Editorial Historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura
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Editorial Historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura
Mahfoud, M. & Massimi, M. (2010). Editorial: historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura. Memorándum, 20, 1-10. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 \ Editorial Memorándum: memoria e historia em psicología Número 20 Historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura A Memorándum número 20 apresenta um conjunto significativo de estudos históricos em psicología: A fonte autobiográfica como recurso para a apreensáo do processo de elaboragáo da experiencia na historia dos saberes psicológicos de M. Massimi propoe urna discussáo acerca deste tipo de fontes evidenciando sua relevancia nos estudos históricos em psicología. Helena Antipoff, seus pressupostos teórico-metodológicos e suas agóes na educagáo dos "excepcionais" no Brasil de H. C. Raíante e R. E. Lopes é o relato de pesquisa baseada em fontes documentáis e no estudo biográfico de Helena Antipoff. Notas sobre o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento de Belo Horizonte de E. H. Fazzi, B. J. Oliveira e S. D. Cirino reconstrói a historia do Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento de Belo Horizonte (1929-1946), abordando inclusive a contribuigáo de Helena Antipoff na organizagao do Laboratorio e na diregao de suas atividades. A narragáo da historia da psicología do desenvolvimento e da produgáo sobre a infancia nos livros didáticos de M. C. S. Gouvéa e P. N. Bahiense discute a constituigao histórica da psicología do desenvolvimento nos manuais de ensino da disciplina dirigidos ao ensino superior. Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observagóes (18941930) de P. F. N. Muñoz, C. Facchinetti, A. A. T. Dias investiga a organizagao da estrutura e funcionamento cotidiano do Pavilhao de Observagóes Nacional de Alienados, entre 1894 e 1930, na perspectiva de compreender as relagoes entre os saberes e os poderes da época. A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas de M. C. Zurba aborda o estudo do processo histórico que levou as práticas psicológicas brasileiras a se instalarem ñas políticas públicas de saúde contemporáneas. As contribuigóes de Julio Pires Porto-Carrero a difusáo da psicanálise de criangas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930 de J. L. F. Abráo apresenta as contribuigóes de Julio Pires Porto-Carrero na introdugáo das idéias relativas á psicanálise de criangas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930, tendo como foco a educagáo. Ainda numa perspectiva histórico-epistemológica situa-se urna contribuigao referente á fenomenología: Da historia da fenomenología a ética na psicología: tributo ao centenario de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserí de C. R. A. Barreira aborda as interfaces entre fenomenología e psicología no percurso de E. Husserl e as reflexoes deste autor acerca da vida ética. Algumas contribuigóes referem-se aos campos de estudos da memoria social e da religiosidade popular. Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afrobrasileiros de R. N. Dias e J. F. M. H. Bairrao busca apreender os saberes sobre o pretovelho no ámbito dos estudos acerca de psicología, cultura e religiosidade popular. Trajetórias coletivas de congadeiros de S. L. Ferreira, M. Mahfoud e M. V. Silva, é urna investigagáo realizada a partir de um conjunto de historias de vida narradas em entrevistas de sujeitos de origem africana moradores de Sao Joáo del-Rei (MG/Brasil). Sao propostas, por fim, aplicagoes de tres importantes abordagens psicológicas (a Abordagem Centrada na Pessoa, a Teoria das representagoes sociais, a Logoterapia) ñas áreas de clínica e psicología social. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2010). Editorial: historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura. Memorándum, 20, 1-10. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 2 "Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: um estado ou um processo? de R. M. M. Brito e V. Moreira busca discutir o processo propiamente pessoal que se dá durante o processo psicoterapia) de base rogeriana. Social representations and valoría! oríentations: the immigrants case de E. Mangone e G. Marsico estuda aspectos do fenómeno da imigragao de jovens italianos á luz da teoria das representagóes sociais. A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo de A. G. C. Guimaraes e J. O. Moreira a partir do relato de trechos da vida de um morador de rúa mostra como a busca de sentido se faz presente na vida ñas rúas, na perspectiva da teoria de Viktor Frankl. Em suma, as pesquisas propostas nesta Edigao 20 da Memorándum evidenciam a importancia das relagoes entre historia, memoria, psicología e cultura. A historia proporciona urna melhor compreensao do processo de constituigao da psicología e dos saberes psicológicos no ámbito das culturas e da sociedade. A investigagao das elaboragóes da memoria coletiva evidenciam a sua importancia decisiva nos processos de subjetivagao dentre das diversas tradigóes culturáis. As perspectivas conceituais e metodológicas da psicología contemporánea contribuem ao entendimento de fenómenos complexos da sociedade e da cultura atuais. Abril de 2011 Miguel Mahfoud Marina Massimi Editores Editorial Memorándum: memory and history in psychology Issue 20 History and memory in psychology: subjectivity and culture The 20th issue of Memorándum shows a significant number of historical studies in psychology: Autobiographical source as a resource for apprehending the process of elaborating experience in the history of psychological knowledge of M. Massimi proposes a discussion of this type of source indicating its importance in historical studies in psychology. Helena Antipoff, her theoretical-methodological assumptions and her actions in the education of "exceptional children" in Brazil of H. C. Rafante and R. E. Lim is a research report based on documentary sources and biographical study of Helena Antipoff. Notes about the Psychology Laboratory of the Improvement School of Belo Horizonte of E. H. Fazzi, B. J. Oliveira, and S. D. Cirino reconstructs the history of the Psychology Laboratory of the Postgraduate School of Belo Horizonte (1929-1946), also approaching the contribution of Helen Antipoff in organizing the laboratory and management of its activities. The narration of the history of developmental psychology and of the production about childhood in didactic books of M. C. S. Gouveia and P. N. Bahiense discusses the formation of the history of developmental psychology in teaching manuals of the subject addressed to higher education. Suspects under observation in the network of Psychiatry: The Pavilion of Observations (1894-1930) of P. F. N. Muñoz, C. Facchinetti, A. A. T. Days investigates the structure organization and daily operation of the Pavilion of National Observations of Alienated People, between 1894 and 1930, in order to understand the relationship between knowledge and power of the period. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2010). Editorial: historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura. Memorándum, 20, 1-10. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 3 History of the introduction of psychological practices in the Brazilian public health system and some epistemological consequences of M. C. Zurba approaches the study of the historical process that led the Brazilian psychological practices to settle in public policies of contemporary health. The contributions of Julio Pires Porto-Carrero to the diffusion of the psychoanalysis of children in Brazil in the 1920 and 1930 decades of J. L. F. Abram presents the contributions of Julio Pires Porto-Carrero to the introduction of ideas on the psychoanalysis of children in Brazil from 1920 to 1930, focusing on education. Even in a historical-epistemological perspective lies a contribution related to the phenomenology: From phenomenology's history to ethics in psychology: tribute to the centenarian of Philosophy as a Rigorous Science (1911) from Edmund Husserl of C. R. A. Barrier addresses the interface between phenomenology and psychology in the path of E. Husserl and the reflections of the author concerning ethical life. Some contributions refer to the fields of social memory studies and of popular religiosity. Below and beyond the captivity of the concepts: perspectives of the preto velho in the Afro-Brazilian studies of R. N. Dias and J. F. M. H. Bairrao attempts to grasp the knowledge of preto velho concerning the studies on psychology, culture and popular religiosity. Collective trajectories of the Congadeiros of S. L. Ferreira, M. Mahfoud and M. V. Silva is an investigation of a set of life histories narrated in interviews with subjects of African origin living in Sao Joao del Rei (MG / Brazil). Finally, applications of three major psychological approaches are proposed (the Person Centered Approach, the Theory of Social Representations, theLogotherapy) in the áreas of clinical and social psychology. "Being what you are" in Carl Rogers's psychotherapy: a state or a process? of R. M. M. Brito and V. Moreira discusses the own personal process which happens during Rogerian psychotherapy. Social representations and valoría! orientations: the immigrants case of E. Mangone, G. Marsico studies aspects of the immigration phenomenon of young Italians in the light of the theory of social representations. The religiosity of the homeless and the meaning of Ufe: Marcelo's case of A. G. C. Guimaraes and J. O. Moreira, from the report of life passages of a homeless man, shows how the search for meaning is present in the street life from the perspective of the theory of Viktor Frankl. In short, the researches proposed in this 20th edition of Memorándum show the importance of the relationship among history, memory, psychology and culture. History provides a better understanding of the constitution of psychology and psychological knowledge in the field of culture and society. The investigation of the collective memory elaborations highlights the key importance of the processes of subjectivity among the different cultural traditions. The conceptual and methodological perspectives in contemporary psychology contribute to understanding the complex phenomena of society and actual culture. April 2011 Miguel Mahfoud Marina Massimi Editores Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2010). Editorial: historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura. Memorándum, 20, 1-10. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 4 Equipe / Editorial Board Editores Miguel Mahfoud Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Marina Massimi Universidade de Sao Paulo Brasil Editores Assistentes Roberta Vasconcelos Leite Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Yuri Elias Gaspar Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Consultores externos Ad Hoc da Memorándum 20 Ad Hoc Consultants of Memorándum 20 Ana Maria Jacó-Vilela Universidade do Estado do Rio de Janeiro Brasil Carmen Lucia Cardoso Universidade de Sao Paulo Brasil Cristiana Facchinetti Casa de Oswaido Cruz/Fundagao Oswaido Cruz Brasil Cristina Lhullier Universidade de Caxias do Sul Brasil Elaine Pedreira Rabinovich Universidade Católica do Salvador Brasil Erika Lo u re neo Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Joao Madeira Universidade de Sao Paulo Brasil Jussara Falek Universidade de Sao Paulo Brasil Marilia Ancona López Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2010). Editorial: historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura. Memorándum, 20, 1-10. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 5 Mario Ariel González Porta Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Marta Helena de Freitas Universidade Católica de Brasilia Brasil José Francisco Miguel Henriques Bairrao Universidade de Sao Paulo Brasil Mitsuko Aparecida Makino Antunes Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Nádia Maria Dourado Rocha Faculdade Ruy Barbosa Brasil Paulo José Carvalho da Silva Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Railda Fernandes Alves Universidade Estadual da Paraíba Brasil Regina Helena de Freitas Campos Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Ronilda Iyakemi Ribeiro Universidade de Sao Paulo Brasil Roseli Esquerdo Lopes Universidade Federal de Sao Carlos Brasil Sávio Passafaro Peres Universidade de Sao Paulo Brasil Sergio Cirino Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Thiago Antonio Avellar de Aquino Universidade Federal da Paraíba Brasil Conselho Editorial / Advisory Board Adalgisa Arantes Campos Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2010). Editorial: historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura. Memorándum, 20, 1-10. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 Alcir Pécora Universidade de Campiñas Brasil Angela Ales Bello Pontificia Universitas Lateranensis Italia Aníbal Fornari Universidad Católica de Santa Fé Universidade Católica de La Plata Argentina Anna Unali Universitá La Sapienza Italia Antonella Romano École des Hautes Études en Sciences Sociales France Belmira Bueno Universidade de Sao Paulo Brasil Caio Boschi Pontificia Universidade Católica de Minas Gerais Brasil Celso Sá Universidade do Estado do Rio de Janeiro Brasil Danilo Zardin Universitá Cattolica Sacro Cuore Italia Ecléa Bosi Universidade de Sao Paulo Brasil Francesco Botturi Universitá Cattolica Sacro Cuore Italia Franco Buzzi Universitá Cattolica del Sacro Cuore Italia Gilberto Safra Universidade de Sao Paulo Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Helio Carpintero Universidad Complutense España Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2010). Editorial: historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura. Memorándum, 20, 1-10. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 7 Hugo Klappenbach Universidad San Luis Argentina Isaías Pessotti Universidade de Sao Paulo Brasil Janice Theodoro da Silva Universidade de Sao Paulo Brasil José Carlos Sebe Bom Meihy Universidade de Sao Paulo Brasil Luís Carlos Villalta Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Luiz Jean Lauand Universidade de Sao Paulo Brasil Maria Armezzani Universitá degli Studi di Padova Italia Maria do Carmo Guedes Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Maria Efigénia Lage de Resende Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Maria Fernanda Diniz Teixeira Enes Universidade Nova de Lisboa Portugal Martine Ruchat Université de Genéve Suiss Michel Marie Le Ven Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Monique Augras Universidade Católica do Rio de Janeiro Brasil Olga Rodrigues de Moraes von Simson Universidade de Campiñas Brasil Pedro Morande Universidad Católica de Chile Chile Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2010). Editorial: historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura. Memorándum, 20, 1-10. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 g Pierre-Antoine Fabre École des Hautes Études en Sciences Sociales France Regina Helena de Freitas Campos Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Sadi Marhaba Universitá degli Studi di Padova Italia William Barbosa Gomes Universidade Federal do Rio Grande do Sul Brasil Conselho Consultivo / Board of editorial consultants Adone Agnolin Universidade de Sao Paulo Brasil Ana Maria Jacó-Vilela Universidade Estadual do Rio de Janeiro Brasil André Cavazotti Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Arno Engelmann Universidade de Sao Paulo Brasil Bernadette Majorana Universitá degli Studi di Bergamo Italia César Ades Universidade de Sao Paulo Brasil Davide Bigalli Universitá degli Studi di Milano Italia Deise Mancebo Universidade Estadual do Rio de Janeiro Brasil Edoardo Bressan Universitá degli Studi di Milano Italia Eugenio dos Santos Universidade do Porto Portugal Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2010). Editorial: historia e memoria em psicología: subjetividade e cultura. Memorándum, 20, 1-10. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 9 Giovanna Zanlonghi Universitá Cattolica del Sacro Cuore Italia José Francisco Miguel Henriques Bairrao Universidade de Sao Paulo Brasil Marcos Vieira da Silva Universidade Federal de Sao Joao del Rei Brasil Maria Luisa Sandoval Schmidt Universidade de Sao Paulo Brasil Marisa Todeschan D. S. Baptista Universidade de Sao Marcos Brasil Mitsuko Aparecida Makino Antunes Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Nádia Rocha Faculdade Ruy Barbosa Brasil Rachel Nunes da Cunha Universidade de Brasilia Brasil Raúl Albino Pacheco Filho Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo Brasil Vanessa Almeida Barros Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Equipe técnica / Technical Team * Márcia Bitelli Cerántola Apoio / Supported by * LAPS - Laboratorio de Análise de Processos em Subjetividade. Programa de PósGraduagao em Psicología, Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG * Faculdade de Filosofía e Ciencias Humanas - FAFICH/UFMG * Núcleo de Epistemología e Historia das Ciencias Miguel Rolando Covian, Universidade de Sao Paulo - USP/Ribeirao Preto * Programa de Pós-Graduagao em Psicología da Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras, USP/Ribeirao Preto * Biblioteca Prof. Antonio Luiz Paixao Fafich/ UFMG Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 Mahfoud, M. & Massimi, M. (2010). Editorial: historia e memoria em psicologia: subjetividade e \Q cultura. Memorándum, 20, 1-10. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 A revista eletrónica Memorándum é urna iniciativa do Grupo de Pesquisa "Estudos em Psicologia e Ciencias Humanas: Historia e Memoria", vinculado ao Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciencias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG e ao Departamento de Psicologia e Educagao da Faculdade de Filosofia, Ciencias e Letras Universidade de Sao Paulo USP/Ribeirao Preto. The electronic scholarly journal Memorándum is an initiative of the Research Group "Estudos em Psicologia e Ciencias Humanas: Historia e Memoria", linked to Departamento de Psicologia of Faculdade de Filosofia e Ciencias Humanas of Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG and to Departamento de Psicologia e Educagao of Faculdade de Filosofia, Ciencias e Letras of Universidade de Sao Paulo - USP/Ribeirao Preto. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/editorial20 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Trajetórias Coletivas de Congadeiros Collective trajectories of the Congadeiros Shirley de Lima-Ferreira Miguel Mahfoud Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Marcos Vieira Silva Universidade Federal de Sao Joao Del-Rei Brasil Resumo Neste artigo, apresentamos algumas consideragoes sobre as trajetórias coletivas, construidas a partir de um conjunto de historias de vida narradas em entrevistas coletivas, de congadeiros negros residentes em Sao Joao Del-Rei (MG/Brasil). Buscamos sua articulagao das lógicas da experiencia no co-engendramento público e privado, localizando os congados enquanto pequeños grupos de pertenga étnica, modos de objetivagao de identidades que se configuram nesta tensao. Indicamos a existencia de contradigoes constitutivas, nao no campo dos juízos de valor e binarismos, mas em urna dialética das percepgoes que vao construindo, no interior deste grupo social, representagoes diferenciadas do que é o congado e de quem sao os congadeiros. Nestas identidades estao implicados valores da classe operaría, produzidos na vivencia comunitaria e legitimados no campo religioso em suas formas ecuménicas, históricas e contemporáneas. Indicamos a importancia da familia e da educagao para migragoes futuras nos espagos sociais delineando novos contornos a estas trajetórias. Palavras-chave: Trajetórias; Historias de Vida; Familia; Diáspora; Identidade Étnica. Abstract This paper presents some accounts on collective life courses, built from a set of life histories told during collective interviews with black Congado members living in Sao Joao Del-Rei (MG/Brazil). We try to articúlate its logics of experience as a public and prívate co-intertwining, locating Congados as small groups of ethnic belonging, and identity objectifying ways being arranged through this tensión. We point out fundamental contradictions, not within valué judgments and dualisms (pure/impure), but a perception dialectics that builds, in the middle of this social group, differentiated representations of what Congado is and of who the Congado members are. These identities are entangled with working class valúes, produced by community life and legitimized at the religious field along with its ecumenical, historical and contemporary forms. We draw attention to the importance of family and education to future migrations throughout social spaces by sketching new outlines to these life courses. Keywords: trajectories; life histories; family; diáspora; ethnic identity. Introducao Grupos sociais concretos negociam sua existencia em momentos históricos e espagos sociais específicos, pois se organizam em torno de demandas, necessidades e projetos, nos quais seus membros sentem-se reconhecidos (1). Condicionamentos sociais e psíquicos, associados á trajetória particular de cada Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 urna destas pessoas, determinarlo certo modo de funcionamento para esta produgao singular, constituir-se enquanto grupo. Este empreendimento nao configura um projeto em si, pois as necessidades coletivas surgem ñas relagoes com outros grupos, entre maiorias e minorias nao demográficas, mas diferenciadas quanto á posse de recursos valorizados num determinado contexto histórico, que estabelecem as condigoes da tutela que se declara naturalmente legítima ao ocultar a arqueología de sua sedimentagao. Experiencias de frustragao e gratificagao, de reprodugao das relagoes de dominagao e de conscientizagao destas relagoes, de apego aos projetos coletivos e de distanciamento dos ideáis enunciados, sao tragos pertinentes as biografías individuáis ou constituem o resultado construido de um sistema de tragos pertinentes a um grupo de biografías que Bourdieu (1974) denominou trajetórias. Históricamente, os congadeiros sao criadores de um complexo sistema simbólico e expressivo ligado á vivencia comunitaria, afirmando-se resistentes á dissipagao de seus valores, saberes e crengas, adotando formas portuguesas para expressar valores africanos. Sao afrodescendentes e, portanto, um grupo específico de vítimas de racismo e discriminagao, estatuto político ratificado na Declaragao de Durban - 2001. Mas, nos dias atuais, um movimento diferente daquele descrito por Ortiz (1991), em relagao ao suporte de determinado segmento da intelectualidade branca ao processo de legitimagao das religioes afro-brasileiras, revela o aumento da participagao de pessoas mestigas e brancas no Congado sob os efeitos excludentes da pobreza no plano das identificagoes e busca de novos espagos sociais de inclusao (Dias, 2001; Silva, 1999; Souza, 2001; 2002). Objetivamente pertencentes ao mesmo grupo estrutural como designado por Martín-Baró (1989), alinham-se na divisao social do trabalho, pois nao detém a propriedade dos meios de produgao, e ocupam lugares semelhantes na distribuigao social do conhecimento, contando poucos anos de escolaridade. Estes lugares comunitarios "onde todos sao chamados pelo nome" (Guareschi, 1996) resguardam certo grau de contigüidade entre o grupo familiar, o grupo de trabalho, e o grupo de lazer maniendo um menor intervalo psicossocial entre os tempos de trabalho e nao-trabalho (Bosi, 1977/2007). No Congado, cultura religiosa nao submetida aos avatares da produgao industrial, cada urna destas pessoas, em um determinado momento de sua vida, escolheu tornar-se um, dedicando tempo de seu lazer as atividades comunitarias, assumindo como seus normas e valores coletivos, atribuindo a esta participagao um significado que emerge da produgao de sentidos em que interatuam discursos oriundos de diversos lugares (Spink, 2004). Apoiados em Geertz (1968/1994), nao almejamos a síntese perfeita entre a visao de mundo e o estilo de vida destas pessoas. Buscamos investigar o processo coletivo de articulagao de determinada atitude religiosa, objetivada em padroes moráis, sociais e estéticos, e subjetivada enquanto realidade, modelando a disposigao da pessoa subjacente a si mesma e ao mundo em vive, a urna determinada configuragao conceitual e institucional. Nosso objetivo é demonstrar que esta participagao promove a integragao das dimensoes culturáis, sociais e psíquicas, favorecendo o processo de conversao dos arbitrarios signos culturáis em necessidade ontológica e moral (Giumbelli, 2003). Neste sentido, a partir da comparagao das trajetórias individuáis, buscamos aspectos de similaridade destes percursos que atualizam a perspectiva de construgao diacrónica das trajetórias dos diferentes grupos sociais. As festas do Congado: a entronizacáo de Reis Negros O Congado designa a reuniao dos pequeños grupos de congadeiros denominados Temos, Bandas ou Guardas, em cortejos, missas congas e triduos festivos para o ascendimento de mastros aos santos de devogao, principalmente Nossa Senhora do Rosario, Santa Efigénia e Sao Benedito e para a coroagao de reis e rainhas. Nestas Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 cerimónias rituais de fé e devogao, dramatizam solenemente, percorrendo as rúas das cidades, episodios vividos de batalhas, conquistas, e a ascensao ao poder. Temos de mogambiques, congos, catopés, caboclinhos, marujos, dentre outros, com seus diferentes batuques, dangas, cantos, vestimentas, amuletos e insignias, evoluem coordenados pelos Capitaes. Esta manifestagao da cultura popular afro-luso-brasileira preservada, principalmente, ñas Irmandades Religiosas Leigas de Negros desde século XVIII, serviu aos africanos e seus descendentes, como importante espago de resistencia cultural. Na diáspora, um trabalho representacional contra a insuportável ameaga da perda dos marcos referenciais, foi ancorado no poder organizador dos reis negros eleitos em organizagoes de trabalho, quilombos e levantes de escravos. No processo histórico de coroagao dos reis de nagao á eleigao do rei Congo, este tornou-se intermediario ñas relagoes com o sagrado e verdadeiro líder comunitario: "remetendo á térra natal ao mesmo tempo em que esta era despida de suas particularidades concretas, passando a ser sentida como um lugar mítico do qual vieram todos os africanos escravizados" (Souza, 2001, p. 252). O rei congo constituí um novo elemento identitário, fundante e aglutinador (Dias, 2001). A difusao do cristianismo entre as linhagens governantes do reino do Congo favoreceu a associagao dos elementos cristaos ao mundo dos ancestrais e a um passado anterior á escravizagao. Souza (2001) localiza este sincretismo na atividade de retransmissao do cristianismo por catequistas nativas que acrescentavam suas contribuigoes particulares. Esta capacidade de incorporar novos movimentos as religioes tradicionais estabelece os rudimentos para que as festas de eleigao de reis negros, no Brasil, sejam estruturadas pelo catolicismo popular portugués. A intensificagao desta estrutura estruturante (Bourdieu, 1974) ocorrerá dentro das confrarias religiosas que estabeleceram quadros de agao coletiva que trespassavam as divisoes étnicas e sociais dos negros. Este sincretismo do sistema ritual Congado, demonstrava sua integragao á sociedade colonial, mediante o controle e a complacencia da Igreja que, todavía, reprimía outras manifestagoes marcadamente africanas (Dias, 2001; Souza, 2001). Neste sentido, acompanhando Geertz (1968/1994), consideramos que é necessário distinguir entre "urna atitude religiosa para com a experiencia e os tipos de aparato social que estiveram, através do tempo e do espago, associados comumente com a defesa de tal atitude" (p. 18). Assim, as Irmandades cumpriam urna fungao ambivalente, cuidando tanto da formagao religiosa dos seus membros quanto constituindo a única via de organizagao da sociedade civil (Dias, 2001). Apaziguaram conflitos maniendo a ordem social estabelecida e também, mediante o trabalho subversivo daqueles excluidos do interior (Bourdieu, 1995), esta participagao: Criou cañáis de protesto e de diálogo com órgaos da Coroa, estabeleceu frentes de causas mobilizadoras da comunidade negra e familiarizou os escravos e libertos com o funcionamento das instituigoes. Demonstrou as possibilidades abertas para manipulagao das estruturas de poder. (...) táticas dos confrades que subvertiam e deslocavam seus modos de realizagao. "Inteligencia em dédalos" a operar com a ocasiao, criando representagoes - a partir das práticas determinadas pela memoria (...) introduziu espago privilegiado de intercambio cultural que atravessava as relagoes de dominagao constituidas nos lugares tradicionais e situava os confrades em posigao privilegiada de negociagao. Veiculou formas de discurso radical, conformou Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 práticas de autonomía e autogestáo da vida religiosa e desenvolveu rituais de inversáo hierárquica, os quais repuseram em questao os termos das relagoes sociais de dominagáo (Aguiar, 2001, p. 391-392). Ao longo de século XVIII e XIX a Igreja, que provinha justificativas teológicas para a perpetuagáo do sistema escravista apoiada ñas idéias de predestinagáo e organicidade, contribuiu para a manutengáo do espago público fechado. Visando afastar-se de seu passado colonial, proibiu aos padres, dentre outras medidas de combate á religiosidade popular, a coroagáo de Reis Congo ñas igrejas e marginalizou as irmandades ocasionando o deslocamento de urna importante posigao estratégica para os congadeiros. Via irmandades, mesmo que de modo marginal, integravam-se ao dominio da cultura dominante em comparagáo a posigoes de outras práticas religiosas da comunidade negra. Sobretudo, com a aboligáo da escravatura (1888) e a proclamagáo da república (1889) a populagáo negra conforma o enorme contingente de operarios do capital em que também se misturam brancos pobres e ¡migrantes - o povo. Das senzalas, para os cortigos e as favelas, as tradigoes do congado, enraizadas ñas condigoes sociais e materiais da comunidade negra e incorporadas as suas práticas populares resistiráo (em suas transformagoes) nos espagos urbanos e intra-urbanos da sociedade brasileira. Fiéis á celebragáo comunitaria firmemente ancorada na memoria coletiva, os congadeiros permaneceram tocando em frente ás portas fechadas das igrejas. No ámbito do Congado, o impacto das "lutas negras pela descolonizagáo das mentes dos povos da diáspora negra" (Hall, 2006, p. 318) nao alcangará a aniquilagáo das formas de imperialismo que Ihe deram origem e subsistem em seu sistema ritual. Em sentido último, aniquilá-las, seria aniquilar a própria tradigáo, erradicá-la como resquicio de um fosso histórico de cultura cooptada a eliminar: "sao essas hierarquias que reduzem tanta experiencia social á condigáo de residuo. As experiencias sao consideradas residuais porque sao contemporáneas de maneira que a temporalidade dominante, o tempo linear, nao é capaz de reconhecer" (Santos, 2002, p. 17). Temos observado que a tensáo entre o projeto político das lutas negras e dos direitos civis produziu na historia novas formas de relagáo com a Igreja favorecendo a emergencia de novas liderangas que operam em dédalos na instituigáo produzindo novas representagoes ao recolocar em questao os termos das relagoes sociais de dominagáo. Sejamos mais específicos. Na segunda metade de século XX, a ascensáo do Papa Joáo Paulo II e o crescimento do humanismo cristáo trouxeram novas exigencias ao católico-pessoa-concreta-no-mundo. O retorno aos principios cristáo fundamentáis, no Concilio do Vaticano II (1962-1965), autorizou o trabalho com membros de outras denominagoes. Na América Latina, propagou-se a Teología da Libertagáo que politiza a reflexáo teológica pela conscientizagáo e organizagáo daqueles submetidos a qualquer forma de opressáo (Paiva, 2003). No Brasil, movimentos de participagáo popular, enfraquecidos pelo Golpe de 64, re-emergem em 1968, quando a Igreja esboga novo movimento de abertura. Da complexidade de iniciativas e movimentos associados a esta orientagáo ecuménica e á ética da solidariedade, destacamos a organizagáo das Comunidades Eclesiais de Base CEBs e dos Agentes da Pastoral Negra - APN, que fomentaram a emergencia de novas liderangas carismáticas e populares (Paiva, 2003; Sanchis, 2001). Assim, nos dias atuais, congadeiros celebram novamente no interior de algumas paróquias (2) brasileiras. A modificagáo da valencia da cultura popular - patrimonio ¡material a ser preservado em sua dinámica processual - é acompanhada do debate propositivo sobre a igualdade racial (todos iguais perante Deus) e do reconhecimento das diferengas no campo dos direitos civis. A este respeito, vamos acompanhar a posigao do padre negro Dom Gilio Felicio (3) em entrevista á revista Missóes (Patias, 2010): Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 101 161 Dizem que no Brasil nao há racismo. Por que entáo há táo poucos padres e bispos negros brasileiros? (...) Em primeiro lugar, a Igreja precisa continuar essa caminhada bonita de libertagao dos condicionamentos que foram criados no tempo da escravidao e, portanto, dos mecanismos de exclusao dos valores africanos e afrodescendentes. Ao mesmo tempo, a Igreja, a partir do Documento de Aparecida, deve lutar para conhecer, assumir, estimar e promover os valores afro-descendentes. E, claro, colocar a sua missao crista a servigo dos negros e negras que estao necessitando de urna forga, de auto-estima, do dom de Deus presente na negritude, necessitando de políticas afirmativas, enfim, de serem atendidos ñas suas carencias, em seus gritos por socorro, mas ao mesmo tempo, no sentido de poderem participar e oferecer, como dizia o papa Joao Paulo I I , em Santo Domingo, os seus valores culturáis para enriquecer a Igreja e a sociedade. (...) A Pastoral Afro encontra certa resistencia em algumas dioceses. Quais seriam as maiores dificuldades? Varias dioceses ainda nao iniciaram essa pastoral exatamente em virtude desses condicionamentos da época da escravidao e da situagao que pesa ainda na sociedade e na Igreja, do racismo, da discriminagao racial e assim por diante. Percebemos na sociedade brasileira boa vontade com varios Centros e Entidades até em nivel ministerial que estao trabalhando em favor da populagao negra. Mas há um longo caminho de superagao desse condicionamento racista. Também, urna das dificuldades que encontramos na Igreja é a questao do diálogo ecuménico e inter-religioso. Nesse diálogo, nos nao podemos fugir dos interlocutores que pertencem as religioes de matrizes africanas. Quando se estabelecem os encaminhamentos, quando esses diálogos comegam, há urna resistencia bastante grande. Um sonho que a Igreja tem é a inculturagao da sua agao evangelizadora. Esse caminho também é bastante espinhoso, com muitas incompreensoes. Evidentemente que a caminhada que se faz nao é perfeita, mas há urna resistencia mesmo naqueles passos que sao dados e que estao absolutamente de acordó com os documentos e com o magisterio da Igreja (p. 26). Históricamente, os congadeiros realizam um trabalho representacional, ancorado na memoria coletiva do cativeiro, constituindo pequeños grupos que objetivam a consciéncia e a pertenga étnica. Eis o fundamento de toda representagao social, familiarizar o nao familiar e localizá-lo, restabelecendo um sentido de continuidade Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 entre o passado, o presente e o futuro (Moscovici, 2005). Se esta objetivagao da identidade está para um processo de coisificagao em representagoes deterioradas e deteriorantes - preconceitos, estigmas, discriminagoes - produzidas e legitimadas pelas instituigoes dominantes que veiculam as identidades legitimadoras, para aqueles que ocupam posigoes desfavorecidas e criam representagoes afirmativas auto-estima, orgulho, reconhecimento - sua identidade está para a resistencia (Castells, 2006). Os falantes, que agem, constroem um mundo mais ou menos estável a partir da diversidade, nem inerte, nem mortal, mas em movimento, de fato escolhem alguns de seus grupos de pertenga pelas contingencias materiais; a escola mais próxima, o local de trabalho, a religiao praticada pela familia. Porém, outros grupos sao escolhidos pelos dramas vividos, no sentido atribuido por Politzer (1928/1988). Portanto, a identidade, a consciéncia de si, é pensada como processo, "que gera e mantém a forga que liga urna pessoa ou grupo a urna atitude ou crenga. Tal processo caracteriza-se, o tempo todo, pela marca da historicidade, sendo continuamente objeto de reposigao" (Nascimento & Menandro, 2002, p. 114). Assim, no curso da vida, o apego afetivo e o desapego, ressignificam o passado, orientam o presente e possibilitam a projegao de um futuro (Schimdt & Mahfoud, 1993). Anteriormente, afirmamos que alguns autores tém indicado a progressiva dispersao das identidades étnicas em novos hibridismos culturáis enquanto grupos organizados tém lutado ativamente pelo resgate e construgao de referenciais mais sólidos para os afrodescendentes. Como se dá o processo de subjetivagao e objetivagao da identidade étnica para estas pessoas em seu dia-a-dia? Narrativas dos congadeiros: trabalho-religioso, trabalho-comunitário As Entrevistas Narrativas - EN (Jovchelovitch & Bauer, 2004), indicadas em projetos que combinem historias de vida e contextos sócio-históricos, configuramse em momento para que a pessoa, a partir de urna pergunta inicial formulada pelo pesquisador, possa contar do curso de sua própria vida. Em lembrangas (e esquecimentos) de acontecimentos, de lugares, de fatos importantes, na escolha dos elos que articulam esta tessitura, é possível entrever os sentidos atribuidos e o modo com a pessoa agiu, com e para além das sobredeterminagoes históricas, culturáis, políticas, económicas, etc. Sabemos que a memoria coletiva é campo de disputas, em que diferentes grupos sociais se avaliam, se articulam e localizam as suas lembrangas em quadros sociais comuns (Halbwachs, 1950/2006). Após ampio estudo exploratorio, contatamos líderes comunitarios promotores das festas do Congado na cidade de Sao Joao Del-Rei, fundadores de associagoes de congadeiros e/ou membros de temos. Solicitamos aos entrevistados, idosos e adultos, homens e mulheres, nascidos nesta cidade e em seu entorno, migrantes da zona rural ou que toda a vida residiram em seus bairros periféricos, que contassem como se tornaram congadeiros, e/ou descrevessem a sua participagao no Congado. Perguntas e respostas surgiram na atividade de conversagao. Foram realizadas tres entrevistas, todas coletivas. Gravadas com o devido consentimento dos entrevistados em arquivos digitais, após a etapa de transcrigao cada entrevista foi submetida ao tratamento de textualizagao com vistas á aplicagao do método de análise proposto por Schütz (citado por Jovchelovitch & Bauer, 2004) que visa á identificagao de trajetórias coletivas. Em primeiro lugar, foram compiladas as historias de vida dos seis congadeiros participantes da pesquisa. Visando constituir urna perspectiva temporal, em detrimento de reconstituigao objetiva, trata-se do trabalho de organizagao dos acontecimentos valorizados pelos sujeitos das narrativas. Todos os nomes foram substituidos. Em seguida, a partir da comparagao das trajetórias individuáis, foram buscados aspectos de similaridade destas historias de vida. Tais semelhangas foram contextualizadas e sao discutidas á luz dos apontamentos de alguns autores relevantes. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Sabemos que, muitas vezes, as testemunhas oráis "sao dominadas por um processo de estereotipia e se dobram á memoria institucional" (Bosi, 2004, p. 17). Nao se trata de julgá-las, mas, nos dizeres de Pierre Bourdieu, compreender. Abrirse para a percepgáo da crítica da própria ideología feita pelo sujeito da narrativa (Bosi, 2004). Sao estes tempos, estes momentos de ruptura, estes sonhos coletivos que possibilitam a emergencia da consciéncia histórica, ou seja, de tomar parte de urna agáo compartilhada como praxis transformadora (Lañe, 1984). Desta forma, e, acompanhando Pollak (1989), buscamos investigar o trabalho subversivo daquelas "memorias subterráneas, proibidas e clandestinas que jamáis puderam se exprimir publicamente" (p. 5). Trajetórias Coletivas Estes congadeiros vivenciaram urna infancia de pobreza e contam poucos anos de escolaridade. A educagáo formal nao foi tema em que se detivessem em suas narrativas. Na infancia, Joaquim se lembrou dos constrangimentos vividos na escola sempre que interrogado sobre urna profissáo paterna desconhecida. Entretanto, a questáo do reconhecimento e da legitimagáo de suas atividades comunitarias recolocará o problema dos diplomas. Voltaremos a este ponto posteriormente. Atitude religiosa e historia familiar As origens da atitude religiosa remetem os depoentes á historia familiar. Na cidade, no bairro, a vivencia pública dos ritos e dogmas católicos. No interior da casa e da familia, a experiencia privada das religioes afrodescendentes mediadas pelos saberes dos velhos negros, benzedores, difícilmente encontrados na contemporaneidade: Fiz a minha primeira eucaristía, eu estudei o catecismo, (...) entáo todo domingo a missa das sete e meia, a missa da changa, entáo eu fui criada na religiáo católica (Eugenia). Pegava um guarda-chuva, e assim, pra ninguém me ver! Entáo, ia lá urna vez ou outra é que a gente ia no terreiro. (...) Vocé fala, ah, tem alguma coisa assim que eu tó precisando benzer, entáo quem acredita vai. Todo negro acredita (Maria). Entáo a gente, por nao saber ainda as magias, que nos era ainda muito prematuro, muita changa, pra que nossos pais, tios, ensinasse pra gente, mas a gente sabia que tinha é, as suas mandingas, mas como a gente nao sabia. Por que eles nunca fazia mandinga perto da gente. Sempre "ah, vou ali, nao sei o qué, pá, a esquerda e ia pra direita. E quando vocé ta pensando que eles táo de cá, eles táo de lá! E quando vai ver... E a gente tinha urna mania assim também, muito sorrateiro, que nao podia de ouvir a conversa dos mais velhos. Entáo as vezes vocé captava alguma coisa, através de conversa deles. Mas nao podia mencionar (Joaquim). Zonas de Misterio Os congadeiros resguardam as explicagoes das tradigoes, das atribuigoes rituais e fundamentos místicos e mágicos, sao as zonas de misterio. Esta relagáo com o sagrado, único recurso para enfrentar as adversidades, era invocado em situagoes Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 diversas como nos conta Jerónimo: "quebranto, benzé de corpo, quebranto de vento virado, etc., dor, mordida de cobra, etc. E, inclusive, quase que eu posso afirmar que é real, eles benziam até chuva! Encostá chuva, plantagao, afastá animáis nocivos". Os temos de Mogambique "sao tidos como os mais perigosos, envoltos em práticas mágicas e com poderes sobrenaturais, que podem até levar á morte de quem se coloque de maneira equivocada em seus caminhos" (Souza, 2002, p. 327). O mogambiqueiro Jerónimo, remanescente de urna geragao de "negos sabidos" (sic) que já partiu, diz estar "dando hora extra" sozinho e considera que "Nao dá pra abrir muito nao". Mas nos conta que ñas Festas do Rosario, "na Festa de Congado mesmo, tem o desafio, o desabafo e tem os canto de ponto. Os canto de ponto... Mexe com entidades idas, aqueles preto véio que morreu sofrendo demais, mexe com espirito deles um negocio é... Mais ou menos assim, é complicado". Segundo Silva (1999), pontos de Umbanda ou Candomblé integram os ritos preparatorios que antecedem as Festas do Rosario, mas nao sao entoados em cortejos públicos. Raramente, serao os conflitos intergrupos os disparadores operativos para a mobilizagao dos recursos sagrados e protetores. Nestas "trocas de demanda" (sic), pedem licenga a Exu para atravessar á encruzilhada, acompanhados de pretos velhos e caboclos (Silva, 1999). Deste modo, as práticas e os discursos dos congadeiros com relagao á Umbanda e ao Candomblé sao reticentes, tabú. Na pesquisa de Fernandes (2003) sao consideradas malditas. Um de seus entrevistados Ihe diz: "Os Arturos é de pai para filho e nao perdeu a origem. Os outros misturam com sessao espirita. (...) Tem gente que destrói o Congado e a cultura negra" (p. 76). Indicamos varios elementos e faz-se necessário destacá-los. Sabemos da fungao legitimadora do sincretismo cristao constitutivo do Congado, frente aos interesses políticos em jogo ñas disputas do mercado concorrencial religioso (Bourdieu, 1974). As estrategias de protegao destes conhecimentos contrastam com a aparente visibilidade de seus rituais. Portanto, no contexto do Congado, público e privado nao podem ser lidos como fronteirigos, mesclam-se em diferentes níveis. Desse modo, a perspectiva de destruigao/degenerescéncia, mencionada pelo entrevistado está relacionada á sessao espirita e, o espiritismo, conforme Ortiz (1991) é um dos componentes históricos da umbanda. Mas na fala do congadeiro, nao temos elementos suficientes para determinar se a referencia ao espiritismo se faz em relagao ao candomblé ou a umbanda, e mesmo a urna indiferenciagao. Por outro lado, também podemos perguntar se a acusagao de desvio - mistura/destruigao está relacionada com os movimentos do mercado concorrencial religioso, pois, certamente, podemos tencioná-la com a posigao do padre: "o padre nao aceitava, que as pessoas tira proveito. (...) um dia nos comentamos lá em casa, que tem o Santo Católico, e tem o outro santo, o mesmo santo mas porém de outra banda. (...) vai é da mente da pessoa, onde misturou um mucado por causa disso que o padre nao gostava" (Jerónimo). E os gostos do padre, representante institucional que mantém/veicula representagóes do imaginario popular sao importantes, pois intercambiáveis: as práticas místico-sagradas podem ser reservadas aos momentos privados e nao evocadas no contexto público, mas urna vez evocadas, será necessário mobilizar recursos de familiaridade para localizá-las enquanto tais. Mas, as contranarrativas sao fundamentáis. Joaquim adverte: "nao sou católico, sou cristao!". Ultrapassamos a dimensao primaria da formagao religiosa e dos hábitos herdados e já nos encaminhamos para as escolhas, melhor discutidas adiante. Neste ponto, precisamos visualizar mais alguns sentimentos associados ao contexto de transmissao do contexto ritual. Transmissao do contexto ritual Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 -.nr 16:> Embora em algumas comunidades tradicionais seja fundamental destacar a centralidade da figura paterna como nos Arturos (Contagem/MG), em que os filhos de Artur sao também seus netos, ñoras, genros, etc. (Fernandes, 2003), neste contexto maes, irmas e irmaos, tios e tias, também guardam consigo e transmitem muitos dos segredos místicos do Congado. Os conhecimentos instrumentáis e devocionais para a continuidade das tradigoes sao transmitidos em ritos preparatorios, apresentagoes públicas e situagoes espontáneas e em lugares diversos, a casa, a rúa, o canto de trabalho. Como quem brinca a revelia da mae, Teresa ia para a rúa bater paus com os congadeiros. Mas o menino Jerónimo filho de Capitáo de Congado, nascido em 1942, seguia com os adultos para a roga as tres da manhá. Sua tarefa era tocar a caixa entregue pelo tio-avó, firmemente amarrada para que nao se arrastasse contra o chao. De vez em quando procurava escapar. Certa feita, com a conivéncia da mae, usou batatas para forjar a gravidade da caxumba. Sentimentos associados a pertenga Portanto, neste processo de transmissáo, sentimentos diversos e contrad¡torios podem ser identificados. Afirmar a existencia de contradigoes constitutivas nao nos posiciona no campo dos juízos de valor, nossas referencias nao sao binarismos (puro/impuro), mas urna dialética das percepgoes que váo construindo no interior deste grupo social representagoes diferenciadas do que é o congado e de quem sao os congadeiros. Neste sentido, o orgulho (desejo de contribuir e participar dos projetos familiares); a ansiedade (desvelar os misterios detidos pelos antigos para alcangar um lugar junto a eles); o medo (dos misteriosos saberes mágico-religiosos destes congadeiros antigos, "feiticeiros" (sic); e a vergonha (do que os outros diziam - e dizem - de suas vestes e performances rituais): O congado deles era Bate-Pau e da familia e tinha de bater pau! E eu entrava no meio (...) no escondido, porque na hora que tinha que falar oi, sua filha ta lá no meio dos congadeiro batendo pau, ai mandava me chamar, chegando lá, ai, ai. (...). A mae, oh, enfiava o coro. (...). Mas eu nao vou chorar que eu vou voltar. Acabava de apanhar ali, a mae esquecia, eu ia lá pro meio dos congadeiro batendo pau. Mais foi bom. Essas coisa da gente veio de muito tempo (...) e eu já esqueci muita coisa (Teresa). Mas eu tinha um medo! Que eles falava, eu nao sei qual é a ciencia, que vocé vinha, o Congado ta tocando, vém Rei, Rainha, com a coroa na cabega e eles vém com um guarda-chuva pra gente nao panhar sol. Ai tinha um contó, que o povo contava que aqueles guarda-chuva voava quando chegava na encruza e que a gente ia junto! (...) eu fui urna vez só e nao quis mais. E eu ficava olhando o Congado, quando ele passava na rúa, eu sempre fui criada nessa rúa sabe? A casa do meu pai era lá na frente. E minha mae ia ajudar as maes dos dois, que as maes era irma. (...). Porque todo mundo falava que era feiticeiro. (...) Todos os Congado era feitigaria. Entao quando eles passava batendo de porta em porta, tocando ñas casas, eu olhava da greta da porta (Maria). Aqui, Maria fala de sua experiencia na infancia. Mas fagamos um paréntese para antecipar sua inflexao sobre a vergonha, quando procura explicar, para si e para o Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 -, n¿ 16D pesquisador, os motivos da saída de changas e adolescentes do Grupo de Inculturagáo que ela coordenará em sua vida adulta: Muitos saíram por motivo de trabalho ou entáo por afinidade mesmo, e por vergonha de estar apresentando, de dangar, por causa de crítica que o outro colega fala: - Ah lá o macumbeiro! Ah lá a roupa dele! Eles caem fora, de vergonha, e perde no mundo (Maria). Diversidade religiosa Mas, as familias destes congadeiros, considerando também o núcleo ampliado em relagáo aos tios, primos, etc. podem ser caracterizadas pela pluralidade quanto á pertenga religiosa que nao é tomada como "medida de todas as coisas", nao é suficiente para se apreciar o caráter de urna pessoa. A convivencia destes candomblecistas, espiritas e cristáos católicos e protestantes, é indicativa de algo próximo ao que Paiva (2003) afirmou sobre a diversidade religiosa, nao constituí ameaga a própria identidade. Porém, perceberemos adiante que os conflitos familiares aparecem no desenvolvimento efetivo dos projetos (constituir um grupo de Congado; fundar associagoes), na dinámica das rupturas e criagáo de novos projetos: Na minha familia nao sao todos. Entáo a minha familia, ontem nos rimos que na nossa familia nos temos evangélico, nos temos freirá, kardecista e (...) candomblecista, de maneiras que cada um respeita a religiáo do outro. Entáo nos nao temos confuto com religiáo. Porque o que faz a pessoa nao é a religiáo. Porque em todas as religioes, existe bom, e existe mal. Entáo, essa questáo da pessoa nao seguir, entáo isso é do ser humano. Por que tem o ser, todos nos, o ser humano, nos temos, o nosso lado bom, o livre arbitrio, todos nos sabemos o que nos devemos seguir. Entáo, de maneiras que nao é a religiáo nao, ta no ser humano (Eugenia). Transformagóes e permanencias A constituigáo de um terno, banda ou grupo de Congado é um processo que envolve a transmissáo de saberes que, vivenciados na infancia, sao re-elaborados para as necessidades e exigencias do projeto atual. Jerónimo, atento observador das transformagóes e permanencias do contexto ritual do Congado, indica outras demarcagoes que configuram nos dias atuais um complexo de difícil definigáo. As dangas do Facáo e Bate-Paus, por exemplo, eram dangados de outro modo e os mogambiques produziam seus sons com guizos nos pés, punhos e pescogo, nao usavam instrumentos: "é um terno mais pobre, ele nao tem uniforme (...). O cara pode ir de terno, pode ir de chínelo, descaigo, de botina, pode... O Mogambique ele nao tem uniforme e nao tem instrumento. Na lógica, hoje tem, hoje é diferente, mas a verdade é essa". Assim, estes processos deflagram urna serie de contatos e parcerias com consultores/orientadores especializados em diversos campos do saber: letras e tons dos cantos, dangas, complexos performáticos, confecgáo de instrumentos, ritmos, vestimentas e adornos. Nos conversamos primeiro com o pessoal da familia (...). Que nos em si, nossa familia é muito grande. Nos comegamos o Congado nosso com nossa própria familia mesmo. Ai em diante, nos fomo juntando o Congado e tal, foi aparecendo Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 mais gente também, entrando no Congado, ai agora a gente ta com faixa de mais de trinta e seis pessoas! (...) Entrou mais gente de fora. Agora nao é só gente da familia, tem (...) colega da gente que gosta de participar (Teodoro). Veio foi o Antonio, depois o Joáo veio, Francisco da roga e tudo... (...) Ai depois quem veio é pra dar urna levantada foi o Antonio Santana. Ai depois veio a vó, e seu Pedro veio. Ai o Antonio nao voltou mais nao. Mais depois seu Pedro saiu e ai o Antonio voltou. Mas a gente já sabia algumas coisas cié Congado. (...) Primeiro o Joao, primeiro. (...). É ele entrou como capitao, mas nao, ele tinha é, ele tinha experiencia como o Antonio tinha. O Antonio vinha pra poder ta ajudando (Teresa). O trabalho Conforme indicamos anteriormente, "sao trabajadores que fazem o Congado" (Lima-Ferreira, 2008, p. 194) e criam valores de uso, investem tempo e recursos próprios para suas vestes, adornos, estandartes, instrumentos musicais. Fotografías, vídeos, atas, a transmissao da TV local, as lembrangas recebidas ñas cidades visitadas, documentam e narram urna intensa trajetória. Estes índices da materialidade de seus feitos permitem a recordagáo de membros falecidos, os filhos pequeños e crescidos. Seguindo Bosi (1977/2007), trata-se da esséncia da cultura, "o poder de tornar presentes os seres que se ausentaram do nosso cotidiano", como nos afirmou Dona Maria "a gente vai, mas alguma coisa vai ficar" (p. 25). Na adolescencia e juventude, conquistas mediadas pelo trabalho ocupam lugar central ñas narrativas. Trabalhando na construgao civil, seu Jerónimo viajou pelo país, encontrou muitos amores e seus filhos estao em cidades diferentes. Hoje, aposentado, vive com urna companheira. Maria, quando seguia para os encontros das CEBs apoiava-se na solidariedade daquelas que poderiam substituí-la em seu trabalho de lavadeira, para minimizar o descontrole do orgamento doméstico. Aos dez anos, Teresa migrou sozinha para a cidade: "Eu, a cara, a coragem e Deus. Vim trabalhar. Nunca gostei de roga. Falei ah, nunca gostei de roga, entao eu sai com dez anos, pra poder vim trabalhar, ai eu sempre, sempre trabalhei". Cansada e doente, após anos acumulando diversos empregos informáis e mal remunerados, aposentou a si mesma dedicando-se aos cuidados da casa, dos filhos e as atividades comunitarias. Seu esposo Teodoro também migrou em busca de emprego e moradia para a familia recém constituida: "comecei a trabalhar na fábrica dia sete de agosto de oitenta e seis. (...) Tó aqui até hoje. (...) Ela {Teresa) veio pra cá dia primeiro de novembro". Observamos que a sazonalidade das migragoes deste jovem casal nem sempre coincidiu - enquanto Teresa precisava retornar para o amparo da familia na roga o marido vinha para a cidade. Hoje, o filho adolescente deste casal, Januário, exerce a mesma fungao que o pai, auxiliar de servigos gerais, na mesma empresa. Tanto o cansago de atividades rotineiras que disciplinam e constrangem o corpo quanto á emergencia de urna ética prática, nao subsumida aos valores de uso do capital, que (Lima, 2002). Na narrativa de Joaquim foi por ocasiao de sua aposentadoria que se iniciaram suas atividades comunitarias. Ingressou como aprendiz na mesma empresa em que se aposento^ como gerente: "E por méritos do meu trabalho, eu fui sendo promovido na firma. É, fui mecánico, de mecánico fui á motorista, de motorista eu fui a gerente. Com as minhas, essas promogoes, eu fui me refazendo dentro da própria firma. Entáo eu conviví nessa firma durante vinte e quatro anos". No momento de sua aposentadoria confrontou-se com urna Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 100 166 importante questao sobre o sentido da existencia, incomodado que estava com um enigma proposto por um colega que "falou numa linguagem que eu nao entendí". Feliz por se aposentar, pois agora poderia "ficar quietinho", "viver a vida", este colega ao saber de sua aposentadoria Ihe disse: "Que pena! Vocé vai morrer". O alcance desta afirmagao exigiu um complexo trabalho de elaboragao que seu Joaquim faria a posteñoñ, atribuindo um sentido próprio a este dizer: Todo aposentado que se aposentou e se acomodou, realmente antecipava a sua morte. Ele falou pra mim assim e eu senti, porque eu falei, eu vou morrer por qué? Porque eu estava aposentando, realmente eu ia parar de trabalhar, conforme eu parei, e realmente quando eu parei de trabalhar, eu estava morrendo, porque durante dois anos, eu fiquei só assistindo televisao, comendo e bebendo. E ai estava o significado da palavra que ele disse que eu ia morrer, e realmente eu estava morrendo, porque eu estava engordando sem saber, porque eu nao fazia atividade nenhuma. Isso ai é que ele disse pra mim que eu ia morrer. E na cidade tinha um pessoal, uns aposentados que tinha suas cadeiras cativas no centro da cidade. Todo dia eles batia um ponto naquele local, tomar conta da vida dos outros. E todos aqueles que ali ficava morreram. Ou morreram de acordó com o tempo ou anteciparam eu nao sei por qué. E... Mas todos aqueles naquele local morreram (Joaquim). Em 1992, Dona Amelia, engajada em diversas atividades católicas na comunidade do bairro e representando liderangas locáis, dirigiu-se á residencia de seu Joaquim "urna, duas, tres vezes pra me convidar porque eu nao queria", para desenvolver um trabalho com a comunidade ao longo de um semestre. No processo de convencimento argumentou pelos criterios mediante os quais ele havia sido escolhido. Nesta classe operaría, conforme observamos, a denominagao religiosa nao é medida do caráter das pessoas, sao os valores profundamente enraizados que farao a distingáo. Sobretudo, a identidade nao é fenómeno em si, mas surge ñas relagóes: Quando me descobriram e fizeram urna pesquisa, entre aspas, sem eu saber, da minha vida e bateram na minha porta e disseram: - Olha, nos precisamos que o senhor trabalhe - e eu até por ai eu nao sabia, quem era eu, porque eu nunca parei pra pensar, e trabalhava assim, como se diz, de orelha. Ai me relataram as minhas qualidades: vocé é assim; é urna pessoa, é casado; nao é beberrao; nao freqüenta botequim; tem urna vida assim e assado. E eu falei: - Mas quem deu ordem de voces fazerem pesquisa da minha vida? - Nao precisa de dar ordem porque a gente na convivencia vai vendo as pessoas. Ai eu falei com a minha esposa: - Eu nao sabia que eu tinha tanta qualidade assim. E realmente nao sabia mesmo. Ai que eu deparei com a coisa (Joaquim). E, "a coisa", o novo projeto de trabalho, nao assalariado, religioso e comunitario, implicou posteriormente o retorno as tradigóes familiares, afro-descendentes, Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 religiosas, culturáis, políticas e sociais em detrimento de participagoes esporádicas. Deste modo, no instante em que na sociedade capitalista é afastado dos espagos produtivos, mas também o uso de si pelos outros, tem inicio a novidade de um campo de potencialidades. Ao abordarmos estas atividades coletivas vividas por trabalhadores como integradas á vida cotidiana e como significagáo para as suas consciéncias (condigáo de hominizagáo e nao mera superagáo da condigáo biológica), estamos no campo da psicossociologia do lazer, dos modos nao passivos de lazer que, segundo Bosi (1977/2007), compreende: "grande parte dos tragos culturáis de urna sociedade incluindo atividades lúdicas, políticas e religiosas" (p. 111) nao determinadas pelos valores de uso. Silvia Lañe (1984) nos diz da "unicidade do individuo como produto histórico e manifestagáo de urna totalidade social. Sao as necessidades que reúnem individuos em grupo para, cooperando, satisfazé-las" (p. 95). É neste sentido que se explica, para seu Joaquim, a razáo pela qual um sentido para a existencia é buscado e construido por muitas pessoas ñas experiencias religiosas. Dimensoes público e privada Como dito anteriormente, a formagáo religiosa destes congadeiros pode ser considerada como processo em campo de tensao entre as religioes de matriz africana, reservadas aos espagos discretos da vivencia comunitaria e familiar, e a religiáo crista católica, índice da pertenga no espago público. Indicamos também que ambas as dimensoes, público e privado, nao podem ser consideras fronteirigas, pois é necessario que mesmo as experiencias mais íntimas sejam representadas no espago público para que coloquem problemas entre os diferentes grupos sociais. Demonstramos que, históricamente, urna destas representagoes é o caráter persistente e altamente periculoso dos ajuntamentos dos negros para seus brinquedos (Campos, 1998) e as ¡numeras medidas de proibigáo e/ou liberdade vigiada para o controle. Vimos que urna atitude de devogáo é produzida e modificada neste decurso, pois a freqüéncia esporádica e envergonhada ao terreiro de candomblé será orgulhosamente assumida, propagada e dirigida por Eugenia, Maria e Joaquim. Posigáo nao considerada totalizante já que Teodoro e Teresa, mais jovens, consideram que sao práticas mais importantes para os idosos. Dessa forma, nosso horizonte se dirige permanentemente á impossibilidade de resolugáo destas tensoes no campo religioso. O que podemos perseguir é o trabalho de articulagao empreendido por estas pessoas para a articulagao das lógicas das experiencias no tránsito permanente entre o público e o privado localizando os pequeños grupos de pertenga étnica, como os grupos de congadeiros, como modos de objetivagáo, no espago público, de urna identidade específica que se configura nesta tensao. Nesta identidade também estáo implicados valores da classe operaría produzidos na vivencia comunitaria e legitimados no ámbito religioso pelas formas híbridas de agáo crista autorizadas contemporáneamente. O retorno as tradigóes religiosas Se na adolescencia e juventude, conquistas mediadas pelo trabalho ocupam lugar central ñas narrativas, o retorno ás tradigóes religiosas afrodescendentes na vida adulta é intermediado pela participagáo nos movimentos ecuménicos, as CEBs e as Pastorais Negras. Nao obstante, sabemos que na instituigáo católica sofreram preconceitos e discriminagoes como Maria. Com seus filhos, sem um marido e o estigma de "máe solteira", afastou-se por muitos anos e buscou outros espagos coletivos nos quais inserir-se. Na militáncia no Partido dos Trabalhadores - PT, freqüentemente foi acompanhada dos filhos pequeños: "Punha urna bandeira na máo deles e váo bora! Váo pro PT". Maria perde o medo do Congado e retorna ás suas raízes a convite das companheiras engajadas: Vocé recebe urna bagagem! A primeira bagagem que eu recebi no Inter-Eclesial, eu nao conseguía Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 dormir de tanto choque que eu levei. De tanta coisa que eu aprendí eu fiquei assim, elétrica (...) Depois, que veio a idéia dos dois (Eugenia e Joaquim, seus primos), da familia fazer a Associagao (de Congado), e eu já tinha ido lá, no Rio Grande do Sul, (...) eu tava num grupo de quinhentas pessoas. Entao cada um saiu de lá com o compromisso de fazer alguma coisa na sua térra. Eu falei assim, eu vou ter que me aproximar do Congado. Entao o qué que a gente podia fazer? (Maria). Deste modo, os movimentos católicos negros constituem porta de acesso de marginalizados a complexos mecanismos institucionais, próximos ao que Aguiar (2001) descreveu a respeito das Irmandades. Estas pessoas se véem desafiadas a agir na própria comunidade em um diálogo coletivo e inter-religioso onde aprendem e ampliam conhecimentos políticos e culturáis. Sabemos que estes movimentos sao atravessados por posigoes dominantes, porém os congadeiros participantes desta pesquisa dirigem nosso olhar para que aquilo que Ihes é transversal, a vivencia das diferengas no campo religioso e as batalhas que tém travado para a legitimagao dos sentidos que consideram determinantes para aquilo que é afro na contemporaneidade. Aludimos as identidades legitimadoras e as identidades de resistencia, e, finalmente, encontramos a terceira formulagao de Castells (2006), as intermediarias identidades de projeto: "quando os atores sociais, utilizando-se de qualquer tipo de material cultural ao seu alcance, constroem urna nova identidade capaz de redefinir sua posigao na sociedade e, ao fazé-lo, de buscar a transformagao de toda a estrutura social" (p. 24). A organizagao de movimentos comunitarios Entre os principáis ensinamentos e desafios compartilhados na CEBs, aqueles que encontraram maior ressonáncia nestes congadeiros sao a organizagao de movimentos comunitarios articulados ao resgate e invengao de tradigoes afrodescendentes. Os tres primos, Maria, Joaquim e Eugenia, fundam urna Associagao de Congado e um Grupo de raiz, de Inculturagao. O casal Teodoro e Teresa funda urna Associagao Comunitaria denominada Quilombo que viabiliza a constituigao de um Terno de Congado. Fagamos um breve paréntese. Enfatizamos a importancia da familia, em diversos sentidos, para o contexto ritual do Congado. Os grupos específicos abordados por esta pesquisa sao fortemente articulados pelos lagos de parentesco, intra e inter grupos e parecem disputar prestigio no espago social trocando acusagoes veladas ou diretas em seus depoimentos. Acusagoes e conflitos entre grupos rivais também foram descritos por Nascimento e Menandro (2002), a respeito das bandas de congo de Barra do Jucu (ES), e Elias e Scotson (2000) demonstraram que boatos e fofocas sao instrumentos potentes ñas relagoes de poder das pequeñas comunidades. Por esta razao, consideramos justo informar ao leitor sobre os lagos de consangüinidade, embora nao tenhamos elementos suficientes para debater esta questao em sua dimensao processual e histórica. Outros projetos, nao diretamente engendrados nos movimentos católicos negros devem ser destacados. Dona Eugenia foi tomada de modo radical (no sentido de raiz) pela questao da pertenga étnica em seu processo de tornar-se ialaorixá. Um dia... Quando contava quarenta e quatro anos, o pai de santo dirigiu-se até a sua residencia e chamou as tres irmas. Ensinou-lhes a oragao dos búzios com a promessa de que retornaría no dia seguinte e aquela que primeiro aprendesse a oragao ficaria com os búzios. Dona Eugenia estava doente e acamada. Repetiu diversas vezes para si a oragao e no dia seguinte aguardou. O pai de santo perguntou a urna irma, ela nao soube. Perguntou a segunda irma, que também nao soube. Quis saber de Dona Eugenia. Ela fez a oragao e ele Ihe disse que agora os Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 búzios eram seus. Desde entáo, milita em escolas primarias, secundarias e superiores palestrando sobre as religioes de matriz africana. Administra sua casa de santo, a relagáo com os fiéis e anda muito preocupada com as responsabilidades para a escolha de seus sucessores. Missas Afro: busca de pareen as Os congadeiros estabelecidos como liderangas comunitarias buscam parceñas. A figura do padre, que também carece do apoio destes líderes e de sua influencia junto as comunidades, desempenhará fungao decisiva nestas relagoes. Seu apoio ou rechago, ascensáo ou queda, chegada, saída ou deportagáo {sic), modificará o posicionamento destes grupos em suas relagoes com os demais. O padre que celebra a primeira Missa Inculturada é expulso da cidade; a chegada de um padre deflagra o processo sócio-histórico de constituigáo do Quilombo; a saída de um padre ocasiona a perda da sede do Grupo de Inculturagáo e mais, Dona Maria que trabalhava como zeladora da igreja perde o emprego, a renda e um lugar na liturgia. Estes lugares subalternos, em fungao da negritude e condigáo socioeconómica, revelam urna opressáo determinada pela ausencia de recursos próprios que poderiam promover seu empoderamento (Martín-Baró, 1989). Neste sentido, a progressiva formalizagáo tem contribuido, tornando-os mais fortes para buscar seus interesses e demandas. Estes estatutos jurídicos sao submetidos a intensas consideragóes coletivas que tornam patentes o estranhamento com a burocracia, tantas "coisinhas" {sic). Todavía, prosseguem resistindo e contraem vínculos com grupos ligados á Universidade, á cultura e partidos políticos. As Missas Afro sao urna zona de batalha fundamental no campo religioso de nossa discussáo. Falamos sobre a transferencia do padre que celebrou a primeira missa inculturada em Sao Joáo Del-Rei, mas outras já haviam sido celebradas ñas rúas. Espanto, escándalo, violencia, resistencia, afirmagáo e reconhecimento sao indissociáveis neste contexto sincrético entre o ideario católico-romano, cujo missal guia o desenho da celebragáo na ausencia de um missal afro (que parece estar sendo constituido neste processo), marcado por urna relagáo nao dicotomizada homem-natureza, própria das religioes de matriz africana. A mobilizagáo empreendida para a organizagáo da missa inculturada pode ser compreendida, ao menos de modo parcial, através de algumas premissas assumidas coletivamente: a) cada povo tem o direito e pode celebrar a sua maneira; b) trata-se do resgate de um direito legítimo a urna celebragáo proibida e impedida; c) concomitantemente, trata-se da invengáo de urna celebragáo que nunca existiu em sua forma atual; d) esta forma de celebragáo corresponde a elementos constitutivos da cultura e, portanto, da personalidade do negro (enquanto fator indissociável da transmissáo oral e do aprendizado imitativo), e) a alegría e a festividade sao qualidades históricas e sociais dos negros; f) parte dos preconceitos sustenta-se simultáneamente na ignorancia e na ausencia de um interesse legítimo de conhecimento - razáo cínica; g) fatores que evidenciam o desejo de manutengáo do status quo e a resistencia á mudanga gerando sobre-trabalho aos agentes para que a missa se concretize; h) este sobre-trabalho inclui possibilidades de revisáo constante do ritual cuja estrutura prossegue em devir. Refletindo sobre urna das provocagoes ensejadas por Pierre Sanchis (2001) em seu trabalho sobre a vivencia da missa afro no Brasil, a saber, se os elementos afro das missas inculturadas sao apenas alusivos e emblemáticos ou se ritos afro sao efetivamente celebrados na liturgia, é possível observar, no ritual da missa inculturada realizada na Paróquia de Matosinhos, que os componentes performáticos das coreografías que se articulam aos cantos entoados sao dangas próprias de terreiro (4) - elementos decididamente rituais do universo afrobrasileiro e nao meramente alusivos. Mas há diferengas na interpretagáo dos grupos sobre sua promogáo. Um considera que a orientagáo do missal romano facilita a tarefa, outro julga necessário intenso trabalho criativo de articulagáo do Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 missal romano as práticas e aos costumes afro; aquilo que para os brancos contritos é sacrilegio, para os negros festivos e alegres é modo de culto - a identidade é diferenga e oposigáo. Sanchis (2001) já havia nos advertido sobre os diferentes oiría res: Quanto as religióes "afro" que a evocagáo da "negritude" conota, a maioria entende tornar sua referencia explícita, mesmo no culto católico; mas sem confusáo. Uns poucos váo mais longe, desejando, sem ter disso muito clareza, sua presenga efetivamente ritual em meio á celebragáo litúrgica. Para outros, enfim, culto e cultura nao se podem confundir, e a negritude que pode e deve entrar na Igreja de rosto descoberto é a da cultura, nunca a da religiáo (p. 178-179). Na cidade de Sao Joáo Del-Rei, a Missa Inculturada integra as celebragóes da bicentenária Festa do Divino Espirito Santo, realizada no mes de maio na citada paróquia. A culmináncia do festejo no domingo de Pentecostés é dedicada ao Reisado. Os congadeiros evoluem acompanhados das folias, da danga das fitas e das pastorinhas, folclore evangelizador característico do catolicismo popular ibérico, em que participam idosos, adultos e changas oriundos de dezenas de grupos de diversas cidades da regiáo. A participagao da comunidade de origem dos grupos é significativa. Sao os "sapos" (sic), como nomeou seu Jerónimo, ou o séquito, como disseram Nascimento e Menandro (2002) que demonstraram a importancia social e emocional do amparo dado por familiares e pessoas que se agregam em momentos de festejo evidenciando o prestigio dos grupos no contexto social mais ampio. Dentre as comemoragoes locáis e encontros regionais dos congadeiros, em diversas cidades do país iniciativas de jungáo de varios festejos em única festividade se articulam á discussáo da revitalizagáo do patrimonio cultural ¡material construido a partir da memoria e das experiencias coletivas fundamentáis na formagáo das identidades. Neste contexto ritual hierarquizado, véem-se confrontadas ao desafio de construgáo de um programa comum. Estas pessoas nao agem apenas em seu nome, constituem-se representantes de idéias e projetos de grupos distintos, e vivenciam as alegrías e os dissabores das experiencias de representagáo que tem caracterizado os atuais modelos de democracia participava no ámbito das políticas públicas (orgamentos participativos, conselhos gestores, etc.). No catolicismo popular, esta "novidade" pode ser articulada sob o que Paiva (2003) identificou como o atual imperativo ético para o católico, a solidahedade. Todos os congadeiros entrevistados atuam na festa do divino. Jerónimo é o Capitáo de Mastro, cuida de todos os Congados participantes. Com a ajuda dos meirinhos é algado á "incrível" posigao de grande líder: "Por incrível que parega, eu viro chefe! Metido, eu penteio o cábelo, fago a barba! É...". Joaquim é vice-presidente da Codivino, posigao a partir da qual articula a participagao da Associagáo de Congado e do Grupo de Inculturagáo e as intervengóes de Maria e Eugenia. O Congado atualmente: mudangas quantitativas e qualitativas associadas as participagóes de negros e brancos no Congado Como dissemos a respeito das missas inculturadas, o Reisado também coloca problemas. Já afirmamos a centralidade dos reis ñas festas do Congado e, agora, podemos indicar mais urna modificagáo do seu contexto ritual. Históricamente, o Rei e a Rainha eram mantenedores das festas, ao montante de sua contribuigáo, equivalía o entusiasmo das batidas dos tambores. Segundo Joaquim, esta prática foi abandonada pelos sanjoanenses porque constrangimentos de ordem económica conduziram diversas pessoas a recusarem os cargos reais. Por isto, contemporáneamente outros valores qualificam as pessoas e a responsabilidade de Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 manutengao financeira do festejo tem sido redistribuida entre os pares. Acompanhemos as reflexóes de Teresa, responsável pela organizagao do Reisado na festa do divino. No plano ideal, sua tarefa é registrar todos os temos que devem indicar nome, procedencia, nomes de reis e rainhas, sair e retornar á igreja em cortejo e posicionar-se para a chamada. Entretanto, efetivamente está: "correndo atrás do Reisado (...). Porque o trajeto, a trajetória da gente nao é fácil nao. Vocé ta com um Rei e urna Rainha aqui oh, espera ai que eu vou buscar um e volto já, quando vocé volta aquele já ta dando urna volta mais longe ainda. É urna coisa cansativa, mas é urna coisa boa. (...) Eu gosto". Na Festa do Divino/2007 divergencias de ordem "operacional", o tempo destinado a comportar todas as atividades, ocasionaram a supressao da chamada dos Reis e Rainhas na igreja no retorno do cortejo. Organizados, os congadeiros nao aceitaram esta ingerencia, indispuseram-se com a Comissao e exigiram o retorno da prática ritual, como dito por Eugenia, se estes nao sao coroados "ficamos sem pai nem mae". Observemos o deslocamento das posigóes de Teresa, mediadora das relagóes dos temos x comissao em seu duplo direcionamento: Isso daí nao tem nem como explicar, porque isso é igual fumo de rolo. (...) E urna coisa bem interessante e bem complicado, a participagao. (...) Mais talvez esse ano acho que é meu último lá na Comissao porque... (...) Porque tem gente que apóia a gente, e tem uns que além de nao apoiar, nao fazer nada, é só por defeito. (...) Eu vou por na mao deles lá. Se eles procurar outro, se tiver outro, por mim eles pode por porque se eu nao tiver o Reisado pra fazer sozinha eu tenho o congado pra participar. (...) A gente faz um plano, mais nao é só eu, que trabalho aqui sozinha. Na parte do Reisado lá. Nao é só eu. (...) Aquele dia que vocé tava na reuniao (5) vocé ouviu o Paulo veio com aquela, o Reinado tava reclamando que nao tinha feito a chamada. Mas como? (...) nao tem como fazer chamada, porque a parte do Reisado nao tem. A maioria é tudo gente idosa. Nao tem gente nova aqui nao tem, é muito difícil. Entao vocé olha no relógio ali, meio dia e meio. Nao tem como ta urna hora subindo lá pra Gruta, é difícil. Estamos discutindo mudangas quantitativas e qualitativas associadas as participagoes de negros e brancos no Congado. Conforme indicado por Souza (2002), mesmo nos dias atuais, apesar da ampliagao da participagao de pessoas brancas, pobres, os cargos reais sao reservados aos negros. Observamos no Reisado da Festa do Divino que também é eleita pequeña minoria de pessoas brancas, inclusive changas. Agora, discutiremos mudangas qualitativas na participagao dos negros na festa do divino, a respeito da qual devemos manter em perspectiva a afirmagao de Jerónimo: "Falou ai em negó africano ai, mas a festa é mais por brancos". Dois depoentes foram eleitos imperadores do divino. No passado, o imperador era mantenedor do festejo e sua principal qualidade o poder económico, mesmo que a pessoa a assumir a personagem fosse considerada irresponsável para com a familia e cruel com os escravos (Campos, 1998). Distingao máxima da festa, o imperador ocupa posigao de autoridade e honra que Ihe confere um lugar no ritual junto ao bispo. Teodoro, primeiro imperador negro eleito em toda a historia do bicentenário festejo nao imaginara tornar-se um: "na hora eu fiquei meio assustado: - Uai, um negro ser Imperador? (...) tenho muita historia pra contar pro povo, que eu fui o primeiro negro a ser Imperador (e por Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 isso) fui muito discriminado demais. Mas gragas a Deus o Espirito Santo deu forga, entendeu? Pra eu vencer. Nao foi fácil nao, pra ser imperador? Ih, fui muito discriminado demais". Situagao extremamente conflituosa, o convite para ocupar este posto pos explícitamente em questao a identidade a partir da raga e as diferengas de classe social. Sua esposa, filhos e amigos trabalharam ativamente neste processo de apropriagao dos matizes de um determinado habitus que nao compartilhavam: os costumes da recepgao dos caixeiros que buscavam o imperador para o cortejo; para receber, sem dinheiro, os convidados com comidas e bebidas; para acomodar na casa pequeña o grande número de pessoas que compareceu; para conduzir o imperador nao dentro de um carro, mas em cortejo na rúa com o povo; para providenciar vestimentas adequadas... Teodoro passou a coroa para seu Jerónimo, primeiro imperador negro coroado em "ritual africano" (sic), com luxo e beleza. Nesta jungao, também retornam as raízes, pois como demonstra Souza (2002) o luxo, a riqueza, as insignias européias de poder foram utilizadas em cerimónias especiáis, valorizadas por reis e rainhas africanos. Diferente dos tradicionais imperadores brancos que seguiam como "carneiro para o matadouro", o novo ritual foi desenhado por Eugenia que em seguida, na "descoroagao" (sic) de Joaquim, modelou outro ritual por encomenda do sucessor branco: Invés duma coroagao do imperador, europeu, mas também com urna certa parte da cerimónia afro. Que ele foi com urna roupa afro! Afro! Afro! Isso foi que esquentou mais o pessoal sabe? Porque nos entramos com o Maracatu. As meninas do grupo, o Maracatu, entao as meninas levando tudo. Tinha que ter ali um pajem, pra ajudar, pra ele ser coroado, nao é? (Eugenia). Eu pensei, é o seguinte, ele (Joaquim) era fácil, a descoroagao pra ele, porque ele tava dentro do nosso grupo. (...) ele como é branco, entao a parte dos instrumentos nao poderia ser os negros nossos. (...) Eu arrumando urna corte européia pra entrar (...) entao desfez os nossos príncipes que era africano (...). Entao os nossos ficou com a bandeira de Portugal e eles com a bandeira do Brasil. (...) uns rapazes da banda do Quartel foram e comegaram a tocar Aquarela do Brasil. (...) Foi muito bonito (Eugenia). Para estes congadeiros, que já tocaram com seus temos em frente a portas fechadas das igrejas sanjoanenses, inclusive Nossa Senhora do Rosario dos Pretos, a entrada dos Congados na igreja ora é descrita como um momento fugaz, findo o rito encerra-se a discussao, ora entende-se que a Festa do Divino é hoje urna Festa de Congado. Ainda, nao estao certos se há aceitagao do Congado ou se sua entrada é coisa com a qual as pessoas tem se acostumado. Neste ínterim, expóe um exercício de subversao desde o interior descrevendo sua atividade como "revolugao"; "infiltragao"; "penetragao" dos negros na Igreja: Nao tem nada mais lógico, bonito e certo do que fosse o Congado na festa do Divino. Por que traria os negó pra festa do Divino, porque é urna festa de branco, é... Falou ai em negó africano ai, mas a festa é mais por brancos... Entao é o seguinte, pra infiltrar os negó na Festa do Divino, abrilhantar a Festa, embelezar a Festa e ter como movimentar a festa o dia todo com coisas diferentes. Porque passa um temo é urna coisa, passa outro é outra... Sempre tem coisas Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorandum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 diferentes. É um meio de abrilhantar a festa com devogao ao Divino Espirito Santo. Entao é um meio de fazer a festa. Fazer a Festa (Jerónimo). Quando abriu as portas pra gente entrar dentro da igreja, os congadeiros entrar dentro da igreja, o pessoal: - Ah, mas vai bater tambor dentro da igreja? E aquela coisa toda, é feitigaria, é macumba, esses negocio, e a gente teve que equilibrar, né? Com tudo isto, apesar de o Congado ter as suas magias, nao é? E como toda a religiao tem, tem um pouco de sua magia, ninguém gosta de contar, mas tem um pouco, lá no fundo tem. E entao a gente comegou, por abrirem as portas para os Congado, os congadeiros comegaram a penetrar dentro da igreja, com a sua devogao, com seu santo, né? Cantando a Nossa Senhora do Rosario e assim foi equilibrando, mas nao que todas as igrejas faga isso. É o mínimo (Joaquim). Respeito as relagóes devocionais Como seus pais, adultos e idosos se comportam em relagao á nova geragao familiar convidando e insistindo para que as criangas e os jovens participem. Nao estao plenamente decididos se devem impor ou basta aguardar até que a necessidade, conjungao da ordem da realidade e do espiritual, se aprésente. As vezes, impoem. Filhos e netos tem sido educados no contexto sincrético do catolicismo e das tradigoes afrodescendentes, mesmo que sob novas dinámicas, repetem-se o fascínio e a desconfianga, o medo e as estrategias criativas e sorrateiras que veiculam práticas e significados. Também se transmite, geragao a geragao, a ocupagao com a continuidade, comportamento assimilado na familia cujo reconhecimento se dá apenas a posteñoñ: a preservagao da memoria coletiva; a participagao em projetos comunitarios, sociais e políticos que tem desenvolvido; o fortalecí mentó de seu lugar e sua identidade junto a outros grupos. Hoje, como seus pais e tios, os jovens temem a acusagao de macumbaria. Até que a necessidade, conjungao das ordens espiritual e material, se imponha: "Na verdade eles chegam, eles chegam né comadre? Eles chegam!". Os diplomas Nao foi sem intengao que deixamos para o final a questao dos diplomas, muito cara para nos que abordamos trajetórias: Quanto as trajetórias intergeracionais, elas podem ser classificadas em ascendentes diretas - do polo dominado socialmente, ao campo dominante da produgao cultural - ou ascendentes cruzadas, que vao do polo pequeño burgués ao polo dominante da produgao. Se nao sao ascendentes, as trajetórias podem ser transversais dentro do campo do poder, levando os agentes, de posigóes de mando temporal ou de posigóes medianas no campo do poder, a posigóes de mando no campo da produgao cultural, ainda que ai nao sejam dominantes da perspectiva do capital simbólico legítimo no campo. Por fim, há deslocamentos nulos, nos quais a partida e a chegada se dao Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorandum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 1()f1VD dentro do mesmo espago social (Montagner, 2007, p. 256). Como seus pais, os congadeiros que participaram desta pesquisa tém pouca escolaridade formal. Joaquim em sua casa está ladeado de certificados recebidos em homenagem a excelencia de suas atividades como líder comunitario. Mas constata que nao há placas públicas que reconhegam, por exemplo, suas contribuigoes á construgao da quadra do bairro, degradada e refeita. Maria nao tem os diplomas, mas tem a prática e as teorías do conhecimento que formulou sobre suas experiencias coletivas. Urna de suas filhas é graduada em psicología em urna universidade federal. Mas, mesmo assim, está muito preocupada, por que as meninas que viu crescer no Grupo de Inculturagao tiveram filhos, algumas já sao avós, e nao retornaram com seus filhos ao grupo? Por que alguns jovens estao se dragando? Por que algumas criangas já tém a cabega feita por preconceitos? Por que muitos negros ainda tém de trabalhar em atividades bragais? Como fortalecer os jovens para enfrentar a universidade? A luta contra a indignidade da mao-deobra escrava e a conquista da liberdade efetiva é, em última instancia, o que Dona Maria almeja para as futuras geragoes. É bom que a universidade esteja na comunidade, mas é urgente que a comunidade acesse a titulagao académica: Entao hoje a gente tem o apoio da universidade. Um apoio que eu falo assim, que nao é apoio financeiro nem de doagao de nada. Mas de acompanhamento que isso tem um valor muito grande. (...) tese, tem um livro da nossa historia. Agora vai sair o cd com o livro, com, o cd com músicas, algumas letrinhas que eu fiz, do seu Ilário também, o nosso tocador de violao, que nos acompanha a vida inteira e vai sair um livro de historia novamente, de algumas coisas do bairro, que aconteceram, com pessoas de mais idade aqui do bairro. E, lá tem muita coisa, lá tem um arquivo, de fitas de festa, reuniao, de tudo o que a gente já fez. (...) além da gente ter acervo guardado, todo lugar que a gente vai, a gente avisa, tem sempre estagiário ali, gravando, filmando, escrevendo, sabe? Porque isso prá gente, é um trogo que nao vai morrer. A gente vai mas alguma coisa vai ficar. (...) A gente ta com, acho que ta meio a meio, adultos e adolescentes e jovens. Muitos estao trabalhando, muitos estudando, dependendo do horario de reuniao, de alguma participagao, nao pode estar indo. Muitos saíram por motivo de trabalho ou entao por afinidade mesmo, e por vergonha de estar apresentando (...). Porque nos nao somos graduados, em curso nenhum. E hoje a gente incentiva os nossos meninos a estudar, pra ser alguém na vida. Pra nao ser lá amanha um menino que vai rachar lenha, menino vai cortar cana. Nao que esse seje um trabalho que desvalorize o homem, e a mulher, mas que possam que nao precisar ser mao-de-obra escrava. Que ele possa ser mais liberto e conquistar mais espago né? Essa semana a gente até falou disso né? A conquista do vóo! Passar por Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 cima dos obstáculos. A gente tava falando sobre isso. E entao eu acho que é essa necessidade. Consideracoes Fináis Os congadeiros lutam contra o desenraizamento. O respeito as atitudes devocionais está fortemente ligado á relagáo com os antepassados, aqueles espoliados das térras africanas e que persistem a olhar pelas necessidades concretas e espirituais de seus descendentes, bem como aqueles que Ihes contaram estas historias e neste ato Ihes concederam um lugar no mundo. Em boa medida, a devogao a esses antepassados se transforma em núcleo da componente religiosa propriamente africana inerente a essas praticas. Procuramos demonstrar que a existencia das zonas de misterio reafirma as bricolagens que configuram as culturas negras diaspóricas e impossibilitam leituras totalizantes de seus movimentos. Que a identidade étnica é um campo de disputas no espago público no qual nem matizes, nem elementos fragmentadores, as vivencias de racismo e discriminagao sao confrontadas ao protagonismo destas pessoas que praticam a democracia. Visamos descortinar possibilidades de convergencia e divergencia dos significados individuáis e interesses coletivos atribuidos as identificagoes e á participagao nestes grupos - condigao de objetivagao da pertenga étnica, onde se desenvolve a consciéncia de pertenga que depende da identificagao e do comprometimento com objetivos, normas e valores como algo próprio e assim constroem um passado em comum sobre o qual projetam um futuro. Acompanhando Dona Maria, também desejamos que as políticas de restituigao de cidadania, como as cotas para negros ñas universidades, possam favorecer o deslocamento deste grupo para outros espagos sociais e para posigoes de dominancia no campo da produgao cultural, designando novos movimentos para estas trajetórias. Referencias Aguiar, M. M. (2001) Festas e rituais de inversao hierárquica. Em I. Jancsó & I. Kanto (Orgs.). Festa: cultura e sociabilidade na América portuguesa (Vol. 1, pp. 361-393). Sao Paulo: Hucitec. Bosi, E. (2004). 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Notas (1) Os dados do presente artigo se referem á Dissertagao de Mestrado "Identidade, Participagao e Memoria ñas trajetórias coletivas de congadeiros sanjoanenses" de Shirley de Lima Ferreira, realizada sob orientagao de Miguel Mahfoud, e co- Memorandum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Ferreira, S. L, Mahfoud, M. & Silva, M. V. (2011). Trajetórias coletivas de congadeiros. Memorándum, 20, 177-200. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 orientada por Marcos Vieira Silva, apresentada ao Programa de Pós-Graduagao em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais em 2008. (2) A realizagao de missas inculturadas e a passagem dos grupos de congado em templos católicos tém sido descritas em diversos estados brasileiros. Podemos mencionar Minas Gerais (Belo Horizonte, Uberlándia, Sao Joao Del-Rei) e Goiás (Pirenópolis). (3) Dom Gilio Felicio, primeiro negro a chegar ao episcopado na arquidiocese de Salvador, na Bahia, em 1998, onde criou a Pastoral Afro. Desde a década de 80 acompanha e participa do Movimento Negro Católico junto aos Agentes Pastorais Negros. Em 1989 comegou a participar do Instituto MARIAMA, urna articulagao nacional de padres, bispos e diáconos negros, do qual foi presidente por dois mandatos. Até 2007 foi o bispo coordenador da Pastoral Afro-Brasileira, na CNBB. (4) Agradego á observagao do prof. Dr. Adriano Roberto Afonso do Nascimento (UFMG). (5) A pesquisadora também observou reunioes da Comissao Organizadora do Divino. Consideragoes sobre este bicentenário festejo integram a dissertagao de mestrado que deu ensejo a este trabalho e serao discutidas em relatos futuros. Nota sobre os autores Shirley de Lima Ferreira é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Sao Joao del-Rei e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Atualmente cursa o Doutorado em Psicossociologia de Comunidades e Ecología Social no Programa de Pos Graduagao Eicos do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Contato: [email protected] Miguel Mahfoud é doutor em Psicologia Social, professor no Programa de PósGraduagao em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, Brasil, na linha de pesquisa "Cultura e Subjetividade". Contato: [email protected] Marcos Vieira Silva é doutor em Psicologia Social, professor no Programa de PósGraduagao em Psicologia da Universidade Federal de Sao Joao del-Rei, Brasil, na linha de pesquisa "Processos Psicossociais". Contato: [email protected] Data de recebimento: 29/09/2010 Data de aceite: 08/05/2011 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/ferreiramahfoudsilva01 Brito, R. M. M. & Moreira, V. (2011). "Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: um estado ou um processo?. Memorándum, 20, 201-210. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 201 "Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: um estado ou um processo? 'Being what you are" in Carl Rogers's psychotherapy: a state or a process? Rafaella Medeiros de Mattos Brito Universidade Federal do Ceará - UFC Brasil Virginia Moreira Universidade de Fortaleza - UNIFOR Brasil Resumo Neste artigo discutimos a idéia que atravessa a expressao "ser o que se é", utilizada por Carl Rogers em seus textos para falar do processo que a pessoa vive durante a psicoterapia. Iniciamos com um diálogo com o autor desta frase, o filósofo existencialista Soren Kierkegaard, e em seguida realizamos urna breve descrigao sobre o estado de incongruencia que é, para Rogers, a origem do sofrimento psíquico. Descrevemos o processo de psicoterapia que facilita a mudanga do cliente para um estado de maior congruencia, mostrando que "ser o que se é" é um processo continuo e nao um estado fixo. Concluímos com a exposigao de algumas características desse processo, que inclui urna maior abertura á experiencia, a vivencia existencial no aqui e agora e a confianga no organismo como referencia para o comportamento. Palavras-chave: ser o que se é; psicoterapia; processo; Carl Rogers. Abstract This article discusses trie idea that traverses trie expression "being what you are" used by Carl Rogers in his writings to address trie process that a person lives during psychotherapy. It begins with a dialogue with the author of this sentence, the existentialist philosopher Soren Kierkegaard, and then it has a brief description of the state of incongruity that is, to Rogers, the origin of psychological distress. It follows to describe the process of psychotherapy that facilitates the clientes change to a higher state of congruence, showing that "being what you are" is an ongoing process and not a fixed state. We conclude with an exposition of some features of this process, including greater openness to experience the here and now and the trust in the organism as a reference for behavior. Keywords; being what you are; psychotherapy, process, Carl Rogers. Introdugáo O norte-americano Carl Rogers é o criador da Abordagem Centrada na Pessoa, teoria desenvolvida por este entre os anos 40 e 80 do século XX. Durante mais de 40 anos, Rogers presenciou e escreveu sobre o crescimento humano. A ideia central de sua teoria se apóia no conceito de Tendencia Atualizante, que segundo Rogers (1965/1977) é urna tendencia ¡nata de todo organismo ao crescimento, maturidade e atualizagao de suas potencialidades. Ele acreditava que, se fossem dadas as condigoes necessárias para o individuo se desenvolver, este caminharia no sentido da maturidade e socializagao. Segundo Rogers (1961/2009), o papel do psicoterapeuta ou facilitador, dentro desta abordagem, seria o de fornecer as condigoes necessárias e suficientes para o crescimento humano (aceitagao positiva incondicional, compreensao empática e autenticidade) e, confiando na capacidade Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 Brito, R. M. M. & Moreira, V. (2011). "Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: um estado ou um processo?. Memorándum, 20, 201-210. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 202 de todo ser humano para descobrir os melhores caminhos para si, colocar-se na posigao de um companheiro nesta busca e nao de um guia que direciona o cliente. Rogers acreditava que o cliente é a maior autoridade sobre si mesmo e poderia desenvolver suas potencialidades se Ihe fossem dadas as condigoes facilitadoras do crescimento. Quanto mais o cliente percebe o terapeuta como urna pessoa verdadeira ou auténtica, capaz de empatia, tendo para com ele urna consideragao incondicional, mais ele se afastará de um modo de funcionamento estático, fixo, insensível e impessoal, e se encaminhará no sentido de um funcionamento marcado por urna experiencia fluida, em mudanga e plenamente receptiva dos sentimentos pessoais diferenciados. A conseqüéncia desse movimento é urna alteragao na personalidade e no comportamento no sentido da saúde e da maturidade psíquicas e de relagoes mais realistas para com o eu, os outros e o mundo circundante (Rogers, 1961/2009, p.77). A respeito do processo de tornar-se pessoa, vivido durante a psicoterapia, Carl Rogers (1961/2009) fala de sua admiragao pela maneira como o filósofo Soren Kierkegaard ilustrou o dilema do individuo há mais de um século: Ele destaca que o desespero mais comum é estar desesperado por nao escolher, ou nao estar disposto a ser ele mesmo; porém, a forma mais profunda de desespero é escolher "ser outra pessoa que nao ele mesmo". Por outro lado "desejar ser aquele eu que realmente se é, constituí na verdade o oposto do desespero" e esta escolha constituí a ^ mais profunda responsabilidade do homem. Á medida que leio alguns de seus escritos, quase que sinto que ele esteve escutando algumas das afirmagoes feitas por nossos clientes ao buscarem e explorarem a realidade do eu - freqüentemente urna busca dolorosa e inquietante (p. 124). Rogers identifica-se com as idéias de Kierkegaard, pois para ele o filósofo parece estar falando do processo que seus clientes vivem em terapia, ao buscarem urna existencia mais auténtica. Ser o que realmente se é seria o oposto do desespero e a maior responsabilidade do homem. Apesar de dolorosa e inquietante, a exploragao da realidade do eu é necessária, pois nao ser quem se é é o que gera desespero. Rogers, ao citar Kierkegaard, parece reconhecer a necessidade de ser quem se é e o sofrimento vivido por quem nao vive desta maneira. Rogers (1961/2009), em outro capítulo do mesmo livro, volta a citar Kierkegaard (1941, citado por Rogers 1961/2009), expondo a descrigao que o filósofo faz do individuo em sua existencial real: Um individuo que existe está num processo constante de tornar-se (...) e traduz tudo o que pensa em termos de processo. Passa-se (com ele) o mesmo que com o escritor e o seu estilo; só quem nunca deu nada por acabado, mas "agita as aguas da linguagem", recomegando sempre, tem um estilo. E é por isso que a mais comum das expressoes assume nele a frescura de um novo nascimento (p. 79). