. 244).
Rocha Lagoa foi nomeado ministro por Médici em 1969 – e ficou no Ministério até 1972, quando se
descobriram algumas trampolinagens na sua operosa gestão, e ele foi obrigado a demitir-se.
Muitos lembraram, depois do golpe – e com bastante razão – a afinidade das perseguições da
ditadura com a consigna daquela besta franquista, Millán-Astray, na Guerra Civil Espanhola: “Viva la
muerte! Muera la inteligencia!“.
Difícil explicar, por exemplo, a prisão de Djanira, a pintora. Na época, alguém ironizou: “deve ser
porque ela usa muito vermelho em suas telas”. Trata-se de uma explicação até melhor que a dos que
prenderam a pintora: dentro do carro de Djanira fora achado um perigoso livro subversivo de arte,
intitulado “A Velha Varsóvia”.
Como explicar tanta estupidez – a tal ponto que os livros mais importantes do período inicial da
ditadura são os volumes do “FEBEAPÁ”, o “Festival da Besteira que Assola o País”, de Stanislaw Ponte
Preta? A questão resume-se a que é impossível ser contra a Nação sem ser – ou se tornar – burro (que nos
desculpem a palavra, mas não há outra mais precisa). A existência de uma intelectualidade antinacional é
a mesma coisa que a existência de uma intelectualidade sem intelecto – uma intelectualidade que não
pensa. Exemplos não faltam, inclusive alguns supostamente vivos. E o motivo é simples: o servilismo
dispensa o pensamento. Para absorver ou copiar servilmente o que vem de fora, não é preciso pensar.
Quem deve pensar é o amo, jamais o serviçal – pelo menos é o que este acha.
Em 1964, entre os intelectuais, nem Otto Lara Rezende escapou de ter a casa “varejada” (cf. UH
18/05/1964). Estranhamente, Otto foi prefaciador da antologia a favor do golpe, organizada pelo
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lastimável editor-chefe do “Jornal do Brasil”, Alberto Dines, intitulada “Os Idos de Março e a Queda em
Abril”, em maio de 1964.
[NOTA: Além de Otto, o único outro autor que confere alguma suposta respeitabilidade a essa
antologia é Antonio Callado; o artigo deste, nesse livro, é uma condensação dos preconceitos lacerdistas
contra Jango; no entanto, Callado arrependeu-se rápido de seu apoio ao golpe; por isso, hoje, essa
antologia serve para exemplificar o reacionarismo dos próceres da imprensa na época e para mostrar que
Dines, em meio século, não mudou muito (v. João Amado, “Da redação do Jornal do Brasil para as
livrarias: Os idos de março e a queda em abril, a primeira narrativa do golpe de 1964”, IFCH/UERJ, Rio,
2008; e, também, o livro de Juremir Machado da Silva, “1964 Golpe Midiático-Civil-Militar”, ed.
Sulina, 2014). Sobre a tentativa de Dines de negar o que é inegável, já dizia Gorky que “o que a pena
escreve nem o machado apaga”, o que vale, também, para a máquina de escrever – e, hoje, para o
computador.]
Moacir Werneck de Castro, que assinava uma coluna na “Última Hora” sob o pseudônimo de
Miguel Neiva, depois de fazer um sucinto inventário das perseguições à intelectualidade – além da casa de
Otto Lara Rezende e da prisão de Djanira, a cassação de Anísio Teixeira, Josué de Castro e Celso Furtado;
a invasão da residência do físico e crítico de arte Mário Schenberg; a demissão de Di Cavalcanti, até então
adido cultural em Paris; e os berros das “megeras democratas” pela prisão do pensador católico Tristão de
Ataíde (Alceu de Amoroso Lima) - sintetizava, em maio de 1964: “Pelo visto, é uma revolução contra a
inteligência” (Miguel Neiva, “Guerra à inteligência”, UH 18/05/1964).
Realmente. Mas, examinando hoje os nomes dos que foram perseguidos – no Centro Brasileiro de
Pesquisas Físicas (CBPF), no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), na Faculdade Nacional de Filosofia (FNFi) ou
na Rádio Nacional, por exemplo – ressalta a diversidade entre aqueles homens e mulheres. No entanto,
eles tinham algo em comum: amavam o Brasil e eram brasileiros com reais contribuições ao país. Não há
nada, nisso, além de um fato.
Em 1977, o grande físico brasileiro Jayme Tiomno declarou, quando lhe perguntaram por que,
apesar de sua considerável produção científica no exterior, voltara ao Brasil:
“... eu, no exterior, estaria produzindo muito, seria uma peça, talvez muito importante dentro de
uma maquinaria na qual eu, realmente, não me sentiria integrado. Estaria contribuindo para o
desenvolvimento científico universal, isso estaria, mas não estaria fazendo uma coisa que, para mim, é
muito importante, contribuir para o desenvolvimento científico do meu país. Então, no Brasil, mesmo tento
feito muito menos do que poderia ter feito em pesquisa se ficasse no exterior, há uma coisa que fiz e que vai
continuar mesmo depois da minha morte, que vai ser a minha contribuição ao desenvolvimento da
atividade científica no Brasil. Quando fui aposentado, fiz uma lista de 50 físicos sobre os quais tive uma
influência, pelo menos, significativa, porque reconhecida por eles. Atualmente, muitos deles certamente
fazem parte dos 80 ou 100 melhores físicos do Brasil. Isso me dá uma satisfação muito grande, o fato de
ver que esse pessoal está podendo produzir diretamente e através de seus próprios discípulos, muito mais
do que representaria para o Brasil mais umas dezenas ou uma centena de trabalhos que eu tivesse
105
produzido se continuasse no exterior com o título de Professor Titular dessa ou daquela universidade ” (cf.
Jayme Tiomno, depoimento 1977, Rio, CPDOC/FGV, 2010].
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Foi em 1993, na época da privatização da COSIPA – siderúrgica estatal que começou a ser
construída no governo Juscelino e que foi inaugurada, em 1963, pelo presidente João Goulart.
Por sugestão do professor Marcelo Damy – através de nosso saudoso Eduardo Fernandes, que fizera
com o grande físico brasileiro uma série de memoráveis entrevistas para o HP – fomos procurar na USP
outro professor, engenheiro metalúrgico e, também, funcionário da COSIPA.
O “nós” da frase anterior não é um plural majestático: éramos eu e Francisco João Moreirão de
Magalhães, nome tão impoluto quanto o seu proprietário, valente luso-brasileiro que era nosso editor de
economia.
Queríamos uma estimativa de quanto valia o patrimônio da empresa, para comparar com o preço
mínimo estabelecido para o leilão. O engenheiro não sabia qual era o valor da COSIPA. Mas sabia o que
era preciso gastar para montar uma siderúrgica nova, mais ou menos do mesmo tamanho – o que, para
nós, já era bem mais do que tínhamos.
Excelente pessoa, ele lembrou alguns episódios protagonizados por Damy, conhecido por seu
sentido prático – o que, para um engenheiro (assim me pareceu), devia ser uma surpreendente qualidade
em um físico.
Foi então que perguntei por que um especialista em siderurgia trabalhara – nove ou 10 anos, não
lembro exatamente – com um físico nuclear.
Ele riu, com um travo de amargura.
“Minha especialidade não é o ferro”, disse. “Fui trabalhar nisso porque tinha de ganhar a vida.
