RECEPÇÃO CRÍTICA EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM, DE

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RECEPÇÃO CRÍTICA EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM, DE
IV CONALI - Congresso Nacional de Linguagens em Interação
Múltiplos Olhares
05, 06 e 07 de junho de 2013
ISSN: 1981-8211
RECEPÇÃO CRÍTICA EM PERTO DO CORAÇÃO SELVAGEM, DE CLARICE
LISPECTOR
Maiara Cristina SEGATO (PG/UEM)
Milton Hermes RODRIGUES (OR/UEM)
Introdução
O surgimento de Clarice Lispector no cenário literário brasileiro dos anos 40, com o romance
Perto do coração selvagem, publicado em 1944, representou um verdadeiro impacto para os críticos
da época, desestabilizando as referências romanescas instituídas até então. Sobressaía no panorama
da literatura nacional a ficção regionalista ou ―romance nordestino‖ de José Lins do Rêgo,
Graciliano Ramos, Raquel de Queiroz e Jorge Amado, mais afinada com a denúncia por seu caráter
social, mais ao gosto do leitor, ainda moldada segundo uma sintaxe narrativa tradicional, embora já
na década de 1930 (e com antecedentes) também ganhasse força certa ficção psicologista, com o seu
rol de obras justamente valorizadas, como A menina morta, de Cornélio Penna, e Crônica da casa
assassinada, de Lúcio Cardoso. Essa constatação não tira do livro de Clarice a impressão de
novidade, mesmo em relação a algumas ―transgressões‖ da ficção modernista da década de 1920,
como Macunaíma, de Mário de Andrade, e Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de
Andrade.
Clarice Lispector, já em sua estreia, surpreendeu, entre outros fatores, pela reorientação do
psicologismo, pela intensificação da ―prosa poética‖ e pelas inovações formais como, por exemplo,
a fragmentação e a descontinuidade ―motivacional‖. Tais aspectos balizaram de forma contundente
todo o projeto literário da autora, ou seja, tudo o que ela ainda viria a produzir. Assim, Perto do
coração selvagem aparece como uma obra completamente inovadora dentro do quadro da produção
literária brasileira. Deste modo, os críticos literários, surpresos com a ficção de Clarice Lispector por
fugir do padrão estandardizado de até então, se debruçaram sobre sua obra, em busca de parâmetros
para classificá-la.
Sendo assim, procuramos, neste trabalho, resgatar a recepção crítica inicial (no contexto da
publicação) de Perto do coração selvagem, no que ela propõe, no romance, como inovação, fazendo
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uma leitura revisionista de documentos críticos de Antonio Candido, Sergio Milliet e Álvaro Lins e,
em seguida, de Benedito Nunes e Olga de Sá, críticos que ―reafirmam‖ algumas das considerações
dos primeiros, no entanto, com estudos mais aprofundados.
1. Clarice: primeiras impressões
Clarice, em Perto do coração selvagem, desenvolve a narrativa em dois planos, utilizando
uma técnica simultânea de capítulos ajuntados desordenadamente, fazendo Joana, a protagonista,
saltar da infância para a vida adulta e desta novamente para a infância e adolescência, já que o
tempo que importa é o da memória e o da introspecção, pois, em Clarice, segundo Dinis (2001, p.
95), o tempo ―rompe com o domínio de Cronos‖, ou seja, ―escapa do ciclo cronológico demarcado
pelo relógio‖. A personagem não vive encadeamentos de fatos, mas sim acontecimentos permeados
por fluxos que a atravessa, fazendo com que cada instante seja absolutamente único no tempo, o
―instante-já‖, misturando o passado, presente e futuro. O tempo cronológico perde a razão de ser
ante a intemporalidade da ação, que foge dele num ritmo caprichoso de duração interior
(CANDIDO, 1944, s/p). O fio tênue da fábula cria poucos núcleos de ação, como a infância de
Joana, a perda do pai, as relações com o professor, o casamento, o amante, a separação entre Joana e
o marido, Otávio, a viagem final, uma vez que a história é feita de erupções e rupturas ocasionadas
por reflexões filosóficas em tom poético, cujo único centro é a busca do mistério da própria
existência. É na experiência interior da protagonista, Joana, que a ação romanesca está centrada:
Consciência em crise, a introspecção é o fadário de Joana. Por uma espécie de
necessidade inelutável, quanto mais ela se observa, mais se distancia por seu
próprio ser. A reflexão contínua a que se entrega corta-lhe a espontaneidade dos
sentimentos e a incompatibiliza-a com a fruição pura e simples da vida. As palavras
mesmas. (NUNES, 1995, p. 20)
Um dos primeiro críticos a avaliar a produção de Clarice foi Sergio Milliet em um ensaio
datado em 15 de janeiro de 1944, o qual integra o segundo volume de seu Diário crítico. Nele, o
crítico deixa evidente a satisfação da ―descoberta‖, após ler a página 160 de Perto do coração
selvagem, o que o faz, mesmo desconfiado, continuar a leitura em um interesse que não decai e
confirmar suas primeiras impressões, quanto à riqueza psicológica e a originalidade do estilo da
autora, ―nas constantes observações profundas, ―cristalinas e duras‖ de Joana, na sua capacidade
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introspectiva, na coragem simples com que compreende e expõe a trágica e rica aventura da solidão
humana‖ (MILLIET, 1944, p. 28).
