HISTÓRIAS de VIDA - Município de Rio Maior

Transcrição

HISTÓRIAS de VIDA - Município de Rio Maior
HISTÓRIAS
de VIDA
UM MUNDO EM MOVIMENTO
HISTÓRIAS
de VIDA
UM MUNDO EM MOVIMENTO
ABRIL 2012
FICHA TÉCNICA
TÍTULO
HISTÓRIAS DE VIDA: UM MUNDO EM MOVIMENTO
EDIÇÃO
MUNICÍPIO DE RIO MAIOR
Praça da República
2040-320 RIO MAIOR
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Fax: (00351) 243 992 236
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COFINANCIAMENTO
ALTO-COMISSARIADO PARA A IMIGRAÇÃO E DIÁLOGO INTERCULTURAL, I.P.
“Promoção da Interculturalidade a Nível Municipal” - II Edição
Fundo Europeu para a Integração de Nacionais de Países Terceiros (FEINPT)
PREFÁCIO
Sara Fragoso
REDAÇÃO DE TEXTOS E REVISÃO DE PROVAS
Ema Oliveira, Sónia Rebocho
APOIO NA TRANSCRIÇÃO DE ENTREVISTAS
Antonela Craciunescu
FOTOGRAFIA
Ema Oliveira
PAGINAÇÃO E EXECUÇÃO GRÁFICA
RioGráfica - Tip. Santos & Marques, Lda.
TIRAGEM: 1000 exemplares
ISBN: 978-972-98478-3-7
DEPÓSITO LEGAL: 346299/12
DATA DE EDIÇÃO: Abril de 2012
Prefácio
De há alguns anos a esta parte, Portugal, e Rio Maior não é exceção,
tem vindo a acolher fluxos migratórios muito significativos, com a vinda
de milhares de pessoas que procuram no nosso país as condições para
trabalhar e viver, as quais, pelas mais variadas razões, não conseguiram
encontrar nos seus próprios países.
Deste modo, a questão do acolhimento e integração dos imigrantes que
procuram Portugal como destino, tornou-se uma preocupação atual e
que exige uma atitude proativa e atuante, nomeadamente por parte das
autarquias locais.
Vivem conjuntamente, no nosso concelho, pessoas oriundas das mais
diversas proveniências culturais e geográficas, com os seus hábitos e
modos de encarar a vida, culturas e práticas religiosas que nem sempre
serão compreendidas e que, como tal, poderão originar algum tipo de
conflituosidade.
Neste livro apresentamos as histórias de vida de algumas dessas pessoas, que com os seus saberes e experiência enriquecem o concelho de
Rio Maior e aqui dão o melhor de si. Através das entrevistas ficamos a
conhecer as suas dificuldades, as suas expectativas, alegrias e tristezas.
O conhecimento do outro é essencial pois sabemos que o desconhecimento do que é diferente de nós leva à incompreensão, à intolerância
e, em casos extremos, ao xenofobismo e ao racismo. Queremos que este
livro seja um instrumento para uma melhor integração da população
imigrante e que esta multiculturalidade contribua para um concelho
mais rico e próspero.
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Introdução
Existem duas razões de ser da obra que agora se publica.
A primeira, mais explícita e evidente, é a de dar a conhecer os percursos
e histórias de vida de cinco homens e de cinco mulheres, que a dada
altura da vida, pelos mais diversos tipos de causas, tomaram a iniciativa
de deixar o seu país nativo e encetar um processo migratório.
A segunda, não tão manifesta e declarada, é despertar a sensibilidade
e potencializar a identificação dos leitores, sejam estes autóctones do
nosso velho Portugal ou também eles imigrantes, com as experiências
relatadas, os desafios ultrapassados, as expetativas e os sonhos dos dez
colaboradores deste livro.
Em comum une-os o facto de terem nascido fora de Portugal e residirem, hoje em dia, nos limites do concelho de Rio Maior.
Em tudo o resto, as diferenças são muitas, a começar pelos países de origem: Bulgária, Cuba, República Checa, China, Brasil, Inglaterra, Ucrânia,
Roménia, Angola e Holanda.
Também as idades, o tipo de ocupação, o ramo de atividade, são outros
aspetos que ilustram a diversidade deste pequeno grupo de pessoas.
Os testemunhos foram dados na primeira pessoa, mas, como se torna
evidente, a quem lê as páginas seguintes, não foi efetuada a transcrição
literal das entrevistas efetuadas, optando-se antes por fazer um relato,
pontuado com citações.
As entrevistas, por sua vez, também não foram realizadas seguindo um
guião rígido, mas decorreram ao sabor de uma conversa, que se pretendeu o mais desprendida possível.
Pelo conhecimento das vivências narradas, esperamos que seja possível
compreender o quanto todos, a despeito de fatores como a proveniência
geográfica, o credo religioso ou as ascendências culturais, somos iguais,
em especial quanto se trata de procurar uma vida melhor para nós e
para os nossos.
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Gheorghe Craciunescu
Gheorghe Craciunescu tem 52 anos, é casado e
tem dois filhos. Nasceu na Roménia, junto à cidade de Suceava, na zona norte do país. “Cresci
numa aldeia, à beira do rio e de uma linda floresta. Meus pais são pessoas simples, trabalhadores de campo, e vivi com eles mais os meus
irmãos, uma rapariga e um rapaz.”
Frequentou a escola até ao décimo segundo ano
e depois seguiu para um curso profissional. Mas
afirma que: “Meus pais precisavam mais de
mim perto de casa, a cuidar dos animais e trabalhar no campo, do que a andar na escola.”
A dada altura, saiu de casa dos pais e foi para
Timisoara, onde deu seguimento ao curso profissional de mecânica e teve oportunidade de conhecer a futura esposa. “Entretanto, entrei para a tropa e de lá se
seguiu a nossa vida, mudámos outra vez de cidade, tivemos filhos e começaram as
responsabilidades e diversas dificuldades da vida.”
Foram estas dificuldades que, em grande medida, ditaram a necessidade de emigrar. A sua experiência como migrante começa há 12 anos atrás, com a ida para
Israel, onde foi trabalhar na construção civil. “Estive lá três anos, depois voltei em
Roménia, mas a situação lá não corria nada para melhor e meus filhos seguiam as
escolas, um já na universidade e requeria um certo sustento financeiro.” Passado
um ano e em simultâneo, surge a perspetiva de emigrar para Portugal ou para a
Alemanha, em situações e condições diferentes. “Não foi escolha propriamente,
foi necessidade e agarrei a primeira que parecia mais segura.”
Foi assim que, em 2002, veio para Portugal, fazendo conta com emprego e habitação, expetativas que cedo são defraudadas. “O primeiro impacto foi com Lisboa,
depois de uma viagem de três dias e duas noites. Aí, em lugar de nos colocarem em
alojamentos, como foi o acordado à partida, ficámos, eu e outros imigrantes romenos, sem orientação nenhuma. Aí conseguimos alojamento, depois de uns dias de
passar pelo desespero da situação.”
Foram uma luta, esses primeiros tempos de Gheorghe em Portugal. “Comecei a
trabalhar breve numa das construções de lá. Foi andar à procura e pedir trabalho,
sem saber língua nem conhecer a cidade. Entretanto, lá encontrei mais compatriotas meus e cheguei a conhecer a igreja ortodoxa e o padre romeno de Lisboa.”
Foi este último, através dos seus contatos, que o ajudou a encontrar trabalho, após
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três meses de trabalho na construção civil que pouco renderam. “Mas o padre foi
perguntando e um rapaz de Malaqueijo, Rio Maior, precisava de um colega no campo como tratorista e lá fui eu. Não foi fácil, mas Deus encaminhou-me sempre.”
“Arranjei um alojamento, com uma renda mais baixa, mas condições péssimas,
tive que reconstruir praticamente a casa. Era trabalhar, receber e investir para ter
um abrigo razoável. A proprietária da casa nunca quis saber, para ela contou sempre só o dinheiro no fim do mês na conta. Apanhei a altura do Inverno com a casa
ainda em más condições, passei muito frio, mas como tinha trabalho e os vizinhos
sempre me apoiaram, recebi muitas
coisas de todos. Eu não tinha nada,
Eu não tinha nada, tachos, tachos, cobertores, coisas necessácobertores, coisas necessárias, rias mesmo, nada. Mas tive a sorte
mesmo nada. Mas tive a sorte de gente de bem com boa-fé que me
ajudaram.”
de gente de bem com boa-fé
que me ajudaram
Ao fim de um ano, com a casa recuperada e equipada, vêm para Portugal a esposa e a filha.“Era preciso trabalhadores no campo, então como ela lá era
desempregada, arranjou e veio também. Chegou com a minha filha que estava de
férias da escola.”
A família sentiu, nesses anos, a falta de apoio institucional, porque trabalhava ilegal. A Roménia ainda não fazia parte da União Europeia e o medo dos controles ou
de alguém os denunciar, por estarem a trabalhar sem documentos, era uma constante. Até 2007, mantiveram-se nesta situação desconfortável. “Tivemos que gastar
um balúrdio para legalizar a nossa situação. Graças a um advogado mal formado de
Lisboa, tivemos que ir tratar de vistos, e ir para Roménia quando, daquela altura a
uns meses, foi aprovada uma lei que nos deixava... Só com um registo de residência
e na segurança social e finanças era suficiente. Mas, mesmo assim, foi resolvido
pela maneira mais custosa.”
Entretanto, tem acesso a aulas de português e de informática, organizadas pela
Junta de Freguesia de Malaqueijo. A nível da língua portuguesa, diz ter contado com
muita compreensão de quase todos os portugueses que conheceu, mas também
procurou compreender a outra parte. “Mantive sempre um respeito mútuo pela
cultura e por me terem facilitado a integração.”
Considera Portugal como um país acolhedor. “E posso dizer isso pela comparação
com Roménia e Israel. Já há um fluxo de apoios aos imigrantes. Roménia não tem
uma cultura tão aberta para os imigrantes.” Pensa, todavia, que a necessidade de
receber o fluxo de refugiados provenientes dos países vizinhos, atualmente em
conflito, irá provavelmente ensinar o povo romeno a ser mais hospedeiro.
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Questionado sobre aquelas que pensa serem as principais semelhanças e diferenças entre Portugal e a Roménia, diz-nos que: “Para comparar a Roménia com
Portugal, seria necessário saber em qual altura, porque nos anos do comunismo,
as coisas não eram muito cor-de-rosa. Ainda não são, mas já há a assim dita “democracia e liberdade”.” Considera a Roménia um lindo país, com vários pontos de
interesse geográfico, turístico, culturais e valoriza a preparação profissional que os
romenos têm. “Mas isso tudo muito mal aproveitado e gerido pelos nossos políticos.” Fala também dos romenos que alcançaram projeção internacional, caso de
Nadia Comaneci, primeira ginasta a alcançar uma classificação máxima nos Jogos
Olímpicos ou de Hagi, jogador de futebol. “Depois a nossa cultura tem muito o emblema do Conde de Drácula e às vezes dos ciganos.” Gheorghe diz que passa muito
pelo estigma do país dos ciganos. “É verdade que temos a maior comunidade de
ciganos da Europa, mas não podemos esquecer que falamos de um país com 23
milhões de habitantes e que é várias vezes maior que a superfície do Portugal. É
normal termos mais, mas como qualquer país, acho que os ciganos fazem parte
dos imigrantes do mundo e são cidadãos do mundo.”
Nesta década passada em Portugal, pensou e continua a pensar várias vezes em
regressar ao seu país de origem. “Tenho saudades da terra natal, da minha mãe e
do meu pai. Mas também sei que já estou integrado aqui de tal forma, que como
estive a trabalhar com contrato cinco anos na fábrica Prebesan e sempre que puder
vou trabalhar e cumprir meus direitos como qualquer outro cidadão, contribuir e
descontar, aqui tenho direito ao sistema de saúde, tenho direito a ter um domingo
livre e passear até à praia. Algo que em Roménia é difícil, a cidade natal é longe das
nossas praias, quase 700 quilómetros. Mas é sempre diferente, lá tenho os familiares, as lembranças e meu filho que mora lá, e vive bem, é advogado e já tem 2 filhotes.” Como principal motivo para continuar em Portugal fala-nos de: “A minha filha
está aqui e talvez isso impulsiona mais de ficarmos também, porque ela quer
fazer vida aqui. Mas nunca se sabe, então não planeamos. É melhor viver um dia
de cada vez e fazer pela vida, o resto há de se compor mais cedo ou mais tarde.”