Minha especialidade, mesmo, é urânio metálico”.
Aquele professor e engenheiro trabalhara no Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares
(IPEN), desenvolvendo combustíveis para reatores nucleares. A ideia – numa época em que o Brasil não
dominava o enriquecimento do urânio – era usar urânio não enriquecido nos reatores que seriam
fabricados no Brasil. Daí a importância das pesquisas com “urânio metálico” - isolado a partir dos
compostos de urânio encontrados na natureza – para que não tivéssemos de importar o combustível.
As pesquisas foram bem sucedidas, a tal ponto que, hoje, “os elementos combustíveis (…) utilizados
na operação do reator IEA-R1m, do IPEN, são fabricados com tecnologia inteiramente nacional” (cf.
Eduardo Borelli Romagnole, “Aspectos econômicos do urânio no Brasil”, DEM/UFRRJ, 2007).
Entretanto, o trabalho com urânio metálico foi encerrado à força, depois que a ditadura assinou o
acordo nuclear com a Alemanha Ocidental.
“Eles paralisaram todas as pesquisas”, disse a nós o engenheiro. “Fecharam o meu laboratório
num feriado”.
Riu, e acrescentou: “no sete de setembro”.
107
Não sei se o pensamento nos veio na época, mas hoje é inevitável: isso aconteceu no melhor – ou
menos pior – dos governos da ditadura.
[NOTA: Em junho do ano passado, o professor e engenheiro Erberto Francisco Gentile – que
tornou-se nosso leitor – faleceu. A ele, a nossa homenagem.]
A lógica de impedir a continuação das pesquisas no IPEN pode ser entendida a partir das
considerações do professor Marcelo Damy sobre o reator alemão (v. Opinião, 18/07/1975).
No sufoco da crise que atingia o modelo dependente da ditadura, o governo adquirira um reator que
funcionava com um método até então apenas experimental, com a justificativa, disse Damy, “ que o Brasil
não poderia mais esperar o desenvolvimento de tecnologia própria”.
Para que o processo se tornasse viável, a colaboração dos cientistas brasileiros se tornava
imprescindível – mas isso significava mudar a linha de pesquisa seguida desde, pelo menos, 1951, quando
o almirante Álvaro Alberto fora empossado, pelo presidente Getúlio Vargas, no CNPq.
Damy não era contra um acordo com outro país. Porém, mostrava, o processo alemão “exige
quantidades enormes de hélio (…) que só pode ser obtido nos Estados Unidos (...). Em consequência, a
nossa futura pretensão de independência nesse setor passará a ser a de uma dependência essencial e
controlada” (cf. Opinião, 18/07/1975).
O que não impediu os EUA de pressionarem o governo Geisel para que abandonasse o acordo com
os alemães ocidentais, no que tiveram sucesso (uma boa síntese dos acontecimentos é a de Fernanda das
Graças Corrêa em “O Projeto do Submarino Nuclear Brasileiro”, Capax Dei, Rio, 2010, p. 63-69).
O deputado Lysâneas Maciel (MDB-GB), na época presidente da Comissão de Minas e Energia da
Câmara, lembrava que a situação era pior que a descrita por Damy, pois a ditadura, quando comprara da
Westinghouse o reator de Angra 1, já assinara um “acordo”, em 1972, com os EUA.
Este acordo colocava todo o desenvolvimento nuclear brasileiro, por 30 anos, sob controle do
governo norte-americano. Lysâneas lembrava que o “controle por parte da comissão de energia atômica
dos Estados Unidos não se refere, como muita gente pensa, apenas ao reator de Angra dos Reis, mas à
instalação de quaisquer outros em todo o país. (…) convém lembrar que ao governo americano são
deferidos entre outros os seguintes direitos” (e Lysâneas citava as cláusulas 10ª e 11ª do acordo com os
EUA): “examinar o projeto de qualquer reator e outros equipamentos brasileiros; examinar o uso,
fabrico, processamento no Brasil de qualquer material nuclear especial fértil ou outros materiais
designados; exigir a manutenção e apresentação de todas as operações com os respectivos relatórios; exigir
que quaisquer materiais sob custódia do governo brasileiro fiquem sujeitos à fiscalização do governo
americano; examinar e aprovar as instalações que devam ser usadas; designar funcionários com
acesso a todos os lugares, autorizados a colher dados necessários e inventários” (cf. Opinião, 18/07/1975,
grifos no texto de Lysâneas).
Por consequência, esse primeiro acordo colocava os reatores do acordo com a Alemanha sob tutela
dos EUA.
108
Bem antes, a partir de 1964, a ditadura proibira de pesquisar e lecionar alguns dos maiores físicos
do mundo – notadamente, José Leite Lopes, Mário Schenberg e Jayme Tiomno.
Tiomno esteve entre os afastados por obra de uma repugnante mediocridade, notável pela falta de
caráter até em seu meio, um certo Eremildo Viana, por alcunha, Eremildo Má-conduta.
No ano anterior ao golpe de Estado, esse elemento fora defenestrado da diretoria da Faculdade
Nacional de Filosofia (FNFi), depois de uma trapaça para perpetuar-se no cargo: enviara ao MEC uma
lista tríplice para escolha do diretor em que, além dele, os outros integrantes eram um professor que já
ocupava a diretoria de outra faculdade – portanto, era inelegível – e, o outro, um professor com câncer em
estágio terminal; logo, a lista se resumia a ele mesmo (v., p. ex., Arthur José Poerner, “O Poder Jovem”, 5ª
ed., Booklink, 2004, p. 192 e 197-199).
Mas, durante a ditadura, Eremildo Má-conduta imperou, quase tão eternamente quanto a própria
ditadura, no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da UFRJ, uma das unidades que sucederam a
FNFi, após a reforma universitária de 1968.
Seguindo o conselho de Julius Fucik (ver a sétima parte deste artigo), vejamos a cara de um dos
aspectos mais asquerosos da ditadura.
Professor de História Antiga e Medieval – embora sua contribuição reduza-se a colaborar com a
inquisição e a um artigo defendendo a superioridade racial dos cristãos sobre os árabes na Idade Média (v.
Istoé, 02/07/1980) – Eremildo Má-conduta, a partir de 1958, perseguira, notadamente, a catedrática de
História Moderna e Contemporânea da FNFi, Maria Yedda Linhares.
O motivo não é totalmente claro, mas é difícil achar que suas razões fossem estritamente políticas.
Maria Yedda, nascida no Ceará, era o oposto de Eremildo: inteligente, culta, rigorosa e mulher – por sinal,
bonita (mesmo quase idosa, quando, após a ditadura, foi, duas vezes, secretária de Educação do governo
Brizola, ela conservava os traços de beleza nas feições).
No governo Jango, a professora Maria Yedda foi nomeada diretora da Rádio MEC, que era um
departamento da Faculdade Nacional de Filosofia.
No dia dois de abril de 1964, ao meio-dia, quando não havia mais perigo de reversão do golpe,
Eremildo invadiu a Rádio MEC com um bando armado do Comando de Caça aos Comunistas (CCC),
fornecido pelo secretário de Segurança de Lacerda, para prender a diretora da rádio.
Só encontraram a secretária da diretora, Sandra Ribeiro da Costa, que exigiu de Eremildo algum
documento que o nomeasse para a diretoria da instituição. Quiseram levá-la para o DOPS, e Sandra
respondeu: “só vou sob violência”.
