nº 28 - Editorial Franciscana

Transcrição

nº 28 - Editorial Franciscana
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CADERNOS DE ESPIRITUALIDADE
FRANCISCANA
28
Editorial Franciscana
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BRAGA - 2006
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Ficha Técnica
Coordenador:
Fr. José António Correia Pereira, ofm
Editorial Franciscana
Apt. 1217
4711-856 BRAGA
Tel. 253 253 490 / Fax 253 619 735
E-mail: [email protected]
Edição on-line no site:
www.editorialfranciscana.org
Capa:
Desenho de Fr. José Morais, ofm
Edição:
Editorial Franciscana
Propriedade:
Província Portuguesa da Ordem Franciscana
Depósito Legal: 14549/94
I. S. B. N.: 972-9190-46-1
Caderno 28 - 2006
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Cada número dos Cadernos é vendido avulso
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Índice
I — Estudos
1. Fr. José Maria Arregui, ofm
— O gozo e a responsabilidade do acompanhamento vocacional na
vida franciscana – Relação entre formação inicial e formação
permanente na vida franciscana ...................................................
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2. Ir. Maria Victória Triviño, osc
— Irmãs Pobres – Um título que define uma forma de vida .............. 27
3. Fr. Henrique Pinto Rema, ofm
— No 5º centenário de S. Pedro de Alcântara .................................. 39
4. Fr. Joahnnes Baptist Freyer, ofm
— O conceito de liberdade na visão teológica da história do
franciscano Pedro João Olivi ......................................................... 49
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I — Estudos
GOZO E A RESPONSABILIDADE DO
ACOMPANHAMENTO VOCACIONAL
NA VIDA FRANCISCANA
“RELAÇÃO ENTRE FORMAÇÃO INICIAL E FORMAÇÃO PERMANENTE
NA VIDA FRANCISCANA”
por Fr. José Maria Arregui ofm1
—————
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Resumo da Conferência proferida em Cracóvia no Congresso dos formadores
Franciscanos Conventuais, em Agosto de 2004.
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O GOZO E A RESPONSABILIDADE DO ACOMPANHAMENTO
VOCACIONAL NA VIDA FRANCISCANA
1. O FORMOSO E COMPLEXO PROCESSO DA FORMAÇÃO
Formar e formar franciscanamente, é algo muito formoso e complexo
ao mesmo tempo. É formoso porque se é testemunha e se possibilita o
crescimento paulatino e progressivo do ser do irmão; vê-lo a descobrir
mundo novos, vê-lo a buscar respostas e a descobrir a beleza da própria
vida, a beleza de Deus no caminho de Francisco...! É tão formoso! Há
poucos desafios tão formosos na vida.
Mas, convém dizê-lo, é complexo. É complexo porque o desenvolvimento total da riqueza da pessoa humana, implica esta complexidade que
tem suas raízes no princípio mesmo da vida, de como viveu as suas primeiríssimas experiências preconscientes, de como se abriu ao novo que
apareceu, pouco a pouco, da experiência com os seus próprios pais, de
como se situou perante as primeiras experiências humanas, de como sentiu os outros como amigos, adversários ou indiferentes, de como se foi
aceitando a si mesmo, como pessoa valiosa ou desprezível... Esta complexidade advém também do facto de que a vida está cheia de crises contínuas, que se devem ultrapassar sempre, se queremos crescer e amadurecer.
Recordemos alguns dos capítulos desta formosa e complexa história
do crescimento como irmãos, que é o mesmo que recordar de alguma
maneira os objectivos da formação. Que podemos oferecer a este candidato que procura a nossa fraternidade e ao irmão que vive connosco nas
fraternidades?
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1.1 Descobrir a riqueza de cada um...
Comecemos com um relato que sintetiza bem o que queremos
indicar.
“Era uma vez um escultor que trabalhava com o seu martelo e
cinzel sobre um bloco imenso de mármore. Uma criança que o
observava não via mais que grandes e pequenas lascas de pedra
que caíam à direita e à esquerda. Não tinha a menor ideia do que
estava a suceder. Quando passadas umas semanas regressou à
oficina do artista, a criança viu, com espanto, um grande e forte
leão sentado no lugar onde estava a pedra de mármore. Com
grande emoção, correu para o escultor e perguntou: Diga-me,
senhor, como sabia que dentro do mármore estava um leão?
A formação que queremos oferecer aos nossos candidatos começa
sempre por uma intuição básica: pensamos que por detrás de cada ser
existe algo grande e original, que muitas vezes se esconde ao olhar
superficial. Esse é o projecto de Deus para cada um. E como tudo o que
vem de Deus, o projecto refere-se à vida, à vitalidade, ao desenvolvimento do ser, á abundância da vida. “Eu vim para que tenham vida e a
tenham em abundância”, disse Jesus.
Alegra-me muito e gosto de pensar que todo o ser humano, homem
ou mulher, que vem a este mundo, por mais pobres que pareçam, são
como uma grande promessa; uma promessa que só se torna realidade se
for acompanhada e se houver colaboração na descoberta e no amadurecimento do que é o seu ser pessoal. Essa criança recém-nascida é só uma
promessa, é só um começo: primeiro os pais, depois a família, o
ambiente, os formadores, as amizades, os estudos, os professores e a
graça do Senhor... acompanharão para que ele mesmo vá dando os primeiros passos e se vá desenvolvendo. Ele é o primeiro responsável do seu
próprio desenvolvimento, mas tem de contar, sobretudo no início, com
colaboradores aliados que facilitarão e tornarão possível a descoberta, o
desenvolvimento e a exteriorização de toda a riqueza de ser que cada um
alberga dentro de si.
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Quando falamos, pois, de formação inicial, quando acolhemos na
nossa fraternidade um adulto ou um jovem, que nos diz que quer ser
irmão menor como nós, temos que lhe prestar essa ajuda básica de descobrir e fazer aparecer a riqueza do seu ser.
A tarefa básica e primeira da formação inicial (caso não se tenha
feito antes) será a de descobrir e fortalecer a complexidade da própria
realidade, colaborar na afirmação duma auto-estima pessoal, acompanhá-lo no desenvolvimento da sua afectividade, conduzi-lo a experimentar
caminhos de liberdade pessoal... Mas não devemos esquecer, que sobretudo nestes tempos, muitas vezes o primeiro trabalho de formação inicial
será curar feridas, ser bálsamo e azeite para as numerosos feridas e que se
receberam na infância e na primeira juventude. Sabemos hoje, por
experiência, que bastantes candidatos provêm de famílias desagregadas,
de experiências que os bloquearam e desequilibraram.
Este acompanhamento humano básico não será só tarefa da formação
inicial, mas uma tarefa para toda a vida. Só aprendemos a verdadeira
auto-estima e a desenvolvermo-nos afectivamente com liberdade e a usá-la com responsabilidade, quando aprendemos também a servir e a
entregar-se, isto é, quando aprendemos a morrer.
Entendo, por conseguinte, que a tarefa primordial da formação inicial
não deve consistir em assimilar os comportamentos que regem a fraternidade ou a Província; também não consiste em dar normas e pautas de
conduta para serem seguidas com rigidez; entendo, pelo contrário, que a
tarefa primordial da formação é possibilitar o crescimento e o desenvolvimento integral das pessoas e o acompanhamento nos processos pessoais.
Todo o homem ou mulher nasce dotado de mil possibilidades que há
que descobrir, consciencializar e desenterrar; por isso só pode ser formador quem crê de verdade e confia na riqueza do ser das pessoas e na sua
maturação; o responsável último do próprio crescimento é a própria pessoa do candidato; aos formadores, à fraternidade, à Província, compete
corresponsabilizar-se no crescimento dessa “vocação” que lhe é oferecida; as pessoas crescem quando se acredita nelas e quando são amadas; o
respeito, a confiança, o amor são algumas das ferramentas que Deus nos
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oferece para o crescimento e o desenvolvimento pessoal; uma pessoa
pode enterrar para sempre a sua riqueza, se ninguém o acompanha, desde
fora, no seu descobrimento e no seu desenvolvimento.
1.2.
Descobrindo a beleza da vocação..
Acompanhar os candidatos na descoberta da própria pessoa, não é o
único gozo que tem a fraternidade franciscana. Somos fraternidade franciscana na medida em que nela se busca a Deus, que é todo o Bem, o
sumo Bem. E esta é a beleza da vida franciscana: poder viver retribuindo
a Deus a sua busca e a sua adoração.
Ao candidato que procura a nossa vida, podemos também oferecer a
possibilidade de buscar Deus connosco; que possa intuir que Deus é
Alguém por quem valha a pena vender tudo; Alguém que é Pai que ama
com ternura a seus filhos; poder acompanhar os nossos jovens candidatos
nessa experiência pela qual se aprende a confiar em Deus e em sua Palavra; poder introduzir esses irmãos candidatos na experiência de oração, de
dia e de noite, ininterruptamente, como forma de vida e experiência de
amor doado...
Este “mundo” de Deus, o mundo do Evangelho descoberto por Francisco de Assis na Igreja, o conhecimento e o amor de Jesus Cristo, a quem
seguimos em pobreza e humildade, o horizonte da vocação pessoal como
chamamento a viver a vida para lá da morte, partindo da experiência da
ressurreição... é tudo isto que uma fraternidade franciscana pode oferecer
também aos nossos candidatos.
A fraternidade franciscana não promete nem oferece êxitos, nem
sequer uma vida confortável; nem lhe oferecemos em primeiro lugar
“valores” como pobreza, fraternidade ou simplicidade...; o que a fraternidade oferece em primeiro lugar, é o que para ela constitui “o tesouro
escondido do evangelho”, perante o qual merece a pena vender tudo para
ficar com Jesus Cristo, o Filho do Altíssimo, e segui-l’O. Essa é a nossa
riqueza e a herança que nos deixou São Francisco.
É aqui que se joga, em grande parte, a formação dos candidatos.
Trata-se de lhes podermos oferecer pessoalmente e como fraternidade, o
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testemunho vivo desta nossa convicção: que somos irmãos acolhidos pela
experiência do evangelho; que somos capazes de deixar tudo por causa de
Deus; que Deus é o centro da nossa vida e que somos felizes assim. Oferecer aos nossos candidatos o gozo destas posoportunidades, partindo da
experiência, constitui a pedra de toque e a responsabilidade da nossa
vocação de irmãos menores.
1.3. Aprendendo a relação com os irmãos
Para que o candidato possa descobrir o projecto que Deus tem para
ele, e possa descobrir o Deus de Jesus e o possa seguir, a fraternidade
conta com uma arma poderosa: a fraternidade, a comunidade, as relações
interpessoais. Não oferecemos em primeiro lugar um convento, um lugar;
oferecemos, isso sim, irmãos, relações, um compromisso de pessoas concretas, que já fizeram a mesma caminhada de vida e do evangelho, só que
já vão um pouco adiantados... na nossa vida é fundamental o “cuidado
mútuo”.
Quando São Francisco pensa na fraternidade, descreve as relações
entre os irmãos, a partir do amor da mãe para com o seu filho.
O que está por detrás desta imagem maternal da fraternidade? Francisco, intuindo o que é verdadeiramente o nuclear cristão, joga aqui com a
imagem da criação, onde são imprescindíveis uma “mãe” (seio acolhedor)
e o Espírito (criador), que possibilita a vida e a própria criação. A fraternidade só pode ser compreendida como uma realidade constantemente
recriada pela graça do Espírito e graças à “mãe”-irmão que acolhe a obra
do Espírito.
Isto dá a entender que a fraternidade para além de um grupo que
convive, trabalha e reza em conjunto, é um pequeno milagre diário do
Pentecostes, onde cada um nasce para a vida e se sente vivo graças à criação que torna possível a atitude mais que maternal de cada irmão. Eu
posso ser eu mesmo, graças à atitude do irmão que me recria e é como
uma mãe que prolonga o diálogo criador de Deus. O irmão é um presente
do Senhor para que eu possa continuar a ser criado, e a construir-me até
chegar à maturação. Assim como a criança recém-nascida necessita de
escutar o diálogo amorosa de seus pais para continuar a crescer, também o
candidato à nossa fraternidade necessita de escutar o diálogo materno do
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seu irmão que, com a sua vida, torna possível que eu exista, cresça, ame e
viva... Crer no irmão, confiar, oferecer-lhe a nossa amizade e relação, é
fundamental e imprescindível para uma boa formação inicial.
Este é o compromisso e a responsabilidade que os irmãos assumem
com o candidato: prestar-lhe o serviço de o fazer crescer, madurar, ajudá-lo a ser ele mesmo, porque a fraternidade está regida pela lei do amor
recíproco e amar é algo mais que conviver, é algo mais que dar pequenas
prendas em dias especiais.
Amar radicalmente, significa esquecer-se de si, gravar no coração o
nome do outro, cuidar do coração, carregando o outro com as próprias
mãos. Amar é respeitar o outro; significa viver preocupado com a sorte do
outro; amar não significa simplesmente desejar que o outro seja feliz, nem
dar-lhe coisas... Amar significa que a pessoa que vive contigo durante
anos, se converta em si mesma, que se «chegue a desenvolver o que ela
tem e é desde sempre, segundo Deus.
1.4. Uma missão a desenvolver...
Nós crescemos e desenvolvemo-nos como pessoas, quando
encontramos um tu a quem nos entreguemos e um trabalho que se desenvolva ao serviço dos outros. Identidade, fraternidade e missão, são as três
chaves que tornam verdadeira a vida dos irmãos menores.
Por isso, para que o candidato se possa desenvolver mais e melhor,
oferecemos-lhe também um trabalho, um serviço á Igreja a partir da fraternidade, uma missão que se desenvolva a favor dos outros. Um trabalho,
um serviço e uma missão que, em primeiro lugar, sejam uma vivência e
um desdobramento da nossa própria forma de vida; o candidato, quando
chegar a ser irmão menor na nossa Fraternidade/Província, oferecerá no
seu ambiente o que ele mesmo viu e saboreou: primeiramente a alegria
duma vida entregue, pondo em prática aquilo que o candidato viu na fraternidade e acompanhará os homens e as mulheres que vierem ao seu
encontro para que aprendam a ser e a desenvolver-se em todos os âmbitos
da vida; uma vez que experimentou o gozo da relação (não sempre isenta
de cruz), acompanhará outros na descoberta da alegria e da responsabilidade da relação, dos compromissos; primeiro através da sua vida, depois
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com a palavra e com todos os meios ao alcance da fraternidade anunciará
o Evangelho de Jesus ressuscitado, a quem segue com todo o coração;
quando a vida se tornar curta para os homens, ou estes emudeçam perante
tantas situações difíceis, o irmão anunciará a esperança da vida plena, que
já pode saborear neste mundo.
A vida dos irmãos menores oferece a grande sorte de desenvolver e
desdobrar a missão segundo a graça que cada um recebeu; por isso na
fraternidade menor, ajudamo-nos uns aos outros a descobrir a graça pessoal do trabalho e da missão e a forma de a colocar ao serviço dos outros.
É por esta razão que a fraternidade franciscana é multicolor, unida na sua
identidade e fraternidade, mas diversa no seu modo de ser, nos seus serviços e na missão...
Tendo em conta quatro grandes características, apresentamos os
grandes capítulos da nossa identidade franciscana que, a meu ver, devem
ser iniciados e desenvolvidos na formação inicial e permanente. De tal
forma, que se conseguimos levar a cabo as tarefas aqui assinaladas, nos
encontraremos com um homem-irmão com as seguintes características:
-
valora e estima de forma natural a sua pessoa, e a aceita como
original e única; aprendeu a desenvolver a sua personalidade,
sobretudo a liberdade pessoal, a sua afectividade, a capacidade de
relação e de trabalho; vive com gozo a sorte da sua vida, aceitando
também o que a vida tem de cruz, de dor e de ausência. Estamos
frente a uma pessoa com personalidade forte, com coluna vertebral.
-
como é pessoa livre, actua com autenticidade e sabe-se relacionar
com os outros com normalidade; relaciona-se transmitindo aos
outros o que de mais valioso tem na vida, oferece a sua pessoa e
recebe o apoio e o carinho dos outros; não idealiza as relações
porque assume os seus riscos; é capaz de descobrir a grandeza e a
miséria da fraternidade e ama os seus irmãos com realismo.
-
na fraternidade franciscana aprendeu a fazer opções que o levam
a escolher o “tesouro escondido” ; descobriu a Deus com Pai e a
Jesus como Alguém para seguir incondicionalmente; O Espírito é
a sua força e defensor, que o vai conduzindo até tomar opções
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impensáveis; vai intuindo que tudo é “esterco comparado com o
conhecimento de Cristo Jesus”; por isso ora e canta na Igreja e
agradece a Deus o dom da fé; o dom da vocação e da fraternidade;
-
desprendido de si mesmo, só se importa por ajudar os outros,
sobretudo os mais pobres; desapropriado de si mesmo investe as
suas melhores energias em viver o caminho do evangelho de Jesus
e por isso “evangeliza com a sua vida”, a todos os que vai encontrando pelo caminho com a sua amizade e a sua pessoa, acompanha-os solidariamente e partilha com eles a vida; anuncia-lhes a
boa notícia de Jesus, fala-lhes de Deus mais com a vida e o testemunho que com os lábios; contagia e irradia uma grande esperança, porque a vida eterna é a sua grande esperança.