Relativamente à atual situação económica de Portugal, pensa que a mesma afeta
todos, não sendo o seu caso uma exceção. “Eu fiquei desempregado e estou a ver a
minha filha com muitas dificuldades de arranjar trabalho. Claro que daqui segue a
dificuldade de acesso a bens e tudo virá a ser como uma bola de neve. Se me surgir
alguma outra oportunidade, mas que seja minimamente segura, melhor em outro
país qualquer, acho que ia, mas tinha que ser mesmo uma ótima oportunidade,
porque estou muito bem adaptado aqui, e ponderava muito mesmo ir embora.”
Os tempos são de incerteza e por isso mesmo Gheorghe não arrisca fazer grandes
planos. “Para os próximos anos, já está visto que não podemos, nem vale a pena,
planear muito. Desde que tenha saúde e a família também, tudo o resto se faz. Só
nos resta ter esperança para dias melhores e fazer por isso“.
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Regina Célia
Almeida de Souza
Foi um acontecimento menos feliz que levou
Regina Célia Almeida de Souza a deixar a sua
terra natal, atravessar o oceano e fixar-se em
Portugal, já lá vão doze anos. Natural e residente, até 2000, em Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, Regina soma 48 anos, é
divorciada e vive com o companheiro Marcelo
há mais de década e meia.
Regina e Marcelo foram vítimas do que é conhecido no Brasil como o “sequestro relâmpago”,
que incluiu rapto e assalto e os deixou sem recursos e sem possibilidades de dar continuidade ao negócio que geriam em conjunto. “Ficámos todos descapitalizados no Brasil. Levaram
tudo. Nós tivemos de vender as carrinhas. Tivemos de vender o carro. O ordenado que o Marcelo tinha. Ficámos só com o meu.”
Para além disso, foram ameaçados. “Recebemos ameaça que a gente devia deixar
a coisa como estava. Falaram o nome de minha filha, onde tinha estudado, onde
a minha filha trabalhava, falaram dos irmãos mais novos do Marcelo. E aquilo nos
coagiu. Nós tivemos de tirar a queixa.”
A vida de Regina é cheia de acontecimentos marcantes. Aos cinco anos passa a viver
com os avós e uma tia. Era a neta mais velha, de um total de quatro irmãos e foi dar
apoio à avó, que tinha ficado acamada. “É porque eu já sabia telefonar, se eu visse ela
se sentir mal”, explica. Manteve no entanto a ligação com os pais, que visitava aos
fins de semana. “Ficava sexta-feira à tarde, assim que saía da escola até no domingo,
meio-dia. Durante a semana ficava com a avó na mesma. E assim foi até me casar.”
Com dezassete anos decide e comunica à família que quer ter um bebé. “Todo o
mundo achou que era brincadeira. Mas era um bom sentimento. Eu procurei um
grande amigo meu da altura, que é o pai da minha filha e fiz a proposta para ele.”
Regina diz que foi um impulso da juventude, pouco ajuizado, mas do qual não se
arrepende. “Foi um pouco falta de juízo, não é? Aquelas telenovelas, “Barriga de
Aluguer”, aquela coisa, achava fantástico.” Em resultado, nasce no mesmo dia do
seu aniversário, a sua única filha, que reside no Brasil, é formada em medicina veterinária e trabalha como fiscal sanitária para o governo.
Aceita casar, por insistência do pai da filha, grávida de 5 para 6 meses. “Na altura
não foi muito bem visto. Eu entrando na igreja, com aquela barrigona. Mas eu não
tinha problema com isso, muito menos a minha família, os meus amigos e o pároco da igreja.” Os recém-casados ficam a morar numa casa construída num terreno
doado pelos avós de Regina, mas com o falecimento dos três “velhinhos da família”
num espaço de poucos meses, o casal opta por vender a moradia e comprar um
andar. “Fui viver mesmo uma vida, pela primeira vez, de casada. Porque eu não
queria casar. Foi onde começou o meu tormento.”
Separa-se com vinte e cinco anos e fica a viver só com a filha. Emprega-se no Mercado Siderúrgico do Brasil, onde trabalha durante dezassete anos.
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O atual companheiro, Marcelo, sabendo-a separada e, mais tarde, com a mãe doente, deixa pendente o processo de obtenção do green card nos Estados Unidos e
regressa a Terras de Vera Cruz. “Ele veio embora, voltou para o Brasil e com o que
ele ganhou trabalhando lá, montou, chama-se “distribuidora de bebidas”, só que
na frente tem uma espécie de um café, onde vende bebidas ao público”. Regina
conta-nos a história deste romance. “Ele é muito mais novo do que eu. (...) Sempre
brincava desde pequenininho que ia casar comigo. Se metia no meio de mim e do
meu marido, separava a gente a beijar. Esta coisa, de brincadeira. Ele já morava na
América, quando ele ficou sabendo que eu me tinha separado. Mas ele telefonava,
ia mandando postais, aquela brincadeira.” Fazem juntos a opção de emigrar, apesar
de ser “um tabu muito grande vir para Portugal”. Marcelo chega primeiro, em 1999,
e Regina no ano seguinte. Recorrem a um contato, “o tio da esposa de um tio dele”,
que vivia no Carregado. Quando tomam a iniciativa de emigrar, fazem-no com receio. “As pessoas que cá estavam colocavam muito medo”, explica Regina. “Diziam
que se nós fossemos pegos, íamos para dentro de contentores, que íamos ficar
algemados.” Apesar de luso descendente, Regina pouco sabia sobre o país. “O meu
avô português, já era falecido e morou desde os dez anos no Brasil. A gente não
sabia. Ele foi embora numa época em que aqui tudo era diferente.”
Os primeiros tempos em Portugal são particularmente complicados. Primeiro, Marcelo é enganado pelo tal contato, de apelido “Quincas”, que o aloja num apartamento
em conjunto com outros tantos imigrantes e o ludibria, deixando-o sem dinheiro.
Conhecedora deste fato e face à insistência do companheiro em continuar a tentar
a sua sorte no país, Regina decide vir também para Portugal. “Vim ver como é que
as coisas estavam.” Passam por diversos trabalhos, casas e zonas de residência. “No
início foi muito difícil. Chegámos a passar fome. Chegámos a ter um pão bola para
comer o dia todo. A gente cortava um pedacinho para de manhã e outro para a noite.” Mas nem tudo foi negativo. “Foi num período que nós encontrámos muita gente
boa, principalmente patrões que se sensibilizaram, mesmo a gente não reclamando
da vida. Foi coisa que nunca fizemos: reclamar. Muita gente grata, muita gente boa.”
Vivem em diversos locais, Carregado, Cotovios, Asseiceira, Rio Maior e, pouco a pouco, conseguem organizar e estabilizar a sua vida. Marcelo passa por trabalhos na
construção civil, por empresas de distribuição de produtos e cultivo de produtos
agrícolas. Depois de conseguir juntar algum dinheiro e atualizar a carta de condução, começa a trabalhar como motorista, primeiro de transportes internacionais e
depois na volta nacional. Mais tarde, faz exames e entra na Rodoviária do Tejo, onde
se mantém até hoje.
Quanto a Regina, o primeiro trabalho é com acamados, serviço que chega a acumular com limpezas em casas particulares. Foi secretária na Escola de Condução de
Asseiceira, trabalho que lhe agradou muito, mas que teve de deixar, face à falência
da empresa. Segue-se a atividade de operária fabril numa panificadora e, posteriormente, no armazenamento e engarrafamento de vinhos. Este último, foi o serviço
mais arriscado que fez, por falta de condições de segurança e formação adequada.
“Lá eu tive um acidente. Que lá não há condições mínimas de trabalho mesmo.
Na semana que eu tive um acidente, eu tive mais sete colegas que também foram
acidentadas. (...) Uma colega nossa inclusive perdeu os dedos.” Atualmente, faz serviços de tradução para um cliente espanhol. “Está querendo entrar no mercado
português, numa área que eu gosto que é a química.”
A adaptação ao país foi marcada por desafios também no que respeita a ultrapassar
preconceitos e ideias-feitas. “Dói um bocadinho quando a gente sente o preconceito”, confessa Regina. A ideia que associa as brasileiras a certas posturas mais liber-
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tinas é uma das que mais a agasta. “Que está disponível. Que os homens, maridos,
estão ali para apoiar esse tipo de atitude.” Ainda há pouco tempo, Regina teve de
passar por mais um episódio infeliz, quando um potencial empregador lhe propôs
“Você quer o emprego? (...) Você é imigrante, você é pobre, você é brasileira. Quer ter
uma vida normal aqui? Já viu que tem aqui uma residencial. Vamos lá ter comigo?”.
Regina fala também sobre a ideia que muitas pessoas partilham sobre a condição
de imigrante, enquanto indivíduo pouco instruído e de baixos recursos. “Eu quando
vou numa entrevista já não levo o meu currículo”, diz-nos. Regina admite estar
cansada de explicar a razão de uma pessoa com as suas habilitações e experiência
profissional ser imigrante. “Se eu quero ficar aqui na minha vida, toda a gente que eu
bata na porta, eu tenho de fazer papel de coitadinha. Viemos para cá porque ficámos
descapitalizados no Brasil. Eu não me importo de falar.” Mas não aceita ter continuadamente de explicar a sua situação, porque supostamente: “Se eu vou numa entrevista, querem entrevistar o profissional, não querem saber da minha vida pessoal.”
O preconceito em relação à cor de pele também não é desconhecido para Regina.
Marcelo é negro e ainda, há poucos meses, teve de ouvir comentários bastante desagradáveis ao ser eleito Rei do Carnaval na Asseiceira, localidade e freguesia do
concelho riomaiorense. “Um Rei preto, brasileiro e preto”, foi uma das observações.
O recurso ao humor é uma escapatória defendida por Regina. “Ele falou: Não precisa ter medo, que eu não solto tinta não.” E adianta: “Eu vou sempre ultrapassando
também, por mais que me doa às vezes, com as pessoas, sempre sorrio. E quando
não é possível sorrir, eu procuro baixar o máximo possível o meu tom de voz e
de uma forma o mais educada
possível, falar com as pessoas.”
Todavia, as situações que tem
Eu tive dificuldade
tido de enfrentar não são moticom o preconceito por que passei.
vo para deixar Portugal. “Eu tive
Com o país não.
dificuldade com o preconceito
por que passei. Com o país não.
E não com todas as pessoas,
certo? Com algumas. Tem portugueses que são um espetáculo, um espetáculo mesmo. Como esses patrões que o Marcelo teve, como os patrões que eu tive, amigos
que nós fizemos cá, que são grandes amigos.”
Sobre a forma de ser lusa, Regina realça a falta de fé e confiança. “Eu acho que os
portugueses têm um defeitinho: o português não aposta no país.” Mas Regina entende que apesar de tudo, “O país em si, eu acho que tem tudo para dar certo. (...)
Portugal tem grandes chances, grandes chances.” Declara-se contra o pagamento
do subsídio de desemprego para a pessoa estar em casa e defende o trabalho comunitário. “Ia trabalhar num centro de saúde ou num lar de idosos.” Coloca também a
hipótese de serem desenvolvidas em Portugal ações com os presidiários, como as
que decorrem já há alguns anos no Brasil. “Então tanta rua para limpar, tanto pinhal a pegar fogo, porque é que não põem os detentos? É ótimo para integrar e para
não estarem convivendo às vezes com um que fez um crime maior.”
Quanto a projetos de futuro: “A minha ideia é morar cá. Continuar morando.” E
agora que conseguiu formalizar o seu divórcio, Regina pretende tratar da nacionalidade portuguesa. “No meu caso é mais fácil, porque como o Marcelo já tem, eu
posso adquirir por ele.”
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Manuel Domingos Souto
O caso de Manuel Domingos Souto não cabe no
conceito de imigrante, já que apesar de ser oriundo de um país que atualmente é uma nação independente, esse mesmo país era à época do seu
nascimento, uma das colónias do potentado luso
em terras africanas. Não quisemos, todavia, deixar de tentar resumir, em poucos parágrafos, um
percurso de vida tão rico, que já conta 84 anos.
Souto nasceu na então Sá da Bandeira, atual Lobango e considera-se a si mesmo, não um imigrante, nem mesmo um retornado, apesar de ter
chegado a Portugal na vaga dos que foram apelidados como tal, mas sim um refugiado, obrigado
a deixar a sua terra natal por conta de um conflito
civil, onde se confrontaram MPLA, UNITA e FNLA.
“A guerrilha maior não foi quando estava lá a tropa portuguesa, foi quando a tropa
portuguesa foi retirada. Porque quando foi entregue ao MPLA, os outros revoltaram-se. Aí é que foi a chatice.”