Milliet segue fazendo sua avaliação da obra, apontando que o livro é todo ele numa espécie
de diálogo interior e, ao analisar o perfil da protagonista Joana, enfatiza que para essa heroína há
muitas realidades e todo o seu drama ―nasce mesmo da contradição, do antagonismo de seu mundo
próprio, cheio de significados específicos, com os mundos alheios, ou mais vulgares e
impenetráveis‖ (MILLIET, 1944, p. 28-29).
Além de delinear o perfil psicológico da personagem principal, Milliet se atenta para
algumas questões formais do livro. O crítico considera que Clarice não se enquadrava nem na ficção
psicologista de até então nem na ficção modernista, mas que a escritora havia iniciado um novo
gênero na literatura brasileira, por apresentar uma linguagem em prosa que toma rumos inesperados
e atinge o poético, ou seja, ―a prosa poética‖. Conforme, Dinis (2001, p. 28), as narrativas de Clarice
Lispector situam-se ―no intervalo entre a prosa e a poesia, entre um poema-prosa ou uma prosapoema‖. Desse modo, a estética e a linguagem, centrada na ―prosa poética‖, servem para revelar a
relação entre o sujeito e a realidade. Estilo esse que só havia até aquele momento em certos
escritores franceses e ingleses, o que fez com que Clarice assumisse uma posição de destaque na
nossa literatura.
Tudo isso é contado numa linguagem fácil, poética, que na hesita em tomar pelos
mais inesperados atalhos, em usar das mais inéditas soluções, sem jamais cair
entretanto no hermetismo nem nos modismos modernistas. [...] A obra de Clarisse
Lispector surge no nosso mundo literário como a mais seria tentativa de romance
introspectivo. Pela primeira vez um autor nacional vai alem, nesse campo quase
virgem de nossa literatura, da simples aproximação; pela primeira vez um autor
penetra até o fundo a complexidade psicológica da alma moderna, alcança em cheio
o problema intelectual, vira no avesso, sem piedade nem concessões, uma eriçada
de recalques. (MILLIET, 1944, p. 30-32)
Outro crítico a se posicionar acerca de Perto do coração selvagem foi Antonio Candido em
1944, no jornal Folha da Manhã, nos rodapés Notas de crítica literária. A primeira parte sob a
denominação de ―Língua, pensamento e literatura‖, em 25 de junho de 1944, e a segunda parte, em
16 de julho do mesmo ano, sob a denominação ―Perto do coração selvagem‖. Em seguida, os dois
artigos foram reformulados e publicados sob o título ―Uma tentativa de renovação‖ no livro Brigada
Ligeira.
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Antonio Candido (1944) enxerga em Clarice Lispector laivos de modernidade, pois a jovem
estreante, surgida do anonimato, conforme o próprio crítico, ―aceita a provocação das coisas‖,
colocando ―seriamente o problema do estilo e da expressão‖. Candido inicia suas considerações
enfatizando que, à época da publicação de Perto do coração selvagem, já há algum tempo o quadro
literário estava estabilizado, uma vez que os escritores se contentavam com posições já adquiridas,
apenas um ou outro se arriscava a tentativas mais ousadas.
