Políticas Sociais: programas alternativos

Transcrição

Políticas Sociais: programas alternativos
UMA NOVA INSTITUCIONALIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS?
REFLEXÕES A
...
UMA NOVA INSTITUCIONALIDADE DAS
POLÍTICAS SOCIAIS?
reflexões a propósito da experiência
latino-americana recente de
reformas dos programas sociais
SÔNIA MIRIAM DRAIBE
Professora do Instituto de Economia e Coordenadora do
Núcleo de Estudos de Políticas Públicas – NEPP da Unicamp
J
á se passaram quase 20 anos de ajustamentos e reformas, na América Latina, entre estas as que pretenderam moldar uma nova institucionalidade para
as políticas sociais. Como se sabe, aqui está um dos calcanhares desse Aquiles que pretendeu reorganizar, sob a
perspectiva do mercado, o arcabouço institucional e regulatório do Estado e as formas concretas da intervenção
das políticas públicas. Em parte, pelos quase nulos efeitos das reformas sobre a eqüidade,1 mas em parte também pela baixa capacidade de se enfrentar com políticas
e programas sociais, mesmo quando adequadamente concebidos e implementados, os mais devastadores impactos sociais das mudanças econômicas em curso, concentrados no desemprego e na precarização do trabalho.
Os programas sociais constituem um campo de especial interesse das reformas institucionais por dois
outros motivos. Em primeiro lugar, porque foram muito pouco reformados, no sentido forte da palavra. Se
algum sentido tiver a noção de sistema de proteção
social, não se deixará de reconhecer que, após quase
20 anos, os países apresentam, ainda hoje, sistemas do
mesmo tipo dos que exibiam na situação “pré-reforma”.
Tanto quanto antes, suas políticas sociais tendem a estar organizadas segundo o modelo meritocráticoparticularista ou conservador, 2 salvo talvez o Chile. A
segunda razão é a de que, paradoxalmente, foi e tem
sido muito forte a inovação institucional experimentada pelas políticas, programas e mesmo sistemas nacionais de proteção social na região; e seguramente devese atribuir a tal movimento, mais do que às reformas
deliberadamente programadas, a manutenção do patamar mínimo de reprodução social, muito provavelmente
em nível acima do que verificar-se-ia na ausência de
tais inovações.
O objetivo desse texto é o de indagar sobre o sentido
das transformações – sejam as grandes reformas, sejam
as pequenas mas múltiplas mudanças – que vêm alterando a fisionomia dos sistemas latino-americanos de proteção social. Em dois outros trabalhos (Draibe, 1993 e 1995),
o foco foi a reconstituição detalhada desses processos em
um grupo de países. Esta literatura será retomada muito
sinteticamente na primeira parte deste artigo apenas para
apoiar uma reflexão de natureza mais geral, que examina
o conjunto dos processos particulares segundo os termos
do debate contemporâneo sobre a crise e a transformação
dos Estados de Bem-Estar Social nas sociedades capitalistas. A preocupação central é, sobretudo, com as perspectivas futuras, mesmo reconhecendo a dificuldade de
enfrentá-las.
AS REFORMAS E OS RESULTADOS
Welfare States latino-americanos: a situação
“ex ante” e as tendências dinâmicas às
vésperas das reformas
Os países latino-americanos lograram construir, até os
anos 70, as estruturas básicas do Welfare State, porém de
modo imperfeito e deformado, devido a dois conjuntos
principais de motivos: os estruturais e os institucionais e
organizacionais.
São, com efeito, razões de natureza estrutural que podem explicar, por exemplo, o alto grau de exclusão social e a baixa eqüidade com que se desempenhavam as
políticas e programas sociais da região. Se é verdade que
os programas educacionais, os de saúde e os de seguridade social constituem, nos Estados de Bem-Estar Social,
as estruturas que, juntamente com os mecanismos dinâ-
3
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
micos do mercado de trabalho, operam a integração e incorporação social, os estudos realizados com um grupo
de países3 mostraram que, apesar das diferenças, a universalização e a eqüidade não caracterizavam plenamente os programas, mesmo naqueles países que, como a
Argentina, o Chile e a Costa Rica, além do Uruguai, haviam avançado já e significativamente em direção a um
Estado de Bem-Estar Social mais denso. Ora, a crer na
literatura doméstica, são as mesmas, no plano estrutural,
as raízes sociológicas da exclusão, apoiadas em semelhantes vetores de desigualdades socioeconômicas: as de renda, as urbano-rurais, as regionais (interprovinciais), além
das de cor, raça e gênero. Assim, embora referidas a distintas estruturas socioeconômicas e operando programas
junto a clientelas de diferentes dimensões, as políticas
sociais dos vários países tendiam a excluir ou a preterir,
dos seus benefícios, grupos da mesma natureza social: as
populações rurais; os setores pobres urbanos e rurais; os
trabalhadores ligados ao setor informal e a atividades
marginais; enfim, os grupos desprovidos de organização,
força e poder de barganha. Como se sabe, isto é mesmo
muito comum em países dotados de sistemas conservadores de Welfare State, que tendem a proteger sempre as
categorias sociais dotadas de maior poder de organização e barganha.
A constatação remete para um outro plano as inegáveis insuficiências e distorções do tipo de Welfare State
que aqui se construía: mostra que seus limites esbarravam também na heterogeneidade e dualidade social das
nossas sociedades – características estruturais que, obviamente, não são e nem podem ser plenamente resolvidas
pelos programas sociais. O enorme esforço social, institucional e financeiro investido na construção desses sistemas de políticas sociais torna-se mais nítido quando
confrontado com as tenazes restrições postas pela estrutura socioeconômica dessas sociedades, em particular as
referidas a seus mercados de trabalho pouco integrados
(principalmente a segmentação urbano-rural) aos níveis
baixos de assalariamento e, enfim, aos patamares baixíssimos de salários. A sobrecarga das políticas sociais, pressionadas a atender todos os tipos de insuficiências, foi
constante na maior parte dos países, com exceção talvez
da Argentina e do Chile.
As outras razões são de natureza institucional e organizacional. Às vésperas das turbulências dos 80, os países latino-americanos mostravam, sem exceção, nas armações e mecanismos de regulação dos seus sistemas de
proteção social, as seguintes características, bastante referidas pela literatura: alto grau de centralização; débeis
capacidades regulatórias e de implementação das políticas nos níveis subnacionais de governo; comportamentos fortemente corporativistas por parte dos corpos pro-
fissionais ligados aos grandes subsistemas de políticas;
e, finalmente, fraca tradição participativa da sociedade na
implementação e operação dos programas.
De fato, a centralização – de recursos, de poder decisório e administrativa, – a fragmentação institucional e a
ausência de participação, ainda quando diferentes de país
para país ou entre os programas, marcaram fortemente a
constituição e operação dos serviços sociais na região.
Outras quatro dimensões orgnizacionais e pertinentes à
institucionalidade vigente das políticas sociais merecem
especial referência, já que permitem identificar com mais
precisão as variações entre países:
- dadas as características unitárias ou federativas da organização política dos Estados, tendiam a diferenciar-se,
entre os países, as competências específicas de cada nível de governo sobre programas sociais determinados.
Mesmo entre países com organizações de governo idênticas, variavam também as esferas governamentais que
efetivamente concentravam poder e capacidades (state
capabilities) para a implementação dos diferentes programas sociais determinados. Em quase todos, era o governo central o que de fato concentrava tais capacidades, em
geral as províncias, regiões e principalmente municípios
carecendo fortemente daqueles recursos e capacidades;4
- variam muito, entre os países, as dimensões das redes
públicas de serviços sociais, sendo essa diferença
significativa nos processos de mudanças. Países dotados
de grandes e extensas redes de educação, saúde e
seguridade5 já mostravam, no final dos anos 70, problemas
típicos de entropia, de ausência de mecanismos de controle
da qualidade da prestação, além dos desperdícios e
problemas de gerência. Entretanto, também nos países
dotados de redes relativamente pequenas, as carências
organizacionais e sistêmicas tendiam a constituir obstáculos
à coordenação e gerência, bem como à implementação de
inovações. 6 Situações intermediárias revelavam-se
aparentemente mais vantajosas;7
- a dinâmica organizacional dos sistemas de proteção sempre esteve muito marcada pelo comportamento de atores
estratégicos localizados entre os beneficiários diretos dos
programas e ou entre os funcionários que os implementam.
Como se sabe, os sistemas de proteção social da região
abrigaram situações de acentuados privilégios e foram,
em geral, mobilizados por comportamentos fortemente
corporativistas dos funcionários e beneficiários, em que
pesem as variações entre países. Os subsistemas de previdência social eram, via de regra, estratificados em múltiplos regimes especiais, próprios de categorias funcionais específicas, os militares e funcionários públicos entre
elas.8 Por sua vez, as grandes burocracias e, principalmente, os corpos profissionais médicos e docentes, em
4
UMA NOVA INSTITUCIONALIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS?
geral de forte tradição sindical, mobilizavam significativos recursos organizacionais e de voice, principalmente
nos países dotados de extensos sistemas de políticas, como
a Argentina, o Brasil e o México.9 Os comportamentos
desses atores institucionais – pró ou contra reformas – operaram como fatores decisivos nos episódios de mudanças, seja pela força das suas resistências corporativas, seja
pelas suas capacidades de liderarem processos reformistas.10 A exceção cabe menos a países, e mais às circunstâncias de certas reformas, ocorridas na vigência de regimes autoritários;
- deve-se destacar, a crer nas evidências registradas, a
ausência sistemática de tradição participativa na operação mesmo dos programas sociais. Ainda que as diferenças nacionais sejam aqui também muito fortes, a participação de associações voluntárias no desenho e
implementação não constituiu traço marcante da dinâmica das políticas sociais da região, com exceção do tradicional envolvimento sindical nos sistemas de seguridade
(em períodos de regimes políticos democráticos), ou das
“juntas de padres” no sistema de ensino fundamental em
alguns países. Experiências comunitárias mais densas
começam a se fazer sentir, entretanto, desde os anos 70.11
REFLEXÕES A
...
México. Inegavelmente, a projeção em direção a maiores
graus de eqüidade foi também alimentada pelo otimismo
gerado pelo dinamismo econômico da etapa anterior, pelas tendências de redução da pobreza absoluta registradas em quase todos os países, mesmo nos mais desiguais
como o Brasil e, já no final dos anos 70, pelos processos
de liberalização política. Porém, não há dúvidas de que
esse lento processo esteve sempre e tensamente contrariado pela dinâmica dos interesses das categorias,16 pelos
mecanismos da sua relação com o sistema político – o
populismo, o clientelismo, o patrimonialismo –, enfim,
pelas forças de movimento próprias do padrão conservador de bem-estar social sob o qual erigiram-se os sistemas de políticas sociais. Desse modo, a reprodução das
distorções não foi nunca afastada do horizonte de sua
expansão.
Ao longo do período de industrialização e urbanização, o Estado Desenvolvimentista, na América Latina,
amadureceu também a dimensão social da sua intervenção, mas o fez sob as características assinaladas. Sem ter
sido generoso e sem mesmo ter garantido o efetivo bemestar da cidadania, ainda assim, do ponto de vista da sua
estrutura e dinâmica, moldou-se também como Estado de
Bem-Estar Social. Pelas suas virtudes, foi sob esta forma
que se cumpriu a promessa desenvolvimentista da incorporação das massas. Pelas suas insuficiências e distorções,
esta frágil modalidade de progresso social fez da crise do
desenvolvimentismo um episódio de profunda frustração
histórica. Com esse legado, os sistemas de proteção social foram submetidos, desde o início dos anos 80, às
múltiplas e desencontradas pressões da democratização,
da crise e dos ajustamentos.
A essas características institucionais estiveram sempre
associados outros traços bem conhecidos dos programas
sociais: os problemas de ineficácia do gasto; a má focalização dos objetivos; a baixa efetividade social. De fato, o
binômio forte centralização, fragmentação institucional
e corporativismo versus fracas capacidades estatais e
participativas tendeu a conferir pouca transparência aos
sistemas de políticas, concorrendo para a baixa
accountability dos programas e para inibir ou restringir a
força dos mecanismos de correção, modernização ou inovação institucional. Conseqüentemente, as características
organizacionais apontadas transformaram-se, na história
institucional dos países, nos fortes vetores de iniqüidades, agravando as diferenças sociais originais que, teoricamente, pretendiam reduzir.12
No limiar dos anos 80, sob esta ótica, os programas
sociais de todos os países que examinados projetavam um
imperfeito Estado de Bem-Estar Social que admitia, inegavelmente, amplas margens de melhorias. Ainda assim,
não se pode deixar de registrar que, em alguma medida, a
dinâmica da sua expansão parecia projetá-los em direção
a um padrão mais redistributivista e institucional, principalmente em função do reforço e expansão dos programas universais de educação fundamental e de saúde,13 da
tendência à redução da heterogeneidade das prestações
securitárias14 e da maior integração entre os programas
previdenciários, de saúde e de assistência social,15 estes
últimos adquirindo especial densidade no Brasil e no
O Processamento da Agenda:
Força e Fraqueza dos Programas Sociais 17
Na década de 80, a transição e a democratização constituíram a via de entrada dos sistemas de proteção social
na agenda de reforma do Estado, mesmo quando o fizeram através de fórmulas que vinham sendo subterraneamente corroídas pela inflação e, mais tarde, pelas modalidades prevalecentes de reestruturação.
Como se há de lembrar, pelo menos nos países que
emergiam de regimes autoritários, reforçaram-se expectativas de reordenamento das políticas sociais de modo a
fazer com que a democracia política pudesse se fazer
acompanhar da sua base indispensável, a democracia social fundada na maior eqüidade. Para o conjunto do sistema de proteção social, tal demanda por ampliação dos
direitos sociais traduziu-se em metas de elevação dos graus
de universalismo, extensão da cobertura dos programas e
melhoria da efetividade social do gasto. No plano institu-
5
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
cional, a descentralização, a transparência dos processos
decisórios e a ampliação da participação social foram
postas como metas da democratização.
As pressões advindas do sistema de forças políticas nem
sempre tiveram essa conotação progressista: mobilizações
de forte teor corporativista, e os conhecidos mecanismos
clientelistas (quase sempre associados a práticas populistas dos governos, segundo os ciclos eleitorais) tenderam
a presidir e a capturar as demandas e alguns ensaios de
reformas, impondo limites aos escopos efetivamente democráticos de alteração do padrão de políticas. Não por
acaso, o modo vago de expressão das demandas quase
sempre traduziu-se em pressões por ampliação dos programas sociais segundo a fórmula “fazer mais do mesmo”. Condições, afinal, que tornaram ainda mais difícil o
processo de construção, ainda no bojo das transformações
dos anos 80, de uma alternativa democrática para a modernização e reforma das políticas sociais. É nesse vácuo
intelectual que se fazem sentir os impactos dos ajustamentos estabilizadores.
Na sucessão de episódios e ondas de ajustamentos fiscais dos anos 80, as políticas sociais ocuparam lugar no
campo de atenção dos policy-makers reformistas a partir
de três grupos sucessivos de argumentos. De um lado, tratava-se de exigir do gasto social uma forte adequação aos
objetivos macroeconômicos maiores, particularmente os
da estabilização e os de natureza fiscal: o corte do gasto
social haveria de ser o resultado mais palpável dessa diretriz, alcançado tanto através dos instrumentos tradicionais
quanto de outros tais como a privatização e a descentralização do financiamento e operação dos programas sociais.
O foco da atenção, nesse plano, esteve concentrado sobre
os sistemas de pensões, cuja reforma foi entendida tanto
como condição do ajustamento do setor público quanto
para estimular a retomada do crescimento, dados os efeitos de “alívio” que haveria de produzir sobre a contratação da mão-de-obra. Em seguida, tratava-se de reorientar
o gasto social de modo a que, pelo menos em parte, atendesse ao previsível empobrecimento da população, resultante dos impactos do ajustamento recessivo sobre emprego, renda e redução dos serviços sociais. A focalização do
gasto e a opção por fundos sociais de emergência e por
programas compensatórios dirigidos exclusivamente aos
grupos pobres e vulneráveis passaram a compor o núcleo
duro da estratégia de reforma da área social. Finalmente,
tanto para canalizar recursos para ações de grande potencial de externalidades quanto para considerar os requisitos mais amplos da reestruturação econômica e integração competitiva das economias da região, o gasto social
haveria de priorizar ações básicas de saúde, nutrição e principalmente os programas de caráter “produtivo” ou, se se
quiser, do investimento em capital humano.
O resultado de quase 20 anos de experimentação reformista no campo das políticas sociais paradoxalmente
frustra e gratifica.
Duas ordens de argumentos podem resumir a insatisfação. Se o parâmetro utilizado for o padrão histórico de
armação dos Estados de Bem-Estar Social mencionados,
pouca transformação se registra entre os países: em apenas um caso – o do Chile – poder-se-ia afirmar ter havido
uma reforma global do sistema de proteção social; programas singulares de previdência social foram mais genericamente reformulados, principalmente nos anos recentes; os sistemas de saúde foram reformados
globalmente apenas no Chile e no Brasil e nenhum país
registra reforma institucional plena do programa de educação compreensiva. Mais generalizadas foram as alterações no campo de programas compensatórios para a pobreza, especialmente financiados por fundos sociais. Ao
final do ciclo de mudanças dos anos 80 e primeira metade da década de 90, a ausência de um reordenamento consistente dos sistemas de proteção social indica que a agenda de reformas, na região, processou-se até agora nos
limites de uma combinação desequilibrada entre políticas econômicas dotadas de claros objetivos e políticas
sociais oscilantes, frouxamente definidas e de objetivos
pouco transparentes. Com certeza, não é este o melhor
cenário para a aspiração de maior eqüidade, muito menos
para corrigir e melhorar os programas e as políticas sociais.
O mais palpável resultado daquela distorcida combinação foi a fragilidade com que o gasto social enfrentou
as reformas, sofrendo, na maior parte dos países, quedas
significativas que obedeceram a um padrão sistemático
pró-ajuste fiscal, caindo proporcionalmente mais que
outros componentes do gasto público e recuperando-se
menos nos ciclos de expansão subseqüentes. Mesmo em
países que já tinham saneado suas finanças na década
anterior, a recuperação do gasto social no começo dos anos
90 mal atingiu ainda os níveis de 1980, o que mostra a
vulnerabilidade do dispêndio social particularmente nas
áreas de educação e saúde, já que a seguridade e os programas assistenciais aumentaram tendencialmente sua
participação. Se algum papel estratégico foi reservado ao
gasto social, esse foi, sobretudo, o de contribuir para a
redução das brechas fiscais, aprofundando, mais do que
aliviando, os custos sociais do ajustamento (Cominnetti,
1994).
Já se acumularam evidências, em toda a região, dos
mais negativos efeitos desse modo de equacionamento.
Com alguma regularidade e certa independência das particularidades institucionais dos países, três linhas de impacto têm sido registradas: a fragilização dos programas
universais de saúde e educação; a tendência à “assis-
6
UMA NOVA INSTITUCIONALIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS?
tencialização” da política social e a quebra de solidariedade nos regimes previdenciários reformados, seja a
solidadariedade intergeneracional, seja a que, através de
pensões sociais, vinculavam trabalhadores do mercado
formal e informal de trabalho.18 Examinados por esta ótica, os já limitados sistemas de proteção social emergem
da primeira onda de reformas mais destruídos que reformados, com menor potencial de ação, exatamente quando passaram a receber mais volumosas demandas; enfim,
com perdas significativas de qualidade dos serviços, em
decorrência da decomposição das carreiras profissionais,
da redução dos recursos para investimentos sociais e da
deterioração dos equipamentos instalados.
Em dois planos dos sistemas de políticas sociais, entretanto, revelaram-se saldos positivos dessa primeira etapa de transformações, resultados decisivos, diga-se de
passagem, para o equacionamento futuro da eqüidade,
já que projetam saudáveis possibilidades para a nova etapa
de construção institucional.
No plano dos valores, mesmo quando mescladas com
a mobilização defensiva das corporações, certas formas
de resistência a alguns estereótipos de reformas – principalmente aos impulsos privatistas e às concepções meramente compensatórias da primeira hora – revelam a persistência de valores solidaristas nos quais poderão se
firmar novos formatos de ação social. A preservação da
concepção universalista e pública da educação e da saúde, ou a preferência por modelos previdenciários que
envolvam, na base, compromissos solidários, sinalizam
nesta direção. Mas a expressão provavelmente mais alvissareira dessa potencialidade ética é a superação relativa do antagonismo que, no início do período, opôs concepções universalistas a concepções focalizadas e seletivas
de programas sociais. Aquela polarização radical e simplificadora veio desembocar, hoje, em matriz mais complexa na qual o que se opõem são sobretudo formas e
modalidades de combinar o universal e o focalizado; o
estrutural e o emergencial; o curto e o longo prazos, expressando tanto o aggiornamento das concepções de justiça social quanto o amadurecimento do pensamento social ao reconhecer que a melhoria da efetividade do gasto
social é condição para a construção dos direitos da cidadania.
No plano institucional residem os mais palpáveis resultados positivos dessa etapa de mudanças. Ainda que
tenham sido raras as reformas compreensivas dos sistemas de proteção social, o período foi e tem sido muito
rico em experimentação, alterações e inovações institucionais, concentradas em três vertentes principais: a descentralização da prestação dos serviços sociais; o aumento
relativo da participação social nas formas colegiadas que
tendem a acompanhar os programas inovadores; e a for-
REFLEXÕES A
...
midável ampliação do campo e da experimentação de
parcerias entre os setores público, privado lucrativo e,
principalmente, privado sem fins de lucro, presente nos
novos tipos de organizações não-governamentais.
Os resultados são modestos e heterogêneos, mas os
processos referidos mostram que novos perfis e inéditos
estilos de política vêm sendo criativamente construídos
no campo da proteção social, mesmo quando os sistemas
destinados a provê-la tenham emergido do ciclo de reformas em situação especialmente adversa, já que, como
demonstrado, nem foram adequadamente fortalecidos nem
foram plenamente reformados.
O terreno sem dúvida mostrou-se fértil, pelas inovações e experimentações indicadas, para enraizar e alimentar a nova institucionalidade das políticas sociais que parece estar sendo desenhada. Porém, em que condições e
sob quais características sistêmicas poderá se concretizar
tal positivo cenário? A indagação é a mesma que, hoje
em dia, permeia o debate internacional sobre o destino
do Welfare State. É esse o plano no qual pretende-se examinar, a partir de agora, o campo de alternativas e perspectivas hoje abertas aos sistemas de proteção social da
região.
ESTADO DE BEM-ESTAR SOCIAL E
DEMOCRACIA
A crise dos sistemas de proteção social latino-americanos é por suposto específica, mas o processo que a desencadeou e vem até agora pautando seus encaminhamentos é da mesma natureza daquela que, nas economias
centrais, também vem alterando a fisionomia dos Estados de Bem-Estar Social ali construídos desde o segundo
pós-guerra.
A Natureza da Crise
As dificuldades do Welfare State foram sublinhadas
em praticamente todas as suas dimensões por porta-vozes localizados ao longo de todo o espectro político-ideológico. 19 Para os objetivos da reflexão pretendida, é indispensável a compreensão do seu papel na produção da
igualdade que funda a democracia de massas.
É preciso entender o Estado de Bem-Estar Social como
a forma histórica do Estado que, no capitalismo do pósguerra, estabelece limites aos efeito socialmente diferenciadores do mercado. Sabidamente, coexistem na dinâmica capitalista processos simultâneos de homogeneização
social – cuja base é o assalariamento em massa – e de
reiteração da heterogeneidade – assentada na contínua
produção de diferenças sociais através do mercado. Estas
últimas interessam particularmente ao tema abordado neste
7
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
artigo. A referência aqui não é apenas quanto às diferenças abstratas de classe, mas também às concretas e sempre repostas diferenças de salários, renda e consumo que,
através dos mecanismos típicos do mercado, instauram e
reproduzem a desigualdade no capitalismo. Até mesmo
no seio dos segmentos sociais teoricamente igualados pela
e na condição salarial, como afirma Castel (1995). Não
será necessário insistir no caráter disruptivo da forma
mercantil de diferenciação social. Nela enraízam-se fortes riscos que rasgam o tecido social e ameaçam a coesão
da sociedade. A novidade do pós-guerra – o Estado de
Bem-Estar Social – foi ter imposto um particular mecanismo de freios às forças brutas da desigualdade socialmente produzida pelo mercado, através do sistema de direitos e políticas sociais.
De fato, ao garantir um conjunto de benefícios aos que
perderam a renda do trabalho – seguro-saúde, seguromaternidade, indenizações por acidente de trabalho, aposentadorias, pensões e seguro-desemprego – e ao subtrair
da forma mercantil pura os bens e serviços destinados à
reprodução social – educação, assistência à saúde, alimentos, habitação, transportes coletivos, abrigos –, o sistema
de políticas sociais próprio do Welfare State assegurou o
direito às condições básicas da vida, reduzindo e represando a força do mercado que, de outro modo, expulsaria
recorrentemente da sociedade membros anteriormente
incorporados, relegando-os à situação de párias (Belluzzo,
1996). Se a produção e a exclusão dos “excedentes sociais” estão inscritas na própria dinâmica do mercado, a
inclusão e a manutenção dos indivíduos na sociedade e
na cidadania constituem obras das instituições da vida
democrática, entre elas este sistema de direitos sociais e
políticas do qual se está falando aqui. É nesse sentido que
o Welfare State constitui a regulação social própria do
capitalismo avançado. Sob suas estruturas, concentraramse os mecanismos que operam como barreiras ao mercado, inibindo seu curso desenfreado e impedindo a
autoregulação de que falava Polanyi. Não se deve entender o freio à desigualdade como supressão da pobreza e
muito menos como a instauração da plena igualdade. Porém, não resta dúvida de que tal sistema de freios à violência do mercado corresponde a formas mais densas de
participação na riqueza social e de elevação do patamar
de eqüidade, permitindo a Habermas descrever o Estado
de Bem-Estar Social como uma formidável máquina de
produção de igualdade. A capacidade da ação estatal de
promover o desenvolvimento social esbarra hoje em limites significativos, impulsionados pela onda de transformações produtivas e de imposições da ordem internacional globalizada. Embora distantes da realidade
latino-americana, as formas desenvolvidas de Estado de
Bem-Estar Social permitem diagnósticos mais acurados
das pressões que incidem sobre as políticas sociais e que,
guardadas as diferenças, manifestam-se também nos países da América Latina.
Para efeitos de síntese, é possível agrupar em três planos as dificuldades que hoje enfrentam os sistemas nacionais de proteção social em quase todas as partes onde
se ergueram e se consolidaram. Desde logo, há fortes limites que se verificam no plano do gasto social: a queda
sistemática que vem acusando sugere ter sido revertida a
tendência histórica à alta que seguiu até a década passada. De fato, o novo perfil de endividamento dos Estados,
maximizado pelo encolhimento das bases tributárias e de
financiamento do setor público, expressa-se no aumento
relativo do componente financeiro do gasto público total, 20 com a correspondente queda da participação das
despesas com seguridade, saúde, educação, infra-estrutura urbana, etc., exatamente quando se ampliam as pressões da demanda em função do desemprego e da precarização do trabalho. Mudanças nos desenhos dos programas
têm sido recorrentes, na busca de ampliar seus graus de
eficiência e efetividade, e é óbvio que há margens para
isso. Entretanto, os resultados aparentemente têm sido
modestos ou nulos, principalmente porque, com as referidas alterações da estrutura do gasto público, aumenta a
rigidez do campo de alternativas em que se processam as
decisões governamentais, encolhendo-se as margens de
liberdade dos governos para conferir prioridade às despesas sociais e revitalizar a função social do Estado.
O segundo plano é o das concepções e ideologias: os
princípios estruturantes do Estado de Bem-Estar têm sido
sacudidos por novas configurações de valores referentes
aos conceitos abstratos de justiça e liberdade, às relações
entre o indivíduo e a coletividade, entre o público e o privado e, em particular, às formas da solidariedade. O diagrama intelectual e ideológico, hoje hegemônico, de corte liberal e individualista, referenda exatamente aquela
ação diferenciadora do mercado, orientada pela ética da
eficiência e pelo individualismo ascendente, minando as
bases da legitimidade em que se apoiou o Estado de BemEstar Social.
Entretanto, é inegável que a força de desestruturação
que afeta decisivamente os Estados de Bem–Estar Social
tem origem nas mudanças do mundo do trabalho que vêm
acompanhando a transformação produtiva. Aqui é necessário reconhecer que é o sistema de proteção social – mais
que seus programas específicos – que se vê abalado pela
vigorosa economia de trabalho e suas mais contundentes
manifestações: o desemprego estrutural; o subemprego;
o emprego precário e de baixa qualidade; a informalização das relações de trabalho; e outras mais.
Os mais nítidos efeitos sociais desse processo plasmam-se em tendências de ampliação das desigualdades,
8
UMA NOVA INSTITUCIONALIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS?
aumento e diversificação da pobreza. Para a política social em geral, o resultado mais dramático é a perda de sua
integridade sistêmica, ou seja, as rupturas das relações e
vínculos que as estruturavam como sistema de políticas
– condição de sua eficácia no passado. Três tipos de efeitos sistêmicos parecem afetar o “equilíbrio” do conjunto.
O mais claro é a dimensão financeira, sendo que seu significado sistêmico constitui, em última instância, a incapacidade de que o gasto social público venha a substituir
a parte do gasto social privado antes financiada com salários e benefícios da seguridade. Tal ruptura do equilíbrio virtuoso prévio pode ser também percebida desde a
perspectiva da economia familiar: o desemprego dos seus
membros ativos restringe hoje sua possibilidade de enfrentar, através dos mecanismos pretéritos de compensação e de estratégias de maximização de recursos, as típicas situações de dependência de seus outros membros –
os jovens ou os inativos carentes de proteção. Essa é a
dinâmica da desestruturação da solidariedade salarial, que
organizou a sociedade do trabalho e foi viabilizada pela
mediação impessoal das instituições do Welfare State.
Em outro plano, ocorrem alterações na definição e na
localização dos sujeitos sociais. Se antes compareciam
principalmente como sujeitos da cidadania salarial, alcançados de modo impessoal através de direitos ligados à
relação emprego/salário/seguridade social, hoje afiguramse como receptores da ação fragmentada do Estado, atingidos concreta e individualmente apenas nas bases “territorializadas” dos programas – o domicílio, o bairro, a
cidade – ou nos equipamentos sociais dotados de alta capilaridade, como é a escola ou o posto de saúde, hoje deliberadamente enviesados para distribuir bens e serviços
sociais que, de outra maneira, não chegariam às famílias.
Verificam-se também deslocamentos de demandas entre
programas sociais, mas sob uma modalidade distorcida,
do ponto de vista da eficácia do sistema de proteção: impossibilitadas de serem atendidas através da seguridade
social, as ampliadas e diferenciadas demandas geradas
pelo desemprego são endereçadas a programas sociais que
não foram explicitamente desenhados nem adequadamente preparados para enfrentá-las. A multiplicação de ações
emergenciais, a transferência para a área da assistência
social de ações antes inscritas em subsistemas mais institucionalizados da política social (como os esquemas de
seguro-desemprego) ou a localização, nos serviços sociais
universais de educação e saúde, de ações não-escolares
ou que extrapolam a atenção à saúde são movimentos
expressivos desta tendência. Esta sobrecarga de demandas tende a reduzir a eficácia dos programas e a complementaridade virtual do sistema de políticas sociais.
Não se deve perder de perspectiva que a eficácia do
Estado de Bem-Estar Social, ao longo dos “trinta anos
REFLEXÕES A
...
gloriosos” que sucederam à Segunda Grande Guerra, repousou em dois pilares complementares: por um lado, o
pleno emprego – e seus efeitos no volume de rendimentos que, na economia doméstica, financiavam parte do consumo social privado; e, por outro, as políticas sociais integradas em um sistema autocomplementar fundado nas
combinações virtuais de direitos sociais universais e direitos vinculados à condição de trabalho, os programas
sociais universais e benefícios previdenciários destinados
aos segmentos especialmente credenciados, os programas
sociais universais e os seletivamente destinados a grupos
necessitados, etc.
O modo de compor aqueles direitos, benefícios e programas variou, no tempo e entre os países, mas o sistema
de políticas sociais, enquanto tal, expressou sempre uma
determinada trama de “equilíbrios” e “compensações”
entre aqueles componentes. Portanto, na sociedade salarial, foram encadeamentos contínuos desse tipo – e não
apenas programas fragmentados, distribuídos em períodos isolados da vida das pessoas – os que lograram “domesticar” as forças de diferenciação da riqueza, da renda
e do consumo que, por definição, operam através do mercado capitalista, garantindo que a cidadania pudesse contar com conteúdos concretos de igualdade social. Quando se rompe esta cadeia virtual – por exemplo, por ausência
do salário e/ou dos benefícios previdenciários – reduzemse simultaneamente tanto a capacidade de diminuição da
desigualdade pelo sistema de proteção social quanto a
eficácia social específica de cada uma das áreas de políticas que o constituem, aí incluídas as políticas universalistas de educação e saúde ou os programas assistenciais,
pressionados pela sobrecarga de demandas.
Não se pretende reduzir o problema a uma mera questão de engenharia institucional. Para além das dimensões
organizacionais e quantitativas, as políticas sociais perdem eficácia na produção de eqüidade porque os referidos deslocamentos e recomposições de programas não são
efetivos substitutos do sistema anterior, organizado segundo os princípios estruturadores do Welfare State. Ou
seja, são incapazes de preservar ou recuperar os efeitos
de sinergia sistêmica anteriormente assentados nos encadeamentos virtuosos entre áreas de políticas sociais e
impulsionados pelo núcleo dinâmico emprego/seguridade social. Um exemplo pode ser buscado no campo educacional. Se é verdade que o sistema educacional público
foi e segue sendo um mecanismo importante de ampliação da igualdade de oportunidades, na economia de mercado, o sistema de seguridade é o mecanismo par
excelence que permite que se reitere – ou que não se perca absolutamente – o patamar de eqüidade aberto pela escolaridade no passado e assegurado posteriormente pela
relação salarial e pelos direitos sociais. Debilitado o sis-
9
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
tema de seguridade, debilita-se simultaneamente a própria capacidade dos serviços sociais universais de efetivamente melhorarem a estrutura de oportunidades e, mais
ainda, de que venham substituir ou compensar os efeitos
igualizadores da relação salarial e dos direitos que a compõem.
Em outras palavras, sob a forma do Estado de BemEstar Social, foram encadeamentos contínuos desse tipo
– e não apenas programas fragmentados, distribuídos em
períodos isolados da vida das pessoas – os que lograram
“domesticar” as forças de diferenciação da riqueza, da
renda e do consumo que por definição operam através do
mercado capitalista. Quando se rompe esta cadeia virtual,
reduzem-se simultaneamente tanto a capacidade de redução da desigualdade pelo sistema de proteção social quanto
a eficácia social específica de cada uma das áreas de políticas que o constituem.
Assim estruturados, os sistemas de proteção social
construídos sob a forma Estado de Bem-Estar Social não
foram desenhados e nem capacitados para enfrentar a situação atual de acelerada redução do trabalho. Se, na maior
parte dos países, o pleno emprego não foi sua condição
efetiva, a generalização do assalariamento dava-lhe, entretanto, sentido e dinâmica – e é esta força que vem sendo comprometida pelo desemprego e, como no caso dos
países latino-americanos, pela precarização e informalização do trabalho.
O encadeamento é complexo, como costuma ser nas
relações históricas. Aceleradas pela natureza material das
transformações produtivas e das forças da competição
global, as formas atuais de desigualdade, exclusão e pobreza ocorrem segundo graus desconhecidos de heterogeneidade social, tanto no interior quanto entre países.
Porém, podem assim se expressar porque os mecanismos
prevalecentes de freio à reprodução da desigualdade estão sendo minados. Podem ser reiteradas, reproduzidas e
mesmo ampliadas também porque, no espaço aberto pela
fragilização do ethos solidário, o individualismo e a ética
de resultados estimulam interpretações “naturalistas” da
desigualdade, ao mesmo tempo em que emitem recorrentes sinais desestabilizadores e deslegitimadores dos mecanismos e das políticas voltadas para a redução da desigualdade.
É portanto a natureza mesma dos Estados de Bem-Estar Social que se vê afetada, registrando gradativa perda
de capacidade para corrigir ou atenuar as grandes iniqüidades da sociedade. Convive-se hoje com o processo de
enfraquecimento da forma prevalecente de regulação social construída sob o signo e as instituições do Welfare
State. Entre as leituras mais céticas desta tendência, supõe-se ter definitivamente perdido a grande promessa
acenada pelo Estado-Providência, como se aquela forma
histórica única de produção de eqüidade somente pudesse ter florescido nas excepcionais condições dos “trinta
gloriosos” – este breve episódio de um brevíssimo século
XX.
As Possibilidades da Política Social
Os limites das políticas sociais são reais, mas não absolutos. Apenas o individualismo exacerbado poderia
suprimir do seu estreito campo de visão as energias positivas também mobilizadas pela reestruturação produtiva
e que, se não são suficientemente fortes para contraarrestar os efeitos socialmente deletérios da globalização,
podem entretanto ser potencializadas pela vontade política dos governos e das organizações da sociedade, interessados na restauração e renovação da solidariedade. O
ponto de partida é o reconhecimento dos novos significados que hoje integram a noção de eqüidade, quando referida, por um lado, às atuais tendências de reestruturação
das economias e, por outro, ao problema da pobreza.
Tome-se a questão, em primeiro lugar, pela dimensão
da produtividade do trabalho e das bases do crescimento
sustentado. O moderno padrão produtivo, marcado pela
flexibilidade e competitividade, e as novas formas da concorrência em escala globalizada exigem patamares inéditos de formação de recursos humanos e melhoria nos níveis de qualificação da força de trabalho. O já quase
consensual entendimento desta equação insiste no caráter estratégico da educação, da saúde e da distribuição da
renda para o crescimento da produtividade. Mais ainda,
reconhece-se a maior eficácia da ação pública para a promoção do crescimento econômico quando a provisão daqueles “bens públicos” vitaliza-se e integra-se aos investimentos em capacitação, comunicação, infra-estrutura
urbana, preservação ambiental e segurança individual,
produzindo “habitat” adequado igualmente para o capital
e para o homem.
O argumento concerne às condições do crescimento, e
não aos seus resultados. De fato, entre as suas premissas,
está a consideração de que tanto os riscos de dualização e
segmentação do tecido social quanto a perda de oportunidades de integração internacional podem ampliar-se
enormemente, sem correção possível, quando se separam
no tempo as decisões econômicas e os investimentos em
capital humano. No núcleo do argumento, insiste-se nas
vantagens econômicas – e não apenas os objetivos de justiça social – da simultaneidade do ajustamento macroeconômico e da política social.
Mas a eqüidade é a outra dimensão constitutiva da argumentação: o crescimento econômico, nos seus atuais
termos, ganha sustentabilidade apenas quando envolve
também uma aposta na maior eqüidade. Ou seja, entre as
10
UMA NOVA INSTITUCIONALIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS?
condições da integração competitiva das economias nacionais está também a redução das distâncias sociais entre grupos de suas populações e entre países, já que padrões mais homogêneos das estruturas produtivas e dos
comportamentos inovadores – que redundam em maior
eqüidade – ampliariam as possibilidades da incorporação e difusão dos perfis tecnológicos exigidos pela competição e para uma melhor inserção internacional.
Eqüidade e desenvolvimento são, então, termos de uma
mesma matriz dinâmica: o crescimento econômico deve
e pode ser eqüitativo porque existem vínculos funcionais
internos, sorte de “círculo virtuoso” entre crescimento,
competitividade, progresso técnico e eqüidade. Em outros termos, é a própria estratégia de integração internacional e regional das economias nacionais que exige melhoria nas estruturas de oportunidades, através de
investimentos sociais de impacto necessariamente redistributivos.21
Especialmente no caso dos segmentos pobres, essa
concepção de eqüidade supõe políticas capazes de trazêlos à posição de sujeitos econômicos, aumentando sua
produtividade e reforçando sua precária ou nula proteção
social. Porque, na estratégia de integração competitiva,
também a redução da pobreza é elemento-chave para
soldar os pilares de novo padrão de desenvolvimento.
Desde logo porque os grupos pobres – sob as formas velhas e novas da pobreza – arcaram com os piores custos
sociais da reestruturação, mas também porque a pobreza
aumenta os riscos ambientais e sociais – aí incluídos os
problemas da violência e insegurança urbanas – fragilizando então a posição relativa de países e regiões nos
mercados internacionais e regionais.