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 Brito, R. M. M. & Moreira, V. (2011). "Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: um estado ou um processo?. Memorándum, 20, 201-210. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 203 Julgo que esta é urna excelente descrigao da diregao em que o cliente se move, para ser um processo de possibilidades nascentes, mais do que para ser ou para tornar-se qualquer objetivo cristalizado (p. 195). Rogers (1961/2009) utiliza-se de Kierkegaard para falar de urna existencia nunca dada por acabada, mas sempre em mudanga. Reconhece a necessidade de se estar aberto as possibilidades do devir, sendo sempre um processo e nao um objetivo cristalizado. O filósofo utiliza as expressoes "nunca deu nada por acabado", "recomegando sempre" e "frescura de um novo nascimento", que Rogers correlaciona com o processo de possibilidades nascentes que seus clientes vivem em terapia. O que parece ter chamado a atengao de Rogers em Kierkegaard é a compreensao deste filósofo de que o individuo é um ser em constante movimento, e que esta característica deve ser respeitada, sem que a existencia seja fechada em urna estrutura cristalizada e dada por acabada. Rogers (1961/2009), reconhecendo a importancia de o individuo viver segundo um processo fluido, defende seu ponto de vista sobre o que seria o objetivo de nossas vidas. De que estamos á procura? Rogers aposta que o que o ser humano procura, quando tem a liberdade de escolher, é justamente "ser o que realmente se é". A expressao "ser o que se é" é muitas vezes mal interpretada por dar a entender que se trata de urna busca por algo já pronto e fixo que o cliente descobriria e se apropriaria para sempre. Esta interpretagao pode ser gerada pelo verbo "ser" que conjugado no presente denota a idéia de estado, de algo parausado. Outro questionamento muito freqüente poderia ser formulado da seguinte maneira: "e se eu nao for o que eu sou, o que eu seria?". A expressao parece, entao, obvia no sentido de que nao podemos ser nada além de nos mesmos. Com base nesta questao este artigo tem como objetivo explorar teóricamente a idéia que permeia esta expressao, tao utilizada por Rogers, mas que dá lugar a controversias e mal entendidos. Incongruencia: ser o que nao se é Para Rogers "ser o que se é" é alcangado quando o individuo tem a liberdade de escolher. Muitas vezes esta liberdade nao é vivida, pois o individuo se encontra preso á obrigagao de desempenhar determinado papel de determinada maneira. Esta imposigao deriva da necessidade do próprio individuo de ser aceito pelas pessoas que tem importancia em sua vida. Segundo Rogers e Kinget (1965/1977): Em conseqüéncia disto, a consideragao positiva de pessoas pelas quais o individuo experimenta urna consideragao particularmente positiva (pessoascritério) pode se tornar urna forga diretriz e reguladora mais forte que o processo de avaliagao "organísmico". Isto é, o individuo pode chegar a preferir diregoes que emanam destas pessoas, as diregoes que emanam de experiencias suscetíveis de satisfazer sua tendencia á atualizagao (p. 198). A necessidade de ser amado e aceito contribuí para a construgao de urna nogao de eu distante da experiencia organísmica do sujeito. A nogao do eu (Rogers & Kinget, 1965/1977) forma-se em conseqüéncia da interagao do organismo com o meio, é urna organizagao da consciéncia de existir, a partir das relagoes do eu com o outro e que é permeada por um conjunto de valores que o individuo atribuí as percepgoes de si. É um padrao conceitual organizado, de percepgoes de características do eu, com valores ligados a este conceito. Em seus textos, Rogers dá a mesma definigao da nogao de eu para self ou autoconceito. O self, para Rogers, está, portanto, relacionado com apreciagao externa. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 Brito, R. M. M. & Moreira, V. (2011). "Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: um estado ou um processo?. Memorándum, 20, 201-210. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 204 O individuo percebe sua experiencia de acordó com as condigoes as quais ele se submeteu para ser aceito pelas pessoas significativas em sua vida ("significant social other" traduzido para o portugués como "pessoas-critério"). A crianga aprende, por exemplo, que um "bom menino" nao chora e gosta de seu irmaozinho, mesmo que sua experiencia seja de profunda tristeza e raiva do bebé que tomou seu espago. Quando certas "pessoas criterio" se mostram seletivas na consideragao que manifestam a respeito de diversos elementos de seu comportamento, o individuo se dá conta de que, sob certos aspectos é apreciado e que, sob outros, nao o é. Imperceptivelmente acaba por adotar a mesma atitude seletiva ou condicional para consigo mesmo. Conseqüentemente, avalia sua experiencia em fungao dos criterios de outras pessoas em vez de avahar baseando-se na satisfagao (ou na falta de satisfagao) vivida, realmente experimentada (Rogers & Kinget, 1965/1977, p. 177). Para Rogers e Kinget (1965/1977), experiencia é tudo "que se passa no organismo em qualquer momento e que está potencialmente disponível á consciéncia." (p. 161) Experimentar seria, entao, entrar em contato com os acontecimentos do organismo, que seria o foco de toda experiencia. A definigao de experiencia de Rogers (1965/1977) é psicológica e nao fisiológica. Tem um caráter global, pois o organismo, de que fala Rogers, está para além do corpo fisiológico. Desta forma, o termo "experiencia", para Rogers, ultrapassa o que poderia ser capturado empíricamente, afastando-se assim de abordagens positivistas. Em abordagens baseadas em pressupostos positivistas, a conceituagao se limita ao experimentalismo, considerando experiencia somente o que é passível de comprovagao empírica, eliminando valores ou relacionamentos pessoais, ou seja, considerando-a apenas enquanto representagao ou reagao (Gaspar & Mahfoud, 2006, p. 2). As experiencias que nao estao de acordó com a nogao de eu surgem como ameagadoras e podem ser simbolizadas de maneira deformada na consciéncia, dando origem ao estado de incongruencia. A incongruencia é definida como um estado (geralmente desassossegado) em que existe urna discrepancia entre o eu, tal como é percebido, e a experiencia presente no organismo total (tudo que é potencialmente disponível á consciéncia, que está ocorrendo no organismo em um dado momento) (Wood, 1983, p. 48). Caso este estado de incongruencia seja percebido, ocorre um estado de tensao e ansiedade. E é nesse momento que o cliente geralmente chega á terapia. Ele nao consegue se reconhecer, comumente tem atitudes e reagoes que nao entende por que as teve, sente-se perdido e dividido. Todos esses sentimentos sao decorrentes do estado de incongruencia. Neste estado: há urna discrepancia fundamental entre o significado experienciado da situagao, da forma como é registrado por seu organismo e a representagao simbólica daquela experiencia na consciéncia, de urna maneira que nao entre em Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 Brito, R. M. M. & Moreira, V. (2011). "Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: um estado ou um processo?. Memorándum, 20, 201-210. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 205 confuto com a imagem que ele tem de si mesmo (Rogers, 1957/2008, p. 147). O individuo forma uma imagem de si que esteja de acordó com o que esperam dele. Todas as experiencias que nao se adéquam a esse modelo de eu, sao distorcidas, e o sujeito acaba por ter uma experiencia e um comportamento que caminham em diregoes opostas, causando-lhe sofrimento e inseguranga. Psicoterapia: tornando-se o que se é Quando o individuo, durante o processo de terapia, experimenta um ambiente de aceitagao incondicional, seguranga e empatia, ele tende a se afastar do que ele nao é. Segundo Rogers (1961/2009), durante a terapia, o individuo se afasta de suas fachadas e de tudo o que ele deveria ser. Ele pode até nao saber para onde está indo ou o que realmente é, mas sabe que nao é aquilo que seus pais e outras pessoas-critério desejam e esperam que ele seja. Quando pode vivenciar suas experiencias sem ter que ser nada, o individuo comega a descobrir novas formas de ser, rejeita formas artificiáis e definidas pelo exterior. Rogers (1961/2009) nos dá um exemplo de um paciente perto do fim do tratamento, que diz: Senti afinal que tinha simplesmente de comegar a fazer o que quería e nao o que eu pensava que devia fazer, sem me preocupar com a opiniao dos outros. Foi uma completa reviravolta de toda minha vida. Sempre sentirá que tinha de fazer as coisas porque era o que esperavam de mim ou, o que era mais importante, para que os outros gostassem de mim. Tudo isso acabou! Pensó a partir de agora que serei precisamente o que sou - rico ou pobre, bom ou mau, racional ou irracional, lógico ou ilógico, famoso ou desconhecido. Portanto, obrigado por ter me ajudado a redescubrir o "Sé verdadeiro para ti mesmo", de Shakespeare (p.193). Durante o processo de terapia, o paciente caminha, entao, para a autonomía, tornando-se responsável por si mesmo, num ganho de liberdade existencial acompanhado por uma crescente responsabilidade. Seu comportamento e escolhas vao sendo tomados com receio e precaugao, com a inseguranga de quem acaba de ter o volante de um carro em suas maos e apesar de nao saber dirigir, muito menos para onde ir, dirige com satisfagao por saber que mesmo que se perca ou chegue a algum lugar sombrío, chegará por conta própria. A experiencia de "ser o que se é" é, assim, mágica e, ao mesmo tempo, angustiante. Rogers (1959/1987) denomina de "momentos de movimento" na terapia, ocasioes onde o individuo teria nao um pensamento, mas uma experiencia, nova e sem barreiras ou inibigoes, naquele instante da relagao. Esta experiencia é aceita e vivenciada conscientemente e visceralmente. O individuo entra em contato com uma nova face de si. Esta abertura á experiencia permite que as mensagens que nosso próprio corpo nos manda, sejam cada vez mais ouvidas e levadas em conta. O individuo comega, entao, a querer ficar mais próximo desta fonte interna de sabedoria. Comega a ouvir-se a partir de suas próprias reagoes fisiológicas. Esta maior abertura ao que se passa dentro dele é acompanhada de uma abertura sensivel ao mundo externo. Acreditamos ser este o motivo pelo qual ao aproximar-se mais de si, o individuo nao se torna individualista e com comportamentos egoístas. É capaz de ver também o mundo externo, as outras pessoas, a sociedade, e tudo isso é levado em conta em suas escolhas. Além disso, á medida em que é capaz de assumir sua própria experiencia, aumenta sua capacidade de aceitagao da experiencia dos outros, o que contribuí para a melhoria de suas relagoes. Descobre que pode sentir Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 Brito, R. M. M. & Moreira, V. (2011). "Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: um estado ou um processo?. Memorándum, 20, 201-210. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 206 raiva e esta raiva nao ser destrutiva, pode sentir medo e nao ser parausado por este medo, ou seja, pode sentir seu verdadeiro sentimento. Rogers nao nos encoraja a agredir quando estamos com raiva de alguém, desistir de alguma atividade por aceitar nosso medo ou fazer sempre o que queremos sem levar em conta os sentimentos das outras pessoas. Sua aposta é de que podendo vivenciar livremente nossos sentimentos, estaremos mais aptos a agir, mesmo que esta agao nao acontega na mesma diregao do que sentimos. A principal congruencia é entre o sentir e saber o que se senté. A expressao é urna escolha que deve ser feita levando-se em conta o individuo, o outro e o meio. Quanto mais ele for capaz de permitir que esses sentimentos fluam e existam nele, melhor estes encontram o seu lugar adequado numa total harmonía. Descobre que tem outros sentimentos que se juntam a estes e que se equilibram (Rogers, 1961/2009, p. 201). Esta capacidade de vivenciar livremente os sentimentos é um processo que ocorre durante a terapia, que caminha da incongruencia para um maior estado de congruencia do sujeito. Rogers (1951/1975) descreve as mudangas que acontecem durante a terapia bem-sucedida. Afirma que a terapia consiste em um processo de aprendizagem, no qual o cliente descobre novos aspectos sobre si mesmo. Percebe mudangas no tipo de material apresentado pelo cliente e em sua percepgao e atitude em relagao ao self. O cliente passa a falar mais de si mesmo, no lugar de falar de síntomas, do ambiente externo e dos outros. Rogers relata que comumente seus clientes sentiam que nao estavam sendo seu verdadeiro self e ficavam contentes quando se tornavam verdadeiramente eles mesmos. Sentir que nao se é o verdadeiro self é característico do estado de incongruencia, quando a experiencia organísmica nao está de acordó com a nogao de eu formada pelo sujeito. A satisfagao de tornar-se quem se é é advinda da congruencia conquistada durante o processo terapéutico. A congruencia do sujeito permite que ele sinta, pense e se comporte de acordó com seu organismo, acabando, assim, com o estado de ansiedade característico da incongruencia. Urna das mudangas mais importantes encontradas por Rogers no decorrer do processo terapéutico se refere á mudanga na configuragao básica da personalidade. Segundo Rogers (1951/1975) ocorre urna unificagao e integragao maiores da personalidade. Comega a emergir um self mais flexível, que se baseia na experiencia global do cliente, percebida sem distorgao. O novo self emergente da terapia é mais congruente com a totalidade da experiencia. O comportamento do individuo passa a ser menos defensivo e mais coerente com o self e a realidade. Como reflexo de um estado de maior congruencia do individuo, ocorre urna maior fluidez e flexibilidade em sua forma de ser e agir, que nao estao mais baseados em antigás estruturas rígidas. Procurando descrever a "fluidez" que caracteriza este modo existencial de funcionamento se poderia dizer que a imagem do eu emergiria constantemente mutável - da experiencia (contrariamente ao modo habitual segundo o qual a experiencia é desfigurada ou truncada a fim de a tornar compatível com a imagem do eu). O individuo em vez de se empenhar em controlar suas experiencias, se tornaria parte inerente e consciente de um processo constante de experiencia organísmica completa (Rogers & Kinget, 1965/1977, p. 263). Emergindo sempre da experiencia, a imagem do eu estaría congruente com o organismo, e o individuo seria o que ele realmente é, a cada novo momento. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 Brito, R. M. M. & Moreira, V. (2011). "Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: um estado ou um processo?. Memorándum, 20, 201-210. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 207 O constante processo de ser o que se é Como podemos perceber, a idéia de "ser o que realmente se é" nao significa fechar-se em si mesmo. Ao contrario de acarretar egoísmo, é um processo que envolve a responsabilidade do sujeito por ele mesmo e por suas agoes. É urna liberdade responsável, pois estando livre para "ser", o sujeito deve também assumir a responsabilidade por seus próprios desejos e agoes, que nao se devem mais ao que suas "pessoas-critério" queriam ou esperavam dele. A idéia de homem enquanto projeto, sendo responsável por suas escolhas, tao explícita na proposta rogeriana revela seu caráter existencial, na esteira do pensamento de existencialistas como Jean Paul Sartre. "Ser o que se é" nao significa ser esquecendo o mundo em que se vive, mas significa ser existencialmente, responsável, também, pelo mundo (Moreira, 2007, 2009). A expressao "ser o que se é", que a principio pode parecer ter um sentido de busca por urna esséncia fixa, urna tentativa de descobrir urna identidade já pronta e acabada, algo que existe a priori e que só precisa ser desvendado, na verdade refere-se exatamente ao contrario de tudo isso. Ser o que se é, é abertura, é mergulhar num processo de constantes mudangas. É aceitagao da experiencia vivida pelo organismo. Os clientes parecem encaminhar-se mais abertamente para se tornarem um processo, urna fluidez, urna mudanga. Nao ficam perturbados ao descobrir que nao sao os mesmos em cada dia que passa, que nao tém sempre os mesmos sentimentos em relagao a determinada experiencia ou pessoa, que nem sempre sao conseqüentes. Eles estao num fluxo e parecem contentes por permanecerem nele. O esforgo para estabelecer conclusoes e afirmagoes definitivas parece diminuir (Rogers, 1961/2009, p. 194). Marcado pela abertura e fluidez, ser o que se é parece ser urna característica da Pessoa em pleno funcionamento descrita Rogers (1961/2009). Seria característico desse processo: - Urna abertura a experiencia: capacidade de vivenciar todo estímulo, pensamento ou sentimento sem barreiras nem deturpagoes, sendo a experiencia completamente disponível á consciéncia. O individuo estaría apto a vivenciar o que se passa consigo, estando consciente de seus sentimentos e os aceitando sem medo do que eles possam Ihe causar e sem julgá-los como perigosos a urna estrutura de self já formada e rígida. Toda experiencia seria válida e faria parte do organismo como um todo. Nenhuma experiencia seria rejeitada ou invalidada. -Urna vivencia existencial: capacidade de viver cada momento como sendo novo, sem utilizar os criterios do passado para avahar o presente. O que se é e o que se faz nasce do momento e nao pode ser previsto, pois a configuragao dos estímulos de cada situagao é única. O "eu" e suas atitudes surgem da experiencia presente, em vez de serem deformados para estarem de acordó com urna estrutura já formada. Nao há estruturagao preconcebida para a experiencia, pois cada experiencia é nova e jamáis se repetirá. A vivencia existencial é a plena abertura para o aqui e agora. -Confianca no organismo: reconhecimento do organismo total como referencia confiável para o comportamento. O organismo é visto como fonte de sabedoria e a pessoa passa a confiar no que senté e em suas reagoes sensoriais e viscerais. A pessoa é capaz de reconhecer todos os estímulos e responder a urna situagao levando em conta todos eles. Dizemos que há um funcionamento ótimo quando a estrutura do eu é de um modo tal que permite a Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 Brito, R. M. M. & Moreira, V. (2011). "Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: um estado ou um processo?. Memorándum, 20, 201-210. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 208 integragao simbólica da totalidade da experiencia. A nogao de funcionamento ótimo equivale, pois, á nogao de acordó perfeito entre o eu e a experiencia, e á nogao de receptividade ou de abertura perfeita á experiencia (Rogers & Kinget, 1965/1977, p. 173). Podemos também dizer que ser o que se é, é ser congruente. Para Rogers (1961/2009), congruencia é urna correspondencia mais adequada entre a experiencia e a consciéncia. É urna integragao entre a nogao de eu e a experiencia organísmica. Ser o que se é é ser a própria experiencia de um dado momento, sendo esta experiencia também adequadamente representada na consciéncia, sem distorgoes para adaptá-la ao conceito existente de eu. "Ser o que se é" é urna abertura ao novo. Nao há um "eu" finalizado, ele é sempre transformado e construido a partir das situagoes e circunstancias vividas. Como afirma Rocha (2004) em seu artigo intitulado "Tornar-se quem se é - a vida como exercício de estilo": a fórmula "tornar-se quem se é" nao pode ser compreendida como o percurso que conduz á atualizagao de urna esséncia. Ela nao é da ordem de um imperativo ou de urna finalidade, mas é antes, a descrigao de um processo inteiramente imánente: a vida é percurso no qual alguém se torna (vai se tornando, nao cessa de se tornar) quem é. E inversamente: um eu nao é, a rigor, outra coisa senao a configuragao sempre muíante e sempre provisoria que resulta da combinagao de forgas e efeiíos. O enconíro foríuiío com as circunsíancia de urna vida vai íransformando, esculpindo um "eu". (...) Longe de conduzir a urna ideníidade, esse processo se abre para a diferenciagao: íornar-se quem se é, é sinónimo de íransformar-se (inveníar-se, diferir de si mesmo, reinveníar-se) (p. 294). Ao longo do processo íerapéuíico, o individuo é cada vez mais capaz de significar sua experiencia livremeníe, sem barreiras nem deíurpagoes. Nao precisa mais se esconder de qualquer parte ou faceía do seu ser, pode ser iníeiro, e por isso mesmo, iníenso. Esíe nao é um caminho fácil e nem sempre é prazeroso. Também nao é um objeíivo que urna vez alcangado, encerra-se. É um processo de exisíéncia consíaníe e desafiador. Ser o que se é, é ser iodo em cada momento, como diria o poeta Fernando Pessoa (1933/1994): Para ser grande, sé inteiro: Nada teu exagera ou exclui. Sé todo em cada coisa. Poe quanto és No mínimo que fazes. Assim em cada lago a lúa toda brilha, porque alta vive (p. 148). A expressao "ser o que se é" pode de inicio parecer sem sentido ou contraditória, pois nao podemos ser nada além do que somos. Porém, ao nos aproximar déla, percebemos o quanto é rica e desafiadora. Ñas palavras de Rogers: Significa que urna pessoa é um processo fluido, nao urna entidade fixa e estática; um rio corrente de mudangas, nao um bloco de material sólido; Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 Brito, R. M. M. & Moreira, V. (2011). "Ser o que se é" na psicoterapia de Carl Rogers: um estado ou um processo?. Memorándum, 20, 201-210. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 209 urna constelagao de potencialidades continuamente mutáveis, nao urna quantidade fixa de tragos (Rogers, 1961/2009, p.138). Conclusao Torna-se quem se é seria, entao, o processo de viver existencia I mente no aqui e agora, estando aberto á experiencia e as reagoes organísmicas. É um processo que envolve abertura e criatividade. Ao contrario de se chegar a urna identidade cristalizada, torna-se o que se é, é abrir-se as possibilidades da existencia. Envolve a coragem de assumir nossas experiencias, sem deturpá-las por nao estarem de acordó com urna imagem já formada do que somos. O novo, em nos, assusta e desestabiliza. Em urna vida quase automática, onde produzimos em serie e nao paramos para pensar sobre o que sentimentos e fazemos, torna-se difícil lidar com o que se apresenta diferentemente do que já estávamos habituados. O conhecido é seguro e o novo gera estranhamento. Durante o processo da psicoterapia nos deparamos com novos sentimentos e novas significagoes, que nos abrem para novas e diferentes formas de existir e atuar no mundo. "Ser o que se é" é aceitar e vivenciar a cada instante o novo, o fluido e o mutável em nos. Desta forma, a frase que melhor expressaria a idéia de processo continuo seria: ser o que se está sendo, pois esta transmite melhor a idéia de processo e fluidez que perpassa esta expressao. Trata-se de um modo de funcionamento onde tudo o que se passa no organismo é aceito e validado, propiciando, assim, um estado de congruencia. "Ser genuino significa fazer aquilo porque a situagao clama" (O'Hara, 1983, p. 120) ao contrario de agir baseando-se em situagoes e com porta me ntos anteriores. É aceitar cada momento como novo, e agir segundo a experiencia atual, sem se fixar em estruturas passadas. É acompanhar o fluxo e a fluidez das experiencias de cada momento. A nogao de eu deve ser flexível para abarcar urna diversidade maior das experiencias de cada momento, sem se fechar a urna estrutura já cristalizada. Se toda experiencia organísmica fosse simbolizada corretamente, teríamos o ponto máximo de congruencia e funcionamento pleno. Logo, esta pessoa seria a cada momento o que ela realmente é. Pois seria na consciéncia e na agao tudo o que é em sua experiencia organísmica, sem negar ou deixar de lado qualquer sentimento. "Ser o que se é" é um processo que envolve sabedoria, coragem e responsabilidade, sendo o que se está sendo. Referencias Gaspar, Y. E. & Mahfoud, M. (2006) Urna leitura histórica do conceito de experiencia e urna proposta de compreensao do ser humano em seu caráter essencial: experiencia elementar e suas implicagoes para a psicología. Em Sociedade Brasileira de Estudos e Pesquisa Qualitativa (Org.). 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Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 210 centrada na pessoa (pp. 103-121). (A. H. L. da Fonseca, Trad.)- Sao Paulo: Summus. (Original publicado em 1980). Pessoa, F. (1994). Para ser grande, sé inteiro. Em F. Pessoa. Odes de Ricardo Reis (p. 148). Lisboa: Ática. (Original publicado em 1933). Rocha, S. P. V. (2004). Tornar-se quem se é: a vida como exercício de estilo. Em D. Lins (Org.). Nietzsche e Deleuze: arte, resistencia (pp. 292-303). Rio de Janeiro: Forense Universitaria. Rogers, C. R. (1975) Terapia centrada no cliente (M. do C. Ferreira, Trad.). Sao Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1951). Rogers, C. R. (1987). A esséncia da psicoterapia: momentos de movimento (A. M. dos Santos, Trad.). Em A. M.Santos, C. R. Rogers & M. C. V. B. Bowen (Orgs.). Quando fala o coragao: a esséncia da psicoterapia centrada na pessoa (pp. 13-19). Porto Alegre: Artes Medicas. (Original publicado em 1959). Rogers, C. R. (2008). As condigoes necessárias e suficientes para a mudanga terapéutica da personalidade (J. Doxey, L. M. Assumpgao, M. A. Tassinari, M. Japur, M. A. Serra, R. Wrona, S. R. Loureiro & V. Cury, Trad.). Em J. K. Wood (Org.). Abordagem centrada na pessoa (4 a ed., pp. 155-177). Vitoria: Edufes. (Original publicado em 1957). Rogers, C. R. (2009). Tornar-se pessoa (6 a ed.). (M. J. do C. Ferreira & A. Lamparelli, Trads.). Sao Paulo: Martins Fontes. (Original publicado em 1961). Rogers, C. R. & Kinget, G. M. (1977). Psicoterapia e relagóes humanas (vol. I). (M. L. Bizzotto, Trad.). Belo Horizonte: Interlivros. (Original publicado em 1965). Wood, J. K. (1983). Sombras da entrega: tendencias na percepgao interior ñas abordagens centradas na pessoa. Em C. R. Rogers, J. K. Wood & M. M. O'Hara (Orgs.). Em busca de vida: da terapia centrada na pessoa a abordagem centrada na pessoa (pp. 23-44). (A. H. L. da Fonseca, Trad.). Sao Paulo: Summus. (Original publicado em 1977). Nota sobre as autoras Rafaella Medeiros de Mattos Brito - Graduada em Psicología pela Universidade Federal do Ceará. Aluna do Curso de Formagao em Psicoterapia HumanistaFenomenológica. Contato: [email protected] Virginia Moreira - Psicóloga; Psicoterapeuta humanista-fenomenológica; Doutora em Psicología Clínica pela Pontificia Universidade Católica de Sao Paulo - PUC-SP (Sao Paulo, SP, Brasil); Pós-doutorada em Antropología Médica pela Harvard Medical School (CAPES/Fulbright); Docente Titular da Universidade de Fortaleza Unifor (Fortaleza,CE, Brasil); Visiting Lecturer do Departamento de Medicina Social de Harvard Medical School; Supervisora Clínica Especialista em Psicoterapia credenciada pela Sociedad Chilena de Psicología Clínica (Santiago do Chile, Chile). Data de recebimento: 12/08/2010 Data de aceite: 17/05/2011 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/britomoreira01 Mangone, E. & Marsico, G. (2011). Social representations and valorial orientations: the immigrants case. Memorándum, 20, 211-224. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 211 Social representations and valorial orientations: the immigrants case Emiliana Mangone Giuseppina Marsico University of Salerno Department of Education Science Italy Abstract The principal idea of this paper can be divided in two macro axes: the first is that the behavior toward the other or others, above all, depends on the representaron that people build as to him/them, on the interpretations of actions (pasts, presents, and futures), and on the landmark of socio-cultural context. When responsibilities are attributed to an individual or to a group for critical and /or of sufferance conditions, the situation produced is that it is attributed a false fault to a subject or to a group that could be recognized as "enemy". The second is that images transmitted by the media do not produce only symbolism that contributes to the self construction of the identity, but provide identification models too on which it is possible to find interactions and social actions. In the specific case of the research we present modifications in the perceptions of young people who took part in the research, in regard to immigrants, they allow to look at a different direction that could assume a positive valence (making more familiar what was distant). But it is right to underline that in other situations images produce contrary effects and rather libérate from a stereotyped conditioning than push the subject to reinforce such position. Keywords: social representations; enemy; valúes; images; immigrants. 1. Introduction: theoretical picture of reference Social sciences have underlined how the subject is constantly immersed into a system of relations that strongly contributes to define actions and features. In the plot of social life, social representations form, consolídate and circuíate themselves. They are theories of the common sense, constructed in every day interactions and shared by groups of subjects. So social representations do not arise from isolated individuáis, but they are socially generated; they refer to objects or social phenomena and they are shared by every member of a group. As the literature has demonstrated (Jodelet, 1984; Moscovici, 1984; Duveen, 1988), in the study of social representations we need analyze the relationship among social actors (singles and groups). In the flowing of daily experience, social actors try to articúlate the dialogue between individual and society in the real context of symbolical relationships among subjects, groups and institutions. It is evident here the reference to the role played by the sense of stereotype, prejudice and believes (Moscovici & Markova, 2006). The common trait among all these psychosocial phenomena consists in the fact they express a social representation that subjects and groups construct in order to act and communicate. Representations as symbolic constructions influenced by social positions of individuáis which produce them (Jodelet, 1984), perform the essential task to make conventional objects, people, events, giving them an exact shape, assigning them to a precise category and defining them in a model, distinguished and shared by a group of people. Moreover, they are prescribing because impose themselves on us. Representations are, in fact, cognitive elaborations of the reality shared by many people who orient individual sense making processes. Even though they are not produced by single actor, nevertheless they are rethought, re - mentioned and re Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 Mangone, E. & Marsico, G. (2011). Social representations and valorial orientations: the immigrants case. Memorándum, 20, 211-224. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 212 presented at a micro genetic level. Representaron systems that are present in a certain culture are transmitted to us and they are the product of a whole sequence of elaborations and changes which occur during the time (Laszlo, 2002). From a structural point of view, social representations are formed by two dimensions: iconic (image) and symbolic (meaning) and they are interdependent on each other (Abric, 2001; Guimelli, 1994). Representation of an event, phenomenon or object puts in relation an image to an idea and vice versa. At the basis of such process there is the need to rebuild the common sense or the comprehension form of social happenings that creates the substratum of images and meanings without those no community could opérate. In fact, the community doesn't work if those social representations are not formed themselves, that are based on a group more or less structured of theories, ideologies, visions of the world and that constitute the symbolic and cultural ground which makes possible the interaction among people. Representations make individuáis able to share an implicit whole of images and ideas, which are assumed as given (Moliner, 1996). In fact, one of the prerogatives of social representations is that they permit to transmute ideas in collective experiences and interactions in behaviors. Differently from the sciences that provide the set of instrument to acquire a scientific knowledge of the universe, the social representations have to do the "consensual" universe. They reestablish the collective awareness giving it a form, explaining objects and events so that making them accessible to everyone and making coincide with our immediate interests. It appears evident that as the aim of all representations is that to make something of unusual or the unknown itself as familiar (Moscovici, 1989, p. 45). The non familiar attracts and makes curious the community, put on the alert the subjects and forces them to make explicit the implicit assumptions that are at the basis of assent. The fear to lose usual landmarks, to lose the contact with that furnishes a continuity sense of mutual comprehension it is intolerable. When the diversity imposes itself as something "not enough" as it should be, we instinctively refuse it because it threaten the given order. The act to represent is a mean to transfer that disturbs us, that threatens our universe, from outside to inside, from a far place to a cióse space. The transfer is made separating concepts and perceptions usually connected and putting them in a context where the unusual becomes usual, where the unknown could be included in a recognized category (Moscovici, 1961/in press). When theories, information and events multiply themselves, they are to be reproduced at a closer and more accessible level and transferred to the consensual universe, and they are to be defined and re- presented. To give a familiar aspect it is necessary to actívate two mind mechanisms: the first is the "anchorage" and it forces itself to anchorite unusual ideas and reduces them to ordinary categories and images and put them in a familiar context. Therefore "anchorage" is a process that brings something extraneous and disturbing which regards us in our particular system of categories and confronts it with the model of a category we consider right. To anchorite means classifying and giving a ñame to something, "anchorage" is the representation establishment in the social. Such mechanism performs three functions: 1) cognitive function of innovations integration; 2) function of innovations interpretation; 3) function of behaviors orientation and social relationships. This process making familiar the unknown reduces the fear and worry for that is not possible to explain. After all, the familiarity is a need intrinsic in daily living. To give a ñame to a person or a thing involves three effects: a) once a ñame has been assigned, person or thing can be described and acquire certain peculiarities, certain trends; b) person or thing differ from other persons and things on the basis of these peculiarities and trends; c) person or thing become the object of a convention among those adopt or share them (Haas, 2006). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 Mangone, E. & Marsico, G. (2011). Social representations and valorial orientations: the immigrants case. Memorándum, 20, 211-224. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 213 Aim of the second mechanism ("objectification") is, on the contrary, to carry out these ideas, or rather to transform something abstract into something almost tangible. This mechanism, makes the unusual usual, disclosing it, making it accessible, concrete and consequently controllable. In this way we pass from idea abstraction to the image concreteness. When an idea enters into the knowledge of the daily life, it aims to materialize itself. For example, in every process of divulgation of scientific theories, it is carried out such transformation from the abstract to concrete by turning to a figurative nucleus. Given that a theory enter into the common sense, it happens a selective retention of some ideas which not contextualized in regards to original theoretical área, they are revised and reorganized on the basis of familiar knowledge. Actualizing through images, is a strategy justified by the need to simplify the overcharge of notions at which we are exposed every day. This process involves three passages: 1) selection and de - contextualization; 2) construction of a figurative nucleus; 3) naturalization. The objectification permeates of reality the idea of non familiarity, transforms it in the true essence of the reality (Farr & Moscovici, 1984). The materialization of an abstraction is one of the most mysterious features in the thought and in the language. In short, actualizing it means to reproduce a concept into an image. Once the society has realized such process, it finds out easier to speak about everything is implied by paradigm. Then emerge formulas and clichés which synthesize and connect images before sepárate. As Moscovici (1961, 2000) showed, image of the concept ceases to be an indication and becomes a repetition of the reality. Therefore, the notion or the entity from that is derived, it loses its immaterial nature and acquires an existence almost physical and independent. That is perceived replaces what is conceived and images became real factors, rather thought factors. So the distance between representation and represented is offset. It is epistemologically and ontologically correct to affirm that social representations give form to social explanations; this is the reason for why people try to know what is real before asking them why anything happens in the way in which it happens. They must reduce ambiguity and make information unequivocal in order to make a concept and an image corresponds and vice versa. The behavior towards other people depends on: a) the idea that we have of them; b) the interpretation of their past and present actions: c) the expectation of their future actions; and d) from the socio-cultural contexts (Berger & Luckmann, 1966). As social actions are closely interconnected with the processes of social perception, it is easy to understand why scholars are interested in judgments that people give to one another. When individuáis give a judgment (Heider, 1958; Hewstone, 1989), they try to explain or to interpret the behavior of the judged subject, making the social context of reference more predictable and understandable. In other words, social representations can be considered as a system of cognitive matrix with the task of coordinating words, ideas, images and perceptions that are shared in relation to a big number of people that identify among them (Jodelet, 1984; Moscovici, 1984; Crespi, 2004). At this point, we can state that the behaviours (positive or negative orientation) to anything or anybody are guided by the perception we have of them: the social reality is not built only by social meaning, but also by the producís of the subjective world of individuáis (Tateo, 2009). When an individual or a group blames another individual or group for his/her critical and/or suffering conditions, is created a situation in which we attribute a false blame to someone or a group defined as the "enemy" (Girard, 1987). The attribution of responsibility suggests solutions to social problems, while the rules that determine the explanations can both contain and increase violence and/or control of social order. The idea that goes with this study, is that orientations towards a subject or a group considered as "enemy", is a category which represents one of the most powerful Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 Mangone, E. & Marsico, G. (2011). Social representations and valorial orientations: the immigrants case. Memorándum, 20, 211-224. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 214 icons of the modernity (Giordano & Mizzella, 2006), and it is influenced by information and knowledge obtained from media and especially through images that the media broadcasts. We do not rebuild the history of the "enemy", but we want to analyze the different ways to give a judgment which allows us to créate the real or virtual "enemy" as well. So, we ask ourselves questions about the different ways of symbolic meanings of perceptions of some categories and about the conditioning that they produce inside the social processes of building the figure of the enemy "as to who does not belong, that is foreign, that is on the wrong side, that does not share" (Giordano & Mizzella, 2006, p. 33). This last aspect is connected whit the choice to use as "enemy" the category of the "immigrants" even if there are few study on the representation of the "Other" (Colombo, 1999): the history of Europe is often characterised by the opinión of "foreign" (immigrant) as an "enemy" (Binotto, 2006). It is because the "foreign" is related to something "unfamiliar" (unknown) that, in the relationship, works such a border-figure as Simmel (1908) defined it: the foreign is "at same time cióse and distant". The classical concept of "image of the enemy" is typical of humanity, as only this is able to produce significant symbolic meanings in absence of a face to face relationship (Attili, Farabollini & Messeri, 1996). It is a highly complex process involves which different dimensions of reality (social and psychological), and for this reason, it is easily influenced by the processes of knowledge acquisition. Therefore, the object of this paper is to understand and, where possible, to explain the meaning and the role that the social representation assumes in the dynamics that lead to the modification of orientations (positive or/and negatives) connected to the construction of "enemy" and to explore how these could be different on the basis of perception and knowledge acquisitions modalities. 2. Method: the research's objects and methodology The idea that social representations are on the basis of "cognitive prosthesis" which motívate people to social action, it pushes us to carry out this research that does not have the pretensión to be exhaustive with respect to how build orientations that are on the base of individual and social group actions which refer on idea of "enemy". It wants only to propose a reflection on the processes of attribution in a society in which the acquisition of knowledge is strongly influenced by mass communication. Empirical attention has been directed to young students of the University of Salerno in the South of Italy, Campania región (1), this choice is justified because young people represent the "vital strength" of society, with a course of life which still has to be built and therefore direct able "trainable" in one way rather than in other way. In fact, their developmental phase would still allow the definition, through the socialization processes (2), of social identity (Perret-Clermont, Pontecorvo, Resnick, Zittoun & Burge, 2004) positively oriented towards other (foreign/immigrant). The choice of this sample is justified also by the considerations that this target of population is the most frequent user of communication' sources connected with new media in which the images are predominant. By the light of these preliminary remarks, the aim of this research has been firstly looked into the visión of the world and the future perspectives that young people build. This is necessary because it is important to interpret which are the structures of the ways used to see the society through the eyes of young people. There is not doubt that human knowledge interacts with social life, the ideas on what is right and what is not right, are determined by the social context in which they develop. In this way a "reference scheme" of meanings can be created, standing what young people accept and do not accept with what is commonly accepted. It is fundamental to know not only which are the elements that constitute this "reference scheme", but most of all how it is built. The analysis of symbolic systems that orient processes attribution of meaning and the social behaviour of the individual, it gives an Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 Mangone, E. & Marsico, G. (2011). Social representations and valorial orientations: the immigrants case. Memorándum, 20, 211-224. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 215 adequate instrument of understanding dynamic interaction among society, people and knowledge. Secondly, we nave tried to look into how young people (according to the perception modalities of the concept) modify their orientations for subjects considered by us as "enemies". In fact, at this point it appears evident, the relevance of representaron analysis in the study of behaviours and attitudes that people assume according others. When we talk of negative social actions in particular categories, we must try to develop a theory of representation more than to theorize on the dynamic of them, as often we are in confronted with the shifting from one positive representation to a negative representation. The phases of the research plan are the following: a theoretical widening, a critical interpretation of material acquired, the building of a structured questionnaire and finally, data interpreting. From the methodological point of view we are not worried about quantitative/qualitative controversies, as we think that both the methods can cohabit: in fact, the real problem is not linked to the type of method adopted, but rather to their reciprocal procedural relations (Cipolla, 1998), therefore we think it is advantageous to use an integrated methodology for the research study. Among the different tools of research, the choice fell on to the questionnaire, because when we want to find out about a social phenomena, be it individual or collective, we have, fundamentally only two systems to gather the information: observation and interrogation (Corbetta, 2003). We chose to "interrógate", as we had the necessity to collect the information through a standard tools both through questions and answers, in a way to permit the study of eventual existent relations between variables. The administered questionnaire was made up of four sections. The first section ("Socio-personal data") is represented by a personal file aimed at obtaining sociopersonal data (sex, age, school attended, etc.). The second section, ("visión of the world and future perspectives") is made up of four questions in which one (max two choices of answers) is related to the media communication from which the youngsters obtain information; the second and the third questions tend to verify the presence and the perception of uncertain elements that can influence the young people every day life. The youngsters have expressed their own degree of trust regarding a series of people categories and about a series of future changes in which the youngsters have expressed their own degree of fear (we have used a Likert scale on four points). The use of the scale was necessary because, in our intents, there is the idea to verify the positive or negative intensity with which the young people load their disposition, against or in favour of a particular category of subjects or compared to a series of changes that can involve the youngsters in the future. The last question of this section, that presents the same series of changes of the former question, asks the youngsters about the possibility of improvement or deterioration (we have used a Likert scale on three points). The third and fourth section ("Representations of the enemy") is based on the semantic differential technique (Osgood, Suci & Tannenbaum, 1957). In its generality, this technique measures the connotative meaning (3) of a concept starting from affective and emotion reactions of the subject that answer to a certain stimulus (a word, a sound, a drawing, an image, etc.). The application of the semantic differential is easy, it is based on the expression of the subject's judgement in relation to "concept-stimulus" on a series of defined scales by a pair of opposite adjectives and from a rating scale presented in graphic form (from 1 to 7, or from +3 to -3 in less cases in which we want to indícate the positive or negative sign). Two are the types of judgement that are linked between them: one indícate the direction or the quality (at which point of the two sides of the scale does the association of opposite adjectives get nearer), the other the intensity or distance (how it approaches the extreme of the scale). The intermedíate point of evaluation " 4 " (o in rare cases "0") corresponds to the equidistance or to the neutrality of two polar adjectives comMemorandum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 Mangone, E. & Marsico, G. (2011). Social representations and valorial orientations: the immigrants case. Memorándum, 20, 211-224. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 216 pared to the "stimulus-concept". Each scale represents a meanings component (dimensión of semantic space) that can be represented as a passer-by line the origin for of this space, the number of dimensions of this space is theoretically ended, but it is not known; from previous studies it appears that there are three reitérate dimensions: evaluation, potency and activity. Before entering into details of the results it is necessary to explain the modality of the questionnaires administration: they are drawn up with help of an administrator, this modality was necessary because a part of the stimulus was visuals (stimulusphoto). To guarantee the minor distortion of answers the order of "stimulus-word" and "stimulus-photo" was diversified. The methodology that we adopted was, therefore to regroup a certain number of students in the classrooms, in the second semester of the academic year 2007/2008, giving them all the indication and information both on the objects of research and the modality of filling out the questionnaires. The sample, 0,62% of total students of the University of Salerno (40.534 units for the 2007/2008 academic year), was composed by 267 cases selected in at random and independently from type of course or faculties attended, for its constitution we only used stratification by sex. 3. Results and discussion: valorial orientations, the immigrants case Having constituted the methodological frame and having described the used tool, we only have to enter in the interpretations of the results obtained up to now (4). So as we have carried out the description of questionnaire, we analyze the results according to each single section of the tool. 3 . 1 . Socio-demographic profile of the sample The data relative to the first section were able to define a socio-personal profile of the respondent subject. The sample, on the base of methodological procedures that were used in the creation of the research plan is divided in a proportional way to the total students of the University of Salerno, and exactly is follows: 41,6% is made up from males and 58,4% from females. For age, the sample, was distributed, as 60,7% 18-22 year-old, 33% 23-27 year-old and 6,4% over 27 year-old. Only 2,2% is married (96,3% is unmarried). Relatively at the high school attended the highest percentage is for Liceo pedagógico (23,6%), following Liceo scientifico (21,7%), Istituto Técnico Industríale e Commerciale (respectively 18,7% and 15,7%). Because the sample are students, there is a possibility that a large number of them do not live in Campania, therefore some questions referred to their province or área of residence, and type of "family". From these questions a profile of a young student that resides for 53,4% in the province of Salerno, the 17,4% in the province of Naples, 17,7% in the province of Avellino, instead the provinces of Casería and Benevento are less represented (respectively 5,2% and 3%). But it should mention that a 6% of students carne from other regions. Relatively to the área of residence, 55,4% live in the periphery, 32,6% in the centre of the city and 11,6% live in "rural" áreas. Among the typology of "family" emerges the "nucleus family" with 87,6% and a 9% that live with other students. Only 18% of students interviewed state that they work 28,3% of them have a seasonal contract and 23% a full time contract. This analytic presentation of the biographic profile of the sample provide to the reader/researcher all the informations useful to carry out eventually a comparison whit other similar study. It is worth to underline that in the following pages no other reference to the biographic profile are discussed because, from the scattered data, didn't emerge any difference statistical significant for gender, age, ad degree of education. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 Mangone, E. & Marsico, G. (2011). Social representations and valorial orientations: the immigrants case. Memorándum, 20, 211-224. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 217 3.2. Vision of the world and future prospective The data of second section of the questionnaire "Vision of the world and future prospective", revealed a quite negative students' outlook towards the future. These data agree with the latest research on cultural consumption of young people (Ammaturo, 2008). At a general level of analysis young people seem to prefer the TV (41,4%) and internet (35,9%) when acquiring information. Only 11,7% of the students, instead, prefer other media as book and printed materials (5). This result is in line whit current researches (Bruschi, Iannaccone & Quaglia, 2010; Ligorio, Andriessen, Baker, Knoller & Tateo, 2009) that underline the process of training and, at least, of identity construction is strongly influenced by mass media communications that always take up more space in the lives of young people. In particular, it is all those forms of communication which are linked to the diffusion of images (Mangone, 2008) that influence a biography of single subjects. So, what visión of the world do young people have? Let's try to give an answer using the data to help us, without leaving a short reflection on the sense of general uncertainty that permeates the entire society and that often immobilizes action (Bauman, 1999). More often than ever young people find themselves having to carry out their life project within a reality that is constantly changing. Those changes need to be interpreted in order to learn how to face the transitions in limited controlled situations and to make a choice in conditions in which to predict the future is more difficult (Buzzi, 2007). In this general climate of uncertainty that characterize the Italian context, young people of our sample don't seem to have an optimistic visión of society and of their future yet. To the question "Here are a set of categoríes, could you please indícate your degree of trust ofthem?" (Table 1), the young people preferred the modality of central answers (fairly and little) as if take a position regarding of these categories which is not of complete "open-mindedness", but is neither of complete "narrowmindedness". Table 1: Distribution of degree of trust in young people's on categories (%) Cateqory The cloth No-profit organizations Universities Pólice Young squatters Politicians Immiqrants A lot 5.2 *.g 9.7 11.6 9.0 Fairly 42.7 43.4 63.3 59.9 42.7 0.4 2.6 0.4 12.4 A little 35.6 45.3 21.3 22.1 36.3 30.7 56.2 Not at all 16.5 5.6 4.5 6.0 10.9 66.3 30.7 The answers to the category "politicians" are a particular case, the "politicians" is a category towards which the young people are more diffident (66,3% of whom answered that they had chosen the option "Not at all"). Young people do not trust "politicians" and even less "immigrants" which seem to represent an emergency of the Third Millennium (56,2% of the answers to these questions scored "A little"). The little trust in politicians, that clearly has emerged from the latest research that studied this specific área (Buzzi, Cavalli & de Lillo, 2007), means that young people are conscious that it is not possible to change the world because political interests are stronger, therefore the young people prefer the "prívate" instead of the "public". From the sample emerges a young person that who is afraid of a series of situations for which his/her power of control is mínimum and the degree of uncertainty is high. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 Mangone, E. & Marsico, G. (2011). Social representations and valorial orientations: the immigrants case. Memorándum, 20, 211-224. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 218 Table 2: Distribution of young people's fears (%) ítem Cost of living, employment, unemployment Pollution, environmental change and disasters Terrorism, fundamentalism, war Future in general Political change, crisis of democracy, problem of delegation Death, health, ageing Demographic change, immigration, multiethnic society A lot Fairly A lot + Fairly 73.4 66.3 24.0 33.3 97.4 96.6 56.9 30.7 87.6 32.6 44.6 77.2 20.6 49.4 70.0 36.0 28.8 64.8 17.6 38.6 56.2 If we try to write a list of young people's fear, adding the answers to modality "A lot" and "Fairly" (Table 2), we see that in first position there is "Cost of living, employment, unemployment" (97,4%), second "Pollution, environmental change and disasters" (96,6%), third "Terrorism, fundamentalism, war" (87,6%), fourth the "Future in general" (77,2%). Following in this list, we find "Political change, crisis of democracy, problem of delegation" (70,0%), "Death, health, ageing" (64,8%) and finally "Demographic change, immigration, multiethnic society" (56,2%). The problems that politicians have do not seem to worry young people and v/'ce versa. What is an "emergency" for politicians does not seem a "threat" for "young people". Young people's pessimistic visión is evident from the answers of given to the question "For the same series of future changes, starting from his/her personal experience, can you indícate if they will improve or deteriórate?" (Table 3). Table 3: Dístribution of young people's future opinión on set of situations (%) ítem Will ¡mprove r _ Cost of living, employment, unemployment Pollution, environmental change and disasters Terrorism, fundamentalism, war Future ¡n general Political change, crisis of democracy, problem of delegation Death, health, ageing Demographic change, immigration, multiethnic society Remaní unchanqed w¡|| c|eteriorate 15.0 80.5 4.1 6.7 16.9 76.0 8.6 43.8 46.1 21.3 30.3 48.3 7.9 55.1 36.0 31.8 43.1 25.1 19.9 34.1 43.8 At first and second place for the dimensión of "deterioraron" there are "Cost of living, employment, unemployment" (80,5%) and "Pollution, environmental change and disasters" (76,0%), and at the second one there is "Future in general" (48,3%). The aspect that seems to worry young people less is the course of life, in other words the aspects of person's evolution like death, health or ageing. For young people, in fact, these aspects "will improve" (31,8%) or"remain unchanged" (43,1%). These aspects "will deteriórate" only for 2 5 , 1 % of the sample. The behavior of young people is not only a reaction to a society that always asks them to be equal to a situation, in which the competitiveness is necessary and it is encouraged, and it appears as the only way to develop one's personality, however it is the result of their "fears" and their pessimistic visión of the future. If changes will occur, they will not be an improvement, but a deterioration of the situations. 3.3. Social representations of enemy As explained above, a technique that we have used for studying valorial orientation of interviewed young people is the semantic differential that allowed us to analyse the meaning that the young people attribute to some categories such as "enemies" (in the case of present research, categories has been chosen by us and they are: Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 Mangone, E. & Marsico, G. (2011). Social representations and valorial orientations: the immigrants case. Memorándum, 20, 211-224. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 219 "terrorists", "immigrants" and "university professors") in relation to three principal dimensions (evaluation, power and activity) of semantic space. For each dimensión we individualized three pairs of adjectives that they obtained scores non deforming seores (6). For the study of the dynamics we used three indicated categories because we wanted to verify the differences in respect to categories cióse to the sample of students ("university professors") or not too cióse ("terrorists") (7). We used two form of stimulus: one a word that corresponds to the category and the other a visual stimulus (photo), because the starting hypothesis was that the orientation (positive or negative) would be different on the basis of perception modality. The analysis that we present is relative only to the category of "immigrants" because the most interesting data was gathered here. The results refer to three dimensions of semantic space and to the direction of judgement (at which two sides of scale the association of adjectives is closer) and to the distance (how the judgment is closer to the extreme of the scale). In Table 4 are indicated the percentage of answers to the semantic differential scale of the total sample for both stimulus (word and photo). Table 4: Distribution of Semantic differential (%) Comparison between stimulus word and photo "immigrants" Safe Dangerous 1 Goocl Bad Beautiful Ugly Strong Weak Big Little Taft Soft Active Passive Difficult Easy Hot Cold Word 1.9 3.4 2.6 10.9 9.4 12.7 10.1 23.2 2.6 Photo 4.5 12.4 4.9 6.0 7.9 14.2 12.4 39.3 10.1 Word 3.0 3.4 2.6 7.9 6.7 13.1 15.0 18.0 4.9 Photo 1.9 3.7 2.6 4.5 5.6 9.4 8.6 18.0 6.7 Word 6.7 7.1 7.5 16.1 19.1 23.2 14.2 21.7 6.7 Photo 6.4 12.4 4.9 6.7 7.1 12.7 8.2 17.2 5.6 4 Word 22.8 39.3 42.9 28.8 39.7 33.0 21.0 21.0 32.2 Photo 24.7 30.3 24.7 13.5 21.3 22.1 18.4 12.7 21.3 5 Word 22.5 22.5 19.5 17.2 13.5 6.7 12.7 7.9 14.2 Photo 18.7 16.5 18.0 10.1 12.7 12.0 12.7 4.1 9.0 6 Word 22.5 12.4 8.6 10.5 -.1 1.1 ::. 6 5.6 16.5 Photo 16.1 10.5 13.9 17.6 13.9 7.1 13.5 3.0 12.7 7 Word 20.6 10.5 13.2 6.4 4.1 2.2 12.7 1.1 20.6 Photo 25.5 11.2 27.7 39.0 28.5 17.2 22.1 3.7 32.6 3 In relation to the evaluation dimensión, it is possible to affirm that the judgement expressed to immigrant of the total sample is negative both in the case of stimulusword and in the case of stimulus-photo. This is because both the direction and distance inside the social space of meanings, have a position that can be considered negative: in fact, for all three couple of adjectives (safe-dangerous, good-bad and beautiful-ugly) the major percentage concéntrate towards the right part of the scale (valué 4-7). Regarding the semantic space linked to the power dimensión, the sample did not express any clear position: the majority for the stimulus, direction and distance, are around the neutral valué (valué 4). The percentage of opposite adjective pairs strong-weak and big-little are an exception (respectively 39% and 28,5%) for the stimulus-photo which not, only strongly differences the answer to type of stimulus, but it also inverts the judgement. The individualized pairs of adjectives for the activity dimensión were given answers that are related which the central valúes of the scale. These permit us to affirm that in this case the judgement relative to the stimulus (both for direction and for distance) do not express a clear negative orientation. As for the semantic differential we operated a further type of analysis for the stimulus-word and for the stimulus-photo, which takes into account the average and the normal curve (Graph. 1). The valid cases are 233 for the stimulus-word and 237 for Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 Mangone, E. & Marsico, G. (2011). Social representations and valorial orientations: the immigrants case. Memorándum, 20, 211-224. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 220 the stimulus-photo. From the elaboration of the data two relevant aspects emerge: on the one hand the reduction of an average for the stimulus-photo (from 4,07 of stimulus-word to 3,44), on the other hand (cfr. the analysis of the curve) a shifting of judgement both for direction and for distance. In other words, from a negative judgement orientated for the stimulus-word (both for direction and for distance), we observe the passage to a judgement that we can define "softer" in the case of stimulus-photo, in the last case the curve is included within central valúes of the scale and then the judgement is more prudent (neutral). Graphic 1: Comparison average stimuli word and picture "immigrants" 60- Stimulus-word 50- Mean = 4,0749 Std. Dev. = 0,66263 N = 233 40- 30- Stimulus-photo 20- Mean = 3,4416 Std. Dev. = 0,86424 N = 237 10- 1,00 2,00 3,00 4,00 5,00 6,00 7,00 This means that the difference of stimulus defines a different answer for the semantic differential until changing the orientation of judgement. This permit us to affirm that the knowledge of the world and in this specific case of "the other" as an "immigrant" depends on his/her visión, the first act of a "getting to know" process that will to lead to reasoning, deciding and solving problems (Faccioli & Losacco, 2003). The relation between who perceives and what should be perceived is not constituted or defined from the outside. The subject is in part trained through what he/she sees and the way in which he/she sees it, its images and meanings are always relative and dependant on its positions and from its interpretative schemes which rely on it. There is a difference if we judge an abstract concept or an image of it, but, in general, we do not register a difference if we disaggregate data for gender or age. In this specific research, even though we knew that a different picture could produce different results, we can state that the orientation of judgement respects the "immigrants" changes in a positive sense if the subjects see an images instead of an abstract stimulus. In other words we can infer that to be able to recognize or not recognize a category or a single subject as "enemy" is a process influenced by images. 4. Conclusions This paper presents a reflection about social representation through a sociopsychological perspective, because it is important to use the social representation phenomena as a descriptive instrument to understand the mechanisms and the processes of building the category of "enemy" through the modification of valorial orientations. In fact, when an individual or a group attributes a judgement of valué (positive or negative) to another individual or group, it builds a social shared repreMemorandum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 Mangone, E. & Marsico, G. (2011). Social representations and valorial orientations: the immigrants case. Memorándum, 20, 211-224. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 221 sentation that determines, in the case of negative orientation, a situation in which we attribute a responsibility to someone or a group identified as the "enemy". From the results of the study, we know that to see a different "stimulus-photo" will have produced different results (no modification or a modification in orientation in negative sense), it emerges that this process is strongly influenced by images. Therefore the young people who use widely the images in "their languages" reveal to be that part of the population which is more easily influenced (Ligorio, Andriessen, Baker, Knoller & Tateo, 2009). The images can function as a "deforming mirror". In fact, images promote the terms of language that they créate; they highlight only some themes, concepts or mental categories, forgetting others (Moliner, 1996). They do not easily reflect the valúes of society, but they modify its hierarchy, although they do not créate new valúes. In other words, the images do not produce only symbolism that contribute to the self-building of identity, but they also give models of identification on which to base the interactions and social actions on. In this research, we present the modifications of young people's perceptions to immigrants. These modifications allow to switch the view into a different direction that assumes a positive valué (to render more familiar what was not familiar), but it is fundamental to underline, that often the images produce contrary effects and instead of releasing themselves from stereotyped conditioning, they forcé the reason to reinforce their negative position. In conclusión, to know that there aren't schema that efficiently explain the function of images and their consequences on the social actions it doesn't mean that these consequences don't exist at all. The variation of the mean presented (Graphic 1) and analyzed confirms that the stimulus-picture induce a modification of the valorial orientations (in this case in a positive way) producing consequents actions (Wolf, 1992). We are aware that we cannot generalized the results discussed in this paper, which is an explorative study on social representations of the immigrant and on how the images can affect the process of construction of those representations. Referring to the results, we suggest to put more attention on the models of behaviour daily proposed by mass media through several images that many times are object of imitation. (Bandura, Ross & Ross, 1961). On the basis of the discussed data we can suppose that the images take part to the production of valúes, languages and way of acting. It need to transmit the images in a less conflictual and more equal terms especially whit respect to some categories. So that because they often are stereotyped object or persons fixing, in some case, the definition of a category of persons or a group (in this study the "immigrants") as "enemy". References Abcric, J. (2001). L'approche structurale des representations sociales: développement récents. 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(2) The choice of students as research's participants is based on the considerations of the very delicate and vulnerable transitional phase young people are going through, in which they face the fundamental task of constructing their life actively in society and of social positioning in a wider socio-cultural word. Taking into account these dimensions, the university students seem a very critical and crucial target to investígate, because they are involved in a set of experiences (inside and outside the University) connected with the formation of their system of knowledge and believes (3) The connotative meanings is linked to the own abstract qualities of object or to designed class, in other words it defines the system of emotions and beliefs linked to a particular proposed "sign" and they depend from experience and then from historical reference context of person: the "meaning", as external representation of reality, it constitutes the mediation between the stimulus and the actions. (4) The data described in this paper represents a descriptive level of phenomena. The statistical treatment of data is in course of definitive elaboration that we consent to cross all different examined dimensions. (5) The percent indícate to refer at total number of answers because the question is a múltiple answers. (6) For an accurate analyse of technique applications of semantic differential, of theoretical and metric problems to use it, you see Capozza (1977). (7) The enemy, real or imagined, reduces the semantic and territorial space (close/far) of people, from here the methodological plan to use the categories that occupies "spaces" of different relations. Note on the author Emiliana Mangone - graduated in Sociology in 1993 and in Sciences of educational in 1997 at University of Salerno. In 2006 she became Research Fellow in Sociology of cultural processes and communication at the Department of Educational Sciences at the University of Salerno. Since 2002 she teached several disciplines of Sociology at University of Salerno.She has extended her analysis to cultural and institutional systems and particularly to the cultural, health and social systems. She has focused on the development dynamics of social representation, aiming to define the circumstances which were at the basis of the human actions. E-mail: [email protected] Giuseppina Marsico - researcher in Development and Education Psychology at the Faculty of Education Sciences at the University of Salerno (Italy), and teaches Observation Techniques of Child Behavior. Her main research topic is "Parental educational styles, school success/failure and psycho-social wellbeing in youth". She is PhD in Methodology of Educational Research, and graduated in Education Sciences at the University of Salerno. She has been coordinator of the Bureau of Criminal Mediation at the Juvenile Courthouse of Salerno. E-mail: [email protected] Data de recebimento: 17/06/2010 Data de aceite: 10/04/2011 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/mangonemarsico01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 225 A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo The religiosity of the homeless and the meaning of life: Marcelo's case Aluizio Geraldo de Carvalho Guimaraes Jacqueline de Oliveira Moreira Pontificia Universidade de Minas Gerais Brasil Resumo O presente artigo versa sobre temas marcantes na sociedade atual: o morador de rúa, a religiosidade e o sentido de vida. Buscou-se caracterizar o fenómeno social da populagao de rúa na atualidade e construir urna possível definigao do mesmo. A partir da contribuigao de diferentes autores, procurou-se também caracterizar a religiosidade e a influencia da mesma sobre a realidade social e psicológica das pessoas. A partir do relato de trechos da vida de um morador de rúa da cidade de Belo Horizonte a quem chamaremos de Marcelo, procurou-se mostrar como a busca de sentido se faz presente na vida ñas rúas. Como resultado do presente estudo, póde-se concluir que a religiosidade pode ser um auxilio importante na busca e na construgao de um sentido de vida, além de ser urna forma de sustentagao psicológica para pessoas que vivem ñas rúas. Langou-se mao da teoria de Viktor Frankl como forma de a na I isa r esta temática. Palavras-chave: morador de rúa; sentido; religiosidade; fenomenología. Abstract This article discusses salient issues in contemporary society: the homeless, the religiosity and the meaning of life. Sought to characterize the social phenomenon of the homeless population at present and build a possible definition of it. From the contribution of different authors also sought to characterize the religiosity and its influence on the social and psychological reality of the people. From the report of the passages of the life of a homeless man from the city of Belo Horizonte whom we will cali Marcelo, tried to show how the search for meaning is present in street life. As a result of this study, it was concluded that religiosity may be an important aid in search and building a meaning of life, beyond being a form of psychological support for homeless people. Viktor Frankl's theory was used as a way to examine this issue. Keywords: homeless; meaning; religión; phenomenology. I. Introducao 1.1. Objetivo geral O presente artigo (1) versa sobre a religiosidade e suas influencias na subjetivagao de pessoas que vivem na condigao de moradores de rúa, na cidade de Belo Horizonte. Seu objetivo maior é investigar como a vivencia ou a experiencia religiosa pode influenciar nos processos de construgao de sentido de vida para essas pessoas. I . I I . O morador de rúa: possíveis definicoes Antes de avangarmos nesta proposta, torna-se necessário trazer esclarecimentos sobre o que se entende por morador de rúa. Definir e analisar o que vem a ser o morador de rúa nao é tarefa simples. Araújo (2000) afirma que realizar estudos Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 226 sobre pessoas que moram ñas rúas ou vivem das rúas é urna tarefa desafiadora e que em dois sentidos esse desafio se intensifica. O primeiro sentido colocado como dificultador é que a vida dessas pessoas nao é nada simples como pode aparentar o jargao "populagao de rúa", pois, para além desse jargao, escondem-se diversidades; relagóes complexas do ponto de vista interpessoal e do trabalho, diferentes perfis e diferentes redes de sociabilidade, diferentes trajetórias e historias de vida e, enfim, complexidades sociais e culturáis impossíveis de serem decifradas por conceitos simples e homogeneizadores. O segundo sentido que para o autor dificulta o estudo de pessoas em situagao de rúa se dá no plano metodológico, já que é difícil pesquisar esse público porque ele é flutuante, temporario e nómade. "Em suma, nao é fácil contar as pessoas, saber quem sao e como pensam, entender suas redes de sociabilidade e suas formas de sobrevivencia" (Araújo, 2000, p. 89). Apesar desses diferentes atravessadores apontados que dificultam a definigao de populagao de rúa e morador de rúa, encontramos em Vieira, Bezerra e Rosa (1994) um desenho que visa a urna definigao: Pessoas que vivem em situagao de extrema instabilidade, na grande maioria de homens sos, sem lugar fixo de moradia, sem contato permanente com a familia e sem trabalho regular; sao demandatários de servigos básicos de higiene e abrigo; em que a falta de convivencia com o grupo familiar e a precariedade de outras referencias de apoio efetivo e social fazem com que esses individuos se encontrem, de certa maneira, impedidos de estabelecer projetos de vida e até de resgatar urna imagem positiva de si mesmos (p. 155). Podemos afirmar que o fenómeno social ao qual se denominou pelo termo populagao de rúa, é urna questao de grande relevancia na sociedade atual. ¡números fatores como a desigualdade social e o aumento da pobreza, o desemprego, o uso de drogas e fatores psicológicos, entre outros, tem feito com que ¡numeras pessoas deixem urna vida social estabilizada e passem a fazer das rúas sua morada. Em especial nos grandes centros urbanos esta é urna realidade que se acentúa e cresce cada vez mais. Neste estudo, de maneira específica, analisamos a vida de um morador de rúa que vive na cidade de Belo Horizonte. Torna-se relevante assim, tecer algumas consideragóes sobre a situagao desse público nesta cidade. I . I I I . A populagao de rúa em Belo Horizonte Com relagao á populagao de rúa, o caso de Belo Horizonte nao difere de outras cidades; há a presenga de pessoas ñas rúas e o último censo da populagao de rúa realizado na cidade aponta também para o crescimento desse público. Pessoas que moram ñas rúas de Belo Horizonte apontam que há fatos positivos de se viver nesta cidade, pois, se comparado a outras capitais, como Brasilia e Sao Paulo, o custo de vida de Belo Horizonte é mais baixo. Alguns ressaltam também a hospitalidade do povo belo-horizontino; há locáis e pessoas que fazem doagóes, servigos públicos que oferecem acolhimento e possibilidades da superagao da situagao de rúa, entre outros. De urna forma geral, segundo o 2o Censo da Populagao de Rúa e análise qualitativa da situagao dessa populagao em Belo Horizonte (Ministerio do desenvolvimento social e combate á fome, 2006), pode-se resumir o perfil da populagao de rúa em Belo Horizonte da seguinte maneira: No ano de 2005 havia 1.239 pessoas vivendo ñas rúas de Belo Horizonte. Desse número encontrado, 991 pessoas eram homens adultos, isso representa 79,98% do Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 total. Isso mostra que a populagao de rúa de Belo Horizonte é essencialmente masculina. De todo o público entrevistado, 39,04% estavam vivendo ñas rúas há mais de cinco anos o que aponta para urna estagnagao social na condigao de rúa. 41,2% sao pessoas que nasceram em cidades do interior de Minas Gerais e migraram para a capital. Essa quantia é maior que o número de nascidos na cidade, que é de 32,6%; isso reafirma a questao do éxodo rural ainda presente nos dias atuais onde pessoas deixam urna realidade construida e migram para urna cidade maior em busca de melhores condigoes sociais e outras oportunidades de vida. Isso é atestado quando perguntado o motivo da vinda para a cidade de Belo Horizonte e 50,4% dos entrevistados disseram ter vindo á procura de trabalho. Os resultados mostram também que a populagao de rúa é essencialmente jovem já que 55,60% estao na faixa de idade que varia de 18 a 45 anos. O maior percentual (12,43%) sao de pessoas que estao na faixa de 25 a 30 anos. 46,8% do total dos entrevistados estudaram da Ia a 4a serie completa. Esse baixo nivel de escolaridade contribuí decisivamente para a dificuldade de insergao no mercado de trabalho formal, como reflexo disso, 42,8% dos entrevistados vivem da cata de material reciclável. Dos entrevistados 43,65% afirmaram ter algum problema de saúde, sendo que 11,81% afirmaram ter problemas psíquicos/saúde mental. Já 30,6% declararam que seu maior desejo é conseguir urna moradia e 24,1% almejam conseguir um emprego. Além disso, 14,9% dos entrevistados disseram que seu maior desejo é a (re)construgao de lagos familiares. I I . Religiosidade, espiritualidade e o sentido de vida E nessa situagao de extrema instabilidade da vida ñas rúas, como se perguntar sobre o tema do sentido da vida? Há sentido de vida ñas pessoas que se encontram morando ñas rúas? Ao nascer, o ser humano é langado em sua existencia. Diferente de outros filhotes, o bebé humano traz consigo urna incapacidade de se cuidar que irá durar longo tempo. Caso nao encontré ambiente afetivo, cuidados e alimentos adequados, fatalmente, o pequeño humano, devido á sua fragilidade, irá morrer. O grande desafio da vida humana é justamente crescer e se desenvolver em suas capacidades e aptidoes sempre tendo a morte como possibilidade. Do bebé que nasce a tornar-seo adulto ou o idoso, há um longo caminho de dilemas, escolhas, perdas e ganhos. É a vida, a existencia. Frente a situagoes que remetem o ser humano a sua morte, nao propriamente a morte física, mas, de qualquer fungao que o impossibilite o vir-a-ser, o homem tende a imprimir um novo sentido á sua existencia. Heidegger (citado por Yalom, 1984), nos fala de duas maneiras de existir no mundo: "o estado de descuido do ser" e o "estado de cuidado do ser" (pp. 48-9). No estado de "descuido do ser", o ser humano se encontra em um nivel inferior, o mundo das coisas. É um modo de existir inauténtico onde a pessoa nao se dá conta de sua responsabilidade com sua própria vida e com o mundo. O estado de "cuidado do ser" é marcado por urna continua consciéncia de ser. O ser pao se maravilha com a beleza das coisas, mas sim, com o fato de elas existirem. É denominado de modo ontológico. Nesse estado a pessoa tem consciéncia de si mesma, capta suas responsabilidades e limites e enfrenta a liberdade absoluta. Ao longo da vida aparecerao características específicas que farao com que o ser humano vá se diferenciando de todas as outras especies. Características como a razao; a autoconsciéncia de sua existencia, a capacidade de pensar sobre sua vida e fazer escolhas. Nao impera sobre o homem o determinismo biológico como em outras especies. Essas capacidades, além de diferenciarem o humano de outras especies, concedem a cada homem e a cada mulher a consciéncia de serem únicos. Apesar de ser imerso no mundo da cultura sendo por ele influenciado, há algo que fará de cada humano único. É a partir dessa unicidade que cada ser é chamado entao a Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 yyi Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 228 responder por sua vida e por sua existencia. Aqui surgem entao as questoes de sentido. A dor de ser faz parte da nossa natureza. Nao agüentamos apenas ser, temos de ser nos mesmos. Nao queremos repetir ninguém nem que ninguém nos copie. Também nao nos basta que os outros aprovem nossa vida. É preciso que ela faga sentido para nos mesmos. Essa dor sentida é, no entanto, apenas urna face da moeda; a outra, em que mal reparamos, é a dor de urna bem aventuranga. Se podemos sentir a dor de nos ter perdido de nos mesmos, é porque temos o poder de nos encontrar novamente. O que nos angustia e nos deixa aturdidos nessa historia é que, para esse individuo exclusivo que somos e para o sentido pessoal de nossas vidas, nao há nenhuma referencia possível. Os modelos culturáis e as pessoas com quem convivemos podem nos inspirar, mas apenas isso. O resto é conosco (Critelli, 2002, 10 de outubro, p. 4). Viver para o humano é ter consciéncia de que se existe, de que se deseja e que se pode morrer. Entre o emaranhado de possibilidades que a vida oferece, é preciso escolher e buscar se tornar o humano que se deseja. A existencia é algo que se constituí e que se pode reler, reorganizar e escolher novamente. Há, entao, urna inquietagao com relagao á vida que invade o ser humano e pergunta pelo sentido do existir. Mais do que existir deve haver um por que existir. Esse porqué existir é que poderá dar base e sustentagao para que se suporte a vida em suas incertezas. E a partir dessa característica do ser humano que se pode conceber o mesmo, entao, como um ser espiritual. O termo espiritual aqui nao se dirige a algo da sacralidade ou ligado á religiosidade. O espiritual é aquilo que dá ao homem essa capacidade de unicidade e de busca de sentido. Além do biológico, do psíquico e do sociológico, há no humano essa dimensao do espiritual. Em todo o ser humano, religioso ou nao, há a presenga de urna espiritualidade. Homem e animáis sao constituidos por urna dimensao biológica, urna dimensao psicológica e urna dimensao social, contudo o homem se difere deles porque faz parte de seu ser a dimensao noética. Em nenhum momento o homem deixa as demais dimensoes, mas a esséncia de sua existencia está na dimensao espiritual. Assim, a existencia propriamente humana é existencia espiritual (Mahfoud & Coelho Júnior, 2001, p. 97). Frankl (1948/2007) ressalta a dimensao espiritual no humano apontando para a sua condigao de liberdade e responsabilidade que se contrapoe a condicionamentos da facticidade psicofísica de cada pessoa. A responsabilidade para o autor manifesta-se na capacidade de responder; é a liberdade de se posicionar no momento em que a existencia coloca algo á sua frente. A liberdade é entao essa possibilidade de escolher, tornando-se, naquele momento e em determinada situagao, algo único. Para Frankl, a dimensao espiritual se resume entao em ser livre e ser consciente da responsabilidade das escolhas. Para Frankl (1948/2007), essa dimensao espiritual é mais ampia que a dimensao psicofísica, sendo, portanto, essencialmente humana. Ela representa essa busca de sentido que caracteriza o humano. O sentido da existencia para o autor está fora do ser humano, podendo ser encontrado em tres fontes: o trabalho, o amor e o sofrimento. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 229 Frankl (1948/2007) afirma que a dimensao espiritual do ser humano é obrigatoriamente inconsciente e inteiramente pertencente ao eu. Há uma profundeza inconsciente na qual sao tomadas as grandes decisoes existencialmente auténticas. Assim, o autor afirma que, além de uma responsabilidade consciente, há uma responsabilidade inconsciente. Outra característica desse inconsciente espiritual é a sua autotranscendéncia, ou seja, a intencionalidade presente no homem é algo que o langa para fora, para algo além de si mesmo. Assim, a essencia do humano para Frankl nao pode estar na racionalidade. A partir dessas consideragoes sobre o inconsciente espiritual, Frankl (1948/2007) afirma que há também no ser humano uma religiosidade inconsciente: Ademáis, numa terceira etapa de desenvolvimento, a análise existencial descobriu, dentro da espiritualidade inconsciente do ser humano, algo como uma religiosidade inconsciente no sentido de um relacionamento inconsciente com Deus, de uma relagao com o transcendente que, pelo visto, é imánente no ser humano, embora muitas vezes permanega latente. (...) Essa fé inconsciente da pessoa, que aqui nos revela e está incluida no conceito de seu inconsciente transcendente, significaría entao que sempre houve em nos uma tendencia inconsciente em diregao a Deus, que sempre tivemos uma ligagao intencional, embora inconsciente, com Deus (p. 58). Entendendo a dimensao espiritual da existencia humana é que se pode entender como surgem as questoes religiosas e o que elas buscam responder. Na verdade, a religiosidade se liga as questoes de sentido buscando responder ao sentido maior da existencia e extrapolando a realidade presente, mirando uma realidade transcendente. Nao é algo que se liga á religiao, mas, essencialmente, á busca de uma resposta. Frankl (1948/2007) ressalta ainda que deve ser evitado acreditar que a relagao inconsciente impulsione ou forcé um contato do homem com Deus. Afirma que esse foi o erro de Jung, ao dizer que a religiosidade se localizava no inconsciente e de que, portanto, nao era o eu quem decidía por crer em Deus. Ele era impulsionado inconscientemente a isso. Para Frankl (1948/2007), vivera religiosidade passa pelo ámbito da decisao de cada ser humano. A relagao com a transcendencia pode ser apreendida pelo sujeito, no vivo da experiencia, como um diálogo no qual o transcendente é considerado como um "Tu". Ao homem que vive essa possibilidade, Frankl o chama de homo religiosus. Contudo, esse relacionamento com o Tu também pode estar oculto para nos, inconsciente ou reprimido, mas, todo homem está sujeito a ele enquanto possibilidade humana. (Mahfoud & Coelho Júnior, 2001, p. 99) Com relagao á fonte das questoes religiosas, vé-se que diferentes autores podem trazer contribuigoes. Cabe ressaltar que é fato notorio que essas diferentes contribuigoes caminham em uma mesma diregao. Para Massimi e Mahfoud (1999), o senso religioso é a exigencia de significado da vida e de todas as coisas. As perguntas que surgem ao homem pelo sentido das coisas e da própria vida pedem contato com algo que seja totalizante, fundante da experiencia de si, experiencia de ser. Sao, portanto, ainda que nao confessadas, perguntas religiosas. A experiencia religiosa pode ser encarada entao como a Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 230 experiencia^ de urna resposta transcendente a essa exigencia propriamente humana. É necessário considerar a experiencia religiosa para conhecer a experiencia propriamente humana, e vice-versa. No mesmo sentido Massimi e Mahfoud (1999) apontam a ligagao entre a dimensao do sentido no humano e o senso religioso. O senso religioso, surgindo através de perguntas que questionam o sentido da vida e das coisas, se liga á dimensao espiritual do humano. O fator religioso representa a natureza de nosso eu enquanto se exprime em certas perguntas: qual é o significado último da existencia? Por que existem a dor, a morte? Por que, no fundo, vale a pena viver? Ou, a partir de outro ponto de vista: de que e para que é feita a realidade? O senso religioso situa-se dentro da realidade do nosso eu ao nivel destas perguntas: coincide com o compromisso radical de nosso eu com a vida, que se mostra nestas perguntas (Giussani, 2009, p. 73, grifo do autor). Giussani (2009) identifica o senso religioso como algo que oferece o empenho para que o humano se coloque existencialmente na vida. A condigao para poder surpreender em nos a existencia e a natureza de um fator sustentador e decisivo como o senso religioso é o empenho com a vida inteira, na qual tudo está compreendido: amor, estudo, política, dinheiro, até a alimentagao e o repouso, sem esquecer nada - nem a amizade, nem a esperanga, nem o perdao, nem a raiva, nem a paciencia. De fato, dentro de cada gesto está o passo em diregao ao próprio destino (p. 63). Amatuzzi (2001) também afirma que há no ser humano urna religiosidade latente ou um senso religioso que é algo que está na base de nossas questoes de sentido. Se o ser humano, usando sua capacidade de abstragao que é algo que o diferencia dos demais seres vivos, for se questionando pelo sentido das coisas, da vida, acabará se perguntando pelo sentido último, mais radical, ou seja, um questionamento que ultrapassa o limite do conhecido, do apreensível. O que dá fundamento a esse questionamento é o senso religioso O campo religioso nao é inicialmente o campo das indagagoes sobre os deuses, mas sim das indagagoes sobre tudo o que acontece, tudo o que existe e nos acontece. Trilhando esse caminho, desembocamos ñas questoes do sentido último e tocamos na questao do transcendente, pois é como se nos déssemos conta da totalidade dos horizontes, sem que isso aquietasse aquelas indagagoes (Amatuzzi, 1999, p. 127). Esse senso religioso, na sua ansia de respostas, pode desembocar em urna forma religiosa. Caso isso acontega, essa forma religiosa será entendida como urna tomada de posigao frente ao senso religioso; urna tentativa de dar resposta as questoes que ele traz. O que se pode notar é que as afirmagoes anteriores procuram ressaltar o aspecto da dimensao espiritual como característica essencial do humano. A religiosidade aparece entao como um caminho dentro dessa dimensao maior que é a procura de sentido. Nesse aspecto ela se faz presente ainda cedo no desenvolvimento de cada pessoa para além das orientagoes religiosas culturalmente estabelecidas. