Diálogos en el Conosur: Literatura, História e Fronteiras Sociais

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Diálogos en el Conosur: Literatura, História e Fronteiras Sociais
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
DIÁLOGOS EN EL CONOSUR: LITERATURA, HISTÓRIA E FRONTEIRAS SOCIAIS
POR UM PENSAMENTO DE FRONTEIRA
Cátia D. Goulart (UNIPAMPA/PUC-RS - Doutoranda)
[email protected]
Resumo
Pensar a literatura produzida em uma região das fronteiras do Cone Sul requer também refletir sobre a tradição
crítica que tem dialogado com essa ficção. Afinal, a relação que se estabelece entre a perspectiva crítica
adotada e o objeto de leitura eleito cria imaginários. Ao traçar um percurso da tradição crítica da literatura de
fronteira produzida entre Argentina, Brasil e Uruguai, observo que os estudos dessa região desenvolvem-se,
sobretudo, em torno do paradigma transcultural e de um conjunto de categorias a ele articulado, como comarca
pampiana, cultura letrada, regionalismo, super-regionalismo, subdesenvolvimento, tendo resultado na criação
de um imaginário predominante em torno da gauchesca. Contudo, tanto a leitura que venho realizando da
ficção dessa região quanto a leitura crítica da crítica que a tem delimitado exigiu-me buscar outro caminho
interpretativo dentro da diversidade do pensamento desenvolvido na América Latina. Por isso na segunda parte
deste trabalho destaco a perspectiva aberta pelo grupo Modernidad/Colonialidadad acerca de um Pensamiento
de frontera (MIGNOLO, 2000) e suas possibilidades de abertura para construirmos imaginários outros sobre a
região.
Palavras-chave: literatura de fronteira; pensamento de fronteira; modernidad/colonialidad.
Resumen
Pensar la literatura producida en una región de las fronteras del Cono Sur requiere reflexionar sobre la
tradición crítica que dialoga con esa ficción. En definitivo la relación que se establece entre la perspectiva
crítica que se adopta y el objeto de lectura elegido crea imaginarios. Al trazar el camino de la tradición crítica
de la literatura de frontera producida entre Argentina, Brasil y Uruguay observo que los estudios de la región
siguen, sobretodo, entorno del paradigma transcultural y un conjunto de categorías que están en su base, como
comarca pampeana, cultura letrada, regionalismo, superregionalismo, subdesarrollo, y resultaron en la creación
de un imaginario limitado en torno de la gauchesca. Sin embargo, tanto la lectura que realizo de la ficción de
la región como la lectura crítica de la crítica que la ha delimitado me llevó a buscar otro camino interpretativo
dentro de la diversidad del pensamiento desarrollado en América Latina. Por eso en la segunda parte de este
trabajo destaco la perspectiva abierta por el grupo Modernidad/Colonialidadad acerca de un Pensamiento de
frontera (MIGNOLO, 2000) y sus posibilidades de apertura para la construcción de imaginarios otros de la
región.
Palabras-clave: literatura de frontera; pensamiento de frontera; modernidad/colonialidad.
O pensamento de Angel Rama1, associado a reflexões teóricas de diferentes
intelectuais, inaugura um paradigma epistemológico para pensar a integração latino 1
Refiro-me, especialmente, às seguintes obras do crítico: 1. RAMA, Ángel. Los procesos de transculturación
en la narrativa latinoamericana. Revista Hispanoamericana, n.5, abril de 1974. Venezuela, Universidad de
Zulia, p. 48-71. Artigo em que o crítico originalmente trata da transculturação. 2. RAMA, Ángel. Los
gauchipoliticos rioplatenses, literatura y sociedad. Buenos Aires: Calicanto, 1976. 3. RAMA, Ángel.
5
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americana, a partir da incorporação, transitividade e harmonização da diversidade cultural e
das especificidades sociais na América Latina.
A apropriação do conceito de transculturação, do antropólogo cubano Fernando
Ortiz2, para os estudos da literatura, é evidenciado e amplamente reconhecido no
pensamento de Rama. Contudo, associados aos fundamentos advindos de Ortiz, encontramse também princípios procedentes do pensamento de vários outros intelectuais latinoamericanos, o que indicia uma tradição de pensamento na base do paradigma aberto por
Rama.
Dentre as contribuições fundamentais ao pensamento do pesquisador uruguaio, cabe
aqui inicialmente destacar as propostas do dominicano Pedro Henríquez Ureña3 e do
venezuelano Picón Salas4, nem sempre reconhecidas pela crítica.5 Do primeiro, Rama
retoma o gérmen da concepção conciliatória para o entendimento da literatura e da cultura
latino-americana; do segundo, o exemplo com que Salas, já em 1944, tomando por base o
conceito de Ortiz, estuda as “mesclas” entre a cultura europeia e a indígena na formação de
uma terceira, latino-americana, mestiça.
Transculturación narrativa en América Latina. México: Ed. Siglo XXI, 1982. 4. RAMA, Ángel. Ciudad
letrada. New Jersey, 1984.
2
Fernando Ortiz, em sua obra Contrapunteo cubano del tabaco y el azúcar (1940), desenvolve o conceito de
transculturación como um rico processo em que diferentes culturas fundem-se, criando novos fenômenos
culturais. Tal conceito é integrado por Rama ao âmbito dos estudos literários a partir de Transculturación
narrativa en América Latina. Nessa obra, o crítico uruguaio demonstra, a partir da leitura de narrativas
literárias, que essa concepção das transformações culturais permite tanto perceber a cultura latino-americana
em sua complexidade idiossincrática quanto a potencialidade criativa em que se move essa cultura, tornando-se
um fecundo método de leitura.
3
Obras como História de la cultura en la América hispanica (1947) e Corrientes literarias de la América
hispânica (1949) marcaram profundamente toda uma geração de intelectuais na América hispânica. Rama,
junto à Biblioteca Ayacucho, da Venezuela, foi responsável pela compilação da obra de Ureña, La utopia de
América. Dentre os artigos que integram a obra citada, está Raza y cultura (1934), no qual Ureña, salientando
as diferenças existentes entre os diferentes povos que habitam a América hispânica, considera que,
simbolicamente, o desenvolvimento de uma consciência de raça integrada em torno da língua espanhola,
possibilitaria uma síntese harmoniosa no âmbito cultural, perspectiva que, ampliada, seria também assumida
por Rama.
4
PICÓN SALAS, Mariano. De lo europeu a lo mestizo: las primeras formas de transculturación. In: De la
Conquista a la independencia - tres siglos de historia cultural hispanoamericana. México: Fondo de Cultura
Económica, [1944], 1985, p. 84-85.
5
Dentre os trabalhos que apontam a importância do pensamento de diferentes intelectuais no pensamento de
Rama, destaco a obra organizada por: MORAÑA, Mabel (org.) Ángel Rama y los estudios latinoamericanos.
Pittsburg, Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 1997. E mais recentemente, no Brasil, os
resultados dos trabalhos doutorais desenvolvidos na Universidade de São Paulo, em 2005 e 2006,
respectivamente: CUNHA, Roseli Ramos. Transculturação narrativa: seu percurso na obra crítica de Ángel
Rama. São Paulo: Humanitas Editorial, 2007; ROCCA, Pablo. Ángel Rama, Emir Rodríguez Monegal y el
Brasil: dos caras de un proyecto latinoamericano. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental, 2006.
Disponível em www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8145/tde-10082007-151634. Acesso em janeiro de 2013.
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A partir do pensamento desses intelectuais, Rama, ampliando para a incorporação do
Brasil, dá continuidade a uma proposta de integração da América Latina por meio de sua
literatura e também da articulação de um pensamento crítico. Seus pressupostos teóricos e
metodológicos para os estudos literários foram incrementados ainda pelos diálogos com
pensadores brasileiros como Darcy Ribeiro e Antonio Candido, bem como pela retomada do
pensamento de Gilberto Freyre. Das relações com Ribeiro e, especialmente com Freyre,
Rama reafirma o conceito de áreas culturais, apresentado inicialmente em 19646 e reiterado
em Transculturación Narrativa en América Latina (1982).
Para entender a cultura e a literatura em especial, no âmbito das comarcas, Rama
recorre ainda ao conceito de sistema apontado por Candido, uma vez que, já em sua obra
clássica, Formação da literatura brasileira (1957)7, o crítico brasileiro havia logrado
interpretar o momento formativo da literatura brasileira como integração de um sistema
literário específico. Tomando como exemplo o trabalho de Candido, Rama observa que as
“culturas internas” podem ser entendidas por suas relações com os influxos das metrópoles,
mas pensa:
... que también puede ser contada a través de los diferentes sistemas literarios que
se utilizaron para eses fines y sus fuentes originarias, procurando correlacionar
estas tres partes: los asuntos, la cosmovisión y las formas literarias. (RAMA, 1988:
34)
Articulando e desenvolvendo diferentes conceitos, não só precedentes da América
Latina, mas também da Europa8, o pensamento de Rama introduz um olhar crítico
complexo, pois, sem desconsiderar o interior do espaço, da história e do imaginário da
nação, nem tampouco seus vínculos com as metrópoles, Rama entende as relações de
contato cultural para além desses limites, ao propor uma leitura a partir de “comarcas
culturais”.
6
No artigo denominado Diez problemas para el novelista latinoamericano, publicado em 1964 e reeditado em
La novela latinoamericana, 1920-1980 (1982), Rama já apresenta o conceito de comarca cultural.
7
Candido, em Formação da literatura brasileira, manifesta o que concebe por sistema no âmbito da literatura
“um sistema de obras ligadas por denominadores comuns que permitem reconhecer as notas dominantes duma
fase”. CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. São Paulo: Martins Editora,
1962, p. 23. O pensamento de Angel Rama está vinculado a pressupostos metodológicos desenvolvidos por
Antonio Candido não somente no que se refere à concepção de literatura como sistema, mas também à
abordagem crítica dos textos literários do crítico brasileiro. Ver: RAMA, Ángel. Transculturación narrativa en
América Latina, p.11.
8
Este também é um caminho fecundo para acompanhar a construção do pensamento de Rama; contudo, neste
momento, não entrarei nele. Para uma abordagem acerca da influência da Escola de Frankfurt e do Marxismo
no pensamento de Rama, ver a entrevista concedida pelo crítico uruguaio a Jesús Díaz Caballero: Angel Rama
o la crítica de la transculturación (Última entrevista). In: MORANÃ, Mabel (org.) Ángel Rama y los estudios
latinoamericanos. Pittsburg: Instituto Internacional de Literatura Iberoamericana, 1997, p. 325.
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O diálogo crítico estabelecido com diferentes pensadores propiciou a Rama a criação
de um método de leitura que ele denominou transculturación narrativa. Desde então, o
paradigma transculturador promovido por Rama9 vem sendo tomado como categoria de
interpretação não somente da literatura, mas da cultura latino-americana de modo geral.
Considero que foi, sobretudo, sob a influência desse paradigma epistemológico que
se desenvolve a leitura da literatura produzida entre o sul do Brasil, Uruguai e parte da
Argentina. O apontamento de um sistema de literatura nas fronteiras dessa região do Cone
Sul, sob o desígnio de “comarca pampeana”, sinalizado por Rama, passa a orientar
pesquisadores, especialmente brasileiros, a partir da década de noventa10.
Foi a partir desse período, sob o impacto do pensamento transculturador de Angel
Rama, que diferentes pesquisadores/as empreenderam a leitura e a releitura das literaturas
regionais do Rio Grande do Sul e, em especial, tomaram fôlego os estudos da relação entre
essa ficção e a literatura desenvolvida no Uruguai e na Argentina.
Cabe também destacar o impulso recebido pelos estudos de Literatura Comparada no
Brasil, uma vez que muitos pesquisadores ligados à abordagem comparatista, atentos à
proposta epistemológica sugerida por Rama, passam gradualmente a considerar suas
reflexões na direção de uma abordagem comparatista da cultura latino-americana. Questões
como as destacadas pelo crítico uruguaio, acerca da possibilidade de se pensar a
multiplicidade de registro do continente, a diversidade no interior da própria nação e os
vínculos culturais entre regiões, para além dos limites e/ou continuidades das nações
instituídas, apontam novos horizontes para os estudos comparatistas na América Latina11 e
acabam revitalizando os estudos da literatura da região sul, por parte da crítica literária
brasileira.
9
Importante destacar o papel da Biblioteca Ayacucho, na Venezuela, dirigida por Ángel Rama, onde o crítico
uruguaio leu, publicou, divulgou e aproximou-se de muitos escritores latino-americanos.
10
Para enfocar os estudos de literatura de fronteira da região sul, no âmbito da crítica brasileira, faz-se
necessário destacar iniciativas pioneiras no início do século XX para as relações entre a literatura produzida em
parte do Rio Grande do Sul e a literatura da região do Prata. Nesse sentido, destacam-se os trabalhos inaugurais
de João Pinto da Silva (1924) e Guilhermino César (1956), que apontavam a significativa presença hispânica
no povoamento, na história e nas relações culturais da região do sul do Brasil. Tal perspectiva, contudo, não
obteve atenção por parte da crítica nacional e, no âmbito do estado, foi negada pela crítica predominante, tendo
sido retomada, contudo, a partir da década de 90 por alguns pesquisadores.
11
Em relação a esse tópico vale considerar o balanço realizado por Tânia Franco Carvalhal no artigo intitulado
“Dez anos de ABRALIC (1986-1996): elementos para sua história”. Organon, vol. 10, no. 24. Porto Alegre:
UFRGS, 1996. E, mais recente, a apreciação de Eduardo Coutinho acerca da importância dos estudos
comparados na América Latina. Ver: Coutinho, Eduardo. Sentido e função da Literatura Comparada na
América Latina. In: ___. Literatura Comparada na América Latina - Ensaios. Rio de Janeiro: Eduerj, 2003, p.
11-29.
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O trabalho precursor de Tânia Franco Carvalhal, sobretudo a partir da organização do
primeiro Seminário Latino-Americano de Literatura Comparada12, e a consequente fundação
da Associação Brasileira de Literatura Comparada, podem ser tomados como marcos da
iniciativa de pensadores brasileiros para um fomento sistemático de uma perspectiva crítica
comparatista da literatura latino-americana. Também nessa direção as presenças de
expoentes como Ana Pizarro e Antonio Candido, associadas aos debates que se deram na
ocasião13, evidenciam um empenho conjunto.
Com relação aos estudos da região sul do Brasil, e em especial da literatura das
fronteiras com Uruguai e Argentina, foco de meu interesse, houve, a partir de então, uma
mudança significativa, que pode ser vista não só pelo aumento do número de pesquisadores
dedicados à região, mas, sobretudo, pela orientação daqueles que, já dedicados a ela, passam
a lê-la para além dos marcos da nação.
Interessa-me neste trabalho refletir sobre o imaginário da região, que a crítica
literária desde então vem construindo, ponderar acerca de seus vínculos com o paradigma
transcultural e, por esse viés, destacar as contribuições e os limites das abordagens
desenvolvidas pelos pesquisadores/as. Partindo de tal reflexão, proponho outro caminho
interpretativo como uma opção crítica para pensarmos a diversidade do imaginário da região
e atentarmos para suas relações com outras regiões no mundo. Para tanto, recorro aos
fundamentos de um Pensamiento de frontera (MIGNOLO, 2000) como uma opção crítica à
leitura de imaginários diversos na construção da região, bem como para suas relações com
outras regiões no mundo.
Dentre as diferentes iniciativas de leitura/construção da “comarca pampeana”, no
âmbito brasileiro, elegi o trabalho desenvolvido por Ligia Chiappini14, por considerar que a
longa trajetória de suas pesquisas geraram fecundos estudos em torno da literatura da região
do Prata. Tais contribuições podem ser acompanhadas não só na produção de obras
individuais da pesquisadora, mas também na promoção e integração de eventos em torno do
12
No âmbito do XI Congresso da Associação Internacional Literatura Comparada, na Place de la Sorbonne,
em agosto de 1985, os pesquisadores brasileiros presentes dispuseram-se a sediar o I Seminário LatinoAmericano de Literatura Comparada, realizado entre os dias 9 e 10 de setembro de 1986, em Porto Alegre.
Dentre as propostas desse evento, estava prevista e efetivou-se a criação da Associação Brasileira de Literatura
Comparada. Dados pesquisados em www.abralic.org.br
13
Ver: ANAIS DO 1º. SEMINÁRIO LATINO-AMERICANO DE LITERATURA COMPARADA. Porto
Alegre: UFRGS, 1986. 3v.
14
Realizo no Capítulo 2 de minha tese de doutoramento, que desenvolvo junto à PUC/RS, o estudo da
trajetória de pesquisadoras brasileiras que se dedicam ao estudo da literatura da região sul por quase quarenta
anos: Ligia Chiappini e Léa Masina. Nesse artigo, no entanto, limito-me a retomar pontos específicos do
pensamento desenvolvido por Chiappini.
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tema, bem como nos trabalhos desenvolvidos por seus/suas orientandos/as, que também a
ele se dedicaram.15
Ligia Chiappini inicia seus estudos da literatura regional do Rio Grande do Sul,
considerando-a no conjunto dos regionalismos no Brasil. Para tanto, toma como base,
especialmente, o pensamento de Antonio Candido em torno de “Literatura e
subdesenvolvimento” (1964/1972), texto que motivou a retomada dos estudos da literatura
regional, a partir dos anos setenta, ao justificar que o regionalismo poderia ser manifestação
literária de áreas subdesenvolvidas. Sustentada nessa premissa e tomando como parâmetro
as iniciativas e as realizações do movimento modernista, em especial o paulistano da década
de 20, Chiappini estuda a literatura do Rio Grande do Sul. Apesar de destacar o lugar
singular de Simões Lopes Neto16, ela acaba por ressaltar os limites do modelo de prosa
regionalista no Rio Grande do Sul no resultado de sua tese doutoral. O descritivismo, a
personagem tipo, o gaúcho herói, o foco narrativo externo ao mundo narrado, elementos que
marcavam essa ficção, coadunavam-se com a perspectiva do que Candido havia denominado
de uma “consciência amena do atraso”, segundo a pesquisadora.
Porém, os estudos de Chiappini em torno dos regionalismos na Europa17
possibilitaram-lhe ampliar sua percepção acerca do “fôlego de gato” da literatura regional no
Brasil e na América Latina como um todo. Percebendo o ressurgimento do regionalismo nas
literaturas dos países da Europa, em momento de reorganização nacional, ela reconhece que
a
persistência
dessa
tendência
ficcional
não
estaria
apenas
na
condição
de
subdesenvolvimento da região e que tampouco sua qualidade estética deveria implicar uma
superação do regional. Assim, afastando-se da ideia de superação do regional como
prerrogativa de uma pretensa conquista de universalidade da obra, a pesquisadora passa a
15
Parece-me oportuno considerar também orientações realizadas pelas duas pesquisadoras, pois posso observar
um fio da tradição crítica que se constrói em torno do tema aqui tratado: literatura de fronteira do Cone Sul.
Ciente de que acompanhar tal percurso careceria de um trabalho de tese específico, destaco que Masina foi
orientada por Carvalhal, enquanto Chiappini, por Antonio Candido, duas personalidades fundamentais para a
abertura de estudos da literatura brasileira no contexto da América Latina.
16
No entender de Chiappini, a “interiorização do foco narrativo” como técnica que absorve e valoriza a fala do
outro, a do peão da estância, fez de Lopes Neto um precursor do Modernismo no sul. Destaca ainda os vínculos
do escritor com a região do Prata, pela incorporação que ele faz não só de expressões e palavras em espanhol,
mas também das fontes historiográficas, mitos e lendas registradas em livros de estudiosos rio-prantenses. Ver:
CHIAPPINI, Ligia. Regionalismo e Modernismo: o caso gaúcho. São Paulo: Ática, 1978.
17
Entre 1989 e 1993, inicia um estágio de pesquisa junto ao Instituto de Estudos Latino-Americanos, na
Universidade Livre de Berlim, Alemanha, onde posteriormente atuaria como docente.
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questionar já nos anos noventa conceitos como “super-regionalismo”, de Candido, bem
como a rever e ampliar suas próprias leituras.
Essa mudança de perspectiva é exposta de modo mais orgânico no artigo "O
modernismo no Rio Grande do Sul: revisitando uma pesquisa dos anos setenta", publicado
na revista Literatura e Sociedade (2003/2004). No texto citado, Chiappini reavalia suas
pesquisas dos anos setenta, rediscute alguns pressupostos, refletindo acerca da pertinência de
se repensar a relação entre modernismo e regionalismo nos momentos atuais. Ela pondera,
enfim, que, apesar de manter muitas das considerações feitas a partir de suas pesquisas e
apontadas em obras anteriores, a produção gaúcha, graças ao seu regionalismo, “pode
manter uma certa originalidade em relação às influências do centro, coerentemente com sua
cultura particular e com o estágio de desenvolvimento da sociedade gaúcha da época”.
(CHIAPPINI, 2004: 264)
Por isso, a pesquisadora passa a considerar o caso gaúcho exemplar para se refletir
sobre modernidades plurais e para se repensar as relações entre nação, região e mundo, bem
como localismos e cosmopolitismo, vanguarda e regionalismo.
É especialmente em sua pesquisa Fronteiras culturais e cultura fronteiriça na
comarca pampeana: obras exemplares, iniciada em 2004, que Chiappini se propõe a
atualizar o tema da literatura e cultura gaúcha e gaucha em tempos de globalização. Para
tanto, empreende, a partir de uma abordagem comparativa, uma leitura de textos brasileiros,
argentinos e uruguaios considerados exemplos da tensão nacional, regional, transnacional
nos séculos XIX e XX.
Nessa pesquisa de fôlego, Chiappini parte de um questionamento em torno das
identidades nacionais e regionais da comarca pampiana e do papel dos textos literários nesse
processo. Dentre os objetivos do projeto, está a intenção de “Apresentar a gauchesca como
sistema literário transnacional, sob uma nova luz, especialmente exemplar de uma cultura de
fronteira”. (CHIAPPINI, 2004: 259)
No que tange à literatura produzida no Rio Grande do Sul, a pesquisadora passa a
reconhecer, além da importância da gauchesca, também o valor das “diversas faces da
fronteira do sul”, bem como a pertinência de estudos de outros textos cujas escritas são
tensionadas pelo “duplo pertencimento”, (CHIAPPINI, 2011: 410) como é o caso dos
produzidos na zona italiana e alemã do estado.
11
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Seu trabalho de pesquisa em torno da produção ficcional do Sul, entretanto, segue no
âmbito da gauchesca. Nesse caminho, os estudos sob a coordenação de Chiappini pretendem
abarcar da segunda metade do século XVIII ao final do século XX, considerando um
conjunto ficcional cujo centro é a figura do gaúcho. Partindo da delimitação estabelecida, a
seleção do corpus prevê não apenas obras clássicas da literatura gauchesca, mas também a
inclusão de textos ficcionais que realizam releituras do repertório em questão. A proposta de
inclusão de obras que dialogam e desconstroem a gauchesca deve-se ao fato de que
Chiappini reconhece nelas uma continuidade do gênero e, por sua vez, que as mesmas
podem ser integradas ao que o uruguaio Pablo Rocca (2004) entende como uma pósgauchesca18.
Com tal perspectiva, a pesquisadora trabalha fundamentalmente sobre a ficção de
escritores que publicaram no final do século XIX até o final dos anos 2019: Alcydes Maya,
João Simões Lopes Neto, Roque Callage, Ramiro Barcellos (Brasil) Eduardo Acevedo Díaz,
Javier de Viana, Carlos Reyes, Horácio Quiroga (Uruguai); Ricardo Güiraldes, Roberto
Payró, Benito Lynch (Argentina). Desse repertório de leitura - e de constantes referências e
diálogo com textos mais antigos, especialmente do universo hispânico, e também com textos
mais recentes brasileiros - a pesquisadora desenvolve um imaginário crítico da “comarca
rio-platense/rio-grandense”.
As leituras de Chiappini revitalizam os estudos da literatura dessa região do Cone
Sul, bem como a importância do estudo desse imaginário para o entendimento da região.
Contudo, o reconhecimento, por parte da pesquisadora, acerca de uma pluralidade da
literatura e de outras textualidades da região e, por sua vez, a delimitação de seus estudos em
18
Para Rocca, enquanto “a literatura gauchesca tem como centro a personagem do gaúcho, seus costumes, seus
ambientes, suas hipotéticas linguagens, seus sentimentos e uma suposta visão de mundo comum” a pósgauchesca, “reconhece esse caráter sucessório e reajusta ou moderniza os meios expressivos da gauchesca em
consonância com as transformações econômicas, políticas, sociais e, talvez, em último lugar, estéticas”.
(ROCCA, 2004: 90-91)
19
Segundo a pesquisadora, a literatura da região, no século XX, pode ser compreendida em três momentos: o
que abarca as três primeiras décadas, quando se localizam tensões entre pré-modernismo e modernismo;
regionalismo e vanguardas; um segundo, situado nas três décadas posteriores e que, atento ao
subdesenvolvimento, realiza um neorrealismo crítico e pode ser entendido, no âmbito brasileiro, como um
“super-regionalismo”; e um terceiro momento, localizado nas quatro últimas décadas, quando tipos e temas
reaparecem sobretudo em textos paródicos e acabam sendo incorporados também por outras linguagens, como
a música, a telenovela e o cinema. Observo que, apesar de orientar trabalhos que empreendem leitura de
escritores que se localizam nos demais períodos, o foco do seu trabalho de pesquisa dirige-se aos escritores das
primeiras décadas do século XX.
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torno de uma única tendência ficcional do imaginário da região deixa em aberto a
necessidade de outros estudos acerca da literatura de fronteira.
Como ela mesma reconhece, a literatura muito colaborou na reprodução do sistema
colonizador, mas também atuou no contraponto da ideologia das cidades letradas e é nos
interstícios da ficção que outros Brasis aparecem. No caso do pampa, Chiappini observa a
existência de “diversas faces dessa fronteira-sul”. (CHIAPPINI, 2011:404) Entre os
exemplos citados pela pesquisadora, textos que, ao tratarem da Revolução Farroupilha ou da
Guerra do Paraguai, trazem nas contradições e limites desse momento, o destronamento do
gauchismo heroicizante, a tragédia dos negros escravizados ou do peão soldado, em
narrativas como Neto perde sua alma, de Tabajara Ruas. Ou ainda, na criação de Sérgio
Faraco, Aldyr Garcia Schlee, Luis Fernando Verissimo, Moacyr Scliar, João Gilberto Noll,
Luis Antonio de Assis Brasil.
No entanto, ressalto que pensar o imaginário dessas fronteiras do Cone Sul, na
contemporaneidade, requer não apenas empreender uma releitura da literatura gauchesca ou
atentar para as transformações que o modelo foi capaz de motivar, mas também desarticular
a homogeneização do imaginário criado, sobretudo, pelas leituras críticas realizadas dessa
região. Para tanto, é necessário reconhecer não só a existência de outras vertentes ficcionais
na região, mas também outras memórias obliteradas, outras textualidades relegadas que se
configuram ao longo do processo de transformação e urbanização da região ao longo da
modernidade.
Para que sigamos descolonizando as histórias locais, é necessário observar a pouca
atenção dada às fraturas internas da memória dessa região, na qual mulheres, negros,
nativos, árabes constituem alguns dos sujeitos que vivem e criam simbolicamente esse
espaço cultural que chamamos fronteira da região sul.
Por isso também que é fundamental, para interpretar o imaginário da região,
perguntar-nos a respeito dos fundamentos epistemológicos que orientam o imaginário da
crítica em torno de sua participação na construção dessa região cultural. Afinal, a relação
que se estabelece entre a perspectiva crítica adotada e o objeto de leitura eleito (re)cria
imaginários.
O produtivo empenho por interpretar as relações da região e reconfigurá-la frente ao
mapa das nações imaginadas parece ter caído na cilada da homogeneização do local, em
torno de uma identidade única.
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Por todo o exposto, questiono-me se o paradigma de leitura aberto por Rama em
torno de processos transculturais nos permitirá perceber e construir além de assimilações,
misturas e hibridações que tendem a expressar variações de um único sistema hegemônico.
Contudo, meu questionamento, longe de desconsiderar a importância de uma linha
teórica e metodológica aberta por aqueles que ambicionavam ler a América Latina a partir
dela mesma, como é o caso do paradigma articulado por Rama - e seguido por Chiappini -,
quer antes valorizar a diversidade da produção crítica latino-americana.
Nesse sentido, lembro que já na década de oitenta, Antonio Cornejo Polar20 observa
que a transculturação narrativa proposta por Rama“... bien puede ser el emblema mayor de
la falaz armonía en la que habría concluido un proceso múltiple de mixturación".
(CORNEJO POLAR, 2002: 867) e adverte, anos mais tarde, sobre os riscos do caráter
dominante que tal categoria estava assumindo no âmbito da crítica latino-americana21.
Nessa mesma linha, Mabel Moraña (1997), relacionando Transculturación narrativa
en América Latina à La ciudad letrada, destaca que, na obra do crítico uruguaio, há um
entendimento de incorporação da cultura popular à cultura letrada, reflexão gerada em um
contexto de crise do conceito de nação, democracia e vanguarda intelectual dos anos setenta.
Para Moraña, a perspectiva histórico-social de Rama associa-se a uma das limitações do
conceito de transculturação narrativa, uma vez que o foco de seus estudos centra-se nas
relações culturais como um processo que culmina na criação de um terceiro objeto,
intermediado pela cultura letrada. Considerando tais aspectos, ela avalia que o centro do
trabalho do crítico uruguaio é, sobretudo, “el lugar del intelectual dentro de los procesos de
modernización”. (MORAÑA, 1997:141) Por sua vez, a ênfase que Rama confere ao sistema
literário latino-americano como sistema unificado sobrepõe ao
objeto de estudio una organicidad reductivista que no contempla, como en la teoría
de Cornejo-Polar sobre heterogeneidad y totalidades conflictivas, la coexistencia
de diversos sistemas a nível nacional y regional, los cuales no pueden ser
considerados como meras variantes del sistema hegemônico. (p.142)
Apesar desses limites, a crítica uruguaia reconhece e destaca o papel fundamental do
pensamento de Rama na tradição crítica latino-americana, visto que, junto a obra de outros
20
Antonio Cornejo Polar, nos anos oitenta, desenvolve a categoria de heterogeneidade para pensar os
diferentes elementos constitutivos das literaturas heterogêneas da América Latina e suas relações com o
sistema cultural. Tal categoria foi ampliada posteriormente em CORNEJO POLAR, Antonio. Escribir en el
aire. Ensayos sobre la heterogeneidad socio-cultural en las literaturas andinas. Lima: Horizonte, 1994.
21
CORNEJO POLAR, Antonio. Mestizaje e hibridez: los riesgos de las metáforas. Apuntes. Revista
Iberoamericana, Vol LXVIII, Núm. 200, Julio-Septiembre, 2002, p. 867. Artigo originalmente exposto no
XXXI Congreso de LASA, Guadalajara, abril de 1997.
14
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
críticos que lhe foram contemporâneos, como Antonio Cornejo Polar, Silvio Romero,
Antonio Candido e Roberto Fernández Retamar, “la obra de Ángel Rama ha contribuido a
fijar los parámetros fundamentales para una comprensión a la vez global y puntual del
desarrollo histórico de América Latina…” (MORAÑA, 1997:3)
Voltando-me à interpretação da literatura do Cone Sul, em especial da literatura
produzida na região do Prata, destaco que esse paradigma de leitura, ao propor a região
como objeto de estudo, possibilitou uma visão de sua interação cultural, ainda que a
perspectiva transculturadora, em sintonia com a tendência homogeneizante do pensamento
aberto pela modernidade, tenha resultado na criação de um imaginário limitado em torno da
gauchesca. Por isso, a relevância do paradigma transcultural precisa ser considerada no
contexto da diversidade de tendências dentro do que se pode chamar pensamento latinoamericanista.
Por isso, sem deter-me na produtiva heterogeneidade interna da tradição crítica na
América Latina, que vem sendo gestada pelo menos desde o início do século XX e
institucionaliza-se enquanto tradição discursiva, especialmente, a partir da década de
sessenta, conto com o debate que se abre nas últimas décadas do mesmo século em torno da
capacidade e dos limites dessa produção.22 Tal revisão, mais do que esboçar histórias de um
processo crítico, desabonar as linhas teóricas e metodológicas abertas por aqueles que
ambicionavam ler a América Latina a partir dela mesma, tem valorizado as variantes dessa
produção, destacado suas contribuições, e ainda alertado para suas omissões e
(in)consequentes efeitos na configuração do que temos chamado de pensamento latinoamericano, conforme evidenciam as considerações de Moraña, dentre outros críticos aqui
anteriormente indicados.
É nesse ambiente de profunda autocrítica e produtivo debate, desencadeado
especialmente a partir das décadas finais do século XX, que o Pensamento na América
Latina tem sido repensado. Dentre as diferentes propostas que dialogam criticamente com
essa tradição heterogênea de pensamento – Estudos Culturais na América Latina, Estudos
22
Sem poder apresentar uma visão mais orgânica do Pensamento na América Latina, limito-me a listar alguns
textos que apontam a diversidade da crítica literária latino-americana. Raul Bueno e Beatriz Pastor,
“Introduccion”, en Revista de crítica literaria latinoamericana 29, 1989, p. 14 - 15. Noe Jitrik, La vibración
del presente. Mexico: Fondo de Cultura Económica, 1987. RUFINELLI, Jorge. La crisis de la crítica. Revista
Casa de las Américas 171, Cuba, 1988, p. 76‑7. PIZARRO, Ana (org.) América Latina: Palavra, Literatura e
Cultura - Volumes 1 e 2. São Paulo: Memorial da América Latina; Campinas: UNICAMP, 1993,1994.
MARIACA ITURRI, Guillermo. El poder de la palabra - Ensayos sobre la modernidad de la crítica cultural
hispanoamericana. Chile: Ed. Tajamar, 2007. https://www.academia.edu/1443984/El_poder_de_la_palabra
15
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Subalternos Latino-americanos, Estudos pós-coloniais latino-americanos –, destaco a
perspectiva aberta pelo grupo Modernidad/Colonialidad acerca de um Pensamiento de
frontera. (MIGNOLO, 2000/2003)23
Essa “comunidad de argumentación”, 24 conforme denomina Arturo Escobar (2003),
retoma criticamente diferentes caminhos interpretativos abertos pela tradição de pensamento
latino-americanista e propõe uma contribuição a um “paradigma otro”, 25 para (re)pensar a
América Latina e suas inter-relações com o mundo. Longe de se enquadrar em uma história
linear de paradigmas e epistemes, o grupo Modernidad/Colonialidad, pautado por um
princípio de descolonização da produção do conhecimento, mobiliza a articulação de um
Pensamiento de Frontera. Para isso, cientes da construção discursiva e estratégica do que o
pensamento moderno em e sobre o chamado novo continente concebeu como América
Latina, essa “rede de investigadores”, em suas proposições, promove um diálogo não só com
outros modos de saber, de sentir e de ser, que foram desconsiderados, invisibilizados ou
subsumidos por parte do pensamento latino-americanista precedente, mas também com
outras propostas epistêmicas contra-hegemônicas no mundo.
Nesse caminho, o grupo põe em debate o caráter limitado do paradigma
transculturador, que buscou harmonizar múltiplos e diferentes modos de pensar, sentir e
construir o que chamamos de América Latina. Frente à limitação dessa tendência
23
Destaco aqui a obra Historias Locales/Diseños Globales: Colonialidad, Conocimientos Subalternos y
Pensamiento Fronterizo, 2003. E ressalto também o livro La idea de América Latina (2007), ambos de Walter Mignolo.
No prefácio dessa obra, seu autor retoma, debate e amplia reflexões desenvolvidas por Edmundo O’gorman em La invención de
América (1958) e por Enrique Dussel - The invención of the Americana: Eclipse of “the Other” and the myth of Modernity. New
York: Continuum Books, 1995.
24
O primeiro artigo que traça uma genealogia e percurso do grupo é desenvolvido por Arturo Escobar no
âmbito da proposta da temática do Congresso CEISAL - Amsterdam 2002, sob o título, “Mundos y
conocimientos de otro modo - El programa de investigación de modernidad/colonialidad latinoamericano”. Tal
artigo foi publicado posteriormente em Tabula Rasa. Bogotá-Colombia, No. 1: 51-86, enero-diciembre de
2003. A genealogia e história do grupo pode ser acompanhada em inúmeros outros trabalhos e entrevistas por
membros da rede de debate. Destaco aqui as obras El giro decolonial: reflexiones para una diversidad
epistémica mas allá del capitalismo global (2007), compilada por Santiago Castro Gómez e Ramón Grosfóguel
e Inflexión decolonial: fuentes, conceptos y cuestionamientos (2010), realizada por Eduardo Restrepo e Axel
Rojas.