Estar-se-ia já diante de um novo círculo virtuoso entre
igualdade e crescimento, entre proteção social e desenvolvimento econômico, entre crescimento econômico e
distribuição eqüitativa dos seus frutos? Sim e não.
É positiva a perspectiva porque, conforme se argumentou, há bases e estímulos materiais para tanto. Aparentemente até mais que no passado, já que a compatibilização entre eqüidade e crescimento pareceria estabelecer-se
no ponto de partida do novo padrão econômico que vem
se implementando. Porém, negativamente, o novo padrão
traz consigo barreiras duras, do ponto de vista da ampliação da eqüidade. Se a sua implantação envolve desemprego, precarização e informalização do trabalho, também o seu dinamismo não é gerador de emprego. Nesse
plano, o círculo é sobretudo vicioso e perverso.
Os automatismos do mercado nem instauram a
virtuosidade da relação crescimento/eqüidade nem rompem o círculo vicioso da relação crescimento/desemprego. Porém, no passado também não fizeram: como se sabe,
na base da armação do Welfare State, além dos impulsos
REFLEXÕES A
...
positivos da estrutura econômica, foi o compromisso
socialdemocrata que expressou a disposição política de
forças sociais conflitivas em construir e garantir o desenvolvimento econômico e a democracia. No presente e nas
condições hoje experimentadas pelos países latino-americanos, liames virtuosos entre crescimento e eqüidade
serão produtos do compromisso democrático e da determinação política dos governantes, ou não serão.
Em outros termos, a coesão social na ordem econômica globalizada é a tarefa de construção histórica que define a razão de ser dos Estados contemporâneos. Se no passado recente, sob a forma do Estado de Bem-Estar Social,
tal função pode se partilhada com as forças socialmente
integradoras do mercado, atualmente parecem ter sido
transferidas decisivamente para o Estado as possibilidades de contra-arrestar as tendências de exclusão e fragmentação sociais, protegendo a ordem coletiva dos seus
efeitos desagregadores e garantindo às sociedades nacionais os padrões mínimos de integração social exigidos
tanto para a preservação da vida democrática quanto para
a sua participação na dinâmica econômica internacional.
Diferentemente do que pretendeu a simplificação neoliberal radical, a renovação e a revitalização dos sistemas
de proteção social, apoiados em forte capacidade condutora dos Estados, estão entre as condições de possibilidade de integração na economia mundializada, pelo menos para aqueles países que pretendem fazê-lo com
autonomia e competitividade, conferidas por sólida base
democrática e sustentada dinâmica de crescimento econômico.
Perspectivas do Estado de Bem-Estar Social na
América Latina: as bases da nova institucionalidade
das políticas sociais
É possível retomar, à luz das tendências internacionais
mais gerais, a discussão sobre o sentido e os conteúdos
das reformas e programas sociais. O ponto de partida é a
instauração de novas capacidades das políticas sociais para
se enfrentar adequadamente os níveis hoje prevalecentes
de desigualdade e pobreza, produzindo igualdades onde
impera a heterogeneidade, ou impedindo que esta se acentue, quando avançam as forças diferenciadoras da dinâmica do mercado.
Como já mencionado anteriormente, os países latinoamericanos, com poucas exceções, arrastaram até os tempos atuais padrões inaceitáveis de desigualdades e pobreza
que, sob a onda transformadora da globalização, foram
expostos aos novos e fortes mecanismos que reforçam a
diferenciação, que aumentam a desigualdade e ampliam
a exclusão social. Ora, tais forças desagregadoras podem
debilitar os alicerces de sustentação das emergentes de-
11
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
mocracias e comprometer, no limite, a rota de uma integração internacional pautada pela soberania e colaboração.
A capacidade de resposta a tais circunstâncias vem
exigindo, no continente, consideráveis esforços de
reequacionamento da questão social, até porque, ao fim
deste longo período de transformações e reestruturação,
foram postas a nu as fragilidades e limites da ação dos
Estados através das políticas e programas sociais. E por
dois e simultâneos motivos.
Já os embrionários e distorcidos sistemas de proteção
social aqui construídos revelaram, no passado, reduzida
eficácia na redução da pobreza e na reversão das fortes
diferenças segmentadoras e constrangedoras da cidadania – o que impunha sua reestruturação. Mais ainda quando, posteriormente, foram perigosamente debilitados seja
pela corrosão inflacionária, seja pelas restrições fiscais
da etapa de estabilização, exatamente quando chamados
a responder aos elevados custos sociais dos processos de
ajustamentos e, agora, às maiores exigências de formação dos recursos humanos – o que requer imediatamente
o seu fortalecimento.
A dupla equação define o horizonte em que devem ser
pensadas as políticas sociais de nova geração, bem como
os desafios que se impõem aos Estados Nacionais da região. A capacidade que terão em combinar as tarefas de
sustentação de condições estruturais de competitividade
em escala global – que requerem ambientes de austeridade e restrições fiscais – com os objetivos de justiça social – que supõem políticas sociais eficazes, inclusivas e
competentes para atender às demandas e restringir os
efeitos socialmente negativos da globalização – constitui
a face dura daquele desafio, tanto maior quanto tenha
sido adiado, no passado recente de cada país, o esforço
por aquela combinação virtual. Porém, este também é, sem
dúvida, o núcleo da agenda social dos governos da região
que possuem efetivamente como perspectiva o reforço da
vida democrática sustentada em economias dinâmicas e
formas inteligentes de integração internacional.
Transposta a questão para a situação latino-americana, poder-se-ia afirmar que o componente inovador da
nova geração de políticas22 que se quer implementar na
região repousa na sua capacidade de regenerar e revitalizar o tecido social, instaurando as novas bases da coesão
e integração sociais. Nesse plano, as suas virtudes medem-se pelo “metro” da democracia, ou seja, pelos seus
impactos na consolidação dos regimes democráticos no
continente.
Entretanto, a dimensão social do novo padrão de crescimento econômico reordena as relações entre política
social e política econômica no âmbito do conceito mais
amplo de desenvolvimento. Frente aos impactos social-
mente negativos das políticas de estabilização, reestruturação produtiva e integração competitiva internacional,
novas exigências são direcionadas às políticas sociais,
pressionando-as para que assumam novos formatos e produzam melhores resultados.
Algumas diretrizes sobressaem, por coerência, dessa
nova institucionalidade regulatória e participativa através
das quais vêm se redesenhando as políticas sociais. Resgatando as lições do passado recente, definem as linhasmestras da reorganização dos programas sociais ancoradas no triplo reconhecimento de que:
- o reordenamento das políticas e programas de investimento social não pode nem deve se atrasar em relação às
reformas estruturais das economias, tanto pelo alto custo
social que, à frente, ter-se-á que enfrentar, quanto pelas
exigências mesmas do novo padrão de crescimento econômico em termos de qualificação e produtividade dos
recursos humanos, assim como dos ambientes urbanos e
socioculturais em que podem se inserir os novos investimentos;
- as políticas sociais são decisivas para a consolidação
democrática e para o futuro da economia, dado o seu potencial de redução dos riscos políticos e sociais;
- as políticas sociais só têm eficácia quando atuam de
modo integrado sobre as condições de vida dos segmentos sociais.
Porém, são do mesmo modo decisivas e cruciais as
relações entre as políticas sociais e o sistema político. Em
outras palavras, os objetivos de eqüidade e da consolidação democrática que orientam a implantação de um novo
sistema de proteção social têm um endereçamento preciso: no campo jurídico, a instituição e efetivação dos direitos sociais como expressão dos direitos humanos universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados,
instrumento da extensão da cidadania e princípios
estruturadores do sistema de proteção social. Princípios e
objetivos que se inscrevem então no quadro internacional de referência, traduzindo uma concepção integrada de
progresso social abarcando o conjunto das necessidades
sociais e ambientais nos termos do desenvolvimento humano sustentável.
Ora, a extensão da cidadania tem, na América Latina,
o duplo significado de reduzir a exclusão passada, provocada pela pobreza e pela desigualdade e atenuar a força dos mecanismos que, hoje, reiteram e ampliam a exclusão. Em decorrência, os três eixos nos quais deve
repousar o arcabouço do sistema de proteção social são o
emprego, os programas sociais universais e os programas
emergenciais para a pobreza. A potencialidade relativa
de cada grupo de políticas que integram tais eixos já é um
problema, mas o desafio maior em que esbarra a sua es-
12
UMA NOVA INSTITUCIONALIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS?
truturação é o de combiná-los segundo uma modalidade
capaz de potencializar o impacto redistributivo das políticas no âmbito do novo padrão produtivo.
Finalmente, no plano da dinâmica do desenvolvimento, impõem-se duas condições do estabelecimento de uma
combinação virtuosa entre políticas econômicas orientadas para o crescimento sustentado e não-inflacionário e
políticas sociais eficazes para a promoção da eqüidade e
do desenvolvimento humano. A primeira é a preservação
de um patamar mínimo de gasto social, capaz de assegurar a continuidade do desenvolvimento social; a segunda
está relacionada à capacidade de geração de emprego que
se logre introduzir na economia, através das políticas
públicas adequadas, de modo a preservar as bases da integração social nos novos dinamismos do crescimento.
REFLEXÕES A
...
Há incontáveis dificuldades nesse movimento, entre
estas a falta de um sistema eficaz de supervisão, por parte
do Estado, desses “poderes delegados”. Porém, de nenhum
modo reduzem a importância, para a democratização e para
a ampliação dos recursos do Estado, do significado dessas
formas de associação e participação. Suas dimensões parecem cruciais. Por um lado, as novas modalidades de
parceria e participação social remetem para a questão mais
geral da multiplicação dos espaços públicos não-estatais
nas sociedades. Ou seja, daqueles espaços que resultam
da concertação de interesses distintos, não-públicos, dispostos a construir e alcançar objetivos de amplo alcance
social. Por outro lado, são também espaços do exercício
de formas emergentes da solidariedade social. A questão
é polêmica, mas onde as leituras liberais apenas enxergaram o avanço do privado e onde as interpretações simetricamente opostas apenas viram o recuo do Estado, essas
formas de uso do tempo social liberado parecem prometer
novas modalidades da solidariedade, que vêm se instalar
exatamente nos espaços antes preenchidos pela solidariedade salarial. Do ponto de vista das novas gerações de políticas, sem dúvida aí se abre um campo fértil de ancoragem para novos formatos da proteção social.
Diretrizes de Reorganização do
Sistema de Políticas Sociais
A Descentralização dos Programas – A descentralização é tendência contínua na região e vem sendo reforçada nos processos mais gerais de reforma do Estado. Os
sucessos relativos já alcançados, assim como a forte credibilidade e legitimidade que a cercam, transformam-na
na principal força de reordenamento e dinamização das
novas políticas.
Entretanto, a descentralização não é um processo simples e requer, para avançar com solidez, a observância de
algumas condições básicas: uma política explícita, coordenada e contínua, o que supõe um “centro” dotado de
boa capacidade de condução; a adequada simetria entre
descentralização fiscal e descentralização de competências e encargos; a construção de capacidades administrativas nos níveis descentralizados em que passam a operar
os programas; a introdução de sistemas ágeis de monitoramento, avaliação e circulação da informação.
Do ponto de vista da eqüidade, é fundamental que os
processos de descentralização não suprimam nem esvaziem, no “centro”, suas funções redistributivas e sua capacidade corretora das desigualdades regionais e individuais.
Integração de Programas e Resgate das Sinergias Sistêmicas – A integração dos programas deve constituir
diretriz forte de reorganização dos serviços sociais sob as
novas concepções de políticas. A integração de objetivos,
ações e formas de ação frente a um dado público-alvo,
visando a complementaridade da intervenção social, é
tema recorrente da reorganização dos serviços públicos,
que se reitera como meta da reforma mais geral do Estado e, em particular, dos programas sociais. Mas aqui, a
preocupação com integração vai além das questões administrativas.
No centro do argumento está a constatação de que, nas
condições atuais de reestruturação em direção a economias
abertas, flexíveis e competitivas, tanto para reduzir os graus
de desigualdade quanto para suprimir as tendências de
reprodução intergeneracional e espacial e alcançar graus
mínimos de sustentabilidade dos novos padrões de crescimento, as políticas e os investimentos sociais apenas ganham eficácia e eficiência se, simultaneamente, adquirirem caráter integrado e sistêmico, além da sua continuidade
no tempo. Ou seja, políticas e investimentos nas áreas que
afetam imediatamente as condições básicas de vida das
populações presentes e, mais remotamente, das gerações
futuras constituem o “núcleo duro” e indissociável de programas de seguridade, saúde, educação básica e secundária, inversões em capital humano, infra-estrutura social de
saneamento, transportes coletivos, equipamentos culturais
e esportivos, programas de geração de empregos, tanto no
A Conjugação de Esforços Públicos e Privados: parcerias e participação social – O reconhecimento da impotência do Estado em, sozinho, responder por toda a demanda social é uma das lições do período. De fato, a
experiência regional da última quinzena de anos é extremamente rica em termos da associação das energias nãogovernamentais ao esforço e realizações estatais. Do mesmo modo, ampliaram-se os espaços e as formas da
participação social, através de conselhos e colegiados de
variados tipos.
13
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
setor formal quanto no informal, através de estímulos à
melhoria da sua eficácia. Sob esta concepção integrada, é
o próprio conceito de política social que se vê afetado.
Com efeito, o caráter integrado ou sistêmico das políticas e investimentos sociais não significa, é claro, a mera
justaposição, no tempo, dessas ações, embora seja esse já
um ponto de partida. Significa reconhecer os efeitos mútuos, as economias de escala e recursos, as sinergias complexas que se gestam quando assim são concebidas e operadas estas políticas e programas. Por isso mesmo – e é
essa a ênfase que vem sendo posta nas novas concepções
de políticas sociais –, a natureza social de um dado investimento afere-se pela sua capacidade de se integrar a
este “núcleo duro” de conformação das condições básicas de vida. Têm natureza social – pelas suas relações e
efeitos sinérgicos com outras políticas – as políticas, programas e investimentos capazes de causarem impactos nas
condições de vida das populações presentes – de todos os
seus segmentos de renda – mas, sobretudo, de prepararem, entre os segmentos pobres, as suas gerações futuras
para adequarem-se às novas realidades das economias
reestruturadas e competitivas.
Mesmo no que concerne ao tratamento da pobreza, a
questão permanece. Ou seja, uma política específica para
a pobreza é necessária, mas o modo positivo, contínuo e
confiável de evitar a pobreza futura está indissoluvelmente
ligado à concepção anteriormente exposta.
Dois conceitos devem ser então sublinhados, nessa
concepção. Em primeiro lugar, reforça-se aqui, mais uma
vez, a concepção da política social como sistema de políticas – conjunto de programas e ações continuadas no tempo, que afetam simultaneamente várias dimensões das
condições básicas de vida da população. Ora, esta concepção, como argumentada anteriormente, esteve na base
da estruturação do Welfare State; a perda dessa capacidade sistêmica é hoje uma dimensão da sua crise. Cabe
resgatá-la sob a nova geração de políticas.
O segundo conceito tem uma expressão quase territorial:
através da noção de “habitat”, emprestada dos urbanistas,
remete às base da organização do sistema de políticas numa
determinada área de implantação. É principalmente em relação à política para a pobreza que a “territorialização” das
políticas ganha maior significado, ainda que não se esgote
aí. Sabe-se hoje que, em áreas caracterizadamente pobres, a
sua melhoria econômica e social depende de um conjunto
de investimentos que não se reduzem à educação, saúde,
alimentação e outros programas emergenciais. Depende,
sobretudo, do dinamismo econômico que se logre recuperar
ou aí instaurar, gerando empregos e ampliando a estrutura
do mercado de trabalho; de melhorias de infra-estrutura urbana que as capacitem a atrair e reter capitais; de investimentos e ações de reestruturação urbana que ampliem e di-
versifiquem as oportunidades culturais e de lazer, reduzindo tanto os isolamentos socioculturais quanto os níveis de
violência nelas prevalecentes; de programas de defesa do
meio ambiente e de segurança civil, inibindo tendências
destrutivas e de deterioração ambiental. Depende, finalmente,
da dinâmica de participação social que aí ganhe impulso.
A outra face, portanto, da integração das políticas é a
constituição e preservação de ambientes saudáveis, forma quase física de implantar as bases do desenvolvimento humano sustentável.
O Gasto Público Social no Centro do Modelo de Desenvolvimento Humano Sustentável – A observação final retoma a condição imprescindível da implantação da
nova agenda de política social – o nível do gasto social.
A reordenação do sistema de políticas sociais tem, entre
seus objetivos, o de elevar o padrão de eficácia e eficiência do gasto social e esta é uma tarefa da reforma do Estado que não pode ser descuidada. Porém, a nova estratégia de desenvolvimento social não se desenvolverá sem a
aplicação de fortes recursos nas áreas sociais fundamentais, organizadas segundo os três eixos referidos. E dificilmente poderá ser implantada se não contar com um
patamar mínimo de gasto, que evite, nos momentos recessivos ou de ajustamentos fiscais, o aprofundamento da
crise social e a deterioração dos serviços sociais.
A vulnerabilidade do gasto público social, revelada
durante o ciclo de reformas dos anos 80, de tão nefastas
conseqüências, obriga a que, sob a nova geração de políticas, seja sublinhado o caráter estratégico do gasto público para sustentar o programa de desenvolvimento humano. E impõe também o resguardo do nível já atingido
pelas despesas sociais, sem o qual será impossível manter e ampliar a qualidade do desenvolvimento social futuro. Regressões, neste nível, mesmo quando realizadas
sob argumentos de racionalidade, produzem prejuízos na
situação presente que comprometem a possibilidade futura da política social integrada.
Há muitas maneiras de definir mínimos para o gasto
social, tanto gerais quanto setoriais. É importante, porém,
encontrar formas mais integradas de determiná-los, formas que guardem correspondência com as modalidades
de integração dos programas de que se falou antes. Como
também é importante o esforço comum de grupos de países nessa linha.
É sob a dupla exigência de reforma e simultâneo fortalecimento que os sistemas de políticas sociais de re-institucionalizados devem enfrentar a demanda acrescida e
diferenciada por eqüidade e igualdade, porque essa é uma
exigência da vida democrática. É sob a dupla pressão que
os programas sociais vêm sendo chamados a elevar os
graus de qualidade dos serviços que oferecem, porque é
14
UMA NOVA INSTITUCIONALIDADE DAS POLÍTICAS SOCIAIS?
REFLEXÕES A
...
vos, inflacionários e finalmente de crise, quando posições corporativas defensivas tratam de resistir a bruscas mudanças de prioridades.
esse um requisito dos novos parâmetros produtivos. É
então sob essas complexas expectativas que os sistemas
de proteção social avançam em direção ao novo ciclo de
políticas comprometidas com o caráter democrático e sustentável do desenvolvimento.
13. A expansão da cobertura e, em alguns casos, a orientação mais compreensiva, pouco a pouco foram de imprimindo às áreas, reforçando os princípios universalistas da prestação desses serviços.
14. Seja através do mecanismo de “manifestação dos privilégios” de que fala
Mesa-Lago, seja pela alteração da composição entre benefícios contributivos e
benefícios que dispensavam exigências de contribuições pretéritas, extravasando, portanto, o critério ocupacional em que se apoiavam os sistemas originais.
Na década de 70, muitos países ensaiam ou fazem reformas unificadoras dos
seus regimes previdenciários, restringindo os graus internos de diferenciação e
de privilégios. É também nesse período que muitos países introduzem ou reforçam as pensões sociais para trabalhadores precariamente incorporados ao sistema de seguros, principalmente os ligados ao trabalho rural.
NOTAS
1. Houve piora da distribuição de renda em todos os países, inclusive naquele que,
no ponto de partida, mostrava-se o mais igualitário, o Uruguai . O agravamento da
pobreza, ocorrido tanto nos episódios de hiperinflação que antecederam aos ajustamentos quanto nas fases iniciais destes, tem se revelado de difícil reversão, mesmo nos países que apresentaram taxas mais elevadas de crescimento e recuperação
econômica. Recentemente, noticiou-se que o Chile ainda conta com um terço da
sua população abaixo da linha da pobreza, embora tenha conseguido reduzi-la do
patamar de 50% em que se encontrava uma quinzena de anos atrás, na etapa “difícil” do seu ajustamento fiscal. Dessa forma – o que é dito e reconhecido por todos
os lados – até agora os melhores resultados da inflexão reformista pró-mercado
têm estado concentrados na estabilização das economias, duramente mantida frente a ondas especulativas contra as moedas nacionais, de impacto sabidamente devastador e que pouco ou nada têm a ver com eventuais – se ainda existirem – pressões populistas ou corporativistas internas. Veja-se a respeito Cardoso (1997).
15. Gerando estruturas mais típicas da seguridade social que de seguro individual restrito. Segundo Mesa-Lago, os sistemas latino-americanos já se classificavam então como mistos, ao lograrem transitar do estreito conceito de seguro
social para uma concepção mais ampla de seguridade social, sem contudo atingi-la (Mesa-Lago, 1989: xvii).
16. Que em geral conduz à ampliação vertical de novos benefícios a grupos já protegidos e à incorporação horizontal de novos grupos ao sistema básico de privilégios.
17 - São reproduzidos aqui, parcialmente, argumentos desenvolvidos em Draibe
(1996) e Silva e Silva (1997: Prefácio).
18. Estas tendências são descritas em Draibe (1995).
19. Para uma síntese das principais teses e argumentos econômicos, políticos e
ideológicos, ver Draibe e Henriques (1988).
2. Os outros tipos, diferenciados nas tipologias clássicas de Titmus/Áscoli ou de
Esping-Andersen, são o de residual ou liberal, de um lado, e o institucional-redistributivista ou social-democrata, de outro. Ver a respeito, Draibe (1989).
20. Entre 1980 e 1993, enquanto o gasto público medido como percentual do
PIB registrou crescimento entre 2 e 5 pontos nos EUA (2,1%), França (6,2%) e
Inglaterra (5,2%), a participação das despesas sociais no gasto público sofreu
queda quase simétrica (EUA, -6,1%; Alemanha, -4,3%; França, -5,1%) ao mesmo tempo em que cresceu mais que proporcionalmente a participação das despesas com juros no gasto público total (EUA, 5,5%; França, 5,1%; Inglaterra,
0,8%; Alemanha, 7,8%). Bird, apud Schwartz (1995).
3. Os países são a Argentina, a Bolívia, o Brasil, a Colômbia, a Costa Rica, o
Chile e o México. O Projeto Regional de Reformas de Política Pública, patrocinado pela Cepal e Governo dos Países Baixos, foi coordenado por Oscar Altimir
e estudou, entre os anos 1990 e 1991, o conjunto de reformas econômicas e sociais implementadas naqueles países. Os sete estudos nacionais sobre reformas
dos programas sociais, já publicados na Série Políticas Públicas da Cepal, foram
sintetizados e comparados no ensaio de Draibe (1995).
21. Esta é a argumentação que está na base do lema Transformação Produtiva e
Eqüidade, da Cepal.
4. Por exemplo, o Brasil e a Argentina destacam-se, entre os países estudados, pelo
fato de que seus níveis provinciais (ou estaduais) apresentavam, no início dos anos
80, fortes capacidades referentes aos programas de educação básica e secundária e
de saúde. O caso brasileiro merece uma observação adicional. Os municípios, por
constituírem esferas quase autônomas de governo, puderam organizar com alguma
liberdade suas redes de educação e saúde, principalmente os municípios grandes.
Ainda assim, são as redes estaduais de educação básica e secundária as que concentravam – e ainda concentram – a maior parte das matrículas e dispõem de recursos humanos, pedagógicos e administrativos de melhor qualidade.
22. Esta é a expressão cunhada pelo PNUD para identificar os conteúdos e formatos inovadores do segundo ciclo de reformas institucionais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
5. É o caso do Brasil e do México.
6. Assim mostraram-se os casos da Bolívia e da Colômbia nas décadas de 70 e 80.
BELLUZZO, L.G. “O declínio de Breton Woods e a emergência dos mercados
‘globalizados’”. Economia e sociedade. Campinas, n.4, IE-Unicamp, 1996.
7. Os casos chileno, costarriquense e argentino aparentemente possuíam sistemas públicos apoiados em organizações de dimensões administráveis e burocracias competentes e capazes, o que tendia a garantir, mesmo em períodos de crise, uma oferta em patamares mínimos de qualidade.
CARDOSO, E. “A política e os pobres na América Latina”. Folha de S. Paulo.
São Paulo, 07/09/97.
CASTEL, R. Les métamorphoses de la question sociale, unechronique du salariat.
Paris, Fayard, 1995.
8. Entre os sete países estudados, o Brasil mostrava, após as reformas da Previdência de 1966 e 1977, o mais unificado e harmonizado, as diferenças concentrando-se nas aposentadorias especiais e nos regimes de funcionários públicos.
O Chile, até o Governo da Unidade Popular, abrigava mais de 20 regimes previdenciários especiais.
COMINETTI, R. Gasto social y ajuste fiscal en America Latina. Santiago, Cepal,
n.12, 1994 (Série Politicas Publicas).
DRAIBE, S. M. e HENRIQUES, W. “‘Welfare State’, crise e gestão da crise:
Um balanço da literatura internacional”. Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, Anpocs, n.6, 1988.
DRAIBE, S.M. “Una perspectiva de desarrollo social en Brasil”. Revista de la
Cepal. Santiago, Chile, n.39, 1989.
__________ . “Qualidade de vida e reforma de programas sociais: o Brasil no
cenário latino-americano”. Lua Nova (Revista de Cultura e Política). São
Paulo, n.31, 1993, p. 5-46.
9. Refere-se aqui à expressão eminentemente política das organizações e de seus
atores. Sabe-se que grandes e complexas organizações, ocupadas por imensas
burocracias, adquirem poder e autonomizações próprias, os processos decisórios tendendo a se tornar prisioneiros de inércias, culturas e resistências particulares às redes, principalmente as mais antigas e sedimentadas. São essas, em
geral, as mais porosas aos particularismos de toda a ordem, impulsionados por
grupos profissionais que corporatizam e feudalizam segmentos das polices, introduzindo assim a regra privada na lógica do Estado.
__________ . “América Latina: o sistema de proteção social na década da crise
e das reformas”. In: ALTIMIR, O. Reformas para aumentar a efetividade
do Estado na América Latina. Santiago, Cepal, 1995.
__________ . Proteção social e desenvolvimento humano na América Latina:
as políticas sociais de nova geração. Paper elaborado para PNUD/Cepal Conference on the Next Generation of Policy Concerns: equity, enviromente
and democracy in the Southern Cone, 1996.
MESA-LAGO, C. Ascent to bankruptcy. Pittsburgh, Univ. of Pittsburg Press, 1989.
10. Os estudos nacionais especialmente preparados para a pesquisa destacam a
forte atuação reformista dos profissionais da saúde em prol da construção de
sistemas únicos no Brasil, na Costa Rica e no México. Resistências corporativas
contra reformas educacionais (municipalização do ensino ou quebra da gratuidade
do ensino superior) são freqüentes em quase todos os casos, salvo nas situações
em que o regime autoritário suprimiu a atividade sindical, como no Chile.
11. Especialmente no Chile e na Costa Rica.
SCHWARTZ, G. “Como reformar Estado não é consenso”. Folha de S.Paulo.
São Paulo, 10/12/95.
12. De algum modo, o gasto social plasmou, na sua composição, as categorias
de apropriação dos benefícios: a participação mais que proporcional e crescente
das despesas com a seguridade ou com a instrução universitária tendeu a introduzir rigidez no manejo dos recursos, sentidas com força nos períodos recessi-
SILVA E SILVA, M. O. Renda mínima e reestruturação produtiva. São Paulo,
Ed. Cortez, 1997.
15
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
A REEMERGÊNCIA DAS SOLIDARIEDADES
MICROTERRITORIAIS NA FORMATAÇÃO
DA POLÍTICA SOCIAL CONTEMPORÂNEA
MARIA DO CARMO BRANT DE CARVALHO
Professora do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social na PUC-SP
A
s redes de solidariedade microterritoriais, durante
os anos gloriosos de boom econômico – pleno
emprego e oferta de políticas sociais universalistas – pareciam ser descartáveis no modelo de welfare
state gestado nos países centrais. A família, por exemplo,
foi inclusive estigmatizada pela revolução cultural e feminista ocorrida naquele tempo/espaço.
A proteção e a reprodução social transformaram-se em
missão “quase total” de um Estado social de direito dos
cidadãos. Parecia que o indivíduo “promovido” a cidadão podia trilhar sua vida apenas dependente do Estado e
do trabalho, e não mais das chamadas sociabilidades sociofamiliares. Isto, no embalo de uma urbanização e de
uma transnacionalização aceleradas com promessas de sociabilidades planetárias.
Na realidade, pesquisas recentes constataram que estas microrredes de solidariedade – e sociabilidades por
elas engendradas – mantiveram-se como condições privilegiadas de proteção e pertencimento a um campo
relacional importante na reenergização da vida cotidiana
dos indivíduos.
Mas, por que o retorno e a revalorização das microssolidariedades no desenho da política social contemporânea? Por que as redes que elas constituem estão sendo incluídas como parceiras no próprio fazer social do
Estado?
Sem dúvida, o fator principal deste retorno se deve às
crescentes demandas de proteção social postas não apenas
pelos “pobres” ou “desempregados”, mas por uma maioria
de cidadãos, que se percebem ameaçados pelos riscos de, a
qualquer momento, perderem a segurança advinda de seus
tutores tradicionais: o mercado e o Estado.
Hoje, as demandas de proteção social ganham novas
peculiaridades. É que os processos contemporâneos de
globalização da economia, da informação, da política, da
cultura, assim como os avanços tecnológicos e a transformação produtiva, vêm produzindo uma sociedade complexa e multifacetada. Uma sociedade global que, de um
lado, mantém seus cidadãos fortemente interconectados
e, por outro lado, extremamente vulnerabilizados em seus
vínculos relacionais de inclusão e pertencimento. Já não
são apenas as mercadorias que podem ser descartadas, mas
também segmentos da população que se tornam “sobrantes”.
A pobreza, que até há pouco tempo se apresentava como
um fenômeno homogêneo, hoje aparece como um fenômeno heterogêneo, multidimensional, que atinge não só
as clássicas camadas da população aprisionadas num círculo cumulativo de insuficiência/ausência de rendimentos, subnutrição, habitações degradadas, analfabetismo,
mas também, progressivamente, outros segmentos da
população – especialmente nos países centrais –, tais como
jovens que, imersos num “eterno presente”, ficaram sem
passado e sem perspectivas de futuro (Hobsbawn, 1996);
migrantes, idosos e habitantes de grandes centros urbanos lançados no isolamento social. Estes são alguns dos
exemplos dos “novos pobres” que se apresentam nutridos e com melhor escolaridade.
A pobreza assume na contemporaneidade um significado excludente. É nesta condição que a desigualdade
social é também re-significada, sinalizando novos processos de discriminação e apartação social, como denomina
Buarque (1993).1
O desemprego massivo – resultante de inovações tecnológicas, poupadoras de mão-de-obra – é um dos
motores visíveis desta nova pobreza. Mas, a este desemprego se articulam a precarização das relações de trabalho e o enfraquecimento da sociedade salarial. Conjugam-
16
A REEMERGÊNCIA
se aí, igualmente, desindustrialização, perda de competitividade e uma dependência mais dramática dos países periféricos.
No entanto, há outro motor menos visível: o exacerbamento do individualismo, a atomização social, o
esfacelamento de organizações vicinais e os novos arranjos familiares, nos quais os indivíduos já não encontram
redes de relações e trocas regidas pela reciprocidade que
conformam o mundo da vida.2 Ou seja, vínculos relacionais de apoio e pertencimento. É importante frisar que
estes processos não atingem de forma homogênea todos
os cidadãos.
Segundo Telles (1994:98), “se é verdade que a crise
econômica dos últimos anos aumentou a pobreza e miséria, também é certo que os rumos já tangíveis de reorganização econômica redefinem a questão social pelos riscos de uma dualização da sociedade, dividida entre
enclaves de modernidade e uma maioria sem lugar. A
reestruturação industrial, as mudanças no padrão tecnológico e transformações na composição do mercado vêm
produzindo um novo tipo de exclusão social, em que à
integração precária no mercado se sobrepõe o bloqueio
de perspectivas de futuro e a perda de um sentido de pertinência à vida social. É isso que caracteriza a chamada
nova pobreza, que escapa às soluções conhecidas e formuladas nos termos de políticas distributivas e compensatórias, pois esta tem por suposto exatamente o que parece estar deixando de ser plausível, ou seja, a
possibilidade de uma integração constante e regular no
mercado de trabalho”.
Este artigo pretende discutir, sem ter a pretensão de
esgotar o debate sobre a conexão hoje presente entre o
Estado, o mercado e as redes de solidariedade microterritoriais, refletidas na formatação da política social
contemporânea. Inicialmente, apresenta-se uma breve contextualização do “estado das artes” no que se refere ao
comportamento da política social.
DAS
SOLIDARIEDADES MICROTERRITORIAIS NA ...
extensivos a todos os cidadãos. E finalmente, um pacto
interclasses viabilizador do pleno emprego, assentado em
macropolíticas econômicas e sociais mediadas pelo Estado.
Nos anos 80 e, mais acentuadamente, nos anos 90, assistimos a uma tendência ao desmonte do propósito essencial da política social vigente nos “anos gloriosos”:
sua oferta universalista e redistributivista.
É impossível compreender as alterações no comportamento da política social sem refletir sobre algumas características/processos contemporâneos que desestabilizam antigos consensos e impõem novos desafios.
Fragilização do Modelo Institucional
A crescente interdependência causada pela globalização dos negócios fragiliza o conhecido modelo institucional do Estado-Nação. Globalização e revolução tecnológica consolidam uma nova fase do capitalismo que
alguns autores denominam de capitalismo desorganizado
e outros consideram como a retomada selvagem dos movimentos do capital que, “des-amarrado” da regulação
estatal vigente no período precedente, rompe todas as fronteiras nacionais.
“O movimento globalizador tem duas faces: de um lado, liberdade significa liberação; de outro significa desproteção. Para liberar é preciso desproteger, é preciso derrubar barreiras tarifárias e extra-tarifárias que protegem
os países dos efeitos perniciosos e tantas vezes letais da
concorrência internacional; é preciso privatizar o que fora
assumido como responsabilidade estatal; é preciso desregulamentar o que estava sob o amparo de normas estabelecidas; é preciso flexibilizar as relações capital-trabalho
abolindo as seguranças dos direitos conquistados ”
(Martins, 1996:18).
Mas a marca mais dramática desta nova fase capitalista é a supremacia da especulação financeira: “(...) os mercados financeiros passaram a ser a polícia, o juiz e o júri
da economia mundial” (Financial Times, apud Martins
1996:24).
O Estado-Nação acaba se comportando como um
“pronto-socorro” do mercado/economia e “pronto-socorro” do social. Já não se espera que exerça um papel/poder intervencionista em ambos os campos. É neste contexto que muitos autores apontam para uma perigosa
clivagem, em que a concepção social universalista seria
deixada à margem.
Os arranjos em blocos econômicos e políticos (União
Econômica Européia, Nafta, Grupo dos 7, Mercosul) e
a força das organizações supranacionais (como OMC
e FMI) acabam por direcionar as regras do jogo econômico, político e jurídico. Esses arranjos globais são,
TENDÊNCIAS NO COMPORTAMENTO DA
POLÍTICA SOCIAL CONTEMPORÂNEA
Pensar as tendências da política social envolve contextualizá-la nas relações entre Estado, sociedade e capitalismo global. Estas relações engendram demandas e limites que pressionam por novos arranjos e modos de
gestão da política social.
Até os anos 70, acostumamo-nos a olhar os países desenvolvidos como parâmetros para a conquista de um
capitalismo “domesticado” pelos ideais de uma socialdemocracia, com um Estado social forte e capaz de garantir políticas sociais relativamente eficazes na produção de maior eqüidade e usufruto de direitos sociais
17
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
no entanto, preponderantemente orientados e institucionalizados pelos interesses tipicamente capitalistas
ou empresariais. Deste padrão de governabilidade não
emergem, pois os interesses sociais ou os tipicamente
relacionados ao trabalho, que sequer se fazem presentes. Ao contrário, assiste-se a maior desigualdade entre países centrais e países periféricos. Dentre estes últimos, aqueles valorados como mercados emergentes e
os considerados descartáveis.
A alavancagem e a consolidação de processos flexibilizadores e liberalizantes facilitam o predomínio da regulação mercantil sobre a estatal e a formação de vínculos
mais diretos entre o global e o local. Desta forma, fica
fragilizado o Estado nacional, e com ele os mecanismos
de unificação e coordenação.
A rede mundializada de organizações da sociedade civil
assume papel fundamental na constituição de solidariedades intermédias, mantendo o fluxo global/local e local/
global.
Finalmente, os governos nacionais perdem força na
formulação e implementação de políticas sociais universalistas, embalados nos discursos da democratização,
descentralização, desregulamentação, fortalecimento da
sociedade civil, etc. Mas este mesmo discurso, na sua dialética, escamoteia a debilidade política do Estado-Nação
no contexto contemporâneo.
Mudanças Ininterruptas
Como afirma Nogueira, “o ciclo histórico em que nos
encontramos está inteiramente tomado pela mudança acelerada, ininterrupta e cumulativa. Nele, entrecruzam-se
inovações tecnológicas e modificações sócio-culturais que
repercutem sobre todos os planos e setores da vida social”
(Nogueira, 1995:107).
Na realidade, os avanços tecnológicos e científicos e,
em especial a chamada revolução informacional, alteram
radicalmente o comportamento societário e os processos
de regulação social, antes capazes de gerar consensos e
coesões mais duradouras.
Em lugar da socialização disciplinar e dos padrões
coercitivos, a fluidez negociadora. Em lugar do respeito
e do culto a idéias e instituições, a banalização das idéias, instituições e sujeitos coletivos. Em lugar da conjugação dialética de direitos e deveres, a dissociação
entre ambos. Em lugar da distinção entre o privado e o
público, a invasão mútua e a ambigüidade entre ambos. Em lugar da primazia do trabalho como integrador
social por excelência, a sua secundarização. Assistimos
a tendência à substituição do pleno emprego pela plena atividade.
A sociedade contemporânea é mais complexa, marcada pela “fragmentação, corporativismo, particularismo, individualismo, crise da política e do Estado. Por mais paradoxal que possa parecer, é sinônimo de ‘desorganização’.
Tudo se passa como se não mais houvesse centros de imputação capazes de ordenar os processos sociais, organizações capazes de comandar e vincular pessoas, instituições capazes de construir sínteses superiores a partir de
interesses fracionados” (Nogueira, 1994:109).
Neste tempo histórico, vivemos a primazia dos
microinteresses, das microidentidades, e não mais dos
macrointeresses coletivos. Nestas condições, torna-se
complexa e árdua a tarefa de propor e consensuar projetos coletivos emancipatórios. Parece haver aí a adesão,
ou o conformismo, a um novo pacto social, mais pobre e,
ao mesmo tempo, mais consumista.
Deslocamento do Estado-Nação
A tendência à interconexão mais direta entre o global
e o local deslocam o Estado-Nação para uma zona de
mediação, mais do que de decisão autônoma.
Se, para o capital, os centros de poder se concentram em organizações supranacionais, como Grupo dos
7, OMC, FMI, no plano social, convergem para organizações da ONU e congêneres, como Unicef, OMS,
Unesco, Banco Mundial, entre outras. Na outra ponta
(o local), as municipalidades e organizações da sociedade civil ampliam seu poder no direcionamento da
política social.
No campo social, as relações entre global governance
e local governance ganham o oxigênio do chamado terceiro setor (nem Estado/nem mercado), representado pela
enorme expansão das organizações da sociedade civil3 e
de fundações empresariais sem fins lucrativos, que se
movem em redes mundializadas em estreita intimidade
com organizações supranacionais, especialmente as organizações das Nações Unidas.
É ilustrativo relembrar as conferências protagonizadas
pela ONU na presente década, 4 com a expressiva participação das chamadas organizações não-governamentais.
Destaca-se a última conferência realizada em 1996 em Istambul, a Habitat II, que reuniu pela primeira vez representações de governos municipais, além das ONGs.
Assim, correndo em artérias também globais, as organizações da sociedade civil pressionam instituições políticas mundiais objetivando conter os movimentos selvagens do capital e assegurar conquistas sociais. É neste veio
que emergem as marchas dos trabalhadores na Europa, os
movimentos/atores de defesa ecológica, os movimentos/
atores de defesa das minorias, entre outros, que, no entanto, expressam características multifacetadas, particularistas, segmentadas próprias da sociedade contemporânea.
18
A REEMERGÊNCIA
Assiste-se, assim, a uma nova inversão: a primazia dos
direitos das minorias e não mais das maiorais.
