Parado no tempo - Joca de Oliveira

Transcrição

Parado no tempo - Joca de Oliveira
PARADO NO TEMPO
Tem horas que bate um cansaço intelectual, perdemos o desejo do metafísico, vence-nos
uma vontade de ficar à deriva, alheado, como diria Erickson Luna, mas a agitação do
mundo pós-moderno nos transformou em maratonistas, como se estivéssemos correndo
atrás de velozes máquinas pensantes. O homem jamais alcançará o que procura, falou
um índio, no filme Jeremiah Johnson. Entretanto, nem todo mundo corre, porém, quem
parece estar em paz, quem aparenta tranqüilidade de espírito parece parado no tempo.
Outro dia, um velho amigo comentou com alguém que eu estava vivo, porém, parado no
tempo. Depois da graduação, não fiz a badalada pós. Que vivi mais como filósofo de
botequim do que qualquer outra coisa. Que corro o risco de ser atropelado pelos
acontecimentos, o tal bonde da História. Que sobrevivo do funcionalismo público, que
virei uma estante, uma pasta do arquivo.
Não me incomodei como das outras vezes. No passado, minha mãe reclamava: - Todo
mundo da sua turma do Colégio Técnico está trabalhando, menos você. Tinha razão, eu
era realmente um descansado. Parado no tempo, jamais! Você pensa. Quem pensa, no
mínimo existe. Na verdade, eu gostaria de ter parado o tempo, em várias oportunidades:
aquele tempo das peladas na chuva, ah, no campo de barro batido do internato, ou em
frente de casa, em Ribeirão, terreno nunca baldio, tempo de escorregar nas poças e de
tomar banho na água que escorria das calhas e caía nas calçadas, depois das peladas.
Ainda sei de cor os nomes dos jogadores do meu time na rua: o América. Ben Cabeção,
Eu, Toinho de Seu Domingos, Marcos Chita, Zé Alves e Marinho, irmão de
Cicinho.Um futebol de cinco e mais alguns reservas.
Eu, livre do mundo adiante, esse desconhecido a nos preparar desagradáveis surpresas.
Meus amigos na praça, na sinuca, as noites de dominó e piadas: Nisinho e Valdeci. Meu
irmão, Van, com o amigo, Hélio Cachaça, a contar histórias que eu viveria no futuro. Eu
ainda sem o verdadeiro conhecimento das tragédias do mundo.
Gostaria de permanecer naqueles dias no açude de Minas Novas, uma mochila cheia de
araçás e goiabas, com a boca preta de tanto chupar azeitonas, seguir a trilha do trem
hoje desativada, seguir a trilha dos passarinhos..
Como eu gostaria de ter parado o tempo onde as noites dos grandes filmes no Cine Art
me fizeram uma criança, se não feliz, mas, risonha, contente, brincalhona,
a comprar gibis na porta do cinema. As narrativas dos filmes contadas por Élio Victor e
Seu Alceu, verdadeiros roteiros ambulantes. Toinho, Antônio Olívio, a escrever sobre
Fellini e Chaplin.
Não se pode parar o tempo, do contrário eu pararia os dias de preguiça e namoro com
Maria de Fátima,
acordar ao lado da bunda exuberante de Fau, seu corpo moreno, seus seios pequenos,
seus olhos verdes de menina feita mulher transformada pelos homens, ficávamos
nervosamente abraçados num quartinho alugado na beira do rio...
E de Maura, meu único amor platônico. Pararia o instante, o tempo do único olhar que
ela lançou pra mim, alguns segundos, depois saiu rindo com as colegas do ginásio.
Acho
que me achou um nerd (na época, um bobão); ou um merda!...
Pararia o tempo também de uma certa madrugada no Bar Fumacê: fizemos fumaça,
tomamos cerveja e tocamos violão.
Na verdade, meus dois amigos: Clóvis da Costa e Nilson Braga tocaram músicas de
Chico, Tom, Vinicius, Noel e outras. Eu fiquei somente a ouvir e bater palmas.
Sem filmadora e sem câmera, não deu para eternizar o momento. Nilson faleceu
recentemente, e Clóvis, já não o vejo há um bom tempo. Mora na Bahia.
Pararia o tempo das Festas de Santana: as festas da Padroeira, antigamente, quase não
havia violência. Dei um tiro certeiro num
maço de Pall Mall, minha primeira carteira de cigarro, derrubada num barracão de tiro
ao alvo. Sai contentíssimo, com a carteira no bolso da camisa. No pulso, um relógio
Grão-Duque,
presente de meu Pai. Me sentia homem feito, tinha catorze anos.
Parar o tempo daquela história, seria não mais parar de rir.Van contratou uma morena
para tirar o queijo da garotada. Cinco ou dez paus de cada um, não lembro bem.
Na hora, quando a mulher tirou a roupa, Van-Van caiu em cima primeiro,
deixando a gente de calças nas mãos. Ismail, falecido prematuramente, era o segundo da
fila, e gritava: - Van, Van, agora sou eu, agora sou eu!... Todo mundo riu, na beira do
rio, até a morena.
Cadê Van querer sair mais de cima da mulher...
Mas, o tempo não para, cantava Cazuza. Parou para Agripino e Joca Ventola, meu xará,
ambos morreram jovens e afogados, um no rio, e o outro, no mar de Gaibu... Ou eles
pararam,
e o tempo seguiu seu curso?
O negro Agripino, João Agripino, era filho de um engraxate, mas um rapaz de
inteligência acima da média. Era exibido, em seu orgulho intelectual, desde os doze
anos,
quando ingressou na minha turma de ginásio.