Nessa hora, contou depois a secretária, Eremildo lembrou que ela era filha do ministro Orlando
Ribeiro da Costa, do Superior Tribunal Militar (STM) – e, também, sobrinha do presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF), ministro Álvaro Ribeiro da Costa. Então, disse que “não tocassem nela”.
O bando de 10 jagunços armados (na verdade, mais, pois havia, também, pelo menos um meganha
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do DOPS) ficou paralisado diante da secretária, que estava sozinha – seu pai, chamado por ela, chegou
depois. Eremildo começou a fazer démarches para arrumar o documento exigido por Sandra. Cinco horas
depois, apresentou um papel assinado pelo chefe de gabinete do secretário de Segurança de Lacerda.
Quatorze anos depois, Eremildo Má-conduta enviou uma carta ao “Jornal do Brasil” negando o
relato, feito dias antes, pelos físicos José Leite Lopes e Jayme Tiomno, sobre seu papel nas cassações de
cientistas e professores, e também negando a invasão armada da Rádio MEC.
Sandra Ribeiro da Costa, então, concedeu uma entrevista sobre os acontecimentos de 1964. Depois
de relatar a invasão, declarou:
“Eu ainda acho muito estranho que um documento assinado por uma autoridade estadual valha
para que se tome um próprio federal. O Eremildo (…) invadiu a rádio por um caso pessoal, contra uma
colega. Foi um ato deliberado de oportunismo, prova do mau-caratismo dele”.
Sandra relatou a vistoria do prédio com Eremildo, ao fim da qual exigiu um recibo:
“... assim ficou patente que não havia nenhuma documentação subversiva na emissora. Só saí de lá
depois de 19 h e ele me levou à porta onde ainda teve a ousadia de me convidar para permanecer no cargo.
Nunca mais pus os pés lá dentro. Confesso que contei toda esta história a contragosto – só mesmo em apoio
ao Leite Lopes e ao Tiomno – porque não quero exumar cadáveres e o Eremildo já morreu”.
Nessa época, o cadáver se arrastava pelos corredores do IFCS da UFRJ. Ainda estava lá em 1980
quando, com a anistia, o ministro da Educação, Eduardo Portella, reintegrou no IFCS três dos professores
delatados por ele, Manoel Maurício de Albuquerque (autor de “Pequena História da Formação Social
Brasileira”), Maria Yedda Linhares (autora de “História da Agricultura Brasileira”) e Eulália Lobo
(autora de “História do Rio de Janeiro: do capital comercial ao capital industrial e financeiro”).
Eremildo, ainda chefe do Departamento de História, lamentou-se: “Pois é, fazer uma revolução e
voltar tudo ao mesmo ponto. (…) assim é demais, há uma desorganização total dos espíritos...“ (JB,
24/06/1980).
Mas, não nos apressemos.
No dia 10 de abril de 1964, Eremildo foi, enfim, nomeado diretor da Rádio MEC. Sua primeira
medida foi proibir a irradiação de músicas de compositores russos – inclusive Tchaikowsky, Rachmaninoff
e Rimsky-Korsakoff – porque “arte não se mistura com política” (v. sua entrevista ao JB).
A ordem era tão absurda que foi revogada pela própria ditadura. Talvez por isso, a atividade crítica
do diretor da Rádio MEC voltou-se para a música popular, especificamente para a obra de João do Vale:
declarou que “todo aquele que canta essa música chamada ‘Carcará’ devia ir preso”. Comentário de
Stanislaw Ponte Preta: “Eremildo sempre foi muito pretensioso e achava que ‘Carcará’ era em sua
homenagem” (v. UH 22/12/1965).
Entretanto, sua grande obra na Rádio MEC foi o famoso bidê que mandou instalar no banheiro do
diretor, abordado por Stanislaw na crônica “Eremildo e o bidê”, incluída no “FEBEAPÁ 2”.
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Para que ele precisava de um bidê? Bem...
Pode parecer incrível para os adeptos do determinismo genético, mas esse elemento tinha um irmão
que, devido à sua coragem e caráter, foi preso e cassado na primeira leva de perseguições da ditadura.
O professor catedrático Yderzio Vianna, pesquisador importante em veterinária, era reitor da
Universidade Rural do Brasil em 1964. Em abril, colocou para fora da Universidade os esbirros que a
invadiram para prender estudantes e funcionários. Foi ele mesmo preso, cassado, retirado da reitoria e
destituído da sua cátedra - obtida por concurso - na Escola Nacional de Veterinária. Em outubro, por
decreto de Castelo Branco, foi demitido do Ministério da Agricultura (cf. CM 11/10/1964).
O professor Yderzio tornou-se um nome lendário entre a “comunidade do km 47” (a Universidade
Rural do Brasil, hoje Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro – UFRRJ – localizava-se no km 47 da
antiga Rio-São Paulo, hoje rebatizado km 7).
Mas, voltemos a Eremildo Má-Conduta: depois da invasão da Rádio MEC, apresentou ao presidente
da Comissão de Investigações da Universidade do Brasil, general Acyr da Rocha Nóbrega, uma lista de 44
professores da FNFi que seriam membros de “um grupo vermelho”, a “célula Anchieta” (um dos
acusados, o físico José Leite Lopes, declarou: “se tal célula existia, deve ter sido fundada por ele”; cf. JB
26/03/1978).
A lista incluía – além de Leite Lopes, Maria Yedda, Tiomno, Manoel Maurício e Eulália Lobo –
Darcy Ribeiro, o químico João Christóvão Cardoso (presidente do CNPq no governo Juscelino e, segundo o
professor Jacques Danon, seu aluno, um dos mais sérios homens de ciência da História do país), o filósofo
Álvaro Vieira Pinto (autor dos monumentais “Consciência e Realidade Nacional” e “O Conceito de
Tecnologia”), Alberto Passos Guimarães (autor de “Quatro Séculos de Latifúndio” e “Inflação e
Monopólio no Brasil”), a física Elisa Frota-Pessoa, o químico Horácio Macedo (que seria, após a ditadura,
o primeiro reitor eleito da UFRJ), a crítica literária Bella Jozef, o escritor Thiers Martins Moreira e o
historiador Hugo Weiss (nome ao lado do qual Eremildo escreveu a palavra “perigosíssimo”, não se sabe
exatamente por quê, já que Weiss, que depois fez carreira como publicitário, nem remotamente parecia
algum Stalin do professorado).
Entretanto, ao contrário de outros presidentes de “comissões de investigação”, ou de IPMs, o
general Acyr era homem sério. No segundo semestre de 1964, encerrou a investigação, inocentando todos
os acusados e incriminando um que não era acusado: o próprio Eremildo, por “peculato, falsificação
ideológica e malbaratamento de fundos” (cf. CM 22/11/1964).
Eremildo, dizia o relatório aprovado por unanimidade pela Comissão, “abusando de sua autoridade
como diretor, pela sua condição de superior hierárquico máximo, usando de coação irresistível, obrigava os
funcionários, que designava, a receberem os adiantamentos [de custeio] e a lhe entregarem os cheques”.
Vinha, em seguida, uma série de depoimentos de datilógrafas, oficiais administrativos e escreventes
que foram coagidos. Depois, uma fila de processos administrativos das despesas, com falsa comprovação,
assinaturas falsas ou assinadas por fantasmas, e serviços pagos, mas nunca realizados.
