Pirandello e o problema da identidade

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Pirandello e o problema da identidade
Pirandello e o problema da identidade
por Rodolfo A. L. Barros
Pirandello no Brasil
Com pequena exceção no meio teatral, a obra do escritor italiano Luigi Pirandello mantémse ainda pouco conhecida pelo grande público brasileiro e pouco discutida nos círculos
críticos acadêmicos e jornalísticos. Se de um lado suas peças de dramaturgia receberam um
número de montagens considerável e certo prestígio, capaz de causar alguma influência na
produção de autores nacionais, como no caso de Luís Alberto de Abreu, no que diz respeito
à Literatura essa atuação se torna menos visível e verificável.
Para ilustrar esse quadro basta apontar alguns fragmentos. No ensaio Presença de
Pirandello no Brasil, de Annateresa e Mariarosaria Fabris, tem-se:
“Embora seja um autor bastante estudado nos cursos de Literatura Italiana, Pirandello
nunca foi objeto de uma análise sistemática que evidenciasse sua fortuna crítica no Brasil
ou o possível diálogo de dramaturgos e escritores brasileiros com sua vasta produção”.
Ou, no Apêndice da tradução de Um, Nenhum, Cem Mil (2001):
“A crítica sobre Luigi Pirandello hoje disponível no país se encontra dispersa em
apresentações, prefácios e ensaios, faltando ao autor brasileiro textos que analisem o
conjunto da obra do autor siciliano...”
Soma-se a essa lacuna crítica a dificuldade de acesso a suas obras traduzidas no país. Afora
os trabalhos mais conhecidos, como o romance O falecido Mattia Pascal e a peça Seis
Personagens em Busca de um Autor, ambos da Editora Abril, as demais traduções antigas
(que datam de 30 até finais de 60) de seus romances e novelas, bem como outras peças e
textos críticos, não se encontram facilmente nas prateleiras de bibliotecas públicas e em
sêbos. O estímulo da disseminação das idéias do autor siciliano parece negligenciado em
suas duas vias principais, tanto na fonte como no suporte teórico.
Não obstante essas duras constatações, recentemente algumas mudanças editoriais têm
apresentado uma contrapartida. O lançamento da coletânea de 11 textos, pela editora
Perspectiva, com título Pirandello do Teatro no Teatro (2000), organizado pelo editor J.
Guinsburg; o romance traduzido Um, Nenhum, Cem Mil (2001), pela Cosac & Naify; e os
trabalhos em prosa, na coletânea de contos extraído das Novelas Para um Ano, O Velho
Deus, pela coleção Letras Italianas, da Berlendis & Vertecchia constituem exemplos
louváveis de edições que unem a qualidade da tradução com um mínimo de suporte crítico
para os leitores. Tudo leva a crer que Pirandello vive um momento de revigoramento e
propagação de suas obras em nosso país, o que pode levar a um reaquecimento dos estudos
críticos em torno de sua criação e uma maior divulgação de seu talento nos grandes
aparelhos de informação.
Notas Biográficas
Antes de uma incursão nos assuntos pirandellianos, um pequeno apanhado biográfico pode
ajudar a situar melhor o autor e seus temas.
Nasceu em 1867, na região de Agrigento, Sicília. Seu pai, Stefano Pirandello, um próspero
negociante, era proprietário de uma mina de enxofre, garantindo uma vida estável e uma
sólida formação intelectual ao filho. Luigi Pirandello iniciou seus estudos na cidade de
Palermo, mudando-se depois para Roma a fim de cursar a faculdade de Letras. Por motivos
de desentendimento acadêmico com um dos professores, transferiu-se para a cidade alemã
de Bonn, na qual licenciou-se em filologia com a tese “Sons e Evolução Fonética do
Dialeto de Agrigento” (1891). Ainda sob influência do pai, que arranjou o casamento por
interesses financeiros, casou-se com Maria Antonieta Portulano (1894), filha de um sócio
dos negócios da família. Garantido pela riqueza das duas famílias, Pirandello iniciou sua
vida intelectual com tranqüilidade. Nessa época nasceram seus três filhos: Stefano (1895),
Lietta (1897) e Fausto (1897). Em 1897 foi professor de Literatura Italiana na faculdade
alemã, atividade que se estendeu até 1921 em diversos lugares e até mesmo como professor
particular. Em 1903 um terremoto causa uma enchente nas minas de enxofre, levando sua
família à falência. A partir daí a vida de Pirandello transforma-se radicalmente. Sofre sérios
problemas financeiros e é obrigado a trabalhar de maneira intensa para garantir o sustento
da família. Sua esposa Antonieta não consegue superar o trauma da falência e passa a
apresentar diversos distúrbios emocionais que culminariam na loucura e internação (1919).