Foi meu primeiro amigo de verdade. Tivesse sobrevivido, possivelmente sofreria com o
preconceito e outros conceitos da sociedade. Menos por ser negro e mais pela
presunção.
Porém, como era um espírito superior, também sobreviveria a qualquer coisa que não
envolvesse nadar. Deus levou um objeto raro.
Com a água, ficou uma relação de medo e prazer. Por isso, também pararia o tempo das
noites de pesca em Tamandaré. Eu, Lula, meu irmão, Papai e minha Mãe.
Pescávamos de facho, as agulhinhas pulando em nossos puçás.
Era o único momento em que nossos pais nos permitiam tomar cachaça. Um litro de
Pitú na beira da praia.
Meia hora dentro da água, e uns pulinhos na areia para esquentar o corpo com uma
lapada.
Marisco frito no prato. Lagosta com pão e cerveja, depois.
As noites de Lua na Praia de Tamandaré. Que mistério, a Lua! Tem o brilho emprestado
do Sol e mesmo assim encanta.
O olhar castanho de Maura. Os olhos verdes de Maria de Fátima. Os olhos azuis de
minha mãe. Minha mãe tinha um olhar triste. Água azul.
Sabia uma relação de nomes de peixes de causar inveja a qualquer oceanógrafo. Menina
de praia. Da praia de Japaratinga, em Alagoas.
Os olhos das mulheres que amei tinham esse misterioso brilho e encanto da Lua. Do
olhar da minha madrinha, Anita Ferraz, não guardo a cor nem o formato.
Lembro de sua boca, era atraente com uma piteira na boca.
Era raro, naquela época, uma mulher fumar em público. Mas ela tinha uma classe de
artista de cinema. Elegante, sofisticada; quando envelheceu, virou uma mulher comum.
O tempo, a despetalar rosas. O tempo não perdoa. Fotografo na memória boas
lembranças, mas, ficar parado no tempo é impossível!
Quanta coisa! Parar o tempo e transformar os três dias de Carnaval de Olinda em três
semanas, ainda dá, mas ninguém aguenta tanta alegria o tempo todo.
Lembro de uma noite de carnaval em Olinda, na beira-mar. Eu, único solteiro, minhas
irmãs e os respectivos maridos. Minha fantasia era um pijama.
Frágil confecção na turbulência da noite.
Arranjei uma odalisca no salão do bar. Uma hora, o pijama armou: vela de barco aberta.
Ela percebeu e me chamou pra sair: - Segure na minha cintura, no trenzinho, e vamos
esfriar o calor, ali nas pedras!
Parafraseando a letra de Legião: Nem foi tempo perdido, éramos tão jovens...
Teve também tempo difícil, mas, inesquecível! Vivi em Recife. Vez em quando, na
cidade grande, me batia uma depressão. A existência doía. Meu amigo, João Napoleão,
percebeu e me chamou para passar uns dias no Alto do Mandu, com a mulher dele e os
dois filhos pequenos.
Uma noite, saímos pelo morro, camisas nas costas, corpos abertos à brisa da noite,
tomamos várias cervejas.
Era quase meia-noite, quando nos sentamos no alto da escadaria que desce para
Apipucos e ficamos a olhar as luzes da cidade, lá no horizonte visível.
Napoleão acendeu um cigarro e, depois de vários tragos,
começou a rir. Aqui não há perigo. Essa hora não desce nem Polícia nem bandido. Alto
do Mandu é o morro mais tranquilo do Recife, dizia o morador orgulhoso do pedaço.
O negão ria feito menino que tem as duas mãos cheias de doces. Depois daquela noite,
achei que a Felicidade é a irmã mais inexperiente da Loucura.
O negão estava desempregado. A mulher,
professora numa escola pública em Santo Amaro. Um inquilino com problemas
existenciais...
E o negão com seu sorriso branco refletindo a Lua: Tenha medo não, Jocão, o Mandu é
o morro mais tranquilo do Recife!... Ah-Ah-Ah...
Eu dei um trago daqueles, e soltei fumaça na cara das estrelas.
Napoleão continuava a rir. Lá embaixo, novos bares nos esperavam...
Poderia comentar aqui mais alguns momentos como esse, mas deixo para outras
narrativas. Quando eu estiver, de verdade, paradão no tempo e me der uma vontade de
escrever memórias.
Lembro Cecília Meireles: Sei que um dia estarei mudo, mais nada!
Porque ser imortal é um privilégio altíssimo! Ficar perto do divino! Acho que minha
alma não suportaria tamanho estado de grandeza.
Orson Welles, um homem de Luzes, Câmera, Ação!... Afirmou, um dia, que foi dormir
e, quando acordou, estava com 66 anos. Até Welles, um homem de ação. O que
poderiam dizer de mim: um quase apagado.
Também dei os meus cochilos. Não tive a graça nem a força de vontade para ser Pai.
Pulei essa etapa. Acordei um dia com três netinhos... De criação. Ou melhor, sou avô
adotado por eles. Como a vida precisa dos netos...
Meu amigo, que em parte estava certo, me estimulou a escrever pingos da memória.
Para que eu lembre que vou parar no tempo, que não preciso antecipar a certeza
inexorável, num dia, numa data, num ano tal do futuro. Por enquanto, aguardo, com
esperança, alcançar o ano de 2039, o apocalipse chinês... Quem sabe, sentado numa
cadeira de balanço, na calçada da minha casa, lendo a Bíblia...