111
Por fim, era anexado ao relatório uma perícia do Instituto de Criminalística – firmada por ninguém
menos que Carlos Eboli, perito mais conceituado do Rio, hoje patrono do Instituto – apontando Eremildo
como o principal suspeito das falsificações de assinaturas.
O general Nóbrega enviou o relatório ao ministro da Educação, Flávio Suplicy – outra nulidade
revelada pela ditadura – com a solicitação de que Eremildo fosse demitido do serviço público.
Suplicy respondeu que “não podemos fazer isso com um dos mais destacados homens da
Revolução” e engavetou o relatório. Indignado, o general enviou uma cópia à Justiça e informou a
imprensa. No entanto, o procurador-geral do Estado da Guanabara, Cordeiro Guerra, lacerdista que
depois seria nomeado para o STF, manobrou para arquivar o processo. Depois de algum tempo, foi
arquivado. Para isso servia a ditadura.
112
21
Milhares de pessoas – talvez milhões – souberam o que estava ocorrendo no país, após o golpe de 1º
de abril, de uma forma improvável: Sônia Dutra, mulher das mais belas do Rio, atriz e cantora que
deixava os jovens e adolescentes cariocas (para não falar nos adultos...) algo pirados.
Naquele momento, o pai de Sônia, deputado federal e vice-governador (do Estado da Guanabara)
Eloy Dutra, estava asilado na embaixada do Uruguai – e a ditadura, para prendê-lo, tentava
“reinterpretar” a Convenção de Havana, que, desde 1928, regulara o direito de asilo político na América
Latina. Por essa convenção, os países signatários, como o Brasil, eram obrigados a conceder salvo-conduto
para que asilados nas embaixadas saíssem do país em direção ao exílio.
Sônia Dutra aparecia, na primeira página da “Última Hora” de 28 de abril de 1964, numa foto logo
abaixo da manchete. Não era a maior foto da página, mas era uma das duas fotos notáveis. A outra, era a
de Garrincha com a camisa do Botafogo. Segundo o jornal, Mané era a “grande esperança” de General
Severiano na partida daquela noite contra o “Coríntians” (sic) pelo Torneio Rio-São Paulo (só para
registro, o Botafogo ganhou por 3 a 1, com dois gols que Garrincha colocou no pé de Arlindo e mais um de
Gérson, o canhoto fumante que sucedera Didi no Botafogo e da Seleção).
Acima da foto de Sônia Dutra, um forte título: Cesar é “dedo duro” no duro.
Embaixo, a chamada:
“Enquanto o locutor César de Alencar comparecia, ontem, a uma homenagem de encomenda, na
Churrascaria Recreio, nas Laranjeiras, em sinal de regozijo por haver delatado 149 colegas da Rádio
Nacional, a cantora e atriz de teatro Sônia Dutra declarava a UH, com provas, que ‘aquele animador de
auditórios é dedo duro no duro’ (Página 2)“.
Para a maioria das pessoas, era um choque. César de Alencar era, como dizem dois autores, “o mais
popular animador de auditório de todos os tempos” (Luiz Carlos Saroldi e Sonia Virgínia Moreira, “Rádio
Nacional: O Brasil Em Sintonia”, 3ª ed., Zahar, 2005, p. 165).
Não havia quem não assistisse, sábado à tarde, ao “Programa César de Alencar”, programa de
auditório iniciado em 1945, com apenas dois concorrentes, ambos na mesma emissora: o “Programa
Manoel Barcelos” e o “Programa Paulo Gracindo” (uma descrição do “Programa César de Alencar” está
em Ronaldo Conde Aguiar, “Almanaque da Rádio Nacional”, Casa da Palavra, 2007, p. 34).
O choque era ainda maior porque, como escreveu Theresa Cesário Alvim, colunista de TV da
“Última Hora”, César de Alencar gravara o jingle da campanha de João Goulart a vice-presidente (”Na
hora de votar/ eu vou jangar, eu vou jangar, eu vou jangar/ É Jango! É Jango! É o Jango Goulart!/ Pra
vice-presidente/ Nossa gente vai jangar/ É Jango, é Jango/ É o Jango Goulart!“).
[A resposta de César de Alencar a Thereza Cesário Alvim foi que tratara-se de serviço
exclusivamente profissional, para o qual fora pago; enquanto isso, na encolha, estava combatendo Jango e
o comunismo...; não lhe passou pela cabeça que estava se confessando mercenário ou prostituta; na
113
Revista do Rádio de 01/10/1960, ele aparecera, sorridente, apoiando a candidatura de Jango.]
Por isso tudo, a matéria da Última Hora, que, na página 2, sustentava a chamada da primeira
página, somente não parecia incrível porque nada parecia mais incrível após o golpe de Estado:
“Houve grande tumulto, ontem, na Churrascaria Recreio, nas Laranjeiras, durante uma
homenagem encomendada a César de Alencar, que se afirma ter sido em sinal de regozijo por haver
delatado 149 colegas da Rádio Nacional ao Comando Supremo da Revolução. A confusão foi causada por
uma pedra caída no telhado e a explosão de uma bomba nas proximidades.
“Enquanto isso, a cantora e atriz de teatro Sônia Dutra, que não compareceu, obviamente, ao
banquete de encomenda, declarava à UH que “ser conhecido como ‘dedo-duro’ é a pior coisa que poderia
acontecer a um ser humano” e que “após a revolução, um homem ficou definitivamente marcado com esse
título: ‘César de Alencar, ele é, mesmo, ‘dedo-duro’, afirmou.
“Mostra-se Sônia arrependida de ter, um dia, pedido ao então primeiro-ministro Tancredo Neves e,
em seguida, ao Presidente João Goulart, a nomeação daquele espíquer para o cargo de diretor-geral da
Rádio Nacional.
“- Nessa ocasião – recorda – quando fiz o pedido ao Presidente, por insistência do próprio César, ele
retrucou: ‘Soninha, o César de Alencar não é petebista, nem udenista, nem janguista. É, apenas, um
oportunista. Essa nomeação seria contra a própria Rádio Nacional’.
“Após esclarecer que não é cantora, artista ou funcionária da Rádio Nacional, a filha do ex-vicegovernador da Guanabara e deputado federal Elói Dutra salienta ‘não poder ficar calada ante tamanha
indignidade da parte do animador de auditório César de Alencar’.
“- Estou dando – frisa – este depoimento depois de ler a carta-aberta de Jorge Goulart àquele
locutor, que chega ao desplante de elaborar uma lista de 149 companheiros seus da Rádio Nacional para
serem expurgados, o que dá uma demonstração do seu caráter.
“Acrescenta Sônia Dutra que sua revolta é que a faz vir a público para apontar César de Alencar
como oportunista.
“- Como bem disse Jango – conclui – é isso o que ele é. Desde que Jango assumiu a Presidência,
passei a ser assediada por aquele animador, que pretendia, a todo custo, intercedesse eu junto ao
Presidente, no sentido de que fosse ele nomeado diretor-geral da Nacional. Chegou, mesmo, a organizar
‘shows’ para João Vicente, tudo com o objetivo de obter o lugar. Tem, pois, agora, a qualificação que
merece: ‘Dedo-Duro’ “.