-
Mas não é um homem perfeito; não é nenhum herói solitário; é um
irmão mais, que vive em fraternidade com os irmãos que como ele
continuam a procurar e orando fazem o caminho da fraternidade
evangélica. E como se sente pobre, necessita cada vez mais de
irmãos a quem serve com humildade e de quem recebe o carinho e
a amizade de uma mãe que torna possível o milagre do amor de
cada dia.
Formação franciscana? É uma maravilha e continuo a afirmar que
dedicar as nossas energias e a nossa vida a ajudar a que outros desenvolvam o seu ser, a sua riqueza e a sua vocação, é uma das grandes sortes da
fraternidade, é verdadeiramente uma graça do Senhor e uma tarefa para
todos nós. Mas tem as suas dificuldade, como veremos.
2. OS ACTORES E RESPONSÁVEIS DA FORMAÇÃO
Se a virmos a partir dos resultados finais, do crescimento que as pessoas atingem, a formação parece muito formosa. Mas pelo caminho intervieram muitos factores e muitas pessoas.
Em que escola ou universidade se aprende a ser irmão franciscano?
Quem ensina a ser irmão menor? Que meios é que uma Província precisa
de desenvolver para acompanhar os candidatos no caminho de que falamos antes? Sobretudo, como acompanhar os nossos candidatos a buscar a
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Deus e adorá-lo como único e total Bem numa sociedade secular que planifica a sua vida á margem de Deus? Que capacidade necessita a fraternidade para que o jovem de hoje, individualista como é, se desenvolva com
outros irmãos e até com os pobres? Sobretudo como acompanhar este
processo de morte e ressurreição que supõe a entrega da vida pelos
irmãos? Como conseguir que o candidato não só aceite, mas que ame e
prefira a menoridade à riqueza, entregar-se aos outros em vez de viver
para si mesmo?
Como? Por que caminhos? E como ajudar nesta delicada tarefa de
formação? É isto o que queremos ressaltar? Quem tornará possível este
caminho de maturação vocacional?.
A fraternidade provincial: uma fraternidade peregrina
Para além dos formadores como acompanhantes e dos professores e
especialistas da formação, devemos sublinhar o lugar destacado que a
fraternidade local e provincial tem no tema da formação.
Pode-se afirmar que uma província anquilosada, que não se renova,
normalmente não pode oferecer uma formação brilhante, audaciosa, renovada e franciscana; ao contrário, quando uma fraternidade ou uma província se renova, quando nela se respira vida e confiança, a formação sai
muito beneficiada. Isto significa que ao perguntar-nos pelos responsáveis
da formação, se deve sublinhar o papel e tarefa da fraternidade e da Província.
Isto é tanto assim que, se nas fraternidades de uma província não há
vitalidade, não há audácia evangélica, não há discernimento e formação
permanente e conversão; se nelas não se respira um determinado
ambiente de bem-estar e seriedade; se não é visível certa qualidade de
sentido, de gozo na entrega vocacional... então seria legítimo abrir-se a
novos candidatos? Para quê? Com que autoridade moral se podem convocar novas vocações? Se às nossas fraternidades e província falta a mística
necessária, o que podemos oferecer? É, pois, de sublinhar a necessidade
duma fraternidade provincial em marcha, a caminho.
Para que se possa falar dum acompanhamento adequado aos nossos
candidatos, a fraternidade provincial tem que clarificar bem o estilo de
vida de irmãos menores e de fraternidade que deseja potenciar as priori14
dades que a guiam nas suas opções, as orientações que quer tomar, as
metas que persegue, considerando, evidentemente, uma legítima pluralidade: isto é, uma província deve ter bem claro para onde se quer encaminhar como fraternidade provincial, quais os meios para chegar a esse
objectivo; qual a leitura do evangelho que quer sublinhar, que estilo de
vida fraterna quer oferecer e quais os serviços que escolhe como prioritários...
De acordo e em coerência com isto, deve-se esclarecer sobre o estilo
de formação que quer implementar. Deve clarificar em debates internos
da mesma província os objectivos concretos e a forma como os quer
alcançar e buscar, os meios necessários para a formação que se pretende.
Este debate interno pode plasmar-se primeiro no projecto provincial e
depois no projecto formativo que recolhe a vida da província e aparece
como resultado duma reflexão, de uma vida e de umas opções, e não à
margem delas.
Partindo da pastoral vocacional, logo a partir do primeiro acolhimento do candidato, parece fundamental e prioritário ressaltar a necessidade de uma fraternidade provincial que possibilite o acolhimento e o
crescimento do candidato.
Geralmente temos a tendência de “delegar”, de deixar em mãos de
uns tantos “peritos” o tema da formação. Isso parece-me, sinceramente,
um equívoco. A formação inicial e permanente é assunto de todos e, em
primeiro lugar, na responsabilidade da fraternidade provincial; o primeiro
que há a oferecer a um candidato é um ambiente, uma família, um sentido, um “humus”... e no interior desse ambiente haverá quem a seu
tempo se responsabilize mais directamente dele; fazer o contrário (ter uns
formadores à margem da vida de uma província), parece-me um grave
equívoco.
Por tudo o que pude observar, e falando da minha própria experiência de formador, posso afirmar que só a partir da fraternidade, com a fraternidade pela fraternidade provincial se pode pensar numa boa formação
inicial. A vida fraterna, a comunhão fraterna, os “irmãos reunidos em
nome do Senhor” e entregues solidariamente ao mundo, podem ser o
lugar e a escola de aprendizagem da vida franciscana. Forma-se para a
fraternidade franciscana a partir da realidade da fraternidade, mesmo que
esta seja pobre muitas vezes.
Uma pessoa não se faz só, faz-se na inter-relação com as pessoas,
com os outros, em fraternidade, em família. À fraternidade corresponde o
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serviço de ser fraternidade, lugar de experiência de vida franciscana. Por
isso parece importante que o candidato possa entrar numa relação de
irmãos que juntos buscam a Deus, O adoram e juntos vivem gozosamente
as suas relações fraternas e anunciam juntos o evangelho com a vida.
Antes de falar propriamente dos formadores e até da responsabilidade do próprio candidato, parece-me interessante sublinhar que o primeiro que se deve possibilitar a um candidato à Ordem são os irmãos, as
fraternidades, que respeitando o mistério de Deus em cada um, criam um
clima de acolhimento, de tal forma, que os candidatos se sintam “eles
mesmos”, aceites, estimulados e apoiados, para seguir buscando, até que
o evangelho se faça verdade em cada existência.
Ao lado de um estilo de formação sobretudo académica e conceptual,
parece-me importante facilitar e possibilitar hoje uma vida, uma experiência evangélica, a oferta de irmãos disponíveis para Deus e para o
evangelho; exercício evangélico em acto, de maneira que a teoria (o currículo académico, muito importante, sem dúvida) acompanhe e resulte ser
a explicação da “prática fraterna”, a explicitação da vida dos irmãos e não
ao contrário. Neste sentido sublinharia o seguinte:
- Fraternidade provincial não ideal, mas viva: Sublinharemos a
importância de uma fraternidade viva, o que não quer dizer uma “fraternidade ideal” ou “perfeita”; mas uma fraternidade real, feita de irmãos
que buscam, se afadigam, amam e pecam, que estabelecem relações interpessoais e que rompem os laços de comunhão.
Pretender uma fraternidade “ideal”, como às vezes já aconteceu, uma
espécie de “área protegida”, ou fraternidade em “tubo de ensaio”, corre-se
um perigo duplo: o risco de ser irreal, algo que não existe em nenhuma
parte; o risco de não ser formadora, pois é a caminhar, a fazer fraternidade
no quotidiano, ali onde há vida e, por isso, também dificuldades, é ali
onde é preciso o discernimento, a correcção: graça e paciência, esse é o
lugar de aprendizagem da fraternidade. Por isso precisamos de uma fraternidade viva, ainda que não seja ideal.
- Fraternidade sem a pretensão de ser modelo. Pretende-se uma fraternidade real, sem essa pretensão irreal de dar “bom exemplo”; essa
ânsia desmedida e fora do contexto de pretender dar bom exemplo, acaba
por não ser formativo, sobretudo quando desligado duma dinâmica viva e
real; para que uma fraternidade seja formadora, tem que ser uma fraterni16
dade que assuma a existência real, não perca a perspectiva da utopia
evangélica, entre sombras e luz, entre a realidade constatada e a realidade
sonhada. Inventar uma fraternidade com pretensões exemplaristas, ou
fazer certas opções radicais fora do contexto da dinâmica real da província, é pretender oferecer o que não existe.
- Fraternidade franciscana com as seguintes marcas:
-
-
-
-
-
um sentido transparente de pertença em relação aos irmãos, até ao
ponto de não poder entender-se sem eles;
busca e sentido de Deus, até se converter num lugar de encantamento da fé dos próprios irmãos, traduzido tudo isso numa experiência de encontro com Deus e numa vida de oração convincente
e suficiente, onde a Eucaristia ocupe o centro da mesma vida de
oração;
comunhão fraterna, onde se experimente o acolhimento, a unidade, a ternura e a amizade, acompanhadas da reconciliação e correcção fraterna; fraternidade que busca a alegria do perdão mútuo;
comunidade onde se dá prioridade e se potencia o “cuidado
mútuo”;
a alegria de conviver e crescer corresponsavelmente, respeitando
a diversidade de carismas, caracteres e culturas;
fraternidade onde se faz a experiência do serviço à própria fraternidade, em especial aos mais débeis e indefesos da mesma,
como algo normal e habitual;
fraternidade que tem de ser menor entre os menores, para que, de
facto, se possa experimentar e tocar o débil, o menor, o pobre: que
os pobres sejam, para além de belas palavras, os primeiros mestres
e amigos;
uma fraternidade, que pelo facto de experimentar o evangelho no
seu seio, nas suas estruturas, se desenvolva em forma de boa notícia, em forma de abertura, solidariedade e entrega aos homens.
Tal fraternidade é possível? Certamente que não, se tomada a partir
do ideal. Mas uma fraternidade não é evangélica na medida em que é perfeita, sem fissuras, mas na medida em que vive em discernimento, a
caminho, tendendo para o que Deus quer e que busca. Por isso mesmo, a
formação deve ser adequada na medida em que a própria província, a
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fraternidade faça um caminho, entre num processo; na medida em que
possibilita e potencia esse caminho e esse processo em cumprir a vontade
de Deus.
3. PROBLEMÁTICA DUMA FORMAÇÃO INTEGRAL
Quais são os desafios que se colocam hoje tanto à formação inicial e
como à formação permanente? Ou dito de outra forma. Com que realidades se confrontam os formadores (como responsáveis directos da formação) e os Ministros Provinciais, como responsáveis últimos da mesma?
São muitas as questões para recordar; lembro só as que me parecem mais
importantes.
3.1. Vidas feridas
Aqueles que já dedicaram algum tempo à formação, sobretudo nestes
tempos, sabem que os candidatos que hoje batem às portas da fraternidade, chegam com profundas feridas existenciais e afectivas e estão marcados pela própria história.
São candidatos com “zonas escuras” a nível psicológico, com uma
falta elementar de confiança em si mesmos, sem auto-estima; muitas
vezes faltou-lhes a carícia da mãe, o abraço e o encorajamento do pai, que
dá confiança às pessoas. Chegam, por isso, candidatos com vidas dêsfeitas e desestruturadas.
A formação inicial e a formação permanente (isto é os formadores e
o Ministro Provincial), sem perder energia com lamentações fáceis e inúteis, têm que enfrentar a situação destas pessoas que são chamadas por
Deus à vida franciscana, que constituem uma graça, mesmo quando chegam neste estado.
Faz falta a perspicácia para detectar estas feridas, enfrentá-las, e
curá-las com o carinho de mãe e a segurança do pai. É fundamental a
perícia de bons formadores, mas talvez ainda mais necessária é uma fraternidade de irmãos onde o candidato se sinta acolhido sem ser julgado e
acompanhado nas suas lutas e nas inumeráveis crises. Certamente que
fazem falta formadores expeditos, mas talvez faça mais falta a presença
de irmãos e fraternidades, onde se exerça o “ministério da fraternidade”,
que com paciência, com ternura, com confiança, dêem apoio no caminho
único e original que cada candidato está chamado a percorrer. Que o can18
didato sinta que é amado, que se acredita nas suas possibilidades, que seja
visto como mistério de Deus, que se apoie nas suas lutas internas e externas...
Sem este serviço fundamental dos irmãos, dificilmente poderão fazer
frente ás numerosas questões que a vida lhes coloca.
3.2. Decepção e inconsistência
Um problema relativamente moderno e muito generalizado é o que
sói chamar-se a “pouca consistência vocacional dos nossos candidatos”, e
que os leva abandonar a ordem passados poucos anos da profissão solene
ou pouco depois da ordenação sacerdotal. Pelo que sei, isso não é um
fenómeno só de algumas províncias, nem sequer de um continente; parece
antes um fenómeno generalizado que muito tem preocupado os formadores e Superiores Maiores e até a Cúria romana.
Que acontece com alguns dos nossos irmãos mais jovens que, poucos
anos depois da sua opção definitiva na Ordem, pedem para sair? O que
está a acontecer? Que problemática está por detrás?
Segundo parece, uma grande percentagem dos irmãos que abandonam a Ordem, fazem-no por causa de problemas afectivos e sexuais pendentes ou não devidamente resolvidos. Creio que em muitos casos as causas encontram-se numa formação e opção vocacional sem o discernimento suficiente, ou no acompanhamento feito por formadores sem
preparação para acompanhar processos e para discernir as motivações
profundas e inconscientes; também não devemos excluir a decepção que
alguns recebem ao contactar com uma vida franciscana “aburguesada”,
sem “mística”, longe do projecto evangélico que se professa...
São muitas as causas destas decepções e abandonos. A atitude mais
madura não consiste em culpabilizar a instituição (nem os formadores,
nem as fraternidades, nem a província... porque nem sempre se podem
atribuir as crises aos que representam a instituição); ao contrário, o discernimento e a autocrítica parecem ser uma boa ferramenta para sair desta
grande crise. Não se culpabilizar nem culpabilizar, mas tentar melhorar as
condições da vida fraterna das nossas fraternidades de formação e de
todas as fraternidades da província, no sentido duma vida evangélica simples, mas convincente.
Em muitas províncias e congregações iniciaram-se experiências de
acompanhamento para os cinco ou dez primeiros anos depois da profissão
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solene. Esta parece uma ferramenta necessária para estes tempos. Mas
também aqui o problema não está nos acompanhantes especialistas
(embora seja essencial); o importante é fazer coincidir sinergias que todas
em conjunto podem oferecer o melhor de si mesmas para acompanhar
estes processos. Trata-se de sinergias que vêm dos próprios jovens, dos
formadores que os acompanham, das fraternidades que os acolhem, da
província inteira, dos ministros…
3.3. Formação dos formadores
A partir do que pude observar nos últimos vinte e cinco ou trinta
anos, todas as ordens e congregações e todas as províncias fizeram um
grande esforço para proporcionar uma boa formação aos formadores.
Muitos frequentaram faculdades, participaram em cursos da especialidade
em vista a obterem formação adequada e específica para se dedicarem á
formação.
No entanto, a formação de formadores continua a ser um desafio e
um problema que não nos deve fazer baixar os braços. Acontece que em
zonas de determinada Ordem se criam as condições necessárias para uma
boa formação, mas faltam as vocações em número suficiente (é o caso de
muitas províncias da Europa e também da América anglófona).
Pelo contrário, noutras zonas de certas Ordens, existem muitas vocações, mas muitas vezes faltam formadores preparados em número suficiente. Nestes casos a formação continua massificada, pouco personalizada, sendo difícil o acompanhamento pessoal e uma formação como processo de discernimento das motivações que estão subjacentes a uma
vocação; nestas zonas existe o risco de se oferecer uma formação pouco
processual e personalizada, uma formação que não passa dum cumprimento de uma série de normas e horários e não como um impulso de uma
vida que nasce desde dentro e se expande para fora buscando sempre a
originalidade e riqueza de cada irmão; existem formadores capazes de
fazer cumprir normas, horários e programas, mas muitas vezes falta-lhes
experiência no acompanhamento pessoal e fraterno e no discernimento
vocacional.