O crítico teve verdadeiro choque ao ler Perto do coração selvagem, o qual afirma ser uma
tentativa de levar a nossa ―língua canhestra para domínios pouco explorados, forçando-a a adaptarse a um pensamento cheio de mistérios para o qual, se sente, a ficção não é um exercício ou uma
aventura afetiva, mas um instrumento real do espírito apto a nos fazer penetrar em alguns dos
labirintos mais retorcidos da mente‖ (CANDIDO 1944, s/p). Candido, dialogando com a crítica de
Álvaro Lins, deixa claro que se deixarmos de lado as possíveis fontes estrangeiras de inspiração,
permanece o fato de que, dentro na nossa literatura, Perto do coração selvagem é, além de inovador,
―performance de melhor qualidade‖.
Antonio Candido reconheceu que havia presente na escritura de Clarice traços biográficos e
marcas da personalidade feminina ao afirmar que a autora recriava um mundo partindo de suas
próprias emoções e capacidade de interpretação. Contudo, a intenção de Clarice era buscar o sentido
da vida, penetrar no mistério que cerca o homem. Candido considera que o ritmo da narrativa ―é de
procura, de penetração que permite uma tensão psicológica‖, em que há a busca de um vocabulário
que se amoldasse a uma expressão sutil e tensa, de tal forma que a língua tivesse o mesmo caráter
dramático do entrecho. Desse modo, a esse ―gênero‖ de romance acentuadamente psicológico, o
crítico denominou ―romance de aproximação‖. Concluindo, então, a sua avaliação, Antonio Candido
pontua que o objetivo estilístico está diretamente ligado aos meios que se utiliza para enunciar um
pensamento.
A autora soube criar o estilo conveniente para o que tinha a dizer. Soube
transformar em valores as palavras nas quais muitos não vêm mais do que sons ou
sinais. A intensidade com que sabe escrever e a rara capacidade da vida interior
poderão fazer desta jovem escritora um dos valores mais sólidos e, sobretudo, mais
originais da nossa literatura. (CANDIDO, 1944, s/p)
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Já Álvaro Lins (1946), outro crítico literário, considerou Perto do coração selvagem um
romance original nas nossas letras por ser a primeira experiência definida do moderno romance
lírico, embora não o seja na literatura universal, aproximando-o, assim, do romance psicológico de
Virgínia Woolf e James Joyce. O que liga o romance de Clarice Lispector a esses autores são
processos, como o monólogo interior, a não linearidade na escrita, e a questão do tempo e do espaço,
sendo o tempo dirigido pelo fluxo da consciência e o espaço configurado para auxiliar na
compreensão dos aspectos psicológicos das personagens. A correlação dos estados subjetivos
substitui a correlação dos estados de fato. Para Lins, a mistura de lirismo e realismo situaria o
romance na categoria do "realismo mágico", pois, segundo ele, se define pela apresentação da
realidade em um caráter de sonho, gerando uma estranha realidade de ficção.
O pressuposto do crítico é de que a obra se insere na chamada "literatura feminina", marcada
pela exagerada projeção lírica e personalidade narcísica da autora, o que, segundo Lins, é próprio do
caráter das mulheres: ―Há neste livro, além da experiência que representa, dois aspectos a se fixar: a
personalidade da sua autora e a realidade da sua obra. [...] O que se deve fixar, antes de tudo, em
Perto do coração selvagem é exatamente a poderosa personalidade da sua autora, a sua estranha
natureza humana‖ (LINS, 1946, p. 111-112). Sendo assim, por conta da personalidade da autora e da
realidade da obra, o crítico afirma que, ao terminar sua segunda leitura do romance, teve a mesma
impressão: ―a de que ele não estava realizado, a de que estava incompleta e inacabada a sua
estrutura como obra de ficção‖ (LINS, 1946, p. 111).
Embora Lins (1946) reconheça o romance de estreia de Clarice como uma experiência
inovadora dentro da literatura brasileira e destaque como aspecto positivo a ―audácia estilística‖ da
escritora, seu ―amadurecimento de espírito‖ e ―poder de inteligência acima da sua idade‖, o crítico
assinala que, pelo fato de o romance apresentar ―deficiências‖, Clarice apelou para os recursos da
poesia ao lhe faltarem os da estrutura do romance, revelando, assim, uma concepção tradicional.