Sônia – que deixou este mundo em 2010, aos 72 anos – prestara um grande serviço ao país.
Quase 50 anos depois, em 2011, Gerdal dos Santos, um dos perseguidos (e, após a Anistia,
reintegrado à Rádio), resumiria: “... existia um crápula em nosso meio chamado César de Alencar, uma
figura das mais sórdidas e mesquinhas, em que o caráter não combinava com o grande comunicador que
ele era” (Jornal da ABI, dez/2011).
114
Realmente, ele era. Pois acabou ali.
O impressionante é como, depois disso, e para o resto da vida, ele seria conhecido como “o dedoduro”. E de forma tão extensa, em todo o país, que isso acabou com sua carreira de animador de auditório
mais bem sucedido da história da Rádio Nacional.
Quando houve a anistia, 15 anos depois, ele era uma assombração desprezível; não conseguira ser
diretor da Rádio Nacional; tentara negar o que fizera – e os documentos (o relatório do diretor nomeado
pela ditadura e suas próprias declarações no IPM da Rádio) apareceram para mostrar que Sônia Dutra,
Mário Lago, e outros, haviam falado rigorosamente a verdade.
Por fim, ele mesmo passou a tratar a si próprio como “dedo-duro”. Por exemplo, sobre a volta à
Rádio Nacional dos que ele dedurara: “Se eles foram anistiados, voltaram e encontraram a rádio
aqui, foi graças ao ‘dedo-duro’. Que puderam contar seus tempos de aposentadoria, que não
fez nenhuma objeção, e ainda fui encarregado até de recepcioná-los – eles é que ficaram
constrangidos e não quiseram ser recepcionados por mim’“ (César de Alencar, depoimento a Luiz
Carlos Saroldi, 14/10/1987, in “Rádio Nacional: O Brasil Em Sintonia”, ed. cit., p. 182).
Em sua ambição e miséria espiritual, esse elemento não reparou que a condição de seu sucesso,
durante 19 anos, fora o ambiente nacional que permeou a cultura do país – em síntese, a cultura nacional
– de Getúlio até Jango. Na verdade, ele se auto-liquidara.
Em seu livro de memórias, o último diretor da Rádio Nacional antes do golpe de Estado, Hemílcio
Fróes, descreve a empresa na época:
“A Rádio Nacional constituía-se o maior parque industrial de transmissão radiofônica da América
Latina. Mantinha o maior e mais completo cast artístico do Brasil que, após o Golpe de 64, foi se
transferindo para as televisões, teatro, cinema, dublagem, onde muitos continuam fazendo sucesso. A
queda artística da Rádio Nacional foi consequência da devastação praticada pelos golpistas de 64 contra
uma empresa do governo, possivelmente seguindo a linha de conduta do imperialismo contra as empresas
nacionais” (Hemílcio Fróes, “Véspera do Primeiro de Abril ou Nacionalistas X entreguistas”, Imago, Rio,
1993, p. 154-155).
A ira com que a ditadura se atirou sobre a Rádio Nacional parece sugerir, além disso, algo mais: um
ódio à cultura nacional, cuja condensação era, exatamente, a Rádio Nacional.
É verdade que a continuação desse empreendimento, que vinha desde os anos 30, estava ameaçado
por um erro do presidente Juscelino, um erro grave – mas não um erro irreparável.
Desde 1952, a Rádio Nacional – empresa estatal bastante lucrativa – lutava para construir a TV
Nacional, já que o rádio, no Brasil, deixaria em breve de ser o principal meio de comunicação. O plano
inicial era “ter a sua própria televisão funcionando no início de 1954” (declaração de Celso Guimarães, em
dezembro de 1952, cf. Ronaldo Conde Aguiar, op. cit., p. 15).
Porém, diz esse autor, “é bem possível que a crise política da época, que culminou com o suicídio de
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Getúlio Vargas em agosto de 1954, tenha influenciado negativamente os planos da PRE-8”.
Entretanto, “a julgar pelo depoimento de Moacir Areas, a questão, em 1956, já estava
praticamente decidida: ‘Muito cedo, nos próximos meses, os receptores de televisão da capital da
República e adjacências estarão assinalando a existência do Canal 4, onde se estampará a imagem da
nossa TV Nacional’. Segundo disse Renato Murce, o presidente Juscelino Kubitschek teria, inclusive, em
julho daquele ano, despachado o pedido favoravelmente. ‘Chegou-se’, informou Murce, ‘até a importar
todo o material da melhor qualidade. (...) Quando o material chegou à Rádio Nacional, foi
encaminhado para Brasília. Está lá até hoje [1976]’“ (idem, grifos nossos).
A TV Nacional estava praticamente pronta. No entanto, foi nesse estágio tão avançado de
consecução do projeto, que ele foi travado:
“... a TV Nacional teve, desde cedo, um inimigo ferrenho e intransigente: Assis Chateaubriand, que
sabia perfeitamente do risco que as suas Emissoras Associadas correriam com a presença no mercado da
nova emissora. Escaldado nos pífios resultados (em faturamento e audiência) da Rádio Tupi frente à
Rádio Nacional, Chateaubriand sabia que a TV Nacional levaria para suas antenas toda aquela
incomensurável força, competência e experiência que sempre demonstrara. E não fez por menos: bem ao
seu estilo, Chatô procurou de início demover o presidente da ‘loucura’ que era dar um canal à Nacional.
Como o esforço persuasivo não deu resultado, Chatô partiu para a truculência. ‘Entre os sorrisos de
clichê’, observou Mário Lago, ‘o presidente lhe fez ver que já tinha empenhado a palavra, não podia recuar
agora’.”
A resposta de Chateaubriand foi a que se podia esperar de um gângster:
“‘Se Vossa Excelência der o canal de televisão à Nacional, jogo toda minha rede de rádio, imprensa
e televisão contra seu governo’. Juscelino sentiu o golpe e preferiu não enfrentar o poder dos Diários
Associados” (idem).
Chateaubriand estava assinando a sentença de morte do seu próprio império. O que poderia frear
um processo de monopolização da TV sob os auspícios dos norte-americanos seria, como ocorrera no rádio,
a existência de um poderoso canal público, estatal. Mas Chateaubriand queria ser o monopolista. Viveu o
suficiente para colher o resultado dessa escolha.
Quando os americanos resolveram jogar suas fichas em Roberto Marinho, só restaram a
Chateaubriand os insultos racistas em cima de seu concorrente, que não era branco (entre outras coisas,
chamou Marinho de “crioulo alugado e regiamente pago” e “africano de trezentos anos de senzala”).
Obteve pouca solidariedade com esse racismo explícito, misturado a berros contra “o porco
nacionalismo que nos arrasa faz meio século”, não percebendo que fora esse nacionalismo que lhe
garantira, até então, não ser esmagado pelos monopólios externos.
Ao final, quem arrasou Chateaubriand foi o seu próprio entreguismo.
Certamente, o recuo de JK na questão da TV Nacional trouxe prejuízos imensos para a Nação e o
116
povo – que ficaram ainda mais claros quando a ditadura protegeu a emissora da Time Inc. e eliminou as
emissoras nacionais existentes antes de 1964.