20
3.4. Ruptura entre formação inicial e vida da província
Refiro-me a uma problemática que é antiga, como a própria formação; uma espécie de esquizofrenia ou ruptura entre o que se oferece e
promete na formação inicial e o que a seguir pode oferecer uma fraternidade ou uma província.
Por um lado, criam-se ambientes privilegiados, uma espécie de
“reservas”, zonas especialmente preparadas para a formação inicial, mas
que muitas vezes não correspondem à verdade e à vida dos irmãos na
fraternidades, como já se disse. Existe em muitas província como que dois
ritmos, dois estilos e modos de viver a vida franciscana: a do principiante,
a quem se exige certa radicalidade, não isenta de rigidez e a do adulto que
vive nas fraternidades à sua maneira, com um risco enorme de individualismo e até numas condições mínimas de sobrevivência vocacional.
Se é correcto o que aqui abordamos, na verdade falta esse ajuste
entre a formação inicial e a formação permanente. Todos os irmãos e
todas as fraternidades pedem e desejam novas vocações; acontece às
vezes que irmãos e fraternidades não desejam a vinda de novos irmãos
porque isso complica muito a sua caminhada e a sua vida; a presença de
irmãos jovens torna-se molesta porque vêm com outros ares, outras exigências que põem a nu o vazio e o aburguesamento de algumas opções
tomadas pelos mais velhos. Ao mesmo tempo, os candidatos aguentam
estoicamente e com submissão a pressão e a rigidez da formação inicial,
mas desejosos de chegar à profissão solene, para “finalmente fazerem o
que fazem os outros”.
Em tudo isto existe algo de artificial que dificulta uma boa formação
dos candidatos e que necessita de uma revisão feita por todos. Porque a
formação, devemos reafirmá-lo, não é questão só dos formadores, é
assunto de todos os irmãos e de todas as fraternidades da província.
3.5. Formação para a instituição?
Quero fazer alusão a uma problemática que se vive em algumas
Ordens e Congregações e que, mais do que como constatação, vou formular como pergunta. A questão é a seguinte (e talvez soe como demasiado simplista): quando acompanho um candidato em formação, faço-o
para fortalecer a instituição para que esta possa continuar a prestar os serviços e assumir os compromissos já adquiridos, ou estou a acompanhar
21
alguém para que em autonomia e liberdade, em discernimento permanente, possa desenvolver as suas qualidades pessoais e originais, tendo
em vista o seu próprio desenvolvimento?
Ninguém duvida de que a instituição (uma fraternidade concreta,
uma Província e até a própria Ordem) tem as suas próprias necessidades
de pessoal, de novos irmãos! A instituição tem uma função a cumprir,
uma missão a desenvolver e para isso requer novos reforços.
Por outro lado e tendo em conta a autonomia e a originalidade das
pessoas, cada um é chamado e desenvolver as suas próprias qualidades, a
ser criativo e original. Pode acontecer que esta criatividade e originalidade me levem por roteiros que não coincidam com as necessidades institucionais, ao ponto de parecer que se promove o personalismo...
É aqui que se situa a questão: formamos para a instituição ou formamos para a originalidade criativa das pessoas. É um problema que nem
todas as províncias nem todos os candidatos o têm clarificado. É um problema que não tem solução fácil, devido à sua complexidade. Existem
dois perigos: ou o perigo da máxima institucionalização (esquecendo o
ser e a originalidade das pessoas), ou o perigo da máxima personalização
(esquecendo que pertencemos a uma fraternidade que tem uma missão a
cumprir na Igreja).
À medida que se afirmam novas correntes que favorecem a autonomia das pessoas e a criatividade, este problema vai adquirindo força.
Gostaria de afirmar que São Francisco segue mais o caminho do respeito
e da potenciação das pessoas ( “e os irmãos ... trabalhem no ofício que
aprenderam” 1R 7,3); mas sem esquecer que temos responsabilidades
para com uma fraternidade (local, provincial, e à Ordem), que tem uma
missão para cumprir na Igreja.
Mas há outro aspecto. Estamos num tempo em que a Igreja e as
Ordens se encontram empenhados na busca de novas identidades, novas
presenças, novos serviços para oferecer; são tempos em que em alguns
ambientes vai decaindo a procura religiosa e a pergunta torna-se mais
aguda: devemos formar os nossos poucos jovens para que continuem
fazendo o mesmo, para manter as mesmas presenças e os mesmos serviços ou devemos antes possibilitar-lhes e animá-los em novas buscas,
novas formas de presença, novas formas de fraternidade, novos serviços,
novas formas de inclusão evangélica?
Creio que não existe uma fórmula mágica que dê uma resposta válida
e permanente. Mais uma vez se requer a maturidade e equilíbrio para
22
poder discernir o que agrada mais a Deus e o que é mais necessário neste
momento para a Província e a Ordem, tendo em conta esta tensão necessária entre a instituição e a pessoa, entre o afirmar a criatividade, tentando
não cair na total institucionalização nem na absoluta personalização; também não devemos descuidar essa tensão necessária entre o abrir caminhos
novos para semear a semente do evangelho e semear essa semente nos
sulcos de sempre...
4. É A HORA DO IRMÃO MENOR
4.1. A hora do franciscano
No fim desta reflexão, quero afirmar com toda a força que “esta é a
hora do franciscanismo”. Não quero ser ingénuo e estou consciente, ao
menos em parte, das estruturas socio-económicas e culturais que nos
envolvem e dificultam grandemente o nosso caminho; dou-me conta dos
enormes problemas que a formação apresenta hoje; vejo também, com
alguma dor, a paralisia e esclerose de que, com frequência, sofrem as nossas fraternidades. Estou muito consciente dos múltiplos problemas com
que temos de nos enfrentar cada dia, envolvidos como estamos no meio
de uma sociedade em contínua mudança e confrontação com muitos dos
nossos valores e propostas.
No entanto, volto a afirmar: «é a hora do franciscanismo; é a nossa
hora; é a hora da formação!». É a hora do franciscanismo porque os
homens e mulheres de hoje exigem como nunca a presença dos irmãos
franciscanos que louvem a Deus e cantem a vida nas suas múltiplas e
mais ricas expressões; as gentes da civilização opulenta do Ocidente não
buscam tanto nem só ter mais, mas buscam o sentido e o franciscanismo é
uma alternativa ao sem-sentido; os pobres das latitudes do Sul buscam
irmãos que os ajudem a fazer o seu caminho na busca da felicidade, agarrados solidariamente às suas mãos.
É a hora do franciscanismo, porque a este a atitude de busca, da relação e do encontro lhe é congénita. Os homens e as mulheres de hoje são
buscadores, sobretudo de uma relação de qualidade, buscadores de
encontro com Deus e com os irmãos. Estes são o seus anseios.
Mas também é a hora da convocatória vocacional. Sem alaridos, mas
sem complexos, como irmãos. Todos os franciscanos devem repensar as
estratégias de pastoral vocacional e lançarmo-nos decididamente a ofere23
cer o que temos de melhor: a simples vida evangélica em fraternidade
menor e solidária com todos os homens. Temos tanto que oferecer!
Podemos oferecer tudo aquilo que faz crescer, amadurecer e desenvolver
os seres humanos e isso não é outra coisa que o evangelho de Jesus vivido
em fraternidade de menores.
É a hora do franciscanismo, porque o mundo do evangelho que o
franciscanismo quer expressar não é um “status” estanque e definido de
uma vez para sempre; o franciscanismo é a busca apaixonante de Deus e
do homem nas novas circunstâncias e mutações da vida. Por isso cabe-nos
a todos a honra de continuar a fazer caminho, caminhos novos para Deus,
caminhos novos ao encontro de todos os homens.
4.2. A hora também é da fraternidade
É a hora da fraternidade, a hora do irmão, a hora do cuidado mútuo.
A partir do que eu conheço da vida religiosa e franciscana, posso afirmar
que hoje necessitamos de irmãos e de fraternidades. As províncias com
mais jovens e que estão a começar, necessitam do apoio e do alento dos
irmãos adultos e experimentados que os acompanhem no seu amadurecimento e crescimento; as províncias que têm irmãos mais velhos, com
poucas perspectivas de futuro, necessitam de irmãos mais velhos na
vivência da sua vocação nas crises de envelhecimento; aquelas províncias
que têm a graça de ter irmãos de meia idade, precisam de irmãos que as
ajudem a vencer as primeiras crises de redução com realismo.
Muitas vezes, desorientados no meio de tantas ofertas, sem saber por
onde cortar, como é importante que haja irmãos que possibilitem uma
vida fraterna simples, sem grandes estruturas, mas que sejam “significativas”, que sejam sinal, apoio e luz para outros irmãos. O cuidado mútuo, o
cuidar um e do outro, oferecendo-nos vocacionalmente, foi e é uma prioridade no nosso tempo.
4.3. É a hora da formação integral
Para estas novas situações, requer-se de todos nós, jovens e adultos,
candidatos e irmãos já professos, uma formação sempre nova e permanente.
24
Necessitamos duma boa formação inicial que possibilite aos nossos
candidatos umas boas ferramentas para o desenvolvimento integral da sua
vocação; por isso teremos que repensar permanentemente as nossas ferramentas formativas: a pastoral vocacional, as nossas casas de formação,
os formadores, professores, os nossos centros de estudos. Devemo-nos
interrogar, sobretudo, sobre se o que oferecemos responde verdadeiramente à situação e necessidades dos candidatos, à nova situação da Igreja
e do mundo, isto é, devemo-nos perguntar se a forma como encarnamos o
nosso carisma responde à vontade de Deus...
Necessitamos também de uma boa formação permanente para que
todos os irmãos procurem corresponder à vontade de Deus nestes tempos
tão interessantes e desafiantes ao mesmo tempo. “Senhor, que queres que
eu faça?” foi a pergunta de Francisco de Assis e continua a ser a pergunta
de todos os franciscanos. E não chega perguntar-se, mas temos que responder à pergunta adequando os nossos corações e nossas estruturas às
situações novas que se nos apresentam. Isto exige que repensemos a composição e sobretudo a qualidade das nossas relações fraternas, a qualidade
da nossa busca de Deus, a qualidade do serviço evangélico que prestamos... Porque, segundo o meu modo de ver, chegou a hora, sobretudo no
Ocidente, de nos perguntarmos menos por “quantos” do que por “como”.
Creio que temos que nos libertar um pouco da lógica da quantidade e do
numérico e buscar mais a lógica da qualidade das nossas vidas e presenças.
Definitivamente, este tempo, exige-nos a todos entrar nessa dinâmica
franciscana da “vida em penitência” que não é outra coisa senão a conversão, que hoje se entende como formação: formação inicial e formação
permanente.
Traduziu fr. José António Correia Pereira
25
“IRMÃS POBRES”
– UM TÍTULO QUE DEFINE UMA FORMA DE VIDA
por Ir. Maria Victória Triviño, osc1
—————
1
Publicado nas Selecciones de Franciscanismo, 2006, nº 104, p.231-240.
27
IRMÃS POBRES”
– UM TÍTULO QUE DEFINE UMA FORMA DE VIDA
O objectivo deste estudo é explicar os termos medievais aplicados às
religiosas ou mulheres consagradas a Deus entre os séculos XI-XIII, e
esclarecer como estes vocábulos não têm propriamente um sentido jurídico, mas sentido existencial que, naquela época, definem novas formas
de vida.
Os estudos realizados pela professora Dolores Mariño2 sobre os
séculos IX-XII iluminam o sentido histórico dos termos que definem a
nossa Forma de Vida: Irmãs Pobres. São termos que, como justifica a
mesma professora, não devem ser tomados em sentido jurídico, nem
tomados como tal, mas em sentido existencial.
1- UM PROCESSO DE MUDANÇA
Nos séculos que precederam o passo profético de Francisco e Clara
de Assis, dava-se uma mudança nas formas de consagração a Deus, que
tinham paralelo nas mudanças da própria sociedade. Ao lado dos três
estratos em que estava fragmentada a sociedade, clero, nobreza e povo,
emerge a burguesia. Com ela ganha importância e desenvolve-se o burgo
ou cidade, onde cada pessoa é livre, com deveres e direitos em relação à
comuna.
“A partir do século XI a XIII, as cidades separam-se pouco a pouco
da tutela feudal, uma vezes pela violência, outras por acordo pacífico.
—————
2
D. MARIÑO, “Las religiosas en las comunidades del medio ciudadano”, en Actas
del Simposium, La clausura femenina en España, vol. I, El Escorial, 126.
28
Uma civilização rural dá lugar a uma civilização urbana; a uma sociedade
hierarquizada sucede uma sociedade com tendência igualitária, ou
melhor, mutualista; um sistema de troca de serviços, dá lugar a uma economia monetária; o cavaleiro dá lugar ao comerciante; uma nova classe
nascia: a burguesia. (...) A vida da cidade significa sempre para a mulher
uma certa promoção. Com efeito, a cidade medieval vai conceder-lhe
alguns direitos cívicos.”3
Mesmo não conseguindo aceder ao estatuto de deputada e conselheira, a mulher participa nas eleições e assembleias comunais, na qualidade de solteira ou viúva. Por outro lado as “confrarias” da cidade, compostas por homens, escolhiam, às vezes, uma mulher para as dirigir. Por
fim, quando os ofícios de jurados obtiveram uma participação crescente
nos governos urbanos, é provável que as corporações femininas, tendo
como porta-vozes as suas “mulheres bravas”, tivessem alguma intervenção.
“Por mais fracas que tivessem sido as participações femininas na
vida cívica, a Idade Média não lhe manifestou grande oposição. As tradições germânicas prevaleceram sobre a legislação romana”.4 Com a
promoção política e social da mulher, aumentaram também a suas possibilidades na actividade profissional.
A nova situação politico-social da mulher influiu na evolução das
formas de vida consagrada. A mulher vocacionada que assistiu a esta
promoção citadina, levava em si mesma a capacidade de actualizar a vida
consagrada com novas formas, transportando para o grupo a mentalidade
política e social do seu espaço geográfico e do seu momento histórico.
Por sua vez o movimento religioso abre caminho à participação da
mulher, umas vezes no âmbito da ortodoxia, caso das Ordens Mendicantes, outras vezes ostensivamente fora da ortodoxia. É o caso de alguns
movimentos pauperísticos, hostis em relação á Igreja, não tanto por
razões doutrinais, mas por razões de ordem moral e disciplinar.
—————
3
M. PIETTRE, La condición femenina a través de los siglos. Rialp, Madrid 1977,
178-179.
4
,Ut supra 179-180.
29
Por conseguinte as formas de vida solitária que sublinham a relação
individual com Deus (ermitãs, emparedadas, etc...), tão admiradas então,
perdem significado e estima perante a sociedade emergente. O apreço
passa para formas comunitárias onde as pessoas, para além da relação
pessoal com Deus, dão testemunho do seu amor a Deus e à comunidade.
Mesmo as formas de vida eremítica que aparecem na Ordem da Penitência, estão vinculadas a uma comunidade ou Ordem Terceira. “Estamos
num processo em que a sociedade cristã considera que o sacrifício individual não é suficiente para alcançar a salvação. Por isso perdem importância os eremitas e anacoretas em favor dos cenobitas, cujo peso documental se deve aos efeitos exemplificadores das acções de uma comunidade
de religiosas e/ou religiosos, mesmo quando se trate de um sistema misto
de vida comunitária e individual.5
No seio da vida religiosa comunitária apareceram novas fundações,
com diferenças claras em relação à vida monástica anterior. Mais do que
de um movimento religioso feminino, tratava-se de formas novas de vida
religiosa. Estas formas novas aparecem na cidade, ou perto dela,, uma vez
que a “polis” “representa de modo figurativo o modelo da sociedade global aplicável à compreensão de qualquer realidade política”.6 Estas
comunidades tinham entre si características comuns uma vez que respondiam com um testemunho evangélico requerido pela nova sociedade. É
aqui que os termos políticos definem a intenção de cada grupo religioso.
Esses termos são sanctimoniales, sorores, ancillae, etc.
As monjas ou sanctimoniales
Sanctimoniales são as monjas por excelência, uma vez que personificam a vida sancta. Vivem em comunidades onde geralmente se professa a
Regra beneditina e reconhecem a autoridade de uma abadessa com responsabilidade e meios para a exercer no âmbito duma estabilidade colectiva. As relações entre as sanctimoniales e a abadessa reforçam-se e convertem-se em perpétuas, quando, desde os meados do século XI, se tornou
obrigatório o mandato desta para ser transladada a outros mosteiros.
—————
5
D. MARIÑO, “Las religiosas en las comunidades...”, 128.
6
J. OLIVES PUIG, Contra la ciudade cautiva. Ensayos de teoría sociopolítica
fundamental, Barcelona 2004, Pro manuscrito, 5.