O que sucede às vezes com o livro da sra Clarisse Lispector, o romance perde o seu
ponto de apoio, e se afasta do seu centro de equilíbrio. Perde o seu contato com a
terra, com o animal humano. [...] faltam-lhe, como romance, a criação de um
ambiente mais definido e estruturado e a existência de personagens como seres
vivos. [...] o romance da sra. Clarisse Lispector está cheio de imagens, mas sem
unidade íntima. Aqui estão os pedaços de um grande romance, mas não o grande
romance que a autora, sem dúvida, poderá escrever mais tarde. (LINS, 1946, p.113114)
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Mais tarde, quando Clarice publicou O lustre, Lins escreve mais um artigo a respeito da
produção da autora, dizendo que ela se destaca principalmente pela audaciosa combinação de
vocábulos e pelo jogo imprevisto entre certas palavras. Contudo, tal estilo apresenta resultados
positivos quando exprime ―sensações espontâneas‖, mas se revela insuficiente tenta transmitir
processos de ―análise psicológica de profundidade‖. Em Clarice Lispector há ―uma excessiva
exuberância verbal, com uma inflação de adjetivos na frente e nas costas dos substantivos, com o
gosto da palavra pela palavra a gerar um verdadeiro verbalismo‖ (LINS, 1946, s/p). Lins conclui que
tanto Perto do coração selvagem quanto O lustre parecem ser pedaços de romances, mutilados e
incompletos, dando a sensação ―de que alguma coisa essencial deixou de ser captada ou dominada
pela autora no processo da arte de ficção‖ (LINS, 1946, s/p).
Como podemos perceber, para Álvaro Lins, faltou em Perto do coração selvagem a estrutura
romanesca naquilo que concerne à descontinuidade do espaço e do tempo e personagens mais
definidos. No entanto, isso ocorre no romance justamente por tratar da mais profunda sensação de
existência, de forma a estruturar o mundo na impossibilidade da linguagem, pois a fragmentariedade
do texto mostra a fragmentariedade do sujeito e da própria vida ―que valem como sintomas de crise
da ficção introspectiva‖ (BOSI, 1989, p. 474), isto é, uma tensão psicológica que reflete na tensão
linguística, pois ―o envolvimento do personagem com a linguagem expressa um ritual presente‖ nas
narrativas clariceanas (SANT’ANNA, 1973, p. 196). Portanto, o inacabamento da narrativa
representa a existência inacabada da personagem principal, Joana.
De forma simplificada, expomos até aqui as diferenças e semelhanças entre as leituras de
Sérgio Milliet, Antonio Candido e Álvaro Lins. Nesse sentido, conforme já apontado pelos
primeiros críticos, podemos dizer que Clarice Lispector, em sua prosa inicial, Perto do coração
selvagem, ―vira do avesso‖ a tradição romanesca, quanto ao tempo, espaço, enredo, sobretudo,
quanto à linguagem empregada, a qual é extremamente filosófica e intensamente lírica, visto que a
fusão desses dois elementos é o que a torna inovadora no quadro literário nacional. A título de
exemplificação, observamos essa fusão de forma bem explícita no capítulo ―O banho‖, um dos mais
densos de Perto do coração selvagem:
Imerge na banheira como no mar. Um mundo morno se fecha sobre ela
silenciosamente, quietamente. [...] Seres nascidos no mundo como a água. Agita-se,
procura fugir. Tudo — diz devagar como entregando uma coisa, perscrutando-se
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sem se entender. Tudo. E essa palavra é paz, grave e incompreensível como um
ritual. A água cobre seu corpo. Mas o que houve? Murmura baixinho, diz sílabas
mornas, fundidas. O quarto de banho é indeciso, quase morto. As coisas e as
paredes cederam, se adoçam e diluem em fumaças. A água esfria ligeiramente sobre
sua pele e ela estremece de medo e desconforto. Quando emerge da banheira é uma
desconhecida que não sabe o que sentir. [...] O que importa afinal: viver ou saber
que se está vivendo? — Palavras muito puras, gotas de cristal. Sinto a forma
brilhante e úmida debatendo-se dentro de mim. [...] No momento em que fecho a
porta atrás de mim, instantaneamente me desprendo das coisas. [...] No meu interior
encontro o silêncio procurado. Mas dele fico tão perdida de qualquer lembrança de
algum ser humano e de mim mesma, que transformo essa impressão em certeza de
solidão física. [...] Ando sobre trilhos invisíveis. Prisão, liberdade. São essas as
palavras que me ocorrem. No entanto não são as verdadeiras, únicas e
insubstituíveis, sinto-o. Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome.