Esta ênfase tem conseqüências claras sobre a política
social. A mais importante se revela na priorização de políticas focalistas, mais que em políticas universalistas.
DAS
SOLIDARIEDADES MICROTERRITORIAIS NA ...
problemas e necessidades específicas; elegem clientelas
locais, ou minorias regionais, nacionais e supranacionais.
Algumas são braços doutrinários de Igrejas; outras do
empresariado; outras de movimentos sociais; e outras,
ainda, braços solidários da própria comunidade. Mas todas elas constituem, em comum, braços de um Estado
inadimplente com os empobrecidos e excluídos. Formam
redes de organizações não-governamentais, algumas com
vínculos apenas locais, e outras com vínculos transnacionais” (Carvalho, 1994:91).
O discurso dos direitos, articulado ao da revalorização
das solidariedades, gesta contraditoriamente “políticas
sociais sem direitos”,5 permitindo indicar tanto uma possível re-filantropização da intervenção social, quanto um
deslocamento do protagonismo do Estado para a sociedade civil, especialmente quando se refere ao segmento da
população constituído por cidadãos pobres e excluídos.
Revalorização das Redes de Solidariedade
Ao invés de considerar a política social como competência exclusiva do Estado, é possível articular iniciativas privadas do Estado e da sociedade civil.
Nesse sentido, está na ordem do dia o chamado
welfare mix, que promove uma combinação de recursos e de meios mobilizáveis junto ao Estado, mercado,
iniciativas privadas sem fins lucrativos e, ainda, aqueles derivados das microssolidariedades originárias na
família, nas igrejas, no local (Martin, 1995 e Evers,
1993), de modo que as políticas sociais se apresentam
hoje como responsabilidades partilhadas.
Para Abrahamson (1995) “os diferentes welfare states
europeus estão convergindo para o modelo corporativo,
o que implica fortalecimento das tendências de dualização
do welfare state. Dualização, neste caso, significa um sistema de bem-estar bifurcado, onde o mercado cuida dos
trabalhadores mais bem posicionados, através de vários
arranjos corporativistas, e deixa os grupos menos privilegiados sob a responsabilidade das instituições locais
(municipalidades ou solidariedade privada) (...) o primeiro
mais generoso, regido pelos princípios do mercado e voltado a proteger os trabalhadores mais educados e habilitados, e outro, local predominantemente público, voltado
para atender precariamente os marginalizados”.
De qualquer forma, o welfare mix é um retorno, com
matizes da contemporaneidade, ao fortalecimento das
redes de solidariedade emanadas da própria sociedade
civil.
Na América Latina, em geral, e no Brasil, em particular, o welfare state nunca se consumou inteiramente. Na realidade, nestes países sempre se conjugou um
frágil Estado-providência com uma forte sociedade-providência.
“A sociedade-providência nestes países é ao mesmo
tempo fluida e organizada. Uma sociedade-providência,
nascida no interior das próprias camadas populares como
resistência e possibilidade de sobreviver na carência e na
pobreza. Outra sociedade-providência, nascida no interior das classes média e alta, assumindo tons os mais diversos: apadrinhamento, tutela, filantropia, defesa dos
direitos, mobilizadora da organização popular para obtenção de serviços do Estado... Enfim, essa rede de solidariedade assume propostas conservadoras/tutelares ou
progressistas/emancipatórias. São fragmentadas, pinçando
Descarte das tradicionais respostas
institucionalizadoras
No desenho das políticas sociais contemporâneas, é
claro, igualmente, um outro enfoque: o Estado de bemestar social dos anos “gloriosos” tomou a si a responsabilidade de ofertar uma gama complexa de serviços de proteção social, que acabaram por se engessar em processos
burocráticos e institucionais que resultaram ineficazes e
onerosos.
Na realidade, até recentemente, a diretriz era oferecer
respostas institucionalizadoras às necessidades sociais.
Assim, para crianças abandonadas, priorizaram-se os internatos; para idosos, casas geriátricas ou asilos; para a
saúde, a internação hospitalar; para a educação, a escola
de tempo integral.
Este modelo tem sofrido fortes críticas. Algumas apontam para uma excessiva ingerência do Estado na esfera
privada, esvaziando-a de compromissos e de sentido social. Outras nos conduzem à idéia liberal de que mercado
e solidariedade organizada da sociedade civil, por meio
de suas organizações sem fins lucrativos, são mais competentes para garantir eficácia no trato da questão social.
Outras ainda enfatizam o alto custo e a baixa efetividade
do modelo institucionalizador.6
A crítica faz reemergir o discurso pelo retorno às solidariedades comunitárias, vicinais, familiares. É também uma
ênfase no chamado Terceiro Setor (nem Estado, nem mercado). É a vez das ONGs e da filantropia revisitada, reconhecidas como solidariedades intermédias, de extrema importância na prestação de serviços sociais públicos não
estatais, e igualmente na defesa de direitos dos cidadãos.
Nesta medida, se prioriza projetos abertos e flexíveis
de atenção a diversas demandas, capazes de envolver as
19
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
solidariedades comunitárias, as pequenas ONGs prestadoras de serviços sociais, a família e o próprio beneficiário.
Como destaca Draibe (1994),“estão em curso processos sociais que tendem a alterar as relações entre o Estado
e o mercado; o público e o privado; os sistemas de produção, de um lado, e os de consumo de outro, dos equipamentos sociais. As assim chamadas ‘formas alternativas’
– os mutirões de autoconstrução, as diversas experiências
de ajuda mútua, práticas comunitárias e de vizinhança (na
guarda de crianças, no setor de alimentação, na coleta e
processamento do lixo) – são, no Brasil, exemplos que se
multiplicam em todo o mundo, de participação dos próprios beneficiários e de envolvimento de associações voluntárias e de redes de ONGs – Organizações Não-Governamentais – no encaminhamento das políticas sociais”.
mento do capital relacional, trocas culturais e inserção
participativa em projetos sociopolíticos emancipatórios.
Neste embalo, outra opção ganha espaço: a substituição
do pleno emprego pela plena atividade. Esta opção pode
resvalar, igualmente, para distorções do significado de
plena atividade, ou seja, uma iniciativa espontânea (não
obrigatória) motivada pela reciprocidade e solidariedade, atributos essenciais do sujeito social (Gorz, 1996).
Ganha reforço a idéia de que, na falta de trabalho, há
que se fortalecer as sociabilidades sociofamiliares, capazes de compensar e repor vínculos relacionais em processos de inclusão social. O risco, neste caso, é o fechamento do indivíduo na esfera privada, dado que as
sociabilidades sociofamiliares podem processar inclusão,
mas não asseguram necessariamente inclusão social.
No Brasil e na América Latina em geral, as sociabilidades sociofamiliares e as redes de solidariedade primárias nunca foram descartadas, já que elas foram, e ainda
são, para as camadas populares, a condição de resistência
e sobrevivência. A família alargada – um grupo de conterrâneos, por exemplo – possibilita a maximização de rendimentos, apoios, afetos e relações que facilitem a obtenção de emprego, moradia, saúde, etc.
É basicamente por estes motivos que a política social
contemporânea retoma a família, a comunidade e pequenas ONGs como unidades protetoras por excelência. A
melhor proteção não se traduz apenas em renda, mas deve
também reforçar vínculos relacionais e de pertencimento
dos cidadãos, necessários à garantia de padrões mínimos
de inclusão social.
Portanto, não são apenas os déficits públicos, a democratização da coisa pública e a participação dos cidadãos
que justificam alterações na política social. Há uma necessidade quase vital de reintroduzir as solidariedades
microterritoriais para o centro mesmo da política social
contemporânea.
Os Estados-Nação manifestam uma clara fragilização
política, e não apenas financeira, para ditar e assegurar
políticas sociais. De um lado, os processos de globalização,
dialeticamente, reforçam processos de localização, ao atribuir maior força política às municipalidades, e remetem
os governos da nação para uma zona de mediação, mais
do que de decisão e intervenção. De outro, a vocalização
geral em torno da democratização, da flexibilização, da
descentralização e do fortalecimento da sociedade civil
reforça antes o poder local que o central.
Consensualizam-se, assim, as bases para o que se pode
denominar hoje de welfare state locais: governo e sociedade local criam mecanismos (fóruns, conselhos, etc.) para dar
forma a esse processo de parceria no desenho e na efetivação
de uma política social. Este novo desenho permite incluir a
iniciativa privada e, com maior riqueza, as micro-solidarie-
ENSAIANDO UMA CONCLUSÃO
Na base do novo fazer social, há outros argumentos
bem mais contundentes, pois se apóiam no risco social
contemporâneo da ausência de trabalho para todos, “no
sentido em que uma economia que dispensa cada vez mais
o trabalho, pode cada vez menos fazer dele o princípio
organizador e ordenador que está na base de todas as sociedades” (Barel apud Martin 1995:59). Trata-se de um
paradoxo, “pois haveria que reconhecer que o trabalho já
não assegura o seu papel de Grande Integrador, continuando, embora, a ser o vetor principal da integração e do acesso à cidadania” (Martin 1995:59).
Na mesma linha, Castel (1991:139) assinala duas formas contemporâneas de fragilização dos indivíduos, calçada em dois eixos: o da integração/não-integração por
meio do trabalho e o de inserção/não-inserção numa sociabilidade sócio-familiar. A ausência de integração no mundo do trabalho ou a não inserção em redes de sociabilidade, segundo o autor, fazem os indivíduos resvalarem para
zonas de vulnerabilidade. A ausência combinada de trabalho e vínculos relacionais lançam-nos num processo de
desfiliação.
No bojo destas afirmações, há opções políticas amplamente debatidas, que contêm riscos e contradições. A
primeira se centra na busca de ampliação de empregos
tout court, imaginando recriar o pleno emprego e reconduzir o trabalho ao papel de grande agregador. No cenário atual, esta opção poderia levar ao maior enfraquecimento da sociedade salarial e estimular os empregos
precários. Outra opção é a redução da jornada de trabalho com vistas a assegurar emprego para todos. Embora
como proposta, esta última angarie maior simpatia, não é
seguro imaginar que promova emprego para todos, nem
tampouco que o tempo livre resultante possibilite uma cidadania plena, com a ativação das possibilidades de au-
20
A REEMERGÊNCIA
DAS
SOLIDARIEDADES MICROTERRITORIAIS NA ...
lher (1995). Todas foram protagonizadas por organizações supranacionais
como PNUD, Banco Mundial, Unesco e Unicef.
dades territoriais e sociabilidades sociofamiliares na produção de políticas de proteção e inclusão social.
Contudo, este modelo de bem-estar social local não
deixa de ser contraditório, na medida em que introduz
novas desigualdades, tornando mais complexas e distantes as possibilidades de se garantir um projeto coletivo
extensivo a toda a nação. Perde-se em unidade e ganhase em diversidade e heterogeneidade, já que cada município tem autonomia reforçada para desenvolver seu projeto social sem que o Estado-nação consiga assegurar a
unidade desejada. Em contrapartida, as sociedades locais
ampliam as possibilidades de participação e de exercício
do controle social sobre o fazer público.
Finalmente, a sociedade hoje enfatiza os direitos das
minorias, possibilitando o predomínio de políticas focalistas, que não se adequam aos moldes tradicionais. Estas
clamam por articulação e ação transetorial das diversas
políticas públicas para públicos-alvos específicos,
objetivando uma atenção integral.
A busca da eqüidade social, neste caso, volta-se para
segmentos (criança, mulher, negro, idoso) e não mais para
o conjunto dos cidadãos. É nesta medida que os direitos
sociais de todos os cidadãos, expressos em políticas
universalistas, são secundarizados.
A proteção social, enquanto missão partilhada entre
Estado, iniciativa privada e sociedade, o welfare state
local, a revalorização das micro-solidariedades e a ênfase nas minorias parecem ser os elementos-chave para a
formatação da política social contemporânea.
5. Expressão de Vieira (1996), em referência à política social brasileira pós-Constituição de 1988, mas que se aplica, de maneira geral, a outros países.
6. De acordo com estudos feitos em Nova York, a assistência a um idoso em seu
domicílio custa 180 dólares mensais; em um albergue para idosos, 800 dólares e
em um hospital geriátrico, 5 mil dólares. Ou seja, com o que custa atender a um
só idoso em hospitais, atende-se, igualmente ou melhor, a 27 em seus domicílios
(Morelli, apud Magalhães, 1989:81). No Brasil, a ação dos agentes comunitários de saúde, que realizam assistência materno-juvenil junto às famílias na própria comunidade, tem demonstrado ser uma intervenção menos onerosa e mais
eficaz no combate à subnutrição e mortalidade infantil.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAHAMSON, P. Welfare pluralism: para um novo consenso na política social européia? Brasília, Neppos/Ceam/UNB, 1995.
BUARQUE, C. A revolução nas prioridades. Brasília, Instituto de Estudos Sócio-Econômicos (Inesc), 1993.
CARVALHO, M. do C. “A priorização da família na agenda da política social”.
Família brasileira a base de tudo. Unicef, Cortez, 1994.
__________ “Assistência Social: uma política convocada e moldada para constituir-se em governo paralelo da pobreza”. Serviço Social e Sociedade. São
Paulo, Cortez, n.46, ano XV, dez.-1994, p.91.
CASTEL, R. “De I´indigence à l´exclusion, la desaffiliation. Precarité du travail
et vulnéralilité relatinnelle”. In: DONZELOT J. Face à l´exclusion. Le modéle
français. Paris, Editions Esprit, 1991.
DRAIBE, S. “As políticas sociais e o neoliberalismo”. Revista USP. Dossiê
Liberalismo/Neoliberalismo. São Paulo, n.17, março/abril/maio 1994.
EVERS, A. “The welfare mix approach. Understanding the pluralism of
welfare systems”. Paper presents at the Congress Well-Being in Europe
by Strengthening the Third Sector. Barcelona, maio 1993.
GORENDER, J. Estratégias dos estados nacionais diante do processo de globalização. São Paulo, IEA – USP, agosto 1995(Coleção documentos).
GORZ, A. “O direito ao trabalho versus renda mínima”. Revista Serviço Social
e Sociedade. São Paulo, Cortez, n.52, 1996.
HABERMAS, J. Teoria de la acción comunicativa – critica de la razón funcionalista. Madrid, Taurus Edicciones, 1988.
HOBSBAWN, E. Era dos extremos – o breve século XX. São Paulo, Cia das
Letras, 1996.
LIPOVETSKY, G. A era do vazio. Lisboa, Relógio d´água Editora, 1989.
MAGALHÃES, D. N. A invenção social da velhice. Rio de Janeiro, Ed. Papagaio, 1989.
MARTIN, C. “Os limites da proteção da família”. Revista de Ciências Sociais.
Coimbra, maio, n.42, 1995.
MARTINS, C. E. “Da globalização da economia à questão da democracia”. Discutindo a assistência social no Brasil. Brasília, MPAS/SAS, 1996.
NOGUEIRA, M. A. “Para uma governabilidade democrática progressiva”. Lua
Nova. São Paulo, Cedec, n.36, 1995.
SANTOS, B. de S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade.
São Paulo, Cortez, 1994.
TELLES, V.da S. “Sociedade civil e a construção de espaços públicos”. In:
DAGNINO, E. (org.) Anos 90. Política e sociedade no Brasil. São Paulo,
Brasiliense, 1994.
NOTAS
1. Sobre este processo de apartação, Buarque tem uma afirmação bastante incisiva: a transnacionalização da economia e da política produziu “uma nação formada com os ricos do mundo inteiro, não importa a distância em que estejam
fisicamente; e separados dos pobres do mundo inteiro, não importa a aproximação em que estejam fisicamente” (Buarque 1993:23).
2. Expressão utilizada por Habermas (1988).
3. Também chamadas de organizações não-governamentais/ONGs.
4. Entre outras, Conferência Mundial sobre Educação para Todos (Tailândia,
1990); Conferência Mundial sobre o Meio Ambiente/ECO 92 (Rio de Janeiro); Ano Internacional da Família e Conferência Mundial sobre População e
Desenvolvimento (Cairo, 1994); Conferência de Cúpula sobre Desenvolvimento Social (Copenhague, 1995); e IV Conferência Mundial sobre a Mu-
VIEIRA, E. “As políticas sociais e os direitos sociais no Brasil: avanços e retrocessos”. Revista Serviço Social e Sociedade. São Paulo, Cortez, n.53, março, ano XVII, 1996.
21
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
O DEBATE SOBRE RENDA MÍNIMA
a experiência de Campinas
ARNALDO MACHADO DE SOUSA
Economista, ex-secretário de governo da Prefeitura de Campinas
ANA MARIA MEDEIROS DA FONSECA
Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas da Unicamp
financiamento da seguridade social. Em outras palavras,
os sistemas de proteção social, em decorrência daquelas
mesmas grandes transformações, enfrentam dificuldades
financeiras oriundas da queda das contribuições dos trabalhadores.
Porém, como afirma Offe (1992:61-77), a missão do
Estado do Bem-Estar Social é garantir a seguridade social através de transferências monetárias, serviços, infraestrutura física e políticas reguladoras nas áreas de saúde, educação, habitação, seguro social, assistência social,
proteção laboral e assistência às famílias. O problema é
como cumprir tal missão se o welfare state depende da
garantia de altos níveis de emprego e da contribuição dos
que estão inseridos no mercado de trabalho. A crise do
mercado de trabalho, com a dramática redução dos níveis
de emprego, afeta os sistemas de proteção em virtude da
diminuição do número de contribuintes e do aumento dos
dependentes das transferências sociais.
Esta descrição, um tanto caricatural, sublinha apenas
um dos desafios, o desemprego, colocados aos welfare
states contemporâneos. Porém, seja em decorrência do
excedente de trabalho, do envelhecimento da população,
das mudanças nos arranjos familiares (extraordinário crescimento de famílias monoparentais), da ampliação dos
denominados trabalhos precários, de baixos graus de formalização contratual, ou da combinação de todos esses
elementos, coloca-se a exigência de mecanismos novos
de proteção social.
Nestas condições, programas de transferências monetárias diretas aos indivíduos e grupos familiares têm sido
propostos e implementados. Vale ressaltar, porém, que
programas de transferências de benefícios monetários não
são propriamente uma novidade. Nos Estados Unidos, o
Auxílio às Famílias com Crianças Dependentes (AFCD)
En la actualidad, un desempleado no es objeto de una marginación
transitoria, ocasional, que sólo afecta a determinados sectores;
está atrapado por una implosión, un fenómeno comparable con
esos maremotos, huracanes o tornados que no respetan a nadie y a
quien nadie puede resistir. Es víctima de una lógica planetaria que
supone la supresión de lo que se llama trabajo, es decir, de los
puestos de trabajo. Pero aún hoy se pretende que lo social y
económico están regidos por las transacciones realizadas a partir
del trabajo cuando éste ha dejado de existir. Las consecuencias de
este defasaje son crueles (...).
Forrester, 1997:13
O
debate internacional sobre programas de renda
mínima, em suas diversas concepções, vem se
intensificando nas duas últimas décadas em torno da seguinte questão: como responder, do ponto de vista da seguridade social, às alterações provocadas no mundo
do trabalho pelo emprego das novas tecnologias nas atividades de produção e serviços?
A indagação procura ressaltar que essa revolução técnica desfez a relação entre crescimento econômico e crescimento do nível de emprego. A adoção de novas tecnologias, ao permitir a introdução de inéditos patamares de
produtividade e, simultaneamente, deprimir o nível de
emprego, faz com que o acesso à renda, através de um
posto de trabalho, torne-se algo dramático.
É nesse quadro que o debate internacional sobre os
programas de renda mínima ganha vigor. O crescimento
do desemprego de longa duração (não meramente cíclico
e não mais característico dos ciclos recessivos) e o
correlato surgimento de um elevado contingente de dependentes têm como conseqüência uma crise aguda no
22
O DEBATE SOBRE RENDA MÍNIMA: A EXPERIÊNCIA DE CAMPINAS
– como é chamado hoje – foi criado em 1935 pelo Social
Security Act e se destinava originalmente às viúvas com
crianças. Na década de 50, o programa foi ampliado com
a incorporação de benefícios adicionais aos responsáveis
pelas crianças.1 Na Grã-Bretanha, o Income Suport, destinado a ajudar as famílias na criação de seus filhos, mas
que também se estende a casais sem filhos e pessoas sós,
remonta a 1948, enquanto o Sozialhilfe, na Alemanha, e
o Sociale Bijstand, na Holanda são da década de 60, respectivamente 1961 e 1963.2
A particularidade dos programas recentemente propostos é que já não se trata mais de assegurar uma proteção
episódica para o enfrentamento de certos riscos ou de situações de maior vulnerabilidade. Nos debates internacionais
sobre os programas de garantia de renda, reavalia-se o lugar
do trabalho assalariado (emprego) como meio de acesso à
renda, dada a incapacidade de absorção pelo mercado de trabalho de todos os que estão em condições de trabalhar. Ou
seja, aponta-se para a ruptura dos vínculos entre emprego,
renda, esquemas contributivos e benefícios.
Nesta linha, a proposta de renda social (Gorz, 1991)
articula-se com um projeto alternativo de sociedade, baseado no suposto de que o emprego permanente, em tempo integral para todos deixará de existir e que, por isso
mesmo, o trabalho-emprego já não pode ser o fundamento exclusivo da coesão social, da identidade, dos direitos
dos indivíduos. Para Gorz, a questão é saber como a economia de tempo de trabalho propiciada pelas inovações
tecnológicas pode ser transformada “em recurso e como
a sociedade pode se apropriar e redistribuir este recurso
de maneira que todos tenham acesso a ele e possam se
tornar mestres de seu tempo, mestres de suas vidas, produtores livres de relações de cooperação e de troca”. A
questão, ele mesmo responde, “é essencialmente política
e só pode encontrar resposta no quadro de um projeto
político de transformação social” (Gorz, 1995:137).
Na argumentação em defesa do que denomina de “utopia
realista”, Gorz realiza uma descrição bastante contundente
do mundo do trabalho a partir da introdução da robotização
e da informatização combinada com a reengenharia da organização. Este modelo de organização permitiria assegurar igual volume de produção com reduções de 50% do
montante do capital e de 40% a 80% do número de trabalhadores. Apoiado em estatísticas, o autor assegura que o setor
serviços não pode absorver a força de trabalho eliminada
pela indústria e, em face do perfil dos desempregados, considera improcedentes os argumentos invocados pelos economistas clássicos (baixa qualificação da mão-de-obra e
salários elevados dos trabalhadores não-qualificados). “Entre os desempregados alemães encontram-se, atualmente,
quase um milhão de operários qualificados e 75.000 engenheiros, economistas de empresa, na sua maioria com me-
nos de 35 anos de idade. O desemprego das pessoas qualificadas triplicou em dez anos e aumentou mais rapidamente a
taxa de desemprego total. 75% dos diplomados universitários alemães só encontram trabalho pouco ou não-qualificado. Na França, 25% dos novos desempregados recenseados
em 1992 e 1993 fizeram pelo menos dois anos de estudos
superiores e 50% têm pelo menos o ‘baccalaureat’. A situação não é diferente nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha.
Segundo o US Labor Department, é possível prever que ‘30%
dos estudantes americanos que vão se graduar entre agora e
o ano 2005 engrossarão diretamente as fileiras dos desempregados e subempregados’. De um total de 35 milhões de
empregos criados nos Estados Unidos de 1972 a 1993, 34
milhões são empregos de serviço e a metade deles se refere
a reparos e pequeno comércio. Reparos e comércio de miudezas juntos representam 45% dos empregos americanos”
(Gorz, 1995:136).
Gorz enfatiza que a soma total de desempregados, assalariados em regime parcial de trabalho ou cujo salário
é inferior à linha de pobreza e daqueles que apesar do nível
de qualificação apenas encontram trabalho não-qualificado “representa 40% da população ativa nos Estados
Unidos e na Grã-Bretanha e entre 30% e 40% da maior
parte dos países da União Européia”. E acrescenta que
muitos daqueles que ainda pertencem à sociedade de trabalho assalariado, em breve serão expulsos.
Construindo dessa maneira a “realidade”, Gorz retira
as seguintes conclusões: qualquer que seja a qualificação
da força de trabalho, a esfera de produção capitalista
emprega um volume menor de força de trabalho para produzir um volume crescente de riquezas. Assim, a criação
de empregos só pode ser obtida por meio de um duplo
movimento: redistribuição e partilha dos empregos e desenvolvimento de atividades fora da esfera capitalista.
Deste modo, o argumento se arredonda de forma não
convencional: se a produtividade aumenta simultaneamente à redução do trabalho empregado, uma política de redistribuição do trabalho na sociedade, combinada à redução de sua duração, absorveria o desemprego existente e
ainda aumentaria a renda dos indivíduos. O tempo liberado com a redução progressiva da duração do trabalho
permitiria o desenvolvimento de atividades não-econômicas. A constatação do aumento de riqueza com redução da quantidade de trabalho necessário e do volume dos
salários distribuídos leva Gorz a atribuir novo sentido a
esse processo: trata-se do fim da sociedade de trabalho
assalariado e, nessas condições, a renda não pode depender da quantidade de trabalho, assim como o direito à renda
não pode depender de um posto de trabalho.
Na mesma linha de argumentação, Aznar (1988:59-68)
propõe o benefício de um “segundo cheque” (deuxième
cheque), como forma de compensação da perda salarial
23
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
resultante da diminuição do tempo de trabalho necessário na sociedade como um todo. O salário remuneraria o
trabalho, sendo a carga horária estabelecida através das
negociações coletivas, e o segundo cheque (ou salário
tecnológico) compensaria a redução do salário resultante
da diminuição da duração do trabalho. Ambos, salário e
segundo cheque, seriam fixados através de negociações
coletivas. Os indivíduos teriam duas rendas: uma pelo trabalho e outra pela partilha da riqueza coletiva.
Os argumentos que sustentam o debate sobre programas
de renda mínima são bem diversificados e revelam distintas
filiações teóricas e ideológicas. É importante registrar, no
entanto, que, no cenário internacional, as discussões giram
em torno dos programas de distribuição de benefícios monetários – segundo cheque, renda básica, renda de existência, renda social – como alternativas para o combate à pobreza, velha e nova, e ao desemprego de longa duração.
alguns municípios e no Distrito Federal, enfatizam a vinculação do indivíduo à família ou tomam em conta a renda familiar – por exemplo, “é vedada a habilitação de
candidatos quando por ocasião da inscrição no programa
a renda familiar for superior a três vezes o valor mencionado” (R$ 240,00); e condicionam o recebimento da renda mínima à vinculação de crianças e adolescentes sob
sua responsabilidade à rede escolar, estabelecendo que
“para fins de habilitação junto ao programa, o pai, a mãe
ou o responsável legal deverá apresentar a certidão de
nascimento e/ou documento de guarda ou tutela dos filhos ou dependentes de até 14 anos, juntamente com o
correspondente comprovante de matrícula em escola pública, não se aplicando esta exigência a quem não tenha
filho ou dependente nessa faixa etária”.
Nesses aspectos, as emendas incorporam as experiências concretas em curso desde 1995, como a renda mínima vinculada à educação por meio da obrigatoriedade de
comprovação de matrícula das crianças e adolescentes,
inclusive com estabelecimento do sistema de acompanhamento. Assim, define-se que “o gestor federal do programa deverá celebrar convênios com as Secretarias Estaduais ou Municipais de Educação ou órgão equivalente,
com vistas ao estabelecimento de procedimentos que atestem mensalmente a freqüência escolar dos menores” – o
que reforça o vínculo com a rede escolar. Outra experiência incorporada é uma certa combinação do critério renda individual com o de renda familiar que deve ser, nesse
último caso, inferior a R$ 720,00, com previsão anual de
reajuste.4
É interessante observar que entre o projeto de 1991 e
as primeiras experiências de 1995 houve um vazio de iniciativas. A partir de 1995, foram apresentados os projetos dos senadores, deputados federais, estaduais e vereadores, que refletem o impacto dos programas em execução:
Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima – Campinas/SP (março de 1995); Bolsa Familiar para Educação – Distrito Federal (maio de 1955) e Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima – Ribeirão Preto/SP
(dezembro de 1995).
Esses programas, comparados ao originalmente proposto pelo senador Suplicy, têm em comum a focalização em famílias pobres com crianças e adolescentes e a
obrigatoriedade da vinculação da população em idade
escolar (7-14 anos) à rede pública de ensino. A família
que tenha, entre seus membros, menores de 14 anos é o
público-alvo, por excelência, dos programas atualmente
em execução.
A distribuição de recursos em dinheiro, visando reforçar a renda das famílias com crianças e adolescentes e
comprometendo-as, sobretudo, com a manutenção de seus
filhos na rede pública de ensino, revela alguns dos obje-
O DEBATE NO BRASIL
No Brasil, o debate tem início, ainda de forma restrita,
na segunda metade da década de 70 (Silveira, 1975; Bacha
e Unger, 1978; apud Suplicy, 1995:19), mas apenas começa a se ampliar com a apresentação, no Senado Federal, em abril de 1991, do projeto de lei de autoria do senador Eduardo Suplicy, propondo a instituição de um
Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM), sob a
forma de imposto de renda negativo.
Esse projeto – que foi aprovado pelo Senado em dezembro de 1991 e que tramita atualmente na Câmara dos
Deputados – contém os elementos clássicos do imposto
de renda negativo: definição de um nível de renda (R$
240,00 em maio de 1996) abaixo do qual o indivíduo tem
direito a um complemento; renda mínima (R$72,00) para
os indivíduos com renda zero, doentes e incapacitados;
manutenção do estímulo ao trabalho pela aplicação de uma
alíquota (30%) sobre a diferença entre a renda do indivíduo e o nível de renda (R$240,00) estabelecido.3
No projeto aprovado pelo Senado, o indivíduo é portador de
direitos (a renda é um destes direitos) e a política social o reconhece como tal, independentemente de seu estado civil, de sua
descendência, da natureza de seus vínculos com crianças e adolescentes e do tempo em que resida em um município do país. O
indivíduo é cidadão e como tal tem direito a uma renda mínima
e a usá-la como melhor lhe aprouver, aumentando, à sua maneira, seu nível de bem-estar.
O projeto, que ainda se encontra na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados, recebeu
nove emendas e o parecer favorável do relator, deputado
Germano Rigotto.
Algumas emendas, provavelmente já refletindo uma
avaliação dos desenhos dos programas em execução em
24
O DEBATE SOBRE RENDA MÍNIMA: A EXPERIÊNCIA DE CAMPINAS
tivos dos programas, como o de favorecer a escolaridade
dessas crianças e adolescentes de modo a lhes garantir a
possibilidade de se libertar, no futuro, das condições de
pobreza; e de combater realisticamente o trabalho infantil, tornando dispensável a contribuição das crianças e
adolescentes para a renda familiar.
Se é verdade que o poder público focaliza a família como
meio de atingir as crianças e adolescentes, essa focalização
também se sustenta em outros argumentos: o das estratégias
familiares, por exemplo. Dessa perspectiva, consideram-se
famílias pobres aquelas destituídas de meios materiais, cujos atos, estruturados pela razão prática, visam maximizar
os recursos de que dispõem. Assim, o reforço da renda familiar, ao aumentar a renda, melhoraria, pela maximização
dos recursos, o bem-estar de todos.
A literatura sobre famílias pobres no Brasil oferece muitos argumentos. Alguns autores enfatizam que as famílias
pobres dificilmente conseguem ultrapassar, sem rupturas, a
fase de criação dos filhos, indicando uma relação entre pobreza e famílias desfeitas. Dito de outra maneira, quanto mais
pobre é a família maior é a possibilidade de ruptura dos vínculos conjugais e maior sua vulnerabilidade. Nesse sentido,
independentemente dos arranjos familiares que sejam produzidos, o foco na família com crianças e adolescentes também ganha uma justificativa.
Os trabalhos de Lopes e Gottschalk (1990) e de Montali
(1995), entre outros, mostram que famílias constituídas
por mulheres e suas crianças estão em situação estruturalmente mais precária, quando comparadas a famílias
pobres, em igual fase no ciclo familiar, compostas dos
dois cônjuges.
Quaisquer que sejam as apreciações que fundamentem
o foco na família, e não mais no indivíduo, não há dúvidas de que os programas atualmente em execução, até onde
se conhece muito bem-sucedidos, não se dirigem a todas
as famílias pobres e, em geral, estão restritos aos municípios com mais recursos.
Apesar de se ter hoje cerca de uma centena de projetos
de lei em tramitação, a pergunta vital é a seguinte: qual a
viabilidade de generalização de programas de renda mínima a partir das esferas municipais? Essa possibilidade
é pequena. Observe-se que há uma relação inversa entre
a necessidade de programas desse tipo e a capacidade financeira dos municípios de atendê-la, embora se reconheça
que o processo de metropolização crescente traz para os
grandes centros os problemas vivenciados por esses contingentes nos seus municípios de origem. Criam-se bolsões de miséria nas grandes cidades, com grande predominância de migrantes, onde as condições de vida muito
pouco diferem daquelas das pequenas cidades do interior,
a não ser os aspectos da maior exposição ao efeito-comparação a que estão sujeitos os indivíduos.
Nessa nova situação, a miséria deixa de ser algo aceito
como normal e histórico a que praticamente todos estão
sujeitos, e transforma-se numa forma de exclusão de que
as pessoas passam a ter consciência, com conseqüências
para toda a sociedade.
Quando examinamos a vinculação partidária dos proponentes de programas de renda mínima (vereadores e
deputados de todos os partidos já encaminharam algum
projeto lei visando a instituição de um programa), fica
ainda mais evidente que são as diferenças de capacidade
de financiamento o maior obstáculo para a implementação municipal dos programas.
O projeto do senador Suplicy, com as nove emendas,
pode permitir a cobertura de todas as famílias pobres e/
ou de todo cidadão pobre, independentemente da fragilidade orçamentária dos municípios onde residem.
Um outro projeto, de caráter mais restritivo, também
pode assegurar um certo grau de espraiamento dos programas de renda mínima. Trata-se do projeto do deputado Nélson Marckezan (PSDB-RS), na forma do substitutivo do deputado Osvaldo Biolchi, que se encontra na
Comissão de Educação do Senado.
Esse projeto de lei autoriza o Poder Executivo a conceder apoio financeiro a programas de renda mínima instituídos por municípios que não disponham de recursos
financeiros suficientes para financiar integralmente a
implementação do programa.
O apoio será restrito aos municípios que preencham
dois critérios: receita tributária por habitante, incluídas
as transferências constitucionais correntes, inferior à respectiva média estadual; e renda familiar por habitante
inferior à renda média por habitante do estado onde o
município estiver localizado.
Nos municípios, os recursos federais serão destinados
exclusivamente às famílias que se enquadrem nos seguintes critérios: renda familiar per capita inferior a meio salário mínimo; filhos ou dependentes menores de 14 anos;
comprovação pelos responsáveis da matrícula, assim como
da freqüência, de todos seus dependentes entre 7 e 14 anos
em escola pública ou em programas de educação especial.
O apoio financeiro da União terá por referência o
limite máximo por família dado pela seguinte fórmula:
valor do benefício por família = R$ 15,00 x n o de dependentes entre 0 e 14 anos - (0,5 x valor da renda familiar per capita).
Como um pequeno exercício pode demonstrar, a fórmula apresenta algumas inconsistências técnicas (Tabela 1):
Observe-se que todas as famílias do exemplo atendem
aos critérios: têm crianças e adolescentes entre 0 e 14 anos
e renda familiar per capita inferior a 1/2 salário mínimo.
No entanto, atendendo às condições estabelecidas, uma
das famílias não seria incluída no programa.
25
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
rio de simulações de alguns programas de transferência
de renda e analisou o impacto dos vários projetos sobre
os níveis de pobreza (Cury, 1996).
No que concerne ao Programa de Garantia de Renda
Mínima (PGRM), de autoria do senador Suplicy, na forma do substitutivo do deputado Germano Rigotto, Cury
compatibilizou os valores de referência (renda individual
mensal dos maiores de 25 anos menor que R$ 240,00 ou
renda familiar inferior a R$ 720,00) da data de aprovação
do projeto para a data de referência da PNAD (setembro/
95) e encontrou os seguintes valores: R$ 210,00 (renda
individual) e R$ 630,00 (renda familiar mensal).
Deixando de lado provisoriamente a restrição “todos os
filhos entre 7-14 anos na escola”, verificou que 35.413.469
pessoas seriam potenciais beneficiários do PGRM. Essas
pessoas teriam, antes do programa, uma renda média mensal de R$ 77,18 e uma renda agregada mensal da ordem de
2,73 bilhões de reais. Com a introdução do programa, segundo o cálculo de Cury, “o benefício mensal agregado seria de 1, 41 bilhão de reais, com uma média de 39,48 reais
por beneficiário e o valor máximo de 63 reais”, valores que
anualizados “implicam um custo total da ordem de 16,93
bilhões de reais e o benefício médio anual de 478,16 reais.
Desta forma, o programa aumentaria em 52% a renda média
dos seus beneficiários, atingindo um valor médio de 177,02
reais” (Cury, 1996:26).6
Finalmente, incorporando a restrição – todos os filhos
em idade escolar (7-14 anos) devem freqüentar a rede
pública de ensino – teríamos, se esta versão do PGRM
tivesse sido implantada em setembro de 1995, 32.831.136
pessoas beneficiárias e o custo anual do programa ficaria
em torno de R$ 15,60 bilhões de reais (cerca de 2,5% do
PIB de 1995), com um benefício médio anual de 475,32
reais ou 39,61 reais/mês.
É importante ter em conta que um programa de distribuição de recursos monetários não pode ser analisado
exclusivamente como custo. Trata-se de um investimento nas atuais gerações de crianças e adolescentes das famílias pobres que pode abrir possibilidades para que estes não reproduzam a mesma situação de pobreza de seus
pais. Além disso, como estabelece a Constituição de 1988,
são objetivos fundamentais da República Federativa do
Brasil: “I. construir uma sociedade livre e solidária; II.
garantir o desenvolvimento social; III. erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e
regionais; IV. promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.”7
Finalmente, é preciso considerar que os efeitos da distribuição de renda, com a queda da inflação e a conseqüente
recuperação do poder de compra por parte de amplas camadas da população, já deram sinais de esgotamento e que, do
TABELA 1
Famílias com Crianças Entre 0 e 14 Anos com
Renda Familiar de 1/2 Salário Mínimo (R$ 60,00)
Antes do Programa
Durante o Programa
Total de
No de Filhos Renda
Componentes
Entre
Familiar
da Família
0-14 Anos Per Capita
6
5
4
4
3
2
4
4
3
2
1
1
10,00
12,00
15,00
15,00
20,00
30,00
Benefício
R$
Renda
Familiar
55,00
54,00
37,50
22,50
5,00
(1)
115,00
114,00
97,50
82,50
65,00
(1)
Renda
Familiar
Per Capita
19,17
22,80
24,38
20,63
21,67
(1)
Fonte: Projeto do Deputado Nélson Marckezan (PSDB/RS) na forma do substitutivo do Deputado Osvaldo Biolchi.
(1) Não é incluída.
Neste exemplo, temos uma família monoparental com
renda familiar per capita de R$ 30,00, portanto, com renda bem abaixo da linha de corte (R$ 60,00), cujo acesso é
vedado. Quantas famílias que atendam a todas as condições serão excluídas?5
Como o projeto ainda tramita pelas comissões do Senado, é possível que o valor da fórmula (R$ 15,00) seja
corrigido, de modo que o programa possa atenuar as condições de privação das famílias com crianças e adolescentes e remover obstáculos tais como: trabalho infantil,
evasão e repetência escolar.
Finalmente, vale lembrar que, na definição de família,
o projeto de lei estabelece: “para os efeitos desta Lei,
considera-se família a unidade nuclear, eventualmente
ampliada por outros indivíduos que com ela possuam laços de parentesco, que forme um grupo doméstico, vivendo sob o mesmo teto e mantendo sua economia pela
contribuição de seus membros”.
O suposto da definição é que as famílias são unidades
de renda e de consumo. Os recursos aportados por cada
um de seus membros beneficiam a todos. A renda familiar comum ponderada pelo tamanho da família (renda
familiar per capita) indica um nível abaixo do qual a família tem direito ao programa. No caso, abaixo de meio
salário mínimo per capita.
Assim, no momento de calcular a renda familiar per
capita, a fórmula considera o total de componentes da
família, de acordo com o que estabelece o parágrafo 1o
do art. 5o do projeto de lei, mas, no cálculo do valor do
benefício, considera exclusivamente o número de menores de 14 anos. Apesar da definição de família, os membros adultos deixaram de existir. Desse modo, dois procedimentos conflitivos foram colocados em operação.