Roberto Marinho não tinha dinheiro para instalar a sua TV quando, “em 24 de julho de 1962, em
Nova Iorque, foram assinados o Contrato Principal – que era válido por onze anos e pelo qual o grupo
Time-Life tornou-se sócio da TV Globo (…) e o Acordo de Assistência Técnica – pelo qual o grupo TimeLife comprometeu-se a dar todo o tipo de assessoria técnica à TV Globo, da montagem da emissora e
treinamento do pessoal aos programas que a empresa brasileira compraria no exterior” (cf. Patrícia
Polacow, “Conspiração patrocinada: a versão de Assis Chateaubriand sobre os acordos Time-Life”,
UMESP, 2000).
Esses “acordos” ou contratos não tinham chance de serem aprovados – nem tolerados – pelo
governo João Goulart, pois “eram ilegais, conforme o artigo 160 da Constituição brasileira de 1946, que
vetava a estrangeiros a participação na orientação intelectual e administrativa em empresas jornalísticas e
de radiodifusão do Brasil. (…) Os contratos também violavam o Código Brasileiro de Telecomunicações e
o Regulamento dos Serviços de Radiodifusão” (idem).
Mesmo depois do golpe, foi essa a conclusão da CPI que, em 1966, investigou a relação da Globo
com o grupo Time-Life.
Porém, “Castelo Branco, em março de 1967, decidiu ‘lavar as mãos’ e passou o problema ao seu
sucessor, general Artur da Costa e Silva. Este, em 1968, pôs um ponto final na controvérsia, considerando
legais os acordos Time-Life” (idem).
Observemos que a ditadura fez isso não apenas contra as leis, mas também contra – de
Chateaubriand ao Frias, passando pelos Mesquita – toda a imprensa golpista (com exceção,
evidentemente, de “O Globo”).
Os norte-americanos, evidentemente, tinham precedência sobre aqueles colonizados...
Na Rádio Nacional, o IPM inocentou todos os investigados. Hemílcio Fróes reproduz o parecer do
procurador da Justiça Militar (”Não conta o Ministério Público com suporte para o oferecimento de
denúncia”) e a sentença do juiz da auditoria militar (”pela carência de provas, arquive-se o presente
inquérito”).
Apesar disso, a perseguição atingiu 148 funcionários, dos 800 que constituíam a equipe da
Nacional. Todos, comprovadamente, segundo o IPM e a Justiça Militar, inocentes.
Entre os demitidos estavam – além de Hemílcio Fróes e Gerdal dos Santos – o grande compositor e
também pintor Heitor dos Prazeres (entre muitos feitos, autor, com Noel Rosa, de “Pierrô Apaixonado”);
o cantor Jorge Goulart (entre muitas coisas, primeiro intérprete de “A Voz do Morro”) e sua esposa, a
cantora Nora Ney (”Ninguém me ama”, “Bar da Noite”, etc.); o ator e escritor Mário Lago; o teatrólogo,
novelista, roteirista e diretor Oduvaldo Vianna (pai); o teatrólogo Dias Gomes; o jornalista esportivo João
Saldanha; o compositor, cantor e humorista Jararaca (da dupla “Jararaca e Ratinho”); o apresentador e
ator Jonas Garret; o ator Mário Brazzini; a atriz Wanda Lacerda; a cantora e atriz Marion; o apresentador
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e ator Paulo Gracindo e seu filho, o então jovem ator Gracindo Júnior; o cantor Carlos Carriê; a atriz
Carmen Lídia; o cômico Oswaldo Elias; o ator Rodney Gomes.
Na lista completa, estava até Orlando Silva, “o cantor das multidões”, apesar de sua desconhecida
participação política.
E o que explicaria a demissão do produtor e apresentador Paulo Roberto, idoso e afável médico que,
aparentemente, não tinha inimigos? Um homem sobre o qual era consenso o que disse Renato Murce:
“Paulo Roberto foi um dos maiores radialistas desta terra. Todas as suas criações traziam a marca da
inteligência, da cultura e de um profundo sentimento humano, difícil de ser igualado e muito menos
ultrapassado”.
Paulo Roberto (pseudônimo radiofônico do médico mineiro José Marques Gomes) era também o
autor de “Vagalumeando”, gravada por Elizeth Cardoso: ”Tinha uma lua passeando no céu/ Tinha outra
lua se banhando no mar/ Tinha também dois vagalumezinhos/ Vagalumeando pelo teu olhar”.
Indignado com a demissão de Paulo Roberto, escrevia, em setembro de 1964, o compositor Sérgio
Bittencourt, na sua coluna do “Correio da Manhã”:
“Paulo Roberto é, hoje, um dos estupidamente demitidos pelo Alto Desmando Revolucionário. E
o que fazia Paulo Roberto na Nacional? Um antigo programa, ‘Nada Além de Dois Minutos’, uma audição
gostosíssima com bandinhas do interior, ‘A Lyra de Xopotó’, o ‘Gente que Brilha’ e uma croniqueta
despretensiosa em tom de Nordeste, pela manhã. E o Alto Desmando viu subversão em tanta coisa
mínima. O Alto Desmando, por certo, não prestou atenção devida à prata dos cabelos de Paulo Roberto.
Nem entenderia o que ele significa na história do Rádio brasileiro” (22/09/1964, grifos da publicação
original).
Mas esse foi o motivo da sua demissão.
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22
Chegamos ao fim desta série. Faremos, aqui, apenas algumas considerações complementares, que,
em alguma medida, possam minimizar as nossas falhas e limitações (somente conseguimos citar em pouca
medida o material pesquisado, devido ao risco desta série tornar-se interminável).
A melhor coleção de documentos históricos sobre o golpe de 64 – inclusive sobre a intervenção
militar norte-americana, a “Operação Brother Sam” – está no Volume VII de “Textos Políticos da História
do Brasil”, preciosa obra organizada por Paulo Bonavides e Roberto Amaral, que teve a sua terceira
edição publicada pelo Senado Federal em 2002. O sétimo volume é especialmente importante para a
história do golpe de 64, pois reúne documentos do período 1956-1964, ou seja, dos governos Juscelino
Kubitschek, Jânio Quadros, João Goulart – e do golpe de Estado.
Muito importante para as questões que abordamos é a troca de cartas entre Jango e Kennedy, por
ocasião da “crise dos mísseis”, em 1962. Em sua resposta ao presidente norte-americano, que tentava
conseguir nosso apoio para a ação dos EUA contra Cuba e a URSS, diz o presidente brasileiro:
“A defesa do princípio de autodeterminação dos povos, em sua máxima amplitude, tornou-se o ponto
crucial da política externa do Brasil, não apenas por motivos de ordem jurídica, mas por nele vermos o
requisito indispensável à preservação da independência e das condições próprias sob as quais se processa a
evolução de cada povo.
“É pois, compreensível que desagrade profundamente à consciência do povo brasileiro qualquer
forma de intervenção num Estado americano inspirada na alegação de incompatibilidade com o seu
regime político, para lhe impor a prática do sistema representativo por meios coercitivos externos, que lhe
tiram o cunho democrático e a validade.
(…)
“... não escondo a Vossa Excelência a minha apreensão e a insatisfação do povo brasileiro pelo modo
por que foi pleiteada e alcançada a decisão do Conselho da OEA, sem que tivesse preliminarmente
realizado, ou pelo menos deliberado, uma investigação in loco, e sem que se tivesse tentado através de uma
negociação, como a que propusemos em fevereiro do corrente ano, o desarmamento de Cuba com a garantia
recíproca de não invasão.