25
Mignolo chama atenção sobre a distinção entre um “otro paradigma” e um “paradigma otro” na obra
Historias locales/diseños globales: colonialidad, conocimientos y pensamiento fronterizo (2003). Na primeira
acepção, reside a ideia de um novo paradigma que se acrescentaria aos anteriores, enquanto um “paradigma
otro” é um pensamento crítico que, partindo das histórias e experiências marcadas pela colonialidade, propõese à diversidade de pensamentos, sobretudo, dos que foram negligenciados, negados pelo pensamento
moderno. Tal perspectiva é amplamente exposta no prefácio que o autor faz à edição castelhana de sua obra, na
qual Mignolo aponta “En suma, ‘un paradigma otro’ en su diversidad planetaria está conectado por una
experiencia histórica común: el colonialismo; y por un principio epistémico que ha marcado todas as sus
historias: el horizonte colonial de la modernidad. Esto es, la lógica histórica impuesta por la colonialidad del
poder”. (p. 23)
16
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
predominante do pensamento latino-americanista, e sua convergência com mestiçagens,
sincretismos, hibridismos aqui ocorridos, o grupo Modernidad/Colonialidad propõe a
abertura a outros saberes e experiências coexistentes nesse espaço geocultural. Por esse
princípio, os pesquisadores promovem o diálogo com perspectivas do pensar e do sentir não
só desenvolvidos por centros acadêmicos, mas têm como desafio e meta dialogar também
com comunidades e movimentos sociais.
Por sua vez, um dos principais articuladores do grupo, Santiago Castro-Gómez,
refletindo sobre o pensamento de Rama, chama atenção para a necessidade de
considerarmos também os interstícios de la ciudad letrada26. Atento à sinalização de
Moraña acerca do lugar do intelectual no pensamento de Rama e ao modo compactado,
indiferenciado, com que ele entendeu la ciudad letrada, o filósofo colombiano propõe a
superação da visão dicotômica estabelecida por Rama entre os habitantes da “ciudad letrada”
e da “ciudad real”. Por esse caminho, Castro-Gómez observa que será possível entender “la
capacidad de la ciudad letrada para generar espacios de transgresion”. (CASTRO-GÓMEZ,
1997:129) Tal postura requer ainda, segundo o filósofo, o reconhecimento de que o papel
dos considerados letrados, e até da própria letra, historicamente, transforma-se.
Assim, buscando ultrapassar o limite de Rama, em seu entendimento da letra
enquanto natureza representacional e foco dirigido apenas à capacidade cognitiva da palavra,
Castro-Gómez aponta que a habilidade de auto-observação daquele que escreve nos permite
também pensar La ciudad letrada como uma “institución reflexiva”. (p.128) Superando o
confinamento da ciudad letrada à reflexão sobre os saberes e sobre os que os produzem, o
filósofo destaca que aquele que escreve também se constrói no próprio espaço de sua escrita
e desse movimento vital desprende-se uma reflexividade de ordem hermenêutica e estética.
Considerar o movimento em questão nos permite entender os “vecindários de la ciudad
letrada”. Por essa via, considera Cástro Gómez, o conceito de cidade letrada nos permite
entender que “ya desde finales del siglo XIX se encontraban in nuece los procesos de
reflexividade y globalización en los que viven hoy, de manera evidente, la mayor parte de
los latinoamericanos.” (p.132)
Com base no que foi dito, considero que situar a leitura do imaginário ficcional de
uma região transnacional do Cone Sul no âmbito dos estudos epistemológicos latino 26
CASTRO-GÓMEZ, Santiago. Los vecindarios de la ciudad letrada - variaciones filosóficas sobre un tema de
Ángel Rama. In: MORAÑA, Mabel (org.). Ángel Rama y los estudios latinoamericanos. Pittsburg, Instituto
Internacional de Literatura Iberoamericana, 1997, p. 123-133. 17
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
americanos é um modo de entender a construção do imaginário local em um conjunto mais
amplo de relações. Pensar a partir do local ou acerca das razões e consequências de
memórias interditas de um espaço delimitado, bem como o lugar da crítica e da criação
ficcional nesse processo, levam-me a optar por um método de leitura que se fundamenta no
que Walter Mignolo cunhou por pensamiento fronterizo, cuja premissa é a pluriversalidade
do pensamento e dos saberes e seu horizonte, uma opção decolonial.
Essa proposta de reflexão que vem sendo desenvolvida a partir da rede de pensadores
integrantes do grupo interessa-me por diferentes motivos, entre os quais: por
problematizarem o lugar de produção do conhecimento e suas implicações; pelo caráter
coletivo com que desenvolvem suas reflexões; e, como creio ter aqui demonstrado, pelo
reposicionamento que promovem do pensamento latino-americano, sobre o qual ergui
durante décadas meu próprio imaginário de América Latina.
Considerando que o debate do grupo parte de um corpus básico de conceitos e
autores, elenco nesse momento aqueles que sustentam a proposta apontada por Mignolo, a
qual vem sendo desenvolvida por membros dessa comunidade de argumentação e por outros
pesquisadores que partem das perspectivas abertas pelo grupo.
O grupo Modernidad/Colonialidad/Decolonialidad, formado no final dos anos
noventa27, com base, principalmente, no pensamento de Dussel, Quijano e Glória Anzaldúa,
desencadeia a articulação de uma Epistemologia de Frontera (MIGNOLO: 2003) como uma
opção crítica frente ao pensamento hegemônico criado pela modernidade.
Com um olhar crítico em relação ao que vem sendo tradado em e sobre América
Latina, - bem como em outras regiões do globo - essa rede de pensadores apresenta
conceitos-chave, como o de colonialidad, desenvolvido pelo peruano Aníbal Quijano
(1992)28, transmodernidad, pelo argentino Enrique Dussel (1992)29, e Teoria de Fronteiras,
desenvolvida pela chicana Gloria Anzaldúa (1987)30.
27
Há dois eventos, realizados em 1998, que são apontados como marco de constituição dessa rede de debate:
1. Organizado na Universidad Central de Venezuela, Caracas, pelo sociólogo Edgardo Lander, que teve como
convidados o peruano Aníbal Quijano, o filósofo argentino-mexicano Enrique Dussel, o semiólogo argentino
Walter Mignolo, o antropólogo colombiano Arturo Escobar e Fernando Coronil. 2. O Congreso Internacional
Transmodernidad, capitalismo histórico y colonialidad: un dialogo postdisciplinario, organizado pelo
professor costarriquense Ramón Grosfoguel e o estudante Agustín Lao Montes, em dezembro de 1998, em
Binghamton, Estados Unidos. O evento contou com a participação de Quijano, Dussel, Mignolo e do sociólogo
norte americano Immanuel Wallerstein. Em entrevista mais recente, concedida a Nelson Maldonado Torres
(2007), Mignolo afirma que foi a partir desses congressos que ele se intera do pensamento de Quijano, o qual
viria a ser medular no desenvolvimento do pensamento dessa comunidade argumentativa.
28
Quijano, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: La colonialidad del saber:
eurocentrismo y ciencias sociales. Perspectivas Latinoamericanas. Edgardo Lander (comp.) CLACSO, Consejo
18
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Suas propostas debatidas em rede produzem uma opção de leitura mais abarcadora e,
por sua vez, situada em uma geopolítica do conhecimento a partir de América Latina.
Entendo que as categorias basilares, além de outras que vêm sendo desenvolvidas pelo
grupo, possibilitam uma reflexão sobre o imaginário da região de fronteiras do Cone Sul em
seu contexto de colonialidade do poder, do saber e do ser que vincula a região à história
cultural da América Latina como um todo e também a signos da modernidade global nas
quais ela também está inserida.
Afinal, o território ficcional dos escritores com que trabalho constrói-se em constante
limiaridade com a história, a política e a cultura de uma região específica - as fronteiras
entre o sul do Brasil, o Uruguai e parte da Argentina. No entanto, tal referencialidade deve
ser tomada como uma posição a partir de onde podemos ler a relação dessa região com “... O
RESTO DO MUNDO”, para usar uma expressão, irreverente, de Aldyr Garcia Schlee31.
Pensar a inter-relação desses territórios simbólicos - geocultural, ficcional e
epistemológico - permitem-me não só problematizar a homogeneização do imaginário da
região, mas, especialmente, abrir uma reflexão mais ampla, para que se pense novas relações
possíveis para se (re)imaginar e atuar na região.
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21
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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IDENTIDADES EM CONFRONTO: Mandu Ladino de Anfrísio Neto Lobão Castelo
Branco e a Conquista do Piauí
Esp. Maria Clizalda Vitório (PG-UFPI)32
Dr. Sebastião Alves Teixeira Lopes (UFPI)33
RESUMO
O romance Mandu Ladino de Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco apresenta, de forma
ficcional, uma releitura da história do índio Mandu Ladino, personagem real que viveu em
solo piauiense no final do século XVII e início do XVIII e que se tornou símbolo da
resistência indígena contra o processo de conquista impetrado pelo colonizador português.
Esta comunicação tem por objetivo examinar os confrontos identitários relatados por Castelo
Branco em Mandu Ladino, face ao confronto cultural e bélico, marcado por relações
assimétricas de poder, que praticamente dizimou a população nativa piauiense.Trata-se de
uma pesquisa qualitativa de cunho bibliográfico no campo da Crítica Literária, com aporte
teórico dos Estudos Pós-Coloniais e com forte diálogo interdisciplinar com a Sociologia e a
História. Fundamentaram teoricamente a pesquisa os estudos de Alencastre(1981), Chaves
(1994), Machado (2002), Todorov (2003), Silva (1991), dentre outros. Em forma de
conclusões, ainda que parciais, aponta-se que, em Mandu Ladino, Castelo Branco reavalia
as relações de poder entre bandeirantes, pecuaristas e índios piauienses, durante a conquista
e colonização do estado. Nesse processo, o indígena, visto como o outro, é colocado sob o
estigma da inferioridade cultural, situação legitimada pelos discursos hegemônicos das
culturas eurocêntricas.
Palavras-chave:Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco. Mandu Ladino. Identidade.
ABSTRACT
Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco’s novel Mandu Ladino presents fictionally the
historical character of Mandu Ladino, who lived in Piauí in the end of the 17th and
beginning of the 18th Centuries and who became a symbol of indigenous resistance against
the Portuguese conquest of the region.This communication aims at investigating the
confrontation of identities presented by Castelo Branco in Mandu Ladino as consequence
32
Licenciada em Letras (UESPI/1996). Especialista em Linguística Aplicada (UESPI- 2004) e Mestranda em
Estudos Literários pela Universidade Federal do Piauí (UFPI - 2014/2016), professora da Faculdade Maurício
de Nassau- FAP/Teresina e da rede pública estadual do Piauí. Email: [email protected]
33
Doutor em Letras Área de Concentração: Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte- Americana, pela
Universidade de São Paulo (2002); Pós-Doctor, ênfase em Literaturas Pós-Coloniais, pela Universidade de
Winnipeg, Canadá (2007); Pós-doutor, ênfase em Metaficções, pela Universidade de Londres/Schoolof
Oriental and AfricanStudies (SOAS). Atualmente é professor associado da Universidade Federal do
Piauí.Email: [email protected]
22
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
of the cultural and belical conflict, marked by unequal power relations, which almost
exterminated Piauí’s native population. It is a qualitative research of a bibliographic type in
the field of Literary Criticism, with theoretical support from the Postcolonial Studies and a
strong interdisciplinary dialogue with Sociology and History. The research is theoretically
based on studies by Alencastre (1981), Chaves (1994), Machado (2002), Todorov (2003),
Silva (1991), among others. Although these are still partial conclusions, we suggest that
CasteloBranco in Mandu Ladino, reevaluates the power relations among the Portuguese
first settlers, first cattle breeders, and indigenous natives, during the conquest and
colonization of the province. In this process the native is seen as the Other and put under the
stigma of cultural inferiority, a situation which is legitimated by the hegemonic discourses
typical of the Eurocentric cultures.
Key-words: Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco. Mandu Ladino. Identity.
INTRODUÇÃO
A descoberta do Novo Mundo não significou apenas o encontrar de um novo espaço,
de uma nova gente, de novos costumes, acima de tudo, representou um confronto de olhares
e de interesses. Os europeus tomaram conhecimento de que havia outro mundo,
desconhecido, povoado por outros povos com aparência e costumes completamente
diferentes dos seus.
Infelizmente, a cultura eurocêntrica não conseguiu perceber que a diferença de
cultura não representava sinal de inferioridade. Esta visão desfocada acabou prevalecendo e
moldando as relações entre brancos e índios, brancos e negros, brancos e asiáticos.
“Gerações de europeus se convenceram de sua superioridade cultural e intelectual diante da
nudez dos ameríndios. [...] estabeleceu-se uma relação de poder entre sujeito e objeto”
(BONNICI & ZOLIN, 2005, p. 223). Evidentemente, os europeus ocuparam a posição de
sujeito e os outros (negros, índios e asiáticos) foram colocados como objetos.
O processo de colonização do Piauí não foi muito diferente do que aconteceu no
restante do Brasil e em toda a América: a imposição violenta da cultura eurocêntrica sobre a
cultura do outro, o indígena.
Para legitimar essa ideologia serviram-se das teorias
filosóficas, científicas e de tecnologias apropriadas para assegurar tais propósitos. Nesse
sentido, conforme Bonnici & Zolin (2005, p. 224, grifo nosso), “O conhecimento e o saber
darão direito às terras supostamente de ninguém, à divisão do mundo, ao heroísmo dos
exploradores, à diversidade cultural, à alteridade e ao racismo.”
23
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Em nome da fé cristã e da produção de lucros por parte dos colonizadores, o Piauí foi
palco de uma sangrenta história, fruto do embate de culturas entre os povos nativos e os
colonizadores, processo este definidor do que vem a ser hoje o Estado do Piauí. De acordo
com Cruz; Franco e Lustosa (2012), os povos nativos sofreram duplo golpe: um genocídio,
que é a morte física de um povo e, ainda, um etnocídio, que é a descaracterização e absorção
de uma determinada cultura em relação à outra na história.
Dessa maneira, a nossa pesquisa tem por objetivo examinar os confrontos
identitários relatados por Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco no romance Mandu Ladino,
ante o confronto cultural e bélico, marcado por relações assimétricas de poder, que
praticamente dizimou a população nativa piauiense. Trata-se de uma pesquisa qualitativa de
cunho bibliográfico no campo da Crítica Literária, com aporte teórico dos Estudos PósColoniais e com forte diálogo interdisciplinar com a Sociologia e a História.
CASTELO BRANCO E MANDU LADINO
O autor Anfrísio Neto Lobão Castelo Branco nasceu em 1944, em Teresina, Piauí.
Formou-se em Medicina e fez Pós-Graduação em Psiquiatria, foi diretor do Hospital
Psiquiátrico Areolino de Abreu, professor e, posteriormente, Reitor da Universidade Federal
do Piauí (UFPI). Desempenhou cargo de Secretário de Educação do Estado e Conselheiro do
Tribunal de Contas. Escreveu vários trabalhos em sua área de atuação médica. Em 1983,
lançou a obra Manual de Psicologia Médica e, em 2006, publicou o seu primeiro livro de
ficção, o romance Mandu Ladino.
Mandu Ladino narra a saga do índio Mandu, que teve acrescido o nome de Ladino,
antonomásia alcunhada por um padre capuchinho devido ao seu comportamento um tanto
ardiloso, por isso virou Mandu Ladino, personagem que se tornou símbolo da resistência
indígena contra o processo de conquista impetrado pelo colonizador português.
A narrativa ambienta-se no final do século XVII e início do XVIII, período em que
os bandeirantes e pecuaristas vindo de São Paulo, Bahia, Pernambuco, Maranhão e Ceará
iniciaram o processo de povoamento das terras do Piauí. Tais aventureiros abriram estradas,
ergueram currais, escravizaram índios, fizeram filhos nas índias e, invariavelmente,
matavam os nativos que se rebelavam na região.
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
O índio Mandu Ladino pertencia à tribo dos Abelhas, indígenas que “faziam parte
dos Alongares, índios tapuias, nativos que se distinguiam pelo tom de pele avermelhado e
que habitavam aquela região de campos planos” (CASTELO BRANCO, 2006, p. 11). A
tribo de Mandu Ladino foi dizimada pelos colonizadores portugueses, sendo o indígena
levado para um aldeamento de padres capuchinhos onde aprendeu português, rudimentos de
espanhol e os costumes dos brancos. Posteriormente, fugiu desse aldeamento e voltou para
as terras do Piauí, mas foi capturado por homens para ser escravo de uma fazenda. Algum
tempo depois, foge novamente e dá início ao seu processo de resistência para expulsar o
branco usurpador.
O PROCESSO DE COLONIZAÇÃO DO PIAUÍ
De acordo com Machado (2002, p. 15), no Piauí, durante um considerável tempo,
referente aos períodos colonial e imperial, ocorreu o mais cruento extermínio de nações
indígenas da América do Sul. Tal processo iniciou-se no século XVII, prolongando-se até o
final do século XVIII. As nações indígenas que habitavam os vales férteis dos rios
formadores da bacia hidrográfica parnaibana piauiense foram eliminadas pelos fazendeirosexploradores, “que promoveram a destruição das aldeias para viabilizar a instalação das
fazendas-criatórios de bois e cavalos. Este fato ocasionou os deslocamentos constantes das
tribos formadoras das nações [...]”.(MACHADO, 2002, p. 15).
Durante esses dois séculos, diversas tribos e nações lutaram bravamente para se
defender e expulsar o colonizador na região que hoje corresponde ao Estado do Piauí. No
entanto, nenhuma ganhou a dimensão de Mandu Ladino e os índios comandados por ele,
pois conseguiu organizar o levante geral de todos os Tapuias do Norte de 1712 para1713,
unindo tribos e nações secularmente inimigas. Segundo Chaves (1995, p. 41, grifos nossos),
ele “havia sido educado pelos padres da Companhia de Jesus. Inteligente, astuto[...], liderou
as tribos rebeladas, dividindo-as em guerrilhas e passou a hostilizar os brancos.”
Tais foram as façanhas desse índio, que o governo enviou contra ele uma expedição,
formada por brancos, mestiços e índios pacificados, sob o comando do Mestre de Campo
Antonio da Cunha Souto Maior. Esta expedição foi derrotada graças a um ardil de Mandu
Ladino que conseguiu fazer com os que os índios que estavam do lado dos brancos
passassem para o seu lado, conforme relata Chaves (1995, p. 42), “[...] conseguiu entrar em
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
negociações com os índios da expedição, sublevandos-os. E num dia determinado, os índios
rebelados mataram [...] todos os soldados [...]. Escapou apenas um para dar a notícia do
massacre ao Mestre de Campo, que ficara no arraial.”
Depois desse episódio, o nome de Mandu Ladino já havia corrido fama e sua cabeça
posta a prêmio. Esse nativo passou a representar uma ameaça ao poder oficial e deveria ser
eliminado para que o projeto de colonização dessas terras se fizesse acontecer, esses índios
passaram a ser denominados de índios de corso. Dois anos depois, marcharam contra os
índios de corso duas expedições: uma do Maranhão, sob o comando de Francisco Cavalcante
de Albuquerque, e outra do Piauí, liderada pelo Mestre de Campo Bernardo Aguiar,
proprietário da fazenda Bitorocara.
Com reforço, esses indígenas foram eliminados. Mandu Ladino teria morrido
afogado, quando, procurando escapar à perseguição que lhe moviam, atravessava o rio
Parnaíba para o lado do Piauí (CHAVES, 1995). A versão das circunstâncias da morte de
Mandu Ladino é contestada por alguns pesquisadores, pois estes acham pouco provável que
esse índio morresse afogado em águas que ele muito conhecia, acreditam que ele teria
conseguido fugir para outras terras, como sugerem algumas lendas citadas por Castelo
Branco, no epílogo de Mandu Ladino. O romance de Castelo Branco encerra o relato da
matança dos indígenas com a morte de Mandu Ladino. Porém, segundo a história oficial, o
extermínio prossegue.
A situação piora para o indígena quando a Província do Piauí foi criada, pois em
1759, o primeiro Governador da Província, que havia recebido a incumbência de proteger os
índios da influência dos Jesuítas e de restituir aos índios “as liberdades de suas pessoas, bens
e comércio” (CHAVES, 1995, p. 46), pede licença para fazer guerras aos índios, sob
alegação de que estes assaltavam fazendas, matavam pessoas e roubavam gado. Essas
ocorrências eram apenas casos isolados. Para resolver essas ameaças, surge o TenenteCoronel João do Rego Castelo Branco, figura conhecida como o maior matador de índios
que já houve na história do Piauí. Travou guerra com os Acaroás, os Pimenteiras, os
Gueguês e outros, não escapou um só àquela caçada feroz (CHAVES, 1995).
Em 1776, João do Rego ataca os Pimenteiras, estes serão totalmente destroçados em
1783. Em 1780, os Gueguês também tentam fugir dos aldeamentos, mas são totalmente
abatidos. Em 1793, há o último levante de índios no Piauí, na região de Parnaguá, são os
Tapecuás e Tapecuás-Mirim. Foram batidos e arremessados para o lado de Goiás. Desde
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
então não houve mais luta com os índios na Capitania. As tribos mais indômitas tinham sido
aniquiladas e as demais estavam definitivamente pacificadas (CHAVES, 1995).
CONFRONTOS IDENTITÁRIOS EM MANDU LADINO
Os estudos pós-coloniais muito têm contribuído para rever a história dos povos e
nações que foram submetidos ao colonialismo europeu: negros retirados de suas pátrias e
barbaramente escravizados; índios expulsos de suas terras, espoliados em suas riquezas ou
aculturados; orientais que tiveram sua cultura reinventada pelos brancos; a condição
feminina de ser duplamente colonizada e outros.
Uma das vertentes de que tratam as pesquisas pós-coloniais diz respeito ao estudo da
alteridade, isto é, a concepção que parte do pressuposto básico de que todo homem social
interage e interdepende do outro. Assim, como muitos antropólogos e cientistas sociais
afirmam, a existência do eu-individual só é permitida mediante um contato com o outro, que
em uma visão expandida se torna o Outro, a própria sociedade diferente do indivíduo.
Todorov, em A Conquista da América: a questão do outro, discute o tema da
identidade e do reconhecimento do outro num determinado período histórico, que é a
descoberta da América e a criação do Novo Mundo. Segundo ele:
Podem-se descobrir os outros em si mesmo, e perceber que não se é uma
substância homogênea, [...]; eu é um outro. Mas cada um dos outros é um eu
também, sujeito como eu. [...] Posso conceber os outros como uma abstração,
como uma instância da configuração psíquica de todo indivíduo, como o Outro,
outro ou outrem em relação a mim. [...] Ou então como um grupo social concreto
ao qual nós não pertencemos. Ou pode ser exterior a ela, uma outra sociedade [..]
tão estrangeira que chego a hesitar em reconhecer que pertencemos a uma mesma
espécie.(TODOROV, 2003, p. 5-6)
Todorov (2003) afirma que os europeus não conseguiram ver o outro como
constituinte, como parte integrante de si, ao contrário, a diferença foi vista como algo que os
distanciava e, é claro, colocava-os na condição de um eu superior e o outro inferior, a tal
ponto, que se chegava a duvidar se o outro pertenceria à mesma espécie.
Confirmando essa ideia, Castelo Branco (2006, p. 216) em Mandu Ladino discorre
sobre o que representou o encontro do branco e o indígena em solo piauiense:
O povo europeu tomou conhecimento de que no mundo havia outros homens com
aparência e costumes muito diferentes dos seus. Lamentavelmente, o que o
conquistador branco não conseguiu ver foi que por detrás da diferença avultava a
igualdade humana; e esta visão caolha, tão desfocada da essência dos fatos, acabou
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
por prevalecer, moldando a relação antagônica que vieram a estabelecer com os
aborígenes.
Esse discurso desfocado permitiu que o branco civilizado adquirisse a inteira
liberdade para se apoderar do índio e o relegasse à condição subumana, à categoria de
animais, “despossuído de todo valor; visto apenas como ladrão de gado, o pagão, o bárbaro,
o canibal, enfim nada mais que um reles ser inferior e, como tal, desprovido de todo direito”
(CASTELO BRANCO, 2006, p. 216). Esse conquistador, acreditando em seus hábitos
civilizados e, amparados na lei do Rei e da Igreja, cometeram as maiores atrocidades durante
séculos, sem o menor sentimento de culpa.
Da parte dos indígenas também houve, num primeiro momento, uma visão distorcida
da realidade. Os índios ficaram admirados com a presença dos estranhos homens brancos,
encourados, montados em espantosos animais e com armas de fogo na mão. “O fosso
cultural era intransponível mas, a princípio, essas visões se fazem benfazejas, porque os
tomam como criaturas enviadas pelos deuses. Desfeito o engano, logo já são visões
terroríficas, porque destroem, escravizam, matam” (CASTELO BRANCO, 2006, p. 217).
Em outro trecho do romance, Castelo Branco (2006, p. 14) mostra, com riqueza de detalhes,
a imagem que Aluhy, índia irmã de Mandu, tinha dos brancos:
ela os via tão assombrosos quanto monstros; um tipo de besta-fera de quatro patas
com cascos no lugar dos pés e duas cabeças: uma de animal, como um grande
veado sem chifres projetada à frente e a outra, no alto, sobre um tronco de homem,
[...] com a pele mais clara e abundantes pelos no rosto. [...] seguravam longos
bastões, talvez a tão temida mokaba, a perigosa flecha que cuspia morte. [...]
chegavam até a dizer que o Deus dos brancos era mais poderoso do que Tupã, uma
vez que Ele concedera aquela nova arma [...] para que pudesse sempre vencer a
guerra.
Evidentemente, essa visão também representa uma distorção da realidade, uma vez
que os brancos não eram deuses, tampouco tinham um Deus mais poderoso, apenas sua
tecnologia bélica era mais avançada. Essa mentalidade ajudou o branco, que imbuído de
interesses escusos, aproveitou-se dessa fragilidade para trocar os famosos espelhinhos,
gorros, pedaços de tigelas e taças de vidros quebradas por pedras preciosas ou ouro.
Colombo conta, despudoradamente, em seus relatos de viagem, que, querendo obrigar os
índios a trabalharem de graça para ele, inventou que iria sumir com a o astro da noite, a Lua,
disse isso porque sabia que iria haver um eclipse lunar (TODOTOV, 2003).
Montaigne (1991) relata em seu célebre ensaio “Dos Canibais”que havia ficado
impressionado com o grau de civilidade dos índios, uma vez que estes viviam em
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
comunidades igualitárias do ponto de vista social. Certa vez, travando conversa com um
desses nativos que estivera na Europa, no início da Conquista, foi tomado de assombro
quando este lhe falou de sua impressão sobre a sociedade dos brancos.
Disseram que, em primeiro lugar, [...], tinham reparado que havia entre nós
pessoas cheias e fartas de comodidades de toda ordem, enquanto a outra metade
mendigava às suas portas, descarnada de fome e de miséria; e que lhes parecia
também singular como essa outra metade podia suportar tamanha injustiça sem
estrangular os demais e lançar fogo a suas casas. (MONTAIGNE, 1991, p. 6)
A observação do índio em relação à civilização branca, ao ver tanta pobreza em meio
ao luxo e à opulência, de fato, parece razoável, pois para um povo que se dizia evoluído, era
de se supor que não houvesse tamanha desigualdade para com os seus semelhantes.
Contrariamente, as culturas indígenas procuravam partilhar tudo o que tinham, não existia os
alimentos que pertenciam a uma só família, como se pode ver em Castelo Branco (2006, p.
122):
Diferindo do casamento na cultura dos brancos, os indígenas não formavam um
grupo familiar apartado, nem possuíam o sentimento de propriedade exclusivista
no sentido de que esta casa é só de nós dois ou esta caça que matei só nós dois e
mais nossos filhos é que delas podemos comer. Não, entre os nativos, a moradia
era comunitária, onde várias famílias habitavam o mesmo teto e a comida era
sempre repartida com os demais. Até os próprios filhos eram criados pela
comunidade onde todos tinham obrigações nas tarefas de proteger, alimentar,
ensinar e disciplinar. [...] nasciam e se criavam num sistema [...] nem um pouco
individualista.
O trecho acima, do romance Mandu Ladino, ilustra, perfeitamente, o grau de
evolução enquanto civilização em que se encontravam os indígenas, uma vez que
procuravam dividir não só toda a comida, mas todos os demais bens que necessitavam para
sobreviver, não havendo, tamanha desigualdade como se via e ainda vê nas culturas ditas
como civilizadas.
Merece destaque também a colaboração da Igreja no processo de aculturamento do
indígena, pois a Companhia de Jesus ajudou a instalar e a administrar os aldeamentos, que
eram espaços de segregação, criados à semelhança de campos de trabalho forçado,
administrados por clérigos e militares do Estado Português, “em que se davam a prática da
doutrina e da exploração da força de trabalho dos indígenas, o que contribuiu ainda mais
para a degradação das referidas expressões culturais nativas” (MACHADO, 2002, p. 15). O
projeto de propagação da fé cristã fazia parte da colonização, segundo afirma Castelo
Branco:
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Imbuíram-se então da missão de convertê-los e, desta forma, transformaram-se em
agentes de assimilação dos nativos aos padrões da cultura cristã e europeia. A
adoção de uma política de destribalização e a veemente condenação dos costumes
ancestrais – como o xamanismo, a influência dos pajés, o politeísmo, a poliginia e
o próprio canibalismo – romperam raízes culturais importantes. Agora,
despossuídos de suas terras, pela usurpação pura e simples e, de seus corpos, pela
escravização, os brancos tomavam-lhe também a alma, pela conversão; [...]
perdiam força e identidade cultural.
Embora conste que a igreja tenha combatido os maus tratos aos nativos, em dado
período, chegando a conseguir da Coroa Portuguesa leis e éditos de proteção aos mesmos e
garantindo-lhes a sobrevivência nos aldeamentos, o trabalho missionário, por mais bem
intencionado que tenha sido, ajudou no processo de aculturamento do indígena e progressivo
desaparecimento dessas culturas. De acordo com Castelo Branco (2006, p. 217), “os padres
[...] não souberam valorizar a forma de ser [...] daquela gente: seus mitos, suas crenças, suas
visões de mundo e suas relações com a natureza e com os outros [...], não viram nem
respeitaram o patrimônio cultural que tinham diante de si.”
Os indígenas desse solo lutaram heroicamente contra esse processo de
aculturamento, não se deixando sujeitar pelos invasores. Os levantes organizados por Mandu
Ladino e por outras tribos que vieram depois são alguns desses exemplos de resistência. Os
brancos, contudo, acabaram dominando a região e o índio sucumbiu face a esse domínio, em
função da exploração no trabalho, da dureza do tratamento, da fome, da doença, dos
morticínios e perseguições e da forçada miscigenação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Concluímos que a cultura eurocêntrica, representada pela figura do colonizador
branco português, convencida de sua superioridade cultural e intelectual, colocou o índio sob
o estigma da inferioridade cultural, situação legitimada pelos discursos hegemônicos.
Posicionando o nativo como o outro, impôs essa ideologia aos povos que habitavam o solo
piauiense, estabelecendo entre eles uma relação de sujeito (colonizador) e objeto
(colono/índio). Para assegurar tal relação, o colonizador usou do seu poderio bélico para
provocar a violência sem limites, a matança indiscriminada, o que pode ser apontado como
um genocídio. Os que se rendiam, principalmente, mulheres, crianças e idosos, tiveram que
se descaracterizar e absorver a cultura do branco, através da utilização de uma nova língua,
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
de uma nova religião, de uma nova identidade. Essa decadente condição caracteriza-se como
um etnocídio. Contudo, houve os que não se entregaram e lutaram bravamente até a morte
contra este projeto das culturas hegemônicas, como exemplo dessa resistência, temos Mandu
Ladino, maior expressão da luta por liberdade dos povos indígenas nativos que habitaram as
terras do Piauí e que o romance de Castelo Branco resgata.
REFERÊNCIAS
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Província de Piauí. Teresina: COMEPI.
BONICCI, T. & ZOLIN, L. O. (2005). Teoria Literária: abordagens Histórias e tendências
Contemporâneas. (2. ed.). Maringá: EdUEM.
CASTELO BRANCO, A. N. L. (2006). Mandu Ladino. Teresina, [s.n.].
CHAVES, J. C. (1995). O índio no solo piauiense. (3. ed.).Teresina: Fundação Cultural
Monsenhor Chaves.
CRUZ, F. I. L. de O. da; FRANCO, R. K. G. & LUSTOSA. J. M. O aprendizado histórico
de luta e resistência de Mandu Ladino no Nordeste do Brasil à expansão colonial. In: IV
FIPED- Fórum Internacional de Pedagogia UFPI, 4., 2012, Parnaíba/Piauí. Anais
eletrônicos...
Campina
Grande:
Realize
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2012.
Disponível
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<http://http://www.editorarealize.com.br/revistas/fiped/trabalhos/755850b63f214c33997b03
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MACHADO, P. H. C. (2002). As trilhas da morte: extermínio e espoliação das nações
indígenas na região da bacia hidrográfica parnaibana piauiense. Teresina: Corisco.
MONTAIGNE, M. de. (1991). Dos canibais. IN: MONTAINE, Michel de. Ensaios. (5. ed.).
Tradução de Sergio Millet. São Paulo: Nova Cultural.
SILVA, J. C. C. da. (1991). Abelheiras: o último reduto da Casa da Torre do Piauí.
Teresina: Gráfica e Editora Júnior LTDA.
TODOROV, T. (2003). A conquista da América: a questão do outro. Tradução Beatriz
Perrone-Moisés. (3. ed.). São Paulo: Martins Fontes.
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
História e ficção em Hitler manda lembranças de Roberto Drummond34
Drª Gilvone Furtado Miguel35- UFMT/CUA
[email protected]
Resumo: Da perspectiva da metaficção historiográfica (HUTCHEON, 1991, 1992),
tomamos o romance Hitler manda lembranças (1984) do mineiro Roberto Drummond em
seus aspectos historiográficos mesclados à metaficção. A problematização da história pelo
pós-modernismo ocorre no questionamento do conteúdo oficial objetivando alcançar uma
reavaliação crítica da história, num processo que envolve questões relacionadas à forma
narrativa, à intertextualidade, às estratégias de representação, à função da linguagem,
colocando em debate as verdades instituídas. Ao amalgamar ficção e realidade, Drummond
constrói uma narrativa estruturada com acontecimentos que registram o tempo presente e
depoimentos que resgatam o passado histórico, o contexto político-social dos abusos e
horrores em dois períodos trágicos: a ditadura militar no Brasil e o nazismo de Hitler na
Europa. A habilidade de Drummond em lidar com a história político-social brasileira expõe
o fato de que o povo brasileiro tem um passado que deve ser repensado criticamente. A
opção do autor em relacionar esta fase brasileira ao horror nazista faz de sua obra um grito
ideológico. O que era indiscutível é tratado com ironia crítica e sutileza literária. Drummond
faz dessa obra o veículo da heteroglossia – “vozes variadas e opostas” (BAKHTIN, 1998) –
instaurando a necessidade de questionar as versões admitidas da história (WHITE, 1995).
Palavras-chave: história – metaficção- ironia crítica
O romance da pós-modernidade despe-se das vestes convencionais da linguagem e
da estrutura consagradas como modelos pela tradição literária. A literatura, enquanto forma
de arte, apresenta hoje um aspecto crítico, desconfiado, reflexionante e procura realizar a
crítica dentro de suas próprias estruturas, autolegitimando o diálogo crítico com o leitor. O
processo de reflexividade que se desencadeia na interação produtor/fruidor ultrapassa as
expectativas limitadas pela criação literária tradicional.
Schiller afirma que “a maneira de criar do gênio moderno é essencialmente reflexiva,
mesmo quando reclame para si o sentimentalismo” (1991, p. 26). A produção pós-moderna
instiga o leitor a percorrer o raciocínio crítico desenvolvido pelo autor em relação ao objeto 34
A obra Hitler manda lembranças de Roberto Drummond (1984) é objeto de estudo neste artigo e será, doravante, identificada pela sigla HML. 35
Doutora em Letras e Linguística/Estudos Literários/UFG (2007); docente e pesquisadora da Universidade Federal de Mato Grosso/Campus Universitário do Araguaia. 32
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
tema prestigiado, num processo ininterrupto de reflexividade. Este processo pressupõe um
leitor preparado, desconfiado, conhecedor e questionador. A literatura não mais se restringe
somente ao deleite que provem da pura imaginação fantasiosa e distante da realidade
presente ou passada, que comove pela natureza, individualidade e sensibilidade.
A literatura que se põe ao alcance do leitor no final século XX se distingue pela
abordagem de questões que dizem respeito à coletividade, tanto em relação à espiritualidade
humana, quanto à História dos povos. Esta literatura contém a cultura histórico-social e
busca firmar a sua autonomia estética, caracterizando-se também pela auto-reflexividade;
segundo Hutcheon (1991, p. 11) “o que caracterizaria o pós-modernismo na ficção seria
aquilo que aqui chamo de metaficção historiográfica”.
A ficção pós-moderna exprime com autoridade a problemática do pós-modernismo,
ou seja, levanta questões sobre o senso comum, problematiza, com espírito cético, fatos e
situações históricas e culturais que eram, antes, aceitos como certezas e verdades
indubitáveis. Ainda com Hutcheon, afirmamos que a ficção pós-moderna, assim como
outras formas de arte, centraliza-se no processo de abordagem das contradições pósmodernas e não num produto concluído e fechado. Enfim, o que está no âmago do pósmodernismo é o processo. E, nesse processo, o leitor é impelido a participar, pois o caráter
crítico-reflexivo da obra só se realiza mediante a atuação do leitor.
A problematização da história pelo pós-modernismo literário se dá pelo
questionamento dos pressupostos sobre o conteúdo oficial do conhecimento histórico e
objetiva alcançar uma reavaliação crítica da história, num processo que envolve questões
relacionadas à forma narrativa, à intertextualidade, às estratégias de representação, à função
da linguagem, vindo a construir a metaficção historiográfica que coloca em debate as
verdades aceitas tanto pela historiografia quanto pela literatura.