30
No século XIII, a vida monástica não atravessava o seu melhor
momento. Estratificada segundo o modelo feudal, apegou-se aos costumes que não eram bem aceites pela nova mentalidade da cidade. Como o
nosso objectivo não é analisar a vida monástica, assinalamos somente
dois aspectos. A diferença de classes, que fechava as portas a gente da
classe baixa; e sobretudo toda a sua estrutura vertical que concentrava o
poder numa abadessa que, com frequência, tinha tanta autoridade como
um bispo.
“À medida que o regime feudal transformou as abadias em autênticos
senhorios, as abadessas foram investidas com grandes poderes: chegaram
a ser verdadeiros dignitários eclesiásticos exercendo de pleno direito e
conferindo cargos, nomeando curas, reunindo sínodos e até podiam julgar
clérigos, por mediação do seu oficial (juiz eclesiástico)”7. Sob o grande
poder e prestígio duma abadessa, eram visíveis as mesmas diferenças da
sociedade. Só a mulher de família nobre podia ser monja. As da classe do
povo não podiam aspirar a sair de sua condição. O mais que conseguiam
era ingressar como servas. À volta do mosteiro trabalhavam os servos.
As irmãs ou sorores
Para designar as mulheres religiosas fora da vida monástica, usavam-se vários apelativos: religiosae, ancilla, Christi ancilla, serva Dei, Deo
vota, famulae Dei, que usadas no plural têm o sentido semelhante a sorores8.
É de notar que na breve Forma de Vida que São Francisco deu a
Clara e a suas irmãs quando lhe prestaram obediência e que depois a
Dama Pobre incluiu na sua Regra, usa o termo em uso Ancilla: “filias et
ancillas altissimi, summi Regis Patris caelestis”.
“As religiosas sorores, vírgines, puellae, ancillae... integram collegia
que é uma estrutura comunitária e horizontal que une a todas e a cada
uma, de tal forma que os seus mosteiros desaparecem quando há abandono ou se trasladam a outro lugar, não por falta de bens que se liquidam,
se dividem ou transferem a outras comunidades... Desde o princípio deste
—————
7
M. PIETTRE, La condición femenina… 192-193.
8
D. MARIÑO, “Las religiosas en las comunidades”, 125.
31
período, as sorores transmitem a ideia de comunidade, cuja harmonia
emana das qualidades das pessoas que as compõem. Mantêm-se a tutela,
como função do grupo de sorores tutoras encarregadas de distribuir os
bens recebidos. Como acontece com cada religiosa, os mosteiros regem-se por um padre espiritual e temporal, um abade, um presbítero abade,
que aos poucos se vai ocupar mais de provê-las e administrá-las..., em
conjunto com a superiora ou abadessa com as qualidades necessárias para
actuar em conjunto com as associadas, mas impondo ao longo do século
XI o dever institucionalizado da obediência, de acordo com a sua vida
santa e as suas regulae” .9
Recolhemos uma síntese de dados, para nós altamente significativos,
que caracterizam as sorores nas suas formas novas de vida religiosa:
- Uma relação colegial, numa união horizontal, onde é importante o
consenso na hora das decisões;
- Uma harmonia fundamentada na virtude e qualidade espiritual das
pessoas;
- Sob a tutoria de uma madre, ou domna, que posteriormente
receberia o título de abadessa;
- Tutoria exterior de um guia ou padre espiritual;
- Desde o século XI, profissão de uma Regula de santidade.
2- SORORES POBRES
Nos alvores do século XIII encontramo-nos perante dois termos políticos que definem duas formas de vida religiosa nascidas com dois séculos de diferença. A inspiração fundamental é sempre o seguimento de
Jesus Cristo. Não obstante, cada uma responde com a forma profética
adequada à sensibilidade cristã do seu momento histórico. Esses termos
são: Sanctimoniales ou moniales, relativos à vida monástica propriamente
dita; e sorores, próprio duma forma de governo colegial.
Uma vez estabelecidos estes princípios e pondo de parte outros documentos que não saíram da sua pena, passamos ao texto da Forma de Vida
ou Regra de Santa Clara10, único documento propriamente jurídico entre
—————
9
D. MARIÑO, “Las religiosas en las comunidades”, 128.
10
Seguimos o texto latino dos Escritos de Santa Clara y documentos
complementarios, de Fr. I. Omaecheverría, Madrid 1982, 2ª ed., BAC, 202 ss.
32
os seus escritos. Observamos que não usa os termos sanctimoniales, nem
moniales. Usa sempre, 62 vezes, a palavra sorores11.
É com este apelativo que se refere a suas companheiras, aquelas que
seguindo a divina inspiração se juntaram à fundação do mosteiro de São
Damião e a todas as irmãs pobres que no futuro seguiriam a sua forma de
vida.
Uma definição a partir da Cúria romana
A bula Solet annuere, resposta do papa Inocêncio IV de 9 de Agosto
de 1253 à petição que Clara enviou e que precede a regra aprovada no ano
anterior. As destinatárias são “Clarae abbatissae, aliisque sororibus
monasterii Sancti Damiani Assisinatis.”
Duas observações importantes: Primeiro, o uso do termo chave sorores, em contraposição a moniales define uma comunidade de irmãs que se
relacionam de forma colegial. Segundo, a diferença entre o “mosteiro de
S. Damião”, fundado por Clara sob a obediência de São Francisco como
pai espiritual, e a “Ordem de S. Damião”, fundada pelo cardeal Hugolino,
como reunião de mosteiros aos quais se dava a regra beneditina e as chamadas Constituições Hugolinas, que, por certo, pouco tinham a ver com o
ideal de Clara.
A bula papal é seguida pela carta do cardeal Reinaldo. A saudação é
semelhante, ainda que com termos mais carinhosos: “carissimae sibi in
Christo matri et filiae dominae Clarae, abbatissae Sancti Damiani Assisinatis, eiusque sororibus, tam presentibus quam futuris, salutem et benedictionem paternam”.
Mais adiante menciona São Francisco em termos que levam a reconhecê-lo como tutor espiritual que foi na Fundação das Irmãs Pobres:
“beatus pater vester sanctus Franciscus”.
Desta maneira é patente como estes breves documentos aportam
dados de valor extraordinário. Reconhecem a forma de vida comunitária
que Clara instaurou como mulher profética, dando uma resposta evangé—————
11
Sorores, 31vezes; soror, 2; sorori, 3; sororum, 11; sororem, 3; soróribus, 12.
33
lica às necessidades do seu tempo, com formas apropriadas. Reconhecem
também a paternidade de uma pessoa, exterior à sororidade, no caso São
Francisco. Clara defendeu, a tempo e a destempo, esta paternidade e procurou garantir-lhe a estabilidade em relação às suas sucessoras e em relação aos sucessores de Francisco.
Por outra parte o cardeal, que a tratava com intimidade e que venerava Clara, chama-lhe Madre e domna, o mais própria para as sorores.
Mas também a trata por abadessa.
Forma de vida de Santa Clara
A Regra de Santa Clara começa com o nome oficial da família que se
juntou à volta da sua fundadora: Formae vitae Ordinis Sororum Pauperum...
Este começo define completamente a vontade de Clara acerca da
estrutura da Ordem por ela fundada. Era uma estrutura inovadora, comparada com as anteriores regras monásticas. O apelativo de madre, ao lado
do termo jurídico abadessa, introduz uma aspecto novo.
Além disso encontramos, no decurso da regra constatações e exortações de teor novo para o tempo:
Clara e suas irmãs prometem obediência ao fundador: “una cum
sororibus suis promisit...”. Prometeu, com suas irmãs, obediência ao pai
S. Francisco e a seus sucessores: “Et alias sorores”, obedeçam ao sucessor de Francisco; “Et sorori Clarae” e as demais abadessas suas sucessoras (RCl 1, 4; 6,1).
“Pro aliqua sororum in monialem consecrande”. É o único lugar em
que o termo sorores aparece ligado ao termo moniales. Segundo algumas
interpretações, a expressão monialem consecranda era um termo técnico
que era costume usar. Se seguirmos os textos parece evidente que Clara
quis uma comunidade de irmãs. A sua fundação é nova, tem umas características próprias e inconfundíveis, mas tem também aspectos comuns
com outras formas de vida do seu tempo, porque brota do mesmo espírito
renovador.
34
Também é claro que todas estão unidas por uma relação colegial,
horizontal, onde há participação e consenso. Não se mantém pelo prestígio do mosteiro nem da autoridade que o governa, o que conta é a qualidade espiritual das pessoas. Encontramos a tutoria, serviço humilde, amoroso e diligente de uma madre, ou domna, que recebeu contra a sua vontade o título de abadessa.
Fala da tutoria externa dum padre espiritual. É visível na Regra e
mais ainda no Testamento, onde se faz menção continuamente de quem
lhes deu a Forma de Vida e a quem prestaram obediência e que foi o
“guia, coluna, e único consolo depois de Deus”, o bem-aventurado Pai S.
Francisco.
Desde o século XI, era obrigatório professar uma Regula. O ideal do
seguimento de Cristo e a vida santa é dinâmico. Quando toma forma e
cristaliza numa vivência comunitária, encontra a sua expressão apropriada
numa Regula. Por sua vez, como essa regra é considerada como ajuda
para uma vida santa, garante-se a graça divina para quem a observa em
espírito e verdade. Isto é “verificável na estima em que é tida pela comunidade cristã, que associa a vida ascética à vida santa, e materializa o
santo naquilo que é visível: as religiosas e os religiosos de uma comunidade”.12
Durante algum tempo Clara recebeu a Regra beneditina, por imposição jurídica. Pela mesma razão as Constituições Hugolinas foram sendo
aceites pelos mosteiros fundados em vários lugares. Lemos no preâmbulo
dessas Constituições, entregadas, em 1228, às Damianitas de Pamplona:
“Entregamo-vos a Regra de S. Bento, na qual se reconhece por norma a
perfeição das virtudes e a máxima descrição, a qual foi recebida pelos
santos padres e aprovada pela Igreja romana, para que a observeis em
tudo aquilo que não prove estar contra a forma de vida que vos entregamos.”13 Foi uma formalidade jurídica durante alguns anos, até conseguir a
aprovação da regra de Clara.
—————
12
D. Mariño, “Las religiosas en las comunidades”, 130.
13
Escritos de Santa Clara y documentos complementarios. Preparados por Fr. I.
Omaecheverrería. Madrid 1982, 2ª ed., BAC, 216.
35
3- DEPOIS... “SORORES OU MONIALES”
A estrutura comunitária própria das sorores, foi-se diluindo pouco a
pouco a favor do fenómeno que se costuma denominar de monaquização.
Este desenvolvimento também foi influenciado pela situação política,
relacionada com a organização das cidades, que lentamente passaram de
um governo de consensos para uma oligarquia, uma forma de governo
onde o poder é exercido por um grupo reduzido de pessoas de determinada classe social. Tais pessoas governam quase sempre para defender os
seu próprios interesses.
Também se sentiu a influência da Igreja nas ordens mendicantes,
particularmente na forma de vida instituída por Clara de Assis, onde a
partir de 1263, dez anos depois da morte da santa, se abria uma segunda
via, com a Regra Urbaniana. As intervenções dos papas determinaram
mudanças sucessivas nos diversos nomes com que eram designadas: sorores pauperum; religio pauperum dominarum; pauperes moniales; Ordo
sancti Damiani; Ordo Sanctae Clarae. A intenção era clara: “Orientar as
diversas formas de vida feminina por uma normativa bem definida e fortemente influenciada pela tradição cisterciense: submeter os cenóbios
directamente à Igreja Romana; identificar o novo monaquismo com a
prática de uma estrita clausura, até então em vigor unicamente nos religiosos que se dedicavam à vida eremítica de reclusão. Tentou-se estender
esta regulamentação às numerosas comunidades religiosas femininas que
tinham nascido ou que se estavam a organizar à margem do monaquismo
tradicional.
Nas comunidades de sorores, apesar da influência do governo, nem
sempre de acordo com a vontade profética da fundadora, foram-se mantendo os valores tipicamente religiosos que unem as pessoas a Deus e
entre si. A imagem da bondade, da paz, da alegria, da pobreza e da unidade no amor, está associada à comunidade que a reflecte. Quando isto é
reconhecido e apreciado pela sociedade, tanto nos primeiros tempos como
agora, as pessoas aceitam e apoiam aqueles que espelham estas virtudes e
supostamente gozam o favor de Deus.
36
CONCLUSÃO
Entre as formas femininas de consagração a Deus no século XIII,
encontramos:
A vida monástica mais ou menos estratificada, de acordo com a
sociedade feudal; um conjunto de formas novas, ortodoxas e heterodoxas.
Para a sociedade, o elemento mais característico e novo das novas formas,
era a pobreza e a igualdade na vida comunitária. Por isso ao caracterizar a
Regra de Santa Clara e ao rectificar a sua força profética com a bula de
aprovação, o papa Inocêncio IV define-a como “Regra da altíssima
pobreza e de santa união”.
Ora bem, a base da vida de união em comunidade encontra-se no
preceito evangélico do amor vivido até às últimas consequências na
pobreza humildade. Já não conta nada a procedência nobre ou servil.
Cada irmã é recebida e apreciada como um dom: “O Senhor me deu
irmãs” para as amar e reverenciar e para lhes “lavar os pés”.
A forma de vida evangélica, constantemente renovada pela contemplação amorosa transformante “segundo o Espírito do Senhor e sua santa
operação”, identifica-se com a missão da Igreja. Por isso Santa Clara fala
no seu Testamento da aspiração mais importante, da sua missão na Igreja
que é ser “exemplo e espelho”. Espelho do amor evangélico tornado realidade na “sororidade”, através duma convivência pacífica e igualitária,
sem esquecer o trabalho e a pobreza. Um espaço evangélico edificado na
reconciliação, onde cada uma possa dizer o que sente e o que pensa, onde
cada uma tem voz e voto, rosto e sorriso.
Hoje em dia os termos democracia, colegialidade, consenso, etc.,
fazem parte do vocabulário comum. Apesar deste ideal, cresce a erva
daninha do divórcio nas suas mais diversas edições: a rejeição daquele
que é diferente, a exclusão do que não serve os próprios interesses, dos
que estão entorpecidos pelos anos ainda que levem consigo muita virtude
e sabedoria...
Hoje, a voz profética de Clara tem capacidade para nos inspirar as
formas reclamadas pela sociedade com cada vez mais veemência. Não se
nos pede o impossível, trata-se só de viver o evangelho.
37
Também hoje as filhas de Clara têm de “sair do século”. Sair da
mentalidade do mundo, edificado sobre o pecado do desamor. Sair dessa
mentalidade individualista e subjectivista tão inclinada à exclusão
daquela que pensa diferente, que põe de lado quem não concorda comigo
ou me desilude, que rejeita quem é diferente, e exclui quem se opõe a
ambições mal disfarçadas. Sair da cadeia imparável do consumo de coisas, de notícias, de ideias... sair pela iluminação do coração na busca da
mentalidade evangélica e na busca incessante do espírito das bem-aventuranças.
Só assim, espelhando a sororidade do primado de Deus, a dita da
altíssima pobreza, a fruição da santa unidade, podemos tornar visível a
glória do Pai que está nos céus e os frutos da paz, gozo, reconciliação,
doçura..., em suma, Todo o Bem.
Traduziu fr. José António Correia Pereira
38
NO 5º CENTENÁRIO DE
S. PEDRO DE ALCÂNTARA
(1499-1999)*
Por Fr. Henrique Pinto Rema
39
NO 5º CENTENÁRIO DE S. PEDRO DE ALCÂNTARA
(1499-1999)*
Estamos no extinto Convento de São Pedro de Alcântara. O convento
pertencera à Província da Arrábida. Deram-lhe como padroeiro do céu
São Pedro de Alcântara, proclamado Santo pela Igreja em 1679. O
“grande Marquês de Marialva, D. António Luís de Meneses, desejando
que a cidade de Lisboa tivesse mais presentes os exemplos da santa vida
de tão bons religiosos [os franciscanos arrábidos], quis que eles tivessem
um convento dentro da sua povoação, do que ele se fez padroeiro,
fazendo-lhe dar lugar em um sítio pouco distante da Casa de São Roque,
da Companhia de Jesus, em uma nobre morada de casas que tinham sido
de Marcos Rodrigues Tinoco, secretário que foi da Mesa da Consciência e
Ordens, o qual, por sua muita piedade para fundarem o dito convento lhe
deixou as suas casas, das quais tomaram posse os religiosos no ano de
1672, e no ano de 1681 se lançou a primeira pedra para a igreja, para a
qual se mudou o Senhor em 18 de Abril de 1685. E deste dia se conta a
antiguidade do mosteiro”1.
—————
*Esreveu H. Pinto Rema, OFM, para dizer em reunião da Fraternidade de Jesus,
que decorrerá na tarde de 28 de Fevereiro 1999, domingo, no Instituto São Pedro de
Alcântara, ao Largo de São Pedro de Alcântara, em Lisboa.