O documento de identificação de Souto indica que completou 82 anos, mas de fato tem
84. Fruto de uma relação entre um português, natural de Cantanhede, e de uma autóctone de Angola, foram necessários dois anos para que a união fosse oficializada e o filho
registado. “De maneira que ele (o pai) pediu a certidão de Cantanhede, mas naquela
altura não havia assim correios e levou quase dois anos, a certidão a lá chegar. Quando
lá chegou a certidão, foi quando autorizaram a casar com a minha falecida mãe.” Quando Souto tinha oito anos de idade, o pai morre de paludismo. Três anos depois, perde a
mãe, segundo diz, vítima de uma espécie de fraqueza ou tuberculose. “De maneira que
eu, nessa altura, com onze anos, fiquei órfão e procurei trabalho de ajudante.” Souto
fica sozinho, sem rendimentos e sem abrigo, tendo de deixar a casa arrendada onde
vivia com os pais. “Tinha irmãos da parte de mãe. (...) Já se sabe, a minha mãe teve o
primeiro marido e depois há aquelas zangas e foram três irmãos com o pai.”
Como único apoio, conta com uma avó que ocasionalmente lhe mata a fome. “Eu tinha uma avó preta que não sabia falar português, mas estava fora da cidade, aí uns
sete ou oito kms. E eu, de vez em quando, ia ter com a avó, se me faltava a paparoca
e essas coisas todas.” Souto ajeita trabalho, como ele próprio diz, numa oficina a fazer pequenos serviços e dorme em obras. Chega a ir pedir trabalho nas obras públicas
“porque a minha ambição era trabalhar nas máquinas. Mas não consegui, porque não
queriam. Eu era miúdo.” Passa, depois, para uma oficina de mecânica. “Mas ganhava
pouco. Ganhava 25 tostões por dia. (...) Não chegava, porque tinha que comprar uma
broa. Uma broa custava um escudo. 5 tostões de torresmo e almoçava, mas já não
dava para o jantar.” Para além disso, andava sempre sujo e tinha vergonha porque os
antigos colegas de escola, com quem jogava à bola, andavam limpos. “E eu não ganhava
para a roupa. Andava de sapatos rotos. Envergonhava-me um bocadito porque os meus
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condiscípulos de escola andavam bem vestidos e eu um farrapilha.” Consegue, enfim,
um serviço nas obras públicas, mas a 400 kms de Sá da Bandeira, no meio do mato.
Com cerca de 13 anos e sem qualquer experiência no ofício, arrisca trabalhar como
canalizador. “Enquanto os outros brincavam, eu tomava atenção nas obras, como é
que se fazia. Eu tinha gosto em tudo e hoje ainda tenho.” Souto teve de ser autodidata
e aprender observando e lendo. Quando, quatro anos depois, regressa do colunato que
ajudou a construir e consegue emprego na Missão de Estudos, nas oficinas de mecânica,
recorre aos livros para se inteirar deste trabalho. E teve também de crescer depressa.
Aos 17 anos, considera que: “Já não era uma criança, já conduzia, já era caçador. Quer
dizer, fiz-me um homem.” O trabalho seguinte é nos caminho-de-ferros e é no decurso
do mesmo, que conhece a sua futura esposa, Maria Madalena, e tem os primeiros dois
de um total de cinco filhos. Alguns anos depois, retorna mais uma vez a Sá da Bandeira,
para inscrever os filhos na escola e consegue emprego como motorista na carreira pública. “Foi o melhor serviço que encontrei. Limpo. (...) Era obrigado a usar farda. Tínhamos
de andar de gravata e boné.” Com a venda da Camionagem Ema por Venâncio Guimarães, conhecido empresário da época e proprietário de um sem fim de negócios, mantém-se ao serviço deste mesmo patrão, por mais dezassete anos, realizando todo o tipo
de tarefas, desde operador de máquinas, a condutor de pesados e a motorista particular.
Em 1969, compra uma mota, com a qual tem um acidente na véspera de Natal. Instado
pela família, resolve trocar a mota por uma camioneta, uma Betford K7, com capacidade para 8 toneladas, com a qual começa a fazer transportes nas horas vagas. Mas
uma avaria na estrada, fá-lo chegar tarde ao trabalho. “De manhã, o patrão precisou de
mim e eu não estava.” E acaba por ser desmascarado em relação à atividade por conta
própria que mantinha em paralelo com o emprego. “Sr. Venâncio, eu faço isto porque já
estou há muitos anos na casa e qualquer dia estou velho e o patrão depois de velho, já
não me quer, manda-me embora”, justifica-se. Ao invés de o despedir sumariamente, o
patrão dá-lhe a oportunidade da sua vida, oferecendo-se para fiador na compra de um
veículo, sob condição de Souto lhe continuar a prestar serviços, desta feita enquanto
trabalhador independente. Em 1970, Souto adquire um camião da marca Mercedes e
com 42 anos começa a trabalhar por conta própria. A vida corre-lhe bem nesta fase.
“A vida foi uma maravilha. Chegava-se ao fim do mês, tinha dinheiro para tudo. Até
tinha dinheiro no banco.” Consegue adquirir mais um veículo, uma Isuzu e contratar um motorista. “Carros pagos. Tudo correu às mil maravilhas. Tudo pago. Não devia nada a ninguém”. Souto constrói casa para a família, consegue amealhar algumas
centenas de contos no banco, possui uma concessão de mais 1.100 cabeças de gado,
quando a guerra civil estala e a vida se torna um inferno.
Os episódios porque passa são, no mínimo, dantescos. O filho é levado pela FNLA para
servir como soldado e só a muito custo Souto consegue libertá-lo. O próprio Souto é
preso, assiste a assassinatos sumários, é agredido e obrigado a ficar nu numa estrada
em pleno dia, perde colegas de trabalho, vizinhos. Tem de andar sistematicamente
em movimento sob pena de lhe tirarem os veículos, como vem a suceder com a Isuzu. “Há pessoas que passaram as guerras em Angola, mas não passaram como
o camionista. O camionista passou um mau bocado.” Não esquece quando num
controle da FNLA, assiste ao desespero de uma família, identificada como partidária
do MPLA. O homem é executado com um tiro na cabeça à frente da mulher grávida e
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de dois filhos. “Deram pontapés na barriga da mulher com uma bota tão grande. (...)
Os garotos a chorar. Pancada nos garotos. Furaram o carro.” Chega a um ponto que
não aguenta mais. “Eu não tinha medo. Já andava perdido. Andava perdido. Quando
chego um dia a Sá da Bandeira, vejo lá aquele descontrole todo.” Aproveitando o cerrar de um tiroteio entre soldados sul-africanos e o MPLA, deixa o país com a mulher e
os dois filhos mais novos, em conjunto com outros refugiados, conseguindo apanhar
avião na África do Sul para Portugal. Os três filhos mais velhos já tinham sido enviados antes, um de cada vez. Aterram em Portugal no dia 11 de maio de 1976 e as dificuldades continuam. São alojados na Colónia Balnear “O Século”, na Parede. “Viemos de
mãos a abanar. Tanta gente, que a mim tocou-me um azar muito grande, dormir na
varanda. Frio, frio.” Vale-lhe mais uma vez o espirito de iniciativa e a valentia. Apanha o comboio até ao Poço do Bispo e procura por emprego. Pensou: “Eu não posso
estar lá. Então andam lá à pancadaria uns com os outros. Saio de uma terra, fugido da
guerra e vou estar assim.” A oportunidade surge em Leiria, como ajudante de motorista numa serração. Sente na pele, talvez pela primeira e única vez na vida, o racismo,
por parte do chofer com quem trabalha. “Foi a única coisa que encontrei em Portugal
a ser racista e tudo. Do pior. Um rapaz novo. Tinha eu 48 anos na altura e ele tinha
ai uns 22.” Numa vida
pautada por enconEu não posso estar lá. Então andam tros, consegue, quatro
meses depois, emprelá à pancadaria uns com os outros.
go na auto-estrada
Saio de uma terra, fugido da guerra
através de um velho
conhecido de Angola
e vou estar assim.
e passado outro tanto
tempo, encontra à saída do metro, em Lisboa, o antigo patrão Venâncio. É ele que lhe dá novamente trabalho, no caso em Rio Maior e lhe dá oportunidade de alojar a família, que ainda residia
nos albergues do estado, numa pequena barraca de madeira e telhas de lusalite onde
vive cerca de seis anos, até que consegue comprar um terreno e começar a construir
uma pequena habitação.
Ao fim de um ano e meio nesse emprego, informam-no que o camião que tinha expedido na África do Sul estava na alfândega. “Fui lá ver a camioneta em Alcântara. Sem
faróis, sem bomba injetora, sem bateria, sem nada, carroçaria amolgada, o reboque
virado ao contrário. As coisas, tudo podre”. Com muito sacrifício e trabalho, consegue
pagar as despesas com a regularização e o arranjo do camião e volta mais uma vez a
dedicar-se ao transporte por conta própria. “Nunca me faltou serviço”, diz-nos Souto.
Decerto pelas boas relações que estabelece e lhe garantem manter a atividade por
anos a fio, só parando quando a polícia o informa que a idade não lhe permite conduzir o veiculo que tinha acabado de pagar e com o qual pretendia amealhar para os
anos vindouros. Tinha 72 anos. No entrementes, a esposa de Souto falece. “Quando foi
a morte da minha mulher, aquilo ficou-me na cabeça. Estive quatro anos sozinho.
Muitas vezes dormia, não fechava a porta. Não me importava.” Os filhos instigam-no
a arranjar uma companheira. “Sou velho, mas não sou muito velho”, pensou. Depois
de um primeiro relacionamento, Souto reencontra uma velha conhecida durante um
passeio às Caldas da Rainha e é com ela que, hoje em dia, partilha os seus dias.
17
ˇ
Šárka Vanková
ˇ
Františkovy Lázne
Šárka é natural da antiga Checoslováquia, tem
37 anos, está casada com um cidadão português
e tem duas filhas, uma com um ano e outra,
mais velha, com seis anos.
Quando Šárka nasceu, a mãe ainda não tinha
completado os 17 anos e o pai somava 18. A juventude, associada ao fato do casal ter estado
separado cerca de dois anos, por força do pai
cumprir o serviço militar, acabou por ditar o fim
do relacionamento. Šárka ficou a viver com a
mãe e visitava o pai a cada quinze dias. Da parte
do pai ganhou dois meios-irmãos e da mãe, outros tantos, fruto de novas relações.
Completou o 8.º ano na terra natal e depois terminou o liceu numa cidade perto,
Cheb. Com 18 anos e o 12.º ano de escolaridade, decide procurar trabalho. Como a
mãe estava sozinha e Šárka “não queria sobrecarregá-la a ir para fora”, empregou-se na mesma localidade e começou a trabalhar na receção de alguns hotéis. Daí
passou para as reservas e, a dada altura, inicia o curso de gestão de empresas,
porque se apercebe que a empresa dá hipóteses de progredir. “Quando via que o
funcionário queria estudar, deixava-o subir na carreira.”
Algum tempo depois, decide ir tirar um curso a Inglaterra. A empresa em que trabalhava assina um contrato com egípcios, que exigem uma pessoa com bons conhecimentos da língua inglesa. A diretora da empresa concorda em dispensá-la durante
três meses, mas alerta-a: “Olha, podes ir, mas não me fiques lá para casar.” Por
pouco não acerta. Šárka não casa, mas conhece o futuro marido, um português, no
decorrer do curso, lecionado na Bath Academy. Lembra-se que o Ricardo se destacava entre os outros alunos, oriundos de várias paragens, chineses, japoneses, russos,
colombianos, porque era uma pessoa muito curiosa e ria-se muito.
Como o futuro marido apenas frequentou 3 semanas do total de 3 meses do curso,
despedem-se apenas como amigos, mas não perdem o contato e trocam correspondência. Acabam por combinar um encontro na República Checa, que se concretiza
em fevereiro de 2002, mais propriamente em Praga, cidade onde ficam juntos durante uma semana. “Aconteceu uma coisa curiosa”, conta Šárka: “Ele me disse: Se
quiseres, reserva um quarto e vamos conversar, para ver se gostamos um do outro.
Mas como não entendi bem o inglês, eu reservei um quarto... para os dois!”
Em maio do mesmo ano, foi a vez de Šárka vir a Portugal. Mas continuaram sem
nada definido. A decisão não era fácil. Šárka frequentava na altura o 3.º ano do
curso de gestão de empresas, enquanto Ricardo estava a trabalhar como professor
18
universitário em Bragança e a frequentar o mestrado. Foi Šárka que acabou por
tomar a iniciativa de deixar o emprego e os estudos a meio e, em setembro de 2002,
decidiu vir para Portugal.