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 231 Mahfoud e Coelho Júnior (2001) salientam que a experiencia religiosa se insere entáo na busca para urna vida plena de sentido. O homem explora a forga da sua dimensáo espiritual, permitindo-se ser conduzido por Tu, sendo advertido na dinámica própria da consciéncia. I I I . Metodología Considerando essa proposta de pensar a vida a partir da pergunta do sentido que pode se apresentar através da religiosidade é que perguntamos: O morador de rúa que vive no extremo da carencia se pergunta sobre o sentido de sua vida? A religiáo se apresenta como forma de sentido? Será que podemos entender também essa religiosidade como urna fonte de energía psíquica vital para a continuidade da sobrevivencia dessas pessoas? Para responder a essas perguntas buscamos escutar um morador de rúa. Essa escuta se fundamentou na proposta fenomenológica. Segundo Feijoo (2000), ao adotar-se o método fenomenológico, visa-se alcangar o fenómeno em sua totalidade para compreender a sua esséncia, ou seja, apreender aquilo sem o qual o fenómeno passa a inexistir. A Psicología Fenomenológica visa a descrever com rigor, e nao deduzir ou induzir, mostrar e nao demonstrar, explicitar as estruturas em que a experiencia se verifica e nao expor a lógica da estrutura; por fim, deixar transparecer na descrigáo da experiencia suas estruturas e nao deduzir o aparente por aquilo que nao se mostra (p. 33). A Fenomenología é, por excelencia, um método filosófico que se transpoe para o método empírico. O método fenomenológico aplicado á pesquisa tem como componentes básicos as duas redugoes (fenomenológica e eidética) e freqüentemente culmina com a descoberta das esséncias relacionadas ao fenómeno estudado. Para Forghieri (1993), ñas pesquisas quantitativas, o rigor é buscado a partir do controle das variáveis externas. Já na pesquisa fenomenológica o rigor é buscado através do trabalho com o próprio pesquisador, com o seu olhar. Tal fato se faz presente devido ao pressuposto da Psicología fenomenológica de que o fenómeno se dá na interagáo do sujeito com o mundo. A percepgáo é um ato da consciéncia intencional e é através déla que o homem atribuí significados aos fenómenos. Pódese afirmar entáo que nao há sujeito puro nem objeto puro, ainda que seja feita urna separagáo entre sujeito e objeto concebida no mundo natural. Assim, a partir da orientagáo fenomenológica de pesquisa, buscamos apreender a esséncia da vivencia do sentido de vida dos moradores de rúa e como a religiosidade se apresenta no interior da dinámica psíquica dos mesmos. Para tanto, foram entrevistadas tres pessoas, porém, apresentamos neste trabalho apenas urna das entrevistas que ilustra, de maneira geral, os resultados a que chegamos com a pesquisa. Sabemos que o morador de rúa é assistido por ¡números grupos religiosos que ora abordam esses moradores no local em que eles se encontram, ora os convidam a comparecer em um local específico: a igreja ou a sede do grupo religioso. Prestam diferentes tipos de assisténcia, como um lanche, um banho, um corte de cábelo ou barba e a doagáo de remedios ou pegas de roupa. Além disso, o morador é convidado a participar de um culto, urna oragáo ou um passe. Buscando urna imparcialidade na pesquisa, procuramos realizar a entrevista em um ambiente isento de aspectos religiosos. Como campo de pesquisa escolhido para a busca das pessoas a serem entrevistadas bem como o local onde realizar as mesmas, foi escolhido o Centro de Referencia da Populagáo de Rúa. Esse é um servigo de reconhecida importancia dentro da política pública para o morador de Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 239 rúa em Belo Horizonte. É um servigo público ligado a Secretaria Municipal Adjunta de Assisténcia Social da Prefeitura desta cidade. O método de coleta dos dados que se mostrou mais apropriado para a pesquisa foi a do questionário semi-estruturado. Essa ferramenta serve como um orientador na pesquisa a ser realizada por apresentar eixos principáis de questionamentos, mas permite ao pesquisador maior liberdade, podendo transitar ou se aprofundar em outros eixos que se fagam presentes no decorrer do processo de entrevista. Como a pesquisa foi orientada dentro do método fenomenológico, objetivou-se, através das perguntas, fazer com que o entrevistado expressasse suas vivencias e buscasse relatar seus sentimentos no momento desse vivido. Nao interessou o porqué, mas o como; o experimentado para a pessoa naquela situagao. IV. Resultados IV.I. Moradores de rúa e o sentido de vida A partir das teorizagoes sobre os temas centráis tratados neste artigo, procuramos estabelecer contato com um morador de rúa buscando investigar, a partir dos relatos de vida do mesmo, se havia a presenga de elementos da religiosidade e, mais que isso, da espiritualidade e da pergunta pelo sentido de vida. Caso Marcelo Quando foi entrevistado, Marcelo relatou que era a terceira vez que estava em Belo Horizonte. Ao todo já viveu ñas rúas da cidade por mais de dois anos. Um fato que chama a atengao é que Marcelo, no inicio da entrevista, disse ter nascido em 1959, e teria, entao, 50 anos, porém, ao longo do relato, ele afirma ter 52 anos. Isso se revela um fato recorrente entre pessoas que vivem ñas rúas; urna nogao flutuante do tempo, como é relatado por profissionais que trabalham com este público. Nem sempre há a precisao do tempo em que se está ñas rúas, do tempo em que algo aconteceu, ou mesmo do tempo cotidiano. Pode-se creditar isso á falta de urna rotina fixa que delimite o dia-a-dia como, por exemplo, um trabalho formal que distingue claramente dias úteis e fináis de semana. Há também certa confusao trazida pelo uso de álcool ou outros entorpecentes. Ao iniciar, foi pedido a Marcelo que relate um pouco sobre a sua historia e o que o trouxe para as rúas. Assim, essa foi a questao inicial: levar o entrevistado a falar um pouco sobre sua historia, deixando que ele eleja os momentos significativos e buscando também entender como ocorreu sua vinda para as rúas. Marcelo inicia a entrevista falando entao de um período feliz onde possuía trabalho fixo, moradia e urna esposa. A mesma estava grávida e o casal, segundo ele, muito feliz. Mas, devido a complicagoes no parto, a esposa de Marcelo acabou falecendo juntamente com o bebé. Esse fato, segundo ele, foi um divisor de aguas em sua vida, pois, a partir daí, sua vida foi-se modificando. ... isso eu tava trabalhando. Ai ligaram pra mim urgentemente que era pra vim pra casa. Quando eu cheguei já tinha levado pro Hospital, chegou lá... faixa de urnas 18:00 Horas da tarde, 18:00 horas... ai veio a noticia (entrevistado se engasga na fala)... dá a noticia que ela tinha falecido né, ela mais a changa junto, morreu os dois. Ai de lá... tudo o que eu construí... o imperio foi destruindo tudin. Destruiu tudin. Eu nao ligava mais pro servigo... (faz gesto batendo urna mao na outra como quem expressa, "nao to nem ai") pra mim tanto faz né... ai acabou. Ai cai no alcoolismo, e antes disso nao bebia nada. Cai no alcoolismo... era de dia, de noite, de manha cedo, na hora de que desse. Vendi os dois carros que eu Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 233 tinha. Acabei com tudo. E eu tinha urna situagao mais ou menos que eu era controlado. Ai de lá pra cá... ai vendi a casa, vendi tudo. Ai fui pra rúa, comecei a andar... Marcelo relembra quando trabalhava e a esposa estava grávida. Ao se referir ao momento em que recebeu a noticia da morte da esposa e do filho recém-nascido, ele se engasga deixando vir á tona a intensidade de seu sentimento. Em seguida, afirma que a partir disso tudo o que havia construido, seu imperio, destruiu tudin; ele passa a nao ligar mais pro servigo, podemos estender, passa a nao mais ligar para sua vida. Outro fato que ele marca em sua fala é que entao ele cal no alcoolismo, e antes disso nao bebía nada. Frente á perda sofrida e ao envolví mentó com o álcool ele resolve vir para as rúas e comega a andar. Enfrentar essa realidade que a vida trouxe torna-se insuportável para Marcelo. Depois que ela faleceu, sabe como é que é né? Vocé fica lembrando, a casa vazia... cade a jóia que vocé tinha? Nao tem mais (...) o sentimento meu que eu tenho, verdadeiro mesmo, é a perca déla né. Que ela nao era nem urna mulher, nao era nem mais urna esposa, já era mais como urna irma né? Dentro de casa... brincava pra lá e pra cá... é isso ai, ela se foi e tudo se acabou. Ai de lá pra cá só foi... chegava em casa a casa vazia, nao via mais ninguém, era só eu mesmo, ai eu fui comegando a beber. Tomava urna hoje e amanha também. Quando perguntado a Marcelo sobre o seu sentimento ao vivenciar essa experiencia ele nao expressa um sentimento sobre a perda, mas diz que o seu sentimento é a perda. A morte da esposa traz um vazio: ele nao tem mais a jóia, algo de valor. Relata que a companheira era mais que esposa, expressando um sentimento de grande intensidade. Novamente afirma entao que frente á solidao comega a beber; tomava urna hoje e amanha também. É possível perceber que a fala de Marcelo aponta para urna falta de sentido em continuar vivendo após esta perda. Torna-se difícil viver daquela forma, naquele local. A sua agao é sair andando como a procurar outra realidade ou o sentido para sua vida que havia mudado tanto. Até mesmo o fato de comegar a beber demasiadamente aponta para esse vazio existencial (Frankl, 1946/2008). A fala de Marcelo aponta que havia também a ausencia de outros lagos significativos ou algo que o movesse para urna mudanga positiva. O maior lago aparentemente foi aquele desfeito com a morte da companheira. Em materia, por exemplo... pai e mae eu nao tenho... faleceu todos os dois. Só tenho um irmao, mas com esse irmao eu nao convivo muito bem nao. Quando na época que eu precisei dele pra me ajudar sobre... da minha esposa, ele falou que ele nao tinha condigoes e a familia dele nao tinha condigoes. Ai de lá pra cá eu desprezei, tá entendendo? Desprezei meu cunhado, sogra... de lá pra cá já vai fazer vinote e dois anos que eu nao procuro nenhum deles. É eu e eu e Deus... Reforgando esse sentimento de vazio e da ausencia de outros lagos, Marcelo logo em seguida afirma que já havia perdido os pais e que nao convive bem com o irmao. Lembra que quando precisou do irmao ele falou que ele nao tinha condigoes e a familia dele nao tinha condigoes de ajudar. Surge entao o sentimento de desprezo pelo irmao e outros familiares. Ao sentir-se desprezado, Marcelo também despreza e rompe com o irmao, sem nunca voltar a procurá-lo. Fala entao de 22 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 234 anos em que nao procura mais essas pessoas e que agora é somente Deus o seu companheiro. Há entao um primeiro sentimento dirigido a Deus em sua fala, alguém que o acompanha, alguém com quem nao rompeu o lago, apesar de todo o vivido. ... ai passei por varias casas de recuperagao, pra tentar melhorar... entrei numa que com um mes eles queria me levantar de obreiro e eu quis ir embora... é assim a minha vida, (faz urna expressao de decepgao) Buscando deixar o vicio do alcoolismo, Marcelo relata que passou por diversas casas de recuperagao, mas sem sucesso no tratamento. Lembra que em urna dessas casas eles queriam até o levantar de obreiro, figura de lideranga dentro de determinadas igrejas e instituigoes ligadas as mesmas, mas prefere novamente ir embora e ressalta: é assim a minha vida, deixando transparecer um sentimento de decepgao. Novamente ele sai da casa de recuperagao e resolve andar, voltar á vida ñas rúas. Ao ser questionado sobre como é para ele a vida no dia-a-dia, ressalta novamente a companhia de Deus. Para ele, Deus é quem sabe de sua vida, por isso ele a entrega a Deus todos os dias. eu levo a vida como assim... eu entrego a minha vida todo dia quando eu acordó eu... e quando eu vou dormir, na mao de Deus. Só Deus que agora que sabe da minha vida. Para Marcelo é somente Deus quem sabe o que será de sua vida; ele a entrega e vive. A partir desse ponto descreve outros elementos de sua experiencia de viver ñas rúas. A ausencia de um emprego formal é sentida como um grande empecilho para outras oportunidades na vida. Pra mim fica difícil, trabalha em servigo, em obra assim, pra mim nao dá. Ai, tinha de ser um servigo assim, transportadora, ta entendendo, mas, em transportadora... só da transportadora aqui é só mudanga, esses negocios, eu já encarei, encarei varias mudangas ai, mas... vocé trabalha por trabalhar porque o dinheiro mesmo vocé nao vé nada dele. O emprego formal é difícil para a maioria das pessoas que se encontram em situagao de rúa e diferentes motivos contribuem para isso. O mercado que mais se abre para o morador de rúa é de pequeñas tarefas, os chamados "bicos". Marcelo fala do trabalho em transportadora. Muitos recorrem a pessoas em situagao de rúa para o trabalho bragal de carga e descarga, situagoes pontuais que nao exigem registro em carteira de trabalho e baixa remuneragao, o que dá a impressao de nem se ver o dinheiro. No caso de Marcelo, de forma mais específica, mas nao somente em seu caso, há elementos pessoais que acabam por dificultar ainda mais o acesso ao trabalho formal. Muitas vezes sao elementos trazidos pela própria vida ñas rúas, resultados de urna vida descuidada, violentada. Ai vou falar a realidade. Nao fago nada... eu pra trabalhar em obra eu nao posso, eu tenho urna platina aqui nessa perna aqui (me mostra a perna) que ela fica sempre mais inchada que essa aqui. E essa vista esquerda eu nao enxergo déla. Foi batida de caminhao, ai eu perdi essa visao dessa vista aqui. Só enxergo com essa aqui. O corpo de Marcelo traz marcas da vida ñas rúas. Senté que hoje nao faz nada, mas está se referindo de forma direta ao trabalho. Ressalta que nao tem trabalho Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 235 fixo porque hoje nao conseguiría exercer um trabalho pesado ao qual seu perfil mais se adaptaría, como em obras, por ter machucado a perna e ter perdido urna visao, frutos de situagoes vividas ñas rúas. Parei no tempo. Nao fago nada, num trabalho, num fago nada né? Parei de tudo, nao do um dia de... nada, pra ninguém. Inútil eu nao sou, tenho condigoes para trabalhar mas num... num tenho como eu entrar de frente sozinho, tinha que ter alguém pra dar apoio, pra indicar, apoiar, o cara chegar até num emprego, tá entendendo? Que... nóis somos muito maltratados porque se vocé chega numa firma vocé pode levar um currículo desse inteiro e a primeira coisa que eles procura saber, "vocé mora aonde?" A... eu moro no albergue. "Que que é albergue?" a...mora tantos homens lá e tal... "Cé é albergado?" É. Marcelo senté que está parado no tempo. Vive ñas rúas e nao faz nada; para, fica estático. Afirma entao o sentimento de que nao é inútil, mas vive a dificuldade do desemprego que nao consegue superar sozinho, precisa da ajuda de alguém. O sentimento de ser maltratado se faz presente quando afirma que ainda que aprésente um currículo para se candidatar a um emprego, a pergunta vocé mora aonde? Acaba por determinar a condigao de diferente, de um albergado. Essa é urna queixa muito recorrente entre os moradores de rúa, já que a ausencia de um enderego fixo pode impedir o acesso ao servigo regulamentar. Além disso, o termo albergado traz construgoes sociais negativas em relagao ao termo. Na seqüéncia, Marcelo relata a sua própria experiencia de discriminagao. Eu mesmo já fui discrimado, eu cheguei numa firma, pra trabalhar numa firma, levei todos os documentos, o cara falou: "Ó, amanha vocé pode vim trabalhar" (...) Quando eu cheguei lá, "A... é o seguinte, a vaga que tinha já foi preenchida, o cara nao me falou pra mim e já foi preenchida". Foi preenchida nada, foi porque eu falei que morava no albergue. Por isso que a gente é discriminado. (...) Se vocé entrar numa empresa e falar que vocé é morador de rúa, mora no albergue, vocé é discriminado, a firma nao aceita nao. O fato de nao ter como comprovar moradia e a revelagao de se estar morando ñas rúas faz com que a sociedade, de forma geral, crie urna imagem negativa da pessoa. A oportunidade de trabalho poderia ser a chance de urna insergao social, mas ela pode acabar nao ocorrendo devido ao conceito social criado sobre a populagao de rúa de que se trata de pessoas que já roubaram, que mataram, nao sao dignos de confianga. Esse preconceito, aliado ao baixo nivel de escolaridade da maioria, leva tais pessoas ao trabalho informal e descontinuo. Essa experiencia de nao poder acessar o servigo que Ihe garantiría urna melhor qualidade de vida mantém Marcelo na mesma situagao. Ele fala entao das dificuldades de se viver ñas rúas. A ai... ai é difícil... hoje vocé tem R$ 1,00 aqui, come um lanche ali. Amanha vocé tem R$ 5,00 vocé vai lá e come urna comida melhorzinha... o dia que nao tem nada, aguarda até de vir a noite pra jantar, só isso. (risos com ar de certa decepgao) Espera vim a noite, só jantar e pronto. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Marcelo vivencia a necessidade e a carencia na pele. Se tem pouco dinheiro faz um lanche; se consegue urna quantia maior, come urna comida também melhor. Porém, como nao há urna renda fixa e há dificuldade em se conseguir dinheiro, quando nao tem Marcelo aguarda a noite onde irá dormir no albergue e entao terá a janta. O sentimento de decepgao se faz presente na face de Marcelo, pois a única alternativa nessa condigao é esperar. Urna outra alternativa que se abre é pedir, como Marcelo descreve na seqüéncia. Bater na porta da casa dos outros ou restaurante e ficar ali ó... se sobrar é seu. Igual cachorro, fica lá esperando o resto. Se sobrar é seu, se nao sobrar ó... "nao sobrou nada". Entao aquele nada, vocé já tem que esperar aquilo lá mesmo procé comer. De dia ainda passa... a dificuldade maior é a noite, que a noite... a noite é urna vigia. Para se comer quando nao tem dinheiro Marcelo pede entao em casas ou alguns restaurantes que doam a comida que nao foi vendida naquele dia, que acontece, segundo ele, por volta das 15 horas. Assim, o sentimento que é despertado em Marcelo é de ser Igual cachorro que fica lá esperando o resto. Quando acontece de nao receber nada, esse nada já era urna possibilidade esperada. Dando énfase á na vida ñas rúas, Marcelo fala que há muitas dificuldades, mas ressalta que a noite ñas rúas é ainda pior. Quer dizer, é um risco que vocé passa; o dia, a noite... a noite que vocé passa na rúa, é um dia que vocé tem de Vitória porque vocé deitou e levantou no outro dia. É urna vitória que vocé conta na sua vida. Eu falo pros meninos ai... porque eu fiquei aqui agora, depois que eu tava na Tia Branca eu fiquei seis meses na rúa; fiquei porque eu quis, nao fui suspenso do albergue. Mas cada um dia que vocé deita e que vocé amanhece, é urna vitória na sua vida, vocé nao sabe o que que vai passar a noite com vocé. (...) Cé dorme, a morte perto de vocé e vocé nao vé. Ai só Deus mesmo que ta ali pra proteger vocé. Porque o homem é falho. O homem pra chegar, pra fazer urna covardia com vocé nao custa nada. Dormir na rúa e acordar no outro dia é vivido como urna vitória diante de todos os riscos que se passa. Marcelo ressalta que ficou dormindo ñas rúas cerca de seis meses e deixa claro que foi por opgao, nao por ter tido problemas no albergue. A noite na rúa expoe Marcelo á possibilidade mais concreta da morte, urna morte covarde. Senté por tudo isso que o ser humano é falho e conta, assim, com a protegao de Deus. A violencia para com o morador de rúa torna-se, muitas vezes, algo banal, ¡números sao os fatos ocorridos que podem atestar essa realidade. Em Sao Paulo e no Rio de Janeiro aconteceram chacinas com moradores de rúa e meninos de rúa. Novamente em Sao Paulo urna onda de mortes no ano de 2004 assustou a populagao de rúa daquela cidade. Em Brasilia ganhou repercussao o caso do indio Galdino, que foi morto queimado por jovens de classe media e alta. Como forma de defesa, alegaram que achavam tratar-se de um mendigo. Além de serem vítimas de urna violencia vinda de fora, os moradores de rúa sofrem a violencia de pessoas do mesmo grupo onde os mais jovens muitas vezes maltratam os mais velhos. Dentre os atos de violencia que já viveu ou presenciou ñas rúas, Marcelo fala de ter visto meninos de rúa colocar fogo entre os dedos de um morador de rúa adulto e de ter visto outro morador ser queimado. O risco sentido é de que se pode acontecer isso a qualquer um, inclusive a ele próprio. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 237 Eu falo que eu já vi em Niterói; já vi em Caxias, o camarada deitado assim, os moleque de rúa vim, tira o chínelo do cara assim; colocar fogo, algodao, joga álcool e coloca fogo no meio dos dedos do camarada. Colocar fogo num camarada deitado dentro do carrinho (carrinho usado para a cata de material reciclável), o cara era mais alto que eu e ele ficou desse tamaninho (faz sinal com a mao mostrando). O maior medo causado é por pensar que se pode ser o próximo a sofrer tal violencia. Isso leva Marcelo a afirmar que cada noite passada na rúa é urna vitória. Muitas vezes o grupo que é considerado amigo e fonte de sociabilidade pode ser também fonte de violencia. Marcelo utiliza um termo que chama a atengao, ao dizer que na rúa a pessoa passa por muitas atribulagóes. Perguntamos quais sao essas atribulagóes e ele procura dar um exemplo. Ai, quando pensei que nada, ele meteu a faca aqui (levantou a camisa e mostrou urna cicatriz no abdomen), ai os outros gritaram, os que tavam na rúa junto com a gente, ai ele passou a faca aqui. Isso que eu recebi, na mesma vida que eu tava levando, ele também, ele pegou e queria me furar pra me tomar o dinheiro. Marcelo relata que era amigo de um outro morador de rúa e que andavam sempre juntos, na mesma vida. Certa vez, conta que conseguiu urna doagao em dinheiro de um pastor e esse outro morador de rúa quis roubar-lhe o dinheiro desferindo-lhe urna facada. Atribulagóes podem ser, como no exemplo citado, a marca da violencia deixada pela vida ñas rúas. A experiencia de pedir mobiliza muitos sentimentos em Marcelo, pois senté que está em um papel que nao gostaria de estar e recebendo ¡numeras imagens daqueles que estao externos a sua realidade. É difícil, mas fazé o que? Fica ai na porta de um e outro pedindo, levando aquilo que todo mundo brasileiro aprendeu: "Vai trabalhar vagabundo". Ou senao eles te vem com um tanto de pedrada em cima de vocé. Ou senao "vai roubar pra vocé comer". Ai eu jamáis pensó em entrar numa vida dessa. O termo vagabundo é usado justamente para designar aquele que nao trabalha e vive na vadiagem. Marcelo vivencia esse fato, mas afirma que jamáis pensa em se tornar um vagabundo ou um ladrao. Se todos os brasileiros aprenderam a falar, ou pensar isso, Marcelo mostra que sua subjetivagao da situagao de rúa nao o leva para o papel do contraventor, de quem faz como todo mundo brasileiro. Frente a todo esse panorama desfavorável, o que é viver para Marcelo? Eu vou falar aqui a verdade; do jeito que eu tó vivendo, nao tó vivendo... a vida, quem faz a vida é vocé, eu nao reclamo nada da vida, eu nao reclamo... igual eu falei, se eu tó desse jeito. Eu podia passar a borracha naquilo lá da morte da minha mulher e, entregar na mao de Deus e continuar a minha vida. Hoje eu tava um homem aposentado pelo porto, tinha minha casa, tinha tudo. Mas eu... eu fui um fracasso de mim mesmo. Eu fui fracasso, eu mesmo me fracassei, eu fracassei. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 r )i)9. Pode-se afirmar primeiramente que na afirmagao de Marcelo há um descontentamente para com a vida atual, o sentimento é de que nao está vivendo. Se essa afirmagao soa como negativa por trazer um sentimento de tristeza e decepgao, ela revela tambem que há em Marcelo um desejo de uma vida diferente. Ao afirmar que nao está vivendo, ele aponta que acredita em uma forma diferente de viver; há um sentido colocado. Há tambem um sentimento de responsabilizagao, pois Marcelo senté que poderia ter feito uma escolha diferente, passado uma borracha no passado, ter entregado na mao de Deus sua vida e continuar vivendo. Deus revela-se assim para Marcelo como um ser acolhedor, aquele que entende e oferece um conforto. Marcelo reflete sobre uma vida diferente que poderia ter construido e, frente ao sofrimento, subjetiva a si mesmo como um fracasso. Pego a Marcelo que fale sobre o momento mais difícil que viveu ñas rúas em todos esses anos e entao relata a vivencia da solidao como sendo esse momento. Ó... momento mais difícil (silencio)... o momento mais difícil que eu passei na minha vida foi o dia que eu senti a solidao; o que é a solidao. Foi o dia que eu cai aqui dentro e fui levado pelo SAMU pro Pronto Socorro. Dia vinte e cinco de Dezembro eu tava dentro do Joao XXIII, ai que eu lembrei viu! Tudo que eu tinha e joguei pra tras agora to aqui. Dia vinte de dezembro... dia vinte e cinco de dezembro e dia de ano novo sozinho aqui. Ninguém pra falar pra vocé: "Feliz ano novo... um feliz natal". Isso foi a maior tristeza na minha vida. Marcelo relata a vivencia de ter conhecido o que é a solidao. Num momento de fragilidade da saúde ele se vé sozinho em um hospital público. A data do natal e do ano novo o faz lembrar de sua vida, de tudo o que tinha e, em suas palavras, jogou para tras e agora estava ali, sem que ninguém Ihe desejasse algo de bom nesse período. Certas datas, como é o caso do Natal e da entrada de um ano novo, remetem a um contexto de planos, expectativas de mudangas e as pessoas sao incentivadas a estarem próximas de seus familiares. Nesse momento é que Marcelo senté com maior intensidade o que é a solidao. Agora... assim... tristeza mesmo é quando a gente vé assim né, os amigos que vocé tem mais conhecimento com eles é morto, outros é "faqueado", outros tá preso por causa de droga, esses bagulhos, essas merdas ai que nao leva ninguém a frente, ai da tristeza na gente, tá sabendo? Vé que tem uns amigos que bebeu cachaga com a gente; dormia na rúa junto com a gente, hoje tá numa grade ou senao ta morto, ai te fere. Tem uns que nao ligam, mas tem outros, pra mim eu já fico triste. Marcelo sente-se triste tambem quando outros amigos de rúa sao mortos ou presos e se refere, específicamente, ao uso de droga como motivo dessas prisoes. Expressa tambem sua opiniao sobre drogas essas merdas ai que nao leva ninguém a frente. Faz referencias aos amigos com os quais conviveu ñas rúas, tomou cachaga junto e hoje estao presos ou foram mortos. Ressalta que ainda que alguns nao liguem, ele fica triste. Ao falar dessa tristeza e das dificuldades em se viver ñas rúas, Marcelo relata entao que sem a forga de outros o morador de rúa passaria por dificuldades ainda maiores. Se nao tiver ninguém pra dar uma forga pra ele, ele só vai ó... A maioria, todos nos que ai, dentro Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 239 desse trem aqui, ninguém tá aqui porque quis, tá aqui porque tá necessitado. Se essa casa fecha aqui, ou se fecha esses albergue tudin que eu conhego, e essas casas de recuperagao, e essas doagao, o morador de rúa, ele vai ter que dar os pulos dele, que tem casa que da apoio. As casas de recuperagao da apoio, tem as casas que dá alimentagao, tem as que da roupa final de semana. O dia que fecha esse ciclo todinho ai... Para Marcelo ninguém está ñas rúas porque quer, mas devido á necessidade. Assim, se nao houver alguém que dé forgas e apoio ao morador de rúa, sua situagao será pior. Marcelo senté como apoio os programas sociais da prefeitura, casas de doagao e casas de recuperagao. Esses espagos que atendem ao morador de rúa sao vistos como a formagao de um ciclo; caso ele se encerré, o morador de rúa terá que buscar outras formas de se sustentar. Ao mesmo tempo em que Marcelo afirma que ninguém, está na rúa porque quer, inclusive ele, ele reconhece a vinda para as rúas como urna escolha sua. Eu se sinto mal, mas eu vou falar a verdade, foi eu mesmo que procurei, foi eu mesmo. (...) nao acuso ninguém; nao acuso ninguém. Eu acuso o meu eu, o meu eu... meu eu que tá nesse negocio, nao acuso ninguém. Sai... tudo que eu fiz nao foi forgada de ninguém, fui eu mesmo que escolhi; "a eu vou sair pra arejar a cabega por ai". E daí foi até hoje... até hoje. Nao encontrei ainda o que eu queria encontrar, mas eu sei que até chegar lá eu ainda vou encontrar meu objetivo ainda. Tá vendo? Nao acuso ninguém. Marcelo se senté mal com o fato de viver ñas rúas e com todas as situagoes que Ihe sao colocadas. No entanto, nao acusa outros pela vida que está levando mas a si mesmo como responsável por ter saído para as rúas. Em seguida, faz urna importante revelagao, afirmando que nao encontrou ñas rúas o seu objetivo. Mas há urna certeza de que até chegar lá, no fim, ele ainda vai encontrar algo que o responda por seus objetivos. Eu acredito que um dia eu pelejo e vou passar por cima, eu nao vou ficar nessa pro resto da minha vida, ou senao eu vou pra eternidade. A eternidade é na hora que o meu pai me chama uai. Mas aqui na térra eu vou fazer por onde, pra nunca entrar ñas maus tentagoes. Cai dentro de urna cadeia eu nunca cai; nao fumo droga nenhuma, nunca fumei um cigarro na minha vida, é isso. Mas eu acredito, até o final da minha vida, eu tenho certeza que eu vou ter urna mudanga, nao sei como mas eu vou ter urna mudanga. Marcelo tem o sentimento de que irá superar, mudar sua vida. Ele vai lutar, pelejar e passar por cima, pois nao vai ficar o resto da vida na situagao de rúa. Ou ele muda, ou vai para a eternidade. Buscando explicar o que entende por eternidade, Marcelo aponta que será a hora em que seu pal chamá-lo para um outro local, urna outra vida. Enquanto está vivendo aqui na térra, Marcelo procura fazer algo para nao cair ñas maus tentagoes (SIC), como nao fumar (droga), nao usar cigarro ou vir a ser preso. Há em Marcelo a certeza de sua mudanga, porém, ele ainda nao sabe como fará para obté-la. Questiono sobre como seria essa mudanga e ele responde. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 240 O meu sonho mesmo é ter urna casa, um canto pra mim mesmo, um emprego pra mim mesmo. Ai eu levanto, eu já vou deitar sabendo que amanha eu já sei pra onde que eu vou. Agora viver numa vida dessa ai num dá né? Se levanta de manha cedo ce vai pra onde? Banco da Praga; praga da estagao, praga da Rodoviária, fica em doagao pra cima e pra baixo ai, pra chegar lá e come um pratin de sopa? tomar um café? Arranjar urnas roupa véia? Nao... eu sou obrigado a pegar porque trabalhar eu nao to trabalhando, nao vou dizer que eu nao sou melhor que ninguém nao. A gente vai lá e pega a roupa que ta dando, nao ta roubando; mas o meu sonho nao é isso nao, ficá pro resto dessa vida nisso nao. E urna que eu já to chegando na casa, já cheguei nos 52 anos. Até agora eu parei... (faz silencio), parei, parei. A mudanga a que Marcelo se refere é realizar o sonho de ter urna casa e um emprego, mas isso serve para Ihe dar a condigao de sair da vida de rúa; sair e saber para onde se vai e nao ocupar o logradouro público. Reaparece entao a questao das doagoes, mas surge o sentimento de que ele só freqüenta tais espago devido á falta de um emprego. Mas Marcelo ressalta que seu sonho passa por outro lugar, nao é ficar pro resto dessa vida nisso nao. Marcelo reflete sobre sua vida e senté que chegou aos 52 anos. Seu sentimento é de parou no tempo. O silencio ao fazer essa afirmagao mostra um rosto angustiado, o sentimento de urna vida que passa, que completa 52 anos e está parada. Como no discurso de Marcelo novamente aparece a questao das instituigoes que doam algo ao morador de rúa, percebemos que as mesmas tem urna importancia para o mesmo. Pedimos a ele que fale um pouco sobre as mesmas. Eu freqüento. Hoje mesmo; ontem eu fui na Bernadete, hoje eu fui lá outra vez. É casa espirita, casa espirita e católico. Eu freqüento a igreja aqui em cima todo domingo (...) A... aquela de frente da passarela ali... Igreja católica mesmo. Nao tem a passarela aqui (aponta no sentido do Bairro Carlos Prates), é a primeira igreja que tem ali. (...) Eu freqüento. Leio o livro de Alan Kardec... tó lendo o livro dele; já li o livro dele, de Alan Kardec, agora tó lendo o Chico Xavier. Marcelo, ao falar das instituigoes, reafirma que é freqüente as mesmas, contudo, nao descreve mais a questao das doagoes, mas faz sua ligagao com as religióes. Assim, há, além da possibilidade de receber dogóes, a vivencia de urna religiosidade. Marcelo freqüenta a igreja católica e dedica-se á leitura de livros espiritas, formas de vivenciar sua religiosidade. Perguntamos sobre como se senté em relagao a essa vivencia da religiosidade e Marcelo responde. Nao... o importante pra mim eu tó ali livre, livre, ouvindo a palavra de Deus. Eu me sinto bem ta vendo; que eu já fui obreiro de casa de recuperagao. Hora dessas eu tava dando culto pras outras pessoas que tava chegando. Ai eu peguei e desviei disso tudinho, mas eu gosto de ir; eu me sinto bem, eu gosto de ler o livro de Alan Kardec, só que é um livro que vocé nao pode Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 241 cair em fundamento dele demais senao ó (faz sinal rodando o dedo indicador em volta do ouvido como quem diz: "fica doido"). Ele conta entre o vivo e o mortal, é muita coisa? Para Marcelo, o que importa é o fato de se sentir livre ao ouvir a palavra de Deus. O sentimento é de sentir-se bem; Deus possibilita a vivencia de urna liberdade. Marcelo relembra o tempo em que se dedicava de forma mais direta a urna religiosidade sendo obreiro. Entra entao o sentimento de ter se desviado do caminho que seguia e que poderia té-lo levado em outra diregao, pois poderia estar, naquele momento da entrevista, fazendo culto e recebendo outras pessoas. Reafirma que gosta de freqüentar e sente-se bem com a religiosidade. Marcelo, porém, faz urna advertencia a si mesmo, pois entrar em fundamentos do espiritismo pode deixá-lo confuso. O mundo dos vivos e dos moríais é algo que o confunde. Porém, analisando o discurso de Marcelo, esta nao é a principal quesíao da religiao, nao esíá o principal foco em acrediíar ou nao. Eu nao acrediío mas... eu paro pra mediíar; pra ver né, o que vai dar no fuíuro. Eu espero no fuíuro, passado é museu (...) A véio... eu espero muiía coisa melhor ainda aíé quando Deus me chamar viu. Melhores... basíaníe melhoras pra mim. Deus e a religiosidade para Marcelo esíao na esfera da liberdade e oferecem a possibilidade de pensar no fuíuro, um fuíuro difereníe e cheio de melhoras. Marcelo projeía no fuíuro porque passado é museu. Aíé que Deus o chame, que se enconíre com a moríe, Marcelo ainda espera muiías melhoras. Há aqui a possibilidade de urna íranscendéncia. ... ai foi passado, e agora nao, eu ío querendo é viver o fuíuro. Quero viver o fuíuro... quero viver o fuíuro. Tó esforgando, ío írabalhando, ío pedindo a Deus iodo dia, íoda hora. Vem aíribulagao? Vem. Vem "lero lero" no seu ouvido? Vem. Eníao eu passo a régua naquilo e saio fora. Novameníe Marcelo expressa o seníimenío de que o passado ficou e resía viver o fuíuro. Ele se esforga e esíá pedindo a Deus. Apesar das íribulagoes, ele passa por cima e segué em freníe. Deus é vivenciado eníao como urna foníe de forga para a superagao. Marcelo vivencia a religiao íambém falando de Deus, mas, para falar de Deus, segundo ele, há que ser fiel. Pra falar de Deus vocé íem que ser fiel a ele, fiel a ele. Nao é só falar de Deus aqui e amanha vocé virar as cosías pra ele, vocé íem que ser fiel. Eu sou um camarada normal, eu falo de Deus, assim, na hora certa e no momenío certo. Eníao quando íem urna palesíra nessas igrejas ai que a geníe vai, nessas casas de recuperagao onde que, doagao, eles dao oportunidade, eu falo, mas, íem de falar de coragao. Falar por falar nao vence barreiras. Para falar de Deus é necessário que seja fiel a ele. A fidelidade a Deus esíá em nao virar as cosías para ele. Assim, Marcelo fala de Deus na hora certa e no momenío cerío, mas essa fala íem de ser de coragao, pois falar por falar nao vence barreiras. Há em Marcelo urna preocupagao em saber se sua fala é de coragao, mas quem pode julgar é apenas Deus. Mas ele fala com Deus íirando o seu momenío com o íranscendeníe. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 249 Olha... eu falo... Eu tiro o meu momento, é eu e ele, é pra mim e ele. Ai ele lá que vai, vai me julgar, se eu to falando a sinceridade com ele ou se eu to jogando de boca pra fora contra ele. Assim, ao poucos, Marcelo vai desenhando em seu discurso a influencia positiva que a religiosidade exerce em suas vivencias. O momento tirado para falar com Deus mantém um canal que o liga a um ser que está presente e o ajuda em seus momentos de necessidade. Deus é sentido como alguém que ajuda. Já... me ajudou. Me ajudou muito porque... eu fiquei nove meses numa cadeira de rodas; stress de cachaga e nao se alimentar, fiquei nove meses na cadeira de rodas. Hoje ele me colocou do jeito que eu to aqui; do jeito que eu andei isso tudo ai. Hoje eu me sinto tranquilo, ele me ajudou. O uso intenso de bebida alcoolica causa em Marcelo serios problemas de saúde que acabam por prejudicá-lo. Há urna limitagao física, que, segundo ele, durou nove meses. Foi comunicado por médicos que havia a possibilidade dele permanecer sem movimento na pernas, mas Deus o levanta; ele me colocou do jeito que eu to aqui. Isso traz um sentimento de tranqüilidade e o reconhecimento de que foi ajudado em seu momento de dificuldade. Marcelo ressalta, porém, que isso nao se deu de modo ¡solado; a sua participagao se deu pelo sentimento da fé. Mas eu peguei com fé a ele, lutando, eu conseguí levantar, ele me levantou, mas através de mim e com fé com ele, hoje ele me colocou em cima, ai ó. Se nao fosse ele se acha que eu... "á... eu já to é ruim mesmo; num barco dN 'agua, a agua já entornou mesmo do balde, agora deixa e vó viver o resto da minha vida na cadeira de roda". Hora dessa eu tava aqui falando com vocé numa cadeira de rodas se eu deixasse, mas, ele diz: "Vai que eu te ajudarei; agora, se esforga. Se vocé nao se esforgar... vai depender de vocé; que eu vou te ajudar, se esforga". Marcelo senté que Deus o levanta, mas através dele mesmo, de sua fé. Ele "pegou com fé" e Deus o colocou em cima. Ao mesmo tempo Marcelo aponta que se fosse apenas por ele, nao teria superado o problema. Se nao fosse ele (Deus), Marcelo senté que poderia ter se conformado e ficado sem andar, hora dessa eu tava aqui falando com vocé numa cadeira de rodas se eu deixasse. Ao finalizar esse trecho, ele expressa o sentimento que tem com relagao a Deus como alguém que ajuda o humano, mas exige do mesmo que faga um esforgo. A ajuda de Deus é certa, dependendo do esforgo ou nao do humano, vai depender de vocé. Cai e me levantei. De lá pra cá, desde aquele dia que eu cai aqui, até hoje o álcool tá fora, nao coloco. Com fé em Deus, igual os outro fala ai.. "Com fé em Deus nunca mais eu ponho essa peste desse trem na minha boca." Eu nao falo isso, enquanto que eu tiver forga, forga de vontade e disposigao eu vou lutar contra ela. Agora eu nao vou falar com fé em Deus eu nao vou... ai ele cai, ele bebe, ai o outro fala, uai fulano, se falou que... "A... Deus virou as costas pra mim", ele nao vira as costas pra ninguém nao, vocé que escolheu voltar pelo caminho que vocé tava, nao conseguiu seguir ele. Eu nao coloco ninguém, eu me coloco eu. Por que eu vou Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 243 falar, a Deus virou as costas, Deus nao vira as costas pra ninguém nao, nois que procura. Marcelo traz entao em questao urna de suas dificuldades para exemplificar a ajuda de Deus e o esforgo daquele que pede; que busca mudanga. Assim, ao analisar sua própria vida, ele afirma que caiu e se levantou. Fala entao de urna situagao em que passou mal novamente devido ao uso do álcool e que, após isso, está sem beber. Contextualiza entao a fala de outras pessoas que afirmam que com fé em Deus deixarao de beber, ou de fazer outras coisas. Já Marcelo fala que o importante é sua forga de vontade e a disposigao de lutar, no caso, contra a dependencia. Para Marcelo, o fato concreto é de que Deus nao vira as costas pra ninguém, é a própria pessoa que escolhe voltar por um caminho que difere do caminho de Deus, nao conseguiu seguir a ele. Finaliza esse trecho de sua fala reafirmando a questao da escolha inerente ao humano. O caminho de Deus para Marcelo é o de deixar a bebida, mais que isso, o caminho de superar um situagao; de mudar urna realidade. Quando pego a Marcelo que fale sobre o seu sentido de vida, ele traz aquilo que para ele é de fundamental importancia e que pode tirá-lo da condigao de morador de rúa: a conquista de urna casa. Quer dizer, se eu tendo a minha casa ai sim eu vou ter o meu horario de acordar, eu nao vou ficar dependendo dos outros pra comer a hora que eles quer dar. Se eu nao quizer comer eu nao vou comer porque eu nao quis fazer, agora enquanto cé tiver dependendo da ajuda dos outros, cé tem que ser capacho deles né? Fazer a hora deles. Ter a própria casa aponta para a possibilidade de nao ser dependente de outros, ter a sua hora para fazer suas coisas e a condigao de nao ser capacho de outra pessoa. Ter a vida própria para Marcelo é ter um emprego e o seu dinheiro, o que Ihe traria urna vida digna. Viver na rúa para Marcelo é nao viver, é ser jogado pelos outros. O meu projeto agora, que eu to vivendo agora, meu único projeto, eu quero conseguir um emprego, sabendo? Té urna vida digna, urna vida digna que eu posso ter emprego, ter o meu dinheiro e ter a minha vida. Porque na rúa a gente nao véve; véve jogado pelos outros ai, na mao de um, hoje ta aqui, amanha ta ali, ta sentado no banco de urna praga; amanha vocé tá sentado ne outro banco de outra praga, ai vocé chega lá pra cima (Se refere a ir dormir no albergue) vocé vé aquele monte de gente falando só "Iheira"... "Eu já fui cadeeiro, já matei, já roubei, fui traficante". Mas o que? Tá ali comendo no mesmo prato. Marcelo se refere ao assunto dos outros moradores de rúa como um discurso vazio, Iheira. Ressalta apenas falas que mostram o lado negativo que muitas vezes marcam, rotulam, pessoas ñas rúas como ex-presidiário; alguém que matou ou roubou. Para Marcelo vale, entretanto, o fato de que ali nao há diferenga entre as pessoas; estao todas na mesma situagao de vida ñas rúas. Agora vocé tando na sua casa é vocé e vocé, ta vendo? Mas enquanto nao tem; tem que ficar ouvindo asneira, até que um dia Deus olhe pra vocé. "Nao... vocé merece, eu vou tirar vocé desse lamagal, vou te colocar numa outra vida melhor, vou te dar um plano de vida melhor". O Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 244 meu pjano de vida nesse momento, eu quero o que? É ter um emprego, urna vida digna; urna vida digna. Dono do meu nariz, nao do nariz dos outros. Ser dono do meu nariz, se eu falar que eu nao quero hoje eu nao quero. Enquanto se está vivendo ñas rúas é inevitável ouvir "asneiras" de outras pessoas que estao na mesma condigao. Asneiras aqui se refere a esse conteúdo das falas marcado por violencia e uso de drogas, o que nao agrada Marcelo. Novamente surgem em sua fala elementos da religiosidade quando ele afirma que essa situagao pode mudar quando Deus olhar para sua situagao. O merecimento, talvez pelo sofrimento já vivido, alimenta o sentimento de que Deus pode tirá-lo desse lamagal. Deus favorece a busca de urna vida digna e de ser dono de si mesmo. Finalizando, pego a Marcelo que fale sobre o seu sentimento com relagao á morte, e entao ele faz algumas colocagoes que novamente apontam para sua ligagao com o transcendente. Agora sobre respeito á morte, ai meu amigo, ai ficou encrencado. Só o pai e o filho e o espirito santo que vai saber qual é o seu dia e qual é sua hora, se chegar hoje, no momento em que eu descer essa escada ai, ele me levar, fazer o que? É ele que quis, nao foi eu. Ou eu sair daqui até chegar la em cima, posso me deitar e nao posso me levantar também. É a vida dele uai, ele que sabe, ele que faz o controle da nossa vida, nao sao nóis aqui nao, em carnal aqui na térra nao. Quem faz o nosso dia-a-dia é ele. Vou te descansar e vou te alertar pra vocé no outro dia. Assim como entrega sua vida "na mao" de Deus, Marcelo diz que só o pai, o filho e o espirito santo vai saber qual é o dia e a hora da morte e, quando ela chegar, nada se pode fazer. A vida é de Deus e ele é quem sabe da vida do homem, ele que faz o controle da nossa vida. IV.II. Refletindo sobre Marcelo É possível pensar que há um sentido de vida nos moradores de rúa, ou essas pessoas, mergulhadas na esfera da necessidade, perderam o sentido de suas existencias e vivem de maneira errante pelo mundo? A partir das análises dos relatos de Marcelo, é possível perceber que há urna pergunta pelo sentido que perpassa o discurso do mesmo e a religiosidade aparece como possibilidade de poder ser urna resposta para tais questoes, nao a única. Talvez nao se identifica um sentido geral e fechado para a vida no discurso dessa pessoa, mas há elementos de urna constante busca de sentido. Frankl (1948/2007) afirma que nao é o ser humano quem faz a pergunta pelo sentido da vida, mas ao contrario, ele é interrogado pela vida e deve dar respostas, que serao sempre dadas através de atos. As perguntas vitáis só podem ser respondidas, segundo Frankl, pelas agoes. As respostas sao dadas pela responsabilidade assumida pela existencia em cada situagao. A existencia só pode ser de cada um se for responsável. Para o Existencialismo e a Logoterapia, o verdadeiro ser humano nao é aquele que é movido por instintos, mas é um ser que decide, responsável. O humano comega onde deixa de ser impelido, determinado. Ele acaba quando deixa de ser responsável. Ao se analisar as vivencias relatadas por Marcelo, notam-se elementos que se referem, de alguma forma, á questao do sentido. Por um lado, há a perda do sentido de vida que se manifesta em atitudes de descuido para com o próprio ser, por outro, há também momentos em que o entrevistado aponta para a busca do Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 245 sentido de vida. Se o mesmo ainda nao foi encontrado, ele nao perdeu também a nogao dessa busca. A situagao de vida ñas rúas é marcada pela exclusao social e pelo sofrimento físico e psíquico. Pode-se afirmar que, frente a condigoes tao adversas de existencia, aquele que vive ñas rúas vive numa situagao-limite. Muitos elementos e vivencias de seu dia-a-dia podem indicar a ausencia de sentido e a possibilidade da morte, tanto a física quanto a morte das possibilidades. Escorel (2000) chega a afirmar que, frente a tantas condigoes adversas, existem pessoas que sobrevivem de teimosas, cita como exemplo, os moradores de rúa. O que a autora chama de teimosia pode-se entender em Frankl (1948/2007), e exemplificado por Marcelo, como sentido de vida, um motivo para permanecer vivo. Mesmo com um cenário negativo é possível encontrar um sentido para a vida. Conforme Frankl (1948/2007), há sentido em qualquer situagao, mesmo no suicidio. Marcelo dá um exemplo dessa busca que o morador de rúa faz pelo sentido, por algo que possa orientar e dar sustentagao á vida ñas rúas. Nao encontrei ainda o que eu quería encontrar, mas eu sei que até chegar lá eu ainda vou encontrar meu objetivo ainda. Nota-se entao que há urna procura por esse algo que preenche o vazio da existencia. Isso vai também ao encontró do que afirma Frankl (1948/2007) que o que importa nao é dar sentido, mas encontrar um sentido. A vida equivale assim a um enigma a ser decifrado. O sentido nao pode ser inventado, mas precisa ser descoberto. Descobrir o sentido é, assim, algo único e individual e faz parte da responsabilidade de cada ser humano para consigo próprio. Na fala do entrevistado, há a expressao marcante de um desejo de se conseguir trabalho. Nao afirmamos que o trabalho constitui-se como um sentido, mas, pode estar como a representar um sentido maior. O trabalho e mesmo o desejo de fazer cursos sao encarados como a possibilidade de saída da situagao de rúa. Estao a servigo da transcendencia, á medida que podem permitir a essas pessoas que estao vivendo ñas rúas urna mudanga. Há a possibilidade de se desprender da rúa, do ¡mediato e almejar algo futuro. Neste sentido o desejo de um trabalho fixo pode ser entendido como um desejo de se constituírem vínculos estaveis. Pode-se ver na fala de ambos essa expressao pelo desejo do trabalho. Marcelo diz que meu projeto agora, que eu to vivendo agora, meu único projeto, eu quero conseguir um emprego, sabendo? Té urna vida digna, urna vida digna que eu posso ter emprego, ter o meu dinheiro e ter a minha vida. Segundo Frankl (1948/2007), o sentido nao se refere apenas a urna situagao determinada, mas também a urna pessoa determinada que está envolvida numa situagao determinada. Nao só se modifica, como é diferente de pessoa para pessoa. Estar vivendo ñas rúas é assim urna morte. É a morte das possibilidades e a perda do sentido de vida. Os caminhos que apontarem assim para a superagao dessa situagao de vida estao a servigo da busca pelo sentido, pelo sentido de se reencontrar enquanto ser humano, livre e responsável. Marcelo, ao falar sobre sua vida e sua vinda para as rúas, analisa entao sua existencia como um todo. O fato de nao encontrar um sentido que oriente sua vida é sentido entao como um fracasso de si mesmo. Eu vou falar aqui a verdade; do jeito que eu tó vivendo, nao tó vivendo... a vida, quem faz a vida é vocé, eu nao reclamo nada da vida, eu nao reclamo... igual eu falei, se eu tó desse jeito. Eu podia passar a borracha naquilo lá da morte da minha mulher e entregar na mao de Deus e continuar a minha vida. Hoje eu tava um homem aposentado pelo porto, tinha minha casa, tinha tudo. Mas eu... eu fui um fracasso de mim Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 245 mesmo. Eu fui fracasso, eu mesmo me fracassei, eu fracassei. Ao mesmo tempo o entrevistado mantém a firme convicgao de que irá superar sua situagao e encontrar algo, urna mudanga. Esse ideal tem-no motivado a fazer agoes concretas para que possa alcangar tais mudangas. Um exemplo dessas agoes é o fato de o mesmo diminuir o uso da bebida. Assim, o sentimento de algo a ser alcangado e mudado aparece como a manifestagao de um sentido. Eu acredito que um dia eu pelejo e vou passar por cima, eu nao vou ficar nessa pro resto da minha vida, ou senao eu vou pra eternidade.(...) Mas eu acredito, até o final da minha vida, eu tenho certeza que eu vou ter urna mudanga, nao sei como mas eu vou ter urna mudanga. (...) O meu sonho mesmo é ter urna casa, um canto pra mim mesmo, um emprego pra mim mesmo. Ai eu levanto, eu já vou deitar sabendo que amanha eu já sei pra onde que eu vou. Agora viver numa vida dessa ai num dá né? Esta fala de Marcelo mostra a saída de urna situagao e o desejo de se langar em algo diferente. É um sinal da transcendencia que se faz presente, impulsionando-o ao caminho de encontrar o sentido. Na realidade, a existencia humana sempre já vai além de si mesma, já está sempre indicando um sentido. Neste sentido o que importa á existencia humana nao é prazer ou poder, nem autorealizagao, mas antes o cumprimento de sentido. Na Logoterapia falamos de urna vontade de sentido. O sentido é urna barreira além da qual nao podemos avangar, mas que simplesmente precisamos aceitar: esse sentido último temos que aceitar porque nao podemos perguntar além dele; pois se tentarmos responder á pergunta pelo sentido do ser, já se pressupoe o ser de sentido" (Frankl, 1948/2007, p. 76) Ou seja, para Frankl (1948/2007), há um sentido maior que nao é apreensível ao humano por meios humanos. Aqui deixa de aparecer o sentido apreensível, no qual nao há possibilidade de se acessar por meios racionáis; entra em cena a fé em algo maior. Segundo Frankl (1948/2007), o crer nao é apenas urna fé em Deus, mas urna fé mais abrangente em um sentido. Fazer a pergunta pelo sentido da vida significa ser religioso. Frankl (1948/2007) afirma que a consciéncia é um órgao de sentido que orienta o homem a buscar encontrar o mesmo em todas as situagoes. Contudo, Frankl (1948/2007) ressalta que a própria consciéncia pode se engañar. A consciéncia também pode engañar a pessoa. Mais ainda: até o último instante, até o último suspiro a pessoa nao sabe se ela realmente cumpriu o sentido de sua vida ou se ela apenas se enganou. (...) o fato de que nem no nosso leito de morte saberemos se o órgao de sentido, nossa consciéncia, em última análise nao foi vítima de urna ilusao de sentido também implica que urna pessoa nao sabe se nao é a consciéncia do outro que tinha razao. Isso nao quer dizer que nao exista verdade. Somente pode haver urna Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 247 verdade; mas ninguém pode saber se é ele e nao o outro que a possui (pp. 85-6) A partir de Frankl (1948/2007), pode-se afirmar que é sobre esse sentido real, apreensível e calcado na vida presente a que podemos ter acesso. O sentido ampio, aquele que diz de toda urna vida, nao se pode acessar ¡mediato, mas a partir da apreensao desse sentido colocado em cada situagao é que se abre terreno para o acesso a esse sentido maior. Nao se pode negar esse sentido ampio. Ao iniciarmos nossa discussao sobre o sentido na acepgao da Logoterapia, já mencionamos que o sentido se refere ao sentido concreto de urna situagao com a qual urna pessoa igualmente concreta é confrontada. Além disso, existe lógicamente um sentido último, mais ampio. Porém, quanto mais ampio for o sentido, menos compreensível será. Trata-se do sentido do todo, do sentido da vida como um todo. E acredito nao ser digno de um Psiquiatra, ou de qualquer cientista, negar de antemao a simples possibilidade de um tal sentido universal com base em pressupostos apriorísticos ou doutrinagoes ideológicas (Frankl, 1948/2007, p. 104). I V . I I I . Consideracoes fináis Ao final deste trabalho, cabe ressaltar que o mesmo é urna tentativa de langar um olhar compreensivo sobre temáticas emergentes na sociedade. Dada a complexidade dos mesmos, tornam-se necessários maiores aprofundamentos. Cabe ressaltar que o mesmo revela um olhar diferente sobre a figura do morador de rúa. O senso comum e o preconceito que muitas vezes impera sobre esse grupo populacional ao qual se denominou populagao de rúa, nega muitas vezes o que iguala o morador de rúa a qualquer outro cidadao, a humanidade. Por humanidade podemos entender, em Frankl (1948/2007), a capacidade de dotar a existencia de sentido. Ao ouvir um morador de rúa o que pudemos notar foi que o mesmo possui urna historia de vida e, a condigao de morar ñas rúas, faz com que viva a pergunta pelo sentido de urna maneira intensa. Vivendo em condigoes tao antagónicas, nota-se que o risco de morte iminente e a precariedade dos recursos em que convive o morador de rúa, faz com que a busca de sentido se faga presente. Se o sentido ainda nao foi encontrado, há urna pergunta que nao cessa de ser feita. O sentido pode ser encarado como algo que favorece a vida e a continuidade desta vida, ainda que tantas coisas ajam em movimento contrario. Pode-se mostrar também que a religiosidade e, para além déla, a espiritualidade, aparecem como fonte de sentido e devem ser levadas em conta como um componente importante da subjetividade destas pessoas. Cabe aos profissionais que trabalham com este público nao negar essas características, pois, podem as mesmas interferir de maneira positiva na saída das rúas e na superagao dessa condigao de vulnerabilidade. Referencias Amatuzzi, M. M. (1999). Desenvolvimento psicológico e desenvolvimento religioso: urna hipótese descritiva. Em M. Massimi & M. Mahfoud (Orgs.). Diante do misterio: psicología e senso religioso (pp. 123-140). Sao Paulo: Loyola. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 24.S Amatuzzi, M. M. (2001). Esbogo de teoria do desenvolvimento religioso. Em G. J. Paiva (Org.). Entre necessidade e desejo: diálogos da psicología com a religiao (pp. 25-51). Sao Paulo. Araújo, C. H. (2000) Migragoes e vida ñas rúas. Em M. Bursztyn (Org.). No meio da rúa: nómades, excluidos e viradores (pp. 88-120). Rio de Janeiro: Garamond. Critelli, D. M. (2002, 10 de outubro). Pensar a vida, saltar o abismo. Folha de Sao Paulo, Folha e equilibrio, 4. Escorel, S. (2000). Vivendo de teimosos: moradores de rúa da cidade do Rio de Janeiro. Em M. Bursztyn (Org.). No meio da rúa: nómades, excluidos e viradores (pp. 139-171). Rio de Janeiro: Garamond. Feijoo, A. M. L. C. (2000). A escuta e a fala em psicoterapia: urna proposta fenomenológico-existencial. Sao Paulo: Vetor. Forguieri, Y. C. (1993). Psicología fenomenológica: fundamentos, método e pesquisas. Sao Paulo: Pioneira. Frankl, V. E. (2007). A presenga ignorada de Deus (10a ed.). (W. O. Schlupp & H. H. Reinhold, Trads.). Sao Leopoldo, RS: Sinodal; Petrópolis, RJ: Vozes. (Original publicado em 1948). Frankl, V. E. (2008). Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentragáo (25a ed.). (W. O. Schlupp & C. C. Aveline, Trads.). Sao Leopoldo, RS: Sinodal; Petrópolis, RJ: Vozes. (Original publicado em 1946). Giussani, L. (2009). O senso religioso (P. A. E. Oliveira, Trad.). Brasilia: Universa. (Original publicado em 1986). Mahfoud, M & Coelho Júnior, A. G. (2001). As dimensoes espiritual e religiosa da experiencia humana: distingoes e inter-relagoes na obra de Viktor Frankl. Psicología USP, 12 (2), 95-103. Retirado em 01/04/2010, da World Wide Web: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=s010365642001000200006&script=sci_arttext Massimi, M. & Mahfoud, M (1999). Senso religioso: dinamismo da experiencia, desafio para a Psicología. Em M. Massimi & M. Mahfoud (Orgs.). Diante do misterio: psicología e senso religioso (pp. 11-14). Sao Paulo: Loyola. Ministerio do desenvolvimento social e combate á fome (2006). 2o Censo da populagao em situagáo de rúa e análise qualitativa da situagao dessa populagao em Belo Horizonte: meta 10 - Realizagao de agóes de atendimento sócio-assistencial, de inclusao produtiva e capacitagao para populagao de rúa. Belo Horizonte: Autor. Vieira, M. A. C, Bezerra, E. M. R. & Rosa, C. M. M. (Orgs.). (1994). Populagao de rúa: quem é, como vive, como é vista (2a ed.). Sao Paulo: Hucitec. (Original publicado em 1992). Yalom, I. D. (1984). Psicoterapia Existencia! (Diorki, Trad.). Barcelona, España: Herder. (Original publicado em 1980). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Guimaraes, A. G. C. & Moreira, J. O. (2011). A religiosidade do morador de rúa e o sentido de vida: o caso Marcelo. Memorándum, 20, 225-249. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 249 Nota (1) Artigo escrito a partir da dissertagao de mestrado "A religiosidade de moradores de rúa da cidade Belo Horizonte: urna via de subjetivagao" defendida pelo mestrando Aluizio G. de C. Guimaraes sob a supervisao da Profa. Dra. Jacqueline de Oliveira Moreira. Nota sobre os autores Aluizio Geraldo de Carvalho Guimaraes - Psicólogo, pós-graduado em Psicología Clínica Fenomenológica Existencial pela FEAD Minas, Mestre em Psicología pela PUC Minas, Coordenador do Centro de Referencia da Populagao de Rúa de Belo Horizonte. Contato: [email protected] Jacqueline de Oliveira Moreira - Doutora em Psicología Clínica pela PUC/SP, Mestre em Filosofía pela UFMG, Professora do Programa de Pós-graduagao em Psicología na PUC/MG (M/D), Psicóloga Clínica. Contato: [email protected] Data de recebimento: 12/01/2011 Data de aceite: 22/05/2011 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/guimaraesmoreira01 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos Autobiographical source as a resource for apprehending the process of elaborating experience in the history of psychological knowledge Marina Massimi Universidade de Sao Paulo Brasil Resumo O artigo discute a pertinencia da fonte autobiográfica como material documentário para a reconstituigáo histórica dos saberes psicológicos no ámbito da cultura, á luz das propostas de alguns autores contemporáneos a respeito deste tema (Zambrano, Courcelle, Hadot, Gurevic). Nesta perspectiva, relata também algumas etapas importantes da historia deste género literario, tendo como ponto de partida a contribuigáo de Agostinho de Hipona, sua influencia ao longo da Idade Media e as continuidades e as transformagoes do género na Idade Moderna (Montaigne, Cardano, Vico, Teresa de Ávila, Rousseau). Palavras-chave: fonte autobiográfica; Agostinho de Hipona; Montaigne; Rousseau. Abstract The article discusses the pertinence of autobiographical source as a document for the reconstruction of the history of psychological knowledge in the culture realm, under the light of the proposals of some contemporaneous writers who address this theme (Zambrano, Courcelle, Hadot, Gurevic). From this perspective, the article also deepens some important stages of the history of the genre, taking as its starting point the contribution of Augustine of Hippo, his fortune during the Middle Ages, and the continuities and transformations of genre in the Modern Age (Montaigne, Cardano, Vico, Teresa de Avila, Rousseau). Keywords: autobiographical source; Augustine of Hippo; Montaigne; Rousseau. Introdugáo A fonte autobiográfica pode ser investigada segundo diferentes perspectivas: dentre outros, buscaremos neste artigo destacar sua pertinencia enquanto material documentário para a reconstituigao histórica dos saberes psicológicos no ámbito da cultura. Com efeito, a narrativa autobiográfica transmite, entre outros, também o conhecimento das dinámicas psicológicas vivenciadas ao longo da elaboragáo do percurso pessoal, conhecimento este adquirido e relatado pelo próprio sujeitoautor. O género autobiográfico e especialmente a confissáo tiveram urna grande difusáo na cultura ocidental: no percurso histórico da escrita e difusáo deste tipo de fontes podem ser evidenciadas continuidades e transformagoes do género, que seráo apresentadas brevemente ao longo deste texto. Urna definigáo de autobiografía: a vida de urna pessoa narrada por si própria De acordó com Georg Misch (1878-1965), a autobiografía surge como um género definido no século XVIII e refere-se a qualquer descrigáo (grafa) da vida (bios) de um individuo escrita por ele mesmo (auto) (Misch, 1907/1950). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboragao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 y A fonte de natureza autobiográfica - sendo a autobiografía um género literario presente ñas diversas sociedades em diversos períodos do tempo - constitui-se num importante recurso para a apreensao das diversas modalidades de elaboragao da experiencia humana ao longo da historia cultural (Alberti, 1991; Biezma, Castillo & Picazo, 1994; Bruss, 1994; Campos, 1992; Candido, 1987; Rocha, 1992). Sabemos que o próprio entendimento do conceito de experiencia na cultura ocidental deve ser acompanhado ao longo do processo histórico, tendo passado por profundas transformagoes (Massimi & Mahfoud, 2007; Mahfoud & Massimi, 2008) e que se trata de urna nogao central em todo tipo de conhecimento psicológico. A autobiografía é um conhecimento reflexivo elaborado em forma escrita que o autor faz de sua própria experiencia. O estudo de fontes autobiográficas na perspectiva da historia dos saberes psicológicos exige, portanto, a atengao aos significados da conceituagoes da experiencia implícitas na elaboragao dessas fontes. A abordagem á fenomenológica fonte autobiográfica numa perspectiva histórica Tendo o objetivo de definir urna adequada metodología de abordagem das fontes autobiográficas, cabe retomar o que foi proposto por Stein em Introdugáo a filosofía (1919-32/2001). Segundo esta autora, a fonte autobiográfica relata acontecimentos potencialmente submetidos a dois tipos de ordens: a ordem causal (ou seja, a apreensao das conexoes necessárias, como, por exemplo, as leis naturais inerentes ao ambiente e ao corpo vivo da pessoa; ou as circunstancias determinantes de natureza histórica); e ordens de outro tipo (por exemplo, a ordem teleológica das motivagoes). No que diz respeito a este segundo tipo de conexoes, é preciso definir diferentes carnadas da experiencia individual que se pretende atingir e analisar: por exemplo, caso queiramos nos aproximar do núcleo da pessoa, a análise deve ser realizada até os niveis mais profundos (1). Stein (1919-32/2001) coloca que a análise deste tipo de fonte, realizada segundo a perspectiva histórica, compreende as etapas da determinagao e da interpretagao. Por determinagao, entende-se a verificagao do contexto (espacial e temporal) em cujo ámbito se encontra o testemunho. Esta verificagao permite apreender o sentido do testemunho no universo contextual em que foi concebido: o contexto sócio-cultural e histórico como também o contexto das vivencias e da historia individual. Neste segundo aspecto, a determinagao desemboca na interpretagao, a qual consiste na apreensao da vida espiritual de quem dá o testemunho (diga-se, o escritor da autobiografía). Com efeito, alcangamos a interpretagao quando o conteúdo do testemunho é descoberto em sua determinagao individual. Segundo Stein (1919-32/2001), a determinagao em si nao precisa atingir este estadio, podendo-se interromper a investigagao histórica num nivel anterior, sem alcangar o pleno conteúdo de significado da fonte. Todavía, um conhecimento histórico que nao alcance a interpretagao, é realizado parcialmente. Por outro lado, é possível também que a interpretagao do documento proceda de modo independente de urna rigorosa determinagao histórica: isto poderá ocorrer no caso em que urna carta seja tomada apenas como expressao da personalidade de seu autor, ou do relacionamento deste com a pessoa do destinatario, ou da singular condigao vital descrita por quem escreve, sem que seja estabelecida urna conexao de sentido de tipo espago-temporal, faltando a qual nao obtemos porém, o conhecimento histórico no sentido próprio do termo. Stein (1919-32/2001) observa que existe urna relagao importante entre os conteúdos de sentido individual e a insergao num contexto espago-temporal ordenado: de fato, cada conexao que se desenvolve no tempo e espago é também conexao de sentido e, ao mesmo tempo, os conteúdos de sentido pertencem á conexao espago-temporal, nao podendo ser integralmente conhecidos se nao forem inseridos em tal contexto. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboragao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 i- Urna interpretagao histórica adequada, portanto, exige dois movimentos: adentrar na situagao espiritual individual que o testemunho expressa; e compreender seu significado no contexto geral do acontecimento histórico específico. Mesmo que tais objetivos possam ser realizados pela pesquisa histórica apenas parcialmente, eles permanecem sendo indispensável horizonte de conhecimento. Ainda numa perspectiva fenomenológica, Binswanger (1955/2007) define a autobiografía como relato da historia pessoal em que o autor ao realizar a narrativa escrita, elabora suas vivencias: a autobiografía acontece na medida em que diante destas vivencias o autor assume um posicionamento. Tomando como sentido originario da autobiografía as Confíssóes de Agostinho de Hipona, Binswanger (1955/2007) coloca que um evento (também externo) se torna conteúdo motivacional quando diante dele o sujeito assume determinado posicionamento interior. A elaboragao deste conteúdo motivacional inclui o reconhecimento e a interpretagao conceitual do mesmo, como também o ato de por em evidencia suas conseqüéncias vitáis e espirituais. Em outras palavras, a elaboragao acontece quando qualquer conteúdo motivacional é tomado pelo sujeito como pergunta destinada á sua pessoa: qual decisao vocé se propoe a tomar? Neste posicionamento se plasma a personalidade do sujeito. Cabe assinalar também o caráter pessoal destes atos: as possibilidades de posicionamento de cada individuo sao diferentes. Diversidade das fontes de natureza autobiográfica e alguns marcos na historia do género Urna vez definida sucintamente a natureza da fonte autobiográfica, deve-se considerar a existencia de diversos tipos de fontes que podem ser tomadas como próprias deste género: os diarios, ou seja, as anotagoes acerca de acontecimentos da vida cotidiana; as memorias, a saber, textos retrospectivos baseados no exercício da memoria pessoal do autor; a autobiografía propriamente dita que é a reconstrugao retrospectiva feita pelo autor acerca do percurso de sua própria vida {bios-grafía) em sua totalidade; a confissao, exposigao de si pela escrita realizada diante da presenga real ou imaginaria de um outro e destinada á leitura de um outro (por exemplo a obra de Agostinho); as reflexoes e ensaios, que sao textos escritos por um autor centrado em si mesmo e tendo como destinatario a si mesmo (Montaigne, Rousseau); a correspondencia epistolar. Ao longo do tempo, registra-se a emergencia de um, ou outro tipo de texto autobiográfico, sendo a permanencia deste género urna constante da historia do Ocidente. Ilustraremos agora sintéticamente alguns marcos significativos no percurso histórico de construgao e desenvolvimento do género autobiográfico, assim como sao assinalados por autores que se dedicaram ao estudo deste género, sem termos a pretensao de realizar urna reconstrugao histórica completa do mesmo. 1) A emergencia do género autobiográfico ñas Confíssóes de Agostinho O historiador francés Pierre Courcelle (1974/2001) ao reconstruir do ponto de vista histórico as motivagoes do interesse pelo conhecimento de si, no ámbito da cultura ocidental, coloca o marco originario destas motivagoes na filosofía grega, especialmente na filosofía socrática. No inicio de sua obra, afirma que o preceito socrático de conhecer-se a si mesmo gozou de urna continuidade ininterrupta deste a antiguidade até a Idade Moderna e reconstrói o percurso, de Sócrates, Cicero, o neo-estoicismo, passando pelo neo-platonismo e por Agostinho de Hipona, até Bernardo de Clairvaux e a tradigao monástica cisterciense. Dentre os autores citados que compoem esta tradigao, Agostinho (354-430) é o ponto de referencia. De fato, este autor inaugura, na obra Confíssóes (397-398), um método peculiar para o conhecimento de si mesmo, analisando em pormenores a estrutura interna do ato cognitivo que possibilita ao homem a auto-reflexao Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 i, (Biolo, 2000) e relatando os resultados obtidos numa narrativa elaborada em primeira pessoa. Nao abordaremos aqui a questáo dos fundamentos filosóficos da proposta deste autor, nos reservando faze-lo em outras oportunidades. Pretendemos neste texto apenas assinalar a importancia do ato que colocou na historia ocidental um texto escrito, em que a busca pelo conhecimento de si mesmo baseado no dinamismo da memoria e na reflexáo filosófica torna-se o eixo motor da narrativa. Por este motivo, Agostinho realiza urna reviravolta conceitual em relagáo aos gregos, substituindo a perspectiva cosmocéntrica pela antropocéntrica (Reale & Sini, 2006). Ñas Confíssoes, Agostinho (397-398/1987) revela a origem de sua investigagáo, quando ao narrar a experiencia de dor vivenciada pela morte de seu amigo mais caro, escreve que nesta circunstancia "quaestio mihi factus sum": "tinha-me transformado em um grande problema" (p. 80). Tal vivencia, segundo Arendt (1987, 2000), coincide em Agostinho com a descoberta da vida da interioridade. A autora nos remete também a outro texto significativo, o livro décimo do tratado De Trinitate, (notadamente os capítulos terceiro e sétimo), onde Agostinho (400416/1994) reflete sobre a dinámica do auto-conhecimento da alma e afirma ser "um surpreendente estudo, o da investigagáo de como a alma deve se buscar a si mesma e se encontrar, aonde deve se dirigir em sua busca e até onde chegar para se encontrar" (p. 324). A confissao é um posicionamento do eu, onde ato de conhecimento de si e ato da narrativa de si coincidem. A novidade das Confíssoes é a de serem, contemporáneamente, tematizagáo da pessoa enquanto objeto, e ato de conhecimento de si mesmo pela pessoa enquanto sujeito. Em Agostinho, elaboragáo do conceito de pessoa e proposta do método para o seu conhecimento constituem-se num acontecimento histórico único e unitario. A narrativa autobiográfica torna-se assim expressáo da unidade entre a vivencia e a pessoa; e difere por isto profundamente da modalidade em que o ato da introspecgáo foi concebido no nascer da Psicología científica no século XIX, como sendo desvinculado do conhecimento da pessoa apreendida em sua totalidade (Massimi, 2010). ¡números autores contemporáneos evidenciam a importancia deste ato fundador do género autobiográfico, analisando suas implicagoes do ponto de vista filosófico (Arendt, 1987; Gilson, 2007; Przywara, 1933/2007). Dentre eles, Zambrano (1946/2000) toma as Confíssoes de Agostinho, analisando nelas a dinámica psicológica e existencial que informa a narrativa autobiográfica. Em primeiro lugar, a autora destaca a exigencia de tornar-se visível, oferecer-se ao olhar do outro, a exposigáo de si ao olhar alheio, sendo, por si, agáo unificadora. "A quem eu contó estas coisas?": pergunta-se Agostinho. Este movimento constitui-se já como urna agáo de mudanga do eu. Em segundo lugar, a confissao sempre envolve urna dinámica afetiva: na narrativa, o autor busca afirmar o que ama e seu coragáo amante, de modo que conhecer-se a si mesmo corresponde também o afirmar-se como sujeito e objeto de amor. Em terceiro lugar, a confissao brota da exigencia de restabelecer a justiga, tomada como relacionamento de confianga entre os homens, num contexto dominado pela injustiga, pela confusáo entre os semelhantes. De fato, no livro décimo primeiro das Confíssoes, Agostinho declara que o ato de confessar-se responde ao objetivo de narrar-se aos seus semelhantes, ao género humano como um todo, mesmo que poucos leiam seus escritos. Ao revelar-se pela escrita autobiográfica, na totalidade de sua pessoa, ele quer expor ao leitor seu verdadeiro ser. Esta exposigáo nao demanda ao interlocutor um conhecimento direto do narrador, mas urna confianga em suas palavras baseada na certeza moral: o narrador dá conta de si ao outro e este poderá entender a razoabilidade de sua vida, acreditar nele, confiar nele e ama-lo. A confissao, portanto, mesmo quando realizada em solidáo, sempre tende a estabelecer urna relagáo intersubjetiva. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboragao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 i. Finalmente, Zambrano (1946/2000) destaca características peculiares da confissao na perspectiva de Agostinho que a particularizam em relagao as outras possibilidades de escrever urna autobiografía ou de realizar urna confissao. Na abordagem de Agostinho, "a confissao é falada", é "urna longa conversa que tem a mesma duragao da conversa real" (p. 37); ainda para este autor, a elaboragao da confissao responde á exigencia de sair da fragmentagao e de se aproximar da unidade, da "figura total faltante", realizando sua busca de algo que sustente e ilumine a existencia e carregando em si, juntamente ao sentimento da carencia de sua condigao presente, "a esperanga que aparega algo que ainda nao possuí" (p. 46). Destas características depende, segundo Zambrano (1946/2000), a atualidade da autobiografía enquanto expressao da subjetividade: Agostinho é o autor que "desvela a confissao com urna plenitude e clareza que nunca mais se alcangarao depois dele" (pp. 51-52, tradugao nossa), podendo, portanto, seu texto ser tomado como ponto de referencia para avahar os demais documentos autobiográficos produzidos ao longo do tempo. 2) A confissao e as autobiografías nos primordios do Ocidente É importante inserir a confissao no ampio universo da narrativa autobiográfica. Com efeito, a confissao é urna modalidade de narrativa autobiográfica que nao esgota as possibilidades do género, podendo ela também assumir feigóes diferentes ao longo do tempo e do espago, conforme as diferentes percepgóes de si mesmo vivenciadas pelo homem ocidental em sua historia e em sua cultura particular. Courcelle (1974-75/2001) assinala urna interessante diferenga entre tipos de escrita autobiográfica, a saber, os de matriz agostiniana e os modernos: os primeiros visam constituir-se em fontes para a construgao de urna antropología, para o estudo da condigao humana; ao passo que os segundos por diversas razóes renunciam a este objetivo e, portanto, nao se preocupam em propor um método rigoroso de conhecimento da subjetividade que inclusive possa ser aceito pela filosofía e pela ciencia, propondo-se a ser quase um espelho para o autor e o leitor que proporciona urna reflexao sobre suas vivencias pessoais. Acerca da significagao do relato autobiográfico na filosofía clássica ocidental, Hadot (2005) sinaliza que se trata de urna expressao inerente á concepgao do saber filosófico como arte de viver, estilo de vida, tradigao esta que se diferencia profundamente da visao da modernidade. Sao exemplares do tipo 'clássico' de escrita autobiográfica documentos como as Recordagoes do imperador romano Marcos Aurelio; ou alguns diarios espirituais de tradigao monástica. Ao dissertar acerca destas fontes, Hadot (2005) distancia-se da interpretagao dada por Foucault (1985) de que elas seriam expressivas de um exercício de conhecimento voltado a obter a "soberanía do individuo sobre si mesmo" (Hadot, 2005, p. 72). Hadot (2005) discorda desta interpretagao como sendo demasiadamente centrada no si mesmo, no cultivo e no gozo do eu e, portanto, moldada pela visao do homem da contemporaneidade. Hadot (2005) concorda com Foucault que a prática da cultura de si deriva do estoicismo e do epicurismo, mas assinala que cabe situar estas correntes filosóficas em sua época e é neste sentido que seria improprio e anacrónico afirmar que elas visam urna construgao do sujeito. Pelo contrario, segundo Hadot (2005), a cultura de si é um exercício, onde "o conteúdo psíquico (...) tem como núcleo o sentido do pertencer a urna totalidade: a totalidade da comunidade humana, ou a totalidade do cosmos" (p. 171, tradugao nossa). O sentido do pertencer é o fator que permite o auto-conhecimento. Neste ámbito, a escrita é recurso importante da cura de si: anotar pela escrita agóes e estados de ánimo significa expor-se á possibilidade do olhar de um outro, sendo, portanto, urna busca de universalizagao. Entender a escrita de si como urna especie de construgao de si mesmo como Foucault preconiza, seria segundo Hadot (2005) urna leitura anacrónica da tradigao antiga modelada no enfoque da subjetividade Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 i, moderna e pós-moderna. A escritura nao constituí o eu, mas muda o nivel do eu, universalizando-o: o individuo nao constrói sua identidade espiritual ao escrever (...) mas (o ato de escrever) permite que, ao se libertar da sua própria individualidade, quem escreve se eleve á universalidade. É, portanto, inexato falar da escritura de si (...) a escritura nao é o si. Como os demais exercícios espirituais, ele muda o nivel do eu - eleva-o em diregao áquela universalidade (p. 175). Por isto, em varios destes casos, como os já referidos exemplos, o valor da escritura é terapéutico e universal. Hadot (2005) refere que, segundo Atanásio, biógrafo do monge Antao, este teria recomendado aos discípulos que anotassem todas as agoes e os movimentos de seu ánimo, como visando desvela-los a outrem, de modo "que a escritura substitua o olhar do outro" (p. 175). Em suma, segundo Hadot (2005): O milagre deste exercício, praticado em solidáo, é que abre o aceso á universalidade da razao no tempo e no espago. (...). Quem escreve sente-se de algum modo observado, nao está mais só, mas é parte da comunidade humana silenciosamente presente. Expressando pela escrita os próprios atos pessoais, o escritor é tomado pela engrenagem da razao, da lógica, da universalidade. Desse modo, conteúdos que dantes poderiam ser confusos e subjetivos, adquirem objetividade (p. 175). A relagao do eu com a totalidade como contexto adequado para o conhecimento de si mesmo obtido pela narrativa parece ser, em suma, a característica peculiar do género autobiográfico neste período histórico da civilizagao ocidental. 3) Autobiografías na Idade Media Gurevic (1996) assinala que autobiografías no estilo das confissoes, elaboradas por autores eclesiásticos, proliferam na Idade Media tardia atestando urna intensa busca pelo auto-conhecimento. Gurevic (1996) discute diversos fatores do contexto sociocultural da época que podem ter contribuido ao aumento significativo da produgao deste tipo de fontes. Dentre eles aponta o fato de que no inicio do século XIII a confissao adquiriu nova significagao pela decisao do IV Concilio de Latrao, de 1215, de que todo fiel deveria confessar-se a um sacerdote, pelo menos urna vez ao ano. Duby (1994) também insiste acerca do fato de que esta medida, ao estender ao conjunto dos cristaos urna prática até entao reservada aos monges, provocou urna reviravolta, introduzindo o hábito da introspecgao na vida das pessoas. Os efeitos desta reviravolta serao evidentes um século mais tarde, numa nova concepgao da vida privada. Segundo Gurevic (1996), "a regra da confissao individual e secreta pressupunha a auto-análise do fiel" (p. 131, tradugao nossa) que devia analisar seu próprio comportamento a partir dos criterios da moral crista. Outro fator importante é o apelo cada vez mais exigente ao uso da razao individual para orientar agoes e comportamentos e para organizar as relagoes sociais, diante da crise das instituigoes tradicionais do universo sociocultural medieval. A escrita como elemento organizador do pensamento é um dos instrumentos que responde a esta exigencia de auto-ordenagao. As fontes assim produzidas nao podem, porém, serem tomadas como expressao direta da personalidade de seus autores. Com efeito, as autobiografías desta época propoem como criterio ordenador da vivencia, urna experiencia modelar, ou seja, o autor expressa suas experiencias Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 y assemelhando-as a alguma personagem de destaque da tradigao religiosa ou política. Ainda segundo Gurevic (1996), nao se trata de urna simples comparagao e sim da identificagao do eu do autor com o modelo apresentado até dissolver-se totalmente nele. Exemplos desta posigao se encontram em: De vita sua, sive monodiae do monge Guibert de Nogent (1053-1126); Libellus de suis tentatiounibus, varia fortuna et scriptis do monge da Bavária Otloh de At. Emmeran (1010-1070), ambos citados e analisados por Gurevic (1996). Em ambos os casos, as narrativas autobiográficas nao apresentam as vivencias de seus autores em sua singularidade, e sim oferecem aos leitores modelos exemplares. Assim como Hadot, Gurevic (1996) propoe importantes orientagoes metodológicas para lidar com estas fontes evitando anacronismos: afirma que é difundida a tentativa de "compreender a personalidade do homem medieval aplicando a esta mensuragoes modernas" (p. 136). O anacronismo da historiografía do século XIX aplicava aos medievais os criterios ideológicos da idade moderna (ceticismo, racionalismo, livre pensamento); o mesmo anacronismo, na atualidade, busca "descobrir na consciéncia e no inconsciente dos autores, os complexos sexuais" que vigoram hoje (p. 136). Gurevic (1996) comenta irónicamente que é impossível fazer deitar um homem do século XII no sofá do psicanalista e rotula como incipientes tais interpretagoes historiográficas. Segundo Gurevic (1996), os autores das autobiografías medievais mostram um senso agudo do passar do tempo e eternizam sua vida temporal nao apenas na escrita, como também se espelhando num mundo maior ao qual pertencem, mundo que abarca dimensoes sobrenaturais as quais garantem ao individuo a continuidade e a cura de seus males: é por isto que o relato de milagres e visoes é parte integrante destas narrativas, constituindose em componentes indissociáveis da experiencia pessoal. Por fim, Gurevic (1996) observa que as autobiografías medievais sao memorias, ou seja, composigoes num todo ordenado de fragmentos de recordagao da vida interior e exterior. Assim, a memoria que articula o relato é sempre orientada para a confissao, é, na verdade, urna confissao. Segundo Braunstein (1994), "mais do que qualquer outra fonte narrativa, a confissao incita a colocagao em cena do individuo como protagonista de urna aventura espiritual" (p. 534). Ainda afirma que "o poder organizador da visao agostiniana inspirou, em situagoes pessoais diversas, um fascínio de método e o sentimento de urna fraternidade espiritual" (p. 535) e cita Dante Alighieri (12651321) e Francesco Petrarca (1304-1374) como émulos desta perspectiva. Com efeito, os dois autores italianos em algumas suas obras mostram terem sido profundamente influenciados por Agostinho no que diz respeito á capacidade autoreflexiva acerca de sua própria experiencia. A legitimagao do auto-conhecimento pela pratica religiosa da confissao e a importancia da experiencia modelar como criterio ordenador da vivencia pessoal podem, portanto, serem assinalados como aspectos que particularizam o género autobiográfico no período medieval. 4) As narrativas autobiográficas nos primordios da Idade Moderna Gurevic (1996) assinala que já no século XII, a Historia calamitatum mearum (1132-1136/1973) de Pedro Abelardo (1079-1142) representa um marco de mudanga, o inicio de urna nova modalidade de entendimento da narrativa autobiográfica que se evidenciará de modo claro na Idade Moderna. A posigao filosófica de Abelardo explicitada também em seu tratado Opera theologica I (112122/1969), é centrada em sua própria experiencia e em suas observagoes e reflexoes pessoais. Deste modo, também a autobiografía é concebida por ele como expressao de suas tendencias, conflitos e impulsos interiores: a confissao de Abelardo nao é voltada a um interlocutor: "é um ato de confissao e de autojustificagao, de auto-análise e de auto-afirmagao. O primeiro interlocutor de Abelardo é ele mesmo" (Gurevic, 1996, p. 153). Ao relatar as difíceis circunstancias Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 i¡ históricas de sua existencia, Abelardo escreve propriamente urna apología, mais do que urna confissáo. Sabe-se que Abelardo, filósofo e teólogo francés, foi castrado por vinganga devido ao amor ilícito pela sua aluna Heloisa; tornou-se monge e envolveu-se em conflitos teológicos com Bernardo de Clairvaux; e em decorréncia disto seus textos foram condenados e proibidos pelo Concilio de Sens. Com Abelardo, somos, portanto, introduzidos noutra acepgáo da narrativa autobiográfica, que se afirma a partir do Renascimento e se difunde na Idade Moderna. Trata-se de urna consciéncia de si mesmo, já preconizada em documentos da Idade Media tardia, como, por exemplo, ñas cartas de Petrarca (Gurevic, 1996), e que abre o caminho para a Modernidade. Nos inicios da Idade Moderna, assiste-se também a urna expansao da prática da narrativa autobiográfica no ámbito da sociedade e nao somente no meio estritamente intelectual e religioso. Braunstein (1994) coloca que a partir do século XIV surge na cultura ocidental a preocupagao dos individuos quanto á descrigáo e transmissáo de suas vivencias pela escrita direcionada para um restrito grupo de destinatarios. A preocupagao que inspira esta escrita nao é tanto a necessidade de preservar, na memoria, instantes privilegiados do passado nem "a exigencia intima de iluminar os movimentos da consciéncia" (p. 539), quanto "a reconstituigáo, na ordem do tempo vivido, dos acontecimentos que merecem ser salvos do esquecimento em que os ímpetos pessoais e as escolhas sao camuflados pela aparente objetividade da narrativa" (p. 539). Assim surgem diarios redigidos nao apenas por personagens famosos, mas também por pessoas simples movidas pela preocupagao de anotar em pormenores no seu dia-a-dia "aquilo que um bom administrador deve conservar no espirito para si mesmo e para os seus, do registro de fatos memoráveis no mundo e ao alcance de si" (Braunstein, 1994, p. 533). Trata-se de confissoes, diarios e crónicas que se constituem em "fontes de informagáo" elaboradas pelo individuo acerca de sua própria vivencia, incluindo "seu corpo, suas percepgoes, seus sentimentos e sua concepgáo das coisas" (p. 533). Os seis diarios de Monaldo Atanásio Atanagi, palhago da corte de Guidobaldo II da Rovere, no centro da Italia, redigidos entre 1539 e 1557 e conservados na Biblioteca Vaticana em Roma, sao exemplificativos desta posigáo: livros-caixa, livros de memorias corriqueiras e de informes de fatos e pessoas, registro de fatos de crónica locáis (Bozzi, 2002). Por outro lado, alguns autores escrevem autobiografias inspirados pela preocupagao de inscrever suas experiencias pessoais numa perspectiva historia, de modo a conferir dignidade e valor á sua existencia pessoal. É, dentre outros, o caso de Benvenuto Cellini (1500-1571), escultor e ourives italiano. Cellini trabalhava a servigo da Corte Pontificia e, aos 58 anos de idade, ditou sua autobiografía a um aprendiz como forma de enfrentar seus detratores (Cellini, 1558/1997). A relagáo do eu consigo mesmo como ámbito da escrita autobiográfica e a expansao desta prática no ámbito da sociedade ocidental parecem ser as características peculiares da historia do género nos inicios da Modernidade (2). 5) O Senhor de Montaigne retrai-se a si mesmo Já Os ensaios (1580) de Michel Eyquem, Seigneur de Montaigne (1533-1592) refletem urna posigáo peculiar. O objetivo da escrita é revelado pelo autor no Prólogo ao leitor: "quero que me vejam aqui em meu modo simples, natural e corrente, sem pose nem artificio: pois é a mim que retrato. Meus defeitos, minhas imperfeigoes, minha forma natural de ser háo de se ler ao vivo". (Montaigne, 1580/2010, p. 37) Partindo da concepgáo de que "cada homem traz a forma inteira da condigáo humana" (p. 347), propoe-se a apresentar esta condigáo tal como se mostra numa vida em particular, sua própria vida: "os outros formam o homem, eu o relato"; "nao ensino, relato" (p. 348). Referindo-se a si mesmo, Montaigne (1580/2010) confessa que "represento um em particular, bem malformado" (p. 346). Seu Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 i( cuidado metodológico é que "os tragos da pintura nao se extraviem" da figura real observada. O conhecimento de si que Montaigne (1580/2010) propoe inclui nao apenas os estados interiores como também as condigoes corporais (por exemplo: as doengas, o dinamismo dos humores, o envelhecimento, etc.). Segundo Montaigne (1580/2010), deve-se levar em conta que a pessoa enquanto objeto da narrativa é caracterizada pela inconstancia e mutabilidade: "nao posso ter certeza de meu objeto: ele segué confuso e cambaleante", "pego-o neste ponto, como ele é, no instante em que me interesso por ele" (p. 346). Por isto, declara: "Nao pinto o ser, pinto a passagem", pois "minha alma está sempre em aprendizagem e prova" (p. 347). A única condigáo necessária da escrita é a fidelidade á vivencia, ou sinceridade, tal como se adquire no avangar das idades da vida. Num trecho celebre, Montaigne (1580/2010) assinala a aparente falta de unidade do eu, apreendida pela observagáo da incoeréncia de estados de ánimo e de comportamentos: Nosso modo habitual é seguir as inclinagoes de nosso desejo, para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, conforme nos leva o vento das ocasioes: nao pensamos no que queremos a nao ser no instante em que o queremos, e mudamos como esse animal que toma a cor do lugar onde o colocamos. O que nos propusemos há pouco, ora logo mudamos, e ora, de novo, voltamos atrás: tudo nao passe de oscilagáo e inconstancia (p. 204). Por isto, o ser levados pelas circunstancias externas e pelos humores internos, a flutuagáo entre as opinioes diversas, as variagoes e contradigoes parecem caracterizar a pessoa de modo que alguns até chegaram a cogitar a existencia de duas almas, ou duas forgas, postulando que "urna diversidade táo brusca nao pode associar-se a um sujeito simples" (p. 207). Nao só o vento dos acontecimentos me agita conforme sua inclinagáo, como, além disto, eu mesmo me agito e me atormento pela instabilidade de minha postura; e quem se observa de perto raramente se vé duas vezes no mesmo estado. Dou á minha alma ora um aspecto, ora outro, segundo o lado por onde a examino. Se falo de mim de diversos modos é porque me observo de diversos modos. Em mim encontram-se de um jeito ou de outro, todas as contradigoes. (...) E quem se estuda bem atentamente encontra em si, e até em seu próprio julgamento, essa volubilidade e essa discordancia (p. 207-208). Estas observagoes levam Montaigne (1580/2010) á conclusáo de que "nosso comportamento sao apenas pegas costuradas" (p. 209); "somos todos feitos de pegas separadas e num arranjo táo disforme e diverso que cada pega, a todo instante, faz seu próprio jogo" (p. 210). Por isto, ao referir-se de modo crítico ao ideal clássico da "ociosidade" e do retiro visando a tranqüilidade da alma, Montaigne (1580/2010) observa que, na verdade, urna vez que esta suspende a ocupagáo em certo assunto, ou seja, urna relagáo ativa com a realidade, "se perde" e como "um cávalo fúgido", desregrado, vagando "para cá e para lá no vago campos da imaginagáo" (p. 48). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 20 Por outro lado, Montaigne (1580/2010) reconhece a existencia de "um modelo interno que é a pedra de toque dos nossos atos" (p. 350), um lócus da consciéncia a partir do qual julga-se a si mesmo: "olhai um pouco o que a nossa experiencia mostra a esse respeito: nao há ninguém que, ao se escutar a si mesmo, nao descubra em si urna forma sua, urna forma dominante" (p. 355). Este centro interior proporciona-lhe a experiencia de que "mantenho-me sempre em meu lugar"; "se nao estou 'em casa', estou sempre por perto" (p. 351). Montaigne (1580/2010) revela que ter-se afastado dos afazeres mundanos contribuiu para reconhecer em si mesmo este núcleo. Este núcleo Ihe permite "fazer a fundo o que faz" e "caminhar por inteiro" (p. 356). Reconhecer este ponto corresponde a um trabalho da razao: "eu que sacudo minha razao tao viva e atentamente" (p. 361). Este trabalho é auxiliado por alguns instrumentos: dentre eles, a leitura ("a leitura me serve em especial para despertar, por objetos diversos, minha reflexao, para fazer trabalhar meu julgamento", p. 366); as "amizades raras e requintadas" (p. 368), a este propósito Montaigne (1580/2010) lembra a experiencia vivenciada em juventude de "urna amizade única e perfeita" (p. 368) que Ihe ensinou o criterio para discernir as pessoas com as quais puder compartilhar "o exercício da alma" (p. 372); o amor de urna mulher "que se tenha desejado cientemente" (p. 374) e que seja bela no corpo e no espirito. Para Montaigne (1580/2010), este conhecimento de si mesmo baseado na experiencia é mais valioso do que qualquer outro: "estudo a mim mesmo mais que a outro assunto. É a minha metafísica, é a minha física" (p. 520). Ser bom "aluno, na experiencia que tenho de mim", é o modo de tornar-se sabio. Pois, por exemplo, "quem conserva na memoria o excesso de sua cólera passada, e até onde essa febre o arrastou, vé a feiúra dessa paixao melhor que em Aristóteles e nutre por ela um odio ainda mais justo" (pp. 521-522). A atengao dedicada ao estudo de si mesmo permite também conhecer os outros: "por ter, desde minha infancia, treinado em mirar minha vida na do outro, adquirí urna estudiosa disposigao para fazer isto" (p. 525). O método para este conhecimento consiste na observagao de "comportamentos, humores, discursos" (p. 525). O fato de que o auto-conhecimento é urna essencial contribuigao ao conhecimento da condigao humana, a atengao á natureza dinámica e complexa do objeto, a condigao da lealdade com a própria vivencia exigida ao narrador, a evidenciagáo de um centro interior e ordenador da experiencia pessoal: sao estas as características que se depreendem da contribuigao de Montaigne. 6) Gerolamo Cardano e a busca da imortalidade pela escrita autobiográfica A autobiografía De propria vita (1991), de Gerolamo Cardano (1501-1576), matemático, médico e filósofo italiano, escrita em 1560, relata a busca do autor pela reconstrugáo narrativa de sua existencia a partir da exigencia de procurar algum tipo de imortalidade. Cardano destaca inclusive que esta busca motivou as criticas, hostilidade e marginalizagáo pelos seus contemporáneos. A preocupagáo pela imortalidade evidencia-se ao longo de toda a produgáo intelectual de Cardano, que escreveu mais de duzentas obras de medicina, matemática, física, religiáo, música, um tratado de ortografía, um tratado sobre os jogos de azar, sendo este considerado o primeiro texto de teoría da probabilidade. Possivelmente esta busca tenha sido acentuada pelas dramáticas circunstancias da vida do autor por ele mesmo narradas na autobiografía: filho ilegítimo de um jurista famoso, Cardano relata sua infancia miserável e doentia; ingressou na universidade de Pávia e posteriormente foi para Pádua, onde se formou em Medicina; casado e com tres filhos transferiu-se para Milao onde lecionou grego, astronomía, matemática e lógica e exerceu a profissao de médico. Viu sua fama crescer até ser nomeado docente de Medicina na Universidade de Pávia; teve como amigos Francis Bacon e Leonardo da Vinci. Todavía, ao mesmo tempo, passou por graves sofrimentos, dentre as quais a maior relata ter sido a execugao capital de Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 o seu filho primogénito condenado por uxoricidio. Devido a este fato, teve que mudar-se de cidade e foi lecionar Medicina na Universidade de Bolonha, mas foi preso em 1570 pela Inquisigao, acusado de heresia. Ele mesmo se pos fim em 21 de setembro de 1576 quando se suicidou. Na autobiografía, Cardano relata os acontecimentos principáis de sua existencia; retrata todos os tragos de sua pessoa e de sua historia de vida: a estrutura corpórea e a condigao psicossomática, os hábitos alimentares, as atividades físicas realizadas, o desejo de que seu nome se perpetué na posteridade, o estilo de vida e de estudo, suas virtudes, hábitos, vicios e erros, a perseveranga nos sofrimentos, as relagoes de amizade, as inimizades, calunias e difamagoes vivenciadas, os gostos e lazeres, seus pensamentos e observagoes, as práticas religiosas, as moradias que habitou, a familia, as peregrinagoes e perigos encontrados, sua busca pela felicidade. Descreve seus mestres e discípulos; os casos clínicos de que cuidou enquanto médico e sua atividade como astrólogo. Interpreta seus próprios sonhos; escreve seu testamento e lista os livros por ele mesmo produzidos. Expoe sua visao do mundo e, no capítulo 46, intitulado "De me ¡psum" descreve seu caráter. Escreve um poema a ser lido na ocasiao de seus funerais. Acerca de sua autobiografía, Calvino (1993) escreveu que nele "domina urna continua preocupagao por si mesmo, pela unicidade da própria pessoa e pelo próprio destino, segundo a observancia astrológica, razao pela qual o acumulo de particularidades dispares em que consiste o individuo encontra urna origem e urna razao na configuragao do céu ao nascer." (p. 86). Calvino (1993) lembra que "delicado e doentio, Cardano exerce sobre a saúde urna tríplice atengao: de médico, de astrólogo, de hipocondríaco ou, como diríamos hoje, de psicossomático. E assim sua ficha clínica é assaz minuciosa" (p. 86). Em suma: para Cardano, a narrativa autobiográfica parece ser um meio para responderá busca por imortalizar sua própria memoria. 7) Giambatista Vico: autobiografía e busca da verdade Giambattista Vico (1668-1744), filósofo, jurista e historiador italiano escreve sua autobiografía em terceira pessoa, respondendo a um pedido do conde Gian Ártico de Porcia. Como ele mesmo escreve, trata-se de urna autobiografía filosófica. Filósofo critico com relagao ás influencias do cartesianismo na cultura e criador de um sistema filosófico próprio, censurado e marginalizado em vida pela sua oposigao ao pensamento dominante, Vico parece buscar na escrita de sua autobiografía o resgate de suas vivencias intelectuais e de sua produgao filosófica, bem como a reafirmagao da originalidade de seu posicionamento teórico e pessoal. Com efeito, a autobiografía relata os posicionamentos anti-conformistas de Vico desde sua infancia: por exemplo, a decisao, diante de urna injustiga vivenciada, de sair do colegio jesuíta e de estudar de modo autodidata; e a decisao de voltar ao estudo guiado por um mestre para que sua busca da verdade fosse bem direcionada. A busca da justiga e o amor pela beleza da palavra norteiam as escolhas de Vico (1745/2006) em seu processo de formagao: o gosto pelos estudos em direito que o levou a indagar a possibilidade da "busca de um direito universal eterno", (p. 15) e em retórica; a adesao ao platonismo como urna afirmagao contra o sensualismo e o empirismo da época, a afirmagao da existencia de verdades eternas que nao sao criadas pelos homens, mas que se Ihe se apresentam para que tome posigao diante délas. O interesse de Vico pela mente humana se reflete já em suas primeiras aulas universitarias quando como docente de retórica profere as ligoes inauguráis, relatadas na autobiografía: especialmente o fascina o entendimento do dinamismo da mente humana, acerca da qual elabora urna concepgao bem diferente da cartesiana, ressaltando a importancia das potencias da memoria, da fantasía e do engenho. Por volta de 1708, Vico se posiciona publicamente contra a filosofía cartesiana, específicamente no que diz respeito á concepgao da verdade: se para Descartes esta seria urna evidencia que a razao Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 22 pode obter no ámbito das idéias claras e distintas, Vico pensa que apenas a verossimilhanga pode ser alcangada pela mente humana. Partindo do principio de que a verdade e os fatos coincidem, Vico afirma que somente Deus pode conhecer completamente o mundo pelo fato de cria-lo, produzi-lo a cada instante; ao passo que o homem apenas pode alcangar a verdade acerca de suas próprias produgoes, a saber a historia e a matemática. O eu, portanto, pode conhecer-se a si mesmo pela historia: nela o homem descobre a verdade de seu fazer-se. Com base nestes principios, Vico comega a delinear as linhas daquilo que será seu sistema filosófico próprio: a ciencia nova. Na autobiografía, Vico (1745/2006) relata ser movido pela exigencia de encontrar "algum argumento novo e grande no ánimo que em principio unisse todo o conhecimento humano e divino" (p. 39). Expressa repetidas vezes a exigencia de superar o dualismo entre idéias e fatos, que implica também compor o hiato entre a filosofía (ciencia que se ocupa da verdade) e a filología (que se ocupa da certeza na análise dos documentos históricos). Relata a redagáo e publicagáo em 1725, de sua obra principal, Principios da Ciencia Nova, onde finalmente pensa ter definido o principio unitario até entáo buscado. As últimas páginas da autobiografía sintetizam suas intengoes e sua atuagáo: o interesse que o moveu enquanto docente, para 'desengañar" os jovens, no sentido de ajudá-los a um uso crítico da razáo para nao cair nos "engaños dos falsos doutores" (p. 92); as inimizades contraídas neste empenho; a busca constante pelo uso da palavra eloqüente sempre unida á sabedoria: "sendo a eloqüéncia a sabedoria que fala, seu ensinamento devia servir para orientar os engenhos dos jovens e torna-Ios universais" (p. 92). Declara seu empenho no magisterio, buscando, ao lecionar determinada disciplina, que o ensino fosse animado "como por um espirito por todas as demais ciencias com que essa estava relacionada", de modo a realizar aquele ideal universitario proposto por Platáo em sua Academia. A atengáo ao temperamento acompanha sempre suas consideragoes: desde a melancolía da infancia á cólera da vida adulta ("no que ele mesmo admitía publicamente ser defeituoso", p. 92). Reconhece que pelas circunstancias adversas e pelas criticas recebidas, foi impulsionado para a elaboragáo de sua obra Ciencia Nova. Em suma, trata-se de urna narrativa moldada pela exigencia de esclarecer suas idéias filosóficas em sua génese, elaboragáo e transmissáo. A sua existencia marcada desde jovem por urna ardente busca da verdade, levou á continua procura de mestres e leituras, á procura de um método de uso critico da razáo fundado em principios diferentes do cartesianismo. De certa forma, a escrita da autobiografía assume a fungáo de revelar a verdade do sistema filosófico de Vico em seu processo de produgáo. 