Recentemente, o pesquisador Samir Cury, utilizando
dados da PNAD-1995, realizou um trabalho extraordiná-
26
O DEBATE SOBRE RENDA MÍNIMA: A EXPERIÊNCIA DE CAMPINAS
ponto de vista político e social, é necessário atentar para a
dramática situação dos brasileiros sem emprego, sem renda.
Os programas de renda mínima não são a solução para os
graves problemas sociais, mas, sem dúvida, possuem um
extraordinário potencial de combate à pobreza, em suas diversas manifestações, no plano local.
aquela administração –, a discussão conjunta dos técnicos das várias áreas sobre a problemática regional foi estimulada. Assim, as soluções passaram a ser vistas de
maneira mais global, imprimindo-se maior precisão aos
diagnósticos e às intervenções, e agilizando os processos
decisórios.
A integração das ações das secretarias sociais avançou com esse processo, o que facilitou a implantação da
intersetorialidade nas intervenções do poder público.
Com a intenção de combater o excesso de burocracia,
a sobreposição e fragmentação de programas destinados
à população de baixa renda, foram introduzidos na experiência municipal os Conselhos de Governo, fóruns de
discussão dos programas e de hierarquização de prioridades de implementação em cada área.
No Conselho de Desenvolvimento Social, composto
pelas secretarias ligadas à área social, a administração
buscava implementar um planejamento integrado das
ações, entendendo que este seria o caminho para reduzir
a sobreposição ou paralelismo na implementação dos programas.
Foi esse modelo integrado de política social do governo municipal que permitiu que a gestão Magalhães Teixeira ensaiasse respostas aos problemas enfrentados pelas famílias que vivem em extrema pobreza.
A EXPERIÊNCIA DE CAMPINAS
O governo do prefeito Magalhães Teixeira (01/01/1993
a 29/02/1996) introduziu um novo modelo de gestão – a
integração das ações – na administração municipal, produzindo mudanças significativas no padrão vigente de
política social.
Nessa gestão, duas alterações merecem especial atenção: a criação de uma nova estrutura para a gestão das
políticas públicas, com a descentralização político-administrativa, sem a qual seria muito difícil produzir inovações nas políticas sociais e, de maneira geral, na gestão
do município; e a concepção de cidadania presente nesse
modelo, segundo a qual os cidadãos são portadores de
direitos e a cidadania não pode conviver com a exclusão.
Quanto ao segundo aspecto, o governo Magalhães
Teixeira entendia que as políticas tradicionais de assistência social não abriam as melhores possibilidades de
combate da pobreza. As políticas assistencialistas encerravam-se em si mesmas ao tentarem simplesmente minorar os seus efeitos, sobretudo através de uma prática paternalista e tutelar e da distribuição de “favores”.
A administração buscou a reversão desse processo de
dependência permanente da população carente em relação àquelas práticas, através da implantação de projetos
visando a redução das desigualdades: aumento da renda
dos estratos mais pobres da população e criação de melhores oportunidades para as atuais gerações de adultos e
para seus dependentes. Esta era a maneira de romper com
a prática meramente assistencialista, onerosa para o poder público e ineficaz para a população atendida.
É importante salientar que a descentralização das políticas sociais para os municípios, pós-Constituição de
1988, foi fundamental para a inovação no modelo de política social. A administração pública municipal abriu-se
à participação e deu respostas mais rápidas às reivindicações, seja porque diminuiu as estruturas burocráticas e
decisórias, seja porque os serviços e os técnicos da prefeitura são de mais fácil acesso à população. A descentralização ajudou na aproximação com a população, possibilitando a observação e discussão de suas necessidades
e prioridades.
Com a descentralização, a desconcentração e a integração das políticas e serviços nas Secretarias das Administrações Regionais – modelo adotado em Campinas por
O Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima
É no contexto da integração das políticas sociais e
do novo modelo de gestão que surge o Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima (PGRFM), iniciativa
inovadora e pioneira no campo das políticas públicas
no Brasil.
Quando a administração instituiu o PGRFM, considerou a transferência monetária a famílias pobres como
opção mais eficiente de combate à pobreza, como aquela
que poderia garantir o acesso a outros programas sociais
e, simultaneamente, possibilitar resgatar a cidadania para
esse segmento da população.
A compreensão mais profunda era de que a cidadania
não podia conviver com a exclusão: a população favelada havia crescido em ritmo acelerado, passando de 36.155
pessoas, em 1980, para 67.474 em 1991; os miseráveis
representavam, em 1994, 7,4% da população do município; a proporção de pobres na população, no mesmo ano,
era de 37,9%; havia um elevado número de crianças e
adolescentes em atividades de trabalho e mendicância nas
ruas centrais da cidade, assim como um elevado percentual, para os padrões do município, de crianças desnutridas; e um quadro distributivo extremamente negativo. Era
inadmissível, entendendo-se que a cidadania não pode
conviver com a exclusão, que Campinas continuasse pri-
27
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
sioneira das formas tradicionais, reconhecidamente pouco efetivas, de combate à pobreza.
Nesse quadro, formas inovadoras de combate à pobreza ganharam centralidade na agenda política municipal.
Evidentemente, o quadro por si só não tem força explicativa, mas serve para fornecer uma idéia do avanço da exclusão social no município.
A proposta do Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima teve origem em um diagnóstico da prefeitura
sobre a situação de crianças e adolescentes no município.
Estes, em número cada vez maior, estavam nos cruzamentos, sinaleiros e ruas centrais da cidade, vendendo toda
sorte de produtos, cuidando dos carros, esmolando ou até
praticando infrações, oferecendo um sinal evidente das
dificuldades por que passavam suas famílias. Como fazer
para combater o trabalho infantil, para impedir que o trabalho dessas crianças e adolescentes fosse vital para o
orçamento de suas famílias? Como fazer para que essas
crianças pudessem brincar e estudar?
Em dezembro de 1994, o prefeito Magalhães Teixeira
solicitou aos secretários da área social que elaborassem
uma proposta para combater a miséria na cidade. Havia,
como veremos, elementos favoráveis. No início da administração, implantara-se o Projeto “Sopão” que atendia a
população de baixa renda. O cadastramento realizado no
período em que vigorou este projeto já fornecia elementos que permitiam a identificação dos bolsões de miséria
da cidade.
Além disso, através dos decretos municipais 11.508 de
29/04/94 e 11.553 de 01/07/94, a desnutrição foi incluída
entre as enfermidades de notificação compulsória, de
modo que a prefeitura também já contava com um cadastro dessas informações.
Finalmente, desde 1993 vinha sendo desenvolvido o
projeto Casa Amarela, para o atendimento a famílias com
crianças e adolescentes “em situação de risco pessoal e
social”, que compunham um outro cadastro.
Com base nessas informações e na perspectiva de superar o caráter assistencialista do Projeto “Sopão” foi elaborado o anteprojeto de lei que deu origem ao Programa
de Garantia de Renda Familiar Mínima.
A partir deste anteprojeto, desencadeou-se um processo de discussão entre técnicos das Secretarias de Governo, da Ação Regional, da Família, Criança, Adolescente
e Ação Social, da Educação e da Saúde. Além das discussões internas, a Secretaria de Governo encarregou-se de
ampliar o debate em busca de sugestões visando o aprimoramento do projeto com diversos interlocutores externos, dialogando com outros municípios e pesquisadores
vinculados à Universidade Estadual de Campinas – Unicamp e a outras instituições governamentais e não-governamentais envolvidas em questões sociais.
A finalização da formulação do programa e seu lançamento ocorreram em janeiro de 1995. O PGRFM foi criado
pela Lei no 8.261 de 06/01/1995 e regulamentado pelo
Decreto no 11.471 de 03/03/1995.
A legislação estabelece como potenciais beneficiários
as famílias que: tenham crianças – filhos e não-filhos –
entre 0 e 14 anos e/ou maiores, desde que deficientes;
residam em Campinas há, no mínimo, dois anos, na data
da publicação da Lei; tenham uma renda inferior a R$
35,00 per capita, considerada somente a renda dos pais e/
ou responsáveis. Preenchidas estas condições, os responsáveis pelas famílias devem assinar o Termo de Responsabilidade e Compromisso, que tem como finalidade
comprometê-los a garantir a freqüência das crianças e
adolescentes às escolas, o atendimento regular à sua saúde e seu afastamento das ruas. Além disso, comprometem-se a participar de uma reunião mensal.
Deste modo, explicitam-se os objetivos do programa:
melhoria imediata, pelo aporte de renda, das condições
de privação das famílias e criação de melhores oportunidades para aqueles que constituem seu público-alvo por
excelência: as crianças e adolescentes dessas famílias.
Principalmente através da obrigatoriedade da freqüência
à escola e às atividades educacionais complementares, o
PGRFM procura garantir a formação intelectual das crianças e adolescentes das famílias pobres, “de forma a assegurar-lhes alguns instrumentos que ajudem a romper com
o círculo de reprodução da pobreza”.
Para a implantação inicial do PGRFM, foram estabelecidas prioridades para a seleção. Na primeira etapa, foram escolhidas as famílias com crianças em “situação de
rua” registradas no Programa Casa Amarela e em outros
assemelhados; e aquelas cujas crianças haviam sido identificadas pela rede de saúde como desnutridas. Na segunda etapa (maio de 1995), o atendimento foi estendido às
famílias em situação de extrema pobreza. Com base nestas prioridades, entre março de 1995 e dezembro de 1996,
foram incorporadas ao programa 2.941 famílias.
Quanto à implantação do PGRFM na estrutura administrativa da prefeitura, a coordenação geral competia à
Secretaria Municipal da Família, Criança, Adolescente e
Ação Social (SMFCAAS), através do Departamento de
Assistência à Família, Criança e Adolescente (DAFCA).
Este órgão, em conjunto com a Secretaria de Governo,
estabelecia relações com as Secretarias de Ação Regional
(SAR's), de Educação, de Saúde e de Finanças, e com a
IMA – Informática dos Municípios Associados, responsável pela elaboração e montagem da base de dados do
programa, e ainda com os demais órgãos envolvidos de
alguma forma com a execução do PGRFM.
Seguindo o modelo de gestão concebido pela administração Magalhães Teixeira, o programa era descentralizado
28
O DEBATE SOBRE RENDA MÍNIMA: A EXPERIÊNCIA DE CAMPINAS
na sua execução, cabendo a cada uma das quatro SARs cadastrar, acompanhar e repassar recursos às famílias; e unificado no que se referia aos procedimentos e normas de seleção, implementação, controle e acompanhamento.
Quanto ao financiamento, a legislação estabelece como
limite 1% das receitas anuais correntes do município. No
ano de 1995, a receita para o programa foi inicialmente
estimada em R$ 2,8 milhões, dos quais foram gastos com
benefícios às 1.982 famílias atendidas um pouco menos
de 50%. Entre março de 1995 e dezembro de 1996, foram
atendidas 2.322, e encerra-se o ano com 2.941 famílias
(381 famílias desligadas). O gasto acumulado com o pagamento da renda mínima foi de R$ 4.530.856,31.
No que concerne aos instrumentos de acompanhamento
e controle concebidos para o funcionamento do programa merecem destaque: a ficha de cadastramento, utilizada na seleção das famílias, e as reuniões dos chamados
grupos socioeducativos. A ficha levanta um conjunto de
informações indicativas das diversas dimensões de carência e destituição das famílias, que alimentam um sistema
informatizado de dados sobre as famílias beneficiárias.
As reuniões mensais dos grupos socioeducativos, por sua
vez, foram pensadas com a função de acompanhamento e
orientação das famílias atendidas. Estas, divididas em
grupos de 15 e sob a coordenação de dois técnicos, em
geral uma assistente social e uma psicóloga, participam
com assiduidade destas reuniões – que é condição para o
recebimento do benefício. A dinâmica de reuniões mensais, as visitas domiciliares e as entrevistas individuais
conformam o sistema de acompanhamento das famílias.
As reuniões socioeducativas foram concebidas como
um espaço fundamental no relacionamento com as famílias através das quais a administração pretendia alavancar
uma série de mudanças. Através de pesquisa realizada em
1996 pelo Instituto de Estudos Especiais (IEE-PUC/SP),
com técnicos encarregados do acompanhamento das famílias, e de outra, realizada em 1995 pelo Núcleo de Estudos em Políticas Públicas (Nepp/Unicamp), envolvendo famílias beneficiadas, sabe-se que as famílias valorizam
muito as reuniões mensais. A partir desses encontros
mensais, sentem-se atendidas e encontram um espaço de
interlocução para os seus problemas, desde a violência
doméstica até a questão do desemprego.
É importante registrar que, em face da absoluta inexistência de parâmetros anteriores, houve várias dificuldades no processo de implementação do programa. Uma
delas foi o estabelecimento de critérios de escolha das
famílias. Os critérios de elegibilidade estavam definidos,
mas não havia clareza quanto aos meios de se chegar às
famílias e de atender a toda demanda. As SARs optaram
por montar um balcão de atendimento e também por localizar as famílias através dos cadastros dos programas
do “Sopão”, Casa Amarela e “Notificação Compulsória
de Desnutridos”.
Havia também controvérsia quanto à possibilidade de
a renda familiar aumentar no decorrer do programa . Uma
família, ao se cadastrar, encontrava-se em uma faixa de
renda familiar muito baixa ou estava em situação de desemprego. Como garantir o benefício sem gerar uma situação de acomodação entre os membros familiares? A
solução apontada foi a de não diminuir o benefício logo
que a família conseguisse um meio de gerar renda por
conta própria, de modo a estimulá-la a buscar novas formas de geração de renda. Desta forma, o corte do benefício se daria através de critérios mais flexíveis, e com base
na análise de cada caso, permitindo-se, além de tudo, um
processo de alavancamento da melhoria das condições de
vida da família.
Outra dificuldade percebida dizia respeito aos critérios de desligamento e às possibilidades de prorrogação.
Naquela ocasião, foi feita a opção por acompanhar as famílias para avaliar seu grau de dependência em relação
ao subsídio. A história de miséria dessas famílias levava
a crer que o prazo de um ano era muito curto para mudar
as suas condições de vida. Vale salientar que essa é uma
das principais dificuldades postas aos programas mais antigos: o de Campinas, o do Distrito Federal e o de Ribeirão Preto. Todas as avaliações mais recentes da economia e da situação de desemprego crônico em todo o mundo
indicam a necessidade da criação de programas permanentes de redistribuição de renda.
Do ponto de vista externo, houve algumas dificuldades, provavelmente superadas a partir da audiência pública sobre o Programa de Garantia de Renda Familiar
Mínima, realizada em agosto de 1995.
No final de 1995, a prefeitura realizou uma pesquisa
com 1.262 famílias cadastradas, a respeito da utilização
do subsídio pelas famílias. Os dados apurados permitiram uma avaliação do impacto social do programa. Foram abordados aspectos relacionados à saúde, educação,
habitação, geração de renda e qualidade de vida. A Tabela 2 mostra alguns resultados relativos apenas à utilização dos recursos.
Observa-se que a alimentação é a primeira prioridade
entre as famílias quanto à utilização dos recursos do programa. Esse destaque para a alimentação entre essas famílias em condição de extrema pobreza coincide com a
hierarquia encontrada no consumo de famílias trabalhadoras pobres apresentadas por outros estudos e refuta o
argumento de que os pobres não sabem utilizar seus recursos.
Vale lembrar que a prefeitura realizou essa pesquisa,
mas desde o início do programa contou, e a atual administração ainda conta, com o acompanhamento indepen-
29
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
O Nepp atribuiu parte ponderável do sucesso da implementação do PGRFM a dois fatores: a centralidade do
programa e o peso da adesão e da experiência anterior
dos técnicos implementadores.
No que concerne aos sistemas de seleção, acompanhamento, controle e desligamento, o Nepp, com base nas
evidências do acompanhamento, avaliou que “o PGRFM
conta com um muito forte e eficaz sistema de acompanhamento e controle das famílias beneficiadas – os Grupos Socioeducativos” e que este seria um dos mais importantes fatores do sucesso da sua implementação, além
de revelar o peso da experiência anterior. Entretanto, o
documento pondera que “não foi até agora gerado um sistema de desligamento das famílias, lacuna que tenderá a
manifestar-se grave à medida que o Programa avançar para
o seu segundo ano” (Nepp, 1996:102).
Duas dificuldades, na avaliação do Nepp, enfraqueciam
o sistema: esgotada a prioridade de atendimento (famílias
com crianças desnutridas e em situação de rua), o programa
não conta com outros critérios de seleção senão aqueles formal e legalmente (filhos e/ou outros menores de 14 anos,
renda familiar inferior ao teto e mínimo de dois anos de residência em Campinas) pouco discriminadores no caso de
demanda maior que a possibilidade de atendimento. Visto
que, ao longo daquele ano, as SARs não estavam sob pressão da demanda, o Nepp trabalhava com duas possibilidades: “ou o município não conta com um grupo muito mais
numeroso que o previsto inicialmente (cerca de 3.000 famílias) que poderia qualificar-se para receber o benefício – o
que não se confirma totalmente pelos dados do Mapa da Fome
nem pela Pesquisa de Condições de Vida do Seade – ou,
então, operam mecanismos implícitos de seleção que, de
algum modo e seja qual for a razão, reduzem a demanda e
pré-selecionam as famílias” (Nepp, 1996).
Este último aspecto estava relacionado à segunda dificuldade: “o forte peso dos técnicos na operacionalidade
do Programa (...) significa também um alto grau de poder
sobre a seleção das famílias, exercitado sobretudo através das visitas que devem complementar as informações
cadastrais. O conhecimento anterior das famílias e modos de expressão das demandas tanto facilita a identificação quanto pode introduzir dificuldades. O que parece
problemático é o fato de o Programa não contar com
mecanismos capazes de minimizar ou compensar possíveis subjetividades na seleção” (Nepp, 1996).
Na avaliação do Nepp, a ficha cadastral e o banco de
dados constituíam razoáveis sistemas de informação sobre as famílias, mas se sugeria alguns aperfeiçoamentos,
como a inclusão na ficha cadastral da escolaridade do
requerente do programa e de seu cônjuge, a distinção entre profissão, ocupação e posição no mercado de trabalho, o registro da naturalidade, entre outros. Finalmente,
TABELA 2
Utilização do Subsídio pelas Famílias
Campinas – 1995
Utilização do Subsídio (1)
%
Alimentação
Habitação
Saúde
Material Escolar
Vestuário
Compra de Móveis
Eletrodomésticos
Pagamento de Dívidas Atrasadas
86,6
38,6
27,7
22,9
56,0
20,8
38,6
33,4
Fonte: PMC, 1995.
(1) Respostas não excedentes.
dente do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas – Nepp,
da Unicamp. Em fevereiro de 1996, o Nepp apresentou e
divulgou um Relatório de Acompanhamento dos dez primeiros meses do PGRFM (março-dezembro de 1995).
Em 1996, o IEE (PUC-SP) realizou um estudo sobre o
Programa de Garantia de Renda Familiar, no qual se afirma que o PGRFM “é uma proposta ambiciosa de fortalecimento da unidade familiar, pois articula-se aos diversos serviços ofertados pelas políticas setoriais, buscando
introduzir as famílias que estejam em situação de extrema pobreza em uma rede de segurança capaz de impedir
que as mesmas permaneçam abaixo do patamar de qualidade de vida aceitável, isto é, compatível com padrões
dignos de sobrevivência e existência” (IEE, 1996).
Na avaliação do IEE-PUC São Paulo, destacam-se como
características do PGRFM de Campinas: é protagonizado
e dirigido pelo governo municipal; garante um benefício
monetário que permite à família liberdade na sua utilização; elege a unidade familiar e não os indivíduos de per
si; a complementação da renda é acompanhada da inclusão das famílias na rede de serviços de atenção básica (saúde, educação, emprego, etc.); mantém um acompanhamento e apoio psicossocial junto às famílias beneficiadas,
através de grupos socioeducativos, nas microrregiões em
que se inserem; mantém um sistema de controle informatizado que permite acompanhar o processo de inclusão das
famílias beneficiadas, bem como o fluxo de utilização,
pelas mesmas, dos bens e serviços das políticas setoriais;
exige escolha criteriosa e envolvimento contínuo da equipe
técnica que desenvolve o programa (IEE, 1996).
A Pesquisa de Acompanhamento e Avaliação realizada pelo Nepp em 1995 enfatiza, nas observações finais,
“aquelas dimensões do Programa que nos chamaram a
atenção, tanto positivamente quanto por constituírem lacunas ou dificuldades que merecem a atenção dos
implementadores e autoridades da Prefeitura”.
30
O DEBATE SOBRE RENDA MÍNIMA: A EXPERIÊNCIA DE CAMPINAS
os pesquisadores do Nepp sugeriam que o sistema de
acompanhamento da freqüência escolar fosse aperfeiçoado (Nepp, 1996:108-112).
No capítulo 3 referente ao perfil das famílias, o relatório do Nepp avaliou positivamente a focalização do
PGRFM: 56% dos recursos dos programas foram destinados, em dezembro de 95, às famílias de estrato mais baixo
de renda (renda zero), que representavam 42,3% das famílias; as famílias monoparentais – que, em geral, concentram as piores condições de pobreza – tinham alta participação no universo total de famílias; nas famílias de
renda zero, o programa alcançava mais as biparentais porque eram menos numerosas nessa faixa de renda e concentravam maior número de filhos. Assim, o mecanismo
de cálculo da renda diferencial mostrava-se adequado ao
alvo prioritário do PGRFM – crianças e adolescentes menores de 14 anos –, mesmo na faixa de mais baixa renda.
O trabalho do Nepp também consistiu na realização
de uma pesquisa de campo com famílias beneficiárias do
PGRFM, contemplando desde o comportamento do gasto familiar até a percepção e a opinião das famílias acerca do programa.
Os estudos do Nepp e do IEE consideraram exitosa a
experiência com o programa, mas, sobretudo o Nepp, pela
natureza do acompanhamento realizado, avançou no sentido de sugerir certas correções.
execução, enquanto no ano seguinte esse número triplica,
ao mesmo tempo em que os projetos de lei atingem uma
centena. Se os dois primeiros programas ofereceram as matrizes para os diversos projetos, não há apenas dois caminhos para colocar em prática um programa desse tipo, de
distribuição de benefícios monetários, focalizado em famílias pobres com presença de crianças e adolescentes e com
fortes vínculos com a educação. Isto fica evidente nas experiências de Jundiaí, Vitória, Belém e tantas outras. A familiaridade com os problemas locais tem feito que cada município, a partir das experiências já existentes e levando em
consideração suas particularidades, encontre sua maneira de
fazer seu programa.
Os programas parecem bem-sucedidos no que concerne
ao combate ao trabalho infantil, ao desempenho escolar, à
redução da desnutrição, enfim ao público-alvo privilegiado:
crianças e adolescentes. No entanto, parecem ainda tatear
no que concerne aos membros adultos das famílias. Essa é
uma questão central para a autonomia das famílias em relação aos programas. Do contrário, os desligamentos acontecerão por força exclusiva das disposições legais: mudança
de residência, criança fora da faixa etária, informações falsas, etc. O foco na família, como forma de atingir as crianças e adolescentes, precisa ser combinado com investimentos que visem a promoção de atividades de geração de renda,
a qualificação e o treinamento dos membros adultos das famílias, de modo a abrir-lhes alguma possibilidade de poderem prescindir do programa.
COMENTÁRIOS FINAIS
A descrição tão pormenorizada da experiência de Campinas visa chamar atenção para o contexto particular no
qual teve origem o Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima e assinalar em que sentido se rompe com a
tradição assistencialista. O PGRFM não é como uma cesta básica, criada com base no que se pensa sobre o padrão
de consumo das famílias pobres e que não se esgota nele
mesmo. É um programa para o presente, na medida em
que atenua as marcas mais contundentes da miséria, deixando, porém, que a família arbitre em que aplicará seus
recursos financeiros. É um programa que também tem
objetivos de médio e longo prazos. Espera-se, principalmente através do acesso à educação, criar a possibilidade
de que os filhos, os futuros adultos dessas famílias possam escapar, no futuro, das condições de pobreza.
O Programa de Campinas é, ainda hoje, uma referência
e tem merecido a atenção de estudiosos das universidades
e centros de pesquisas, parlamentares (vereadores, deputados e outros), governantes, formuladores de políticas e
técnicos. Isto porque representou e ainda representa uma
inovação no campo das políticas públicas no Brasil.
Observe-se que o ano de 1995 se encerra com apenas três
programas (Campinas, Distrito Federal e Ribeirão Preto) em
NOTAS
1. Para um exame do AFCD, ver Kondratas et alii, p.137-159.
2. Para uma descrição de alguns programas de transferências de benefícios monetários em países da Europa, incluindo as condições de acesso, a duração, o
nível da prestação (método de determinação, atualização do valor, âmbito espacial, unidade de cálculo e valor do benefício), ver Lo Vuolo, (1996:50-51).
3. Um indivíduo que ganhasse um salário mínimo (R$ 120,00) teria direito a R$
36,00 (equivalente a 30% da diferença entre sua renda e o teto de R$ 240,00).
4. Ver emenda n o 2, op. cit.
5. Sem considerar as famílias pobres residentes em municípios comparativamente
mais ricos, que não receberão apoio financeiro para a implementação de programas desse tipo.
6. Cury ainda examina a distribuição dessas pessoas pela condição na família
(pessoa de referência na unidade, cônjuge, filho, outro parente, agregado, etc.),
pela posição na ocupação (conta própria, emprego informal, inativo, etc.), por
setor de atividade (agrícola, prestação de serviços, comércio, etc.) e cruza a posição na ocupação, para os ocupados, com a contribuição para a previdência (contribuintes e não-contribuintes).
7. Artigo 3 o (Título I: Dos Princípios Fundamentais).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZNAR, G. “Revenu minimum garanti et deuxième cheque, solution
régressive et solution prospective”. Futuribles. Paris, n.120, avril 1988,
p.59-68.
__________ . Trabalhar menos para trabalharem todos. São Paulo, Scritta, 1995.
31
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
BACHA, E. e UNGER, R. M. Um projeto de democracia para o Brasil. Participação, salário e voto. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.
CURY, S. e EISSA, N. Design de programas de transferência de renda (Income
Transfer Programs) para o Brasil. Primeira Parte (versão preliminar), outubro 1996. Relatório de Pesquisa.
FORRESTER, V. El horror económico. Argentina, Fondo de Cultura Económica,
1997.
GORZ, A. Métamorphoses du travail. Quête du sense. Paris, Editions Galilée, 1991.
__________ . “Saindo da sociedade do trabalho assalariado”. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.9, n.3, jul./set. 1995 (tradução de Josué
Pereira da Silva).
IEE – Instituto de Estudos Especiais. Programa de Renda Mínima de Campinas.
São Paulo, PUC, 1996.
KONDRATAS, A. et alii. Out of the poverty trap. A conservative strategy for welfare
state. New York, The Free Press; London, Collier Macmillian Publishers, s.d.,
p.137-159.
LO VUOLO, R. (comp.). Contra la exclusón. La propuesta del ingreso ciudadano.
Argentina, Ciepp e Miño y Dávila editores, 1996.
LOPES, J.B. e GOTTSCHALK, A. “Recessão, pobreza e família: a década mais
do que perdida”. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.4,
n. 1, jan./mar. 1990, p.100-109.
MONTALI, L. Família e trabalho na conjuntura recessiva: crise econômica e
mudança na divisão sexual do trabalho. Tese de doutorado. São Paulo, FFLCH/
USP, Departamento de Sociologia, 1995.
NEPP. Acompanhamento e avaliação da implementação do Programa de Garantia de Renda Familiar Mínima (PGRFM) da Prefeitura Municipal de Campinas. Campinas, Unicamp, fevereiro 1996.
OFFE, C. “A non-produtivistic design for social policies”. In: VAN PARIJS, P.
(ed.). Arguing for basic income. Ethical foundations for a radical reform.
London, Verso, 1992, p.61-77.
SILVA E SILVA, M.O. Crise da sociedade salarial e renda mínima. São Paulo,
Cortez, 1997.
SILVEIRA, A.M. da. “Moeda e redistribuição de renda”. Revista Brasileira de
Economia, abr./jun. 1975.
SUPLICY, E. M. apud. Programa de Garantia de Renda Mínima. Brasília, 1995.
32
A EXPERIÊNCIA DO MICROCRÉDITO NO DISTRITO FEDERAL
A EXPERIÊNCIA DO MICROCRÉDITO NO
DISTRITO FEDERAL
IVAN GONÇALVES RIBEIRO GUIMARÃES
Economista, Secretário de Trabalho do Governo do Distrito Federal
MÁRIO MAGALHÃES
Sociólogo, Gerente de Estudos e Pesquisas da Secretaria de Trabalho do Governo do Distrito Federal
A
des em geral mais acentuadas que na maioria das regiões
metropolitanas do país. Ao lado de um número expressivo
de empregados no setor público, o que é natural numa capital administrativa, há um crescente número de assalariados
no setor privado, trabalhadores autônomos e domésticos, em
sua maioria, em empregos de baixa qualidade, com grande
participação do chamado setor informal. Neste contexto, a
taxa de desemprego é uma das mais altas entre as regiões
metropolitanas que realizam a Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED.1 Logo, além do desemprego, os diferenciais de renda estão também entre os mais elevados.
Para combater este quadro, o atual governo do Distrito
Federal vem desenvolvendo um conjunto de programas de
fomento ao emprego – uma política denominada mais e
melhores empregos –, que estão distribuídos por vários órgãos governamentais, mas submetidos a um planejamento
colegiado, de forma a garantir a articulação efetiva entre eles.
O caráter articulado desses programas é importante para evitar
a superposição de objetivos e respectivas clientelas beneficiárias, fato comum no passado recente das políticas sociais
no Brasil e que gerou desperdício de recursos e atendimento
insatisfatório.
O foco geral desta iniciativa no Distrito Federal é o de
superar a exclusão social, levando desempregados e ocupados no setor informal à cidadania plena. As estratégias em
curso estão orientadas por duas linhas mestras:
- a promoção do desenvolvimento econômico, por meio do
fomento a novos empreendimentos e ampliação dos existentes, utilizando mecanismos de alavancagem dos investimentos do setor privado, contemplados em um Programa de
Desenvolvimento Econômico – Prodecon;
- o atendimento aos setores socialmente excluídos, buscando sua inserção através da melhoria da empregabilidade, das
condições de trabalho e do nível de renda.
cidade de Brasília, juntamente com outros 18 municípios que a cercam, chamados de cidades satélites, compõem o Distrito Federal. Concebido para
ser a capital da República, deveria ter, no ano 2000, cerca de
500 mil habitantes, segundo o plano urbanístico original.
Hoje, a população do DF já atinge cerca de 1,8 milhão de
pessoas. Além disso, a região ao redor do Distrito Federal
reúne um conjunto de cidades e pequenos núcleos urbanos,
cujas populações ou trabalham no Distrito Federal ou dependem economicamente dele para sua sobrevivência. As
estimativas populacionais dessa região, conhecida como Entorno, variam entre 500 mil e 1,5 milhão de pessoas, dependendo da metodologia e abrangência consideradas.
Esse quadro foi particularmente agravado com o incremento do fluxo migratório, ao longo da primeira metade dos
anos 90, induzido pela política habitacional praticada à época, baseada na distribuição gratuita de lotes, o que contribuiu sobremaneira para elevar a população. Este crescimento populacional não foi acompanhado por uma política de
expansão dos serviços públicos e de infra-estrutura básica
que atendesse ao aumento da demanda por educação, saúde, segurança, urbanização e, especialmente, emprego. O
equívoco desta política habitacional veio agravar as distorções do Plano Diretor de Brasília, elaborado por ocasião da
construção da cidade. A concepção original de Brasília contemplava apenas a cidade administrativa, dotada com atividades econômicas de cunho local destinadas a suprir apenas
suas próprias necessidades de bens e serviços.
MERCADO DE TRABALHO E
POLÍTICAS ATIVAS DE EMPREGO
O atual quadro do mercado de trabalho no Distrito Federal, como reflexo deste processo, é marcado por desigualda-
33
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
MICROCRÉDITO:
CONCEITO E EXPERIÊNCIAS
Esta segunda linha de desenvolvimento abrange uma série de programas, voltados para clientelas específicas, dos
quais cabe destacar:
- o Programa Bolsa-Escola, que concede bolsa de um salário mínimo mensal a famílias com renda mensal inferior a
meio salário mínimo per capita e que possuem filhos em idade
escolar, tendo, como contrapartida, a exigência de mantêlos na escola pública, com freqüência superior a 90%. Este
programa garante a sobrevivência dos segmentos mais pobres da população – em geral desempregados ou muito mal
empregados –, além de estimular a permanência dos filhos
na escola, o que contribui decisivamente para sua empregabilidade e para a melhoria dos indicadores do mercado de
trabalho no futuro. Em 1996, foram atendidas cerca de 25
mil famílias e, em 1997, espera-se atingir 35 mil famílias;
Os programas de microcrédito ficaram recentemente conhecidos no Brasil como “Bancos do Povo”, uma denominação proclamada pelo presidente da República, que ganhou
divulgação nacional. Embora afeita à comunicação popular, tal denominação, infelizmente, tende a imputar ao
microcrédito uma imagem que caracterizou as primeiras iniciativas do gênero, ainda nos anos 70, e que não corresponde às experiências recentes.
Ainda que com o mesmo objetivo, ou seja, o de fornecer
apoio financeiro a pequenos empreendedores, os programas
dos anos 70 guardam diferenças substantivas com os desenvolvidos atualmente. Àquela época, tais ações visavam apoiar
iniciativas de organizações não-governamentais que atuavam junto a populações carentes. Os programas não possuíam um foco definido de ação e, muito menos, uma estratégia própria de concessão de crédito. Em decorrência, as
instituições que operavam os empréstimos, via de regra, não
resistiram ao processo de descapitalização e às mudanças
no quadro político-econômico. Pode-se dizer que a natureza dessas ações era muito mais assistencialista do que de
fomento à produção.
No contexto atual, os programas de microcrédito têm
como foco a concessão de pequenos empréstimos a empreendimentos urbanos e rurais, especialmente os de caráter informal, visando a ampliação e a melhoria de suas condições
de produção. Para tanto, o processo de concessão apóia-se
em parâmetros e procedimentos bem definidos, que preservam a saúde financeira do programa, por meio do retorno
dos recursos concedidos.
- o Projeto Saber, que promove educação profissional para
a população em idade ativa, realizado com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador, aportados pelo Ministério
do Trabalho, no âmbito do Plano Nacional de Formação
Profissional. Em 1996, foram atendidas cerca de 105 mil
pessoas e, em 1997, espera-se atingir cerca de 160 mil pessoas. Este programa visa ampliar a empregabilidade dos que
já se encontram no mercado de trabalho, ou que estão em
vias de nele ingressar, dotando-os da qualificação hoje exigida pelas empresas;
- o Programa de Verticalização da Pequena Produção, conhecido como Prove, direcionado a pequenos agricultores, que incentiva a industrialização da produção, pelo acesso à tecnologia, assessoria técnica, crédito e espaços para comercialização;
- o BRB Trabalho, programa de microcrédito do governo
do Distrito Federal, que será tratado ao longo deste artigo.
TABELA 1
Indicadores Selecionados sobre o Mercado de Trabalho
Distrito Federal – 1992-96
Indicadores
População Total (em 1.000 pessoas)
1992
1993
1994
1995
1996
1.817,0
1.642,1
1.684,1
1.727,2
1.771,4
População Economicamente Ativa – PEA (em 1.000 pessoas)
747,4
760,4
772,3
791,7
811,0
Total de Desempregados (em 1.000 pessoas)
116,2
114,5
112,3
124,5
136,6
Desempregados com procura de emprego há mais de seis meses em relação ao
total dos desempregados (em %)
36,1
42,0
42,6
38,7
44,0
Desempregados analfabetos e com primeiro grau incompleto em
relação ao total dos desempregados (em %)
56,4
54,1
54,3
55,1
52,3
Taxa de Desemprego (em %)
15,5
15,1
14,5
15,7
16,8
Total de Ocupados (em 1.000 pessoas)
631,2
645,9
660,0
667,2
674,4
Total de Assalariados no Setor Público (em 1.000 pessoas)
197,6
197,9
203,8
204,0
204,3
Total de Assalariados no Setor Privado (em 1.000 pessoas)
218,0
226,7
231,3
227,4
229,2
Total de Autônomos (em 1.000 pessoas)
90,1
93,5
98,2
102,8
107,3
Autônomos em relação à PEA (em %)
12,1
12,3
12,7
13,0
13,2
Fonte: PED/DF – Codeplan/DF, STb/DF; Fundação Seade – Dieese.
34
A EXPERIÊNCIA DO MICROCRÉDITO NO DISTRITO FEDERAL
Tais iniciativas baseiam-se na constatação de que, embora segmentos expressivos da população dos países do Terceiro Mundo estejam excluídos do universo formal, desenvolvem atividades que lhes permitem auferir alguma renda.
Logo, trata-se de apoiar as iniciativas que essa população já
desenvolve, oferecendo-lhe produtos e serviços que normalmente são disponibilizados a empreendedores formalizados.
O crédito, como recurso básico a qualquer empreendedor,
raramente é concedido àqueles que não possuem os requisitos formais usualmente exigidos pelas instituições financeiras, seja quanto à documentação, seja – especialmente –
quanto à oferta de garantias. Para viabilizar este acesso, é
necessário que a instituição de crédito consiga equilibrar as
necessidades sociais de sua clientela com a natureza básica
de uma operação de crédito, ou seja, a de que todo empréstimo deve ser concedido mediante a perspectiva de seu retorno, acrescido de juros.
A maior virtude desses programas é, portanto, disponibilizar crédito ao contingente excluído do mercado financeiro
formal. Para isso, é necessária a constituição de um corpo
profissional específico, especialmente preparado para atender a esse tipo de clientela. Por outro lado, as condições de
pagamento do crédito devem garantir o seu retorno, incluindo taxas de juros compatíveis com os custos de captação do
dinheiro, de operacionalização do empréstimo e de cobertura da inadimplência. Programas desse tipo não devem oferecer dinheiro a taxas negativas ou subsidiadas, mas sim
compatíveis tanto com o mercado quanto com a capacidade
de pagamento dos tomadores.
Essa concepção mais acurada do microcrédito embasa os
programas surgidos nos anos 80, que vêm se expandindo
por vários países, desde o início dos anos 90. A experiência
pioneira mais conhecida na década de 80 foi a do Grammen
Bank (Banco Rural), de Bangladesh, criado em 1983, que
passou a fazer empréstimos em valores bastantes reduzidos
– e, portanto, adequados às necessidades da clientela –, aplicando uma estratégia bastante diversa da normalmente utilizada por bancos comerciais. O trabalho inicial consistia na
visita de um agente de crédito às comunidades onde residiam os interessados, promovendo reuniões em que se organizavam grupos de tomadores de crédito. Nesta forma de
concessão, os empréstimos são realizados para o grupo, sendo
que todos os integrantes são solidários no pagamento do montante total a ser emprestado.2 Esta experiência obteve um
grande êxito, sendo que em setembro de 1995 o Grammen
Bank possuía cerca de 2.000.000 de clientes. As estratégias
de atuação foram diversificadas ao longo dos anos, mas
manteve-se o objetivo geral de conceder pequenos financiamentos a segmentos informais.
Em meados dos anos 80, outras importantes experiências
foram iniciadas na América do Sul, devendo ser citadas as
do BancoSol, na Bolívia, CorpoSol, na Colômbia, SNI –
Sociedade Nacional de Indústrias e Fogap – Fundación Fondo
Garantia para Prestaciones, no Peru, Banco del Pacífico e
Insotec – Intituto de Investigaciones Sócio Econômicas y
Tecnológicas, no Equador, e Banco del Desarollo e Fosis –
Fondo de Solidaridad, no Chile. Um traço interessante nessas experiências refere-se ao fato de que se trata de iniciativas de organizações não-governamentais, algumas sem qualquer apoio do Estado.
Para a constituição do programa de microcrédito do governo do Distrito Federal, em 1995, foram visitadas as experiências do Equador, Bolívia, Peru e Chile, além de consultada uma ampla documentação sobre o tema.3 Também
foram importantes os subsídios colhidos junto à Fenape –
Federação Nacional de Apoio aos Pequenos Empreendimentos (que trabalha com programas de microcrédito em 11 estados do país), ao Sine/CE – Sistema Nacional de Emprego
do Estado do Ceará (que opera um programa de microcrédito,
desde 1990) e ao PortoSol, Instituição Comunitária de Crédito, vinculada à prefeitura de Porto Alegre (cujo programa
de microcrédito estava em fase de organização naquele
momento).