Os primeiros tempos não são fáceis porque não fala uma palavra de português e se
vê de repente em casa, sem ocupação, quando na República Checa tinha sido uma
pessoa bastante ativa. Para tentar resolver quer um, quer outro problema, inscreve-se num curso de português para estrangeiros, lecionado na Cambridge Academy,
em Lisboa.
Mais tarde, quando o marido consegue transferência de Bragança para Santarém,
passa a frequentar um ginásio nesta última cidade. “Eu ia com ele e fazia aulas de
ginástica, se não, eu estava a começar a ficar doida.” É neste mesmo ginásio que
consegue uma primeira oportunidade de emprego. Numa conversa com o proprietário, conta-lhe que tinha dado aulas de ginástica em hotéis na República Checa e
este convida-a a dar uma aula à experiência. Acabou por ficar. Nesta mesma altura,
aperfeiçoa os conhecimentos da língua portuguesa com uma professora de inglês.
“Dava aulas em casa dela, onde eu assistia e praticava a língua.”
Outro desafio que Šárka teve de ultrapassar foi o de regularizar a sua permanência
em Portugal, já que, à época, a República Checa ainda não fazia parte da União
Europeia. “Na altura, no SEF, era muito complicado, tinha-se que esperar muito
para qualquer papel, nas filas.” Assim e para facilitar a estadia em Portugal, Šárka
resolve casar. O casamento civil, realizado a 14 de fevereiro de 2003, é marcado por
mais um episódio caricato. Šárka decide assumir o sobrenome “Vankova S. João” e
descobre, no dia seguinte, quando se dirige à embaixada da República Checa para
oficializar o casamento, que, segundo as regras checas, não pode assumir o nome
do marido nessa ordem. Resultado: “Chamei-me só durante um dia S. João”.
Após saber mais alguma coisa da língua, toma a iniciativa de retomar os estudos
superiores em Portugal e completa a licenciatura em Turismo no ISLA - Instituto
Superior de Línguas Aplicadas, em Santarém. Acatando a decisão de uma pessoa
conhecida, tira um curso especializado em hidroginástica durante seis meses, faz o
respetivo estágio e começa a
dar aulas nas Piscinas MuniFui sempre muito bem acolhida
cipais de Rio Maior.
em Rio Maior.
Relativamente às questões
de acolhimento, afirma que:
“Fui sempre muito bem acolhida em Rio Maior”. Além disso, diz nunca ter sentido
qualquer espécie de discriminação. “O que eu senti, embora que as pessoas, não
tenham culpa disso, foi que me comparavam com os ucranianos e os russos, mas
também não têm a obrigação de conhecer a história da República Checa.” Esta
comparação melindra-a um pouco porque a República Checa foi durante mais de
40 anos ocupada pela União Soviética e ainda hoje persiste um certo rancor.
19
Com a queda do muro de Berlim em 1998, Šárka, que na altura tinha dezasseis
anos, pôde sentir a diferença entre um país dominado pelo regime comunista e
a experiência democrática. “Pensávamos que todos viviam como nós”. A primeira
mudança que a marca é a língua russa deixar de ser obrigatória na escola. O acesso
a produtos e bens foi outra grande alteração. Às bananas e laranjas, por exemplo, só
tinham acesso no inverno, depois de esperarem três horas numa fila e era um saco
por família. Carros só havia da marca Skoda e esperava-se três anos por um. Com a
entrada na União Europeia ainda se acentuam mais as diferenças.
Fazendo uma comparação entre a República Checa e Portugal, Šárka fala da riqueza
cultural do primeiro país: “Cada época deixou marcas e consegue-se muito bem
identificar a história pela arquitetura das diferentes épocas. Existe muito da história medieval, algumas zonas neoclássicas, outras zonas com muitos vestígios dos
judeus da Segunda Guerra Mundial.” Considera que Portugal, por seu turno, tem
de tudo um pouco, com zonas variadas de norte a sul e uma costa com excelentes
praias. “Na República Checa não há mar e há muita gente que gostava de ter e
fazer as férias na praia.” Destaca também o clima. “O ótimo aqui de Portugal é o
sol. A República Checa pode ter tudo no mundo, menos o sol. Lá só há talvez trinta
dias por ano e as temperaturas são muito mais baixas.” Na sua opinião, o clima tem
impacto no humor. “Lá as pessoas andam murchas. O sol influencia muito. A nossa
disposição fica totalmente diferente.” Elogia também a cozinha portuguesa, que
considera “muito mais saudável.”
Fala sobre a questão da pontualidade portuguesa e sobre a cobertura ao nível da
Segurança Social. Isto porque, apesar de considerar que a República Checa está pior
em termos de proteção social do que há uns anos atrás, ainda mantém a licença de
maternidade de três anos. Para Šárka, esta licença é benéfica para as mães, já que
em Portugal: “Sufocamos porque não temos tempo para nada, temos os trabalhos
para fazer, a criança quer atenção.” Assim como, considera também positivo para as
crianças: “Eu vejo que as crianças lá são muito mais calmas do que as de cá. Aqui
são muito agitadas, parece que não se conseguem sossegar. Lá são mais quietas,
mais pacientes.” Em relação ao seu país de origem, considera que os checos: “Não
são tão abertos perante os estrangeiros, não se demonstram tanto. Quando vem
alguém de fora, não dão muita conversa.”
Atualmente a trabalhar numa
agência de viagens, Šárka planeia
Quando se começa a ter cá manter-se em Portugal e regressar
os filhos, escola e tudo, parece ao seu país de origem apenas para
fazer férias, como acontece todos os
que já não há retorno.
anos. “Quando se começa a ter cá os
filhos, escola e tudo, parece que já
não há retorno.” Confessa que a saudade agora já não é tão forte. Dantes emocionava-se muito com tudo.
Como remate do seu relato, Šárka pede-nos para deixar uma palavra de agradecimento ao marido e à sogra, que a adotou como terceira filha, e a todas as pessoas
que encontrou e a ajudaram “e tiveram sempre uma simpatia comigo.”
20
Vyacheslav Smirnov
Vyacheslav Smirnov, de apelido Slavic, nasceu em
Teleneste, Moldávia, há 36 anos, mas é cidadão e
possui a nacionalidade ucraniana. A razão que explica o porquê deste fato, é a mesma que, em certa
medida, ditou o seu percurso de vida.
O pai de Slavic foi agente do KGB (em português,
Comité de Segurança do Estado), numa época em
que a Guerra Fria dominava o cenário mundial
e os serviços secretos da antiga União Soviética
assumiam um lugar de destaque. Por conta deste cargo, o pai teve de viajar em conjunto com a
família e instalar-se na Moldávia durante três
anos, onde nasceu o segundo filho. A única irmã
de Slavic, três anos mais velha, tinha nascido na
Ucrânia. Passa depois pela Rússia e Alemanha, enquanto mulher e filhos regressam à pátria mãe. “Nós fomos para a Ucrânia, tínhamos
lá os avós, não é? E ficámos na Ucrânia. Depois ele, depois de vir da Alemanha, ficou lá
com a gente. E eu tenho a nacionalidade ucraniana.”
A experiência do pai enquanto agente do KGB teve também outros desenlaces, para
além do local de nascimento do filho. “Porque o pai, depois de trabalhar, acho que
levou um tiro. (...) Eu sei que ele passou mal. Não sei a história. E começou a beber.”
Por conta da dependência alcoólica do pai e do desregramento que adveio da mesma,
a família, que chegou a ter uma boa posição social e financeira, começa a passar por
dificuldades. “Teve muito dinheiro. (...) Podíamos viajar para o mar, viajar sempre. Só
que ele perdeu amigos, dinheiro, tudo! Depois começou a não arranjar mais trabalho.”
Em resultado, Slavic vê-se na contingência de ter que abandonar os seus projetos de
estudo. “A minha ideia era ir para a Escola Profissional de Futebol, mas tinha que
pagar. Como nós perdemos dinheiro, já não.”
Completou o equivalente ao décimo segundo ano e tirou um curso de técnico de frio,
mas depois teve que começar a trabalhar. “A minha ideia de futuro não era essa, porque o meu pai tinha muitos poderes, tinha amigos nos governos” e por isso, pensava
“ter uma vida diferente”.
Aos dezoito anos viaja para a Sibéria, onde faz diversos tipos de serviços, desde operador de grua a motorista. Nesta altura, tem a oportunidade de se juntar a uma equipa
de futebol e participar nalguns torneios. “E depois como joguei à bola, também ajudou
muito. Conhecia lá uma equipa boa, estivemos no nível nacional. (...) Ganhei algum
dinheiro. Por isso, aguentei lá dois ou três anos.”
Passou depois pela Polónia, onde esteve cerca de seis meses, e em seguida pela Alemanha, onde “estava com a ideia de ficar para sempre”. Slavic considera a Alemanha
21
um local “espetacular para trabalhar e para ganhar e bom para viver”. Contudo, a fiscalização é apertada e como não conseguiu obter a documentação necessária, teve de
regressar à Ucrânia. “Eles não deixaram ficar sem os papéis.”
Entretanto, durante os meses em que permaneceu na Ucrânia, um colega desafia-o a
vir para Portugal. “Ele é que tinha conhecimento aqui com pessoas. E eu estava com
a ideia de ir para a Inglaterra, já estava a tratar dos papéis.”
Slavic chegou a Portugal em 1999, para fazer a campanha da fruta, durante três meses, numa exploração localizada nas Quebradas, aldeia pertencente à freguesia de Alcoentre e ao concelho de Azambuja. Através de pessoas que já cá estavam há mais
anos, consegue depois emprego como padeiro, primeiro numa panificadora instalada
na Arruda dos Pisões, freguesia de Rio Maior e depois noutra na sede de concelho.
“Depois tratei dos papéis. Trabalhei na padaria e depois trabalhei passado um tempo
no César Cruz de motorista. Depois deixei o César Cruz, fui para o Justo, como motorista a transportar farinha.” Após esta experiência nestas duas empresas riomaiorenses,
só conseguiu arranjar trabalho como ajudante numa lavagem de carros e chegou a
pensar desistir e regressar à Ucrânia. Uma oportunidade de emprego, de novo numa
panificadora e também como motorista, fá-lo mudar de ideias. É nesse emprego que se
mantém ainda hoje, já lá vão oito anos.
Para além das dificuldades em se estabilizar profissionalmente, Slavic teve também
de ultrapassar outros desafios em Portugal. Um deles, naturalmente, foi a língua. “Nos
primeiros cinco meses já conseguia falar mais ou menos. Sempre perguntava como é
que se chama isto, como é que se diz isto. Buscava aprender para as pessoas me perceberem.” Teve também explicações com um particular, que “conseguia arranjar maneira
de explicar como é que se diz bem”, o que, no entanto, não resolveu completamente
os problemas de
Slavic com a língua lusa. “O verNos primeiros cinco meses já conseguia
bo português é
falar mais ou menos. Sempre perguntava
muito complicacomo é que se chama isto,
do. Pronunciar e
escrever então...
como é que se diz isto. Buscava aprender
(...) Escrever para
para as pessoas me perceberem.
mim é um bocado complicado. É
difícil. Diz de uma maneira, escreve de outra. (...) Na Ucrânia, temos letras certinhas.”
Atualmente, Slavic frequenta aulas de português, num curso de PPT (Português Para
Todos), que está a ser lecionado no Centro de Novas Oportunidades de Rio Maior.
Quanto a choques culturais, Slavic realça dois aspetos. Por um lado, a descontração
que se vivia, há uns anos, nas zonas rurais, relativamente a questões de segurança.
“Quando cheguei aqui, logo no início, vocês deixavam carros abertos, deixavam coisas dentro dos carros.” Por outro, a forma de receber de algumas pessoas. “Também
fiquei chocado, chocado no bom sentido, quando cheguei a Portugal. Uma pessoa tratava de mim, que é a D. Emília, que é a dona da padaria aqui, ela me tratava como de
22
um filho. E ela já tinha nove filhos. Tratava da roupa, fazia comer e eu estava a dormir,
depois de trabalhar à noite, ela me acordava: Vá comer! Espetáculo! Só com a mãe.”
O contrapeso em relação a este tratamento caloroso, foi ter de ouvir comentários pouco agradáveis de alguns autóctones. “Às vezes, as pessoas assim tipo: O que vocês vieram
aqui fazer? Estragar nossa vida? (...) Tirarem o trabalho?”. Slavic procura não ligar e argumenta: “Essas pessoas falam muito, trabalham pouco.”