Seu filho Stefano, cai prisioneiro na primeira guerra mundial, sendo libertado apenas em
1918. Mesmo diante dessas adversidades, Pirandello continua sua produção artística
lançando O Falecido Mattia Pascal, romance que o lança na cena artística italiana. Em
seguida, mesmo enfatizando a produção de romances e contos, de forma paralela, começa a
produzir textos de dramaturgia e alcança grande sucesso em vida com sua peça mais
conhecida: Seis Personagens em Busca de Um autor. Com o sucesso obtido na carreira de
dramaturgia, em 1923 filia-se ao partido fascista e ajuda a fundar o Teatro Nacional de
Roma. Na esteira do primeiro sucesso, escreve mais duas peças: Cada Um a Seu Modo, e
Esta Noite se Apresenta de Improviso, que reunidas formam a trilogia que o próprio autor
intitulou: “do teatro no teatro”. Suas peças são apresentadas em diversos centros culturais,
tais como Paris, e com fama consolidada recebe em 1934 o Prêmio Nobel devido aos seus
avanços e contribuições às Artes Dramáticas. Nesta época consegue lançar um de seus
principais romances: Um, Nenhum, Cem Mil (1934). Em 1936 falece vitimado por uma
forte pneumonia.
A Identidade como Tema Artístico
Para situar a questão da identidade na ampla produção artística de Pirandello, lança-se
como pontos basilares dessa reflexão as obras: o ensaio O Humorismo (1908), o drama Seis
Personagens em Busca de um Autor (1921), e seu ultimo romance Um, Nenhum, Cem Mil
(1934). Tal escolha se justifica por abarcar, nesses trabalhos, os elementos criativos que
perpassam e envolvem toda a sua reflexão estética do início ao fim da carreira,
possibilitando uma análise com um fio condutor que relaciona seus temas.
A reflexão em comum nessas obras distintas é o problema da identidade. Essa problemática
aparece inicialmente ligada ao conceito de humor, sobretudo na elaboração teórica do
sentimento do contrário; em seguida, no confronto entre a verdade da personagem e a
“verdade” do ser humano, na peça dramática, e, por fim, no romance derradeiro, com a
oposição entre a frágil verdade subjetiva e as diversas projeções das personalidades sociais.
Descansa no fundo de todas essas oposições a antiga antítese romântica entre natureza e
cultura, na qual a essência do ser humano é múltipla e fluída, não sendo possível fixá-la
numa forma social ou estável. De forma geral, independente do valor da resposta que
Pirandello encontra (ou sugere) para sanar essa questão, seu modo de explorar, criar e
sofisticar as diversas possibilidades desse tema, e dele derivar motivos artísticos
tragicômicos, constitui sua grande contribuição de gênio criador.
Feito esse apanhado geral, que serve apenas de roteiro, passa-se a uma análise mais detalha
destes três passos fundamentais.
O conceito de Humor e o Sentimento do Contrário
Como foi constatado nos itens acima, a falta de “estudos críticos aprofundados e
sistemáticos” em nosso país é um grande obstáculo para a compreensão do autor italiano.
Para sanar parcialmente essa lacuna, talvez nenhum outro texto se encaixe melhor nessa
função tal como o ensaio O Humorismo, de 1908. Nele se encontra a faceta de pensador e
investigador de Pirandello, que por meio de uma discussão estética para abordar seu objeto,
acaba por lançar um excelente suporte teórico de sua própria criação. Na primeira parte
desta obra, faz uma retomada dos diversos sentidos da palavra humor ao longo da história,
bem como estabelece a diferença deste em relação às outras idéias contíguas tais como a
ironia e a sátira. Na segunda parte, anunciada como Essência, Caracteres e Matéria do
Humorismo, o ensaísta entra definitivamente no tema de sua predileção.
Para explicar a essência do humorismo, Pirandello expõe a idéia do cômico, a qual julga
anterior ao humor. O cômico acontece, segundo relata o ensaísta, no momento em que o
individuo tem uma sensação de estranhamento diante de algum fato curioso. Para explicar o
que poderia figurar como um tipo de fato assim, dá o exemplo de uma senhora muito velha
que se veste de maneira contrária ao normal, com características de mocinha e com
maquiagem exagerada em todo rosto. No instante em que alguém percebe a senhora, e nela
constata um comportamento completamente contrário a sua natureza, nesse individuo se
manifesta um instinto de advertência que lhe causa riso. O cômico seria, portanto, apenas
esse senso de advertência, diante do ridículo, que desencadeia o riso.