(PCS, 1998, p. 65-70)
Ao analisarmos o excerto retirado do capítulo supramencionado, conseguimos compreender
que o diferencial promotor da inovação da escritora vem a ser, justamente, a incorporação das
reflexões filosóficas e, consequentemente, da linguagem poética, como o uso intensivo de figuras de
linguagem próprias da poesia, ocasionando a quebra da linearidade da diegese narrativa, fator que, a
princípio, provoca certo ―estranhamento‖ no leitor. Notamos que esses elementos filosóficos e
poéticos não estão diluídos, mas sim intrinsecamente ligados à temática e a estrutura textual, uma
vez que se os retirássemos, estaríamos, de certa forma, matando a obra. Contudo, essas sequências
podem ser deslocadas sem ter a linha sequencial do texto ou o seu plano semântico global alterado,
pois elas têm autonomia de significação.
A partir dessas análises iniciais, a obra de Clarice Lispector continua sendo objeto constante
de estudo da crítica, ou seja, na esteira dos primeiros críticos, surgem muitos outros estudos em
torno do universo ficcional clariceano. Em 1966, Benedito Nunes, crítico que mais se aprofundou na
dimensão filosófica de Clarice Lispector, publica um estudo acerca da produção da escritora
denominado O mundo de Clarice Lispector. Em 1969, esse estudo, com algumas alterações, foi
publicado novamente na coletânea ensaística chamada O dorso do tigre. Em 1973, o crítico publica
outro estudo mais alentado, uma Leitura de Clarice Lispector, que abrangeu todas as obras da autora
publicadas até 1971. Tal análise foi incluída, por fim, em O drama da linguagem de 1989 em que
Nunes contempla todas as obras de Clarice até então publicadas, passando desde o romance inicial
Perto do coração selvagem a Um sopro de vida: pulsações, obra póstuma da escritora.
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Nunes, ao analisar as obras da escritora, encontrou suporte teórico nas teorias filosóficas de,
entre outros, Heidegger, Jean-Paul Sartre e Kierkegaard, apontando na ficção clariceana uma
temática marcadamente existencial:
O desenvolvimento de certos temas importantes da ficção de Clarice Lispector
insere-se no contexto da filosofia da existência, formado por aquelas doutrinas que,
muito embora diferindo nas suas conclusões, partem da mesma intuição
Kierkegaardiana do caráter pré-reflexivo, individual e dramático da ―existência
humana‖, tratando de problemas como a angústia, o nada, o fracasso, a linguagem,
a comunicação, das consciências, alguns dos quais a filosofia tradicional ignorou ou
deixou em segundo plano. (NUNES, 1969, p. 93)
Para Benedito Nunes (1995, 14), Perto do coração selvagem abriu um novo caminho para a
nossa literatura, ―na medida em que incorporou a mimese centrada na consciência individual como
apreensão artística da realidade‖, ou seja, Clarice abre espaço para o método de mimese
introspectiva, a qual a autora exterioriza a experiência interior em palavras. Ainda para o crítico,
―três são os aspectos fundamentais que se conjugam em Perto do coração selvagem: o
aprofundamento introspectivo, a alternância temporal dos episódios e o caráter inacabado da
narrativa‖ (NUNES, 19773, p. 03). Isso se dá porque o que importa é o ―ser-no-mundo‖ da
existência humana, daí a inevitável abstração de particularidades locais, de dados sociais e de
elementos objetivos da realidade. Em Clarice, ―é um sair de qualquer parte para um lugar
indefinido‖ (NUNES, 1969, p. 114).
Além de Benedito Nunes, merece destaque também o estudo inicial de Olga de Sá, publicado
em 1979, A escritura de Clarice Lispector. Na mesma linha dos primeiros críticos, Sá, reportando-se
principalmente a Antonio Candido, considera que Clarice, de certa forma, inaugurou uma nova
forma de expressão por meio da invenção de uma linguagem. Para ela, Clarice Lispector ―retoma
aquela linhagem de invenção, dos raros que fizeram ―exploração da palavra‖, como Oswald e
Mário; daí a surpresa que provoca, procurando fazer da ficção uma forma de conhecimento do
mundo das ideias; e com isso, entregando-se a uma aventura da expressão‖ (SÁ, 1979, p. 130).
Nesse livro, Olga de Sá estuda com muito rigor o tempo e a linguagem, além do processo
epifânico, tratado como procedimento básico da escritura de Lispector: ―a ―escritura epifânica‖ de
Clarice Lispector, nos seus melhores momentos, é procedimento do seu romance metafísico. [...]