8) Teresa de Ávila: a narrativa de "o que eu vi por mim mesma" Teresa de Cepeda e Ahumada, mais conhecida pelo nome de Teresa de Ávila (1515-1582), religiosa carmelita e reformadora desta Ordem (fundadora das carmelitas reformadas ou descaigas), figura de destaque da teología católica e da cultura espanhola, é autora de urna autobiografía escrita para responder ao pedido de seu diretor espiritual e que reconhecidamente representa um marco na fundagáo da subjetividade moderna: o Livro da vida (1575/2010). O texto reflete a experiencia ¡novadora da própria Teresa que foi urna presenga incomoda no mundo católico da Espanha marcado pelo tradicionalismo. Foi decisivo para ela o apoio de alguns importantes teólogos que Ihe solicitaram a redagáo da autobiografía, tendo em vista com este documento demonstrar a ortodoxia da experiencia religiosa de Teresa; foi autora também de outros escritos de teor autobiográfico (Caminho da perfeicao; Livro das Fundacoes; O Castelo interior). O Livro da Vida (1575/2010) relata a historia de sua autora até os 52 anos de idade: trata-se de "um discurso sobre a minha vida" moldado pelo empenho em Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 23 evidenciar com "toda claridade e verdade" a própria personalidade através de suas vicissitudes. Neste sentido, seu objetivo é o contrario de urna apología, pois ela quer evidenciar ao leitor "que fui tao ruim (...), eu só tornava a ser pior, como parece que me esforgava em resistir as dádivas..." (p. 35). Este objetivo assim como a escrita reveladora da subjetividade, é parte de um contexto intersubjetivo explícito no texto: se trata da presenga de cinco amigos-leitores "os cinco que no momento nos amamos em Cristo" (p. 151), que se juntaram "para tirar-nos um aos outros dos engaños e dizer o que poderíamos emendar em nos e alegrar mais a Deus. Pois nao há quem conhega tao bem a si, como conhecem aqueles que nos véem, se for com amor e cuidado de nos beneficiar" (p. 151). E ainda, Teresa demanda ao leitor que leia sua autobiografía "com a experiencia, pois, por pouca que seja logo entenderao" (p. 117). Afirma também que a escrita da própria experiencia nao é ¡mediata, mas é conquistada através de um longo trabalho: "por muitos anos eu lia muitas coisas e nao entendía nada délas. E por muito tempo, embora me desse Deus a experiencia, nao sabia dizer urna palavra para explicá-la. E nao me custou isso pouco trabalho" (p. 117). A narrativa de Teresa é ao mesmo tempo moderna, em alguns aspectos, e apresenta, por outros, as características das autobiografías medievais ácima assinaladas (Hadot, 2005). Teresa conhece a si mesma, diante de outros e diante de um Outro. Sua subjetividade moderna, por ser marcada por fortes evidencias emocionáis que a inscrevem plenamente em seu século, ao mesmo tempo se revela plenamente enraizada na longa tradigao da espiritualidade ocidental. O contexto intersubjetivo como bergo para o desenvolvimento da subjetividade é tema recorrente da autobiografía de Teresa (1575/2010), no bem e no mal: é a relagao com os pais que inicialmente a molda na virtude, mas é também o relacionamento com urna párente mais velha que Ihe oferece o contexto para "estragar-me" (p. 43). Na escrita da autobiografía, Teresa (1575/2010) deriva de sua experiencia conselhos ou advertencias para os leitores; ao mesmo tempo, porém, em que assinala a necessidade de mestres para realizar este percurso, reivindica a capacidade de discernir entre os bons e maus mestres e a necessidade, sempre, do conhecimento próprio; e neste ponto coloca-se novamente sua modernidade (p. 126). Teresa (1575/2010) caracteriza a si mesma diferenciando-se dos outros justamente pela rebeldía, por ser diferente: ao falar de sua infancia e ao retratar a si mesma como parte do grupo familiar escreve "todos pareciam aos pais em ser virtuosos, a nao ser eu" (p. 38). Define também como raiz de sue sofrimento e rebeldía, a perda do dominio de sua liberdade: "como sofre urna alma por perder a liberdade que devia ter de ser senhora e quantos tormentos padece" (p. 96). Pela escrita da autobiografía ela quer evidenciar que diante da insatisfagao consigo mesma, a inquietagao pela própria incompletude cuja vivencia ela define com algumas imagens como "mar tempestuoso" (p. 86), "guerra tao penosa" (p. 87), o movimento da vontade em busca do bem, a leva a transcender os limites de sua própria personalidade. Desse modo, indica pela sua experiencia pessoal, que a subjetividade é transformada no relacionamento com a Alteridade. A narrativa de Teresa (1575/2010) a respeito do delinear-se deste movimento da vontade é de grande interesse psicológico: o ponto de partida é a relagao sensível com a realidade ("para mim ajudava ver o campo, ou agua, flores", p. 95), e por isto também o recurso das imagens: "tinha tao pouca habilidade para representar coisas com o entendimento que, se nao fosse o que via, nao me adiantava nada a imaginagao" (p. 95); "por causa disto eu era tao amiga das imagens" (p. 95); "eu só podia pensar em Cristo como homem" (p. 95). Em segundo lugar, é decisiva a leitura das Confissoes de Agostinho, em cuja experiencia ela se espelha: "quando comecei a ler as Confissoes, parecía que me via ali" (p. 96). Disto "ganhou forgas a minha alma" (p. 96). Nasce assim o "apego", e o "sentimento da presenga" do Outro, de modo tal que "de maneira nenhuma eu podia duvidar de que estivesse Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 24 dentro de mim ou eu mergulhada nEle" (p. 98). E observando-se a si mesma nesta condigáo, Teresa relata que "a alma parece estar fora de si", "a vontade ama", "a memoria me parece estar quase perdida", "o entendimento nao discorre, a meu parecer, mas nao se perde", alias "fica como espantando com o muito que entende" (p. 98). A articulagáo de todas as potencias da alma depende da vontade. O realismo da Teresa leva-a a reconhecer ("examinei com cuidado", p. 112) que a complexáo corporal incide profundamente neste processo e limita o movimento da vontade: "a indisposigáo corporal (...) as mudangas do tempo e as reviravoltas dos humores muitas vezes fazem com que a alma, sem culpa sua, nao possa fazer o que quer (...) e quanto mais quer me forgas nestes períodos, pior é e mais dura o mal"(p. 112) O criterio para discernir que a experiencia pessoal se realiza é colocado por Teresa (1575/2010) nos termos de urna vivencia "no mais intimo" de urna "grande satisfagáo interior e exterior" (p. 132), avahada como "a diferenga", "pois parece que enche o vazio que tínhamos feito na alma" (p. 132). Esta vivencia acontece quando "a vontade está unida em Deus" (p. 137). E nela as potencias encontram também sua atuagáo, "estando elas quase totalmente unidas" (p. 148). Teresa (1575/2010) descreve também outros estados da alma em sua uniáo com a Alteridade: por exemplo, a condigáo em que as potencias ficam como que suspensas em suas operagoes e a alma apercebe-se no interior de si mesma: quando "a vontade está bem ocupada em amar" (p. 167) e como que "se desfaz" no próprio Amado. A "soberanía" conquistada pelo eu pessoal nesta condigáo, Ihe permite "ver tudo sem ser enredado", (p. 188), num estado de liberdade plena. O que impressiona em tudo isto é a continuidade da autoconsciéncia de Teresa que vivencia e descreve sua experiencia assumindo a plena autoría de sua narrativa: "isso eu o vi por mim mesma" (p. 185). 9) Jean Jacques Rousseau: escrita de si como busca de sinceridade e justica A autobiografía de Rousseau é um espelho onde o autor consigna sua imagem para que os outros possam vé-lo, inaugurando assim o estilo da confissáo própria do Romantismo. Gusdorf (1951, 1990, 1991a, 1991b), em sua clássica tese sobre a descoberta de si mesmo, refere-se á posigáo de Rousseau e dos autores modernos como sendo urna atitude de imanéncia consistente na investigagáo curiosa e objetiva pela singularidade de cada individuo. Rousseau (1755-76/2009) busca descrever o estado de sua alma, mais do que propriamente narrar os acontecimentos de sua vida: "escrevo menos a historia dos acontecimentos de minha vida do que a historia de minha alma, á medida que se deram" (p. 94). Procura nao omitir nada nem preocupar-se pelo estilo e a forma da narrativa: "direi cada coisa como a sinto, como a vejo" (p. 103); "ao entregar-me ao mesmo tempo á lembranga da impressáo recebida e ao sentimento presente, pintarei duplamente o estado da minha alma, isto é no momento em que o fato ocorreu e no momento em que o descrevi" (p. 103). O objetivo que se propoe é "de oferecer urna imagem fiel de si mesmo" para que os outros homens seus leitores também aprendam a fazer o mesmo exercício de auto-conhecimento. Baseia-se no pressuposto de que "ninguém pode escrever a vida do homem a nao ser ele mesmo. Sua maneira interior de ser, sua verdadeira vida só ele a conhece" (p. 94). Desse modo, acontecimentos e também objetos sao relacionados aos estados subjetivos: imaginagáo, sentidos, memoria sao assim implicados no ato da narrativa. Rousseau (1755-76/2009) propoe um método de conhecer-se a si mesmo, nao mais baseado em espelhar a própria vivencia numa experiencia modelar, mas ao contrario, na recusa de qualquer parámetro ou imagem ideal imposta por agentes externos. Declara guiar-se "pela experiencia e observagáo" (p. 96) e procurando em todas as condigoes vivenciadas ("desde os mais baixos até os mais elevados") Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 25 (p. 96), buscar o homem: "preocupado em afastar sua mascara, reconheci-o em toda parte" (p. 96). Segundo ele, o único ponto de comparagao que alguém deve ter ao querer narrar a si mesmo deve ser a experiencia do outro, seu semelhante: "quero tentar fazer com que se possa ter pelo menos um ponto de comparagao, que cada um possa conhecer a si mesmo e a um outro, e este outro serei eu" (p. 112). A preocupagáo do texto, segundo Rousseau (1755-76/2009), nao deve ser de propor exemplos, segundo a tradigáo anterior, e sim, a sinceridade, a fidedignidade do relato. Tratase, portanto, de "abrir escrupulosamente todas as pregas da alma" (p. 102), seguindo "exatamente os tragos que vejo marcados" (p. 103). O objeto da narrativa é a "historia da minha alma" (p. 96), urna confissáo ("sao rigorosamente minhas confissoes", p. 105). Nesta Nao me esforgarei para torná-los uniformes; terei sempre o que vier espontáneamente, modificá-loei segundo meu humor, sem escrúpulo, direi cada coisa como a sinto, como a vejo, sem procura, sem sofrimento, sem embaragar-me com a miscelánea. Ao entregar-me ao mesmo tempo com a lembranga da impressáo recebida e ao sentimento presente, pintarei duplamente o estado de minha alma, isto é, no momento em que o fato aconteceu e no momento em que o descrevi; meu estilo desigual e natural, ora rápido, ora difuso, ora sabio e ora louco, ora grave e ora alegre, fará ele próprio parte de minha historia (pp. 103-104). O objetivo entáo nao é a artificiosa reconstrugáo de um retrato unitario acerca de sua própria pessoa: "quando escrevo nao pensó nesse conjunto, pensó apenas em dizer o que sei, e é disso que resultam o conjunto e a semelhanga do todo com o seu original" (p. 77). A narrativa brota simplesmente do fato de que "pensó de boa vontade em mim mesmo e falo como pensó" (73). Pois, "sei quanto é difícil defender-se das ilusoes do coragáo, e nao engañar a si mesmo sobre os motivos que nos fazem agir. Relato simplesmente o que acreditei sentir" (p. 65). Rousseau (1755-76/2009) ilustra também alguns cuidados que ele tomou: a resolugáo de nao fazer publicar este relato enquanto ele viver, esperar para que "com o passar do tempo, os fatos que ele contém tenham-se tornado indiferentes" (p. 104), depositar o manuscrito ñas máos de pessoas confiáveis. E eis que o próprio Rousseau (1755-76/2009) revela a finalidade de suas confissoes: "que cada leitor me imite, que mergulhe em si mesmo como eu fiz, e que no fundo de sua consciéncia diga a si mesmo: eu sou melhor do que foi esse homem" (p. 105). Por outro lado, mesmo na declarada ausencia de criterios modelares, parámetros ideáis e juízos ("sou observador, e nao moralista", declara, p. 74), justamente devido a esta sua sincera busca do humano, o relato de Rousseau acaba por desvelar e por em evidencia algumas experiencias humanas fundamentáis que norteiam todo seu dinamismo existencial: o desejo de fazer o bem (p. 73); o amor á verdade, mesmo que custosa ("sinto que o amor á verdade se me tornou mais caro porque ele me custa", p. 123); o zelo pela justiga ("pelo interesse da justiga e da verdade", p. 137); o amor pela liberdade; a paixáo pela beleza (por exemplo, a música) e, sobretudo, o desejo do amor e da amizade, raramente correspondidos (3). Para referir-se a este desejo Rousseau (1755-76/2009) usa acentos comovidos: Eu fora feito para ser o melhor amigo que já tivesse existido, mas aquele que deveria retribuirme está assim por vir. Ai de mim, estou na idade em que o coragáo comega a retrair-se e nao se Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 26 abre mais a novas amizades. Adeus, pois, doce sentimento que tanto procurei, é tarde demais para ser feliz (p. 80). Desejo da amizade feita de "doce sentimento, terna com fianga" (p. 83) nao correspondido, mas que sempre retorna, suscitando esperanga por novos encontros: Esta casa possivelmente contém um homem feito para ser meu amigo. Urna pessoa digna de minha homenagem passeia talvez todos os dias nesse parque (p. 83). A experiencia do amor é retratada líricamente em seu expressar-se na forma de um comovido silencio diante da presenga da mulher amada: "nao fazíamos, o menor movimento; um silencio profundo reinava entre nos" (p. 117), "meu coragao estava em paz diante déla; nao desejava mais nada" (p. 117); diante desta presenga "teria passado minha vida inteira, teria passado a eternidade sem nada mais desejar" (p. 117). Numa carta ao Senhor de Malesherbes, escrita em 1762, Rousseau (1755-76/2009) relata a experiencia da "tristeza sedutora" de certos momentos vividos em que ele percebe que mesmo que todos os meus sonhos se tivessem tornado realidade, eles nao me teriam bastado; eu teria imaginado, sonhado, desejado ainda. Encontrava em mim um vazio inexplicável que nada teria podido preencher, um certo ímpeto do coragao para um outro tipo de gozo do qual nao tinha a menor idéia e do qual, contudo, sentia a necessidade. (...) Meu coragao, encerrado nos limites dos seres, sentia-se por demais aperlado, eu sufocava no universo, teria desejado langarme no infinito (p. 41). As últimas páginas dos escritos de Rousseau (1755-76/2009) revelam o fracasso do projeto autobiográfico: como tal pelo menos é percebido pelo autor. Rousseau (1755-76/2009), ao reler suas anotagoes, revela ter sido tomado pelo "vivo sentimento das minhas infelicidades", o qual Ihe "sufoca toda a atengao" que seria exigida pela reflexao e a escrita: a impossibilidade de interlocugao e de transcendencia impossibilitam em última análise o auto-conhecimento. "Enquanto forgo meus olhos a seguir as linhas, meu coragao, oprimido, geme e suspira" (p. 136). De modo que, "após freqüentes e vaos esforgos, renuncio a este trabalho do qual me sinto incapaz e, por nao poder fazer melhor, limito-me a transcrever estes informes ensaios que nao tenho condigoes de corrigir" (p. 136). Sua vida, entao, Ihe parece "um longo devaneio dividido em capítulos pelos meus passeios de cada dia" (p. 165). O sentimento de angustia que declara acompanhar sua narrativa, o relatado abandono dos que crera amigos, a impossibilidade da felicidade comprovada pela experiencia, o apelo sem esperanga a um depositario desconhecido da revelagao de sua alma e de suas memorias, a percepgao de um abismo ¡menso entre ele e os outros: todos estes fatores o levam a desconfiar definitivamente que os seres humanos saibam reconhece-lo e fazer-lhe justiga. Rousseau volta-se entao num apelo final ao Juízo divino: já sabe que o seu livro acabará quando se aproximar do fim da vida e nesta iminéncia, "enquanto a passo lento a morte avanga (...) e me faz ver e sentir, sem pressa, a sua lenta aproximagao" (p. 178). Comenta Moretto (2009), acerca de Rousseau: urna faceta de seu universo se opoe ao universo de seus contemporáneos: diante da sociedade do século XVIII, que vive os prazeres do dia a dia e Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Massimi, M. (2011). A fonte autobiográfica como recurso para a apreensao do processo de elaboracao da experiencia na historia dos saberes psicológicos. Memorándum, 20, 1130. Retirado em / / da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 27 se acomoda ao intelectualizado pensamento da felicidade possível, do melhor dos mundos possíveis, ergue-se a exigente figura de Rousseau que pede nao mais urna felicidade relativa, mas sim urna felicidade total, que exige o Absoluto (p. 11). Conclusao: autobiografía, género complexo Á luz dos posicionamentos expressos pelos autores citados neste breve percurso histórico, consideramos que o uso das fontes autobiográficas no ámbito da historia dos saberes psicológicos, deva atentar para as diferengas de concepgáo e construgáo da narrativa decorrentes seja pela intengáo dos autores seja pelas características inerentes ao contexto histórico de sua produgáo. Do ponto de vista metodológico, isto implica a necessidade de colher nestas fontes algumas características comuns que as inscrevem num género próprio e ao mesmo tempo toma-las enquanto reflexos de modalidades diferentes de apreender e elaborar a experiencia psicológica, que podem ser reconhecidas ao longo da historia da cultura ocidental. Desse modo, o percurso aqui realizado evidencia a complexidade e a riqueza da autobiografía enquanto género literario específico e aponta sua riqueza enquanto fonte multifacetada para a historia dos saberes psicológicos: documentos expressivos de diversas modalidades de se posicionar diante da experiencia pessoal e de empreender o processo do conhecimento; e ao mesmo tempo manifestagoes das transformagoes vivenciadas pela cultura ocidental no que diz respeito ao estudo da subjetividade e perante o desafio do ser humano ser ao mesmo tempo sujeito e objeto de saber. Referencias Abelardo, P. (1973). A historia das minhas calamidades (R. A. C. Nunes, Trad.). Sao Paulo: Abril. (Os Pensadores, Vol. VI: Santo Anselmo de Cantuaria, Pedro Abelardo). (Original de 1132-1136). Abelardo, P. (1969). Opera theologica I: commentaña in Epistolam Pauli ad Romanos, apología contra Bernardum (E. M. Buytaert, Ed.). Turnholt, Bélgica: Brepols. (Original de 1121-1122). Agostinho, A. (1987). Confíssóes (J. 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(3) Trata-se daquela "experiencia original" a que Giussani (2009) se refere como sendo a estrutura constitutiva da experiencia humana: "conjunto de evidencias e exigencias origináis" a que "podem ser dados muitos nomes, por meio de diversas expressoes, como: exigencia de felicidade, exigencia de verdade, exigencia de justiga, e outras" (p. 25). Nota sobre a autora Marina Massimi é Professora Titular e trabalha junto ao Departamento de Psicología e Educagao na Faculdade de Filosofía Ciencias e Letras da Universidade de Sao Paulo, Campus de Ribeirao Preto, Brasil. Especialista na área de Historia das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contato: Departamento de Psicología e Educagao. Avenida Bandeirantes, 3900, CEP 14040-901, Ribeirao Preto (SP) / Brasil. E-mail: [email protected] Data de recebimento: 07/04/2011 Data de aceite: 10/05/2011 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/massimi05 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas agoes na educagao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 2\ Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acóes na educacáo dos "excepcionais" no Brasil Helena Antipoff, her theoretical-methodological assumptions and her actions in the education of "exceptional children" in Brazil Heulalia Charalo Rafante Roseli Esquerdo Lopes Universidade Federal de Sao Carlos Brasil Resumo Trata-se de urna pesquisa histórica, baseada em fontes documentáis e no estudo biográfico de Helena Antipoff, em que se procurou elementos que trouxessem para a historia da psicología e da educagao urna contribuigao sobre quem foi Helena Antipoff e quais os pressupostos teórico-metodológicos da sua formagao profissional, pressupostos sobre os quais assentará suas proposigoes de agoes técnicas no campo. O texto traz os caminhos percorridos por ela desde seu país de origem, a Rússia até receber o convite para trabalhar no Brasil. Além disso, o artigo traz elementos que esclarecem as motivagoes para a sua vinda para o Brasil, as suas atividades no ensino brasileiro na década de 1930 e os caminhos que direcionaram suas agoes para a educagao dos "excepcionais". Apresenta também urna síntese das agoes de Helena Antipoff no Brasil na área da Educagao Especial. A partir dessa trajetória, foi possível colocar em tela quem foi Helena Antipoff e quais os principios educativos endossados por ela e, ainda, tragar um panorama de suas agoes voltadas para a Educagao dos "excepcionais" na realidade brasileira. Palavras-chave: Helena Antipoff; Historia da Psicología; Historia da Educagao. Abstract This is a historical research based on documentary sources and on a biographical study on Helena Antipoff, which sought elements that would bring contributions to the history of psychology and education as to whom Helena Antipoff was and which were the theoretical and methodological assumptions upon which she based her proposals and technical actions in the field. The text provides the paths taken by her since she was in her home country, Russia, until she received the invitation to work in Brazil. In addition, the article sought to bring elements that clarify her reasons for coming to Brazil, her activities in the Brazilian education in the 1930s, and the paths that guided her actions towards the education of "exceptional children". Finally, it presents a summary of Helena Antipoff's actions in Brazil in the área of Special Education. From this trajectory, it was possible to delinéate who Helena Antipoff was and what educational principies she endorsed, and also to provide an overview of her actions towards the education of "exceptional children" in the Brazilian context. Keywords: Helena Antipoff; history of psychology; history of education. 1. Introducáo A Historia se mostrou como um caminho de pesquisa a partir do objeto de estudo que nos dedicamos a analisar (1). Trata-se da atuagao de Helena Antipoff no Brasil, que teve inicio em 1929, quando a educadora chegou em Minas Gerais para trabalhar no sistema de ensino desse estado e se estendeu até o seu falecimento, Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 32 em 1974. O interesse sobre esse tema se originou no ano de 1999, quando, na disciplina de Didática, ministrada pelo Professor Doutor Luiz Carlos Villalta, no curso de historia, da Universidade Federal de Ouro Preto, fomos apresentadas á Helena Antipoff, por meio de um texto da Professora Doutora Regina Helena Freitas Campos (1995) que, além de trazer a trajetória da educadora e seus principios científicos, destacou suas pesquisas junto aos alunos das escolas públicas de Belo Horizonte, na década de 1930, e as instituigoes criadas por ela para atender as criangas consideradas "excepcionais". Fomos instigadas á pesquisa por essas primeiras informagoes e, também, pela existencia de um rico acervo documental preservado na Biblioteca Central da Universidade Federal de Minas Gerais, coordenado pela referida professora, e na Fundagao Helena Antipoff, localizada em Ibirité (MG). Atraídas por essas possibilidades, fomos adentrando um territorio, cientes de que "a tarefa de enfrentar a Historia é arriscada; os problemas brotam de todos os lados e ganham as mais diferentes formas" (Warde, 1990, p. 03). Desde entao, temos nos dedicado a essa tarefa, buscando referencias em diversos autores, trocando informagoes com outros pesquisadores, munidas da vontade de resgatar e conhecer a atuagao de Helena Antipoff em nosso país. Marrou (1978) nos ensina que "a historia é o combate do espirito, urna aventura e, como todas as proezas humanas, só alcanga sucessos parciais, inteiramente relativos, que nao sao proporcionáis á ambigao inicial" (p. 46). Trata-se de um universo complexo, no qual existe urna "rede fechada de relagoes, onde as causas prolongam seus efeitos, onde as conseqüéncias se cortam, se amarram, se combatem, onde o menor fato é o ponto de confluencia de urna serie convergente de reagoes em cadeia" (p. 46). Tentar apreender essa complexidade, exige daqueles que se aventuram no campo da historia urna vontade intrínseca de se debrugar exaustivamente sobre a pesquisa, a leitura e o conhecimento do mundo, urna vez que "todo problema de historia, por mais limitado que seja, postula, passo a passo, o conhecimento de toda a historia universal" (p. 46). Justamente por essas características, Marrou endossa o que disse o romancista inglés Robert Graves: "A historia é um esporte para a idade madura" (p. 64). Nao estávamos erradas ao nos encantar pelas possibilidades documentáis que a vida de Helena Antipoff nos havia deixado, porém, fomos compreendendo que a historia nao se elabora simplesmente pela existencia dos documentos, mas por escolhas, delimitagoes e pela forma como se concebe um determinado tema, urna vez que os documentos nao falam por si: A historia é a resposta a urna questao proposta ao passado misterioso, pela curiosidade, pela inquietagao (...) pela inteligencia, pelo espirito do historiador. O passado apresenta-se-lhe, antes de tudo, como um vago fantasma, sem forma ou consistencia; para que o tenhamos ñas maos é preciso apertá-lo bem numa rede de questoes de que nao possa escapar, obrigá-lo a confessar (Marrou, 1978, p. 49). Marc Bloch (1949/2002), ao constatar a subordinagao do historiador ao passado, já que está condenado a conhecé-lo exclusivamente por meio dos seus "vestigios", também impoe um questionamento ao passado, "pois os textos ou os documentos arqueológicos (...) nao falam senao quando sabemos interrogá-lo" (p. 79) sendo que, para ele, esse encaminhamento é "a primeira necessidade de qualquer pesquisa histórica bem conduzida" (p.78), urna vez que o passado bem interrogado nos permite "saber sobre ele muito mais do que ele julgara sensato nos dar a conhecer" (p.78). Diante desse desafio que o passado nos impoe e, na tentativa de dar urna diregao á nossa busca documental, levantamos as questoes de pesquisa que orientaram a elaboragao deste artigo: quem foi Helena Antipoff; quais foram os pressupostos Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educagao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 33 teórico-metodológicos da sua formagao como psicóloga e educadora; quais as razoes de sua vinda para o Brasil, em 1929; que motivagoes a levaram a se dedicar á educagao dos "excepcionais" e como ela buscou viabilizar essa educagao no Brasil. Ao responder a essas questoes, o objetivo foi compreender quem foi Helena Antipoff e a sua participagao no desenvolvimento da Educagao Especial em nosso país. Para a realizagao de nossas pesquisas, os documentos preservados na Fundagao Helena Antipoff (2), em Ibirité, e no Centro de Documentagao e Pesquisa Helena Antipoff [CDPHA] (3) - situado na Biblioteca Central da Universidade Federal de Minas Gerais, foram fundamentáis. Em nossa garimpagem pelos dois acervos, levantamos um material para cobrir as questoes da pesquisa. Trata-se de um variado corpus documental, do qual fazem parte os Estatutos da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais; Boletim da Secretaria da Educagao e Saúde Pública de Minas Gerais, que, de 1929 a 1937, publicou textos monográficos de diferentes autores, tratando de temas relacionados á psicología experimental, á deficiencia mental, visual e auditiva, e á organizagao das classes homogéneas; Revista Infancia Excepcional - publicagao semestral da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerias. Completam esse aparado documental as Coletáneas de Obras Escritas de Helena Antipoff, organizadas pelo Centro de Documentagao e Pesquisa Helena Antipoff [CDPHA] da Universidade Federal de Minas Gerais, em comemoragao ao centenario do nascimento da educadora, compondo cinco volumes, publicados em 1992, agrupados sob as seguintes temáticas, que os nomeiam: Psicología Experimental, Fundamentos da Educagao, Educagao do Excepcional, Educagao Rural, Educagao do Bem-Dotado. Para o levantamento das fontes, no CDPAH dispomos do catálogo dos documentos, o que facilitou a selegao preliminar. No Centro de Documentagao da Fundagao Helena Antipoff, a colaboragao dos responsáveis foi imprescindível, urna vez que o mesmo encontra-se em fase de organizagao e esse trabalho era interrompido para a localizagao dos documentos de que necessitávamos. Para tornar mais ágil o registro dos documentos, utilizamos urna camera fotográfica digital, o que viabilizou um período maior para a análise dos documentos, que nao foi feita in loco. Cada vez que retornávamos da pesquisa de campo, era o momento de organizar as fotos em arquivos digitais. Além das pastas devidamente categorizadas, elaboramos urna planilha com a descrigao de todos os documentos, com os principáis conteúdos de cada um, indicando a pasta onde estavam arquivados, acompanhados pela numeragao da seqüéncia de fotos correspondentes. Estabelecemos categorías que foram atribuidas as respectivas fontes descritas na planilha e, no momento da escrita do texto, transformaram-se em instrumento de busca sobre os temas a serem tratados. 2. Helena Antipoff - urna "Mulher do Mundo" No primeiro momento da nossa investigagao, acompanhamos a trajetória de Helena Antipoff numa tentativa de conhecer um pouco de sua pessoa e apresentar ao leitor um retrato dessa educadora que se considerava urna "mulher do mundo" (4) e que se destacou no cenário brasileiro, passando a maior parte de sua vida no Brasil. Acompanhar um percurso de vida pode fazer emergir tanto a vida individual quanto o contexto social em que viveu o individuo, e isto depende da maneira como a pesquisa é desenvolvida (Queiroz, 1988). Partindo desse pressuposto, utilizamos, como fonte, no estudo da pessoa de Helena Antipoff, a sua biografía (D. Antipoff, 1975), que apresenta sua vida particular, destacando o que ela fez e disse através do tempo, em variadas circunstancias. Apesar de haver atingido a sociedade em que viveu a educadora, isto foi feito para explicar seus comportamentos e as fases de sua existencia individual. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 34 A Helena Antipoff que apresentamos nos parágrafos seguintes é resultado de urna conjugagao de imagens: por um lado, aquela imagem que ela tinha de si (5) e que foi passada para o filho; por outro lado, a imagem que o filho conseguiu captar da mae a partir de sua vivencia ao lado déla. Finalmente, deve ser considerado o filtro do nosso olhar, que procurou trazer á tona momentos que nos surpreenderam quando enxergamos para além da educadora e que, de alguma forma, nos influenciaram na análise de sua agao. Assim, antes de nos remetermos á Helena Antipoff psicóloga e educadora, sua formagao e sua atuagao, antes de acompanhar seu percurso profissional com o intuito de problematizar seu trabalho com as criangas brasileiras, optamos por recortar alguns momentos de sua vida no sentido de aproximar o nosso olhar e ampliar a nossa visao a seu respeito. Acreditamos que, para fazer urna abordagem ampia de sua agao, é necessário conhecé-la sob o leque de perspectivas que recobriu sua trajetória. Ainda, é importante frisar que partimos de um documento elaborado pelo filho da educadora, impregnado de suas emogoes, cuja relagao filial, certamente, influenciou seu posicionamento crítico em relagao á trajetória da educadora, levando a urna "romantizagao" da mesma. Na análise desse documento, atentamos para essa característica do material e procuramos trazer elementos que respondessem as questoes de pesquisa aqui colocadas, complementando as informagoes com dados levantados por outros pesquisadores (Campos, 2002, 2010a, 2010b) e, também, por documentos que encontramos nos acervos supracitados. Helena Wladimirna Antipoff nasceu em Grodno na Rússia em 1892 e viveu até 1908 em Sao Petersburgo. Sua mae, Sofia Constantinovna, estudou no "Instituto para Mogas da Nobreza", em Lodz, onde se formou em pedagogía, adquirindo conhecimentos em línguas estrangeiras, falava o francés e o alemao. Seu pai, Wladimir Vassilevitch Antipoff, era filho de rico industrial, mas seguiu outro caminho, preferindo o curso na Academia do Estado-Maior, destacando-se na carreira militar, chegando ao posto de coronel antes de completar os 40 anos (D. Antipoff, 1975, pp. 19-20). Entre as principáis características de Helena Antipoff, destacam-se: a sede pelo saber e seu espirito científico, que já se faziam presentes desde sua infancia e encontraram, no ambiente familiar e na escola, terrenos férteis para se desenvolver. Na escola secundaria, Helena Antipoff "passa horas seguidas em laboratorios bem montados, observando e anotando com a máxima objetividade os fatos. Acostuma-se a somente considerar como verdadeiro aquilo que é suscetível de" (D. Antipoff, 1975, p. 22). Os presentes de aniversario eram livros, muitos encomendados no estrangeiro, e algumas horas por dia e os feriados, eram dedicados á leitura na casa dos Antipoff, "urna familia de élite que valorizava a educagao e a cultura geral" (Campos, 2010b, p. 90). O espirito científico acompanhou a educadora em toda a sua vida, que, sendo marcada pela "necessidade de adaptagao em contextos diversos, sempre a curiosidade científica Ihe aparecía como a porta de entrada, a condigao de possibilidade de compreender o estranho e de se fazer conhecer" (Campos, 2002, p. 30). A vontade de se dedicar á ciencia era predominante e Helena Antipoff se diferenciava da maioria das mulheres de seu tempo. Podemos perceber esse encaminhamento em varios momentos de sua vivencia, inclusive desde o período da juventude. Ao estudarmos os primeiros anos de Helena Antipoff em Paris, para onde se mudara com a mae e a irma em 1909, quando tinha 17 anos, nos deparamos com a seguinte passagem, referindo-se a ela e a duas amigas. As tres, na flor da idade para levarem urna vida de mogas, atentas a possíveis galanteios, caracterizavam-se por urna mentalidade fora do Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 35 comum. Consideravam que a cultura e o estudo aprofundado sao os elementos essenciais para a sua vida de jovens, julgavam ter urna missáo na área profissional também. Convivendo com rapazes e amigos, também universitarios, parece que nao fazem do casamento a meta essencial da vida (D. Antipoff, 1975, pp. 31-32). A mudanga de Helena com sua mae e irmá para Paris havia sido motivada por tensoes políticas na Rússia, decorrentes dos conflitos entre a autocracia do czar Nicolau II e as demandas por democracia e por um regime parlamentar, por parte da sociedade, as quais provocavam inseguranga e medo com relagáo a um movimento revolucionario. Além disso, a idéia da familia Antipoff como a de muitas familias russas abastadas era "procurar oportunidades de estudo para os filhos na Europa ocidental" (Campos, 2010a, pp. 14-15). Foi nesse período que Helena Antipoff comegou a experimentar sua independencia, realizando urna viagem de ferias para a Inglaterra, contrariando a argumentagáo da mae, que insistía em persuadi-la a nao viajar, já que "naquela época, realmente era urna coisa ousada urna moga, jovem ainda, viajar sozinha e passar por cima dos preconceitos sociais" (D. Antipoff, 1975, p. 33). Ela viajou em julho de 1911 e ficou naquele país por quase tres meses, ministrando aulas de francés na residencia de urna familia inglesa. Essa postura independente se manifestou em outras situagoes. Em 1916, ela havia concluido seu curso no Instituto Jean-Jacques Rousseau e trabalhava como assistente de Edouard Claparéde, médico e psicólogo suígo. O contato de Antipoff com Claparéde, segundo Campos (2010a), foi crucial no desenvolvimento da visáo da educadora a respeito das relagoes entre inteligencia e educagáo. Nessa época, estava em curso a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), que envolveu tanto os países industrializados da Europa, quanto o imperio russo, cuja industria ainda se encontrava em fase de desenvolvimento. A Rússia vivia o regime czarista, sob o governo autocrático de Nicolau I I . O povo era oprimido "pela censura (...), a prisáo, o trabalho forgado na Sibéria e até mesmo pelas excomunhoes por parte do clero" (D. Antipoff, 1975, pp. 22-23). As classes sociais, excetuando a aristocracia "ligada ainda ao czar" e "os militares credenciados na corte" (D. Antipoff, 1975, p. 26), estavam descontentes, pois camponeses e operarios viviam em condigoes de miseria, e a burguesía encontrava-se insatisfeita diante da incapacidade de um regime arcaico que configurava um obstáculo aos seus progressos. O envolvimento da Rússia na conflagragao mundial agrava os seus problemas internos, desorganizando a economía e intensificando os conflitos de classes: camponeses e proprietários; operarios e burgueses (Crouzet, 1958). A opressao, o descontentamente e os conflitos, em um momento de guerra, criaram um clima de instabilidade política, no qual se preparava movimentos de insurreigao contra o governo: "Os escritos de Marx, as exortagoes de novos líderes populares, entre os quais Trotsky e Lenine, produziam inquietagoes e semeavam o pánico no seio da classe privilegiada" (D. Antipoff, 1975, p. 27). A Rússia passava por um momento crítico: os exércitos russos lutavam contra as tropas alemas, enquanto o povo injustigado e faminto se revoltava contra o governo czarista. Helena Antipoff se impacientava com as leituras dos jomáis, buscando noticias da Rússia e pensando no pai á frente do exército russo. Ao receber a informagáo de que o pai estava gravemente ferido e, diante de todas as dificuldades que um contexto bélico podia oferecer, empreendeu a viagem de volta á Rússia: Vai ao consulado, consulta companhias de transporte marítimo. Em todos os lugares é aconselhada a desistir daquela viagem sozinha, mormente tratando-se de um período táo confuso Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 35 em todos os países que teria de atravessar. Na própria Rússia estaría sem nenhuma garantía de seguranga, devido as insurreigoes internas (D. Antipoff, 1975, p. 46). Mesmo considerando esses riscos, Helena Antipoff seguiu com seu objetivo de auxiliar o pai, viajando para a Rússia sem nenhuma pista de onde ele poderia estar. Ao chegar ao país, tomado pelos levantes revolucionarios contra o czarismo, comegou urna peregrinagao pelos hospitais, as vezes viajando dias de trem em condigoes precarias. Encontra o pai em estado de inconsciencia. A magreza daquele homem de cinqüenta anos, provocada por mais de dez dias sem alimento sólido, tornava-o irreconhecível. Helena repentinamente lembra urna particularidade da mao do pai - o polegar da mao esquerda ligeiramente atrofiado devido a um acídente na infancia. Levanta o cobertor á procura do indicio. A mao também está enfaixada, mas o polegar aparece-lhe nítidamente com aquele corte do dedo (D. Antipoff, 1975, p. 62). Mesmo em condigoes tao desfavoráveis, o Coronel Wladimir Antipoff conseguiu se recuperar. Antipoff permaneceu na Rússia até 1924. Nesse quadro, se operaram transformagoes na Rússia: a monarquía havia sido derrubada e substituida no poder por um governo provisorio, que representou um regime dualista: de um lado o governo "legal", porém fraco, articulado aos interesses da burguesía liberal e de outro, o Soviete (6), ao qual os bolcheviques (7) estavam ligados, pressionando aquele governo que, comprometido com seus aliados franceses e ingleses, manteve a Rússia na guerra. Tal insistencia do governo "legal" de manter a Rússia no confuto contribuiu para o fortalecí mentó dos bolcheviques, cujo programa consistía: na paz; na libertagao das nacionalidades alógenas (oprimidas pelo regime czarista); nacionalizagao dos bancos e das grandes empresas; da expropriagao das propriedades de térra; e do controle da produgao, por parte dos proletarios. Os bolcheviques derrubaram o governo provisorio "legal", por meio de um levante que passou á historia como Revolugao Russa, em outubro de 1917. O ano de 1917 marcou na Rússia a insurreigao popular e a revolugao que instalou os bolcheviques no poder. "Foi também data das grandes violencias e horrores por parte de urna plebe injustigada e faminta" (D. Antipoff, 1975, p. 69). Nesse período, gostaríamos de destacar mais dois episodios que nos ajudaram a conhecer melhor a figura humana da educadora. Em 1918, Helena Antipoff e o jornalista Vítor Iretzky se uniram em "casamento informal" e, no ano seguinte, nasceu o filho do casal. Era um período crítico na Rússia, caracterizado por um governo conturbado que se esforgava para conduzir a Rússia ao socialismo. Porém, a transformagao do velho imperio em um país socialista custou ao governo de Lénine grandes sacrificios: a luta contra opositores internos (os contra-revolucionarios); as intervengoes estrangeiras (principalmente logo após o governo bolchevique retirar a Rússia da guerra, através de um tratado de paz, em separado, com a Alemanha); a elaboragao da Nova Política Económica (N.E.P.), urna tentativa de superar a crise interna, que se agravara com a guerra civil; a fome, que "se espalha por todos os lados, nao há o que comer. Quem arranja um pouco de pao sabe que a quarta parte é constituida de serragem de madeira" (D. Antipoff, 1975, p. 70). No cenário das convulsoes que se seguiram á Revolugao de Outubro, nasceu o filho de Helena Antipoff que, apesar de ter nascido saudável, tornou-se um menino muito magro, a ponto de ser levado a um laboratorio de anatomía, sendo exposto como amostra de raquitismo, mas nem assim a mae conseguiu obter auxilio para Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 37 alimentá-lo. A ajuda veio de uma camponesa que havia perdido um filho da mesma idade e acabou alimentando a crianga por dois meses (D. Antipoff, 1975, p. 71). Em 1919, o jornalista Vítor Iretzky, marido de Antipoff foi preso e, como outros tantos "intelectuais", passou a ser considerado "inimigo do povo": sua punigao foi o exilio na Alemanha, tendo sido extraditado em 1922. Helena Antipoff permaneceu na Rússia até 1924 e, ao ir para a Alemanha encontrar-se com o marido, teve "de optar por uma nova nacionalidade, visto que saindo da Rússia, perde o status de cidada da URSS, conforme o diz o último carimbo aposto ao passaporte de Helena Antipoff" (D. Antipoff, 1975, p. 85). Mas sua nova nacionalidade nao seria alema, uma vez que ela permaneceu pouco tempo naquele país. Em Janeiro de 1925, deixou o marido na Alemanha e desembarcou com o filho em Genebra, onde permaneceu até sua partida para o Brasil, em 1929. Com a permanencia prevista para dois anos, acabou vivendo a maior parte de sua vida aqui. Quando Ihe perguntam se se sentia brasileira ou russa, respondeu: Sou russa, mas antes de tudo sou mulher do mundo - brasileira, francesa, argentina, tudo. Mas nasci na Rússia. Sinto muita saudade da Rússia. Depois que sai, nunca mais voltei. Pensó muito nos campos da Rússia, ñas árvores e nos bosques. Dou meus passeios por lá, em pensamento (H. Antipoff citado por D. Antipoff, 1975, p. 175). Um impasse se impós para Helena Antipoff ante sua decisao de passar dois anos no Brasil. Tratava-se do futuro do filho, Daniel Antipoff, que estava com dez anos de idade. A preocupagao colocou-se em termos educacionais, pois as informagoes de León Walther, psicólogo do Instituto Jean-Jacques Rousseau que viajou ao Brasil antes déla, a esse respeito, nao pareciam atender as suas expectativas: Pelas informagoes obtidas de Walther, o ensino em Minas Gerais está incipiente, ainda em fase experimental. A maioria do magisterio é constituida de mulheres, recém-formadas em escolas normáis. Há ausencia de professores secundarios diplomados, a maioria autodidata (D. Antipoff, 1975, p. 98). A solugao que se apresentou consistía em deixar a crianga na Europa para dar continuidade á educagao já iniciada, "na condigao de interno provavelmente" (D. Antipoff, 1975, p. 98). Para concretizar essa possibilidade, Helena Antipoff procurou uma ex-aluna do Instituto Jean-Jacques Rousseau, que, terminando seu curso, pretendia abrir uma escola em regime de internato. Diante da proposta de "servir de segunda mae e dar ao menino a primeira matrícula na escola que iria organizar" (D. Antipoff, 1975, p. 98). Marguerite Soubeyran se entusiasmou e se mobilizou para angariar fundos e viabilizar a instituigao sob "as características da escola nova, preconizada por Claparéde" (D. Antipoff, 1975, p. 99). Pagando adiantado a pensao do filho, que foi o primeiro aluno matriculado na escola internato de Maggi Soubeyran, Helena Antipoff deixou a Europa e seguiu rumo ao Novo Mundo, em 1929. A estadía prevista para dois anos vai se estendendo e, com isso, mae e filho ficaram separados por quase dez anos. Daniel Antipoff só se transferiu para o Brasil em 1938, devido á iminéncia da Segunda Guerra Mundial. Estamos diante de uma mulher cujo espirito científico se manifestou muito cedo, sendo desenvolvido desde a infancia. Integrando uma familia privilegiada, nao foi poupada dos percalgos da Primeira Guerra e da Revolugao Russa, fazendo desses momentos difíceis oportunidades para colocar em prática seus conhecimentos, como veremos mais adiante. A crenga na ciencia se fez tao forte em sua trajetória Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 33 que, quando se transferiu para o Brasil, o filho ficou na Europa para ser educado num internato que adotava a nova pedagogía, a pedagogía experimental. 3. Helena Antipoff - caminhos para a Psicología e para a Educacao Ao deixar a Rússia pela primeira vez em 1909, Helena Antipoff já havia concluido o ensino secundario e o normal complementar. Ao chegar em Paris, buscou validar os seus diplomas para ingressar no ensino superior, nesse momento "ainda nao sabe exatamente qual o curso que irá seguir, embora em outras épocas houvesse pensado no magisterio" (D. Antipoff, 1975, p. 31). Segundo Daniel Antipoff, inicialmente ela se direcionou para o curso de medicina, na Universidade de Sorbonne, mas considerou as aulas de anatomía e fisiología desinteressantes. Foi quando comegou a freqüentar as aulas de Pierre Janet e Henry Bérgson, no Collége de France e, a partir daí, a psicología passou a ser o foco de seu interesse. Ainda que urna ciencia nova, a psicología a empolga pela maneira como é discutida por aqueles mestres (...). A psicología Ihe parece emocionante e o que Ihe agrada, sobretudo, é nela enxergar urna capacidade de resolver teóricamente urna serie de situagoes (D. Antipoff, 1975, p. 38). O interesse pela psicología parece ter surgido durante sua passagem pela Inglaterra. No período de tres meses em que permaneceu naquele país, em 1911, antes de iniciar as aulas na Sorbonne, fez um estágio de algumas semanas na Saint Helen's School, na cidade de Blackheath. Tratava-se de um educandário para meninos que apresentavam problemas neurológicos, gerando dificuldades nos estudos e na convivencia familiar. Preocupada com essas changas, ela se questionou se a medicina ou outra ciencia nao poderia ajudar no atendimento dispensado a elas. Assim, o valor daquele estágio constituí para Helena mais um motivo de indagagoes do que de satisfagao. Na escola de Blackheath apenas está posto um problema, faltando solucioná-lo. (...) além do médico e do psiquiatra, deve haver outro tipo de técnico, atento aos problemas do doente. Urna metodología diferente deveria ser introduzida e talvez o famoso Alfred Binet pudesse emitir opinioes valiosas (D. Antipoff, 1975, p. 37). No inicio do século XX, Alfred Binet estudava a psicología infantil no Laboratorio de Psicología da Sorbonne e suas pesquisas focavam o desenvolvimento mental das criangas em escolas primarias de Paris. Em 1904, Binet chou um Laboratorio de Pedagogía Experimental numa escola parisiense, apoiado pela Sociéte Libre pour l'Étude de l'Enfant, para que ele e seus colaboradores tivessem o contato com os escolares e pudessem testar a escala de medida da inteligencia, em elaboragao. Resultou dessas pesquisas a primeira versao da Escala Métrica Binet Simón, apresentada em 1905. A padronizagao desses testes, por meio da aplicagao e análise dos resultados, requería o envolvimento de muitos pesquisadores. Helena Antipoff, ao retornar da Inglaterra, passou a freqüentar o curso de medicina da Sorbonne e se aproximou da psicología, devido á sua participagao dos seminarios ministrados pelos filósofos e psicólogos franceses Henri Bérgson e Pierre Janet e, também, colaborou na padronizagao dos testes, tendo iniciado as suas atividades em 1911 (Campos, 2010b). Binet havia falecido naquele ano, Antipoff foi recebida por Théodore Simón, que a aceitou como estagiária do laboratorio de Pedagogía Experimental. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educagao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 39 Foi no trabalho com a padronizagao dos testes Binet-Simon que Antipoff conheceu Edouard Claparéde, da Universidade de Genebra, que a convidou para fazer parte do Instituto Jean-Jacques Rousseau, que pretendía ser "ao mesmo tempo urna escola das ciencias da educagao (aberta a todos que se dedicavam ao ensino) e um laboratorio de pesquisas" (Claparéde, 1953, p. 97). Diante do convite, Helena Antipoff deixou o curso de medicina e seguiu para o Instituí des Sciences de l'Education, da Universidade de Genebra, onde obteve, entre 1912 e 1914, a certificagao dos seus estudos, conforme diploma emitido pelo Instituto (1914): Instituto J. J. Rousseau. École des Sciences de L'Education. DIPLOME - Madame Hélene Antipoff de Russia a été inscrit a l'Institut J. J. Rousseau en qualité d'éléve regulier pendant quatre semestres. Me. a suivi les cours et pris une part active aux travaux pratiques que comporte le plan d'etudes. Elle prouvé qu'elle a pleinement profité de cet enseignement. Geneve, 15 de juillet 1914. Assinado por Claparéde (s. p.). (8) A Europa, nesse período, no campo educacional, estava passando por um movimento de renovagao, impulsionado pelas mudangas políticas iniciadas no século XVIII com a Revolugao Francesa. Diante dos processos de ampliagao do acesso á escola, urna questao se colocava aos educadores: como trabalhar com as diferengas individuáis e ainda contribuir para a reprodugao da divisao social do trabalho? Segundo Campos (2002), essas tensoes estavam presentes e se intensificavam nos sistemas de ensino de massa, construidos, na verdade, sob a pressao de demandas contraditórias: a pressao das populagoes trabalhadoras e das carnadas medias pela ampliagao do acesso as oportunidades educacionais e a pressao das élites dirigentes pela formagao para o trabalho ñas modernas sociedades industriáis (p. 16). O Laboratorio Binet-Simon e o Instituto Jean-Jacques Rousseau estavam envolvidos nesse movimento de renovagao, respondendo a essas demandas educacionais. Binet propós, em 1908, a escala métrica de inteligencia, visando avahar as capacidades cognitivas das changas e planejar programas de educagao adequados a cada nivel, distribuindo as criangas em estabelecimentos ou classes especiáis. Claparéde, pensando no ensino atento as diferengas individuáis, desenvolveu a proposta da "Escola sob Medida". Em linhas gerais, é esse o contexto que orientou Helena Antipoff em sua formagao como educadora e psicóloga e, a partir das leituras de seus escritos, podemos inferir que seu pensamento e sua agao apresentavam tragos evidentes da influencia dos educadores citados, principalmente Edouard Claparéde, amigo pessoal que ela admirava como um educador diferente "dos educadores de sua época, geralmente prepotentes e acostumados a cercear a liberdade dos discentes, impingindo-lhes seus métodos nem sempre adequados" (D. Antipoff, 1975, p. 42). Faz-se necessário indicar que os autores aqui destacados nao esgotam as suas fontes formativas, haja visto que Antipoff tem em sua formagao um rol de diferentes autores e, por sua postura científica, estava sempre estudando e incorporando novos elementos. De acordó com Campos (2010b), os autores mais citados nos cinco volumes da Coletánea das Obras Escritas de Helena Antipoff sao Edouard Claparéde, Alfred Binet, Théodore Simón, Alice Descoeudres, Johann Heinrich Pestalozzi, Ovide Décroly, Jean Piaget, Alexander Lazursky, Ernst Meumann e William Stern. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 40 3 . 1 . Apontamentos sobre os pressupostos Teóricos e Metodológicos de Helena Antipoff e o seu Trabalho com Criancas na Rússia e na Suíca. Inserida num contexto de renovagao educacional, Helena Antipoff endossava aquele movimento de renovagao, cujos principios encontravam eco nos seus escritos, como evidencia esse trecho publicado em 1927: "Toda pedagogía avangada se baseia teóricamente no conhecimento da changa. Sem esses conhecimentos nao é possível a 'escola sob medida'. Supérfluo é defender tais assergoes, pois estas já sao comumente admitidas por todos que proclamam a nova educagao" (H. Antipoff, 1927/1992b, p. 29). Diante desse fato, para avangarmos na pesquisa das idéias e propostas educacionais de Helena Antipoff, foi crucial conhecer os principios da "Escola sob Medida" que segundo o próprio autor, nao é algo original, foi inspirada "nos exemplos de Dewey, Decroly e Montessori" (Claparede, 1953, p. 199) e apresentada em contraposigao aos "defeitos do regime tradicional" (p. 193). A educagao devia ter como centro dos programas e dos métodos escolares a crianga e considerar as aptidoes individuáis. Segundo Claparede, "urna aptidao é urna disposigao natural a comportar-se de certa maneira, a compreender ou sentir de preferencia certas coisas ou a executar certas atividades de trabalho" (Claparede, 1953, p. 167). Cada aptidao implicava, necessariamente, o desenvolvimento de certas habilidades (9) e elas variavam de um individuo para outro, sendo que cada um carregaria urna diversidade de aptidoes, cuja media determinava a "inteligencia global" (p. 167). Claparede criticava a escola tradicional por ignorar essas diferengas individuáis e deixava claro que a educagao deveria obedecer á natureza da crianga: "a observagao nos mostra que um individuo só produz na medida em que se apela para suas capacidades naturais, e que é perda de tempo querer por forga desenvolver nele capacidades nao possuídas" (p. 174). Nesse cenário, o papel da educagao transformava-se. Antes de se preocupar com a carga de conhecimentos memorizaveis que possuem os programas escolares, devia empenhar-se em desenvolver as fungoes intelectuais e moráis de cada individuo. Caberia ao professor despertar essas fungoes para que o aluno pudesse, por si mesmo, por meio do trabalho e da pesquisa pessoal, adquirir os conhecimentos. A chave para fazer despertar a crianga para as atividades propicias ao seu desenvolvimento moral e intelectual era, segundo Claparede, a necessidade, já que "toda necessidade tende a provocar as reagoes próprias a satisfazé-la" (Claparede, 1953, p. 118). Os estímulos exteriores nao suscitarao reagoes se estas nao responderem á necessidade do individuo. Assim, um novo cenário se apresentava á escola, que devia ser ativa no sentido de mobilizar as atividades das criangas e, nesse novo cenário o medo e o castigo nao tinham razao de existir, pois o que surtiría efeito no processo educativo seria o interesse pela coisa que se tratava de assimilar. Num relatório apresentado em 1922, ao Congresso de Higiene Mental de Paris, Claparede (1953) apontou medidas praticas para que as aptidoes de cada individuo fossem respeitadas pela escola: É necessário que a escola leve mais em conta as aptidoes individuáis e se aproxime do ideal da escola sob medida. Poder-se-ia chegar a esse ponto, deixando nos programas, ao lado de um programa mínimo, comum e obrigatório a todos, e tratando de disciplinas indispensáveis, certo número de ramos a escolher, podendo ser aprofundado pelos interessados, á sua vontade, movidos por seu interesse e nao pela obrigagao de passar num exame sobre elas (p. 127). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 ¿\\ Outra medida sugerida por Claparéde, as "Classes Paralelas", consistía na subdivisáo das classes em "classe forte, para os mais inteligentes, e urna classe fraca para os que tém mais dificuldade em segui-la" (Claparéde, 1953, p. 179). Nessas classes para os mais fracos, o programa seria reduzido e o ritmo seria mais lento, o número de alunos seria menor, o que possibilitaha cuidar melhor de cada um e, por fim, os métodos seriam mais intuitivos. Entretanto, para Claparéde o sistema educativo nao podia ser tomado como um modelo definitivo e fechado em seus encaminhamentos, já que "melhor seria nao cristalizar coisa alguma e ter urna organizagáo maleável, de modo que acolhesse qualquer nova melhoria, para se valer de qualquer retoque que a tornasse mais próxima da perfeigáo" (p. 166). Esse processo dinámico impunha á "pedagogía prática o estudo em profundidade dos fatos psicológicos em correlagao com as melhorias desejadas, e principalmente, experiencias, ensaios" (Claparéde, 1953, p. 165). Assim, a pedagogía nao se constituía em área autónoma e "só a ciencia, principalmente a psicología, poderá fornecer á arte da educagáo as técnicas que permitam, com alguma certeza, atingir as metas que ela se propoe" (p. 193). Essas técnicas referiam-se, sobretudo, ao conhecimento da changa, pois esta deveria ser o centro do sistema educativo, os seus interesses, o motor da educagáo, e esse conhecimento seria a ferramenta para o trabalho do educador. A pedagogía para Claparéde era experimental, quer dizer, devia-se conhecer a changa para melhor ajudá-la no seu desenvolvimento. Nesse sentido, Claparéde criou junto ao Instituto Jean-Jacques Rousseau, a Maison des Petits, "um meio educativo onde se pudesse fazer a verificagáo prática das melhorias e reformas sugeridas por um conhecimento mais aprofundado da psicología infantil" (Claparéde, 1953, p. 198). O termo escola nao foi empregado, pois o intuito era fazer da instituigáo a reprodugáo da vida da changa, associada a diversas atividades e "nao um paréntese artificial introduzido em sua própria vida" (p. 199). A instituigáo recebia criangas desde a idade de tres anos que poderiam ai permanecer até a adolescencia, tendo como um dos primeiros alunos o filho de Claparéde. O filho de Helena Antipoff, Daniel Antipoff, também estudou na "Maison des Petits", entre 1925 e 1927. De acordó com Claparéde, situada em meio a jardins e pomares, a instituigáo "nao tem nada de construgáo escolar. As criangas entram e saem como querem, segundo as necessidades de ocupagáo" e "se deseja que as criangas queiram tudo o que fazem. Deseja-se que elas atuem e nao sejam atuadas" (Claparéde, 1953, p. 199-200, grifo do autor). Helena Antipoff compós o quadro das primeiras professoras que atuaram junto á instituigáo, onde Claparéde realizou "as primeiras experiencias de observagáo psicológica com criangas de países ocidentais" (D. Antipoff, 1975, p. 90). A educadora falou de seu trabalho na Maison des Petits num artigo publicado em 1927. Atualmente, estudamos na "Maison des Petits" o caráter das criangas, observando-as em sua conduta para com o trabalho manual. Dezoito criangas, de 7-8 anos foram metódicamente observadas durante muitos meses. Pudemos recolher um grande número de reagoes características, gragas a algumas ocupagoes (H. Antipoff, 1927/1992b, p. 40). Esse encaminhamento seguido por Helena Antipoff na instituigáo, nos remete ao método utilizado para alcangar o conhecimento das criangas e que tipo de conhecimento estava em pauta. Tratava-se do Método de Experimentagáo Natural, apropriado para o estudo do caráter e da personalidade dos individuos, e o qual, de acordó com Campos (2010a), era urna alternativa ao uso dos testes padronizados, pois consistía em observar a changa em seu ambiente natural, procurando assim evitar a artificialidade do laboratorio. Os principios do Método de Experimentagáo Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 42 Natural foram expostos, em 1911, no Congresso de Pedagogía Experimental, de Sao Petersburgo, pelo psicólogo e psiquiatra russo Alexandre Lazursky; e da aplicagao de testes de inteligencia, baseados na Escala Métrica Binet - Simón, dos quais a educadora participou dos ensaios de padronizagao. Helena Antipoff referiuse ao método Binet - Simón como "um golpe de genio no terreno da psicología aplicada" (H. Antipoff, 1931/1992d, p. 73), que "teve por finalidade fornecer um criterio objetivo para a selegao de criangas retardadas, visando a sua distribuigao em estabelecimentos ou classes especiáis" (H. Antipoff, 1928/1992c, p. 43). Esses autores partiram do pressuposto de que o espirito da crianga, assim como seu corpo, crescia quantitativamente em fungao da idade e das experiencias adquiridas naturalmente em contato com o mundo. Sendo assim, eles apoiaram o desenvolvimento mental em exercícios para diferentes idades, traduzidos em urna serie de testes, desde os primeiros meses até a idade adulta (H. Antipoff, 1931/1992d). O resultado final, obtido pela crianga nos exercícios, era confrontado com a escala de pontos do bareme - "um resumo das medias dos pontos obtidos por um conjunto de criangas de idades diferentes sobre as quais a prova foi ensaiada" (H. Antipoff, 1928/1992c, p. 44). Era desse confronto que se determinava a dificuldade e se atribuía a idade mental. Segundo H. Antipoff (1931/1992d): Gragas ao método de Binet e Simón, foi possível medir o desenvolvimento mental das criangas. Medir quer dizer comparar urna quantidade com outra tomada como unidade. Medir o desenvolvimento mental de urna crianga quer dizer compará-lo com o estabelecido previamente sobre urna quantidade de criangas e tomado como medida (pp. 75-76). Esses testes ficaram conhecidos como testes de inteligencia, porém Helena Antipoff faz urna ressalva quanto á utilizagao desse conceito, pois "a inteligencia revelada por meio destes testes é menos urna inteligencia natural (como quis Binet), que urna inteligencia civilizada" (H. Antipoff, 1931/1992d, p. 77). Esse conceito de "inteligencia civilizada" foi elaborado por Helena Antipoff durante seu trabalho com criangas abandonadas na Rússia entre 1920 e 1924 (10). Ao serem avahadas pelos testes, essas criangas apresentavam um atraso mental de dois a tres anos em relagao á idade cronológica. Esse resultado se explicava, segundo H. Antipoff (1931/1992d), pelo fato de que essas criangas viviam marginalizadas: á margem da familia, da escola e da sociedade com suas leis e suas regras, essas criangas se formavam á margem da vida civilizada. Nao sendo destituidas de inteligencia natural, nao possuíam precisamente essa inteligencia que se tritura e se disciplina ao contato do exemplo no seio do regime regrado, essa inteligencia civilizada, que prescrutamos por meio de nossos testes chamados de inteligencia geral (pp. 78-79). Em outras palavras, para Helena Antipoff, a inteligencia geral nao se processava independentemente da educagao, da instrugao e do meio em que a crianga se formava e, essa influencia do fator social no desenvolvimento mental das criangas "já foi nítidamente notada por Binet e Simón ñas aplicagoes de seus testes as criangas de diferentes bairros de Paris" (H. Antipoff, 1931/1992d, p. 100). Segundo Helena Antipoff, esses testes, eficientes para se conhecer o desenvolvimento mental, a inteligencia, que ela chamou de civilizada, se mostravam incompletos quando se tratava de estudar a personalidade das criangas, pois "fracionando a personalidade em fungoes ¡soladas, estudando-a em condigoes Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 43 artificiáis, falseando nossa estrutura auténtica" (H. Antipoff, 1931/1992d, p. 30), os testes nao apresentam a "preocupagao de abranger o comportamento no seu conjunto" (H. Antipoff, 1950/1992f, p. 161). Por serem realizados em condigoes artificiáis, resultavam condutas também artificiáis. Para o estudo da personalidade infantil, Helena Antipoff (1927/1992b) destacou o método proposto por Alexandre Lazursky que, observando as criangas de urna escola, registrando todas as suas condutas descobriu que: segundo o género de ocupagoes escolares, o comportamento da crianga revelava determinados aspectos de sua personalidade. Cada ocupagao determinada suscitava na crianga reagoes de categorías particulares (...): a memoria, a imaginagao, a observagao, as fungoes motrizes, as tendencias afetivas, a vontade (p. 31). Partindo desse pressuposto, o psicólogo russo elaborou um quadro de ligoes, cuja realizagao deveria ser observada ñas criangas. Tratava-se de "exercícios escolares, daqueles que mais riqueza e seguranga demonstravam no estudo da personalidade da crianga, chegando a fixar nove exercícios" (H. Antipoff, 1927/1992b, p. 32). A partir desses exercícios, as observagoes eram dirigidas, possibilitando relacionar as reagoes as condigoes estabelecidas. Cada reagao era relacionada ao "equivalente psicológico que se encontrava implícito na conduta exterior da crianga" (p. 32). As respostas e as reagoes das criangas eram distribuidas em níveis: inferior, medio, superior, constituindo um elemento de medida, permitindo a expressao gráfica dos resultados, gerando perfis psicológicos que evidenciavam "o essencial da personalidade da crianga" (p. 37). A repetigao da experiencia ao longo do tempo revelava o progresso, regresso ou estacionamento da crianga, com a vantagem de estudar a personalidade dessa crianga em seu meio, sem fracionar o seu comportamento em elementos ¡solados. Helena Antipoff destacou a síntese do método de Lazursky pelas palavras do próprio autor: "Nos estudamos o individuo pela vida mesma, e a crianga pelos objetos do ensino escolar" (Lazursky citado por H. Antipoff, 1927/1992b, p. 40). Foi a experiencia com as criangas russas que possibilitou a Helena Antipoff colocar em prática esses conhecimentos científicos. Ao retornar áquele país em 1916, permaneceu até 1924 e, nesse ínterim, a educadora trabalhou com as criangas órfas, vítimas da guerra e da revolugao: ñas cidades grandes ocorre um fenómeno cada vez mais freqüente que consiste num afluxo de criangas e adolescentes sem pais e que em bandos percorrem a cidade. Constituem um perigo para as populagoes, porque inicialmente bem intencionados e a procura de trabalho, acabam tornando-se delinqüentes (D. Antipoff, 1975, p. 66). Diante dessa situagao, Helena Antipoff foi convidada pelo centro médico-pedagógico de Sao Petersburgo para estudar as criangas abandonadas e, a partir de urna classificagao, "encaminhá-las, segundo seu caráter, para as 150 instituigoes pedagógicas, médicas e jurídicas que possuímos" (H. Antipoff, 1927/1992b, p. 39). A tarefa nao era fácil, já que a origem e o perfil dessas criangas eram os mais variados: ao lado de criangas provenientes de um meio burgués, jogadas ñas rúas por azares da sorte, encontravam-se os meninos de rúa que conheciam apenas as asperezas da vida, caídos em vicios dos mais ignóbeis; casos de perversao moral ao lado de criangas intactas em sua Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 44 confianga a mais candida (H. Antipoff, 1927/1992b, p. 39). Esse quadro se complicava porque as criangas nao apresentavam nenhuma documentagáo, nao informavam sobre seu passado ou dissimulavam as informagoes e seu comportamento, percebendo que, de sua conduta, que estava sendo observada, dependía o seu futuro. Foi nesse cenário que o método proposto por Lazursky encontrou terreno fértil para ser aplicado com sucesso, conforme relato de Helena Antipoff (1927/1992b): nos os havíamos observado durante o almogo. Todos, esfomeados, se comportavam durante a refeigáo, segundo seu próprio caráter. O instinto mais forte do que eles revelava toda a conduta moral e social que nos interessava em primeiro plano. Pusemo-nos entáo a observar, atendendo ao espirito da observagáo natural, as manifestagoes das criangas durante as refeigoes. Introduzimos nessas observagoes elementos de experimentagáo, variando muitas vezes as normas das refeigoes (...). Sem tais refeigoes, jamáis poderíamos aprender tanto sobre o caráter dessas criangas (p. 39). Na Rússia, é importante ressaltar, ainda, sua atuagáo no Laboratorio de Psicología Experimental de Sao Petersburgo, onde "empreendeu um exame de nivel mental das criangas entre 4 e 9 anos. Queria-se verificar se a época extraordinaria da guerra e do terror podia influir sobre o desenvolvimento mental" (H. Antipoff, 1924/1992a, p. 09) e no Reformatorio de Menores, ficando encarregada da educagáo de 150 adolescentes, com os quais a educadora realizou um trabalho de investigagao psicopedagógica: realiza um trabalho completo de investigagao psicopedagógica. Separa-os em grupos mais homogéneos, prevendo para uns, além da assisténcia pedagógica, um reforgo também no tratamento medicamentoso e alimentar. Para outros, um regime de semivigiláncia e de menor exigencia intelectual, preconiza atividades práticas, desenvolvida preferencialmente em áreas rurais e profissionais (D. Antipoff, 1975, p. 76). Em 1922, Helena Antipoff transferiu-se para Viatka, convidada para trabalhar na Estagáo Médico-Pedagógica, "especie de patronato para adolescentes difíceis" e, na fungáo de psicóloga, recebeu "carta branca para organizar o sistema de atividades educacionais e escolares propriamente ditas" (D. Antipoff, 1975, p. 81). Ainda em Viatka, a educadora organizou um laboratorio de psicología onde, contando com algumas ajudantes, "examinam as criangas, fazendo urna ampia descrigáo pormenorizada quanto a características e aptidoes" (idem). As atividades desenvolvidas por Helena Antipoff na Rússia foram interrompidas em 1924 com sua ida para a Alemanha, onde a educadora nao conseguiu retomar suas atividades profissionais ñas instituigoes escolares: "após algumas tentativas de trabalho em escolas alemas, Antipoff toma consciéncia de sua dificuldade em adaptar-se á mentalidade germánica (...). Acaba organizando por conta própria um jardim de infancia, destinado aos filhos russos expatriados, residentes em Berlim" (p. 86). Sua permanencia naquele país foi de apenas um ano. Em Janeiro de 1926, voltou á Genebra para trabalhar ao lado de Claparéde como assistente no Laboratorio de Psicología da Universidade de Genebra, conforme oficio expedido pelo Conselheiro do Estado, responsável pelo Departamento de Instrugáo Pública: Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 45 Á Madame Héléne Antipoff Madame, J'ai l'honneur de vous transmettre ci incluse la copie de l'arrété par lequel le Conseil d'Etat vous nomme aux fonctions d'assistante au laboratoire de psychologie de l'université. Veuillez agréer, Madame, l'expression de ma considération distinguée (Geneve, 7 janvier 1926). (Le Conseiller D'état, 1926, s. p.). (11) Em 1928, Antipoff foi indicada para substituir Claparéde e assumir a diregao do Laboratorio de Psicología, conforme oficio do Departamento de Instrugao Pública: Madame, J'ai l'honneur de vous informer que, sur le préavis de la Faculté des sciences et du Bureau du Sénat, le departement vous charge, pour l'annee scolaire 1928-1929, du remplacement partiel de M. le professeur Edouard Claparéde. II est entendu que vous aurez la direction du laboratoire. Votre traitement sera calculé conformément aux dispositions que M. Claparéde a prises avec vous et qu'il a communiquées au Departement. Veuillez agréer, Madame, l'expression de ma considération destinguée (Geneve, 31 octobre, 1928) (Le Conseiller D'état, 1928, s. p.). (12) No Instituto Jean-Jacques Rousseau, que estava numa fase de grande desenvolvimento, com varios cursos programados, assumiu o cargo de professora de Psicología da Crianga. A experimentagao natural foi utilizada para estudar criangas entre 6 e 8 anos, observadas nao em atividades escolares propriamente ditas, mas durante a execugao de trabalhos manuais que, segundo Antipoff, "ofereceram preciosos meios para ampia revelagao da personalidade dos pequeños trabalhadores, podendo ser estudados com bastante exatidao e objetividade os variados aspectos da personalidade" (H. Antipoff, 1950/1992g, p. 168). Helena Antipoff destacou as seguintes modalidades de trabalho praticadas na Maison des Petits: tecelagem, marcenaría, modelagem, costura e bordados, desenho nos cadernos e pintura, etc. (H. Antipoff, 1950/1992g, p. 168). O comportamento das criangas diante da execugao do trabalho era observado e, a partir das reagoes individuáis, era tragado o perfil psicológico de cada urna (13). Assim, o trabalho era utilizado como um meio para se conhecer a personalidade das criangas: "em todas as modalidades do trabalho bem-descritas e bem-conhecidas as reagoes individuáis de cada urna de um grupo de 20 criangas mais ou menos, nao foi difícil tragar para cada urna seu perfil psicológico" (p. 169). Os tres anos que Helena Antipoff permaneceu em Genebra também se caracterizaram por intensa atuagao profissional e produtividade científica. Nesse período, conforme Campos (2010a), enfocava especialmente o desenvolvimento da inteligencia na crianga, a relagao entre processos psicológicos superiores e motricidade, além do julgamento moral. Foi quando sua fama ultrapassou os países de língua francesa, pois "em 1929, o mais respeitado livro de registro da Europa, The psychological register de Londres traz os dados biográficos da colaboradora de Claparéde, reconhecendo-lhe raros méritos" (D. Antipoff, 1975, p. 95). 4. Helena Antipoff - Caminhos da Europa para o Brasil É certo que a atuagao de Helena Antipoff, na fungao de assistente de Claparéde e professora de Psicología do Instituto Jean-Jacques Rousseau ultrapassou as fronteiras dos países de língua francesa. Além do nome da educadora ser citado no respeitado livro de registro da Europa, The psychological register, de Londres, em 1927, o governo mineiro efetivou o convite para sua vinda ao Brasil nesse mesmo Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educagao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 45 ano. O currículo de Helena Antipoff chama a atengao por sua produtividade científica, porém, outros fatores devem ser analisados para esclarecer as motivagoes que levaram o governo mineiro a efetivar o convite. Nesse sentido, interessa a Reforma Francisco Campos, em 1927, em Minas Gerais (14). A Reforma de Ensino em Minas Gerais compós o movimento que envolveu outros estados brasileiros e que, apesar de nao integrar uma política nacional de educagao (15), buscou colocar em prática o ideario da Escola Nova no país. O governo mineiro empreendeu a reforma do ensino, que atingiu o ensino primario e o normal, sob a argumentagao de adequar a escola para atender as novas demandas sociais. O autor da reforma foi Francisco Campos que, em 1926, assumiu o cargo de Secretario dos Negocios do Interior e da Justiga do Estado de Minas Gerais (16). A formagao dos recursos humanos para colocar em prática as propostas de renovagao do ensino se realizou com a ida de professores mineiros aos Estados Unidos para se aperfeigoarem nos novos métodos (17). Além disso, Francisco Campos convidou especialistas europeus para virem ao Brasil com o intuito de "testar a aplicagao destas idéias em nosso meio e de preparar elementos capazes de orientar e avaliar sua implantagao ñas escolas" (Peixoto, 1981, pp. 173-174). Foi para contemplar esse objetivo que o convite foi feito a Helena Antipoff, já em 1927, pelo representante do governo mineiro, Alberto Alvares. Porém, nesse momento, a educadora nao aceitou a proposta, e justificou sua decisao a Claparéde: "estou bem aqui, satisfeita, e na verdade há apenas dois anos, desde que vim para comegar o trabalho no laboratorio" (H. Antipoff citado por D. Antipoff, 1975, p. 97). Ela indicou León Walther, também psicólogo do Instituto JeanJacques Rousseau, para assumir o trabalho no Brasil. Este aceita o convite e no ano seguinte já estava a servigo do governo mineiro. Também veio ao Brasil, no inicio de 1929, Théodore Simón, da Universidade de Paris. Auxiliar de Binet na organizagao das primeiras escalas de medida de inteligencia, aqui ministrou curso de Psicología aplicada á aprendizagem e, trabalhando com as criangas mineiras, adaptou os testes de inteligencia as criangas brasileiras (Peixoto, 1981). Contando com o apoio técnico dos europeus e dos professores brasileiros formados no exterior, Francisco Campos colocou em atividade, em 1929, a Escola de Aperfeigoamentó, criada para atender o seguinte objetivo: preparar e aperfeigoar os candidatos ao magisterio, á assisténcia técnica do ensino e as diretorias dos grupos escolares, constituindo-se num laboratorio de pesquisas e experimentagao na área de metodología do ensino e num importante centro de irradiagao dos novos métodos (Peixoto, 1981, p. 175). Nesse momento, León Walther decide retornar á Europa, e quem veio substituí-lo foi Helena Antipoff, assinando um contrato de dois anos com o governo do estado de Minas Gerais, pelo qual "fica estipulado um contrato de trabalho como professora de psicología, numa base de remuneragao a um ordenado, em moeda atual, de cerca de 20.000 cruzeiros" (D. Antipoff, 1975, p. 99). A partir da Reforma Francisco Campos podemos afirmar que as idéias endossadas por Helena Antipoff, no campo educacional, chegaram ao Brasil e, específicamente, em Minas Gerais, antes déla. Foi justamente uma convergencia de principios que motivou os dirigentes mineiros a convidá-la para atuar junto ao sistema de ensino. No Regulamento do Ensino Primario, Francisco Campos referiu-se diretamente aos resultados das pesquisas realizadas na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, e no Instituto Jean-Jacques Rousseau, na Suíga, como solugoes definitivas para a educagao: "o ensino primario tem sido objeto de uma larga e profunda investigagao, de que alguns resultados teóricos e aquisigoes práticas podem ser considerados definitivos" (Campos citado por Peixoto, 1981, p. 115). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas agoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 47 Avahando que os dispositivos para realizar a renovagao do ensino já se encontravam definidos nos documentos oficiáis, consubstanciados a partir de decretos-leis, podemos inferir que, na perspectiva do governo mineiro, a atuagao da educadora no cenário educacional se restringiría a endossar os fundamentos da reforma e auxiliar na implantagao da mesma. Os termos do contrato que oficializou a vinda de Helena Antipoff para o Brasil confirmam essa constatagao, pois a primeira cláusula determinava que a educadora realizasse a aplicagao dos testes nos escolares da capital mineira e capacitasse os professores na técnica da Psicología: 1. Madame Antipoff est engagée en qualité de professeur de psychologie, et spécialement de psychology experiméntale et de psycology de l'enfant, á l'Ecole Nórmale officielle et á l'Ecole de Perfectionement á Belo Horizonte; elle aura également pour tache de faire subir aux enfants des ecoles primaires des épreuves psychologiques, ayant pour but l'étalonnage des tests, ainsi que de mettre au courant de la technique psychologique lé personnel enseignant (Contrato, 1929, p. 1). (18) Os termos das renovagoes do contrato de trabalho da educadora com o estado de Minas Gerais, em 1935 (Contrato, 1935) e 1938 (Contrato, 1938), repetem, em portugués, a mesma determinagao. 5. As atividades de Helena Antipoff em Belo Horizonte na década de 1930: caminhos para a educacao especial O curso na Escola de Aperfeigoa mentó, com duragao de dois anos, funcionava em período integral e as aulas de Antipoff conjugavam a parte teórica com as atividades práticas referentes a pesquisas realizadas ñas escolas públicas, cujo objetivo era conhecer "a conduta da changa, seus modos diferentes de reagir durante o trabalho escolar, ou mesmo durante o recreio" (H. Antipoff, 1928/1992c, p. 59). Era o Método de Experimentagao Natural, aplicado á realidade brasileira e, com o intuito de subsidiar a implantagao das classes homogéneas, previstas na Reforma de Ensino (1927), os testes de inteligencia geral, inspirados na escala métrica Binet-Simon, também foram aplicados. A organizagao dessas classes se deu de forma semelhante as "classes paralelas" propostas por Claparéde e as atividades pedagógicas seguiram os principios da "Escola sob Medida". As atividades realizadas por Helena Antipoff na Escola de Aperfeigoa mentó e junto aos grupos escolares de Belo Horizonte e seus resultados foram publicadas nos boletins da Inspetoria Geral de Instrugao e constituem fonte de pesquisa sobre as agoes da educadora em Minas Gerais na década de 1930 (H. Antipoff, 1930a, 1930b, 1931, 1932a, 1932b; Antipoff & Cunha, 1930; Antipoff & Resende, 1934). Foi a partir dessas atividades, mais específicamente a homogeneizagao das classes escolares, que Antipoff direcionou suas agoes para organizagao de urna educagao especializada no sistema de ensino mineiro. A aplicagao dos testes em larga escala, de forma sistemática para a homogeneizagao das classes, comegou em fevereiro de 1931. Para Antipoff, agrupar as changas em classes homogéneas significava obedecer ao principio da organizagao racional do trabalho, posto em evidencia por Frederick Taylor, e que, para ela, significava introduzir elementos novos, utilizando, únicamente, os próprios recursos da instituigao escolar, sem acrescentar despesas. Semelhantes as classes paralelas propostas por Claparéde, essas classes agrupavam as changas de acordó com as diferengas individuáis, para que fosse possível escolher os meios mais eficientes para educá-las, já que "nao é a homogeneidade dos alunos que determina o seu sucesso, mas é, eremos nos, o ensino correspondendo ao Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educagao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 43 desenvolvimento das criangas" (Antipoff & Rezende, 1934, p. 07). Nesse contexto, eram consideradas as diferengas biológicas e psicológicas da changa, sua personalidade, seus interesses e aptidoes, suas atividades e energías, suas faculdades intelectuais e seus conhecimentos. O texto encaminhado por Helena Antipoff á IV Conferencia Nacional de Educagao, promovida pela Associagao Brasileira de Educagao (ABE), em dezembro de 1931 (19), tratou da selegao das criangas em classes homogéneas. Ao falar dos criterios da selegao e das vantagens que déla decorriam, a educadora apresentou o conceito de changa, considerada como um ser em estado de evolugao e que, portanto, a marcha evolutiva deveria orientar a selegao: As criangas, nascidas mais ou menos na mesma época, tendo todas partido de um mesmo ponto, crescendo e tendendo ao estado adulto, realizam essa trajetória em ritmos diferentes (...). É fato digno de nota que, enquanto urnas, a maioria, atingem o fim, percorrendo as etapas sucessivas, outras em minoria, jamáis o atingem. Essas nunca se tornarao adultas no sentido biopsicológico da palavra, seja porque tenham iniciado a vida com urna reserva de forgas insuficiente para perfazer o caminho total, seja pelo fato de sobreviverem a acidentes no meio do caminho. Destacam-se assim em urna das extremidades da escala, criangas precoces, e em outra, lentas e retardadas, deixando ver na parte central um conjunto bastante denso de criangas cujo desenvolvimento se faz no ritmo medio (Antipoff & Rezende, 1934, pp. 11-12). Segundo a educadora, ao lado dessas diferengas na evolugao bio-psicológica existia urna grande quantidade de caracteres que deveriam ser levados em conta para distinguir "os robustos e os fracos, os bem dotados e os mediocres (...); as naturezas completas e plenas de seiva e, ao lado, os seres incompletos e pobres de vitalidade física e mental, as naturezas organizadas e harmoniosas, e as desorganizadas e sem equilibrio" (Antipoff & Rezende, 1934, p. 12). Em síntese, existiriam as criangas normáis e as "excepcionais", superdotadas ou infradotadas, e, para cada um desses perfis, deveria ser pensado um programa e método de ensino. A justificativa para a criagao das classes especiáis nos grupos escolares foi que esse procedimento "descongestionaria" as classes dos elementos que "entravam a marcha escolar", permitindo aos considerados "normáis" o "progresso regular". Estando agrupados, esses "elementos irregulares do ponto de vista escolar e do desenvolvimento mental, (a classe especial) assegura-lhe o máximo de rendimento" (H. Antipoff, 1932/1992e, p. 161). No texto apresentado á ABE, em 1931, Antipoff salientou a grande variagao dos tipos escolares e, para atender a todos, seria necessário, além das classes A, B, C e D, a criagao da classe E "a qual tomaría menos em consideragao o desenvolvimento mental e a inteligencia do que o conjunto do procedimento ou do caráter" (Antipoff & Rezende, 1934, p. 19). Seria urna classe de educagao individual no sentido mais estrito do termo e que agruparía um perfil específico, segundo a educadora: As criangas particularmente difíceis de educar os agitados, os neuróticos, os anti-sociais, as criangas moralmente defeituosas - e cuja presenga na classe comum e muito cheia só prejudicaha a seus múltiplos companheiros sem Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educacao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 49 que elas mesmas possam dali retirar a necessária melhoria (Antipoff & Rezende, 1934, p. 19). Nesse processo de separagáo dos alunos em diferentes tipos de classe, percebe-se urna subdivisáo da categoría "excepcional". De um lado, aquelas consideradas "excepcionais" devido ao desenvolvimento mental aquém ou além do padráo estabelecido para criangas da mesma idade; e, por outro, aquelas consideradas "excepcionais" a partir da análise de sua conduta ou seu caráter. Assim, temos, "os excepcionais 'orgánicos', portadores de disturbios de origem hereditaria ou biológica, e os excepcionais 'sociais', isto é, aqueles cujas condigoes de vida familiar ou social impediam urna adequada estimulagáo" (Campos, 2002, p. 22). Quanto a esse perfil de criangas da Classe E, H. Antipoff (1932a) afirmou que nao eram excegoes ñas escolas mineiras: As criangas indisciplinadas, desequilibradas, que apresentam perturbagoes de caráter, as antisociais e as criangas em perigo moral nao constituem raras excegoes nos grupos escolares de Belo Horizonte ou do interior. Vimos bom número de fichas psicológicas dessas criangas, como tivemos pessoalmente trato com elas (p. 18). Entretanto, mesmo tendo mencionado as classes E para o encaminhamento desse tipo de changa, Antipoff salientou que nao aconselhava a nenhuma de suas alunasprofessoras a sua organizagáo, pois prefería ver essas criangas junto aos alunos normáis, correndo o risco de causar problemas a estes "do que selecioná-las em classes especiáis, onde a sua conduta entre as máos de um professor inexpehente pode explodir como urna bomba de dinamite e perturbar a tranqüilidade do grupo inteiro" (H. Antipoff, 1932c, p. 18). Para essas criangas em "perigo moral" seria preciso mais do que urna classe especial, fazendo-se necessário um "foco educativo, em que as criangas possam passar todo o seu dia e, á falta de internato, nao voltar senáo á noite para junto da familia" (H. Antipoff, 1932c, p. 19). Helena Antipoff, continuando sua agáo no sistema de ensino mineiro, passou também a se dedicar á organizagáo de um servigo especializado para atender a essas criangas, urna vez que nao era do Estado que a educadora esperava solugáo para o problema: Cumpre procurar outros meios menos radicáis talvez, e dependendo menos de um decreto obrigatório, mas que poderia impor-se á consciéncia coletiva como urna necessidade a preencher e onde a cooperagáo social nao deixaria de ser mais eficiente (H. Antipoff, 1932c, 21). Seguindo esse espirito, foi fundada, em novembro 1932, por iniciativa de Helena Antipoff, a Sociedade Pestalozzi, sendo a educadora sua primeira presidente. 5.1 Da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais para a Educacao dos "excepcionais" no Brasil De acordó com o estatuto, a Sociedade Pestalozzi tinha por objetivo "proteger infancia anormal e preservar a sociedade e a raga das influencias nocivas da anormalidade mental" (Sociedade Pestalozzi, 1933, p. 3). Era considerado "anormal" aquele que: Devido a urna condigáo hereditaria, ou acidentes mórbidos ocorridos na infancia, nao pode, por falta de inteligencia, ou disturbios de caráter, adaptar-se á vida social com os recursos comuns ministrados só pela familia, ou pela escola pública Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educagao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 50 primaria, suficientes para a maioria das criangas da mesma idade (p. 3). A protegao consistía em fornecer a essas criangas "meios para o melhoramento de seu estado mental, moral e social, de sorte que, na idade adulta, pese ela o menos possível á sociedade" (Sociedade Pestalozzi, 1933, p. 3-4). A Sociedade Pestalozzi auxiliou os alunos e os professores das classes especiáis dos grupos escolares, organizou o Consultorio Médico Pedagógico, que realizou pesquisas, divulgou nogoes teóricas e práticas sobre a infancia "excepcional", e buscou criar instituigoes para atender as criangas consideradas "excepcionais". Em Minas Gerais, a Sociedade criou o Pavilhao de Natal (1934), o Instituto Pestalozzi (1935) e a Escola Granja, na cidade de Ibirité, ponto de partida para o Complexo Educacional da Fazenda do Rosario (1940) (Rafante, 2006; Rafante & Lopes, 2009). A criagao desse tipo de instituigao estava prevista no estatuto da Sociedade. Em 1944, Helena Antipoff foi convidada pelo governo brasileiro a atuar no Departamento Nacional da Crianga (20), no Rio de Janeiro, onde ampliou seu universo relacional e criou a Sociedade Pestalozzi do Brasil (1945) e a Sociedade Pestalozzi do Estado do Rio de Janeiro (1948), localizada em Niterói. A transferencia de Antipoff para o Rio de Janeiro nao prejudicou as atividades já iniciadas em Minas Gerais. Pelo contrario, nesse período em que Helena Antipoff era funcionaría do Departamento Nacional da Crianga, as atividades do Instituto Pestalozzi e da Fazenda do Rosario continuaram em pleno funcionamento, administradas pelos colaboradores dessas obras, que continuavam contando com o apoio técnico de Antipoff, por meio de visitas e atividades patrocinadas pelo órgao ao qual ela prestava servigo. Além da questao técnica, o Departamento Nacional da Crianga forneceu verbas necessárias para a construgao do pavilhao central na Fazenda do Rosario, que teve inicio em 1944, onde se instalou, a partir de 1946, a residencia dos professores, o internato das criangas desamparadas, o refeitório, a cozinha, a biblioteca e as salas de aula da escola primaria. Por ocasiao da inauguragao do novo predio, Antipoff foi designada pelo Departamento para permanecer oito dias em Belo Horizonte e realizar os seguintes servigos: "representar o Departamento Nacional da Crianga, na inauguragao do novo pavilhao da Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais e realizar junto as autoridades competentes, estudos preliminares para a execugao do inquérito sobre a maturidade nos adolescentes" (Costa, 1946, p. 1). Mais verbas do Departamento foram destinadas á Fazenda do Rosario para a construgao do Centro de Puericultura, inaugurado em 23 de setembro de 1952, por ocasiao da 6a Jornada de Pediatría e Puericultura e do II Seminario sobre Infancia Excepcional, organizado pelas Sociedades Pestalozzi. O objetivo do centro era atender a populagao rural, as escolas rurais, a infancia e a maternidade, orientando as maes na criagao e educagao dos filhos; realizar pesquisas sobre a natividade e a mortalidade infantil, doengas infantis e seu tratamento; promover concursos de alimentagao sadia, campanhas de merenda escolar. Os ensinamentos de puericultura eram passados por meio de palestras, de aulas práticas, reunioes com maes, noivos, sessoes de filmes educativos. As medidas práticas consistiam em vacinagao preventiva, exames médicos, pesagem periódica, fornecimento de leite e alguns medicamentos e tratamentos aos necessitados (Centro Rural de Puericultura, 1952, p. 184-185). A articulagao das instituigoes, principalmente as Sociedade Pestalozzi de Minas Gerais, do Brasil e do Rio de Janeiro, permitiu a realizagao dos primeiros seminarios sobre a infancia "excepcional" no Brasil, que ocorreram em 1951, 1952, 1953, 1955 e se constituíram em importante meio de discussao sobre as questoes relacionadas á educagao dos "excepcionais" (Rafante & Lopes, 2011, maio). Lemos (1981) referiu-se aos seminarios como um "verdadeiro painel de Educagao Especial para a comunidade brasileira, aportando os aspectos fundamentáis para a educagao e o atendimento dos excepcionais" (p. 53). Em decorréncia desses seminarios, foram Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educagao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 $\ criadas em 1951, a Sociedade Pestalozzi de Sao Paulo e, em 1954, a Sociedade Pestalozzi de Goiás e, ao longo das décadas de 1950 e 1960, outras congéneres foram sendo criadas pelo país até que, em 1971, foi organizada a Federagao Nacional das Sociedades Pestalozzi [FENASP]. Ao final da década de 1950 e comego dos anos de 1960, o governo federal iniciou as campanhas em favor da educagao dos deficientes. Essas campanhas faziam parte de um movimento maior, que se "consubstanciou ñas chamadas Campanhas Nacionais que pretendiam dar encaminhamento as grandes questoes sociais como a alfabetizagao e as endemias" (Bueno, 2004, p. 121). Com relagao á educagao dos "excepcionais", as campanhas comegaram em 1957, com a Campanha da Educagao do Surdo Brasileiro [CESB], sugerida pela diregao do Instituto Nacional de Educagao do Surdo. Em 1958, foi instituida a Campanha Nacional de Educagao e Reabilitagao dos Deficitarios Visuais [CNERDV], por iniciativa de um professor do Instituto Benjamín Constant, José Espinóla Veiga e, em 1960, foi instalada a Campanha Nacional de Educagao e Reabilitagao dos Deficientes Mentáis [CADEME], sob a influencia das Sociedades Pestalozzi e das Apaes (Lemos, 1981), sendo que Helena Antipoff compós a primeira diregao da CADEME. Em setembro de 1970, Sarah Couto César, pertencente ao quadro de profissionais da Sociedade Pestalozzi do Brasil, assumiu a diregao executiva da CADEME, sucedendo o coronel José Maes Borba, que estava no cargo desde 1967. Helena Antipoff mantinha a sua colaboragao com o órgao. Segundo César (1992): Desde o inicio de nosso trabalho á frente da CADEME, tivemos em D. Helena a nossa grande inspiradora e colaboradora na elaboragáo dos projetos e programas desenvolvidos. Eram freqüentes as nossas visitas á Fazenda do Rosario, onde éramos recebidas por D. Helena e sua fiel colaboradora Yolanda Martins e Silva, onde recebíamos as ligoes da grande Mestra (p. 47, grifos da autora). Com o auxilio de Antipoff, em 1971, a CADEME promoveu, no entao estado da Guanabara, o primeiro seminario sobre a preparagao do pessoal especializado na esfera oficial. Salientamos que, desde a década de 1930, a Sociedade Pestalozzi já empreendia essa formagao. Durante o seminario, Sarah Couto César informou que pode obter "um retrato fiel da época, referente as pessoas que estavam levando á frente a educagao de deficientes mentáis e curiosamente a grande maioria desses professores eram egressos dos cursos e estágios proporcionados por D. Helena Antipoff" (César, 1992, p. 47). Na década de 1970, foi criado, no Brasil, o Centro Nacional de Educagao Especial (CENESP) e, de acordó com Jannuzzi (2004), permanecía os conceitos elaborados por Helena Antipoff ñas diretrizes desse órgao. Segundo a autora, "ainda repercutía o conceito de deficiencia de Antipoff, expresso ñas diretrizes do CENESP" (p. 131). Apontamentos Fináis Sobre Helena Antipoff, em síntese, urna mulher á frente do seu tempo, imbuida de um dinamismo e urna coragem incomuns, com um interesse profundo pela ciencia, que se manifestou muito cedo e que, voltando-se para a psicología e para a educagao, atravessou fronteiras e dedicou a sua vida a esses campos, fazendo um elo entre eles, urna vez que, para a educadora, a pedagogía nao se fazia sem a psicología. Vivenciando o cenário de renovagao educacional, que também chegou ao Brasil, foi convidada para atuar junto á reforma do ensino do estado de Minas Gerais. Tal reforma explicitou a penetragao dos principios da Escola Nova e a oficializagao da psicología e da biología na proposta oficial de mudanga educacional, sob a égide da necessidade de se atender aos imperativos da ciencia, racionalizando as agoes no Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas agoes na educagao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 52 sistema de ensino, com a homogeneizagao das classes e o atendimento aos alunos de acordó com suas aptidoes naturais. Nesse momento, principalmente os principios da "Escola Sob Medida", de Claparéde, o método de "Experimentagao Natural", de Lazursky, e os testes de inteligencia, elaborados por Binet e Simón, fundamentaram sua prática. Foi a partir dessa atuagao junto ao sistema de ensino mineiro, que Antipoff direcionou suas agoes para o atendimento e educagao das criangas e jovens considerados "excepcionais" de Minas Gerais, onde buscou organizar o atendimento especializado a partir da Sociedade Pestalozzi. A partir daí, suas agoes se expandiram para a capital do país, na época o Rio de Janeiro, e Antipoff continuou a mobilizagao para a organizagao de urna educagao especializada. Nesse sentido, organizou seminarios para o debate da questao, participou de comissoes oficiáis relacionadas ao tema, ofereceu, a partir das Sociedades Pestalozzi, além do atendimento especializado, a formagao de profissionais para atuar nessa área. No período anterior á organizagao oficial da Educagao Especial no Brasil, que comegou com as Campanhas Educativas no final da década de 1950 e inicio dos anos de 1960, foi a iniciativa privada que esteve á frente dessa educagao e Helena Antipoff, junto as Sociedade Pestalozzi e seus colaboradores, se destacou no desenvolvimento desse campo no país. Referencias Antipoff, D. I. (1975). Helena Antipoff: sua vida, sua obra. Rio de Janeiro: José Olimpio. Antipoff, H & Resende, N. (1934). Ortopedia mental ñas classes especiáis. Belo Horizonte: Secretaria de Educagao do Estado de Minas Gerais. (Boletim n. 14). Antipoff, H. & Cunha, M. L. A. (1932). Test prime. Belo Horizonte: Secretaria de Educagao do Estado de Minas Gerais. (Boletim n. 10). Antipoff, H. (1930a). Ideaes e interesses das creangas de Bello Horizonte e algumas sugestoes pedagógicas. Belo Horizonte: Secretaria de Educagao do Estado de Minas Gerais. (Boletim n. 6). Antipoff, H. (1930b). 