Desta forma, a comicidade figura encontra-se num estágio primeiro e simples de mera
advertência do contrário. Mas, de acordo com Pirandello, pode-se ir além disso. Se nessa
mesma situação, em que o indivíduo visualiza a velhinha e ri, se este continua a sua
reflexão, buscando entender todos os elementos que levaram a velhinha a se comportar
daquela maneira, nesse “ir além” já se está caminhando para o sentimento do contrário, que
é o elemento essencial que caracteriza o humorismo.
Enquanto nas outras formas de riso, como no cômico e na sátira, tem-se apenas uma reação
que descobre a contradição e aplica-lhe um senso de reprovação, no humor há a tentativa de
compreensão e reflexão daquela situação e da fragilidade envolvida nela. Nas palavras de
Pirandello:
“Ora, a reflexão, sim, é capaz de descobrir essa construção ilusória tanto ao cômico e ao
satírico quanto ao humorista. Mas o cômico somente há de rir dela, contentando-se em
desinflar essa metáfora de nós mesmos, edificada pela ilusão espontânea; o satírico
desdenhará dela; o humorista não: através do ridículo dessa descoberta verá o lado sério e
doloroso; desmontará essa construção, mas não para dela rir unicamente; e em vez de
desdenhar dela, talvez rindo, compadecer-se-á.”
Com esta operação reflexiva que está inserida na atividade do humorista, segundo
Pirandello, pode-se apontar as diversas contradições e fraquezas contidas nas relações
sociais e até mesmo para a idéia que cada um faz de si mesmo:
“Comecemos por aquela que a ilusão faz a cada um de nós, isto é, pela construção que cada
um, por obra da ilusão, faz de si mesmo. Vemo-nos nós em nossa verdadeira e lhana
realidade, tal como somos, ou não preferencialmente como quiséramos ser? Por um
espontâneo artifício interior, fruto de secretas tendências ou de inconscientes imitações, não
nos cremos de boa fé diferentes do que substancialmente somos? E pensamos, atuamos,
vivemos segundo essa interpretação fictícia e, no entanto, sincera, de nós mesmos”.
Neste ponto, a discussão sobre a natureza do humor começa a tocar especificamente a
questão da identidade. A reflexão do humor, caracterizada pelo sentimento do contrário,
que tenta descobrir os mais profundos motivos de uma pessoa, marcada por um forte senso
de alteridade, volta-se ao próprio indivíduo. E, nesse esforço de ver-se a si mesmo
(movimento de tentar se colocar fora de si, para conseguir ver-se como um outro), o
indivíduo consegue captar apenas uma parcela de verdade do seu ser. A sua própria
consciência de si é parcial, porque a essência do ser, conforme a caracteriza Pirandello, é
uma natureza de fluxo constante:
“A vida é um fluxo contínuo que nós procuramos deter, fixar em formas estáveis e
determinadas, dentro e fora de nós, porque nós já somos formas fixadas, formas que se
movem em meio a outras imóveis, e que por isso podem seguir o fluxo da vida, até que,
enrijecendo-se sucessivamente, o movimento, já pouco a pouco relentado, não cessa. As
formas, em que procuramos deter, fixar em nós esse fluxo contínuo, são os conceitos, são
os ideais em relação aos quais queremos nos conservar coerentes, todas as ficções que nós
criamos, as condições, o estado em que tendemos a estabelecer-nos. Mas dentro de nós
mesmos, naquilo que chamamos alma, e que é a vida em nós, o fluxo continua, indistinto,
sob os diques, além dos limites que nós impomos, ao compor-nos uma consciência, ao
construir-nos uma personalidade.”
A partir dessa reflexão do humor, que se inicia na experiência do sentimento do contrário
voltada a si mesma, surge, então, uma concepção de identidade, que significa uma mera
fixação (constituída de forma artificial, por isso ficção) de um determinado momento ou
aspecto de um ser múltiplo. Será com base nessa noção de identidade estabelecida, já em
1908, que Pirandello desenvolverá a sua ficção. Nas obras posteriores que o consagrariam,
pode-se ver que muitas idéias já estavam antecipadas de forma conceitual nas suas
considerações sobre o humor.
A Verdade da Personagem e a Verdade do Ser
Em sua peça de teatro mais conhecida, Seis Personagens em Busca de um Autor, Pirandello
nos apresenta a estória de uma família de personagens que invade o ensaio de uma
companhia teatral. De acordo com o artifício da ficção, as personagens estão
consubstanciadas, agindo e atuando no mundo real, mas sofrem de uma forte lacuna de sua
própria constituição, que é o fato de sentirem a necessidade de encontrar um lugar ou uma
estória em que possam viver seus “dramas internos”. Isto acontece, dentro do contexto da
peça, por conta da negligência do escritor, que os criou, dando um conflito e uma vida
interna a cada um deles, mas que desistiu de inventar uma estória necessária para fazê-los
viver.