“Receio que nos tenhamos abeirado sem, antes, esgotar todos os recursos para evitá-lo, de um risco
que o povo brasileiro teme tanto como o norte-americano: o da guerra nuclear.
(…)
“Não quero encerrar, porém, esta carta, senhor presidente, sem acrescentar às considerações nela
feitas a expressão de meus receios sobre o futuro imediato da OEA. Nos últimos tempos observo que as
suas decisões vêm perdendo autoridade à medida que se afastam da correta aplicação das suas próprias
normas estatutárias, e que são tomadas por maioria numérica com injustificável precipitação. A isso cabe
acrescentar a tendência para transformar a Organização num bloco ideológico intransigente, em que,
119
entretanto, encontram o tratamento mais benigno os regimes de exceção de caráter reacionário.
“Permito-me pedir a atenção de Vossa Excelência para a violação do art. 2º da Carta de Bogotá, que
se está correndo o risco de cometer para evitar a adesão de novos Estados por motivo de ordem ideológica.
Permito-me ainda recordar a aplicação imprópria da Resolução II de Punta del Este sobre vigilância e
defesa social, que não autoriza a Organização a encomendar investigações sobre a situação interna de
nenhum país, para evitar que se firam os melindres de Estados soberanos, e que agora se pretende
abusivamente invocar justamente para a execução de uma investigação dessa natureza. A esse caos
acrescento o da criação do Colégio Interamericano de Defesa” (op. cit., p. 743-744).
A data dessa carta é 24 de outubro de 1962. Estendemos a citação, não somente porque essa carta
raramente aparece nos livros sobre a época (se é que aparece em algum), mas, sobretudo, porque esta
citação economiza comentários adicionais.
Sobre o transformismo – que deixou não poucos perplexos – de um sujeito tão simpático e popular
quanto César de Alencar num dedo-duro asqueroso, cabe acrescentar algo que demonstra o quanto Sônia
Dutra estava certa.
Na apologia do dedo-duro escrita por um dos últimos produtores de seu programa, Jonas Vieira
(um livro em que César de Alencar é retratado como uma vítima daqueles que delatou), é dito que ele
tinha a “ambição legítima, pelo prestígio de que desfrutava” (sic) de ser diretor da Rádio Nacional e, em
seguida: “Ele não escondia tal pretensão e pleiteou o cargo em mais de um encontro com o presidente João
Goulart, que se decidiu por Hemílcio Fróes” (Jonas Vieira, “César de Alencar: A Voz Que Abalou O
Rádio”, p. 158, Valda, 1993).
Pode parecer incrível, mas tudo indica que, realmente, o motivo consciente do suicídio público de
caráter, às custas da pele alheia, de César de Alencar, tenha sido sua vontade – não satisfeita por Jango –
de mandar e desmandar na Rádio Nacional.
O resultado foi aquilo que o apologista chama de “visível solidão de César de Alencar, lutando para
romper o bloqueio em torno de seu nome”.
São coisas assim que dão esperança à Humanidade.
Certamente, nada como um dia depois do outro e a noite pelo meio. Segundo Dante, aos bajuladores
está destinado um lugar especial no Inferno:
“Ali subimos; e além, na fossa
vi gente afundada no esterco
de humanas privadas recolhido
“E enquanto eu olhava para o fundo
vi uma cabeça tão suja de merda
que não sabia se era leigo ou se era frade”
(Inferno, Canto XVIII: “Quivi venimmo; e quindi giù nel fosso/ vidi gente attuffata in uno sterco/
che da li uman privadi parea mosso.// E mentre ch’io là giù com l’occhio cerco,/ vidi un col capo sì di
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merda lordo,/ che non parëa s’era laico o cherco.”).
Porém, os traidores têm destino ainda pior, dentro do nono círculo do Inferno.
Mas, deixemos de lado esse elemento.
Algo ainda precisa ser dito sobre Eloy Dutra, que tornou-se um dos mais influentes líderes
nacionalistas, sobretudo depois que, com 52% dos votos (em uma eleição com três concorrentes e um
único turno), vencera o candidato de Lacerda a vice-governador, em 1962. Era conhecido por seu estilo
combativo e pelo vasto bigode, daí o apelido de “o tigre da Guanabara”.
Por exemplo, em 1961, na crise que sucedeu à renúncia de Jânio Quadros, quando um
pronunciamento seu foi censurado nos registros da Câmara, com a extirpação dos trechos mais
contundentes, Eloy exigiu a retificação, observando:
“... todos nós sabemos que o Presidente Ranieri Mazzilli, Presidente da República em exercício e
Presidente desta Casa, é um homem de dotes intelectuais apreciáveis. Não vamos julgar, portanto, que Sua
Exa. Tenha a imponência de um senador romano e a inteligência de um Primo Carnera”.
Para muitos ouvintes da época, Eloy cometia uma injustiça com Primo Carnera...
O crime de Eloy, que era jornalista, foi ter escrito “IBAD, Sigla da Corrupção” e uma série de
artigos nacionalistas – e derrotar os golpistas na eleição de 1962, no Estado governado pelo mais
desavergonhado deles. Era tão odiado pelos entreguistas, que foi o último perseguido político, entre os que
se asilaram em 1964 na embaixada do Uruguai, a receber salvo-conduto, um documento, como vimos,
obrigatório pela Convenção de Havana (e necessário para que o asilado não fosse preso no caminho entre
a embaixada e o aeroporto, ou antes que o avião deixasse o território e o espaço aéreo do país).
Eloy foi demitido da Caixa Econômica Federal, porém, ao fim do IPM da Caixa, por falta de provas,
foi readmitido, embora aposentado compulsoriamente. O que não impediu a ditadura de prendê-lo,
quando voltou ao Brasil, em março de 1965.
Diante de versões totalmente disparatadas, geralmente favoráveis a Lacerda, e injustas para com
Eloy, somos obrigados a abordar a sua volta.
Na época, Lacerda apresentou-se como libertador de seu adversário – detido na escala que o avião
em que viajava fez em São Paulo e depois transferido para o DOPS do Rio, chefiado por um torturador
lacerdista, Cecil Borer. A pantomina aprontada por Lacerda na televisão, aparecendo ao lado do vicegovernador cassado, e suas declarações (“não sou carcereiro de ninguém”), sem que pudesse haver
nenhum contraponto de Eloy, não ajudaram a imagem deste.
Mas quem assistiu à cena pela TV pôde perceber que Eloy não estava à vontade – permaneceu
sério, constrangido, e não declarou nada que negasse as convicções que esposara por tantos anos. Hoje, é
difícil criticá-lo por não suportar o exílio.
A “libertação” de Eloy por Lacerda foi uma palhaçada – como disse o editorial da “Última Hora” de
17 de março de 1965, para Lacerda “pouco importava a legalidade ou a ilegalidade da prisão do sr. Elói
121
Dutra”, mas “a grande farsa teatral adrede preparada pelos agentes publicitários do Palácio da
Guanabara. E ele, como uma Sara Bernhardt rediviva, montou a grande ‘mis-em-scène’”.
Talvez haja alguma superestimação dos talentos histriônicos de Lacerda – mas é compreensível,
naquele momento.