Fazendo uma comparação entre o seu país de origem e o de destino migratório, Slavic
considera que ambos os países têm atrativos para um hipotético viajante, nomeadamente ao nível de beleza paisagística e património cultural.
Relativamente à Ucrânia, diz-nos que “Tem mais é igrejas. Se não houvesse a Guerra
Mundial, se calhar havia casas. Só que foi tudo destruído. Ainda sobraram algumas, em
especial na capital, Kiev.” Quanto à sua terra natal, Cherkassy, refere que: “Também há
muita coisa para ver: museus, parques, jardins, zoológico.”
Em relação a Portugal, para além do clima, considera que: “Para passear é bom. Para
visitar.” Notando, além disso: “Vocês têm séculos de história. Agora fui, há pouco
tempo, a Évora. Vocês têm aquelas colunas do século II. É impressionante. Nós não
temos nada disso.”
No que concerne a aspetos menos positivos, Slavic afirma que, do lado ucraniano, uma
das razões que o fazem ter menos vontade de regressar são as questões políticas, e
sublinha também a prática da corrupção, exemplificando: “Lá se tu quiseres abrir um
negócio, eles não deixam. É uma percentagem tão alta, tão alta para pagar de impostos, que o que tu ganhas é uma miséria. Não chega. E eles estão sempre em cima de
ti, a fiscalização. Tu tens que dar a toda a gente, seja polícia, seja…”
Portugal, por seu turno e na opinião de Slavic, peca mais por questões económicas.
Refere, por exemplo que não compreende os preços dos combustíveis praticados em
comparação com outros países da União Europeia. “Porquê? Se são iguais?” Relativamente à atual situação, considera que “A economia está muito em baixo e o ordenado
está muito mais em baixo.” Questionado sobre se tem sentido os efeitos da crise, Slavic
é perentório: “Sim. Estou a pagar casa, estou a pagar carro, tenho filha para sustentar e
estou a tentar ajudar a família também lá na Ucrânia e custa um bocadinho.”
De qualquer forma, e apesar das dificuldades porque passou e passa, os planos deste
ucraniano natural da Moldávia, incluem continuar a viver em Portugal. “Neste momento, estou estável. Ainda por cima, tenho cá filha já, de uma rapariga com quem
estive junto, uma portuguesa.”
À Ucrânia tenciona ir apenas de visita, de preferência todos os anos, como tem feito,
para matar saudades da família, na qual se incluem os pais, a irmã e dois sobrinhos,
um rapaz e uma rapariga.
23
Helene Wubben Lopes
Helene Wubben Lopes é a penúltima de sete filhos. Nasceu há 52 anos em Delft, na Holanda.
Mais tarde, irá passar também pelas cidades de
Naaldwijk, onde ainda hoje em dia vive a mãe,
por Haia e por Tilburg. Casada, com três filhos,
dois rapazes e uma rapariga, vive atualmente
em Assentiz, localidade e freguesia de Rio Maior.
Possui o bacharelato em Educação Social e até
à data, trabalhou sempre no ramo da educação,
exercendo de momento a atividade de animadora no ensino pré-escolar e mais precisamente
no Centro Escolar n.º 1, em Rio Maior, onde todos a conhecem pelo apelido “Jopie”. Na Holanda, para além de trabalhar num infantário, foi
voluntária nos “Nómadas”, um projeto experimental que tentava levar crianças de
etnia cigana a frequentar a pré-primária. A sua função era ir “buscá-los às roulottes
e entrega-los lá e convencê-los a ir à escola. Foi difícil!”
A vinda para Portugal nasce da união com um português que, anos antes, “no tempo do Salazar”, tinha ido à Holanda num programa de intercâmbio. Neste programa, os jovens trabalhavam na reconversão dos parques infantis, substituindo o ferro, de que eram feitos, por madeira. “E então ele foi para lá e a gente conheceu-se
num café. E o achei muito exótico, muito interessante. Eu era muito jovem, 14, 15
anos e ele 19, 20 anos e falava inglês.”
O casamento, todavia, ainda demorou uns anos a acontecer. Com a revolução de
abril de 74, várias escolas fecham em Portugal e o futuro marido, que já conhecia a
Holanda, regressa ao país com uns amigos numa viagem, que irá incluir também
outros destinos europeus, caso da Inglaterra e da Bélgica. No termo deste périplo,
fixa-se na Bélgica, onde fica a estudar cerca de dois anos e chega a morar com uma
rapariga. Mas Jopie explica-nos que: “Não esqueceu de mim e escreveu-me uma
carta e começámos a namorar a sério e, entretanto, veio para a Holanda em 77.”
Jopie confessa que a primeira vez que visitou Portugal, em 1978, sentiu “um choque cultural muito grande para mim, talvez equivalente a uma pessoa que vai
para Afeganistão, não em termos de religião.” À época, o país “tentava alcançar
o desenvolvimento dos países nórdicos. Agora já se fez uma grande caminhada e
já não acho que há assim grande diferença entre cá e lá.” Apesar do choque, Jopie
diz-nos que ficou “espantada pela positiva pela simplicidade, era tudo muito direto
com a natureza, matava-se a galinha para comer e coisas assim. Na Holanda não
era assim, aqui tive de voltar às origens.”
24
Para além da proximidade que os portugueses mantinham com o mundo natural,
também agradou a Jopie a forma de as pessoas se relacionarem. “Mais espantoso
para mim, em Portugal, foi o contato direto entre as pessoas e muito “quentes” a
falar. Pensava que as pessoas estavam sempre a brigar.” Explica-nos que, na Holanda, “a gente não fala assim, em confronto com outras pessoas e eu adorei isso”.
Assim como adorou que Portugal fosse “cheio de sol, claro!”. Jopie fala também dos
preconceitos e ideias-feitas da família relativamente aos povos do sul da Europa. “O
meu pai tinha muito medo dos países do sul e quando eu vim para cá avisou-me: Vê
lá onde te vais meter, entras numa cozinha e nunca mais sais de lá, as mulheres não podem
ter opinião!” Por isso surpreendeu-a, quando chegada a Portugal pela primeira vez,
tenha encontrado “toda a gente nos cafés a conversarem e a opinar e eu pensei que
o meu pai está completamente enganado sobre isto.”
O resultado dessa viagem, conta Jopie, foi ter decidido “regressar e emigrar porque
fiquei espantada e a vida cá criou-me sentimentos tão fortes. O meu marido português queria ficar na Holanda, ele se identificava com aquilo.” A vontade de Jopie,
todavia, prevaleceu. “Depois em 81, viemos para Portugal e casámos.”
Os primeiros tempos foram especialmente difíceis, porque o casal quis viver independente e optou por instalar-se num “apartamento sem condições” em Sacavém,
localidade onde o sogro de Jopie tinha conseguido emprego para o marido, a trabalhar no aeroporto. “Foi como um chuveiro frio. De todas as adaptações da minha
vida, estes sete meses marcaram-me como se fossem anos”, explica. De positivo,
a marcar este período, somente as aulas no Conservatório de Lisboa, que Jopie frequentava de manhã e os ensaios com um grupo de teatro à tarde. “Foi giro para eu
ter uma coisa para fazer e adaptar-me à vida portuguesa.”
No passo seguinte: “Fizemos questão de ir ao extremo e comprámos mesmo uma
quinta com mínimas condições ou nenhumas, não tinha luz, água, gás, nada, em CasO objectivo era tentar telo de Vide, numa serra isolada.” O objetivo
era “tentar viver do ar, das plantas e do pasviver do ar, das plantas tar.” As refeições eram feitas numa fogueira,
“um fogão, isso só houve depois”, as necese do pastar.
sidades mais básicas “montanha acima” e
os banhos e a roupa dependiam “de uma
mina de água com aqueles tanques”. Em Castelo de Vide viveram cerca de três anos.
Voltaram à Holanda, entrementes, por causa dos filhos. Isto porque, Jopie confiava
mais no sistema de saúde holandês. “Quero as coisas à minha maneira, tive os
filhos lá, em Tilburg, para ter os partos em casa. Eu sou muito teimosa, quero as
coisas como eu acho que estão bem e lá ser grávida não é uma doença, as pessoas estão cheias de saúde!” Em Portugal, no seu entender, a experiência da maternidade é toda dirigida para os hospitais, locais que Jopie faz questão de evitar. “Então,
algumas semanas antes dos partos, ia para a Holanda e ficava lá os primeiros nove
meses, pelo menos.”
25
O casal, nestas idas e vindas, permaneceu na Holanda cerca de quatro anos e voltou a Portugal, segundo Jopie, mais adulto, com dois filhos e com planos bem definidos. “Queria uma vida rural, uma aldeia, escolinha... Então, decidimos ir para
Assentiz, onde estão os meus sogros. O que gostei muito, não foi muito difícil.”
Viver no seio da família ajudou-a a ultrapassar a barreira linguística, assim como
ser casada com um português tornou a adaptação mais fácil. Não deixou, todavia,
de fazer a aproximação à comunidade holandesa para que os filhos pudessem escrever e falar ambas as línguas.
Destacando o que acha de melhor nos países de origem e de destino, refere em
relação ao primeiro que “na Holanda é uma verdura por todo o lado. Vou sempre
sugerir Amesterdão para visitar, porque é uma cidade única no mundo e conhecer
o sul da Holanda, que para mim foi uma revelação.” Melhor que Portugal, a Holanda
tem o sistema de saúde e a
igualdade de oportunidades.
Há sempre uma maneira
“Há sempre uma maneira
para que todas as pessoas tenham para que todas as pessoas
tenham acesso aos estudos.”
acesso aos estudos.
Em relação ao país de destino, acha Portugal muito acolhedor e tolerante para com os imigrantes. Todavia, acha negativo que os portugueses confundam as pessoas com os países e generalizem um povo.
Por isso, e apesar de entender nunca ter sido vítima de discriminação, humilhações
ou maus-tratos pelo fato de ser estrangeira, refere que “às vezes confundem o sotaque e apontam-me logo como ucraniana, mas como algo negativo. É discriminativo
para os outros, não para mim.” Também considera que há uma certa inflexibilidade
em relação a viver segundo padrões diferentes da maioria. “Eu entendo porque isso
vem do tempo do Salazar e ainda é muito fresco. A mentalidade ainda não está
preparada. Está tão enraizado que passou para os genes!”
Confessa que não tem sentido especialmente a crise, porque os filhos já são independentes e sempre viveu de forma comedida. “Como sempre vivemos à pobrezito, carritos pequeninos, tudo pequenino, mas é tudo nosso, então podemos
pagar.”
Apesar das dificuldades que tem passado em Portugal, Jopie diz-nos que nunca
pensou em desistir e tornar à Holanda, “o meu marido é que sim, ele sempre me
chateia que eu quero ficar e que deveríamos ter ficado lá. Mesmo os anos que estive
na Holanda, aqueles quatro anos, eu já estava a ver-me a viver aqui em Portugal.
Não era opção, era mesmo o que queria.” Só mesmo daqui a uns anos admite o
retorno porque quer “um lar na Holanda, que são muito giros, fazem atividades.
Então, velhinha que me ponham lá.”
26
Marin Mitchev Marinov
Marin Mitchev Marinov nasceu no norte da Bulgária, perto da fronteira com a Roménia. Com
56 anos, é casado e tem dois filhos, um rapaz
e uma rapariga. No entanto, vive sozinho em
Portugal. Explica-nos que a mulher teve de regressar à Bulgária para não perder a licença
como enfermeira. “Há um período, se não trabalha, perde a licença.” “6 meses”, acrescenta.
Os filhos, maiores de idade, fazem a sua vida
independente. Ele na Bulgária, em Sofia, como
professor de educação física e ela em Bruxelas, onde é funcionária na Comissão Europeia.
O facto de possuir a nacionalidade portuguesa desde 1990 e da Bulgária ter entrado para a
União Europeia, em 2007, facilita as coisas no que respeita a poder viajar e visitar a
família. Apenas uma dificuldade, confessa Marinov, “gostava de ter dinheiro para
comprar bilhete. Só isso.”
O percurso de Marinov é marcado pela prática desportiva. Jogador profissional de
andebol até à idade de 44 anos, começou cedo este percurso. Saiu de casa com 14
anos e aos 17 ingressou na escola militar, onde tirou o curso de construção ferroviária. Pela mesma altura, começou a praticar andebol. Formou-se como professor de
educação física pela Universidade de Desporto de Sofia e, mais tarde, já em Portugal, frequentou cursos de treinador de andebol.