1
Historia dos Mosteiros - Conventos e Casas Religiosas de Lisboa, II, Câmara
Municipal de Lisboa, 1972, pp. 162-163. Cf. Convento de S. Pedro de Alcântara, ed. S.
Casa da Misericórdia de Lisboa, 1997, de 42 pp; Cf. Manuel Pereira Gonçalves, O
Franciscanismo em Portugal, Actas, Fundação Oriente, 1996, pp. 318-330, citando do
mesmo um artigo em “Paz e Alegria”, nº 9, 1987, 18ss, onde há outros informações,
como, por exemplo, a de que os frades arrábidos ali teriam entrado no dia 12 de Agosto
de 1680...
40
Foi sempre um convento muito povoado. Podia acolher 50 frades. Na
hora da sua supressão, a 31 de Dezembro de 1833, já com destino marcado: Recolhimento de Órfãs da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa,
contava nada menos de 26 frades, sendo então guardião Fr. António da
Soledade. Como as Ordens Religiosas apenas seriam suprimidas por
decreto de 28 de Maio do ano seguinte, os seus moradores foram distribuídos por outros conventos: oito, para o convento de Ribamar; meia
dúzia, para o Convento da Boa Viagem, ambos na área de Algés; dois
para o Convento de Santo António dos Capuchos da Caparica; outros
dois, para o Convento de Palhais (Barreiro); quatro para o Convento de
Alferrara (Setúbal) e um para o da Arrábida; dois não se apresentaram;
um apresentou-se e assinou, mas não se integrou em qualquer convento.
Os arrábidos também se dedicavam às letras, em ordem ao apostolado. Reparamos que no dia 8 de Janeiro de 1834 foram retirados de 25
estantes nada menos de 6024 livros e entregues à Biblioteca Pública de
Lisboa. Uma biblioteca muito razoável para a época e para um convento
arrábido.
Desde 1 de Outubro de 1943 que este Instituto dispõe de Irmãs da
Congregação da Apresentação de Maria como educadoras. As educandas
rondam hoje as sete dezenas.
O PADROEIRO
São Pedro de Alcântara nasceu na vizinha Espanha no ano de 1499 e
morreu a 18 de Outubro de 1562 no convento de Arenas de São Pedro
(Estremadura Espanhola), que lhe guarda os restos mortais.
São Pedro de Alcântara, de enorme austeridade, director espiritual de
Santa Teresa, depois de ter sido Provincial da Província de São Gabriel na
Espanha, a pedido de D. João de Lencastre, Duque de Aveiro, veio para
Portugal, acompanhando, de 1542 a 1544, o Fr. Martinho de Santa Maria
(de Benavides, falecido a 1546), que na Arrábida vivia uma reforma austeríssima iniciada por ele em 29 de Setembro 1539. Recorde-se que fora o
mesmo Duque de Aveiro quem oferecera ao Ministro Geral Fr. Vicente
Lunel a sua Serra da Arrábida, que a aceitou e entregou a Fr. Martinho de
Santa Maria.
Provavelmente já depois do Capítulo Provincial de Outubro de 1541,
o mesmo Duque de Aveiro escreve a Fr. Pedro de Alcântara certamente a
41
pedir reforço de moradores para a Arrábida. Como estava livre da responsabilidade da Província de São Gabriel, pediu e obteve licença para ir ter
com Fr. Martinho à Arrábida, aonde terá chegado pelos fins de 1541 ou
começo de 1542, acompanhado por Fr. João de Águila e de Fr. Francisco
de Pedrahita.
No convento da Arrábida e nos conventos que se foram fundando,
seguiam os Estatutos que em 1540 Pedro de Alcântara impusera à Província de São Gabriel.
O novo Ministro Geral Fr. João Calvo, visitou a Arrábida em Maio
de 1542. Em face das ideias e dos ideais de São Pedro de Alcântara, Fr. João
Calvo criou a Custódia da Arrábida, sediada no Convento de Santa
Maria. Deu-lhes licença de admitir noviços e fundar três ou quatro novos
conventos ou eremitérios. Assim é que fundaram logo o convento de
Palhais, em terras do Conde da Vidigueira, tendo sido seu primeiro guardião e mestre de noviços Fr. Pedro de Alcântara. Entre Salvaterra e Benavente, no lugar de Jenicó, em terrenos do Infante D. Luís, implantaram o
terceiro convento, dando-lhe como guardião Fr. Francisco de Pedrahita.
No dia 22 de Fevereiro de 1543, Fr. Pedro de Alcântara acha-se em
Azeitão, onde assina o livro do B. Amadeu da Silva, Comentario al Apocalipse”2.
A presença de São Pedro de Alcântara em Portugal é decisiva para a
implantação do movimento de reforma franciscana que encabeçava.
Embora não quisesse integrar-se na nova Custódia, que seria elevada a
Província em 1560, a sua inspiração apalpa-se nos primeiros Estatutos. A
sua experiência de governo e a sua acção decidida na reforma franciscana
garantiam a passagem da letra à prática. A vinda do Ministro Geral à
Arrábida é uma demonstração do seu prestígio e da sua fortaleza de
ânimo. O ideal primitivo de Fr. Martinho de Santa Maria, mais vocacionado para a vida eremítica, toma nova dimensão com as iniciativas de Fr.
Pedro de Alcântara, que não teme recorrer ao Duque de Aveiro e ao
Infante D. Luís.
—————
2
Cf. Rafael Sanz Valdivieso, San Pedro de Alcántara y la Provincia de la
Arrábida, em “I-II Seminário ‘O Franciscanismo em Portuhgal’, Actas”, Fundação
Oriente (Lisboa), 1996, p. 230. O Autor deste trabalho (pp. 225-257) coloca em grande
relevo as relações de São Pedro de Alcântara com Portugal, incluindo transcrição de
cartas suas e a ele endereçadas.
42
Com o Ministro Geral Fr. João Calvo esteve na Arrábida Fr. André
da Ínsua, eleito em finais do ano de 1543 Ministro Provincial dos Algarves. Embora partidário da reforma observante, era adversário da reforma
descalça ou capucha. A Custódia tinha a sua autonomia, e a presença de
São Pedro de Alcântara era um travão. Quando este retornou à sua Província de São Gabriel e o elegeram Definidor no capítulo Provincial de
Outubro de 1544, Fr. André da Ínsua ficou mais livre para intervir, até
porque em 1545 houve o capítulo da Custódia, a que presidiu. Nomeou
então Fr. André Varela para novo Custódio, na esperança de submeter os
frades da Arrábida à recolecção dos Algarves e de abolir os Estatutos da
Custódia.
Passados seis meses de governo, Fr. André Varela renuncia ao cargo
de Custódio e para o seu lugar é nomeado o Fr. Luís Faleiro. Pressionado
pelo infante D. Luís, pelo Duque de Aveiro D. João de Lencastre e, porventura, pelo próprio Fr. Pedro de Alcântara, o terceiro Custódio da Arrábida não executa uma patente do Ministro Geral, obtida por Fr. André da
Ínsua, que ia no sentido da sua fusão na Província dos Algarves. Em
causa estava também a forma dos hábitos, com grande variedade de
remendos.
Em Agosto de 1546 morre o fundador da Arrábida, Fr. Martinho de
Santa Maria.
Fr. André da Ínsua é eleito Ministro Geral a 28 de Maio de 1547, o
que parecia reforçar as tentativas contrárias à Arrábida. Mas, de facto, não
passaram de tentativas. Fr. Pedro de Alcântara e Fr. João de Águila ficam
sem cargos, em 1548, no capítulo de eleições da Província de São
Gabriel. Na Arrábida há Capítulo no ano seguinte, e é decisiva a intervenção de Fr. Pedro de Alcântara, segundo consta de cartas do tempo e do
próprio texto da Crónica da Província da Arrábida, da autoria de Fr.
António da Piedade.
Uma destas cartas é do jesuíta Padre Francisco de Borja (São Francisco de Borja) para o franciscano Fr. Pedro de Alcântara (São Pedro de
Alcântara), redigida em Gandía a 13 de Fevereiro de 1549. Nela fala de
reforço de religiosos para a Arrábida. Pedro de Alcântara estaria de novo
em Portugal. Fr. André da Ínsua convoca capítulo dos arrábidos para o
convento de Salvaterra. Nele sai eleito Custódio Fr. Luís Delna, da Província da Catalunha. Fr. João de Águila é eleito guardião do convento de
Palhais, onde morava Fr. Pedro de Alcântara. Este desloca-se a Lisboa
com frequência a pedido das Infantas D. Isabel e D. Maria, das quais é
43
confessor ou director espiritual. Parece que o nosso Santo regressou à sua
Província para o Capítulo de Março de 1551 e, pela terceira vez, é eleito
Definidor.
Em carta à infanta D. Isabel (viúva do infante D. Duarte), talvez de
Novembro de 1551, Fr. Pedro de Alcântara fala assim da Custódia da
Arrábida: “Tenho-lhe singular amor, porque sei o que nela há e porque
tenho certamente mais amor às coisas de Portugal do que às de Castela,
pela grande cristandade dos Príncipes desses Reinos. [...] Isso senti e sinto
sempre, e digo-o em qualquer parte em que me acho”.
As diligências do infante D. Luís e São Pedro de Alcântara em Roma
resultaram no breve pontifício Dum quo ad quid iustum, de 28 de
Novembro de 1551, que derrogava o obtido por Fr. André da Ínsua. Este
breve vinha confirmar os Estatutos primitivos da Custódia. Desta forma, a
Custódia da Arrábida prosseguia o seu caminho.
Entretanto, Fr. João de Águila incorpora-se definitivamente na Arrábida e é eleito Custódio no capítulo posterior ao Pentecostes de 1553. Na
época já havia seis conventos: Arrábida, Salvaterra e Palhais, mais os
novos da Caparica, Ribamar e Santarém (este edificado a expensas do
Conde de Vimioso, ligado a São Pedro de Alcântara, conforme se deduz
de duas cartas do punho do próprio santo).
Da Província de São Gabriel surgiu, em 1553, a Custódia de São
José, em que entrou São Pedro de Alcântara. Seria erigida em Província
passados seis anos, em 1559, sob a dependência do Geral dos Conventuais.
Fr. Pedro de Alcântara ansiava por viver na soledade. Mas os
superiores não lho permitiram. Em 1557, o Mestre Geral dos Conventuais
nomeou-o Comissário Geral dos conventuais reformados. Foi assim que
fundou o eremitério de Pedroso/Palancar, dando-lhe Estatutos de grande
perfeição: proibição de toda a espécie de síndicos; exigência de as casas
continuarem na posse dos fundadores (e não da Santa Sé), aos quais todos
os anos entregariam as chaves e só continuariam a habitá-las com o seu
consentimento; o máximo de pequenez das igrejas, casas e celas; andarem
descalços, sem sandálias; permissão de carnes e laticínios só aos enfermos; permissão de os superiores remendarem os hábitos com panos de
várias cores; proibição de bibliotecas, mas concedendo a cada religioso os
livros indispensáveis3.
—————
3
Cf. Lázaro Iriarte, Historia Franciscana, Valencia, 1979, p. 213.
44
O nosso Santo foi o confessor e director espiritual do infante D. Luís
(falecido a 27 de Novembro de 1555), da infanta D. Maria (filha do nosso
rei D. Manuel) e de D. Isabel (filha do duque de Bragança e esposa do
infante D. Duarte, filho de D. Manuel). Apesar de tudo, não terá voltado a
Portugal depois de 1556 ou 1557. Mas tinha em Portugal o meio irmão
Pedro Barrantes Maldonado, a quem introduzira junto de pessoas da
corte, o qual o informava do andamento das coisas em Portugal. Uma
carta do P. Francisco de Borja, santo jesuíta e um dos padroeiros de Portugal, com a data de 22 de Agosto de 1557, refere-se ao cuidado do nosso
São Pedro de Alcântara pelas coisas de Portugal e espera, no regresso de
Portugal, parar no seu conventinho de Palancar.
Certamente, a elevação da Custódia da Arrábida a Província, por
breve de 10 de Maio de 1560, executado a 22 de Dezembro imediato,
muito terá alegrado a alma do iniciador do movimento reformista franciscano que ficou na Espanha com o nome de reforma alcantarina.
ESPIRITUALIDADE DE SÃO PEDRO DE ALCÂNTARA
São Francisco, por insistência da Santa Sé, escreveu uma Regra
muito breve, mais inspiracional do que normativa. Foi aprovada, na forma
definitiva, a 29 de Novembro de 1223. Por isso, é susceptível das mais
diversas interpretações, que se foram fazendo em declarações pontifícias,
a primeira das quais logo em 30 de Setembro de 1230, pela bula Quo
elongati, de Gregório IX (em que teve alguma interferência o nosso Santo
António de Lisboa).
As interpretações vivenciais da Regra franciscana provieram dos
chamados Espirituais ou “Fraticeli”, reprimidos com certa violência por
São Boaventura (no terceiro quartel do séc. XIII) e excomungados pelo
Papa João XXII (no primeiro quartel do século XIV).
No entanto, foi das cinzas do movimento dos Espirituais que surgiu,
no final do séc. XIV e ao longo de todo o séc. XV e entrando pelo século
XVI, a Observância. A tendência para a vida eremítica – esta com regulamento já dado pelo Fundador – acentuou-se com a reforma “villacreciana”, de Fr. Pedro de Villacreces (+ 1422), que, depois de ter levado
muitos anos de vida eremítica, obteve bula do Papa para formar comuni45
dade de estreita observância em Santa Maria de Salceda (Segóvia).
Outros conventos se lhe seguiram e com frades que entraram na história
da espiritualidade, incluindo São Pedro Regalado (+ 1456). Mantiveram-se sempre sob a dependência do Provincial, não obstante as pressões dos
observantes para os integrar.
A reforma de Fr. João de la Puebla (+ 1495) e de Fr. João de Guadalupe (1440 - +1506) retomou a tendência eremítica, na qual se inclui o
Convento de Nossa Senhora da Piedade de Vila Viçosa, que dará origem
à Província da Piedade, criada em 1517. Com o convento da Piedade de
Vila Viçosa, fundado em 1500 por Fr. João de Guadalupe, introduz-se em
Portugal a chamada reforma capucha.
Com os eremitérios que se foram fundando na Província dos Anjos,
em Espanha, formaram-se as Custódias do Santo Evangelho e de São
Gabriel. Nesta entrou em 1515 São Pedro de Alcântara. Em 1519 subiria
a Província. Descalços (por não usarem sandálias), guadalupenses (por Fr.
João de Guadalupe ser notável inspirador), alcantarinos (por São Pedro de
Alcântara ser uma referência), capuchos (por causa da forma do hábito),
arrábidos (por ter surgido na serra da Arrábida uma Província) são outras
tantas designações da reforma franciscana em que andou envolvido o
nosso herói São Pedro de Alcântara.
Todas estas reformas possuíam as suas “Ordenações” ou “Estatutos”,
que regulavam a vida no concreto, a partir dos seguintes pressupostos:
observância da Regra à letra e sem glossa, sem aquelas explicações e
adaptações feitas pelos Papas; não aceitação dos Estatutos de Barcelona
(pela primeira vez redigidos e aprovados num Capítulo celebrado em
Barcelona em 1451 e adaptados e revistos em capítulos sucessivos, destinados à Família Ultramontana (para além dos montes Alpes), onde se
encontravam as tais dispensas pontifícias.
A única explicação da Regra era o Testamento de São Francisco, que
foi objecto de contestação logo no Capítulo Geral de 1230, em que participou Santo António de Lisboa.
As Constituições ou Estatutos da reforma dos arrábidos tiveram a sua
origem nos citados Fr. João de la Puebla, Fr. João de Guadalupe e São
Pedro de Alcântara. Acento especial é posto na pobreza extrema, na
forma do hábito, na pregação do Evangelho (ao ponto de lhes chamarem
frades do santo Evangelho), na máxima austeridade e rigor penitencial, na
prática longa e metódica da oração em particular e em comum. Neste
sentido é de recordar o Tratado da Oração e Meditação, redigido por São
46
Pedro de Alcântara e destinado especialmente àqueles que não têm muito
tempo nem muitos recursos, para que aproveite a todos os que buscam o
Senhor. Curiosamente, a primeira edição conhecida é de Lisboa, sem
data.
São Francisco de Assis viveu e ensinou uma espiritualidade sustentada nos três pilares: “ascese da pobreza penitente na forma e letra como
a pormenorizou na Regra e exemplificou no comentário dela que foi a sua
vida; a oração e devoção a que tudo o mais havia de servir, como espontaneamente ele a praticou e São Boaventura depois teorizou ou cientificamente estruturou em seus tratados de vida espiritual; e a caridade no
seu modo divino que é ajudar os homens, fiéis e infiéis, a amar a Deus, ou
seja, o apostolado missionário e conquista dos homens todos à plenitude
da luz e graça redentora”4.