A metaficção historiográfica se caracteriza pela contestação paradoxal das
convenções. O recurso retórico, usado como estratégia que difere e subverte, é a ironia, que
não visa a demolição e nem a rejeição da história, as o questionamento reflexionante e a
possível revelação de subtexto ideológico que tenha determinado as condições de sua
produção ou de sua versão pública, pela apreensão problematizadora daquilo que é óbvio em
nossa cultura: “Não existe – ou não existe – de forma alguma, nenhuma ruptura. O presente
estudo é uma tentativa de verificar o que ocorre quando a cultura é desafiada a partir de seu
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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próprio interior: desafiada, questionada ou contestada, mas não implodida” (HUTCHEON,
1991, p. 16).
O romance da metaficção historiográfica conglomera em si os aspectos de autoreflexão intensa e, de maneira paradoxal, também se apropria de acontecimentos e
personagens históricos, sendo extrema e sutilmente crítico pela exploração de recursos como
a paródia, a intertextualidade e a diversidade de discursos e de gêneros – não há fronteiras
entre eles – numa deformação da estrutura romanesca tradicional; não há modelos nem
paradigmas.
A paródia é considerada por Hutcheon como uma forma pós-moderna perfeita, pois
incorporando e desafiando aquilo a que parodia, paradoxalmente instala a dúvida e a
reflexão crítica no espírito do leitor. A ironia é o recurso paródico por excelência,
empregado para comprometer e também para criticar por meio da intertextualidade paródica,
que insere para, depois, subverter.
Estas preliminares teóricas delineiam o contexto em que inserimos a obra Hitler
manda lembranças (1984), doravante HML, do escritor brasileiro Roberto Drummond, por
seus aspectos historiográficos mesclados à metaficção, cujo perfil passa pelo privilégio
literário dado à ironia na intertextualidade paródica presente em toda a obra. No contexto
mais amplo do pós-modernismo, Roberto Drummond se encaixa como contestador e
questionador dos padrões (anti)democráticos do período político-social do governo militar
no Brasil, estabelecendo, numa atitude de ousadia, uma intertextualidade com a política do
Nazismo de Hitler. Para isso, não lhe faltou criatividade para fazer coexistirem na mesma
obra, ficção e história, numa linguagem que dá conta dos recursos ilimitados da paródia.
Os deslimites da metaficção historiográfica de Roberto Drummond
A literatura pós-moderna de Roberto Drummond prima por uma relação paródica
com o passado histórico, provocando, de forma paradoxal, uma confrontação do presente e
do passado, tomados das perspectivas individual e coletiva. Hitler manda lembranças é uma
obra que ultrapassa os limites estruturais do romance; vence os limites da linguagem
narrativa ao explorar a diversidade discursiva na paródia; descentraliza a temática
resgatando fatos históricos do passado, agora vistos pela perspectiva do oprimido. A sua
narrativa bem humorada leva o leitor a vários contextos ideológicos, envolvendo-o numa
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
relação dialógica de caráter crítico-reflexivo sobre o Nazismo declarado de Hitler e o
nazismo velado da ditadura militar do Brasil.
O cenário é Belo Horizonte em Minas Gerais, mas este espaço é transgredido em
seus limites pela ação mnemônica das personagens que trazem à tona o cenário europeu do
Nazismo. Os aspectos parodísticos impregnam a narrativa, revelando que é possível
desvendar o que foi subjacentemente camuflado pelo discurso oficial.
Ao amalgamar ficção e realidade, Roberto Drummond constrói uma narrativa cujo
enredo se estrutura com base em acontecimentos que registram o tempo histórico do
presente e com depoimentos que resgatam o passado histórico, focalizando o contexto
político-social dos abusos e dos horrores impostos ao povo em dois períodos marcadamente
trágicos: a ditadura militar no Brasil e o Nazismo de Hitler na Europa. A narrativa histórica
de Roberto Drummond deve ser considerada, como nos diz Hayden White (1995, p.98),
“como aquilo que elas manifestamente são: ficções verbais cujos conteúdos são tanto
inventados quanto descobertos”.
A urdidura do enredo, a codificação dos fatos contidos na história, revela a
imaginação construtiva do autor, o seu faro para a verdadeira história que jaz oculta sob a
versão oficial. O enredo de Hitler manda lembranças pauta-se na versão dos fatos sob o
ponto de vista de suas personagens, confirmando que a “maioria das sequências históricas
pode ser contada de inúmeras maneiras diferentes, de modo a fornecer interpretações
diferentes daqueles eventos e a dotá-los de sentidos diferentes” (WHITE, 1995, p.101). O
enredo da obra em estudo situa o leitor nesta perspectiva:
Foi no meio de um clima de festa, pois desde a manhã foguetes começaram a
explodir em Belo Horizonte, que, na tarde daquela sexta feira, 4.813 empregados
da Brasil Corporation (entre homens e mulheres, funcionários e operários) ficaram
sabendo da existência da lista dos 417, com os nomes dos que iam ser colocado na
rua, até o dia 21 de dezembro, caso o México, que vivia em crise tão séria quanto a
do Brasil, não comprasse as 500 máquinas que prometeu comprar, já que o general
Jarulzelski cancelou a encomenda que a Polônia tinha feito antes do golpe militar.
Em meio a boatos, surgiram os nomes dos seis principais suspeitos de pertencerem
à Lista dos 417. Eles ficaram conhecidos como “Os seis malditos” e esta é a
história deles (e de seus sonhos, medos, lembranças, alegrias, seus fantasmas,
enfim.) (HML, p. 12-13)
Roberto Drummond cria personagens que vivem a realidade histórico-social do
momento brasileiro de ameaça do desemprego, de recessão, de crise existencial e, além
disso, lidam com as mazelas psicológicas de suas relações com o Nazismo alemão. A
utilização da memória, pelos processos da lembrança e recordação, é um dos recursos que
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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possibilita atribuir à história a verdade do sofrimento humano pela impregnação de
sentimentos tais como o medo, a dor, a saudade, a dúvida, a curiosidade, a revolta, a
vingança, a esperança, o impulso, o desejo. As sequências históricas são contadas do ponto
de vista e da interpretação daqueles que viveram e experimentaram o momento histórico,
tanto do passado nazista quanto do presente ditatorial militar:
Logo que terminou a guerra, já sabendo (mas sempre duvidando) que a irmã
Miriam tinha morrido no campo de concentração de Ravensbrück e que Eva
Zilberstein, [...] foi levada para a câmara de gás do setor feminino de Auschwitz,
Cohen fixou-se em Paris, [...] Buenos Aires, onde morou seis meses, e depois
partiu para o Brasil e decidiu morar em Belo Horizonte. (HML, p. 16-17)
a realidade de 1973: o medo, a insegurança, a inútil revolta, o desespero, a tristeza,
a angustia e a sensação de que tudo ia durar a vida inteira e que o Ditador de olhos
azuis como miosótis e nariz de pássaro era eterno. [...] A censura silenciava o
Brasil. É verdade que os jornais O Estado de São Paulo e Jornal da Tarde
publicavam versos de Camões e receitas culinárias em lugar das noticias
censuradas. [...] chegava até nós o rumor da Guerrilha do Araguaia (que ia acabar
destroçada) e quando tocava a campainha das casas e dos apartamentos nas
grandes cidades, tanto podiam ser as moças da promoção “Avon chama” vendendo
cosméticos, como os soldados ou os policiais do Ditador (HML, p.56-57).
A operação literária de Roberto Drummond revela a configuração das situações
históricas ficcionalizadas, pelo modo sutil com que harmoniza a estrutura do enredo com o
conjunto dos fatos históricos tornando inteligíveis tanto o passado pessoal quanto o passado
público, pelos depoimentos e relatos feitos pela voz das personagens. Hitler manda
lembranças é uma obra ficcional que nos refamiliariza com os acontecimentos que seriam,
aos poucos, esquecidos por acidente, desatenção ou recalque, que seriam apagados da
memória e da história da humanidade. Essa refamiliarização possibilitada pela metaficção
historiográfica, nos fornece mais informações, antes omitidas, sobre os fatos históricos
apresentados sob a perspectiva dos não-heróis, ou melhor, das vítimas.
Nesta narrativa histórica contida na narrativa ficcional, o leitor tem a oportunidade de
correlacionar os acontecimentos e processos passados com os do presente e, assim, iniciar
um processo de análise crítica da história:
Quando soube da Lista dos 417, Cohen comentou:
_ Depois de ter estado em Auschwitz e em Buchenwald, nada mais me assusta...
Mas, como se verá, Cohen estava mais uma vez enganado, da mesma forma que se
enganou quando desceu do comboio que o levou de Varsóvia a Auschwitz e
acreditou que os nazistas iam libertá-lo (HML, p.17).
O discurso de Roberto Drummond sintoniza com a teoria de Hayden White em
relação ao caráter metafórico da narrativa histórica: “Como estrutura simbólica, a narrativa
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
histórica não reproduz os eventos que descreve; ela nos diz a direção em que devemos
pensar acerca dos acontecimentos e carrega o nosso pensamento sobre os eventos de
violência emocionais diferentes” (WHITE, 1995, p.107).
A habilidade de Roberto Drummond em lidar com a história político-social do Brasil
põe em destaque o fato de que o povo brasileiro tem um passado que deve ser repensado em
termos críticos. A opção do autor em relacionar esta fase da história do país ao horror
nazista, fato, talvez, o mais vergonhoso da história da humanidade, faz de sua obra um grito
ideológico. O que era previamente considerado indiscutível, assunto intocável, é por ele
tratado com ironia crítica, com sutileza literária.
Diante da regra de que “ao resto da humanidade foi destinado um papel secundário
no drama da história” (BURKE, 1998, p.12), Roberto Drummond reage, transgredindo-a ao
narrar “a história vista de baixo”, ou seja, as versões das pessoas comuns que opinam de
acordo com sua experiência da mudança social naqueles momentos históricos, com sua
vivência pessoal que é, no entanto, a expressão da coletividade; é a voz pessoal que ecoa a
voz coletiva do povo oprimido.
As personagens de Roberto Drummond que condensam em si, mais diretamente as
experiências dos dois momentos históricos já referidos, da repressão e do Nazismo, são Stela
e Cohen. As memórias de Cohen e Stela “obrigam o leitor a ver sob nova luz elementos que
ele esqueceu mediante uma associação constante, ou que ele reprimiu em virtude de
imperativos sociais” (WHITE, 1995, p. 58), sobre o Nazismo de Hitler contra os judeus:
Na verdade, a Stela nem se permitiu as alegrias e os prazeres deste mundo (o que
me inocenta pelo ia acontecer mais tarde). Neste ponto, como em quase tudo, ela
era o oposto da Luna. E a razão da Stela ser assim, estava ligada ao que aconteceu
aos seus pais, e a ela própria, na Alemanha Nazista, quando Berlim estava sendo
bombardeada pelos Aliados e a sirene do alarme tocava. – Ainda hoje – dizia a
Stela – eu escuto a sirene de alarme tocando em Berlim... (HML, p.29).
Roberto Drummond faz o relato histórico do passado na voz das personagens,
recusando o ponto de vista oficial sobre os fatos, “interfere no registro histórico em pontos
diferentes e estabelece a respeito dele perspectivas diferentes” (WHITE, 1995, p.57),
emocionalmente carregadas da verdade obscurecidas na versão oficial divulgada:
Mesmo nos piores anos do Nazismo, muitos judeus viviam como clandestinos na
Alemanha de Hitler, e uma boa parte sobreviveu até a queda do III Reich. Eles
mudavam de nome e, com a ajuda de alemães e de diplomatas estrangeiros,
conseguiam as senhas de racionamento, sem as quais morreriam à fome, pois, sem
elas, ninguém comprava nada em Berlim. Viviam com muito medo, mas o medo
de serem mandados para um campo de concentração (o que, já àquela altura,
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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deixava de ser segrego para os alemães) era muito maior que o medo da Gestapo
(HML, p. 30).
Nunca Cohen, então um adolescente, acreditou que Hitler pudesse vir – e em
Auchuwitz (aos domingos, que eram os piores dias, porque a cabeça girava como
uma bola) vendo os prisioneiros, as barracas do campo, a fome, a morte, a câmara
de gás, o trabalho forçado, os guardas SS, e a lembrança da avó Ula morrendo no
Levante do Gueto de Varsóvia (e ele, a poucos metros dela, vendo seu frágil corpo
vestido de negro elevar-se do chão, como se fosse voar, na hora da explosão),
Cohen pensava que tudo ali fazia parte de um filme do Conde Drácula a que a avó
Ula assistiu em Berlim, quando as avós ainda podiam ir a Berlim (HML, p.91).
Para tornar mais inteligíveis os conflitos do período da repressão militar no Brasil, o
romancista narra os episódios partindo de mais de um ponto de vista, exprimindo tanto a
perspectiva coletiva quanto individual. Num cenário de desemprego, fragmentação familiar,
evolução do comportamento moral e social, manifestações públicas e artísticas, mazelas
sociais e físicas, repressão do pensamento e dos direitos civis, Roberto Drummond
contextualiza seis personagens que dão voz à história político-social do país. O seu registro
histórico não se comprova verdadeiro através de documentos – que seriam sempre os
oficiais e, portanto, tratariam os fatos históricos de um único e direcionado ponto de vista –
mas, Roberto Drummond se revela um conhecedor bem informado, que explora os efeitos
psicológicos do medo internalizado nas personagens; o medo é o fio que puxa suas histórias
pessoais, dá-lhes suporte e as aproxima pela tensão e pela expectativa de um futuro
desconhecido, incerto e inseguro. O motivo central da narrativa é a demissão de 417
funcionários de uma empresa multinacional, cuja lista a ser divulgada em data marcada é
encabeçada por Paulo Franz que assume a voz do narrador.
O autor faz de sua obra o veículo da heteroglossia _ “vozes variadas e opostas”,
conceito caro a Bakhtin (1998) – comprovando que não há uma única visão correta da
história e, sim, várias; cada uma com seu estilo de representação, diferentes orientações de
ordem efetiva e intelectual ao olhar o passado. Sem sobrecarregar a narrativa com dados ou
estatísticas, Roberto Drummond apresenta os fatos históricos não à luz de “sua condição
passada e, sim, à luz de sua condição presente” (WHITE, 1995, p. 61). Observe-se:
Mas vamos observar Cohen nesta noite de sexta-feira: ele deixava a casa de
lanches Tuim, ainda, com a maçã na mão e alcança a esquina dos aflitos, na
Afonso Pena com Carijós, junto da Café Pérola, como faz toda noite; agora, na
imaginação, Cohen anda pela Rua Nowolipki e não tem 57 anos, nem seu nome
aparece como um suspeito de pertencer á Lista dos 417; tem 13 anos, e é um
menino judeu, e os soldados de Hitler ainda não chegaram a Varsóvia (HML,
p.91).
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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A metaficção historiográfica pós-moderna de Roberto Drummond provoca no leitor a
conscientização da necessidade de questionar as versões admitidas da história, juntando
história e ficção, procurando reduzir a distância entre o passado e o presente, de forma
reflexiva, abusando da ironia crítica para reescrever o passado “dentro de um novo contexto”
(HUTCHEON, 1991, p.157).
Os deslimites da estruturação da narrativa
O romancista historiográfico deve ter a percepção clara de que o seu trabalho é uma
representação do que aconteceu e não uma reprodução dos fatos. Para que isso se torne uma
conscientização junto ao leitor, nos diz Burke, “O objetivo de buscarmos uma nova forma
literária é certamente a consciência de que as velhas formas são inadequadas ao nossos
propósitos” (BURKE, 1998, p.336).
Considerando as premissas anteriores, constatamos que a obra Hitler manda
lembranças, Roberto Drummond rompe com o dogma segundo o qual um relato histórico
precisa contar uma história de maneira usual, ou seja, cronologicamente ordenada, pois as
lembranças, recurso utilizado por ele, não vêm à memória na ordem em que as coisas
aconteceram; a sequência narrativa dos fatos ficcionais é intercalada pelo vaivém dos fatos
históricos e trechos de pura ficção.
Roberto Drummond puxa os fios das histórias pessoais das personagens,
estabelecendo elos diretos ou indiretos com Hitler e seu nazismo. As lembranças que “Hitler
manda” estão em todo o decorrer da narrativa, seja nos fato e atitudes da repressão militar
brasileira (DANTAS, 2003) – aspecto coletivo –, seja por parentesco ou proximidade com
personagens que fornecem o testemunho e os elementos para a narrativa – aspecto
individual. Esta estratégia literária possibilita um tipo de conhecimento multi-interpretativo
sobre a história dentro da ficção literária:
Havia muitos anos que ela estava morta, mas na hora em que eu soube que podia
ficar desempregado, tive saudade de seu frágil vulto bêbado, pois minha mãe
tornou-se uma alcoólatra desde que foi abandonada por meu pai, que, como já foi
falado, era um ator da pior espécie, cuja glória nos idos de 1940, quando o
nazismo parecia dominar o mundo, era sua extraordinária semelhança com Adolf
Hitler de quem copiava o bigode e o penteado (HML, p.19).
– Não, eu não posso esquecer quem eu sou – ela continuou. – Não posso esquecer
que a Gestapo matou meu pai num anoitecer de Berlim. Não posso, e eu nunca vou
esquecer o que a Gestapo fez com minha mãe, naquele mesmo anoitecer de
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Berlim. E eu não vou esquecer o que minha mãe passou no campo de concentração
de Ravensbrück... (HML, p.47).
Segundo White (1995, p.57) a metaficção historiográfica “livra-se da necessidade de
construir um enredo com heróis, vilões”, à maneira tradicional. As personagens de Roberto
Drummond não são hierarquizadas nem rotuladas de heróis ou vilões; todas têm, na obra,
vez e voz; não tem destaque por grandes ou especiais feitos, mas, são pessoas comuns,
batalhadoras, sofredoras, vítimas do grande vilão que é o sistema político-social militar.
Identificadas pelo sentimento do medo (do desemprego, do passado, do futuro, dos
próprios segredos), os protagonistas da metaficção historiográfica Hitler manda lembranças
sintonizam com o que diz Hutcheon: “podem ser tudo, menos tipos propriamente ditos: são
os ex-cêntricos, os marginalizados, as figuras periféricas da história [...] não são
representantes de coisa alguma” (1991, p.151).
Hutcheon (1991, p.185) ainda diz que “aquilo a que a história se refere é o mundo
real; aquilo a que a ficção se refere é um universo fictício”. Roberto Drummond, na tessitura
de seu romance metaficcional, recusa a separação entre a referência ficcional e a referência
dos relatos do passado histórico. Neste contexto está inserido o leitor, que é conclamado a
participar, a sair da passividade, pois, o autor deixa transparente a consciência de que
escreve para leitor, com quem trava um diálogo desde o primeiro parágrafo da obra: “Antes
que vocês pensem, como muitos estão dizendo, que Cohen é mesmo culpado, convém,
narrar os fatos desde o início” (HML, p.11).
O autor fornece ao leitor uma espécie de roteiro para a leitura, situando-o no plano da
obra:
Sobre meus passos, quando anoiteceu naquela Sexta-feira (incluindo, mais tarde, a
ida à “Noite da Bruxa” com Aura Magalhães Pinto e a confusão em que nos
metemos), vou falar mais adiante (HML, p.19).
Para ser verdadeiro e não enganar a ninguém (nem mesmo a mim mesmo), devo
contar que [...] (HML, p.54)
Como prometi, vou dar conta de mês passos na noite daquela sexta-feira em que a
Brasil Corporation (HML, p.73)
Pareyson discute os conceitos imbricados de inovar e conservar afirmando que só
podem ser exercidas conjuntamente, já que:
continuar sem inovar significa apenas copiar e repetir, e inovar sem continuar
significa fantasiar no vazio, sem fundamento; e além disso, exige criatividade e
obediência ao mesmo tempo, porque não pertencemos a uma tradição se não a
temos em nós (1997, p.137).
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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O romance de Roberto Drummond é a demonstração desta ideia de Pareyson. A
narrativa é estruturada de forma a desestruturar a tradicional divisão em capítulos; o autor
insere os elementos de uma apresentação convencional, mas depois os subverte,
estabelecendo uma amplitude intertextual com vários referentes do período histórico da
ditadura militar. A ideia da luta travada pelas personagens em prol da vida, da libertação dos
seus próprios fantasmas herdados dos conflitos impostos pelos regimes político-sociais, vem
diluída no esquema da organização de uma luta de boxe, expediente aproveitado por Roberto
Drummond ao dividir, num primeiro plano, a obra em 7 partes maiores intituladas “rounds”,
intercaladas por “intervalos”:
Em lugar da carta de Eva Zilberstein, havia uma corrente chamada ‘Corrente dos
amigos de Hitler’, e Cohen sentiu que era um boxeur que, no último ‘round’, é
esmurrado e sente que vai ser nocauteado. Então, Cohen levantou da cama e, com
os passos vacilantes de um boxeur que sente a ameaça do nocaute, andou até a
janela do quarto, como se evitasse um novo jab do adversário, e Cohen olhou a
noite e recuperou a força e voltou ao centro do quarto, como se fosse ao centro de
um ringue, e disse em voz alta:
– Ainda não será desta vez, Adolf Hitler, que você me fará beijar a lona (HML,
p.427).
A narrativa desenvolve-se, ainda, seguindo um esquema estrutural mais complexo,
pois cada “round” é, num segundo plano, subdividido em partes intituladas, cada uma por
sua vez, de Dossiê, Informes, Apontamentos, Ato, Fragmento, Dados, Novos
dados,
Epílogo, Notícias, etc., termos estes que estabelecem a relação intertextual com os referentes
textuais dos documentos dos registros de investigações oficiais e sigilosas, características do
período militar. À maneira de um arquivo, estas partes são numeradas e juntadas às
anteriores. Para melhor caracterizar o intertexto estrutural, Roberto Drummond subdivide
cada uma destas partes em incisos (I,II,III...) alíneas (a,b,c,...), atos (nº 1,2,3,...), números
sequenciais (Informe nº 1, Informe nº 2,...), apropriando-se da linguagem técnica
organizacional dos processos e inquéritos policiais. O leitor é instalado no contexto da
censura, da violência, da falta de liberdade de expressão, também pela inserção do texto
jornalístico e do destaque às notícias fúteis que substituíam as informações censuradas e
impedidas de divulgação:
Afinal, quem é você Luna, a faxineira?
(texto publicado no Washington Post, que coloca luz e mistério sobre o que
significa Luna, a faxineira de Manhattan, assinado por John Ernest William)
(HML, p.335).
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Luna, a faxineira pode morrer de amor
(condensado de despachos telegráficos das agências UPI, FA, AP, Reuters, Efe e
Prensa Latina, Sobre os 21 dias de greve de fome de Luna, a faxineira de
Manhattan, falando do medo de que ela morra como os guerrilheiros do IRA).
Luna, a faxineira de Manhattan, como ficou conhecida, entrou ontem no 21° dia de
greve de fome ao pé da Estátua da Liberdade, sem ter conseguido qualquer sucesso
no seu objetivo (HML, p.307).
Roberto Drummond enriquece a escrita da história pela nova forma que dá à sua
narrativa, contando, de maneira singular, fatos e acontecimentos a partir de perspectivas
múltiplas, ampliando assim, a abordagem histórica, para além da versão oficial
documentada. O seu discurso sintoniza com o de Peter Burke, quando este diz: “Estas novas
formas incluem a micronarrativa, a narrativa de frente para trás e as histórias que se
movimentam para frente e para trás, entre os mundos público e privado, ou apresentam os
mesmos acontecimentos a partir de pontos de vista múltiplos” (1998, p.347).
Em Hitler manda lembranças percebe-se uma movimentação da narrativa que flui
com liberdade e autonomia de linguagem entre o mundo público e o particular das
personagens, que vai e vem entre os fatos do passado e do presente, demostrando ampla
visão do autor sobre a história de seu tempo e do tempo passado.
Paródia e intertextualidade: o caminho do exercício crítico
O texto Literário de Roberto Drummond revela-se como uma rede de relações com
outros textos, coexistindo em sua estrutura um cruzamento de superfícies textuais – a
intertextualidade que pressupõe o envolvimento do autor, do leitor e dos textos resgatados e
insertos na obra parodisticamente.
A intertextualidade na arte de Roberto Drummond implica uma perspectiva histórica
– aspecto este já abordado nesse estudo – que elucida o conhecimento da história expresso
na leitura que a ficção que faz dela, pois, conhecedor e contemporâneo da história do
período do regime militar no Brasil (LOPEZ, 2000), Roberto Drummond usa os recursos da
ficção para produzir sua reflexividade crítica de escritor.
Os elementos históricos do passado são problematizados e questionados a partir do
presente também histórico: o autor lida com duas realidades históricas contextualizadas na
ficção dos fatos e acontecimentos da vida das personagens. Roberto Drummond desencadeia
a reflexibilidade crítica, característica da metaficção historiográfica, bem como é
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característica também do poeta sentimental/reflexivo, como assinala Schiller (1991); a
atividade reflexiva do autor exige sintonia com o leitor também reflexivo, um leitor que
interage com a obra por meio da reflexividade. Roberto Drummond, em Hitler manda
lembranças, comunga com a afirmação de Schiller:
A atividade reflexionante é, pois, a marca do poeta sentimental. Mas vê-se, além
disso, que a própria experiência do leitor moderno é mediada pela reflexividade,
uma vez que ele não é ‘capaz de entender a natureza em primeira mão’ e só pode
‘suportar sua imagem refletida pelo entendimento’. O poeta sentimental não
apenas reflete, mas também convida o leitor a percorrer o mesmo fio de raciocínio
em relação ao objeto (1991, p.27).
Roberto Drummond alcança um alto nível de reflexividade no espaço do intertexto
com a história, através de um fazer literário bem humorado pelo uso do recurso paródico da
ironia, que expressa a relação paradoxal com a história em seu aspecto rígido e sisudo,
porém, sem deixar desvanecer a seriedade da obra. Segundo Hutcheon (1991, p.48): “A
inclusão da ironia e do jogo jamais implica necessariamente a exclusão da seriedade e do
objetivo na arte pós-modernista”.
Hutcheon, ao discutir a intertextualidade em sua obra A poética do pós-modernismo
(1991) nos diz que, em relação à metaficção historiográfica, é exigido do leitor não apenas o
reconhecimento de vestígios textualizados do passado literário e histórico, mas também a
percepção daquilo que foi feito, por intermédio da ironia, a esses vestígios. Na literatura pósmoderna de Roberto Drummond a intertextualidade declarada caracteriza sua metaficção
historiográfica. O tom irônico espalha-se por todo o romance Hitler manda lembrança,
constituindo uma paródia ampla, que ativa o passado num contexto novo, irônico e exige do
leitor conhecimentos e memória. A paródia de Roberto Drummond não pode ser designada
como imitação ridicularizada, mas, sim, como exercício crítico profundo, tanto nos aspectos
históricos quanto literários, pois segundo Hutcheon (1991, p.17): “A paródia é, pois, uma
forma de imitação caracterizada por uma inversão irônica, [...] é repetição com distância
crítica que marca a diferença em vez da semelhança.”
A obra de caráter parodístico faz eco de obras passadas. Roberto Drummond, ao
buscar o leitor, esforça-se para com ele elaborar sentidos a partir de uma linguagem comum.
A inserção de obras do passado, canonizadas na literatura universal como moralistas ou de
ensinamentos pedagógicos, como são os contos de fadas, coloca a obra de Roberto
Drummond em nível de compreensão universal. O autor transcontextualiza ironicamente
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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contos da literatura destinados à infância, subvertendo-os, no entanto, para realizar uma
crítica reflexionante da situação político-social do país nos anos duros da ditadura militar.
O conto da literatura infantil “Branca de neve” e outros intertextos literários,
ironicamente inseridos em Hitler manda lembranças, serão os objetos aqui destacados,
como configuradores da paródia em Roberto Drummond.
O processo paródico na criação literária de Roberto Drummond intenciona desvendar
ao leitor as diversas faces da verdade num jogo irônico e na repetição alargada com
diferença crítica do texto do conto original. Constitui uma abordagem criativa da tradição,
quando recontextualiza elementos da literatura anterior e, sem peso limitador da imitação de
modelos passados, recodifica-os estabelecendo a diferença dentro da semelhança
(HUTCHEON, 1992).
Roberto Drummond insere, como primeiro elemento do intertexto paródico, a
personagem do anão, um assaltante procurado pela polícia, denominado pelo delegado de
“Anão do Diabo” no plano de captura chamado de Operação Branca de Neve e os sete
anões.
A inversão irônica desenvolvida por Roberto Drummond, literariza-se relativamente
à transcontextualização dos elementos do conto tradicional:
1. Do contexto espacial: do ambiente de solitária tranquilidade na floresta e da
harmonia na casa dos sete anões para a conturbada metrópole de Belo Horizonte, e
mais especificamente, de uma Delegacia de Furtos e Roubos.
2. Do caráter das personagens: a bondade, a honestidade, a retidão de caráter dos sete
anões inverte-se em frieza, astúcia e maldade no assaltante “Anão do Diabo”.
3. Da vítima perseguida: a perseguição imposta pela rainha-bruxa á menina Branca de
Neve é transposta ao “Anão do Diabo” e realizada pelo Delegado: “Seu primeiro
desafio, era o Anão do Diabo, que tirava o sono da cidade, e era um mito, por
distribuir leite entre as crianças pobres e cuidar dos gatos abandonados e famintos”
(HML, p.264).
4. Da união para a dispersão: o grupo unido dos sete irmãos anões, que viviam e
trabalhavam na floresta, é agora um número disperso de desconhecidos uns dos
outros na grande Belo Horizonte: “mandou intimar, para prestarem declarações, os
sete anões de Belo Horizonte, pois ele tinha feito essa descoberta: havia sete anões
em Belo Horizonte, fora dois do Circo Orlando Orfei” (HML, p.264).
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5. Da caracterização física: os aspectos curiosos e bem humorados que determinavam
os nomes dos sete anões são transcontextualizados em tiques nervosos nos sete anões
interrogados pelo Delegado:
O mais velho dos sete, e, também em determinadas ocasiões, o mais pálido, pôs-se
repentinamente a beliscar a orelha direita. O mais jovem, e o que mais medo tinha,
piscava olho esquerdo. Um outro mordia a língua. Outro repuxava o ombro direito.
O sétimo anão sacudia a cabeça (HML, p.265).
6. Da personagem Branca de Neve: a inocência, a ingenuidade, a benignidade da
protagonista do conto é transformada em protótipo da mulher moderna e desejada:
O delegado Miguel Proença sentiu que um dos próximos alvos do Anão do Diabo
seria um palacete na Cidade Jardim, onde morava a jovem e bela milionária
Luciana, a Lu, branca com a Branca de Neve, olhos verdes, loura, solteira, famosa
por ter sido Glamour Girl e ainda por ter vencido um concurso nacional de
manequim, por puro hobby (HML, p.284).
7. Do espelho mágico: o instrumento inanimado dotado de poder de avaliação e espírito
de julgamento é reimplantado na ficção de Roberto Drummond, porém
desmistificado em seguida, como o analista, o padre confessor e como a própria
consciência da personagem:
É com aquele espelho mágico de 1 metro e 80 de altura que Branca de Neve
conversa desde menina, a porta do quarto fechada, como agora. Na verdade, o
espelho mágico foi o padre a quem confessava tudo, e, mais tarde, quando a vida
complicou, foi o analista, o conselheiro, dizia como Branca de Neve devia agir, ou,
simplesmente, escutava suas angústias, seus sonhos, suas esperanças, as alegrias e
tristezas (HML, p.291).
dependia dele como um pecador dependia da absolvição do padre, como um
cliente depende de seu analista.
–Esse espelho mágico é o meu inconsciente – pensava Branca de Neve. – É isso
que ele é... (HML, p.292).
8. Da interlocutora do espelho mágico: a situação da rainha má que vangloriava de sua
beleza e não aceitava a concorrência da enteada Branca de Neve quando consultava
seu espelho mágico é Luciana, a Branca de Neve de Roberto Drummond, que tem
atitudes que revelam uma personalidade inversa à da rainha: é insegura e nutre
complexos e culpas em relação à família.
9. Do encontro: a situação de desampara em que os sete anões encontraram Branca de
Neve em sua casa naquela noite é invertida numa cilada programada pelo Delegado
que usa a Branca de Neve com isca para atrair o “Anão do Diabo”
10. Do final: A destruição da perseguidora rainha é revertida para a destruição social do
mal encarnado no “Anão do Diabo”, que tem fim trágico, assim como teve a rainha-
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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bruxa do conto: “Viu quando ele foi baleado e deu três cambalhotas no ar...” (HML,
p.303).
Hutcheon (1991, p.22) coloca que “o tipo de paródia que desejo analisar é um processo
integrado de modelação estrutural, de revisão, inversão e transcontextualização de obras de
arte anteriores”. Estes são parâmetros em que se enquadra o processo criativo da paródia de
Roberto Drummond ao reescrever o conto Branca de Neve. Os elementos do conto
tradicional forma recodificados e transcontextualizados com o objetivo de ironizar as
convenções estruturais da esfera policial, no perfil psicológico do delegado e também do
criminoso assaltante, ora perseguido – o contexto é ironicamente virado do avesso. Os
elementos estruturais recuperados da versão tradicional e inseridos no novo contexto
veiculam a crítica séria reflexiva com que o autor impregna sua obra por meio da ironia:
Então o delegado Miguel Proença anunciou a “Operação Branca de Neve e os sete
anões” e seus adversários na polícia riam, diziam Está vendo?, ele pensa que
combater marginais é um Conto de Fadas, vai-se foder, Belo Horizonte é a merda
de uma Chicago (HML, p.264).
A paródia que tem estabelecida sua base na intertextualidade forceja o leitor a
exercer sua capacidade interpretativa para decodificar as estruturas paródicas e atingir a
decodificação, também, das intenções codificadas pelo autor. O valor parodístico e irônico
não se concentra especificamente em um elemento, mas se dilui em todo o discurso; marcas
linguísticas são perceptíveis, são marcas inferenciais que orientam o leitor no exercício da
decodificação, pois o mesmo processo de facção do texto parodístico deve ser seguido pelo
decodificador, ao “efetuar uma sobreposição estrutural de textos que incorpore o antigo no
novo” (HUTCHEON, 1991, p.50), que confirme a revisitação crítica do tradicional pelo
moderno.
A crítica séria que Roberto Drummond desencadeia é permeada de humor e, às
vezes, irrisão. Sua acutilância, que beira a ridicularização, não suplanta o reconhecimento do
valor artístico da sua paródia como recriação e criação, simultaneamente. O texto parodiado,
o conto Branca de Neve, é no contexto da obra Hitler manda lembranças, uma arma que o
autor utiliza para exercer a crítica ao sistema social. A conscientização se estabelece pelo
questionamento que envolve o leitor.
Hutcheon (1991, p.73) destaca entre as funções da ironia, além da inversão
semântica, a de avaliação pragmática, a de julgamento, de questionamento, e de
interrogação; a ironia é também um “passo inferencial” evocado pelo texto no processo
interpretativo. Neste processo interpretativo, o leitor de Roberto Drummond reconhece o
46
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
texto literário parodiado, percebe e participa da ironia ao decodificar a linguagem,
colaborando, assim, para complementar o circuito da comunicação. O autor, considerando a
questão da recepção do texto, depende da competência do leitor, amparada na memória, em
reconhecer as suas intenções enquanto parodista. Enfim, o leitor requerido, esperado, deve
ser um leitor sofisticado, que capte os ecos críticos da paródia no romance. O leitor deve
participar ativamente na geração do sentido, compartilhando com o autor os códigos
paródicos na relação bitextual: texto original/texto paródico.
A codificação paródica se concretiza extrapolando os limites do textual; Roberto
Drummond ao reescrever um texto destinado, na literatura e na tradição educativa e familiar,
às crianças: seres ingênuos e inocentes, em fase de formação de caráter, cria uma situação de
reavaliação e a coloca ao leitor, em termos questionadores, pois a inversão irônica acentua
profundamente as diferenças, que desmistifica também a utilização de tais textos como
recurso exemplar na educação dos menores.
Para além do texto original, o conto Branca de Neve, o autor parodia a situação
político-social do país, a condição econômico-social e familiar geradora de conflitos
pessoais e distúrbios da personalidade – disto, todas as personagens do romance são
exemplos – ironizando, sarcástica ou sutilmente, as tradições e o poder autoritário em todos
os seus aspectos: da estrutura familiar desagregada, das influências sobre decisões políticas
ocultadas, do abuso e da violência do poderio militar, da transformação moral da sociedade,
da convenção religiosa:
Foi do trajeto da barraca 14 para o ambulatório da morte do Dr. Josef. Mengele,
escoltado pelo Cão Hans, que Cohen rezou a “Oração a Eva”
‘Ave Eva
cheia de graça
a esperança do mundo
esteja contigo
no arrepio da tua pele – faz com que eu viva
na tentação da tua boca – faz com que eu renasça
na luz do teu amor – faz de mim imortal
no calor da tua pele – não permite que eu morra
Na hora do medo, oh ave do paraíso,
Não me deixa capitular.
Afasta com tua lembrança
O fantasma da morte
Põe um canto cantando no meu peito
Põe uma valsa dançando no meu sonho
Põe o perfume da maçã
Perfumando este inferno
Oh, ave do paraíso.
E bendita sejas,
Entre todas as mulheres do mundo
47
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Amém’ (HML, p. 96).