A tensão do drama está contida no espanto e na dificuldade em que o diretor da companhia
e os atores têm em compreender a “vida” extraordinária dessas personagens. Deste ponto,
Pirandello explora diversas situações limites, que oscilam entre o trágico e o cômico, e, ao
mesmo tempo, discute diversos aspectos da natureza da personagem de ficção.
O principal ponto de partida do dramaturgo é evidenciar que a “verdade” da personagem de
ficção pode, muitas vezes, ser mais forte do que a “verdade” do ser humano. A personagem
de ficção assim figura, pois ela está fixada em todos os seus traços e seus conflitos,
enquanto o ser humano é uma entidade em constante transformação e variação. No decorrer
desse confronto entre essas duas “verdades”, fica evidenciado também que o que garante a
“vida da personagem” e a “noção de identidade” num indivíduo é um mesmo elemento:
uma ficção, uma construção artificial. Enquanto na personagem esta construção permanece
pronta e acabada, no ser humano, por estar vivo, ela permance sempre indefinida e
inacabada.
Numa passagem da peça, a discussão da personagem com o diretor ilustra esse conflito:
“O PAI- Acreditava que já tivesse compreendido isso desde o início.
O DIRETOR- Mais real do que eu?
O PAI- Se a sua realidade pode mudar de hoje para amanhã...
O DIRETOR- Mas se sabe que pode mudar, é claro! Muda continuamente; como a de
todos!
O PAI (com um grito)- Mas a nossa não, senhor! Percebe? A diferença é esta! Não muda,
não pode mudar, nem ser outra, jamais, por já estar fixada- assim- “esta”- para sempre- (é
terrível senhor!) realidade imutável, que deveria lhes dar um arrepio ao se aproximarem de
nós!”
Em um outro texto de apoio, o ensaio A Personagem do Romance, de Antônio Cândido, a
questão da fluência do ser se aprofunda:
“Quando abordamos o conhecimento direto das pessoas, um dos dados fundamentais do
problema é o contraste entre a continuidade relativa da percepção física ( em que fundamos
o nosso conhecimento) e a descontinuidade da percepção, digamos, espirítual, que parece
freqüentemente romper com a unidade antes apreendida. No ser uno que a vista ou o
contato nos apresenta, a conviência espiritual mostra uma variedade de modos-de-ser, de
qualidades por vezes contraditórias.”
“Na vida, estabelecemos uma interpretação de cada pessoa, a fim de podermos conferir
certa unidade à sua diversificação essencial, à sucessão dos seus modos-de-ser. No
romance, o escritor estabelece algo mais coeso, menos variável, que é a lógica da
personagem. A nossa interpretação dos seres é mais fluída, variando de acordo com o
tempo ou as condições da conduta. No romance, podemos variar relativamente a nossa
interpretação da personagem; mas o escritor lhe deu, desde logo, uma linha de coerência
fixada para sempre, delimitando a curva da sua existência e a natureza de seu modo-deser.”
Ao final deste confronto entre personagem e ser humano, mais do que um vitorioso ou um
ponto esclarecido dessa questão, resulta, com efeito, a aproximação das duas entidades. A
personagem invade a realidade do ser, pois a identidade ou personalidade de qualquer
pessoa viva é uma construção de uma mesma matéria, de natureza fictícia, que funciona
tanto no mundo social como na fantasia. Do outro lado, a multiplicidade do ser enriquece a
elaboração da personagem, imprime nela uma complexidade maior e mais difícil de ser
identificada, abrindo espaço para todo um aprimoramento psicológico e emocional da
ficção, que a torna mais humana.
A fragilidade da Verdade Subjetiva
Na continuação de sua produção artística, Um, Nenhum, Cem Mil é o ultimo romance de
Pirandello, no qual é possível constatar uma maturidade da discussão sobre a identidade e
uma abordagem matizada que ilumina novos problemas do ser. Além de sintetizar muitos
problemas da personalidade, já abordados em obras anteriores, neste ultimo o seu
protagonista se apresenta fustigado por novas dificuldades. Há um avanço na maneira com
que Pirandello aborda o mesmo tema: se nas obras anteriores a tensão surge do conflito
interno do eu (que a todo momento tenta se descobrir e descobre sua natureza
fragmentária), neste romance o protagonista ( além da consciência dessa incompletude) é
obrigado a lidar com os inúmeros enforques sociais e exteriores que são lançados sobre ele
pela sociedade.