A espiritualidade da reforma capucha segue nesta linha. O frade
capucho crucificava o homem velho com os trabalhos da ascese. “Tinha
de viver pobre como os que não têm nada; andar descalço, com os pés nus
pelo chão; vestir apenas um hábito de burel grosseiro usado pelos mais
pobres, estreito, curto, remendado; poisar em casas tão pobres como os
tugúrios dos pobrezinhos; dormir em tarimba sobre cortiça ou tábuas, e só
por curtas horas; comer de esmola como os pobres e jejuar mais de
metade do ano; longos retiros, e depois pelos caminhos sempre a pé e à
intempérie nas andanças do apostolado. [...] De noite e de dia as horas do
Ofício coral, recitado com pausa e meditado cada verso, ou cantado na
forma pobre do cantochão e baixo”5.
CONCLUSÃO
Quem olha para a figura escalavrada de São Pedro de Alcântara,
como aparece na iconografia, e percorre alguma literatura relativa à espiritualidade alcantarina, capucha ou arrábida, pode colher uma ideia distorcida da figura do homem e santo que deu nome a este extinto convento
e ao Instituto que hoje é, bem como ao Largo que lhe fica defronte. Não
se ignore, porém, que nasceu numa família distinta; como sacerdote e
—————
4
F. Félix Lopes, OFM, Colectânea de Estudos de História e Literatura, II, Lisboa,
1998, p. 243.
5
F. F. Lopes, Ibidem, p. 246s.
47
franciscano mostra ser não um bisonho intratável, mas um homem austero
de princípios muito firmes, inspirador de respeito e confiança, do melhor
trato humano e social. Estimavam-lhe o convívio os grandes da nobreza e
da Igreja. Os confrades elegeram-no para os mais altos cargos da Família,
como Guardião, Definidor, Custódio e Provincial. Não é um qualquer que
sobe tão alto. Para tal, é preciso reunir um conjunto de qualidades, onde
impera uma visão larga dos homens e dos acontecimentos, apreciável
bom senso e equilíbrio. Pedro de Alcântara, além duma santidade palpável, era adornado de predicados de inteligência e de governo de homens
que, passados cinco séculos após o seu nascimento, ainda se impõem à
nossa consideração.
48
O CONCEITO DE LIBERDADE
NA VISÃO TEOLÓGICA DA HISTÓRIA
DO FRANCISCANO PEDRO JOÃO OLIVI
(1248-1298).
por Joahnnes Baptist Freyer ofm1
—————
1
Publicado em Wissenschaft und Weisheit, 2002, nº 65/2.
49
O CONCEITO DE LIBERDADE NA VISÃO TEOLÓGICA
DA HISTÓRIA DO FRANCISCANO PEDRO JOÃO OLIVI
(1248-1298).
1- INTRODUÇÃO
O início do novo milénio despertou em muitas pessoas uma certa
consciência pela evolução da história. História não tem aqui o sentido de
ciência que investiga os factos históricos do passado, mas o decorrer do
tempo, dos anos e dos séculos e a experiência humana do passado, do presente e do futuro que lhe está inerente. A passagem dos anos e sobretudo
dos milénios, proporciona a experiência humana do futuro nunca atingível. Ao mesmo tempo que experimentamos o gozo da espera, adensam-se,
nestes tempos de transição da história, os medos ancestrais da humanidade. Para exorcizar esses imponderáveis encontraram-se ritos e celebrações como as que aconteceram por todo lado na passagem do segundo
milénio. Outra possibilidade de ultrapassar estes medos ancestrais, consiste em elaborar uma teoria, uma visão que explique os horizontes limitados do homem, com as suas expectativas e medos.
Assim chegamos a uma visão da história que ajuda os homens a
esclarecer a sua evolução, a compreendê-la e a encontrar-lhe um sentido
que lhe dê a possibilidade de assimilar o seu passado, de vencer o presente e de encarar o futuro. Assim, desde os tempos mais remotos, apareceram teorias para compreender a história e os milénios, teorias essas
muito ligadas a vivências religiosas. Estas teorias pretendiam tornar mais
compreensível a evolução do tempo, confrontando o mundo e o homem
com a eternidade de Deus.
50
2- VISÕES MILENÁRIAS
Para esclarecer o tema proposto, vamos, de forma muito resumida,
recordar algumas visões milenaristas oriundas de contextos cristãos.
Uma das visões mais conseguidas é a de AGOSTINHO2: fundado numa
teologia pneumática e cristológica, Agostinho desenvolve uma grandiosa
visão na qual a história está marcada pela ultrapassagem do mal. Divide a
evolução da história em várias épocas: de Adão a Noé; de Abraão até
David; o tempo da escravidão em Babilónia; o tempo de Cristo e o fim do
mundo.
RUPERT VON DEUTZ3, fundado na teologia da Trindade, dá à história
um sentido trinitário. O Pai está em relação com a criação, o Filho com a
história da redenção e a história da salvação acontece sob a orientação do
Espírito, que actua no tempo. No entanto para Rupert a história da salvação, estando sob a influência do Espírito, é uma época iniciada por Cristo.
Assim estamos perante uma visão trinitária da história, que abarca a criação, a redenção e a salvação, onde o tempo que vai de Cristo até ao último
juízo é a época do Espírito Santo.
ONORIUS VON AUTUN4, ao contrário, vê a história como um progresso
linear. Nesta visão progressiva da história perde-se a dimensão escatológica. A encarnação não tem aqui nenhum significado especial para o
desenrolar da história.
ANSELM VON HAVELBERG5 regressa ao sentido escatológico da história. Os sete selos do Apocalipse simbolizam, na sua visão, as sete épocas
—————
2
Para uma visão mais completa deste tema em Agostinho, cf.: STAKEMEIR, E.:
Civitas Dei – die Geschichtstheologie des hl. Augustinus als Apologie der Kirche,
Paderborn, 1955 ; WACHTEL, A. : Beiträge zur geschigtstheologie des Aurelius
Augustinus, Bonn, 1960, (Bonner historische Forschung, 17).
3
Para uma visão mais completa, cf.: KAHLE,W., Gescichte als Liturgie – die
Geschigtstheologie des Rupertus von Detz, Münster, 1960 (Aevum christianum, 3);
ARDUNI, M.L., Rupert von Deuz (1076-1129 und der “status Christianitatis” seiner Zeit
– symbolisch-prophetische Deutung der Geschichte, Colónia
1987 (Archiv für Kulturgeschichte, 25).
4
Cf., RATZINGER, J., Die Geschichtstheologie des Heiligen Bonaventura, ed.
facsimile, St. Ottilien, 1992, 103.
5
Ut supra, p. 104-106.
51
da história depois de Cristo e explicam o crescimento da Igreja no tempo
e na história.
Com JOAQUIM DE FIORE6 (1130-1202), chegamos a um pensador que
havia de ser importante para a tradição franciscana7. A sua teoria pode
designar-se também como visão trinitária da história.
Distingue a época do Pai, do Filho e do Espírito Santo e a cada pessoa divina corresponde uma época e um reino. O reino do Pai corresponde
ao Antigo Testamento que está sob a lei; os homens eram escravos. O
reino do Filho começa com o Novo Testamento e dura, segundo a sua
visão pessoal, até 1260. Esta é a época da graça; os homens são filhos e
filhas ao serviço de Deus. Joaquim de Fiore aguarda depois o terceiro
reino do Espírito que prepara o fim. Este tempo do Espírito8 trará a plenitude do conhecimento e da liberdade. Os homens serão verdadeiros amigos de Deus.
O terceiro reino, também designado como a época dos autênticos
monges espirituais, começou já com Bento de Núrcia. No tempo, Joaquim
de Fiore toma formas visíveis que no futuro hão-de chegar à plenitude
através dum grupo de monges carismáticos. Anuncia-se uma luta apocalíptica entre estes homens espirituais e uma Igreja mundana. Esta Igreja
do papa será substituída no fim por uma Igreja espiritual9. Através destes
homens espirituais realiza-se a plenitude do Evangelho e o mundo vai-se
preparando para a vinda definitiva de Cristo. Já não serão precisos os clérigos para mediar a relação com Deus, uma vez que os homens espirituais
terão um conhecimento perfeito e uma relação directa com Deus. Entre
estes homens “espirituais” surgirá um dux (chefe) que os há-de orientar.
—————
6
Cf., BLOOMFIELD, M. W., Joachim of Flore. A Critical Review of his Canon,
Sources, Biography and Influence, em Traditio 13 (1975) 249-311.
7
Cf., GARZÓN, F., Milenarismo joaquinista y su influencia en la naciente Orden
franciscana (até 1257), em Francis 116-117 (1997); STANISLAUS DA CAMPAGNOLA:
L’Angelo del sesto sigillo e l’alter Cristus. Genesi e svuiluppo di due temi francescani
nei secoli XII-XIV, Roma 1971; ROTZETTER, A., Eschatologie und Utopie im franziskanischen Denken. Die utopischen Vorstellung der resten Franziskanes, em FS 67 (1985)
107-113; REHO, C., Il messagio escatológico da Giorcchino da Fiore a Bonaventura da
Bagnaregio, em Antón 54 (1979) 681-700.
8
Cf., Benz, E., Creator Spiritus. Die Geschichte des Joachim von Fiore, em Eranos
Jahrbuch 25 (1956) 285-355.
9
Cf., BENZ, E., Ecclesia Spiritualis. Kirchenidee und Geschichtstheologie der
franziskanischen Reformation, Stuttgart, 1934, p. 4-18.
52
Na sua humildade e pobreza será o modelo do homem espiritual. Para
Fiore o fim da Igreja clerical acontecerá no início do século XIII. A verdadeira Igreja espiritual aparecerá por volta de 126010. Esta visão espalhou-se entre os franciscanos, talvez a partir de 1243. Um abade da fundação de Joaquim de Fiore refugiou-se em Pisa, sob a protecção de Frederico II, e foi recebido no convento franciscano da cidade. Levou consigo
os escritos de Fiore. Este acontecimento é descrito por Salimbene11, cronista franciscano, que teria sido testemunha ocular do sucedido.
Os primeiros franciscanos que aplicaram esta visão de Fiore à
espiritualidade franciscana, viviam, por esta altura, em Pisa: Rudolfo von
Sachen, Bartolomeu Guisculus, Gerardo de Borga S. Damiano12. S. Francisco, o fundador da Ordem13, será reconhecido como dux (chefe) e a sua
vida de humildade e pobreza como fundamento da Igreja espiritual, chamada a preparar a vinda definitiva de Cristo e os últimos tempos. Assim
Francisco inaugura uma nova época, na qual será substituída a velha e
mundana Igreja clerical por uma Igreja viva e espiritual, fundada no
Evangelho.
Esta visão, aqui resumidamente apresentada, foi aproveitada pelo
movimento espiritual e serviu-lhes de fundamentação teológica14. O
movimento dos espirituais dentro da Ordem franciscana, começou logo a
seguir à morte de S. Francisco. Na generalidade reivindicavam o regresso
às origens, defendiam uma leitura textual da Regra e a pobreza radical.
Também se designou movimento espiritual15 porque seguiam a doutrina
de Joaquim de Fiore, fazendo sua a ideia do milénio do Espírito. A
influência das destas teorias ultrapassou as fronteiras do movimento fran—————
10
Cf., GERWING, M., Vom Ende der Zeit. Der Traktat des Arnald von Villanova
über die Ankunft des Antichrist in der akademischen Auseinandersetzung zu Beginn des
14. Jahrhunderts, Münster 1996 (Beitrag zur Geschichte der Philosophie und Theologie
des Mittealters, Neue Folge 45), 351-362.
11
Cf. SALIMBENE DE ADAM DA PARMA, Cronaca, em: MGH Scriptores 32.
Hannoverae et Lipsiae 1905-1913, cf. o referente a Julho de 1248.
12
Cf. BENZ, Ecclesia Spiritualis, op. cit. p. 175-181.
13
Cf. Croco, A.., S. Francesco e Gioachino da Fiore
14
Cf. BENZ, E., Die Geschichtstheologie der Franziskanerspiritualen des 13. u.
14. Jahrhunderts nach neuen Quellen, em ZKG 52 (1933) 90-121.
15
Cf. sobre o movimento espiritual em geral BARONE, G., Da frate Elia agli
Spirituali, Milão 1999, 173-179.
53
ciscano16. Séculos mais tarde17 havia de influenciar a filosofia da história
de Hegel18 e Schelling19, voltando a aparecer na sua forma mais perversa
com Mussolini e Hitler que se entendiam como dux dum milénio ariano
que quiseram implantar, o reino da raça pura em vez dos homens possuídos pelo Espírito. Este exemplo mostra como é importante conhecer a
história, para desmascarar ideologias perigosas.
3- PEDRO JOÃO OLIVI
Pedro João Olivi20 nasceu em 1248, em Sérignan (Béziers), um
ambiente com forte presença dos cátaros e com um passado ligado às cruzadas contra os albigenses. Entrou com doze anos, por volta de 1260,no
convento franciscano de Béziers. Reconhecendo-lhe uma inteligência
superior, as autoridades da Ordem destinaram-no para os estudos, em
Paris. Interrompeu os estudos em Paris sem acabar o mestrado e regressou
à sua Província para ensinar nas escolas da Ordem em Montpellier e Narbona.
Durante o governo do Ministro Geral Jerónimo de Ascoli foi denunciado pela primeira vez, sendo obrigado, em 1278, a destruir alguns
escritos sobre mariologia. Em 1283, foi nomeada nova comissão para
analisar os seus escritos filosóficos e teológicos., sendo-lhe apontadas
algumas heresias. Nessa mesma altura é identificado com a doutrina dos
espirituais, sobretudo no referente à pobreza, mais concretamente ao usus
pauper (pobreza no uso das coisas). Depois do Capítulo Geral de Montpellier, em 1287, onde lhe foi concedida a oportunidade de se defender,
foi nomeado docente da escola da Ordem de Florença. Depois de 1289
volta a Montpellier. Faleceu a 14 de Março de 1298. A sua sepultura tor—————
16
Cf., LERNER, R.E., Refrigerio dei santi, Gioacchino da Fiore e l’escatologia
medievale, Roma, 1995.
17
Cf., entre outros REEVES, M., Joachim of Fiore and the Myth of the Eternal
Evangel in the nineteenth Century, Oxford 1987.
18
Cf., RIVERA DE VENTOSA, H., Tres Visiones de la historia: Joachin de Fiore,
San Bonaventura y Hegel. Estudio comparativo, em SBM Vol. I, 770-808.
19
Cf., LUBAC, H. de, La postérité spirituelle de Joachim de Flore. Vol. I. De Joachim à Schelling, Paris 1979.
20
Cf., sobre a pessoa, vida e obra, a visão da história e valoração, PIETRO DI
GIOVANNI OLIVI: Scritti scelti. Vian Paolo(editor), Roma 1989, 7-46; FLOOD, D., Petrus
Johannis Olivi. Ein neus Bilde des angebleichen Spiritualenführers, em WiWei 34
(1971) 130-141; GERWING, op. cit., p. 34, 51, 131.
54
nou-se centro de veneração depois da sua morte. Para acabar com esta
devoção, as autoridades eclesiásticas abriram a campa, cortaram o corpo
em pedaços e fizeram-no desaparecer21. Entre 1299 e 1309, sendo Ministro Geral João de Murrovale, foram novamente condenados os espirituais
e a doutrina de Olivi. No concílio de Viena, de 1312, foram condenadas
duas teses teológicas relacionadas com Olivi, sem que o seu nome fosse
citado: a doutrina sobre a pobreza radical e a ideia de que a alma não é a
forma do corpo22. Entre os anos 1318 e 1326, o Papa João XXII nomeou
uma comissão para analisar os comentários de Olivi ao Apocalipse, por
causa da semelhança com as ideias de Fiore.
Todo o pensamento teológico e filosófico de Olivi arranca dos textos
bíblicos23. Comentou quase todos os livros da Bíblia. A sua pessoa e a sua
doutrina estiveram sob suspeita durante a sua vida. Passou alguns anos
nas cadeias da Ordem e os seus escritos foram queimados. Mas nunca foi
provada uma heresia nos seus escritos.