A “Oração a Eva” feita por Adam Cohen durante o seu martírio no nazismo,
constitui-se na expressão mais evidente da paródia das convenções religiosas feita por
Roberto Drummond em sua metaficção. A intenção do autor de criticar pela ironia
transparece nos elementos transcontextulizados, a iniciar pelos nomes das personagens,
Adam e Eva, que remetem o leitor imediatamente ao contexto bíblico da criação do universo
e da humanidade, protagonizado por Adão e Eva. Posteriormente, Roberto Drummond
insere o hábito dos homens de apelar aos céus nos momentos de suplícios, e cria a “Oração
de Eva”, parodiando a “Ave Maria”, oração rezada com fervor pelos católicos. A inversão
irônica se dá com a substituição da santa Maria por Eva, objeto do desejo carnal de Adam
Cohen. O questionamento do poder da fé é diretamente expresso na situação de Adam
Cohen quando este é submetido às experiências dolorosas do Dr. Mengele e resiste à dor
pela “Oração de Eva”:
É também verdade tal como diz em seu depoimento a Guarda SS Marianne
Himmler, enfermeira-auxiliar do Dr. Josef. Mengele que, em nenhum momento
Cohen gritou, enquanto durou a experiência, mesmo antes da anestesia ter aliviado
a dor. Enquanto esteve como cobaia do Dr. Josef Mengele (de quem guardou os
olhos como lembrança), Cohen rezou em voz alta a “Oração de Eva” (HML, p.96).
A interrogação se planta na mente e na interpretação do leitor acerca dos
comportamentos pré-estabelecidos pela Igreja, com é o caso da súplica do fiel à intercessão
dos santos junto a Deus em favor de si, e que, no romance de Roberto Drummond, são
ironizados. Mas, elevamos o valor literário da “oração” de Adam Cohen, que é, na verdade
um poema lírico em que o autor reinstala alguns elementos linguísticos da reza católica da
Ave Maria, remetendo o leitor a um contexto religioso; a diferença centra-se, no entanto, na
temática do amor que existiu entre Adam e Eva e na confiança total na força desse amor.
Diluída em toda a obra está a ironia que, reconhecida como recurso retórico da
paródia, contribuiu para a instalação do romance de Roberto Drummond no contexto da
literatura pós-moderna: obra contestadora, questionadora, subversiva dos padrões
tradicionais, porém, caracteristicamente criativa, crítica e reflexionante.
Referências bibliográficas
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BURKE, P. A escrita da história: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. São Paulo: EdUNESP, 1998.
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DRUMMOND, R. Hitler manda lembranças. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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SCHILLER, F. Poesia ingênua e sentimental. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991.
49
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
ITALIANOS NO BRASIL E A QUESTÃO IDENTITÁRIA
Isabella Nogueira36
Me. Antônio Luiz de Souza37
Resumo
Assim como os romanos romanizavam o que conquistavam, a colonização trouxe ao Brasil a
mestiçagem, o hibridismo cultural, assistimos a uma mistura de várias nações, de várias etnias e de
várias tradições, desta forma a proposta do trabalho é estudar a questão migratória da população
italiana do século XIX, principalmente para a região sul do Brasil. Tem-se como questionamento os
desdobramentos identitários, ainda mais quando pensamos na imensa quantidade de descendentes
que o Brasil possui. Portanto nos questionamos: o que é ser italiano? Podemos ainda falar em uma
identidade una, nacionalista a qual vai em uma única direção? Ser italiano hoje significa apenas ter
nascido na Itália? Para isso se utilizará autores que propuseram conceitos que tentaram apresentar as
várias situações conflituosas que se constroem no individuo e no coletivo. Teorias como a da Nova
História Cultura ou da Nova História Politica com sua interdisciplinaridade darão a possibilidade de
construir um debate acerca da questão do homem e sua posição neste mundo já com poucas
fronteiras.
Palavras chaves: Identidade; Itália; Brasil.
Abstract
Just as the Romans used to conquer, the process of colonization brought to Brazil the miscegenation,
the cultural hybridism, we see a mixture of many nations, of many ethnicities, and of many
traditions, thus the proposition of this work is to study the immigration process of the Italian people
in late 19th century, specifically to the south region of Brazil. We have as questions the identity
developments, especially when we think about the vast number of descendants that Brazil has.
Therefore, we could ask: what is to be an Italian? Could we talk about a single identity, nationalist
that goes in only one, straight direction? Nowadays, to be an Italian means be born in Italy?
Thereunto we will be using some authors that proposed concepts that tried to show a set of conflicted
situations build up individually and collectively. Theories such as The New Cultural History or The
New Political History with their interdisciplinarity they will bring the possibility to build a debate
about the men and his positions to this world with only a few frontiers.
Key-words: Identity; Italy; Brazil.
36
Graduanda em História pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. [email protected]
37
Professor pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás. [email protected]
50
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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Vivemos hoje no que chamamos de mundo globalizado e os processos migratórios
acostumamos a associá-los a este momento que aconteceu entre os séculos XIX e XX38. Por
globalização entendo aqui o que o autor Daniel Aarão Reis define:
Um processo de revolução científico-tecnológica, também chamado por muitos de
globalização, que abriu, em escala mundial, um período de grande instabilidade, assinalado
por profundas mutações, em todas as esferas das sociedades. Ciência e tecnologia,
paradigmas científicos, estruturas sociais, referências culturais, tradições nacionais, padrões
comportamentais, nada e ninguém tem escapado à ebulição e ao torvelinho que
reatualizaram a famosa frase do Manifesto Comunista: tudo o que é sólido desmancha no ar
39
. (REIS, 2006; p.7-8)
Mas é importante ressaltar que este processo de mudanças de território sempre esteve
presente na história, faz parte da vida do homem desde que ele começou a comunicar-se e
até antes, pelo simples fato da procura de alimentos para sobreviver.
“ “ Movimento e migração (...) “são as condições de definição sócio histórica da
humanidade”. (GOLDBERG, 1994) Nos primórdios dos desmantelamentos dos antigos
impérios, vários novos Estados-Nação, multiétnicos e multiculturais, foram criados.”
(HALL, 2003; p. 56)
Por isso então, estudar as migrações é estudar algo inerente a história do homem.
Mas com o avanço da tecnologia este processo foi se tornando cada vez mais fácil e,
portanto numeroso. Essa tecnologia também possibilitou o aumento de informações e da
comunicação.
A migração dos trabalhadores não é, obviamente, nova, mas a globalização está
estreitamente associada a aceleração da migração. Motivadas pela necessidade econômica,
as pessoas têm se espalhado pelo globo, de forma que “a migração internacional é parte de
uma revolução transnacional que está remodelando as sociedades e a política ao redor do
globo” (CASTLES & MILLER; 1993: 5). A migração tem impactos tanto sobre o país de
origem quanto sobre o país de origem. ( WOODWARD, 2014; p 22)
38
Stuart Hall, Da Diáspora (2003). 39
REIS, Daniel A.. Os Intelectuais russos e a formação de modernidades alternativas: um caso
paradigmático?. Disponível in: <http://bibliotecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/viewFile/2255/1394>
51
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Falando do caso brasileiro temos muito a dizer sobre as imigrações porque além de
algo inerente ao homem, o Brasil fez disto uma política uma economia e uma forma de
tornar o país sempre mais próximo do que se considerava a “civilizada Europa”.
Tem-se como objetivo neste trabalho analisar a questão identitária italiana na região
sul do Brasil. Não será o assunto principal a imigração como algo político-econômico40 em
seus primórdios quando o investimento do governo era numeroso, apenas se acenará para
compreender um pouco mais sobre a numerosidade hoje de italianos e descendentes em
nosso país. E em seguida faremos uma análise mais detalhada sobre os seguintes
questionamentos: o que é ser italiano? Podemos ainda falar em identidade una, nacionalista a
qual vai em uma única direção? Ser italiano hoje significa apenas ter nascido na Itália?
Vamos começar com as palavras do autor Odair da Cruz Paiva que diz:
Para entender a imigração italiana no Brasil, penso que precisamos primeiro pensar o século
XIX. E dentro do século XIX montar pelo menos dois panoramas. Um panorama que é da
primeira metade desse século no qual a ideia de imigração está muito voltada para politicas
de colonização de terras. O imigrante é o agente, o sujeito que vai ao adentrar a realidade
brasileira, trabalhar em politicas de colonização de terras e eventualmente na dinamização
de algumas culturas como chá, ou mesmo culturas alimentares... Então nessa primeira
metade como é que nós poderíamos caracteriza-la mais especificamente? A fundação de
núcleos coloniais, é uma expressão importante desse processo. (...) A iniciativa de Nicolau
Vergueiro com a fazenda Ibicaba nos anos 1840 já era uma tentativa de pensar o imigrante
como uma mão-de-obra para a cafeicultura. Eu penso que a iniciativa de Vergueiro é uma
iniciativa importante, sempre tratada na história. Como algo que vai se tornar, digamos
quase regra na segunda metade do século XIX quando de fato a imigração em massa para
São Paulo vai estar muito formada pelo desenvolvimento da cafeicultura41.
Vale apena ressaltar que quando o autor fala da primeira metade do século XIX, com
a fundação de núcleos coloniais, principalmente nas províncias de Santa Catarina, Paraná e
40
“A politica de colonização com imigrantes implantada após a independência visava ao povoamento do
território, num processo de motivações geopolíticas, de interesse econômico (o desenvolvimento de forma
alternativa de exploração agrícola baseada na pequena propriedade familiar) ao qual se impõe a sinonímia da
civilização branca europeia. Houve um direcionamento maior do processo colonizador para as terras do Sul,
cujas causas nem sempre são observadas pelos críticos dessa politica concentradora de imigrantes distanciados
da sociedade abrangente.” (SEYFERTH, 2002; p.147)
Disponível in: < http://www.usp.br/revistausp/53/12-giralda.pdf > 41
Disponível in: < https://www.youtube.com/watch?v=xl8yRYV010I >
52
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Rio Grande do Sul, ainda estamos no contexto da escravidão no Brasil que será abolida
somente na segunda metade do século, em 1888. Portanto o principal interesse do governo
brasileiro em trazer estes, na primeira metade do século era que:
Através da vinda de imigrantes europeus e da criação de núcleos coloniais de pequenos
proprietários, o governo pretendia ocupar, fazer produzir e valorizar terras despovoadas;
instaurar uma agricultura camponesa policultura que abastecesse as cidades e os latifúndios
escravistas mais próximos; além de criar uma classe social intermediaria entre os latifúndios
e escravos (IOTTI, 2003; p.3) 42.
Além deste apresentado por Iotti, SEYFERTH (2002; p.118) se dirigindo aos
primórdios da imigração em geral diz que:
A questão racial está implícita no Decreto Real43 que autorizou o estabelecimento dos
imigrantes suíços na região serrana do Rio de Janeiro aludindo à civilização e,
principalmente, no artigo 18 do tratado acima referido [Nova Friburgo], que trata da criação
de uma milícia de 150 suíços44, capazes de empunhar armas, colaborando na manutenção
dos regimentos portugueses de cor branca.
No caso da imigração de italianos, essa primeira metade do século XIX, é
caracterizada também por aqueles que foram expulsos do país, principalmente por lutarem
42
Disponível in: <
https://www.tjrs.jus.br/export/poder_judiciario/historia/memorial_do_poder_judiciario/memorial_judiciario_ga
ucho/revista_justica_e_historia/issn_1676-5834/v3n5/doc/07-Luiza_Iotti.pdf >
43
D. João VI assinou o tratado de Nova Friburgo (RJ). (p.118)
44
“ a necessidade de garantir áreas próximas das fronteiras e proteger terras dos ataques de índios. As camadas
hegemônicas, instalando o imigrante em pequenas propriedades em certas áreas, usam-no para manter ou
conquistar terras que assim também passam por um processo da valorização” (PETRONE, 1987; p.260 apud
IOTTI, 2003; p.3)
53
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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com a Giovine Itália45, com o objetivo da unificação da península. Podemos citar, por
exemplo, o tão conhecido Giuseppe Garibaldi46, que chegou ao Brasil em 1836.
Foi a partir dos anos 1840 em diante que a situação dos imigrantes foi tomando outro
rumo, principalmente com a proibição do tráfico negreiro estabelecido pela Inglaterra, que
teve “a promulgação quase simultânea da Lei de Terras e da Lei Euzébio de Queirós marca
ainda mais esse distanciamento [escravidão] – a colonização definitivamente vinculada ao
trabalho livre.” (SEYFERTH,2002: p.120).
Os privilégios antes dados aos imigrantes para a formação de núcleos, agora estavam
vinculados também ao privado (1848-1871). Ou seja, existia um acordo entre o proprietário
de terras (que se rebelou aos privilégios dados aos imigrantes como também a abolição da
escravatura) e governo. Agora todos os imigrantes que chegavam estavam vinculados à
lavoura nas terras de café, dando vida ao Sistema de Colonato.
Com a Lei de Terras (Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850, regulamentada em 1854
com o Decreto n. 1318 de 30 de janeiro) a qual determinava que “a partir daquela data, as
terras só poderiam ser adquiridas através da compra” e não mais doadas [para imigrantes]
assim como era no início da vinda de imigrantes, a sujeição ao trabalho livre, que se
transformou em uma verdadeira escravidão era o único caminho para o que aqui chegava
então o café como também as terras privadas se tornavam as únicas opções para sobreviver.
(IOTTI, 2002: p.7)
O sistema de parceria provocou descontentamento entre os imigrantes, principalmente pela
falta de clareza dos contratos e das cláusulas evidentemente desfavoráveis a eles. (...) O
descontentamento dos imigrantes não demorou em chegar à Europa e trouxe consequências
desfavoráveis à emigração para o Brasil... Em 1895 o Governo italiano proibiu a imigração
para o Espírito Santo e em 1902 para São Paulo. (Idem: p.9)
No caso italiano não foi certamente essas dificuldades de sujeição como também a
proibição que fez com que diminuísse a vinda de italianos para o Brasil. Um dos principais
45
“A Giovine Itália nasceu em julho de 1831 como instrumento de união [da Itália e dos jovens
revolucionários] e de renovação. (p.64) A Giovine Itália era em parte um moderno partido político e em parte
uma sociedade secreta tradicional.” (SARTI, 2005: p.66) Esse movimento era chefiado por Giuseppe Mazzini,
revolucionário italiano.
46
Nasceu em Nice em1807 foi um revolucionário que lutou pela unificação da Itália. Esteve também no Brasil,
onde lutou pela causa farroupilha em 1837. (MILZA, 2013); (SCIROCCO, 2011). 54
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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motivos foi a Unificação italiana, a qual trouxe consequências devastadoras para as camadas
populares 47.
A população sem esperança em seu país recém-formado, via na América a
possibilidade de mudar de vida48. Há também o fato de não sentir a própria pátria e como
Santos nos diz citando Ianni (1972:32) “(...) até não muito tempo milhares de camponeses só
no exterior adquiriram a consciência de italianos e deixavam de ser sicilianos, napolitanos
ou vênetos” 49.
Claro que esta questão não é tão simples assim e é justamente este ponto que irá
fazer com que se desenvolva a outra parte do trabalho. Começamos mais uma vez citando
Santos quando nos diz:
A aplicação de formas administrativas típicas do Reino de Savoia provocou com o tempo o
agravamento das diferenças já existentes entre as regiões da Itália, criando as condições
para um grande movimento migratório de classes rurais para os países das duas Américas...
50
Então nos questionamos: o que é ser italiano?
Como vimos desde o princípio este foi um ponto de preocupação por aqueles que
foram responsáveis pela unificação, era uma preocupação tornar homogêneo um território
muito diferente político e economicamente. “Nos dias de Mazzini, pouco importava para a
maioria dos italianos se o Risorgimento tinha existido, de modo que, como Massimo
47
“No caso da Itália, a imigração vinculou-se, inicialmente, ao descarte da população pobre, expulsa do
processo produtivo, em função do desenvolvimento de relações capitalistas de produção, efetivado pelo recéminstaurado Estado unitário. No século XIX, a unificação italiana e a incorporação da península ao sistema
capitalista não incluíram as camadas populares. Os camponeses foram expulsos da terra. O pequeno artesanato
foi parcialmente destruído. A indústria mostrou-se incapaz de absorver a mão-de-obra disponível. Assim os
italianos pobres foram obrigados a buscar, em outros países, as condições de vida que a pátria lhe negava. No
total, 24 milhões de peninsulares partiram da Itália, entre 1869 e 1962, para diferentes regiões do mundo.”
(IOTTI, 1996: p.38)
“Ao analisar os jornais vênetos do período 1861-1914, Filipuzzi (1976) demonstra que a emigração era vista
como a única saída possível em face do desemprego e da miséria e ao mesmo tempo as colônias agrícolas do
Brasil são pintadas como se fossem o Paraiso na Terra.” (SANTOS, 2006: p. 02) Disponível In: <
http://www.historica.arquivoestado.sp.gov.br/materias/anteriores/edicao09/materia01/ >.
49
Idem (p.1)
50
Idem (p.2)
55
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
d’Azeglio admitiu em sua famosa frase, “Nos fizemos a Itália, agora temos que fazer os
italianos””51.
Como já foi dito acima muitos só foram se sentir italiano a partir do momento em
que saíram de sua pátria, e os que permaneceram começaram sim a sentir-se parte de uma
união, mas marcados pelas suas consequências, a pobreza era a principal, que após esse
período se acentuou. Principalmente quando a questão é norte e sul. O norte que se
desenvolveu mais do que o sul, depois da unificação fomenta as tendência historiográficas
(como La Questione Meridionale) que tendem a atribuir a unificação o subdesenvolvimento
até hoje existente na Itália do sul, que nos deixa até pensar mais em um processo de
anexação que de unificação.
Sabe-se que saíram da Itália recém-unificada, muitos vênetos, os quais nada têm a ver
com o sul. Mas não demorou muito tempo para que meridionais, principalmente das regiões
como Campânia, Calábria e Sicília começassem a sair da Itália, população que em sua
grande maioria mudou-se para os Estados Unidos, mas que também esteve em São Paulo52.
Por que dizer isso? Porque quando Garibaldi fez a Expedição dos Mil (1860) e
submeteu o sul a uma dura ditadura a fim de conseguir o intento da unificação, fez com que
a população se sentisse obrigada a aceitar. Portanto se sentir italiano, para a população do
sul, está relacionado à construção de uma memória da guerra da submissão ao projeto
unionista de líderes políticos. “Os conflitos nacionais e étnicos parecem ser caracterizados
por tentativas de recuperar e reescrever a história.” (WOODWARD, 2014; p. 26) “A
afirmação das identidades nacionais é historicamente específica. (...) Identidade [global
53
]
estabelece reivindicações por meio do apelo a antecedentes históricos” (WOODWARD,
2014; p.11)
Mas em linhas gerais podemos dizer que se sentir italiano afinal está em ações
diárias como a língua, que existia até mesmo antes da unificação, costumes alimentares e
forma obrigatória em que um povo diferente foi submetido a viver.
51
“Dito na primeira reunião do parlamento do recém-unido reino italiano (E. Latham, Famous Sayings and
Their Authors, Detroit, 1970)” (HOBSBAWM, 1990: p.56-61)
52
Ver IBGE: < http://brasil500anos.ibge.gov.br/territorio-brasileiro-e-povoamento/italianos/regioes-de-origem
>.
53
Global: preocupação com identidades nacionais e étnicas. (Idem, p.16)
56
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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Entretanto, nós vivemos nossa subjetividade em um contexto social no qual a linguagem e a
cultura dão significado à experiência que temos de nós mesmos e no qual nós adotamos
uma identidade. (WOODWARD, 2014; p.56)
Voltando então as questões migratórias, a identidade e globalização utilizando-nos da
mesma autora, quando nos diz que:
A migração produz identidades plurais, mas também identidades contestadas, em um
processo que é caracterizado por grandes desigualdades. A migração é um processo
característico da desigualdade em termos de desenvolvimento. Nesse processo, o fator de
“expulsão” dos países pobres é mais forte do que o fator de “atração” (...) Essa dispersão
das pessoas ao redor do globo produz identidades que são moldadas e localizadas em
diferentes lugares e por diferentes lugares. Essas novas identidades podem ser
desestabilizadas, mas também desestabilizadoras. ( WOODWARD, p. 22)
Uma pessoa emigrada mesmo que seja por sua própria vontade se sente sim expulso
de seu país. Isso porque por mais que não tenha afetividades com a questão nacional ela
ainda vai se lembrar de seu pequeno paesino, ele esta acostumado a comer, falar ou fazer
certa coisa de certo modo. Há seu círculo de conhecidos como de familiares, este ponto
temos que dizer que hoje no mundo modernizado podemos diminuir esta falta com a
globalização da comunicação consequência do capital, mas tudo que reproduzimos em outro
lugar para nos fazer sentir mais próximos não será com certeza a mesma coisa, não se terá as
mesmas sensações e emoções.
Mesmo que com essa busca incessante de ‘nossa casa/terra’ que nos dê a sensação de
integridade temos que sublinhar que cada um de nós não possui uma identidade fixa e una,
onde se pensa eu nasci assim deste único jeito e irei morrer assim deste único jeito. Isso
porque [...] a subjetividade inclui as dimensões inconscientes do eu, o que implica a
existência de contradições. (WOODWARD, 2014; p.56) [...]. Portanto quando falamos em
italianos temos que nos lembrar de que são variadas pessoas, de variadas regiões e dentro
destas regiões como é o caso italiano de variados paesini. Se dentro de nós existem
contradições como podemos imaginar que não exista no caso nacional. Tomamos como
causa a integridade porque nossa identidade/subjetividade se recorda das relações sociais do
contexto e por isso absorve-se, tornando-se parte de nós.
57
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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O conceito subjetividade permite uma exploração dos sentimentos que estão envolvidos no
processo de produção da identidade e do investimento pessoal que fazemos em posições
específicas de identidade. Ele nos permite explicar as razões pelas quais nós nos apegamos
a identidades particulares. (WOODWARD, 2014; p.56)
Falando então em identidades particulares, que se formam no interior de uma
sociedade, as quais formam grupos e comunidades que partilham uma mesma ideia, ou
condição, etnia e assim por diante podemos dizer que:
Althusser (1971) enfatiza o papel da ideologia na reprodução das relações sociais,
destacando os rituais e as práticas institucionais envolvidos nesse processo. Ele concebe as
ideologias como sistema de representação. (...) “A ideologia [...] ‘recruta’ sujeitos entre os
indivíduos [...] ou ‘transforma’ os indivíduos em sujeito [...] por esta operação muito precisa
a chamei de interpelação54” (1971:146) (WOODWARD, 2014; p.61)
A ideologia então nos leva a nos fechar em um grupo e fazer com que nos
identifiquemos com o tal. A afirmação da identidade desta forma se torna a afirmação de
poder, a partir do momento em que negamos o ‘outro’ em busca de uma união. Nesse
sentido, dentro da diferença procuramos sempre nos afirmar de forma a não desaparecermos
dela, procuramos uma afirmação do próprio eu. Não porque nos importa somente o nosso
exterior, mas por estarmos sempre em busca do eu ‘interior’ único.
No caso de uma emigração a contradição interior é muito maior se comparado com
alguém que não precisou ou passou neste processo. Aquele então que será o ‘descendente’,
sentirá ao separar-se da mãe (seu suporte inicial) a necessidade de se juntar há algo que não
o separe totalmente dela, há algo que o faça sentir-se mais integro55. Mas essa busca por uma
identificação nunca é íntegra.
Existe, assim, um continuo processo de identificação, no qual buscamos criar alguma
compreensão sobre nós próprios por meio de sistemas simbólicos e nos identificar com as
formas pelas quais somos vistos por outros. Tendo, inicialmente, adotado uma identidade a
54
“Esse processo de interpelação nomeia e, ao mesmo tempo, posiciona o sujeito que é, assim, reconhecido e
produzido por meio de práticas e processos simbólicos.” (Idem, 2014: p. 61)
55
“O sujeito ainda anseia pelo eu unitário e pela unidade com a mãe da fase imaginaria, e esse anseio, esse
desejo, produz a tendência para se identificar com figuras poderosas e significativas fora de si próprio.” (Idem,
2014; p.65)
58
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
partir do exterior do eu, continuamos a nos identificar com aquilo que queremos ser, mas
aquilo que queremos ser está separado do eu, de forma que o eu está permanentemente
dividido no seu próprio interior. (WOODWARD, 2014; p. 65)
Na linguagem do senso comum, a identificação é construída a partir do reconhecimento de
alguma origem comum, ou e características que são partilhadas com outros grupos ou
pessoas, ou ainda a partir de um mesmo ideal. (...) Em contraste com o “naturalismo” dessa
definição, a abordagem discursiva vê a identificação como uma construção, como um
processo nunca completado – como algo sempre “em processo”. Ela não é, nunca,
completamente determinada – no sentido de que se pode, sempre, “ganhá-la” ou “perdê-la”,
no sentido de que ela pode ser, sempre, sustentada ou abandonada. (HALL, 2014; p.106)
Então será que ainda podemos pensar que exista algo totalmente uno? Que a questão
nacional vai além da subjetividade?
Hall (2014; 106) sustenta que a identificação é ambivalente e que “uma vez
assegurada, ela não anulará a diferença”.
Chegamos então a perceber que esta unidade muitas vezes falada pela historia é
equivoca, a incerteza humana de sua subjetividade guiada por várias emoções, não nos deixa
pensar em algo vertical, unilateral e íntegro.
A tudo isso se adiciona a globalização a qual faz com que “traços mais antigos se
combinam com novas e emergentes formas de “etnicidade”, que frequentemente resultam da
globalização desigual ou da modernização falha” (HALL, 2003; p.57/8) Então nesta
desestabilização de tudo procuramos nos sustentar em algo mais concreto que pode ter sido
passado pelos seus parentes ou comunidade o que Bhabha chama de tempo limiar das
minorias.
Continuam a modular, desviar e “traduzir” seus imperativos a partir da base. Não intervém
no global, mas potencializam resistência, intervenção e tradução. Novo tipo de ‘localismo’
que não é autossuficiente particular, mas que surge de dentro do global, sem ser
simplesmente um simulacro deste. (HALL, 2003; p.60)
Estes então que buscam uma ‘tradução’ estão embutidos no tempo do entre-lugares,
onde para não me [eu] ver sempre e qualquer momento como o outro, moldo a minha
59
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“tradição inventada56” de acordo com a situação, e me desloco sempre entre o
tradicionalismo e modernismo de forma que a minha auto-definição me dê o sentimento de
plenitude e integridade do eu.
Há uma eterna escolha de posição nos grupos, quando claro não se transforma em
um essencialíssimo (que como vimos na história nada de positivo é retirado), a qual o
indivíduo deseja ser associado e uma luta constante entre o presente e o passado. Não
podemos, nós outros [em relação ao indivíduo] negar então nem uma dessas posições
tomadas em seus momentos porque elas fazem parte de sua [nossa] subjetividade
contraditória. Se eu me sinto italiano no Brasil é porque esta compõe uma parte do meu eu,
que deve ser respeitada como tal.
Por isso então concluímos com esta frase de Hall, que nos adverte em relação às
soluções simplistas:
Os críticos cosmopolitas estão corretos ao nos lembrarem que, na modernidade tardia,
tendemos a extrair os traços fragmentários e os repertórios despedaçados de várias
linguagens culturais e éticas. Não se trata de uma negação da cultura insistir que o “mundo
social [não] se divide distintamente em culturas particulares, uma para cada comunidade,
[nem] que o que todos necessitam é de apenas uma dessas entidades – uma única cultura
coerente – para moldar e dar significado à... vida” (Waldron,1992). Frequentemente
operamos com uma concepção excessivamente simplista de “pertencimento”. (HALL,
2003; p. 303)
56
“Muitas vezes, “tradições” que parecem ou são consideradas antigas são bastante recentes, quando não são
inventadas”. (HOBSBAWM, 1997; p. 09)
60
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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BIBLIOGRAFIA
HALL, Stuart. Da Diáspora: identidades e medições culturais. SOVIK, Liv (Org.);
Tradução: RESENDE, Adelaine G. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: Representação
da UNESCO no Brasil, 2003.
________. Quem precisa da identidade?. In: SILVA, Tomaz T. (Org.) Identidade e
diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 14. Ed.. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p. 103 133.
HOBSBAWM, E. J.. A nação como novidade: da revolução ao liberalismo. In: Nação e
nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
________. Introdução: a Invenção das Tradições. In: ______; TERENCE, R. (Org.) A
invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 09 -23.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.
In: SILVA, Tomaz T. (Org.) Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. 14.
Ed.. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014. p.07-72.
61
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EM BUSCA DE UM EU ESQUECIDO EM IMPERATRIZ NO FIM DO MUNDO:
MEMÓRIAS DÚBIAS DE AMÉLIA DE LEUCHTEMBERG, DE IVANIR CALADO
Camila Marcelina Pasqual57
Este artigo tem por objetivo analisar os aspectos dos padrões discursivos da memória nos bastidores do
Império brasileiro, sob o ponto de vista da personagem feminina, D. Amélia de Leuchtemberg. Escolhi como
corpus de análise a obra Imperatriz no fim do mundo, de Ivanir Calado, pelo fato de esta pertencer ao rol
daquelas ficções históricas que têm alcançado lugar de discussão no meio acadêmico, devido a
questionamentos feitos com relação ao espaço que estas literaturas, muitas vezes marginalizadas pelo cânone,
vêm ocupar. Em um primeiro momento, analisam-se as duas formas de memória, quais sejam: a de experiência
vivida e de memória involuntária a partir das contribuições de autores como Benjamin, Bergson e Freud. Em
um segundo momento, a pesquisa busca realizar uma análise da experiência vivida e memória involuntária com
destaque para a experiência dos choques. O trabalho constata, ao final, que mesmo os "mínimos farrapos de
memória" buscam reconstruir um passado político vivido e, ao mesmo tempo, relembrado pela Imperatriz sem
o intermédio da consciência e com novas significações.
Palavras-chave: Memória, Narrativa, Erlebnis, Erfahrung, Personagem Feminina.
IN SEARCH OF A FORGOTTEN ME, IN IMPERATRIX AT THE END OF THE WORLD:
DUBIOUS MEMORIES OF AMELIA OF LEUCHTEMBERG, FROM IVANIR CALADO
This article aims to analyze the aspects of the discursive patterns of memory in the behind the scenes of initial
years of Brazilian Empire, by the point of view of the female character, D. Amelia de Leuctemberg. I've
chosen, as corpus of analysis, the book Imperatriz at the End of the World, from Ivanir Calado, because such
work belongs to the role of those historical fictions that, lately, have granted a place of discussion in
academicals environment, due to some questionings about the space that such kind of literature books, no rare
marginalized by canon, comes to occupy. In a first moment, two forms of memory are analyzed: that of vivid
experience and those of involuntary memory using, as a basis, the contributions of authors like Benjamin,
Bergson and Freud. In a second moment, the research tries to make an analysis of the experience of vivid and
involuntary memories, highlighting the experience of the shocks. In the end, the work concludes that even the
"smallest shreds of memory" tries to rebuilt a vivid political past that are, at same time, remembered by the
Imperatriz without the intervention of memory and with new significations.
Key-words: Memory, Narration, Erlebnis, Erfahrung, Female Character.
57
Doutora pela Universidade Federal de Santa Catarina-­‐UFSC. 62
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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INTRODUÇÃO
O romance Imperatriz no fim do mundo: memórias dúbias de Amélia de Leuchtemberg58, de
Ivanir Calado, é uma instigante leitura sobre as dúbias memórias da imperatriz Amélia que, apesar de
sua curta relação matrimonial com D. Pedro I, busca reconstruir, com memórias, a sua história
pessoal e pública, como jovem imperatriz e último amor do soberano. A leitura da obra mostra a
imperatriz de um primeiro Império agonizante. Os herdeiros de Pedro I estavam encaminhados,
grandes revoluções haviam terminado e ele vivia seus últimos anos. Ciente disso, Amélia viveu
intensamente: encantou-se com o Brasil, influenciou governos e conseguiu conquistar o imperador.
A memória é mesmo "a mais épica de todas as faculdades."59 No romance, Ivanir Calado
revive esta personagem forte e apaixonante que, embora relegada a um segundo plano pela história
oficial, teve uma vida comparável à das grandes figuras épicas.
Justifica-se o presente trabalho pela possibilidade do contato com textos históricos através da
análise do conceito de experiência vivida (Erlebnis), tal como ela é reconstruída na obra, meu
interesse primordial. Além disso, pela possibilidade de realizar considerações sobre a memória
involuntária, busca-se um estudo específico das reminiscências do passado sob a luz do presente. A
obra é analisada pela remissão das questões relativas à construção de um texto histórico, moldado
pelas lembranças ambíguas da personagem, com vistas a estabelecer a relação do romancista com o
tempo, as memórias — que se constroem/fragmentam — e principalmente com a palavra escrita.
Com base nas teorias de Walter Benjamin, abordo alguns aspectos considerados por este
como próprios da condição dos homens modernos, ao enfocar questões levantadas no texto de
Calado, na tentativa de identificar seu posicionamento frente a tais questões.
BERGSON, FREUD E BENJAMIN: A VISÃO CONTEMPORÂNEA SOBRE MEMÓRIA
Os antigos gregos consideravam a memória como manifestação da deusa "Mnemosyne60,
mãe das musas que protegiam a Arte e a História"61, e dava poderes aos poetas para que voltassem ao
58
Doravante, com o intuito de simplificar, a obra Imperatriz no fim do mundo: memórias dúbias de Amélia de Leuchtemberg, de Ivanir Calado, será denominada Imperatriz no fim do mundo. 59
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Lescov. In: Magia e técnica, arte política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 210. 60
Benjamin afirma, no ensaio O narrador: "Mnemosyne, a deusa da reminiscência, era para os gregos a musa da poesia épica. Esse nome chama a atenção para uma decisiva guinada histórica. Se o registro escrito do que foi transmitido pela reminiscência − a historiografia − representa uma zona de indiferenciação criadora com relação às várias formas épicas (como a grande prosa representa uma zona de indiferenciação criadora com 63
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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passado e nele buscassem sua imortalidade. As musas tinham a função de registrar os "feitos
memoráveis", ou seja, evitar que caíssem no esquecimento pelas gerações futuras.
Na contemporaneidade, tal conceito simplista e romântico já não preenche as necessidades
de conhecimento. Filósofos e estudiosos dos fenômenos mnemônicos, como os psicólogos, têm
elaborado teorias bem mais complexas sobre a origem e funcionamento da memória.
Exemplo disso é a distinção feita por Bergson62 entre percepção pura e memória pura.
Segundo ele, a percepção pura procura fornecer indicações sobre a natureza da matéria e permite
tomar posição entre as teorias realistas e idealistas da matéria. A memória pura trata do espírito que
adquire, então, papel importante neste sistema, ao comunicar à percepção seu caráter subjetivo. A
percepção pura, portanto, dá todo ou ao menos o essencial da matéria e, uma vez que o restante vem
da memória e se acrescenta à matéria, é preciso que a memória se constitua em um poder
independente da matéria. Portanto, se o espírito é uma realidade, é no fenômeno da memória que se
deve abordá-lo em caráter experimental.
Conforme as teorias propostas pelo autor de Matéria e memória, "o passado sobrevive sob
duas formas distintas: em mecanismos motores e em memórias independentes."63 As assim chamadas
lembranças-independentes
(imagens-lembranças)
são
acontecimentos
possíveis
de
um
reconhecimento intelectual. Por exemplo, cada leitura de uma percepção já experimentada. Aquilo
que se atualiza na imagem-lembrança traz à tona da consciência um momento único, não mecânico
ou repetido, mas evocativo, irreversível à vida.
Bergson procura sintetizar as duas formas de memória, a dos mecanismos motores e a das
lembranças independentes, ao denominá-las, respectivamente, "memória-hábito" e "memória
propriamente dita" (pura). Este estudo contemplará a "memória pura" por esta constituir a memória
por excelência, em cujo processo a imagem é convocada, pois encontra-se ligada à totalidade das
lembranças do passado.