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(2) Nossos agradecimentos á Olinda Terezinha da Silva Caetano e Patricia Saragony, que nos auxiliaram na pesquisa. (3) Agradecemos á coordenadora Regina Helena Freitas Campos e as pesquisadoras Lilian Nassif e Rita Vieira, que viabilizaram nosso acesso ao acervo. (4) "Quando Ihe perguntaram se ela se sentia brasileira ou russa, responde que antes de tudo era urna mulher do mundo" (D. Antipoff, 1975, p. 175). (5) Devemos considerar o fato de que ela era "muito reservada sobre seu passado e sua intimidade, costuma desviar o assunto, quando alguém a interpela a respeito". Ao ser indagada pela neta acerca de quando iria escrever sobre sua vida responde: "Escrever, para qué? Com que intengao me pede isso? Pela simples curiosidade de encontrar alguma situagao insólita? Interessa-lhe saber de possíveis aventuras minhas? Deseja conhecer-me para tirar experiencia para vocé mesma? Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educagao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 55 Deveha eu selecionar o material que possa servir de estímulo moral? Ao contrario, revelar algo nada moral, mas que possa ser superado e como? Realmente a tarefa é dura e provavelmente precisaría dedicar mais tempo e esforgo" (D. Antipoff, 1975, pp. 174-175). (6) "Conselho de operarios e soldados que se multiplicavam no imperio russo, até mesmo ñas pequeñas aldeias" (Crouzet, 1958, p. 226). (7) "Os bolcheviques, liderados por Lénin, constituíram urna facgao do Partido Operario Social Demócrata Russo e defendiam a idéia da implantagao do socialismo, por meio de urna revolugao armada" (Crouzet, 1958, p. 227). (8) "Instituto J. J. Rousseau. Escola de Ciencia da Educagao. Senhora Helena Antipoff da Rússia esteve matriculada no Instituto Jean-Jacques Rousseau como aluna regular por quatro semestres. Ela acompanhou os cursos e participou ativamente das atividades práticas que compoem o currículo. Ela demonstrou que aproveitou plenamente desse ensino (Genebra, 15 de julho, 1914)". (Instituto Jean-Jacques Rousseau, 1914, s. p.). (9) "A aptidao para o desenho implica certa habilidade motriz, estimativas de tamanhos, memoria visual, senso estético etc.; a aptidao literaria exige memoria verbal, imaginagao, juízo crítico etc." (Claparéde, 1953, p. 167). (10) "A grande guerra, as epidemias, a fome, a revolugao (...) formou um grupo considerável de individuos, menores, sem familia, sem domicilio, sem ocupagao determinada (...). A proporgao dessas changas abandonadas foi tal que o governo russo teve de organizar postos para albergar esses bandos de nómades" (H. Antipoff, 1931/1992d, p. 77). (11) "Senhora, tenho a honra de transmitir-lhe - incluindo urna copia do oficio pelo qual o Conselho de Estado decide nomeá-la assistente do laboratorio de psicología da universidade. Aceite, senhora, a expressao da minha mais elevada consideragao". (Genebra, 07 de Janeiro, 1926)". (Le Conseiller D'état, 1926, s. p.). (12) "Senhora, tenho a honra de informar que em notificagao da Faculdade de Ciencias o departamento a encarrega, para o ano letivo de 1928-1929, da substituigao parcial do professor Edouard Claparéde. Entende-se que vocé vai assumir a diregao do laboratorio. Seu pagamento será feito de acordó com as condigoes que o Sr. Claparéde acertou com vocé e comunicou ao Departamento. Aceite, senhora, a expressao da minha mais elevada consideragao. (Genebra, 31 de outubro, 1928)". (Le Conseiller D'état, 1928, s. p.). (13) De acordó com o que nos apresenta Helena Antipoff, destacamos alguns caracteres que eram observados na conduta da changa diante do trabalho: "interesse pelo trabalho, preocupagao com a exatidao e com a ordem, perseveranga, esforgo voluntario, resistencia á fadiga, independencia, sociabilidade, honestidade, entre outros" (H. Antipoff, 1950/1992g, p. 169). (14) Além da Reforma do Ensino em Minas Gerais, em 1927, Francisco Campos foi autor da Reforma de Ensino em ámbito nacional, em 1931. Salientamos que, neste capítulo, quando denominamos Reforma Francisco Campos, referimo-nos á reforma mineira, de 1927. (15) A ausencia de urna política nacional de educagao é um problema que nao pode ser solucionado no período da Primeira República, sob o argumento de que qualquer esforgo nesse sentido feria os principios federativos previstos na constitiiigáo (Nagle, 1974, p. 283). (16) "Órgáo responsável pela educagao na época, já que nao existia um organismo específico para cuidar das questoes educacionais" (Peixoto, 1981, p. 08). (17) Os professores mineiros participaram de cursos, seminarios, conferencias e atividades de observagáo no Teacher's College, da Universidade Columbia (Peixoto, 1981). (18) "Senhora Antipoff está contratada como professora de psicología e, especialmente, de psicología experimental e de psicología da crianga, na Escola Normal Oficial e na Escola de Aperfeigoamentó de Belo Horizonte. Ela também será Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 Rafante, H. C. & Lopes, R. E. (2011). Helena Antipoff, seus pressupostos teóricometodológicos e suas acoes na educagao dos "excepcionais" no Brasil. Memorándum, 20, 31-57. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 57 responsável pela tarefa de submeter as criangas das escolas primarias aos testes psicológicos, com o objetivo de padronizar os testes, assim como apresentar os conhecimentos da técnica psicológica aos professores" (Contrato, 1929, p. 1). (19) Esse texto apresentado na IV Conferencia Nacional de Educagao, foi publicado pela Inspetoria Geral da Instrugao em seu Boletim n°. 14, em 1934, sob o título Ortopedia Mental ñas Classes Especiáis (Antipoff & Rezende, 1934). Foi por meio dessa publicagao que tivemos acesso á contribuigao de Antipoff á referida conferencia. (20) "Supremo órgao de coordenagao de todas as atividades nacionais de protegao á maternidade, á infancia e á adolescencia" (Decreto n. 2.024 citado por Netto, 1941, p. 29). Notas sobre as autoras Heulalia Charalo Rafante - Historiadora pela Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Mestre em Educagao pela Universidade Federal de Sao Carlos (UFSCar), Doutoranda em Educagao pela UFSCar. Integrante do Grupo de Pesquisa Terapia Ocupacional e Educagao no Campo Socia\ - CNPq e do Núcleo UFSCar do HISTEDBR - Historia, Sociedade e Educagao no Brasil. Bolsista CNPq. Participa do Grupo de Estudos em Psicología e em Ciencias Humanas: historia e memoria, do Departamento de Psicología e Educagao da Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto/USP. Contato: [email protected] Roseli Esquerdo Lopes - Terapeuta Ocupacional pela Universidade de Sao Paulo (USP), Especialista em Saúde Pública pela USP, Mestre em Educagao pela UFSCar e Doutora em Educagao pela Universidade Estadual de Campiñas (UNICAMP). Professora Associada do Departamento de Terapia Ocupacional e dos Programas de Pós-Graduagao em Educagao e em Terapia Ocupacional da UFSCar. Integrante do Núcleo UFSCar do HISTEDBR - Historia, Sociedade e Educagao no Brasil. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Terapia Ocupacional e Educagao no Campo Social - CNPq. Contato: [email protected] Data de recebimento: 18/10/2010 Data de aceite: 10/03/2011 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/rafantelopes01 • Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 58 Notas sobre o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte Notes about the Psychology Laboratory of the Improvement School of Belo Horizonte Ernani Henrique Fazzi Bernardo Jefferson de Oliveira Sergio Dias Cirino Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Resumo Apresentamos algumas consideragoes históricas sobre o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoa mentó de Belo Horizonte (1929-1946), instituigao criada durante o governo de Antonio Carlos de Andrada, como parte de um projeto de reforma do ensino mineiro. Além de seu papel na complementagao das aulas expositivas, no laboratorio da escola foram realizados diversos estudos sobre a populagao do Estado. Entre os personagens desta trama, destaca-se Helena Antipoff, que foi a responsável pela organizagao do Laboratorio e pela diregao de suas atividades. Para complementá-las, ela criou algumas instituigoes destinadas a amparar aquelas changas que eram prejudicadas pelos processos de classificagao e agrupamento entao empregados. Essas outras instituigoes receberam laboratorios próprios que engendraram urna cadeia funcionalmente articulada. Inspirados no modelo de análise genealógica de Michel Foucault, buscamos evidenciar urna parcela da rede de "saberes/poderes" que perpassou o Laboratorio e modelou a feigao de suas produgoes. Palavras-chave: laboratorio de psicología; Escola de Aperfeigoa mentó; Helena Antipoff. Abstract We present some historical considerations about the Psychology Laboratory of the Improvement School of Belo Horizonte (1929-1946), which was created during Antonio Carlos de Andrada's government, as part of an education reform project in Minas Gerais. Beyond its role in expositive classes, several studies on the State population were accomplished within it. Among this plot's characters Helena Antipoff stands out. She was responsible for the Laboratory organization and direction of its activities. In order to complement such activities, she created some institutions designated to support those children who were harmed by classification and grouping processes applied then. Such institutions received their own laboratories which created a well articulated chain. Inspired by Michel Foucault genealogic analysis model, we seek to show part of the "knowledge/power" net which spanned the Laboratory and modeled its production features. Keywords: psychology laboratory; Improvement School; Helena Antipoff. No ano de 1929, iniciou-se, na cidade de Belo Horizonte, um curso de qualificagao para professores primarios. Ministrado na Escola de Aperfeigoa mentó, esse curso dispunha de um Laboratorio de Psicología Experimental construido de acordó com os modelos vigentes na época e, nesse Laboratorio, foram realizadas investigagoes sobre varios temas, como: inteligencia, ideáis e interesses das criangas, a relagao entre o meio social e a aprendizagem, vocabulario, orientagao e selegao profissional, homogeneizagao de classes escolares, tipos de personalidade, Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 • Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicologia da Escola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 59 memoria, motricidade, fadiga, julgamento moral, além da adaptagao e criagao de numerosos testes para medidas psicológicas e verificagao do rendimento escolar. Esse Laboratorio foi desativado em 1946 e pouco se sabe das razoes envolvidas em tal ocaso. Em 1953, um incendio destruiu os arquivos da extinta Escola de Aperfeigoamentó, apagando grande parte dessa memoria. Fazzi (2005) procurou reconstruir a historia desse Laboratorio no contexto científico e social da época, resgatando a fungao que ele exercia a partir de alguns elementos que "sobreviveram" ao incendio: publicagoes do Laboratorio, manuscritos, fotos, artigos de jomáis, biografías, entrevistas, livros, teses, boletins etc. Oferecemos aqui um relato conciso dessa versao histórica, objetivando apresentar aquele que é considerado um dos primeiros laboratorios de psicologia do Brasil. Nosso relato foi inspirado no modelo de análise genealógica de Michel Foucault, que consiste numa investigagao sobre como os jogos de poder participam da produgao de saberes. Sobre a palavra "poder" cabe um pequeño esclarecimento, pois se a utilizarmos sem explicitar seu sentido técnico, corremos o risco de induzir a varios mal-entendidos a respeito de sua identidade, forma e unidade (Foucault, 1976/2001). Na genealogía, esse termo recebe urna conotagao distinta daquela oferecida pela linguagem coloquial. O poder nao é considerado apenas coercitivo e deletério, mas edificador. As agoes que rotulamos como éticas sao, nessa perspectiva, produzidas pelo poder, que também deixa de ser considerado urna propriedade exclusiva de poucos, e, em especial, do Estado, mostrando-se disperso ñas mais diversas práticas da vida social. A criagao da Escola de Aperfeicoamento Em 1929, quando o Laboratorio de Psicologia da Escola de Aperfeigoa mentó comegou a funcionar, Minas Gerais estava em pleno Governo de Antonio Carlos Ribeiro de Andrada, num momento que pode ser considerado o ápice da implantagao de urna reforma do ensino que ganhava maiores proporgoes desde 1927. Antonio Carlos foi eleito para a Presidencia do Estado, sem concurrente, no dia 7 de setembro de 1926, permanecendo no cargo até 1930, quando, entao, concorreria á Presidencia da República. Para conduzir um projeto de reforma do ensino, ele nomeou Francisco Luís da Silva Campos, que ocupou, até 1930, a Secretaria do Interior, pasta responsável pelas questoes educacionais, e que, mais tarde, como ministro do governo de Getúlio Vargas, tornou-se um dos principáis articuladores de urna profunda reformulagao do sistema educacional no país. Naquele momento, as iniciativas tomadas conjugavam a renovagao do ensino primario com a reorientagao na formagao de professores, elaboragao de manuais e revistas, realizagao de congressos e conferencias, oferta de cursos, envió de professores brasileiros para o exterior e contratagao de professores estrangeiros. A renovagao do ensino primario dependía, dentre outras coisas, da preparagao dos professores, ou seja, da qualidade dos cursos normáis que formavam tais professores que seriam diretamente responsaveis pela educagao das changas. Para alavancar o processo de aperfeigoa mentó de professores, foi criada urna escola de nome bastante sugestivo: Escola de Aperfeigoamento. A Escola, que difícilmente poderia ser montada num curto espago de tempo, só comegou a funcionar em 1929 - penúltimo ano da administragao de Antonio Carlos - no predio da Escola Maternal, que havia sido criada em 1925, e que se situava á Avenida Paraopeba, hoje Avenida Augusto de Lima, na regiao central de Belo Horizonte. Posteriormente, a Escola de Aperfeigoamento foi transferida para outro predio na mesma avenida: o atual Minascentro. Conforme noticiou a imprensa da época, a inauguragao da Escola de Aperfeigoamento "vem fechar a serie de altos emprehendimentos da actual administragao, relativos ao ensino" (Escola de Aperfeigoamento, 1929, p. 11). E para que esse fechamento se desse com éxito, foi preciso equipar a Escola com o que houvesse de mais moderno ñas tendencias educacionais, tais como um Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 • Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicoiogia da Escola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 60 Laboratorio de Psicoiogia Experimental. Naquele período, a interagao da psicoiogia com a pedagogía foi aquecida pela propagagao das idéias escolanovistas, que pretendiam reformular o antigo sistema de ensino, estigmatizado pela posigao autoritaria dos professores e por métodos que enfatizavam a repetigao (decorar sentengas, por exemplo) em detrimento da compreensao. Vale observar que os campos da psicoiogia e da pedagogía ganhavam mutuamente forga e legitimidade com tal interagao. Enquanto a psicoiogia, sobretudo a nova psicoiogia experimental, dava cientificidade as medidas educacionais, sua utilidade no terreno educacional ajudava sua consolidagao como ciencia e sua institucionalizagao. Fundamentos psicológicos e sociológicos estavam na base das idéias e propostas do movimento escolanovista que inspirava as reformas educacionais de Francisco Campos. Ainda que a reforma concernente á fundagao da Escola de Aperfeigoamentó nao determinasse o conteúdo das materias a serem lecionadas, ela assinalava a psicoiogia experimental como a única disciplina de "psicoiogia" do curso. Nesse contexto, o adjetivo "experimental" revela urna perspectiva que toma como necessários os modelos laboratoriais para a formagao das normalistas, "pois é o único caminho ou, pelo menos, o caminho mais eficaz e o que garante o progresso: o método experimental" (H. Antipoff, 1935/1992a, p. 262). Nesta perspectiva, para o progresso, nao bastava teorizar sobre a experimentagao. Era preciso vivenciá-la naquele que é seu ambiente prototípico - o laboratorio -, porque essa vontade de verdade, como os outros sistemas de exclusao, apóia-se sobre um suporte institucional: é, ao mesmo tempo, reforgada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogía, é claro, como o sistema dos livros, da edigao, das bibliotecas, como as sociedades de sabios outrora, os laboratorios hoje (Foucault, 1971/1996, p. 17). Assim, o Decreto n. 8.987, de 22 de fevereiro de 1929, que aprova o regulamento da Escola de Aperfeigoa mentó, estabelece em seu artigo 5o que: A Escola de Aperfeigoa mentó terá: um director, um professor de pedología e psychologia experimental, dois de desenho e modelagem, dois de methodologia, um de educagao physica. O director da Escola será professor de legislagao escolar de Minas e nogoes de direito constitucional (Decreto n. 8.987, 1929, p. 1). Na verdade, havia urna cadeira, composta por duas materias, denominada "pedología e psychologia experimental". A pedología seria ministrada no primeiro período do curso, enquanto a psicoiogia experimental seria ministrada no segundo. Para assumir essa cadeira e a diregao dos trabalhos do Laboratorio, o governo convidou a psicóloga russa Helena Wladimirna Antipoff (1892-1974), que acabou por se tornar urna referencia fundamental na historia da psicoiogia no Brasil. Helena Antipoff havia estudado no Laboratorio Binet-Simon e no Instituto Jean Jacques Rousseau, e tinha contato estreito com Édouard Claparéde, o que dava peso a suas idéias e iniciativas (1). A configuracao inicial do Laboratorio de Psicoiogia Entre as raras fontes que trazem detalhes sobre o Laboratorio de Psicoiogia da Escola de Aperfeigoamento, destaca-se urna que foi publicada, em tres partes complementares, no jornal Minas Geraes dos dias 11, 12 e 14 de dezembro de 1929. Trata-se de urna reportagem (Exposigao de trabalhos, 1929a, 1929b, 1929c), cujo autor nao foi especificado, e que relata sua visita a urna mostra de trabalhos da Escola de Aperfeigoamento. Ele descreveu minuciosamente o que encontrou, fornecendo aos leitores urna imagem do que a Escola possuía e do que produziam Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 • Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 61 os cursos lá ministrados. No caso da psicología, havia um departamento dividido em tres instancias: a) o Laboratorio, identificado com um conjunto de aparelhos organizados numa sala, b) outra sala, que nao recebeu nenhum nome específico, e que continha material referente a testes, e c) o Museu da Changa, que seria urna especie de banco de dados levantados pelas alunas/pesquisadoras e disponibilizados para outros pesquisadores. De acordó com o relato jornalístico, o Laboratorio de Psicología estava disposto da seguinte forma: Na primeira sala, vamos encontrar os apparelhos, muitos delles delicados e de grande precisao, que constituem o laboratorio de psychologia e se distribuem em tres secgoes: psychophysica, psychodynamica e psychochronometria. Observamos, na primeira secgao: urna serie de pegas para avaliagao da sensibilidade discriminativa dos pesos; o tonómetro de Hornbostel, para medir a acuidade auditiva musical; o compasso de Sperman, os cartoes de Binet, que nos permittem a medida da sensibilidade táctil; o pressiometro, que nos elucida sobre a sensibilidade Kinesthesica; os discos rotativos e as las de Holmgren para a verificagao do daltonismo; o Kinematometro de Heumann, registrador da precisao dos movimentos, etc. Na segunda secgao: o dynamometro de Collin, que mede a forga muscular; o ergographo a mao, destinado a registrar a fadiga e o trabalho muscular. Finalmente, na terceira: o chronoscopio d'Arsonval, que nos inteira sobre o tempo de reacgao; o Kimographo de Ludvig, de funcgao registradora, e o tachistocopio, para pesquisas relativas á attengao (Exposigao de trabalhos, 1929c). Os testes, traduzidos e adaptados á realidade brasileira, ficavam numa sala á parte. Dentre eles, o autor destacou os de "Goodenough", "Dearborn", "Alice Descceudres" e "Binet-Simon", além daquilo que chamou de "documentagao nossa"; urna provável alusao a alguns resultados colhidos, assim como a questionários e recursos do género elaborados pelas proprias alunas da Escola de Aperfeigoamento. Portanto, o departamento de psicología incluía o Laboratorio, o Museu da Changa e a tal sala de testes, cujos propósitos eram complementares. O Museu da Changa, fundado por Helena Antipoff em outubro de 1929, seria um "centro de pesquisa relativo á crianga, um centro pedagógico" (H. Antipoff, 1930/1982, p. 63), contendo um banco de dados referente as principáis pesquisas disponíveis sobre a crianga brasileira e servindo, em especial, as "futuras" ex-alunas da Escola de Aperfeigoamento, para que elas pudessem receber, ali, as diregoes necessárias para a continuidade de seus trabalhos. Isto pode, em nosso ver, ser considerado como urna estrategia de manutengao do vínculo estabelecido ao longo da formagao. O Museu ficaria incumbido de armazenar informagoes acerca da crianga brasileira, que embasariam os trabalhos do Laboratorio. Por outro lado, os resultados de tais trabalhos realizados no Laboratorio seriam coligidos no Museu. No decorrer dos anos, os termos referentes a essas tres subdivisoes do departamento de psicología nao foram empregados de forma rígida. Encontramos em algumas fontes, por exemplo, a palavra "laboratorio" representando todo o Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 • Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 62 "departamento" ou ligada a práticas que, inicialmente, pareciam ser de responsabilidade daquela sala destinada á aplicagao de testes psicológicos. Retomando a exposigao de trabalhos da Escola de Aperfeigoamento, cabe citar um fato pitoresco: ao falar sobre a documentagao contida na sala de testes, que informava sobre a realidade brasileira, o jornalista ressaltou com entusiasmo os resultados de um inquérito dirigido as criangas da cidade. O que ele nao poderia prever é que esta investigagao, publicada em forma de artigo no ano seguinte (H. Antipoff, 1930/1992b), desagradaría profundamente alguns representantes da Igreja Católica. Os "ideáis e interesses das criangas de Belo Horizonte" trouxeram a informagao de que as criangas avahadas tinham pouco gosto por questoes religiosas. Esse foi o estopim de urna querela que marcou a historia do Laboratorio e de sua diretora. O padre Alvaro de Albuquerque Negromonte, vigário da Igreja da Boa Viagem, tomou conhecimento do fato, e com sua "penna, sempre prompta para a defesa dos sacratissimos interesses da Igreja e da Patria" (Pe A. Negromonte, 1930), dirigiu violentos ataques á pessoa de Helena Antipoff, muito mais que á pesquisa por ela conduzida. Ele ficou indignado com as afirmagoes presentes nos "ideáis", considerando-as típicas de urna pessoa com ideología comunista e que combatía a religiao católica professada no Brasil (Ullmann, 1991). Assim, associou os resultados da publicagao á origem russa de Helena Antipoff, dando forgas a urna reivindicagao da Igreja de que "querer-se o Brasil sem o Catholicismo é querer-se um Brasil que nao é brasileiro" (Negromonte, 1930, p. 1). O incentivo aos testes psicológicos O Decreto n. 9.653, de 30 de agosto de 1930, publicado nos últimos dias do mandato de Antonio Carlos, destoa de sua postura liberal e dos investimentos que sua administragao fez para a montagem do Laboratorio. O que ele traz de diferente em relagao ao decreto anterior, de 1929, é a explicitagao de um sistema de controle sobre as práticas educacionais e, em especial, sobre a pesquisa na Escola de aperfeigoamento (Decreto n. 9.653, 1930). Podemos apontar o sentido desse novo decreto em poucas palavras: qualquer proposta de investigagao deveria, primeiramente, ser aprovada em reuniao de professores e pelo diretor. Foi o acréscimo deste mecanismo legal de controle que fez a diferenga, pois os professores perderam urna parcela da liberdade necessária para "experimentar" e precisaram agir de acordó com demandas educacionais bem definidas, pelo que era aprovado em primeira instancia por seus superiores. Esse processo de restrigao da pesquisa na Escola de Aperfeigoamento tomou folego no ano seguinte, reforgando a suspeita de que o decreto estava em sintonía com um rearranjo de forgas, do qual as negociagoes para fortalecí mentó da candidatura de Antonio Carlos á Presidencia da República era um dos componentes. O Laboratorio de Psicología voltou-se para a aplicagao de testes ñas criangas da rede escolar mineira, a fim de agrupá-las em níveis aproximados de condigoes físicas e mentáis ñas chamadas classes homogéneas. Quanto aqueles diversos "instrumentos de latao" importados pelo governo mineiro, eles, em raríssimas vezes, sao mencionados ñas fontes que consultamos. Em compensagao, sempre presentes estiveram os testes, geralmente conjugados por lápis e papel. Essa demanda para usar testes e separar criangas em classes homogéneas é anterior á criagao da Escola de Aperfeigoamento. Campos (1989) informa que o regulamento do ensino primario, elaborado por Francisco Campos em 1927, prescrevia o estabelecimento de classes especiáis para as criangas consideradas "retardadas". Contudo, esse procedimento somente comegou a ser concretizado a partir do primeiro experimento de homogeneizagao de classes, que Theodore Simón realizou em dois grupos escolares no ano de 1929. Se a demanda por homogeneizagao de classes estava presente na reforma do ensino que Francisco Campos formulou durante o governo de Antonio Carlos, nao é de se estranhar que ela venha reaparecer mais tarde nos empreendimentos educacionais do Governo Vargas, do Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 • Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicologia da Escola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 63 qual Campos se tornou pega fundamental. Nesse sentido, Antipoff devia preparar outras professoras para a correta utilizagao dos testes. Um contrato assinado no dia 23 de novembro de 1932 serve de exemplo. Sua primeira cláusula salienta que M— Antipoff é contratada na qualidade de professora de psicologia e, especialmente, de psicologia experimental e de psicologia da changa, na Escola de Aperfeigoamentó de Belo Horizonte, e se obriga especialmente a submeter os alunos das escolas primarias a provas psicológicas, tendo por escopo a graduagao dos testes, assim como por o pessoal docente ao corrente da técnica psicológica (Termo de contrato, 1932) Assim, o Laboratorio de Psicologia Experimental foi montado, com grande investimento do governo do Estado, que comprou todos os aparelhos necessários; funcionou cerca de um ano e meio sob um regulamento que dava aos professores maior liberdade de agao e foi posteriormente submetido a mecanismos de controle e destinado á aplicagao de testes psicológicos. Estes eram os recursos mais modernos disponíveis para conhecer as características mentáis das criangas (Lourengo, 2001a). O que se fazia na Escola de Aperfeigoa mentó estava em sintonia com os avangos no campo da psicologia científica no cenário internacional, os quais Francisco Campos acompanhava. Na época, discutia-se a possibilidade de conhecer os temperamentos humanos sem a necessidade do aparelhamento dos laboratorios de psicologia (Cesar, 1929). Quando o Laboratorio da Escola de Aperfeigoa mentó foi montado, a psicologia, enquanto ciencia recente, trilhava um distanciamento de outras áreas do conhecimento com as quais estivera intimamente entrelagada, como a filosofía, e fortalecía sua autonomía se apropriando de modelos de investigagao mais objetivos, inspirando-se em ciencias mais consolidadas como a fisiología. Essa fase de transigao, de elaboragao de novos recursos como os testes psicológicos, também marcou o contexto de criagao do Laboratorio, quando sua identidade e sua fungao estavam sendo definidas. Enquanto o departamento de psicologia colaborava com o projeto de homogeneizagao de classes escolares e utilizava essa prestagao de servigos como urna forma de colher dados de pesquisa através dos testes aplicados, foram diagnosticados alguns problemas que possivelmente nao poderiam ser enfrentados no interior da Escola de Aperfeigoamento. Vínculos e a propagacao dos laboratorios A tentativa de melhorar a qualidade do ensino através da homogeneizagao das classes escolares logo comegou a produzir efeitos colaterais, urna vez que os professores dispunham de poucos recursos para lidar com aqueles que se mostravam distantes da media de inteligencia. Ao mesmo tempo em que percebia tais disparidades, pois participava da avaliagao das criangas, Helena Antipoff sentiase limitada para agir a partir da Escola de Aperfeigoamento. Para oferecer maior auxilio aos necessitados, seria imprescindível que ela buscasse espagos que trouxessem maior autonomía; espagos que permitissem a descoberta de novas formas de amparar aqueles que eram rotulados de "retardados". Foi assim que, inicialmente, A própria Helena Antipoff percebeu que a escola pública e a Escola de Aperfeigoamento pouco vinham conseguindo fazer pela infancia excepcional e em 1932 criou a Sociedade Pestalozzi de Belo Horizonte. Esta foi urna alternativa para angariar a assisténcia necessária á complementagao do treinamento das professoras no ensino do excepcional, do Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 • Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicologia da Escola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 64 diagnóstico psicológico e do atendimento clínico oferecidos no Laboratorio de Psicologia da Escola de Aperfeigoamento Pedagógico (Lourengo, 2001b, p. 51-52). A Sociedade Pestalozzi foi fundada no Laboratorio de Psicologia da Escoja de Aperfeigoa mentó (Lima, 1983). Na ocasiao, Helena Antipoff convidou o padre Alvaro Negromonte, que assumiu a vice-presidéncia da Sociedade, transformando, assim, em aliado, aquele que muito a atacou. Se a Sociedade Pestalozzi, "cuja finalidade é, entre outras, amparar a changa abandonada ou desviada dos caminhos próprios da infancia" (H. Antipoff, 1934/1992c, p. 119), surgiu de urna necessidade prática, seus desdobramentos conduziram a complementos do ponto de vista experimental, ou seja, Helena Antipoff pode conduzir, naquele espago, algumas investigagoes que possivelmente - em fungao do decreto de 30 de agosto de 1930 - foram restringidas na Escola de Aperfeigoamento. A partir do Laboratorio de Psicologia da Escola de Aperfeigoamento nasceram outros laboratorios e outras escolas que auxiliaram no treinamento de professores. Todas essas criagoes foram marcadas por confrontos, impasses e conciliagoes. Por exemplo, com a mobilizagao de importantes personalidades mineiras, Antipoff conseguiu que fosse construido um pequeño pavilhao localizado á Rúa Ouro Preto 624, que foi inaugurado em 28 de outubro de 1934, onde foi instalada urna Escola Ativa - o Instituto Pestalozzi - para educagao de criangas excepcionais e desamparadas. Agregado á escola, funcionava um laboratorio de análises clínicas, um consultorio médico pedagógico e algumas oficinas de trabalho (Guimaraes, 1988). As ex-alunas da Escola de Aperfeigoamento foram as principáis colaboradoras daqueles empreendimentos. Além do prestigio de que gozavam em fungao da obtengao do diploma da referida Escola, elas conquistaram, juntamente com Antipoff, um maior destaque na sociedade política e intelectual. O Laboratorio da Escola de Aperfeigoamento forneceu a mao-de-obra especializada para que instituigoes semelhantes pudessem funcionar. Posteriormente, disseminaram-se, por outros Estados, novos centros regionais da Pestalozzi coordenados por exalunas da Escola de Aperfeigoamento. A rede laboratorial envolvía outras práticas e atividades que merecem ser consideradas. Helena Antipoff criava ratos albinos - em caixotes - nos fundos de sua casa, em Belo Horizonte, e, também, construía modestos aparelhos (Veloso, 1972). As pesquisas que utilizavam os ratos como sujeitos iam além dos períodos letivos, já que ñas ferias ela realizava experiencias sobre aprendizagem no que parecía ser um laboratorio próprio, um tanto quanto rústico. Em algumas das pesquisas, registrava e cronometrava o comportamento daqueles animáis em labirintos. O Laboratorio de Psicologia da Escola de Aperfeigoamento conduziu Antipoff ao planejamento de outras obras (Guimaraes, 1991). Dele surgiu a Sociedade Pestalozzi, cujos desdobramentos transformaram os empreendimentos de Antipoff numa complexa rede, que se ampliou com a fundagao da Fazenda do Rosario, por ela considerada sua mais importante obra (Magalhaes, 1983). Localizada no municipio de Ibirité, um dos principáis objetivos dessa fazenda-escola era o de educar criangas excepcionais e/ou abandonadas, através de métodos da Escola Ativa. Cabe ressaltar que o padre Negromonte também esteve ao lado de Antipoff no momento em que foi identificado o terreno onde seria plantado o novo empreendimento (Lima, 1983). Com o auxilio de pessoas influentes na sociedade, ela "fez da Fazenda o seu laboratorio" (Tibo, 1992, p. 44). Nao somente a Fazenda do Rosario como um todo se transformou num laboratorio, mas também recebeu um laboratorio próprio, chamado de laboratorio "Édouard Claparéde". Há indicios de que foi o segundo laboratorio por ela criado no Brasil (D. Antipoff, 1985). Nao foram encontradas fontes que comprovassem tal fato, pois poderia ser o da Sociedade Pestalozzi, aquele nos fundos de sua casa, etc. Certo é Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 • Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 65 que a rede laboratorial foi tomando maiores proporgoes. E esse crescimento trouxe um efeito evanescente sobre o nome do Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento. Em outras palavras, os trabalhos realizados na Escola de Aperfeigoa mentó cederam seu lugar de destaque para os novos laboratorios identificados por seu caráter assistencial. O Laboratorio Édouard Claparéde era de tal forma identificado com a pessoa de sua criadora que era chamado de "O Laboratorio de Dona Helena" - cf. Alkmim (1980) e Carneiro (1980). Outras agoes, premios e condecoragoes contribuíram para reforgar na historiografía o protagonismo de Antipoff (Campos e Lourengo, 2001). Urna memoria consumida pelas chamas Por volta de seu décimo sétimo aniversario, o Laboratorio de Psicología foi extinto juntamente com a Escola de Aperfeigoamento, o que surpreendeu todo o corpo docente, que sequer imaginava tal destino como urna possibilidade. A diretora só tomou conhecimento do fato quando este já estava consumado, publicado em jornal (Prates, 1989). A Escola de Aperfeigoamento foi incorporada ao Instituto de Educagao de Minas Gerais, na qualidade de Curso de Administragao Escolar. Entre as justificativas para esta mudanga estava a necessidade de evitar a superposigao de cursos e recursos para os mesmos objetivos, de criar unidades de agao educativa para que os esforgos fossem mais rentaveis (Pimentel, 1946). No decreto que versa sobre essas mudangas, há, inclusive, a especificagao de um laboratorio de psicología para o Instituto de Educagao (Decreto-leí n. 1.666, 1946), como também a prescrigao da remuneragao dos assistentes desse novo laboratorio. Porém, é preciso esclarecer que nao ocorreu simplesmente urna transposigao do Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento para outro local. Em vez disso, ele foi substituido por outro laboratorio, já que Um material ¡menso advindo do antigo laboratorio de Psicología foi empilhado em sucessivas salas do Instituto de Educagao de Minas Gerais. Ninguém mais quis tirar conclusoes de precioso material de pesquisa, obtido mediante milhares de aplicagoes de testes em changas, adolescentes e adultos. O que sobrou da antiga Escola criada pelo Presidente Antonio Carlos passou a ser entregue ao mofo, aos ratos ou á poeira, até o dia de um pavoroso incendio que destruiu as salas do Instituto de Educagao, consumindo os restos de urna obra de envergadura que tinha dado a Minas Gerais, durante duas décadas, a lideranga da educagao primaria no país (D. Antipoff, 1996, p. 134). O Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento nao foi extinto somente enquanto instituigao. Sua desaparigao também se deu no nivel da memoria. Vivenciamos isto em todos os momentos em que procurávamos por fontes que permitissem escrever esta historia. Ao organizarmos aquelas que encontramos, sentimo-nos como que diante da figura de um quebra-cabega montado com urna pequeña parcela das pegas. Como urna especie de consolo, descubrimos que apesar do incendio, a problemática a respeito da preservagao da memoria parece nao ser restrita ao Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento, pois mudangas políticas e administrativas, a falta de recursos financeiros e estímulo á pesquisa marcaram a historia dos primeiros laboratorios de psicología no Brasil. Alguns desapareceram sem deixar vestigios. Outros ficaram desatualizados e nao foram conservados, com perda gradativa do material remanescente (Pfromm Netto, 2004). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 • Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 66 Consideragóes fináis A aplicagao de testes para selegao de changas em classes homogéneas foi urna das principáis demandas ao departamento de psicología da Escola de Aperfeigoamento. Quanto ao Laboratorio que ajudava a compor esse departamento, sua participagao no processo de "testagem" psicológica era constantemente reafirmada. Em geral, quando se dizia o nome "laboratorio", nao havia urna especificagao sobre o que o constituía, tal como a encontrada no relato daquela exposigao de trabalhos de 1929, em que o Laboratorio foi identificado com um conjunto de aparelhos destinados a mensuragoes de processos motores e sensoriais. Ao que tudo indica, a divisao nao se manteve, pois observamos, ao longo da historia, os nomes do Laboratorio e do Museu da Crianga aparecendo como representantes de todo o departamento de psicología. Acreditamos que houve urna modificagao na concepgao de laboratorio vigente na Escola de Aperfeigoamento: num primeiro momento, anterior ao Decreto de 1930, o Laboratorio de Psicología era um conjunto de "instrumentos de latao". Talvez seja por esta razao que Helena Antipoff tenha concedido a autoría daquele polémico estudo, sobre os ideáis e interesses, ao Museu da Crianga, urna vez que neste estudo foi utilizado um questionário e nao aparelhos que tinham maior ligagao com análises de física e fisiología. Com a publicagao do decreto de 1930, que valorizou trabalhos diretamente ligados á prática educacional, os testes psicológicos se destacaram como os mais adequados para esses propósitos, já que avaliavam processos mentáis mais complexos, se comparados aos "instrumentos de latao". Pensando no Laboratorio em sua primeira versao, podemos perceber que varios daqueles instrumentos continuaram sendo usados como recursos didáticos. Mesmo o ensino dos processos mentáis e comportamentais básicos, que requería o uso dos "instrumentos de latao" para demonstragao, tinha urna relagao com os testes, já que eles diagnosticavam e selecionavam com base em tais processos. Desse modo, as alunas aprendiam sobre a constituigao biológica, psicológica e social dos sujeitos, a fim de adquirirem maior clareza sobre o processo de aplicagao dos testes. Para avahar a personalidade era preciso conhecer seu processo de forma gao. O Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento cumpria urna fungao de pesquisa, baseando-se principalmente na metodología experimental relativa aos testes psicológicos para avahar o sujeito em suas múltipas dimensoes. Ele cumpria urna fungao de ensino, servindo como ambiente catalisador da integragao entre teoria e prática, ou seja, como um local onde as professoras-alunas vivenciavam situagoes elucidativas do desenvolvimento psicológico e da prática educacional. E também cumpria urna fungao instrumental na viabilizagao da teoria educacional de selegao de criangas em classes homogéneas. Além dessas, nao podemos esquecer as diversas fungoes políticas que desempenhava, tanto na afirmagao do campo da psicología como ciencia, e, dentro desse campo, da perspectiva escolanovista que reforgava a importancia dos fundamentos psicológicos para a educagao; como cávalo de batalha entre representantes da igreja católica em busca da retomada de espago perdido no cenário educacional brasileiro; como também na projegao de urna identidade progressista do governo do estado de Minas Gerais, que se promoveu como moderno e liberal ao dar suporte ao projeto. Tentamos oferecer algumas contribuigoes para aqueles que se interessam pela historia da psicología, mas estamos certos de que nosso esforgo deixou pendencias. Esperamos que o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeigoamento seja repensado á luz de outras perspectivas, que, certamente, produzirao novos resultados. Talvez a presente investigagao possa fazer parte de urna futura apreciagao crítica, como fizemos com trabalhos passados. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 • Fazzi, E. H., Oliveira, B. J. & Cirino, S. D. (2011). Notas sobre o Laboratorio de Psicología da Escola de Aperfeicoamento de Belo Horizonte. Memorándum, 20, 58-69. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 67 Referencias Alkmim, H. D. (1980). O Laboratorio de Dona Helena. Boletim "Claparede", 3, 4647. Antipoff, D. I. (1985). 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Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 68 Exposigao de trabalhos da Escola de Aperfeigoamento. (1929a, 11 de dezembro). Minas Geraes, 9-10. Exposigao de trabalhos da Escola de Aperfeigoamento. (1929b, 12 de dezembro). Minas Geraes, 9-10. Exposigao de trabalhos da Escola de Aperfeigoamento. (1929c, 14 de dezembro). Minas Geraes, 15. Fazzi, E. H. (2005). O laboratorio de psicología da Escola de Aperfeigoamento de Belo Horizonte (1929-1946). Dissertagao de Mestrado, Faculdade de Educagao, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG. Foucault, M. (1996). A ordem do discurso: aula inaugural no Collége de France, pronunciada em 2 de dezembro de 1970 (L. F. A. Sampaio, Trad.). Sao Paulo: Loyola. (Original publicado em 1971). Foucault, M. (2001). Historia da sexualidade I: a vontade de saber (M. T. C. Albuquerque & J. A. G. Albuquerque, Trads.). Rio de Janeiro: Graal. (Original publicado em 1976). Guimaraes, I. (1988). 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Contato: [email protected] Sergio Dias Cirino é doutor em Psicología pela USP. É professor associado na Faculdade de Educagao da UFMG e bolsista de produtividade do CNPq. Contato: [email protected] Data de recebimento: 12/02/2010 Data de aceite: 17/03/2011 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/fazzioliveiracirino01 Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do desenvolvimento e da producao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, 20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 A narracáo da historia da psicología do desenvolvimento e da producao sobre a infancia nos livros didáticos The narration of the history of developmental psychology and of the production about childhood in didactic books Maria Cristina S. de Gouvea Priscilla Nogueira Bahiense Universidade Federal de Minas Gerais Brasil Resumo No presente trabalho procuramos analisar a apresentacao da constituigao histórica da psicología do desenvolvimento nos manuais de ensino da disciplina dirigidos ao ensino superior. Tendo em vista a afirmagao histórica de urna escola centrada na crianga/aluno, os cursos de formagao inicial e continuada conferiram destaque ao estudo dos processos de desenvolvimento, da infancia a idade adulta, tido como fundamental para a qualificagao do educador e psicólogo escolar. Faz-se importante, portanto, compreender que saberes foram e sao transmitidos no interior desta disciplina, com que estrategias e recursos didáticos. Ao realizarmos as análises, verificamos nos compendios que a narrativa histórica mostra-se linear, centrada no registro dos principáis autores e seus feitos. Nao é estabelecida relagao entre o processo de constituigao da disciplina e os processos históricos mais ampios, nem é construida urna análise das condigoes de produgao dos saberes, as tensoes na afirmagao do campo. Por outro, o relato evolutivo faz-se desvinculado de urna problematizagao histórica. Com isso, apresenta-se ao leitor, urna visao a histórica da disciplina, que nao permite relacionar o conhecimento produzido a seu percurso de construgao e consolidagao. Palavras-chave: historia; psicología do desenvolvimento; livros didáticos. Abstract In this paper we analyze the presentation of the historical constitution of the psychology of the development of teaching manuais of the subject aimed at higher education. Given the historical claim of a child/student-centered school, the courses of initial and continuing training gave prominence to the study of development processes, from childhood to adulthood, seen as crucial for the qualification of the educator and school psychologist. It is therefore important to understand that knowledge was and is transmitted within that discipline, and the strategies and teaching resources. By conducting the analysis, we found that in textbooks the historical narrative was linear, centered on the record of the main authors and their achievements. A relationship between the process of constituting the discipline and the broader historical processes is not established, ñor is it built an analysis of the conditions of knowledge production, the tensions in the affirmation of the field. On the other hand, the evolutionary account is disconnected from a historical problematic. Thus, it presented to the reader an ahistorical view of the discipline, which does not allow relating the knowledge produced to the path of construction and consolidation. Keywords: history; developmental psychology; didactic books. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do desenvolvimento e da produgao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, 20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 71 Nos espagos de formagao dos profissionais da escola básica, um dos saberes históricamente priorizados tem sido o estudo dos processos de desenvolvimento humano e, mais destacadamente, das mudangas afetivo-cognitivas operadas no individuo, da infancia á idade adulta (1). Tal centralidade construiu-se históricamente, principalmente sob influencia das modernas teorías pedagógicas que, ao longo do século XX propugnaram urna escola centrada na crianga - aluno. Neste sentido, a psicología configurou-se como campo de conhecimento hegemónico na apreensao do sujeito infantil, em sua relagao com o conhecimento, ciencia entendida como capaz de conferir cientificidade as práticas pedagógicas. Os cursos de formagao inicial e continuada de professores conferiram destaque a este campo científico, expresso na forte presenga na grade curricular da disciplina psicología do desenvolvimento, tida como fundamental para a qualificagao do educador. Afirmou-se históricamente a representagao do aluno como sinónimo de crianga, sendo sua identidade remetida a um pertencimento etário: a infancia, tornando opacas outras categorías informadoras de sua identidade social, tais como classe, género e raga/etnia. Tal sinonimia entre os termos crianga e aluno conferiu centralidade ao estudo do desenvolvimento humano, especialmente dos processos iniciáis de formagao do individuo como se tal estudo fornecesse elementos suficientes para compreensao da identidade do aluno. Como afirma Narodowski (1994), se crianga e aluno referem-se usualmente ao mesmo sujeito empírico, correspondem a objetos epistémicos diferenciados, tornados históricamente equivalentes na produgao educacional. Urna serie de trabalhos vem se debrugando sobre esta temática, tanto no campo da psicología, quanto no da educagao, contemplando a construgao da centralidade da psicología e, mais exatamente da psicología do desenvolvimento nos currículos e materiais didáticos dos cursos de formagao docente (2). Com isso verifica-se que o estudo dos processos de aprendizagem no contexto escolar foi reduzido a análise dos estágios do desenvolvimento humano da infancia á idade adulta, descontextualizados do seu contexto sociohistórico. Tal crítica, tornada freqüente a partir das últimas décadas do século XX (vide Larocca, 1999) fez emergir urna produgao diferenciada no campo da educagao, indicando urna renovagao dos olhares sobre o aluno. Se predominava um "psicologismo" (Larocca, 1999) no estudo da relagao que o individuo estabelece com o conhecimento, esta apreensao tem sido ressignificada a partir da emergencia de campos como sociología, antropología e historia da infancia, levando a urna produgao interdisciplinar sobre o tema e quebrando a hegemonía histórica da disciplina psicología (3). Tais campos investigativos tomam a crianga como sujeito sociohistórico cultural e apontam como o desenvolvimento do individuo constituí um processo ativo de apropriagao da cultura (vide, entre outros, Corsaro, 2011). Por outro, verifica-se a presenga de estudos no campo da historia da psicología que apresentam um olhar crítico sobre a emergencia da psicología do desenvolvimento. Assim é que Plotkin (2004), no seu estudo sobre o olhar evolutivo no campo da psicología, aponta que tal perspectiva emergente no século XIX é renovada ao final dos séculos XX e XXI sob a forma de investigagoes em etologia e sociobiologia. Shuttleworth (2010) contempla a emergencia de estudos sobre o desenvolvimento indicando que a curiosidade sobre a infancia fazia-se presente nao apenas na produgao científica, mas também literaria e na vida cotidiana, com a intensa produgao de diarios sobre o desenvolvimento da crianga por pais, maes e educadores. Para a autora, a cientificizagao e conseqüente profissionalizagao do campo significou também a masculinizagao do mesmo, já que os homens eram considerados como capazes de produzir urna ciencia dotada de rigor e objetividade. Gouvea e Gerken (2010) apontam como esta fundou-se no diálogo com teorías que afirmavam a relagao entre o desenvolvimento do individuo e da especie, estabelecendo urna identidade entre o pensamento infantil e o de outros Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do desenvolvimento e da produgao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, 20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 nr ¿ povos/ragas ditos primitivos. Neste sentido, sob um viés etnocéntrico, operaram urna racializagao do estudo do desenvolvimento humano. Tendo em vista as questoes hoje postas para a psicología do desenvolvimento, indicando a necessária interdisciplinahdade no estudo dos processos de desenvolvimento e de construgao do conhecimento, cabe apreender: como tais processos vém sendo estudados nos cursos de formagao de professores e psicólogos? Como os materiais didáticos abordam o estudo do desenvolvimento humano? Como contemplam a trajetória histórica de formagao e consolidagao do campo da psicología do desenvolvimento? Em que medida incorporam urna leitura critica sobre o tema? Com base nestas questoes, buscamos desenvolver urna pesquisa sobre os saberes veiculados nos manuais didáticos de ensino de psicología do desenvolvimento. Mais específicamente analisar como a historia da disciplina é apresentada nos compendios, verificando se é desenvolvida urna problematizagao da mesma. Para tal, foi feita urna análise historiográfica de treze manuais didáticos, avaliando-se: como é apresentada a historia da psicología? Que relagoes sao estabelecidas com o contexto histórico de produgao deste conhecimento? Qual a perspectiva historiográfica de escrita da historia da psicología do desenvolvimento? Iremos apresentar a pesquisa situando inicialmente os referenciais teóricometodológicos da mesma, contemplando posteriormente dois temas no estudo dos livros didáticos: a apresentagao do percurso de constituigao da psicología do desenvolvimento e os referenciais do estudo do desenvolvimento humano. Por fim, iremos discutir as relagoes e implicagoes para o ensino da psicología A nova historia e as contribuicoes para a psicología Ao buscarmos analisar como foi escrita a historia da psicología do desenvolvimento e da produgao de saberes sobre a infancia, recorreu-se á análise historiográfica, tomando os manuais como fontes, tentando apreender qual a perspectiva de construgao da narrativa deste percurso. Nesta diregao, foi estabelecido um diálogo com a chamada Nova Historia (4), que nos forneceu ferramentas teórico-metodológicas de análise desta questao. A cientificizagao da historia, ao longo do século XIX, deu-se a partir de urna perspectiva positivista, em que a historia era apreendida como a narragao dos fatos, tomados como sucessao de acontecimentos, cujos atores eram os "grandes homens", historia esta desvinculada de qualquer problematizagao. Foi a partir das primeiras décadas do século XX, com a emergencia da chamada Nova Historia, que construiu-se outra perspectiva historiográfica, a qual toma como objeto nao os grandes acontecimentos, mas as lentas transformagoes ñas estruturas que os sustentam. Por outro, os atores históricos nao se reduzem mais aos grandes homens, mas aos diferentes grupos sociais em cena, no seu fazer histórico. Por fim, o estudo de um tema histórico faz-se a luz de urna problematizagao, da compreensao de seu significado no período analisado. Todas estas reflexoes fizeram emergir urna nova escrita da historia, problematizando-se as escritas anteriores. Porém, até que ponto esta revolugao na escrita da historia foi incorporada pelos autores dos manuais didáticos de psicología? Com que perspectiva a emergencia da psicología do desenvolvimento e a produgao sobre a infancia é narrada nos manuais? Até que ponto dialogaram ou incorporaram urna problematizagao da historia, ou se mostraram marcados por um viés positivista? No campo da historia da infancia, se desde a pesquisa desenvolvida por Aries (1978) - "Historia Social da Changa e da Familia", publicada inicialmente em 1962 - deu-se inicio a urna fecunda tradigao de investigagoes que tomam a changa como objeto histórico, em diferentes períodos, contextos e espagos de insergao, em que medida as contribuigoes de tais investigagoes sao incorporadas nos manuais escolares de psicología do desenvolvimento? Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do desenvolvimento e da produgao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, 20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 70 É no interior desta temática e a partir dos referenciais teórico-metodológicos da historia da educagao, no diálogo com as teorías da historia, que busca-se aqui contemplar duas questoes particulares: a transmissao de conhecimento sobre a historia da disciplina "Psicología do desenvolvimento" e o lugar dos estudos sobre a infancia nesta disciplina. Faz-se importante compreender que saberes foram e sao transmitidos no interior desta disciplina, com que estrategias e recursos didáticos. Caracterizacao da desenvolvimento fonte: os manuais escolares de psicología do Os materiais didáticos e, especialmente, os compendios vém sendo intensamente estudados nos últimos anos, contemplando nao apenas seu conteúdo textual, mas seu processo de produgao, circulagao e apropriagao, a materialidade do impresso, suas características tipográficas, a luz da chamada historia cultural (vide Chartier, 2003). Dentre os chamados livros didáticos, Alain Choppin (2004), um dos principáis autores de referencia do campo, destaca a pouca presenga de estudos sobre os chamados manuais escolares de materias científicas, especialmente os que circulam no ensino superior. Ao tomarmos tais materiais como objeto de investigagao, privilegiamos urna análise mais internalista, voltada para estudo dos conteúdos transmitidos na obra, contemplando o que Chopin (2004) define como: questoes de natureza epistemológica e didática propriamente dita: qual(s) discurso os manuais sustentam sobre determinada disciplina e sobre seu ensino? Qual(s) concepgao(s) de historia, qual(s) teoria(s) científica(s) ou qual(s) doutrina(s) lingüística(s) representam ou privilegiam? Qual o papel que atribuem á disciplina? Que escolhas sao efetuadas entre os conhecimentos? Quais sao os conhecimentos fundamentáis? Como eles sao expostos, organizados? (p. 180). Por outro, consideramos que os saberes, informagoes, autores referidos nos textos, ao circularem nos espagos de formagao docente, expressam urna busca de uniformizagao do conhecimento sobre o campo que, ao mesmo tempo em que revelam, silenciam. No dizer de Chopin (2004): se o livro didático é um espelho, pode ser também urna tela... a análise de livros didáticos de ciencias mostra que estes também apresentam urna visao consensual e normalizada do estado da ciencia de sua época; toda controversia é deliberadamente eliminada da literatura escolar (p. 187). Assim é que buscamos analisar que historia é contada nestes manuais, que autores e abordagens sao privilegiadas em detrimento de outras perspectivas analíticas. Considera-se que a constituigao de um campo científico envolve nao apenas a produgao de um corpo de saberes articulado em torno de um objeto de conhecimento, de estrategias metodológicas de investigagao, mas também recursos e espagos de transmissao deste conhecimento, científicamente legitimadas. Assim é que a consolidagao de urna área de conhecimento se articula com a produgao histórica de estrategias de reprodugao dos saberes no interior do campo, mais específicamente com a conformagao de espagos e materiais didáticos de ensino. De acordó com Oliveira (2003): Dentro da historiografía das ciencias, vem se difundindo cada vez mais a perspectiva de nao considerar o desenvolvimento das ciencias tao Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do desenvolvimento e da produgao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, 20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 n* somente a partir das seqüéncias e teorizagoes, experimentos e argumentagoes, mas de buscar enriquecer a compreensao do fenómeno científico a partir das práticas científicas dos mecanismos sociais de negociagao e legitimagao que envolvem a produgao, a aceitagao e a difusao dessas práticas (p. 103). No caso da Psicología do Desenvolvimento, esta articula-se como campo científico dotado de identidade epistémica ao final do século XIX e inicio do século XX. A semelhanga de outras disciplinas científicas constituiu sua legitimidade nao apenas através da produgao do conhecimento, mas de estrategias como criagao de sociedades e periódicos científicos, organizagao de departamentos e disciplinas no interior das instituigoes académicas e elaboragao de materiais didáticos de transmissao do corpo de saberes constituido no interior do campo. Saber o que foi priorizado na formulagao da constituigao histórica da disciplina nos possibilita entender os eixos epistémicos que fundamentaram a construgao de um olhar singular, nao apenas sobre o desenvolvimento humano, mas também sobre a infancia, apreendida como momento estruturante da evolugao do individuo. Por outro, permite-nos apreender a partir de qual perspectiva historiográfica tal processo é narrado. Tendo estas questoes em mente, buscamos analisar treze manuais de psicología do desenvolvimento acessíveis ñas Bibliotecas da Faculdade de Educagao e da Faculdade de Filosofía e Ciencias Humanas da UFMG. Ao realizarmos as análises, buscávamos tragos da visao presente em tais materiais sobre o surgimento da ciencia, seus principáis autores e perspectivas teóricas de análise. Com base neste criterio foram selecionados apenas seis (5), para urna análise mais detalhada, por conterem urna apresentagao da historia da constituigao do campo no século XIX (ainda que superficial), que se fez ausente nos demais. Chama atengao, portanto, que parte significativa das obras analisadas apresentam ao aluno a disciplina sem contemplar sua historicidade, tomando os conhecimentos produzidos pelo campo como desvinculados do contexto histórico de sua constituigao. Os manuais investigados caracterizam-se por serem, em sua maioria, tradugoes de obras de origem norte-americana, publicadas entre as décadas de 70 e 90 do século XX. Gatti (1995), no estudo das obras utilizadas nos cursos de psicología, também comenta que na sua grande maioria constituem tradugao mal feita de origináis antigos, sem revisao de conteúdos, levando a apreensao de urna psicología abstraía, modeladora, sem pontos de coníaío com a realidade escolar. Alguns poucos sao de auíores brasileiros, observando-se significaíiva uniformizagao da esíruíura das obras, apreensível nao apenas pela apreseníagao de capííulos com íííulos semelhaníes, geralmeníe objeíivos e siníéíicos, mas no próprio projeío íipográfico, com ausencia de recursos visuais, uso empobrecido de cores e de recursos de diagramagao. Mesmo as obras brasileiras íém um coníeúdo semelhaníe as esírangeiras, observando-se urna exclusividade na referencia a auíores e ceñiros de invesíigagao, quer noríe-americanos, quer europeus, desconsiderando-se qualquer produgao de ouíros países e regioes. Correia e Peres (2001) assinalam que: o processo de circulagao dessas obras eníre comunidades e países, de imporíagao e normalizagao desde os íííulos aíé o léxico uíilizado, em que íem lugar íransferéncias de seníidos e de conoíagoes que vao gerando desconíinuidades e discrepancias nao reduííveis a simples adapíagoes, mas que apelam a urna Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do desenvolvimento e da produgao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, 20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 nc utilizagao mais ampia do conceito de tradugao (p. 198). Assim é que nos projetos de formagao de profissionais produz-se um olhar sobre o campo em que este é referido a apenas alguns autores e espagos de investigagao, com urna determinada perspectiva analítica, conduzindo a urna normatizagao na apropriagao do conhecimento sobre a área. Perspectiva epistémica e historiográfica No estudo do conteúdo das obras, verifica-se urna homogeneidade textual, em que é apresentado um rápido percurso histórico factual do surgimento da disciplina e sua evolugao, fundado numa perspectiva historiográfica positivista. As informagoes históricas sao apresentadas na introdugao ou no primeiro capítulo, através da descrigao dos fatos que culminaram no surgimento da ciencia da psicología do desenvolvimento, de forma breve, apenas situando os autores e suas contribuigoes. Após urna sintética apresentagao, via de regra as obras abandonam qualquer referencia histórica, passando a contemplar apenas a caracterizagao das distintas teorías e autores. Assim é que a historia da disciplina é pouco trabalhada nos textos. Estes priorizam a transmissao dos conhecimentos mais recentes, ou dos saberes produzidos pelos autores canónicos, desarticulados de urna perspectiva histórica, numa narrativa linear. O percurso histórico de produgao do conhecimento sobre os processos de desenvolvimento humano é apresentado como a construgao gradativa de saberes que foram se somando e acumulando, dotados de cada vez maior cientificidade e, portanto, poder de verdade. Em "Crescimento e mudanga - introdugao á psicología do desenvolvimento", Harry McGurk (1976) apresenta os antecedentes históricos que contribuíram para a psicología do desenvolvimento. Neste livro o autor cita desde Platao (427-347 a. C ) , que argumentava que as diferengas entre os humanos eram de base biológica, passando por filósofos do século XVII e XVIII, como Locke e Rousseau, até chegar a Darwin, importante autor do século XIX. Este, "com a publicagao de Origin of Species (1859) e Descent of Man (1877), contribuiu bastante para acelerar o interesse no curso natural do desenvolvimento infantil" (McGurk, 1976, p. 19). Verifica-se que é feita urna recuperagao de autores situados em momentos históricos muito diferenciados, apresentando um continuum evolutivo na produgao do conhecimento sobre o desenvolvimento humano e a crianga, desvinculado da análise das condigoes históricas de formulagao de tais saberes, em períodos tao distintos. A referencia á influencia de Darwin reproduz-se nos diferentes manuais sem, no entanto, ser problematizada. Atribui-se a Darwin a emergencia de urna perspectiva evolucionista no campo da psicología, quando o biólogo sempre refutou estender a outros campos para além da biología sua teoría. Mais que isto, Darwin nao usou o conceito de evolugao em seus estudos, mas o de adaptagao. Para ele, se um organismo como urna bacteria e adaptado ao meio ele e tao evoluído quanto um organismo de especies ditas mais complexas (Darwin, 1887/2004). Na verdade, mais que Darwin, o ideario evolucionista de Spencer é que informa o investimento no estudo dos processos de desenvolvimento humano (Plotkin, 2004; Gouvea & Gerken, 2010). Para Spencer, todo o universo seria marcado por urna trajetória evolutiva, em que progresso e evolugao seriam os principios gerais de todas formas de vida e sociedade. Nos mais distintos campos científicos ao longo do século XIX, sob influencia de Spencer, urna abordagem evolutiva se fez presente, como na antropología, historia e, principalmente, na biología. No caso da psicología, considerava-se que, no estudo das chamadas faculdades mentáis, estas deveriam ser apreendidas sob um olhar evolutivo. Tais faculdades caminhariam de urna imperfeigao na infancia até chegar a complexidade do pensamento adulto. Afirmou-se ai urna perspectiva etapista denominando-se a psicología do Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do desenvolvimento e da producao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, 20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 n¿ desenvolvimento como psicología evolutiva, que atravessaha também o século XX. Consolidou-se urna visao adultocéntrica que desconsiderava a originalidade e complexidade dos processos mentáis da changa, menorizando as formas de conhecimento da changa. Tal narrativa fez-se presente nos manuais, na apresentagao histórica da emergencia da disciplina, sem um diálogo com os estudos da historia da psicología do desenvolvimento, como os publicados por Robert Cairns (1998) e Dominique Ottavi (2004), que analisam a relagao da emergencia desta ciencia com o contexto histórico, bem como contemplam as questoes de ordem epistemológica presentes á época. Carmen Enderle (1993) em "Psicología do Desenvolvimento: o processo evolutivo da changa" considera que "o estudo do desenvolvimento humano inclui a pesquisa dos processos intrapsicológicos e mentáis que levam a mudangas de comportamento através do tempo" (p. 17). Porém nao aborda o surgimento da disciplina numa perspectiva historiográfica. Há em seu livro um capítulo sobre o "Histórico e evolugao" da ciencia, no qual nao está presente urna descrigao mais detalhada de seu surgimento apesar de considerar que: Um breve histórico da evolugao da psicología do desenvolvimento talvez seja de utilidade, pelo realce á questao metodológica, ponto nevrálgico, até hoje, da pesquisa em psicología. Por outro lado, inicia o leitor na apreensao das linhas de pensamento em que se embasa a psicología evolutiva (Enderle, 1993, p. 19). Ao afirmar a importancia do conhecimento histórico da evolugao da disciplina, a autora revela, na verdade, o contrario, o que se observa ao compreender que tal conhecimento deve ser apresentado, talvez, de forma breve e informativa. Observa-se urna perspectiva historiográfica fundada na tradigao da chamada historia das idéias. Esta compreende a historia e especialmente a historia da ciencia como resultantes da evolugao cumulativa do pensamento dos autores. Como chama atengao Peter Burke (2003b): "a sabedoria nao é cumulativa. No caso do conhecimento houve e ainda há tanto retrocesso quanto progresso a nivel individual" (p. 20). A perspectiva da chamada historia das idéias é firmemente criticada por Lucien Febvre (1952/1996), urna das principáis referencias da chamada Nova Historia. Em suas palavras: esta historia é exatamente o contrario daquilo que um método de historiadores exige. E que, perante estas chagoes de conceitos saídos de inteligencias desencarnadas depois vivem de sua própria vida fora do tempo e do espago, formam estranhas cadeias, de elos ao mesmo tempo irreais e fechados (p. 50). Observa-se ñas obras analisadas a alianga entre urna concepgao positivista de historia, calcada no registro dos fatos, acontecimentos e autores, a urna perspectiva fundada na historia das idéias, de relato da produgao do conhecimento como resultante do trabalho intelectual de "inteligencias desencarnadas". Ao citar as fases do desenvolvimento humano, a autora ácima referida consegue explorar melhor a historia da disciplina, apresentando ao leitor urna breve síntese das idéias que culminaram no surgimento da mesma. As fases sao divididas ñas seguintes: Fase do método deschtivo, que contou com a contribuigao da "Teoria da maturagao" de Gesell, fase do método correlaciona!, no qual Freud e Piaget foram de grande importancia e por último a fase do método experimental, onde Pavlov e Watson, através do movimento behaviorista incrementaram os estudos realizados. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do desenvolvimento e da produgao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, 20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 nn Porém, nao é estabelecida relagáo entre os diferentes métodos e autores, o que se revela também ñas outras obras. A apresentagáo da historia da disciplina como a construgao gradativa de métodos referidos a momentos históricos distintos nao estabelece um diálogo entre tais métodos e suas diferenciagoes, que nao se sucedem no tempo, numa perspectiva cumulativa de conhecimento, sendo ignoradas as tensoes e diferengas entre os distintos métodos apresentados. Na verdade, tais teorías e autores divergem em suas concepgoes, constituem tradigoes diferenciadas que se contrapoem, disputam um lugar hegemónico na produgao da área, mesmo no presente. Na análise da fundamentagáo epistemológica das teorías da psicología do desenvolvimento, Hiram Fitzgerald, Ellen Strommen e John Mckinney (1983) em "Psicología do desenvolvimento" abordam alguns conceitos advindos de biólogos dos séculos XVII e XVIII. Porém, nao há por parte dos autores qualquer problematizagao a respeito de tais conceitos. Estes apresentam a teoria evolucionista, os métodos quantitativos e de mensuragáo, o behaviorismo, a psicología cognitivista, a psicología dinámica e a psicología clínica como as origens históricas da psicología do desenvolvimento. As origens sao apresentadas em tópicos que contemplam as influencias desta nova ciencia no seu processo de elaboragáo. Nao é estabelecida qualquer relagáo entre o surgimento da psicología do desenvolvimento e os processos históricos da época. O mesmo ocorre na obra "Desenvolvimento Humano" de Justin Pikunas (1979), que aborda o surgimento desta nova ciencia, destacando os principáis autores e a importancia de seus estudos. Porém, nao se faz sequer referencia ao contexto e período histórico no qual a psicología do desenvolvimento teve sua génese. Encontramos registros referentes a um fato histórico relevante apenas em Dinah Martins de Souza Campos (1997), quando a autora após apresentar um breve histórico da psicología do desenvolvimento, informa ao leitor que: Porvolta de 1940, a psicología conseguiu alcangar as características que vém sendo verificadas atualmente, tendo a Segunda Guerra Mundial repercutido sobre seu desenvolvimento, como a consagragáo dos testes de selegao, os problemas do moral dos combatentes, do equilibrio de personalidades e das relagoes sociais nos grupos. (P- 18) Nesta breve referencia ao contexto histórico, embora a autora cite as demandas sociais postas em cena na afirmagáo de um modelo da ciencia, nao as problematiza. Porque a Segunda Guerra produziu tal leitura dos processos de desenvolvimento humano? Foi apenas este acontecimento, sem dúvida significativo, que levou a consagragáo dos testes, ou urna estrutura social fundada na selegao dos mais capazes e na adaptagao do individuo á sociedade? Diante do estudo das fontes, concluímos que nao é estabelecida relagáo entre a constituigáo da disciplina e os processos históricos mais ampios, além de nao ser construida urna análise das condigoes de produgao dos saberes e nao serem apresentadas as tensoes na afirmagáo do campo. Por outro, o relato evolutivo fazse desvinculado de urna problematizagao histórica. Com isso, apresenta-se ao leitor, urna visáo a-histórica da disciplina, que nao permite relacionar o conhecimento produzido á seu percurso de construgao e consolidagáo. Ao mesmo tempo induz-se a urna representagáo evolutiva linear da historia da ciencia, que desconsidera as tensoes no interior do campo, bem como o caráter nao cumulativo do conhecimento. A crianca nos manuais de psicología do desenvolvimento Enquanto a historia da disciplina nao é trabalhada de maneira expressiva nos manuais, a changa se encontra como ponto de partida para o surgimento da área. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do desenvolvimento e da produgao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, 20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 nn A busca pela compreensao do desenvolvimento humano se inicia na observagao do desenvolvimento infantil, gerada a partir da nova conceituagao de crianga agregada á educagao. Segundo Enderle (1993), últimamente surgiram varios questionamentos quanto ao conceito de infancia, este sendo abordado sob urna perspectiva histórica. Esta permitiría compreender a infancia como determinada pelas transformagoes organizacionais da sociedade. Com isso: torna-se obsoleto admitir um conceito único e universal, que considera todas as criangas iguais, isto é, essencialmente inocentes, incompletas e imperfeitas, portanto necessitadas da "moralizagao" dos adultos (Enderle, 1993, p. 19). Para a autora as criangas possuem, portanto, suas singularidades, fruto de sua insergao sócio-histórica e seu desenvolvimento nao deveria ser entendido como definido por um padrao a-histórico e universal. Seria a partir deste recorte que a psicología do desenvolvimento deveria desenvolver suas investigagoes. Se esta reflexao, fundada no diálogo com as produgoes mais recentes da historia e da sociología da infancia, se fazem presentes na introdugao desta obra, nao sao incorporadas ao longo do texto, que prioriza a apresentagao de autores e pesquisas fundadas num modelo universalista de análise dos processos de desenvolvimento humano. Nos manuais (6) encontramos as fases de desenvolvimento das criangas bem definidas pelos autores que as detalham como, por exemplo, Pikunas (1979), que em seu livro contempla-as considerando os fatores psicológicos e suas implicagoes sociais. A perspectiva etapista informa as diferentes obras que, na organizagao dos capítulos, nao apresentam distintamente os diversos aspectos do desenvolvimento, como cognigao, linguagem, psicomotricidade, afeto, emogao, etc., mas os sucessivos estágios definidos pelos autores. Reproduz-se assim urna visao universalista e etapista, hoje fortemente criticada, ou anteriormente contemplada a partir de um olhar diferenciado em autores como Vygotsky e Wallon. Embora Vygotsky seja trabalhado em algumas das obras, nao é construida urna interpretagao que análise o impacto de sua produgao na construgao de urna perspectiva epistemológica diferenciada na análise da crianga. Nao é estabelecido diálogo contrastante entre as teorías etapistas universalistas do desenvolvimento e a visao cultural de Vygotsky e da tradigao sócio-histórica. Já Wallon, apesar de sua significativa produgao, faz-se quase ausente nos manuais analisados, talvez pela pouca penetragao de seus estudos no universo académico norte-americano, ou pelo seu olhar também nao universalizante. Sao também ignorados autores que se debrugaram sobre os processos de desenvolvimento e renovaram o olhar sobre o tema, como os estudos da antropóloga Margareth Mead (1930) sobre a adolescencia em Samoa, demonstrando a nao universalidade dos processos de desenvolvimento humano. A existencia de estudos sobre o desenvolvimento humano em outras disciplinas é apresentada por outro manual, largamente utilizado nos cursos de formagao "Desenvolvimento e personalidade da crianga", de Mussen, Conger e Kagan (1977). Estes afirmam que a psicología do desenvolvimento se ancorou nos métodos, conteúdos e conhecimentos da filosofía, fisiología, biología, astronomía, matemática, medicina, ciencias sociais - especialmente da política e economía - e teología, mas foi principalmente a partir de elementos presentes na filosofía, física e fisiología, que tornou-se urna disciplina formal distinta. Esta utilizagao de conceitos de diversas áreas resultou em urna nova literatura sobre o desenvolvimento humano, visto que: Os primeiros autores foram básicamente filósofos, religiosos, médicos, educadores, humanistas e reformistas mas, já naquela época, abordaram Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do desenvolvimento e da produgao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, 20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 n^ problemas que ainda sao críticos para o psicólogo do Desenvolvimento (Mussen, Conger & Kagan, 1977, p. 5). Observa-se, por fim, a escolha de urna escrita mais informativa que analítica, num texto em que a interpretagao das obras apresentadas, suas diferenciagoes teóricoconceituais se fazem quase ausentes, informando urna apropriagao a-crítica da disciplina. Consideracoes fináis Tendo em vista a fungao social dos manuais escolares de ensino da disciplina, cabenos interrogar sobre a recepgao pretendida pelo autor e sua efetiva apropriagao do texto pelo leitor. A historia da ciencia e das disciplinas científicas cada vez mais amplia seu campo investigativo, incorporando novos objetos de análise. Assim é que se aqui contemplamos urna análise textual internalista de alguns compendios que circulam em espagos de formagao de profissionais da educagao e psicología, tal análise deve ser acrescida pelo estudo de outros aspectos. Destacadamente, no que refere-se á investigagao acerca dos manuais de ensino da disciplina, cabe-nos interrogar acerca de sua apropriagao pelo leitor e do papel mediador do professor na relagao com o texto. Ou seja, se aqui contemplamos as representagoes sobre a emergencia histórica da disciplina e dos estudos sobre a crianga, cabe apreender como se deu sua transmissao e apropriagao no interior dos espagos de formagao. Como tais materiais foram e tem sido utilizados na prática docente? A partir de que perspectiva? Como os alunos se apropriaram e apropriam de tal conhecimento e com ele dialogam em suas práticas? Neste sentido, como nos alerta Roger Chartier (2003), o trabalho de leitura de urna obra envolve urna apropriagao pelo leitor em que este constrói significados sobre o texto, num processo ativo, definido pelo seu lugar social, ultrapassando os horizontes postos pelo autor e pela materialidade da obra. Neste caso, o aluno/ leitor atribuí sentido para a disciplina psicología do desenvolvimento certamente nao a partir de urna recepgao a-crítica da obra, mas insere-a num quadro de referencia mais ampio, no interior do qual ela adquire sentido. Tal questao nao foi aqui contemplada, mas sinaliza um fértil objeto de investigagao. O estudo dos manuais de ensino da disciplina indicou a produgao de urna visao normatizada do campo. Tal visao mostrou-se calcada, por um lado, numa perspectiva historiográfica positivista evolucionista, centrada na descrigao da produgao de sistemas explicativos sobre os processos de desenvolvimento humano. Estes, por outro, foram apresentados segundo urna perspectiva fundada numa historia das idéias entendidas como fruto da elaboragao intelectual dos diferentes autores, desvinculadas das condigoes históricas de produgao. Porém, fica urna questao: que interpretagao o aluno/leitor constrói sobre tais textos, considerando sua prática social, seus espagos de insergao e a mediagao do professor? Por outro, na produgao de um olhar sobre a crianga, na prática do aluno/leitor, até que ponto esta perspectiva universalista e etapista de análise de seu processo de desenvolvimento marca sua agao profissional? Referencias Aries, P. (1978). Historia social da crianga e da familia (D. Flaksman, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Original publicado em 1962). Burke, P. (2003a). A escola dos annales, 1929 - 1989 (P. Dentzien, Trad.) Sao Paulo: Unesp. (Original publicado em 1990). 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(2011). A narragao da historia da psicología do desenvolvimento e da producao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, 20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 oí Le Goff, J. (2001). A nova historia (E. Brandao, Trad.). Sao Paulo: Martins Fontes, (Original publicado em 1978). Mcgurk, H. (1976). Crescimento e mudanga: introdugao a psicología do desenvolvimento (E. D'Almeida, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar. (Original publicado em 1975). Mead, M. (1930) Corning of age in Samoa: a psychological study of primitive youth forwestern civilization. New York: William Morrow. Mussen, P. H., Conger, John J. & Kagan, J. (1977). Desenvolvimento e personalidade da crianga (4 a ed). (M. S. M. Netto, Trad.). Sao Paulo: Harper & Row do Brasil. (Original publicado em 1956). Narodowski, M. (1994). Infancia y poder. Buenos Aires: Aique. Oliveira, B. J. (2003). Imaginario científico e a historia da educagao. Em C. G. Veiga & T. N. L. 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Notas (1) Investigagao desenvolvida no interior da pesquisa: "A conformagao da idade e da idade escolar nos discursos científicos e ñas práticas pedagógicas (1880 1910)" com financiamento do CNPq (Edital Universal/2006, bolsa de produtividade em pesquisa 2006/2009 e bolsa de iniciagao científica) e Fundagao de Amparo á Pesquisa de Minas Gerais/FAPEMIG (Programa Pesquisador Mineiro PPM/2007). (2) Entre outras trabalhos vide Warde (1997), Patto (1991) e Larocca (1999). (3) Entre outras obras, recentemente publicadas no Brasil, vide Corsaro (2011), Gouvea e Sarmentó (2009) e Cohn (2005) (4) Para urna melhor apreensao da chamada Nova Historia, vide Le Goff (2001) e Burke (2003a). (5) Os manuais analisados foram: "Crescimento e mudanga: introdugao a psicología do desenvolvimento" de Harry McGurk (1976), "Desenvolvimento e Personalidade da Crianga" de Mussen, Conger e Kagan (1977), "Desenvolvimento Humano" de Justin Pikunas (1979), "Psicología do Desenvolvimento" de Dinah M. S. Campos (1977), "Psicología do Desenvolvimento" de Hiram Fitzgerald, Ellen Strommen e J. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 Gouvea, M. C. S. & Bahiense, P. N. (2011). A narragao da historia da psicología do desenvolvimento e da producao sobre a infancia nos livros didáticos. Memorándum, 20, 70-82. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 or> Mckinney (1983) e "Psicología do Desenvolvimento: processo evolutivo da crianga" de Carmen Enderle (1993). (6) Os manuais aos quais nos referimos, sao apenas os seis que foram analisados por conterem urna apresentagao da constituigao histórica da disciplina. Os demais manuais apesar de contemplarem o desenvolvimento da crianga nao foram utilizados neste trabalho. Nota sobre as autoras María Cristina S. de Gouvea é professora Associada da Faculdade de Educagao da UFMG e do Programa de Pós-Graduagao em Educagao da UFMG. Pesquisadora I-D do CNPq. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Historia da Educagao da UFMG (GEPHE/ UFMG). E-mail: [email protected] Príscilla Nogueira Bahiense é graduada em Pedagogía pela Faculdade de Educagao da UFMG. Mestranda em Educagao do Programa de Pós-Graduagao da UFMG. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas em Historia da Educagao da UFMG (GEPHE/ UFMG). E-mail: [email protected] Data de recebimento: 25/05/2009 Data de aceite: 04/05/2011 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/gouveabahiense01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Dias, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observagoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 83 Suspeitos em observacáo ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observagoes (1894-1930) Suspects under observation in the network of Psychiatry: The Pavilion of Observations (1894-1930) Pedro Felipe Neves de Muñoz Cristiana Facchinetti Allister Andrew Teixeira Dias Casa de Oswaldo Cruz/Fundagao Oswaldo Cruz Brasil Resumo Este artigo é parte de um projeto de pesquisa da Casa de Oswaldo Cruz/Fundagao Oswaldo Cruz e de duas dissertagoes de mestrado, apresentadas ao Programa de Pós-Graduagao em Historia das Ciencias e da Saúde da mesma instituigao. O objetivo deste estudo foi investigar os mecanismos de poder inscritos no Pavilhao de Observagoes e seus modos de manifestagao ñas práticas cotidianas, entre 1894 e 1930, bem como as relagoes desta instituigao com a polícia, o Hospicio Nacional de Alienados e a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Para tanto, utilizamos um acervo diversificado de fontes (documentos clínicos da instituigao, artigos e livros médicos, relatónos, decretos, entre outros), a partir do qual foi possível perceber que a instituigao estudada nao era apenas um simples espago do exercício da prática psiquiátrica no Rio de Janeiro, estando inserida em urna complexa rede de poder-saber, no ámbito psiquiátrico, durante a Primeira República do Brasil. Palavras-chave: historia da psiquiatría, hospitais psiquiátricos, assisténcia a alienados, polícia, Rio de Janeiro. Abstract: This article is part of a research project of Casa de Oswaldo Cruz/Fundagao Oswaldo Cruz and of two master dissertations which were presented in the PosGraduation Program in History of Science and Health of the same institution. The aim of this study was to investígate how the Pavilion of Observations structure was organized and its everyday functioning, between 1894 and 1930, analyzing its relationships with the pólice, the National Asylum of Aliened and Rio de Janeiro's Faculty of Medicine. In order to achieve that, we used a diversified collection of sources (clinical documents of the institution, medical articles and books, reports, among others), through which it was possible to realize that the studied institution was not only a simple place of psychiatric practice in Rio de Janeiro. The Pavilion of Observations was inserted in a complex network of power-knowledge, in the psychiatric field, during Brazilian's First Republic. Keyword: history of psychiatry, psychiatric hospitais, aliened assistance, pólice, Rio de Janeiro. 1. Introducao No presente artigo buscaremos compreender as singularidades do Pavilhao de Observagoes (PO), instituigao situada no Hospital Nacional de Alienados (HNA) entre 1894 e 1938 (1), na qual funcionava a Clínica Psiquiátrica da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (FMRJ). Fruto de investigagoes e reflexoes que tém nesta instituigao um ponto chave de contato, este artigo reúne partes em comum de duas dissertagoes de mestrado (Muñoz, 2010; Dias, 2010) (2) e urna pesquisa de maiorfólego ainda em andamento (3). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Días, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 84 Tencionamos, com este texto, esclarecer a insergao desta instituigao na rede da psiquiatría da cidade, no que tange ao controle e administragao da loucura, procurando reconstruir os principáis aspectos de suas interagoes com outras instituigoes chaves na questao: a Polícia, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e o Hospicio Nacional de Alienados. Por último, procuramos descrever e analisar dimensoes institucionais importantes para a compreensao de suas formas de operagao ñas primeiras décadas do século XX. Para tanto, investigamos um corpus documental ampio: relatórios de instituigoes que se relacionavam com o Pavilhao, como o "Servigo Policial do Rio de Janeiro" e o "Servigo Médico Legal da Polícia do Rio de Janeiro"; relatórios das duas instituigoes das quais o Pavilhao fazia parte, como veremos, a "Assisténcia a Alienados" (Relatórios da Assisténcia a Alienados, 1894-1930) e "Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro" (Relatórios da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1894-1930). Estes relatórios eram escritos anualmente pelos respectivos diretores e chefes para serem apresentados ao Ministro da Justiga e Negocios Interiores. Neles percebemos dados que revelam aspectos interessantes sobre a conexao do pavilhao com outros espagos médicos da cidade, bem como dimensoes importantes do seu cotidiano. Foi também bastante útil a consulta feita ao periódico da polícia do Rio de Janeiro do período, o Boletim Policial, do qual extraímos informagoes a respeito da relagao da polícia com a loucura na cidade. Complementarmente, analisamos alguns compendios e textos médicos do período, de médicos como Afránio Peixoto e Henrique Roxo, buscando elucidar práticas clínicas e discursos de atores vinculados a estes espagos. Investigamos, ainda, dados relevantes na legislagao da época sobre a assisténcia a alienados e a polícia do Rio de Janeiro, demarcando mudangas organizacionais e estruturais destes espagos. Por último, examinamos os Livros de observagóes clínicas (1894-1930) e Livros de registros de entrada de pacientes (1894-1934) de um ponto de vista mais qualitativo que quantitativo visando demonstrar as mudangas conceituais e na prática psiquiátrica do Pavilhao. Um dos fios condutores desta narrativa que abrange parcela da historia da psiquiatría do Rio de Janeiro do inicio do século será o olhar de Lima de Barreto, um dos principáis cronistas e escritores do Rio de Janeiro da Primeira República e ex-paciente do PO. Para articularmos essas fontes na reconstrugao da rede psiquiátrica em que o PO estava inscrito, dialogaremos com as propostas de Michel Foucault. Assim como indicou Foucault (1977-8/2008), partimos do pressuposto que é possível encontrar as estruturas internas do hospital psiquiátrico através do estudo de sua "estrutura, densidade institucional", identificando "cada urna das pegas que o constituem", revelando que tipo de poder-saber médico se organiza em seu interior. Mas, podemos - esse foi o nosso objetivo - estabelecer urna análise do seu exterior, para mostrar "de que maneira o hospicio só pode ser compreendido a partir de algo exterior e geral, que é a ordem psiquiátrica, na própria medida em que essa ordem se articula com um projeto absolutamente global", abarcador da sociedade como um todo, isto é, de urna "higiene pública" (pp. 157-159). Dessa forma, seguindo Foucault, acreditamos que "a instituigao psiquiátrica - como o Pavilhao de Observagóes - concretiza, intensifica, adensa urna ordem psiquiátrica que tem essencialmente por raiz a definigao de um regime nao contratual para os individuos desvalorizados". Essa ordem psiquiátrica coordena um "conjunto de técnicas" e urna "tecnología de poder" (idem). Cabe ainda urna pequeña nota metodológica. Seguindo a leitura de Pogrebinschi (2004) sobre o conceito de poder, é importante lembrar que se trata de um conceito que aparece de forma fragmentada na obra de Foucault e que, além disso, nunca foi o objetivo do autor estabelecer urna teoria geral do Poder (Foucault, 1977-8/2008). Em segundo lugar, nao devemos seguir urna interpretagao de concomitancia entre poder, poder disciplinar e biopoder. Segundo Pogrebinschi (2004), haveria, no entanto, um núcleo teórico conceitual que perpassa esses dois Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Dias, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 85 últimos conceitos: a permanencia neles de um poder-saber. Além disso, devemos destacar que, como um problema metodológico, o poder aparece na genealogía focaultiana sob cinco principios: em primeiro lugar, sob o principio de localidade, isto é, o poder em suas instituigoes locáis e formas locáis, sem um centro de poder, ou ainda, nao como urna totalidade. Trata-se de olhar para além do jurídico. Em segundo lugar, a partir do principio da exterioridade, entendemos que é relevante estudar o poder na sua externalidade; nos pontos de contato com o objeto e com o campo de aplicagao (como ñas zonas de bordas). Em terceiro lugar, o poder deve ser entendido por sua transitoridade, como algo que se constituí numa "rede" e que atravessa a todos sem que ninguém o detenha, portanto, algo que nos circula, que nos perpassa seja na posigao de exercício do mesmo ou de submissao a ele. Em quarto lugar, sob o principio de ascensao, demarcando que o poder nao é algo que provém de cima para baixo, mas pelo contrario, das esferas mais fragmentadas ou ainda dos "mecanismos moleculares, infinitesimais" até chegar aos mais globais. Finalmente, a nao ideologizagao do poder, compreendendo que na sua base estao os saberes e nao as ideologías. (4) Nesse sentido, guiados por esses principios metodológicos, iniciaremos nossa interpretagao acerca do Pavilhao de Observagoes. 