4- VISÃO TEOLÓGICA DA HISTÓRIA EM OLIVI
Pedro João de Olivi parte duma compreensão progressiva e espiritual
da história24. A história evoluiu progressivamente até alcançar a maturidade espiritual. Vê a história como um crescimento interior em direcção a
uma forma de vida evangélica. Começa com um nível espiritual baixo e
primitivo. Cada nova época significa um crescimento cada vez mais profundo da fé, uma compreensão cada vez mais aprofundada do amor de
Deus e uma vida cristã cada vez mais coerente com o espírito do Evangelho. Assim a história se vai realizando como um progredir em direcção
—————
21
Cf. FLOOD, D., ut supra, p. 131
22
Cf., BURR, D., The Persecution of Peter Olivi, Philadelphia 1976; JANSEN, B.,
Die Seelenlehre Olivis und ihre Verurteilung auf dem Vienner Konzil, em Scholastik 10
(1935) p. 241-244; LECLERCQ, J., Orante, Paris 1064, p. 1o9-113; SCHNEIDER, T., Die
Einheit des Menschen. Die anthropologische formel ‘anima forma corporis’ im sogennanten Korrektorienstreit und bei Petrus Joahnnis Olivi. Ein Beitrag zur Vorgeschichte
des Konzils von Vienne, Münster 1973 (BGPhMA), Neue Folge 8).
23
Cf., FLOOD, D., The Theology of Peter John Olivi. A Search for a Theology and
Anthropologiy of the Synoptic Gospels; OSBORN, K. B. (editor), The History of
Francisca Theology, New York 1994, p. 127-184.
24
Cf. BENZ, Ecclesia... op. cit. p. 265-274; BENZ, Geschichtstheologie... op.cit. p.
92-99; STADLER, E., Offenbarung und Heilsgeschichte nach Petrus Olivi, em FS
44(1962) p. 1-12; MARCIL, G., Peter John Olivi and the Joachimistic Interpretation of
History, em MCELRATH, D. (editor), Franciscan Christology, New York 1980, 108-138.
55
a uma vida cristã em plenitude. Cada época é como uma semente escondida que prepara o nível espiritual da época seguinte25. Esta semente
desenvolve-se num processo espiritual orientado pela fé, em ordem a uma
época de plenitude. Assim de uma época mais baixa se vai desenvolvendo
um tempo espiritual mais concreto. Olivi usa a imagem da mulher que dá
à luz e que na dor gera vida nova26. Assim uma nova época nasce das
dores da época anterior. Cada ser humano pertence a uma época e é responsável pela semente que deve crescer e amadurecer em direcção à
época seguinte. É a responsabilidade humana que decide se no fim duma
época uma nova e mais madura época aparece ou se, pelo contrário,
acontece um retrocesso espiritual. No fim deste processo de amadurecimento histórico está uma humanidade verdadeiramente evangélica que
apresenta o mundo a Cristo na Sua segunda vinda. Segundo Olivi há um
milénio dos fins dos tempos, uma última e decisiva época. Nesse fim dos
tempos será decidida a luta entre o bem e o mal, entre a mensagem cristã
e o anticristo. Estes últimos tempos que serão de renascimento, dor, morte
e ressurreição, inaugurarão um tempo novo sobre a terra, com uma época
histórica totalmente nova. Este será um milénio verdadeiramente evangélico para todos os homens e povos. A justiça e a paz serão instituídas. A
pobreza evangélica como forma de vida solidária trará o fim das injustiças.
Encontramos aqui uma variante socio-política orientada pelo Evangelho. Os crentes vão unir-se numa Igreja universal do Espírito, tornando
real a palavra católica. O primado será subtraído à igreja feudal de
Roma27 e passará para homens plenamente espirituais28. Estes últimos
—————
25
Como exemplo de texto cf. os escritos de Olivi aos filhos de Carlos II de
Nápoles, de 18 de Maio de 1295, publicados em EHRLE, F., Petrus Johannis Olivi, sein
Leben und seine Schriften, em Archiv für Literatur und Kirchengeschichte des Mittelalters 3 (1887) p. 409-552, este texto n p. 534...: “Universitatis considerandi ordinem occurrit multiformiter nimiumque admirabiliter lex Christi ierarchica ab ipso sollemniter
promulgata videlicet: ‘Nisi granum sementi cadens in terra mortuum fuerit, ipsum solum
manet, si autem mortuum fuerit multiplicem fructum affert’. In hoc enim fundatus est
universalis unius est generatio alterius” etc…
26
Cf., ut supra p. 535: “Hac etiam lege mirifica Christ ecclesia fuit in utero synagoge concepta et cum parturitione amara erupit et exivit ab ipsa.”
27
Sobre a atitude de Olivi em relação ao papado, escreve WAREN, L., Peter Olivi
Prophet of the Year 2000. Ecclesiology and Eschatology in the lectura super Apocalipsam. Tübingen 1972 (manuscrito não publicado do Arquivo do Colégio de S.
Boaventura, Grottaferrata), p. 250; SCHLAGETER, J., Zur Genese der Unfehlbarkeitsdoktrin. Stellungnahmen zur päpstlichen Lehrautorität von Bonaventura bis Ockem, em
56
tempos serão iluminados por uma figura simbólica, o anjo apocalíptico do
sexto selo. Olivi vê em Francisco de Assis esta figura simbólica29. Francisco restaurou a imagem de Cristo neste mundo através da humildade e
da pobreza. Ele é o primeiro representante deste mundo novo formado por
homens espirituais. A sua pessoa e a sua regra são, para as formas de vida
espirituais do novo milénio, o modelo evangélico de vida. Os homens são
desafiados pelo exemplo de Francisco a abandonar o mal e a voltar-se
para Cristo. Desta maneira a semente dos últimos tempos vai amadurecer
até florir definitivamente. A visão histórica termina assim num desafio
teológico e ético. Trata-se dum ressurgimento decisivo para o novo milénio, que será totalmente penetrado pelos valores espirituais do Evangelho.
Esta ideia progressiva e espiritual da história é completada com uma
visão trinitária30. A história do mundo e da humanidade é interpretada à
luz da fé no Deus trinitário. A história como tal, e com ela o processo que
a conduz até aos últimos tempos, tem na imagem teológica da Trindade a
—————
VANDERHEYDEN, I. (editor), Bonaventura Studien zu seiner Wirkungsgeschichte, Werl,
1976 (franziskanische Forschung, 28, p. 113-135; Cf. SCHLAGETER, J., Die
Kirchenkritik des Petrus Johanis Olivi OFM und ihre ekklesiologische und soziale
Relevanz, em FS (1038) p. 19-34; SCHLAGETER, J., Im Konflikt mit der empirische
Kirche. Die Suche nach Kriterien von Kirche bei Petrus Johanes Olivi und Wilhelm von
Ockam, em FS 69 (1987) p. 88-105.
28
Cf. WAREN, L., Peter Olivi... ut supra, p. 246; Cf. sobre isto a edição ebd. de
PETER JOHN OLIVI, Lectura super Apocalipsam, cap. 21; p. 24 p. 981: “possunt etiam per
reges intelligi spiritualis prelati”.
29
Cf. WARREN, Peter John Olivi, op. cit p. 180-187; sobre isto cf. PETER JOHN
OLIVI, ut supra cap. 10: 1-3, p. 560. “Sciendum etiam quod sicut sanctissimus pater
noster Franciscus est post Christum et sub Christo primus et principalis fundator et initiator et exemplator sexti status et evangelice regule eius, sic ipse post Christum designatur primo angelum istum. » ; Cf. FREYER, J. B., Homo viator – Der mensch im Lichte
der Heilsgeschichte. Eine theologische Anthropologie aus franziskanischer Perpective,
Kevelaer 2001(Publicado pela Academia de João Duns Escoto para a história e a
espiritualidade franciscana, Mönchengladbach, 13, p. 254...
30
Cf. WARREN, Peter John Olivi, op. cit. p. 180-187; PETER JOHN OLIVI, op. cit.
cp.7, p. 47: “Et ideo congrue representatur per subsequens tempus renovationis orbis per
vitam Christi, in quo prior populus Judeorum, qui fuerat patris imago, et populus
gentium, qui, postquam Christum suscepit, iam fere totus a Christ integra fide defecit et
sub antichristo plenis deficet, restituentur et reviventur sub vitali et vivifico calore et
lumine vite Christi per unicum et unitivum spiritum eius et sui patris. Status vero eterne
glorie tribus temporis predictis succedens assimilatur unitati assentie trium personarum,
quia ibi erit ‘deus omnia in omnibus’, et omnia unum in ipso.”
57
chave de interpretação. Olivi, no seguimento de Fiore, fala dos tempos do
Pai, do Filho e do Espírito Santo. O Pai revelou-se de maneira especial no
Antigo e Novo Testamento através do poder criador e da lei. Deus Pai
representa algo como o elemento estático desta visão histórica. Ele é a
origem criadora da história que lhe proporciona ao longo do percurso a
sua lei e os seus mandamentos. As leis divinas possibilitam uma ordem
segura ao longo da evolução da história. O desenvolvimento progressivo
da história não decorre no caos. O crescimento e amadurecimento de épocas históricas cada vez mais espirituais tem a sua ordem interior, mesmo
quando em momentos específicos isso não seja tão claro. Esta ordem é
garantida, desde as origens, por Deus Pai.
No Filho, Deus salvou o mundo31. Cristo, o Filho, realiza esta salvação durante o processo histórico. Ele entregou-se a si mesmo nesta história. Na sua vida, morte e ressurreição o decorrer da história recebeu uma
nova qualidade. Ele virá nos últimos tempos para levar todo o mundo à
plenitude. O Filho revelou-se de forma visível no Novo ou Segundo Testamento. Enquanto o Pai representa mais o elemento estático, o princípio
da ordem no decorrer da história, revela-se no Filho o novo, o imprevisto
que a todos vivifica. Por isso o Filho está mais relacionado com o elemento vital, o qualitativamente novo do processo histórico. Com isto
Olivi não defende uma história evolutiva, mas uma história progressiva,
na qual Cristo traz uma nova e mais alta qualidade de vida. Podemos falar
aqui de um salto de qualidade espiritual que actua sobre a vida material
ao longo da história. Em Cristo, a ordem e a lei são ultrapassadas.
—————
31
Sobre os aspectos cristológicos, cf. MARCIL, Peter John Olivi, op. cit. p. 112 ss.;
WARREN, Peter John Olivi, op. cit. p. 146, 154 ss., 247 ss.; Cf. Per John Olivi, op. cit,
cp. 6, 40 ss.: “Quantum ad sextum, quare scilicet in qualibet quinque visionum priorum
premittitur quoddan quod se habet ad sequentia continens triformiter scilicet causaliter et
exemplarites et etiam collective, et quare non fit hoc in sexta et septima, dicenum quod,
cum in visionibus huius libri agatur de primordiali ac medio et finali statu ecclesie,
Christum autem, prout in principio et fine huius libri dicitur esse Alpha et Omega, id est
principium et finis, per que tanquam per extreme subintelligitur quod ipse etiam est
medium et mediator, satis decuit quod in hiis visionibus premittretur Christus tanquam
radicale et fontale principium totius ecclesie et omnium statum eius, ac deinde quod in
medio processus statuum refulgeret eius mediatio, et fine quod ipse est omnium
consummator et finis”.
58
O tempo do Espírito Santo32 está relacionado com o novo milénio, o
fim dos tempos. Pela acção do Espírito a vida evangélica torna-se critério
dum modelo de vida espiritual que assume a luta contra o mal, que vence
o mal, o anticristo e instaura o tempo de paz e justiça, anúncio da vinda
de Cristo que tudo leva à plenitude33. Assim o Espírito termina aquilo que
Cristo começou na sua vida terrena. O elemento dinâmico e transformador da história está relacionado com o Espírito. Através do Espírito esta
visão da história recebe uma forte dimensão escatológica34. O Espírito
prepara um fim de plenitude. Mas o Espírito não está activo só neste
tempo final. Desde o princípio que o Espírito é a força mobilizadora que
conduz o processo de amadurecimento ao longo de todas as épocas históricas. Todas as épocas estão sob a influência dinâmica e dinamizadora do
Espírito.
Temos assim nesta visão histórica à luz da Trindade, um elemento
ordenador que é representado pelo Pai, uma dimensão vital e uma vida
qualitativamente nova representada pelo Filho e uma força dinâmica que
leve o processo de amadurecimento até à plenitude, representada pelo
Espírito. Para Olivi cada tempo e época realiza-se sob o signo da Trindade. A partir daí ele fala duma história de salvação deste mundo35.
5- O CONCEITO DE LIBERDADE EM OLIVI
O homem nascido no tempo não é simplesmente arrastado pela torrente da história. Não é levado como um pedaço de madeira pela corrente
sucessiva das épocas. Ele está envolvido e embrenhado de maneira especial no decorrer da história, no crescimento e amadurecimento das épocas
históricas, sobretudo na luta entre o bem e o mal que anuncia o milénio
final. É aqui que entra em jogo a liberdade humana. Antes de reflectirmos
—————
32
Para os aspectos pneumatológicos, cf. WARREN, Peter John Olivi, op. cit. p.
248-257; cf. PETER JOHN OLIVI, op. cit. cap. 2, 7, 193: “...secunda vero ulterius moveret
per spiritualem flammam et efficaciam spiritus sancti.”
33
Cf. BURR, D., Olivi’s Peaceable Kingdom. A reading of the Apocalypse
Commentary, Philedelphia, 1993.
34
Cf., EMMEN, A., Die Eschatologie des Petrus Johanes Olivi, em WiWei 24
(196), p. 113-144, 25 (1962) p. 12-48.
35
Cf., Schlageter, J., Das Heil der Armen und das Verderben der Reichen, Werl,
1989 (Franziskanische Forschung, 34), p. 40-47.
59
sobre o sentido da liberdade na sua visão da história, devemos primeiro
considerar o que Olivi entende por liberdade, qual a definição que lhe dá.
O conceito de liberdade em Olivi está relacionado com a sua antropologia, isto é: a liberdade é a ideia central do sua antropologia36. Olivi
concebe o homem a partir do espírito37. O espírito é a energia activa da
vida (vigor actualis et activus)38. O espírito é vida pura, vitalidade e ao
mesmo tempo simplicidade e interioridade39. É o espírito que unifica o
material, o corporal e o penetra, vivifica e determina. O espírito como
força vital e energia é livre, e porque no verdadeiro sentido da palavra é
independente, com sentido de si mesmo e capaz de interioridade, isto é de
autoconhecimento, de percepção de si e de autonomia. O espírito não é
estimulado, mas, ao contrário, como energia vital é fonte de todo o
movimento. Para Olivi o espírito não está em oposição ao material e corpóreo. Espírito e matéria não se digladiam, pelo contrário, o espírito é o
dinamismo vital da matéria e do corpo.
Torna-se claro que só o ser espiritual e volitivo é um ser humano
vivo e em movimento. Pois que é o espírito que estimula o homem, que
lhe possibilita aquela interioridade do autoconhecimento, da percepção de
—————
36
Cf. FREYER, Homo Viator... op. cit. p. 88-91; BETONNI, E. La libertá come
fondamento dei valori umani nel pensiero di Pier Giovanni Olivi, em Atti del XII Congresso Intern. di Filosofia, XI, Florença 1960; JANSEN, B., Ein neuzeitlicher Anwalt der
menschlichen Freiheit aus dem dreizehnten Jahrh., Petrus Joh. Olivi, em PhJ 31 (1918)
p. 230.238, 382-408; LANG, J., Eine Art Geist-Tiere? Überlegungen zur Freihteslehre
des Petrus Johannis Olivi (+ 1298), em ROSSMANN, H./ RATZINGER, J. (editores), Mysterium der Gnade. Festschrift für Johannnes Auer, Regenburg, 1975, 259-267.
37
Cf. FREYER, Homo Viator... p. 287-291.
38
Cf. STADLER, E., Psychologie und Metaphysik der menschlichen Freiheit. Die
ideengeschichtliche Entwicklung zwischen Bonaventura und Duns Scotus, Munique
1971 (Editado pelo Grabmanninstitut, Neue Folge, 12), p. 171 ss. Cf. PETRUS JOANNIS
OLIVI, Quaestiones in secundum librum Sententiarum, Volumen II Quaestiones 49-71,
ed. Bernardus JANSEN, Quaracchi 19222 (Bibliotheca Franciscana Scholastica Meddii
Aevi, V) q. 51, 109 (= QS II) : « Cum enim forma, in quantum forma, dicat vigorem
actualem et activum, et maxime forma nobilissima et actualissima, qualis est forma partis intellectivae : ergo corpus habebit operationem intellectualem et liberam et potestatem intelligendi et volendi ».