A lembrança-pura se atualiza na imagem-lembrança e se oculta nas zonas profundas do
psiquismo. O filósofo não hesitará em lhe dar o nome de "inconsciente". Ecléa Bosi salienta que a
imagem-lembrança de Bergson: "[...] tem data certa: refere-se a uma situação definida
relação às diversas formas métricas), sua forma mais antiga, a epopeia propriamente dita, contém em si, por uma espécie de indiferenciação, a narrativa e o romance". BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. São Paulo: Brasiliense, 1989, p. 211. 61
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000, p.126. 62
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia... op.cit., p. 78-­‐ 79. 63
Ibid., p. 84. 64
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individualizada, imaginada [...]."64 Walter Benjamin, por sua vez, se vale, em suas reflexões, de uma
distinção, realizada por Proust na obra Em Busca do tempo perdido, entre "memória voluntária" e
"memória involuntária". A primeira está "à disposição da inteligência"65, sempre pronta a responder
ao apelo da atenção, e está relacionada, na experiência proustiana, à "forma precária, como se
apresentou em sua lembrança, durante muitos anos, a cidade de Combray, onde, afinal, havia
transcorrido uma parte de sua infância."66 Desta "memória voluntária", ocasionada, por exemplo, por
uma imagem ou fotografia, se pode dizer que "as informações sobre o passado, por ela transmitidas,
não guardam nenhum traço dele."67 Segundo a leitura benjaminiana de Proust, o passado vivo seria
trazido pela "memória involuntária", provocada pelo contato com qualquer objeto material "fora do
âmbito da inteligência e de seu campo de ação. Em qual objeto, isso não se sabe. E é questão de sorte
se nos deparamos com ele antes de morrermos ou se jamais o encontraremos."68
Em termos de narrativa moderna, considera Benjamin que as modernas condições de
existência conduziriam, ainda, a uma ruptura da memória em "voluntária" e "involuntária", com o
predomínio da primeira sobre a segunda. Assim, a "memória voluntária" estaria ligada à esfera da
"consciência desperta", da qual dependeria — na visão de Benjamin, baseando-se nas teorias de
Freud — a proteção contra os estímulos externos (choques), sem a qual estes poderiam causar efeitos
traumáticos no indivíduo, ampliando as circunstâncias em que este se defronta com a necessidade de
se proteger em relação aos choques externos, decorrendo a sobreposição da "memória voluntária" à
"involuntária". A dificuldade moderna de resgate do passado através desta última forma de lembrar é
explicada da seguinte forma por Benjamin:
A recepção do choque é atenuada por meio de um treinamento no controle dos
estímulos, para o qual tanto o sonho quanto a lembrança podem ser empregados,
em caso de necessidade. Via de regra, no entanto, este treinamento − assim supõe
Freud − cabe ao consciente desperto, que teria sua sede em uma camada do córtex
cerebral, a tal ponto queimada pela ação dos estímulos que proporcionaria à sua
recepção as condições adequadas'. O fato de o choque ser assim amortecido e
aparado pelo consciente emprestaria ao evento que o provoca o caráter de
experiência vivida em sentido restrito. E, incorporando imediatamente este evento
ao acervo das lembranças conscientes, o tornaria estéril para a experiência
poética69 (grifos meus).
64
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo TA Queirós; Companhia das Letras, 1999, p. 48. 65
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire... op. cit., p. 106. 66
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire... op. cit., p. 106. 67
Id. 68
Id. 69
Ibid., p. 32. 65
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O âmbito da memória involuntária é associado, aqui, à própria "experiência poética". Mas
esta passagem se mostra interessante também porque, nela, há um conceito que, segundo Gagnebin,
se oporia, na filosofia benjaminiana, ao de "experiência" (Erfahrung), e seria apropriado à existência
do indivíduo no "mundo capitalista moderno": o conceito de "vivência" (Erlebnis). A vivência,
segundo Gagnebin, diria respeito à "experiência vivida, característica do indivíduo solitário."70 Para
Benjamin, portanto, a "vivência", além de se referir à solidão do indivíduo moderno, relacionar-se-ia,
ainda, à circunstância de este indivíduo se encontrar, em sua vida, continuamente defrontado com
choques que exigem a constância da "consciência desperta" capaz de apará-los, criando obstáculos às
possibilidades de emergência da "memória involuntária".
Freud71 aponta que o esquecimento de cenas, impressões ou experiências quase sempre pode
ser entendido como um tipo de interceptação inconsciente. O esquecer seria, então, involuntário,
enquanto o lembrar seria, de certa forma, um exercício voluntário, embora dependa de certos fatores,
segundo Freud72 associando-o à ideia de controle voluntário e controle involuntário da memória.
Quando esquecido determinado objeto, o controle voluntário e o desejo de recordar serão apenas
mantenedores da ausência do esquecimento.
Benjamin, refletindo sobre a perda da dimensão da experiência, tomou por fundamento a
afirmação de Freud de que a consciência surge no lugar de uma impressão mnemônica. Esta atua
como uma camada defensiva do aparelho psíquico, aparando os choques e defletindo-os.73 Dessa
forma, a experiência (Erfahrung) deve ser compreendida como um conhecimento obtido sem
intervenção da consciência, e que pode absorver os estímulos e fazer deles memória, história,
densidade subjetiva. Por outro lado, a vivência (Erlebnis) é a experiência vivida monitorada pela
consciência, que transforma o vivido numa impressão forte e produz efeitos imediatos.
Com base nestas análises, é possível criar um quadro que revele os pontos em comum e
divergentes de Bergson, Benjamin e Freud a respeito da memória.
Benjamin diz que a experiência, tal como Bergson e Proust a imaginam, só será obtida sob a
tentativa de reduzi-la de forma artificial. A memória-pura de Bergson seria equivalente à memória
involuntária de Proust. Já a memória voluntária seria a memória sujeita aos apelos da atenção, que
não guarda nem um traço do passado, e que Bergson define como memória-hábito.
70
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. São Paulo: Brasiliense, 1982, p. 9. FREUD, Sigmund. Recordar, repetir e elaborar. In: obras completas da edição Standard das obras psicológicas de Sigmund Freud, vol.XII. Rio de Janeiro: mago, 1976, p. 194-­‐7. 72
FREUD, Sigmund. O mecanismo psíquico do esquecimento. In: Obras completas da edição standard das obras psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 376-­‐324. 73
Ibid., p. 40. 71
66
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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Freud considera que a consciência como tal não registraria nenhum traço mnemônico, teria
como função importante agir como proteção contra estímulos. Esta teoria psicanalista procura
compreender a "natureza do choque traumático" a partir da ruptura de proteção contra o estímulo.
Apoiado nesta teoria, Benjamin postula que o "sobressalto tem seu significado na falta de
predisposição para angústia [o medo como defesa]". "A recepção do choque é atenuada por meio de
um treinamento no controle dos estímulos para o qual tanto o sonho quanto a lembrança podem ser
empregados em caso de necessidade."74
Utilizando como ferramentas as análises de Benjamin, Bergson e Freud sobre
experiência e memória, presentes no texto de Ivanir Calado, o artigo buscará demonstrar que
se estabelece uma fusão entre os planos subjetivo e objetivo, entre o individual e o coletivo.
Além desta ponte com o passado, procura-se abordar a experiência do choque em que a
protagonista se vê permanentemente confrontada com a multidão.
MEMÓRIA VOLUNTÁRIA E INVOLUNTÁRIA NA OBRA DE CALLADO
As discussões desenvolvidas por Bergson e Benjamin permitem vislumbrar em
Imperatriz no fim do mundo, uma fusão da memória involuntária com a experiência vivida,
cujas lembranças reencontram, no passado revisitado, partes da história da personagem, ao
mesmo tempo em que se esboça uma reflexão sobre a necessidade de sua reconstrução para
garantir as suas memórias. Assim, a narradora busca reconstruir com memórias sua história
pessoal e pública. A memória que desaba sobre o presente da personagem é estimulada pelos
documentos que ela vasculha em lúgubres salões de bibliotecas antigas. Este estímulo a faz
refletir e mergulhar na história pessoal e coletiva.
O romance é narrado pelo ponto de vista da própria Amélia, nos dias atuais, cerca de um
século e meio de sua morte. O autor Ivanir Calado constrói a narrativa sob perspectiva autobiográfica
ficcional e dá voz a uma personagem da história oficial. No caso, a protagonista que se põe a
recuperar os seus "eus" do passado histórico esquecido.
A memória que importa nesta obra é a "memória escrita", enquanto motivo romanesco e
tema problematizado ao longo da narrativa. A personagem se põe a escrever suas lembranças, numa
preparação mística para a vida eterna, enquanto nega o fim: "a memória agrupa-se numa enorme
74
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas sobre Baudelaire... op. cit., p. 111. 67
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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unidade independente que será o eu após a vida."75 No passado recuperado pela narradora — do qual
o leitor toma conhecimento à medida que vai lendo o romance — verifica-se que há duas constantes
que, no final da obra, acabam por se encontrar: um desejo enorme de ser lembrada, tentando entender
por que os historiadores esqueceram de contar sua história, e o não conformismo ao ver sua história
"cair no esquecimento", estendendo-se até mesmo aos mínimos "farrapos de memória."76
Callado não situa o texto num espaço ambíguo e este não funciona como um pacto
romanesco, pois a narradora assinala que o autor não é o narrador. Ivanir Calado se valeu de
incansáveis pesquisas em documentos históricos oficiais para compor suas personagens e construir
este romance histórico ficcional, fundamentando-o nas "memórias e impressões" de uma personagem
central feminina. Uma mulher que, insofismavelmente, tomou parte, significativa, na história oficial
do tempo-espaço em que os fatos teriam ocorrido.
Na obra, Amélia de Leuchtemberg narra suas memórias cento e vinte anos após falecer, com
vistas a continuar existindo como um "feixe de memórias" que ameaçam esgarçar-se e por isso
devem ser registradas. Situação similar a todo "ser moderno", metropolizado no sentido de Simmel,
sujeito esgarçado, fragmentado, privado de memórias no sentido forte da palavra: memória pura,
para Bérgson, memória involuntária para Proust, erfahrung para Benjamin. Essa sobrevivência sob
"forma fantasmagórica"77, permite à personagem atualizar-se constantemente na produção de
conhecimento dos vivos e assim melhorar seu entendimento do mundo e da própria vida no tempo
em que estava viva.
"O pior de estar morta não é ser esquecida. É esquecer."78 A frase revela o principal dilema
da narradora defunta: continuar viva, ainda que por meio das lembranças dúbias do seu passado:
Perder mesmo os farrapos de memórias que me mantêm como uma estrutura
relativamente coesa cento e vinte anos depois de ter morrido.[...] Sei que a única
coisa que me separa da morte verdadeira, da morte definitiva, são as memórias. E
por isso caço, busco, pesquiso, leio, olho e reolho litografias amareladas em salões
lúgubres de antigas bibliotecas, penetro entre as páginas sempre fechadas de
volumes empoeirados.79
A narradora póstuma não recria seu passado pela lembrança apenas, mas pelo
entrecruzamento de lembranças, biografias, ensaios históricos, cartas, documentos. Todas elas,
75
CALADO, Ivanir. Imperatriz no fim do mundo... op. cit., p. 8. Id., p. 319. 77
CALADO, Ivanir. Imperatriz no fim do mundo... op. cit., p. 9. 78
Ibid., p. 7. 79
Id. 76
68
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imagens plásticas, fontes percebidas como relativas, pela parcialidade, pelas contradições, pelos
"interesses momentâneos"; relativismo do qual não escapam nem "as cartas, as cartas que eu própria
escrevi."80 O elemento que neutralizará tal relativismo, e que, ao longo do texto, reaparecerá em
variantes, é imaginação. É o recurso para ir "recusando a morte".
À medida que o texto avança, ganha força a concepção da personagem de continuar
existindo pela memória, de poder se locomover e trocar experiência com outros "feixes de memória",
isto é, outros mortos, da dissolução trazida pelo esquecimento e da necessidade de furtar-se a esse
desaparecimento. Daí percorrer bibliotecas, arquivos e museus, buscando "alimentar-se", até chegar,
"neste final de século vinte", à Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde "[...] No auge do
desespero, inventei este caderno. [...] O caderno é a expressão material − para mim − de minhas
lembranças."81 Ao se deparar com o relato de fatos aos quais não se encontrava presente e não
poderia conhecer, a narradora antecipa que muitas coisas "[...] são minhas, são lembranças
verdadeiras, mas eu seria incapaz de dizer quais. Outras são construídas a partir de documentos, dos
biógrafos, dos livros de história [...] Outras ainda são impressões, são o trabalho da imaginação
tentando fundir as lembranças aos textos."82
No trecho acima citado percebe-se a presença de memória pura, pois a narradora afirma que
as lembranças são verdadeiras, e de memória voluntária, uma vez que Amélia recorre a documentos
constantemente para se lembrar do passado. O tom dominante do texto é o relato de impressões de
memórias. Isso fica patente ao serem narradas as contradições das lembranças de dois episódios
marcantes da vida da narradora, o primeiro remete a uma "das lembranças mais antigas [...] quando o
papai chegou em casa depois da derrota em Waterloo. Não, bobagem, disso não poderia me lembrar:
eu tinha talvez dois anos. Li, acho, juntei os farrapos de imagens, que ainda guardo, e devo ter
inventado."83 A recordação seguinte, remete ao que teria acontecido ao entrar na baía o navio que a
trouxe para o Brasil: "Mentira, novamente. [a respeito do nervosismo dela e Maria da Glória]
Bobagem, bobagem: como poderíamos estar na amurada se chovia torrencialmente? Ou será que a
chuva foi no dia seguinte?"84 Aqui, o passado individual entra em conjunção, na memória, com o
passado coletivo, em que a protagonista tenta lembrar ou reconstruir um passado através da memória
voluntária. Por outro lado, há a memória involuntária, pois a recordação vem à tona, ou seja, aquele
acontecimento aparentemente "esquecido", lançando a personagem em uma confusão de memórias.
80
Id. CALADO, Ivanir. Imperatriz no fim do mundo... op. cit., p. 10. 82
Idem. 83
Ibid., p. 11. 84
Id. 81
69
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Estes detalhes fortalecem a oposição de Benjamin às ideias de Proust. Para o filósofo alemão, a
memória pura não é a do acaso, mas a da coletividade e da experiência.
Diferentemente de Em busca do tempo perdido, de Proust, no romance de Calado o texto não
resvala nas armadilhas de excesso de cortes, de cruzamentos de linhas, interferências de juízos,
prolepses e analepses que podem causar confusão e perturbações de entendimento. As antecipações
sempre são construídas de modo a causar suspense, as digressões são breves e raras, quase sempre
remetendo à construção da memória. Os flashbacks aparecem ao se introduzir uma nova personagem
cujo passado é decisivo para a ação, dominando aí uma experiência vivida que busca a reflexão, o
consciente, a inteligência, convertendo-se em acontecimento, ou seja, em uma determinada série de
impressões que corresponderão ao conceito de vivência.
Amélia de Leuchtemberg foi imperatriz no fim do mundo por pouco mais de dois anos. Seu
casamento durou apenas cinco, pois aos vinte e dois já era viúva, falecendo aos sessenta anos (1873).
O presente narrativo da protagonista, portanto, posiciona-se no final do século XX, época de
profundas transformações econômicas, sociais e tecnológicas. No texto predomina o fio cronológico.
Amélia utiliza-se do conhecimento posterior à sua morte, ao empregar explicações
psicanalíticas — citando Freud e lamentando que este não estivesse disponível — para analisar as
próprias ações e as do marido. Utiliza, também, expressões de linguagem próprias não de sua época,
mas do mundo de hoje. "levando adiante a analogia com o computador, devo ter uma unidade de
processamento, dona e manipuladora das memórias."85 (grifo meu) Ela compara o procedimento da
memória do computador ao seu processo memorialístico "e que a personificação da morte pode ter
surgido em minhas memórias como um vírus de computador, embaralhando fatos e fantasias e
terminando por fazer parte integrante de minha programação."86 Essas memórias póstumas após 120
anos da morte física, pela ficcionalização de uma constante atualização, é o grande trunfo da obra.
Quando a narradora declara "Confirmo cada vez mais que estar viva é ter lembranças, é
inventar lembranças, é admitir a possibilidade do futuro assentado sobre algum tipo de passado
[...]"87, se comprova a experiência vivida (Erlebnis) dessa profunda alteração da experiência do viver
cotidiano, ou seja, a protagonista demonstra bastante consciência da importância das suas anotações
para que as gerações futuras tenham o alcance de suas lembranças e que estas continuem existindo.
Em alguns episódios, a protagonista se encontra, sobretudo, no aflorar da memória
involuntária, como quando ela se depara com o reflexo de concreto da ponte que penetra a imagem
85
CALADO, Ivanir. Imperatriz no fim do mundo... op. cit., p. 317. Ibid., p.127. 87
Ibid., p. 80. 86
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
da baía antiga: "Por um segundo o enorme reflexo de concreto da ponte penetra a imagem da baía
antiga, e fico suspensa entre dois tempos, incapaz de decidir. Estou aqui, não há dúvida, e a
reconstrução exige esforço ininterrupto".88
A lembrança de uma viagem a Paquetá com o esposo produz nela, a princípio, um choque,
— "Não volto a Paquetá desde aquela excursão há mais de cento e sessenta anos, mas estou
preparada para o choque".89 Porém, recuperada, ela se entrega a memórias agradáveis. Revive com
alegria a festa do piquenique, relembra a primeira vez que fez amor com Pedro sobre as pedras, no
meio do mato, o banho de chuva na beira da praia, momentos de muita felicidade. Frente ao espelho
da biblioteca, após longos anos, se vê novamente feliz, como se ainda em um corpo jovem, a roupa
úmida e suja, rosto rosado pelo sol e pelo vento, as mãos não mais pálidas, mortas e transparentes, e
mais jovem. "Jovem e chegando da experiência eternamente revigorante do amor. Com um resto de
cheiro de mato e de homem. Viva."90
A presença do choque incorpora-se ao acervo das lembranças conscientes da
protagonista. A ligação entre a vivência marcada por choques contínuos e o convívio com a
multidão aparece em alguns momentos relevantes do texto. Recém-chegada ao Rio, a
imperatriz se vê no meio de uma massa compacta de pessoas completamente diferente das
que encontrava na Europa. Sofre, então, um impacto frente aos hábitos, costumes e tradições
do povo brasileiro, além do calor infernal, dos mosquitos, das ruas estreitas sem esgoto, dos
barris fétidos cheios até a borda, sendo lançados ao mar por escravos que mesmo limpos
cheiravam diferente dela, da absurda falta de etiqueta da corte.
Confrontada com o estranho povo, a imperatriz é tomada pelo susto, mas reage. Impõe
normas e institui regras de etiqueta europeias no palácio. Tais formalidades causaram reação na corte
brasileira. Cronistas criticaram-na como "despótica" e "antipática", e a imagem da primeira
imperatriz, D. Leopoldina, voltou à baila. Porém, a protagonista resolveu transformar o "presente de
grego que recebera numa joia capaz de ser admirada em qualquer ponto do mundo"91, e sua nova
ordem fez com que a corte imperial parecesse aos ingleses uma extensão de seus países.
As aproximações do romance de Ivanir Calado às teorias de experiência do choque são
confirmadas por Benjamin: "[...] A recepção do choque é atenuada por meio de um treinamento no
88
Ibid., p. 151. Id. 90
CALADO, Ivanir. Imperatriz no fim do mundo... op. cit., p. 154. 91
Ibid., p. 116. 89
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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controle dos estímulos para o qual tanto o sonho quanto a lembrança podem ser empregados em caso
de necessidade."92
A recepção dos choques pela personagem-narradora ocorre, também, ao defrontar-se
com uma cidade moderna, cheia de edifícios, que se move ao ritmo da máquina, da
tecnologia, da violência, produzindo um profundo sobressalto: "[...] E o choque, depois de
tantos anos, foi maior do que aquele que senti aos dezessete, ainda viva. Encontrei uma
cidade louca, cheia de edifícios, carros ruas, violência. Irreconhecível (grifo meu)."93
A memória involuntária, em Proust, faz voltar à tona uma vivência individual de teor
coletivo, imersa no coletivo e, por isso, mais potente. No caso da obra em tela, pode-se
dizer, com liberdade, que a cadeia de associações que assaltou a protagonista do romance
configura uma experiência vivida individual e uma memória involuntária coletiva. A
protagonista se transporta não para algum ponto de seu próprio passado, mas para um ponto
relevante da história do Brasil.
Em suma, as memórias dúbias, que imperam ao longo de todo o texto do romance,
não dependem única e exclusivamente do aflorar da memória involuntária. Segundo
Benjamin, as inquietações da vida interior não teriam, por natureza, esse caráter
irremediavelmente privado da memória involuntária/voluntária. Elas só o adquirem "depois
que se reduziram as chances dos fatos exteriores se integrarem à nossa experiência."
Considera-se, portanto, que a obra analisada pode ser tomada como ponto de vista,
como memória individual, a partir do qual se pode ler a memória do romance
contemporâneo. Imperatriz no fim do mundo é um romance que, ao mesmo tempo em que
diz a memória, diz também o processo de transformação da sociedade brasileira ao final do
século XX, marcado pela experiência do choque. Amélia de Leuchtemberg, por sua vez, se
revela, enfim, como uma personagem feminina que participou de um período importante da
história brasileira, mas na pele de uma sofredora, de alguém que, por sua ousadia, espírito
independente e caráter determinado, pagou um alto preço para conquistar seu lugar. A
interrogação que fica é: hoje em dia, quantas mulheres se submeteriam a tal sofrimento e
incerteza? Ou a realidade da mulher brasileira é totalmente diferente da experienciada pela
imperatriz que veio até este nosso fim de mundo?
92
BENJAMIN, Walter. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense, 1989. p. 109-­‐110. 93
CALADO, Ivanir. Imperatriz no fim do mundo... op. cit., p. 9. 72
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integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
REFERÊNCIAS
ABBAGNAMO, Nicola. Dicionário de filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
BENJAMIN, Walter. O narrador: considerações sobre a obra de Nicolai Lescov. In: Magia e
técnica, arte política: ensaios sobre a literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.
—————. A imagem de Proust. In: Magia e técnica, arte política: ensaios sobre a literatura e
história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1985.
—————. Sobre alguns temas em Baudelaire. In: Obras escolhidas III. São Paulo: Brasiliense,
1989.
BERGSON, Henri. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
BOSI, Ecléa. Memória e sociedade: Lembranças de velhos. São Paulo: T.A Queirós/Companhia das
Letras, 1999.
CALADO, Ivanir. Imperatriz no fim do mundo: memórias dúbias de Amélia de Leuchtemberg.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2001.
CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 2000.
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. In: Obras completas da edição standard das
obras psicológicas de Sigmund Freud, v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
—————. O mecanismo psíquico do esquecimento. In: Obras completas da edição standard
das obras psicológicas de Sigmund Freud, v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
—————. Recordar, repetir e elaborar. In: Obras completas da edição standard das obras
psicológicas de Sigmund Freud, v. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976.
GAGNEBIN, Jeanne Marie. Walter Benjamin. São Paulo: Brasiliense, 1982.
73
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
A preservação da identidade através do Relato (ainda que oficial) – o caso do
Equador
Prof. Dr. Carlos Túlio da Silva Medeiros
[email protected]
Diálogos en Mercosur
IFSUL
Resumo
Este trabalho discutirá o tema da preservação da identidade nacional, a partir do relato do
outro e terá como referencia de investigação o Equador. Considerando que todo relato,
necessariamente, recorre à memória para vir à tona, e que o mesmo não é somente o ponto de
chegada de uma viagem, como afirma Todorov (2003), mas também o seu ponto de partida, uma vez
que ali, de fato, nasce o processo narrativo, pretende-se, aqui, discutir como a identidade nacional
pode ser conduzida, ou direcionada, por aquele que conta ao outro, desconhecedor daquele passado,
sobre a sua própria história, através desse discurso parcial e impregnado pelo sentimento, sobretudo,
da emoção. Hall já chamava a atenção para o valor e o sentido da cultura nacional, ao lembrar que a
mesma era composta não somente pelo aspecto da cultura em si, mas por seus símbolos e
representações (Hall, 2005), podendo, neste caso, levar em debate, o narrador, que também assume
para aquele que escuta a condição de outro, a identificar-se com aquilo que reproduz, muitas vezes
de forma automática; logo, construindo e reforçando o que se chama de identidade ou, melhor
afirmando, seu processo de identificação.
Introdução
Ao narrar estas linhas, guardo, sem dúvida, a imagem do jovem guia/narrador
que pude escutar quando visitei as dependências do Palácio da Presidência da República do
Equador, que me motivou a desenvolver este texto/relato e, assim, como recorda Benjamin,
aqui, em minha condição de também narrador, reforço que “os narradores gostam de
começar sua história com uma descrição das circunstâncias em que foram informados dos
fatos que vão contar a seguir” (Benjamin, 1994, p. 205).
Sabemos que aquele que narra traz, sobretudo, a própria experiência nesse ato
do narrar, e como afirma a voz do povo, ‘quem viaja tem muito que contar’ (Benjamim,
74
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
2012), e este viajante adquire, a partir dessa experiência, não propriamente a condição de
ser um bom narrador, mas registra em seu olhar as experiências daquilo que viu ou
presenciou, promovendo, a partir disso, o exercício da memória. Ao transmitir a sua
experiência qualificada travestida de informação, nosso guia/narrador reforça ao ouvinte o
que as muitas sociedades criaram ao longo do tempo com o objetivo de, justamente, manter
esses traços da sua cultura, ou seja, sua historia, seu patrimônio e identidade.
O historiador brasileiro José Ribamar Bessa Freire, traz uma afirmação, a partir de
Le Goff (1984), na qual ele afirma que, “sem memória coletiva, os homens não podem
sobreviver. A memória ajuda a sociedade a se organizar, permite conhecer o passado e
constitui elemento importante da identidade, individual ou coletiva” (Bessa Freire, 2006).
Reforça, ainda, que essa própria memória orienta o destino dos povos e que por essa razão,
em algumas sociedades de nosso planeta, quem controla a memória, que Bessa define de “os
senhores da memória”, são os mantenedores do poder. Isso me faz recordar, por exemplo,
quando trabalho com alunos de primeiro semestre, pois, como são muito jovens, sempre
começo com os conceitos básicos sobre linguagem, língua, fala e cultura e neste último, o
exemplo dado é sempre a do narrador indígena, que transmite, através da linguagem e suas
variantes – língua e fala – sua história e sua cultura aos mais jovens de sua tribo.
Ao trazer Le Goff para a discussão, Bessa também afirma que o historiador
francês, lembrava que cinco grandes momentos distintos trabalham o processo de
conservação, transmissão e preservação da história, quais sejam:
1.
A memória oral, que ele chama também de memória étnica, presente nas sociedades
sem escrita.
2.
A memória de transição da oralidade à escrita, correspondendo classicamente ao
período da Pré-História à Antiguidade.
3.
A memória medieval, onde se dá um equilíbrio entre o oral e o escrito.
4.
A memória escrita, com a invenção da imprensa, a mecanização e seus progressos, do
século XVI aos nossos dias e,
75
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
5.
A memória eletrônica, atual, que através da informática sistematiza e agiliza o
acesso às fontes de informação.
Contudo, em qualquer uma das circunstâncias, faz-se necessária a figura de um
narrador, que ciente daquilo que desenvolve, incorpora “as coisas narradas à experiência dos
seus ouvintes” (Benjamin, 2012, 217), que podem levar adiante, ou não, aquilo que ouviram
De todo modo, seja ouvindo ou abrindo um livro, o leitor, ou aquele que escuta, estabelece
um contato com a figura do narrador, que se sabe contar/narrar, manterá a atenção deste
outro até o final.
Na experiência que trago, o que chamou atenção em meu guia/narrador foi,
justamente, o discurso narrativo desenvolvido pelo mesmo, pois era clara a sua intenção de
deixar registrado o valor dos atos de seus presidentes, reforçando, ali, a identidade
equatoriana para seu ouvinte, e trabalhava essa descrição narrativa de forma quase artesanal,
já que a própria narrativa parecia navegar por dentro de si e sair quase cantada aos ouvidos
de sua audiência. Como recorda Benjamin (2012), tomado esse ato, “se imprime na narrativa
a marca do narrador, como a mão de oleiro na argila do vaso”.
Com olhos voltados para Pátria, esse discurso de nosso narrador, carregado pelo
sentimento e o sentido de nação, significava muito mais que aquilo que ele simplesmente
procurava transmitir. Considerando aqui o sentido de “discurso”, aquelas declarações do
guia/narrador, traziam uma linguagem que falava essencialmente, de uma forma muito
particular, de um conhecimento próprio, com significado particular. “Cuando las
declaraciones sobre un tópico están hechas dentro de un discurso particular, el discurso hace
posible construir el tópico de cierta manera” (HALL, 1996, 201).
Sobre essa posição, Ana Pizarro (2009) também reforça e afirma que “al hablar de
discurso, lo estamos haciendo asi mismo en término de ‘formación discursiva’, como
plantea Michel Foucault, es decir, no de declaraciones aisladas, sino de una serie de
declaraciones articuladas en un mismo sentido (Pizarro, 2009, p. 26). Ainda na trilha de
Hall, reforçando essa proposta de discurso e linguagem, “no se trata de una diferenciación
convencional entre el pensamiento y la acción, sino de la producción de conocimiento a
través del lenguaje” (HALL, 1996), e fica evidente que a prática desse discurso apresentado
por meu guia/narrador gera, consequentemente, conhecimento. Até porque, segundo Pizarro,
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
“todo discurso es ideológico en el sentido de que no es inocente: está emitido desde un
sujeto en condiciones particulares y desde un lugar específico de enunciación” (PIZARRO,
idem). Aqui, o local não poderia ser mais relevante, que o próprio palácio da república, o
qual produz, de forma muito natural e aconchegante ao singelo guia/narrador o melhor
ambiente para este reproduzir a sua narrativa.
Cada relato apresentado ao longo de nossa visita, diante de um quadro ou premiação
recebida pelos vários presidentes, e de maneira muito especial nosso interlocutor destacava o
atual governante, o economista Rafael Correa, a identidade nacional era reforçada por nosso
guia/narrador, como algo distinto e único, somente existente naquele país. Narrar a nação é
isso, ou seja, ela deve ter o sentido de razão do que e quem somos para nós mesmos.
O conjunto de relatos que define as identidades nacionais supõe uma
codificação do memorável, um sistema de fiação de significados
dirigido a motivar uma autopercepcao coletiva. Os dispositivos
culturais ativados politicamente procuram impulsionar um relato da
identidade coletiva que permita aos indivíduos se reconhecer em
uma continuidade social que se desdobra no espaço e no tempo. Os
relatos da identidade nacional são também, nesse sentido, narrações
públicas, ligadas, portanto, a redes sociais e instituições, e se
encontram submetidos a pressões de legitimação (Barbosa, 2013,
109).
Ao ouvirmos a narrativa do guia/narrador, o legitimamos, uma vez que, na condição
de um ator “público”, ele ganha esse status de boa fé daquilo que narra, pois para o ouvinte,
ele é a autoridade ali constituída. Essa fala, logo, passada através da linguagem, transformase em literatura, tendo em vista que esta linguagem é a própria matéria-prima, o locus, a arte
do poeta (Todorov, 1970), do escritor, daquele que conta a historia, mantendo e reforçando,
por que não dizer, a própria identidade, sua real intenção, a partir dessa memória (re)
contada no seu dia a dia aos visitantes do palácio.
Essa oralidade, praticada por nosso guia/narrador e seus respectivos companheiros, é
um lugar de permanente inconstância devido a sua continua e repetida construção; por
conseguinte, (re) inventada, alterada, acrescida, violada e testemunhada tanto por ele, como
pelo seu observador, já que este, ao ouvir, também pode julgar.
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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De todo modo, o ouvinte vai sendo seduzido pela força da história, da palavra e a
maneira peculiar da narrativa sobre o que se pode chamar de mais rico visto ali naquelas
dependências, que é o próprio patrimônio equatoriano. Passa-se a ter noção do sentido
material e imaterial desse substantivo, já que patrimônio é tudo aquilo que “produzimos com
as mãos, as idéias e a fantasia” (Londres, 2001, 69-78), o que nosso condutor faz muito bem.
Ao narrar, utiliza-se justamente da memória para reforçar aquela coletividade como bela e
una. Ali, a memória se integra
Em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar
sentimentos de pertencimento [...]. A referência ao passado serve
para manter a coesão dos grupos e das instituições que compõem
uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua
complementariedade, mas também as oposições irredutíveis (Pollak,
1989, p.9).
Nesse contexto, a oralidade assume uma grande ferramenta de manutenção dessa
identidade cultural, muito embora aquilo que se ouça seja perdido, uma vez que não há
escrita, visto que esta depende de uma estrutura mais elaborada do campo da linguagem.
Por fim, o que se ouve pelos corredores conservadíssimos do antigo Palácio da
República do Equador, Quito, a partir da figura do guia/narrador acaba sendo um patrimônio
daquele espaço oficial local e da humanidade, como é quase todo este país.
REFERÊNCIAS
Bessa Freire, José Ribamar. Os Guaranis e a Memória oral: a canoa do tempo. in Secretaria
de Estado da Educação do Paraná. Cadernos Temáticos – Educação – Escolar
Indígena. SEED. 2006.
Hall, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade, Rio de Janeiro, DP&A, 2006.
Londres, Cecilia, Org. Revista Tempo Brasileiro. Patrimônio Imaterial, out-dez, n 147, pp
69-78. Rio de Janeiro, 2001.
Pizarro, Ana. Amazonía: el río tiene voces. Col. Tierra Firme, fondo de Cultura Económica,
Chile, 2009.
Pollak, Michael. Memória, Esquecimento, Silêncio. In. Estudos Históricos, Rio de Janeiro,
vol. 2. N. 3. 1989, p. 3-15.
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ALIMENTAÇÃO E LITERATURA: A COMUNIDADE EM O PAI GORIOT DE
HONORÉ DE BALZAC.
Rebekka Fernandes Dantas – Mestranda do Programa de Pós-Graduação em
Ciências Sociais (PPGCS-UFRN) [email protected]
Alexsandro Galeno Araújo Dantas – Doutor em Ciências Sociais (PUC-SP) e Professor do Programa de PósGraduação em Ciências Sociais (PPGCS-UFRN) [email protected]
RESUMO
A comensalidade é definida simplesmente como o ato de comer e beber junto e tem sido
objeto de investigação científica tanto nos estudos em Nutrição quanto nas Ciências Sociais,
devido em parte às mudanças ocorridas no mundo contemporâneo, onde as dicotomias entre
Sul e Norte, ou Ocidente e Oriente não fazem mais sentido. O nosso objetivo é investigar a
existência de uma comunidade na comensalidade. Realizamos análise temática do corpus do
trabalho, o romance O pai Goriot de Balzac, que se passa no ambiente de uma pensão
decadente, onde a mesa é um lugar de relação com o Outro, e nunca do Mesmo com o
Mesmo, e portanto, de alteridade, apresentando-se como palco de práticas alimentares que
acontecem nas desarmonias que perpassam vidas em comunidade. Que comunidade é esta?
Para pensá-la utilizaremos as noções de “comunidade inconfessável” de Maurice Blanchot e
de “comunidade inoperante” de Jean-Luc Nancy, que argumentam que elas não são
possíveis na coesão nem na comunhão. Refletindo sobre a comensalidade à luz das Ciências
Sociais e da Literatura, acreditamos contribuir para o conhecimento de uma Nutrição que
considera o ato de alimentar como um fenômeno complexo que vai muito além das calorias
e dos nutrientes contidos nos alimentos.
Palavras-chave: literatura; comunidade; comensalidade.
RESUMEN
La comensalidad se define simplemente como el acto de comer y beber juntos y ha causado interés
en estudios en Nutrición y en las Ciencias Sociales, debido en parte a los cambios en el mundo
contemporáneo, donde las dicotomías entre el Norte y el Sur, o entre Occident y el Oriente no tienen
más sentido. Nuestro objetivo es investigar la existencia de una comunidad en la comensalidad.
Realizamos análisis temático del corpus del trabajo, la novela Papá Goriot de Balzac, que sucede en
el entorno de una pensión decadente, donde la mesa es un lugar de relación con el Otro, y nunca de
lo Mismo con el Mismo, y por lo tanto, de alteridad, presentándose como escenario de las prácticas
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
de alimentación que ocurren en las desarmonías que atravesa la vida un grupo o en comunidad. ¿Qué
es esta comunidad? Vamos a pensala utilizando los conceptos de Maurice Blanchot y Jean-Luc
Nancy, quienes sostienen que la comunidad no es posible en la cohesión o em la comunión.
Reflexionando sobre la comensalidad a la luz de las Ciencias Sociales y Literatura, creemos
contribuir al conocimiento de una nutrición que considera el acto de la alimentación como un
fenómeno complejo que va mucho más allá de las calorías y nutrientes contenido en los alimentos.
Palabras-clave: literatura; comunidad; comensalidad.
INTRODUÇÃO
O romance O pai Goriot foi escrito em 1834 por Honoré de Balzac, ano em que este
teve a ideia de ligar as suas narrativas em uma obra única, A Comédia Humana, fazendo
reaparecerem os mesmos personagens (RÓNAI, 2012). A história se passa em Paris do
século XIX e tem como principal ambiente a pensão Vauquer, que está localizada em um
bairro decadente da cidade. A sra. Vauquer, dona da casa, oferece a preço baixo e qualidade
duvidosa alimentação e moradia para sete pensionistas, personagens singulares e estranhos
entre si, quais são eles: o pai Goriot, Eugênio de Rastignac, Vautrin, Srta. Taillefer, Sra.
Couture, Sra. Michoneau, Poiret. À noite outros personagens juntam-se à mesa para
usufruíram do jantar por 30 francos ao mês, como o estudante de medicina Bianchon. O pai
Goriot é um velho fabricante de massas e cereais que enriquece durante a Revolução, casa as
duas filhas, Delfina e Anastácia com homens nobres e resolve aposentar-se e viver uma vida
modesta, a fim de destinar parte das suas economias às filhas, que só estão interessadas em
extorquir o seu dinheiro. Além do protagonista, o estudante de direito Eugênio de Rastignac
tem um papel interessante na história. Sua pobre família vive nas redondezas de Angoulême
e precisam enviar-lhe dinheiro para que se mantenha em Paris. Primo distante da
viscondessa de Beauséant conhece, através dela, a alta sociedade francesa, pela qual fica
fascinado e percebe o quão difícil é chegar àquela posição social apenas por meio do esforço
profissional. Todavia, logo observa como seria fácil fazê-lo conquistando uma bela mulher,
e assim envolve-se com uma das filhas do pai Goriot. Jogando e pedindo dinheiro às irmãs e
à mãe para frequentar os salões, Eugênio acaba perdido e sem dinheiro, mas é ajudado por
Vautrin, um foragido, que lhe dá um empréstimo e arquiteta um plano para ele casar-se com
a Srta. Vitorina, uma moça deserdada do pai milionário, mas que receberia a sua fortuna
caso o seu irmão desaparecesse por algum motivo. Rastignac acaba por afastar-se de
Vitorina e prossegue suas investidas na filha do pai Goriot.