O desporto foi também o móbil da sua experiência migratória. Enquanto jogador
da seleção nacional de andebol búlgara, teve a oportunidade de participar em diversos torneios, onde contactou com jogadores, treinadores e outros responsáveis
da seleção de Portugal. Desses encontros resultou o convite para, em 1987, vir jogar
para o Braga. Esteve também ao serviço do Boavista, Águas Santas, Castelo Branco,
Esposende e Rio Maior.
A mulher e a filha chegaram no
mesmo ano, pelo Natal. O filho só
no ano seguinte.
Dificuldade senti na língua,
porque quando não percebes
as notícias pareces,
pronto, uma pedra.
Quanto à adaptação a Portugal,
Marinov diz não ter sentido o denominado “choque de culturas”.
Até em questões de religião “não há muitas diferenças”, defende, “porque lá (na
Bulgária) é ortodoxa.” No entanto, não deixa de evidenciar a questão linguística. “Dificuldade senti na língua, porque quando não percebes as notícias pareces, pronto,
27
uma pedra.” Sobre este assunto, dá o exemplo de França, país no qual os jogadores
tinham acesso a cursos de língua gratuitos. A situação em Portugal, em meados da
década de 80, era outra. “Eu aprendi assim,
na rua. O meu português não é muito correto, mas é assim.”
Eu aprendi assim,
No entanto, alguns aspetos causaram-lhe, na rua. O meu português
inicialmente, alguma estranheza. Confessa
não é muito correto,
que nos primeiros tempos, Braga fazia-lhe
mas é assim.
lembrar a Turquia. “Sabes, na Turquia é assim: vais ao café e só há homens. Raramente havia mulheres. Só que depois as coisas, pronto, mudaram rápido.” Outro aspeto
que lhe pareceu inusitado. “Não sei se hei de dizer se não, mas vou dizer. Quando
cheguei cá, reparei que muita gente não tinha dentes.” E pensava “Como é possível
isso? Porque na Bulgária toda a gente tratava, tinha médico.” Percebeu mais tarde
o porquê. A população não tinha acesso gratuito aos tratamentos, como sucedia
no seu país, onde “Era tudo de borla. Não se pagava nada.” Revela também que:
“Quando cheguei havia muitas crianças a trabalhar nas fábricas lá de Guimarães.
Coisas que eram estranhas para nós.” Na Bulgária, então, como agora, a proibição
do trabalho infantil era uma prática. “É proibido por lei, não podes trabalhar até aos
18 anos.” Outro aspeto distintivo: a política de pleno emprego existente na Bulgária,
comum nos regimes comunistas. “Era obrigatório também teres que ter emprego.
Era obrigatório. Tu não podias andar na rua, assim, sem emprego.” Em aspetos
como este, diz-nos “havia uma justiça” no comunismo.
À pergunta o que de melhor tem Portugal, Marinov responde dando exemplos concretos da sua experiência. Uma visita a Portugal nos finais da década de 70, resultado de um convite feito pela seleção portuguesa à búlgara, permitiu um primeiro
contato com o clima aprazível do país. “Nós tivemos um convite de virmos aqui para
Portugal. Estou a falar de 77. Estivemos em Grenoble, lá estava frio, porque era nos
Alpes, com neve. E nós chegámos no fim de dezembro, aqui em Portugal. Ficámos
em Cascais, na escola de desporto do Estádio Olímpico. Lembro-me que nas ruas
de Lisboa havia muitas manifestações, depois teve greve, o aeroporto ficou fechado
e nós ficámos o Natal aqui em Portugal. E depois quando voltámos à Bulgária, onde
nós treinávamos, no nosso Pavilhão, passávamos sempre perto da Embaixada de
Portugal. Naquela altura, era inverno, muito frio e nós sempre falávamos...”, deixa
em suspenso Marinov, referindo-se à vontade dos jogadores de voltarem ao clima
quente de Portugal. Destaca também a sociabilidade dos portugueses. “Tivemos
encontros com Portugal, com Espanha, com Suíça... Nunca tivemos ninguém, não
só eu... Nunca nenhum de nossa equipa teve alguma amizade com suíços, mas
com portugueses, todos.”
A circunstância de vir para Portugal como um atleta com créditos reconhecidos facilitou a integração. “Tinha nome, ou melhor, eu tenho nome aqui em Portugal, porque
não cheguei como imigrante, cheguei com contrato como jogador da seleção, cam-
28
peão”. A sua chegada a Braga foi alvo da atenção da comunicação social local e os
resultados alcançados pelo ABC também ajudaram. Para além disso, Marinov chegou
antes do boom de imigração ocorrido nos anos 90. “Na altura imigrantes de leste foram bem recebidos aqui em Portugal. Depois, pronto, apareceu muita gente quando
acabou o muro de Berlim, porque normalmente quando há grandes imigrações, os
primeiros que fogem são criminosos, sabes, gente que procura outras coisas.” Hoje
em dia, considera que: “ficou gente trabalhadora, tudo gente normal”. Marinov nunca
se sentiu especialmente discriminado, mas também não valoriza aqueles que tratam
os estrangeiros de forma diferente. “Eu não ligo a estas coisas, não ligo.”
Abordada a possibilidade de regressar ao país de origem, responde: “Eu vejo as
coisas de outra maneira.” Marinov faz um paralelo entre a União Europeia e a realidade norte-americana. Para ele, deslocar-se no espaço europeu é a “mesma coisa
se estás nos Estados Unidos, na Flórida ou vives noutro Estado.”
E falando sobre o seu país de origem e o que destacaria do mesmo, refere: “A Bulgária tem o Mar Negro, não é frio como aqui, a água lá é quente, 27, 28 graus no verão.
Tem montanhas. Dá para no inverno esquiar.” Conta que: “Antigamente, porque
eu vivi no sistema do comunismo, agora dizem que era ditadura, mas eu não senti
sinceramente nada de ditadura, quase era obrigatório termos um campo de férias
no Mar Negro e um campo de férias na montanha.” “E de qual gostava mais?”, quisemos saber. “Gostava mais da praia.”
Em 1994 ponderou o regresso à Bulgária. “Eu pensava, volto à Bulgária, tenho algum
dinheiro, vou fazer negócio.” Decidiu abrir uma bomba de gasolina em sociedade
com outros dois atletas, no caso jogadores de futebol. Mas os planos foram gorados.
“Não deu porque em 97 foi crise, mas... isto não acontece aqui agora em Portugal,
porque Portugal está no euro. Se tornar ao escudo, vocês não imaginam como é que
as coisas se transformam. Por exemplo, vou dar um exemplo: compras uma coca-cola a um euro, vendes com 100% de lucro, a dois euros, ficas com dois euros e vais
no dia seguinte comprar esta cola e já custa três euros, compreendes? Tu já perdeste 50% do dinheiro que tens. Era assim, a inflação era enorme, enorme, era tão rápida, tão rápida.” Assim sendo, resolveu aproveitar um convite do clube de Castelo
Branco e regressar novamente a Portugal.
Atualmente, Marinov acumula diversas funEstou contente aqui.
ções. É responsável pela escola municipal de
A
troika
não conseguiu
andebol, rececionista no Centro de Estágios
de Rio Maior e dá aulas de atividade física e
tirar estas coisas:
desportiva em escolas primárias. Questiosol, ar puro...
nado sobre os planos que tem para o futuro,
Marinov graceja “Não tenho a idade suficiente
para projetos!” E relativamente à possibilidade de continuar em Portugal, mesmo
em cenário de crise, afirma: “Estou contente aqui. A troika não conseguiu tirar estas
coisas: sol, ar puro...”
29
Yahima Menendez Ramirez
Em minha casa vivia a minha avó, o meu avô,
minha mãe, meu pai, meu irmão, que é maior
que eu, tem 37 anos, e viviam minhas primas
irmãs, que são duas”, conta Yahima Menendez
Ramirez, cubana, de 32 anos de idade. “Nós
somos muito familiares, mas também pelas
nossas dificuldades costumam viver muitas
pessoas numa casa.” Mais tarde, com o divórcio dos pais, o agregado familiar diminui. “Nada
que me afetasse, sinceramente, porque o meu
pai morava perto de casa e continuava a ir lá.
Sempre foi a minha casa e levava-me todos os
dias à escola. Tudo igual. Mudou foi o estado civil. Continuou o carinho e interesse comigo.”
Natural de Havana, onde viveu até deixar o país
e vir para Portugal, Yahima iniciou os estudos no
ensino dito regular, mas cerca dos 11, 12 anos transitou para uma das escolas de iniciação desportiva que “existem em todas as províncias do país desde a idade primária até ao secundário” e que funcionam em regime de internato. Yahima explica-nos
melhor este conceito: “Em Cuba tem uma coisa que cá não existe. Lá tem escolas
de iniciação desportiva onde fazem captações dependendo do biótipo da criança.
Aí, se vêm que tem condições e que se encaixa na modalidade desportiva, é logo
captada e começa nessa escola que a vai especializar para um futuro profissional.”
Defraudando as expetativas da mãe e da avó que a sonhavam dançarina clássica,
o biótipo de Yahima revelou-se mais apropriado para a prática de um desporto de
combate, o judo, modalidade onde desde cedo se destaca. Aos 14 anos alcança o
primeiro lugar no campeonato nacional cubano. Transita então da escola de iniciação desportiva para o centro nacional júnior e, logo no ano seguinte, repetida
a façanha de atingir novamente o primeiro lugar, é colocada no chamado CAER –
Centro de Entrenamiento de Alto Rendimento, onde fica sete anos e completa a sua
formação escolar. Em 2002, frequentava o 4.º ano da faculdade e estava na seleção
nacional cubana, quando conhece o futuro marido. Explica que o mesmo estava também vinculado ao desporto e normalmente dava apoio à seleção de Cuba, que todos
os anos vinha, por convite, estagiar a Portugal e mais precisamente aos Centros de
Estágio de Rio Maior e da Golegã.
Yahima nunca chegou a acompanhar a seleção de Cuba nestes estágios. Só tinha
estado em Portugal, no Porto, no pavilhão Rosa Mota, em 1997, para participar no
campeonato do mundo júnior, onde alcançou o 5.º lugar. Por esse motivo, a primeira vez que viu o futuro marido foi num tapete de judo em Havana. “Foi a Cuba
porque o treinador de Cuba estava-lhe muito agradecido e disse-lhe que quando
tivesse um tempinho, tirasse férias e fosse fazer a visita a Cuba. E, então, foi o que
ele fez em junho de 2002. Ele foi por duas semanas e me conheceu no fim da primeira semana.” Foi uma amiga, colega na seleção de judo, que lhe pregou a partida,
“trompinha” como lhe chama Yahima, e conseguiu juntá-los.
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Seguiram-se seis meses de namoro. “Pelo telefone. Todos os dias. E eu a dizer: Vai à
ruina!” E, em dezembro de 2002, o então noivo regressa para casarem dias depois, a
9 de janeiro. Casam-se por uma questão não só de afeição, mas também burocrática. Da parte de Cuba, explica Yahima que: “Nós sem estarmos casados, não me
iam deixar sair. Mesmo casados, eu demorei dez meses até que me deixassem
sair e vir cá.” Da parte de Portugal: “Eu me lembro que naquela altura, foi a altura
que começou a imigração a aumentar um bocadinho mais. As fronteiras começaram a fechar mais em termos de vistos.” Nos inícios de 2004, viaja para Portugal:
“Vim cá e estive três meses. Conhecer... ver como era o país, a vida aqui, a família
dele e ele. Ver se realmente, porque eu não o conhecia bem, se a relação tinha futuro ou não tinha.”
Volta a Cuba para completar a licenciatura e discutir a tese. Refira-se que a opção de Yahima pelo curso de cultura física não foi a primeira. De facto, chegou
a inscrever-se no curso de jornalismo e depois no de línguas estrangeiras, mas a
carga horária foi um impedimento, já que a frequência diária das aulas, para quem
acumulava treinos e provas desportivas, era insustentável. A licenciatura em cultura física, por outro lado: “Era um curso facilitado para os atletas. Este curso era de
alto rendimento, no qual tínhamos uma frequência de duas vezes por semana e o
fazíamos em seis anos.”
Regressou novamente a Portugal em 2005, desta vez com a intenção de ficar em
definitivo, mas houve um imprevisto. Logo na primeira semana de estadia, Yahima
engravida. A notícia deixa-a em choque. “Não estava nos meus planos, ia atrasar
mais os meus objetivos de continuar no meu desporto. Fiquei um bocadito em pânico. A altura não era a melhor em condições económicas e outras, em tudo, não é?