Deve-se destacar que a própria Secretaria de Trabalho do
DF já havia praticado um programa semelhante entre 1986
e 1993, o Promicro-UP, o que lhe facultava um grande conhecimento sobre o assunto. Esta mesma Secretaria operou
também o programa Balcão de Ferramentas, financiado com
recursos da Caixa Econômica Federal e desenvolvido no
início dos anos 90.
Em todas as experiências analisadas, ressaltou-se a necessidade de adaptação dos programas à realidade local, tanto na forma de operacionalização do crédito quanto na organização institucional. Assim, verificou-se que o Grammen Bank, no aspecto
institucional, é uma organização não-governamental, que opera
um programa de crédito com apoio do Estado, sobre uma estrutura social fortemente legitimada pela religiosidade. Já no Chile, é o Estado que estimula instituições não-governamentais a
operarem os programas de microcrédito, por meio do repasse
de recursos, sem interferir diretamente na regulamentação das
condições de concessão, podendo existir diversos modelos operacionais. Nos demais países latino-americanos, é comum encontrar programas sem qualquer apoio ou referência institucional do Estado, com instituições operando microcréditos quase
como bancos comerciais. Enfim, tais programas vêm sendo desenvolvidos em consonância com as características culturais, econômicas, sociais e políticas das localidades em que atuam.
MICROCRÉDITO:
O PROGRAMA BRB TRABALHO
A necessidade de se criar um programa de microcrédito
no Distrito Federal foi percebida pelo atual governo logo no
início de sua gestão, ainda nos primeiros meses de 1995. Os
35
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
sição tripartite e paritária – entre governo, empresários e trabalhadores – define as políticas operacionais, fiscaliza a aplicação dos recursos e delibera sobre as taxas de juros.
O modelo operacional, propriamente dito, não diverge
essencialmente do empregado na maioria dos programas de
microcrédito. Porém, a Secretaria de Trabalho, como órgão
de governo responsável pela operacionalização do BRB Trabalho, eliminou a necessidade de repassar à clientela a maior
parte dos custos operacionais, que foram cobertos por seu
orçamento próprio. Para implementar o Programa, a Secretaria reciclou parte de seus servidores, remanejando-os para
atuarem como agentes ou analistas de crédito, bem como
nas demais funções de apoio logístico. Instalações físicas da
própria Secretaria foram destinadas ao Programa, seja em
sua sede administrativa, seja em suas agências de atendimento
ao trabalhador. Com isso, o BRB Trabalho foi implantado
sem acréscimo de despesa para o governo local.
estudos das experiências de outros países e de programas
correlatos, anteriormente citados, e da revisão da experiência
do DF com o Promicro-UP apontavam para a necessidade
de equacionar duas questões fundamentais para a configuração do programa: os critérios de seleção da clientela e
a configuração institucional e respectiva estratégia de
concessão do crédito. Todos os programas de microcrédito
têm que estabelecer o foco de suas ações, definindo
claramente a clientela a ser atingida. Há muitos programas,
em outros países, que atuam com micros e pequenas
empresas, enquanto outros atuam diretamente com pessoas
físicas, que compram, vendem e/ou produzem bens e
serviços. De forma geral, os programas realizados por
organizações não-governamentais têm que buscar uma
remuneração dos empréstimos que cubra todos os seus custos,
inclusive os administrativos. Isso levou, em alguns casos, a
uma certa definição de nicho de mercado, em que os
empréstimos são canalizados para empreendedores já
estabelecidos, com experiência anterior de crédito e, portanto,
com maior probabilidade de pagar sua dívida, arcando,
outrossim, com taxas de juros relativamente mais elevadas
que as de mercado, em razão da inexistência de garantias
formais. Enfim, ao depender totalmente de suas operações
para manter sua rentabilidade, algumas dessas instituições
tendem a atuar à semelhança de bancos comerciais,
selecionando sua clientela com base em critérios mais
conservadores. É claro que nem todas as organizações nãogovernamentais que atuam com microcrédito desenvolvem
ações com essa estratégia. Porém, as que não o fazem, de
modo geral, adotam mecanismos de capacitação e assistência
técnica-gerencial para os empreendedores.
Quanto ao BRB Trabalho, decidiu-se que, em razão do
elevado nível de desemprego do DF e das precárias condições dos postos de trabalho nos segmentos informais, a estratégia a ser adotada deveria ser mais ousada e, em certa
medida, testar os limites das políticas públicas, mesmo que
isso implicasse maiores riscos. Assim, a clientela do programa abrangeu todo o espectro de pequenos empreendedores
urbanos,4 considerando os diversos tipos de empreendimento,
sejam micros e pequenas empresas formais, empreendedores informais na indústria, serviços e comércio, sejam artesãos ou cooperativas de trabalhadores já em funcionamento
ou a serem implantadas. Essa abordagem foi decisiva na
definição do modelo institucional do Programa. Para dar
suporte às suas ações, foi criado o Funsol – Fundo de Solidariedade para Geração de Emprego e Renda, constituído,
inicialmente, pelo montante de dividendos das empresas
estatais do Distrito Federal, auferidos no segundo semestre
de 1994. Esse fundo, criado nos termos da Constituição Federal e da Lei Orgânica Distrital, é vinculado à Secretaria de
Trabalho do DF, tendo como gestor o Conselho do Trabalho do Distrito Federal – CTDF. Este Conselho, de compo-
Formas de Atuação
Embora o BRB Trabalho vise atender a uma clientela
bastante diversificada, há linhas de ação definidas para
cada tipo de tomador. Em função de suas necessidades
específicas, pode-se distinguir a clientela do BRB Trabalho em três grandes grupos.5 O primeiro refere-se aos
empreendedores já estabelecidos no mercado, tanto microempresários formais quanto pequenos empregadores
e autônomos informais, que exercem seu próprio negócio num período geralmente superior a dois anos, cuja
identificação com a atividade e relativa estabilidade de
faturamento lhes permitem sobreviver de forma mais ou
menos segura, sem a necessidade de obter um emprego
formal. São exemplos mais comuns desse grupo as costureiras que trabalham em suas casas, os mecânicos, os
marceneiros e serralheiros que montam pequenas oficinas em seus quintais, os prestadores de serviços técnicoprofissionais, como eletricistas, técnicos em eletrônica,
contadores, ou cabeleireiros que abrem seus salões em
cômodos adaptados de suas casas, entre outros.
O segundo grupo constitui-se de trabalhadores que pretendem iniciar seu próprio negócio pela primeira vez. Nele incluem-se pessoas que estão em desemprego conjuntural ou estrutural, seja porque perderam o emprego, seja porque entraram
recentemente no mercado de trabalho e ainda não lograram uma
vaga condizente com suas expectativas profissionais. Por essas
e outras razões, decidem pelo auto-emprego ou pequeno negócio, sendo, na maioria dos casos, por absoluta falta de alternativa. Exemplos desse grupo são os jovens que concluíram curso
técnico, em nível de 1º ou 2º grau, mas não encontram oferta de
emprego ou não possuem experiência suficiente para concorrer
no mercado; os trabalhadores que foram demitidos em função
de reestruturação administrativa em suas empresas (bancários,
36
A EXPERIÊNCIA DO MICROCRÉDITO NO DISTRITO FEDERAL
Em comum, essas três linhas de atuação disponibilizam, de
forma diferenciada para cada grupo, o crédito e a capacitação
técnica-gerencial. O apoio sistemático quanto à assistência técnica e cessão de espaços para comercialização deverá ser implementado em breve. Para esta tarefa, pretende-se a parceria com
outros órgãos de governo, bem como com entidades como a
Universidade de Brasília – UnB, Sebrae-DF, Ceape/Fenap-DF,
Ágora, entre outras. Já se encontra em negociação, junto à Secretaria de Ciência e Tecnologia, a criação de Centros de Competitividade Tecnológica – Comtec, pelos quais a clientela do
BRB Trabalho poderá receber assistência técnica e dispor de
espaço para comercialização.
Estas linhas de atuação reforçam a pertinência do modelo
institucional proposto, uma vez que os custos de capacitação
gerencial e assistência técnica normalmente são elevados, sendo inviável repassá-los aos empreendedores, especialmente os
mais pobres. Na atual articulação institucional do Programa, esses
custos vêm sendo cobertos, no todo ou em parte, via Secretaria
de Trabalho, por meio do seu Projeto Saber, financiado com
recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador – FAT, integrante do Programa Nacional de Formação Profissional do Ministério do Trabalho.
Ainda quanto às estratégias de atuação, devem ser destacados dois tipos de empreendimentos que vêm sendo incentivados pela Secretaria de Trabalho do DF: as franquias populares e as cooperativas. Embora sua participação no total
de créditos concedidos pelo BRB Trabalho seja ainda pouco significativa, são importantes em razão das perspectivas
que representam para as estratégias de concessão do crédito
a segmentos específicos da clientela, especialmente para o
segundo e terceiro grupos, anteriormente caracterizados.
gerentes de loja, etc.) ou mesmo pela rotatividade natural de certos
ramos de atividade, como no comércio, rede de ensino privada,
e outros.
O terceiro grupo envolve os mais pobres entre os trabalhadores, em geral com pouca ou nenhuma qualificação profissional e/ou escolaridade formal, que se encontram ou em desemprego aberto, ou realizam atividades – regulares ou eventuais
(“bicos”) – de mais baixa remuneração. Uma boa parte desse
grupo é constituída de trabalhadores não qualificados da construção civil, que, em geral, vieram para Brasília atraídos pela
abundância de obras públicas e privadas e, hoje, dada a substantiva redução desse tipo de investimento e o avanço tecnológico
na atividade, estão sujeitos a longos períodos de desemprego.
Além disso, há os egressos do meio rural e mesmo os nascidos
no meio urbano em famílias pobres ou muito pobres, que não
tiveram oportunidade escolar ou acesso a algum aprendizado
profissional. Quando não estão em desemprego, realizam atividades que variam da venda ambulante à prestação de serviços
diversos, como os carregadores de embrulhos ou em serviços
de frete, vigias de estacionamento, carroceiros e outras ocupações sem qualificação definida.
Fica claro que não é possível atender a esses grupos da
mesma forma. Suas necessidades e carências são diversas.
Os empreendedores do primeiro grupo são, sem dúvida, os
que podem ser atendidos de forma mais imediata. Suas condições de inserção no mercado são as que oferecem menor
risco à concessão do crédito. O interesse desse grupo em
recorrer ao financiamento decorre da sua necessidade de
ampliar a produção e/ou produtividade, a fim de assegurar a
sua permanência no mercado.
Para os do segundo grupo, os inexperientes, é necessário que
a oferta de crédito seja complementada com apoio quanto à
capacitação gerencial, assistência técnica e acompanhamento
periódico. O grau de risco nesta clientela pode ser avaliado pelas
estatísticas relativas a novos empreendimentos: 70% fracassam
antes de completar o primeiro ano de vida.
Para os do terceiro grupo, os socialmente excluídos, são poucas
as chances de lograrem a melhoria de suas condições de trabalho ou incremento de renda no curto e médio prazos, devido à
falta de ofício definido e/ou ausência de qualquer qualificação
em termos de habilidades básicas e de gestão requeridas. As
estratégias para este grupo podem envolver desde a concessão
de financiamentos em valores bastante reduzidos, coerentes com
seu nível de renda, até a associação do crédito com projetos de
qualificação e requalificação profissional, além do fomento a
outras formas de organização da produção, notadamente cooperativas. A primeira estratégia contribui apenas para a manutenção destes empreendedores no mercado, garantido-lhes um
fluxo mínimo de renda, ainda que esta não lhes permita superar
o nível de pobreza. A segunda e terceira estratégias podem levar, em um prazo mais longo, dependendo da capacidade de
adaptação do empreendedor, à sua efetiva inclusão social.
Franquias Populares
Especialmente dirigida aos pretendentes ao crédito que não
possuem experiência anterior como empreendedores, a Secretaria de Trabalho criou o Programa Franquias Populares, ainda
em fase de avaliação. Trata-se de disponibilizar ao empreendedor iniciante um conjunto de produtos e serviços, no sentido de
reduzir os riscos de sua entrada no mercado.
As franquias, neste caso, possuem uma dupla vantagem.
Em primeiro lugar, os produtos já são padronizados e sua
aceitação no mercado já foi testada. Em segundo, somam-se
os recursos de apoio do programa BRB Trabalho com os da
empresa franqueadora, normalmente oferecidos aos pretendentes do negócio. A primeira experiência vem sendo desenvolvida em parceria com uma empresa fabricante de sorvetes, que atua na região do DF, a Sorvetes Cogumelo.
Pretende-se montar um sistema de franqueamento de distribuidores de sorvetes, que em suas próprias casas passam a
dispor de equipamentos para a conservação e venda do produto em âmbito local, utilizando carrinhos.
37
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
Hoje existem cinco “sorveterias populares”, sendo que a
empresa produtora realiza o treinamento técnico, define o
conjunto de equipamentos necessários e cede os produtos
em consignação. A Secretaria de Trabalho contribui com o
crédito, para financiar a compra de equipamentos, e o capital
de giro inicial, além da capacitação técnica gerencial. Embora
a experiência ainda esteja em fase de avaliação, já há planos
de ampliá-la para outros ramos de atividade.
para que este deixe seu empreendimento para tratar de assuntos relativos ao crédito o menor número de vezes possível. O programa não foi aberto para todo o DF de uma única
vez. Em face da demanda reprimida, foram adotados critérios de priorização de localidades, partindo-se daquelas com
maior presença de empreendedores informais, residentes nas
cidades satélites de renda mais baixa, passando para as de
renda intermediária e, posteriormente, para as de renda mais
alta, escalonando o processo ao longo de 18 meses, cobrindo-se, ao final, a totalidade das 19 regiões administrativas
que compõem o DF. Os passos envolvidos no processo de
concessão do crédito são os seguintes:
Cooperativas
Para trabalhadores com menores condições de êxito num
empreendimento individual, ou para ramos de atividade especialmente favorecidos, a cooperativa surge como uma alternativa possível, à medida que permite congregar vários
trabalhadores num único negócio, os quais podem contar com
apoio técnico e administrativo para a organização da produção e estratégias de gestão. Na avaliação das perspectivas
desse tipo de empreendimento, deve-se considerar o fato de
que as experiências brasileiras de cooperativas de trabalho
não tenham sido muito animadoras, seja pela dificuldade dos
trabalhadores de atuar num empreendimento coletivo, em
que não há a figura do empresário, seja pelos problemas que
vêm ocorrendo na formação de algumas cooperativas de trabalho, uma vez que são constituídas apenas para burlar a
legislação trabalhista. Em que pesem essas limitações e distorções, o cooperativismo vem surgindo como alternativa
de sobrevivência e/ou de ampliação da atividade para uma
parcela cada vez maior de trabalhadores, estejam desempregados ou já estabelecidos no mercado.
Em razão disso, a Secretaria de Trabalho do DF implementou um programa de cooperativismo, cujos resultados
têm sido expressivos no que concerne ao fomento de novas
cooperativas, atuando por meio do apoio à capacitação de
técnicas e princípios de gestão cooperativa e também quanto à qualificação profissional dos componentes, no âmbito
do Projeto Saber de educação profissional. Com isso, já se
formaram 120 unidades de produção associativa, entre grupos de produção – pré-cooperativas – e cooperativas propriamente ditas. Destas, cerca de 20 unidades já se encontram estabelecidas no mercado. De modo geral, estes
empreendimentos têm se concentrado no setor de serviços,
envolvendo profissionais tais como vigilantes, pedreiros,
serviços gerais, carroceiros, entre outros.
- o programa é divulgado em uma determinada região, com a
apresentação de informações gerais sobre o programa e convite
aos empreendedores interessados para uma reunião. Nesta reunião, as principais informações são repassadas e os interessados
podem se cadastrar, preenchendo uma ficha (denominada précadastro), contendo dados de identificação. Todos os nomes e
CPFs são checados nos sistemas de Proteção ao Crédito e, não
havendo impedimento, o empreendedor é visitado. No caso de
impedimento, exige-se a regularização da pendência para efeito
de prosseguimento do pleito;
- as visitas são feitas por agentes de crédito no local de
trabalho do empreendedor e envolvem o preenchimento
do cadastro completo, verificações das informações in
loco, contato com clientes e fornecedores e, quando for o
caso, verificação dos registros administrativos existentes.
A partir da visita, o agente de crédito emite um relatório
detalhado sobre o empreendimento e os termos da solicitação do crédito. Busca-se verificar se os itens e valores
do financiamento pleiteado são compatíveis com a capacidade de pagamento do empreendedor e com a natureza
de sua atividade. Durante a visita, o empreendedor é informado da documentação exigida para obter o crédito
(CPF e RG), assim como da necessidade de apresentar ou
um avalista que forneça comprovação de renda ou dois
avalistas sem esta comprovação. No caso de financiamento
para aquisição de equipamentos, será também necessário
que ele apresente o orçamento desses equipamentos. Todos esses documentos ou suas cópias são anexados ao
relatório do agente de crédito, que deverá retornar ao
empreendedor, se for necessária a complementação de informações;
- o relatório do agente de crédito é enviado a uma equipe de
analistas de crédito da Secretaria de Trabalho, que fazem uma
leitura crítica dos dados obtidos e realizam cálculo de consistência do financiamento, verificando se o faturamento do negócio
é suficiente para pagar a dívida a ser contraída. Se o parecer for
favorável, a proposta é endereçada ao Comitê de Crédito;
- o Comitê de Crédito é a instância encarregada de aprovar as
solicitações. Ele é composto de quatro membros, sendo um da
ESTRATÉGIAS DE CONCESSÃO DO CRÉDITO
O processo de concessão de crédito aos pequenos empreendedores informais difere daqueles normalmente utilizados pelos bancos comerciais. A clientela do microcrédito
tem pouca ou nenhuma experiência com bancos. O BRB
Trabalho busca atuar da forma mais adequada ao cliente,
38
A EXPERIÊNCIA DO MICROCRÉDITO NO DISTRITO FEDERAL
RESULTADOS ESPERADOS
Secretaria de Trabalho, um da Secretaria de Fazenda, um do
Banco de Brasília e um representante da Sociedade Civil Organizada, vaga que vem sendo ocupada pela Ação da Cidadania
Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida. O Comitê é soberano
para aprovar ou não as propostas apresentadas, assim como para
sugerir correções e exigir novas informações;
- após a aprovação no Comitê de Crédito, o empreendedor
é avisado, em sua residência, que teve seu pedido aprovado
e que deve dirigir-se à agência do BRB determinada, para
fins de assinatura do contrato e retirada do empréstimo. Em
caso de financiamento de capital fixo (máquinas, equipamentos, etc.), é entregue um cheque administrativo ao fornecedor e, em caso de capital de giro, os recursos são liberados
em conta corrente, cuja abertura é providenciada pelo próprio banco. O empreendedor deverá, obrigatoriamente, freqüentar cursos de capacitação técnica-gerencial oferecidos
pela Secretaria de Trabalho;
- os pagamentos são feitos mensalmente, sempre em data
prefixada, através de depósito na própria conta corrente. Após
o pagamento de um empréstimo, o cliente passa a ter direito
a um novo financiamento.
As condições de financiamento do BRB Trabalho são relacionadas na Tabela 2.
As funções do Banco de Brasília – BRB, na qualidade de
agente financeiro do programa, são as seguintes: gerir o
Fundo de Solidariedade – Funsol; aplicar os recursos do
Fundo que não estiverem comprometidos com empréstimos;
celebrar contratos em nome do Fundo e da Secretaria de
Trabalho; liberar os recursos, cobrar as parcelas vencidas e
conduzir, quando necessário, o processo de renegociação de
dívida e cobrança judicial.
A Tabela 3 permite visualizar os principais resultados do
programa BRB Trabalho, desde seu início, em 6 de dezembro de 1995. É importante destacar que, nos primeiros quatro meses de seu funcionamento, o Programa esteve praticamente paralisado, em virtude da incidência do IOF sobre as
operações, no montante de 15%, a qual onerava muito a clientela. Esta incidência – igual à das operações de crédito direto ao consumidor – só foi suspensa após a intervenção da
Secretaria Executiva da Comunidade Solidária, que viabilizou
a publicação de decreto presidencial no sentido de isentar
de IOF as operações de microcrédito produtivo, em todo o
Brasil.
Quanto ao perfil dos empreendedores, é interessante destacar:
- o percentual de mulheres (57%) é bem superior ao de homens (43%), o que contrasta com a distribuição para o total
de ocupados no DF – bem como para o mercado de trabalho
brasileiro –, onde as respectivas participações são invertidas: 45% para mulheres e 54% para homens. O fato indica
que o programa tem sido uma via importante para a inserção do contingente feminino no mercado;
- com relação à idade, o Programa apresenta uma concentração maior de empreendedores na faixa acima de 40
anos (40%), superior à observada para o total de ocupados no mercado de trabalho do DF (30%), denotando que
a demanda pelo crédito tende a ser maior entre aqueles
que possuem mais experiência profissional;
- a composição por setor de atividade econômica mostra
um grande deslocamento da distribuição dos empreende-
TABELA 2
Condições de Financiamento do Programa BRB Trabalho
Distrito Federal – Julho 1997
Tipos de Financiamento
Itens
Capital Fixo
Capital de Giro
24
6
6
2
5.000
5.000
25.000
25.000
1%
3,2%
Itens Financiáveis
máquinas e equipamentos
novos e usados,
móveis e utensílios
capital de giro simples ou
associado ao financiamento de
equipamentos
Itens Não-Financiáveis
veículos automotores,
construções fixas ao solo e
construção civil em geral
repactuação de dívidas,
giro de comércio ambulante sem alvará
de funcionamento ou atividades ilegais
Prazos (em meses)
Máximo
Carência
Valor Máximo Financiável (em reais)
Empreendedor Individual
Cooperativa (sendo no máximo 5.000 por associado)
Taxa de Juros (taxa final ao mês)
Fonte: Governo do DF, Decreto no 16.962/95 e Conselho do Trabalho do DF, Resoluções
nos 13/95, 19/96 e 24/96.
39
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
do para manter cerca de 4.200 empregos e viabilizado a criação de 1.656 novos empregos, desde o seu lançamento em
dezembro de 1995, um período de dois anos e meio. Neste
mesmo período, o mercado de trabalho do DF gerou cerca
de 16 mil novos empregos. Isto permite estimar que o BRB
Trabalho respondeu por cerca de 10% do incremento do
emprego no DF, desde a sua criação. No entanto, não há ainda
uma avaliação mais acurada sobre os impactos sociais do
Programa, embora os resultados sejam já muito encorajadores. Segundo as projeções da Secretaria de Trabalho, o Programa deve atingir em 1998 um total de 6.000 empreendedores, disponibilizando cerca de 12 milhões de reais.
Os programas de microcrédito no Brasil, assim como o
BRB Trabalho, ainda estão em fase de desenvolvimento. Com
certeza, serão necessários alguns anos para que o Programa
no DF se consolide como uma política social de natureza
não assistencialista, o que exigirá a sua manutenção por vários governos. A sua articulação com outros programas, especialmente o da Bolsa-Escola e o da Verticalização da Pequena Produção Rural, poderá ampliar seus resultados sociais,
com efeitos significativos sobre a geração de empregos e
melhoria da renda e da qualidade das ocupações no âmbito
do setor informal.
É claro, no entanto, que não se deve transformar os programas de microcrédito em mais uma panacéia para resolver todos os problemas do mercado de trabalho brasileiro.
Para tanto, seria necessário implementar políticas muito mais
amplas e estreitamente vinculadas às estratégias de desenvolvimento econômico, o que, infelizmente, não figura na
pauta das autoridades federais. Cabe aos programas de
microcrédito, neste momento, acenar para as possibilidades
de renovação das políticas públicas no país, como forma de
resgatar a cidadania de alguns milhões de excluídos.
dores beneficiários do Programa em direção às atividades de indústria (41%) e comércio (34%), em detrimento
dos serviços (25%), quando se compara com a mesma
composição para o segmento dos autônomos informais,
que constituem a maior parte da clientela potencial do BRB
Trabalho. Entre estes, a distribuição por atividade econômica segue o padrão da estrutura do emprego no DF, com
uma pequena participação na indústria (6,7%), uma parcela no comércio (26%), dentro dos padrões do mercado
de trabalho no país, e uma concentração maior no setor
de serviços (50,2%). O fato indica que, a despeito da predominância do segmento informal em sua clientela, a natureza creditícia do Programa faz com que a composição
dos beneficiários se aproxime da distribuição setorial do
crédito no total da economia, na qual também ocorre maior
concentração na indústria e comércio, em razão da natureza dessas atividades.
Quanto ao desempenho do Fundo que dá suporte ao Programa, o Funsol, seu capital total soma hoje cerca de 5,6
milhões de reais. Desde a sua constituição, houve crescimento
de seu patrimônio real, fruto dos juros pagos pelos empréstimos concedidos, dos recursos capitalizados ao fundo e da
remuneração financeira do BRB sobre o montante de recursos que não estiveram aplicados em empréstimos.
Os resultados do Programa para o mercado de trabalho
também são animadores. Pelas estatísticas constantes do
banco de dados, estima-se que o programa tenha contribuíTABELA 3
Indicadores do BRB Trabalho
Distrito Federal – 1997 (1)
Indicadores
1997
Número de Operações Contratadas
Proponentes por Sexo
Feminino
Masculino
2.127
1.214 (57,0%)
913 (43,0%)
Distribuição por Idade
21 a 30 Anos
31 a 40 Anos
41 a 50 Anos
Mais de 51 Anos
474
821
540
292
Distribuição por Setor de Atividade
Indústria
Comércio
Serviços
868 (40,8%)
730 (34,2%)
529 (25,0%)
11 meses
3 meses
Valor Médio dos Empréstimos
R$ 1.430,00
Clientes com Mais de um Empréstimo
E-mail do autor: [email protected]
(22,3%)
(38,6%)
(25,4%)
(13,7%)
Prazo Médio dos Empréstimos
Investimento
Giro
Montante Total Emprestado
NOTAS
1. A Pesquisa de Emprego e Desemprego, segundo a metodologia da Fundação Seade e do Dieese, é realizada nas regiões metropolitanas de São Paulo, Porto Alegre,
Curitiba, Belo Horizonte, Salvador e Distrito Federal. Assim, os dados apresentados
aqui, baseados na PED, só devem ser comparados com dados dessas regiões onde a
Pesquisa está disponível.
2. O valor médio do financiamento por grupo de tomadores é US$ 100,00, com
cotas individuais que variam de US$ 10,00 a US$ 20,00.
3. Para a consecução desta tarefa, merece destaque o importante apoio da Fundação
Esquel do Brasil, tanto no apoio a viagem de estudos, quanto na obtenção de material bibliográfico sobre o tema.
4. No que concerne aos empreendedores rurais, o atendimento vem sendo feito pelo
Prove, programa já descrito na primeira seção deste artigo.
5. Note-se que a tipologia apresentada não pretende conformar uma categorização
consistente com nenhuma abordagem sociológica do mercado de trabalho brasileiro.
Objetiva-se, tão somente, contribuir para a conceituação dos tipos de empreendedores, segundo suas necessidades junto a programas de microcrédito, a partir de constatações sobre a realidade do mercado de trabalho no Distrito Federal. O sentido
desta conceituação é, portanto, de natureza prática e não teórica.
R$ 3.040.062,00
330
Fonte: Secretaria do Trabalho do DF.
(1) Posição em 3 de julho.
40
EMPRESAS AUTOGESTIONÁRIAS: UMA
ALTERNATIVA DIANTE DO DESEMPREGO
EMPRESAS AUTOGESTIONÁRIAS
uma alternativa diante do desemprego
APARECIDO DE FARIA
Economista, Diretor Técnico da Associação Nacional dos Trabalhadores em
Empresas de Autogestão e Participação Acionária
MARILENA NAKANO
Pedagoga, Professora da Fundação Santo André e
Coordenadora Educacional da Associação Nacional dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e Participação Acionária
avançar. Em nome da possibilidade do desenvolvimento,
justifica-se a eliminação daquilo ou daqueles que são considerados “atrasados”.
Tudo isso significa não apenas alterações de vocabulário, conceitos ou classificações, mas sim uma mudança
mais profunda, no campo da ação e do pensamento das
pessoas, pois procura-se reforçar uma forma de ser e de
estar no mundo, dominada pelo sentimento de que tudo
isto é inexorável e de que não há possibilidade de produzir novas saídas. Os que assim pensam, oferecem aos trabalhadores uma proposta que também contém esta lógica. O foco das ações centra-se no enfrentamento daquilo
que é considerado inevitável, ou seja, preparar os trabalhadores para assumirem a nova condição de desempregados permanentes.
Assim, uma das mais importantes formas de integração do sujeito à sociedade – o trabalho – tende a desaparecer para dar lugar à instabilidade, à insegurança, ao rompimento de redes de relações importantes, como se tudo
fosse inevitável; como se tudo fizesse parte do curso natural da história do desenvolvimento. Vai se instalando,
gradativamente, a idéia de que tudo isso é natural. Nessa
medida, tende a desaparecer também a idéia de que esta
nova situação é produzida socialmente e, portanto, passível de mudança através da interferência, da ação dos próprios sujeitos.
Contraditoriamente, é nesse contexto que o sonho da
empresa autogestionária, e nela a destinação social do
lucro, começa a se tornar realidade em nosso país, pelas
mãos dos trabalhadores que mostram-se capazes de pensar, criar e ousar. Eles enfrentam o fantasma do desemprego através de ações que ultrapassam o campo da denúncia e da resistência, materializando empresas que têm
como figura central o próprio trabalhador e cuja estrutu-
Estamos construindo uma empresa nova
dentro de uma velha empresa.
Valdir de Paula Silva
(Presidente da Cooperativa Sakai)
A
tualmente, globalização, terceira revolução industrial, novas tecnologias, novas formas de organização do trabalho, neoliberalismo e economia de mercado tornaram-se expressões que habitam o
cotidiano e que passaram a explicar inúmeros fenômenos
que acontecem, dentre estes, o desaparecimento de várias
indústrias dos mais diferentes setores e o “enxugamento”
das fábricas, dando vida a um fantasma que passa a rondar a vida de cada cidadão: o desemprego.
As explicações para a situação vivida são diversas e,
muitas vezes, divergentes. Os significados das expressões
e as propostas para o enfrentamento das novas questões
têm variado. Por exemplo, segundo o FMI, “ao contrário
da visão popular, a desindustrialização deixa de ser fenômeno negativo e passa a ser vista como conseqüência
natural do dinamismo industrial de uma economia que já
se desenvolveu” (O Estado de S.Paulo, 28/04/97). Operam-se mudanças nos conceitos e classificações referentes ao desenvolvimento dos países e regiões, considerando-se louvável, desejável e necessária a passagem de
“países industrializados” para “economias avançadas”. A
partir desta visão, a existência de “inempregáveis” – os
desempregados permanentes – é vista como algo positivo, pois trata-se de indicador da inserção do país no universo daqueles que hoje ocupam o campo das “economias
avançadas”. Abandona-se então a idéia do trabalho como
direito, como se o vivido hoje fosse necessário para o país
41
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
ra e gestão são pensadas a partir de uma preocupação com
o social, sem, no entanto, deixar de lado as questões de
viabilidade econômica e de inserção num mercado cada
vez mais globalizado.
Distribuídos por diferentes empresas e setores de produção, esses trabalhadores, através de suas ações, têm sido
responsáveis pela manutenção e geração de milhares de
empregos, diretos e indiretos. Eles participam da Associação dos Trabalhadores em Empresas de Autogestão e
Participação Acionária (Anteag) para trocarem e refletirem sobre experiências, construindo alternativas que viabilizem saídas mais gerais e avançando no sentido da construção e consolidação daquilo que hoje, mesmo ainda
frágil, já é concreto: a condução das empresas de maneira autogestionária, ou cogestionária, ultrapassando, assim,
os limites dos interesses individuais (o de manter o próprio emprego) para fazer surgir o coletivo e, com ele, o
social e a possibilidade do trabalho permanente.
Desta forma, os trabalhadores das empresas autogestionárias conseguem recuperar o lugar de sujeitos na construção da história e no desenvolvimento do Mundo. Torna-se concreta a capacidade de agir nos inúmeros espaços
da vida, entre estes o do trabalho, não como caminho único
e exclusivo de sua integração na sociedade, mas como um
dos elementos centrais de sua realização. Aqui, é imperativo dizer que recuperar esta idéia foi possível não em
função da idealização daquilo que podem fazer os trabalhadores enquanto sujeitos abstratos, mas por conta do que
milhares vêm fazendo, no Brasil, ao assumirem uma empresa autogestionária.
Neste artigo, o foco constitui estas empresas autogestionárias e cogestionárias, bem como os sujeitos que as
conduzem. Estes trabalhadores-proprietários revelam,
através de suas ações, que não abandonaram a idéia de
desenvolvimento como processo de construção social, que
desindustrializar1 não é processo natural, positivo ou negativo em si mesmo e que, enquanto sujeitos, não perderam a capacidade de agir e de interferir na realidade em
que vivem. Trazem para o cenário um novo tema: avançar não significa necessariamente desindustrializar –
questão que precisa ser discutida e enfrentada, inclusive
por aqueles que produzem, organizam e conduzem políticas sociais como agentes do Estado.
gestionários em modelos predeterminados, pois, se os trabalhadores num primeiro momento assumem as empresas muito mais como uma tentativa desesperada de manter o posto de trabalho, isso não quer dizer que a ação
desses trabalhadores não contenha e não produza outros
sentidos, no momento mesmo da origem da própria empresa, bem como ao longo do processo de sua condução.
Diante da irracionalidade destrutiva e do alardeado fim
da história, é fundamental não perder de vista utopias e,
para tanto, aprender com o passado, não para reproduzilo incessantemente, mas para compreender a situação que
se vive, a partir dos elementos que a própria realidade
fornece.
Um Breve Olhar para o Passado:
Autogestão, uma Antiga Utopia
Historicamente, as primeiras idéias sobre as associações de trabalhadores em empresas de autogestão foram
propostas pelos socialistas utópicos, entre eles Owen,
Fourier, Blanc e o pai espiritual do anarquismo Proudhon.
Foi Robert Owen quem patrocinou a criação da primeira
cooperativa na Europa, a sociedade Pioneiros Equitativos de Rochdale, em 1844, integrada por tecelões que ficaram sem trabalho em conseqüência da 1a Revolução
Industrial.
Na França, o movimento associativo em forma de cooperativa buscou negar o sistema capitalista e foi incentivado por Charles Fourier, Saint Simon e Louis Blanc. Eles
buscaram organizar cooperativas de produção com os artesãos arruinados pela revolução industrial (séculos XVIII
e XIX).
Mais tarde, em lugar do conteúdo socialista, o cooperativismo adquiriu características mais atenuadas de reforma social nas formulações de Beatrice Potter Webb,
Luigi Luzzatti e Charles Guide.
As idéias de Karl Marx sobre o controle dos trabalhadores dos meios de produção através de associações cooperativas não são sistemáticas em sua obra, mas há várias
referências sobre o assunto, e mais favoráveis do que se
costuma supor. As associações cooperativas, tanto as que
realmente existiram à época de Marx como aquelas enquanto células de um modo de produção possível no futuro, não são examinadas, na obra de K. Marx, enquanto
tais, mas sempre dentro da perspectiva geral da emancipação da classe trabalhadora.
Para Marx, a cooperação era a negação do trabalho assalariado. Em sua forma positiva, “o trabalhador associado, que maneja suas ferramentas com mão hábil e entusiasmado, espírito alerta e coração alegre, poderia tornar
o trabalho assalariado tão arcaico quanto o capital já havia tornado ultrapassado o trabalho escravo ou servil”,
O SURGIMENTO DAS EMPRESAS
AUTOGESTIONÁRIAS E COGESTIONÁRIAS –
APRENDENDO COM A HISTÓRIA
Antes de percorrer rapidamente a história e buscar elementos teóricos que possam nos auxiliar no entendimento das empresas autogestionárias, é importante salientar
que aqui não interessa enquadrar os trabalhadores auto-
42
EMPRESAS AUTOGESTIONÁRIAS: UMA
afirmava Marx, no discurso inaugural, que pronunciou em
28 de setembro de 1864, por ocasião do lançamento, em
Londres, da Associação Internacional dos Trabalhadores.
Dentro do sistema capitalista, contudo, as formas de associação cooperativa estavam fadadas a conter tanto as
cascas do velho sistema como as sementes do novo.
ALTERNATIVA DIANTE DO DESEMPREGO
construir relações mais democráticas e fraternas no chamado mundo do trabalho.
Dessa forma, dentro de empresas com tecnologias
muitas vezes “arcaicas” e formas de organização do trabalho “antigas”, emergem no Brasil, nos últimos cinco
anos, de maneira mais ampla e intensa, as chamadas
empresas autogestionárias e cogestionárias, em função da
ameaça do desemprego e do desejo de construir algo diferente, conduzido pelos próprios trabalhadores. Essas
empresas não surgiram, nesse mesmo período, no Primeiro
Mundo, apesar da existência de um desemprego crescente, porque lá o Estado de Bem-Estar se estruturou, ao contrário do Brasil, onde deu passos tímidos.
Porém, parece ser exatamente neste contexto que empresas “atrasadas”, com tecnologia “atrasada”, com dificuldades de gestão, conseguem, ainda, encontrar para seus
produtos um nicho de mercado e, nessa medida, o tempo
necessário para se reorganizarem e colocarem a possibilidade de um futuro diferente daquilo que vivem hoje. Portanto, é da base atual que as empresas poderão avançar.
As empresas tornam-se autogestionárias, na maior parte dos casos, em função da possibilidade de uma falência
ou porque faliram. Poucos foram os casos em que o patrão tenha tomado iniciativa de propor aos trabalhadores
uma cogestão. Várias empresas autogestionárias surgiram,
no decorrer de processos traumáticos, nos mais diferentes
setores de produção (de confecção a carroceria de caminhão, de fruta a extração de minério de carvão, de macaco
hidráulico a copiadora a álcool), com diversos tamanhos
(de 20 a 600 trabalhadores) e situadas em vários pontos
do país (de Santa Catarina ao Rio Grande do Norte), indi-
O Surgimento das Empresas
Autogestionárias no Brasil
Se, por um lado, o conjunto dos trabalhadores das
empresas autogestionárias não podem ser enquadrados em
nenhum dos modelos citados, por outro, há um fio que os
une a cada um daqueles pensadores quando assumem, de
maneira clara e explícita, mesmo que ainda com muitos
conflitos, a cooperação, a solidariedade, a ajuda mútua
como valores que devem nortear as relações entre os trabalhadores, bem como quando assumem os meios de produção e organizam e conduzem o trabalho no interior da
empresa. Assim, mesmo que até aqui não se tenha colocado para o conjunto dos trabalhadores das empresas autogestionárias um outro modelo de sociedade – talvez este
não seja e não venha a ser o sentido de suas ações –, inegavelmente são portadores de princípios defendidos por
aqueles que, ao longo da história, têm pensado em como
fazer do trabalho algo que não destrua o sentido do social
e que seja de fato a realização do homem. Mesmo sem
questionar de maneira explícita todo o sistema e a inexistência de políticas que contemplem a participação do trabalhador, os sujeitos dessas empresas colocam em cheque os valores predominantes e agem no sentido de
QUADRO 1
Empresas Associadas à Anteag (1)
Empresas
Localização
Bruscor
C. Hering
CBC-A
Cob.Parahyba
Conforja
Coop.Cristais
Coopertex
Coopervest
Cootim/Sakai
Facit
Frunorte
Hidrophoenix
Mambrini
Skill Coplast
Brusque – SC
Blumenau – SC
Criciúma – SC
São José dos Campos – SP
Diadema – SP
Blumenau – SC
São Paulo – SP
Aracaju – SE
Ferraz de Vasconcelos – SP
Juiz de Fora – MG
Vale do Assu – RN
Sorocaba – SP
Vespasiano – MG
Diadema – SP
Setor
Têxtil
Cristais
Extr. mineral
Têxtil – Confec.
Forjaria
Cristais – Vidro
Têxtil
Confecção
Móveis
Metal – Peças
Agroindústria
Metalmecânico
Metal. – Móveis
Plástico
Fonte: Anteag.
(1) Efetivamente implantadas.
Nota: Há inúmeras outras empresas em fase de implantação e outras tantas não associadas à Anteag.
43
Número de Trabalhadores
20
350
400
300
350
55
65
600
80
350
600
45
80
30
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
cando haver uma tendência na construção de uma alternativa que tem como eixo a autogestão (Quadro 1).
No processo de origem de uma empresa autogestionária,
diante da pressão, do novo, alguns trabalhadores desistem
do empreendimento, mas outros, porque têm uma atitude próativa, decidem assumir a empresa, muitas vezes carregando
o passivo dela e colocando até mesmo o pouco dinheiro que
possuem (a exemplo do Fundo de Garantia) para poderem
reiniciar as atividades. Algumas vezes, o fazem com o apoio
de sindicatos, de empresários, de outros setores da sociedade, de alguns órgãos do Estado, mas de modo geral encontram-se sozinhos para essa tarefa.