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Honoré de Balzac, comensal alegre e conhecido pelo seu estilo glutão e exagerado
pedido: “Garçon, un cent d’hûitres”, acompanhado de quatro garrafas de Vouvray,
alternava esses momentos em que se mostrava um glutão “com períodos de esforço, em que
se contentava com refeições rápidas,” (MUHLSTEIN, 2010, p. 36, tradução nossa) e que
correspondia aos momentos em que escrevia, trabalhando por horas noite adentro sob o
efeito de grandes quantidades de café. Contemporâneo do cozinheiro Brillat-Savarin,
escreveu um prefácio para a edição da obra deste, A fisiologia do gosto, texto que depois
Balzac publicou como Tratado dos Excitantes Modernos. Sua obra está repleta de
referências à alimentação, como o restaurante Flicoteaux do Quartier Latin que aparece em
Ilusões Perdidas; os pedaços de pão, queijo Brie e costeletas de porco da chacina de O
Coronel Chabert, ou a miséria de Desplein, que antes de tornar-se médico só podia pagar
pela manhã um pão da véspera ou antevéspera. E também O pai Goriot, que escolhemos
para analisar, apresenta uma reflexão sobre a alimentação, esta estudada como um sistema
cultural alimentar, composto por, “representações, crenças e práticas que estão associadas a
ela e que compartilham os indivíduos que formam parte de uma cultura ou de um grupo no
interior desta cultura”, que além do preparo e combinação dos alimentos envolve a colheita e
o consumo (FISCHLER, 1995, p. 34, tradução nossa).
Utilizaremos também as ideias de cozinha específica e cozinha universal de Claude
Lévi-Strauss. Para ele, o alimento apresenta-se universalmente em três estados principais:
cru, cozido ou podre, constituindo um triângulo onde temos o cru no vértice central como
polo não-marcado, e o cozido e o podre nos vértices opostos, fortemente marcados, porém
em direções opostas. O cozido é uma transformação cultural do cru e o podre sua
transformação natural. No entanto, para uma determinada sociedade:
nada é simplesmente cozido, mas deve sê-lo de determinado modo. Tampouco
existe cru em estado puro: apenas certos alimentos podem ser consumidos nesse
estado e, mesmo assim, contanto que tenham sido previamente lavados,
descascados e cortados, ainda que nem sempre temperados. E até as culinárias
mais tolerantes em relação ao podre só o admitem como resultado de certos
processos, espontâneos ou dirigidos (LÉVI-STRAUSS, 2006, p. 432).
A cozinha apresenta uma dimensão da experiência social do ato de comer e passa por
um processo civilizador, que: “constitui uma mudança na conduta e sentimentos humanos
rumo a uma direção muito específica, ainda que estas mudanças não tivessem sido
planejadas conscientemente ou racionalmente, isto é, através de qualquer ação intencional de
pessoas isoladas ou grupos” (ELIAS, 1993, p. 193). “Ainda assim, é fato observável que as
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
pessoas de unidades sociais diferentes comportam-se de forma diferente e em maneiras
muito específicas,” (ELIAS, 1994, p. 47-48) e é por isso que achamos estranhos os hábitos
alimentares do homem da Idade Média, como limpar o nariz com a mão, desde que não o
assoasse na toalha da mesa
Na obra em questão a mesa está sempre presente, os personagens praticam o ato de
comer e beber juntos, em grupo ou em comunidade, como percebe Massimo Montanari:
Em todos os níveis sociais, a participação na mesa comum é o principal sinal de
pertencimento ao grupo. Esse pode ser a família, mas também uma comunidade
mais ampla: toda confraria, corporação, associação reafirma à mesa a própria
identidade coletiva; toda comunidade monástica se reconhece no refeitório, onde
todos são obrigados a dividir a refeição (e somente os “excomungados”, aqueles
que se mancharam com alguma culpa, são excluídos temporariamente)
(MONTANARI, 2008, p. 159).
No entanto, comer junto não significa necessariamente estar em perfeita harmonia,
uma vez que “se a mesa é a metáfora da vida, ela representa de modo direto e preciso não
apenas o pertencimento a um grupo, mas também as relações que se definem nesse grupo”
(MONTANARI, 2008, p. 160), bem como na sociedade, que hoje caracteriza-se pelas
desordens alimentícias e “pânico alimentar” (Bauman, 2007), insegurança em relação à
saúde e à alimentação, por um elogio da moderação ao mesmo tempo em que se cultua o
excesso (LIPOVETSKY, 2004) e por um individualismo, em que o comensal desempenha
duas funções diferentes: “quem se abasta da própria cozinha desempenha eo ipso o duplo
papel de anfitrião e convidado, de cozinheiro e comensal.” (SLOTERDIJK, 2009, p. 450).
Estas transformações rondam todo o mundo e já não fazem mais sentido apenas para
os países ditos desenvolvidos. Em 1989 em reunião acontecida em Genebra por especialistas
em Dieta, Nutrição e Enfermidades Não Transmissíveis da OMS reconheceram que “a
epidemia crescente de enfermidades crônicas que aflige tanto os países desenvolvidos como
os países em desenvolvimento está relacionada com as mudanças dos hábitos alimentares e
do modo de vida” (OMS, 2003, p.2, tradução nossa).
A comensalidade na pensão Vauquer remete a uma comunidade, porém não de
harmonia e comunhão, o que para Jean-Luc Nancy e Maurice Blanchot é uma comunidade
impossível, mas sim de estranhamento e desarmonia, como as comunidades inoperante
(NANCY, 2000) e inconfessável (BLANCHOT, 2013), e que nos almoços e jantares da
pensão configura-se em discussões, brigas e excessos.
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Dessa forma, nosso objetivo é estudar a presença de uma comunidade na
comensalidade do romance O pai Goriot. Inicialmente discutiremos a comunidade literária,
que também constitui uma comunidade e uma relação de alteridade, e pode ser importante
para pensarmos a Ciência, seguido de dois tópicos nos quais abordaremos relações de
alteridade à mesa que acontecem no estranhamento e na desarmonia.
MATERIAIS E MÉTODOS.
Após uma primeira leitura do corpus do trabalho, no caso o romance, transcrevemos
onze momentos que correspondem aos almoços e jantares que acontecem diariamente na
pensão Vauquer. A partir das transcrições foi realizada análise temática proposta por
Mayring (1983) e que consiste num procedimento gradual de redução do texto qualitativo
em séries de paráfrases. Primeiramente, passagens inteiras são parafraseadas em sentenças
sintéticas, as quais são posteriormente parafraseadas em algumas palavras-chave, ou temas.
A partir disto, desenvolvemos um sistema de temas com o qual o texto pôde ser codificado
(JOVCHELOVICTH; BAUER, 2002). Identificamos os seguintes temas que caracterizam a
comensalidade da Casa Vauquer: a mesa é um espaço de desarmonia, os comensais são
estranhos entre si, e a relação com os alimentos e com aqueles que os cozinham se dá no
distanciamento.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A comunidade literária.
A literatura, assim como a comensalidade, forma uma comunidade, que se faz no
estranhamento e na abertura para o outro. Aquele para quem se escreve é o desconhecido
“donde o anonimato do livro, que não se dirige a ninguém e que, pelas relações com o
desconhecido, instaura aquilo que Georges Bataille (pelo menos uma vez) chamará de ‘A
comunidade negativa: a comunidade dos que não têm comunidade’” (BLANCHOT, 2013, p.
39). E portanto “o leitor não é um simples leitor, livre a respeito daquilo que ele lê. Ele é
ansiado, amado e talvez intolerável” (BLANCHOT, 2013, p. 38). Na literatura existe uma
relação de alteridade, em que nós, como leitores nos aproximamos, no distanciamento,
daquele que escreveu, em vez de distanciarmo-nos como objeto de pesquisa que nos é
alheio. Somos afetados ao ler Balzac, por vezes sentindo compaixão ou desprezo pelo pai
Goriot e assim nos encontramos no “si mesmo”, que “não é o sujeito isolado do mundo, mas
um lugar de comunicação, de fusão do sujeito e do objeto” (BATAILLE, 1992, p. 17).
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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Cada obra de arte é uma sinestesia, uma abertura de mundo que “se desloca em
mundos plurais, ou para dizê-lo com mais exatidão, em pluralidade irredutível da unidade
“mundo”” (NANCY, 2008. p. 32, tradução nossa), que se compromete “com um certo
regime da política, um regime de indeterminação das identidades, de deslegitimação das
posições de palavra, de desregulação das partilhas do espaço e do tempo. Esse regime
estético da política é propriamente a democracia,” (RANCIÈRE, 2005. p. 18), pois a
literatura é uma articulação da fala, a repartição das vozes, diferentemente do mito que se
trata de uma comunhão e de uma imanência, “a escritura, em contrapartida, ou a “literatura”,
inscreve a repartição: no limite, a singularidade advém, e se retira” (NANCY, 2000, p. 92
tradução nossa).
Como bem percebe Renata de Chaulieu, personagem de Memória de duas jovens
esposas: “Não há nada que não seja ao mesmo tempo verdadeiro e falso em tudo o que os
autores escrevem” (BALZAC, 2012, p. 328), pois a arte não tem obrigação de nos dizer a
verdade nem segue regras, diferentemente da ciência, como nos mostra a obra clássica de
Durkheim (2007), As regras do método sociológico. Sendo ciência apresenta uma
linguagem, porém que “não passa de um instrumento, que se quer tornar tão transparente,
tão neutro quanto possível, submetido à matéria científica (operações, hipóteses,
resultados)” (BARTHES, 1988. p. 24).
Já a literatura é o Mal, ainda que não contrário ao Bem, que “decorre da
possibilidade de infringir a regra” (BATAILLE, 1989. p. 164), que angustia e desordena, e
que ao utilizarmo-la para pensar a comunidade, nos proporciona “um pensamento profundo
sobre a condição humana” (MORIN, 2003, p. 45) e “faz girar os saberes, não fixa, não
fetichiza nenhum deles; ela lhes dá um lugar indireto, e esse indireto é precioso. Por um
lado, ele permite designar saberes possíveis — insuspeitos, irrealizados: a literatura trabalha
nos interstícios da ciência” (BARTHES, 2004, p. 17).
A mesa: um lugar de relação com o outro
A comunidade literária tem características de uma comunidade inoperante ou
inconfessável, assim como percebemos na pensão Vauquer, um espaço em que os
personagens apresentam suas diferenças, mas não se fecham sobre si. Daremos atenção às
singularidades do pai Goriot, personagem que causa estranhamento aos demais.
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O pai Goriot chega à pensão Vauquer no ano de 1813, pagando mil e duzentos
francos por um dos melhores apartamentos da casa, no primeiro andar, “como um homem
para quem cinco luíses a mais ou a menos eram uma ninharia” (BALZAC, 2012, p. 43), no
segundo ano passa para o segundo andar e no terceiro ano passa a ocupar o pior quarto da
pensão. Já não parecia mais o mesmo, “a uns causava horror; a outros inspirava compaixão”
(BALZAC, 2012, p. 54). Algo não condizia com o seu aspecto miserável, recebia
frequentemente a visita de duas damas da alta sociedade parisiense que dizia serem suas
filhas. Os pensionistas manifestavam uma curiosidade para com esse personagem estranho,
desconfiavam e zombavam de sua paternidade à mesa, um espaço de desarmonia, como no
episódio que inicia quando todos debochavam do seu hábito de cheirar o pão para descobrir
a qualidade da farinha:
- Então seu nariz é uma retorta? - perguntou ainda o empregado do museu.
- Re quê? - indagou Bianchon.
- Re-toque.
- Re-trato.
- Re-talho.
- Re-tranca.
- Re-truque.
- Re-treta.
- Re-tinto.
- Re-torama.
Essas oito respostas partiram de todos os lados da sala com a rapidez de uma
fuzilaria e se tornaram ainda mais engraçadas porque o pai Goriot olhava para os
convivas com uma expressão aparvalhada, como uma pessoa que procura entender
uma língua estrangeira.
- Re...? - perguntou a Vautrin, que se achava junto dele.
- Re...tira-te, meu Velho! - disse Vautrin, enfiando o chapéu na cabeça do pai
Goriot e enterrando-o até os olhos com uma tapona.
O pobre velho, aturdido com esse brusco ataque, ficou momentaneamente imóvel.
Cristóvão retirou o prato do bom homem, pensando que ele tivesse terminado a
sopa. E quando o pai Goriot, depois de ter arrancado o chapéu, baixou a colher,
bateu com ela na mesa. Todos soltaram uma nova gargalhada.
- O senhor é um gracejador de mau gosto - disse o velho -, e se tiver a ousadia de
enterrar-me de novo o chapéu... (BALZAC, 2012, p. 78-79).
Aqui, a mesa não se configura como um lugar de comunhão nem de fraternidade
como percebe-se na eucaristia:
“Durante a refeição, Jesus tomou o pão, benzeu-o, partiu-o e o deu aos discípulos,
dizendo: ‘Tomai todos e comei, isto é o meu corpo’. Tomou depois o cálice,
rendeu graças e deu-lho, dizendo: ‘Bebei dele todos, porque isto é meu sangue, o
sangue da Nova Aliança, derramado por muitos homens em remissão dos
pecados.’” (Mt, 26-28) (SAGRADA, 1998, p. 1317).
A comunidade aberta à comunhão é o princípio seguido por grupo sob fascinação,
militar ou fascista “em que cada membro do grupo transfere sua liberdade ou mesmo sua
consciência a uma Cabeça que o encarna e não se expõe para ser cortada, porque ela está por
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definição acima de qualquer alcance” (BLANCHOT, 2013, p. 19), deseja a imanência do
Mesmo com o Mesmo que corresponderia à “dissolução de tudo aquilo que impediria o
homem (já que ele é sua própria igualdade e sua determinação) de se pôr como pura
realidade individual, tanto mais fechada quanto ela é aberta a todos” (BLANCHOT, 2013, p.
13). Ou seja, a comunhão é abrir-se para os iguais e fechar-se aos diferentes.
À mesa, a abertura ou o fechamento ao outro pode acontecer em relação aos
alimentos que se mostram conhecidos e familiares ou exóticos e estranhos e que pode
ocasionar um etnocentrismo e uma xenofobia alimentar (HERNÁNDEZ, 2005) que se
percebem, por exemplo em reações “nacionais” ou “nacionalistas” à crise da vaca louca,
determinando-se na França a marca “Viande Bovine Française” (Carne Bovina Francesa)
(SANS; FONTGUYON, 1999) para tranquilizar a população de que não estão comprando
carnes da Inglaterra, como se a ameaça viesse sempre do estrangeiro. E repudia-se os hábitos
alimentares de grupos indígenas ou mesmo dos japoneses, que comem insetos.
Por outro lado, os chefs contemporâneos começam a abrir-se ao estranho. Para
muitos deles, as tradições culinárias já não são vistas como subculturas a serem civilizadas,
mas sim fontes de inspiração, contribuindo para a formação de novas cozinhas
quebequenses, alemãs, australianas, com a utilização de produtos outrora exóticos que se
misturam aos nacionais (POULAIN, 2013). É o caso, no Brasil, de Alex Atala, chef de
cozinha que vem estudando o hábito de comer formigas de alguns grupos indígenas, para
inserir esses insetos em seus pratos.
Isto caracteriza uma comunidade em que procuramos o desconhecido, como os
amantes, que não almejam a fusão e funda-se mais na estranheza que na proximidade,
“paradigma do amor compartilhado, exclui tanto a simples mutualidade quanto a unidade em
que o Outro se fundiria no Mesmo”, pois o homem “não busca se associar a um outro ser
para formar uma substância de integridade. A consciência da insuficiência vem da sua
própria colocação em questão, a qual tem necessidade do outro ou de um outro para ser
efetuada” (BLANCHOT, 2013, p. 17).
Essa comunidade está entre a comunhão e o individualismo, não almeja a fusão da
primeira, nem a mera justaposição da segunda, ela não é
“a simples colocação em comum, nos limites que ela traçaria para si, de uma
vontade partilhada de ser vários, mesmo que fosse para nada fazer, quer dizer,
nada fazer além de manter a partilha de ‘alguma coisa’ que precisamente parece
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integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
sempre já ter-se subtraído à possibilidade de ser considerada como parte a uma
partilha: palavra, silêncio” (BLANCHOT, 2013, p. 19).
Se por um lado estamos insatisfeitos com o estado atual do mundo, em que o
individualismo parece prevalecer, por outro só enxergamos a volta ao passado. É o que
encontrou em pesquisa realizada na Europa e nos Estados Unidos por Fischler e Masson
(2010). A maioria dos entrevistados consideravam que no passado os alimentos eram mais
saudáveis e mais saborosos, bem como o Guia Alimentar para a População Brasileira
(BRASIL, 2006) incentiva os brasileiros a praticarem a refeição em família e com amigos,
como se fosse sempre um momento de partilha e bem-estar.
No entanto, é à mesa que o pai Goriot recebe deboches, Eugênio recebe gracejos e
discute com Vautrin, bem como é aqui o lugar do excesso, que para comemorar a
concretização de seus planos Vautrin oferece vinho Bordeaux, Eugênio compra uma garrafa
de champanhe, bolos, biscoitos, castanhas... Alimentos até então nunca vistos na pensão. E
mesmo na Idade Média, o clima de fraternidade e alegria dos banquetes poderia ser
quebrado a fim de enganar os participantes e matá-los. (ALTHOFF, 1998). Por que, então,
desejamos à volta à refeição em grupo, como se está sempre fosse um momento perdido e
fraternal?
Para Nancy (2000, p. 23, tradução minha) nos entregamos à nostalgia de uma
comunidade perdida no passado ou limitada a “comunidades tradicionais”, mas nada está
perdido. Essa comunidade não teve lugar entre os índios Guayaqui, nem no espírito de um
povo hegeliano, nem na ágape cristã.
Os que andam perdidos somos nós mesmos, nós sobre quem o “laço social” [...],
nossa invenção, recai pesadamente como a trama de uma rede econômica, política,
cultural e, porque não, espetacular. Enredados em suas malhas, acabamos por
forjar os espectros (as imagens fantasmagóricas) de uma convivialidade perdida.
Distância e estranhamento
Aqueles que cozinham nossos alimentos o fazem sempre à distância, seja nas
indústrias, nos restaurantes ou em nossas casas, a cozinha não está aberta a todos. No
entanto, assim como acontece com a literatura, o alimento pode proporcionar uma
aproximação, mediando vínculos entre os comensais e entre estes e os cozinheiros.
A Sra. Vauquer e a cozinheira, desejando apenas o lucro e não agradar seus
pensionistas, resolvem dar ao mais miserável deles o leite bebido por um gato.
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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Momentos depois a sra. Vauguer desceu, justamente quando o gato acabava de
derrubar com uma patada o prato que cobria uma tigela de leite e o bebia às
pressas.
- Mistigris! - gritou ela.
O gato fugiu. Depois voltou e começou a roçar-se em suas pernas. - Sim,
sim, trata de fingir, velho poltrão! – disse-lhe. – Sílvia! Sílvia!
- Que é, patroa?
- Vê o que foi que o gato bebeu.
- A culpa é desse estúpido Cristóvão. Eu pedi que ele pusesse a mesa. Onde se
meteu? Não se preocupe, patroa. Vou fazer com este leite o café do pai Goriot.
Vou pôr mais água e ele nem notará. Ele não presta atenção em nada, nem mesmo
no que come. (BALZAC, 2012, p. 66)
Essa indiferença acontece também na indústria de alimentos, em que “a
industrialização do setor de alimentos, as escolhas e as preferências alimentares se
converteram em apostas econômicas planetárias. Poderosos indivíduos tentam, com mais ou
menos êxito, a prazos mais ou menos longos, desviá-las ou orientá-las” (FISCHLER, 1995,
p. 195, tradução minha). Não sabemos o que é colocado em nossos alimentos que perdem e
tem suas características organolépticas homogeneizadas (FISCHLER; MASSON, 2010) e
cada vez menos temos o hábito de usar os nossos sentidos sensoriais para saborear o
alimento, sermos afetados e nos comunicarmos por e com eles, como o faz o pai Goriot.
Sentado à extremidade da mesa, perto da porta da cozinha, o pai Goriot ergueu a
cabeça, farejando um pedaço de pão que tinha debaixo do guardanapo, por um
velho hábito comercial que às vezes reaparecia.
- Que é isso? - gritou-lhe asperamente a sra. Vauquer, com uma voz que dominou
o ruído dos talheres, dos pratos e das vozes. – Não está achando bom o pão?
- Pelo contrário - respondeu ele -, é feito com farinha de Étampes, de primeira.
- Como sabe? - perguntou-lhe Eugênio.
- Pela alvura, pelo sabor.
- Só se percebe o sabor pelo nariz, pois o senhor o está cheirando – disse a sra.
Vauquer. – O senhor está ficando tão econômico que acabará descobrindo um
meio de se alimentar com o cheiro da cozinha. (BALZAC, 2012, p. 78)
Essa intimidade com alimento é perdida e pelo desconhecimento do que existe nele,
como substâncias, conservantes, transgênicos, etc., configura-se uma contaminação
negativa:
o comedor vive a incorporação como um risco, um perigo, porque as qualidades do
objeto comido são suscetíveis de colocar em causa sua integridade, sua identidade.
Existe uma incompatibilidade entre o comedor e o comido. Ela termina na recusa
de comer para evitar a invasão, o tabu, a proibição, o jejum... (POULAIN, 2013, p.
186.)
Acontece que o alimento é sempre um estrangeiro que se intromete em nossos
corpos, como também o são os órgãos transplantados ou os medicamentos que ingerimos.
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Nancy, que no fim dos anos 1980 e começo dos anos 1990 passou por problemas de saúde e
precisou fazer um transplante de coração conta-nos em O intruso:
Meu próprio coração (é toda a discussão do “próprio”, ficou compreendido – ou
então não é nada disso, e não há propriamente nada para compreender, nenhum
mistério, nem mesmo uma questão: mas a simples evidência de um transplante,
como de preferência dizem os médicos) – meu próprio coração, pois, já estava fora
de uso, por alguma razão que nunca foi esclarecida. Era preciso, portanto, para
viver, receber o coração de um outro. (NANCY, 2006, p. 14-15, tradução nossa).
A convicção que esse pensador tinha de ter um corpo saudável foi derrubada, como
acontece conosco frequentemente por não termos mais garantias de nada. Essa fratura
provocada por uma fragilidade abre-se ao estrangeiro e o corpo acaba sendo sempre o corpo
intrometido por outro. Não se trata de uma relação pacífica, mas de enfrentamento, de
confronto.
Do mesmo modo já não temos mais garantias da salubridade dos nossos alimentos. E
esta constitui uma questão política, em que precisamos “sem dúvidas pensar sem sossego
um mundo que saia, de maneira lenta e brutal, de todas as suas condições adquiridas de
verdade, de sentido e valor.” (NANCY, 2007, p. 11, tradução nossa). Para ele, é necessário
sair do monoteísmo, que não se limita apenas à religião, nem ao político, mas diz respeito a
só pensarmos uma destinação e uma verdade únicas para o mundo, sendo preciso buscarmos
uma comunidade enfrentada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A alimentação é um objeto complexo que não pode ser pensado por uma única via de
conhecimento. A literatura, nesse sentido, sendo uma forma de alteridade que não implica
regras, configura-se como uma aliada para pensarmos uma ciência que não expulsa os
saberes, mas que os põe em enfrentamento. O romance O pai Goriot serve para pensarmos a
alimentação na contemporaneidade, e nos permite compreender a relações de alteridade que
se configuram à mesa. Esta pode ser uma abertura ou um fechamento ao outro, podendo se
constituir nas relações com as diversas culturas e seus hábitos alimentares. Diferentemente
da fraternidade e da comunhão a que geralmente nos remetemos ao falar de comensalidade,
e em relação a qual somos nostálgicos, a pensão Vauquer mostra-se um lugar de desarmonia
em que, assim como na sociedade contemporânea a comunicação entre cozinheiros e
alimentos se dá na distância e no estranhamento.
REFERÊNCIAS
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integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
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92
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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A Fronteira dos “Índios Brabos”: Os Puris de Campo Alegre na visão dos
Memorialistas do Século XVIII e XIX.
Enio Sebastião Cardoso de Oliveira94
Resumo
Esse trabalho pretende analisar os múltiplos olhares dos colonizadores através da
ótica dos memorialistas e viajantes que estiveram no Brasil, no final do século XVIII e
começo do XIX, na antiga região de Sertões de Campo Alegre - uma vasta região localizada
no centro-sul do vale do Paraíba Fluminense, e fizeram vários relatos sobre os índios Puris
que habitaram essa região. Nesse período os sertões, era uma região que ocupava o
imaginário do colonizador, onde não existia a efetiva presença do poder do Estado
Português e depois Brasileiro. Uma área demarcada por fronteiras tênues, mas que apesar
tudo ocorria muitas trocas sociais, onde esses viajantes e memorialistas, arraigados de
conceitos de seu tempo, classificava os Puris e demais etnias que viam em Campo Alegre
como “índios brabos”, isso é, não “civilizados”. Região, que devido o avanço das fronteiras
colonizadoras em direção desses sertões, sofreu com vários conflitos e um grande
crescimento populacional e onde é hoje está localizado o município de Resende ( no Sul do
Estado do Rio de Janeiro).
Palavras Chaves: Fronteiras, Puris, Campo Alegre.
Resumen
Este documento analiza los múltiples puntos de vista a través de la colonización de
las memorias y los viajeros que visitaron Brasil, a finales del siglo XVIII y principios del
XIX, e hicieron varios informes sobre los indios Puris que vivían en la antigua región
Baldíos de Campo Alegre - una vasta región situado en el centro-sur del Valle del Paraíba
Fluminense. Durante este período el Baldíos, era una región que ocupaba la imaginación del
colonizador, y que no había presencia efectiva del poder del Estado portugués y luego
Brasil. Un área demarcada por la línea delgada, pero a pesar de todo lo que pasó muchos
intercambios sociales donde estos viajeros y memorias, arraigados conceptos de su tiempo,
clasificó el Puris de Campo Alegre como "indios salvajes", es decir, no "civilizada". Región,
que devi el avance de las fronteras coloniales hacia estas zonas de influencia, sufrió varios
conflictos y lo que hoy es la ciudad de Resende (ubicado en el sureño estado de Río de
Janeiro).
Palabras clave: Fronteiras, Puris, Campo Alegre
94
Enio Sebastião Cardoso de Oliveira. Professor Mestre em História Social – USS. Doutorando em História
Política PPGH – UERJ – [email protected].
93
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Os Índios Brabos do Sertão de Campo Alegre
Nos setecentos os índios que habitavam a região de Campo Alegre, que naquele
momento, era um vasta região no sul da ainda capitania do Rio de Janeiro, era habitada
pelos índios pertencente ao troco macro-gê95, que se originaram desse tronco etnias como a
dos Puris, Coroados e Coropós. No entanto por serem, presumidamente, mais , numeroso,
os inúmeros viajantes que andaram pela região de Campo Alegre, possui uma grande relação
referencial dos Puris, que pretendemos desenvolver nesse trabalho.
Os primeiros registros históricos que detectaram a presença dos índios Puris no
Médio Vale do Paraíba, na Região de Campo Alegre, são referentes ainda ao século XVI.
Nesses registros aparece os apontamentos de um dos primeiros viajantes Europeus, que
esteve na região, trata-se do Corsário Inglês Antonio Knivet, que informa em seu livro de
“bordo”, em ter encontrado
grupos de índios conhecidos como “Porie” nas florestas
marginais ao rio Paraíba do Sul, no lugar denominado “Parahyba-Wereob”, que pode ser o
primeiro nome dado a região de Campo Alegre por um Europeu.
O encontro foi à
consequência de uma missão ordenada por Martim de Sá, que segundo o relato de Knivet:
“Vendo Martim de Sá que eu o servia com solicitude, ordenou-me que com oito dos seus
escravos, carregados de machados e facas, fosse buscar um outro gênero de selvagens
chamados Pories (Puris), que haviam igualmente assentado pazes com os portuguezes;
desde muito, porém, os portuguezes os não procuravam”. 96
Esses fragmento nos faz presumir que a existência de índios Puris na região do
Médio Vale do Paraíba na região de Campo Alegre, no Sul e Centro-Sul do atual Estado do
Rio de Janeiro,
fosse de conhecimento dos colonizadores, através de uma missão
Portuguesa, sobre o comando de um corsário Inglês, dados bem anterior aos dos
memorialista e viajantes do século XVIII e XIX. E bom deixar claro, que parte da região foi
percorrida posteriormente por vários memorialista que falaremos mais a frente, foram às
mesmas percorridas por Knivet, no XVI, explicitada em minúcia nos apontamentos de sua
viagem ao Vale do Paraíba com objetivo de arregimentar por escambo com os “Porie” os
95
O tronco Macro-Jê. Dividida em 23 línguas, espalhava-se também por regiões que atualmente fazem parte
dos estados de Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo. Doze delas eram faladas no Rio de Janeiro. FREIRE
e MALHEIROS. Op. Cit. p. 8 e 9.
96
KNIVET, Antonio. Narração da viagem que, nos annos de 1591 e seguintes, fez Antonio Knivet da
Inglaterra ao mar do sul, em companhia de Thomaz Candish. RIHGB, Tomo XLI parte 1ª. Typ. De Pinheiro &
C. Rio de Janeiro, 1878, p 211.
94
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
posteriores Puris da região.97
Para buscarmos uma maior clareza que região ao qual estamos falando, do ponto de
vista geográfico, Campo Alegre faz parte da Macro Região do Vale do Paraíba Fluminense,
região banhada pelo rio Paraíba, rio que nasce na serra da Bocaina no estado de São Paulo e
entra pelo sul do atual Estado do Rio de Janeiro pelo município de Resende e perfaz quase
toda a extensão da antiga capitania fluminense e desemboca no Norte, na localidade de
Atafona no município, hoje São João da Barra próximo a região dos Campos dos Goitacás.
Já a Região de Campo Alegre da Paraíba Nova era praticamente toda a região do Sul e
Médio Paraíba no centro-sul do atual Estado do Rio de Janeiro, uma extensa área que ia da
divisa com a antiga capitania de São Paulo, cortando toda a região das Agulhas Negras e
chegado à parte central do Vale no que seria hoje as cidades de Três Rios e Levy Gasparian,
na confluência do rio Preto que faz fronteira com Antiga Capitania das Minas Gerais, com o
Rio Paraibuna e esse com o Rio Paraíba do Sul. Do litoral para o interior seu limite era a
serra do mar e o rio Preto e Paraíba na divisa com o atual estado de Minas Gerais.
Essa área geográfica não se encontrava ocupada no século XVIII pelas frentes
colonizadoras, podendo ser caracterizada como uma fronteira aberta, ainda considerada “alto
sertão”, ou “sertão dos índios bravos”. Como tal, apresentava tensão entre colonos em
processo de expansão e índios de várias etnias, mas principalmente a puri que se encontrava
em variada situação geopolítica: “deslocados”, “destribalizados”, “estanciados”. Essa região
dos Sertões era uma extensa área, que ainda no final do século XVIII representava parte
expressiva do território da antiga capitânia do Rio de Janeiro. Essa área era caracterizada
como um espaço de solidão, deserto ou sertão.98
A palavra “sertão” foi muito utilizada no período colonial, ocupando o imaginário do
colonizador sob aquelas terras que eram ocupadas por “criaturas” que ainda utilizavam
hábitos “selvagens” ou até mesmo “exóticos”, isso é não, na perspectiva do colonizador,
não “civilizado”. Esse imaginário repleto de significados do colonizador durante o período
colonial e pós-colonial.99 De uma forma geral levou o “certão” ou ‘sertão’100, é ser usada
97
KNIVET. p Op. Cit. p. 211, 214.
MALHEIROS. Op. Cit. P. 31
99
MACHADO, Marina Monteiro. Entre Fronteiras: Terras Indígenas Nos Sertões Fluminenses (1790-1824).
Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal
Fluminense. Niterói. 2010. p.
100
LEMOS. Op. Cit. p. 27.
98
95
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
largamente pelas autoridades coloniais portuguesas e por viajantes, nos séculos XVIII e
XIX, como na designação de “o espaço do outro, o espaço por excelência da alteridade101
em que no entendimento de Marcelo Lemos exprime claramente o conceito de Fronteira.
Maria Elisa Mader caracteriza o sertão como “vazio, à ausência, à ideia de deserto, à
falta de governo, de leis, de religião, de educação, de população, de luzes -fazendo uma
referencia ao movimento Ilustrado - enfim, de tudo que representasse a ordem e a
civilização”102. Porém, não podemos colocar o Sertão apenas por uma região de barbárie,
assinalado no trabalho de Mader, o que sintetizaria o conceito de Sertão apenas a uma visão
etnocêntrica, de uma sociedade que se classificava como superior e “civilizada”, não
levando em conta que as áreas de sertões eram sujeitas à mobilidade, avanço e conquista,
estando sempre em constante movimento103. No entanto, O sertão era geralmente associado
ao interior, à região mais distante da costa, assumindo o mesmo sentido da fronteira, que
caminhava em direção ao oeste104. Como a ocupação no litoral se processou de maneira
rápida e por que não dizer voraz, fez com que as comunidades indígenas dessa região fossem
mortas ou subordinadas a “máquina colonizadora” de forma muito rápida. Já no interior
ocorria a resistência dos “índios brabos”, “os selvagens”, em que a necessidade e as dúvidas
em relação a uma área ainda desconhecida na qual a travessia dessa fronteira tornava-se um
processo de conquista de áreas ignotas, inexploradas, “primitivas”, guardiãs de pavores e
esperanças105. A travessia dessas “fronteiras” em tese representava a existência de zonas de
fronteiriças internas coloniais.
A compreensão da complexidade que envolve o sertão e a designação dada para os
ameríndios de Campo Alegre como “índios brabos” nos parece mais clara quando
observamos o trabalho de Márcia Malheiros quando faz referência aos índios dos sertões
do Rio de Janeiro setecentista, como “índios brabos”, a partir dos apontamentos do Militar
101
AMADO, Janaina. “ Região, Sertão, Nação”. Estudos Históricos: Rio de Janeiro. Vol. 8. nº 15 (jan-jun).
1995. p 149
102
MADER, Maria Elisa. Civilização e barbárie: a representação da nação nos textos de Sarmiento e do
Visconde de Uruguai. Niterói, 2006. Tese (doutorado) - PPG História, UFF. p.122.
103
OLIVEIRA. Enio Sebastião Cardoso. O Aldeamento de São Luís Beltrão: Os índios Puris e a Política
indigenista de 1788 a 1808 em Campo Alegre da Paraíba Nova. Vassouras, 2012. Dissertação de Mestrado –
PPGH – USS. P. 81
104
AMANTINO, Márcia. O mundo das feras: os moradores do sertão oeste de Minas Gerais; século XVIII.
São Paulo: Annablume, 2008.
105
MALHEIROS. Op. Cit. p. 33
96
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Manoel Vieyra Leão, em seus relatórios de viajante pelo interior da capitania do Rio de
Janeiro, desta forma a autora assinala que: “quando em 1767 o sargento-mor Manoel Vieyra
Leão classificava os índios ‘soltos’ do Rio de Janeiro como ‘brabos’ e seu promissor
território como “sertão”. Malheiros em seu trabalho, procura classificar o que seria essa
região de sertões e a sua localização presumível. Porém cabe ressaltar que a região dos
Sertões dos “índios brabos” seria uma região imprecisa na metade do século XVIII, no qual
segundo a fonte abaixo mostra que a região de Campo Alegre, fazia parte da área de sertões
ocupadas pelos chamados “índios brabos”:
Dis Ignacio de Sousa Werneck Capitão do Distrito da Freguesia da N. da Conceição do
Alferez, que no anno de 1788 foi ale encarregado lells S. Majestade Ex.ma D. Luis de
Vasconcelos, erão então Vice- Rei deste Estado de combater os índios bravos, que
habitavam no Certão entre os Rios Paraíba, Preto os quais donde frentes sortidas vindas
atacar os povos da Freguesia da Sacra Família das outras vizinhas fazendo lhes muitas
106
mortes (...)
Podemos notar nessa fonte como fica clara a utilização da palavra certão e “índios
bravos”, na região de Campo Alegre da Paraíba Nova, na qual uma área designada é
ocupada pelos índios soltos e “considerados hostis”, sem o controle do Estado Português,
uma terra ainda “inóspita, não civilizada” no modelo e princípios do final do século XVIII.
Essa região compunha a antiga de Campo Alegre da Paraíba Nova, o que mostra que
também outras áreas do interior da Capitania eram assim denominadas, demonstrado certa
imprecisão de se identificar essa região de sertões
Segundo Márcia Malheiros, “de acordo com o sargento-mor Manoel Vieyra Leão, na
capitania do Rio de Janeiro abrigava, em 1767, uma extensa área ainda não povoada e
explorada pela marcha colonizadora”107, sendo ocupada pela presença indígena
“autônoma”108. No entanto, na fonte apresentado de Ignácio de Sousa Werneck ao Vice-Rei
Luis de Vasconcelos, confirma que a região de Campo Alegre seria uma vasta área de
106
Oficio de Ignacio de Sousa Werneck ao Vice-Rei Luis de Vasconcelos, sobre a suposta violência dos Índios
na Região do Rio Paraíba e Preto. Arquivo Nacional. Caixa 484. pacote 2.4º seção, 13º classe, série I, 4.