O próprio Lacerda comentou que Eloy seria preso outra vez, o que ocorreu quatro horas depois de
“libertado”, quando a casa de seu pai, onde repousava, foi cercada por “um jipe com dois soldados
armados de metralhadora, um tenente e um sargento, e um caminhão com 11 soldados também armados
de metralhadora”. Tudo isso para prender um homem (v. a fotografia desse contingente na primeira
página da UH de 17/03/1965).
Até o líder udenista Adauto Lúcio Cardoso protestou contra o que chamou “ato de demasia, pois
nada ficou provado, até agora, contra o sr. Eloy Dutra”.
Eloy ficaria incomunicável – sem contato nem com seu advogado – durante um mês, até 13 de abril.
Por último, algumas anotações pessoais.
Este texto começou a ser escrito como um ensaio sobre cultura nacional e política cultural. Numa
viagem para cumprir um compromisso familiar, tive uma conversa muito interessante sobre esse assunto
com meu filho – que é um rapaz muito inteligente e perspicaz. (Aliás, a minha filha também é muito
inteligente e perspicaz. De onde se conclui que eles podem ser diferentes dos filhos de outros, mas eu sou
igual a todos os pais.)
No entanto, quanto mais eu tentava, no projetado ensaio, entender algumas coisas da época atual,
mais eu sentia necessidade de melhorar meu conhecimento do período anterior ao golpe de Estado de
1964. Para aumentar essa necessidade, ao mesmo tempo (ou quase, porque ao mesmo tempo é impossível)
eu estava escrevendo um texto sobre as confusões entre conceitos como “nacional” e “local”, confusões
que tornaram-se especialmente abundantes no governo Dilma, onde se considera que o “conteúdo local”
(isto é, produzido ou montado, sobretudo, por qualquer empresa estrangeira instalada no país) é mais
importante que o caráter nacional (a produção das empresas genuinamente nacionais) – daí a
substituição, à moda tucana, do “nacional” pelo “local” como critério de algumas compras estatais (vejase, por exemplo, a lista de fornecedores “locais” que a presidente da Petrobrás nomeada por Dilma, citou
logo após a sua posse: 19 empresas, das quais 17 são filiais de multinacionais – v. HP 04/07/2012).
A relação entre este problema e as vicissitudes da cultura nacional me parecia evidente.
Assim, a lista da senhora Foster seria considerada um escárnio antes de 1964. A essência da
questão era considerada óbvia para os pensadores nacionais-desenvolvimentistas. Por exemplo, quando se
abordou o problema do consumo, nos países dependentes, de “produtos diretamente exportados das
metrópoles ou indiretamente exportados, isto é, fabricados no local por empresas estrangeiras,
que arrecadam, sob mil disfarces financeiros, o tributo da servidão econômica do vassalo subdesenvolvido ”
(cf. Álvaro Vieira Pinto, “O Conceito de Tecnologia”, V. 1, Ed. Contraponto, 1ª ed., Rio, 2005, págs.
269/270, grifo nosso).
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Ou, na mesma obra, quando o autor se refere aos problemas ideológicos de grupos sociais de um
país dependente “ao absorverem os produtos técnicos, direta ou indiretamente importados”, isto é,
montados localmente por filiais de empresas externas (op. cit., pág. 271, grifo nosso).
Achar que as importações devem (ou podem) ser substituídas pela montagem das filiais de
multinacionais, equivale à velha troca de seis por meia dúzia – tanto do ponto de vista estratégico (ou seja,
sob o ângulo do desenvolvimento) quanto conjuntural: basta ver o pântano a que essa política nos
conduziu.
Como consequência da necessidade de compreender esses problemas, acabei por abandonar os dois
textos e escrever um que não tinha, a princípio, intenção de escrever.
A conclusão que se pode tirar é clara: para que o nosso país cresça, econômica e culturalmente, é
preciso recuperar inteiramente a ideia de que somos uma nação. Esta recuperação estava em processo
acelerado – após a escolha de Tancredo como candidato popular à Presidência, a derrubada da ditadura e
a Constituição de 1988 – quando as repercussões dentro do Brasil dos acontecimentos no Leste europeu
provocaram uma desacelerada e mesmo uma travada. Como nada está parado, o segundo mandato do
presidente Lula demonstrou, ainda que parcialmente, que somos uma nação e devemos ser uma nação. O
recuo do governo Dilma, com as consequências que se agravam cada vez mais, é, também, embora pelo
lado negativo, uma demonstração dessa verdade.
Quanto ao passado, minha rememoração especialmente atroz daquela época é a de ver amigos
separados, exatamente, pela amizade. Deve ter sido em 1965 ou 1966: entrei com minha mãe em uma
agência bancária – na memória, me parece ter sido a filial carioca do antigo Banco da Província do Rio
Grande do Sul, mas pode ser uma confusão mnemônica, depois de tantos anos.
No banco, estava um amigo de meus pais, Mário Lago, que olhou para minha mãe, sorriu
discretamente, e saiu do banco sem falar com ela - que teve a mesma reação. Mário, preso pela ditadura
em 1964, temia complicar a vida da amiga, se estivesse sendo vigiado – o que, provavelmente, era verdade.
Pensei, inicialmente, em dedicar este texto aos que vieram depois da minha geração, para que
conhecessem algo do que vivemos, um pouco ao modo de Brecht em “Aos que vão nascer”.
No entanto, algo me impede de fazê-lo – e as novas gerações compreenderão, certamente, que têm a
vida pela frente, portanto, podem dispensar, por enquanto, uma dedicatória.
Em abril de 1985, depois do falecimento de minha mãe, eu estava no Rio quando recebi um recado,
através de meu pai, da Drª Eline Mochel – a quem já me referi, ao relatar as perseguições ao seu cunhado,
Masao Goto, no Instituto Oswaldo Cruz.
A Drª Eline era uma das melhores amigas de minha mãe, mas, desde a fundação de Brasília, saíra
do Rio – ela era médica da Câmara dos Deputados.
Porém, em abril de 1985, logo depois da derrubada da ditadura, ela também estava no Rio.
Conservara um apartamento em Copacabana – e foi lá que a encontrei, com o marido, Leopoldo.
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Os móveis eram antigos – e eu ainda não tinha descoberto que os móveis tendem a envelhecer com
os moradores da casa, pois ninguém muda de móveis de acordo com a moda.
Ela estava com mais de 70 anos e enxergava pouco. Foi um encontro muito triste.
Entretanto, depois de sair do apartamento, uma ideia veio-me à cabeça, algo que devia ter
percebido, porém só naquele momento ficou claro: a minha geração, que sempre achei muito sacrificada
pela instalação da ditadura – pois teve que, quase de repente, mudar seus planos e arriscar-se no combate
pela liberdade, em que muitos tiveram de enfrentar as prisões, as torturas e a morte – não fora a principal
prejudicada com aqueles acontecimentos.
Pelo contrário, a geração anterior – a dos meus pais – fora o alvo do golpe e da ditadura. Foi muito
mais difícil para ela, gerada, formada, crescida no ambiente do nacional-desenvolvimentismo, enfrentar
uma ditadura que era a negação dos valores que constituíam o seu patrimônio cultural e moral.
A derrubada da ditadura tinha, então, um significado especial para esses combatentes mais antigos,
que fizeram o que puderam para resistir – nem que fosse, no caso de muitos, criar seus filhos com honra,
humanidade e amor pelo país.
Portanto, é a esses que dedico este texto.
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