2. Pavilhao de Observagoes e suas relacoes com a Polícia do Rio de Janeiro A polícia, nao sei como e por que, adquiriu a mania das generalizagoes, e as mais infantis. Suspeita de todo o sujeito estrangeiro com nome arrevesado, assim os russos, polacos, románicos sao para ela forgosamente cáftens; todo o cidadao de cor há de ser por forga um malandro; e todos os loucos hao de ser por forga furiosos e só transportáveis em carros blindados (Lima Barreto, 1920/1988, p. 176). E foi no carro-forte da polícia, urna "carriola pesadona que nem urna ñau antiga", "almanjarra de ferro e grades", na qual foi preso numa "especie de solitaria pouco mais larga que a largura de um homem", sem ter onde segurar e que "bate com o corpo em todos os sentidos, de encontró as paredes de ferro" correndo o risco de "partir as costelas" (Lima Barreto, 1920/1988, p. 50), que o homem Lima Barreto chegou ao Hospicio Nacional de Alienados, pela primeira vez, em 1914. Assim como ele, muitos outros "loucos" passaram pelas maos da polícia e de seus carros-fortes, no inicio do século XX. Era nessa "masmorra ambulante, neste "carro feroz" onde era "tudo ferro" e "se vem sentado, imóvel (...) aos trancos e barrancos de seu respeitável peso e do calgamento das vias públicas" (Lima Barreto, 1981, p.137) (5), que a polícia fazia, muitas vezes, o transporte dos "loucos" recolhidos na rúa para o Hospicio e outros estabelecimentos da Assisténcia a Alienados do Distrito Federal. Contudo, devemos lembrar que a partir de novembro de 1907, quem passou a fazer o transporte dos alienados foi um setor dentro da polícia, a "Assisténcia Policial", em "carros especiáis" (Instrugoes para o Servigo da Assisténcia Policial, 1907, p. 3). A Polícia do Rio de Janeiro, ñas primeiras décadas do século XX, colocava firmemente em prática o principio da "suspeigao generalizada" (Chalhoub, 2001), como com muita acuidade percebeu Lima Barreto na citagao que abre essa parte. E como apontou o literato, o PO era urna instituigao dependente da polícia, já que era esta que encaminha os pacientes para aquela (Lima Barreto, 1920/1988). A polícia, no inicio do século XX, estava plenamente vinculada á questao da loucura na cidade (Paula, 2006; Engel, 2001) (6). Com o papel de "garantidora da ordem pública", esta instituigao ligava-se á "assisténcia pública", por meio da remogao e encaminhamento de doentes alienados ou doentes de urna forma geral. Segundo Bretas (1997), a atuagao "assistencial" era "urna das principáis tarefas Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Días, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 86 desempenhadas pela policía" (p.99), embora isso tenha decaído muito no período estudado por nos. Além disso, esse papel exercido pela policía na "assisténcia pública", no que tange a loucura, já era muito questionado no inicio do século XX pelos própríos Chefes de Polícia. O Chefe de Policía era a mais alta autoridade policial, estando "sob suprema inspegao do Presidente da República e superintendencia do Ministro da Justiga". Seu cargo era de nomeagao direta do presidente, sempre dependendo de certas "ligagoes políticas" (Bretas, 1997, p. 50 e 116). Para compreender melhor o papel da polícia no trato da loucura, recorremos ao Boletim Policial. Mas, antes disso é relevante apresentar a fonte ao leitor. Consta, no artigo 174, do regulamento anexo ao Decreto n. 6.440, de 30/03/1907, o seguinte a respeito deste periódico: "terá cabida ñas páginas do Boletim todas as indagagoes científicas ou investigagoes técnicas que sirvam para elevar o nivel da cultural profissional de todos os funcionarios da administragao" (Decreto n. 6.440, 1907, Art. 174). Segundo Bretas (1997), o Boletim era publicado pelo Gabinete de Identificagao da Polícia. Nele, nos números de 1907 até 1920, verificamos a presenga forte da questao da identificagao, estatística criminal, reflexoes sobre as causas do crime, investigagao e medidas técnicas para combaté-lo, além de informes administrativos e legáis de urna forma geral. Nesse sentido, investigamos a segao "Noticias Policiais" (1907-1920) do Boletim Policial e percebemos que, por um trimestre, o número de individuos enviados pela polícia ao Pavilhao de Observagoes no Hospicio Nacional de Alienados variava de 180 a 300 individuos. Por mes, o número variava de 65 a 108 individuos. Na maioria das vezes, a polícia era chamada para conduzir os "loucos" para a Repartigao Central, onde eles eram submetidos a exames no Servigo Médico-Legal. Eram casos de "agao ¡mediata", que rápidamente saiam das maos da polícia (Bretas, 1997, p. 128) e eram encaminhados para a Assisténcia a Alienados, isto é, em diregao ao PO e HNA. Ao lidar com os "loucos" ñas rúas, as autoridades policías superiores tentavam prescrever para os policiais, em atividade ñas rúas, urna conduta branda. Muitas idéias práticas de policiamento sao sugeridas ñas páginas do Boletim Policial. No terceiro número do periódico, de julho de 1907, por exemplo, propunham-se diretrizes para o "cuidado com os loucos": Os loucos mesmo furiosos irritam-se mais quando sao maltratados: assim, convém ser moderado com eles, usando de calma e prudencia e conduzindo-os com jeito e humanidade (Boletim Policial, 1907a, p. 21). A atuagao da polícia, no cotidiano da cidade, era significativa como aparato importante no combate a "desordem" e aos "maus costumes". E a loucura era vista como urna grande "desordem". Segundo Rosa Maria Araújo (1993), o crescimento do Rio de Janeiro exigiu urna atuagao mais intensiva da polícia, seja sob a filosofía da prevengao da desordem, seja na repressao ao crime. Araújo nos mostra que a agao da polícia era "rotineira nos conflitos individuáis e ñas grandes festas ou concentragoes, embora também interviesse ñas agitagoes populares que demandavam o controle da ordem". Já as queixas feitas pela populagao contra a negligencia policial eram justificadas pelas autoridades "em nome do contingente insuficiente de policiais vis-a-vis o rápido crescimento da populagao" e pelas arbitrariedades recurrentes nos procedimentos dos policiais (pp. 304-305). Sobre esse tema, Lima Barreto deixou-nos mais um de seus comentarios como observador de seu tempo (Resende, 1993; Sevcenko, 1983/2003) ao contar sua historia pessoal de enredamento com a psiquiatría, em seu Diario do Hospicio. Lima Barreto (1920/1988) registrou que "quando me vem semelhante reflexao, eu nao posso deixar de censurar a simplicidade dos meus parentes, que me atiraram aqui, e a ilegalidade da polícia que os ajudou" (p. 54). No caso de Lima Barreto, podemos Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Dias, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 87 perceber que a instituigao policial representou - e representava, de um modo geral - um elo fundamental entre a familia e a intervengao médica propriamente dita. De um lado, podemos perceber queja havia urna demanda de parte da populagao pelo tratamento médico-psiquiátrico (7) - seja pelo entendimento de que este saber seria urna arte de curar, seja apenas pela busca de um lugar para se internar o membro da familia que fugiu do controle. Por outro lado, recorria-se á instituigao policial para que esta efetuasse a internagao e, assim, o trajeto do lar familiar ao hospicio. Este requerimento parece estar relacionado á busca pela internagao nos casos em que a familia nao podia dar conta dos custos da estadía de seu familiar na instituigao asilar, fazendo com que a internagao seguisse o procedimento dos individuos gratuitos, custeados pelo Distrito Federal. A instituigao policial era responsável pela maior parte dos requerimentos de internagao no PO, o que representa bem o papel exercido pelos policiais na sociedade carioca da Primeira República junto as familias. Apesar de pacientes homens, provenientes dos distritos policiais, representarem um número maior em comparagao as mulheres (Facchinetti, Ribeiro & Muñoz, 2008), concordamos com Fabíola Rohden (2001) quando a autora afirma que "para as mulheres a internagao parece ser mais fácil e rápidamente decidida, a partir do rompimento dos códigos próprios da familia" (p. 132). Entendemos que a iniciativa tomada pelos familiares para a internagao das mulheres estava diretamente ligada á agao do poder patriarcal e á submissao feminina. (8) No que tange á loucura, a intervengao policial deveria ser mediada pela avaliagao dos médicos peritos da policía. Em 1856, o Decreto n. 1740 criou "junto a Secretaria de Policía da Corte um segao de assessoria médica", com dois médicos efetivos (Peixoto, 1914, p. 540) (9). Tal decreto também estabelecia que os exames médico-legáis só poderiam ser feitos com requisigao de autoridade competente (Decreto n. 1740, 1856). Nele já se especifica quesitos que os médicos devem responder (Paula, 2006). Em junho de 1890, o número de médicos legistas da policía aumentou para seis. Entretanto, foi em abril de 1900, através do Decreto n. 3640, que se reorganizou o servigo policial da cidade, tendo o nome da segao modificado para "Gabinete Médico-Legal" (Bretas, 1997). A partir de entao, passou a incumbir aos médicos legistas da policía a fungao de examinar "individuos suspeitos de alienagao mental, apreendidos na via pública ou detidos ñas prisoes, antes de serem recolhidos ao HNA" (Peixoto, 1914, p. 541). Em meados da década de 1910, Afránio Peixoto - professor de medicina legal da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e diretor do Servigo Médico-Legal da Policía - afirmou que varias críticas eram dirigidas ao Servigo Médico-Legal da policía, momento em que ele próprio, enfim, conseguiu a aprovagao do Decreto n. 4.864, de 15/06/1903 (Peixoto, 1914). Segundo o Chefe de Policía na época, A. Cardoso de Castro, o regulamento do Servigo Médico-Legal foi feito por Afránio Peixoto com base ñas mais "adiantadas ligoes de ciencia moderna" (Relatório do Servigo Médico-Legal, 1904-1905, p. 152). Com o Decreto n. 6.440, de 30/03/1907, criou-se o Servigo Médico-Legal da Policía, organizado e dirigido pelo próprio Peixoto. Segundo Bretas (1997), este Servigo era um "órgáo autónomo na Secretaria de Policía", que os poderes públicos, a imprensa e a intelectualidade interessada em questoes científicas, atribuíam muita importancia. Mesmo autónomo, o Servigo, contudo, estava "diretamente ligado ao chefe de policía" (Paula, 2006, p. 102). Nesse sentido, o governo republicano e boa parte da intelectualidade da capital davam énfase na reforma e modernizagáo da instituigao policial (Bretas, 1997, p. 43-44). Com o decreto de 1907, o número de peritos médicos foi aumentado para doze, permitindo urna maior especializagáo dos mesmos. Esse número já era considerado insuficiente, em 1910, pelo Chefe de Policía (Relatório do Servigo Policial, 19101911, p. 72) por conta da demanda de exames diarios. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Dias, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes „, da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. <" Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Os médicos do Servigo Médico-Legal da Polícia da Capital faziam na Repartigao Central da Polícia (Bretas, 1997), como já estabelecido desde 1900, os exames previos em individuos suspeitos de alienagao recolhidos ñas rúas. Peixoto (1907) esclareceu que os moldes do exame médico-legal de alienados, na polícia do Rio de Janeiro, foram baseados no regulamento portugués. Aqueles individuos, cujo resultado do exame de alienagao era positivo na polícia, eram encaminhados para mais um exame no Pavilhao de Observagoes. Se confirmada a alienagao, nesta instituigao, o individuo era transferido e internado definitivamente no Hospicio Nacional, em alguma de suas segoes, conforme o caso. Mas, devemos ressaltar que esses individuos enviados pela polícia, enquanto pacientes cuja internagao era custeada pelo Distrito Federal, eram internados, sobretudo, ñas "segoes de indigentes" - "Segao Pinel", para os homens, e "Segao Morel", para as mulheres. Um informe constante no periódico da polícia, o Boletim Policial, de dezembro de 1907, indicava que o Servigo Médico-Legal compoe-se atualmente de urna parte exercida ñas delegacias (corpos de delito, exame de sanidade e validez) (...) e de outra parte, na Repartigao Central, á Rúa do Lavradio, onde vao ter os loucos indigentes do Distrito Federal que, depois do exame, sao enviados ao HNA (Boletim Policial, 1907b, p.10). Este Servigo era um importante lócus da prática em medicina legal da cidade. Já o ensino de Medicina Legal se dava exclusivamente na FMRJ, e nao no Servigo Policial como queria Peixoto (1914, p. 546). Para o catedrático de Medicina-Legal da FMRJ, Agostinho de Souza Lima (1904), no seu "Tratado de Medicina-Legal", a medicinalegal contribuí para a "manutengao da harmonía social", ajudando na "garantía dos direitos e deveres comuns dos cidadaos" (p.6). Peixoto (1914) nos mostra que a prática da Medicina Legal realizada no Servigo Médico-Legal, no discurso dos seus defensores (Lima, 1904; Peixoto, 1914), aplicada á questao da alienagao mental, era crucial para o cumprimento do artigo 27° e 29° do Código Penal Brasileiro de 1890 (Decreto n. 847, 1890) e 91° do Código Civil (Lei n. 3.071, 1916). No que tange o código penal, vemos que o parágrafo 3o do artigo 27 tira a possibilidade de se considerar criminosos e imputáveis os individuos que sofrem de "imbecilidade nativa ou enfraquecimento senil" e os que se acham "em estado de completa privagao de sentidos e de inteligencia" no ato do crime. Tais individuos, caso cometam crime, devem ir para a guarda da familia ou a um hospicio (Decreto n. 847, 1890, Art. 29). Já o artigo do código civil citado (Lei n. 3.071, 1916) coloca os "alienados ou loucos" como "absolutamente incapazes". A autoridade do perito, neste assunto, deveria ser inquestionável, na medida em que somente ele poderia dar um diagnóstico que orientasse a medida sócio-jurídica. O Decreto n. 6.440, de 30/03/1907, passou a reger o exame médico-legal dos alienados no Servigo Policial do Distrito Federal. O seu artigo 90° estabelecia todos os aspectos que deveriam estar contidos no exame na polícia: autoridade que pediu o exame, questoes judiciais, historia do caso (dados de identificagao do individuo), anamnese (antecedentes familiares, vida pregressa), exame direto e somatório. No exame direto o médico deveria atentar para varios aspectos. Tais aspectos, na sua multiplicidade, denotavam a influencia de varias perspectivas dos pensamentos médico, psiquiátrico e antropológico ocidental do período. Primeiramente, deveria se atentar para aspectos gerais: atitude, apresentagao, fisionomía, expressao, mímica falada e atuada. Em seguida, a aspectos somáticos: altura, corpulencia, vicios de conformagao, forma da cabega, deformagoes, assimetrias na face e no corpo, temores, cicatrizes, prognatismo, olhos, língua, boca, nariz, sensibilidade, motilidade, reflexo, fala, escrita, tatuagens, problemas em qualquer órgao, etc. Por fim, vinha o exame mental, o qual deveria se Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Dias, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 89 caracterizar por interrogatorio e observagoes atentas a todos os atos e palavras do suspeito de alienagao: nogao de tempo e espago, "confusao de espirito", "alheiamento do mundo exterior", humor, excitagao, depressao, angustia, associagao de idéias, delirios e alucinagoes (seus conteúdos), mudangas de personalidade, atengao, inteligencia, "volubilidade", "incoordenagao de idéias", "correspondencia entre idéias atuais e educagao recebida", memoria, nutrigao, sonó, auto-intoxicagoes, etc. O somatório sintetizaría aquilo que denuncia a doenga, um juízo sobre a presenga ou nao de alienagao, "prejulgamento, se possível, do estado no momento do crime" e, por último, urna "dedugao diagnóstica", firmando a "forma nosológica" da qual padecería o individuo (Decreto n. 6.440, 1907). Segundo Bretas (1997), ñas estatísticas oficiáis da polícia (constantes no Anuario Estatístico da Polícia da Capital Federal de 1913), a media era de "mais de tres pessoas recolhidas ñas rúas da cidade diariamente para exame de sanidade mental" (p. 101), sendo sempre mais de 85% desses individuos considerados alienados. Na investigagao que fizemos dos Relatónos do Servigo Policial (19011922), constantes nos relatórios anuais enviados pelo Ministro da Justiga e Negocios Interiores ao Presidente da República, percebemos um significativo aumento no número de exames de alienagao mental feitos na polícia. Se em 1901 foram feitos 640 exames, em 1903 já eram 831 e, em 1906, 891. Observando as demais décadas vemos que o número de exames continuou crescendo, passando a 1351 em 1914 e, chegando, em 1922, a 1600 exames. Corroborando esses dados, vemos que no Relatório da Assisténcia a Alienados (1912-1913), Juliano Moreira, diretor desta instituigao (1903-1930) relatou que o Chefe de Polícia pedia desesperadamente o fim do envió de "novos doentes" das diversas delegacias para a central de polícia, pois "nao dispunha de local onde alojar" tantos "insanos" (p. 64). Para Peixoto (1914, 1916) a questao da loucura nao deveria estar ligada únicamente ao problema da "protegao da ordem pública" e, por conseguinte, os loucos nao deveriam ir para a polícia, mas sim diretamente para espagos únicamente médicos, ou seja, hospicios ou ambulatorios. O que deveria fundamentar este problema da loucura seria o aspecto do "tratamento, do remedio" (Peixoto, 1914, p. 130). A loucura deveria ser entendida como doenga, e nao somente como ameaga a ordem pública. Porém, por todo período estudado a polícia e o seu Servigo Médico-Legal se vinculavam intimamente a questao da loucura, como porta de entrada das instituigoes psiquiátricas. Quais seriam as condigoes em que eram realizados tais exames? Podemos supor que eles eram extremamente rápidos e sucintos se seguirmos a interpretagao crítica á polícia efetuada por Henrique Roxo (1925) - médico-diretor do Pavilhao de Observagoes, na maior parte do período estudado. Segundo ele, as guias policiais documento que obrigatoriamente deveria acompanhar o individuo enviado pela polícia ao hospicio - serviam para identificar os pacientes e dar as primeiras informagoes sobre suas molestias, mas, eram, na prática, bastante "omissas" (p. 59), dado o pequeño número de informagoes preenchidas pelos legistas da polícia. O diretor do PO nos narra ainda que havia ocasioes que o paciente chegava sem o acompanhamento de parentes ou conhecidos, escoltado por um soldado da polícia, portando "urna guia que nada esclarece" (p. 59) (10): Isto nao é indispensável para a internagao de qualquer alienado, mas freqüentemente deste documento falha. O comissário de polícia recebe o doente que estava praticando desatinos, de nada mais indaga (Roxo, 1925, p. 59). Urna Comissao de Inquérito constituida pelo Ministro da Justiga, em 1902, para avahar as condigoes da Assisténcia a Alienados constatou a falta destas guias, as quais, quando existiam, eram parcas em informagoes (Relatório da Comissao de Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Días, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 90 Inquérito de 1902, 1903). A pesquisa que fizemos nos Livros de observagóes clínicas do PO corrobora esta afirmativa; nem sempre encontramos referencias a estas guias ñas observagóes. (11) Em 1923, Roxo e Moreira (Relatório da Assisténcia a Alienados, 1924) já apresentavam suas críticas aos procedimentos realizados pela polícia. Tais críticas podem ser encontradas no relatório enviado ao Ministro da Justiga e Negocios Interiores daquele ano, quando esses psiquiatras reivindicavam e reiteravam a necessidade e a importancia de se ampliar a Clínica Psiquiátrica. Para reforgar seu argumento, eles diziam ao Ministro: com a Reforma do Instituto Médico-Legal, havendo sido suspensa a triagem que ele fazia, mandando-nos um apenas 50% do enviados pelas delegacias, estas nos remetem quantos suspeitos se Ihes apresentam (Relatório da Assisténcia a Alienados, 1924, p. 69). Como se pode perceber, nao se trata de urna crítica pontual decorrente da reforma do Instituto Médico-Legal. Eram constantes as reclamagoes dos médicos pelo envió de qualquer tipo de individuos que chegavam as delegacias delirando, segundo os médicos, por qualquer febre (12) ou outro tipo de molestia intercorrente (Relatório da Assisténcia a Alienados, 1919). Esta é urna questao importante para pensarmos a relagao entre a polícia e a medicina mental. Nao seria difícil encontrarmos argumentagoes de que o poder policial é descrito como grande aliado do poder psiquiátrico. Como nos mostrou Lima Barreto (1920/1988), as internagoes realizadas no PO tinham grande dependencia da agao policial. Mas falar apenas em alianga seria desconsiderar os choques e os desacordos entre esses dois campos de saber. Torna-se, entao, importante lembrarmos que havia interesses por parte dos policiais de dar destino á grande quantidade de presos e transferir encargos na assisténcia pública (Bretas, 1997). E foi a partir dessa exigencia de trabalho, que a polícia acabou realizando extensos encaminhamentos ao hospicio, desagradando os médicos, seja pelos criterios de avaliagao dos individuos (ou ausencia deles), seja pelos problemas no preenchimento da guia policial - reclamagao de Roxo (1925) - ou mesmo na coleta e composigao da documentagao determinada por lei para que fosse feita a internagao, tendo em vista que isso concorria fortemente para a superlotagao do PO e do HNA. 3. O Pavilhao de Observagóes: entre o Hospicio Nacional e a Faculdade de Medicina No ámbito das instituigoes estritamente médico-psiquiátricas, passemos a mapear a relagao entre a FMRJ, o HNA e o PO, enquanto tres instituigoes que protagonizaram urna complexa articulagao, desde a criagao e inauguragao do Pavilhao de Observagóes. Podemos afirmar de antemao que o PO nao era urna segao qualquer do hospicio nem, tampouco, que servia apenas como urna unidade de ensino da FMRJ. Ele ocupava um espago do entre dois: entre o HNA e a FMRJ. Com o passar do tempo, foram necessárias solugoes de compromisso entre as partes para viabilizar o funcionamento desse circuito psiquiátrico em que essas tres instituigoes estavam inseridas, o que nao quer dizer que as disputas e os impasses ligados ao PO estivessem resolvidos durante o período estudado. Para entender a configuragao entre essas instituigoes faremos, primeiramente, um breve histórico de cada urna délas. Como nos mostram Ferreira, Fonseca e Edler (2001), ao longo do século XIX, a FMRJ passou por algumas reformas que modificaram sua estrutura e funcionamento. Este movimento foi central para a "criagao da Cadeira de Clínica Psiquiátrica e Molestias Mentáis", na década de 1880, com o projeto de associá-la a urna instituigao asilar: o Hospicio de Pedro II (Jacó-Vilela, Santo & Pereira, 2005, p. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Dias, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 13). Buscava-se, assim, suprimir a necessidade, no campo da medicina mental, de se articular em urna mesma instituigao atividades de ensino teórico e prático, pesquisa e prática clínica. Com a chegada da República, a FMRJ sofreu novas reformas. Segundo Fernando Magalhaes (1932) (13), buscava-se restaurar e reforgar a autonomía didática, bem como ampliar o número de cadeiras existentes. Outro ponto importante diz respeito á liberdade de freqüéncia. Também possível identificar a constituigao de um modelo de ensino na FMRJ, a partir do qual o estudo das especialidades foi reservado ao sexto ano do curso - a exemplo da cadeira de clínica psiquiátrica. (14) O psiquiatra Carlos Penafiel informava, em texto de 1913, que o ensino de psiquiatría era facultativo e muito pouco freqüentado (Penafiel, 1913). Vemos que o reduzido número de alunos permaneceu constante até a década de 1920. A partir dos Relatónos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro (1894-1930), publicados nos Relatónos do Ministerio da Justiga e Negocios Interiores, é possível constar essa baixa freqüéncia, talvez justificada pela liberdade de freqüéncia. Tal principio académico vigorou até Janeiro de 1925, momento em que foi aprovada a Reforma Rocha Vaz. Em relagao a todas as outras disciplinas do sexto ano, a freqüéncia de alguns alunos na clínica psiquiátrica era bastante inferior. Vejamos o exemplo do relatorio do Ministro da Justiga Esmeraldino Olympio de Torres Bandeira, referente ao ano de 1909 (Relatorio da Faculdade de Medicina, 1910, p. Sl-44): — 44- Resaltad fios txaies da Io época t% 1909 • B E • 8 V ASXOl y. T. g • s 1 3 £ c 1 E 9 e • o c" 0 35 M Medicina legal 0 33 73 lí CO S 13 GC 0 S 30 15 A 17 2 . , . Ciiaiea obstétrica . Clínica pediátrica . CHoicft psychiatríca. 118 113 í 1 1 • Hjgieae. . K . . dioica medica. . •A o c 5 o Figura 1 - Exames do Sexto Ano da FMRJ, em 1909 (Imagem Adaptada) Passemos, agora, ao Hospicio Nacional de Alienados (HNA). Nascida durante o período do Segundo Reinado, esta instituigao foi inaugurada em 1852, sob o nome de Hospicio de Pedro II (HPII). Sua construgao foi resultado de um movimento liderado por algumas vozes médicas que, mesmo sem haver urna especialidade na medicina voltada para o mental, já se voltavam para a essa área. Esse interesse remonta a década de 1830, quando já era possível encontrar as primeiras teses sobre a medicina mental (Engel, 2001; Teixeira, 2000). Até a década de 1870, os médicos que atuavam no hospicio tinham formagao generalista. Com isso, o HPII permaneceu até a década de 1880 com um lugar Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Días, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 92 distante do meio académico (Engel, 2001). Com a chegada da República, em 1890, os médicos do HPII - queja vinham desde a década de 1870 buscando afirmar sua especialidade - introduziram um conjunto de reformas para medicalizar e laicizar a instituigao. Buscavam, assim, legitimarem-se como a única autoridade (15) capaz de falar sobre a loucura (Engel, 2001). Este saber reivindicava, entao, torna-se o responsável legítimo por decidir sobre o "seqüestro" e a tutelizagao de individuos considerados desviantes patológicos em relagao á norma estabelecida (Cunha, 1990). No bojo das reformas republicanas, o Hospicio de Pedro II foi desanexado do Hospital da Santa Casa da Misericordia - antes responsável por sua administragao passando a se chamar Hospicio Nacional de Alienados (HNA), em 1890 (Decreto n. 142, 1890). Neste ano foi criada também a Assisténcia Médico-Legal aos Alienados (Decreto n. 206A, 1890), que agregou nao só o HNA, mas também o Pavilhao de Observagóes e as colonias agrícolas de Sao Bento e Conde Mesquita, na Ilha do Governador, bem como as "futuras instituigoes asilares criadas pelo Governo na capital federal" (Decreto n. 508, 1890, s. p.). Parte integrante da Assisténcia aos Alienados desde a sua criagao, o Pavilhao de Observagoes (PO) surgiu em 1892 - com o art. 26 do Decreto n. 896, de 29/06/1892 - sendo sua inauguragao realizada em 1894. Esta instituigao foi criada para atender o movimento de especializagao de fungoes e modernizagao das divisoes e estruturas do hospicio. Essa demanda pode ser identificada antes mesmo da criagao do Pavilhao de Observagao, visto que havia no Hospicio de Pedro II urna "Segao de Observagao Preliminar", criada em 1886 (Engel, 2001). O surgimento do Pavilhao, no inicio da década de 1890, pode ser inscrito, entre outras coisas, ñas mudangas que se operavam na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, como falamos anteriormente. O ensino médico tinha que agregar o principio da especializagao, privilegiando os novos objetos médicos desenvolvidos ao longo do século XIX - como o mental; ao mesmo tempo, precisava de espagos para o exercício prático dessa especialidade. Este é um momento no qual se estabelece um "novo consenso" acerca da importancia de se "reunir em urna instituigao as atividades de ensino e pesquisa" (Ferreira e outros, 2001 p. 74). Nesse sentido, o significado do Pavilhao pode ser compreendido: ele foi a materializagao do principio do ensino prático no ámbito de urna clínica nova e particular, a psiquiatría. Seria, aos moldes dos pavilhoes de admissoes franceses, como porta de entrada de um grande hospicio, o melhor lugar possível para o exercício prático de urna nova especialidade. O PO foi, portanto, um lugar de ensino e triagem de paciente. Assim, percebe-se que o PO teve grande importancia para o desenvolvimento da medicina mental como especialidade, visto que ele foi criado para responder aos anseios por maior cientificidade a este saber. A criagao do PO produziu urna aproximagao fundamental entre o ensino e prática médica, além de ocupar um lugar importante na Assisténcia aos Alienados do Distrito Federal. O Decreto n. 2.467 (1897) estabelecia a exclusividade do PO para as aulas da clínica psiquiátrica e molestias nervosas (artigo 41), sob diregao do catedrático de psiquiatría. Colocava também a subordinagao "provisoria" do servigo económico da instituigao a "cargo do diretor do HNA" (artigo 41) (16). O PO esteve, assim, desde o inicio, ligado diretamente á FMRJ. O Dr. Teixeira Brandao, que era o lente desta cadeira na época da inauguragao do PO, foi o primeiro a dirigi-lo. Henrique Roxo, seu discípulo, assumiu o Pavilhao de Observagoes entre 1904 e 1907 e, novamente, entre 1911 e 1921, quando Teixeira Brandao foi eleito deputado federal (Engel, 2001). Em 1921, após a morte de Teixeira Brandao, Roxo passou a ocupar, efetivamente, a diregao do PO (Magalhaes, 1932). Nao podemos esquecer a atuagao de Teixeira Brandao para a constituigao e consolidagao desse espago. Como lente de Clínica Psiquiátrica da FMRJ e Diretor da Assisténcia a Alienados, em principios da década de 1890, nada mais simples do Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Dias, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 93 que tentar articular as duas instituigoes: a reflexao teórica da FMRJ com a prática asilar do HNA. Foi Brandao quem concebeu a criagao da "segao de observagao preliminar dos doentes" - a que já nos referimos - quando, em 1886, tornou-se Diretor do ainda Hospicio de Pedro I I . Esta segao se justificaría pela grande leva de doentes e casos interessantes que poderiam servir ao ensino de psiquiatría na Faculdade (Engel, 2001). Sendo produto das demandas de tres instituigoes, O PO ocupou um lugar complexo, cujas articulagoes chegaram a produzir momentos de tensao. Ligado a urna demanda do HNA, o PO foi construido dentro do complexo do hospicio. Assim, se de um lado, o PO tinha grande autonomía e estava ligado administrativamente á FMRJ, por outro lado, possuía urna dependencia económica em relagao ao HNA, sendo urna importante instituigao de triagem de pacientes enviados ao hospicio, constituindo-se como urna especie de "porta de entrada" dele. Essa configuragao foi urna solugao dada no período em que o professor Teixeira Brandao acumulava os tres cargos, isto é, diretor do HNA e da Assisténcia a Alienados, bem como lente de psiquiatría da FMRJ, portanto, diretor do PO. Contudo, a partir de 1899, Brandao deixou de acumular os referidos cargos. Como conseqüéncia disso, vemos que alguns conflitos comegaram a se configurar entre o PO e o HNA, identificaveis no Relatorio da Comissao de Inquerito de 1902 (1903) que inspecionou o HNA. Esta comissao foi responsável por investigar as condigóes de funcionamento do HNA, após a ocorréncia de urna serie de denuncias sobre a precariedade dos servigos naquela instituigao, bem como a promiscuidade entre criangas e adultos (Venancio, 2005). O relatorio Comissao de 1902 revelou nao somente os problemas estruturais e a precariedade do hospicio, mas também querelas administrativas entre o médico diretor do hospicio, Antonio Dias de Barros, e o médico diretor do PO, Teixeira Brandao, o que refletia a débil delimitagao e distingao das fungóes de cada um deles (17). Por conseguinte, vemos que esse lugar "do entre dois" ocupado pelo PO, isto é, administrado pela FMRJ e dependente económicamente do HNA, produziu divergencias que só foram amenizadas através da intervengao do Ministro da Justiga e Negocio Interiores José Joaquim Seabra, com a nomeagao de Juliano Moreira para o cargo de diregao do HNA, em 1903, tendo em vista a conseqüente exoneragao de Dias de Barros. Sobre a nomeagao de Moreira, podemos fazer algumas observagóes. Em primeiro lugar, vemos que este também foi outro momento de grandes rupturas no campo da medicina mental do Rio de Janeiro, deflagradas pela agenda de Moreira na recepgao da psiquiatría alema, especialmente, a kraepeliana (Peixoto, 1933). Tendo por base esse instrumental, Moreira iniciou um conjunto de reformas no HNA, trabalhou pela fundagao da Sociedade Brasileira de Psiquiatría, Neurología e Medicina Legal, além da criagao de periódicos especializados (Facchinetti, 2005; Leme Lopes, 1964). As fontes da época revelam que a habilidade política de Moreira foi igualmente importante para apaziguar o confuto entre as instituigoes: HNA e PO. Essa habilidade foi descrita por Roxo (1933), quando este diz que Moreira "procurava acentuar o incontestável merecimento deste [Teixeira Brandao] e ladeava as questoes que o procurassem molestar" (p. 1-2). Em 1911, Juliano passou a acumular as fungoes de diretor do Hospicio e diretor-geral da Assisténcia a Alienados (Relatónos da Assisténcia, 1912). Mas, se os problemas do HNA se tornaram públicos após o trabalho da comissao de 1902, no PO o cenário foi distinto. Quando o HNA foi visitado pela Comissao de Inquerito sobre a Assisténcia a Alienados, o PO foi considerado pelos seus relatores como um dos melhores espagos do Hospicio, sendo caracterizado pela "ordem e pelo asseio" (Relatorio da Comissao de Inquerito de 1902, 1903, p.12). Acompanhando os Relatónos da Assisténcia relativos as décadas de 1910 e 1920 identificamos, na voz de Juliano Moreira - Diretor do HNA (1903-1930) e da Assisténcia (1911-1930) - o refrao da superlotagao do PO. Juliano Moreira (Relatorio da Assisténcia, 1923) afirmava em 1923, acerca do PO: Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Días, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 94 Construido que foi há cerca de tres décadas, necessita de ser ampliado, pois nao comporta o crescente número de pacientes que nos sao diariamente enviados pelo Gabinete Médico-Legal. Para atender as necessidades do ensino há por vezes vantagem em reter alguns doentes, além do prazo de quinze dias. Atualmente nao é isso possível, porque as novas remessas de pacientes obrigam a enviar os outros para o hospital (p. 96). (18) Juliano Moreira encerra pedindo ao Ministro da Justiga e Negocios Interiores a "modernizagao do Pavilhao", que chamou de um "ato de verdadeira benemerencia" (Relatório da Assisténcia, 1923, p. 96). Ao que tudo indica, porém, nada ou muito pouco foi feito nesse sentido. 4. O Pavilhao de Observacoes funcionamento e exame clínico no Hospicio Nacional: estrutura, Ao chegar ao Pavilhao de Observagoes do HNA, Vicente Mascarenhas, personagem do romance inacabado de Lima Barreto (1920/1988), O Cemitério dos Vivos, é despido "á vista de todos", recebe urna roupa da "casa", urna breve refeigao e é encaminhado para o "quarto forte", que compartilhou com quatro individuos (p. 123). Na manha seguinte, a primeira tarefa foi o trabalho de limpeza do "quartoforte", "calgado com uns chínelos encardidos que haviam sido de outros, com urnas caigas pelos tornozelos, em mangas de camisas". Em seguida, passa novamente pela vergonha do nu coletivo no banho. (19) No depoimento de Lima Barreto (1920/1988), este Pavilhao de Observagoes era urna dependencia do hospicio a que vao ter os doentes enviados pela polícia, os tidos e havidos por miseráveis e indigentes, antes de serem definitivamente internados (p. 121). Com urna organizagao sui generis, [este pavilhao] depende do hospicio, da polícia e da Faculdade de Medicina, cujo lente de Psiquiatría é seu diretor, sem nenhuma dependencia ou subordinagao ao hospicio (p. 176). O caráter do PO nao passaria despercebido da ótica arguta de Barreto, como um espago que conjuga tres instituigoes - a Polícia, a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e o HNA -, mas que, ao mesmo tempo, possuía certa autonomía. Analisaremos, agora, a estrutura e funcionamento do PO, sua massa documental e as suas contradigoes internas. Segundo o Art. 26 do Decreto n. 896, de 29/06/1892: "No Hospicio Nacional (...) haverá um pavilhao destinado aos doentes em observagao, pelo qual transitarao todos os doentes gratuitos que tenham de ser admitidos" (Decreto n. 896, 1892, Art. 26). Segundo o art. 28, do mesmo decreto, as admissoes dos indigentes seriam realizadas mediante a "ordem do Ministro do Interior ou de requisigao do Chefe de Polícia da Capital Federal" (idem, Art. 28). Com o Decreto n. 1159, de 07/10/1893 (Art. 2), o PO, que, contudo, ainda nao existia, tornava-se oficialmente parte da Assisténcia a Alienados do Distrito Federal. O PO realizava seus atendimentos apenas aos pacientes gratuitos, cuja requisigao era feita pelas autoridades públicas, em especial, pela polícia, como vimos. A partir de 1911, a documentagao necessária para a internagao passou a ser especificada nos artigos 90 a 94, do Decreto n. 8.834, de 11/07/1911. Segundo esses dois artigos, as requisigoes para a entrada de pacientes continuavam sendo realizadas através de atestados médicos, guia policial padronizada, laudo do exame médico Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Dias, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 95 legal feito pelos peritos da polícia, conforme o caso (Decreto n. 8.834, 1911). Segundo o decreto, a matrícula dos doentes no HNA deveria ser realizada após o término da observagoes clínicas do PO. Findo o prazo de até quinze dias de observagao, o enfermo deveria ser transferido para o HNA, salvo casos especiáis, quando o prazo poderia ser prorrogado (Decreto n. 8.834 , 1911). Se analisarmos a prática cotidiana da psiquiatría, através das fichas de observagao do PO, considerando também o Decreto n. 8.834 (1911), veremos que havia tres tipos de situagoes em que os pacientes ficavam no PO em um prazo que destoava dos "até 15 dias" de observagao. Urna primeira diz respeito ao uso de habeas corpus (20), raramente encontrado ñas fichas de observagao. Urna segunda possibilidade diz respeito as reinternagoes em que os pacientes eram transferidos no dia seguinte e, na maior parte dos casos, com o mesmo diagnóstico da internagao anterior. A terceira possibilidade estava prevista na legislagao da Assisténcia a Alienados. Eram casos em que o prazo podia ser prorrogado "a juízo dos alienistas" (idem, Art. 91). O parágrafo 5o do Decreto n. 5.148, de 10/01/1927, pode nos auxiliar a entender esse procedimento. Segundo este parágrafo seriam casos em que o prazo podia ser prorrogado a partir do "interesse do ensino" (Decreto n. 5.148, 1927, § 5 o ). A análise de diversas fichas de observagao nos indicou que esta situagao nao era muito recorrente. Contudo, o que nos gerou maior impacto foi encontrar um caso (do paciente D. N.) em que ficou quase vinte anos internado no PO. O paciente D. N. deu entrada no PO em 24/11/1908, sendo transferido somente no dia 04/05/1927 (Ficha de Observagao de D. N., 1908, p. 64). Para outros registros de entrada e saída de pacientes no PO, ver Fundagao Oswaldo Cruz [Fiocruz] (2008). Como vimos anteriormente, o Pavilhao foi inaugurado em maio de 1894, na parte central do complexo do Hospicio Nacional de Alienados. Porém, os primeiros pacientes deram entrada somente na segunda quinzena de maio (Livros de registro de entrada de pacientes, 1894-1914), quando a instituigao passou a funcionar, com um anfiteatro para aulas, um local de residencia para estudantes e duas segoes para os pacientes, construidas paralelamente ao predio central da administragao, denominadas de Magnan para mulheres e Meynert para Homens. (21) Ao longo dos anos, o Pavilhao de Observagao ganhou novas dependencias. Em 1898, foi autorizada a instalagao de um Gabinete Eletroterápico, em funcionamento já em 1902 (Relatorio da Assisténcia, 1902). No mesmo ano funcionavam na instituigao um Gabinete Histoquímico, um "quarto-forte", um banheiro para "banhos quentes" e urna enfermaría. No ano de 1904 possuía urna sala para hidroterapia, salas de aula, dois patios e anexos destinados á prática da ginástica e da balneoterapia (Relatorio da Assisténcia, 1905). Em 1908 foi cumprida a determinagao do art. 3o do Decreto n. 5.125 de 1904, com a criagao de um ambulatorio para consultas externas (Relatorio da Assisténcia, 1908). Essas consultas seriam realizadas, na presenga dos alunos, pelo docente da clínica psiquiátrica nos dias designados pelo programa da Faculdade de Medicina (Relatorio da Assisténcia, 1908). Em 1911, foi criado o Instituto de Neuropatologia, englobando o pavilhao de admissao, o de doengas nervosas e o de psicología experimental (Decreto n. 8.834, 1911, Art. 45). Em 1927, o Instituto de Neuropatologia foi transformado em Instituto de Psicopatologia, composto pelo Instituto "Teixeira Brandao" (onde eram ministradas as aulas clínicas da FMRJ) e pelos Pavilhoes de Admissao (Pavilhoes Meynert para homens e Magnan para mulheres). Mapeando a documentagao do PO, vemos que os primeiros livros de observagao sao pequeños e leves e nao possuem fotos. Abrangem o período de 28 de dezembro de 1896 a 27 de setembro de 1908. Quanto á estrutura dos livretos, até 1903, colocavam-se apenas alguns dados pessoais, o diagnóstico dos pacientes e, em seguida, realizava-se urna breve descrigao dos pacientes. A partir dos Decretos n. 1.132, de 22/12/1903 (§ 2°, do art. I o ) e n. 5.125, de 01/02/1904 (art. 167) foi Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Dias, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 96 sistematizada a obrigatoriedade de registro da observagáo médica realizada junto aos doentes. No caso do PO, o cumprimento destas determinagoes produziu a ampliagao dos registros dos Livros de observagao. A partir de 1903, a estrutura das observagoes passou a conter: dados pessoais, data de entrada, diagnóstico, inspegao geral, co memora ti vos pessoais e de molestia, comemorativos de familia, análises dos aparelhos digestivo, respiratorio, circulatorio, análise de urina, dos reflexos, tratamento e data de transferencia. Depois de 1908, os livros de observagao se tornam maiores, passam a ter campos próprios, fotos, data da primeira e da última internagao - conforme o caso-, bem como dados antropométricos, peso do paciente, forma do cránio, marcha da molestia e tratamento e data de saída. Esse modelo de registro das observagoes permaneceu até Janeiro de 1919, quando os livros de observagao passaram a conter mais dados, tais como filiagao; religiao; instrugao; procedencia e prognóstico. Porém, em maio de 1919, ocorreram novas alteragoes sendo extraídas as novidades de Janeiro de 1919, bem como os campos de dados antropométricos e forma do cránio. No cabegalho dos livros passou-se a imprimir "Instituto de Neuropatologia". Em 1927, encontramos apenas urna mudanga, no cabegalho dos livros, onde constava: Assisténcia a Psicópatas e, logo abaixo, Instituto de Psicopatologia. Os campos desses documentos eram modificados em acordó com as mudangas na legislagao, na Assisténcia do Distrito Federal e ñas classificagoes psiquiátricas. Podemos ter urna importante descrigao de como se davam os exames mentáis no PO - realizados pela equipe da instituigao, isto é, o diretor, seu assistente, médicos internos e com a presenga de aluno(s) da faculdade de medicina - recorrendo aos escritos daquele foi seu diretor por mais tempo: Henrique Roxo. Segundo Roxo (1925), dever-se-ia perguntar, num exame indireto, o porqué de ter vindo o suspeito de alienagao ao hospicio e quem o mandou, o que fazia da vida, etc. Os parentes, casos acompanhassem o suspeito, deveriam ser inquiridos sobre o histórico de doengas mentáis na familia, da presenga de sífilis ou alcoolismo nos progenitores, de como foi a infancia e a puberdade do suposto doente e o que ele vinha fazendo. A presenga de parentes no PO junto com os doentes era rara, segundo Roxo (1925). Porém, através da leitura de muitas fontes clínicas, percebemos que, muitas vezes, os interrogatorios nao eram feitos somente com os pacientes (Dias, 2010; Fiocruz, 2008). A investigagao do doente deveria comegar por um exame psicológico, de compreensao, por parte do médico ou interno, do pensamento do doente. Em seguida, um exame direto deveria ser realizado em duas partes, inspegao e interrogatorio. A inspegao atentaría para a apresentagao, o olhar, as roupas, desalinho, agitagao motora, face, mímica e fala. No interrogatorio, a observagao recairia no conteúdo da narrativa do doente, na memoria, presenga de delirios, alucinagoes, problemas de percepgao, afetividade e vontade, com perguntas sobre tudo que pudesse elucidar um diagnóstico, principalmente sobre o que ocorreu antes do internamento (Roxo, 1925). Numa fase seguinte de investigagao, viriam os "exames morfológicos": observagao do cránio sob varios ángulos; percussáo craniana; observagao das orelhas, olhos, narizes, dentes, tórax e membros; deformagoes raquíticas, presenga de mamas em homens e ausencia em mulheres; pouco pelos nos homens; ausencia ou jungáo de membros ou polidactilia; anomalías nos órgáos genitais; presenga de manchas (indicativas de sífilis) e cicatrizes. Tudo isso complementado por um exame médico detalhado para ver o funcionamento dos órgáos principáis da economía orgánica e da sensibilidade, motilidade e reflexos. No sentido de tentar dar precisáo e objetividade á psiquiatría, Roxo (1925) sugería a análise da duragáo dos atos psíquicos dos alienados, a partir do "chonoscópio de Hipp". Os atos psíquicos dariam informagoes importantes sobre o "pensamento e vontade". Encerrando a investigagao, encaminha-se o doente para exames laboratoriais: urina, sangue, líquido céfalo-raquiano e reagáo de Wassermann (para identificara sífilis). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Días, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 97 Vemos, entao, que as orientagoes de Henrique Roxo, mesmo com a diferenga temporal de dezoito anos, nao diferiam muito com relagoes as orientagoes dadas aos médicos da policía, por meio do Decreto n. 6.440, de 30/03/1907. Segundo Foucault (1973-4/2006), o interrogatorio médico é urna maneira de substituir discretamente as informagoes tiradas do doente pela aparéncia de um jogo de significagoes que proporcione ao médico urna ascendencia sobre o doente. O interrogatorio visaría, igualmente, a produgao de um dossié permanente sobre o sujeito que seria importante para a sua própria vigia. Além disso, o interrogatorio seria o duplo registro de medicagao e diregao. Por fim, ele seria também o lugar do grande jogo da clínica, isto é, a apresentagao do doente no interior de urna encenagao em que o interrogatorio do doente serviría para a instrugao dos estudantes e em que o médico atuava no duplo registro daquele que examinava e daquele que ensinava - assim como ocorria no Pavilhao de Observagoes. Em suma, vemos que a internagao e o exame clínico estao ligados ao projeto biopolítico da medicina mental. No que tange específicamente ao exame clínico, seguindo Michel Foucault, poderíamos afirmar que ele teria algumas fungoes características. O exame psiquiátrico tem "um valor de demonstragao" dos desvíos (22) do individuo, bem como do seu caráter pessoal e de suas condutas desde a infancia (Foucault, 1974-5/2001). Junto com a identificagao da hereditariedade, poder-se-ia, através de urna linha continua, apontar a anormalidade do sujeito e o grau de periculosidade que ele ofereceria á sociedade. Seguindo este raciocinio, podemos afirmar que o exame clínico teria também urna funcao preventiva, isto é, poderia servir para impedir agoes futuras delituosas. Além disso, o exame clínico seria o lugar de produgao da "verdade do sujeito", isto é, em termos foucaultianos, urna verdade enquanto "posicionamento", ou ainda, um desvelamento (Foucault, 1973-4/2006, p. 302-207). Por fim, podemos afirmar que o exame psiquiátrico fazia parte de urna técnica de normalizagao (Foucault, 1974-5/2001). (23) 5. Consideragóes Fináis Tendo em vista tudo que foi dito ácima, compreende-se a insergao do Pavilhao de Observagoes (PO) na rede psiquiátrica da cidade do Rio de Janeiro, desde o interior ao exterior do PO, observando as transformagoes e reconstrugoes intra e interinstitucionais: sua articulagao com a Polícia, de quem recebia grande parte de sua populagao de pacientes; com a Faculdade de Medicina, da qual fazia parte como espago de ensino de clínica psiquiátrica; e com o Hospicio Nacional, do qual era porta de entrada para urna parcela significativa dos doentes. Este circuito do saber-poder psiquiátrico se expressava um projeto comum - embora diversamente apropriado pelos diferentes atores em questao - de legitimagao profissional da especialidade psiquiátrica, em meio ao qual o PO tinha o papel fundamental de ensino e triagem de pacientes. Além disso, percebemos que o PO se inscrevia em um jogo de legitimagao interinstitucional, entendendo que ele fazia parte de urna rede histórico-política de acordos - portanto, mutável -, na qual os saberespoderes se apóiam mutuamente, levando em consideragao seus lugares, dispositivos e os mecanismos particulares que possuem nesta rede. Dessa forma, foi possível perceber, na dinámica do exercício do poder nesta rede, a existencia de urna serie de disputas entre as instituigoes descritas, personificadas ñas agoes e enunciagoes dos seus atores principáis. Tal rede - nao obstante sua aparéncia homogénea - era atravessada por dissensos, disputas e controversias presentes nos indicios apresentados pela serie de discursos aqui arrolados e analisados. Vale ressaltar o quanto isto é latente nos muitos casos clínicos registrados nos "Livros de observagoes" da instituigao - onde é possível constatar casos de discordancia em relagao á marcagao diagnóstica realizada em outras instituigoes -, mas que nao foram aprofundados aqui por já terem sido objeto de nossas reflexoes em outras oportunidades. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Días, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 98 Referencias Araújo, R. M. B. (1993). A vocagáo do prazer: a cidade e a familia no Rio de Janeiro republicano. Rio de Janeiro: Rocco. Boletim Policial (1907a). Boletim Policial, i(3). Boletim Policial (1907b). Boletim Policial, 1(8). 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Para maiores informagoes sobre o IPUB e a década de 1930, ver Venancio (2003). (2) Antes de compor as referidas dissertagoes, o tema do presente trabalho já havia sido embrionariamente pensado em 2008, quando foi objeto de urna comunicagao oral apresentada no congresso da ANPUH-RJ (Dias & Muñoz, 2008). (3) Esta pesquisa, da qual faz parte Cristiana Facchinetti, intitula-se Biopolítica, Psiquiatría e Patrimonio ¡material: a Invengáo do Brasileiro Moderno (1900-1930). (4) É necessário lembrar que a dinámica do poder implica necessariamente um contrapoder, ou ainda, resistencias ao poder e processos de subjetivagao. Assim como Yonissa Wadi (2006), acreditamos que, no ámbito da historia da psiquiatría, essa leitura pode ser realizada a partir do estudo de casos clínicos. Sobre isso ver, Wadi (2009); Muñoz (2010); Dias (2010). Para urna análise do pensamento foucaultiano, ver Huertas (2006). Para outra leitura acerca da instituigao psiquiátrica, sob outra orientagáo metodológica, entendendo-a também por sua vocagáo terapéutica, ver Gauchet e Swain (1994). (5) Contó de Lima Barreto (1981), Como o homem chegou (na coletánea Nova California), escrito pelo literato logo que saiu da sua primeira internagáo no HNA, em 1914 (Engel, 2003). (6) Para informagoes da relagáo da polícia com a questáo da alienagáo, no Rio Grande do Sul, ver Wadi (2002); no Espirito Santo, Jabert (2005) e no México, Rivera-Garza (2001). (7) Isto é, nao era o único recurso. Muitas vezes, os individuos buscavam um tratamento espiritual para seus males. Sobre isso ver Dias e Muñoz (2010). (8) Por outro lado, essa submissáo nao pode ser generalizada a ponto de encobrir as resistencias ao poder patriarcal. A partir da década de 1920, principalmente, os movimentos para emancipagáo da mulher comegaram a ganhar forga (Rodhen, 2001). (9) Recorremos, aqui, ao histórico que Afránio Peixoto faz da medicina legal no Brasil em seu livro intitulado "Elementos de Medicina Legal" (Peixoto, 1914), e num texto seu publicado no periódico da polícia, o Boletim Policial, na sua edigáo inaugural, intitulado "Servigos Médico-Legáis" (Peixoto, 1907). (10) A exigencia da guia policial foi instituida após o Decreto n. 1.132 de 22/12/1903. (11) Para um modelo dessas guias, ver os "Anexos" da dissertagáo de mestrado de Paula (2006). (12) O encaminhamento de individuos febris ao hospicio gerou grandes debates no período da gripe espanhola. Sobre isso ver Dias (2010). (13) Médico Diretor da FMRJ, em 1930 (Magalháes, 1932). (14) Dentre as reformas, destacamos que, em 1911, a Reforma Rivadávia Correa aprovou a Lei Orgánica do Ensino Superior, quando o sistema de docencia alemáo foi trazido para o Brasil. (Magalháes, 1932). A Lei Orgánica teve seu tempo de vigencia restrito ao Governo Hermes da Fonseca, sendo substituida no governo seguinte. Com a Reforma Maximiliano, a autonomía dos docentes fortalecia-se com a diminuigáo do poder de intervengáo do Conselho de Ensino. Já a liberdade de freqüéncia permaneceu garantida (Magalháes, 1932). (15) Sobre este ponto, Machado, Loureiro, Luz e Muricy (1978) e Engel (2001) nos mostram que havia urna grande insatisfagáo por parte dos médicos sobre a presenga das irmás de caridade (advindas da Franga) que representavam pessoas estranhas á medicina próximas aos doentes e, que por isso, atrapalhariam o exercício científico da medicina. A principal voz crítica, nesse período, foi a de Teixeira Brandáo. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Muñoz, P. F. N., Facchinetti, C. & Días, A. A. T. (2011). Suspeitos em observagao ñas redes da psiquiatría: o Pavilhao de Observacoes (1894-1930). Memorándum, 20, 83-104. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 104 (16) Vale ressaltar que até 1911 há sempre a referencia ao estabelecimento futuro de instrugoes especiáis e autónomas para reger o servigo administrativo e económico do PO, tirando-o da subordinagao financeira do HNA. (17) Sobre essa querela, ver o Relatório da Comissáo, anexo B do Relatório do Ministro da Justiga e Negocios Interiores de 1903 (Relatório da Comissao Inquérito, 1903). (18) Esta mesma idéia é repetida nos relatónos seguintes da década de 1920. Ver porexemplo: Relatório da Assisténcia (1924); Relatório da Assisténcia (1928). (19) Ver a descrigao destes rituais de "despersonificagao" em "instituigoes totais" feitas por Goffman (1974) e Ignatieff (1987). (20) Para maiores detalhes, ver dissertagao de mestrado sobre o caso Elza (Muñoz, 2010). (21) As informagoes a seguir sao retiradas das partes relativas á Assisténcia a Alienados dos relatórios ministeriais, enviados pelo Ministro da Justiga ao Presidente da República, da década de 1890 até a década de 1920. Por urna questao prática os relatórios serao citados doravante da seguinte maneira: Relatório da Assisténcia, ano. Ver a referencia completa dos relatórios no item Referencias. (22) Foucault (1974-5/2001) refere-se específicamente aos delitos. Contudo, acreditamos que o "valor de demonstragao" teria sido um valor comum tanto ao exame médico-legal quanto ao exame clínico. (23) Sobre isso, Foucault (1974-5/2001) estabelece a hipótese de que essas técnicas de normalizagao, e os poderes de normalizagao que sao ligados a elas, nao sao apenas efeito do encontró, da composigao, da conexao entre o saber médico e o poder judiciário, mas que, na verdade, através de toda a sociedade moderna, haveria certo tipo de poder - nem médico, nem judiciário, mas outro - que conseguiu colonizar e repelir tanto o saber médico como o saber judiciário: o poder de normalizagao - que se apoiaria na instituigao médica e judiciária, mas, em si mesmo também, teria autonomía e regras próprias. Nota sobre os autores Pedro Felipe Neves de Muñoz - historiador graduado pela UERJ e mestre em Historia das Ciencias e da Saúde (PPGHCS/COC/FIOCRUZ). Atualmente, é doutorando em Historia das Ciencias e da Saúde (PPGHCS/COC/FIOCRUZ), pesquisador free lancer no projeto de produgao de verbetes do Dicionário HistóricoBiográfico Brasileiro (CPDOC/FGV) e faz graduagao em Psicología (IP/UFRJ), na qual ingressou em 2006. Contato: [email protected] Cristiana Facchinetti - psicóloga graduada pela UFRJ, mestre e doutora em Teoria Psicanalítica (PPGTP/UFRJ), com pós-doutorado em Historia das Ciencias e da Saúde (COC/FIOCRUZ). Atualmente, é pesquisadora e professora da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, além de fazer parte do corpo editorial da Revista Historia, Ciencias, Saúde - Manguinhos e participar do GT de Historia da Psicología da ANPEPP. Contato: [email protected] Allister Andrew Teixeira Días - historiador graduado pela UFF e mestre em Historia das Ciencias e da Saúde (PPGHCS/COC/FIOCRUZ). Atualmente, é doutorando em Historia das Ciencias e da Saúde (PPGHCS/COC/FIOCRUZ) e professor-tutor em Historiografia Contemporánea da graduagao á distancia em Historia da UNIRIO. Contato: [email protected] Data de recebimento: 25/10/2010 Data de aceite: 24/05/2011 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/munozfacchinettidias01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas History of the introduction of psychological practices in the Brazilian public health system and some epistemological consequences Magda do Canto Zurba Universidade Federal de Santa Catarina Brasil Resumo Neste trabalho revisamos o processo histórico que levou as práticas psicológicas brasileiras a se instalarem ñas políticas públicas de saúde contemporáneas, analisando, neste contexto, a epistemología da ciencia psicológica e suas transformagoes recentes. Revisitamos alguns aspectos históricos que marcaram a formagáo do pensamento psicológico pré-científico, bem como sua consolidagáo como ciencia moderna. O pressuposto epistemológico da Psicología, em sua concepgáo moderna de ciencia, era associado ao pensamento liberal. Assim, alguns episodios históricos levaram os fazeres psicológicos a estarem muito mais orquestrados pelo mercado regulador - consultorios clínicos privados, consultorias empresariais, etc. - do que pelas políticas públicas. Assinalamos o desenvolvimento da reforma psiquiátrica no Brasil como um elemento determinante que impulsionou a entrada do fazer psicológico no ámbito das políticas públicas de saúde no Brasil, fato que tem afetado significativamente os modelos contemporáneos de prática. Palavras-chave: historia da psicología; psicología da saúde; prática psicológica. Abstract In this paper we review the historical process that led the psychological practice in Brazil to settle in contemporary public health policies, examining in this context, the epistemology of psychological science and its recent changes. We revisited some historical aspects that marked the formation of pre-scientific psychological thinking, and its consolidation as a modern science. The epistemological assumption of Psychology, in its modern science, was associated with liberal thinking. Thus, some historical episodes have led the psychological practice to be much more orchestrated by the regulating market - prívate offices, business Consulting, etc. than by public policy. We note the development of the psychiatric reform in Brazil as a key factor that drove the introduction of psychological care within the public health policies in Brazil, which has significantly affected the contemporary models of practice. Keywords: history of psychology, health psychology, psychological practice. 1.Considerares iniciáis Como área organizada de conhecimento científico, a Psicología foi se configurando há apenas pouco mais de cem anos, no apagar das luzes do século XIX. Esse é um período muito curto em termos de historia das ciencias. Porém, mais curto ainda é o período em que essa "nova ciencia" passou a ingressar no terreno da saúde pública, sobretudo no Brasil. Somente com o advento da ciencia moderna os problemas psicológicos passaram a ser entendidos sob modelos inteligíveis á comunidade científica. A Psicología científica é filha da Modernidade, contudo, a passagem histórica que pressupoe a Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 consolidagao da Psicología como ciencia moderna consistiu em um processo bastante turbulento (Mueller, 1978; Ferreira, 2006), cujos desdobramentos implicaram em subdivisoes teóricas por vezes antagónicas e áreas de aplicagoes diversificadas (Figueiredo, 2000). Neste contexto, diante da dificuldade disciplinar em retomar o processo histórico usufruindo de certa unidade epistemológica, muitos fazeres psicológicos foram se consolidando em diferentes lugares do mundo apoiados por certos regionalismos, financiamentos específicos e, sobretudo, influenciados por posigoes políticas distintas. Cecilia Coimbra (1999) aponta, por exemplo, como no Brasil a Psicología se mostrou aliada á ditadura e ao regime militar durante os anos 60 e 70, influenciando as práticas psicológicas que se consolidaram no país durante a segunda metade do século XX. Neste sentido, é observável que, por volta de 1965, boa parte do mundo democrático já contava com psicoterapia de grupos em comunidades e centros comunitarios, principalmente nos Estados Unidos e Europa (Evans, 2007), mas nos brasileiros - e boa parte da América Latina - pouco sabíamos como proceder a este respeito (Ciornai, 1997). Passamos os anos subseqüentes á instalagao dos regimes militares latinoamericanos restritos a atendimentos individuáis, proibidos pelo Estado de realizar agrupamentos comunitarios. Além disso, vivenciamos o tardio ingresso de nossa prática psicológica ñas políticas públicas de saúde, bem como o frágil emprego da psicoterapia grupal no cotidiano do trabalho psicológico por muitos anos. Hoje, em contraste, temos visto o ampio ingresso da psicología em equipes multiprofissionais de saúde da familia, hospitais e também em ambulatorios públicos de psicoterapia, nos quais se presume a coordenagao de grupos e estrategias de promogao/prevengao em saúde - algo que em momentos anteriores da nossa historia era improvável de ser pensado. Entender essa passagem histórica nos auxilia a re-pensar o retrato que montamos do psicólogo de hoje no ámbito da saúde, bem como no contexto das políticas públicas de modo geral. A entrada do fazer psicológico nestes modelos de trabalho forgou o enfoque interdisciplinar na compreensao do fenómeno psicológico, fato que tem afetado sobremaneira nosso paradigma disciplinar, cujas bases se apoiavam em um modelo cartesiano e linear de ciencia. Assim, este artigo tem o objetivo de problematizar e repensar sobre o processo histórico que levou as práticas psicológicas brasileiras a se instalarem ñas políticas públicas de saúde contemporáneas, analisando, neste contexto, aspectos da epistemología da ciencia psicológica e suas transformagoes recentes. 2. A nocao de "Psicología" na Antiguidade Antes do advento da Psicología como "ciencia" propriamente dita e muito antes da busca da aplicagao deste conhecimento científico ñas atividades cotidianas do homem, podemos encontrar as preocupagoes com os problemas de ordem psicológica da humanidade desde longa data. Ainda que tenhamos um distanciamento temporal demasiado longo entre a Antiguidade e nossos dias, basta nos aproximarmos um pouco dos escritos de Aristóteles (384-322 a.C/2006) para encontrarmos ressonáncia significativa entre o modo como desenvolvemos a prática psicológica na Modernidade e o modo como aquele filósofo presumía as condigoes ontológicas do homem. Isto porque foi no Renascimento, justamente com a queda da Idade Media, que se consolidou a ciencia moderna, contudo, retomando a tentativa de pensamento nao-dogmático de Aristóteles. Este, por sua vez, evitava o dogmatismo em sua época porque buscava fugir da metafísica platónica; já os pensadores modernos porque buscavam fugir do pensamento dogmático cristao. De toda forma, a retomada ao pensamento aristotélico influenciou a formagao do pensamento psicológico dos séculos XVIII e XIX, afetando a consolidagao da ciencia psicológica nos anos subseqüentes, até os dias de hoje. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Em sua teoria, Aristóteles (384-322 a.C/2006) propós um modelo de universo, modelo este que correspondía a desdobramentos em varias áreas disciplinares, recaindo tanto sobre a Psicologia como sobre a Física. Em sua concepgao, existiría harmonía e um equilibrio estável no universo. Desta forma, ele explicava tanto a natureza da "alma", quanto os motivos dos corpos físicos caírem - explicagao primaria, contudo, muito antes de conhecermos a lei da gravidade. Enfim, Aristóteles propunha um arranjo cósmico e harmonioso do universo. Da mesma forma, em sua psicologia ele negava a ideia de alma encarcerada num corpo, tal como os platónicos propunham. Aristóteles assegurava certa harmonía ñas fungoes vitáis, afirmando que nao existia anterioridade da alma em relagao ao corpo, mas que um existiría para o outro e vice-versa: desta forma, a alma nao poderia existir sem um corpo que ela animasse, nem um corpo teria principio vital sem alma, havendo assim urna perfeita unidade funcional. Ou seja, o ser humano nao seria constituido por urna alma e um corpo. A condigao aristotélica para o principio vital de um ser humano seria da funcionalidade entre alma e corpo, a alma estaría para o corpo assim como a visao estaría para o olho, conforme podemos acompanhar em seus escritos na obra De Anima: Assim como a agao de cortar e a agao de ver, também a vigilia é atualidade. A alma, por sua vez, é como a potencia do instrumento e como a visao; e o corpo é o ser em potencia. Mas, assim como a pupila e a visao constituem o olho, também neste caso, o corpo e alma constituem o animal (Aristóteles, 384-322 a. C/2006, p. 73). É importante lembrar que Aristóteles escrevia antes da Era Crista, portanto, possivelmente Ihe fosse mais provável do que aos pensadores da Idade Media pensar que a alma nao fosse anterior ao corpo e que, além disso, sequer pudesse existir sem corpo. Para Aristóteles a alma somente existiría enquanto estivesse animando um corpo: nem antes, nem depois. A precisa fungao entre corpo e alma seria aquilo que Aristóteles estabelecera como objeto da Psicologia: a consciéncia. Contudo, o sistema filosófico de Aristóteles nao resolvía o problema metafísico posto em Platao. Por outro lado, apesar de Aristóteles ainda assegurar a Deus um lugar de criador do universo, descrevia este universo como passível de ser estudado. Neste sentido, suas reflexoes sobre percepgao, memoria, sensagoes, passaram a ser entendidas no ámbito da consciéncia. Aristóteles (384-322 a.C/2006) refutava e desprezava a ideia de explicar as fungoes psicológicas como inerentes á alma, tal como seus antecessores metafísicos. Desprezava também as explicagoes dos atomistas, materialistas tais como Leucipo - que vivera por volta de 500 a.C, bem como de seu discípulo Demócrito de Abdera, que vivera entre 430 a 360 a.C. (Rocha, 2007). Aristóteles entendía que o principio vital nao poderia ser explicado pelos elementos meramente físicos, principalmente os fenómenos humanos mais complexos, como por exemplo: o pensamento, a liberdade de escolha, etc. Temos ai o rascunho do que viria a ser a Psicologia moderna, pois após os anos da Idade Media, a ciencia passou a retomar - em determinadas proporgoes - algumas das consideragoes dos filósofos da Antiguidade. Neste sentido, a historia nos permite compreender como foi que, a partir dos modelos científicos estabelecidos na modernidade, passamos a explicar a fungao dos síntomas em um sistema somático e psicossomático, construindo caminhos que vao desde a psicologia da saúde de modo geral, até as especificidades da epistemología presentes ñas práticas em saúde mental de hoje. Contudo, essa passagem nao foi feita por urna transposigao simples de modelo. O caminho entre a Antiguidade e a Modernidade levou mais de mil anos, e gerou impactos profundos em tudo que entendemos como prática psicológica nos dias de hoje. 3. A "Antiguidade Moderna" Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Durante a Idade Media, o modelo de compreensao do adoecimento foi fortemente marcado pela visao do transcendente, sob a perspectiva do paradigma antropológico paulino-agostiniano apoiado na ambivalencia do "eu-moral", tal como apontam Oliveira, Pires, Macedo e Siqueira (2006). Neste sentido, a ambivalencia do "eu-moral" implicaría em urna doenga estrutural do ser humano, gerando muitos conflitos, cujos desdobramentos levariam o homem a incessante busca de superagao. Os autores apontam que este paradigma influenciou fortemente a psicología moderna a respeito de suas formulagoes sobre saúde e adoecimento. Sabemos que o Renascimento foi o período preciso de transigao entre o modelo de vida da Idade Media e o inicio da Idade Moderna, contudo, é tarefa difícil compreender os desdobramentos decorrentes dessa transigao. Um dos resultados desse período foi a ruptura no modo de viver humano, marcadamente a queda do modelo agrícola baseado no modelo de escravidao e de nobreza, para o ingresso no modo de vida capitalista onde "tempo é dinheiro". A enfase histórica na queda do sistema feudal se apóia em um olhar agudo sobre a Europa, de forma que a narrativa da "historia universal" é, neste sentido, eurocéntrica. Isso acontece nao apenas em boa parte dos livros de historia da Psicología, mas no próprio corte temporal entre os períodos históricos estabelecidos, de modo geral, pelos historiadores. Na literatura hegemónica, todas as rupturas no tempo histórico sao assinaladas por eventos acontecidos na Europa, inclusive o inicio da ciencia moderna, cuja data novamente nos remete á queda da Idade Media e o inicio da Idade Moderna, demarcada entre - outras coisas - pelo paño de fundo da revolugao Francesa. Contudo, a influencia da metafísica no pensamento humano - durante o período de mil anos medievais - nao foi vivido somente na Europa. Nesse período, se procurarmos os principáis vultos da filosofía árabe - conforme nos apontam as fecundas colaboragoes históricas de Giordani (1976) - encontraremos, por exemplo, Al-Kindi (que viveu entre 796-866); Alfarabi (sabe-se que morreu em 950), Avicena (que viveu entre 980-1037), entre outros. O que há em comum entre os autores medievais árabes e os europeus mais conhecidos no período da Idade Media? Sao Paulo, Santo Agostinho e Sao Tomás de Aquino, assim como Al-Kindi, Avicena e Alfarabi, apoiavam-se em explicagoes metafísicas sobre os processos psicológicos diversos. Se dermos um giro pelo mundo medieval em diferentes locáis do mundo, identificaremos esse criterio metafísico em praticamente todas as culturas: ñas comunidades asiáticas, ñas tribos africanas, na experiencia do indio latinoamericano, bem como no misticismo da filosofía hebraica. A questao que colocamos, neste inicio de reflexao, é entender como a humanidade conseguiu alcangar explicagoes aos problemas psicológicos para além da metafísica, por meio do pensamento científico. Ora, certamente que as duas formas de pensamento coexistem até os dias de hoje, e nao é raro que algumas comunidades prefiram tratar seus problemas psicológicos junto a curandeiros e benzedeiras, como bem tem apontado Alfredo Moffat (1991) em sua obra ñas últimas décadas. Outros autores identificam, inclusive, o entendimento subjacente de aspectos metafísicos ñas explicagoes corriqueiras do senso comum sobre o processo saúdedoenga (Oliveira, Pires, Macedo & Siqueira, 2006), apontando o elevado índice de materiais de auto-ajuda junto ao público leigo como forma de apontar esses modelos contemporáneos. 3.1. Determinismo, reducionismo, empirismo e mecanicismo: as quatro raízes da Ciencia moderna na formacao da Psicología. O advento da Psicología como campo científico de conhecimento foi um marco importante para a humanidade, estabelecendo urna nova ordem de explicagoes e manejo para velhos problemas da vida cotidiana. Embora os síntomas em saúde mental continuem a ser tratados, ¡numeras vezes, sob o criterio da ordem espiritual e manejados através de rituais místicos, ao menos hoje podem ser sistematizados, Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 pesquisados e divulgados no campo da ciencia. Portanto, o polémico fato de que a Psicología tenha entrado para o campo da ciencia adquire significado em si, pois potencialmente passou a subsidiar as pessoas na superagao de suas práticas dogmáticas e muitas vezes ideológicas, práticas estas aprendidas e repetidas no senso comum, estas que fortalecem modelos de dominagao cultural e económica á medida que popularmente associam problemas psicológicos a questoes de culpa, falha no desenvolvimento moral, castigo divino, etc. Por outro lado, é verdade que o advento da Psicología como ciencia pode deslocar o foco da opressao para outro rumo, desta vez a opressao do estigma científico, opressao de um tipo de saber que se propoe sobre os demais. O saber científico pode ser entendido como superior ao senso comum quanto ao rigor metodológico na produgao de afirmagoes ditas "verdadeiras", contudo, este tipo de saber tem se mostrado quase tao autoritario quanto aquele. De toda forma, com a queda do pensamento dogmático, que enfraqueceu ao final da Idade Media, vamos encontrar o terreno fértil no qual se instalou a ciencia moderna. Todas as áreas disciplinares, e nao apenas a Psicología, encontraram fólego novo no cenário que se constituía durante o Renascimento. Neste contexto, talvez tao dogmática quanto as religioes, a ciencia moderna nascia apoiada no determinismo, no reducionismo, no empirismo e no mecanicismo. O modelo de ciencia psicológica que se propunha em sua génese era, da mesma forma, positivista e materialista, ainda linear e cartesiana, baseada na física newtoniana. A natureza da relagao mente-corpo, colocada por Descartes no ámbito do empirismo, passou a ser minuciosamente estudada e até quantificada por Fechner (1860/1978), tal como retrata sua obra, traduzida do alemao para o inglés como Elements of psychophysics. Assim como Aristóteles, Fechner entendía que o universo era regido por Deus, de modo que no funcionamento das leis ditas "naturais" haveria um movimento em diregao á perfeigao. Neste sentido, os aspectos físicos e psíquicos dos fenómenos seriam parte de urna mesma realidade, e nao características antagónicas. Sobre isso, o autor inclusive se arriscou a algumas especulagoes filosóficas (Fechner, 1891/1988). De toda forma, o modelo causa-efeito continuava sendo o único sob o qual se apoiavam as explicagoes psicológicas da época a respeito das sensagoes, percepgoes, memoria e, inclusive, aprendizagem. Nos anos subseqüentes, o também alemao Wundt aprofundou o método empírico de Fechner, o que culminou com sua publicagao intitulada na versao em inglés como Lectures on the minds of men and animal (Wundt, 1863 citado por Schultz & Schultz, 2009). Naquele trabalho, Wundt aprofundou empíricamente os estudos sobre o problema da relagao mente-corpo, e desta relagao com o meio, cunhando o termo "psicología fisiológica" em sua obra Principies of physiological psychology (Wundt,1873-1874 citado por Schultz & Schultz, 2009). Assim, como sabemos, Wundt consagrou-se organizando a primeira psicología reconhecidamente científica: a "psicología experimental". 4. A Psicología: urna ciencia moderna Nascia assim a "Psicología", que em 1881 já contava com um manual de Psicología fisiológica, um laboratorio de Psicología experimental na Universidade de Leipzig (Alemanha) e urna revista académica especializada na mesma universidade. Contudo, nascia urna "ciencia de laboratorio", que desta forma se propunha a estudar a experiencia consciente do homem através de experimentos dentro de um laboratorio. É importante ressaltar que nao estava surgindo ainda urna ciencia "aplicada". Vale lembrar que o próprio Wundt, fundador do primeiro laboratorio de psicología experimental no mundo, superou seu modelo experimental nos últimos vinte anos de sua vida. Ele concluiu que as experiencias mais complexas da consciencia, tais como memoria e aprendizagem, por exemplo, nao poderiam ser estudadas segundo um modelo experimental. Wundt desenvolveu assim a "psicología cultural", Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 -. *• • publicada em dez volumes ao longo dos primeiros vinte anos do século XX, e final da vida do autor (Wundt, 1900-1920 citado por Schultz & Schultz, 2009). Apesar do conteudo de suas últimas publicagoes apontarem para urna verdadeira mudanga de rumo paradigmático para a ciencia psicológica, seus seguidores nao foram muito receptivos, pois assumir a psicología cultural consistía, em última análise, em abandonar o método da psicología experimental, que na década de 20 já se encontrava amplamente difundido pelo mundo, contando com varias réplicas do laboratorio de Leipzig e ¡numeras publicagoes. Conforme apontam Schultz e Schultz (2009): A psicología cultural tratou de varias etapas do desenvolvimento mental humano manifestado pela linguagem, ñas artes, nos mitos, nos costumes sociais, na lei e na moral. O impacto dessa publicagao na psicología foi mais significativo do que o conteudo em si, já que serviu para dividir a nova ciencia em duas partes principáis: a experimental e a social (p. 83). O problema a respeito da aprendizagem e desenvolvimento cognitivo impulsionou Wundt a revisar seu modelo de trabalho. Embora ele próprio nao estivesse convencido de que a psicología poderia se tornar urna ciencia aplicada, ainda assim, alterou drásticamente seu modelo de pesquisa e, sobretudo, ensaiava urna revisao de paradigma científico - sem, contudo, identificá-la. Em nosso entendimento, em seus últimos vinte anos de pesquisa - através da psicología cultural - Wundt afastou-se, paulatinamente, do modelo positivista. Assim como a Física - que a partir do eletromagnetismo (Einstein & Infeld, 1960/2008) revisou durante o século XX seus modelos explicativos de universo baseados no pensamento cartesiano e na mecánica de Newton, a Psicología wundtiana tangenciou a revisao de seu modelo mecanicista de homem, que até entáo se apoiava no paradigma linear e associacionista de precursores como Descartes, John Locke e James Mili. 5. O paradigma científico moderno e a queda de braco da Psicología com as políticas públicas É polémica a passagem histórica que leva a Psicología de dentro dos laboratorios ao modelo funcional no cotidiano das pessoas, inclusive á prestagáo de servigos. Autores norte-americanos costumam enfatizar a presenga do británico Titchenner nos EUA e seu trabalho estruturalista sobre a mente como um degrau necessário para que surgisse urna reagáo funcionalista no mundo. Historiadores europeus costumam negligenciar Titchenner e ignorar também o tumulto que ele causou para a historia da ciencia psicológica devido as tradugoes mal feitas que efetuou das obras de Wundt. De toda forma, historiadores europeus e americanos sao consensuáis em localizar que foram as demandas sobre aprendizagem, memoria, imaginagáo e criatividade que levaram a Psicología a se manifestar junto ao senso comum durante o século XX, aplicando seu conhecimento a problemas comuns do cotidiano. O fato é que a Psicología, em seu processo de consolidagáo no campo da ciencia dita "moderna", necessitou passar dos laboratorios experimentáis para problemas aplicados na vida cotidiana. Contudo, a ordem paradigmática nao superou de modo consistente o modelo de ciencia linear que se instalara durante o Renascimento. Como afirma D'Ambrosio (2001), sem referir-se á Psicología, mas considerando a respeito da epistemología científica de modo geral: A ciencia moderna é identificada como o sistema de explicagoes de fatos e fenómenos que resultam do paradigma newtoniano. A modernidade se refere as repercussoes desse sistema na filosofía, ñas artes e na política. O questionamento do Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 -. *• • paradigma newtoniano e suas repercussoes em todos os campos de conhecimento caracterizam a pós-modernidade (p.103). O paradigma da Psicología, herdado no espirito da modernidade, ainda coexiste hoje, com tímidas tentativas científicas de superagao para um modelo menos linear: por vezes se aproximando da teoria crítica, por vezes da dialética ou do modelo ecossistémico. Contudo, esse ainda é um caminho em processo. Vale lembrar que, nem o sucesso do darwinismo social de Spencer (1820-1903) nos Estados Unidos, nem a busca por estruturas físicas da consciéncia de William James (1842-1910), nem a "escola de Chicago" deram conta de urna mudanga paradigmática da Psicología durante os anos subseqüentes do século XX. Nesse tumultuado contexto epistemológico assistimos á Psicología ingressar no campo da prestagao de servigos, á medida que os movimentos funcionalistas tanto europeu como americano - atentavam para a demanda prática dos conhecimentos da Psicología. O funcionalismo americano, já mencionados através de precursores como Spencer e James, gerou influencias económicas diretas no plano de trabalho do psicólogo a partir da escola de Chicago, fortalecendo aquilo que se denominou como "psicología aplicada", culminando nos testes de QI, ñas avaliagoes de desempenho motor e oral, bem como em certos movimentos de psicología organizacional e da industria, além de parte da psicología clínica. No funcionalismo europeu vamos encontrar os protagonismos de Édouard Claparéde (1873-1940) e Jean Piaget (1896-1980), que constituíram a conhecida "escola de Genebra". Segundo Campos e Nepomuceno (2007), a énfase da escola de Genebra era colocada no processo de construgao das estruturas psicológicas, priorizando assim a interagao sujeito e ambiente, o que significava colocar ao lado tanto as explicagoes inatistas dos biologicistas quanto as explicagoes ambientalistas dos associacionistas. Vigotski, que na década de 20 já desenvolvía pesquisas sólidas apoiadas no materialismo-histórico dialético - no contexto da extinta Uniao das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), assinalava a crise epistemológica que a Psicología vivía naqueles tempos: se a psicología é na verdade e em sentido preciso urna ciencia natural (e, de acordó com os autores europeus, empregamos essa palavra para indicar mais claramente o caráter materialista desse género de conhecimento: como a psicología da Europa Ocidental desconhece ou quase desconhece os problemas da psicología social, os conhecimentos psicológicos coincidem para ela com as ciencias naturais). Mas inclusive esse problema continua tendo um caráter especial e muito profundo: o de mostrar que é possível a psicología como ciencia materialista e que esse fato nao faz parte do problema do significado da crise como um todo (Vigotski, 1927/2004, p.340). 5.1. Influencias do funcionalismo no Brasil e aspectos do colonialismo intelectual na Psicología No Brasil, as repercussoes funcionalistas estiveram desde muito cedo presentes. Podemos dizer, propriamente, que a ciencia psicológica brasileira se confunde com aquilo que alguns países denominavam como "psicología aplicada". Praticamente nao conhecemos, de antemao, outra psicología que nao fosse aplicada. Nao fomos, pelo menos de inicio, um país de grandes teóricos da nova ciencia, mas, sobretudo, importadores de técnicas, textos e teorías - excelente platéia de palestrantes estrangeiros. Como diria Carvalho (2001) em seu estudo sobre o pensamento colonialista ñas ciencias humanas do Brasil: "a metáfora das metamorfoses do olhar Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 -. * etnográfico, o que permite detectar momentos importantes da recepgao e reprodugao, em países periféricos como o Brasil, desse saber plasmado nos países centráis nos dias de colonialismo" (p.107). Certamente que seria interessante se enveredássemos pela reflexao acerca do impacto do colonialismo intelectual no desenvolvimento da Psicologia brasileira, porém, nao colocaremos sobre essa questao um foco mais profundo, tamanha a complexidade de tal materia. Tal como nos lembra Massimi (2007): De fato, na busca de transformar o Brasil em nagao ocidental moderna, o passado colonial é encarado negativamente e o futuro é concebido como adequagao a modelos que, num enfoque positivista do processo histórico, aparecem como mais evoluídos. Neste sentido, também a criagao dos primeiros laboratorios no inicio do século XX parece acompanhar esse movimento voltado a criar no Brasil urna ciencia do homem segundo métodos e objetivos sugeridos pelo cenário cultural e social internacional (p.167). Consideramos que as implicagoes do pensamento colonialista sobre a Psicologia brasileira influenciou de tal maneira a consolidagao da profissao que, ainda com muita dificuldade, apenas recentemente alguns grupos específicos de intelectuais brasileiros tém conseguido articular demandas psicológicas nacionais a problemas de estudos teóricos mais ampios, junto a um campo de ideias e conhecimento que vem se consolidando em torno de questoes da psicologia brasileira e latinoamericana (Brosek & Massimi, 1998; Gewehr, 2010; Guedes, 2007; Massimi & Guedes, 2004). Em suma, no processo histórico de formagao do pensamento em Psicologia brasileira e latinoamericana, alguns estudiosos puderam compreender o significado de um novo tipo de discurso na virada do século XX para o século XXI. Neste sentido, as nogoes de pós-modernidade, globalizagao e pluralismo se sobrepoem á nogao de soberanía que reúne as diferengas. Assim, retomando reflexoes de Foucault (1976/1999) do final dos anos 70: Doravante, nesse novo tipo de discurso e de prática histórica, a soberanía já nao vai unir o conjunto em urna unidade que será precisamente a unidade da cidade, da nagao, do Estado. A soberanía tem urna fungao particular: ela nao une; ela subjuga. E o postulado de que a historia dos grandes contém a fortiori a historia dos pequeños, o postulado de que a historia dos fortes traz consigo a historia dos fracos, vai ser substituido por um principio de heterogeneidade: a historia de uns nao é a historia dos outros (pp. 80-81). Considerando tais aspectos do processo histórico apontados por Foucault (1976/1999), assinalamos que foi no contexto de urna produgao intelectual colonizada que encontramos, no Brasil, os primeiros focos de organizagao da área em torno das questoes de aprendizagem, neste sentido, pautadas sobre especulagoes teóricas que palpitavam do exterior. Segundo Massimi (2007) as influencias teóricas mais presentes em solo brasileiro foram, de inicio, aquelas do espiritualismo francés de Maine de Biran (1766-1824) - que em última análise questionavam as teorías naturalísticas e o mecanicismo, fundando urna ciencia do "eu" que se apoiava no empirismo. Com essa énfase espiritualista, pelo menos desde 1850, vamos encontrar disciplinas avulsas de psicologia sendo lecionadas em cursos de Filosofía. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 -. * O foco dedicado aos problemas de aprendizagem e desenvolvimento infantil logo apareceram, de modo que em 1870, segundo Massimi (2007), um curso normal de Sao Paulo incluiu em sua grade curricular a disciplina "Psicología aplicada ao desenvolvimento da crianga" (p.166). Assim, seguindo o script da psicología queja se consolidara em outras partes do mundo, surgiram alguns laboratorios de psicología experimental no Brasil já no inicio do século XX, bem como práticas psicopedagógicas que buscavam definir zonas de desenvolvimento "normal" e "anormal". Os trabalhos desenvolvidos por Helena Antipoff, por exemplo, tornaramna reconhecida como típicamente funcionalista - tal como lembram Campos e Nepomuceno (2007, p.257). As autoras consideram, ainda, que as pesquisas de laboratorio desenvolvidas por Antipoff ñas primeiras décadas do século XX - cujo objetivo primeiro era compreender o desenvolvimento mental das criangas em idade escolar - na verdade subsidiaram a introdugao dos testes de medida de inteligencia ñas escolas primarias desde aquela época. Nessa conjuntura inicial, é importante ressaltar a importancia da vinda de palestrantes do exterior, que respaldavam a importagao de teorías e técnicas que confluíam na diregao de urna psicología essencialmente aplicada, que atendesse as demandas ditas da "sociedade". Além disso, a falta de um lugar profissional do psicólogo no Brasil, já conquistado lá fora, infligía os interessados em psicología no Brasil a buscarem recursos externos. De toda forma, urna marca importante desse período, foi o ingresso de "verdades psicológicas" na cultura brasileira, como se o fato de serem ditas por um palestrante estrangeiro, de preferencia em sotaque francés, legitimasse um conceito como mais verdadeiro do que se tivesse sido pronunciado a partir de um estudo nacional. Como bem apontaram Castro, Portugal & Jacó-Vilela (2010) em recente artigo sobre a historia da Psicología no Brasil: Na perspectiva de urna Historia da Psicología no Brasil, o que em certas ocasioes se verifica é que tais deslocamentos improprios tendem a acontecer com mais freqüéncia em abordagens que buscam urna convergencia entre o contexto europeu e o brasileiro. Assim sendo, essa crítica, que aponta tal tendencia como superficial e forgada, é especialmente válida frente algumas apropriagoes da historiografía francesa na análise da realidade brasileira (pp. 95-96). Essa, contudo, nao foi urna peculiaridade da ciencia psicológica no Brasil. Como sabemos, em diversas áreas do conhecimento esse fenómeno colonialista ocorreu. Até hoje, no Brasil, avaliadores de diferentes universidades brasileiras expressivas, utilizam criterios de pontuagao de currículos que escalonam de maneira inferior os artigos publicados em periódicos nacionais em relagao aqueles publicados em periódicos estrangeiros. Ou seja, ao entender a chegada do funcionalismo no Brasil estamos compreendendo, também, urna lógica de aplicagao e mérito científico no contexto nacional, que recaiu nao apenas na Psicología, mas fundou todo o caldo cultural no qual se instalaram ideologías, universidades e centros de pesquisas. 6. Psicología: urna profissao liberal ou área de políticas públicas? A ideia básica do funcionalismo, de que o único conhecimento válido é aquele que pode ser aplicado, é bom lembrar, tomou fólego no cenário internacional por conta do pragmatismo norte-americano, cujas raízes remontam o uso do conhecimento no fortalecimento dos servigos capitalistas. Isto porque, no inicio do século XX, quase tudo que se entendia como prestagao de servigo, era produto de mercado, e nao política pública. Entao, quando hoje procuramos entender como a psicología alcangou as políticas públicas de saúde no Brasil, é indispensável compreender o papel funcionalista que o fazer psicológico ocupou durante as primeiras décadas do século XX. Daí que Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 -. * podemos entender a fragilidade com a qual penetramos esse mundo de prestagáo de servigos: quase nada maestrados pelo Estado, mas regulados pelo mercado liberal - algo que afeta sobremaneira, inclusive, a técnica e o manejo de determinados acompanhamentos psicológicos. A Psicología dita aplicada, heranga do funcionalismo, é descrita por alguns autores norte-americanos como fruto de financiamentos capitalistas que, contudo, nao afetariam os resultados fináis do conhecimento produzido. Na verdade, sob nosso ponto de vista, esse é um pressuposto equivocado, onde os autores pressupoem neutralidade científica, tal como exemplificamos a seguir - em trecho da obra de Schultz & Schultz (2009), reconhecidos autores norte-americanos contemporáneos: pesquisa experimental sólida pode ser financiada por urna entidade corporativa de grande porte, sem ditar ou prejudicar os resultados. Um efeito mais duradouro foi saber que psicólogos podiam ter carreiras bem-sucedidas e financeiramente recompensadoras em psicología aplicada, sem desafiar sua integridade profissional (p.190). Nesta obra, os autores partem de casos particulares para justificar esse argumento. Por exemplo, mencionam o clássico caso da empresa Coca-cola, que em 1909 contratou um psicólogo experimentalista para provar que a cafeína presente na bebida fabricada nao produziria alteragoes comportamentais significativas, nem danos á saúde humana. Através de pesquisas experimentáis, em laboratorio, o psicólogo provou aquilo a que foi pago para provar, a Coca-cola livrou-se da fase crítica de um processo judicial grave, e os entusiastas da psicología aplicada aplaudiram as possibilidades de mercado que se abriam para a nova ciencia. Contudo, para além dos casos particulares, mas considerando o desenvolvimento científico da Psicología de maneira geral, podemos dizer que ao mesmo tempo em que foi útil obter aplicagao de conhecimento ás questoes cotidianas da sociedade, a origem dos financiamentos envolvidos influenciou de maneira determinante quais aplicagoes poderiam ser desenhadas. Esse processo - regulado pelo livre mercado - atendeu a demandas específicas e nada casuais no desenvolvimento histórico da Psicología durante todo o século XX. Desta forma, nao é de se surpreender que a Psicología tenha se prestado, durante longo período, a atender apenas a aplicagoes e perguntas de pesquisas oriundas do pensamento liberal, que pouco ou nada questionavam sobre o sistema e modelos de vida capitalistas, mas que, antes o contrario: questionavam a sanidade do sujeito que nao se adequasse a esse sistema. Esse foi o papel ocupado pelo conceito de "normalidade" ou "sanidade mental" que se instalou junto ao que denominamos como funcionalismo liberal ao longo do século XX em diferentes países do mundo. Como nos lembra Foucault, a contrapartida do conceito de normalidade foi o conceito de "anormalidade", recurrentemente associada ao crime, de modo que a patologizagáo deste ocorreu a partir de urna nova economía do poder (Foucault, 1972-5/2001). 7. O confronto entre o mercado liberal e as políticas públicas Históricamente, as dificuldades do Brasil em se apoiar sobre suas próprias referencias a respeito da normatizagáo de políticas públicas foi urna questáo que apareceu desde cedo, e agora está entrelagada á homogeneizagáo cultural, cuja internacionalizagáo do capitalismo vem promovendo nos últimos anos. O fenómeno pode ser entendido á luz de urna nova "lógica cultural", cujas implicagoes infligiram diretamente sobre a vida cotidiana. Jameson (1997) apontou esta nova lógica cultural do mundo como formadora de um novo género discursivo, que refletiu urna modificagáo sistémica no capitalismo existente. Neste sentido, a internacionalizagáo do capitalismo, bem como sua difusáo quase completa sobre o planeta, difere da suposta "globalizagáo do capital". Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 -. * Nao foi, de fato, o capital que foi globalizado - o que diluiría bastante a nogao de fronteiras entre as nagoes e entre as pessoas - mas o modelo capitalista que foi propagado com nunca houvera sido antes na historia da humanidade. Assim, nao é de se estranhar que boa porcentagem da populagao latino-americana use caigas "jeans", beba "coca-cola" ou coma sanduíche "McDonald's". Mas isto nao significa que estejamos vivendo em urna aldeia global pacífica, em um pluralismo que contemple as diferentes culturas e sem a existencia de fronteiras. Durante muitos anos, a maior parte dos movimentos sociais da América Latina defendía que o direito á igualdade fosse, antes de tudo, urna missao do Estado. Ao longo da década de 70 pudemos perceber, em toda América Latina, o regime centralizador do Estado apoiado, visivelmente, sobre o poder autocrático de governo. De modo geral, mesmo nos regimes democráticos, o próprio Estado foi, e ainda tém sido, ator ativo dos movimentos sociais na América Latina. Conforme Alain Touraine (1989), o protagonismo do Estado nos movimentos sociais acontece na América Latina porque ainda constituímos um tipo de sociedade dependente. Neste sentido, nossa dependencia garantiu, durante muitos anos, que o Estado fosse o principal agente do desenvolvimento económico - inclusive da organizagao das reivindicagoes sociais. Dessa forma, salientando o papel centralizador no desenvolvimento nacional dos países latino-americanos, Touraine (1989) salienta que o Estado: "intervém na sociedade civil, e até tao profundamente que, ñas sociedades dependentes, nao há separagao clara entre Estado e a sociedade civil, ainda que esta nao seja inteiramente absorvida por aquele como em outros regimes" (p. 183). O próprio sindicalismo, que em outras nagoes pode consistir em oposigao ao Estado, em defesa da sociedade civil, foi em boa parte controlado pelo Estado na América Latina. Touraine salienta exemplos como o México, ou a Argentina de Perón, demonstrando como o Estado controlou o sistema sindical nestes países. No Brasil houve, inclusive, a criagao de sindicatos pelo próprio Estado, no decorrer do governo de Getúlio Vargas. Durante a consolidagao do modelo neoliberal no Brasil, percebemos - ao longo de toda a década de 80 e 90 - um largo enfraquecimento das organizagoes da sociedade civil. Profundamente marcados pela dependencia do Estado, nossos movimentos sociais encontraram-se desprovidos de organizagao suficiente para confrontá-lo. Ocorre que, durante esse período, percebemos um deslocamento do poder controlador, que antes esteve ñas maos do Estado, para as maos do "mercado regulador". Ou seja, se antes o Estado mobilizava as empresas e todo o grupo de operarios na América Latina, em seguida foram as empresas que passaram a mobilizar e controlar as atividades do Estado. Tal fato parece ter confundido e, muitas vezes, imobilizado boa parte dos movimentos e organizagoes da sociedade civil. De acordó com Chomsky e Dieterich (1999), desde as últimas décadas do século XX sao as grandes corporagoes que de fato "governam" o mundo, que definem os rumos de capitais, as decisoes de guerra, os acordos internacionais, e mesmo as eleigoes em determinados países ditos "democráticos". Segundo o autor, o maior vilao dos interesses comuns da sociedade civil nao é mais o Estado, mas as grandes corporagoes. Compartilhamos com Chomsky, em sua entrevista a Dieterich (idem), sua visao crítica sobre o papel do Estado. Contudo, é importante assinalar que severos ataques ideológicos as instituigoes estatais nos últimos anos tém, muitas vezes, cunho de interesse privado, escamoteados pela defesa da liberdade individual. Neste sentido, embora determinados aspectos da autoridade de Estado constituam agoes ilegítimas, é necessário considerar que algumas instituigoes do Estado sao, ainda muitas vezes, as únicas capazes de incluir a participagao pública em detrimento da hiper-valorizagao do lucro, principalmente na sociedade latinoamericana. Um exemplo disso sao as políticas públicas de saúde, concretizadas Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 -. * através do SUS (Sistema Único de Saúde), que vem se consolidando no Brasil desde a promulgagao da Constituigao de 1988. Através dessas políticas, os indicadores de saúde da populagao melhoraram significativamente (Campos, Minayo, Akerman, Drumond Jr & Carvalho, 2006), e o confronto entre a saúde como produto de mercado versus um direito do cidadao passou a ter maior visibilidade. Por outro lado, é o próprio Estado quem fornece os caminhos de mercado para os interesses privados. As corporagoes privadas necessitam do Estado, mas este também zela pelas corporagoes. Urna vez que o giro de mercado hoje se baseia na especulagao financeira (capital financeiro) - e nao mais na produgao (capital industrial) - o simples deslocamento de aplicagóes financeiras pode alterar o cambio, elevar taxas de juros e causar danos significativos na economía de um país, e mesmo "quebrar" urna tradigao política de governabilidade. Neste sentido, o Estado governa a favor das corporagoes, antes de tudo, como urna forma de receber apoio recíproco no jogo das especulagóes financeiras. Como salientou Chomsky, em urna reflexao sobre o desenvolvimento do neoliberalismo na América Latina: Grandes corporagoes estao ocupando mais e mais setores da economía, de modo similar ao que ocorreu no inicio da industrializagao moderna no século XVIII, na Inglaterra. Existe um mercado, mas este é um mercado conduzido pelo estado, e o estado protetor é um elemento em crucial do qual dependem as corporagoes. Obviamente, também existem diferengas. Existe, por exemplo, urna grande expansao de capital financeiro, e a porgao do bolo que pertence ao capital financeiro é muito maior que antes. O capital financeiro tem se tornado dominante relagao ao capital industrial, e isto tem efeitos significativos (Chomsky & Dieterich, 1999, p. 89). Neste sentido, é impossível pensar em saúde pública sem levar em consideragao o jogo político e económico que sustentam determinadas estrategias de governabilidade. Na prática, a entrada da Psicología no SUS, por exemplo, faz parte de um grande cenário nacional no qual se constituiu a reforma psiquiátrica a partir dos movimentos sociais, sendo que, na conjuntura destes, é importante mencionar o protagonismo do movimento anti-manicomial no país durante os anos 90. 