Nós ainda estávamos a iniciar a vida nossa. Não era para ser assim.” Resolve voltar
a Cuba para ter o acompanhamento da família, mas cerca do 5.º mês de gravidez
regressa a Portugal, cedendo aos argumentos do marido: “Yahima, não tenhas a
criança lá. Eu sou português, o irmão é português, agora tu és cubana e se ele é
cubano também, tens de tomar em consideração o trabalho que eu passei contigo e
a burocracia que eu tive contigo. Não faças a criança passar pelo mesmo.” O Rafael,
agora com seis anos, nasce assim em Portugal e em conjunto com o marido e o filho
deste, de 13 anos, constitui o atual agregado familiar de Yahima.
Quanto à vida profissional, Yahima começa a lecionar na Escola Superior de Desporto
de Rio Maior a partir de 2006. Esteve cerca de quatro anos afastada da competição
desportiva, desde 2003, quando casou e deixou a seleção cubana, até 2007. Neste ano,
o diretor técnico da federação de judo e o selecionador da altura tomam conhecimento da presença de Yahima em Portugal e convidam-na para a seleção nacional, o que
implicou obter a nacionalidade portuguesa. Mantinha-se então apenas com o visto de
residência. “Eu nunca tratei da nacionalidade porque tinha ideia de que em Cuba
ia ter de optar. E eu não queria ter de tomar essa decisão. Afinal nunca me fizeram essa pergunta. Acontece uma coisa: Cuba não me reconhece a nacionalidade
portuguesa. Mas, pronto, foi bom porque adquiri a minha nacionalidade, a minha
nova nacionalidade, mas não perdi a minha antiga nacionalidade, porque eu gosto
muito de Cuba e, com todos os problemas, foi lá que eu nasci, cresci e me formei.”
A comparação entre Portugal e Cuba foi uma constante durante toda a entrevista.
Mesmo porque as diferenças são muitas. Para além de realçar a aposta que em
Cuba fazem no desporto profissional, contrariamente ao que é comum em Portugal,
31
onde na maior parte das vezes é encarado na perspetiva do lazer e sem qualquer
orientação futura, Yahima sublinha também a organização e a forma de funcionamento das estruturas de ensino e de saúde cubanas: “Adoro também como é o
sistema educacional, adoro o nosso sistema de saúde também, porque está muito
bem estruturado e não falha uma coisa.”
Apesar de reconhecer a qualidade das instalações e seleções desportivas portuguesas, conta que: “O que me chocou em Portugal foi a pobreza. Pobreza na organização, pobreza um bocado na falta de estrutura em algumas coisas. Porque acho
que não fazem com que as coisas funcionem.” No caso do desporto, considera
que os resultados alcançados pelos atletas portugueses acabam por ser até mais
meritórios, porque assentam na força de vontade pessoal. “Precisavam de um estabelecimento onde colocassem todas as modalidades desportivas e onde colocassem bons profissionais e se calhar assim Portugal veria mais do desporto, melhores
resultados. Atualmente, o desporto em Portugal é uma questão de lazer. Só chega
mais à frente quem quer e quem pode. Isto é, querer porque tem a vontade e poder
porque depende de apoio.” No seu entender, falta também um centro de medicina
desportiva no qual os atletas tenham acesso a consultas e tratamentos em todas as
especialidades clinicas e não apenas aquelas associadas à prática desportiva. Em
Cuba, não só os atletas, mas inclusive os familiares mais próximos dispõem deste
suporte. Para além disso, refere também a possibilidade de acesso a uma bolsa ou
subsídio atribuído no fim da carreira desportiva.
Nas questões da educação, lembra o quotidiano da escola de iniciação desportiva.
“No período da manhã ou da tarde tinham a modalidade desportiva. Dividiam os
desportos por categoria”, como os desportos de combate, os desportos com bola e
os desportos da água. “Havia quem fazia a parte da escola, da docência de manhã e
treinava à tarde. E outros treinavam de manhã e faziam a docência à tarde.” Destaca
também duas práticas: a do “coletivo” e a do “matutino”. O “coletivo” era um grupo
composto por 9 alunos, cada um dos quais responsável por uma determinada área: o
chefe das quotizações, o chefe da efeméride, o chefe da escola, o chefe das atividades
e por aí adiante. O chamado “matutino”, ao qual os alunos assistiam logo após o pequeno-almoço, “durava meia hora. Essa meia hora era composta pelo hino nacional,
o hino da escola, porque cada escola tinha um hino.” Para além disso: “Durante todo
o ano, durante todos os dias, uma turma tinha que fazer um ato cultural. Podia ser
um teatro, podia ser uma coreografia de dança.” E ainda: “Todos os alunos tinham
acesso a uma série de informação”, que se reportava tanto a assuntos da atualidade
nacional e internacional, quanto a questões relativas ao funcionamento da escola.
“Eu acho que era uma coisa que em qualquer lugar do mundo faziam bem porque
dava sequência a tudo”, defende Yahima.
Na saúde, existem alguns aspetos que estranha em Portugal. Primeiro, não ser normalmente permitido que um doente hospitalizado tenha a companhia de um familiar durante a noite. “Eu acho que a maioria das mortes acontecem à noite. E não
é uma pessoa que se está a sentir mal que vai ter tempo para tocar à campainha.”
Não compreende também a dispersão dos serviços. “O que me parece também uma
coisa muito confusa é que, se o meu filho tem um problema, não se tem um grupo de profissionais num mesmo hospital para resolver o seu problema. Eu tenho
consulta nos Corroios, eu tenho consulta na Estefânia, eu tenho consulta em Santa
Maria, eu tenho consulta em Santarém, eu tenho consulta no Centro de Saúde.
Acha que isso é lógico?” Apesar de tudo, acha que “os hospitais são muito bons e é
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muito boa a atenção que dão.” Exemplifica com o seguinte episódio: “Eu fui a Cuba
com o meu filho e aí me disseram: o seu filho com o problema que teve, é um milagre e
foi otimamente atendido, e isto foi dito por um médico cubano.”
Quando questionada sobre o que de melhor tem Cuba, responde convictamente:
“Eu acho de melhor: tudo! Nosso calor, nossa alegria, mesmo com todas as dificuldades, sempre dançando, somos todos irmãos, nos defendemos todos. Adoro o
clima, a praia. E em termos de cultura, temos a mistura de culturas, a religião afro-cubana de todos os escravos que foram levados na altura pelos espanhóis.” Mas
não deixa de tecer algumas críticas à situação política e económica do seu país de
origem. No plano político, reflete sobre o seguinte: “Quando fez a revolução, Fidel
tomou uma série de medidas que todas fizeram sentido, todas encaixaram e deram
um resultado excelente. Mas, o mundo avança. As coisas têm que ir avançando com
o progresso porque senão ficam atrás. O que eu acho de mal é que ainda estamos
muito fechados para a realidade mundial exterior, internacional. Somos um mundinho fechado. Pronto, manipula-se a informação nesse sentido. As notícias que se
dão são aquelas notícias que se querem que se saiba. As outras são omitidas. Eles
não querem que as pessoas e o povo tenham essa atualização.” Refere também
que: “Lá não há a liberdade de viajar. As pessoas que mais viajam são pessoas
vinculadas ao desporto ou à cultura. Fora disso, uma viagem de algum trabalhador muito destacado, com intercâmbio.” No plano económico, o embargo imposto
pelos Estados Unidos teve diversas consequências, entre as quais a dependência
relativamente à ex-URSS, que resultou numa certa acomodação do povo cubano.
Mas as dificuldades de acesso aos bens, segundo Yahima, vão sendo colmatadas.
“Em Cuba até tem, porque os cubanos são muito inventores. Para manterem funcionando carros dos 40 até aos atuais, eles são muito inventores. Não tem, eles
inventam isso. E muitas coisas que as pessoas aqui acham que eles não têm, eles
já têm clandestinamente. Às vezes parece um carro velho, mas por dentro toda a
carroçaria é nova e moderna. Cuba tem muito disto, é um bocado camaleónica.”
Relativamente às questões de acolhimento e integração, menciona alguns episódios caricatos e menos felizes. Nãos se esquece quando foi tratar da nacionalidade
e acabou a ouvir: “Aqui em Portugal se aceita qualquer um! Qualquer um pode ser
português!” Refere também que ficava sentida quando, ao princípio, falava e não
faziam por entendê-la. Para além disso, “no início me sentia assim um bocadinho
quando ia ao cabeleireiro, porque não sabiam tratar do meu cabelo afro.”
Atualmente, diz já se ter adaptado
e gostar do país. “Gosto das coisas
que tenho alcançado cá em Portugal. Acho muito importante terem-me dado a possibilidade de realizar o meu sonho, por exemplo em
Cuba eu nunca cheguei a ir ao campeonato do mundo de séniores.”
Gosto das coisas que tenho
alcançado cá em Portugal.
Acho muito importante
terem-me dado a possibilidade
de realizar o meu sonho.
Por isso e para já, os planos incluem continuar em Portugal e ir a Cuba só de visita, o que tem feito a cada dois
anos. Mesmo porque o filho “não conhece outro sítio, vive aqui, está inserido aqui.”
Mas não deixa de confessar que “Se as condições que há cá em Portugal, se as
houvesse em Cuba, eu sairia amanhã para Cuba outra vez.”
33
Vianney Willy Furth
Vianney Willy Furth nasceu em Portchester, localidade inglesa conhecida pelo seu castelo medieval, construído em cima de uma fortaleza romana
e situada perto de Portsmouth, o centro da marinha inglesa. Conta atualmente 68 anos e é casado.
Da família de origem fazem parte uma irmã e um
meio-irmão. Vianney conta que a casa onde nasceu era tão perto do mar que, duas vezes por ano,
o jardim era inundado, o que obrigou a família a
uma mudança para uma zona mais alta da vila.
Naquela época, em Portchester, a maioria dos habitantes era pescador ou pertencia à Marinha. O
pai, que Vianney não chegou a conhecer por ter
sido assassinado na altura do seu nascimento,
incluía-se neste segundo grupo. Alguns anos depois, a mãe voltou a casar com um
alemão, o que não foi muito bem visto na localidade, porque a guerra tinha acabado há
pouco tempo e na altura a Alemanha continuava a ser vista como “a nação inimiga”.
Vianney frequentou a escola elementar situada a cerca de 7 a 8 milhas de distância
de casa e, posteriormente, a escola secundária que ficava numa localidade vizinha,
a cerca de meia hora de autocarro. Mais tarde, chegou a entrar na universidade, mas
confessa ter odiado, porque não queria ser um doutor. “Não era para mim. Na minha família ou eras militar ou doutor, eu queria ser militar.” Com 21 anos, decide
inscrever-se na polícia de Hong Kong, à época ainda uma colónia do império britânico.
Passou nos testes de admissão e dois meses depois já estava num avião em direção ao
continente asiático para começar nove meses de treino. Teve que aprender cantonês
para poder trabalhar, uma língua para Vianney muito estranha e difícil de um europeu
assimilar. “Não se pode pôr emoções nas palavras, mudam logo o sentido, qualquer
som é interpretado de forma diferente e podem-se fazer confusões muito fácil. Tem
que se treinar o ouvido para perceber estas inflexões, é quase como cantar”. Caso
contrário, explica-nos Vianney, podem-se cometer enganos bastante embaraçosos.
“O meu primeiro curso, em Hong Kong, foi dado num prazo muito pequeno, com
seis alunos. Em seis semanas não aprendemos palavra nenhuma, foi só aprender
como interpretar os sons e só depois começámos a aprender, após 6 semanas, a
falar mesmo”. Mudavam o professor de hora em hora, para estes não se cansarem
e tinham aulas todos os dias, de manhã à noite. Teve durante três meses as aulas de
cantonês intensivo e depois seis meses de direito e procedimentos.
Inicialmente, tinha pensado ficar apenas três meses em Hong Kong, mas apaixonou-se pelo trabalho e pela cidade e acabou por ficar mais de três décadas, de 1965
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a 1997, ano em que a China reassumiu a soberania da cidade. Após 10 meses na
força policial, recebeu a sua embarcação, tornando-se responsável por uma tripulação de 12 pessoas, das quais ninguém falava inglês. Apesar disso, diz Vianney: “Não
senti dificuldades de me integrar, visto que em Hong Kong vivem poucos habitantes de origem, são todos imigrantes. É um lugar espetacular para trabalhar.”