Particularmente, os sindicatos que buscam de forma
corporativa e constante a manutenção do emprego, do
salário nominal e de mínimas condições de trabalho, pouco
têm se sensibilizado com essa questão e suas possibilidades. Centram-se na busca de recebimento dos direitos trabalhistas, não questionam o que fazer para que a empresa
não feche e, nessa medida, não buscam novas saídas.
Diante das transformações que estão ocorrendo, permanecer com esta atitude significa fazer da ação sindical
algo zarolho e incapaz de propor mudanças às situações
impostas pela globalização econômico-financeira e pela
política neoliberalizante. Infelizmente, não é com movimentos grevistas, operações tartarugas, atitudes luddistas,
etc. que se repõe o emprego eliminado numa reestruturação industrial como a atual. Deve-se aprender com a história, ver o que os outros fizeram, repensar teorias e condutas dentro da prática do dia-a-dia, a fim de fazê-la
avançar.
Não adianta continuar sonhando com o socialismo do
ano 2000 e morrer na praia junto com milhares de desempregados, sem tratar das conseqüências do desemprego
para as gerações futuras. Por que, então, não assumir a
propriedade social dos meios de produção através do coletivo de trabalhadores? Essa tem sido uma das alternativas gestadas em âmbito mundial com o surgimento e o
crescimento das políticas dos employee buy out (controle
das empresas pelos trabalhadores).
a seguir vêem-se obrigados a enfrentar inúmeras outras
questões, fazendo com que entrem no mundo globalizado por outra porta, agora não só aquela do antigo posto
de trabalho, mas também como proprietários e gestores
de empresa. Assim, globalização, terceira revolução industrial, novas tecnologias, novas formas de organização
do trabalho e capacitação vão se colocando como realidades concretas para aqueles que do lugar do trabalho,
mesmo que este seja parcelado, passam também a conduzir a empresa.
Na maior parte dos casos, as empresas autogestionárias e cogestionárias são reativadas ainda sob velhas bases, a partir da herança recebida: velhas tecnologias, organização do trabalho nos moldes tayloristas. Porém, esta
base inicial permite pensar projetos futuros, tal como o
de tornar a empresa competitiva, sem perder de vista aquilo
que ela tem de mais importante: os sujeitos que estão dentro dela, nela atuam e deliberam sobre seus rumos.
Os trabalhadores desempenham o papel duplo de trabalhadores-proprietários, trabalhadores-gestores, e aprendem rapidamente que fechar uma empresa significa muito mais do que desemprego, pois, com a atitude pró-ativa,
assumem a seguinte postura: não permitem que se rompam redes de comercialização, redes financeiras, redes
de amizade entre trabalhadores, redes de relações entre
trabalhadores e suas instituições representativas, a exemplo da crise que hoje enfrentam os sindicatos e as centrais; questionam o fim do trabalho e recolocam a possibilidade desta atividade continuar sendo eixo estruturador
da socialização das novas gerações; não permitem a paralisação de máquinas; não abandonam tecnologias; não
fecham prédios, deixando-os no total abandono; não rompem processos de administração e de produção, sem que
se coloque nada no lugar; tocam no eixo estruturador da
vida do sujeito – o trabalho, seja ele qualificado ou não,
da produção ou da administração; e passam a viver situação de extrema complexidade, sem fugir dela.
Ao não permitirem o fechamento da empresa, e em
conseqüência a eliminação de postos de trabalho, os trabalhadores mantêm a dignidade da própria pessoa, uma
das condições para serem reconhecidos como cidadãos e
a possibilidade de acesso aos produtos que desejam consumir. Além disso, não abandonam aprendizados importantes, acumulados ao longo de décadas.
Os trabalhadores-gestores das empresas autogestionárias e cogestionárias aprendem que, se as relações e as redes
necessárias para que uma empresa funcione não forem
desativadas, poderão, através de suas ações, fazer surgir
outras formas de relação, de organização, que permitam
enfrentar questões relativas à globalização, às novas tecnologias, às novas formas de organização do trabalho, à
criação de novos postos de trabalho, à qualificação do tra-
MANTENDO A VELHA EMPRESA PARA
CONSTRUIR A NOVA
Tal com já foi dito, inicialmente os trabalhadores das
empresas autogestionárias assumem a posição de não fechamento da empresa num ato desesperado de manutenção de seus postos de trabalho, mas, logo a seguir, enfrentam de maneira concreta a necessidade da manutenção
de todas as redes e relações necessárias para o funcionamento da própria empresa. A experiência tem mostrado
que, se num momento inicial são movidos por interesses
muitas vezes individuais, de amparo do trabalhador, logo
44
EMPRESAS AUTOGESTIONÁRIAS: UMA
balhador, enfim, poderão ser construídas empresas competitivas, sem perder de vista o próprio trabalhador e,
mais ainda, sem perder de vista o avanço do próprio país.
Além disso, o olhar do trabalhador para o mundo e para
as relações globais, a partir da posse e da gestão de uma
empresa, é muito diferente do olhar daquele que não ocupa um lugar no mundo do trabalho, porque “ocupa um
lugar vazio” – o do desemprego. Aquele enfrenta a complexidade e a fragilidade da sociedade atual integrado a
uma estrutura e a um grupo de maneira coletiva, criando,
dessa forma, melhores condições para a assunção de riscos e do enfrentamento das incertezas.
Não paralisar ou reativar, rapidamente, todas as redes
e relações que permitem que uma empresa funcione não
é tarefa fácil para os trabalhadores das empresas autogestionárias e cogestionárias, não tanto pelo seu despreparo,
nem menos pelas exigências do mercado, nem ainda pela
tecnologia atrasada e pela existência de uma forma de
organização taylorista, mas fundamentalmente pela complexidade das questões a serem enfrentadas. Além disso,
as dificuldades tendem a crescer, devido à falta de uma
política industrial, de uma política de financiamento e de
uma legislação específica que levem em conta as particularidades destas empresas.
Assim, tão importante quanto enfrentar questões relativas à reinserção dos desempregados no mercado de trabalho, principalmente através de programas de capacitação e formação que preparem o sujeito para assumir um
novo posto de trabalho, que requer conhecimentos, habilidades e atitudes diferentes daquelas do anterior ou de
como prepará-lo para abrir um novo negócio, é fundamental garantir a sobrevivência das empresas de tal forma que elas sejam espaços privilegiados, a partir da estrutura que têm, para acionar novas formas de organização
do trabalho e de relações com o mercado, para que se tornem competitivas.
Neste último caso, mais do que uma atitude de perplexidade diante da situação que ora se vive, os trabalhadores autogestionários e cogestionários mostram-se capazes de uma atitude pró-ativa, envolvendo iniciativa,
proposição e execução. Enfim, são capazes de uma ação
que garante a continuidade e a sobrevivência da empresa, não simplesmente para fazê-la voltar a ser como era
antes, mas para torná-la algo diferente do que era e é. Ao
fazê-lo, os trabalhadores vêem-se diante da complexidade que é marca da sociedade atual e podem tomar consciência desta situação.
Os trabalhadores-gestores das empresas autogestionárias e cogestionárias vivem processos carregados de
conflitos e, por isso, tensos: por um lado, mesmo tendo desaparecido formalmente a relação patrão x empregado, o salário enquanto imagem que estrutura a
ALTERNATIVA DIANTE DO DESEMPREGO
sociedade salarial não desaparece nas empresas autogestionárias, em função das exigências impostas pelo
mercado que requer um baixo custo final do produto
(e neste, um de seus componentes é o salário), por outro, enquanto proprietário da empresa, o trabalhadorgestor recebe os dividendos advindos do excedente
obtido ao longo de um determinado período; enquanto
gestores, os trabalhadores participam e decidem sobre
as mais diversas questões no interior da empresa, mas,
no âmbito da produção, vivem ainda, neste primeiro
momento, uma organização do trabalho que é verticalizada, mesmo que as relações de poder tenham se tornado mais democráticas; por um lado, enquanto proprietários, precisam pensar na vida da empresa, no
longo prazo e, nessa medida, a questão da competitividade faz-se presente, o que requer do coletivo a decisão de fazer investimentos tanto em novas tecnologias
como em qualificação e formação do trabalhador e, por
outro, enquanto sujeitos isolados, desejam ter mais renda para poder usufrir de maiores direitos.
Assim, a tomada de consciência por parte dos trabalhadores-gestores sobre a importância de manter a empresa não ocorre sem tensões, dada a diversidade de situações opostas vividas pelo mesmo sujeito.
Porém, a decisão de continuarem vivendo estas tensões e
de ousarem assumir riscos é que faz com que os trabalhadores-gestores das empresas autogestionárias e cogestionárias
vivam aquilo que se chama complexidade, fragilidade e os
riscos da sociedade atual. Aqui, sim, coloca-se a importância do sujeito enquanto indivíduo e enquanto coletivo, como
aquele que diante de situações tão distintas é o único capaz
de buscar uma unidade, de tal forma que ele próprio não
desapareça e que seja portador do futuro.
O foco sobre as empresas autogestionárias torna evidente que sem os sujeitos não é possível enfrentar as questões de globalização, terceira revolução industrial, de democratização da sociedade, etc. Porém, também sem a
manutenção da empresa por esses mesmos sujeitos fica
ainda mais difícil enfrentar as novas situações da sociedade atual, complexa e frágil.
A FORMAÇÃO DO TRABALHADOR DA
EMPRESA AUTOGESTIONÁRIA
Diante desse quadro, é fundamental pensar numa proposta de formação dos trabalhadores das empresas autogestionárias, sem ter sobre eles uma visão idílica, pois trazem uma cultura predominantemente individualista,
centrada numa preocupação com o emprego e o salário e
não no trabalho como fonte de criação. Além disso, relacionam-se com um mercado sobre o qual criou-se a imagem de estar separado das questões sociais.
45
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
Entretanto, mesmo com todas essas questões culturais
e aquelas que o mercado impõe, neste momento, nada foi
suficientemente forte a ponto de impedi-los de desencadear suas próprias ações e de assumirem o desafio de gerir a própria fábrica. Aí, pode estar a chave da subversão,
a porta de entrada de um novo tipo de educação, formal e
política, numa sociedade em que a tecnologia, os mecanismos de controle e os sistemas de informação se sofisticam e penetram cada vez mais na vida de cada um de
nós. Esses trabalhadores têm sido capazes de exercitar
aquilo que chamamos de democracia direta, abandonando a perspectiva de “administrar coisas” e caminhando
para uma gestão voltada para o sujeito que age.
Assim, os eixos que norteiam um projeto de educação
formal e política dos trabalhadores das empresas autogestionárias devem estar baseados, em primeiro lugar, numa idéia
básica e central, referente à autogestão: a da “fábrica sem
patrão”. Esta idéia vai muito além da mera questão da modernização ou da inserção dos trabalhadores no paradigma
da automação flexível, pois – mais do que a descentralização da atividade produtiva apoiada na flexibilidade da produção, a realização de tarefas variadas e multiqualificadas
(polivalência), um maior conhecimento e domínio sobre o
conjunto do processo produtivo, uma diminuição da hierarquia na empresa, exigindo um trabalho mais criativo e capaz de tomada de decisão – faz-se necessária uma alteração
da cultura do trabalhador, de tal forma que cada indivíduo
se proponha a construir uma empresa autogerida, sem a existência de uma estrutura piramidal imposta de cima para baixo, por um superior. Tal objetivo não significa a instalação
do caos e diz respeito muito mais a uma rede de relações
baseada no desejo de cada um de fazer da fábrica um produto da discussão, das decisões e do controle, da parte de cada
um de seus membros. Ou seja, trabalhadores capazes de expressar autodisciplina e cooperação voluntária.
Em segundo lugar, é preciso não perder de vista o objetivo de empresa viável financeira e economicamente,
que, por estar inserida num mercado globalizado, assume
hoje determinadas características. Em função desta idéia,
os trabalhadores colocam um “chão” e um “tempo” para
o objetivo primeiro, pois concretizar a idéia da “fábrica
autogestionária”, enquanto unidade coletiva, só poderá
ocorrer através de uma determinada forma de agir, vivendo
“num lugar o seu tempo”.
Esta perspectiva remete para uma qualificação para o
trabalho, sem perder de vista as diferenças existentes entre as empresas e dentro de cada uma delas, de tal forma
que faça uso das novas tecnologias e das novas formas de
organização do trabalho, com vistas ao “lucro” e à destinação social/coletiva do mesmo.
Finalmente, os dois eixos anteriores, o da “fábrica sem
patrão” e o de empresa rentável inserida num mercado
globalizado, requerem uma nova postura da parte dos trabalhadores em que “pensar e fazer” não estejam dissociados, bem como uma disposição permanente para o
enfrentamento de situações complexas e em constante
mudança, seja no âmbito da própria fábrica, pela adoção
de novas formas de produção e de organização do trabalho, seja no âmbito de um mercado extremamente ágil que
introduz novos desafios a cada momento.
Portanto, pensar e definir uma política de manutenção
das empresas e do emprego implica, também, pensar e
definir uma política de formação e capacitação dos trabalhadores, não para que eles se capacitem para enfrentar
uma situação de desemprego, mas para que possam conduzir de forma viável a empresa pela qual se responsabilizaram.
CONCLUSÃO
Toda a ousadia e a capacidade de ação dos trabalhadores das empresas autogestionárias e cogestionárias precisam e devem ser potencializadas. Para isso necessitam
ganhar visibilidade que traga à tona, mais do que a inovação, a capacidade dos sujeitos de se expressarem, de se
fazerem ouvir, de agirem, de serem portadores do futuro.
Os trabalhadores autogestionários, ao lado de outros
atores que lutam por uma sociedade mais democrática,
mostram-se também responsáveis pela recuperação do
sentido do social no mundo do trabalho, mais especificamente no interior da própria empresa. Expressam o direito de sonhar, de agir, de criar, de aprender, de conviver
com as diferenças, com o mercado, sem fazer de seu trabalho e de suas vidas objetos de troca, de puro consumo.
Além disso, indicam a necessidade urgente de que agentes do Estado e diferentes atores da sociedade civil definam políticas sociais que levem em conta a alternativa
que está sendo gestada: através da manutenção da empresa
e dos postos de trabalho criar novas saídas de trabalho e
renda, bem como novas formas de gestão.
NOTA
1. No que se refere ao processo de desindustrialização, há controvérsias quanto
ao caso brasileiro. Entretanto, não pretendemos discutir esta questão específica
neste artigo. Assim, quando utilizarmos a palavra desindustrialização, o faremos com o sentido único de nomear uma situação em que inúmeras empresas
estão sendo fechadas em nosso país, bem como milhares de postos de trabalho
estão sendo desativados.
46
POLÍTICAS PÚBLICAS DE EMPREGO: TENDÊNCIAS E POSSIBILIDADES
POLÍTICAS PÚBLICAS DE EMPREGO
tendências e possibilidades
BEATRIZ AZEREDO
Economista, Professora da UFRJ e Superintendente da Área de Desenvolvimento Regional e Social do BNDES
H
á algo de novo no reino da política social. Para o
bem ou para o mal, já não se pode olhá-la como
um simples desdobramento da trajetória percorrida desde o final da II Guerra Mundial. E, mesmo que
não se possa falar de transformações radicais nos sistemas de proteção, a não ser em um ou outro caso pontual,
há que se reconhecer que o tom do discurso e o conteúdo
das proposições mudaram.
As causas dessa mudança radicam, em última instância, nas próprias modificações ocorridas na economia
mundial desde o final dos anos 70. A reviravolta das políticas monetária e cambial dos Estados Unidos, na época, arrastou a economia americana, e atrás dela a economia mundial, a uma recessão sem precedentes desde os
anos 30. Contraditoriamente, no entanto, este processo
forçou os principais competidores daquele país a promover bem-sucedidos processos de reestruturação industrial,
o que levou, a partir de meados da década de 80, quando
a economia americana retomou o crescimento, à aceleração da globalização financeira e à mudança do paradigma
tecnológico.
Tais processos, porém, diferentemente do que ocorrera no ciclo expansivo do pós-guerra, fizeram-se acompanhar de um aumento, em escala planetária, da concentração da renda e da riqueza – e, portanto, da exclusão social
– e colocaram no centro das preocupações dos governos
a questão do emprego – ou melhor, de sua contraface, o
desemprego. Parecia ter chegado ao fim o ciclo de prosperidade iniciado ao final da II Grande Guerra.
Em face dos problemas de natureza fiscal e financeira
com que se defrontaram os setores públicos dos diversos
países, o discurso neoconservador e neoliberal, urbe et
orbi, rapidamente identificou nos sistemas de proteção
social um de seus alvos preferidos, na ânsia de reduzir
despesas e restabelecer o equilíbrio das contas públicas.
A resistência à tentativa de desmonte desses sistemas e o
esforço para encontrar caminhos que permitissem o
enfrentamento das questões sociais, tornadas mais dramáticas, está na origem do que se convencionou chamar
de “políticas sociais de última geração”.
Tais políticas, vistas em conjunto, não chegam a caracterizar um sistema definido, ao contrário do welfare state, que
configurou uma variedade de mecanismos e instrumentos
de proteção social – ainda em prática na maioria dos países
– com traços específicos comuns. A expressão é encontrada
em autores das mais variadas procedências teóricas e
corresponde às mais diversas experiências que vêm sendo
tentadas nos últimos anos. Em alguns casos, destaca-se seu
lado perverso: um absoluto conformismo com a predominância do pensamento neoliberal e uma total leniência com
a “inevitabilidade” e a “irreversibilidade” da submissão da
vida social às leis do mercado; aqui, o que importa é a redução do gasto e sua focalização nos grupos mais pobres e
vulneráveis, com o abandono do caráter universal dos programas sociais até então vigentes.
Em outros casos, no entanto, surgem alguns aspectos
positivos na busca de novas formas de encaminhamento
da questão social. Tais aspectos fazem-se presentes não
só nas tentativas de preservar o caráter universal dos programas tradicionais e de desenvolver sua natureza solidária, como também nos esforços para acrescentar novos
elementos ligados à descentralização na prestação dos
serviços, à ampliação da participação da sociedade e à
procura de novas formas de articulação entre o setor público e o setor privado (Draibe, 1996:12-15 e Dain,
1988:XII).
De qualquer forma, a mudança no tom do discurso e as
novas proposições de reforma da política social, num qua-
47
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
dro macroeconômico de instabilidade do crescimento econômico e de persistência de desajustes fiscais e financeiros,
vêm colocando os sistemas de proteção concretizados na idéia
de welfare state em tela de juízo, e é neste sentido – vale a
pena repetir –, talvez mais do que em um movimento de
desmonte efetivo dos sistemas existentes –, que se pode falar em crise do welfare.
Na verdade, este conjunto de fatores – que parte da
natureza do discurso, passa pela experimentação de novas formas de política social e se completa com algumas
indicações de alteração nos sistemas de proteção social –
talvez esteja a indicar uma mudança mais profunda, que,
tanto no terreno das idéias quanto no da organização social, é a marca deste final de século: a perda da centralidade do trabalho. Este, seja como categoria analítica explicativa dos processos sociais, seja como elemento
nuclear da organização do processo produtivo, seja como
base da cidadania, vem sendo substituído pelo mercado,
a cujas leis férreas todos devem-se submeter.
Este fenômeno que, no plano abstrato, foi apenas tocado até agora, assume, no plano concreto, em particular
no que tange à reestruturação produtiva das empresas –
com a adoção dos processos de automação flexível, introdução de inovações nos padrões de gestão e de organização empresarial, busca de novas formas de concorrência e de estratégias de competitividade –, a forma de uma
brutal economia de trabalho. As seqüelas desse movimento
são conhecidas: substituição de empregos qualificados na
indústria por empregos menos exigentes em qualificação,
e por isso pior remunerados, nos serviços; trabalho em
tempo parcial e trabalho temporário; precarização dos
empregos, de forma geral; aumento da informalização no
mercado de trabalho; subemprego; e desemprego estrutural.
Por isso, não há como estranhar que a questão do emprego tenha-se tornado hoje um problema de dimensão e
características inteiramente novas para qualquer país, independente do seu grau de desenvolvimento. Nem que os
próprios sistemas de seguridade social tenham passado a
ocupar lugar central no debate entre estudiosos e gestores
de políticas públicas. Tais sistemas, que se consolidaram
no II Pós-Guerra, nos países desenvolvidos, eram parte
integrante de um contexto de prosperidade econômica sem
igual, marcado pela redução da miséria e da desigualdade social, em um período que ficou conhecido como os
“trinta anos gloriosos”.
Com a persistência e o aprofundamento da crise, principalmente a partir do segundo choque do petróleo em
1979, muitas das condições que sustentaram a expansão
dos sistemas de seguridade social deixaram de existir. Ao
mesmo tempo, dado que a evolução destes sistemas e a
consagração dos direitos a eles associados já haviam re-
sultado em um elevado comprometimento da receita pública com a produção de serviços e bens ligados à política social – principalmente os benefícios previdenciários,
o seguro-desemprego e a saúde pública – não havia como
evitar, em um momento de crise, o aumento de gastos
decorrente da demanda crescente por esses bens e serviços. Esse fato veio a alimentar os questionamentos acerca destes mecanismos. Em outras palavras, com as pressões resultantes dos desequilíbrios macroeconômicos, o
welfare state passou a ser visto como parte – e parte importante – do problema e dos debates em torno do seu
equacionamento.1
Mas, se os sistemas de proteção social foram colocados como parte das dificuldades enfrentadas pelos países
desenvolvidos, mostraram-se igualmente parte das soluções, ou pelo menos, das tentativas de equacionamento
dos problemas. Antes de mais nada, simplesmente porque não foram desmontados, o que lhes permitiu atuar
como estabilizadores automáticos nos tempos mais duros
da recessão. E também, como o demonstra a experiência
dos países desenvolvidos, porque diferentes estratégias
foram experimentadas ao longo da década de 80 no âmbito dos welfare states, algumas delas com impactos bastante significativos.
Esping-Andersen (1995:85) identifica três grandes grupos de países, de acordo com as diferentes respostas dadas, desde o início da década de 70, no âmbito dos sistemas de proteção social, às transformações econômicas e
sociais. No primeiro, estão os países escandinavos, que
adotaram a linha de expansão do emprego no setor público, induzida pelo próprio welfare state, como estratégia
de manutenção do pleno emprego. Os sistemas de proteção social destes países, que ao final da década de 60 tinham-se consolidado com uma cobertura universal e variada gama de benefícios destinados à preservação da
renda real, passam, nas duas décadas seguintes, a apresentar mudanças significativas, com o desenvolvimento
de políticas ativas voltadas para o mercado de trabalho,
expansão dos serviços sociais e promoção da igualdade
de gênero. Foi a partir destas mudanças que “passou a
existir um modelo propriamente nórdico, e particularmente
sueco”. E, se estes novos eixos de atuação “baseavam-se
nos princípios clássicos do welfare state social-democrata: a harmonização de ideais igualitários, crescimento e
pleno emprego; a otimização do emprego e minimização
da dependência em relação a políticas de bem-estar (...)
foram motivados também pelos crescentes problemas de
emprego” (Esping-Andersen, 1995:85).
Esta estratégia de crescimento do emprego no setor
público, particularmente direcionado aos serviços sociais,
gerou resultados extremamente positivos, com a harmonização entre a vida profissional e a família, proporcionada
48
POLÍTICAS PÚBLICAS DE EMPREGO: TENDÊNCIAS E POSSIBILIDADES
às mulheres através dos empregos públicos em meio
período, a redução das diferenças salariais em relação aos
homens, a predominância de famílias com dois assalariados e uma reduzida incidência de pobreza em famílias
chefiadas por mulheres. 2 Além disso, uma grande
proporção da população inserida no mercado de trabalho
assegura níveis elevados de arrecadação, ao mesmo tempo
em que garante taxas reduzidas de dependência em relação
a esquemas de transferências de renda.
A outra face deste processo, no entanto, tem sido a
segregação por gênero, com a concentração das mulheres em empregos de meio período no setor público, em
geral de baixa qualificação e com alto grau de absenteísmo.
É ainda Esping-Andersen, no mesmo texto, que nos mostra que, se, por um lado, existe preferência das mulheres
pelos empregos mais flexíveis oferecidos pelo setor público, por outro, as elevadas taxas de absenteísmo têm
resultado em preferência do setor privado por mão-deobra masculina.
Além do emprego público, que tem absorvido grande
parte da força de trabalho feminina e atendido também
jovens desempregados, através da política de “garantia de
emprego”, os países escandinavos vêm adotando outras
políticas ativas voltadas para o mercado de trabalho, incluídos oferta de treinamento, subsídios para contratação
no setor privado e auxílio para os que se estabelecem por
conta própria. Observa-se ainda “um deslocamento mais
geral de prioridades em favor de jovens e adultos – grupos que, sob as condições tradicionais do pleno emprego,
eram tidos como aqueles que requeriam intervenções apenas marginais do welfare state”. Ou seja, estaria ocorrendo o “surgimento de uma nova definição política social, a
partir do reconhecimento de que a família e o emprego
contemporâneos apresentam novos riscos e necessidades
durante toda a fase ativa da vida adulta” (Esping-Andersen,
1995:89). Os programas de reciclagem para adultos e de
“aprendizagem por toda a vida”, os incentivos à mobilidade geográfica e de emprego e, ainda, a proteção de novos tipos de famílias, como aquelas com um só responsável, são alguns dos exemplos associados a esta nova
tendência.
A sustentação a longo prazo desta estratégia é limitada,
em primeiro lugar, pelo crescente esforço fiscal requerido
para a restauração e a manutenção do pleno emprego e
para a preservação da renda real da população. Ademais,
a elevação das taxas de desemprego na Suécia parece estar
desgastando a credibilidade básica do antes celebrado
modelo social-democrata e, particularmente, do seu estilo
militante de “investimento social” (Esping-Andersen,
1995:89). Esping-Andersen aponta também, como forte
fator restritivo, “um conflito entre o princípio igualitário
e universalista e a crescente heterogeneidade da estrutura
populacional” (Esping-Andersen, 1995:89). Ou seja, as
dificuldades fiscais para elevação e diferenciação dos
benefícios e serviços poderiam provocar a saída da
população situada em faixas de renda mais elevada dos
esquemas de welfare state, afetando as bases de financiamento sobre as quais se assentam estes sistemas.3
O segundo grupo de países, na tipologia apresentada
por Esping-Andersen, reúne aqueles que adotaram, nos
anos 80, a chamada “rota neoliberal”, com uma estratégia deliberada de desregulamentação orientada para o
mercado, “combinada a um certo grau de erosão do welfare
state” (Esping-Andersen, 1995:90). Estão incluídos neste conjunto os Estados Unidos, a Grã-Bretanha e a Nova
Zelândia. 4 Nestes países, a chamada flexibilização do
mercado de trabalho e dos salários, a partir da redução
dos encargos sociais e dos impostos e da depreciação do
salário mínimo legal ou de fato, foi a estratégia básica
para o enfrentamento do baixo dinamismo da economia,
em particular do mercado de trabalho. No que se refere
aos sistemas de proteção social, a estratégia liberal não
resultou na sua desestruturação, tendo provocado, principalmente, mudanças em direção a uma maior focalização
de clientelas e “uma incapacidade de aprimorar os benefícios e a cobertura de forma compatível às mudanças econômicas” (Esping-Andersen, 1995:90).
O exemplo típico da estratégia neoliberal é dado pelos
Estados Unidos, onde “permitiu-se que a já bastante fraca rede de seguridade social (...) se enfraquecesse ainda
mais, com exceção das pensões” (Esping-Andersen,
1995:91). Os dados apontam uma queda significativa do
salário mínimo e do valor dos benefícios de assistência
social, bem como uma redução do contingente de desempregados recebendo benefícios. Além disso, a proteção
oferecida pelos esquemas complementares das empresas
– em que tradicionalmente se apóia o welfare state americano – também se reduziu, em função dos cortes nos
encargos trabalhistas e na cobertura precária oferecida nos
empregos de baixa qualidade, que, ademais, proliferaram
no período, em contraposição à destruição de postos nas
indústrias, com sistemas de bem-estar social desenvolvidos. Um balanço dos anos 80 neste país revela “um
declínio contínuo da parcela de trabalhadores cobertos pela
previdência e pelos planos de saúde ocupacionais”, sendo que este movimento “foi particularmente drástico entre os trabalhadores jovens e de baixa renda” (EspingAndersen, 1995:91).
A experiência da Inglaterra mostra-nos um movimento
de grandes transformações, com as reformas, na década
de 80, inspiradas em uma estratégia neoliberal. As
mudanças nos critérios de concessão dos benefícios,
quebrando o conceito de direito igual e generalizado,
geraram reações violentas em face da tradição universalista
49
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
que sempre caracterizou a seguridade social inglesa.5 Tem
sido apontada também a baixíssima proteção aos desempregados, que resulta de uma maior restrição na concessão
de benefícios em um quadro de crescente desemprego
entre jovens.6
A despeito das diferenças em termos de sistemas de
proteção social e das condições do mercado de trabalho
nos países que adotaram a chamada estratégia liberal,
transparecem, como resultado comum a todos, o aprofundamento da desigualdade e o crescimento da pobreza.7 As políticas de flexibilização dos salários e encargos
trabalhistas, ainda que tenham sido acompanhadas de uma
expansão do emprego bastante superior aos demais países da OCDE, levaram a um aumento da heterogeneidade
do mercado de trabalho, que passou a abrigar grande número de trabalhadores com empregos de baixa qualidade
e salários reduzidos. No caso dos Estados Unidos, o outro lado das taxas de desemprego relativamente baixas tem
sido um grande número de empregos que pagam salários
abaixo da linha de pobreza.
A contrapartida do aumento dos níveis de pobreza da
população tem sido a demanda crescente por programas
sociais de transferência de renda, o que poderia estar
gerando, segundo alguns autores, um desincentivo ao
trabalho e levando ao que se convencionou chamar de
“armadilha da pobreza”. Os trabalhadores de baixa
qualificação, baixos salários e protegidos pelos esquemas
assistenciais são os que apresentam menores possibilidades
de romper com sua situação. Em face dos obstáculos
interpostos à sua mobilidade no mercado de trabalho,
decorrentes mesmo de sua baixa qualificação, tornam-se
prisioneiros dos benefícios assistenciais, que funcionariam
como uma espécie de desincentivo à busca de novos
empregos. É nisso que consiste a “armadilha”.
Os países da Comunidade Européia compõem o terceiro grupo de países na tipologia aqui apresentada. Conforme salienta Esping-Andersen (1995), “estes países são
exemplos típicos do problema dos ‘incluídos’ e ‘excluídos’”. Ou seja, o mercado de trabalho é caracterizado pela
rigidez das relações trabalhistas, com elevados custos de
contratação da mão-de-obra, associados a amplos benefícios e altos salários. O problema decorre do fato de que,
ao lado da população protegida, na qual predominam trabalhadores do sexo masculino, cresce o número de desempregados, particularmente entre jovens, mulheres e
homens mais velhos.
Os sistemas de proteção social destes países são caracterizados pela ênfase na previdência social, em especial nas aposentadorias, cujos critérios de concessão estão diretamente atrelados ao emprego e às contribuições
individuais. O fato de que o “welfare state na Europa
continental ... é essencialmente um Estado de transferên-
cias, ou de preservação da renda real familiar” (EspingAndersen, 1995:95), explica em grande medida a utilização das aposentadorias precoces, como instrumento de política voltada para a redução da oferta de trabalho. Para
Vianna (1993:16), “nos países europeus predominou,
durante a década de 80, a tendência a privilegiar o desafogo do mercado de trabalho mediante providências visando diminuir a idade para aposentadorias, estabelecer
as pré-aposentadorias e estender as pensões por incapacidade. Os conceitos de incapacidade e invalidez foram
ampliados em alguns países introduzindo-se a idéia de
reconhecimento legal da ‘incapacidade’ financeira e econômica para obter ganhos suficientes e suprir as próprias
necessidades”.
A limitação desta estratégia estava colocada pelas próprias condições que lhe deram origem: uma base de arrecadação limitada pelas profundas transformações no mercado de trabalho, ao lado de exigências fiscais crescentes
sobre o sistema de transferências. Os desequilíbrios financeiros da seguridade social daí decorrentes foram enfrentados com o chamado esforço contributivo, que foi
realizado através de estratégias variadas segundo os diferentes países, contemplando aumento de contribuições
(dos contribuintes em geral, dos empregadores e dos segurados),8 ampliação da base contributiva, via elevação
do teto salarial sujeito à contribuição, e diversificação das
fontes de recursos, “mediante a criação de taxas específicas e o alargamento da relação contributiva – apelandose aos não-segurados e instituindo-se contribuições de
solidariedade ou impostos especiais sobre os rendimentos dos contribuintes” (Vianna, 1993:18).9
Um efeito direto desta estratégia, portanto, em termos de mercado de trabalho, tem sido o aumento do
custo do trabalho e o incentivo aos instrumentos informais de contratação da mão-de-obra, bem como a proliferação do trabalho autônomo. Ainda que não chegue
a existir uma dualização aguda do mercado de trabalho, como no caso dos Estados Unidos, as mudanças
nas formas de ocupação da mão-de-obra têm sido crescentes nestes países, provocando um aumento da exclusão. Ou seja, aprofunda-se a distância entre os “incluídos” no mercado de trabalho – que possuem salários
e direitos sociais garantidos – e os “excluídos”, que
constituem um número crescente de trabalhadores com
relações precárias de emprego e dependentes das transferências do welfare state.
Segundo Esping-Andersen, o aprofundamento desta
dicotomia gera, indiretamente, uma tendência à elevação
da rigidez do mercado de trabalho. Ou seja, o fato de que
a família média dependa dos ganhos e dos benefícios adquiridos pelo provedor masculino, implica que “o trabalhador típico não pode correr quaisquer riscos ou inter-
50
POLÍTICAS PÚBLICAS DE EMPREGO: TENDÊNCIAS E POSSIBILIDADES
rupções durante sua carreira ativa”. Assim, “é ... natural
que os sindicatos defendam tanto quanto possível os direitos adquiridos dos ‘incluídos’, o que significa salvaguardar os empregos dos trabalhadores adultos do sexo
masculino, apesar de tal estratégia tornar ainda mais difícil que esposas, filhos e filhas encontrem empregos”
(Esping-Andersen, 1995:96).
A tipologia construída por Esping-Andersen, em seu
balanço das experiências recentes de política social, indica claramente que, a despeito do questionamento, às
vezes radical, e mesmo das reformas ocorridas em vários
países, o velho welfare state não foi – ou, pelo menos,
ainda não foi – desmontado. O que houve, de fato, foi um
redirecionamento dos sistemas para uma maior focalização, para a busca de políticas específicas voltadas ao
enfrentamento do problema do desemprego, para a tentativa de estabelecer novas formas de implementação das
políticas sociais e – por que não dizer? – para um aumento do papel regulador do Estado.
Isto se reflete no comportamento do gasto social, que
se apresenta estável nestes países, registrando-se apenas
mudanças na sua composição, como reflexo das diferentes estratégias. Não há dúvidas, no entanto, de que a tendência anterior de crescimento do gasto, associada ao
período de montagem dos sistemas no II Pós-Guerra e
mesmo de respostas à crise no início dos anos 70, encerrara-se. De fato, desde a metade dessa década registra-se,
principalmente na Europa, uma redução do ritmo de crescimento dos gastos sociais, redução essa que se acelera
ainda mais durante a década de 80, num contexto de adoção de políticas fiscais e monetárias rígidas.10
Não é apenas quanto a esse ponto que não há dúvidas.
Também em relação aos limites das estratégias adotadas
– seja pelos impactos fiscais delas decorrentes (como no
caso dos países escandinavos e da Europa), seja pelo aumento da pobreza e da desigualdade (como nos países de
rota liberal), seja pelos problemas advindos de um mercado formal restrito, com uma enorme massa de excluídos, sem emprego (como no caso europeu, mais uma vez)
– parece não haver dúvidas.
Nesse contexto, não há como discordar de EspingAndersen, quando afirma: “Há um trade-off aparentemente
universal entre igualdade e pleno emprego. Pode ser que
as raízes desses dilemas repousem principalmente na nova
ordem mundial, mas nosso estudo identificou causas nacionais significativamente distintas. No interior do grupo
de welfare states avançados, apenas alguns poucos deram
passos radicais de recuo ou desregulamentação do sistema existente. Todos, entretanto, foram obrigados a cortar
benefícios ou introduzir medidas de flexibilização. Como
vimos, aqueles que seguem uma estratégia mais radical
de liberalização são mais bem-sucedidos em termos de
emprego, mas pagam um alto preço em desigualdade e
pobreza. De modo contrário, aqueles que resistem à mudança pagam o preço do desemprego alto – a Europa Continental em particular” (Esping-Andersen, 1995:104-105).
De qualquer forma, o que se pode dizer é que as diferentes estratégias adotadas pelos países demonstram a
importância assumida pela questão do emprego como núcleo central da política social da atualidade. As profundas mudanças no mundo do trabalho – com o baixo dinamismo e as novas formas de ocupação da mão-de-obra –
representam um componente importante da crise que os
países vêm enfrentando. Já a experiência dos países desenvolvidos mostra como o Estado tem desempenhado um
papel estratégico na busca de mecanismos compensatórios e, principalmente, na construção de instrumentos para
o equacionamento do problema. O resultado é que hoje,
guardadas as diferenças de ênfase, de acordo com as estratégias adotadas, e a despeito dos discursos liberalizantes
em defesa da redução do papel do Estado, todos estes
países apresentam gastos públicos significativos com o
que se convencionou chamar de “políticas públicas de
emprego”.
Essas políticas, dado o conteúdo específico dos instrumentos que mobilizam, compreendem medidas de
natureza passiva e medidas de natureza ativa. A distinção
entre um grupo e outro é que as políticas passivas “consideram o nível de emprego (ou desemprego) como dado”,
sendo seu objetivo “assistir financeiramente ao trabalhador desempregado ou reduzir o ‘excesso de oferta de trabalho’” (Azeredo e Ramos, 1995:94), enquanto as políticas ativas, de modo geral, buscam atuar diretamente sobre
a oferta ou demanda de trabalho.
Conforme salientam Azeredo e Ramos, “a partir da crise
dos anos 70, os governos de todos os países centrais (independente de seus discursos ideológicos) utilizaram toda
ou parte dessa parafernália de medidas (...) Os sistemas
públicos de emprego, que floresceram em quase todos os
países nesse período, combinaram certas medidas de política tipicamente passivas ... com instrumentos ativos”
(Azeredo e Ramos, 1995:95).
As políticas passivas compreendem mecanismos de
natureza compensatória, como o clássico instrumento do
seguro-desemprego e os programas assistenciais voltados
para atender aqueles que não têm acesso ao seguro. Também são consideradas políticas passivas os instrumentos
destinados à redução da oferta de trabalho, através da
transferência ao sistema de aposentadoria dos desempregados acima de determinada idade e com dificuldades de
reinserção no mercado de trabalho, da manutenção dos
jovens no sistema escolar, da redução da jornada de trabalho, ou mesmo do fomento à migração (Azevedo e
Ramos, 1995 e Ramos, 1997).
51
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
Já os programas de formação e reciclagem profissional, os serviços de intermediação de mão-de-obra e as
políticas que viabilizam a mobilidade geográfica da força de trabalho, por exemplo, são medidas que atuam pelo
lado da oferta de trabalho – e por isso incluem-se entre as
políticas ativas. Medidas que têm por objetivo causar
impacto sobre a demanda de trabalho, por sua vez, estariam relacionadas com a criação direta de empregos pelo
setor público, subsídios à contratação, oferta de crédito
para pequena e microempresas, incentivo ao trabalho autônomo, entre outras, e também integrariam, por isso, o
elenco de medidas ativas (Azevedo e Ramos, 1995 e Ramos, 1997).
O mais antigo destes instrumentos é, sem dúvida, o
seguro-desemprego – um instrumento de política passiva, portanto –, que se consolidou no interior dos Estados
de Bem-Estar constituídos no II Pós-Guerra. Este benefício foi organizado em meio a uma situação de prosperidade econômica, em que o desemprego era considerado
uma situação de desajuste temporário ou friccional. Em
outras palavras, é sobre o pressuposto do pleno emprego
que são organizados os esquemas de seguro-desemprego. Isto, por si só, já dá idéia do escopo destes programas, concebidos como mecanismos compensatórios de
proteção financeira transitória aos trabalhadores.