A narrativa se inicia com Vitangelo Moscarda que, ao se olhar no espelho antes de ir ao
trabalho, descobre, por palpite despretensioso da mulher, que seu nariz tem uma leve queda
para o lado direito. Este pequeno e ridículo fato é suficiente para gerar nele uma crise de
identidade terrível. Obriga-o a reformular o modo com o qual ele mesmo se concebia e
repensar todas as suas idéias sobre o seu passado. Vitangelo percebe que muitos apelidos
que recebeu na juventude, os quais sempre achou despropositados ou incoerentes, na
verdade, tinham estreita ligação com suas características físicas e seu modo de ser. Ele
nota, por meio dessa crise, que a própria idéia que tinha de si era parcial e incompleta.
Avalia que toda a tentativa de descobrir a verdade sobre ele mesmo é inútil. E, pior, que a
sua representação de si mesmo, tinha exatamente o mesmo valor das outras representações
que as outras pessoas faziam dele.
A partir disso, então, como fica, ou onde se encontra a verdade de Vitangelo Moscarda?
Nenhuma interpretação exterior corresponde ao seu ser, nem ele mesmo consegue elaborar
uma imagem que dê conta de dizer o que ele é. O protagonista sente-se como um fantasma
dentro de um corpo, no qual nem ele mesmo é capaz de se identificar. Passa a sofrer com
essa constatação e ao mesmo tempo fica indignado com modo insensível e cínico com o
qual as outras pessoas se comportam. Observando as pessoas mais próximas, como sua
mulher e seus sócios, se sente completamente apavorado diante da harmonia e tranqüilidade
com que cada um se concebe como um ser único e coerente, que, ao mesmo tempo,
apresentam contradições e comportamentos contrários a esta interpretação própria.
A crise de Vitangelo leva-o a adotar uma postura satírica. Sua “essência de ser”, sem se
sentir presa a nenhuma interpretação, nem mesmo a que ele poderia criar para si, resolve
jogar e brincar com as diversas personas que lançam sobre ele. Decide lutar contra todas as
imagens que a sociedade tinha sobre ele, e das quais não se conformava.
Por ser herdeiro de um banco, Vitangelo carregava a imagem de usurário na cidade. Mas,
segundo ele, essa imagem era injusta: ele mesmo, nunca se preocupara em enriquecer ou
aumentar os lucros do banco. A imagem de usurário era uma conseqüência de seu pai, que
possuía sim esse estigma, mas que ao morrer, além do banco, lhe transmitira essa imagem
negativa. Como então fugir desse enquadramento social injusto?
Sem estragar as surpresas e reviravoltas do romance, na apresentação desse conflito fica
nítida a tônica da narrativa e da nova forma com que Pirandello orientará a questão da
subjetividade: mostra-a em luta brutal com as inúmeras imagens que o corpo social lança
sobre ela, e, ilustra como essas imagens podem engessar o ser humano. Com exceção de
Vitangelo, todos os demais personagens estão tranqüilos e acomodados com uma imagem
única, mas, ao mesmo tempo, estão presos e limitados por aquele papel que a sociedade os
conferiu. Qualquer oscilação, desvio ou alteração resulta numa reação negativa, até mesmo
em retaliação, e pode ser interpretada como loucura ou rebeldia.
Se nas duas obras anteriores, O Humorismo e Seis Personagens em Busca de um Autor, o
problema da identidade se constitui e, em seguida, se choca consigo mesmo, já no romance
o conflito se agrava, colocando essa “identidade” que já é frágil, diante de um ataque
constante do coletivo social: como o ser vai poder se afirmar diante dos outros, já que ele
mesmo está ciente da sua característica fragmentária? Restaria alguma chance de luta entre
essas duas entidades? Mas, já que a identidade se debate em si mesma, por que algum
indivíduo deveria seguir alguma regra ou manter sua conduta dentro de certos parâmetros?
Eis algumas questões que podem ser levantadas após a leitura do romance. Em resposta,
talvez, a alguma delas, Pirandello dá uma pista:
“(...) não sou um autor de farsas, mas um autor de tragédias. E a vida não é uma farsa, é
uma tragédia. O aspecto trágico da vida está precisamente nessa lei a que o homem é
forçado a obedecer, a lei que o obriga a ser um. Cada qual pode ser um, nenhum, cem mil,
mas a escolha é um imperativo necessário.”
Rodolfo A. L. Barros é leitor e escreve nas horas vagas.
Marília, outubro de 2003
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