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Assim, conforme Sá (1979, p. 201), pode-se deduzir de sua ficção toda uma poética do instante,
essencialmente ligada à linguagem‖.
Entender a estrutura do romance em Clarice e de toda a que alicerça a literatura moderna –
Proust, Joyce, Virginia Woolf, entre outros – é pensar a questão da linguagem falha, fragmentada e,
por extensão, do próprio sujeito, pois, segundo, Nunes (1969, p. 69), ―a linguagem, tematizada na
obra de Clarice Lispector, envolve o próprio objeto da narrativa, abrangendo o problema da
existência, como problema da expressão e da comunicação‖. ―Clarice questiona a possibilidade do
―eu‖ exprimir ―a coisa‖‖ (SÁ, 1979, p. 153). Desse modo, os críticos tinham em mãos um novo tipo
de romance, não só por apresentar reflexões de caráter psicológico e existencial, mas também por
apresentar caracteres da linguagem poética.
Considerações finais
Mais de meio século após a publicação de Perto do coração selvagem, podemos dizer que
Clarice Lispector cumpriu à risca o seu propósito literário inicial, o qual, por meio do discurso
filosófico poético, não consistia em dar unidade aos fragmentos à sua prosa. Apesar da ―novidade‖
do romance, a princípio, sofreu resistências diante de modelos estéticos já solidificados pelos
escritores de até então, assinalado por Antonio Candido como ―conformismo estilístico‖. Mas fica
claro que a escrita da autora, como já previa alguns críticos, exigia uma nova forma de leitura e
interpretação.
Clarice Lispector renovou os ideais literários e exerceu significativa contribuição para a
Literatura Brasileira, pois inaugurou uma outra linha de tradição literária, sendo provavelmente a
origem das tendências ―desestruturantes‖, no âmbito da elaboração estilística da linguagem, com o
predomínio da reflexão filosófica vinculada à linguagem poética.
A escritora não apenas modificou as possibilidades da escrita literária no Brasil, mas, de
certa forma, fez a crítica rever a sua perspectiva, já que o instrumental analítico de que dispunha não
estava adequado à essa nova modalidade de leitura que a obra de Clarice exigia. Como julgou
Álvaro Lins, Clarice não veio a escrever posteriormente o seu ―grande romance‖, pelo contrário,
descentrou aqueles ―pedaços‖ iniciais dando-lhes, cada vez mais, riqueza ao conjunto de sua obra,
pois do primeiro ao ultimo romance sua intenção é a busca por romper as limitações da linguagem.
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Referências
BOSI, Alfredo. Clarice Lispector. In: ________. História concisa da literatura brasileira. São
Paulo: Cultrix, 1989.
CANDIDO, Antonio. Notas de crítica literária: Língua, pensamento, literatura. Jornal Folha da
manhã, Rio de Janeiro, 25 jun. 1944.
________. Notas de crítica literária: Perto do coração selvagem. Jornal Folha da manhã, Rio de
Janeiro, 16 jul. 1944.
________. Uma tentativa de renovação. In: Brigada ligeira. Rio de janeiro: Ouro sobre azul, 2004.
DINIS, Nilson. A arte da fuga em Clarice Lispector. Londrina: Ed. UEL, 2001.
LISPECTOR, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de janeiro: Rocco, 1998.
LINS, Álvaro. Jornal de crítica: Romances. Jornal Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 17 mai. 1946.
________. Romance Lírico. In: Jornal de crítica, 11 fev. 1944. Rio de Janeiro: José Olympio
Editora, 1946. 4ª série.
________. A experiência incompleta: Clarice Lispector. In: Os mortos de sobrecasaca: ensaios e
estudos (1940-1960). Rio de janeiro: Editora Civilização brasileira, 1963.
MILLIET, Sérgio. Diário crítico II, 15 jan. 1944. São Paulo: Martins Edusp, 1981.
NUNES, Benedito. O Dorso do Tigre. São Paulo: Perspectiva, 1969.
________. Leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Quíron, 1973.
________. O drama da linguagem: uma leitura de Clarice Lispector. São Paulo: Ática, 1995.
SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1979.
SANT’ANNA, Affonso Romano de. Análise estrutural de romances brasileiros. 2. ed. Petrópolis:
Vozes, 1973.

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