Com os primeiros sinais de perda de dinamismo das
economias centrais, no início da década de 70, os esquemas de seguro-desemprego começaram a ser crescentemente demandados, o que produziu uma elevação
significativa dos gastos globais com seguro nestes países. As estatísticas para países selecionados da OCDE
mostram que a média (não ponderada) de gastos com seguro como proporção do PNB passou de 0,41%, em 1970,
para 1,27%, em 1980.
Estes dados evidenciam o significativo crescimento das
despesas com seguro-desemprego na década de 70, quando
predominava – ao menos no Ocidente – a percepção de
que a crise econômica representaria uma situação passageira. Não é à toa que o principal fator explicativo do crescimento da despesa, segundo estudos da própria OCDE,
foram as mudanças nos critérios de cálculo dos benefícios, que resultaram em aumentos nos valores dos benefícios (Azeredo e Chahad, 1995:16).
O prolongamento da crise, a persistência do baixo dinamismo do mercado de trabalho (mesmo quando as economias começaram a apresentar sinais de recuperação) e
as mudanças profundas nele ocorridas (com a multiplicação de formas atípicas de emprego) trouxeram novos desafios para os mecanismos de proteção social dos
trabalhadores desempregados. Do ponto de vista do financiamento, em primeiro lugar, registra-se uma crescente
fragilidade financeira do seguro-desemprego, decorrente
da pressão incessante dos gastos e da queda na arrecadação, em face da redução do nível de emprego. É neste
momento que estes programas tornam-se um componente essencial no quadro de desequilíbrio fiscal dos sistemas de seguridade social. Além disso, no intenso debate
em torno do welfare state, ao longo dos anos 80, recaíram sobre o seguro-desemprego duras críticas acerca de
seus potenciais efeitos na geração de desincentivos ao trabalho.11
A estratégia de atender aos desempregados basicamente
através do seguro-desemprego, por outro lado, mostrouse insuficiente, não apenas pelo esforço fiscal demandado para a manutenção do benefício por período prolongado, mas também pelo descompasso entre as regras
básicas de acesso ao seguro – exigência de vinculação
anterior por determinado período – e as mudanças profundas ocorridas no mercado de trabalho. Em outras palavras, a persistência da crise no mercado de trabalho,
marcada pela emergência de fenômenos novos, como
desemprego de longa duração, desempregados localizados no mercado informal e jovens que não chegam a conseguir o primeiro emprego, coloca em cheque um mecanismo pensado para oferecer proteção financeira
temporária ao trabalhador, dentro de uma perspectiva de
seguro.
A evidência destas limitações e as pesadas críticas ao
seguro-desemprego não induziram, no entanto, à desestruturação destes programas, mas sim à adoção de uma
estratégia mais ampla, incorporando mudanças nos critérios do seguro-desemprego, criação de programas de caráter assistencial e desenvolvimento de políticas ativas voltadas para o mercado de trabalho.
Quanto aos critérios de acesso ao seguro-desemprego,
as mudanças promovidas, ao longo da década de 80, foram em direção a uma maior cobertura, bem como a uma
ampliação do tempo de manutenção do benefício, buscando
prolongar a proteção oferecida, em face das dificuldades
crescentes de reinserção no mercado de trabalho. Observa-se, ainda, como tendência geral, a definição de critérios diferenciados em função de clientelas específicas e
mais vulneráveis ao desemprego. Assim, além de levar em
conta a renda anterior do trabalhador, para efeito de cálculo do valor do benefício, outros fatores passaram a ser
considerados, como o número de dependentes, a idade do
segurado e as perspectivas de reemprego, de acordo com
as qualificações do trabalhador e as condições do setor produtivo ao qual ele estava vinculado anteriormente. A incorporação destas variáveis passou a influenciar também
o tempo de manutenção do benefício.
A adoção do critério de idade busca atender aquelas
situações em que o chamado desemprego de exclusão é
mais agudo; ou seja, em que há um enorme contingente
52
POLÍTICAS PÚBLICAS DE EMPREGO: TENDÊNCIAS E POSSIBILIDADES
de trabalhadores mais maduros – e muitas vezes com uma
determinada especialização – que são expulsos do mercado de trabalho. Além disso, muito países industrializados foram obrigados a mudar os critérios de elegibilidade ao seguro, visando enfrentar o chamado desemprego
de inserção, que atinge os jovens recém-formados. Assim, aqueles que têm dificuldade de obter o primeiro
emprego, ainda que não tenham experiência prévia no
mercado de trabalho e, portanto, não se enquadrem no
sistema contributivo, passam a ter direito ao seguro. Com
esta medida, tem-se buscado facilitar a transição da escola para o trabalho, notadamente em períodos recessivos.
Importante observar que os países, de modo geral, ainda
que tenham elevado a cobertura do seguro, bem como seus
valores e o tempo de manutenção, mantiveram o critério
básico de inserção anterior no mercado de trabalho ou de
tempo de contribuição. Ou seja, foi preservado o caráter
de seguro, na medida em que o acesso é limitado a trabalhadores que contribuíram anteriormente ao sistema. Além
disso, o tempo de contribuição anterior influencia o período de manutenção.
A exceção fica por conta do chamado desemprego de
inserção, que, dada a dimensão alcançada em alguns países, fez com que se introduzissem mudanças neste critério básico de elegibilidade ao seguro, de modo a incorporar os estudantes recém-formados. Esta medida, já
referida anteriormente, foi adotada com objetivo de facilitar a transição da escola para o trabalho, notadamente
em períodos recessivos.
Outro requerimento básico para que o trabalhador receba o seguro-desemprego é a obrigatoriedade de estar
inscrito nos serviços ou agências de emprego. A vinculação a estes serviços, durante todo o período de manutenção do seguro, é necessária para garantir que o
trabalhador esteja sendo informado das oportunidades de
emprego existentes, adequadas à sua qualificação profissional.12 A recusa por parte do trabalhador ao emprego
oferecido implica a suspensão, temporária ou permanente, do pagamento do benefício, na medida em que, a partir daí, o trabalhador deixa de estar involuntariamente
desempregado. Em função dessa regra básica adotada na
maioria dos países, os programas de seguro-desemprego
são tradicionalmente integrados a sistemas públicos de
emprego.
As características básicas do seguro-desemprego aqui
apresentadas evidenciam que, apesar das críticas e do
movimento de reformas nos welfare states ocorridos na
década de 80, estes programas permaneceram como um
instrumento importante de proteção ao trabalhador.13 Isto
fica patente também quando se considera o comportamento do gasto com este benefício, que continuou a apresentar uma tendência ao crescimento na década de 80, em
inúmeros países, ainda que tenha ocorrido uma desaceleração das taxas de incremento.
Apesar deste mecanismo continuar a desempenhar um
papel decisivo nos sistemas de proteção social, as profundas mudanças no mundo do trabalho têm colocado
novos e permanentes desafios para os governos. O desemprego de longa duração e as novas relações no mercado
de trabalho – onde, ao lado do trabalho assalariado, cujo
peso é cadente, abrem-se espaços para novas formas de
ocupação – obriga os países a optar por estratégias mais
amplas, alargando o campo dos instrumentos passivos e,
principalmente, adotando novas e múltiplas medidas e
programas no campo das políticas ativas de mercado de
trabalho.
Ainda no campo das políticas passivas, além do estímulo à antecipação de aposentadorias (largamente utilizado na Europa, conforme assinalado anteriormente), os
países vêm implementando programas de caráter emergencial e assistencial para os desempregados, que atuam
de forma complementar ao seguro-desemprego.14 Os Estados Unidos, por exemplo, adotaram o Emergency
Unemployement Compensation Act em 1991, com o objetivo de conceder semanas adicionais de benefícios aos
trabalhadores que tiverem completado o seu período de
permanência no seguro.
Já os países da OCDE apresentam, de modo geral, um
sistema de proteção ao desempregado que contempla um
regime contributivo de seguro associado a um esquema
assistencial. Mas, enquanto o seguro-desemprego é
financiado através de contribuições de trabalhadores e
empregadores sobre os salários, cabendo ao Estado o
custeio das despesas administrativas e a cobertura de
eventuais déficits,15 os benefícios assistenciais são custeados com recursos públicos e dirigem-se àqueles que
não cumprem os requisitos de acesso ao seguro, ou os que
já esgotaram o tempo de manutenção do seguro e ainda
não foram reintegrados no mercado de trabalho. Estes
programas, muitas vezes, são baseados nos chamados
“testes de meios”, pelos quais se procura comprovar se
as condições de vida do trabalhador estão abaixo de
determinado limite. 16 Há países, ainda, que, além da
utilização dos testes de meios, direcionam os benefícios
para clientelas específicas, como é o caso do Programa
de Solidariedade francês, destinado a jovens à procura de
emprego, mulheres solteiras com mais de um filho,
divorciadas ou viúvas recentes, veteranos das Forças
Armadas recentemente reformados, prisioneiros, aprendizes, além de desempregados de longa duração que já
utilizaram o seguro-desemprego.
A expansão dos esquemas assistenciais de ajuda à população expulsa do mercado de trabalho fica patente no
número crescente de desempregados beneficiados por
53
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
estes programas, em comparação com o seguro-desemprego. Na Alemanha, por exemplo, “o número de beneficiários do seguro-desemprego era de 75 em cada 100
desempregados, em 1974; em 1983, de cada 100 desempregados apenas 47 recebiam o seguro, ao passo que o
número de recebedores de ‘ajuda social’, que era de 10
em cada 100 desempregados em 1974, subiu para 23 em
1983” (Vianna, 1993:14). Cabe observar, no entanto, em
relação a estas estatísticas, que a participação dos que eram
apoiados por algum tipo de programa, em relação ao total de desempregados, caiu no período considerado, o que
significa que o aumento da quantidade de beneficiários
dos programas assistenciais não foi suficiente para contrabalançar a queda na cobertura do seguro-desemprego.
Não obstante a importância das políticas passivas implementadas pelos países desenvolvidos desde a década
de 70 – como a transferência de trabalhadores desempregados para o sistema de aposentadorias, as sucessivas
mudanças e adaptações do seguro-desemprego e a proliferação de programas assistenciais –, é sobretudo no campo das políticas ativas que a experiência internacional
tem-se mostrado rica, pela multiplicidade e pelo caráter
inovador dos instrumentos e programas adotados.
Um indicador do destaque crescente que estes instrumentos vêm assumindo é dado pela própria estrutura de
gastos públicos em políticas de emprego, na qual, ao lado
do componente tradicional destinado ao seguro-desemprego – e a outras políticas passivas –, passa a figurar um
conjunto va-riado de despesas associadas às políticas ativas, como formação profissional, serviços de intermediação, subsídios à contratação e políticas voltadas para os
jovens, entre outras. Informações para os países da OCDE,
no início da década de 90, relativas a essa nova composição dos gastos públicos em políticas de emprego como
proporção do PIB, indicam, em primeiro lugar, que os gastos com políticas passivas continuam a superar os relativos às políticas ativas em todos os países, com exceção da
Suécia, o que não chega a surpreender, tendo em vista a
forte política de pleno emprego adotada por este país, associada a um conjunto de programas voltados para o mercado de trabalho. Mesmo considerando a predominância nos
demais países das despesas com instrumentos passivos, os
gastos com políticas ativas são, em muitos casos, bastante
significativos, algumas vezes até bem próximos daqueles
realizados por conta das políticas passivas.
As políticas ativas de mercado de trabalho – cujos eixos básicos são constituídos pela intermediação da mãode-obra e pela formação e reciclagem profissional – representam, assim, o fato novo a ser examinado e discutido,
tendo em vista a necessidade de se conhecer os limites e
as possibilidades da ação pública em relação ao mercado
de trabalho e aos problemas de desemprego.
A organização de agências de emprego, ao buscar informar o trabalhador sobre a oferta de vagas, expressa uma
prática antiga nos países desenvolvidos. A integração
destes serviços com os programas de seguro-desemprego
decorre dos próprios critérios de acesso ao seguro, já que
a inscrição dos desempregados nestas agências constitui
uma exigência para o recebimento do benefício. A partir
dos anos 80, no entanto, com a persistência dos problemas associados ao mercado de trabalho, tornou-se imperativa a existência de sistemas de informação sobre oferta e demanda de trabalho e mecanismos ágeis que garantam
o contato entre trabalhadores e potenciais empregadores.
E, de fato, conforme assinala Ramos, “os estudos mostram que ... a intermediação (ajuda ao desempregado em
termos de colocação, divulgação das ofertas de emprego,
acompanhamento do mercado de trabalho, etc.) tem resultados positivos sobre as probabilidades de encontrar
um emprego dos inscritos no sistema” (Ramos, 1997:12).
A importância desses serviços é ressaltada quando se
leva em conta as profundas mudanças no mercado de trabalho, particularmente no que diz respeito às novas habilidades demandadas e à heterogeneidade dos postos de
trabalho, que tendem a aumentar o tempo de procura de
emprego. Um sistema de informações eficiente agiria,
portanto, no sentido de reduzir esse desemprego “friccional”.
Cabe, além disso, considerar o problema do desemprego de longa duração, que cria um círculo vicioso, tendo
em vista que os empregadores tendem a perceber a duração do desemprego como “um mau sinal” (Azeredo e
Ramos, 1995). Neste sentido, serviços públicos de emprego eficientes podem melhorar a empregabilidade do
trabalhador. O que se requer aqui, para uma maior eficácia, é que estes serviços de intermediação estejam integrados em um sistema público de emprego que ofereça,
além da assistência financeira, serviços de formação e
reciclagem profissional. A vinculação do benefício aos
serviços de intermediação atrai os trabalhadores às agências de emprego, enquanto os serviços ligados à formação profissional mantêm as habilidades do trabalhador,
ou mesmo o ajudam a adquirir novas habilidades, que lhe
podem ser úteis quando o mercado assim o demandar.
No esforço que os países têm despendido para enfrentar os desafios do desemprego, a questão da formação
profissional ocupa um lugar estratégico. Afinal a “revolução tecnológica em curso (...) requer um trabalhador
mais qualificado e polivalente, se comparado com o demandado no paradigma taylorista-fordista, e uma formação contínua, dada a rapidez das mudanças tecnológicas”
(Azeredo e Ramos, 1995:97). Valem aqui os mesmos argumentos levantados anteriormente em relação à intermediação: os serviços de qualificação da mão-de-obra,
54
POLÍTICAS PÚBLICAS DE EMPREGO: TENDÊNCIAS E POSSIBILIDADES
integrados em sistemas públicos de emprego, elevam a
probabilidade do empregado encontrar uma vaga a curto
prazo e mantêm a sua empregabilidade enquanto permanecer desempregado.
O tipo de desemprego que cada país se defronta define
o conjunto de políticas a serem adotadas. Ramos mostra
que, em todos os países da OCDE, as taxas de desemprego são mais elevadas na faixa etária de 20 a 24 anos, qualquer que seja o grau de escolaridade. Essa taxa cai no transcurso dos anos, até os 54 anos. No intervalo entre 55 e 64
anos, o percentual da força de trabalho desempregada volta
a elevar-se, ainda que a taxa média de desemprego seja
muito inferior àquela vigente no início da vida ativa” (Ramos, 1997:7). Ou seja, estaríamos diante dos chamados
“desemprego de inserção” e do “desemprego de exclusão”,
que demandam programas de natureza bastante distintas.
O desemprego de inserção diz respeito aos jovens que
enfrentam dificuldades para ingressar no mercado de trabalho. Neste caso, as políticas públicas deveriam privilegiar o
aumento da escolaridade, assim como “a inter-relação entre
o sistema educacional formal e o mundo do trabalho” (Ramos, 1997:7). Já para o trabalhador adulto, as políticas devem buscar aumentar suas chances de permanência no emprego, mesmo em um quadro de mudanças.
A despeito do reconhecimento da importância da formação profissional para a melhoria da posição do trabalhador no mercado de trabalho, isto não deve ser visto de
forma automática ou isolada. A ênfase dada em muitos
países à questão da formação profissional tem levado à
discussão em torno da eficácia destes programas, bem
como das possibilidades financeiras de estender estes serviços a toda a população desempregada.17
Uma pesquisa realizada pela OCDE em 1993, acerca
dos impactos dos programas de formação, ajudam a ilustrar este ponto. Através dela, pode-se ver claramente que
“não existem evidências sólidas que permitam afirmar que,
sempre e em qualquer caso, os programas de formação
são eficientes e eficazes para reduzir a vulnerabilidade ao
desemprego e elevar os salários dos beneficiários”.18 Também o Relatório de Desenvolvimento do Banco Mundial,
de 1995, citado por Kapstein, aponta para as mesmas conclusões – ou não-conclusões – ao afirmar que “os resultados são mistos no que diz respeito ao valor do treinamento para ajudar os trabalhadores desempregados a encontrar
novas colocações” (Kapstein, 1996:3).
Na discussão em torno da eficácia da qualificação,
há que se reconhecer que “este tipo de política não tem
capacidade de elevar as oportunidades de emprego para
a economia como um todo. Em outros termos: as vagas
oferecidas são o resultado de um processo que tem lugar fora do mercado de trabalho” (Azeredo e Ramos,
1995:98). Na verdade, seus resultados dependem dire-
tamente do desempenho da economia. Além disso, em
um contexto de taxas de desemprego significativas, “a
eficiência dos programas tende a reduzir-se pela disputa de um maior número de desempregados pelas vagas existentes” (Ramos, 1997:11). 19 Esta é também a
opinião de Kapstein. Ele afirma que “as políticas microeconômicas, como a expansão do ensino e do treinamento, são necessárias para equipar os trabalhadores com as qualificações que lhes permitam reingressar
no mercado de trabalho ou encontrar melhores perspectivas de carreira. Mas essas políticas e programas são
de pouco valor se a economia não estiver produzindo
bons empregos” (Kapstein, 1996:3).
A constatação dos limites dos programas de formação
não deve, no entanto, levar ao extremo de desconhecer a
importância que tais programas podem adquirir no âmbito das políticas públicas de emprego. De fato, há que se
reconhecer que “uma política de formação e reciclagem
dos desempregados democratiza as chances de encontrar
um emprego e, segundo a qualidade da formação e
reciclagem, abre a possibilidade do trabalhador ser empregado em postos de trabalho de qualidade” (Azeredo e
Ramos, 1995:98). As restrições financeiras, por sua vez,
indicam a necessidade de aprofundar o grau de seletividade
destes programas, bem como de promover sua articulação com as demais políticas públicas de emprego, buscando elevar sua eficácia.
Outro instrumento que vem sendo largamente utilizado pelos países desenvolvidos, no campo das políticas
ativas, diz respeito aos subsídios à criação de empregos.
Trata-se de medidas que buscam incentivar a contratação
da mão-de-obra de grupos específicos mais vulneráveis
ao desemprego, como mulheres, desempregados de longa duração e jovens em busca do primeiro emprego. Estas medidas envolvem, de modo geral, a redução dos
encargos sociais, mas podem basear-se também em pagamentos às firmas por desempregado contratado. Estes
contratos especiais ou de subsídios diretos à contratação
têm sido bastante questionados, tendo em vista seus reais
efeitos sobre o mercado.20
Os programas de ajuda aos trabalhadores para que se
organizem em cooperativas, ou constituam pequenas firmas ou mesmo desenvolvam algum trabalho autônomo
também se incluem entre as políticas ativas que vêm sendo utilizadas, na medida em que buscam a criação direta
de empregos. De uma maneira geral, a partir destes programas, oferece-se a seus participantes apoio técnico e
organizacional associados à ajuda financeira. Esta última
pode ser dada através de crédito ou, algumas vezes, através da liberação de todas as parcelas do seguro-desemprego de uma só vez, visando apoiar a instalação do negócio, como é o caso da Bélgica e da Espanha.
55
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
Os impactos efetivos destes programas também vêm
sendo bastante discutidos. As pesquisas de avaliação indicam uma baixa cobertura dos desempregados (em torno de 3%), um pequeno efeito multiplicador, em termos
de empregos gerados, e uma baixa taxa de sobrevivência
destes pequenos negócios. Outro resultado importante diz
respeito ao público atingido, de um modo geral com um
nível de instrução superior à média, do sexo masculino e
na faixa etária entre 35 e 55 anos, além de indicações de
que as probabilidades de sustentação do empreendimento aumentam com a idade do trabalhador envolvido (Ramos, 1997:14-15). Estes resultados mostram que este tipo
de programa, em princípio, não se adequaria a uma população jovem, na qual o desemprego alcança níveis dramáticos, como ocorre em muitos países. As pesquisas
apontam ainda, em meio a estes resultados desanimadores,
pelo menos um ponto interessante: o aumento da probabilidade de inserção no mercado de trabalho dos trabalhadores que participaram dos programas e cujos empreendimentos fracassaram.
Finalmente, neste balanço das políticas ativas, cabe uma
palavra sobre a chamada desregulamentação do mercado
de trabalho. Trata-se de um instrumento largamente utilizado, a partir dos anos 80, e não apenas pelos países que
adotaram uma estratégia deliberadamente neoliberal, mas
também pelos países europeus, de um modo geral. Sua
importância pode ser medida pelo fato de que em certos
países ela se constituiu na principal fonte de geração de
empregos durante os anos 80. Na França, por exemplo,
no período que vai de 1983 a 1991, o número de assalariados em tempo integral aumentou 1,4% e o de tempo parcial, 43,75%; na Holanda, no mesmo período, a quantidade de empregados em tempo parcial cresceu 103,3%;
na Espanha, onde vigora uma legislação trabalhista que
facilita os contratos temporários, os assalariados em tempo integral com contratos temporários de trabalho, que
representavam, em 1983, 14,3% do total de assalariados
em tempo integral, passaram para 31,1% em 1991 (Ramos, 1997:15).
A outra face da desregulamentação é a precarização
das relações trabalhistas, aprofundando-se, portanto, a
dualização no mercado de trabalho dos países desenvolvidos. A ênfase demasiada sobre os efeitos benéficos da
desregulamentação dos mercados deve, portanto, ser vista com cautela. Conforme salientam Azeredo e Ramos,
“uma oferta e uma demanda de mão-de-obra atuando em
um contexto concorrencial podem até reduzir drasticamente os níveis de desemprego, mas têm muito pouco a oferecer em termos de redução das desigualdades e oferta de
postos de trabalho de qualidade. Nos países anglo-saxões,
a desregulamentação ocorrida nos anos 80 foi acompanhada de uma notável elevação da demanda de trabalho,
mas também de uma dualização social e de um crescimento da pobreza que induziu questionamento sobre a
qualidade dos postos de trabalho oferecidos” (Azeredo e
Ramos, 1995:92). Isso permite concluir que “a crescente
dualização das sociedades centrais não estaria dada exclusivamente pelo desemprego, especialmente o desemprego de longa duração, senão também pelo modo de inserção no mercado de trabalho” (Ramos, 1997:16).
O resumo aqui apresentado da discussão da experiência dos países desenvolvidos no terreno das políticas públicas de emprego, tanto passivas quanto ativas, ainda que
breve, permite-nos chegar a algumas conclusões. Antes
de mais nada, não se pode esperar uma reversão sólida do
quadro apresentado hoje pelo mercado de trabalho sem
uma retomada do desenvolvimento econômico, em padrões que permitam a inclusão social e a ampliação da
demanda por mão-de-obra. Isto leva necessariamente à
constatação de que um requisito básico e indispensável
para a busca de uma solução definitiva para o agudo problema do desemprego consiste no redirecionamento das
políticas macroeconômicas que, com pequenas variações,
são semelhantes em quase todos os países.
O segundo ponto que deve ser destacado, ainda em um
plano geral, diz respeito à articulação entre o sistema de
ensino formal e o sistema produtivo, como condição necessária para que, em um quadro de retomada do desenvolvimento, haja compatibilidade entre as exigências da
demanda e o perfil da oferta de mão-de-obra. As experiências dos países desenvolvidos evidenciam que, sem uma
articulação orgânica entre o mundo do trabalho e o sistema educacional, o mercado de trabalho continuará a apresentar problemas, mesmo onde as taxas “agregadas” de
desemprego não sejam “preocupantes” a curto prazo. A
experiência norte-americana, em que a falência do sistema educacional, como apontam vários estudiosos, vem
originando uma crescente dualização da sociedade, com
parcelas significativas de trabalhadores desqualificados
ganhando abaixo da linha de pobreza, é, nesse sentido,
paradigmática.
Estas conclusões iniciais dizem respeito a temas – o
crescimento e a educação – que são não apenas complexos, mas que fogem inteiramente ao escopo deste artigo.
Deve-se conhecê-los, já que eles determinam os limites,
a longo prazo, das políticas públicas de emprego. Seu
reconhecimento, entretanto, não elimina a necessidade de
estudiosos da questão social e gestores públicos discutirem e promoverem políticas, voltadas especificamente ao
mercado de trabalho. Esta tem sido a tendência do mundo desenvolvido a partir dos anos 80 e é com base nesta
experiência que vale a pena aprofundar a discussão sobre
o alcance dos diversos mecanismos e as possibilidades
de aperfeiçoá-los.
56
POLÍTICAS PÚBLICAS DE EMPREGO: TENDÊNCIAS E POSSIBILIDADES
Em primeiro lugar, é importante frisar que as políticas
passivas constituem a base das políticas públicas de emprego – e devem continuar a sê-lo. Não é por outra razão
que consomem boa parte dos recursos destinados ao
equacionamento da questão do emprego, a despeito da
proliferação das políticas ativas. O seguro-desemprego,
em particular, ainda é um instrumento essencial para o
equilíbrio social e econômico dos países desenvolvidos,
mesmo quando se sabe de seus limites para lidar com os
problemas atuais do mercado de trabalho. Exatamente por
isso, a trajetória percorrida pelos países desenvolvidos no
sentido de produzir melhorias nas políticas passivas, permitindo a adequação dos seus benefícios à nova situação
de desemprego estrutural, deve continuar como condição
fundamental para a sustentação dos demais instrumentos
que venham a ser utilizados pelos países.
Na verdade, é sobre uma combinação elástica de instrumentos passivos renovados e de novos instrumentos
de política ativa que repousa o eixo das políticas atualmente em curso. Apesar do caráter inovador dessa combinação e da importância crescente dos instrumentos de
política ativa, não se pode falar ainda de um sistema público de emprego, nem de um modelo, nem mesmo de
vários. Trata-se de um processo em marcha, no qual vemse formando um painel de medidas, a partir da experimentação contínua de programas visando equacionar os
problemas do mercado de trabalho e tentar resolvê-los.
Exatamente por isso, há diferenças na ênfase com que um
e outro instrumento são utilizados, bem como são diversos os arranjos institucionais, em conformidade seja com
as particularidades dos problemas e das condições com
que cada país se defronta, seja com a forma pela qual reagiram no movimento de adaptação de seus welfare states.
As políticas ativas, nesse quadro, têm um importante
papel a cumprir em termos de socialização e integração
dos excluídos do mercado de trabalho, de preservação da
qualificação da força de trabalho desocupada, de geração
de atividades à margem do setor moderno da economia,
mas capazes de garantir a sobrevivência de indivíduos e
comunidades e, em alguns casos, de elevação dos padrões
de organização e consciência social e, portanto, de cidadania. Isso deve ser levado em conta, ainda que sua eficácia seja restrita precisamente naquilo a que elas se propõem – influenciar as condições da oferta e demanda de
trabalho.21 Muitas vezes, os resultados positivos observados têm um caráter restrito e localizado, revelando eficiência apenas do ponto de vista microeconômico. Em um
contexto de pesadas restrições macroeconômicas, os efeitos líquidos dessas políticas ainda estão por ser rigorosamente avaliados, para que se possa saber até que ponto e
em que medida os ganhos em uma ponta não estão acarretando perdas em outra.
Outra conclusão a que se pode chegar, levando em
conta a experiência dos países desenvolvidos, diz respeito aos serviços de intermediação de mão-de-obra. Ali onde
se constitui como um mecanismo de informações sobre o
mercado de trabalho, ágil e eficiente, pode reduzir os
descompassos entre oferta e demanda, revelando assim
alguma eficácia na tentativa de reduzir os níveis de desemprego. O desconhecimento das condições do mercado, por parte dos agentes econômicos, sempre leva ao
surgimento de algum grau de desemprego friccional, que
se sobrepõe ao desemprego estrutural, aumentando a gravidade do problema; a sua eliminação, ou pelo menos sua
redução, se não resolve o problema global do desemprego, pelo menos permite que fique limitado a sua verdadeira dimensão.
Também transparece, na experiência internacional, a
necessidade, no âmbito das políticas públicas de emprego, da articulação entre os diversos instrumentos, tendo
em vista aumentar as chances de reinserção no mercado
de trabalho ou evitar a marginalização da força de trabalho, ou ainda a criação de bolsões de pobreza. São assim
necessários programas sociais de transferência de renda
para a população desempregada, mas é igualmente importante que ela esteja integrada nos serviços de intermediação e que esteja participando do processo de educação e qualificação. Ou seja, não se trata de privilegiar
um ou eliminar outro, entre os programas de políticas
públicas de emprego, mas de associá-los e, principalmente,
adequar cada instrumento ao segmento específico da população que se quer atingir.22
Se nos países desenvolvidos o equacionamento da questão do desemprego tem implicado os problemas e dificuldades aqui discutidas, o que dizer do Brasil? Sem dúvida, a questão apresenta-se com seus traços específicos
– como em qualquer outro país, aliás –, mas possui alguns componentes que amplificam a sua complexidade.
Diversas razões contribuem para isso. A primeira delas é
que a dualidade e a heterogeneidade do mercado de trabalho são problemas histórico-estruturais, que já estavam
presentes antes mesmo da crise que atingiu a economia
mundial. Assim, os problemas da “modernidade”, decorrentes do novo paradigma tecnológico, da abertura dos
mercados e da globalização financeira, se superpõem aos
problemas do atraso (alto grau de informalização e de precariedade das relações de trabalho, desigualdade social,
deficiências no sistema de proteção social, baixíssimo
nível de escolaridade da força de trabalho, etc.). O segundo
ponto a ser destacado é que o país conta com um sistema
educacional com profundas deficiências e que nunca esteve organicamente articulado ao sistema produtivo, a não
ser na medida em que este apresentava reduzidos requerimentos educacionais da mão-de-obra.
57
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
Estes dois fatores, num quadro de profundo atraso nas
relações entre capital e trabalho, ajudam a entender o fato
de o país nunca ter tido políticas públicas de emprego.
Na verdade, o próprio conceito de política social tem existência recente em nosso país, pois durante décadas acreditou-se que a melhoria das condições de vida da população e do perfil de distribuição de renda seria uma
conseqüência direta e inevitável do crescimento econômico.23 A crise do desenvolvimentismo, já delineada nos
70, e explicitada em todos os seus contornos e nuances
no início dos anos 80, incumbiu-se de pôr por terra essa
ilusão (generosa ou perversa) e colocou o tema das políticas sociais como prioritário na agenda de discussões.
Neste contexto, não se pode estranhar que mesmo o
mais tradicional dos instrumentos associado à questão do
emprego, o seguro-desemprego, só tenha sido instituído
no país em meados da década de 80, em um momento,
portanto, em que já estava sendo questionado no mundo
todo e sofrendo adaptações. Em outras palavras, o Brasil
adotou um mecanismo criado para proteger o trabalhador contra o desemprego temporário, em um contexto de
crise e desemprego estrutural no mundo inteiro e no próprio país.
Também no terreno das políticas ativas, as dificuldades para sua implementação têm a ver com a especificidade
do quadro brasileiro. Quanto à formação profissional, por
exemplo, não há como negar que os programas adotados
procuram contornar os problemas da educação formal. Ou
seja, o país foi levado a conceber políticas de treinamento e qualificação da mão-de-obra sem antes proceder a
uma profunda reforma de seu sistema educacional,
desconsiderando, portanto, os efeitos desta reforma enquanto poderoso instrumento de política de emprego. A
experiência recente mostra também que ainda não se avançou na consolidação daquele instrumento que, no conjunto
das políticas ativas, tem-se mostrado o mais eficaz na alteração nos níveis de desemprego – o sistema de intermediação, aqui representado pelo Sistema Nacional de
Emprego – Sine.
Nem tudo, no entanto, é desanimador. O atual esforço
de repensar a política social e construir novos instrumentos de política de emprego, por exemplo, se dá em um
quadro político inteiramente diverso do que prevalecia nos
anos 70. O retorno do país ao regime democrático, em
primeiro lugar, fez emergir novos atores, públicos e privados, além daqueles que se concentravam no interior do
poder central, bem como novas demandas por parte da
sociedade, a partir de suas bases. Em segundo, esse novo
quadro vai induzindo, em princípio timidamente, experiências novas de âmbito local nas esferas subnacionais ou
de ação descentralizada por parte de certas instâncias do
governo federal. Finalmente, a emergência e consolida-
ção de um regime de liberdades democráticas vêm abrindo espaços para que a sociedade apresente seus próprios
problemas e para que novas lideranças, de base local,
ocupem o cenário político, recusando in limine o clientelismo e afirmando a necessidade da própria sociedade
participar da resolução de seus problemas.
As políticas públicas de emprego, com todos os seus
limites, são parte integrante desse processo. E nelas há
pelo menos um elemento alentador em nossa experiência
recente: o mecanismo criado para financiá-las através do
Fundo de Amparo ao Trabalhador. Seu caráter rigorosamente inovador, conjugando custeio de políticas ativas e
passivas e aplicações destinadas a uma gama variada de
projetos, desde grandes investimentos até o modelo mais
recente de apoio a pequenos negócios, decorre da própria
experiência acumulada pelo país na montagem de um
padrão de financiamento da política social, arejada agora
pela restauração da democracia. Tradicionalmente, este
padrão já incorporava especificidades em relação à experiência internacional, apoiando-se em contribuições específicas, vinculadas a clientelas ou a bens e serviços
determinados, e associando receitas puramente fiscais com
fundos patrimoniais.
No quadro político atual, pode-se pensar este mecanismo – e seu gestor, o Conselho Deliberativo do Fundo
de Amparo ao Trabalhador – como um instrumento democrático e participativo, que oferece múltiplas possibilidades de financiamento e apoio às iniciativas, dos governos (em todos os níveis) e da sociedade, cujo objetivo
central seja o emprego, de tal modo que, levando em conta
a experiência dos demais países, se possa trilhar o caminho da renovação das políticas públicas de emprego no
Brasil.
NOTAS
E-mail da autora: [email protected]
Este texto baseia-se na tese de doutoramento apresentada pela autora ao Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro em abril de 1997.
1. Sobre os impasses do welfare state, ver Vianna (1993:9).
2. As altas taxas de participação feminina no mercado de trabalho têm sido apoiadas ainda pela elevada cobertura de crianças em creches públicas, generosos
benefícios de auxílio-maternidade e licenças-paternidade e maternidade.
3. Conforme salienta Esping-Andersen (1995:89), “há indicações de que o estrato social mais privilegiado está deixando o welfare state, tanto no que se refere a planos previdenciários quanto em relação aos serviços”.
4. O autor aponta também a Austrália e o Canadá como países que adotaram esta
estratégia, embora com menor intensidade.
5. Registra-se, por exemplo, o crescimento vigoroso dos benefícios concedidos
através dos chamados “testes de meios”, que passaram de 14% do total de alocações, em 1970, para 25,6%, em 1984. Ver Vianna (1995:13).
6. Algumas estatísticas dão conta de que neste país “menos da metade dos desempregados se beneficia das alocações”. Ver Lynes (1985), apud Vianna (1995:14).
7. Dados da OCDE (1993), apresentados em Esping-Andersen (1995:91), mostram que os ganhos dos estratos mais baixos de renda, na década de 80, caíram,
em relação aos médios, 11% nos Estados Unidos, 14% no Reino Unido, 9% no
58
POLÍTICAS PÚBLICAS DE EMPREGO: TENDÊNCIAS E POSSIBILIDADES
Canadá, e 5% na Austrália. Vale apontar ainda que o “fenômeno dos baixos salários” é especialmente crítico entre os trabalhadores não qualificados, não sindicalizados e jovens.
emprego após seis meses. Esta situação muda radicalmente com o aumento da
taxa de desemprego para 7%, quando 80% dos que passavam por curso de capacitação estavam desempregados (Ramos, 1997:11).
8. Em alguns países, a cota dos assalariados foi até reduzida, prevalecendo o
aumento para os contribuintes em geral e para os empregadores. Em outros, no
entanto, a redução dos aportes patronais fez parte da estratégia de combater o
desemprego. Este é o caso, por exemplo, da Inglaterra, da França e da Bélgica.
Neste último país, em particular, o rebaixamento de alíquotas se deu em algumas contribuições, como as do auxílio-família e do seguro-desemprego, enquanto
as contribuições para o sistema de saúde e as aposentadorias foram aumentadas
(Vianna, 1993:18).
20. As questões levantadas dizem respeito ao fato de que se pode não estar, de
fato, promovendo uma geração líquida de empregos, mas apenas induzindo uma
simples substituição. Neste caso, estar-se-ia subsidiando uma ação que se realizaria de qualquer maneira. Ramos refere-se a estudos de casos relatados pela
OCDE que “mostram um elevado desperdício de recursos na maioria destes programas, alimentando as posições conservadoras sobre a eficiência dos recursos
públicos alocados a este tipo de política” (Ramos, 1997:14).
21. Nesse sentido, pode-se dizer que estas políticas não são tão “ativas” assim.
A única exceção a esse caráter “passivo” das políticas ativas fica por conta dos
países escandinavos, em especial a Suécia, que realizaram uma experiência, visando a geração efetiva de emprego através do setor público, articulando este
processo com a oferta de serviços sociais e associando-o a outras políticas ativas. A sustentação desta estratégia tem esbarrado nas restrições fiscais, em um
contexto macroeconômico adverso, com elevação das taxas de desemprego, e
nos efeitos sobre o mercado de trabalho, com a segregação por gênero e o
“confinamento” de mulheres em empregos públicos de meio período, mas com
baixa qualificação e alto grau de absenteísmo. Mesmo assim, Esping-Andersen
(1995:88) ressalta que, nesses países, o “papel do welfare state de assegurar e
estimular o emprego está sendo fortalecido”.
9. A autora informa, por exemplo, que a Bélgica instituiu uma cota de solidariedade a ser paga pelos trabalhadores com salários mais altos, pelos funcionários
públicos e pelas pessoas sem filhos. Já na Inglaterra, passou-se a tributar as prestações do seguro-desemprego.
10. Um indicador dessa tendência é que o gasto social, embora estável como parcela
do PIB, caiu em proporção ao gasto público total. Na verdade, este último expandiuse no período analisado, modificando sua composição em prejuízo do gasto social.
11. A base “teórica” em que se apóia a tese de que o seguro-desemprego estaria
contribuindo para manter elevadas as taxas de desemprego é a teoria do jobsearch. O argumento pode ser descrito da seguinte maneira: “Dada uma situação
de informação imperfeita, os desocupados, seguindo uma racionalidade
otimizadora, acumulam informações até que, na margem, os benefícios de mais
procura (ganhos de informação) seriam iguais ao custo da procura (perda de rendimentos devido ao desemprego, custos de procura, etc.). O seguro-desemprego
diminui o custo da procura ou aumenta a duração do desemprego”(Azeredo e
Ramos, 1995:96).
22. Nessa linha, vale, mais uma vez, destacar a experiência escandinava, em que
a conjugação entre políticas de transferência de renda e medidas de natureza ativa se dá nos marcos de uma estratégia de investimento social, o que se constitui
em passo fundamental para combater a dualização da sociedade e do mercado de
trabalho. O investimento social aparece assim como crucial para enfrentar o tradeoff entre igualdade e pleno emprego.
12. A definição de “emprego adequado” tem sido tratada de formas variadas pelos diversos países, ressaltando-se, os seguintes critérios: valor do salário do emprego oferecido em relação aos ganhos prévios do desempregado; distância entre o trabalho e a residência; relação entre os requisitos da nova ocupação e aqueles
da ocupação anterior; capacidade do indivíduo; treinamento oferecido, entre
outros. Ver, a este respeito, Azeredo e Chahad, 1995:12.
23. Esta crença teve sua versão generosa, e mesmo progressista, nos anos 50, e,
depois de 1964, sua versão conservadora e perversa, expressa na teoria do bolo;
só que aí já não contava com a unanimidade intelectual do país a seu favor. Para
uma visão do debate da época, ver Tolipan e Tinelli (1978).
13. Há, naturalmente, diferenças entre os países quanto ao grau de proteção oferecidos. No que respeita aos valores do benefício, por exemplo, alguns países
oferecem uma alta taxa de reposição do benefício em relação ao salário anterior,
como a Dinamarca, Áustria, Suécia, Suíça e Canadá. Exemplos de países que
oferecem uma taxa de reposição do benefício baixa são Itália, Inglaterra, Estados Unidos e Japão. Ver Azeredo e Chahad, 1995:16.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AZEREDO, B. e CHAHAD, J.P.Z. Descentralização do programa de segurodesemprego. Rio de Janeiro, Centro de Estudos de Políticas Públicas (Cepp),
n.7, outubro de 1995. Relatório de Pesquisa.