Coleção 328 a 376.
107
MALHEIROS. Op. Cit. p. 32.
108
O uso da expressão “autônoma” tem aqui o sentido de sublinhar que estes grupos indígenas organizavam-se
do ponto de vista territorial, social e cultural sem interferência sistemática da sociedade envolvente, não
estando aldeados em reduções ou estabelecimentos organizados por religiosos ou particulares. MALHEIROS.
Op. Cit. p. 34.
97
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sertões, e sem a efetiva presença do poder do Estado Metropolitano Português, fonte que nos
traz o arcabouço histórico que as terras de Campo Alegre eram habitadas pelos chamados
“índios brabos”.
Viajantes e Memorialistas em Campo Alegre
Vários Memorialistas e Viajantes estiveram pela região de Campo Alegre entra os
séculos XVIII e XIX. Cada um fizeram observações distintas porém sempre repletas de
conceitos ligados a seu tempo, colocando o índio sempre na condição inferior ao branco
colonizador, mesmo na vigência do Diretório Pombalino que postulava transformar o índio
em verdadeiro vassalo do rei, o que podemos concluir que alcançar a condição de vassalo,
não significava está em condição de iguais. Ou pertencer ao mesmo estrato social do Brasil
colônia setecentista, período que vigorou o Diretório Pombalino.
Procurando nos ater aos índios Puris de Campo Alegre da Paraíba Nova, local cujo
centro, de maior fluxo de pessoas e comércio, foi erguido a capela de Nossa Senhora da
Conceição que deu origem a Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Campo Alegre da
Paraíba Nova em 1757. Para isso, utilizaremos em primeiro lugar os apontamentos de
Joaquim Norberto de Silva e Sousa, memorialista do século XIX, que afirma que um
conflito com outra etnia, poderia ser o motivo da ocupação puri na região, defendendo a tese
que os puris após serem fustigados pelos botocudos, uma etnia indígena que a literatura
pontua como guerreira, e o colonizador a classificava como violenta, deixaram a “Serra da
Mantiqueira”109, e se deslocaram para a Região de Campo Alegre.
Segundo João Maia, uma memorialista do final século XIX, em seu livro datado do
mesmo período, também afirma que os puris já viviam na região nos sertões de Campo
Alegre da Paraíba Nova, hoje a cidade de Resende110, no século XVIII, afirmando em sua
obra:
109
SOUSA SILVA, Joaquim Norberto, Revista do Instituto Histórico e Geográphico do Brazil. Memória
Histórica das Aldeias do Rio de Janeiro, 3ª Série, Nº 14 – IHGB, 1852. p. 243.
110
Maia cita em seu livro, que a Região de Campo Alegre “Pertencia à numerosa tribo dos Puris os índios
talvez já encontrados na Paraíba Nova do Campo Alegre, ao tempo de sua descoberta por Simão Cunha Gago.
MAIA João Azevedo Carneiro, Do Descobrimento de Campo Alegre até a Criação da Vila de Resende,
CCMM, Resende, 1998, 2º edição, p. 14”.
98
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
No ano de 1747, em que a primitiva capela de Nossa Senhora da Conceição do Campo
Alegre foi promovida em curato, seu território, assim como toda a zona de “serra acima”
nesta província até os seus limites com São Paulo e Minas Gerais, (....) e nessa região
inculta, e ocupada em grande parte por índios estanciados em diversos pontos (...)111
Maia aponta a presença dos puris em Campo Alegre, no período da chegada dos
colonizadores portugueses, o que pode ser utilizado para complementar o que disse Joaquim
Norberto que conflitos com outras etnias em tempos imemoriais, podem ser a causa da
chegada dos puris na região de Campo Alegre.
Sobre a origem do nome “puri”112, seria segundo Bessa Freire e Márcia Malheiros,
uma designação pejorativa, dada pelos seus vizinhos Coroados. Teodoro Sampaio, segundo
verbete de Andre Métraux outro viajante do citado período, analisa etimologicamente a
palavra puri, para designar: povo miúdo, gentinha, fraco, de pequena estatura113. A descrição
etimológica de Sampaio confirma o que diz Bessa Freire e Márcia Malheiros ao pontuarem: O nome Puri é uma designação pejorativa dada a eles pelos Coroado. Os Puri,
Telikong ou Paqui estavam divididos em pelo menos três sub-grupos: Sabonan,
Uambori e Xamixuna, que ocupavam um território na área do rio Paraíba e Serra
da Mantiqueira. No séc. XVIII, antes de serem vendidos como escravos, foram
estimados em mais de 5.000 índios. No séc. XIX, foram aldeados em São Fidelis
e na Missão de São João de Queluz, registrando-se 655 índios Puri em Resende,
114
em 1841. Em 1885, Ehrenreich localiza remanescentes Puri no baixo Paraíba. O que nos remete a impressão de que o povo puri era uma etnia, e utilizando as
palavras de Freire e Malheiros, possuía os mesmos atributos físicos que as demais etnias que
viviam na Capitania do Rio de Janeiro no Século XVIII e XIX. Porém, existem diversas
descrições físicas para os índios puris, mas a citada acima é a que acabou se generalizando.
A pequena estatura dos puris em relação a outros etnônimos, segundo Paulo Pereira dos
Reis, é pontuada por vários viajantes e memorialistas que estiveram na região que buscar a
partir de sua ótica caracterizar os índios puris, tidos como frágeis e pequenos. Como por
exemplo: Von Spix e Von Martins que descrevia os puris como seres de porte acaçapado;
111
MAIA. Op. Cit. p. 1
FREIRE e MALHEIROS. Op Cit. P. 17.
113
SAMPAIO, Teodoro Fernandes, O Tupi na Geografia Nacional, Gráfica da Escola de Aprendizes Artífices,
Bahia, 3º edição, 1928. Verbete Purys. Segundo Métraux, “ O Puri era um nome pejorativo Concedido a eles
pela Coroado”. p. 534.
114
FREIRE e MALHEIROS. Op Cit. p. 17.
112
99
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Geralmente muito Baixos descrito por Eschwege; (...) pequenos como nas outra partes (...)
ou de corpo apoquentado para Casal; de Pequena Estatura para Joaquim Norberto115.
Entretanto, o príncipe Maximiliano em sua observação sobre a questão da pequena
estatura dos puris, afirmando: “Devo confessar que nenhuma diferença nesse particular
observei entre os puris e as outras tribos”.116 Observação essa que difere dos registros de
outros pesquisadores da época. O que podemos presumir dessas observações é que havia
uma grande heterogeneidade nas populações indígenas em vários aspectos, não se limitando
apenas ao físico. Algumas dessas diferenças poderiam ser frutos das contradições analíticas
entre as diversas narrativas de cronistas e viajantes inclusive confundindo-as no momento de
classificá-las, como por exemplo, ocorrera com os coroados, que segundo Norberto, passou
a designar toda a tribo que utilizasse um corte de cabelo característico que lembrava uma
coroa: “No Rio de Janeiro o nome de Coroado foi generalizado a todos os selvagens que se
distinguiam pela maneira de cortar o cabello”117. O nome coroado, foi dado pelos
portugueses, segundo Saint Hilaire aos índios que tinham o hábito de “cortar os cabelos no
meio da cabeça, à maneira dos nossos sacerdotes, seja, antes, de não conservar mais do que
uma calota de cabelos, como fazem ainda hoje ( no século XIX) os botocudos”118.
Devemos ressaltar que apesar da grande diversidade, fruto de uma classificação
confusa dos viajantes e cronistas do século XIX, os coroados aos quais nos referimos são
aqueles que eram linguisticamente vinculados ao tronco macro-gê, que Marcelo Sant’ana
Lemos adota como da família puri-coroado, proposto por André Metraux119. Bessa Freire e
Márcia Malheiros também classificam os coroados pertencentes à família puri, que
habitavam as ramificações da Serra do Mar e nos vales dos rios Paraíba, Pomba e Preto.
Subdividida em vários grupos, entre os quais, Maritong, Cobanipaque, Tamprun e
Sasaricon. 120
115
REIS. Op. Cit. 69.
WIED-NEUWIED, Maximiliano Alexandre Philipp: Viagem ao Brasil. Tradução de Edgar Süssekind de
Mendonça e Flávio Poppe de Figueiredo. Coleção Brasiliana, Ed. Nacional, São Paulo, 1940. p 108
117
SILVA. Op. Cit p. 88.
118
SAINT HILAIRE, Auguste de. Viagem às nascentes do Rio São Francisco. Belo Horizonte. Ed. Itatiaia,
EDUSP. São Paulo. 1975. p. 38.
119
LEMOS. Op. Cit. p. 50
120
FREIRE E MALHEIROS. Op. Cit. p.
116
100
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Nesse aspecto, remeteremos às impressões do naturalista Von Martins verificou em
seu trabalho, que os índios brasileiros apresentavam uma grande diversidade de caracteres
físicos:
(....) alguns altos e baixos, esbeltos e corpulentos, vermelhos acobreados amarellados e
até brancos, com pouca barba ou se constantemente não a depilam, apresentam-na
regulamente basta”121.
Von Martius, apesar de afirmar a existência de diversidade física, junto com outro
naturalista Von Spix, que também teve contato com os puris, coropós e coroados,
generalizaram suas descrições antropológicas, tornando-as abrangentes122. Assim, os ditos
naturalistas em suas viagens pelo Brasil fizeram uma descrição abrangente, mas detalhada
sobre essas etnias:
“Os índios são baixos ou de estatura mediana; os homens tem quatro a cinco pés de
altura, as mulheres em geral, pouco mais de quatro pés; todos têm corpos robustos,
largos e acaçapados. Só raramente, se acha entre êles alguns de estatura alta, esbelta.
Têm espáduas largas, pescoço curto e grosso. (....) as extremidades são pequenas, as
inferiores não são polpudas; são sobretudo, franzinas as barrigas e pernas e as nádegas;
as superiores são arredondadas e musculosas. O pé é estreito no calcanhar, muito largo
na frente, o dedo grande aparta-se dos outros; (...) o colorido da tez é vermelho cúprico,
mais ou menos carregado, diferençado-se segundo a idade, a ocupação e estado de saúde
do indivíduo (...) Em geral são de cor tanto mais escura, quanto mais robusto e ativos”123
Outro naturalista alemão, Georg W. Freireyss, viajante entre os anos de 1814 e 1815
à região das Minas Gerais, onde deixou um manuscrito com 91 páginas no qual fazia relatos
sobre os índios puris, coropós próximo a São Batista, um presídio em Minas Gerais, fazendo
várias observações com grande riqueza de detalhes para essas etnias124.
121
REIS, Paulo Pereira dos. O Indígena do Vale do Paraíba: apontamentos históricos para os estudos indígenas
do Vale do Paraíba Paulista e regiões circunvizinhas. São Paulo: Governo do Estado de São Paulo, 1979. p. 61.
122
Esses naturalistas generalizaram essas etnias “pelo menos em seus traços predominantes aos indivíduos dos
subgrupos acima apontados. Von Spix e Von Martius escreveram: Todos os índios que chegaram a conhecer
aqui (M. G.), das tribus dos Puris, Coropós e Coroados pouco se diferençavam entre si na conformação do
corpo e nas feições. Idem.
123
SPIX, J. B. Von, e MARTIUS, Karl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil. Tradução: Lúcia Furquim
Lahmeyer. Imprensa Nacional, Rio de Janeiro, 1938. Vol I, p. 345 a 347.
124
FREIREYSS, Georg Wilhelm. Viagem a várias tribos de selvagens na Capitania de Minas Gerais;
permanência entre elas, discrição se seus usos e costumes. Tradução se Alberto Lotgren. In Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de São Paulo, Vol. VI (1900-1991). Tipografia do Diário Oficial, São Paulo. 1902. p.
236.
101
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
[...]Os índios, em geral, são de estatura pequena; a cor é um amarello pardo - não cor de
cobre como se costuma contar; o cabello é liso e preto; o olho é um pouco obliquo, de uma
cor negro-bruma e, os ossos sygomatico salientes constituem caráter essencial. O seu corpo
não é avantajado porque parte inferior do tronco e de ordinário grosso, as pernas finas e a
cabeça grande. São tidos como imberbes porque extirpam cuidadosamente todos os pellos
que apparecem e (....) tem sempre menos barbas e pellos do que os portugueses.[...] 125
Freireyss, narra o encontro com três tribos uma de “coroados com cerca 2000 mil
pessoas morando em residências fixas, outra de puris com aproximadamente 500 membros e
outra de coropós com 200 índios localizados as margens do rio Pomba, um afluente do rio
Paraybuna”126. O Naturalista pontuou o ódio em que viviam essas comunidades em relação
ao homem branco, fazendo severas críticas ao tratamento do homem branco dado aos índios.
Outra comparação que Freireyss fez entre os puris e coroados foi destacar que os puris eram
sempre mais fortes que os coroados127.
Analisando esses autores e cronistas, existem algumas divergências, fato muito
natural tratando-se do estudo de uma nação já extinta, e da qual há uma carência de registros
muito grande, por isso o diálogo com essas fontes para a análise e uma maior precisão do
comportamento dos puris é uma tarefa um tanto quanto complexa. Apesar de que, no século
XX, tenha ocorrido grande avanço nas pesquisas historiográficas, antropológicas,
linguísticas e arqueológicas, trazendo um novo panorama à observação do universo
sociocultural indígena128. Sobre essas divergências, veremos os apontamentos de Manuel
Martins do Couto Reys, engenheiro militar que percorreu várias regiões dos Sertões da
Capitania do Rio de Janeiro. Reys descreve os Puris da seguinte forma:
“São estes Indios assas corpolentos, audazes, destemidos, vigilantes, e de máximas muito
atraiçoadas, inclinados a toda a deshumanidade, dando morte a qualquer vivente que
encontrão, seja ou não irracional, ainda que os não offendão.” 129
125
FREIREYSS, p. 237 e 239. Segundo Freireyss , “havia muito tempo que pretendia observar esses selvagens
em suas condições naturais e com esse objetivo, deixei a Vila Rica, em 14 de dezembro de 1814”.
126
Idem. p. 239
127
Idem. p. 350
128
(...) este esforço conjunto é quase sempre insuficiente quando o pesquisador se propõe a refletir sobre índios
considerados extintos. Grande parte da produção etnológica no século XX fundamentou-se em pesquisa de
campo, em “índios de carne e osso”, estando calcada na premissa do presente etnográfico, desvalorizando,
muitas vezes, trajetórias históricas em suas interpretações acerca dos povos indígenas. Nesta conjuntura,
“índios de papel”, presentes apenas em registros históricos, não pareciam lá muito interessantes.
MALHEIROS. Op. Cit. p. 91.
129
Manuscritos de Manuel Martins do Couto Reys, 1785. Rio de Janeiro: Arquivo Publico do Rio de Janeiro.
p. 72.
102
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Couto Reys contradiz a maioria das descrições de outros observadores ao relatar, a
condição física corpulenta dos puris. Poderíamos pensar na possibilidade de erro, já que
devido a tanta controvérsia, e da carência de fontes, não poderíamos então afirmar que os
chamados puris de Campo Alegre, seriam os mesmos, apesar de pertencerem ao tronco
macro-gê de outras regiões que margeavam o Rio Paraíba. Ou ainda, poderíamos conjecturar
que o termo puri poderia ser uma forma geral aplicada aos índios que viviam nessa região,
que não tinham as características dos coroados e coropós, mas falavam a língua do tronco
macro-gê, nos setecentos e oitocentos.
Todavia, essa dificuldade de classificar os povos nativos, desde o período colonial
faz parte da História.
Segundo Paulo Pereira dos Reis afirma, ao comparar vários
Memorialistas, Cronistas e Viajantes como Freireyss, Toledo Piza, Alfred Métraux e Paulo
Ehrenreich, a origem dos Índios puris, coroados e coropós, seriam aqueles grupos que nos
primeiros séculos de colonização eram chamados genericamente de tapuias, como índios do
sertão ou, tupis no litoral.. Isto é, a diversidade do índio da colônia luso-brasileira era
reduzida a apenas dois grupos. Os tapuias eram aqueles que eram desconhecidos para os
europeus com uma cultura e língua diferente daquelas etnias que viviam no litoral (os tupis).
Queremos dizer com isso é que tanto os puris, coropós e coroados, eram conhecidos no
universo étnico dos primeiros anos de colonização como tapuias. Nesse contexto Luciana
Maghelli em seu trabalho conclui:
“(...) os Puri, Coroado e Coropó, pertenciam ao tronco linguístico Macro-Gê e não ao Tupi.
Também conhecidos como ‘Tapuia’, os índios pertencentes ao tronco Macro-Gê, sempre
foram vistos por colonos e colonizadores como inimigos, selvagens, destituídos de
qualquer traço de humanidade. Ao contrário daqueles pertencentes ao tronco Tupi que,
exatamente em razão de terem se aliado mais facilmente aos portugueses, foram muito
mais fácil e rapidamente dizimados. Somente o selvagem Tapuia ousara sobreviver em
pleno século XIX.(...).” 130
Observando tanto os autores citados, quanto os relatos de viajantes do século XVIII e
XIX, os ameríndios que viviam na região do Médio Vale do Paraíba, eram nitidamente
vistos como diferente daqueles que viviam no litoral e também já não eram mais
considerados da mesma origem genérica dos tapuias, surgindo então o reconhecimento de
diferenças étnicas e contrastes desses índios de tronco linguístico macro-gê, que passaram a
130
MAGHELLI, Luciana. Aldeia da Pedra, estudo de um aldeamento indígena no Norte Fluminense.
Dissertação de mestrado. UFRJ, RJ, 2000. p 121 e 122.
103
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
serem reconhecidos como etnias com identidade cultural própria por parte dos colonizadores
luso-brasileiros. Consideraremos então, os puris, mesmo tendo o tronco linguístico macrogê, como os índios que viviam na região de Campo Alegre a mesma dos coroados e coropós
e que possuíam uma identidade cultural, e um universo social diferenciado, fruto das
interações com outros grupos étnicos.
Mas será que pertencendo ao mesmo tronco linguístico teriam a mesma origem
étnica dos puris? Sobre essa questão Bessa Freire e Márcia Malheiro afirmam o seguinte:
“Os linguistas estudaram e classificaram muitas línguas, estabeleceram relações entre elas,
identificando seus elementos históricos para, desta forma, determinar o seu grau de
parentesco. Quando, apesar das diferenças, se descobre semelhanças entre línguas, elas são
colocadas dentro de uma mesma família. As famílias com afinidades são reunidas num
tronco comum. Assim, uma família linguística agrupa línguas diferentes, mas aparentadas,
porque consideram-se que têm uma origem comum, que são provenientes de um único
tronco, como o português, o espanhol, o francês o italiano, que são originários do
131
latim”. Usando a linha de pensamento de Bessa e Malheiros, uma família linguística
agrupada em línguas diferentes pode determinar um parentesco, mesmo esse tendo ocorrido
em tempos imemoriais132. Analisando o tronco macro-gê dos puris, coroados e coropós, o
estudioso Hal Langfur
os classificou com mais de trinta dialetos133.e Bessa Freire,
utilizando o trabalho do pesquisador Aryon Rodrigues sobre o tronco macro-gê reduziu-o a
23 línguas, estendidas pelas regiões que atualmente fazem parte dos estados de Minas
Gerais, Espírito Santo e São Paulo, nas quais doze delas eram faladas no Rio de Janeiro134.
Considerações Finais
Nesse pequeno trabalho procuramos destacar a importância dos Memorialistas,
Cronistas e Viajantes que estiveram na região de Campo Alegre e procuraram, a partir de
sua ótica a identificar os puris e também as demais etnias como os coroados e coropós, essa
131
FREIRE, MALHEIRO, Op. Cit. 6
MOURA, Ana Maria da Silva. LIMA, Carlos A. M. Sobre cachorros e anteparos: Fronteiras e projeção
espacial da política na América Portuguesa. História Política. Série Grupo de Pesquisa LEHP, produção
Docente, Universidade Severino Sombra, Vassouras, 2009. P 172.
133
LANGFUR, HAL. The “Prohibited Lands”: Conquest, Contraband, and Indian Resistance in Minas Gerais,
Brazil, 1760-1808. University of Texas. 1998. p. 2
134
FREIRE, MALHEIRO, Op. Cit. 7 e 8.
132
104
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
contribuição, apesar de está arraigadas de uma cultura de sua época é, portanto, vendo o
índio como seres “inferiores, exótico e
selvagens”, estabeleceu a partir de imagens,
xilogravuras, e apontamentos o cotidiano e as primeiras discrições desses índios que hoje
são considerados extintos. Essas observações são importantes ao ponto de levantar algumas
questões, como por exemplo, as possibilidades de os puris possuíam, em relação aos
coroados, vários pontos em comum e algumas diferenças quando se trata da questão
cultural135. Contribuição que Segundo o Naturalista Alemão Freireyss: “as línguas que falam
os Coroados e os Puris são pouco diferentes que só isso parece indicar uma origem comum e
há entre eles de que, há tempo atrás, formaram uma só nação”136, teoria que coloca que os
puris e coroados em num passado remoto tiveram uma origem comum. Assim, como afirma
Toledo Pizza, outro memorialista, tanto os coroados como os puris, “possuem uma
similitude que permitiam o entendimento entre esses ‘selvagens’ tantas vezes rivais e
inimigos em várias ocasiões”.
Assim
vários
pesquisadores
que
deixaram
sua
contribuição em relação á origem dos puris, parecem concordar com essa hipótese de uma
mesma origem étnica entre puris – coroados. Alfred. Métraux, é um dos pesquisadores que
confirma essa teoria de forma categórica ao escrever: “Cem anos atrás, o ‘coroado’ ainda se
lembram de um momento que eles formaram uma única tribo com o ‘puri’, que mais tarde,
como resultado de uma rixa entre duas famílias, tornou-se inimigas”.137 Se é uma teoria que
pode ser contestada e que são apenas indícios, não faz desmerece toda a contribuição
deixada por esses memorialistas, cronistas e viajantes, trabalhos fundamentais para nós
pesquisadores, que através de seus apontamentos nos possibilitam, desenvolver, tese,
teorias e utilizar os seus estudos para buscar preencher as diversas lacunas historiográficas
deixadas sobre os puris, os chamados “índios brabos” de Campo Alegre da Paraíba Nova.
135
No plano cultural, tinham também muitos pontos em comum e algumas diferenças. Como habitavam o
interior, na bacia do Paraíba e seus afluentes e ocupavam territórios localizados em várias serras, de difícil
acesso, não tiveram contato direto e sistemático com o europeu nos dois primeiros séculos de colonização. Só
tardiamente no séc. XVIII são escritos os primeiros documentos, dando notícias deles. Alguns grupos foram
encontrados apenas no século passado. FREIRE, MALHEIRO, Op. Cit. 17.
136
FREIREYSS, Op. Cit. 251 e 252.
137
MÉTRAUX, Alfred, “The Puri-Coroado Linguistic Family”. In Handbook of South Amrican Indians,
Smithsonian, Institution, United States, Washington, 1946, vol. 1. p. 523 105
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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107
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
O Holocausto Brasileiro: um diálogo com as obras de Hannah Arendt
Lorran Lima de Almeida
138
RESUMO
Busca-se analisar o livro “Holocausto Brasileiro” da autora Daniela Arbex, extraindo
reflexões acerca da temática violência. O livro retrata como em 1930, pessoas que viviam a
margem da sociedade foram levadas para um manicômio em Barbacena – Minas Gerais,
com o pressuposto de que seriam loucas. Escondia assim o real motivo dessa ação que partiu
do contexto da tentativa de assepsia social no Brasil. Com essa higienização, mais de 60 mil
pessoas foram mortas por tratamentos desumanos que enfrentaram no já citado manicômio.
Um holocausto praticado pelo Estado, com a conivência de médicos, funcionários e da
população. Qual o motivo do ocorrido ser legitimado por estas pessoas e principalmente pelo
Estado? Para uma melhor compreensão desta problemática, utiliza-se das literaturas de
Hannah Arendt: “A Condição Humana” e “A Banalidade do Mal”, que respectivamente
relatam como o mal foi naturalizado na sociedade moderna.
Palavras Chaves: Holocausto Brasileiro, Violência, Literatura.
ABSTRACT
Seeks to analyze the book "Brazilian Holocaust" the author Daniela Arbex, drawing
reflections on the theme of violence. The book depicts how in 1930, people who lived
outside the society were taken to a mental hospital in Barbacena - Minas Gerais, with the
understanding that they be mad. Thus hiding the real reason for this action came from the
social context of the attempted sterilization in Brazil. With this cleaning, more than 60 000
people were killed by inhumane treatment they faced the aforementioned lunatic asylum. A
holocaust committed by the State, with the connivance of doctors, staff and population.
What is the reason of what happened to be legitimized by these people and especially the
state? To better understand this problem, we use the literatures of Hannah Arendt, "The
Human Condition" and "The Banality of Evil", which respectively relate how evil was
naturalized in modern society.
Key words: Brazilian; Violence; Literature.
138
Acadêmico de Ciências Sociais, bolsista do Programa de Educação Tutorial (PET), integrante do Grupo de Pesquisa sobre Violências e Criminalizações (GPVIC) 108
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
INTRODUÇÃO
O proceder metodológico do presente trabalho se dá mediante a uma revisão
bibliográfica das literaturas de Hannah Arendt, buscando compreender os mecanismos que
nortearam o genocídio ocorrido em 1903 exposto na narrativa jornalística de Daniela Arbex
(2012) em “Holocausto Brasileiro”.
Daniela Arbex é uma das jornalistas Brasieiras mais premiadas de sua geração.
Repórter especial do Jornal Tribuna de Minas há 18 anos, tem no currículo mais de 20
prêmios nacionais e internacionais, entre eles três prêmios Esso, o mais recente recebido em
2012 com a série “Holocausto Brasileiro”.
O livro o “Holocausto Brasileiro”, busca resgatar do esquecimento um dos
capítulos mais trágicos da nossa história. Durante grande parte do século XX, em Barbacena
– Minas Gerais – estava em funcionamento o maior hospício do Brasil, conhecido por
Colônia, a “Fundação Educacional de Assistência Psiquiátrica” (FEAP), este hospício foi o
calvário para a morte de 60 mil pessoas. Neste período, o Brasil estava passando por um
processo de higienização na sociedade, precisava-se então que a imagem do país fosse
“limpa” e que a ordem pública fosse garantida. O Estado se colocou no direito, sendo que
este foi legitimado pela sociedade, de banir da convivência social todos aqueles que
representavam incomodo aos poderosos ou prejuízo à imagem do país.
“A teoria eugenista, que sustentava a ideia de limpeza social, fortalecia o hospital e
justificava seus abusos. Livrar a sociedade da escória, desfazendo-se dela de preferência em
local que a vista não pudesse alcançar.” (ARBEX, 2013, p.26)
Os sobreviventes deste horror deram seus depoimentos de forma fundamental para
a composição e constituição deste livro. Pessoas que foram chamadas de “loucas”,
denunciam agora a loucura dos “normais”. Foram ouvidos também funcionários e médicos.
Assim como – a matéria do fotógrafo Luiz Alfredo e do repórter José Franco 1961 à revista
“O Cruzeiro”, intitulada de “A sucursal do inferno”; a reportagem de 1979, no Estado de
Minas Gerais do repórter Hiram Firmino e a Fotógrafa Jane Faria “Os porões da loucura” e
109
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
um documentário de Helvécio Ratton, “Em nome da razão” – que foram os primeiros
trabalhos acerca do ocorrido.
A realidade do Hospício
Daniela Arbex (2013, p. 14), relata que:
“Não eram somente loucos que eram levados para lá, pois cerca de
70% das pessoas que ali estavam não tinham diagnóstico de doença
mental, assim sendo, também foram encaminhados até o hospício
epiléticos, militantes políticos, mendigos, negros, alcoólatras,
homossexuais, prostitutas, até mesmo meninas grávidas violentadas
por seus patrões, filhas de fazendeiro que perderam a virgindade
antes do casamento, esposas confinadas para que o marido pudesse
morar com a amante, homens e mulheres que haviam extraviado seus
documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três
eram crianças.”
Observa-se que estas pessoas que eram destinadas para o Colônia em vagões de
trens, eram descartáveis, vistas como “desviantes”, pessoas que não se encaixavam no
padrão “normal” do comportamento moral vigente naquela época.
Pode-se trazer para a discussão Becker (2008) que fala sobre os Outsiders – aquele
que se desvia das regras do grupo – e o desvio é algo criado pela sociedade. Segundo ele,
Grupos sociais criam desvio ao fazer as regras cuja infração constitui desvio, ao aplicar
essas regras à pessoas particulares e rotulá-las como outsiders. Desse ponto de vista, o
desvio não é uma qualidade do ato que a pessoa comete, mas uma consequência da aplicação
por outros de regras e sanções a um “infrator”. O desviante é alguém a quem esse rótulo foi
aplicado com sucesso.
Todos que ali entravam se tornavam vitimas de um sistema desumano. Vivendo ali
como animais, sem o mínimo de condições descentes de vida. Pessoas que lá estavam sem
saber o real motivo e permaneciam naquela situação sem saber qual era o tempo
determinado para a sua saída.
Eram chamados de “crônicos sociais” os “pacientes” que mesmo depois do
tratamento, dado o término do processo que o levou ao internamento, ele continuava preso.
Não tendo pra onde voltar, sem expectativa de vida. Ignorado pelo olhar da sociedade, os
110
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
ditos “loucos”, eram degradados físicos e moralmente, tendo como única alternativa esperar
a morte, que era o único evento do qual tinham a certeza que mais cedo ou mais tarde iria
ocorrer.
Tais fatores causam no internato a sensação de fracasso, um sentimento de que o
tempo de internação é perdido, mas que precisa ser cumprido e esquecido. Uma angústia
diante das ideias de retorno à sociedade externa. O internado se vê diante de uma nova
posição social que é diversa da anterior, que por sua vez não será a mesma quando sair do
hospital.
Segundo o relato dos sobreviventes, eles eram tratados de forma desumana desde a
chegada ao hospício. Eles tinham suas cabeças raspadas, suas roupas eram arrancadas e
eram lhes dado uniformes azuis – nos dias em que esses uniformes eram lavados, os
pacientes ficavam nus – seus nomes descartados pelos funcionários, que por sua vez,
rebatizavam os “pacientes”. Retirado deles o direito de serem humanos, no dia-a-dia eram
espancados e violados. Comiam ratos para não morrer de fome e bebiam água de esgoto ou
urina para não morrer de sede.
De acordo com os relatos, quando a noite chegava os internados eram deixados ao
relento, nus ou cobertos apenas por trapos. Para tentar se proteger do frio, faziam um círculo
compacto e alternavam quem ficava por vezes dentro ou fora do círculo. Ainda assim,
muitos estavam mortos ao amanhecer. Também para repelir o frio, dormiam empilhados,
sendo rotineiro que quem ficava por baixo fosse encontrado morto no dia seguinte.
Em seu livro A Condição Humana, Arendt expõe e diferencia três atividades básicas
da vida humana, também chamado de Vida Activa139: o trabalho, o labor e a ação.
O primeiro tem o objetivo de transformar recursos naturais em um mundo artificial
(ARENDT, 2007); o trabalho não nasce com o indivíduo, mas surge como fruto de um
processo cultural. O segundo é de natureza biológica e que caracteriza como atividades
vitais introduzidas e produzidas pelo labor no processo da vida (ARENDT, 2007). O terceiro
mostra que o ser humano é eminentemente social e que precisa viver em sociedade para
adquirir características culturais deste meio. Ele precisa da constante presença de outros,
139
“A vida humana na medida em que se empenha ativamente em fazer algo”. ARENDT, Hannah. A condição humana, p.31. 111
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
sem a mediação de coisa ou da matéria, é uma característica peculiar do homem (ARENDT,
2007).
Este trabalho buscar refletir sobre a condição humana na visão de Hannah Arendt,
especificamente a Vida Activa, pois como já foi exposto, milhares de pessoas foram
destinadas para o Colônia por motivos escusos e injustificáveis, sabendo que o verdadeiro
critério para o isolamento e solidão estava nos estereótipos que estas pessoas carregavam.
Por isto passaram a ficar sujeitas à ambientes sem higiene e sendo tratados como animais.
Quando se dialoga com a categoria Vida Activa, entende-se que este elemento foi
retirado, ignorado, suprimido dos “pacientes”. Todos os internados iam perdendo
principalmente o Labor e a Ação.
Os homens são seres condicionados: tudo aquilo com o qual eles entram em contato
torna-se imediatamente uma condição de sua existência (ARENDT, 2007). A partir do
momento em que os indivíduos eram remanejados para o Hospício, tinham que se enquadrar
ao modo de “vida” daquele ambiente, consequentemente todas as suas ações e seu estilo de
vida tiveram que se moldar e se reconstruir. É por isso que para Arendt (2007) os homens,
independentemente do que façam, são sempre seres condicionados.
Havia ainda no Hospital Psiquiátrico, experiências com a aplicação de eletrochoques
nos “pacientes”. Geraldo Magela Franco que foi contratado em 1969 como vigia do hospital
disse em depoimento que o uso de choque e o uso de medicações nem sempre tinham
finalidades terapêuticas, mas de contenção e intimidação. Como a aplicação era feita
indiscriminadamente, o psiquiatra Ronaldo Simões Coelho diz que muitos morriam, outros
sofriam fraturas graves.
Segundo a autora Daniela Arbex, os eletrochoques aplicados nos internados eram
muitos e muitas vezes a sobrecarga derrubava a rede do município. Quando o hospício
estava lotado, dezesseis pessoas morriam a cada dia.
Arbex (2013) relata que mesmo após a morte, o Estado buscava lucro. Este vendia
os corpos para dezessete faculdades do país e ninguém questionava. Quando não era
possível a venda, por excesso de cadáveres ou por conta do mercado ter encolhido, os corpos
foram decompostos em ácido, no pátio da colônia, diante dos “pacientes”. As ossadas
também foram comercializadas.
112
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Goffman (2001) disserta sobre o que seria o Eu dentro de um universo fechado.
Neste ambiente a lógica se inverte. Hoje em nossas vidas é tido como normal ter nossos
momentos a sós, chegamos até certo ponto de considerar esses momentos como prêmios,
pois quase nunca os temos.
Em um manicômio, ficar só é um castigo, um tormento. Por isso era comum que no
manicômio em Barbacena e que em qualquer outro isso aconteça, pois é uma medida de
punição e uma forma de desestruturar as ações dos indivíduos.
Podemos falar aqui de Conceição Machado, esta era uma das “pacientes” que mais
reivindicava melhores condições de tratamento dentro do Hospital Psiquiátrico, por isso
ficou dois anos presa em cela inferior, sozinha, saía somente para tomar sol por cerca de 20
minutos todos os dias.
Mesmo depois que o terror passou e hoje podemos contar com alguns
sobreviventes, “ser dono de si era uma novidade para quem viveu décadas de
institucionalização”, diz Daniela Arbex.
Conforme Arbex (2013), no final dos anos 70, o psiquiatra Ronaldo Simões Coelho
havia denunciado o Colônia, pedindo o seu fim:
“O que aconteceu no Colônia é a desumanidade, a crueldade
planejada. No hospício tira-se o caráter humano de uma pessoa, e ela
deixa de ser gente. É permitido andar nu e comer bosta, mas é
proibido o protesto qualquer que seja a sua forma”.
Este depoimento nos abre um leque de percepções que estão presentes nos estudos
de Hannah Arendt. Daniela Arbex diz que a partir do momento em que as pessoas eram
encaminhadas ao manicômio, no instante em que entravam e eram levadas pelo “trem de
doido” ao “laboratório do mal” – termo este utilizado por Hannah Arendt se referindo aos
campos de concentração – estas pessoas tinham sua humanidade confiscada. Arendt fala que
há um processo de desumanização vivenciado dentro de um campo de concentração,
associando aqui o campo de concentração ao Hospital Psiquiátrico de Barbacena.
Os campos de concentração para Hannah Arendt tinham como um dos objetivos
minar a individualidade dos prisioneiros e transformá-los em massa dócil, da qual não
pudesse surgir nenhum ato de resistência individual e coletiva.
113
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
Os deserdados sociais chegavam a Barbacena de vários cantos do
Brasil. Eles abarrotavam os vagões de carga de maneira idêntica aos
judeus levados, durante a Segunda Guerra Mundial, para os campos
de concentração nazistas de Auschwitz. A expressão “trem de doido”
surgiu ali. Criada pelo escritor Guimarães Rosa, ela foi incorporada
ao vocabulário dos mineiros para definir algo positivo, mas, à época,
marcava o início de uma viagem sem volta ao inferno. (ARBEX,
2013, p. 27-28)
Assim como os judeus foram encaminhados em vagões de cargas, os “pacientes”
que tinham destino para o Colônia também o foram. A partir desse momento as pessoas já
estavam passando pelo processo de desumanização, perdendo sua identidade.
Chegavam ao manicômio muitas vezes não sabendo onde estavam. O meio de
transporte desses “pacientes” acabou ficando conhecido como “trem de doido” pelo fato da
condição da viagem e dos passageiros, homens, mulheres e crianças, famintos, agitados.
Assim os deserdados sociais iam em direção ao desconhecido.