8. A chegada das práticas psicológicas ñas políticas públicas de saúde no Brasil O ingresso da Psicología ñas políticas públicas foi um processo lento, que ainda hoje se constrói em um terreno de muitas controversias e lógicas dispares. A própria nogao do que vem a ser público ou privado no Brasil sofreu ¡numeras contradigóes que superam as meras definigóes entre organizagóes da sociedade civil e o papel ideal do Estado. Jovichelovitch (2000) buscou compreender a relagao entre a esfera pública - enquanto um fenómeno histórico - e a formagao de representagóes sociais. Neste sentido, a autora entende que a emergencia da "esfera pública" está relacionada tanto com as transformagóes que ocorreram entre o público e o privado, como com o nascimento do individualismo. Neste sentido, nem o público, nem o privado, podem ser entendidos como "naturais", visto que sao produtos de transformagóes sociais. Entre outras coisas, a Psicología - de modo geral - tardou seu ingresso ñas políticas públicas justamente porque seu pressuposto epistemológico, na origem, era associado ao pensamento liberal, baseado na crenga do livre arbitrio do homem a despeito das suas condigóes materiais de existencia. A nogao de individualismo, Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 -. *• • fortemente presente no pensamento liberal, foi companheira inseparável da psicología aplicada norte-americana. Além disso - em nosso caso específico - o teor dos avangos científicos da psicología aplicada em servigos privados de atendimento psicológico, no modelo de consultorio, era favorável ao momento de governabilidade nos duros anos das ditaduras militares latinoamericanas. Spink (2003) aponta varios estudos sobre a organizagao do campo psicológico no Brasil, indicando que pelo menos até o final da década de 80, podemos entender a emergencia da psicología enquanto "técnica de disciplinarizagao" no contexto brasileiro (p.150). Urna vez que a Psicología transitou esse terreno pantanoso desde suas aplicagoes iniciáis no Brasil durante os anos 50, era de se esperar que as práticas psicológicas tivessem muita resistencia para ingressar as políticas públicas. Somente com o advento da Constituigao de 1988, que previa o SUS, bem como após a promulgagao do ECA (Estatuto da Changa e do Adolescente) em 1990 (Lei n. 8.069, 1990), o psicólogo brasileiro encontrou caminhos de práticas psicológicas associadas á implementagao de políticas públicas de saúde e de desenvolvimento social. Antes disso, boa parte das insergoes sócio-comunitárias estavam relacionadas a atividades voluntarias ¡soladas ou a projetos universitarios, ambos naoremunerados. Certamente que o despontar da reforma psiquiátrica no Brasil foi um elemento determinante nesse novo cenário nacional que se organizava. Assim, as políticas públicas de implantagao do SUS que surgiram durante os anos 90 emergiram precisamente no conluio das reflexoes advindas durante o processo da reforma psiquiátrica, fortalecendo no país, de modo geral, a concepgao de que os servigos substitutivos as internagoes psiquiátricas necessitavam do olhar processual de um profissional de saúde mental. Esse protagonismo foi traduzido na figura do psicólogo, capaz tanto de coordenar grupos, como de apoiar redes sociais ou intervir junto a pacientes em psicoterapia. O ingresso do psicólogo brasileiro no contexto hospitalar (tanto hospitais psiquiátricos como gerais) colaborou para o processo de consolidagao do profissional como parte das equipes de saúde (Angerami-Camon, 2006). Subentende-se, dessa imagem, o ingresso em um contexto institucional, que rompia com a primazia do paciente como propriedade do psicólogo, perspectivando um papel de co-responsabilidade no contexto das equipes interdisciplinares. A beleza da inovagao paradigmática nao deixou de traduzir-se, contudo, como um choque. Aprofundavam-se as discussoes teóricas sobre as possibilidades de aplicagoes clínicas em diferentes contextos, desde o papel da transferencia psicanalítica ao desempenho geral do psicólogo no ámbito dos acordos éticos de sigilo e co-responsabilidade pelo paciente junto com a equipe hospitalar. Um universo novo que se abria e ao mesmo tempo forgava um relevante debate interno disciplinar, algo que iniciou de modo mais consistente ao final dos anos 80 e adquiriu um caráter contundente ao longo dos anos 90 e durante toda a última década - justamente quando as leis regulamentadoras estabeleciam cargos de psicólogos em diferentes contextos da saúde, a partir dos aprimoramentos na implantagao do SUS e das políticas de saúde mental. Novas questoes apareciam. Onde ficava o papel simbólico da remuneragao na interagao clínica? O psicólogo, enquanto clínico, poderia ser um assalariado contratado pelo Estado para atender em políticas públicas? Entao, afinal, de que "Psicología" estamos falando? Ora, se nao estávamos mais propondo modelos pautados pelo mercado regulador, mas pelo Estado regulador, que novas possibilidades de práticas poderiam se abrir? 9. A forca das políticas nacionais de saúde sobre as práticas psicológicas contemporáneas Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 -. * As práticas psicológicas contemporáneas foram profundamente afetadas pelo ingresso do fazer psicológico ñas políticas públicas de modo geral, especialmente no contexto da saúde. O deslocamento de eixo disciplinar - inicialmente focado ñas demandas capitalistas justificadas pelo funcionalismo - passou a sofrer nos últimos anos uma inversao lógica importante. Uma vez que as políticas públicas passaram a contratar um número expressivo de psicólogos no Brasil, a prática profissional que antes era majoritariamente formada por uma legiao de profissionais liberáis, passa a ser expressivamente composta por profissionais contratados em cargos públicos: postos de saúde, CAP's (Centros de Atengao Psicossocial) e ambientes hospitalares. Neste sentido, as demandas abordadas pelo psicólogos passaram a incluir novos atores que buscam cuidados em saúde mental: o enfermo sem familia, a pessoa de baixo poder aquisitivo, os problemas relacionáis decorrentes de déficits cognitivos severos, entre outros. O fato histórico de que o advento da psicología científica havia ocorrido a partir da modernidade permitiu que a prática psicológica se estabelecesse sob uma zona de conforto - no ámbito dos profissionais liberáis. Contudo, atualmente, o marco do pensamento cartesiano, desde onde apoiávamos nosso método clínico (Foucault, 1976/1999), mostra-se irreversivelmente abalado. Podemos dizer que a lógica dos problemas sociais, amplamente perspectivada ñas políticas públicas de saúde, exige um ordenamento mais complexo - e quase nada linear - sobre a realidade, impulsionando as práticas psicológicas a vazarem pelas frestas do pensamento liberal, dualista e unicausal no qual se consolidou a própria modernidade. Assim, nos últimos anos, com o ingresso da Psicología ñas políticas públicas de saúde, encaramos a inexorável condigáo de revisar nosso paradigma epistemológico, sob o risco de ofuscar nosso ingresso na historia do pensamento científico através de uma curta trajetória. Afinal, a ciencia dita moderna continua sendo pragmática, de modo que o conhecimento psicológico no contexto da saúde precisou, antes de tudo, demonstrar que era aplicável e útil as populagoes identificadas nos estudos epidemiológicos. Ainda hoje nao podemos falar em "unidade" epistemológica na Psicología, mas certamente que a insergao ñas políticas de saúde nos conduziu, pelo menos, ao convivio com a ideia de "integragao" epistemológica entre os diferentes saberes psicológicos. Assim, ao passo que históricamente as grandes teorías psicológicas eram vistas como tentativas de discursos universais sobre o homem, hoje as diferentes influencias teóricas co-habitam as mesmas instituigoes de saúde, escrevem nos prontuarios dos mesmos pacientes, e necessitam de maneira inexorável encontrar alguma janela de diálogo. Essa condigáo de interlocugao entre as diferentes teorías psicológicas tem se mostrado um fenómeno relevante na formagao epistemológica da área, de modo que as teorías cada vez menos se pretendem universais na explicagao de fenómenos psicológicos, mas, sobretudo, contribuigoes complementares para a compreensao de realidades complexas. Nao se pode negligenciar o fato de que as políticas públicas, ao criarem vagas de emprego para o psicólogo, atuaram também como mercado regulador, sob a insignia do mercado de trabalho. Ou seja, a quebra com o modelo hegemónico do profissional liberal de psicología nao consistiu, na verdade, em nenhuma revolugao de classe. Contudo, certamente nos ancorou para uma maior aproximagao as demandas históricamente reprimidas pelas populagoes marginalizadas nos processos sócio-económicos, de modo que a populagao obteve - de maneira geral maior acesso á atengao integral em saúde mental e cuidados psicológicos. Outro aspecto desse momento histórico, é que a entrada nos cargos públicos de saúde impactou a formagao profissional na medida em que a grande maioria das vagas nao foram - nem tem sido - ofertadas para especialistas nesta ou naquela teoria, mas sim para a figura de um presumido psicólogo "generalista", sem qualquer predicativo que o qualifique. Assim, se por um lado as políticas públicas produziram resultados significativos no caminho de uma integragao epistemológica Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 -. * na área teórica, é também verdade que nao tém valorizado as diferentes especificidades de atuagao do psicólogo em seus campos (psicólogo social, clínico, educacional, etc.). Em nosso levantamento de dados, por exemplo, nao identificamos nenhum concurso público no Brasil que tenha incluido em seu Edital para psicólogo em hospitais, qualquer pré-requisito de especialidade em psicología clínica ou hospitalar. Este levantamento foi parte de urna pesquisa concluida que realizamos a partir do Departamento de Psicología da UFSC, intitulada Psicología e SUS: um estudo sobre os fazeres psicológicos ñas políticas públicas de saúde (Zurba, 2009). A gravidade desse procedimento reside no fato de que, em muitos casos, o profissional selecionado - cujo processo de selegao foi apoiado básicamente em provas escritas - pode-se mostrar inapto no processo de atendimento a pacientes. Porém, a despeito de qualquer dificuldade na consolidagao do papel profissional do psicólogo junto as políticas públicas de saúde, vale ressaltar que este é um momento histórico muito peculiar e recente, apontando muitos indicios de que se trata de um momento de transigao. Um dos grandes impulsos que a saúde pública vem oferecendo á Psicología nos últimos anos é a necessidade constante de interlocugao interna e também interdisciplinar, forgando-nos a urna quebra paradigmática importante. A quebra reside no ponto de partida: toda atengao psicológica em saúde depende de um olhar sociológico sobre a constituigao de sujeito e produgao de síntomas, o que tem nos levado a superagao de modelos lineares e pretensamente universais na explicagao dos fenómenos psicológicos. 10. Considerares fináis A Historia nunca é "a verdadeira", mesmo quando nao é "falsa". Ela nao se presta a este tipo de classificagao, pois ela nao é um fato, nem urna seqüéncia deles. Ela somente pode ser construida a partir de narrativas sobre um conjunto de fatos nao lineares - que assumem significados a posterior'!. Portanto, a historia é um processo que se transforma em narrativa. Neste sentido, o processo histórico é dinámico e coerente, possibilita incontáveis oportunidades e desfechos, segundo a inexorável liberdade do homem em produzir-se a si mesmo. Podemos, assim, entender a "lógica histórica" (Thompson, 1981). A "historia" também é um espago de subjetivagao que suscita determinantes em nossos mundos e escolhas. É no processo histórico que podemos identificar as possibilidades e limitagoes que influenciaram modelos de produgao de conhecimento durante o desenvolvimento da humanidade. Neste sentido, por exemplo, nao foi apenas o sorriso enigmático da "Monalisa" de Leonardo da Vinci que provocou grande impacto no mundo das artes, tal como poderia pensar um observador precipitado. Mas no processo histórico vamos perceber que a balbúrdia em torno de "Monalisa" ocorreu por conta dos duros anos de "trevas" culturáis que o antecederam, de modo que a obra assumiu sentido de ruptura. Mas somente entendemos a ruptura transversal quando observamos o processo longitudinal da historia: após centenas de anos alguém se atrevía a retratar um ser humano. A obra "Monalisa" era urna heresia: apenas urna mulher, sem sugestpes divinas, sem auréolas, sem relagao com Jesús Cristo, nao era Nossa Senhora. É impossível compreender a obra de Da Vinci sem observar os determinantes históricos que o constituíram: essa obra e seus impactos nao poderiam ter aparecido anos antes, nem anos depois. Ela está localizada, circunscrita e temporalizada justamente onde a historia Ihe permitiu que aprouvesse, no Renascimento. Nem antes, nem depois. Nada é casual no processo histórico. Na historia das práticas psicológicas, observamos que ¡números determinantes suscitaram modelos, enterraram outros, e fortaleceram paradigmas que hoje entendemos como "verdadeiros" na Psicología contemporánea. Assim, quando nos Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Zurba, M. C. (2011). A historia do ingresso das práticas psicológicas na saúde pública brasileira e algumas conseqüéncias epistemológicas. Memorándum, 20, 105-122. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 indagamos sobre quais modelos de Psicología podemos realizar no Brasil de hoje, precisamos nos remeter ao processo histórico que nos constituiu. E é dessa forma que nosso olhar necessita repousar sobre a historia de nossa "latinoamericanisse", sobre a nossa marginalidade global, bem como sobre nossa criatividade cultural. Existem varias historias da Psicología, nao urna única. Refletimos neste trabalho um pouco da historia da Psicología desde o ponto de vista de nossa "brasilidade", com o intuito de que nos apropriemos de práticas psicológicas tao nossas quanto o acarajé, o caldo de cana ou o doce de leite. Assim, com propósitos claros, o que fizemos aqui foi urna narrativa. Referencias Angerami-Camon, V. (2006). Psicología da saúde. Sao Paulo: Thomson Learning. Aristóteles (2006). De anima (M. C. G. Reis). Sao Paulo: Ed. 34. (Original de 384322 a.C). Brosek, J. & Massimi, M (Orgs.). (1998). Historiografía da psicología moderna. Sao Paulo: Loyola. Campos, G. W. S., Minayo, M. C. S., Akerman, M., Drumond Júnior, M. & Carvalho, Y. M. (Orgs.). (2006). Tratado de saúde coletiva. Sao Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Fiocruz. Campos, R. H. F. & Nepomuceno, D. M. (2007). O funcionalismo europeu: Claparéde e Piaget em Genebra, e as repercussoes de suas ideias no Brasil. Em Jacó-Vilela, A. M., Ferreira, A. R. L. & Portugal, F. T. (Orgs.) 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Atua amplamente no campo da psicología da saúde a partir de atividades de ensino, pesquisa e extensao universitaria. Atualmente coordena o PET-Saúde (Programa de Ensino pelo Trabalho na Saúde - Ministerio da Saúde) junto ao Curso de Psicología da UFSC. Contato: [email protected] Data de recebimento: 16/11/2010 Data de aceite: 24/05/2011 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/zurba01 Abrao, J. L. F. (2011). As contribuigoes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálise de changas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930. Memorándum, 20, 123-134. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 As contribuicóes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálise de criancas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930 The contributions of Julio Pires Porto-Carrero to the diffusion of the psychoanalysis of children in Brazil in the 1920 and 1930 decades Jorge Luís Ferreira Abrao Universidade Estadual Paulista Brasil Resumo As idéias relativas á psicanálise de changas comegaram a ser difundidas no Brasil na década de 1920, por profissionais ligados a medicina e a educagao. Assim, este artigo tem por objetivo apresentar as contribuigoes de Julio Pires Porto-Carrero na introdugao das idéias relativas á psicanálise de changas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930, tendo como foco a educagao. Mediante pesquisa bibliográfica foram identificados todos os trabalhos do autor que empregavam idéias psicanalíticas para discutir temas relativos á educagao. As conclusoes indicam que, em consonancia com as novas propostas educacionais surgidas no país na década de 1920, o autor dedicou-se a difundir conceitos psicanalíticos entre educadores, partindo do pressuposto de que urna melhor compreensao da crianga com base na psicanálise poderia favorecer seu desenvolvimento e o processo de aprendizagem. Esta iniciativa, além de conferir legitimidade social á psicanálise, permitiu o surgimento de urna prática mais abrangente na psicanálise de changas. Palavras-chave: Julio Pires Porto-Carrero, psicanálise, educagao, Brasil. Abstract The ideas related to the psychoanalysis of children began to be disseminated in Brazil in the 1920's, by professionals connected to medicine and education. Therefore, the present article aims showing the contributions of Julius Pires PortoCarrero in the introduction of ideas referred to psychoanalysis of children in Brazil from 1920 to 1930, focusing on education. Through bibliographic research all of the author's work that used psychoanalytic ideas to discuss themes related to education were identified. The conclusions indícate that, in agreement with new educational proposals emerged in the country in the 1920s, the author devoted himself to spread psychoanalytic concepts among educators, assuming that a better understanding of the child based on psychoanalysis could support its development and also the learning process. Besides conferring social legitimacy to psychoanalysis, this initiative has enabled the arising of a more comprehensive practice in child psychoanalysis. Keywords: Julio Pires Porto-Carrero, psychoanalysis, education, Brazil Introdugao Ainda que o marco inaugural da psicanálise possa ser situado em 1900, com a publicagao do livro A ¡nterpretagáo dos Sonhos por Sigmund Freud (1900/1987), os primeiros registros relativos a introdugao das idéias freudianas no pais apontem para o ano de 1899, ocasiao em que o psiquiatra Juliano Moreira (1873-1933), fez as primeiras referencias as idéias de Freud em sua cátedra de psiquiatría da Faculdade de Medicina da Bahia (Perestrello, 1992), foi somente a partir da década de 1920 que a psicanálise passou a ser difundida de forma mais efetiva no país, Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Abrao, J. L. F. (2011). As contribuigoes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálise de criangas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930. Memorándum, 20, 123-134. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 ganhando expressao em diferentes dimensoes da vida cultural e científica em desenvolvimento nos grandes centros urbanos, notadamente Sao Paulo e Rio de Janeiro. O período compreendido entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, marca o epicentro de urna serie de transformagoes entre os quais figuram: o inicio do processo de industrializagao e urbanizagao do país, o que gradualmente levou a urna relativizagao da influencia das oligarquías agrarias; na esfera cultura, a Semana de Arte Moderna de 1922, representou urna ruptura com a arte oficial vigente até entao (Haudenschild, 2004); no plano educacional, a "Escola Nova" introduzida por educadores como Anízio Teixeira (1900-1971) surgia em oposigao ao ensino tradicional (Abrao, 2006), no plano político destacasse o movimento político-militar conhecido como Coluna Prestes surgido em oposigao a República Velha que se estendeu de 1925 a 1927 e, por fim, a psiquiatría, que comegava a ganhar contornos mais nítidos enquanto especialidade independente da neurología dirigia-se para o campo da prevengao em saúde mental (Costa, 1976). É neste contesto que a psicanálise surgirá como idéia ¡novadora aproximando-se de varias áreas do conhecimento científico, de tal forma que ñas primeiras décadas do século XX, a psicanálise nao foi vista somente como um recurso técnico voltado ao tratamento da doenga mental, mais do que isto, os autores brasileiros dedicados ao tema entendiam a psicanálise como um arcabougo teórico passivel de ser aplicado a diferentes áreas do conhecimento como a educagao, a literatura e a psiquiatría. Seguindo a trilha aberta por Perestrello (1992) e Mokrejs (1993), podemos identificar como precursores (1) do movimento psicanalítico no Estado do Rio de Janeiro os nomes de: Arthur Ramos (1903-1949), Antonio Austregésio (18761961), Medeiros e Albuquerque (1867-1934), Henrique de Brito Belfort Roxo (1877-1969), Mauricio de Medeiros (1885-1966), Carneiro Ayrosa, Deodato de Moraes, Gastao Pereira da Silva (1897-1987), Neves-Manta (1903-?) e Julio Pires Porto-Carrero (1887-1957). Estes autores durante as primeiras décadas do século XX, ou mais específicamente durante os anos de 1920 e 1930, destacaram em seus textos o valor da teoría psicanalítica para a compreensao do ser humano e dos fenómenos sociais, bem como seu efeito terapéutico para o tratamento da doenga mental. Cada um destes teóricos, a seu modo, colocou em relevo um ou outro aspecto da psicanálise, que considerava mais relevantes no exercício de sua atividade profissional. Dentre eles destacamos o nome de Julio Pires Porto-Carrero tanto por sua regularidade na divulgagao da psicanálise, neste período, quanto pela recorréncia de um tema em sua obra, qual seja: a aproximagao entre educagao e psicanálise, delimitando os contornos que resultarao no surgimento da psicanálise de criangas no Brasil, anos mais tarde. Consideracóes metodológicas O presente artigo surge com o objetivo de apresentar as contribuigoes de Julio Pires Porto-Carrero na introdugao das idéias relativas á psicanálise de criangas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930, tendo como foco a educagao. Esta delimitagao justifica-se urna vez que em levantamentos anteriores (Abrao, 2001) verificou-se a relevancia da obra de Porto-Carreiro no que se refere á difusao da psicanálise e, particularmente, da psicanálise de criangas, no período em questao. Sua projegao e credibilidade no meio científico da época e a assiduidade com que publicou sobre o tema, fizeram com que este autor tivesse grande influencia nao só na difusao da psicanálise de criangas no Brasil, mas também na formagao de profissionais da educagao com influencia psicanalítica. Desta forma, empreendemos urna investigagao (2) de caráter histórico sobre os trabalhos publicados por Julio Pires Porto-Carrero em livros, jomáis e revistas científicas compreendidos entre as décadas de 1920 a 1930, com o intuido de identificar as publicagoes que versassem sobre psicanálise, tema sobre o qual o autor dedicou-se com considerável regularidade. Posteriormente, fizemos urna Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Abrao, J. L. F. (2011). As contribuigoes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálise de criangas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930. Memorándum, 20, 123-134. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 selegao dos textos destacando aqueles que fizessem referencia direta á psicanálise de criangas ou que veiculassem informagoes relativas á aplicagao da psicanálise na esfera educacional. Considerando que, em um primeiro momento, a difusao da psicanálise de criangas no Brasil foi marcada pela introdugao da psicanálise na educagao, com a finalidade de tornar a educagao infantil menos repressora, condigao que, em tese, garantiría o desenvolvimento de individuos saudáveis (3). Urna vez realizado este procedimento chegamos a um conjunto de trabalhos publicados por Julio Pires Porto-Carrero que se constituiu no objeto de análise deste estudo, quais sejam: A psychanalyse na Liga Brasileira de Hygiene Mental (1929b); O carácter do escolar segundo a psychanalyse (1929g), Instrucgao e educagao sexuais (1929e); Leitura para criangas: ensaio sob o ponto de vista psychanalytic (1929f); A arte de perverter: applicagao psychanalytica a formagáo moral da changa (1929a); Educagao sexual (1929d); O que esperamos dos nossos filhos (1930) e A Psicología profunda ou psicanálisee (1932). As conclusoes advindas da análise deste material estao organizadas neste artigo, de tal forma que inicialmente apresentaremos um esbogo biográfico de Julio Pires Porto-Carrero, destacando sua trajetória profissional, seu encontró com a psicanálise e sua insergao no meio científico da época. Posteriormente, nos dedicaremos a urna análise pormenorizada sobre as idéias psicanalíticas propaladas por este autor, no que concerne a psicanálise de criangas e a articulagao destas idéias com a educagao de entao. Um breve esbogo biográfico Entre os precursores (4) da psicanálise no Brasil, o nome de Julio Pires PortoCarrero ganha particular destaque em virtude de sua influencia e credibilidade enquanto médico e professor universitario. Natural do Estado de Pernambuco, onde iniciou seus estudos Porto-Carreiro formou-se pela Faculdade Nacional de Medicina do Rio de Janeiro. Tornou-se, em 1929, Professor Catedrático de Medicina Legal da Faculdade de Direito da Universidade do Rio de Janeiro, tendo obtido também, provavelmente na mesma época, o título de Membro Honorario da Academia Nacional de Medicina (Campos, 2001). Porto-Carrero foi, como ele mesmo se denominava, "um fanático da psychanalyse, que estudo há bons dez anos" (Porto-Carrero, 1929h, p. 22), tendo se dedicado a aprender alemao para ler Freud no original. A relevancia conferida a este autor repousa na condigao privilegiada que ocupou na psicanálise do Rio de Janeiro, condigao esta oriunda de urna divulgagao assídua e mesmo apaixonada das idéias freudianas entre seus conterráneos e pela iniciativa bastante precoce na aplicagao terapéutica do método psicanalítico. Estas iniciativas de Porto Carrero foram bem acolhidas tanto no meio psiquiátrico quanto no educacional, fazendo com que suas idéias relativas á psicanálise ganhassem importancia e influenciassem outros profissionais. Entre os trabalhos de cunho psicanalítico que publicou ao longo de sua vida, podemos destacar: Ensaios de Psychanalyse (1929d), no qual se encontram compendiados urna serie de conferencias apresentadas ao longo dos anos de 1926 a 1929, A Psicología Profunda ou Psychanalyse (1932), Sexo e Cultura (1933a) e Psychanalyse de Urna Civilizagao (1933b), além de varios artigos publicados em revistas científicas. Analisando as contribuigoes de Porto-Carrero no que concerne á difusao da psicanálise no Brasil na década de 1920, a pesquisadora da Faculdade de Educagao da USP, Elisabete Mokrejs (1993), enfatiza a preocupagao didática presente na obra deste autor.destacando suas contribuigoes nos seguintes termos: Movido por urna preocupagao eminentemente didática, seus escritos apresentam minudéncias que, por vezes, se tornam recurrentes. Persiste, Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Abrao, J. L. F. (2011). As conthbuigoes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálise de changas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930. Memorándum, 20, 123-134. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 ao longo dos textos, urna preocupagao no sentido de esclarecer o leitor sobre as últimas reformulagoes de Freud no tocante a sua obra. (...) Observa-se em Porto-Carrero um difuso pensamento científico. Ao mesmo tempo que assinala a importancia dos fatores psíquicos na teoria de Freud, é capaz de sugerir que a felicidade do homem está abstrita as leis do mecanismo do relacionamento heterossexual. Ácima do ajustamento do individuo situa-se o interesse pela preservagao da especie, o que estaría assegurado mediante orientagao sexual. Neste sentido, convergiam seus interesses pelos temas da "eugenia" e pelas idéias totalitarias que, embora nao claramente especificadas, primavam pela agao da élite e do Estado na condugao dos interesses dos individuos (pp. 156-157) Cabe atribuir a Porto-Carrero a iniciativa pioneira na aplicagao terapéutica do "método de Freud", como ele se referia muitas vezes á psicanálise, quando esta iniciativa era ainda bastante rara no país, devido as dificuldades de se conduzir um tratamento psicanalítico sem a adequada formagao. Através de alguns indicios extraídos da própria obra do autor, podemos situar a origem de sua prática como "analista selvestre" (5), segundo sua própria opiniao. Ao final do artigo O carácter do escolar segundo a Psychanalyse, apresentado em 1927, durante a I Conferencia Nacional de Educagao, encontramos urna passagem bastante significativa que nos possibilita precisar a cronología dos acontecimentos. Escreve o autor: "Nove anos de estudo da psychanalyse e quatro de prática do methodo de Freud, autorizamnos a alguns juízos próprios" (Porto-Carrero, 1929g, p. 58). A aritmética nos autoriza a pensar, portanto, que em 1918, Porto-Carrero já se dedicava ao estudo da psicanálise e que possivelmente, no final de 1923, fazia suas incursoes na clínica psicanalítica. As iniciativas de aplicagao terapéutica da psicanálise ganharam maior expressao quando em 1926, foi criado, junto a Liga Brasileira de Higiene Mental, um servigo de psicanálise, cuja coordenagao foi conferida a Porto-Carrero. Por esta ocasiao, ao que indicam as notas do autor, a aplicagao terapéutica do método psicanalítico era realizada com alguma freqüéncia, pois o autor afirma: "Tem assim ocorrido ao consultorio especial da Liga varios doentes em busca de tratamento pelo methodo de Freud e outros sao para elle encaminhados, dos consultorios gerais" (PortoCarrero, 1929b, p. 27). Tomando por base a cronología apresentada ácima, podemos afirmar que PortoCarrero antecedeu Durval Marcondes (1899-1981) (6), pioneiro da psicanálise em sao Paulo, na aplicagao terapéutica da psicanálise, contudo nao nos é possível atribuir com seguranga ao primeiro a precedencia nacional na aplicagao clínica do método de Freud. Em artigo publicado em 1995, Perestrello é levada a reformular sua conclusao inicial de que Porto-Carrero foi primeiro a aplicar o método psicanalítico no país. Comenta a autora: "Ao obter, e por fim ler, a tese de Genserico Pinto comprovei que Juliano atendeu um paciente e Genserico quatro, isto em 1924, quer dizer anteriormente (ou concomitantemente) a Porto-Carrero" (Perestrello, 1995, p. 668). Apesar das iniciativas ¡novadoras que empreendeu tanto na divulgagao da psicanálise, quanto na aplicagao terapéutica do método psicanalítico, as contribuigoes de Porto-Carreiro á psiquiatría foram gradualmente ganhando forte conotagao eugénica, cujo reflexo mais evidente foi sua atuagao na Liga Brasileira de Higiene Mental na década de 1930. Desta forma, podemos concluir que apesar de nao ter realizado formagao psicanalítica praticou a psicanálise no tratamento de Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Abrao, J. L. F. (2011). As conthbuigoes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálise de changas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930. Memorándum, 20, 123-134. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 pacientes neuróticos a principal aproximagao entre psicanálise e psiquiatría proposta pelo autor figurava no campo da profilaxia. Porto-Carrero viveu no Rio de Janeiro até a data de seu falecimento ocorrido em 1937. A difusao das idéias psicanalíticas entre educadores Para urna melhor compreensao das aproximagoes entre psicanálise e educagao propostas por Porto-Carreiro (7), destacaremos de sua obra, além de alguns artigos, dois livros que apresentam fecundo material para a discussao que nos propomos a conduzir, sao eles: Ensaios de Psychanalyse (1929d), e A Psicología Profunda ou Psicanálise (1932). O volume Ensaios de Psychanalyse é constituido por 18 conferencias que ocorreram ao longo dos anos de 1926 a 1929, das quais sete sao dedicadas ao tema da crianga .Os artigos nao estao compendiados em ordem cronológica, o que sugere urna organizagao pautada, provavelmente, em criterio didático. O primeiro artigo, Psychanalyse: A Sua Historia e o Seu Conceito, constitui-se na aula inaugural ministrada no curso de Psicanálise Aplicada á Educagao, ocorrida em vinte de abril de 1928. O autor inicia a conferencia comparando o conceito de amor, presente no Phedro e no Banquete de Platao, com o conceito de libido apresentado por Freud. Em seguida, atém-se a descrever a trajetória profissional de Freud e a expor os principáis aspectos da teoria psicanalítica por ele desenvolvida. Destaca também a contribuigao de alguns seguidores do Mestre de Viena, citando nominalmente Wilhelm Stekel, Otto Rank, Carl Gustav Jung, Alfred Adler, Karl Abraham e notadamente Hermine Hug-Hellmuth e Anna Freud que, nesta ocasiao, iniciava seu trabalho como psicanalista de criangas. Por fim, destaca os principáis eventos que marcaram a historia da psicanálise no Brasil até aquela época. Ao analisarmos este material, fica flagrante a intengao de Porto-Carrero em introduzir os professores na doutrina freudiana através da exposigao sistemática de seus fundamentos. Comenta ele: "A psychanalyse pode ser desconhecida de todos os profissionais; mas ignorarem-na o médico e o mestre - é verdadeiro peccado" (Porto-Carrero, 1929h, p. 23). Porém, diferentemente do médico a quem é conferida a fungao de tratar, ao mestre cabe a incumbencia de moldar a mente da crianga que se encontra em formagao, de modo a garantir-lhe um desenvolvimento emocional saudável. Para tal torna-se necessário que o modelo educacional em vigor contemple as novas descobertas sobre o psiquismo infantil. É com esta intengao que o autor invoca a adogao dos conhecimentos psicanalíticos na educagao, salientando: Veréis como a psychanalyse vos abrirá os olhos, para comprehenderdes as excellencias e os defeitos de vossa pedagogía. Veréis o quanto é mau educar recalcando e o quanto é óptima a sublimagao, quando nao é possível a destruigao, a condemnagao dos complexos (p. 23). Nao podemos deixar de lembrar que a linha de raciocinio desenvolvida pelo autor insere-se no campo da higiene mental, tao em voga ñas primeiras décadas deste século. Isto fica mais evidente em um trabalho (8) apresentado alguns anos antes, do qual extraímos a seguinte citagao: "Urna pergunta pode cair dos labios do leitor: tem cabimento a psychanalyse, methodo therapéutico, numa campanha de hygiene mental?" Mais adiante encontramos a resposta: Se attentarmos ainda em que a liga pode influir, pela psychanalyse, na educagao das escolas primarias, na dos patronatos de menores, na dos pequeños contraventores entregues hoje a um tribunal especial, veremos que já será bem larga Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Abrao, J. L. F. (2011). As contribuigoes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálise de criangas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930. Memorándum, 20, 123-134. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 a espinera de acgao em que poderemos agir (Porto-Carrero, 1929b, pp. 27-28). Desta forma, a psicanálise aplicada a educagao assume urna fungao mais ampia , nao se limita somente a amainar os conflitos mais prementes que interferem na educagao do aluno, muito além disso, procura salvaguardar a crianga de possíveis desvíos de conduta. O artigo seguinte, intitulado O Carácter do Escolar Segundo a Psychanalyse, foi proferido no Primeiro Congresso Nacional de Educagao, ocorrido em Curitiba, no ano de 1927, e publicado pela primeira vez no ano seguinte, na Revista Brasileira de Psychanalyse. Vemos esbogar-se neste trabalho urna possibilidade de utilizagao da psicanálise na esfera da educagao, embora circunscrita ainda ao campo teórico, auxiliando o professor a compreender diversas manifestagoes afetivas de seus alunos. Porto-Carrero (1929g) discrimina seis tipos de caráter mais freqüentes entre os alunos, os quais procura explicar a partir da psicanálise. O primeiro grupo apresentado é o das criangas quietas. Os tímidos sao aqueles que devido ao sentimento de culpa decorrente de seus desejos sexuais buscam ser punidos. Assim, a crianga tímida torna-se desastrada com a intengao inconsciente de ser punida, o que Ihe alivia a angustia. Os impassíveis que nao se comovem com nada, agindo como se estivessem alheios ao mundo, manifestam-se de tal forma em fungao do deslocamento da libido do objeto edípico para o eu. Os sonsos, que comem a sardinha com a mao do gato, tomando o adagio emprestado de PortoCarrero, apresentam um nítido sentimento de ambivalencia, dedicam-se aos afazeres escolares o suficiente para nao serem punidos, porém nao hesitam em valer-se de meios nao lícitos para atingirem este fim. Na categoría das criangas travessas, encontramos tres classificagoes. As naturalmente travessas, que devido as constantes frustragoes de seus impulsos sexuais, sejam eles oráis ou genitais, tendem a desviar sua libido dos alvos sexuais canalizando-a para outros objetos ou transformando-a em movimento. Os perversos, sao criangas que obtém satisfagao libidinal por meio da agressao, o que Freud definiu como sadismo, "Este sadismo está singularmente ligado a phase de localizagao anal da sexualidade" (Porto-Carrero, 1929g, p. 51). Os agitados, caracterizam-se pela ambivalencia dos afetos, oscilando entre alegría e cólera, "buscam no mundo exterior a satisfagao da libido e nelles prepondera o complexo de Édipo" (p. 52). Na categoría das criangas rebeldes, o autor apresenta a seguinte distingao: os impulsivos, os emburrados, os reclamantes e os teimosos. Os impulsivos tém por característica a descarga súbita de seus afetos; os emburrados retraem-se frente as contrariedades do mundo, deixando de reagir a seus estímulos; os reclamantes, ao contrario, mais confiantes de si, apresentam urna exacerbagao do erotismo anal; os teimosos sao aqueles que nao conseguem conter seu impulso interior executando assim a agao proibida. Além dessas classificagoes, aponta a existencia das criangas distraídas, das mentirosas e das medrosas. Mais que um exercício diletante, de valor meramente especulativo, a classificagao proposta por Porto-Carrero tem urna fungao mais audaciosa, a de introduzir o mestre no pensamento freudiano, aproximando-o da teoria da sexualidade infantil. Isto confere á psicanálise urna utilidade prática no ambiente escolar, urna vez que a teoria da sexualidade possibilita compreender as manifestagoes afetivas dos alunos, e atentar para o fato de que diferentes tipos de caráter decorrentes de formas diversas de organizagao da libido - oral, anal, genital - merecem urna atengao educacional também diferenciada por parte do mestre. A educagao escolar guiada pelos principios psicanalíticos nao será o único foco de atengao de Porto-Carrero. Pois, sendo a educagao da crianga pequeña conduzida na familia, esta será de grande interesse, urna vez que "é na infancia pré-escolar que o individuo adquire o molde de seu carácter. Cada hora, nessas edades, forja urna Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Abrao, J. L. F. (2011). As conthbuigoes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálise de changas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930. Memorándum, 20, 123-134. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 pega fundamental do homem futuro" (Porto-Carrero, 1929a, p.142). Em 1926, o tema aparece esbogado em urna conferencia irradiada pela Radio Clube do Rio de Janeiro, intitulada: Educagao e Psyvhanalyse, para nos anos subseqüentes, ganhar contornos mais claros nos trabalhos: Instrucgáo e Educagao Sexuais (1929e), Educagao Sexual (1929c) e A Arte de Perverter: applicagao pysychanalytica a formagao moral da crianga (1929a) (9). Neste conjunto de trabalhos, Porto-Carrero destaca a necessidade de que a crianga receba na familia esclarecímentos com relagao a temas ligados a sexualidade, de forma a tornar a educagao sexual menos repressora. Apesar do grande valor atribuido á educagao no lar, Porto-Carrero (1929a) demonstra urna posigáo bastante pessimista com relagao ao sucesso desta tarefa. Enfatiza que Nenhum lar é superior a escola bem organizada. E no entanto, a parte mais difícil da educagao é a que se cumpre antes da escola; e os educadores da época pré-escolar pouco compreendem ou nada sabem da arte de cultivar a pequenina planta humana (p. 142). No curso das tres conferencias citadas ácima observamos urna exposigáo recorrente das idéias relativas á sexualidade infantil, enfatizando as diferentes fases do desenvolvimento da libido e apontando os riscos que urna educagao mal conduzida na primeira infancia pode provocar na formagao do caráter. Entende-se por educagao mal conduzida aquela que se sitúa perigosamente em margens extremas, rigorosamente repressiva ou ao contrario, proporcionando prazer excessivo. No tocante a este segundo caso, afirma Porto-Carrero: "Pelos estudos das changas viciosas e dos doentes neuróticos se tem notado que, toda vez que se cultiva o prazer localizado em determinada zona, elle se fixa, tendendo a persistir pela vida em fóra" (Porto-Carrero, 1929e, p. 71). Decorre daí sugestoes, como por exemplo, a de nao permitir as criangas o uso de chupetas, para evitar urna fixagáo da libido na zona erógena oral, sendo a atitude correta, a ser empregada pelos pais, a de criar condigoes para a sublimagáo da libido. Segundo Porto-Carrero, a educagao da crianga deve contemplar duas categorias: educagao sexual e instrugao sexual. A educagao sexual compreende urna serie de atitudes educacionais que visem proporcionar á crianga um desenvolvimento psícosexual saudável, nao reprimindo excessivamente os impulsos libidinais, táo pouco proporcionando prazer demasiado. Por instrugao sexual, entende-se o esclarecí mentó da curiosidade sexual da crianga, que deve ser proporcionada na medida de seu interesse e estar fundada invahavelmente em principios verdadeiros, devendo ocorrer inicialmente em casa pelos pais e posteriormente na escola pelo mestre. É neste sentido que encontramos, em 1932, a seguinte advertencia aos pais: "só os loucos e os cegos de espíritos preferem que os filhos recebam tal ensinamento dos colegas e fámulos, com tecnología pornográfica e nao rara experimentagáo por atos pervertidos." (Porto-Carrero, 1932, p. 223). Com relagao a atitude frente a educagao sexual de seus alunos, argumenta PortoCarrero (1929c) ser o caminho indireto o mais aconselhável: O ensino em pequeños grupos resolvería, talvez, o problema. Mas, ha melhor: nao fazer ensino sexual como aula autónoma; seguindo as regras ditadas para a mais tenra infancia: nao chamar a atengáo para o assumpto. Ainda aqui tendes o criterio da oportunidade. A propósito de varios outros assumptos, podéis abordar o problema sexual (pp. 126-127). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Abrao, J. L. F. (2011). As contribuigoes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálise de criangas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930. Memorándum, 20, 123-134. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Fechando a serie de trabalhos sobre educagao, presente nos Ensaios de Psychnalyse, encontramos a conferencia: Leitura para Criangas: ensaio sob o ponto de vista psychanalytico, que se constituiu na contribuigao de Porto-Carrero ao Segundo Congresso Nacional de Educagao, realizado em Belo Horizonte, em 1928. Demonstra neste trabalho, a partir das associagoes de paciente adultos, a influencia maléfica que as leituras infantis podem exercer sobre o psiquismo da crianga. Concluí sintetizando alguns principios que definem a boa leitura: isengao de conceitos homveis, de sentimentalismo, de misticismo e de alusoes simbólicas ao complexo de Édipo e de castragao. Entre os diversos temas que foram objeto de análise de Porto-Carrero ao longo de sua obra, a educagao continuará sendo recorrente. No livro A Psicología Profunda ou Psicanálise, obra destinada á difusao de conceitos freudianos, dos treze capítulos que compoem o volume, os dois últimos despendem maior atengao ao tema da crianga: Nos Dominios da Pedagogía e Educagao Sexual. Os dois capítulos condensam temas que já foram objeto de análise do autor em trabalhos anteriores, como o desenvolvimento psicossexual da crianga, o caráter do escolar e orientagao sexual para criangas. Entretanto, encontraremos alguns acréscimos de significativo valor para nosso estudo. Reconhece as diferengas entre a psicanálise de adultos e de criangas, urna vez que kpedanálise (psicanálise de criangas) exige, mais do que a psicanálise do adulto, o estudo do meio e a possível modificagao deste; a colaboragao dos pais ou seus substitutos, é indispensável, de qualquer maneira. (Porto-Carrero, 1932, p. 212, grifo do autor) Como decorréncia destas diferengas, o autor aponta a necessidade de utilizagao de alguns recursos indiretos para a compreensao do psiquismo da crianga: os desenhos livres, bem como a análise do conteúdo expresso em composigoes escolares e os erros nelas cometidos constituem-se em rico material para a análise do inconsciente. Salienta ainda, no referido texto, de forma inédita na literatura psicanalítica brasileira, a existencia do fenómeno transferencial na relagao da díade professor e aluno, considerando que a transferencia é urna condigao necessária para urna educagao satisfatória, visto que Nao há educagao eficiente, se o professor nao consegue que o aluno opere sobre o seu mestre urna transferencia total ou parcial da libido e se esta transferencia nao se passa, também, do mestre para o discípulo (Porto-Carrero, 1932, p. 214). O mérito de Porto-Carrero reside nao só em teorizar sobre psicanálise e educagao, mas também em tomar para si a responsabilidade de divulgar este conhecimento no Brasil, o que pode ser confirmado pela natureza de seus trabalhos, que na sua grande maioria sao constituidos por conferencias apresentadas em diferentes contextos, ora a um público especializado em congressos científicos, ora a urna platéia leiga através de programas de radio. Considerares fináis A título de conclusao, devemos considerar os alcances e limitagóes das contribuigóes de Julio Pires Porto-Carrero á difusao da psicanálise de criangas no Brasil. Inicialmente cabe considerar que este autor, assim como grande parte de seus contemporáneos das décadas de 1920 e 1930, tomaram a psicanálise como um constructo teórico aplicável a diferentes áreas do conhecimento, como a educagao, o direito, a psiquiatría, com o intuito de alargar a compreensao relativa ao Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Abrao, J. L. F. (2011). As contribuigoes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálise de criangas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930. Memorándum, 20, 123-134. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 101 í ó í psiquismo humano. Desta forma, apesar do pioneirismo na aplicagao clínica da psicanálise no Brasil, o elemento mais representativo da obra de Porto-Carrero pode ser localizado ñas aproximagoes que propós entre a disciplina freudiana e outras áreas do conhecimento, em particular a educagao. Encontramos nesta iniciativa urna agao de maior abrangéncia social, que teve o mérito de divulgar a psicanálise e sensibilizar outros profissionais para as contribuigoes que as idéias freudianas poderiam trazer á educagao. Ao promover a divulgagao da psicanálise entre educadores por intermedio de publicagoes, cursos e palestras, Porto-Carrero tinha por finalidade divulgar a teoria psicanalítica, apresentado os principáis conceitos desta teoria aos educadores, para que estes, de posse destas informagoes, pudessem langar um novo olhar sobre a crianga e seu processo de aprendizagem. Ao contextúa I iza rmos as iniciativas deste autor identificamos que as tentativas de aproximagao entre psicanálise e educagao estavam inseridas em um contexto mais ampio, qual seja: a transigao entre o ensino tradicional e a Escola Nova (10). Em consonancia com o ideario escolanovista, a psicanálise foi entendida por este autor como um modelo teórico capaz de alargar o entendimento das regras que regem o desenvolvimento infantil, permitindo a adogao de propostas pedagógicas mais adequadas para o atendimento de suas necessidades, o que, ao menos em tese, favorecería o processo de aprendizagem e conduziria a um desenvolvimento saudável. É importante salientar que a insergao da psicanálise no campo educacional proposta por Porto-Carrero, embora bem intencionada e tendo como linha de horizonte a implantagao de urna proposta educacional orientada pela psicanálise, na realidade nao ultrapassou o campo retórico. Suas agoes ficaram circunscritas á divulgagao da teoria psicanalítica entre educadores, com a finalidade de tornar os conceitos desta disciplina mais familiares , proporcionando um entendimento ampio das idéias de Freud. Ainda nao estava claro, ñas publicagoes deste autor, como deveria ser a prática pedagógica sustentada em principios psicanalíticos. Um redirecionamento das tentativas de aproximagao entre a educagao e psicanálise no Brasil será observado anos mais tarde por iniciativa de autores como Arthur Ramos (1939) que, partindo das primeiras reflexoes sobre o tema introduzidas no país, implantou urna prática de assisténcia a criangas com problemas escolares fortemente sustentada na teoria psicanalítica, cujo modus operandi se concretizava por intermedio da avaliagao psicológica da crianga e da orientagao de pais e educadores (Abrao, 2008). Assim, apesar de guardar alguma proximidade com as idéias de higiene mental, que encontravam forte expressao em seu tempo, e de ter a sua insergao como precursor do movimento psicanalítico no Brasil restrita á divulgagao da abordagem psicanalítica, o grande valor das contribuigoes de Porto-Carreiro reside no fato de que este autor teve importante expressao no meio científico, ñas primeiras décadas do século XX, contribuindo nao só para divulgar a teoria psicanalítica, mas também para conferir a estas idéias legitimidade social, abrindo caminho para desenvolvimentos subseqüentes. Referencias Abrao, J. L. F. (2001). A historia da psicanálise de criangas no Brasil. Sao Paulo: Escuta. Abrao, J. L. F. (2006). As influencias da psicanálise na educagao brasileira no inicio do século XX. Psicología: Teoria e Pesquisa, 22(2), 233-240. Abrao, J. L. F. (2008). A introdugao das idéias relativas á psicanálise de criangas no Brasil através da obra de Arthur Ramos. Memorándum, 14, 37-51. 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Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Abrao, J. L. F. (2011). As contribuigoes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálise de criangas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930. Memorándum, 20, 123-134. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Porto-Carrero, J. P. (1930). O que esperamos dos nossos filhos. Revista da Associagao Brasileira de Educagáo, 1(3),71-77. Porto-Carrero, J. P. (1932). A psicología profunda ou psicanálise. Rio de Janeiro: Guanabara. Porto-Carrero, J. P. (1933a). Sexo e cultura. Rio de Janeiro: Guanabara. Porto-Carrero, J. P. (1933b). Psicanálise de urna civilizagao. Rio de Janeiro: Guanabara. Ramos, A. (1939). A changa problema. Rio de Janeiro: Casa do Estudante do Brasil. Sagawa, R. (2002). Durval Mar condes. Rio de Janeiro: Imago. Notas (1) Empregaremos a expressao precursor no sentido definido por Marialzira Perestrello (1995). Para ela os precursores foram aqueles profissionais que, mesmo sem formagao psicanalítica, se interessaram pela psicanálise e promoveram a difusao destas ideias no país. Os pioneiros, por sua vez, foram aqueles que, após realizarem formagao psicanalítica, em sua grande maioria do exterior, passaram a aplicara psicanálise no Brasil. (2) Pesquisa realizada com apoio da FAPESP. (3) O surgimento de urna prática psicoterápica com criangas foi implementada no Brasil somente a partir da década de 1940 (Abrao, 2001). (4) A título de delimitagao histórica empregaremos a periodizagao proposta por Marialzira Perestrello (1995), ao definir as etapas que marcam o desenvolvimento histórico da psicanálise no Brasil. Segundo esta autora pode-se diferenciar tres momentos: o dos precursores, o dos pioneiros e o momento atual. Os precursores sao definidos como aqueles profissionais devotados á psicanalítica que, embora nao possuíssem urna formagao sistematizada na área, dedicavam-se a divulgar a psicanálise e, por vezes, a praticá-la como autodidatas; os pioneiros, constituem-se no primeiro grupo de psicanalistas propriamente ditos que, após terem concluido sua formagao, em muitos casos no exterior, dirigiram grande parte de sua atividade profissional para o ensino da psicanálise e para formagao de novos psicanalistas, e o momento atual, caracteriza-se pelo aumento do número de psicanalistas em atividade. (5) A expressao analista silvestre foi introduzida por Freud, em 1910, no artigo "Psicanálise Silvestre", para designar aqueles profissionais que exercem a psicanálise sem a adequada formagao, valendo-se apenas de um dominio teórico da mesma. (6) Durval Bellegarde Marcondes, desde o inicio de sua vida académica na Faculdade de Medicina de Sao Paulo, onde se formou em 1924, interessou-se pela psicanálise. Seguindo os passos do mestre e incentivador Franco da Rocha, de quem herdou o gosto e a dedicagao pela psicanálise, iniciou o atendimento de pacientes empregando a técnica de Freud nos últimos anos da década de 1920 (Sagawa, 2002). (7) É importante salientar que na primeira fase do desenvolvimento da psicanálise de criangas no Brasil, entre as décadas de 1920 e 1930, o surgimento desta especialidade esteve diretamente vinculado a educagáo. Neste período ainda nao existia no país urna prática clínica com criangas, de tal forma que a principal via de difusao da psicanálise de criangas no Brasil ocorreu por intermedio da educagáo, mediante a orientagao de pais e professores. (8) Trata-se do artigo A Psychanalyse na Liga Brasileira de Hygiene Mental (1929b). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Abrao, J. L. F. (2011). As conthbuigoes de Julio Pires Porto-carrero á difusao da psicanálise de changas no Brasil ñas décadas de 1920 e 1930. Memorándum, 20, 123-134. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 (9) O ano da primeira apresentagao do artigo A Arte de Perverter: applicagao psychanalytica a formagáo moral da crianga é ignorado, adotaremos assim, a data de sua primeira publicagao nos Ensaios de Psychanalyse. (10) Surgida em oposigao ao ensino tradicional a Escola Nova foi introduzida no país, a partir da década de 1920, por educadores como Anísio Teixeira. Esta nova filosofía educacional vía a crianga como um ser diferenciado do adulto, dotado de singularidade e com características de desenvolvimento próprias, de tal forma que a compreensao das singularidades que caracterizam o desenvolvimento infantil possibilitaria a organizagao de propostas pedagógicas mais adequadas as suas singularidades. Nota sobre o autor Jorge Luís Ferreira Abrao - Psicólogo, doutor em Psicología Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo Instituto de Psicología da Universidade de Sao Paulo. Professor Assistente Doutor do Departamento de Psicología Clínica da UNESP de Assis e do Programa de Pós-Graduagao em Psicología e Sociedade da mesma Universidade. Supervisor do Centro de Pesquisa Aplicada Dra. Betti Katzenstein. Contato: [email protected] Data de recebimento: 03/12/2010 Data de aceite: 22/03/2011 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/abrao02 Barreira, C. R. A. (2011). Da historia da fenomenologia á ética na psicología: tributo ao centenário de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserl. Memorándum, 20, 135-144. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 io¿- Da historia da fenomenologia á ética na psicología: tributo ao centenario de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserl From phenomenology's history to ethics in psychology: tribute to the centenarian of Philosophy as a Rigorous Science (1911) from Edmund Husserl Cristiano Roque Antunes Barreira Universidade de Sao Paulo Brasil Resumo A intimidade entre a historia da fenomenologia e a da psicología se constata por um percurso que apresenta brevemente alguns textos selecionados para extrair a concepgáo de vida ética que atravessa de modo continuo o trabalho de Husserl. Retomando o artigo centenario 'Filosofía como Ciencia Rigorosa' vé-se a compreensao histórica da fenomenologia resumindo concisamente a ética husserliana. Husserl entende haver urna enteléquia humana que pode ser identificada como um pré-sentimento que, no limite, visa á realizagáo do ser humano. O modo de realizagao, assim como é a consciéncia humana, é algo em aberto, mas nem por isto menos urna tensao e nem por isto nao sujeito a algumas leis que estarao intimamente apegadas á natureza temporal da própria consciéncia. A apercepgao do conjunto integral da própria vida pessoal, seguida de reflexao é o método ético geral. No conjunto da obra husserliana, a ética se confunde com o próprio fazer fenomenológico. Palavras-chave: fenomenologia; psicología; ética. Abstract The intimacy between the history of phenomenology and psychology's history is shown by a way that briefly presents some selected texts to extract the ethical life conception on Husserl works. By the centenarian article 'Philosophy as a Rigorous Science' the historie comprehension of phenomenology is visible as synthesizing de husserlian ethics. Husserl understands that there is a human entelechy which can be identified as a pre-feeling that, at the limit, is directed to the realization of human being. The way of realization, as well is the human consciousness, is something opened, but still a tensión e subject of laws attached to the temporal nature of consciousness flow. The apperception of integrality of personal life, followed by the reflexivity is the general ethical methods. In the husserlian work, ethics is mixed with the phenomenological action. Keywords: phenomenology; psychology; ethics. Introducao Urna fenomenologia da vida ética conforme desenvolvida pelo fundador desta corrente de pensamento, Edmund Husserl (1859-1938), reconduz os movimentos de reflexao as dimensoes vivenciais que a definem em fungao da experiencia do sujeito, isto é, guardando um fio condutor essencial em meio á variedade de experiencias. Esta caracterizagao, além de dizer respeito á problemática filosófica que nunca deixou de gerar produtivas polémicas em torno da fenomenologia husserliana, indica que a experiencia da vida ética tem também implicagoes para o campo da psicología contemporánea que devem comparecer no norteamento de Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 Barreira, C. R. A. (2011). Da historia da fenomenología á ética na psicología: tributo ao centenario de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserl. Memorándum, 20, 135-144. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 -,^¿ suas reflexóes, métodos e intervengóes. O objeto deste trabalho é justamente a esséncia da vida ética pessoal na fenomenología de Husserl, evocando-se o que se compreende como sua implicagao fundamental para a psicología. Os procedimentos que pautam este artigo buscam situar históricamente a fenomenología husserliana tal e qual a mesma se entendeu, o que significa compreender aspectos das polémicas com as quais dialogou e a proposta por ela realizada como alternativa filosófica definitiva. A historia da fenomenología está intimamente relacionada á historia da psicología e, como se verá, foi justamente em meio as tendencias científicas que influenciavam a psicología da época que Husserl posicionou a fenomenología como modo adequado de investigar a psique. Após urna caracterizagao rápida da fenomenología, este trabalho apresenta brevemente os textos e a justificativa de sua selegao para extrair a prática ética que atravessa de modo continuo o trabalho de Husserl, dedica-se mais detidamente ao texto tido como o "manifestó" da fenomenología, cujo centenario se completa agora (20102011) e que permite o entendimento histórico do surgimento da fenomenología para, em seguida, resumir concisamente a vida ética na abordagem husserliana indicando o que se compreende aqui como sendo sua implicagao fundamental para a psicología contemporánea. Posicionamentos de diferentes autores sobre o tema ético em Husserl sao referenciados a fim de articular as consideragóes realizadas. A fenomenología No sentido de evitar um daqueles que está entre os mais comuns mal-entendidos em torno da fenomenología desde seus primordios, é preciso superar o preconceito que a associa muito rápidamente á filosofía platónica tratando por idénticas as categorías de esséncia de urna e outra. A busca da esséncia na fenomenología é a busca de redugao ao sentido, á característica última e definidora de um fenómeno tal e qual o mesmo se mostra á consciéncia. De fundamental importancia nesta redugao é toda a atividade de subtragao exercida de modo reflexivo e que visa iluminar o fenómeno desobstruindo os estratos que o torna confuso e obscuro em meio as vivencias. A subtragao fenomenológica é o método segundo o qual se pode superar as concepgóes dualistas que ao longo da historia do debate filosófico tendiam a privilegiar o sujeito ou o objeto, delineando grosso modo idealismos e materialismos. Tal superagao (Bodei, 2000) nao está meramente no método, mas na concepgao de consciéncia definida pela categoría de intencionalidade tornando a consciéncia sempre consciéncia de, impossibilitando urna análise do sujeito alheia ao objeto e urna análise do objeto alheia ao sujeito. Assim, a análise da consciéncia é análise intencional. Análise de urna intengao que pode se manifestar de maneiras mais ou menos ativas, como seriam nessa ordem decrescente os casos dos atos de vontade, dos atos psíquicos e dos atos perceptivos desde seus principios corporais de maior passividade (Husserl, 1938/2006). O interesse de Husserl, como se evidencia, se volta a urna gnosiología que, frente ao que já havia sido feito na filosofía, e conseqüentemente na cultura, ele mesmo julgava deste modo: "pareceme que eu, o pretenso reacionário, sou mais radical e mais revolucionario que aqueles que hoje se manifestam tao radicáis em suas palavras" (Husserl, 1935/1996, p. 83). Percursos Perreau (2008) distingue dois períodos ñas reflexóes de Husserl sobre a ética. O primeiro, indo até 1914 (Husserl, 1908-1914/2009), procura "formalizar a ética a partir de urna analogía estabelecida com a lógica" (Perreau, 2008, p. 123) e o segundo, no pós-guerra, se orienta "em diregao á consideragao da vida prática subjetiva e, nela, da realizagao de si enquanto pessoa" (p. 124, nossa tradugao). O autor destaca que o modo como aborda esta periodizagao se distingue daquele de um clássico artigo de Ulrich Melle (1991) em que se sublinha a unidade de fundo das reflexóes de Husserl sobre a ética. O presente artigo privilegia a dimensao Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 Barreira, C. R. A. (2011). Da historia da fenomenología á ética na psicología: tributo ao centenario de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserl. Memorándum, 20, 135-144. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 pessoal daquelas reflexoes pontuando a idéia de vida ética, sem se dedicar as análises mais fundamentáis que evidenciam o conjunto da temática ética em Husserl, sejam as da lógica, sejam as análises baseadas na atuagao das sínteses passivas na constituigao da pessoa, cuja importancia nao é menor. Na mesma linha de Perreau, Ferrarelo (2008) reconhece que, entre as diferengas dos dois períodos, da parte de Husserl, "a insatisfagao face á primeira formulagao de sua ciencia ética e a introdugao do método genético conduzem Husserl a nutrir novas exigencias para sua ética. Em 1924, ele quer urna ética mais próxima das escolhas pessoais dos homens, capaz de orientar as agoes individuáis dos sujeitos" (p. 63-64, nossa tradugao). Portanto, longe de exaurir a extensa reflexao husserliana sobre a ética presente ao longo de sua obra, busca-se para o presente propósito delineá-la de acordó com aspectos já implicitamente presentes em A filosofía como ciencia rigorosa (1911), em seus artigos redigidos entre 1922-1925 para a revista Kaizo e na conferencia pronunciada em Viena no ano de 1935, A crise da humanidade européia e a filosofía. O recorte dos textos contempla escritos de tres diferentes décadas e segué a pista de que há urna mesma intengao prática ética implícita no manifestó que completa seu centenario, explícita nos artigos da década de 1920 e, finalmente, disseminada na conferencia de 1935. Embora outros textos da década de 1930 pudessem fazer o papel exemplar no delineamento ora pretendido, optouse por seguir a pista de Laurent Joumier (1922-25/2005) que compara a conferencia de Viena a urna re-escritura dos artigos para a Kaizo e sinaliza que se Husserl deixou de falar de ética foi simplesmente porque esta se tornou onipresente em seus escritos sendo "o problema filosófico maior ao qual todos os outros parecem subordinados" (p. 17). Na conferencia Husserl articula o reconhecimento do telos espiritual europeu como tensao ao infinito a um tornar-se "meta prática da vontade" (Husserl, 1935/1996, p. 72). A tensao ao infinito, gestada como e desenvolvida pela filosofía, tem para Husserl seu modelo original na idealidade matemática, sendo propriamente urna idéia infinita. Já as metas práticas de vontade se desdobram como esforgos de aplicagoes de "infinitudes intencionáis" (Husserl, 1935/1996, p. 74) na ciencia e também na política, ou seja, de idéias que, para além da finitude existencial de quem as aplica, orientam-se ao infinito. Se, aqui, á própria definigao de vida ética pessoal foi antecipada a articulagao entre a tomada de consciéncia do telos e a sua participagao na meta de vontade, é porque se quer sustentar que a tarefa da psicología é tributaria das origens e desenvolvimentos da filosofía e nao pode, portanto, limitar-se a ser arte ou oficio, já que leva em seu seio a mesma tensao ideal, a cientificidade. Mas antes da expressao deste telos, contudo - e o fundamentando - está urna tensao previa, um pré-sentimento tratado por Husserl como enteléquia que, no limite, visa á realizagao do ser humano. Deve-se, certamente, do mesmo modo que é a consciéncia humana, tratar o modo de realizagao como algo em aberto, mas nem por isto menos urna tensao e nem por isso nao sujeito a leis que estarao intimamente apegadas á natureza temporal da própria consciéncia. Acredita-se que, em sua atividade prática, é frente a esta característica que a psicología contemporánea protagoniza um papel fundamental para a realizagao do ser humano, o que nao pode ser outra coisa senao sinónimo de realizagao ética. A vida ética em Husserl, assim, em acordó com a reflexao de Monseu (2008), "nao repousa únicamente sobre a fundagao da ética numa teoria do valor e sobre a análise dos atos avaliativos da consciéncia (problematizando a validade dos correlatos objetivos desses atos), mas engaja urna concepgao de identidade pessoal onde a realizagao de si e da vida em comum é o seu telos" (p. 69, nossa tradugao). Nesse sentido, embora se possa explicitar a dimensao transcendental da ética propriamente dita, ou seja, demonstrar a análise em nivel transcendental que, realizada por Husserl, leva a urna leitura do imperativo ético (Trincia, 2007), é na dimensao do sujeito empírico, portanto, naquela dimensao própria á atitude reflexiva pessoal que se realiza a esséncia da vida ética. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 Barreira, C. R. A. (2011). Da historia da fenomenología á ética na psicología: tributo ao centenario de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserl. Memorándum, 20, 135-144. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 100 A fenomenología: historia de sua emergencia Considerado como o manifestó da fenomenologia, e publicado pela primeira vez em 1910/1911 na revista Logos, A filosofía como ciencia rigorosa sistematiza o projeto fenomenológico como a exigencia que emerge de uma polarizagao filosófica estabelecida no século XIX. A própria organizagao do texto em tres partes compostas por uma abertura e mais duas abordagens críticas - uma dirigida á filosofía naturalista e outra dirigida ao historicismo - expressa nítidamente a presenga destas posigoes hegemónicas no século que precedía aquela redagao. Edmund Husserl (1859-1938), matemático de formagao, inspirado e atraído por uma nova psicología desenvolvida no ocaso do século XIX, concebeu como operagao psíquica a fundagao da matemática ñas relagoes entre unidades numéricas no primeiro de seus livros, A filosofía da Aritmética, publicado em 1891. Estava ali, no veio das concepgoes psicologistas e historicistas daquele género, um dos posicionamentos contra os quais se ergueria sua fenomenologia no despertar do novo século. Até entao, psicologismos e historicismos de variadas sortes se defrontavam com a ciencia naturalista e sua concepgao filosófica de base. A potencia técnica e o progresso científico, oriundos de procedimentos apoiados na naturalizagao dos fatos, davam o beneficio á última e inspiravam elevadas esperangas num desenvolvimento civilizacional prometeico. Para Husserl (1910ll/2005a), contudo, e contra todas as acusagoes á fenomenologia de ser uma filosofía apolítica, a filosofía naturalista presente no modelo científico natural conduz a uma ciencia "que se cumpre de uma forma que é fundamentalmente errada (...) e um crescente perigo para a nossa cultura" (p. 11). O que veio a significar este perigo está narrado pela historia do mais cruel de todos os séculos, quando a materializagao da ciencia efetivou algumas de suas próprias concepgoes com nomes e significados tao diversos - e de efeitos beligerantes tao equiparáveis - como comunismo, liberalismo e nazismo. A evasao do sentido na supervalorizagao da técnica era, portanto, de alguma forma já prevista pelas reflexoes husserlianas que permaneceriam problematizando as implicagoes éticas de modo explícito ou implícito pelo menos em dois momentos, cujos escritos sao conseguintes á primeira guerra e á ascensao nazista ao poder alemao. Era insuficiente para Husserl a confutagao das previsíveis conseqüéncias de se por em prática concepgoes científicas equivocadas. Mais do que tal crítica negativa, impunha-se a "necessidade de uma crítica positiva dos principios e métodos" (Husserl, 1910-ll/2005a, p. 11). Essa crítica positiva emerge como fenomenologia. No mesmo sentido - e reforgando o fio de Minerva da fenomenologia - Ales Bello dá á epoché o sentido de: "método a ser seguido para uma investigagao filosófica que queira ter presente com equilibrio o criticar e o construir, entendido, este último, como o dar as razóes daquilo que se está examinando, colhé-lo na sua estrutura essencial" (Ales Bello, 2006, p. 12). A positividade fenomenológica distinta e distante do positivismo - desvela-se por um procedimento subtrativo que suspende juízos previos a fim de acessar os modos conscienciais atuantes na constituigao dos fenómenos e suas esséncias. Nestes modos intencionáis, diferentemente de um psicologismo, compreende-se mutuamente o objeto correlato que se encontra na esséncia da consciéncia que se define sempre como consciéncia de. O naturalismo, de sua parte, torna naturais todos os fenómenos, inclusive os psíquicos, que serao entendidos como estando em fungao de relagoes físicas. A natureza fora definida como "unidade do ser espago-temporal regulado por leis naturais exatas" (Husserl, 1910-ll/2005a, p. 13). Sao as relagoes entre tempo e espago que tudo determina e precisam ser descobertas pela ciencia. Os procedimentos para fazé-lo sao os experimentáis, onde por experimento verifica-se um complexo de "ordenagao metódica, conexao das experiencias e obediencia a regras lógicamente determinadas" (p. 23). Há em meio a isto um jogo recíproco de Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 Barreira, C. R. A. (2011). Da historia da fenomenología á ética na psicología: tributo ao centenario de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserl. Memorándum, 20, 135-144. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 experimentar e pensar. Para o naturalista este é um jogo factual derivado simplesmente de leis físicas (naturais) onde mesmo o pensamento poderá ser entendido através das regras científicas a serem descobertas pela psicofísica. Este entendimento de uma determinagao psicofísica presente no naturalismo exemplifica o que Husserl (1910-ll/2005a) chama de ingenuidade naturalista, onde "a ciencia da natureza assume a natureza como dada" (p. 23) e "tende a colher tudo como natureza" (p. 13). Portanto, a "análise pura e direta da consciéncia" (p. 30) está excluida de experimentos que a tomam apenas indiretamente em suas relagoes com a natureza (objetivo-temporal). Nao sendo objeto de análise, conseqüentemente, o conhecimento que está atuante no fazer científico nao é devidamente problematizado e se perde de vista a esséncia intencional que o estimula. Assim, o pesquisador tem uma posigao existencial que diz respeito á sua atuagao, mas esta é dispensada de maiores consideragoes como se a existencialidade nao tivesse qualquer implicagao com os procedimentos adotados. A fenomenología é uma teoría do conhecimento, uma gnosiología que, entao, deve ter em consideragao o fluxo de consciéncia que nao apenas acompanha o fazer científico, mas o precede no conhecimento pré-científico. Este último é também naturalizador, pois ao nao ser problematizado, ao nao por em questao suas condigoes de possibilidade e nao se perguntar pela esséncia do que veicula, coloca em prática uma atitude natural. A atitude natural nao é menos atuante no fazer científico naturalista, pois é evidente a ausencia de questionamento das condigoes de possibilidade últimas do conhecimento, isto é, da própria consciéncia. Trazer á tona estas condigoes de possibilidade significa ir além da crítica negativa e realizar a crítica positiva que Husserl clama como a mais necessária para esclarecer principios e métodos de uma filosofía como ciencia rigorosa. Propoe-se que se assuma uma atitude fenomenología onde haja pré-disposigao ao abandono de préposigoes, consideragoes teóricas, científicas ou nao, para que se reinicie o conhecer do principio, em constatagoes dos atos conscienciais que estejam em questao: percepgao, recordagao, representagao, fantasía, expectativa, crenga, juízo, identificagao, distingao etc. Pode-se, por outro lado, ver na posigao historicista uma especie de atengao exclusiva, ou predominante, a elaborados produtos da consciéncia derivados das atividades espirituais que a análise revela ser o conhecer, o valorar e o querer. É, portanto, uma filosofía independente de relagoes de caráter naturalista (físico), mas estando em fungao das relagoes entre altas produgoes espirituais que definem uma cultura, uma sabedoria, uma visao de mundo e da vida. A historia, assim, é determinante enquanto descubridora do espirito coletivo que pertence a uma comunidade e a uma época. Contudo, ao se bastar ai, na assungao de legitimidade teórica relativa á época e a seu próprio complexo de valores e modos de avahar, julgar e querer, esta filosofía dá á historia a suposta chave interpretativa gnosiológica a que, fundamentalmente, nao tem direito. Por mais elevadas que sejam tais produgoes espirituais, Husserl (1910-ll/2005a) Ihes atribuirá o caráter de "habitus como sedimento dos atos passados no correr da vida, nos quais se realizou uma tomada de posigao no ámbito da experiencia natural" (p. 83). O retorno da atitude natural sinaliza a inconsistencia teórica da filosofía historicista. O que Ihe falta é o caráter científico que busque mais do que o sentido histórico; busque o sentido permanente que fica sombreado por concepgoes e teorías, habitus naturalizados que escamoteiam a visao de esséncia por um encanto da atitude natural. A fenomenología, a fim de exercer sua crítica positiva, recorre, entao, á origem do conhecimento no desvelar da "intuigao ¡mediata" (p. 54). A descrigao fenomenológica, pois, enunciará conceitos de esséncia que fagam justamente o resgate da visao de esséncia. Uma psicología apropriada, ou pelo menos a fundagao desta psicología, portanto, visará o fenómeno psíquico numa apreensao direta como nao poderia ser diferente, já que o mesmo nao é natureza (física) e, embora se articule existencialmente, nao é equivalente ao espago mensurável, ao tempo Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 Barreira, C. R. A. (2011). Da historia da fenomenologia á ética na psicología: tributo ao centenario de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserl. Memorándum, 20, 135-144. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 ,,« (cronológico), á causalidade e á substancialidade, mas é propriamente fenómeno. Nesta psicología o fenómeno psíquico é urna vivencia intuida na reflexao que, colhida e compreendida, poderá se identificar em sínteses (apercepgao psicológica) com novas experiencias vivenciais de registro psíquico. No relacionamento intersubjetivo esta síntese encontrará e reconhecerá novas experiencias correspondentes que constituem urna especie de visao indireta do psíquico pelo ato característico e ¡mediato da empatia. Se a empatia é ¡mediata, conforme as análises das Meditagoes Cartesianas (Husserl, 1929/2001a), as formas coestabelecidas pela intersubjetividade podem ser menos ou mais mediadas, assumindo múltiplas configuragoes entre as quais se inclui a objetividade. O compartilhamento intersubjetivo que configura a objetividade científica dá mostras de que na própria objetividade há um compartilhar obscuro de carnadas intencionáis que podem ser trazidas á luz pela escavagao fenomenológica. Deste manifestó da fenomenologia, pode-se depreender que o resgate do sentido, daquela intengao submersa na reificagao do mundo e do homem, é tarefa do fenomenólogo, mas também, poder-se-ia dizer, do psicólogo contemporáneo inspirado pela evidenciagao ética da fenomenologia. O rigor experimental da ciencia empírica no estudo específico da natureza transborda aquilo que deveriam ser suas fronteiras e, seguindo-se inevitavelmente a seus absurdos teóricos, "o naturalista ensina, prega, moraliza e reforma" (Husserl, 1910-ll/2005a, p. 16) baseado em absurdos teóricos, axiológicos e éticos. Husserl julga que a filosofía sempre almejou ser urna ciencia rigorosa e, para tanto, buscou idéias de validade eterna. Limitar-se a aplacar a indigencia de seu tempo era para Husserl (1910-ll/2005a) sacrificar a eternidade e deixar ao futuro apenas indigencia sobre indigencia. O conhecimento científico supratemporal - construido como "resultado de um trabalho coletivo de geragóes de estudiosos" (p. 101) - "nao é limitado por algumas relagóes com o espirito de urna época" (p. 90). A vocagao de racionalidade do ser humano nao poderia ser suplantada por intengóes obscuras. Daí a perspectiva ético-religiosa que a filosofía sempre buscou e que a radicalidade metodológica da fenomenologia propóe trazer á tona. A vida ética na fenomenologia Embora este artigo nao tenha a intengao de dirimir os ¡números preconceitos que orbitam no campo da fenomenologia, o próprio estilo da abordagem fenomenológica é por si mesma subtrativo e, como tal, tem de eliminar préconcepgóes. Como este campo é teóricamente tao ampio como o próprio conhecimento, torna-se válido citar alguns dos preconceitos mais comuns, sem, contudo, analisá-los, mas remeté-los a fontes bibliográficas que o fazem. Inicialmente cabe desfazer o preconceito relativo ao suposto individualismo monádico de um sujeito equivalente ao cartesiano ñas análises de Husserl. Apenas sugerindo a posigao de valor contrario - e sem maiores delongas - tome-se a afirmagao de Husserl (1935/1996): "Vida pessoal é um viver em comunidade como eu e nos, dentro de um horizonte comunitario" (p. 65). As análises fenomenológicas podem sim suspender a vida pessoal, mas apenas temporaria e estratégicamente a fim de reduzir a compreensao de um determinado fenómeno a fim de evidenciá-lo. Contudo a vida pessoal é também um fenómeno e nao deixa de existir enquanto suspendido. Para compreender a esséncia intersubjetiva da consciéncia intencional da fenomenologia reenviamos a Ales Bello (2006), Stein (1917/1998) e ao próprio Husserl (1929/2001a, 1905-1935/2001b, 19051935/2001c). Dada tal assergao e sem mais delongas, facilita-se a compreensao de que a vida ética husserliana é de natureza comunitaria e, como tal, da ordem do entrelagamento de vivencias corpórea, anímica (psíquica) e, ácima de tudo, espiritual (veja-se Ales Bello, 2006), enquanto é no registro dos atos de tipo espiritual que se dao a reflexao e a decisao, portanto, processo e produto éticos. Daí Husserl (1935/1996) vincular a crise européia - com toda a ordem de Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 Barreira, C. R. A. (2011). Da historia da fenomenología á ética na psicologia: tributo ao centenario de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserl. Memorándum, 20, 135-144. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 -.A-, conseqüéncias práticas que será qualificada como "enfermidade" (p. 68) na década de 1930 e, anteriormente, prenunciada como crescente perigo - ao modo de pensar que predominava (e predomina) sem fazer um uso genuino da racionalidade. Portanto tem-se a inseparabilidade entre subjetividade, intersubjetividade, comunidade, atividade espiritual (que se manifesta como modo de pensar, materializando-se nos objetos culturáis) e ética, já que a compreensao de cada um destes fenómenos se abrirá á consideragao essencialmente articulada com os demais. A ética - e também todas as categorías anteriores - nao é um agregado á comunidade e ao pensamento, ela toma parte em sua constituigáo e está calcada num telos humano. Este telos propriamente humano nao é um projeto pronto, mas é urna tensao aberta e com sua própria esséncia, caracterizada por urna fenomenóloga contemporánea como Tymieniecka, pela fungáo criativa (Ales Bello, 1997). O que significa atribuir á ética um aspecto constitutivo do pensamento? O que significa isto quando se admite que ética e pensamento sao fenómenos diferentes? Ao ter em consideragao somente o pensamento enquanto lógica formal, pode-se fácilmente notar a presenga de um valor no encadeamento lógico acertado, valor que nao se reconheceria apenas e exclusivamente pela lógica, mas que se liga atrativa e essencialmente a esta tensao. No caso europeu, esta tensao assumiu seu mais alto constructo na perspectiva ético-religiosa vigente na intengao filosófica. Entendendo que a nogao de valor que permite a emergencia da lógica é urna manifestagao desta tensao, é preciso explorá-la em sua sedimentagao. Do contrario, assumindo-se como ¡solada e exclusiva em seu ato, a razao se torna racionalismo e a ciencia pautada neste racionalismo perde o caráter de racionalidade restringindo-se a actuar como técnica - ao mesmo tempo em que "tecnifica" o homem ao formá-lo. É nesta perda, ocorrida sobretudo a partir do Renascimento e da figura científica inaugurada por Galileu, que, pode-se dizer inspirado em Husserl, a ciencia comega a perder contato com sua alma. Ao objetivar toda a realidade o cientista natural deixa de considerar sua existencialidade atuando no fazer científico. A racionalidade filosófica auténtica, ao contrario, sempre busca os próprios fundamentos de seu atuar. Estes fundamentos sao intencionáis e permaneceriam presentes no sentido original da filosofía que, para Husserl (1935/1996), "corretamente traduzida (...) é um outro nome para ciencia universal, a ciencia da totalidade do mundo" (p. 73). É, pois, neste panorama que a psicologia deve ser compreendida como tendo um papel inadiavel para a revitalizagao ética do mundo ocidental. Originalmente este papel é da filosofía e continua sendo enquanto sao as dimensoes filosóficas da psicologia que norteiam seu sentido. Contudo, enquanto áreas de conhecimento e atuagao profissionais, mais do que a filosofía , a psicologia contemporánea - em seu sentido histórico profissional vago - se propoe a ser urna ciencia e prática interventiva e atua como tal em múltiplos campos sociais. Resgatar os fundamentos da atuagao racional é trazé-la da alienagáo racionalista á auto-consciéncia indagadora da racionalidade. Trata-se propriamente de um resgate que, mesmo sendo produtivo, nao é invengáo de algo inédito, mas um re-contatar ¡novador de aspectos da condigáo humana que sao de ordem psíquica e se tém mantido soterrados abaixo das fantásticas produgoes espirituais realizadas na modernidade. A psicologia, como sugere seu próprio nome, deve propor-se a resgatar a alma perdida no labirinto racionalista somando esforgos junto á filosofía. Enquanto um determinado modo de pensar, diagnosticado como sendo enfermo, desligou sua consciéncia reducionista da alma, as análises husserlianas reconhecem que a verdadeira racionalidade filosófica nunca teria deixado de buscar o sentido iluminado de seu fazer, o que nao pode ser dissociado de seu querer, seu desejo, seu afeto, seu sentido comunitario de amizade. A humanidade ocidental germinada nesta racionalidade filosófica tende á totalidade e, embora nunca tenha atingido e nunca vá atingir urna maturidade plena, é nesta tensao que se constituí e amadurece. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 Barreira, C. R. A. (2011). Da historia da fenomenología á ética na psicología: tributo ao centenario de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserl. Memorándum, 20, 135-144. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 Creio que nos sentimos (e apesar de toda obscuridade, este sentimento provavelmente tem sua razao) que á nossa humanidade européia está ¡nata urna enteléquia que domina todas as mudangas de formas européias e Ihe confere o sentido de urna evolugao em diregao a um polo eterno (Husserl, 1935/1996, p. 71-72). O sentimento aqui, obscuro, mas com sua provável razao de ser, domina as formas teóricas e práticas de ser no mundo europeu. Trata-se de um registro psíquico, este mais obscuro - por ser mais profundo e mais desafeto á fixagao - que os registros corpóreo e espiritual. Husserl (1935/1996) considera que a enteléquia age como um pré-sentimento vivo e serve como guia intencional que "em todas as ordens de descoberta [é] o detector afetivo" (p. 72). Os artigos da revista Kaizo sao vivamente significativos, para o presente propósito, por tratarem explícitamente a problemática da vida ética enquanto problemática pessoal. A apercepgao da própria vida, seguida de reflexao é, de certa forma, o método ético geral que pode, contudo, ser aperfeigoado pelo simples esforgo de tomar consciéncia de si. Joumier (1922-25/2005) dirá que "por esséncia, o homem persegue fins, conhece a decepgao, desenvolve urna reflexao crítica geral destinada a prevenir seus fracassos e visa á realizagao da meta, conscientemente ou obscuramente, a dar a sua vida inteira urna forma nova trazendo-lhe a maior satisfagao possível" (p. 16). Deste transcorrer podem ser extraídas as características que configuram a ética: "consciéncia de si, liberdade, faculdade de pensamento geral, esforgo em diregao as metas" (idem). Entretanto, mesmo considerando-se com Husserl que seja da "esséncia da vida do homem (...) que ela se desenrole continuamente sob a forma de esforgo" (Husserl, 1922-25/2005b, p. 45), esforgo positivo em diregao a um objetivo de valor positivo, varios podem ser os obstáculos pessoais (e nao apenas factuais) que no "combate para urna vida de pleno valor" (Husserl, 1922-25/2005b, p. 45) impegam sua realizagao. Este combate é da esséncia da vida do sujeito. Valores diversos disputam o lugar de valor constitutivo da realizagao desta vida do sujeito. A pro-tensao que configura a vida futura de alguém, todavía, pode ser apreendida por um olhar de conjunto que se va I ha de atos consciéncia is diversos como a imaginagao, o desejo e, sobretudo, a avaliagao, sinalizando "que valores de um género particular, que ele pode a cada instante escolher como alvo de sua agao, tém para ele o caráter de valores desejados incondicionalmente em que, sem a realizagao continua destes, ele nao poderia encontrar nenhum contentamente" (Husserl, 1922-25/2005b, p. 47). O reconhecimento desses valores desejados incondicionalmente é o reconhecimente daquilo que faz urna "vocagao" ou "missao" {Beruf), um chamado que se encontra no fundo da personalidade (Monseu, 2008). Desejo, imaginagao e avaliagao: atos que, nesta ordem, apoiados e impulsionados pela corporeidade, passam do registro exclusivamente psíquico ao intermediario e ao registro exclusivamente espiritual; isto é, o latente se torna patente, o implícito se torna explícito, mas o explícito se torna abstragao, exigindo a recondugao fenomenológica a seu valor de origem, as suas vivencias constitutivas, á intuigao que dá luz ao vazio do sentido abstraído. No pensamento fenomenológico o resgate da dimensao psíquica seria, entao, algo próprio á reflexao filosófica auténtica, isto é, aquela nao parcial e fragmentada da filosofía oriunda da ciencia naturalista. Por outro lado o psicologismo, nascido na filosofía como simples visao de mundo, seria um super dimensionamento do psiquismo e de sua variagao que nao leva em consideragao a apreensao do invariante eidético pela atividade espiritual avaliativa. A ciencia, feita do modo como é hoje hegemónica, teria, portante, o papel de fornecer informagoes, mas nao prescrigoes, ou seja, nao um norte ético. Tal norte pode se dar num esforgo conjunto das ciencias humanas, especialmente da psicología quando se considera a conclusao de Ales Bello em seu artigo sobre a Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 Barreira, C. R. A. (2011). Da historia da fenomenología á ética na psicología: tributo ao centenario de Filosofía como Ciencia Rigorosa (1911) de Edmund Husserl. Memorándum, 20, 135-144. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/barreira01 -,A-, ética ñas ciencias humanas: "está ai a necessidade do escavo pessoal na própria dimensao psíquica e espiritual para encontrar os criterios de orientagao em relagao aos outros; a dimensao ética, de fato, é urna dimensao contemporáneamente subjetiva e intersubjetiva" (Ales Bello, 2006, p. 13). Um desequilibrio extremo desta dupla dimensionalidade, segué o raciocinio de Ales Bello, por um lado polariza-se como arbitrariedade, por outro como totalitarismo. Ñas análises de Husserl, a "realizagao de si enquanto pessoa", a "ética da responsabilidade individual", está intimamente articulada á constituigao comunitaria da pessoa, abrindo-se, portanto, a urna "ética social", conforme mostra Perreau (2008). Retomando a avaliagao de Joumier (1922-25/2005) e estendendo-a nao apenas para frente dos anos 1920, mas também para tras, a ética é onipresente na obra de Husserl. De fato, se num momento como o da Filosofía como ciencia rigorosa os modos de pensar eram associados a um perigo crescente para a cultura, num momento posterior, como aquele da conferencia de Viena, nao se trata mais de urna situagao arriscada, mas já de um perigo consumado enquanto, mais radicalmente, o próprio modo de pensar é reconhecido como sendo a enfermidade. A ética na fenomenología, pode-se concluir pelo conjunto da obra husserliana, confunde-se com o próprio fazer fenomenológico, como busca continua e metódica que retoma o sentido de conjunto da vida pessoal evitando os desequilibrios naturalistas e psicologistas que, ilustrativamente, se desdobram respectivamente em abordagens técnico dogmáticas sobre o psiquismo e em abordagens ñas quais se sobrepoe a arbitrariedade do funcionamento psíquico as tomadas de decisao conscientes e aos posicionamentos pessoais livres. A obra de Husserl propoe urna gnosiología que se desenvolve como propedéutica as ciencias. Por um lado, seguindo o raciocinio propedéutico, pode-se trabalhar no sentido de fornecer fundagoes fenomenológicas a prior! para a psicología e suas aplicagoes, ou seja, sua explicitagao científica e as explicitagoes normativas apropriadas ao seu exercício prático, tarefas exigentes que parecem ainda nao terem se cumprido. Por outro lado, pode-se, ao invés de urna aposta e urna espera pela apropriagao de tais fundagoes por parte da comunidade de psicólogos, tornar presente a prática fenomenológica na psicología atual, como área de conhecimento e intervengao, a fim de estimulá-la interiormente por um norteamento ético transformador. Essa possibilidade vai de encontró a urna compreensao experiencial da fenomenología que a poe em prática, antes de mais, como reflexao pessoalcomunitária explicitadora dos sentidos que se mostram determinantes na busca pela vida ética. Referencias Ales Bello, A. (1997). 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Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 -IAC Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afrobrasileiros Below and beyond the captivity of the concepts: perspectives of the preto velho in the Afro-Brazilian studies Rafael de Nuzzi Dias José Francisco Miguel Henriques Bairrao Universidade de Sao Paulo Brasil Resumo Históricamente estudiosos tém se empenhado em investigar os mecanismos e as razoes pelas quais personagens retirados da experiencia histórica e da memoria coletiva firmaram-se no imaginario religioso brasileiro. Nesse ínterim, o preto-velho emerge como entidade espiritual proeminente, recorrente presenga ñas obras de autores interessados em apreender a cultura afro-brasileira a partir de suas manifestagoes consubstanciadas no quadro da religiosidade popular, sobretudo da umbanda. Assim, tendo em vista compreender os movimentos que marcaram o desenvolvimento dos saberes sobre o preto-velho, apresenta-se urna revisao e discussao crítica das diversas perspectivas a partir das quais ele tem sido pensado e caracterizado. De forma geral, evidencia-se que o estudo sobre o preto-velho oscilou de urna produgao fundamentalmente enquadrante e contextualizadora, tomando-o como contingente á lógica sistémica da religiosidade umbandista, para urna produgao focalizada e extensiva, voltada para o seu entendimento como fenómeno dinámico passível de múltiplos desdobramentos. Palavras-chave: preto-velho; religiosidade afro-brasileira; cultura afro-brasileira; memoria coletiva; imaginario. Abstract Historically specialists have made efforts to investígate the processes and the reasons through which personages caught from the historical experience and the social memory were Consolidated in the Brazilian religious imaginary. In this way, the preto velho emerges as a prominent spiritual entity, recurrent presence in the authors' works interested in apprehending the Afro-Brazilian culture from their manifestations in the frame of the popular religiosity, especially umbanda. Thus, in order to understand the movements that marked the development of the knowledge about the preto velho, this article presents a critical revisión and discussion of the several perspectives from which he has been thought and characterized. In a general way, the literature evidences that the study of the preto velho oscillated from a production that fundamentally enframes and contextúa I izes, taking him as contingent to the systemic logic of umbanda's religiosity, to a focused and extensive production, directed to its understanding as a dynamic phenomenon capable of múltiple possibilities. Keywords: Afro-Brazilian culture; preto velho; social memory; collective imaginary. Introducao Nao obstante recorrente ñas produgoes científicas de muitos autores que em algum momento versaram sobre a questao da cultura e da religiosidade afro-brasileira (1) - e quase unanimidade entre os que se propuseram a investigar específicamente a Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 TA¿ umbanda, seu quadro de referencia mais notorio - o campo dos estudos acerca do preto-velho, categoría espiritual profundamente arraigada no seio da religiosidade afro-brasileira e personagem amplamente difundido e reconhecido na cultura popular, carece de urna revisáo sistemática capaz de fornecer um panorama crítico do grande volume de informagoes, teorizagoes e conhecimentos acumulados ao longo de décadas de investigagoes. Nesse sentido, o presente artigo propoe-se a atenuar essa lacuna, investigando os diversos sentidos produzidos acerca do preto-velho pelos autores que, em sua maioria radicados nos dominios da sociología e da antropología, direta e focalizadamente ou indireta e contingencialmente se dedicaram á produgáo de saberes sobre este personagem táo marcante da cultura afro-brasileira. Mais específicamente, serao expostos e discutidos os modos, as perspectivas e os enquadres em o preto-velho tem sido caracterizado, com destaque para as definigoes de seus horizontes simbólicos de referencia, os lugares a ele atribuidos no contexto sistémico da religiosidade umbandista e seu panteao espiritual, e suas supostas "fungoes" sociais, culturáis e psicológicas. Além disso, serao enfatizadas divergencias, contradigoes e polémicas existentes entre as concepgoes de diferentes autores, no intuito de trazer á tona clivagens e lacunas a serem esclarecidas no estudo do preto-velho. Cabe ressaltar que o artigo está organizado em torno de temas específicos particularmente salientes que atravessam a literatura: a memoria coletiva da escravidao; polémicas acerca da presenga, sentido e destaque do preto-velho no ámbito da religiosidade umbandista; e os múltiplos desdobramentos evidenciados na última década por trabalhos que se dedicaram a investigagoes focalizadas sobre o preto-velho. Estes tres eixos nao apenas se inter-relacionam como se interpenetram, pelo que nao se refletem numa segmentagáo rígida da apresentagáo dos resultados e sua discussáo. Revivéncias simbólicas e imaginarias da escravidao A categoría espiritual preto-velho (2) é indiscutivelmente figura-chave na umbanda, sendo urna das mais antigás, mais encontradas nos terreiros e mais citadas em toda a literatura (Negráo, 1996; Concone, 2001). No que diz respeito á sua antiguidade, é amplamente difundida entre umbandistas e pesquisadores a ideia de que os pretos-velhos foram, juntamente com os caboclos, os grandes precursores espirituais da umbanda, tendo sido estas as primeiras entidades do panteao a incorporarem e reivindicarem a fundagáo de urna nova religiáo por meio da criagáo dos primeiros centros de umbanda, dos quais se tornaram os líderes espirituais e patronos (Negráo, 1996). A esse respeito, é exemplar a trajetória do grupo liderado por Zélio de Moraes, tida por alguns como o mito fundador da umbanda (3). Conforme comenta Diana Brown (1985), muitos integrantes deste grupo de fundadores eram, como Zélio, kardecistas insatisfeitos, que empreenderam visitas a diversos centros de "macumba" localizados ñas favelas dos arredores do Rio e de Niterói. Eles passaram a preferir os espíritos e divindades africanos e indígenas presentes na "macumba", considerando-os mais competentes do que os altamente evoluídos espíritos kardecistas na cura e no trata mentó de urna gama muito ampia de doengas e outros problemas ( p . l l ) . [Dessa forma,] dois dos principáis elementos retirados das tradigoes afro-brasileiras constituíram os espíritos centráis da Umbanda, os caboclos e os pretos velhos (p. 12). Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Na mesma diregao, Negrao (1996), incluindo a categoría dos exus no interior dos "mitos primordiais" da umbanda, afirma que nao obstante as idiossincrasias de cada terreiro e as influencias religiosas que os atingem diferencialmente, há na Umbanda um universo simbólico comum claramente delineado e associado á criatividade do imaginario popular brasileiro. As tendas ou terreiros constituem-se no locus por excelencia da produgao e reprodugao do sagrado; neles foram gerados os mitos primordiais da Umbanda consubstanciados ñas figuras dos Caboclos, Pretos Velhos e Exus, secundados por ¡números outros de elaboragao mais recente. Uns e outros, arquetipos da condigao do brasileiro subalterno ou de outras condigoes sociais vistas sob sua ótica, transmutados em deuses mediante processos de inversao simbólica (p. 145). Embora seja bastante complexa e polémica a questao acerca das origens da religiao umbandista e dos processos que levaram á conformagao de seu panteao de espíritos, duas coisas sao certas no que tange aos pretos-velhos: 1) dividem com caboclos e exus o status de entidades mais antigás, conhecidas e difundidas no interior do imaginario social brasileiro, podendo sua origem, embora incerta, ser remontada para os primordios da incipiente nagao brasileira, antes mesmo do surgimento dos primeiros terreiros de umbanda organizados e socialmente reconhecidos como tais, urna vez que é certo que tais entidades já incorporavam e eram cultuadas em contextos mágico-religiosos desde as primeiras manifestagoes daquilo que Roger Bastide (1971) denominou "macumba urbana" e "macumba rural", muito provavelmente com raízes encravadas ñas senzalas dos tempos da escravidao; 2) configuram urna categoría espiritual que surge a partir de um processo sistemático de sacralizagao da figura do escravo negro (Souza, 2006), sendo esta dimensao de elaboragao da experiencia coletiva da escravidao o vértice fundamental e irredutível a partir do qual todas as associagoes e conformagoes que constituem a complexidade intrínseca aos pretos-velhos se organizam, nao apenas específicamente no interior da religiosidade umbandista, mas em todo o vasto campo da religiosidade popular brasileira. A esse respeito, cabe destacar que o culto e a presenga dos pretos-velhos nao sao de forma alguma exclusividade ou especificidade inerente á umbanda, o que já foi largamente demonstrado por ¡números autores que relataram, ainda que na maioria dos casos apenas de passagem, a presenga de pretos-velhos nos mais variados cultos espiritualistas e afro-brasileiros, tais como o candomblé ketu (Souza, 2006), o candomblé de caboclo (Prandi, Vallado & Souza, 2001), o catimbó (Bastide, 2001), o catimbó-jurema do Recife (Brandao & Rios, 2001), a umbanda nordestina (Assungao, 2001), o espiritismo kardecista (Souza, 2006; Santos, 1998); o Tambor de Mina do Maranhao (Ferretti, 2001), o culto daimista da barquinha (Souza, 2006), e até mesmo cultos recentes ao estilo Nova Era como a arca da montanha azul (Souza, 2006). Embora alguns autores refiram tal difusao como parte de um suposto processo contemporáneo de "umbandizagao" do campo religioso popular brasileiro (Souza, 2006), inserido no contexto abrangente de urna vivencia do sagrado marcada por constantes intercambios e porosidades (Sanchis, 2001), o fato latente e inescapável é que os pretos-velhos, enquanto representagao da figura do escravo negro tal como fixada na memoria coletiva e corolária de urna modelagem complexa nos moldes das intrincadas redes do imaginario, sao entidades que nao devem ser concebidas a partir de aproximagoes homogeneizantes, sob o risco de perder-se Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 urna de suas características mais marcantes, sua dinamicidade e adaptabilidade a novos contextos e situagoes. Os pretos-velhos tal como incorporados (em duplo sentido) pelos umbandistas parecem ser produto de um processo abrangente de sacralizagao e mitificagao de personagens e fatos históricos, calcado na necessidade de reatualizagao e expressao de memorias profundamente arraigadas no ámago das comunidades afro-brasileiras desde os primeiros tempos de suas afirmagoes culturáis e identitárias. Memorias que guardam os momentos mais significativos e coerentes das vidas humanas; vozes que ecoam na historia e em vividas experiencias pessoais onde singular e coletivo emergem e se encontram (Casal, 1997), e a experiencia de cada um pode mover-se através das lembrangas e vidas dos outros, ganhando alcance comunitario e expressando situagoes comuns ao grupo (Bairrao &Leme, 2003). Por outro lado, constituem a mais notoria expressao de um modo de apreensao e interagao com o sagrado típicamente africano (banto) que persistiu á diáspora e estabeleceu-se com forga em solo brasileiro, o culto aos ancestrais, onde "as capacidades e poderes invulgares derivam do contato com a térra dos mortos" e a experiencia teofánica "manifesta as claras a co-autoria humana, na forma de colaboragao entre viventes e ancestrais" (Bairrao & Leme, 2003, p, 8). Assim, partindo-se da premissa de que o agente coletivo (sujeito sociocultural) que configura o "olhar para a realidade" (cosmovisao) propriamente umbandista é a populagao negra banto-descendente (4), e levando-se em conta o fato de que para tal populagao a memoria coletiva mais marcante históricamente e fundante identitariamente é a da experiencia social da escravidao - seus ancestrais por excelencia sendo homens e mulheres arrastados da África para como escravos fazerem funcionar a máquina produtiva baseada no modelo económico do grande latifundio de exportagao - nao fica difícil compreender a importancia e a centralidade adquiridas pelos pretos-velhos no seio da religiosidade umbandista. Entretanto, da mesma forma que a presenga e o culto aos pretos-velhos jamáis esteve exclusivamente circunscrito ao contexto umbandista, embora ai tenha se destacado, processos de sacralizagao e culto de negros escravizados nem mesmo ficaram restritos no Brasil apenas á figura dos pretos-velhos, como bem demonstram Souza (2001; 2007) e Augras (2009) em suas minuciosas investigagóes acerca da "invengao" imaginaria e do culto á Escrava Anastácia, que ganhou visibilidade no Rio de Janeiro no inicio dos anos 1970 e expandiu-se de tal forma que em meados dos anos 1980 desencadeou até mesmo um ampio "movimento pró-canonizagao de Anastácia" (Augras, 2009, p. 101). Embora o culto a Anastácia tenha em varios momentos, e sobretudo em contexto umbandista, previsivelmente se sobreposto ao culto aos pretos-velhos - vide a marcante presenga de pretas-velhas de nome Anastácia relatadas na literatura (Hale, 1997) - ele surgiu e se desenvolveu de maneira notadamente diferente (Souza, 2001; 2007; Augras, 2009), podendo ser considerado um outro exemplo da importancia do escravo negro como imagem atuante na memoria coletiva de grande parte da populagao brasileira. De fato, seja no caso da Escrava Anastácia, seja no dos pretos-velhos, seja em contexto umbandista, seja em quaisquer outros contextos, a assertiva é correta, fundamental e inescapável: trata-se, em última análise, de rememoragao coletiva da experiencia histórica da escravidao, consubstanciada na forma de "espiritas escravos" (ancestrais) de origem africana e afro-brasileira, e de suas respectivas historias de vida, trajetórias e legados existenciais; homens e mulheres negros que, antes de morrerem e retornarem sacralizados para intervirem no mundo de seus descendentes vivos (o nosso mundo), efetivamente trabalharam, suaram, sofreram, sangraram, rezaram, lutaram, curaram, aprenderam, se revoltaram, enfeitigaram, sonharam, viveram. Conforme afirma Trindade (2000): Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Ñas narrativas sobre os pretos-velhos estao situados os quadros sociais de referencia em que se constrói a memoria coletiva do negro. As estruturas dessas narrativas sao homologas as encontradas na construgáo da memoria, ambas operam segundo o processo de bricolagem, de recombinagoes de elementos extraídos da historia vivida. A organizagáo de seus elementos dispares nao se constituí como justaposigoes combinatorias sem um projeto anteriormente definido. Mas, conforme já visto, há nessa construgáo organizatória o sentido da representagáo e reflexao de urna situagáo escravocrata. Fundada na transmissáo oral e ritual dos mitos, se instaura a reflexao sobre a historia vivida (p. 160). E completa, articulando o sentido pragmático dessa "reflexao sobre a historia vivida" ñas experiencias concretas dos adeptos do culto aos pretos-velhos: As narrativas míticas configuradas na memoria social da escravidao formam esquemas significativos para a compreensáo e interpretagáo das necessidades, interesse e expectativas dos negros na atualidade. Nesse sentido, o mítico adquire a intengáo da historia conduzindo a reflexao sobre um tempo reconstruido ñas lembrangas que encontra seu significado ñas experiencias cotidianas do presente. "A escravidao ainda existe", dizem os depoentes e a liberdade, por meio da luta ou obtida com o auxilio da intervengáo divina, é um continuo principio de esperanga, que se renova na evocagáo do passado (Trindade, 2000, p. 162). Inversamente, pode-se dizer que a memoria coletiva do negro (na dupla acepgáo da expressáo) constrói-se ininterruptamente, articulando-se em sempre renovadas montagens no interior e desde quadros sociais de referencia que estáo situados ñas suas narrativas, sendo o preto-velho - no contexto específico do sagrado - e suas concretas manifestagoes junto ás comunidades contemporáneas que de suas "historias" fazem "uso", urna via privilegiada de acesso aos significados profundos do "ser-negro" tal como históricamente constituidos (e constituindo-se) no ámago da sociedade brasileira. Os pretos-velhos na umbanda Na umbanda os pretos-velhos ocupam urna posigáo de destaque, o que pode ser evidenciado a partir de urna consulta aos estudos já realizados sobre o tema, onde se constatará que sao, juntamente com os exus e os caboclos, as entidades mais largamente comentadas, discutidas e referenciadas. Entretanto, no que tange á posigáo hierárquica e á frequéncia de incorporagáo dos pretos-velhos cabem algumas ressalvas, em alguma medida sempre necessárias quando se afirma categóricamente algo como genéricamente válido em relagáo á umbanda. Negráo (1996) embora reconhega, a partir de seu trabalho de campo e do vasto levantamento documental que fez sobre a umbanda paulista, o preto-velho como urna das mais tradicionais categorías espirituais, e como o segundo "guia" mais frequente nos terreiros (logo atrás do caboclo), afirma que após um período de predominancia e destaque nos primordios da umbanda (décadas de 1930 e 1940) os pretos-velhos comegaram sistemáticamente a perder terreno: Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Predominantes ñas denominagoes [de terreiros] das décadas de 30 e 40, os Pretos Velhos perderam terreno na década de 50 para os Caboclos e, embora atualmente disputem com os Baianos o segundo lugar, estáo longe de terem desaparecido, conforme supoe recente estudo (p. 203). Negrao (1996) faz referencia ao fato de que ao inaugurar um novo terreiro os umbandistas com frequéncia o batizam com o nome do espirito principal (o chefede-cabega) de seu pai-de-santo, líder espiritual da recém-aberta casa religiosa. O autor utilizou-se de um ampio levantamento dos nomes de terreiros registrados oficialmente ao longo das décadas como parámetro para suas reflexoes acerca da importancia dada pelos umbandistas a cada urna das categorías espirituais que compoem seu panteao. O "recente estudo" referido por Negrao (1996) é o de Brumana e Martínez (1991), que traz as mais destoantes afirmagoes sobre os pretos-velhos encontradas em toda a literatura. Em meio as suas reflexoes e análises do conjunto do panteao umbandista, e após terem proposto um esquema classificatório das categorías que o compoem - A. Sardónico-marginal: exu, pomba-gira; B. Sério-legal: caboclo, ogum, boiadeiro; e C. Jocoso-familiar: baiano, marujo, changa (pp. 282-285) - os autores afirmam que entre o panteao tal como se apresenta de forma "ideal" e o sistema a ele subjacente, de acordó com nossa análise, existe um desajuste. Urna figura, a do preto velho, nao corresponde totalmente a nenhum dos vértices de nosso triangulo; seu lugar se desloca de forma indeterminada entre o polo "serio" e o "jocoso". Essa defasagem nao compromete nossos resultados; pelo contrario, talvez seja justamente o que os confirma. Preto velho é o Orixá que mais raramente baixa na térra; em alguns terreiros ele o faz apenas urna vez por ano, no dia de sua festa. Por tras das explicagoes que alguns agentes dáo para esse fato (o desgaste físico que sua incorporagáo acarreta para o "cávalo", como se as piruetas das changas ou o retorcí mentó do Exu nao fossem táo ou mais trabalhosos) descobre-se urna razáo mais convincente para tal anomalía: o preto velho é um "desviante" do sistema, sua presenga na térra nao serve para expressar o que o culto elabora simbólicamente (p. 290). A esse respeito, Negrao (1996) nao poupa críticas aos autores: Apesar dos muitos méritos do trabalho, talvez a mais penetrante análise etnológica já feita sobre a Umbanda... suas análises relativas ao tradicional Preto Velho deixam a desejar.... Veremos que os Pretos Velhos representam sempre a serenidade e a paz, ao mesmo tempo em que sao espíritos familiares, tratados frequentemente por vó, vó, pal, mae, porém nada jocosos. Para serem incorporados ao esquema, o mesmo teria de ser modificado, pois o implodiria em sua lógica ternaria. Talvez seja este o seu caráter "desviante". A ausencia do Preto Velho nos Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 iri esquemas interpretativos dos autores, nao obstante presente nos terreiros, evidencia urna falha metodológica do trabalho: seu suporte empírico insuficiente. Esta falha nao seria tao gritante, nao reivindicassem eles a universalizagao de suas conclusoes, que acreditam válidas para toda a Umbanda (p. 34). Além de contundente exemplo da ampia diversidade existente no interior da umbanda, e consequentemente um alerta aos pesquisadores em favor de manterem-se rigorosos e despretensiosos no que tange á universalidade de suas análises e conclusoes, as afirmagoes de Brumana e Martínez (1991) obrigam a considerar, em desacordó com o que afirmam os demais autores da literatura científica, que também em relagao aos pretos-velhos os umbandistas (ou ao menos parte deles) parecem ter suas "ressalvas". Ou talvez nao, já que parece ter escapado a Brumana e Martínez (1991) o fato de que na umbanda nem sempre "frequéncia" significa prestigio e influencia, urna vez que nao é incomum acontecer de as entidades tidas como as mais importantes ou poderosas serem também as mais veladas e discretas, apresentando-se apenas em ocasioes especiáis ou potencialmente problemáticas, como demonstram Trindade (1985) e Augras (2009) em seus trabalhos acerca das enigmáticas figuras dos exus e do Zé Pelintra. Alias, parece interessante ponderar que pelo avesso Brumana e Martínez (1991) nao deixaram de dar aos pretos-velhos um lugar de grande destaque. Afinal, ser o único "desviante" significa indubitavelmente conter algo em si de natureza exclusiva e deveras especial. Tudo indica que Brumana e Martínez (1991) meio que inadvertidamente e á sua revelia tenham captado a importancia e o destaque dos pretos-velhos exatamente em sua explicitada dimensao de propalada "ausencia". No que tange enfim á afirmagao de serem os pretos-velhos urna das entidades mais largamente comentadas e referidas na literatura académica parece nao haver quaisquer ressalvas a serem feitas. De fato, ao contrario do que acontece com muitas categorías espirituais, sobretudo aquelas tidas como de aparecimento mais recente, que sao muitas vezes ignoradas ou simplesmente desconhecidas por alguns autores, nao há provavelmente nenhum estudo já realizado sobre a umbanda - nao importando a esse respeito sua amplitude, generalidade, recorte temático ou alcance - que nao tenha dedicado ao menos alguns parágrafos para descrever e analisar os pretos-velhos, ou mesmo algum aspecto contingente a seu culto e sua presenga em meio ao panteao umbandista. Nao obstante as diferengas e peculiaridades de cada pesquisador na maneira de conceber o preto-velho e sua posigao no contexto mais ampio do panteao e da própria umbanda, de modo geral em relagao as suas características salientes, significagoes e representagoes míticas existe significativo consenso: sao espíritos de velhos cansados de aparéncia frágil que costumam incorporar nos terreiros curvados e trópegos, inequívocamente negros escravizados exaustos após anos de castigos e trabalho servil. Os pretos-velhos sao tidos ainda como espíritos calmos, meigos, humildes e paternais que acolhem e apaziguam os ánimos de seus "filhos" (médiuns e consulentes), tantas vezes abalados pelas conturbagoes e reiteradas dificuldades que pululam em meio á existencia cotidiana, de maneira solícita, pacífica, encorajadora e dedicada. Símbolos de bondade, moralidade (crista), apego ao próximo e aceitagao incondicional do trabalho e das mazelas do mundo, que eles próprios sentiram na pele serenamente ao longo de urna vida sofrida de escravidao, carregam com entusiasmo e inabalável fé e esperanga a marca da cristandade e a sabedoria penosamente adquirida do respeito, da submissao, da reclusao, da tolerancia, da caridade, do amor e da resiliéncia. Conforme comenta Silva (1994): Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 O preto velho, quando incorporado nos médiuns, apresenta-se como o espirito de um negro escravo muito idoso que, por isso, anda todo curvado, com muita dificuldade, o que o faz permanecer a maior parte do tempo sentado num banquinho fumando pacientemente seu cachimbo. Esse estereotipo representa a idealizagao do escravo brasileiro que, mesmo tendo sido submetido aos maus tratos da escravidao, foi capaz de voltar á Terra para ajudar a todos, inclusive aos brancos, dando exemplo de humildade e resignagao ao destino que Ihe foi imposto em vida (pp. 121-123). Além disso, sao reconhecidos como eximios conhecedores dos poderes benéficos e curativos da natureza, consubstanciados nos efeitos obtidos por meio da utilizagao de ervas e plantas as mais diversas, que em seu conjunto constituem os recursos daquilo que se costuma chamar de "medicina popular". Porém, sao tidos como os grandes especialistas em cura na umbanda nao apenas pelos seus conhecimentos de "farmacología natural e popular", mas ácima de tudo pelos seus grandes poderes de manipulagao mágica expressos tanto em termos do recurso a rezas e benzegoes ("passes"), como da utilizagao das mais diversas receitas e procedimentos de feitigaria ("mandingas"). Cabe destacar que esse potencial curativo de forma alguma é restrito na umbanda ao trabalho dos pretos-velhos. Na verdade, todas as entidades do panteao, urnas de maneira mais explícita e alardeada e outras menos, realizam curas quando solicitadas, existindo ainda tipos de cura que sao tomados como especialidade de urna determinada categoría espiritual. Entretanto, a prerrogativa da cura nunca deixa de ser associada enfáticamente aos pretos-velhos, sendo esta urna das principáis qualidades a eles atribuidas ñas apreciagoes dos pesquisadores. Outros pretos-velhos: nuances ambiguas e intersecoes na trama simbólica umbandista Como a magia pode ter diversos usos e aplicagoes, é justamente pela via da atribuigao de ampios conhecimentos e poderes mágicos que os pretos-velhos se tornam portadores da fama de serem habéis feiticeiros (ou "mandingueiros"), ponto de partida no qual se funda e a partir do qual se irradia pleno de ambiguidade outro universo simbólico também consubstanciado no interior da categoría espiritual preto-velho. Atinada com a concepgao antropológica de magia como recurso simbólico de manipulagao da natureza fundamentalmente alheio, quando nao completamente avesso, a disposigoes moráis (ao menos tal como articuladas a partir de urna lógica ocidental), tal ambiguidade está no cerne da distingao histórica entre magia branca (executada para o "bem") e magia negra (executada para fins "maléficos"), que no fundo apenas classifica o direcionamento e o objetivo da instrumentagao do poder mágico em termos da moralidade (de alguém). Portanto, se a magia dos pretos-velhos certamente cura, se presta a caridade, ao socorro das pessoas que os procuram nos terreiros de umbanda queixando-se das mais diversas desordens (Montero, 1985), nao é apenas isso que ela faz ou pode potencialmente fazer. Nesse ponto, para avangar nos desdobramentos acerca do preto-velho e chegar ao sentido pleno de sua ambiguidade é preciso reencontrar-se mais urna vez com a historia brasileira tal como se apresenta na memoria coletiva consubstanciada pelo imaginario popular, ou em outros termos, com a dimensao fundamental dos pretos-velhos enquanto espíritos de negros escravizados. Nao é necessário um mergulho muito profundo na historia do Brasil para se constatar que nem todos os negros trazidos da África para trabalharem como Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 i ro escravos correspondem ao modelo hegemónico de caracterizagao dos pretosvelhos. Longe de terem sido indefesos e homogéneamente obedientes e submissos em relagao ao trabalho servil e á condigao desagregadora da escravidao, muitos negros se rebelaram, fugiram de seus senhores e lutaram firmemente por liberdade e autonomía, seja através da guerra (concreta) pelas armas, seja através da guerra (simbólica) pela feitigaria. No que diz respeito á guerra pelas armas, articularam fugas, revoltas e ataques que com intensidade variável constituíram urna ameaga as liderangas políticas e aos proprietários de escravos em varios momentos e lugares ao longo de todo o período escravocrata brasileiro. Formaram comunidades organizadas, recriando hierarquias sociais e modelos culturáis oriundos de sua referencia africana (Lopes, 2006). Tais comunidades, conhecidas como quilombos, existiram em grande número espalhadas por todo o país (Moura, 1981). No que tange á guerra "simbólica", muito mais velada e sorrateira, utilizaram secretamente (longe das vistas do senhor e de sua familia, frequentemente as vítimas potenciáis) conhecimentos ancestrais trazidos de suas térras natais africanas em rituais de feitigaria realizados seja ñas senzalas das grandes fazendas de monoculturas agrícolas de exportagao (mundo rural), seja em meio as confrarias e irmandades de negros radicadas ñas cidades (mundo urbano). Tais procedimentos rituais visavam quase sempre impingir aos "brancos opressores" maleficios e mazelas dos mais variados tipos (inclusive, em casos radicáis, a morte e a perda de entes queridos), motivados por sentimentos de revolta e vinganga que brotavam no seio das comunidades escravas, ou ao menos em alguns de seus membros (Bastide, 1971). Nesse sentido, seria lícito conjeturar que memorias coletivas de rebeldía e insurgéncia associadas á escravidao - representadas épicamente em narrativas heroicas acerca dos quilombos e de seus líderes, amplamente apropriadas e difundidas como modelos idealizados no interior da retórica ideológica de algumas vertentes do movimento negro - fagam parte do imaginario popular e religioso afro-brasileiro tanto quanto as memorias de escravos pacientes e submissos, a partir de processo similar de sacralizagao de vivencias históricas. Ortiz (1991) em "A morte branca do feiticeiro negro" afirma que se houve um dia o rebelde quilombola ele teria se perdido no imaginario religioso. Urna vez que a umbanda desde seu surgimento tem vivido sob a pressao de urna corrente de intelectuais que buscam sua legitimagao social através da unificagao e doutrinagao de seus ritos e mitos, Ortiz argumenta que essa corrente, representada sobremaneira pelas federagoes umbandistas, teria sido responsável ao longo das décadas pelo suposto "eclipsamento" dessa parte da memoria coletiva relativa á escravidao. Na verdade Ortiz (1991) parece ter se precipitado, pois apesar de menos evidentes nos terreiros onde sao cultuados e de serem consideravelmente menos referidos no conjunto da literatura científica - e de maneira bem menos pormenorizada, certamente nao por acaso, mas por razoes similares áquelas que dificultaram o acesso de urna pesquisadora experiente como Monique Augras (2009) ao universo do Zé Pelintra - tais memorias coletivas consubstanciam-se na umbanda na forma de espíritos que se auto referem como quilombolas, fugitivos e feiticeiros, mas que negros escravizados que sao apresentam-se e sao reconhecidos como pretosvelhos. Entretanto, é impossível desconsiderar que tal faceta rebelde dos pretos-velhos seja nao apenas menos evidente, mas possivelmente, e simplesmente, também menos presente no universo umbandista. Cabe assim um questionamento acerca das causas que poderiam ter levado a isso, já que nao há razoes para se supor que determinada faceta da memoria coletiva da escravidao tenha a principio se enraizado no imaginario mais fortemente do que outra. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 i CA Urna resposta a essa questao pode estar no argumento de Ortiz (1991), cujo equívoco teria sido únicamente superestimar os potenciáis poderes "embranquecedores" da doutrinagao dos intelectuais umbandistas. Outra forma de abordar a questao é pela suposigao de que com o tempo tais pretos-velhos revoltosos tenham em muitos lugares se (con)fundido com os exus, perdendo sua especificidade numa especie de "amalgama simbólica" que condensou num único personagem toda a referencia aos aspectos, por assim dizer, "agressivos" e "ressentidos" que compunham a memoria coletiva da populagao afro-brasileira. Tal suposigao parece verossímil tendo em vista que muitos pesquisadores cometeram em seus estudos fusoes (e confusoes) semelhantes. Seja como for, dentre as referencias existentes a essa outra faceta do preto-velho, geralmente vagas e pontuais, destaca-se o estudo de Lapassade e Luz (1972). Os autores categóricamente relatam a existencia de entidades que configurariam urna especie de subtipo "insurgente" de preto-velho, as quais denominam "pretos velhos quimbandeiros": Exu nao é o mestre único e absoluto do terreiro de Quimbanda, mas é ele que encontramos mais frequentemente, é o mais conhecido e popular com suas mulheres Pomba-Gira e Maria Padilha. Existe ainda na Quimbanda entao, os "caboclos quimbandeiros" e também os "pretos velhos quimbandeiros". Se os Exus representam os heróis da revolta Palmarina esses indios e esses escravos foram aqueles que lutavam lado a lado pelo Quilombo, os primeiros ñas matas, os segundos na senzala, incentivando e apoiando a insurreigao (pp. XVI-XVII). Lapassade e Luz (1972) nao esclarecem se o uso dessa terminología adjetivada é intrínseco ou nao aos dados obtidos por eles em campo, ou seja, se os próprios umbandistas interlocutores da pesquisa utilizavam-se de tal "subclassificagao". É bastante provável que nao, tendo sido essa nomenclatura criada pelos autores para marcar o lugar que estas entidades "quimbandeiras" ocupariam dentro do suposto confuto entre umbanda - segundo os autores desmembramento religioso conformado á moral e aos bons costumes dominantes - e quimbanda ou macumba - face mágica e contestadora que contaría a historia da luta de libertagao presente na memoria coletiva das carnadas populares - cujas entidades (exus, pombagiras, "pretos velhos quimbandeiros" e "caboclos quimbandeiros") e práticas rituais seriam "símbolos de urna proposigao libertaria", de urna especie de contracultura de libertagao constantemente vítima de tentativas de repressao por parte da sociedade dominante. Apesar de polémico em suas conclusoes, e descuidado e reducionista em sua linha argumentativa, o estudo tem o mérito de entrar a fundo numa outra faceta da religiosidade popular e mostrar que o fenómeno da possessao umbandista consubstanciado no vastíssimo imaginario social brasileiro pode ser mais complexo e variado do que se supunha. Diana Brown (1994) é outra autora a confirmar de forma inequívoca a existencia de tais espíritos, associando-os diretamente as figuras históricas dos escravos negros fugitivos, revoltosos e feiticeiros, e aos exus: Exús have another form of identity, however, through which they often exercise their black arts. Exú may be "crossed" (5) with a Preto Velho. He may thus regain an African identity, which goes far in suggesting the degree to which, as a simple Exú, he has lost it. An Exú crossed with a Preto Velho, one of the most potent figures in Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 -ice Quimbanda, represents a figure familiar in Brazilian history and literature: the evil or amoral slave, the feiticeiro (África n sorcerer). As historical figures, sorcerers were active in opposing individual masters and in fomenting slave revolts. They were greatly feared by slaveowners and represented symbols of resistance to the slave regime (p. 75). Outro autor que merece destaque, dada sua enorme relevancia no quadro dos estudos afro-brasileiros (6), em relagao á referencia que faz acerca da existencia de espíritos "quilombolas" é Bastide (1971), que discorrendo sobre questoes de conflitos raciais no Brasil e em outros países escravagistas vai afirmar que "a sociedade branca também criou, para se defender e se justificar da escravidao, dois tipos de negros: o 'negro bom' (Pai Joao) (7) e o 'negro mau'" (p. 437). Segundo Bastide, inspirando-se nesses modelos o espiritismo, com efeito, distingue duas especies de espíritos africanos: os negros maus, que só descem para fazer o mal, trazer a doenga, a desgraga e a discordia aqui embaixo e que o médium deve expulsar depois de um pequeño discurso de moral para os fazer voltarem a melhores sentimentos; e, em segundo lugar, os negros bons, que só descem ante a perspectiva de poderem fazer um pouco de bem á humanidade sofredora. Ora, que é o negro mau senao a imagem do negro quilombola, do negro criminoso, enquanto o bom negro, personificado em Pai Joao, representa o escravo conformado, submisso - ou, como se diz nos Estados Unidos, o negro que, em vez de reivindicar, conhece seu lugar, como um animal doméstico. Pai Joao é o velho africano, de cábelos que já embranqueceram, que conta historias do "tempo em que os animáis falavam", que canta para os filhos do senhor branco antigás cangoes dolentes, que leva surras mas retribuí o mal com o bem, devotado, sempre pronto aos maiores sacrificios (p. 437). E concluí, salientando um aspecto que, se por um lado nao pode deixar de ser considerado como também tendo desempenhado seu papel na conformagao da umbanda e de seu panteao, por outro, tomado no sentido enfático e determinante dado por Bastide (1971), comprometido que está com urna apreciagao sociológica do fenómeno, nao deixa de suscitar ressalvas: É na medida em que o negro se amoldava a essa imagem preestabelecida, que ele podia assegurarse do afeto condescendente do seu senhor; o mito serviu a um tempo para tornar a escravidao mais suave e o africano mais submisso. Hoje é curioso verificar que o homem de cor, em vez de se revoltar contra esse estereotipo, o aceita por sua própria conta.... Pois bem: malgrado isso, o preconceito de cor nao deixou de se introduzir no espiritismo brasileiro (p. 438). Como se vé, Bastide (1971) concebe o preto-velho umbandista em última instancia como produto da opressao racial históricamente sofrida pelos negros, ou melhor dizendo, dos efeitos culturáis oriundos desse processo (a aculturagao), Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 i c¿ coerentemente com sua visao abrangente da umbanda como "cultura africana degenerada", desvio individualizante e degradagao mágica no interior do conjunto dos cultos afro-brasileiros. Embora reconhega a experiencia histórica dos negros como referencia para a construgao de seus guias espirituais, Bastide (1971) vislumbra tal recurso por um prisma de negatividade, como mero mecanismo de manipulagao ideológica do negro (tomado como espectador passivo) cujo resultado nao poderia ser outro que nao o seu "enquadramento" em um modelo palatável ao seu papel de subalterno frente as classes brancas dominantes, á custa da sistemática perda de sua identidade africana. Contudo, é importante notar que em momento algum Bastide (1971) faz quaisquer referencias a pretos-velhos ao falar de "espíritos africanos", "bons" ou "maus". Entretanto, mesmo sem ter-se utilizado da nomenclatura propriamente religiosa, para qualquer pessoa familiarizada com a umbanda e seu panteao é absolutamente inescapável a conclusao de que ao falar de "espíritos africanos bons" Bastide está se referindo aos afamados pretos-velhos. Por outro lado, a conclusao de que ao falar em "espíritos africanos maus", inspirados ñas imagens de "negros quilombolas", Bastide (1971) está se referindo áquilo que Lapassade e Luz (1972) chamaram de "pretos velhos quimbandeiros", ou mesmo simplesmente a urna faceta "de esquerda" contida em alguns pretosvelhos, por assim dizer, "desviantes", nao é nem um pouco obvia. De fato, parece muito mais provável que Bastide ao evocar esses espíritos negros de "moral duvidosa" está na verdade referindo-se a outra categoría espiritual muito conhecida do panteao umbandista, a saber, os "senhores da esquerda", os exus. Na realidade, tal ambiguidade latente no texto de Bastide (1971) de forma alguma deve ser tomada apenas no sentido de urna falta de precisao e minucia do autor (8) (o que certamente também é), mas pelo simples fato de manifestar-se já denota, como também atesta Brown (1994), que entre pretos-velhos e exus parece existir algum tipo de aproximagao associativa fundamental, ligagao estrutural de base que permite que em certos contextos possam ser confundidos e tomados como parte ou manifestagao de um mesmo fenómeno, nao obstante em outros possam ser tomados como manifestagoes inteiramente diferentes no conjunto da cosmología religiosa. E de fato tal elo associativo entre exus e pretos-velhos nao passou despercebido a outros autores que se prestaram a investigar a espiritualidade umbandista pelo prisma da configuragao específica de seu panteao, sendo, certamente nao por acaso, enfatizada sobretudo por aqueles que tentaram compreendé-la a partir da dinámica concreta das relagoes raciais (Bastide, 1971; Montero, 1985) ou sóciohistóricas (Brown, 1994) existentes no seio da sociedade brasileira; ou que ao empreenderem análises focáis acerca do personagem exu (Trindade, 1985; Ortiz, 1991) perceberam a importancia dos atributos "negro" e "africano" como componentes importantes de sua cara eteriza gao (9). Dessa forma, sendo os exus negros margináis e demonizados e os pretos-velhos negros (por excelencia) velhos, submissos e domesticados, parece ser exatamente em torno do significante identificatório "negro" que se constrói a ponte simbólica que une esses dois universos tao próximos e ao mesmo tempo tao distintos. Ainda a respeito da importancia do elemento "negro" na constituigao de entidades que compoem o campo do sagrado umbandista, nao vai faltar quem inclua outras categorías nesse "circuito simbólico", como Concone (2001), que caracteriza os relativamente recentes espíritos baianos como "negros jovens, mestigos e migrantes" (p. 292), e mesmo os tradicionais caboclos como "indios negros" (Concone, 1987, p. 27), ambos supostamente produtos do cruzamento entre ragas que marcou e ainda marca a modelagem do povo brasileiro. Para concluir a questao acerca da existencia de elementos moralmente ambiguos ou "de esquerda" contidos no interior da categoría espiritual preto-velho, cabe Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 -icn constatar que outras referencias constam na literatura somando-se as já citadas. Em seu conjunto, pode-se distinguir entre as que inequívoca e diretamente se referem aos pretos-velhos (Brown, 1994; Lapassade & Luz, 1972; Birman, 1985; Santos, 1998; Nunes-Pereira, 2006 (10); Souza, 2006 (11)), seja no quadro de urna especie de "subcategoria", seja como pretos-velhos particularizados com características "desviantes" do modelo "tradicional" ("cruzados" ou com estilo e características mais próximas dos exus), seja ainda como tragos de ambiguidade identificados em pretos-velhos que a urna primeira vista parecem conformar-se ao estereotipo comumente aceito; e, por outro lado, as referencias indiretas que na verdade resvalam no universo dos exus (Bastide, 1971; Montero, 1985; Hale, 1997), estabelecendo entre estes e os pretos-velhos explícitas confusoes sugestivas de implícitas pontes simbólicas que permitem pensá-los de forma mais integrada, inseridos no contexto de um "complexo" mais ampio. Vale destacar, a título de ressalva, que tais referencias nao podem ser tomadas em seu conjunto como manifestagoes de um mesmo fenómeno, mas apenas como indicios variados da existencia de ambiguidades em meio ao universo simbólico dos pretos-velhos umbandistas. Afinal, é evidente que quando um pesquisador estabelece associagoes ou faz aproximagoes, implícitas ou explícitas, entre pretos-velhos e exus, isso nao pode significar a mesma coisa que um pai-de-santo referir urna nova entidade incorporada em seu terreiro como sendo um "preto-velho quimbandeiro" (Lapassade & Luz, 1972) ou um "preto-velho de tronqueira" (Souza, 2006). Em outras palavras, a existencia de pretos-velhos com características notadamente próximas as dos exus, ou mesmo as dos baianos, nao tem o mesmo peso e implicagao que a referencia explícita destas entidades como sendo "cruzadas", ou ainda como compondo um tipo de subcategoria espiritual com características próprias discerníveis pelos médiuns que os incorporam e pelos religiosos com os quais interagem. Portanto, nao obstante o significativo número de referencias existentes na literatura, em grande medida meramente descritivas e desinteressadas - poucos autores levaram a cabo, e apenas incidentalmente, reais esforgos em analisá-las e teorizá-las - a verdade é que escasso conhecimento sistemático já foi produzido acerca desses "outros pretos-velhos". Expressao de parte importante da memoria coletiva e histórica afro-brasileira, os pretos-velhos parecem guardar sentidos dispersos e ainda inexplorados em heterogeneidades consubstanciadas em construgoes imaginarias que remetem a diferentes dimensoes da escravidao (resignagao e revolta), da umbanda ("direita" e "esquerda") e da própria condigao (existencial e moral) humana. Numa religiao dinámica e criativa como a umbanda, constantemente aberta a novas modalidades de manifestagao do sagrado, onde mesmo no interior de urna determinada categoría espiritual como as caboclas (Bairrao, 2003) ou os exus (Bairrao, 2002) podem-se prospectar diferentes composigoes simbólicas circunscritas em torno de subdivisoes e subtipos frequentemente reconhecidos e legitimados pelos próprios religiosos, sem dúvida vale a pena dedicar esforgos na investigagao de heterogeneidades e filigranas sutis acerca das particularidades na vivencia do sagrado de específicos médiuns e terreiros. No que tange aos pretosvelhos a literatura parece corroborar amplamente que tal recomendagao é nao apenas válida, mas indispensável e urgente para o aprofundamento dos saberes a seu respeito. Preto-Velho X Caboclo: paradigmas antagónicos e complementares Muitos estudiosos da umbanda ao tentarem descrever e analisar as diferentes categorías espirituais que compoem seu panteao deram-se conta da utilidade de urna abordagem comparativa no empreendimento da tarefa. Essa forma de proceder certamente se justifica na medida em que essas categorías parecem Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 i co compor em seu conjunto um sistema lógico, tomando sentido apenas através de tramas dinámicas de relagoes (similitude, oposigáo, aproximagáo, distanciamento, combinagáo) estabelecidas urnas com as outras. Em relagáo aos pretos-velhos, nao obstante as referencias que os colocam em associagáo e proximidade com exus, baianos e até changas (12) (Birman, 1985; Negráo, 1996), foi a categoría dos caboclos a escolhida pela maioria dos pesquisadores como modelo comparativo privilegiado para se definirem as características fundamentáis que circunscrevem "quem sao" e "para que servem", sendo a recíproca igualmente verdadeira. Longe de ter sido meramente arbitraria, tal escolha funda-se no fato de muitos pesquisadores terem visto, cada qual a seu modo, caboclos e pretos-velhos como paradigmas que definiriam no conjunto do sistema cosmológico os eixos antitéticos (polos antagónicos) e complementares fundamentáis daquilo que a umbanda elaboraría sócio-culturalmente. Diana Brown (1994) dedicou um capítulo inteiro de seu clássico estudo sobre a umbanda á reflexáo dos pretos-velhos e dos caboclos em suas implicagoes e fungoes no interior da cosmología religiosa. A autora define os pretos-velhos, em contraste com os caboclos, da seguinte forma: These "Oíd Blacks" are the spirits of Áfricans enslaved in Brazil, generally slaves from Bahia. All are elderly, and they are named and addressed familiarly and affectionately in kin terms: Vovó (Grandmother) or Vovó (Grandfather), Tía (Aunt), and Tío (Únele), Mae (Mother), and less often, Pai (Father). They are characterized as humble, patient, long-suffering, and good. Umbanda leaders repeatedly stressed to me their humildade (humility), bondade (fhendship), and caridade (charity) and tended to characterize then as subservient. In contrast to the Caboclos, they are considered to be naturally endowed with humility and extremely anxious to help humans in any way they can. It is said that they love to exercise their many talents in curing and resolving family problems (pp. 67-68). Em outro trecho Brown (1994) estabelece a oposigáo entre pretos-velhos e caboclos de maneira ainda mais enfática; entretanto, salienta que longe de representar urna potencial fonte de confuto, tal antagonismo se funda em urna relagáo de complementaridade: The Pretos Velhos are polar opposites of the Caboclos: elderly, humble, patient, subservient, where the Caboclos are young and vital, arrogant and vain.... If Preto Velho symbolize the transcendence of various forms of suffering slavery, oppression, and illness - Caboclos may represent the other face of non-European Brazil: the independence of those who never experienced slavery, age, illness, oppression, or the yoke of foreign colonization. These two figures thus present complementary images: a utopian image of youth, vigor, health, independence, pride; and the reality of oppression, suffering, age, and infirmity. Múltiples symbols, they lend themselves to interpretation as emblems of literary romanticism, nationalism, independence, heroic Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 forefathers, and the transcendence of suffering (pp. 69-72). Note-se que embora aprésente ambas as categorías como símbolos complexos centráis na articulagao de supostos temas umbandistas fundamentáis - tais como a elaboragao de urna identidade nacional, do sofrimento e da heranga histórica e ancestral brasileira - Brown (1994) nao deixa de defini-las reciprocamente, tomando-as como composigóes diametral mente inversas e, concomitantemente, complementares. Outra autora a ressaltar pretos-velhos e caboclos como elementos centráis e antagónicos do panteao umbandista é Concone (1987), que os define como representagóes de dois modelos possíveis de agao disponíveis as carnadas populares, instrumentos de expressao e elaboragao de conflitos e tensóes sociais a partir do jogo de ambiguidades estabelecido em torno dos ideáis de "sofrimentoredengao" e "luta-liberdade": As figuras realmente importantes na Umbanda sao os Chefes espirituais e os Guias, Caboclos, os Pretos Velhos, as changas e numa outra dimensao os Exus. Com frequéncia a Umbanda é definida como a Religiao dos Caboclos e Pretos Velhos. Do ponto de vista social esta é realmente a dimensao que consideramos mais importante na análise da Umbanda. Quase poderíamos definir como urna opgao popular entre dois possíveis modelos de agao: o Caboclo, que é o indio (embora como já vimos seja também negro), é altaneiro, viril, valente, lutador.... O Preto Velho é considerado um "espirito de muita luz", porque muito sofrido. É humilde, compreensivo, está sempre pronto a ajudar.... se apresenta curvado, fala urna algaravia (quase sempre necessita de tradutor) que se considera como sendo "angolano" ou "africano" de modo geral. Chama todos de "meu fio"; sua danga é calma. Fuma cachimbo e usa bastao para se apoiar (pp. 141-142) Em trabalho mais recente com o sugestivo título "Caboclos e Pretos-Velhos da Umbanda", Concone (2001) retoma o tema de maneira mais pormenorizada, concebendo de partida pretos-velhos e caboclos como figuras-chave da cosmología umbandista e da identidade nacional: Parece inegável que as figuras-chave (tipos de personagens) sao os caboclos e pretos-velhos, de um lado, e os exus e pombagiras, de outro. Gostaríamos de sugerir, como hipótese, que os demais tipos (ou pelo menos muitos deles) se relacionam aos principáis como desdobramentos desses (pp. 282-283). Na tentativa de dar conta da dialética sutil interna ao campo umbandista em relagao áquilo que ele supostamente elabora socialmente, Concone (2001) estabelece um ampio quadro comparativo dos atributos e características dessas duas categorías de entidades, dentre os quais se destacam os seguintes pares de oposigóes: (preto-velho/caboclo); velhice/juventude; fragilidade/forga; bondade/justiga; autoridade familiar/chefia; calma/agitagao-movimento; escravidao/liberdade; trabalho/nao trabalho; símbolo rural/símbolo da mata (natureza); humildade/arrogáncia; "chstianismo"/"paganismo"; postura curvada/postura ereta; movimentos lentos/movimentos rápidos; movimentos contidos, para dentro/movimentos abertos, para fora; uso de bengala/figuragao de Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 arco e flecha; fumam cachimbo/fumam charuto; silenciosos/barulhentos; fisionomía calma/fisionomia tensa (pp. 286-289). Concone (2001) concluí discorrendo acerca da importancia dos pretos-velhos e caboclos enquanto "símbolos da brasilidade" capazes de elaborar sentidos sociais e simbolizar movimentos sociológicamente significativos no ámbito da sociedade contemporánea, emergindo como matrizes fundamentáis que recolocam a questáo das origens e raízes da identidade nacional. Birman (1985) é outra autora a salientar o papel decisivo desempenhado por pretos-velhos e caboclos, juntamente com criangas e exus, naquilo que a umbanda supostamente apresenta e elabora diacríticamente. Partindo da apreciagáo das características, formas de manifestagáo e fungoes religiosas dessas quatro classes de espíritos, Birman (1985) propoe um esquema de classificagáo e organizagáo do panteáo umbandista embasado em tres eixos, cada qual correspondendo a um distinto dominio da experiencia humana e a urna específica entidade, com seus respectivos atributos: O conjunto assim formado se ordena, pois, pela interagáo de tres dominios básicos: a natureza, o mundo civilizado representado pelo espago familiar e doméstico e o muño marginal situado no espago da rúa e áreas periféricas. E os tres dominios sao organizados de acordó com algumas oposigoes; retomemos o quadro inicial: [1] Natureza (caboclos): selvagens, orgulhosos, independentes do homem branco; [2] Mundo civilizado (pretos-velhos/changas): domesticados, humildes (escravos), irreverentes (criangas), dependentes do homem branco; [3] Mundo marginal (exus): avessos á ordem, desobedientes, margináis (p. 44). Assim, no quadro de seu esquema classificatório, Birman (1985) apresenta os pretos-velhos da seguinte forma: Em oposigáo aos seres da natureza, os caboclos, temos os pretos-velhos, associados, juntamente com as criangas do astral, ao dominio da civilizagáo. Os pretos-velhos se apresentam no corpo dos médiuns como figuras de velhos, curvados pelo peso da idade, falando errado, pitando um cachimbo, bebendo vinho numa cuia, numa imagem que pretende retratar fielmente o ex-escravo africano das senzalas brasileiras do século passado. A elaboragáo deste tipo faz sobressair com vigor a condigáo de pretos e escravos. Por vezes, ouvimos nos terreiros referencias aos pretos-velhos como grandes feiticeiros (...). A essa feigáo intimidante associada á magia negra se contrapoem as qualidades que mais se destacam nesse tipo: os pretos-velhos sao vistos como bondosos, humildes, generosos e paternais (...). O predominio dessas qualidades afetivas na construgáo dos pretos-velhos como personagens da umbanda se dá pelo fato de serem eles pensados como elementos subordinados (escravos) numa área em que a nossa sociedade os coloca como predominantes das relagoes Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 i ¿-i afetivas e de parentesco - a área doméstica. Assim, apesar de grandes feiticeiros, os pretosvelhos sao aqueles que foram vencidos pelo afeto e sentimentos paternais, estabelecendo com seus senhores urna relagáo de lealdade, como humildes servidores da casa-grande (pp. 40-41). Concebido a partir de um modelo esquemático comparativo, o preto-velho é destacado por Birman (1985), em contraste com o exu e com o caboclo, como representagáo da dimensáo "doméstica" da vida humana - em sentido ampio, nao apenas em termos dos vínculos familiares de cuidado e afeto, mas também daquilo que fundamenta e torna possível o processo civilizatório, ou seja, a solidahedade entre os homens e o imperativo da ordem social. Por outro lado, permanecem atrelados a urna condigáo de subalternidade e subserviéncia enquanto ex-escravos de origem africana dotados de qualidades afetivas capazes de obliterar suas feigoes intimidantes associadas ao poder da feitigaha. Embora demasiadamente comprometida com urna concepgao da umbanda enquanto culto de inversáo social, Birman (1985) oferece, por meio de seu sistema classificatório e das análises que faz do preto-velho, subsidios para se pensar de forma mais integrada e orgánica algumas nuances importantes acerca dessa categoría espiritual que se nao passaram despercebidas a outros autores, foram abordadas de forma superficial ou pouco sistemática. No que tange ainda ao preto-velho enquanto representagáo do mundo civilizado, Lima (1997), partindo de um enfoque teórico-metodológico bastante particular no campo dos estudos afro-brasileiros (denominado de "Metapsicanálise"), propoe um esquema "funcional-psicológico" de classificagáo e organizagáo do panteáo umbandista (13), em que define os pretos-velhos como entidades inequívocamente ligadas a fungóes "disciplinadoras". Como portadores e guardióes dos imperativos da ordem e da disciplina, os pretosvelhos atuariam junto aos seus devotos através de aconselhamentos, orientagóes e, quando necessário, repreensóes e censuras, exercendo urna autoridade "paternal" moralmente atinada, sem, no entanto, jamáis incorrerem em urna postura repressiva, autoritaria ou arrogante: A agáo disciplinadora dos pretos-velhos e das vovós se exerce de modo muito mais sutil, principalmente num sentido mais ampio da disciplina, orientando e aconselhando seus consulentes. É de se ressaltar que a característica do tratamento que essas entidades dáo ás pessoas é urna grande delicadeza, meiguice, tolerancia e simpatía. Há urna tónica efetiva paternalista que envolve o consulente num clima de familiaridade, deixando-o totalmente descontraído para que possa abrir o coragáo e expor com sinceridade os problemas que o afligem (Lima, 1997, p. 138). Finalmente, Ortiz (1991) empenhou-se em analisar o panteáo umbandista e as entidades que o compoem partindo de urna abordagem conjuntural atinente aos aspectos mais gerais da sua concepgao acerca da umbanda enquanto fenómeno social. Na mesma diregáo de outros pesquisadores, Ortiz define pretos-velhos, caboclos, exus e changas como as categorías fundamentáis do "complexo" espiritual da umbanda: Em principio existem quatro géneros de espíritos que compoem o panteáo umbandista; podemos agrupá-los em duas categorías: a) espíritos de luz: caboclos, pretos-velhos e changas - eles Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 formam o que certos umbandistas chamam de "triángulo da Umbanda"; b) espíritos das trevas os exus. Esta divisao corresponde á concepgao crista que estabelece urna dicotomía entre o bem e o mal; enquanto os espíritos de luz trabalham únicamente para o bem, os exus, em sua ambivalencia, podem realizar tanto o bem quanto o mal, mas representam sobretudo a dimensao das trevas (p. 71). Embora aprésente em seu esquema classificatório pretos-velhos e caboclos como partes de um mesmo eixo "de luz" (correspondente á "direita" umbandista) em oposigao aos "trevosos" exus, Ortiz (1991) estabelece ainda urna divisao fundamental entre ambos, diretamente relacionada e representativa dos processos que segundo o autor definem a dinámica intrínseca á umbanda desde sua formagao e ao longo de todo seu desenvolvimento no ámbito da sociedade brasileira; a saber, como explícita o título de seu trabalho, a morte branca (aculturagao brasileira) do feiticeiro negro (raiz africana): Com a parte brasileira dominando assim a parte africana, pode-se observar urna oposigao nítida entre o comportamento valoroso dos caboclos e a humildade dos pretos-velhos. O mimetismo do transe traduz fielmente esta superioridade do caboclo em relagao ao preto-velho. Enquanto os espíritos fortes e arrogantes dos indígenas se manifestam sempre de pé, o involucro material que envolve o transe dos pretos-velhos os obriga a se curvarem em diregao ao solo, como se fosse ai seu verdadeiro lugar.... Foi a historia brasileira, isto é, a historia escrita pelos historiadores que estabeleceu a idéia de superioridade do indio sobre o negro, pois atribuiu-se somente aos indígenas a aptidao de se revoltarem contra a escravidao dos brancos. Desse modo, enquanto o indio é visto como aquele que se revolta contra a forma de trabalho escravo, ao negro se associa o estereotipo da aceitagao passiva do sistema escravocrata.... Ao mau trato que o senhor de engenho Ihe inflige ele deve responder pela compreensao e pelo amor: gragas a esta malicia dos fracos ele se vé recompensado pelo Senhor Deus (pp. 73-74). Como se vé, Ortiz (1991) concebe os pretos-velhos em urna posigao de inferioridade em relagao aos caboclos, tal hierarquizagao sendo tomada como parte da sistemática desvalorizagao dos elementos propriamente negros e africanos da religiao em detrimento de valores mais compatíveis com a moral dos grupos dominantes e com seus ideáis de brasilidade, no quadro abrangente dos esforgos empreendidos pelos umbandistas em busca de afirmagao e legitimagao junto á sociedade abrangente. Entretanto, tal concepgao parece ser justificável apenas se circunscrita á umbanda tal como pensada pelo movimento federativo e pelos intelectuais de classe media interessados em seu "embranquecimento". E de fato, as análises de Ortiz (1991) parecem em muitos momentos focarem-se demasiadamente na literatura umbandista produzida por tais intelectuais, tomando tal dimensao letrada e doutrinária da religiao como representativa de seu todo, o que, como demonstrou Negrao (1996), configura um grande equívoco. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Assim, apesar do mérito de ter se dado conta da importancia do preto-velho enquanto categoría de celebragao e elaboragao da negritude, do sofrimento (recompensador) e da velhice - sugerindo um esquema baseado no ciclo vital em que concebe ainda os caboclos como representantes da fase adulta e as changas espirituais como representantes da infancia - as análises de Ortiz (1991) deixam a desejar, ao menos no que tange aos muitos terreiros que pouca ou nenhuma influencia recebem das produgoes literarias e do movimento federativo umbandista. Pelas mesmas razoes Ortiz (1991) também comete o já referido engaño de afirmar precipitadamente que na Umbanda nao há lugar para os negros quilombolas que se insurgiram contra o regime escravocrata; como a memoria coletiva umbandista coincide com os valores dominantes da sociedade brasileira, ela somente conserva os elementos que estao em harmonía com esta mesma sociedade (p. 74). A esse respeito, cabe ainda a ressalva de que Ortiz (1991) investigou a umbanda enquanto fenómeno intrínsecamente urbano, supostamente surgido no ámbito dos processos de industrializagao e modernizagao das grandes metrópoles brasileiras do Sudeste. Entretanto, tem-se sugerido nos últimos anos que a conformagao de personagens quilombolas e feiticeiros no interior da linha dos pretos-velhos parece ter ocorrido principalmente em meio a ambientes rurais (Souza, 2006). Em suma, parece evidente, por um lado, que a apreciagao do preto-velho pela via de urna abordagem comparativa, sobretudo no que tange ao contraste com os caboclos, possibilitou a produgao de novos saberes acerca de sua posigao no contexto do panteao umbandista, e de seu sentido e fungao no ámbito da religiao como um todo. Mas, por outro lado, é também inegável que tais contribuigoes deixam a desejar no que se refere á consolidagao de um conhecimento aprofundado e refinado sobre o preto-velho enquanto fenómeno em si mesmo. Isso se deve, ao menos em parte, as pretensoes que nortearam os estudos que se valeram dessa abordagem, em geral mais preocupados em investigar lógicas subjacentes ao fenómeno umbandista como um todo do que em desdobrar e refletir com minucia as particularidades inerentes aos seus referidos "componentes". Entretanto, outra razao parece sobressair-se frente a urna reflexao acerca dos limites de um procedimento exclusivamente comparativo, ou seja, o enquadramento do fenómeno em esquemas classificatórios extrínsecos á sua especificidade e dinamicidade próprias. Em outros termos, ao inserir o preto-velho em taxonomías supostamente capazes de apreender urna ordem subjacente á fundamentalmente impersistente possessao umbandista, tais estudos parecem ter também podado-o em suas potencialidades subjetivamente interpeláveis e o achatado em sua vivacidade pragmáticamente manifesta em múltiplas e sempre renováveis conformagoes. Tal situagao só comegou a ser superada a partir da segunda metade da década de 1990, momento em que os saberes sobre o preto-velho deram um salto qualitativo com as primeiras iniciativas empreendidas por pesquisadores no sentido de estudálo em si mesmo, tomando-o como tema central e foco de suas investigagoes. Focalizacóes contemporáneas: múltiplos sentidos, múltiplos "usos" Além do grande volume de referencias "panorámicas" acerca do preto-velho contidas na literatura, feitas como que de passagem em trabalhos cujas temáticas giravam em torno de urna compreensao orgánica do fenómeno umbandista, nos últimos anos foram realizados estudos que se empenharam numa abordagem de maior alcance acerca dessa categoría de espíritos, tomando sua investigagao pormenorizada como objetivo central. Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 i ¿A Lindsay Hale (1997), em seu artigo intitulado "Preto velho: resistance, redemption, and engendered representations of slavery in a Brazilian possession-trance religión", investigou os pretos-velhos partindo de seu trabalho de campo junto a quatro terreiros de umbanda bastante heterogéneos - de periferia a classe media; de "raiz africana" a "énfase no kardecismo" - localizados na cidade do Rio de Janeiro. A autora argumenta que os pretos-velhos funcionariam como símbolos privilegiados capazes de estabelecer a mediagao entre os adeptos do culto umbandista e temaschave contidos na memoria coletiva e na ideología religiosa brasileira, especies de veículos portadores e transmissores de mensagens por meio das quais os umbandistas interpretariam e elaborariam temas sociais fundamentáis e cotidianamente presentes em suas vidas, dentre os quais se destacariam: (opressao de) raga; racismo; (opressao de) género; sexualidade; poder e hierarquia (14); ambiguidade moral; identidade nacional; dominagao; exploragao; violencia; resistencia; rebeldía; sofrimento; redengao (transcendencia espiritual); e moralidade crista (Hale, 1997, p. 393). Ciente da complexidade do fenómeno - tanto em termos da multiplicidade de formas e atitudes que podem ser assumidas pelos pretos-velhos, quanto da enorme variedade de interpretagoes e recortes a partir dos quais eles podem ser analisados - Hale (1997) sintetiza o escopo de seu trabalho da seguinte forma: My interpretative strategy casts the pretos velhos as sign-vehicles through which Umbandistas speak to and embody Brazilian dramas of race and power. I focus on stories about and representations of pretos velhos in terms of three recurrent, interrelated themes. These include the inscription of power on the tortured body of the preto velho; the sexualization and gendering of unequal power; and what I will cali the quasiHegelian dialectic of master and slave and the slave's struggle for a full humanity, which in the emic perspective takes the form of a dialectic between rebellion and an explicitly Christian ethos of spiritual transcendence (p. 395). Como se observa, Hale (1997) enfatiza o preto-velho enquanto resgate da figura histórica do negro escravizado, devotando especial atengao as suas narrativas e figuragóes diretamente relacionadas com representagóes de eventos e vivencias supostamente características do período escravocrata brasileiro. Nesse ínterim, segundo a autora predominariam no preto-velho temáticas de desigualdade (de poder) e opressao (fundamentalmente de raga e género), bem como de expressao e elaboragao de possíveis solugóes face ao drama "desumanizante" da servidao. Nao obstante em suas análises ter cometido algumas imprecisóes - como a confusao entre pretos-velhos e exus, em que os segundos sao tomados indiscriminadamente como um "tipo obscuro" ("the dark one") de preto-velho - e realizado algumas interpretagoes precipitadas e pouco rigorosas, sobretudo no que tange as supostas expressóes e elaboragóes de temas ligados á opressao de género e á sexualidade por parte dos pretos-velhos e, principalmente, das pretas-velhas, o trabalho de Hale (1997) possui o mérito de ter levantado urna serie de novos significados e nuances do preto-velho umbandista, constituindo-se em contribuigao relevante para urna compreensao mais abrangente do mesmo. Outra autora a oferecer importantes aportes é Eufrázia Santos (1998) em sua dissertagao intitulada "Preto Velho: as varias faces de um personagem". Santos concebe o preto-velho como um personagem-símbolo construido a partir de um conjunto sempre mutável de representagóes sociais que por meio de arranjos e rearranjos produzidos desde o que a autora denomina como seu "arquetipo" mais Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 tradicional dáo continuamente origem a novas e diversas modalidades, sempre em conformidade com os interesses e os valores próprios dos grupos religiosos em meio aos quais se registra a sua presenga. Nesse sentido, argumenta em favor da existencia de ¡numeras versoes diferentes do preto-velho, discerníveis enquanto tais a partir do quadro de referencia de sua particularidade étnica e racial. Complexo, multifacetado, dinámico e polivalente, o preto-velho sob o olhar de Santos (1998) revela-se um personagem hábil em refletir e elaborar urna serie de contradigoes, valores e instituigoes de suma importancia no seio da sociedade brasileira, tais como: nacionalismo, relagoes raciais, (memoria da) escravidáo, brasilidade, trabalho, familia, obediencia, hierarquia, e humildade. Santos (1998) destaca que a sua presenga de forma alguma está restrita aos notorios contextos umbandista e kardecista, extrapolando para outros dominios (profanos) da cultura brasileira, tais como o folclore e a literatura, instancias produtoras de clichés e caricaturas sobre o negro que, inclusive, ao migrarem para o campo do sagrado teriam servido de inspiragáo para a construgáo de suas versoes religiosas. A presenga do preto velho extrapola o dominio religioso, a referencia ao mesmo pode ser encontrada nos diversos registros culturáis: música, folclore, literatura, poesia. É um personagem que goza de um certo reconhecimento público, fora do circuito religioso, fato que pode ser fácilmente percebido ñas rúas.... Enfim, a densidade do preto velho enquanto personagem religioso, bem como o registro de sua presenga em espagos nao religiosos teve como exigencia o reconhecimento de suas ligagoes com a cultura brasileira (p. 4). Cabe ressaltar que os pretos-velhos sao ainda enfatizados por Santos (1998) enquanto símbolos nacionais, referencias de brasilidade, na medida em que sao construidos em contexto religioso como antepassados negros e escravizados (portanto afro-brasileiros) que representariam a preservagáo do culto aos ancestrais (mortos) enquanto instituigáo religiosa de origem africana (banto) em térras brasileiras. Nesse sentido, Santos (1998) se contrapoe aos pesquisadores que conceberam a construgáo do personagem preto-velho como símbolo nacional apenas enquanto parte do processo de purificagáo (na interpretagáo de Bastide), embranquecimento (na interpretagáo de Ortiz) ou de aculturagáo (na interpretagáo de Brown) dos elementos da cultura africana existentes no interior do sistema umbandista.... a particularidade étnica do preto-velho enquanto personagem religioso é a de ser um personagem brasileiro, urna representagáo religiosa original da figura negra, oposta á figura dos orixás do candomblé (pp. 60-61). Em síntese, segundo a autora O reconhecimento público das diferentes modalidades ou versoes de preto velho existentes, respalda a sua construgáo como símbolo nacional. Gostaria de evidenciar em particular, sua condigáo como ancestral, urna ancestralidade definida pela hereditariedade social, física e cultural do negro brasileiro. Sem qualquer pretensáo de concluir, estou inclinada a Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 -i¿¿ admitir que a importancia sociológica e religiosa do preto velho nao é informada pela cor do personagem, mas pelo conjunto de temas culturáis e religiosos que ele veicula (p. 134). Sergio Nunes-Pereira (2006) também oferece contribuigoes ao campo das investigagoes acerca dos pretos-velhos em sua dissertagáo intitulada "É meu avó, ora! Um estudo sobre pretos-velhos no imaginario social brasileiro". Apoiado nos pressupostos da psicología da cultura, tal como pensada por Augras (1995), e no método fenomenológico, e subsidiado em suas análises por aportes extraídos da psicanálise winnicottiana, o autor poe em evidencia alguns aspectos das relagoes estabelecidas entre umbandistas e pretos-velhos, enfatizando a sua organizagáo em torno da assungao de papéis e dinámicas afetivas de natureza típicamente familiar (tais como avós, avós, pais, máes, tios e tias). Segundo Nunes-Pereira (2006), tais papéis familiares, conformativos dos vínculos e vivencias psíquicas e emocionáis frequentemente estabelecidas com os pretosvelhos no contexto religioso, estáo intimamente relacionados as posigoes assumidas por tais personagens no interior do imaginario social brasileiro, posigoes estas articuladas sócio-historicamente, ou seja, por meio de processos que apenas podem ser compreendidos no bojo de urna ampia leitura das dinámicas sociais e culturáis que históricamente envolveram o negro na construgao da identidade nacional. Nesse sentido, urna vez que a referencia histórica atinente ao preto-velho é a do negro que ao chegar da África se torna ¡mediatamente escravo e ancestral afrobrasileiro, tais entidades passam a ser tomadas no imaginario social contemporáneo nesses termos, como antepassados a serem interpelados familiarmente. Os pretos-velhos representariam, portanto, a ancestralidade coletiva negra intrínseca á formagáo multirracial do povo brasileiro (Nunes-Pereira, 2006). Nunes-Pereira (2006) vai apresentar ainda outros sentidos característicos a partir dos quais os pretos-velhos podem ser pensados e associados: unidade-integragáo (figuras de amor, bondade, compreensáo e perdáo); maternagem (cuidadores e "provedores suficientemente bons"); carisma; caridade; moralidade crista; sofrimento; angustia frente á morte (associagáo ao culto das almas e aos cemitérios); mestigagem (assungao de diversas formas a partir de combinagoes e cruzamentos com outras linhas do panteáo); simplicidade; escravidáo (referenciais identificatórios para a elaboragáo da opressáo social); circularidade (campo de atuagáo ampio e diversificado); e suporte social. Assim, nao obstante algumas colocagoes apressadas, sobretudo no que tange ao diálogo com a literatura antropológica, e análises um pouco sucintas, o estudo de Nunes-Pereira (2006) configura-se como um valioso aporte, oferecendo contribuigoes origináis e constituindo-se em notável exemplo de como urna aproximagáo cautelosa e bem fundamentada entre psicología e cultura pode ser proficua para o estudo de fenómenos sociais como a possessáo umbandista. Mónica Dias de Souza (2006) em sua tese intitulada "Pretos-velhos: oráculos, crenga e magia entre os cariocas" oferece informagoes e análises adicionáis a partir da ampia investigagáo que realizou acerca das múltiplas manifestagoes dos pretosvelhos em meio aos mais diversos contextos, tanto coletivos - no interior de cultos religiosos de caráter espiritualista como a umbanda, o kardecismo, o candomblé ketu, a barquinha e a arca da montanha azul - quanto particulares - na forma de atendimentos individualizados oferecidos por médiuns independentes (consultorios espirituais) e de vivencias espirituais "desinstitucionalizadas" centradas em relagoes íntimas, cotidianas e idiossincráticas estabelecidas com as entidades em ámbito doméstico (pessoal ou familiar). Partindo do questionamento sobre os significados e motivos que estariam por tras da construgao de um personagem religioso pela sacralizagáo da figura histórica do escravo negro, Souza (2006) demonstra as ¡numeras formas pelas quais os pretosMemorandum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 -¡¿n velhos, enquanto espíritos de escravos que autorizam a evocagáo de narrativas de valor histórico, funcionam como símbolos (metonimias) capazes de sustentar múltiplos entendimentos e propiciar ¡numeras possibilidades de elaboragáo da "escravidáo" e do "cativeiro" existentes ñas vivencias cotidianas e concretas de seus devotos contemporáneos. Apesar das variadas formas que assumem e da sua suscetibilidade a modelagens novas e criativas obtidas continuamente em meio aos novos contextos onde se inserem, Souza (2006) empenhou-se em reconhecer e analisar alguns padroes invariáveis subjacentes aos pretos-velhos. Nesse sentido, a autora identificou a existencia de dois polos - ideológico e sensível - em torno dos quais se organizariam modos distintos, embora de forma alguma antagónicos, de apreender (representar) e se relacionar com (vivenciar) tais entidades. Em relagáo aos pretos-velhos, a agáo individual instituí outros usos para as entidades.... Neste circuito de crengas, a idéia predominante de que os pretos-velhos representavam a escravidáo foi fortalecida no ámbito religioso institucional, deixando, porém, de indicar exclusivamente o lugar de "escravo", propriedade do polo ideológico do símbolo, para sobressair os aspectos vinculados ao polo sensível, das emogoes que dele sao extraídas, como por exemplo, a busca pelo apaziguamento das relagoes. Aqui, neste circuito religioso, a partir do universo de representagoes, foi observada a agáo dos sujeitos sobre o uso que fazem de suas crengas (p. 49). Souza (2006) argumenta ainda que as representagoes e atribuigoes dirigidas aos pretos-velhos pelos seus devotos tendem a variar em fungáo da dimensáo específica em que sua apreensáo é feita, seja ela coletiva, pessoal ou íntima. Assim, quando tomados em contextos institucionais e coletivos, enquanto personagens genéricamente referidos a urna determinada categoría espiritual, suas referencias africanas e escravas tendem a ser ressaltadas, bem como suas qualidades de cura e poderes de feitigaria; por outro lado, quando tomados em contextos mais particularizados, tais referencias perdem forga e tendem a ser sistemáticamente ressaltadas as suas representagoes mais familiares e paternais, assim como suas qualidades de protegáo, acolhimento, aconselhamento e companheirismo no enfrentamento das mazelas do cotidiano. Na coletivizagáo os pretos-velhos sao "escravos"; na pessoalizagáo se tornam "Vovó Catarina" ou "Pai Benedito"; mas, na vida íntima dos devotos, eles sao "meu pai" e "minha vovó". Suas potencialidades também sao ressignificadas no fórum privado. Um preto-velho pode ser considerado "curador", como manifestagáo de sua suposta heranga "africana", mas, no recato do lar, ele dissolve brigas, arranja empregos, toma conta de criangas ou resolve problemas de impotencia sexual (p. 174). Além disso, sao de tal forma abrangentes e diversificadas as descrigoes etnográficas e análises empreendidas por Souza (2006) que, num esforgo de síntese, pode ser elencado um vasto repertorio de temas por ela apresentados a partir dos quais os pretos-velhos podem ser pensados e concebidos: escravidáo; moralidade crista; ancestralidade; africanidade; poder mágico (feitigaria); ambiguidade; liminaridade; circularidade; mestigagem (mistura de ragas; "afrobrasilidade"); identidade nacional (brasilidade); consanguinidade (familia e Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 parentesco); evolugáo kármica; iluminagáo (espíritos "de luz"); sabedoria; experiencia (velhice); mediagáo; ignorancia (náo-letramento); redengáo; sofrimento; negritude; inversao (simbólica) e manutengáo da ordem (estrutura) social; humildade; pobreza; caridade; escuta; bondade; cuidado e protegáo; autoridade cordial; harmonía social; paciencia; tradigao; calma; cordialidade; e orientagáo. Na verdade, tais temas configuram verdadeiramente urna especie de rede simbólica e semántica, já que estáo totalmente imbricados por meio de ¡numeras possíveis articulagoes e desdobramentos lógicos. A autora salienta, entretanto, que dentre todas as potenciáis caracterizagoes do preto-velho duas se destacam como classificagoes globalizadoras genéricamente proeminentes: 1) escravo - relacionada á sua posigáo de liminaridade e á sua suposta fungáo simbólica de inversao social (culto á periferia) por meio de urna figuragao ambigua em que se oferece ao excluido poder (mágico) ao mesmo tempo em que se reafirma a sua condigáo, especie de lente da exclusáo que autoriza aos seus adeptos "olhar" e "se olhar" em processos de espelhamento que possibilitam a emergencia de sentimentos de consolagáo, independencia e renovada esperanga; e 2) ancestral - relacionada á sua condigáo de negro "domesticado", bondoso, protetor, guardiáo da tradigao, da familia (lagos de parentesco e consanguinidade) e dos valores da moralidade crista. A esse respeito Souza (2006) acrescenta: As representagoes que devotos e liderangas fazem dos pretos-velhos é de que sao "ancestrais". Geralmente nao discriminam se "ancestral do povo negro" ou "ancestral do povo brasileiro", simplesmente "ancestral" (p. 236). Em suma, o trabalho de Souza (2006), sem precedentes em termos da amplitude, da abrangéncia e do volume de informagoes e análises que oferece, ressalta o preto-velho ácima de tudo como urna entidade espiritual complexa e dinámica plena de possibilidades de conformagáo e representagáo, e em constante rearranjo e transformagáo - nao apenas presente em diversos contextos religiosos e domésticos, mas profundamente arraigada e com lugar de destaque no vasto e poroso (Sanchis, 2001) campo do sagrado brasileiro. Finalmente, em texto mais recente intitulado "Escrava Anastácia e pretos-velhos: a rebeliáo silenciosa da memoria popular", Souza (2007) apresenta as figuras dos pretos-velhos e da Escrava Anastácia como produtos complexos do processo criativo de reflexáo e elaboragáo de memorias da escravidáo no seio dinámico da "cultura popular". Tais memorias, coletivamente construidas a partir da somatória de fragmentos da historia ouvidos e repetidos através das geragoes, consubstanciariam esforgos identitários estabelecidos na trilha de processos de identificagáo - nao restritos á dimensáo étnica, já que embora sejam modelos de negritude tais personagens abrangem sentidos de luta e superagáo que implicam o íntimo das subjetividades humanas - que perfazem os caminhos do passado na busca de referencias significativas capazes de mediar e nortear formas de se reorganizar o presente e enfrentar os desafios e exigencias do cotidiano (Souza, 2007). No que tange específicamente á figura do preto-velho, Souza (2007) pontua que se calca sobre um modelo de agáo fundamentalmente conciliatorio, em que sao enfatizados atributos como a obediencia, a sabedoria, a humildade e, sobretudo, a paciencia. Entretanto, salienta que para além de mera expressáo de resignagáo passiva e moralidade indulgente - interpretagoes tributarias de urna apreciagáo simplificadora do fenómeno - tais dispositivos caracterizam efetivas estrategias de luta e sobrevivencia dos "fracos" frente a contextos desiguais e opressores, recursos habéis de enfrentamento da realidade com vistas á consecugáo de metas de crescimento e superagáo. Representados como escravos que trataram de tragar acordos com os senhores, no plano Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 espiritual revelam-se seres capazes de circular entre esferas superiores e inferiores, com o tránsito livre que sua flexibilidade Ihes confere. Entre negociagao e confuto, o imaginario popular elegeu os pretos-velhos como representantes da paz negociada. Tecer acordos ou circular pelas esferas superiores nao Ihes dotou de um caráter "pelego", mas de sabedoria para alcangar os objetivos fináis (Souza, 2007, p. 27). Conforme pode ser atestado a partir do esforgo de apresentagao aqui empreendido, no breve intervalo de urna década os saberes e dizeres acerca do preto-velho avangaram ¡mensamente. Ao perscrutar o preto-velho foca I iza da mente toda urna nova geragao de pesquisadores rápidamente confrontou-se com a sua complexidade, desdobrando-o em múltiplos sentidos e usos - alguns previsíveis e incontestes, outros notadamente surpreendentes e polémicos - que em muito transcendem as apreciagoes descritivas e "achatadas" realizadas por seus predecessores, o que certamente nao implica que tenham, mesmo tomados em conjunto, se aproximado de esgotarem o assunto. De maneira geral, a impressao que se tem ao vasculhar essas obras é a de certo "caos controlado", sendo bastante evidentes as dificuldades encontradas pelos seus autores em efetuar sínteses frente ao diversificado material empírico á sua disposigao. Em outros termos, após a apreensao de um ampio repertorio de temas e significados da maior relevancia psicológica e social passíveis de serem transmitidos e elaborados simbólicamente pela via do culto ao preto-velho, fica-se com a sensagao de se estar perdido em meio a urna vertiginosa somatória de possibilidades, permanecendo ocultas e inacessíveis as presumíveis estruturas de base que permitiriam sua ordenagao em sínteses coerentes. Que fique bem claro: com isso nao se quer afirmar que os referidos estudos sejam desorganizados ou confusos, que mais nao fosse pelo fato inquestionável de terem sobrios e sólidos edificios argumentativos, tendo ainda atingido com maestría os objetivos a que se propuseram. O que se quer enfatizar é que dada a complexidade do fenómeno, corolária de suas múltiplas possibilidades conformativas, e nao obstante os significativos avangos recentemente alcangados, o campo dos saberes acerca do preto-velho parece ainda carecer de um efetivo desnudamento de suas estruturas organizatórias subjacentes, ou seja, dos eixos simbólicos que, em última instancia, determinam e ordenam o conjunto de suas configuragoes possíveis e impossíveis, de suas potencialidades e limites. A preta-velha: sutilezas de género em um personagem complexo Embora praticamente todos os autores que já apresentaram informagoes e análises acerca do preto-velho tenham confirmado a existencia de variagao de género no quadro de suas manifestagoes, ou seja, reconhecido sua versao feminina, poucos se preocuparam em perscrutar as implicagoes dessa discriminagao, quase sempre se limitando a apresentar apressadas e descritivas alusoes as especificidades características da preta-velha, supostamente pouco significativas e meramente correlativas de seu desdobramento em espirito feminino. Assim, de modo geral as idiossincrasias e nuances das pretas-velhas sao tomadas na literatura científica como presumíveis e lógicas consequéncias da variagao de género no circuito simbólico do preto-velho, cujo resultado foi a simples emergencia de outra versao do mesmo personagem, especie de recomposigao sutilmente acrescida de novos tons, e nao o aparecimento de outra entidade ou subtipo fundamentalmente diferente a partir de material semelhante extraído dos meandros da memoria coletiva (15). Como excegoes merecem destaque apenas os estudos de Montero (1985) e Hale (1997), únicas autoras a nao apenas destacarem a existencia de singularidades Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 próprias inerentes as pretas-velhas, mas a afirmarem que tais entidades consubstanciariam a expressao e elaboragao de efetivas temáticas de género (tais como feminilidade, maternidade e, apenas no caso de Hale, sexualidade), ausentes (Montero, 1985) ou menos salientes (16) (Hale, 1997) na figura dos pretos-velhos. Ao discutir a questao da dualidade masculino/feminino tal como elaborada pela cosmología umbandista, Montero (1985) afirma que se tomarmos em seu conjunto as figuras femininas retratadas no universo simbólico religioso veremos delinear-se, em fungao de cada categoría de espirito, quatro estereotipos bem diferenciados: o estereotipo da jovem virgem representado pelas caboclas; o estereotipo da mae representado por Iemanjá; o estereotipo da mae preta representado pelas pretas-velhas; o estereotipo da prostituta representado pelas pombas-giras (p. 204). Dessa forma, segundo Montero (1985) as pretas-velhas seriam o meio através do qual a umbanda elaboraría urna faceta específica da feminilidade, que a própria autora define como o ideal de mae compreensiva e submissa, dotada de um total desprendimento que a torna capaz de qualquer sacrificio necessário ao bem-estar de sua prole. Enquanto tal, essas entidades representam a própria afirmagao do papel social da mulher, que encontra no casamento e sobretudo na maternidade o lugar a que ela está secularmente destinada (p. 210). Hale (1997), por outro lado, partindo de urna aproximagao mais direta e nao contrastiva com as demais categorías femininas do panteao, encontra ñas temáticas da sexualidade e da opressao sexual - cuja expressao máxima é a alusao ao estupro - referencias importantes das construgoes narrativas das pretas-velhas, articuladas no contorno de suas experiencias enquanto cativas sujeitas ao jugo da escravidao. What of resistance, redemption, suffering, the slave experience, as explored through the characters of Umbanda 's oíd slave women? What are the moral parameters explored and expressed through female biographies and embodiments of Afro-Brazilian slavery? I found this question more difficult to investígate than the struggles of male pretos velhos. Female spirits tended to speak of captivity in vague terms.... But I believe that there is more to the reticence of the women spirits, and it has to do with the gendering of domination. Where Hegel would have the bloody battle of master and slave as the archetypal scene, that is clearly a male avenue. For women, the salient field of resistance and submission was sexual; the rape, not the beating, the primordial insult (pp. 403-404). Em outro trecho, Hale (1997) esclarece o pleno sentido da diferenga que estabelece entre pretos-velhos e pretas-velhas á luz de suas reflexoes a partir da "dialética do senhor e do escravo" de Hegel: According to Hegel, the slave falls because he will not risk his life in a fight to the death with his Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 master. This is clearly a male-centered metaphor and theory of power. It is a man who submits and a man who vanquishes another through physical forcé or by threatening to use it. But when men domínate women in slavery, the idiom of power is thatof sexual possession (p. 405). Assim, Hale (1997) e Montero (1985) parecem divergir em ao menos um ponto fundamental, pois enquanto a primeira concebe as pretas-velhas como potenciáis veículos de expressao e elaboragao de questoes ligadas á sexualidade feminina, ou mais específicamente á violencia sexual e á opressao de género, a segunda, no quadro de seu esquema das figuras femininas da umbanda, vai concebé-las como entidades totalmente dessexualizadas: o fato dessa mae ser representada por urna mulher de idade já avangada retira do elemento feminino seus atributos sexuais e recupera ao mesmo tempo o "lado bom" da mulher: sua fertilidade (Montero, 1985, p. 210). Cabe destacar que embora ambas estejam de acordó com relagao aos esforgos empreendidos pelos umbandistas no sentido de representarem as pretas-velhas como figuras incapazes de sexualidade, Montero (1985) aceita com naturalidade a eficacia desse "esvaziamento", convicta de que no quadro mais ampio do panteao umbandista o lugar para a expressao e elaboragao da sexualidade feminina está garantido pelo culto as pombas-giras. Hale (1997), por outro lado, vai conceber esse propalado "vacuo sexual" como mero disfarce da presenga de urna feminilidade potencialmente ameagadora, mecanismo ativo e moralmente justificado de ocultamento de urna realidade mais profunda, a saber, as pretasvelhas como "símbolos-mártires" denunciantes da opressao da mulher (negra) e do machismo históricamente arraigados no ámago da sociedade brasileira. Apesar das contribuigoes que oferecem, tanto as afirmagoes de Montero (1985) quanto as de Hale (1997) - notadamente polémicas e audaciosas - carecem de confirmagao e esclarecimentos que apenas podem ser obtidos pela via de sistemáticas e refinadas análises capazes de desvendar os reais sentidos e usos da preta-velha, bem como circunscrever seu efetivo grau de demarcagao em relagao ao seu proeminente correlativo masculino. Considerares fináis Personagens complexos e amplamente respeitados enquanto negros, escravos e feiticeiros sacralizados que povoam o imaginario pessoal e coletivo de ¡números setores da sociedade brasileira, está claro que os pretos-velhos já foram muito falados, pensados e teorizados por pesquisadores vinculados as mais variadas áreas do conhecimento e tradigoes intelectuais no interior das ciencias humanas e sociais (17). A literatura em seu conjunto evidencia a grande variedade de perspectivas e enfoques empreendidos ao longo das décadas na tarefa de se conhecer o pretovelho, cada um dos autores que se ocupou do assunto tendo se utilizado de chaves analíticas e recortes metodológicos próprios, muitas vezes ao prego de simplificagoes que nao fazem jus a toda a sua complexidade. De forma geral, pode-se dizer que o campo dos saberes sobre o preto-velho parece ter oscilado de urna produgao fundamentalmente genérica, enquadrante e contextualizadora - com o preto-velho tomado como estereotipo ou "engrenagem" cujo sentido é apreendido como contingente a urna lógica global que Ihe é anterior, a da religiosidade umbandista - para urna produgao focalizada, extensiva e acumulativa - menos preocupada com o seu aprisionamento numa interpretagao geral da umbanda como sistema e mais voltada para o seu entendimento como fenómeno dinámico e independente, passível de múltiplos desdobramentos e capaz Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 -in~ de integrar diversos tipos de composigoes em fungao das variadas situagoes em que se manifesta. Entretanto, tudo indica que existem importantes facetas do preto-velho ainda invisíveis em meio ao vasto acumulo de informagoes postas a descoberto na literatura. É perfeitamente possível, alias, dada a proliferagao de aspectos assinalados nos anos mais recentes, que possam inclusive ter escapado insuspeitos níveis simbólicos mais profundos e estruturantes que aqueles de seus múltiplos, e aparentemente inesgotáveis, sentidos e usos já conhecidos, que por sua vez já caracterizam refinamentos analíticos muito além de seus largamente reconhecidos estereotipos e categorizagoes. Por outro lado, é também plausível supor que alguns dos mais recónditos segredos acerca do preto-velho permanegam indefinidamente escondidos, dado serem estas entidades um retrato aparentemente fiel da condigáo humana experiente, complexa, inconstante e sempre oscilante entre polos de tensáo que no limite marcam os extremos da ampia gama de experiencias e atitudes potencialmente acessíveis ao ser vívente (Bairrao, 2004). Certo é que ainda há muito a ser esclarecido e um longo caminho a ser percorrido na trilha de urna compreensáo mais precisa e completa dessa fascinante categoría de espíritos, nao devendo de forma alguma surpreenderem-se aqueles que, ao percorré-lo, se percebam perpassados por nuances de si mesmos afiguradas e refletidas em narrativas plenas de historia, memoria e humanidade. Referencias Alkmim, T. & López, L. A. (2009). Registros da escravidáo: as falas de pretosvelhos e de Pai Joáo. Stockholm Review of Latín American Studies, 4, 37-48. Assungáo, L. (2001). 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Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 -in* Nunes-Pereira, S. H. (2006). É meu avó, ora! Um estudo sobre pretos-velhos no imaginario social brasileiro. Dissertagao de Mestrado, Departamento de Psicología, Pontificia Universidade Católica, Rio de Janeiro, RJ. Ortiz, R. (1991). A morte branca do feiticeiro negro: umbanda e sociedade. Sao Paulo: Brasiliense. Prandi, J. R., Vallado, A. & Souza, A. R. (2001). Candomblé de caboclo em Sao Paulo. Em R. Prandi (Org.). Encantaría brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados (pp. 120-145). Rio de Janeiro: Pallas. Ramos, A. (1954). O folclore negro do Brasil. Rio de Janeiro: Carioca. Sanchis, P. (2001). Religioes, religiao... alguns problemas do sincretismo no campo religioso brasileiro. Em P. Sanchis (Org.). Fiéis & Cidadaos: percursos de sincretismo no Brasil (pp. 9-58). Rio de Janeiro: EdUERJ. Santana Júnior, S. (2001). A gira dos pretos velhos: semiótica e umbanda. 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Tendo em vista a falta de consenso entre os autores, a forma de grafia que será utilizada ao longo deste artigo - preto-velho (com hífen) - foi fruto de urna escolha, parecendo a mais adequada para evitar imprecisoes e eventuais ambiguidades; afinal, embora seja inegável a sua condigao de "preto" e "velho", o preto-velho enquanto entidade Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 -inc espiritual no contexto religioso afro-brasileiro é algo distinto de um preto velho, que pode ser urna referencia a qualquer pessoa idosa de pele negra. (3) Ao menos no Rio de Janeiro, já que mais recentemente ¡números pesquisadores tém demonstrado que é muito pouco provável que a umbanda tenha surgido desde um único núcleo irradiador, mas sim que tenha congregado sob um mesmo nome e quadros de referencia cosmológica urna miríade de manifestagoes religiosas de origem afro-brasileira surgidas a partir de processos mais ou menos semelhantes de elaboragáo do sagrado a partir de matéria-prima retirada dos meandros do imaginario popular e da memoria coletiva das populagoes negras e pobres (Trindade, 2000). Tais manifestagoes tiveram sua emergencia provavelmente facilitada pelo período de mudangas bruscas e de anomia social que se seguiu ao fim da escravidao e á proclamagao da República (Trindade, 2000). (4) Ao contrario do que afirmam autores como Brown (1994) e Ortiz (1991) que consideram tal "olhar" como proveniente da classe media urbana ansiosa por legitimidade e imersa num mundo moderno e industrializado. Creio que tais divergencias, nao obstantes precisem ser claramente marcadas, nao se devem a incorregoes ñas percepgoes dos pesquisadores, mas sim as enormes diversidades no interior da própria religiosidade umbandista, em relagao, por exemplo, as suas manifestagoes em meio a classes medias ou baixas, em grandes metrópoles urbanas ou em pequeñas cidades do interior, em meio a individuos letrados ou nao. (5) Termo utilizado pelos umbandistas para referirem-se a entidades que estao na intersegao entre a "esquerda" e a "direita" - os dois dominios diametral mente opostos que configuram os parámetros daquilo que se poderia chamar de "moralidade umbandista" (Negráo, 1996) - pertencendo e atuando em ambos os dominios ao mesmo tempo; ou ainda para referirem-se a um espirito particular pertencente a duas categorías espirituais simultáneamente, mesclando características de ambas numa especie de bricolagem individualizada. (6) Embora tenha dedicado relativamente pouco espago em sua vasta obra para a apreciagáo da heranga religiosa banta em geral, e da umbanda em particular. (7) Referencia ao "mito do Pai Joáo", personagem do folclore negro que representaría o modelo do escravo submisso, dócil, virtuoso ("de alma branca") e conformado com sua condigáo, tido muitas vezes como símbolo da heranga e das tradigoes africanas e exata antítese do feiticeiro vingativo e do quilombola revoltado. Ramos (1954) e Santos (1998) argumentam que a construgáo de tal personagem deu-se decisivamente influenciada pela "opressáo branca", ou seja, pelas relagoes desiguais de poder racial históricamente arraigadas na sociedade brasileira, num processo semelhante ao ocorrido nos Estados Unidos por meio do afamado romance "Únele Tom's Cabin" (A cabana do Pai Tomás) de Harriet Beecher Stowe (originalmente publicado em 1852). (8) Situagáo semelhante também ocorre no estudo da antropóloga americana Lindsay Hale (1997), porém neste caso com implicagoes muito mais serias para o conjunto do trabalho, corolárias de urna imprecisáo grosseria. Isso na medida em que Hale toma os pretos-velhos como tema central de sua investigagáo, e sem quaisquer preocupagoes em definir, ainda que vagamente, o quadro abrangente do panteáo umbandista, refere indiscriminadamente como pretos-velhos espíritos claramente pertencentes á categoría espiritual exu, como a própria autora deixa evidente ñas referencias que faz á obra de Ortiz (1991). (9) Trindade (1985) concebe os exus da umbanda como reinterpretagoes do orixá africano Exu no quadro da "configuragáo simbólica de negro e demoníaco" (p. 128), expressáo de urna posigáo de liminaridade enquanto "herói africano trickster e ambiguo" (p. 133). Já Ortiz (1991) afirma que "ele é o que resta de negro, de afrobrasileiro, de tradicional na moderna sociedade brasileira" (p. 134). (10) Nunes-Pereira (2006) descreve dois pretos-velhos, Pai Cipriano e Pai Joáo Baiano, que além de utilizarem-se de aparatos pouco convencionais - tais como chapéu de palha, bengala e caneca com detalhe em forma de caveira, cachaga, e Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 Dias, R. N. & Bairrao, J. F. M. H. (2011). Aquém e além do cativeiro dos conceitos: perspectivas do preto-velho nos estudos afro-brasileiros. Memorándum, 20, 145176. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01 pimenta - comportam-se ritualmente de maneira parecida com o que habitualmente se esperaría de exus e baianos (alias, o próprio nome de um deles explícitamente sugere um possível "cruzamento"): resmungam, fazem gozagoes, falam palavroes, dirigem ofensas e ameagas, pedem pagamento pelos "trabalhos", e fazem "traquinagens" e "brincadeiras"; o autor ainda transcreve pontos-cantados (músicas rituais) entoados a tais entidades que falam de "vinganga", "buscar os inimigos, mortos ou vivos", "calunga" (cemitério) e "cachaga" (pp. 70-74). (11) Em seu trabalho de campo no célebre terreiro fundado por Zélio de Moráis, a Tenda Nossa Senhora da Piedade, Souza (2006) constatou a inexistencia de culto aos exus sob a justificativa de que um preto-velho chamado Pai Antonio, um "mirongueiro" que pratica a magia "lidando com as forgas malignas, tendo sobre elas poder de coergao", cumpre a fungao que Ihes seria destinada (p. 71). (12) Segundo Negrao (1996), a afinidade dos pretos-velhos com as "criangas espirituais" se estenderia também as criangas "de carne e osso" e as mulheres grávidas, que seriam presengas frequentes em suas giras; tal afinidade seria ainda mais marcante no que tange á sua versao feminina, as pretas-velhas. (13) Lima (1997) divide as entidades do panteao com base em tres "fungoes psicológicas" distintas: 1) entidades disciplinadoras: caboclos, pretos-velhos e vovós (provavelmente referencia as pretas-velhas); 2) entidades desrepressoras: eres (criangas), alguns caboclos, boiadeiros, marinheiros, ciganas, ¡aras e sereias ("entidades femininas ligadas aos cultos da agua"); 3) entidades catárticas: exus e pombas-giras ("linhas" da quimbanda). Note-se que os caboclos sao as únicas entidades que podem ser classificadas em duas categorías distintas, de modo que os pretos-velhos sao os únicos espíritos tomados invariavelmente como "disciplinadores" (pp. 137-141). (14) Em relagao a questoes de poder e hierarquia cabe destacar ainda o estudo de Maggie (2001) que, partindo de urna abordagem da atuagao ritual dos pretosvelhos através dos conceitos de "liminaridade" e "inversao social", analisa alguns "usos" que deles podem ser feitos para a afirmagao de autoridades e a resolugao de conflitos ligados a disputas por posigoes de poder e prestigio no interior de comunidades religiosas umbandistas. (15) Como no caso do exu e da pomba-gira, entidades reconhecidamente distintas e ao mesmo tempo tomadas como antagonismos de género articulados em torno de um mesmo referencial simbólico: o dominio da marginalidade. (16) Hale (1997) discute em seu trabalho a narrativa histórica de um preto-velho (Pai Gerónimo) onde também identifica elementos relacionados á temática da sexualidade. (17) A esse respeito cabe ressaltar que nem mesmo faltaram estudiosos de áreas como a lingüística (Alkmim & López, 2009) e a semiótica (Santana Júnior, 2001) interessados no fenómeno. Nota sobre os autores Rafael de Nuzzi Dias: Graduado e Mestre em Psicología pela Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto da Universidade de Sao Paulo. Contato: [email protected] José Francisco Miguel Henriques Bairrao: Graduado em Psicología e Filosofía pela Universidade de Sao Paulo e Doutor em Filosofía pela Universidade Estadual de Campiñas, é atualmente docente do Departamento de Psicología da Faculdade de Filosofía, Ciencias e Letras de Ribeirao Preto da Universidade de Sao Paulo, onde coordena o Laboratorio de Etnopsicologia. Contato: [email protected] Data de recebimento: 03/09/2010 Data de aceite: 17/05/2011 Memorándum 20, abr/2011 Belo Horizonte: UFMG; Ribeirao Preto: USP ISSN 1676-1669 http://www.fafich.ufmg.br/memorandum/a20/diasbairrao01