39
Cf. QS II q. 58, 412: “Omnis enim actus trahit a sua causa effectiva rationes suae
essentiae essentialissimas et nobilissimas. Summae auten rationes quae sunt in actibus
mentis nostrae sunt ratio seu vivi et simplicitatis et intellectualitatis et consimiles. Actus
enim intelligendi et volendi sunt per essentiam suam vivi et simplices et spirituales et
intellectuales. »
60
si40 e da autonomia que são as condições da liberdade. Talvez possamos
dizer que esta dimensão espiritual do homem é condição do ser pessoa. O
espírito confere ao homem a possibilidade de dizer eu, numa autoreflexão
e autoconhecimento. Este centro do eu pessoal que se abre ao espírito é
para Olivi a vontade, que se pode determinar a si mesmo. A vontade
como centro do eu41, da autodeterminação ultrapassa em Olivi toda a criação e torna o homem semelhante a Deus. O eu volitivo que de forma
soberana determina a totalidade da própria alma, é a imagem de Deus. O
facto do ser humano se poder determinar a si mesmo, toca a liberdade. Só
a vontade que se pode determinar a si mesmo, possibilita que o ser
humano se torne no que é. Só o homem pode ter vontade própria, ser
livre, pode agir, pode-se autodeterminar, e tem capacidade de se relacionar com o mundo. O homem pode sair do seu mundo e debruçar-se sobre
si mesmo e determinar a sua acção e o seu agir. Hoje falaríamos sobre
aceitação de si mesmo. Além disso o homem pode reflectir livremente
sobre si mesmo, a sua vontade e o seu agir. Pode determinar as suas
acções por sua livre iniciativa e tomar decisões sobre a sua relação com o
seu mundo ou negar-se a essas relações. Liberdade é para Olivi a capacidade soberana da vontade sobre si mesmo e suas iniciativas. Ele acentua:
“O ser livre como tal é idêntico com a sua essência e está em condição de
se autodeterminar e de ser livre no agir”42.
Para Olivi a vontade está unida ao coração43, o coração é o centro da
pessoa, o centro misterioso que integra todas as dimensões da vida. Olivi
identifica a vontade com o coração. Coração e vontade são uma só coisa.
O coração e a vontade formam uma instância íntima e espiritual que
nenhum poder do mundo pode violar. Só eu posso dispor sobre o meu
coração e vontade. Só a vontade livre determina a quem eu devo abrir o
meu coração ou a quem não devo abrir. Mesmo sem liberdade exterior,
—————
40
Cf., BETTONI, E., Le dottrine filosofiche di Pier Giovanni Olivi, Milão, 1959, p.
399 ss. ; Cf., também QS II q. 57 ; SCHLAGETER, J., Die Auseinandersetzung zwischen
griechischen und biblischen Menschenbild im franziskanischen Freiheitsverständnis des
Petrus Johannnis Olivi (+ 1298), em WiWei 60 (1997), p. 65-86, com idicações a QS II
q. 57, 325 ss..
41
Cf. STADTER, Psychologie..., op. cit, p. 179 ss., 195-206, com indicações de QS
II, sobretudo q. 57.
42
Cf. QS II q. 51, 172: “et liberum, in quantum liberum, est idem quod potens
dominari et libere agere”.
43
Cf. STADTER, Psychologie... op. cit., p. 200 ; cf. Qs q. 57, 330-335.
61
continua este espaço interior do coração e da vontade, esta última liberdade de abrir ou não abrir o coração a alguém. Chegamos assim ao cerne
da teoria da liberdade de Olivi.
A verdadeira liberdade só existe para Olivi quando há decisão livre
de se abrir ao outro num diálogo interpessoal. A pessoa livre está aberta
em liberdade à relação44. Só a pessoa livre que voluntariamente pode dispor do seu coração, capaz de se autodeterminar, é capaz e está em condição de, por iniciativa própria, na gratuidade, ir ao encontro de um outro
tu. A liberdade realiza-se e plenifica-se na relação gratuita com um outro
tu45. A vontade livre, que se fecha em si mesmo em pura autodeterminação, definha e a liberdade torna-se em prisão de si mesmo. O ser humano
que se fecha em si, torna-se escravo de si mesmo. Só a doação livre permite que a liberdade se torne realidade. Por isso para Olivi a amizade
como expressão da doação de si é a expressão mais profunda e verdadeira
da liberdade. A mais alta expressão e plenitude da liberdade é a amizade
com Deus. A mais nobre expressão da liberdade é o amor46.
Este conceito de liberdade é para Olivi o fundamento da vida moral e
pessoal. Liberdade como livre doação é a condição, isto é o fundamento
indispensável da perfeição. Com a liberdade mantém-se ou desaparece
todo o âmbito dos valores humanos. Para Olivi não há nenhuma ética ou
direito, nenhuma vida social, nenhuma política, ou economia, nenhuma
cultura ou religião sem liberdade. Tudo depende da questão da liberdade e
tudo está ao serviço da promoção desta liberdade que essencialmente é
autodoação na amizade. Por isso o objectivo principal da sociedade é
educar para a liberdade47. Cada ser humano tem de crescer na liberdade,
ao mesmo tempo que aprende, num processo espiritual, a orientar de
maneira correcta a sua vontade e o seu coração, para ser capaz duma
—————
44
Cf. STADTER, ut supra, p. 202 ss.; SCHLAGETER, Auseinandersetzung... op. cit. p.
85 ss..
45
Cf. QS II q. 57, 330: “Hinc etian est quod, quia nihil dicimus fieri gratis, nisi
quando operans hoc facit tanquam ab alio impulsus et modus, dona autem nunquam
habent plene rationem doni seu liberalitatis, nisi fiant gratis et tanquam ex se, quod
nunquam aliquam rem dicimus esse donatam, nisi manaverit ex libero et gratuito
consensu, nec aliquem dicimus posse aliquid liberaliter dare nisi solum illum qui potest
habere huismodi consensum. Et eadem ratio est quod nec rationem amici aut amicitiae
atribuimus nisi solum illis qui ex consensu libero et gratuito suum amorem et etiam se
ipsos per viam amicitiae suis amicis donant… sicut amicus dat se ipsum amico”.
46
Cf. Schlageter, Auseinandersetzung... op. cit. p. 80 ss..
47
Cf. Bettoni, Dottrine filosofiche... op. cit., p. 403.
62
autodoação. Neste sentido o ser humano não tem a sua liberdade, antes a
deve adquirir e construir todos os dias. À medida que cresce progressivamente na doação livre é toda a vida que se desenvolve.
Para Olivi tudo isto não é mera teoria, mas tem incidência na prática,
como mostrou quando reflectiu sobre a ética do crédito no comércio bancário da Idade Média48. Esta liberdade só traz resultados concretos no dia-a-dia, se o homem quiser dar ao seu mundo uma forma de vida espiritual.
Desta maneira a liberdade não é só a base duma amizade pessoal e privada, mas é também o fundamento da convivência, essencial na construção da vida do estado e da igreja.
Jesus Cristo é o exemplo vivo do homem livre, que realizou plenamente a sua liberdade na doação de si mesmo. Em Jesus Cristo o ser
humano encontra o homem verdadeiramente livre49. Mesmo preso, sem
liberdade exterior, condenado à morte, ele é o homem livre, com um
coração capaz de perdoar aos seus algozes.
6- O SIGNIFICADO DA LIBERDADE NA SUA VISÃO DA
HISTÓRIA
Este modelo de liberdade tem uma importância decisiva para a visão
da história. Como já vimos, Olivi parte duma compreensão progressiva e
espiritual da história50. As épocas espiritualmente mais superiores, nascem da semente lançada à terra nas épocas anteriores. Esta tem de ser
levada ao crescimento e à floração para que uma nova época possa desabrochar51. Como já vimos, Deus Pai, origem deste crescimento espiritual
progressivo, dá o seu mandamento, dá a sua lei, o Filho de Deus que
representa a nova dimensão vital e o Espírito a dinâmica necessária. Neste
processo histórico de amadurecimento espiritual, o crescimento na liberdade é o contributo que o ser humano pode dar. Na medida em que o
homem duma época valoriza a sua liberdade, está a favorecer o crescimento e o amadurecimento da semente de uma nova época mais espiri—————
48
Cf. SPICCANI, Amleto: La mercatura e la formazione del prezzo nella riflessione
teologica medievale, em Me. Sc. Mor. Stor. Fils. 20 (1977), p. 127-293 ; Pietro Giovanni Olivi, Verso una nuova età. Chiese, società, economia, em Zenit 4 (1989), p. 1-38;
ZAVALLONI, R., L’uomo e il suo destino nel pensiero francescano, S. Maria degli Angeli
1994, p. 315, ss..
49
Cf. MARCIL, Peter John Olivi…, op. cit., p. 112 ss..
50
Cf. WARREN, Peter John Olivi, op. cit. p. 140.
51
Ut supra, p. 143.
63
tual. O desabrochar duma nova época está, por isso, dependente da doação livre dos seres humanos. A liberdade na doação é o elemento decisivo
para originar uma nova época52. Olivi não considera isso só ao nível da
piedade. Não se trata duma espiritualização do mundo e da história, mas
de que o mundo e a história sejam penetrados pelo espírito. Uma época
nova e mais espiritual cresce da liberdade que o ser humano comprometido transmite para a sociedade, a cultura, a economia e a política. A falta
de liberdade, isto é, a falta de doação de si, leva à decadência, enquanto
que a liberdade da doação de si mesmo leva a um triunfo cada vez mais
evidente do espírito no mundo e na história e faz crescer o nível espiritual. É opinião de Olivi que bastam poucos justos para fazer crescer o
nível espiritual. A doação livre de um único justo, Jesus Cristo, foi o suficiente para salvar o mundo.
A liberdade favorece não só o nível espiritual duma época mas, uma
vez que aponta para a amizade, favorece também um crescimento harmónico da humanidade. Mais ainda, uma vez que a liberdade coloca a amizade com Deus no caminho da história, fortalece a união com Deus. À
medida que cresce o nível espiritual duma época, sobe também o grau de
possibilidade da liberdade humana até chegar à plena realização nos últimos tempos. Nas épocas de nível espiritual mais baixo, também é mais
limitada a possibilidade de realização da liberdade humana. Mas na
medida em que esta é vivida, apesar das possibilidades e as limitações
que tem pela frente, favorece não só o crescimento espiritual da história,
mas contribuiu também para alargar o espaço onde a liberdade é possível.
Assim os homens tornam-se essencialmente livres. No novo milénio, nos
últimos tempos, tanto a história como a liberdade serão levadas à perfeição. Nesta última etapa da história, o ser humano crescerá na liberdade
em direcção às puras formas da relação com Deus e da doação a Deus.
Assim realiza-se a época da história do mundo na doação absoluta e livre
dos seres humanos a Deus.
—————
52
Cf. por ex. PETER JOHN OLIVI, op. cit. cp. 9, 75: “Datur etiam alio ratio. Ne si
prior status omnino desineret ante initium sequentis, desolaretur terra a lumine utriusque.
Est etiam et quarta. Aliquando enim inchoatur sequens ante finem prioris, ut probetur et
impugnetur a zelatoris primi; et hac ratione Christus cepit statum suum sub veteri lege,
et sextus status cepit sub fecibus quinti. Aliquando vero sequens inchoatur ante finem
prioris et perfecionis, ut sequentis initium exemplaris et plenius participet perfectionem
prioris”.
64
Olivi vê em Francisco o anúncio do último milénio, como uma época
que encaminha a história para a realização plena. Francisco que viveu na
total doação a plenitude da sua liberdade no espírito do evangelho e no
seguimento de Cristo, é o modelo do homem livre para a doação e a imagem viva que anuncia a segunda vinda de Cristo. Segundo Olivi para
entrar no novo milénio é preciso seguir Francisco, isto é, desejar com toda
a liberdade aquela doação que torna Cristo presente.
Aqui a liberdade como doação de si identifica-se com a renúncia à
posse das coisas. Apropriação, a obsessão pelo ter é o contrário da liberdade. Totalmente identificado com o pensamento do fundador da sua
Ordem, Olivi liga o sentido da liberdade com a ideia de pobreza entendida como desapropriação53. Esta ideia de liberdade traz como consequência que não nos devemos apropriar das coisas deste mundo, de tal
forma que os outros delas fiquem privados. Apropriar-se dos bens, esquecendo-nos dos outros e de Deus, mata a liberdade como doação de si. Para
Olivi a pobreza franciscana ou, na linguagem de hoje, a solidariedade é
irmã da liberdade54. É precisamente nesta relação, onde a liberdade anda
ligada à solidariedade e não ao egoísmo, que Olivi lança as bases das
transformações sociais. Os bens e as riquezas deste mundo devem estar ao
serviço de todos. Assim esta visão da história fundada num crescendo de
conteúdo espiritual é um desafio concreto a um compromisso cada vez
maior pela realização da justiça neste mundo. Esta liberdade orientada
para o amor oferece uma alternativa cristã ao egoísmo e ao domínio brutal
de alguns ricos que concentram em si todas as riquezas. O desabrochar
dum novo milénio, significa também, segundo Olivi, o desabrochar duma
ordem social mais justa.
7- RESUMO
Nesta visão de Olivi fica claro que a história não é uma evolução
pura onde o ser humano anda à deriva. Neste sentido história entende-se
como espaço onde se realiza uma aliança entre Deus e o ser humano. A
história está nas mãos de Deus. De Deus recebe a ordem, a vida nova e
uma dinâmica que a encaminha para a perfeição final. O ser humano tem
a sua parte de responsabilidade. A história também foi depositada nas
—————
53
Cf. FREYER, Homo Viator... op. cit. p. 290.
54
Cf. SCHLAGETER, Auseiandersetzung... p. 85.
65
suas mãos. O ser humano é chamado por Deus para a liberdade, para uma
colaboração específica. O ser humano realiza esta liberdade na medida em
que se compromete com o mundo, com o seu semelhante e com Deus.
Quanto mais o homem dá de si mesmo ao mundo e à história, quanto mais
se compromete na história concreta, mais se encontra consigo mesmo,
mais realiza a sua liberdade. A realização da liberdade humana anda intimamente ligada à configuração do futuro. O desabrochar dum novo milénio tem pouco a ver com uma data concreta. Não pretende prever o fim do
mundo nem tem a ver com uma mentalidade de destruição, mas com os
últimos tempos que são já hoje realidade palpável e que exigem a colaboração de todas as forças do coração e da vontade com vista a preparar a
realidade futura da vinda do Senhor. Este desabrochar dos tempos novos
está relacionado com o desenvolvimento da liberdade humana até à sua
total maturidade. Esta maturidade desafiadora da liberdade humana
desenvolve-se em várias dimensões da vida pessoal e pública. São estas
dimensões que ajudam a perceber a actualidade deste autor da Idade
Média.
A dimensão pessoal da liberdade: A dimensão pessoal é caracterizada pelo conhecimento de si próprio, pela capacidade de autoreflexão e
pela doação de si mesmo. Trata-se de uma abertura à dinâmica da acção
do espírito que integra todas as dimensões do coração e da vontade. Partindo da presença viva do espírito no centro da pessoa, no coração e na
vontade, todas as dimensões da vida são dinamizadas em vista a alcançar
a meta da plenitude cristológica. O objectivo é o homem espiritual.
A dimensão da fé: O coração e a vontade, estimulados e orientados
pela fé, devem-se motivar e deixar-se conduzir pela força dinâmica do
Espírito de Deus, e abrir-se totalmente à plenitude da vida em Cristo.
Trata-se de orientar a vida de acordo com a lei divina.
Dimensão eclesial: A primazia está, segundo Olivi, no Espírito que
sopra onde quer55. Na nova ordem do reino de Deus, deve-se desejar uma
—————
55
Cf. Peter John Olivi, op. cit. cap. 2: 7, 193 ss.: “Nota etiam quod in prima
dirigitur sermo Christi ad episcopum; in secundo vero sermo spiritus sancti dirigi ad
ecclesias, cuius prima ratio est, quia episcopus gerit vicem et imaginem Christi tanquam
pastor et sponsus ecclesiae vice eius: ecclesia vero gerit formam spose per Christi
spiritum fecundae et sanctificate. Secunda est, quia sicut episcopus habet auctoritatem in
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realização espiritual da fé, onde se dá uma actualização radical do ideal
evangélico. O cargo torna-se serviço à acção do Espírito, onde se valoriza
a presença do Espírito em todos os fiéis. A Igreja não será mais pensada
como o rebanho dos fiéis orientado pela hierarquia, mas entendida a partir
da acção dinâmica do Espírito de Deus, de onde os cargos eclesiásticos
recebem a luz. Em primeiro plano não está tanto a desejada obediência da
fé perante o único e autêntico magistério, mas a vivência dos valores
evangélicos, vividos pela força do Espírito, que encaminham todo o povo
de Deus, sob a orientação e exemplo do magistério para o encontro definitivo com Jesus Cristo, o Senhor da história.
Dimensão social e política: A configuração do mundo entende-se a
partir da responsabilidade de cada um. O objectivo é conseguir uma
igualdade económica entre ricos e pobres, o combate pela justiça e o fim
da pobreza através duma autêntica solidariedade.
Traduziu Fr. José António Correia Pereira
—————
ecclesiam et ipsa sequitur ipsum ut primum et primatem, sic Christus habet originalem
auctoritatem in spiritum sanctum et spiritus sanctus se habet ad eum sicut ad suum
originale principium, quanvis nulla sit superioritas aut, subiectio sicut est illic”.
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