A expressão “trem de doido” é definitivamente incorporada ao vocabulário mineiro
através da literatura de Guimarães Rosa, que faz presente o termo em sua literatura fazendo
referência à loucura, referindo-se ao Colônia no conto “Sorôco, sua mãe, sua filha”, do livro
“Primeiras Estórias”, lançado em 1962.
“A sensação de impotência diante das atrocidades ocorridas dentro
dos muros do hospital é comum a funcionários e ex-funcionários do
Colônia. Muitos contam que desejaram denunciar sistema, mas não
havia quem se dispusesse a ouvir.” (ARBEX, 2013, p. 43)
Quando Hannah Arendt relata o julgamento de Eichmann é possível observar em
sua argumentação que está se falando de um homem banal e de atos banais, está se falando
assim da “banalidade do mal”, trata-se da obediência cega, de se obedecer ao Estado, de ser
humano sem questionar. A pergunta é: Você, ser que foi capaz de pensar e detectar o
problema, como você pode colaborar com o horror?
Hannah Arendt alerta sobre o perigo da burocracia, que é um governo de ninguém,
o lugar onde a hierarquia é tida como lei, onde a responsabilidade está sempre no outro. Nela
114
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
não há responsáveis e consequentemente, não existem culpados. Já se sabe que o Estado
legitimava tal ação. Mas ela só foi colocada em prática com a legitimação e colaboração de
todos.
Dentro deste governo de mando burocrático que era vigente tanto no nazismo na
Alemanha quanto no manicômio em Barbacena. Neste último, casos como a da Chiquinha
que
tinha
o
cargo
de
cozinheira
e
que
seria
promovida, sendo que a mesma não tendo formação alguma e não sabendo como agir
naquelas circunstâncias, se recusou a aplicar o eletrochoque em uma das “pacientes”. Nesse
e em qualquer outro momento em que alguém se recusasse a executar a ordem, outra pessoa
estaria pronta para fazê-lo.
Está aqui apresentada a “teoria do dente da engrenagem” em Hannah Arendt. As
pessoas em um sistema burocrático precisam ser descartáveis. Eichmann se utilizou durante
todo o seu julgamento dessa justificativa que para ele o isentava de qualquer culpa. No
Terceiro Reich e no Hospital Psiquiátrico o legal e o racional era seguir ordens, ainda que
este fato implicasse na morte de milhares.
Por essa razão, todos que mataram ou deixaram que isso fosse possível, foram
responsáveis indireta ou diretamente pela promoção do horror. Podemos nos referir ao
massacre com os judeus, que ainda hoje os alemães carregam nas costas o peso da culpa, até
mesmo os mais jovens. O julgamento e sentença de Eichmann podem ser interpretados
como uma expurgação do povo alemão, que querendo ou não, deixaram tudo acontecer.
Quanto ao genocídio do hospital psiquiátrico em Barbacena, pouco dos brasileiros hoje se
quer sabem do ocorrido.
Em meio aos pensamentos de Hannah Arendt existem questões a serem discutidas e
associadas ao cenário do holocausto brasileiro descrito por Daniela Arbex. Estas são a
“responsabilidade” e “julgamento”, que se encontram no livro “Eichmann em Jerusalém Um relato sobre a banalidade do mal” (1999).
Hannah Arendt em "responsabilidade" discutiu a capacidade do homem de pensar e
julgar. Disserta sobre atos cometidos pelo Estado, discutindo a responsabilidade coletiva e a
banalidade do mal, decorrente de uma irresponsabilidade da capacidade de julgar.
Arendt coloca uma nova discussão que seria "a criminalidade em domínios
públicos". De acordo com a autora, essa criminalidade é decorrente da condenação do ato de
julgar. Essa criminalidade se faz presente dentro do Colônia, a partir do momento que os
115
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“pacientes” eram colocados no vagão do trem já eram vitimas da criminalidade dos
funcionários do hospital.
Faz-se presente assim, o julgamento dos médicos e representantes públicos,
partindo do ponto que pelos relatos, os pacientes não apresentavam nenhuma doença.
Podemos tomar como exemplo o depoimento do sobrevivente Luiz Pereira de Melo:
“Hoje com setenta e oito anos, viu sua mãe. Tratado como
propriedade do Estado, o menino foi hospitalizado apenas por ser
tímido e se separou da família sem diagnóstico de loucura, embora
não tenha sido difícil arranjar uma doença para ele” (ARBEX, 2013,
p.132).
Luiz Pereira de Melo assim como outros milhares de “pacientes” foram vítimas do
poder do Estado e de autoridades que eram responsáveis por diagnosticar a condição de
doença dos pacientes, atos refletidos na irresponsabilidade do ato de julgar.
Arendt fala ainda sobre a “responsabilidade coletiva", onde “culpa” e
“responsabilidade” são termos diferenciados. A distinção baseia-se na constatação de que
não se pode culpar alguém por atos que não cometeu, mas pelo fato de vivermos em uma
esfera pública, todos os funcionários que ali estavam cometeram atos de estado – assim
como Eichmann afirmava em seu julgamento – ainda que esses atos fossem desumanos. O
errado em um sistema burocrático é desobedecer à ordens.
Considerações finais
Devemos compreender o manicômio em Barbacena como uma instituição que
cumpriu um papel dentro de nossa sociedade. O Hospital Psiquiátrico Colônia funcionou
como um depósito. Para lá foram levados todos os indesejáveis, todos que de alguma forma
se desviavam do que era tido como normal pela sociedade.
Através do hospício, o Estado excluiu as pessoas que não se adequavam a
sociedade imposta. Em nome de manter longe os indesejáveis e para limpar a imagem do
país, essa exclusão significou o abandono, o sofrimento e a morte.
Buscou-se aqui dar luz à narrativa jornalística de Daniela Arbex. Tornando-se
relevante para o conhecimento o possível diálogo com Hannah Arendt quando a mesma
disserta sobre o holocausto na Alemanha.
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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Falar em holocausto brasileiro significa manter na memória as atrocidades
ocorridas no país, em nome do Estado e com a convivência de toda a sociedade. Não
podemos esquecer ou nos mantermos calados. O fim deste trabalho é marcar na memória de
cada leitor que nós também sabemos o que ocorreu no Colônia.
Referências
ARBEX, Daniela (2013) - Holocausto Brasileiro. 3° Ed. – São Paulo: Geração
Editorial, 2013.
ARENDT, Hannah (1999) - Eichmman em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade
do mal. Tradução: José Rubens Siqueira. São Paulo Companhia das letras.
GOFFMAN, Erving (1968) - Asiles. Paris: Minuit (trad. port., 1996, Manicômios,
prisões e conventos. São Paulo: Ed. Perspetiva.
GOFFMAN, Erving (2003) - Manicômios, Prisões e Conventos, Brasil, Editora
Perspectiva S.A.
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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LITERATURA E HISTÓRIA EM EDUARDO GALEANO: ARTICULAÇÕES EM
TORNO DA BAGAGEM POÉTICA DA AMÉRICA LATINA
Ailton Magela de Assis Augusto*
RESUMO
Este trabalho, parte de uma pesquisa de mestrado em andamento, está organizado ao redor
de dois eixos estruturantes. Por um lado, há interesse em verificar em que medida o processo
de formação de leitores – tarefa normalmente atribuída aos professores de língua/literatura –
pode ser ajudado por uma abordagem que valorize a bagagem poética que cada pessoa
carrega consigo, lançando luzes sobre aquelas pequenas manifestações poéticas e vivências
que se situam à margem do cânone. Por outro, em averiguar como tal bagagem poética, em
sua face coletiva, é usada pelo escritor uruguaio Eduardo Galeano para apresentar temas
contemporâneos a partir de um ângulo diferenciado, formado por interessantes articulações
entre o passado e o presente. Como pano de fundo para o debate aqui proposto, lança-se mão
de diferentes obras do autor, publicadas a partir de 1978. Esperamos, ainda, a partir da
análise de tais obras, apresentar contribuições para o exame das relações entre literatura e
história.
Palavras-chave: formação de leitores, Eduardo Galeano, literatura e história.
RESUMEN
Este trabajo, parte de una investigación de maestría en curso, se organiza alrededor de dos
ejes de estructuración. Por un lado, hay interés en comprobar hasta qué punto el proceso de
formación de lectores – tarea normalmente asignada a los profesores de lengua/literatura –
puede ser ayudado por un enfoque que valorice el equipaje poético que cada persona lleva
consigo, arrojando luces sobre aquellas pequeñas expresiones poéticas y experiencias que
están situados al margen del canon. Por otro lado, en determinar cómo tal equipaje poético,
en su faz colectiva, es utilizado por el escritor uruguayo Eduardo Galeano para introducir
temas contemporáneos desde un ángulo diferente, formado por interesantes articulaciones
entre el pasado y el presente. Como telón de fondo para el debate propuesto aquí, echa mano
de diferentes obras del autor, publicadas desde 1978. Esperamos, todavía, a partir del
análisis de dichas obras, presentar contribuciones al examen de las relaciones entre literatura
e historia.
Palabras clave: formación de lectores, Eduardo Galeano, literatura e historia.
Introdução
O presente trabalho apresentará alguns questionamentos que nos tem ocorrido
*
Licenciado em Letras (Português/Espanhol) pela Universidade Federal de Juiz de Fora e mestrando do Programa de Pós-­‐Graduação em Letras/Estudos Literários da mesma instituição. Professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais – Câmpus São João del-­‐Rei. E-­‐mail: [email protected] 118
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durante nosso percurso formativo como professores de língua e literatura. Tendo concluído a
graduação em Letras em 2013, propomo-nos agora a dar forma a um conjunto de notas
reunidas ao longo do tempo e que tem em comum o interesse pelo ensino de literatura e pelo
possível proveito de exercê-lo de modo mais pessoalizado. Obviamente, muitas ideias aqui
apresentadas não são novas ou inéditas. Por essa razão, cabe assinalar que em uma ou outra
passagem recorremos a contribuições dadas por teóricos como Michèle Petit, Laura
Devetach, Tzvetan Todorov, entre outros, cujas assertivas sobre livro e leitura se afinam com
os objetivos aqui propostos. Este tema será trabalhado mais detidamente nas duas primeiras
seções do texto.
Apresentaremos, logo depois, um exame de alguns aspectos da representação que
Eduardo Galeano faz de temas contemporâneos em uma literatura marcada pelo teor
testemunhal e pelo trânsito entre distintos gêneros, que recupera e ressignifica histórias da
tradição latino-americana, articulando-as com os assuntos que nos ocupam no presente.
1. Indagações ao longo da estrada
Para além da curva da estrada
Talvez haja um poço, e talvez um castelo,
E talvez apenas a continuação da estrada.
(...)
Se nós tivermos que chegar lá, quando lá chegarmos saberemos.
Por ora só sabemos que lá não estamos.
Aqui há só a estrada antes da curva, e antes da curva
Há a estrada sem curva nenhuma.
(CAEIRO, 1994, p. 129)
Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, desaconselha o caminhante de fazer
perguntas sobre o que está porvir ou a respeito de qual caminho tomar. Para ele deveríamos
nos preocupar apenas com o trecho de estrada que estamos trilhando e só ao chegar para
além da curva é que essa parte passaria a ser objeto de nossa atenção.
Ao longo de nossa formação, porém, nos vimos em posição de refletir sobre a
caminhada e também as curvas do caminho. Isto porque andamos por uma senda em que
mais de uma vez encontramos indicações desencontradas sobre qual direção tomar com
relação à literatura. Estaria nosso objeto de aprendizagem (e posteriormente de ensino) tão
distante de nossa fonte de fruição? Na esteira dessa reflexão inicial, temos sido levados a
indagações como estas: que papel cabe ao professor de língua no famigerado processo de
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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formação de leitores? O que ele deve ensinar: leitura? Leitura de literatura? Crítica literária?
História da literatura? Há espaço, neste ensino, para a pessoalidade?
Essas interrogações, naturalmente, não são novas. No volume dos Parâmetros
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio dedicado à área de Linguagens, Códigos e suas
Tecnologias, lê-se que
a história da literatura costuma ser o foco da compreensão do texto; uma
história que nem sempre corresponde ao texto que lhe serve de exemplo. O
conceito de texto literário é discutível. Machado de Assis é literatura, Paulo
Coelho não. Por quê? As explicações não fazem sentido para o aluno.
(Brasília, Ministério da Educação, 2000, p. 16).
Os redatores do documento (e nós com eles) percebem que o simples estudo da história da literatura muitas vezes não é fecundo. Por isso, propõem que ele seja deslocado, juntamente com o estudo da nomenclatura gramatical, para um segundo plano, abrindo passagem para o estudo da língua em uso. Em consequência, “o estudo da gramática passa a ser uma estratégia para compreensão/interpretação/produção de textos e a literatura integra-­‐se à área de leitura” (Brasília, Ministério da Educação, 2000, p. 18). Aqui permitimo-­‐nos uma pequena discordância. Não tanto por entender que a literatura seria mais bem trabalhada se desvinculada da disciplina Língua Portuguesa, mas, principalmente, por reconhecer que o comprometimento da proposta curricular com um enfoque pragmático-­‐comunicativo, dirigido à formação de pessoas que sejam “competentes” ao se expressar favorece a que se crie, como efeito colateral, sujeitos com uma visão utilitarista sobre a linguagem, a qual restringe as possibilidades de trabalho com o texto literário em sua condição de objeto estético e, mais que isso, de criador de sentidos. Há um risco de que fiquemos oprimidos pelas obrigações do dia a dia e terminemos com uma sensação de desalento como a que ilustra um poema de Cecília Meireles: HUMILDADE Tanto que fazer! livros que não se lêem, cartas que não se escrevem, línguas que não se aprendem, amor que não se dá, 120
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tudo quanto se esquece. Amigos entre adeuses, crianças chorando na tempestade, cidadãos assinando papéis, papéis, papéis... até o fim do mundo assinando papéis. E os pássaros detrás de grades de chuva. E os mortos em redoma de cânfora. (E uma canção tão bela!) Tanto que fazer! E fizemos apenas isto. E nunca soubemos quem éramos, nem pra quê. (MEIRELES, 2001, p. 298) Este receio se justifica, por um lado, pela subsunção do estudo da literatura pelo dos
gêneros discursivos, passando as obras literárias a serem tratadas, nas planificações de aula
mais redutoras, como exemplares de um ou outro gênero, cuja estrutura importa conhecer
mais que a teia de significados que podem ser acessados durante sua leitura.
Por outro lado, ao se promover uma ligação entre o ensino de literatura e a prática da
leitura coloca-se para o professor uma tarefa cercada de expectativas: a de ter êxito na
formação de um contingente de leitores que possa atender tanto aos interesses do setor
editorial – isto é, aumentar o número de pessoas que compra livros –, quanto servir de
desmentido aos discursos alarmistas sobre o fim do livro ou sobre a necessidade (sempre
urgente) de se aumentar o nível de leitura da sociedade brasileira. Porém, não é interessante
pensar nos professores de Língua Portuguesa como formadores de leitores sem ter em conta
que
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
el libro no es un producto como cualquier otro; con él nos situamos en un
registro frágil que está vinculado en particular al deseo. Y los lectores
potenciales son sujetos, sujetos que desean. (…) esos discursos alarmistas
pueden ser percibidos como otras tantas exhortaciones, como testimonios
de una voluntad de control y de dominio. En consecuencia no debe
sorprendernos que hoy en día muchos adolescentes le asignen a la lectura
carácter de obligación, según el cual hay que leer para satisfacer a los
adultos. (PETIT, 2001, pp. 38-39)
Além disso, não está demais recordar que o estabelecimento de uma aproximação
entre literatura e ensino é entendido como problemático por autores como Tzvetan Todorov,
quem aponta que o leitor não profissional, isto é, a pessoa que não é estudiosa do campo dos
estudos literários – sendo que podemos enquadrar nesta categoria os estudantes de Ensino
Fundamental e Médio – de um modo geral,
tanto hoje quanto ontem, lê essas obras [literárias] não para melhor dominar
um método de ensino, tampouco para retirar informações sobre as
sociedades a partir das quais foram criadas, mas para nelas encontrar um
sentido que lhe permita compreender melhor o homem e o mundo, para
nelas descobrir uma beleza que enriqueça sua existência; ao fazê-lo, ele
compreende melhor a si mesmo. (TODOROV, 2009, p. 31).
A asserção de Todorov chama atenção para o fato de que a atividade de leitura se
relaciona a um desejo de compreensão. Posição parecida é tomada por Alberto Manguel. Ao
estudar a leitura, ele esclarece que
em todas as sociedades letradas, aprender a ler tem algo de iniciação, de
passagem ritualizada para fora de um estado de dependência e comunicação
rudimentar. A criança, aprendendo a ler, é admitida na memória comunal
por meio de livros, familiarizando-se assim com um passado comum que
ela renova, em maior ou menor grau, a cada leitura. (MANGUEL, 1997, p.
89-90)
É importante que nós, enquanto estudantes e, depois, professores, possamos propiciar
aos alunos o acesso a esses bens culturais – a memória comunal de que nos fala Manguel –,
o que, aliás, é um direito de todos os cidadãos. Para isso, precisamos, porém, recuperar a
afetividade que caracterizava nossa relação com os livros antes de ingressar em um curso de
Letras. Isto se faz necessário porque após anos e anos lendo textos acadêmicos, dissertações
e teses, parecemos desenvolver resistência a manter uma relação mais próxima/ afetiva com
os livros. Aí há trabalho a ser feito: buscar uma maneira de nos conectarmos novamente com
a poesia cotidiana que não tem sequer palavra. Como nos indica Octavio Paz (1995), em um
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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ensaio sobre o ritmo,
[este] no es medida: es visión del mundo. Calendarios, moral, política,
técnica, artes, filosofías, todo, en fin, lo que llamamos cultura hunde sus
raíces en el ritmo. Él es la fuente de todas nuestras creaciones. Ritmos
binarios o terciarios, antagónicos o cíclicos alimentan las instituciones, las
creencias, las artes y las filosofías. La historia misma es ritmo. (PAZ, 1995,
versão não paginada)
Aceitar que o ritmo e as artes que dele surgem (literatura incluída) são uma visão de
mundo implica reconhecer que nem tudo se resolve com uma comunicação competente,
como querem as propostas pragmático-comunicativas. Implica reconhecer a importância da
experiência e trazer o ensino da literatura para essa esfera pessoal e transformadora.
2. O ensino da literatura como o ensino de uma experiência
Então era isso, falou Glória descobrindo, nomeando o tesouro: poesia, as orgiazinhas, orgasmozinhos
faiscantes; no canteiro, no matinho, no xarope que a velha queria a qualquer custo, sem poder explicar a mais
funda razão do seu querer. Meu Deus! Agora aguento ficar velha, disse Glória, nunca ficarei velha. A poesia é
de Deus. (PRADO, 1989, p. 31-32).
Lo que pueden hacer los iniciadores de libros es introducir a los niños – y a los adultos – a una mayor
familiaridad y una mayor soltura en la aproximación a los textos escritos. Es transmitir sus pasiones, sus
curiosidades, interrogando su lugar, su oficio y su propia relación con los libros. Es ayudar a los niños y a los
adolescentes a comprender que, entre todas esas obras, habrá seguramente algunas que sabrán decirles algo a
ellos en particular. Es multiplicar las ocasiones de encuentros, de hallazgos.
(PETIT, 2001, p. 37)
Adélia Prado, em seu romance Cacos para um vitral, nos dá pistas sobre a presença
da poesia em coisas comezinhas que nos rodeiam, um tesouro que precisa ser reconhecido e
nomeado e que talvez revele pontos de fuga ou caminhos alternativos para o ensino da
literatura. É preciso encontrar/atribuir sentido às coisas, afinal, “não pode ser uma ilusão
fantástica / o que nos faz domingo após domingo / visitar os parentes” (PRADO, 2013, p.
27).
Estar em poesia, como modo de vida, pode ser bastante produtivo para o sucesso da
tarefa de iniciar as pessoas no universo da leitura. É preciso que andemos pelo mundo como
na música de Adriana Calcanhoto: “prestando atenção em cores/ que eu não sei o nome/
cores
de
Almodóvar/
cores
de
Frida
Kahlo/
cores!”
(CALCANHOTO,
http://letras.mus.br/adriana-calcanhotto/43856/).
Mais que sua contribuição para a iniciação à leitura, o estar em poesia representa
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uma possibilidade extra de tornar prazerosa a relação com o livro e com outros leitores,
destacando a importância não do ato de ler (por ler/por obrigação), mas a importância da
partilha com (e na intermediação de) outras pessoas como fator de enriquecimento da prática
da leitura.
Outra vantagem dessa mudança de perspectiva é o espaço que se abre para
intersecções com a cultura oral, uma abertura que nos afasta do erro de “alijar da experiência
de leitura os milhões de analfabetos espalhados pelo país ou os iletrados que não costumam
ter na escrita sua referência cotidiana” (MARTINS, 1984, p. 28).
Essa abertura permite também ampliar as possibilidades de trabalho, nos liberando
de apenas prescrever livros canônicos ou atrelar a leitura à realização de atividades escolares
que, de mais a mais, invadem o espaço íntimo do aluno e podem terminar frustrando o
objetivo da formação de leitores. Cabe destacar que não estamos indicando receitas prontas,
elas não estão disponíveis. Apenas buscamos destacar um aspecto importante – a paixão de
dizer – mirando aquilo que nos diz Laura Devetach:
No sé qué pueden hacer unos padres, unos profesionales de la educación, de
la salud, o de cualquier orden […]. Pero sí sé que si cada profesional, cada
persona encuentra su zona de cuento, su zona de poema, va a saber qué
hacer con ellos. Quizás escuchar, más que aleccionar o prescribir como
respuesta rápida. Ayudarlos a descubrir que pueden vibrar como ha vibrado
antes quien lo incita ahora a la lectura, a ponerse curiosos o tristes con las
emociones y chispas que el escritor puso en su cuento. Respetar los
silencios y ensimismamientos después de leer o escuchar leer un texto.
Contagiar el gusto por leer y no sólo “el hábito”, la costumbre por vía
voluntarista y racional. [Hay que] transmitir una actitud vital. Quien no
sufre o goza o se activa con la lectura o cualquier otra actividad,
difícilmente pueda transmitirla, como se transmiten las actitudes amorosas.
Leer para nosotros mismos, para los demás, con ellos – chicos o grandes –
con toda honestidad. O no pretendamos que los chicos sean lectores.
(DEVETACH, 2008, p. 45)
Dizendo de outro modo e preparando o caminho para os próximos passos que
pretendemos trilhar neste trabalho, é importante, ao lidar com a literatura, mostrar o quanto
nós, seres cheios de palavras, estamos o tempo todo expostos às vibrações poéticas e como
podemos retirar delas novos encantamentos e também dar sentido ao mundo que nos rodeia,
como faz Eduardo Galeano em boa parte de suas obras.
3. Eduardo Galeano e “la pasión de decir”: articulações em torno da bagagem poética
124
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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latino-americana
Eduardo Galeano (1940-) é um prolífico jornalista e escritor uruguaio, autor de mais
de uma dezena livros que já foram traduzidos em diversos idiomas. Tem recebido alguns
prêmios por sua atividade, tais como Prêmio Casa de las Américas – recebido em duas
ocasiões, em 1975 e 1978 – e o American Book Award, da Washington University (EUA),
que lhe foi outorgado em 1989 por sua trilogia Memória do Fogo.
Em uma das histórias reunidas em O livro dos abraços (1989), ele descreve a
representação que índios do Novo México fazem dos contadores de histórias: uma pessoa de
quem brotam várias pessoinhas. Nossa hipótese é de que esta seria uma possível imagem do
próprio escritor, quem está permanentemente grávido de outras pessoas e que, resgatando
histórias esquecidas ou pequenos acontecimentos poéticos cotidianos consegue (re)criar a
realidade e refletir sobre a história.
Vista em conjunto, sua produção se destaca por ocupar, segundo o crítico espanhol
José Ramón González (1998, p. 100), “un lugar fronterizo entre los géneros tradicionales
dificultando enormemente la labor clasificatoria del estudioso” suscitando diversas questões
sobre a denominação e as categorias de análise que devem ser adotadas por aqueles que se
acercam a essas obras.
Este marco genérico singular – cruzamento de jornalismo, literatura, ensaísmo e
testemunho –, se relaciona com a própria trajetória do autor, cuja carreira na imprensa se
iniciou em meados dos anos 1960, na redação de Marcha. Este destacado semanário vinha
sendo editado em Montevidéu desde 1939 e mantinha forte vinculação com os ideais de
esquerda, o que veio a causar seu fechamento com a ascensão dos militares ao poder em
1973. O escritor passa então a residir na Argentina e assume a direção da revista Crisis, cujo
ideário “era no hacer sectarismo ideológico e idear un amplio campo de expresión en el cual
se incluyeran marxistas, nacionalistas, peronistas antiimperialistas. La amplitud para reunir
devendría, invariablemente, en amplitud para llegar” (RUSSO, 2013, não paginado). No
espaço da revista, buscando corresponder tanto à amplitude de posições quanto ao esforço de
dar voz aos que não tinham voz, são publicadas “palavras recolhidas na rua, nos campos, nas
minas, estórias da vida” (GALEANO, 1979, p. 148).
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III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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Após o golpe militar ocorrido em março de 1976 na Argentina, as possibilidades de
expressão da revista foram sensivelmente diminuídas pelas “novas normas para os meios de
comunicação. Segundo o novo código de censura, estava proibido publicar reportagens ou
entrevistas feitas na rua, e opiniões não especializadas sobre qualquer tema” (GALEANO,
1979, p. 149). Com Crisis podendo dizer muito pouco e seu nome constando da lista do
esquadrão da morte do ditador Jorge Videla, Galeano se desloca para a Espanha, lá
permanecendo até meados dos anos 1980, quando decide retornar para seu país natal.
Esse brevíssimo recorrido pela trajetória do autor nos anos 70 permite entender seu
interesse pela história latino-americana, que faz com ele se empenhe em tornar explícitas as
relações de dominação que atravessaram (e atravessam) a história do continente. Também é
mais facilmente entendido o recurso a uma linguagem descomplicada, que pretende alcançar
a todos e que, por isso mesmo, parte daquilo que temos de mais acessível: as histórias
cotidianas e as tradições do continente. Ou, como ele mesmo explicita em Dias e noites de
amor e de guerra (1978):
Pensei que conhecia umas tantas estórias boas para contar aos
outros, e descobri, e confirmei, que meu assunto era escrever.
Muitas vezes tinha chegado a me convencer de que esse ofício
solitário não valia a pena se um o comparava, digamos, com a
militância ou a aventura. Tinha escrito e publicado muito, mas
me faltou coragem para chegar ao fundo de mim e abrir-me por
completo e oferecer isso. Escrever era perigoso, como fazer o
amor quando se faz como deve. (GALEANO, 1979, p. 51)
Esta passagem do livro mostra que, a partir de determinado momento, escrever,
oficio aparentemente menor diante da militância, se torna a via privilegiada de atuação do
escritor que encontra nas histórias que conhece uma possibilidade de falar aos seus
semelhantes, conectando sua história e convicções pessoais para tentar atuar na mudança de
seu entorno.
Sob esta luz, se entendem textos como Celebración de la amistad/2. Neste relato,
cuja forma evoca a tradição oral, pois Galeano reconta o que supostamente ouviu ao escritor
argentino Juan Gelman, somos apresentados ao inusitado caso de uma senhora que ataca
operários que caçavam pombos em Paris. Brandindo seu guarda-chuva, ela liberta os
126
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
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pássaros para espanto dos trabalhadores que “(...) no atinaron más que a protegerse, como
pudieron, con los brazos, y balbuceaban protestas que ella no oía: más respeto, señora, haga
el favor, estamos trabajando, son órdenes superiores, señora, qué bicho la picó, se ha vuelto
loca esta mujer…” (GALEANO, 2000, p. 187). A explicação da senhora é ainda mais
espantosa: segundo ela, seu filho morreu e se transformou em pomba. Ancorados na estreita
realidade de suas obrigações laborais, os operários sugerem que a senhora leve seu filho
consigo e os deixe trabalhar em paz. Porém, ela se recusa a fazê-lo e nisto reside a
celebração da amizade que intitula o relato:
- ¡Ah, no! ¡Eso sí que no!
Miró a través de los obreros, como si fueran de vidrio, y muy
serenamente dijo:
- Yo no sé cuál de las palomas es mi hijo. Y si supiera,
tampoco me lo llevaría. Porque, ¿qué derecho tengo yo a
separarlo de sus amigos? (GALEANO, 2000, p. 188) – fala da
personagem em itálico no original.
Um texto como esse, tanto em termos temáticos como compositivos parece provar a
opção do autor pela literatura, pela escrita por metáforas, matizada por um entusiasmo ou
encantamento com relação a valores como a amizade, mesmo quando estes são entrevistos
em situações inusitadas. A mesma opção comparece no já citado Dias e noites de amor e de
guerra em uma série de textos intitulada “O universo visto pelo buraco da fechadura”, em
que pequenas, por vezes patéticas, e mesmo líricas situações cotidianas são apresentadas ao
leitor como contraponto aos números, datas e informações relativas aos governos, aos
exilados, à conjuntura dos anos de chumbo vividos pelo continente, como se Galeano nos
dissesse que, apesar de tudo, é preciso manter vivas estas pequenas delicadezas, a poesia de
que nos fala Adélia Prado, a bagagem poética aludida por Laura Devetach.
Poderíamos, então, dizer que um dos traços característicos da escrita do autor é
querer ser plural, é abrir espaços para outras cosmovisões, para o detalhe inesperado e, deste
modo, discrepar do modelo dominante que só concebe em termos de exploração e
extermínio a relação com os outros e com a natureza. Como exemplo, nos debrucemos sobre
127
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
o texto “Las tradiciones futuras” em que Eduardo Galeano, sob um título no mínimo
curioso, convoca as vozes “teimosamente vivas” do passado americano para mostrar a
ligação entre os seres humanos e a terra (ligação que a lógica racionalista da modernidade
parece ter descaracterizado) e apontar para a possibilidade de um futuro diferente:
Hay un único lugar donde ayer y hoy se encuentran y se
reconocen y se abrazan, y ese lugar es mañana.
Suenan muy futuras ciertas voces del pasado americano muy
pasado. Las antiguas voces, pongamos por caso, que todavía
nos dicen que somos hijos de la tierra, y que la madre no se
vende ni se alquila. Mientras llueven pájaros muertos sobre la
ciudad de México, y se convierten los ríos en cloacas, los
mares en basureros y las selvas en desiertos, esas voces
porfiadamente vivas nos anuncian otro mundo que no es este
mundo envenenador del agua, del suelo, el aire y el alma.
También nos anuncian otro mundo posible las voces antiguas
que nos hablan de comunidad. La comunidad, el modo
comunitario de producción y de vida, es la más remota
tradición de las Américas, la más americana de todas;
pertenece a los primeros tiempos y a las primeras gentes, pero
también pertenece a los tiempos que vienen y presiente un
nuevo Nuevo Mundo. Porque nada hay menos foráneo que el
socialismo en estas tierras nuestras. Foráneo es, en cambio, el
capitalismo; como la viruela, como la gripe, vino de afuera.
(GALEANO, 2000, p. 101).
Indicando a relação de pertencimento existente entre os homens e a terra – filhos e
mãe intimamente ligados de acordo com a cosmovisão indígena –, o texto chama a atenção
para o outro mundo anunciado por essas vozes antigas. Vozes cujo alcance começa a ser
percebido no atual contexto de crise ambiental. Frente a um paradigma de desenvolvimento
não funcional, gerador de um mundo que envenena a água, o solo, o ar e a alma, o texto
encontra em outra matriz cultural a possibilidade de remodelar dito paradigma e apresenta o
mundo sob outra luz, constituída pelas tradições futuras emanadas da cosmovisão indígena,
128
III Encuentro de las Ciencias Humanas y Tecnológicas para la
integración de la América Latina y el Caribe Internacional del Conocimiento: Diálogos en Nuestra América
convocada para fortificar nossa visão do universo e ampliar tanto as possibilidades de
entendimento da realidade quanto as de (inter)conexão com outras pessoas e seres. É
igualmente sob esta luz que podemos estabelecer um pacto de leitura capaz de entender
outras articulações feitas por Galeano e que mobilizam o leitor em uma tarefa
que no tiene, en principio, límites ni cierres preestabelecidos.
El fragmento lo es, simultáneamente, de la obra en que entra a
formar parte y, desde la perspectiva del lector que lo reconoce,
del mundo implícito cuya recuperación imaginativa corre a
cargo del receptor” (GONZÁLEZ, 1998, p. 105).
Em apoio desta leitura, indicamos outros dois textos do autor, “El agua” e “Los
dueños del agua”, presentes em Bocas del tempo (2004). O primeiro texto parece ser
enunciado pelo Galeano contador de histórias, aquele capaz de resgatar um mito da costa
colombiana do Pacífico e tratá-lo como uma versão alternativa do livro de Gênesis. De
acordo com esse mito, “al principio de los tiempos, la hormiga no tenía la cintura finita (…)
era redonda y estaba toda llena de agua” (GALEANO, 2004, p. 64), porém ela negou-se a
ajudar a Deus a molhar o mundo e “los dedos de Dios le estrujaron la panza. Y así nacieron
los siete mares y todos los ríos” (GALEANO, 2004, p. 64). O outro texto, não por acaso
disposto na página seguinte, se inicia com uma frase em que o jornalista das décadas
anteriores se faz ouvir: “hay empresas que son como esa hormiga, pero mucho más grandes”
(GALEANO, 2004, p. 65) e, na sequência é descrita a “guerra da água” ocorrida em
Cochabamba, Bolívia. A exemplo do que ocorreu no mito colombiano, foi preciso
pressionar a pança da formiga, neste caso a multinacional Bechtel, para obter água e
Galeano é irônico ao sentenciar as motivações daqueles que organizaram o movimento,
dizendo que o fizeram “por atraso cultural. Los bolivianos pobres, que son casi todos,
ignoran que deben bañarse una vez al día, como es costumbre en Europa desde hace quince
minutos, y también ignoran que deben lavar el auto que no tienen” (GALEANO, 2004, p.
65) .
Para finalizar, gostaríamos de indicar o ponto de encontro entre a pessoalidade da
leitura, que advogamos na primeira parte do trabalho, e o fazer literário de Galeano, de que
estivemos tratando até agora. É no papel assignado ao leitor que essas duas perspectivas se
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encontram, pois quem lê é que precisa exercitar sua memória, traçar relações entre o
universo que se vê pelo buraco da fechadura e o outro, do desterro vivido por quem partiu e
por quem ficou nos países à época governados por ditaduras. É o leitor quem deve encontrar
na singularidade dessas articulações, na evocação do passado indígena ou na história que
repete os esquemas da cultura oral as indicações e pistas para encontrar uma imagem
possível deste mundo.
Da mesma maneira, ao atribuir valor à bagagem poética, ao detalhe cotidiano, à
história que é recontada o escritor se envolver na tarefa de lembrar e articular essas
vivências, como o Galeano que assim se descreve:
Afundo as mãos nos bolsos. Estico as pernas. A sonolência me dá
estremecimentos de prazer e de fadiga. Sinto a noite metida na cidade. É
tarde. Estou sozinho.
Não devo ficar sozinho aqui. Já sei. Mas esta noite me deixei ficar, fui
ficando, fazendo nada ou abrindo portinhas na imaginação ou na memória.
Preguiçoso, fiquei grudado na cadeira. Por causa do calor; ou porque sim.
Sinto muita gente, conhecida ou inventada, assobiando em minha cabeça.
Dentro de mim se cruzam e se misturam as caras e as palavras. Nascem,
crescem, voam. Sou este ouvido que escuta ou sou a melodia? Não sou o
olho que vê: sou as imagens. (GALEANO, 1979, p. 78)
Ao definir-se como imagens, Galeano, tal qual um caleidoscópio, pretende revelar
figuras novas, ângulos inusitados, relações desconcertantes. Tudo isto é feito, para citar uma
vez mais a José Ramón González (1998, p. 101), a partir de uma “concepción del arte como
instrumento capaz de transformar la realidad y el convencimiento de la vigencia de ciertas
explicaciones globales de la mundo [sic] y de la condición humana desde una perspectiva de
compromiso ideológico-político”.
Considerações Finais
Diante do que expusemos, esperamos ter contribuído para uma reflexão a respeito da
prática da leitura e sobre o ensino da literatura, com suas múltiplas implicações, tendo
cumprido, na medida do possível, com o objetivo de mostrar que conferir um caráter mais
pessoal a essas atividades, antes de ser um impedimento para sua difusão, pode ajudar no
trabalho de divulgar o livro e a leitura.
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Esperamos, igualmente, haver contribuído para a fortuna crítica do escritor Eduardo
Galeano ao articular sua escrita com o resgate das vivências pessoais, ponto que diferencia
suas obras e serve de atrativo aos leitores, apesar de exigir deles o trabalho de recuperar,
pela imaginação/reflexão/memória, o mundo a que cada texto se refere. Não foi nossa
intenção apresentar uma leitura exaustiva de seus textos literários, o que, aliás, não teria sido
possível em um trabalho de poucas páginas. Em todo caso, temos esperança de haver
demonstrado com nossos apontamentos e exemplos de leitura que essa escrita múltipla,
avessa às categorizações literárias, representa um caminho pessoal encontrado pelo escritor
para escrever segundo suas posições político-ideológicas e mantendo o princípio de se
comunicar com um público amplo.
Para finalizar, deixamos o convite para que mais pessoas tomem contato com os
escritos deste escritor uruguaio e encontrem neles um espaço de encantamento e reflexão.
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