Segundo nos explica, no fim da Segunda Guerra Mundial, em Hong Kong eram,
incluindo os prisioneiros japoneses e todos os militares aliados, cerca de 238 mil
pessoas. Depois com a chegada dos refugiados chineses este número elevou-se a
3,5 milhões e continuaram a chegar mais e mais. Quando Vianney deixou a cidade,
a população já atingia os 8 milhões.
Fazendo a comparação entre trabalhar em Hong Kong e Inglaterra, Vianney não tem
dúvidas em escolher a primeira opção. “Em Inglaterra eles chamavam-nos nesses
anos “dead men shoes”, porque tinhas de trabalhar e só subias na carreira se o
outro morresse. Não apreciavam muito as iniciativas e preferiam que fizesses as
coisas em função de regras e de forma muito organizada. Em Hong Kong eles davam mais responsabilidades e conseguias as promoções com outra facilidade. Com
o trabalho, tinhas a possibilidade de subir muito rápido.”
Trabalhou em Hong Kong trinta e dois anos e depois reformou-se. “Já estava aborrecido, como polícia trabalhas 16 a 18 horas por dia, então parei”. Relativamente à ligação
que mantém com a cidade, refere que: “Tenho só nacionalidade inglesa, mas sou um
cidadão de Hong Kong, o que significa que posso entrar e sair quando quero. Eles lá
não facilitam a nacionalidade, visto que pertence à China querem as coisas separadas.”
Voltou para Inglaterra e procurou o que é conhecido no país como “non job”, primeiro a dirigir carros de luxo, a levá-los de um ponto a outro do país, ocupação que
lhe agradou porque “assim conheci novamente a Inglaterra, foi divertido”. Depois,
trabalhou na distribuição para uma panificadora, o que foi para Vianney também
ótimo, pelo horário que tinha. “Acordava às duas da manhã, carregava as coisas às
3 da manhã e ia para Londres com os muffins e distribuía por todos os “Starbucks”.
Acabava perto das 10 horas e o resto do dia estava livre”.
Após a morte da primeira mulher, conta Vianney: “casei com uma bruxa do inferno,
que esvaziou a minha conta” e então teve que trabalhar para um holandês, como
segurança nas docas. Esteve lá mais ou menos dois anos. Conheceu a sua esposa
atual no decurso desse trabalho e passados 18 meses resolveram casar. Há cerca de
5 anos tomaram a opção de vir para Portugal. A ligação de Vianney com Portugal,
contudo, já conta mais tempo. Macau fica a cerca de uma hora de barco de Hong
Kong e não raras vezes, enquanto polícia, participou em várias atividades desportivas e jogou contra equipas portuguesas. Assim, de uma forma ou de outra, esteve
sempre em contacto com o povo português. Para além disso, um dos seus amigos
casou com uma nativa de Macau e outros conhecidos mudaram-se para Portugal,
principalmente para o Algarve.
35
Considera que a adaptação a Portugal foi fácil. Gosta da forma de ser dos portugueses. “Dizem sempre bom dia. Nunca tive problemas de relacionamento com os
portugueses.” Já a questão da língua não é tão linear. “Não falo português, a minha
mulher desenrasca-se melhor.” Justifica que todas as vezes que tentou aprender
a língua, algo aconteceu, desde problemas de saúde, a um acidente com o genro
que depois veio a falecer. “Deus não deve de querer que eu aprenda a falar português”. Nunca sentiu discriminações e ficou surpreendido com o quanto o povo é
acolhedor e respeitador.
Daí a sua decisão: “Não quero voltar para Inglaterra porque aqui sinto-me em casa”.
Para Vianney: “Portugal é o melhor que se pode ter a todos os níveis”. Continua a
visitar a ilha britânica porque tem lá o meio-irmão, a irmã e uma filha e também
porque a esposa vai a consultas ao hospital. Mas para Vianney, a Inglaterra já não
é aquilo que deixou, tudo mudou e não para melhor, e se não fosse por ter família lá, diz que não voltava.
Prefere ir aos Estados UniNão quero voltar para Inglaterra, dos da América, onde tem
7 crianças adotadas, ou à
porque aqui sinto-me em casa.
Austrália, onde tem 8.
Em relação ao seu quotidiano em Portugal, destaca a nível dos aspetos positivos:
“Gostamos da gastronomia, das pessoas, do país, tudo”. Vianney diz-nos também
que gosta de ir à pesca, e aqui, em comparação com Inglaterra, “pago e, tenho gosto
por pagar a licença de pesca. Para mim, justifica-se e tenho o gozo de fazer o que
gosto. Os municípios dão algo de volta, fazem caminhos e arranjam as zonas de
pesca. Em Inglaterra não.”
Contudo, também existem aspetos que desgosta em Portugal. “Algo que acho aqui
difícil é a burocracia e muitas taxas, mas isso faz parte, não é o meu país e temos
que nos adaptar a isso. E, tudo que tem a ver com a internet, telecomunicações. Mas
em lado nenhum é perfeito.”
Quanto a elementos a destacar a um eventual visitante, indica: “O meu lugar favorito em Portugal é Óbidos, marcou-me quando o visitei pela primeira vez no Natal,
parecia magia. Adorei e não achei caro em comparação com outros lugares idênticos do mundo. E também acho especial Lisboa e Fátima”. Menos apelativo, no seu
entender, é o sul do país: “Não queremos viver no Algarve”.
Questionado sobre a crise económica que Portugal atravessa atualmente, diz que
não o afeta muito porque a sua reforma é paga em Hong Kong dólares e libras inglesas e provém do estado inglês. Mas claro que a situação o assusta, porque afeta
amigos e familiares e não é agradável ver situações tristes, principalmente quando
sucedem com jovens. “Quando eu comecei a trabalhar acreditava e tinha a possibilidade de ter trabalho e emprego para uma vida. Isso já não existe.”
36
Xuli Guo
“O nosso nome sempre tem um significado”,
explica-nos Xuli Guo. É uma tradição no seu país
de origem, a China, onde nasceu há 40 anos. No
caso, o seu nome significa “Sol Bonito” e a razão
de ser, conforme nos conta, é “porque era inverno, tinha pouco sol” e quando abriu os olhos pela
primeira vez e chorou, era de madrugada e a mãe
olhando pela janela, que naquela altura não tinha cortinados, disse “Ah! Tão bonito o sol!”.
A terra onde foi criada, em conjunto com uma
família alargada que incluía para além de pais e
cinco irmãos, também os avós e tios, chama-se
Zhanjiang e fica no sul do país. Explica: “Todos.
Vivia com a família toda. E avós. Tudo. Tudo. O tio
e a tia, à mistura.” “Na mesma casa?”, questionamos nós. “É, na mesma casa”, responde. Na China, frequentou a escola durante seis anos e começou depois a trabalhar no negócio
familiar, nomeadamente no fabrico de pastelaria. O desafogo económico proporcionado por esta atividade permite que, a dada altura, o pai de Xuli Guo equacione
um futuro diferente para os filhos. “Ele queria que nós víssemos vida melhor. Por
isso, primeiro mandou um irmão para Espanha.” Com humor, Xuli Guo explica
que o tal irmão, não querendo admitir as dificuldades por que passava, respondia
aos pais “tudo bom, tudo bom”, quando lhe perguntavam como estava a ser a experiência. O resultado foi enviarem também a filha. “Olha, também quero saber como
é que é, a Europa como é que é”.
Com cerca de 20 anos, Xuli Guo deixa a China e parte à aventura. Os pais permitiram
que viajasse por diversos países e escolhesse o que mais lhe agradasse. O primeiro
destino foi a Hungria, depois a Eslováquia. “Eu não gostei”, diz-nos. “E depois fiz outra
viagem para a Holanda e aí gostei.” Na Holanda encontra trabalho numa pastelaria e
fica cerca de três anos. Entretanto, o irmão que vivia em Espanha decide mudar-se para
Portugal, onde abre um negócio de distribuição de produtos alimentares. O sucesso do
negócio implica um esforço acrescido e o irmão propõe a Xuli Guo que venha ajudá-lo.“Trabalha quase até duas horas da manhã. Muito cansadito. E ninguém ajuda e não
tem refeição na hora. Então ligou para mim: Xuli, vem cá e ajuda-me!”
Já em Portugal conhece o futuro marido. “Casei em 1997. Conheci marido em 1996.
Ele veio de França, eu vim da Holanda.” Foi precisamente na casa do irmão que o
namoro começou. “Ele trabalha no Porto. E às vezes roda e não tem sítio para ir e
ia a casa do meu irmão e conheci-o assim e namorámos.” O casal teve três filhos,
todos rapazes, que atualmente somam 15, 12 e 10 anos de idade, respetivamente.
Quando o segundo filho nasceu, Xuli Guo, que na altura trabalhava num estabelecimento comercial gerido pelo irmão e situado na zona da Estefânia, em Lisboa,
resolve lançar-se por conta própria e abre um restaurante em Algés. “Passou dois
anos e pouco. Dois anos, se calhar. E depois desisti, porque negócio não era para
mim, aquele.” A restauração, na sua opinião, dá muito trabalho a troco de pouco
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lucro. Assim, em 2002, na altura do Natal, inaugura uma loja pequena junto à estação de Carcavelos. Passados alguns anos, acompanha um primo numa visita a Rio
Maior, a fim de lhe dar apoio em termos de tradução. O primo vem com a intenção de visitar um espaço para comércio, nomeadamente uma antiga oficina. “Abriu
porta, senhora mostrou a casa e tão grande, grande, até assustar. O primo disse: Hi!
Aqui não consigo! Eu não tenho dinheiro para essa loja! Vou-me embora.” Mas a opinião de
Xuli Guo é diferente e resolve arriscar. “Eu só gosto do sítio e gosto da área. Então,
vou tentar e depois a vida dirá. Afinal certinho. Até hoje durou.” Correu tão bem,
que atualmente Xuli Guo é proprietária de dois estabelecimentos comerciais de
assinalável dimensão, localizados em Rio Maior.
Comparando os dois países, Portugal e China, pensa que no primeiro está tudo
mais organizado para quem pretende investir e criar uma empresa. No segundo,
considera positivo haver um maior rigor na educação. “Eu vi que na escola de
crianças de cá não tem tanto respeito aos professores.” E não é só em termos da
educação dita formal que encontra diferenças, na dimensão familiar também. “Às
vezes grita com os pais. Na China não acontece, não acontece isso. Nunca se
pode gritar com pessoas mais velhas.”
Em relação ao que destacaria no país de origem, refere que: “Cada cidade tem algo
bonito para visitar. A China é bem grande. Todas as cidades têm sítios para passear.”
Sublinha também o enorme desenvolvimento que o país tem alcançado. “Lá sempre
desenvolve muito, muito. Agora todo o ano está diferente. Muitas novidades, muitas.
O país cresce muito.” Essa é uma das razões porque gosta de ir à China todos os anos,
para se atualizar sobre as alterações que sucedem a um ritmo exponencial. Aproveita
também para visitar o único irmão que permanece no país. “Ainda tenho um irmão
na China, o resto tudo está
cá. Os pais e irmãos estão
Ainda tenho um irmão na China, todos no Seixal.”
o resto tudo está cá.
Comparativamente
aos
outros países europeus
por onde passou, Xuli Guo considera Portugal mais parecido com a China. “Acho
que quando cheguei em Portugal, acho que mais perto do nosso país. Ruas com
pedras. Mais perto de nossa cidade.” E brinca inclusive com o tempo que as deslocações demoravam há uns anos. “E, por exemplo, de Norte para Sul é um... O
transporte muito longe. Levou um dia. Essa viagem parece quase China. China para
ir num sítio leva muito tempo.”
Quanto à barreira linguística, foi em parte ultrapassada com aulas dadas por um
particular, também chinês, ainda em Lisboa. “Ele ensina alfabeto. E ensina como é
que estuda e como é que lê.” Hoje em dia, complementa esses ensinamentos com
a frequência do curso de Português Para Todos, lecionado em regime noturno no
Centro de Novas Oportunidades de Rio Maior.
Em resposta à pergunta: “Nunca se sentiu maltratada, discriminada por alguém?”,
responde negativamente. “Nem aquele olharzinho assim diferente?”, insistimos.
“Até hoje para mim não, não...não aconteceu.”
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Esta edição surge no contexto do projeto
“Viver a Diversidade” desenvolvido pelo
CLAII - Centro Local de Apoio à Integração
de Imigrantes do Município de Rio Maior, no
âmbito da “Promoção da Interculturalidade
a Nível Municipal” - II Edição, programa da
responsabilidade do Alto Comissariado para
a Imigração e Diálogo Intercultural, I.P.,
cofinanciado pelo FEINPT - Fundo Europeu
para a Integração de Nacionais de Países
Terceiros.