14. De modo geral, os desempregados que passam a receber o benefício assistencial devem continuar a se registrar em agências de emprego, como condição
necessária para a manutenção deste benefício.
AZEREDO, B. e RAMOS, C.A. “Políticas públicas de emprego – experiências e
desafios”. Planejamento e Políticas Públicas. Rio de Janeiro, Ipea, n.12,
junho/dezembro 1995.
CHAHAD, J.P.Z. Seguro-desemprego – lições da história e perspectivas para o
Brasil. Tese apresentada ao Departamento de Economia da Faculdade de
Economia e Administração da Universidade de São Paulo para obtenção do
título de Livre-Docência em Economia. São Paulo, FEA/USP, 1986.
DAIN, S. Crise fiscal e dilema distributivo. Tese apresentada à Faculdade de
Economia e Administração da UFRJ para o concurso de professor titular.
Rio de Janeiro, 1988, mimeo.
15. Vale destacar a Itália, onde o custeio do seguro-desemprego é integralmente
assumido pelas empresas, cabendo ao Estado cobrir os custos administrativos,
além do custeio de programas específicos.
16. Exemplos típicos de programa assistencial ao desempregado associado aos
chamados “testes de meios” são dados pela Inglaterra e Alemanha.
17. Ver, por exemplo, Kapstein (1996:3), onde afirma, sem hesitação, que “mesmo
sendo o treinamento um bom investimento, o custo de fornecê-los a todos os
desempregados é proibitivo”. E continua: “... existem atualmente cerca de 34
milhões de desempregados nos países-membros da OCDE. Se o custo médio para
o treinamento de cada trabalhador desempregado é de US$ 7 mil, o total seria de
US$ 238 bilhões. Para os Estados Unidos, com seus sete milhões de desempregados, o custo seria de US$ 49 bilhões. Atualmente, o governo americano gasta
aproximadamente US$ 10 bilhões por ano em ensino profissionalizante e em treinamento. No atual ambiente fiscal, é difícil imaginar esse número aumentando
na escala em que seria necessária”.
18. A passagem referida encontra-se em Ramos (1997:11). Os resultados apresentados pela pesquisa são variados, apontando tanto impactos negativos (“nenhuma melhora de emprego quando a formação foi dada a desempregados ou
empregados sob risco de desemprego”, nos casos dos EUA, Alemanha e Holanda),
quanto positivos, seja em termos de perspectivas de emprego (Noruega), seja de
perspectivas salariais (Suécia), seja em ambos os aspectos (Inglaterra). Já na
avaliação de programas voltados para jovens em dificuldades, os impactos positivos são mais evidentes (Canadá, Nova Zelândia e Irlanda).
DRAIBE, S.M. Novas formas de política social. Nepp/Unicamp, 1996, mimeo.
ESPING-ANDERSEN. “O futuro do welfare state na nova ordem mundial”. Lua
Nova. n.35, 1995.
KAPSTEIN, E.B. “Os trabalhadores e a economia mundial”. Foreign Affairs,
edição brasileira. Gazeta Mercantil, 11/10/1996.
RAMOS, C.A. “Notas sobre políticas de emprego”. Política Comparada. Brasília, v.1, n.1, 1997.
TOLIPAN, R. e TINELLI, A.C. A controvérsia sobre distribuição de renda e
desenvolvimento. 2a ed., Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1978.
VIANNA, M.L.W. A seguridade social no contexto europeu dos anos oitenta –
continuidade e mudanças. Rio de Janeiro, Centro de Estudos de Políticas
Públicas (Cepp), junho 1993 (Texto para Discussão, 10).
19. Os dados relativos à Suécia são ilustrativos deste ponto: quando as taxas
reduzidas de desemprego (menos de 3% da força de trabalho), até o final da década de 80, mais da metade daqueles que saíam do treinamento encontravam
__________ . Trabalho e proteção social – velhos problemas e novas estratégias no contexto brasileiro. Rio de Janeiro, IEI/UFRJ, setembro 1995 (Texto
para Discussão, 345).
59
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
O EMPRESARIADO, A FILANTROPIA E A
QUESTÃO SOCIAL
ELIZABETH DE MELO RICO
Professora e Pesquisadora do Instituto de Estudos Especiais da PUC/SP e
Especialista em Gestão de Programas Sociais
“
Q
uando eu falava nas minhas palestras que o
Brasil vai dar certo, mas não para todo mundo, e que nós, empresários, teríamos de ter uma
consciência social maior, muitos empresários diziam que
gostariam de ajudar, mas não sabiam a quem, nem como
avaliar se as entidades eram idôneas” (Kanitz, 1997:9).
Esta fala do consultor Stephen Kanitz refere-se ao prêmio “Bem Eficiente”, criado pela Kanitz e Associados, e
concedido em 10/06/97 às 50 melhores entidades sem fins
lucrativos. Não premia doadores de recursos, mas sim as
instituições que os aplicam de maneira eficaz. O prêmio
recebeu 1.200 indicações, com 600 entidades. Apesar das
50 premiações não se referirem a Fundações Empresariais, mas à eficiência na aplicação dos recursos das instituições sem fins lucrativos, foram desenvolvidos 42 critérios para avaliar a eficácia na Filantropia (o que é, sem
dúvida, uma ênfase empresarial acerca do investimento
no social).
Em setembro de 1996, foi realizado o III Encontro
Ibero-Americano do Terceiro Setor, no Rio de Janeiro,
sob a coordenação do Gife (Grupo de Institutos, Fundações e Empresas Privadas que investem, sem fins lucrativos, em projetos sociais visando o desenvolvimento do
país e estimulando a cidadania participativa, especialmente
no meio empresarial). Em maio de 1995, foi eleita a primeira presidente do Gife, senhora Evelyn Iochpe, da Fundação Iochpe. Em 27/05/97 houve o lançamento do livro
3o setor: desenvolvimento social sustentado, que originou
da realização do III Encontro Ibero-Americano do Terceiro Setor.
Por sua vez, a Câmara Americana de Comércio, após
observar o crescente aumento de investimentos privados
no social, em especial a partir da década de 80, instituiu
em 1982 um prêmio anual (ECO) para os melhores traba-
lhos de filantropia empresarial (mais de 500 empresas
competiram nos últimos anos).
Estas referências vêm delineando um movimento crescente da sociedade civil que inclui setores empresariais
preocupados com a ajuda mútua realizada por entidades
sem fins lucrativos, capazes de estabelecer novas formas
de complementaridade na troca, indução e geração de
insumos, bens e serviços em diversos campos do desenvolvimento social, cultural, patrimônio histórico e natural e meio ambiente. Associativismo e mutualismo, solidariedade e eficácia de custos em relação a benefícios
transferidos à comunidade. Está demonstrado que a filantropia empresarial é um setor em crescimento e que representa algo novo, não apenas no cenário organizacional, mas também no cenário da sociedade brasileira.
O que este novo setor significa? Realizar filantropia
aumenta o volume de negócios da empresa? Interfere na
sua imagem diante do mercado? Aumenta a auto-estima,
o sentimento de pertencimento dos empregados da organização? Interfere no marketing da empresa? Realizar “caridade” altera, pelo menos em parte, as relações entre capital e trabalho? Será possível, através de um programa
social, modificar as formas de relacionamento entre responsáveis pela organização e seu corpo de trabalho? O
investimento em filantropia altera a cultura do empregador e conseqüentemente da organização? A adoção de programas sociais pelos empresários sinaliza uma consciência crescente da responsabilidade social da empresa? Serão
os empresários, ainda, os melhores gerentes de programas sociais e, portanto, os que atingem resultados mais
expressivos?
O que acontece é que as Fundações, Institutos e Empresas (em especial aquelas reunidas pelo Gife) vêm exigindo a previsão de retorno do investimento realizado em
60
O EMPRESARIADO, A FILANTROPIA E A QUESTÃO SOCIAL
programas sociais, tanto em relação ao beneficiário como
ao investidor. “É claro que este retorno não se traduz em
moeda, mas sim em desenvolvimento. Filantropia, no
entanto, não é igual a desenvolvimento social, que é uma
ação tradicionalmente atribuída ao Primeiro Setor, o Governo. E nós falávamos do ponto de vista do Segundo
Setor, o mercado, designando o conjunto de ações que
acontece no interior do Terceiro Setor – aquele que é
público, porém privado. Parece simples, mas não é. Sob
o impacto de um estado que vem diminuindo sua ação
social e de uma sociedade com necessidades cada vez
maiores, cresce a consciência nas pessoas – tanto físicas
quanto jurídicas – de que é necessário posicionar-se
proativamente no espaço público, se o que se deseja é um
desenvolvimento social sustentado” (Iochpe, apud Gife,
1997:I e II).
A questão da filantropia empresarial coloca a pertinência da discussão sobre o que é o Terceiro Setor, bem como
sobre sua área de abrangência: público, porém privado.
Afinal, como reconhece Iochpe, estamos vivendo num
Estado “enxuto”, que vem diminuindo sua ação social,
no qual a sociedade possui necessidades cada vez mais
mais amplas, sendo necessário que pessoas físicas e jurídicas posicionem-se proativamente nessa realidade. Portanto, é condição para compreensão do significado da filantropia empresarial a sua inserção no chamado Terceiro
Setor e sua ação na área pública, com recursos privados.
do governo e que, ao prestarem serviços coletivos, não passam pelo exercício de poder de Estado.
Lester Salomon, um estudioso norte-americano sobre
o Terceiro Setor, que vem coordenando uma pesquisa
sobre esta temática, considera que o Terceiro Setor é composto de organizações estruturadas, localizadas fora do
aparato formal do Estado, que não destinadas a distribuir
lucros aferidos com suas atividades entre os seus diretores ou entre um conjunto de acionistas, autogovernadas e
que envolvem indivíduos num significativo esforço voluntário (Fernandes, 1994:19).
A expansão das atividades associativas civis, em especial a partir dos anos 70, é uma resposta contundente
ao fato de que o mercado e governo não conseguem dar
conta do enfrentamento de uma série de questões que vão
desde problemas ecológicos até direitos de minorias étnicas e/ou raciais, desemprego, sem-terra, aposentados,
violência contra mulheres, exploração da mão-de-obra
infantil, etc.
Carvalho entende que há uma novidade nas atuais associações civis: “a capacidade de incluir as demandas
de novas maiorias, que de outra forma estariam excluídas dos canais abertos convencionados pelos sistemas de
articulação entre estados-nacionais ou no interior dos
aparatos governamentais domésticos” (Carvalho, 1995:3,
grifo nosso).
Esta novidade, a capacidade de incluir as demandas
de novas maiorias, delineia (além de estar fundamentada
em princípios e valores articulados de forma própria) uma
nova forma de organização dessas associações, qual seja:
- são internacionalizantes (atuam além das fronteiras nacionais);
- possuem vínculos locais;
- localizam-se fora do aparato formal do Estado (embora
estejam condicionadas a ele, não se “encaixam” nele);
- não se estruturam pelos grandes eixos da divisão do trabalho (multissegmentam-se pelo crescimento dos serviços e das comunicações);
- não há uma “central” que integre suas atividades. Não
há uma oligarquia burocrática. Não há formas massivas e
politizadas de participação. Há múltiplos planos e alternativas de associação.
A filantropia empresarial move-se nesse espaço associativista, no qual se pode observar novas formas de
organização do setor, em especial no trato das questões
sociais, sejam estas urbanas, rurais, derivadas do meio
ambiente, de gênero, raça e até planetárias.
Todavia, como mencionado anteriormente, esse espaço é público, porém privado. É o espaço em que coexistem o Estado, o mercado e o Terceiro Setor. A filantropia
empresarial, ao investir na sociedade, não está prestando
favores, ou doando benefícios. A nova ação social em-
FILANTROPIA EMPRESARIAL E
TERCEIRO SETOR
Este artigo não tem a intenção de aprofundar as discussões sobre o Terceiro Setor, uma vez que sua conceituação vem gerando muitas polêmicas. Fernandes
(1994:21) faz algumas considerações sobre o tema: “o
conceito denota um conjunto de organizações e iniciativas privadas que visam à produção de bens e serviços
públicos. (...) Bens e serviços públicos implicam uma
dupla qualificação: não geram lucros e respondem a necessidades coletivas”.
Fernandes menciona dois aspectos constituídos do Terceiro Setor que merecem uma atenção especial: OSFL (organizações sem fins lucrativos) e ONGs (organizações nãogovernamentais). As organizações sem fins lucrativos, na
compreensão de Fernandes, são aquelas cujos investimentos são maiores que os eventuais retornos financeiros em
ações dispendiosas para os mercados disponíveis. A princípio, as OSFLs sobrevivem à custa de financiamentos de
agências internacionais de fomento (cada vez menos),
empresas privadas, do Estado (nos âmbitos federal, estadual e municipal) e de ações voluntárias. As organizações
não-governamentais são instituições que não fazem parte
61
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
presarial está procurando algum retorno, colaborando com
o desenvolvimento social do país e demonstrando que a
iniciativa privada deve ser consciente, deve ter uma responsabilidade social em relação aos problemas que atingem a sociedade. A empresa-cidadã é aquela que, além
de cumprir sua função econômica, trabalha para a melhoria da qualidade de vida de toda a sociedade.
A ênfase aqui refere-se à atuação da empresa-cidadã
nos espaços do mercado e do Estado, propondo-se a colaborar com este na implementação de políticas e programas sociais. Reconhece a incapacidade atual do Estado
em enfrentar sozinho os problemas sociais, mas entende
que a responsabilidade pela gestão de políticas e programas de erradicação da pobreza é, sem dúvida, sua competência (do Estado).
Deve-se considerar que a dimensão dos espaços público e privado, na filantropia empresarial, está desenhada de acordo com um modelo sociopolítico e econômico.
Ou, mais explicitamente: que tipo de Estado “absorve” a
filantropia empresarial?
Este contexto chamado de neoliberal explica-se pelo
fato de ressuscitar o liberalismo econômico, em que o
Estado tem um papel diminuto para enfrentar os dilemas
das questões sociais e, portanto, necessita das parcerias
com o mercado e com a sociedade civil para viabilizar
programas de enfrentamento à exclusão social. Não se
pode esquecer que são intrínsecos ao modelo o desemprego e o sucateamento da mão-de-obra. Aí reside uma
grande contradição.
O trabalho, diante do processo de globalização, adquire
a possibilidade de se socializar independentemente da
interferência do Estado, que coloca os fundos públicos
(arrecadação) a serviço do desenvolvimento econômico,
independentemente de favorecer esta ou aquela classe
social.
Ressalte-se que o “modelo” só pode funcionar se houver “colaboração” do Estado. O capitalismo não se consolida sem a ajuda dos recursos públicos, seja mediante o
“fundo público” ou a “fundo perdido”.
Segundo Oliveira (1988), o fundo público é representado por subsídios e auxílios públicos que são constitutivos do próprio capitalismo. O fundo público, por um lado,
auxilia o funcionamento da acumulação do capital e, por
outro, financia a reprodução da força de trabalho. O que
é novo é que tais subsídios não ocorrem pós-necessidade
de reprodução da força de trabalho mas sim caracterizamse como ex-ante das condições de reprodução de cada
capital particular e das condições de vida. Existe “em
abstrato” antes de existir de fato. Na verdade, “a formação da taxa de lucro passa pelo fundo público, que o torna um componente estrutural insubstituível” (Oliveira,
1988:9).
O que vem ocorrendo é que as despesas públicas com
saúde, educação e pensões vêm aumentando nos últimos
20 anos, em países do 1o ao 3o Mundo. Isto levou a transferência para o financiamento público de “despesas” relacionadas à reprodução da força de trabalho. Na verdade, essas despesas são socializadas, através do crescimento
dos salários indiretos, que têm por objetivo liberar o salário direto para o consumo de massa. Emerge assim o
Estado Providência (este termo, segundo Oliveira, é mais
freqüentemente associado à produção de bens sociais
públicos). Porém, o Estado-Providência já nasce limitado pelo processo de internacionalização produtiva e financeira do capital. Por quê? Porque “a circularidade
anterior pressupunha ganhos fiscais que correspondiam
ao investimento e à renda que o fundo público articulava
e financiava; a crescente internacionalização retirou parte dos ganhos fiscais, mas deixou aos fundos públicos
nacionais a tarefa de continuar articulando e financiando
a reprodução do capital e da força de trabalho” (Oliveira,
1988:13).
FILANTROPIA EMPRESARIAL: ENTRE O
PÚBLICO E O PRIVADO
O aumento dos investimentos privados na questão social está antes vinculado a um modo político e econômico de organização das forças produtivas do que simplesmente a aspectos de solidariedade e associativismo.
O ressurgimento das novas formas de solidariedade e
associativismo, em contraposição às formas clássicas de
paternalismo como já foi mencionado por Carvalho
(1995), traz em si uma novidade: uma sociedade que está
disposta a mobilizar-se contra a exclusão e que, no limite, não delineia horizontes para as gerações futuras.
Em outras palavras, é preciso compreender a solidariedade no processo atual de desenvolvimento das forças
produtivas. No estágio da internacionalização do capital
e do processo de globalização,1 tem havido uma mudança substantiva nas relações entre o Estado e mercado e
entre estes e a sociedade civil.
Faz parte do processo de globalização, por exemplo, a
flexibilização das relações de produção e uma maior exigência pela participação do empregado no processo produtivo. Se, anteriormente com o fordismo, exigiam-se empregados especializados e “cumpridores de normas e
procedimentos”, hoje há uma demanda por sujeitos pensantes, com escolaridade e criativos para enfrentar o inusitado, uma vez que cada vez mais não se pode controlar
todas as variáveis do resultado do processo de produção.
Trata-se da “destruição criadora”, que se é própria do atual
desenvolvimento do capital, tem também como conseqüência revigorá-lo reiteradamente.
62
O EMPRESARIADO, A FILANTROPIA E A QUESTÃO SOCIAL
Além disso, o capitalismo não funciona e nem poderia
se consolidar sem os recursos públicos. Na sua etapa atual,
não poderia prescindir dos grandes fundos destinados à
pesquisa tecnológica, ou de recursos para socorrer o sistema financeiro (“a fundo perdido”).
Conclui-se que a reprodução do capital e da força de
trabalho continua a ser função dos Estados Nacionais, que,
segundo Oliveira, contribuem para o fundo público “internacional” às custas de impedimento dos investimentos
em recursos sociais locais e territoriais.
Essa “dificuldade” de investimento em programas sociais que efetivamente enfrentem a miséria e a exclusão
social “obriga” o Estado a estabelecer parcerias com a
sociedade civil. A escassez de recursos faz parte de um
cenário que praticamente coloca a responsabilidade civil
do cidadão e do empresário como indispensáveis ao enfrentamento da questão social.
contaminam o dia-a-dia das elites, obrigando-as a saírem
de suas posições defensivas e a tomarem atitudes que
modifiquem o cenário. O que ocorre é um chamamento
ao cidadão, exigindo que, entre perdas e ganhos, ele dirija o seu olhar para o futuro.
Portanto, o empresariado, historicamente avesso às
questões sociais por entender que estas faziam parte da
responsabilidade do Estado, passa a abandonar suas práticas caritativas e pontuais, desviando seu interesse para
ações de investimento, visando o desenvolvimento social
e o estímulo à cidadania participativa. Como já foi mencionado, a constituição do Gife, em 1995, demonstra um
passo importante naquilo que Kisil conceitua como desenvolvimento sustentável (Kisil apud Gife, 1997).2
Embora o número de institutos, fundações e empresas
filiados ao Gife seja ainda pouco significativo, a atuação
deste grupo tem-se demonstrado expressiva no meio social, com a preocupação em investimentos de recursos que
possam assegurar retornos e/ou resultados substantivos.
No entender do Gife, recursos não englobam apenas fundos em dinheiro, mas também capacitação, apoio técnico
e comunicação. Questões como auto-sustentabilidade financeira, política e administrativa, organização autônoma, maior eficácia nos projetos e desenvolvimento social
fazem parte da agenda de discussões desses grupos empresariais.
O que se quer destacar é que, independentemente do
quadro econômico, social e político que vem incentivando não só as ações filantrópicas empresariais, mas um sem
número de ações da sociedade civil (ONGs, por exemplo), o Gife desponta como um grupo que procura romper com as ações caritativas tradicionais, sugerindo o
aparecimento de novos atores no processo de criação de
espaços públicos, novos e múltiplos.
“A criação de um grupo que reúne expressivas empresas em torno de interesses comuns, com mediações e comportamentos próprios, parece caminhar no sentido do alargamento do espaço social de provimento de bens e serviços
públicos podendo vir a ter uma expressão política significativa neste cenário, com a introdução de novos conceitos e concepções de desenvolvimento social e cidadania participativa no meio empresarial” (Wilheim,
1995:15). Obviamente, como afirma Wilheim, o Gife
poderá ter uma expressão política significativa no processo da construção da cidadania, mas, sem dúvida, seria
muito precipitado prever os rumos do referido grupo
empresarial.
Esta novidade da cidadania empresarial participativa
(o próprio Gife tem procurado dissociar sua imagem de
políticas caritativas e, portanto, não gosta do uso do termo filantropia empresarial) procura abandonar as políticas pontuais em favor de obtenção de melhores resulta-
A QUESTÃO SOCIAL
Segundo Fernandes (1994:95), “a filantropia não é a
parte da cultura empresarial latino-americana”. As nossas instituições de caridade vivem do trabalho voluntário
e de doações privadas, na maior parte das vezes coordenadas por entidades religiosas.
A classe empresarial brasileira, enquanto classe e indivíduos isolados, histórica e culturalmente, não se sentiu responsabilizada com as questões advindas do social.
Em especial a partir dos anos 80, com a generalização do
conceito de cidadania, que valoriza o indivíduo não apenas através de sua consciência moral, mas também de sua
pessoa jurídica, a instituição particular ganhou uma outra dimensão como personagem do espaço comum. Como
qualquer cidadão, os grupos particulares (lucrativos ou
não) possuem seus direitos e deveres para com os demais.
“A preocupação ecológica traduz, com facilidade, esta
percepção em diretrizes práticas. A fábrica que despeja
materiais poluentes sobre as águas pode ser acusada de
ofender o direito alheio e como tal ser chamada criminosa” (Fernandes, 1994:97).
A co-responsabilidade pelo ambiente natural e urbanístico, bem como a co-responsabilidade sociocultural, vai
ultrapassando os muros das empresas. Os progressos tecnológicos vêm exigindo constantes investimentos na qualificação de pessoal e pressionando as empresas a se interessarem pela educação das novas gerações. Além disso,
a qualidade do ambiente sociocultural tem uma interferência direta no mundo dos negócios – por exemplo, as
notícias que são veiculadas no exterior sobre a violência
nas cidades latino-americanas criam um clima negativo
para os seus mercados internos. Da mesma forma, o aumento da pobreza e a proliferação da violência urbana
63
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
e cidadania, cultura e saúde. Entende-se que a área da
criança e do adolescente, que ocupa um grande interesse
nos investimentos das fundações empresariais, embora não
apareça explicitamente (a não ser como área de defesa de
direitos), está contemplada na área de educação (que exatamente ocupa o primeiro lugar nas estatísticas);
dos na aplicação de recursos em programas sociais. O
empresariado investe usando os conhecimentos nos quais
são efetivamente competentes: gestão, planejamento estratégico, planejamento financeiro, estratégias de marketing e capacitação de recursos. Preocupam-se com a profissionalização das entidades sociais, no intuito de
maximizar resultados. Faz parte das suas diretrizes, por
exemplo, a definição de critérios para seleção e avaliação de projetos sociais.
Segundo Wilheim (1995), os critérios utilizados pelas
fundações empresariais, na escolha de projetos a serem
investidos ou patrocinados, são:
- atuação junto a uma problemática social apontada pela
comunidade. Na maioria dos casos, as fundações empresariais escolhem projetos que são definidos como prioritários para a instituição financiadora. Procuram priorizar
a melhoria das políticas básicas como educação e saúde,
dando, porém, destaque para projetos culturais e que procurem estimular a própria comunidade na solução de seus
problemas. Interessam-se, muitas vezes, pelo impacto
social do projeto. Pode-se observar, no Gráfico 1, as diversas áreas de atuação das fundações, destacando-se
educação, promoção social/desenvolvimento comunitário
- capacidade de multiplicação das ações do projeto e sua
auto-sustentação financeira. Este critério traduz uma preocupação de que, no decorrer da implementação do projeto, o mesmo apresente um caráter inovador – capaz de
multiplicar suas ações/atividades –, apresente objetivos e
metas claramente definidos, além de uma metodologia que
possa ser avaliada e que obtenha um grau de auto-sustentação financeira;
- afinidade institucional. As fundações empresariais buscam compatibilizar seus objetivos e sua própria missão
com a área de atuação do projeto e seus objetivos específicos. Por essa razão é que se encontram empresas cujo
negócio envolve a extração de produtos da natureza. Ao
constituírem suas fundações, as mesmas darão prioridades ao financiamento de projetos de conservação do meio
ambiente.
Apesar de a cidadania empresarial ser uma realidade
crescente no Brasil, observa-se que, considerando-se a
gravidade da questão social, os investimentos podem ser
tidos como incipientes (Gráficos 2 e 3). Além disso, a
atuação dessas fundações está presente, majoritariamente, no Estado que concentra a riqueza do país (49% em
São Paulo), destacando-se a atuação no Rio de Janeiro
(19%).
Ao serem comparados os investimentos realizados nos
EUA em 1996 para instituições sem fins lucrativos, que
perfazem a quantia de 140 bilhões de dólares, com aqueles efetuados no Brasil, é possível afirmar que a questão
social não consegue mobilizar investimentos significativos. Por que motivos, então, os investimentos empresariais no Brasil têm aumentado significativamente nos últimos anos, apesar de não possuirmos tradição filantrópica?
Há, sem dúvida, a percepção crescente de que a questão social atingiu níveis tão alarmantes que provoca afirmações do tipo: “Eu não quero continuar correndo o risco de ser assaltado dentro de 10 anos” (Gomes, 1997:104).
Nesse sentido, setores do empresariado entendem que, ao
tentar resolver problemas de uma favela, resolve-se, muitas
vezes, a questão da segurança do bairro onde se reside.
Preservação de interesses? Pode ser que sim, mas de qualquer forma obriga uma classe social a se envolver diretamente com os problemas de seu país.
Uma outra questão é que o investimento na solução de
problemas sociais, realizado tanto por ONGs como por
fundações empresariais, é um novo mercado de trabalho.
GRÁFICO 1
Áreas de Atuação das Entidades Associadas ao Gife
Brasil – 1997 (1)
80
Em%
60
40
20
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10
11
1 – Educação
2 – Promoção Social/Desenvolvimento comunitário e cidadania
3 – Cultura
4 – Saúde
5 – Ecologia e conservação do meio ambiente
6 – Agricultura
7 – Políticas públicas
8 – Ciência e tecnologia
9 – Defesa dos direitos da criança e do adolescente
10 – Relações internacionais
11 – Esportes
Fonte: http:/www.gife.org/qgife/estatisticas/area.ht1.
(1) Posição em julho.
Nota: A soma por área não atingirá 100% porque a maioria das entidades atua em mais de
uma área.
64
O EMPRESARIADO, A FILANTROPIA E A QUESTÃO SOCIAL
GRÁFICO 2
Nos Estados Unidos, o chamado Terceiro Setor emprega
9% da mão-de-obra e responde por quase 7% do PIB, algo
em torno de 490 bilhões de dólares. Na França, as ONGs
empregam 6% da mão-de-obra e, na Alemanha, 5%. Sem
dúvida, a possibilidade de oferta de trabalho abre perspectivas de ocupação no sentido de diminuir as taxas de
desemprego mundial (embora esta alternativa seja bastante
questionável no âmbito do desemprego estrutural).
A partir das transformações ocorridas nos últimos anos,
em especial com o processo de globalização da economia,
as empresas passaram a investir em tecnologia de ponta,
preocupando-se com o aprimoramento da mão-de-obra,
seja de funcionários da própria organização, seja da população da comunidade, de onde muitas vezes são recrutados seus quadros de empregados. Portanto, o investimento em projetos sociais pode estar ligado à eficácia da
produção e à lucratividade da empresa. Tendo em vista
que o investimento em programas sociais contribui para a
melhoria da qualidade de vida da comunidade na qual a
organização está inserida, é fato que poderá se obter mãode-obra qualificada de acordo com seus objetivos.
Se, por um lado, destaca-se a preocupação com o negócio da empresa, por outro, nos últimos anos, tem havido maior pressão na sociedade civil no sentido de “cobrar”
ações efetivas do empresariado para se envolver no processo de desenvolvimento social do país. O surgimento
de movimentos, campanhas, organizações não-governamentais e sua crescente visibilidade vem atingindo cada
vez mais a opinião pública. É notório observar que a preocupação com a imagem institucional da organização tem
levado a classe empresarial a se envolver diretamente com
projetos sociais que causam impacto na opinião pública.
Esta é uma forma de o empresariado valorizar o negócio
da sua empresa através do fortalecimento de sua imagem
institucional. Afinal, empresas que implementam ações
educativas e formativas, junto a crianças e adolescentes
carentes, garantem maior legitimidade junto à sociedade,
além de demonstrarem uma postura ética comprometida
com os problemas sociais do país.
Considerando que o Brasil encontra-se numa situação
de estabilização democrática que tem favorecido o desenvolvimento de uma moderna economia de mercado, na qual
setores significativos do empresariado têm ampliado os
seus investimentos, é de se pressupor que as “empresas
modernas” façam investimento social. Entende-se que a
empresa-cidadã amplie sua atuação para além dos seus
próprios muros e assuma compromissos mais efetivos na
solução de problemas da sociedade onde está inserida. A
cidadania empresarial pressupõe uma concepção de empresa que é co-responsável pelo bem-estar da comunidade. Todavia, sem desconsiderar a importância dessa nova
ação empresarial, uma vez que se tem observado suas ex-
Distribuição das Entidades Associadas ao Gife, segundo a
Faixa de Orçamento Anual (receita direta)
Brasil – 1997 (1)
7
15,50%
1
19,00%
6
5,50%
2
16,51%
5
15,90%
4
12,10%
1
2
3
4
5
6
7
3
15,505
– De 50.000,00 a 250.000,00
– De 251.000,00 a 500.000,00
– De 501.000,00 a 1.000.000,00
– De 1.000.001,00 a 2.500.000,00
– De 2.500.001,00 a 5.000.000,00
– Acima de 5.000.000,00
– Não disponível
Fonte: http://www.gife.org.br/qgife/estatisticas/distribuição.ht1
(1) Posição em julho.
GRÁFICO 3
Localização das Sedes das Entidades Associadas ao Gife
Brasil – 1997 (1)
Fonte: http://www.gife.org.br/qgife/estatisticas/localização.ht1
(1) Posição em julho.
65
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
periências positivas,3 é possível questionar o fato de tais
iniciativas não estarem vinculadas a um projeto econômico e político da classe empresarial brasileira, que historicamente ausentou-se de influenciar de forma mais
direta os rumos da política econômica (o que sem dúvida poderia ter beneficiado amplamente os segmentos
excluídos do processo de desenvolvimento).
Finalmente, é preciso considerar que a ação filantrópica, solidária, participativa de grupos da sociedade civil (não necessariamente empresariais) do chamado Terceiro Setor tem assumido grandes proporções em vários
países do mundo. A questão que está presente é sobre o
papel que a filantropia empresarial desempenha, suas
possibilidades e limites. Só é possível responder a essas
questões tendo clareza que o Estado enxuto, que vem
diminuindo suas atribuições na esfera das políticas públicas e sociais, necessita de parcerias com o mercado e
com a sociedade civil para viabilizar programas de enfrentamento à questão social (embora o próprio Estado
constitua seus fundos públicos que indiretamente contribuem para a implementação dos programas sociais).
Se, por um lado, a cidadania empresarial reflete a inserção num modelo político-econômico, por outro, não
há como negar que a participação do empresariado no
enfrentamento à questão social e suas diferentes formas
de exclusão é, em si, um fato novo, para o qual se necessita debruçar os olhares mais atentamente.
são responsáveis e receptivas aos seus membros; 3) a variedade de interesses e necessidades de cada sociedade ou de cada comunidade exige uma variedade de organizações; 4) uma forma particular de colaboração entre essas organizações é necessária
para o processo de desenvolvimento, e isto dependerá da experiência local específica,
das tarefas a serem realizadas e do meio ambiente político-administrativo-econômico”.
O que ocorre é que Kisil, ao pensar o desenvolvimento sustentável, apóia-se na representação neoliberal, ou seja, somente mediante parcerias entre o setor público, o setor
privado (mercado) e o setor não-governamental, incluindo-se aqui a responsabilidade
do cidadão como participante das decisões sobre o desenvolvimento, é que seja possível vislumbrar possibilidades de alterar o quadro das questões sociais que levam à exclusão de milhares de cidadãos.
3. Pode-se mencionar algumas experiências que obtiveram êxito, avaliadas pelas
Câmaras Americanas do Comércio – São Paulo. Em 1995, foram premiadas: Iochpe
Maxion S/A/Fundação Iochpe: Arte na Escola; Banco Itaú S/A.: Raízes e Asas;
Unibanco: Salve o Dilúvio; IBM Brasil: Combate às Doenças Tropicais. Em 1994,
foram premiadas: Ação da Cidadania Contra a Miséria e pela Vida: Prêmio horsconcours; Instituto Cultural Itaú: Banco de Dados Informatizado; Abrinq – Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança: Nossas Crianças; RBS-TV Televisão Gaúcha S/A: Viva Melhor – Educação, Saúde e Qualidade de Vida. É preciso dizer que
a premiação das experiências é realizada por um júri que utiliza critérios relacionados à efetividade dos projetos (objetivos, estratégias, implementação, resultados –
quantitativos e qualitativos).
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BORGES, C. “Balanço social deve ser divulgado pelas empresas”. Gazeta Mercantil. São Paulo, 06/06/97.
CARVALHO, N.V. de. “Subsídios para o workshop do IEE/PUC-SP sobre o Terceiro Setor”. Texto de discussão interna. Instituto de Estudos Especiais (IEE/
PUC-SP). São Paulo, 09/04/95.
CASTRO, A. B. de. “Rumo ao desajuste global”. Folha de S.Paulo. São Paulo,
Caderno Mais, 08/06/97, Cad. 5, p.14. Dados obtidos do URL: http:/
www.gife.org.br, 19/04/97.
FERNANDES, R.C. Privado porém público – o terceiro setor na América Latina.
Rio de Janeiro, Relume Dumará, 1994.
GIFE. Terceiro Setor – desenvolvimento social sustentado. Rio de Janeiro, Paz e
Terra, 1997.
GIANNOTTI, J.A. “O público e o privado”. Folha de S.Paulo. São Paulo, 02/04/
95, p.5.6-5.7.
NOTAS
1. Castro (1997), ao resumir o processo de globalização, coloca que: “A difusão mundial da cadeia produtiva capitalista – consolidada especialmente pelas multinacionais após a Segunda Guerra – e o acelerado ritmo de inovações
derivadas da terceira revolução tecnológica, baseada na microeletrônica, nos
novos materiais e na telemática tornaram expressivamente e, até certo ponto
obsoleto, o arcabouço político e institucional ainda vigente, baseado no Estado nacional, partidos políticos etc... ”. Uma das conseqüências desse processo é uma alteração profunda nas relações de trabalho, portanto, cada vez mais
o trabalho não se concretiza em mercadorias (se distancia do seu valor de uso).
Sem dúvida, esta questão já é suficiente para entendermos como se torna difícil para o homem se apropriar do seu espaço. O homem se afasta da possibilidade de relações totalizantes no seu próprio território. A consciência depende
cada vez mais de um sem número de informações que nos ultrapassam, ou
não nos atingem, de modo que escapam às possibilidades tão numerosas e
concretas de uso ou de ação. Hoje, cada vez sabemos menos da natureza que
nos cerca. Nos últimos 40 anos temos sido rodeados por um número de objetos, serviços que superam toda a produção anterior da humanidade.
2. Segundo Kisil (apud Gife, 1997:131), “para que um processo de desenvolvimento sustentável se instale, se faz necessário: 1) a participação de cada cidadão
é essencial; 2) esta participação exige a conformação de organizações sociais que
GOMES, M.T. “Eles vão para o céu?” Revista Exame. São Paulo, Editora Abril,
18/06/1997, p.102-106.
KANITZ, S. “Solidariedade competente”. Inovações empresariais. Grupo Ticket.
São Paulo, maio/97, p.9-11.
LUNA, E. (compiladora). Fondos privados, fines públicos – el empresariado y la
iniciativa social em América Latina. Espacio Editorial, Buenos Aires, 1995.
OLIVEIRA, F. de. “O surgimento do antivalor”. Novos Estudos. São Paulo, Cebrap
n.22, out. 1988.
ROHDEN, F. “Filantropia empresarial: a emergência de novos conceitos e práticas”. Seminário de Empresa Social. Anais... São Paulo, PUC, SP 09/96.
__________ . “Empresas e filantropia no Brasil: um estudo sobre o prêmio ECO”.
Rio de Janeiro, Iser, 1996.
SOUZA, H. de. “Balanço social nas empresas públicas”. Gazeta Mercantil. São
Paulo, 06/05/97, p.1-3.
THOMPSON, A. Público e privado – las organizaciones sin fines de lucro en la
Argentina. Editorial Losada S/A/Unicef, Buenos Aires, 1995.
WANDERLEY, L.E. “Rumos da ordem pública no Brasil: a construção do público”.
São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.10, n.4, out.-dez. 1996.
WILHEIM, A.M. “Iniciativas empresariais e projetos sociais sem fins lucrativos”.
Cadernos Abong (Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais). São Paulo, n.12, 1995.
66
AUTONOMIA, TRABALHO EM GRUPO E ESTRATÉGIA EMPRESARIAL: O QUE...
AUTONOMIA, TRABALHO EM GRUPO E
ESTRATÉGIA EMPRESARIAL
o que há de novo neste final de século?
ROBERTO MARX
Professor do Departamento de Engenharia de Produção da Escola Politécnica da USP
A
partir dos anos 90, o termo Grupos Autogeridos
(ou Grupos Semi-Autônomos – GSAs – termos
que serão considerados doravante equivalentes)
tem sido crescentemente utilizado para sugerir um tipo
de organização do trabalho que, através da autonomia
crescente dos trabalhadores diretos (e também dos de escritório), pode responder com eficiência e eficácia aos requisitos de flexibilidade e demais exigências do mercado. Parece haver, portanto, indícios de que a autonomia
começa a ser vislumbrada como parte integrante de um
projeto empresarial (e não mais como resultado de pressões sociais como nos anos 70 e 80) em busca de competitividade e desempenho.
O modelo de posto de trabalho – no qual a lógica do
projeto e da operação da produção tem como base uma
seqüência rígida de tarefas desempenhadas por trabalhadores praticamente fixos a tais postos – começa a ser substituído por outras abordagens que introduzem maior flexibilidade na organização do trabalho e, por conseguinte,
nas respostas do processo produtivo ao mercado – exigência observada em uma gama cada vez maior de setores industriais.
As iniciativas de mudança incluem diversos aspectos
comuns, tais como redução de níveis hierárquicos, arranjos celulares de produção, programas de melhoria contínua, melhoria dos processos comunicacionais, autonomia,
polivalência, entre os mais importantes.
Diversas pesquisas evidenciam este processo: Lawler,
Mohrman e Ledford (1992), por exemplo, estudando uma
amostra formada pelas mil maiores empresas americanas
citadas pela revista Fortune, concluem que 46% delas utilizavam-se dos chamados times autogeridos, embora, em
média, tais processos envolvessem somente 20% dos trabalhadores diretos. Na França, uma pesquisa nacional rea-
lizada em 1993 e citada por Zarifian (1995:2) chegou aos
seguintes resultados: 39% dos estabelecimentos industriais
(com mais de 50 funcionários) desenvolvem grupos multidisciplinares funcionando por projeto, 33,4% deles suprimiram níveis hierárquicos e 15% formaram grupos semiautônomos (doravante chamados simplesmente de GSAs).
Desta forma, embora as exigências de flexibilidade
sejam múltiplas e variem de um setor produtivo a outro,
bem como entre sistemas de produção (Salerno, 1991),
um número significativo de empresas está adotando mudanças importantes na organização do trabalho industrial.
O foco central deste artigo é a análise dos processos
de mudança que incluem a introdução do trabalho em
grupo na produção; das modalidades que esta opção organizacional apresenta; e das formas pelas quais elas são
introduzidas em resposta a estas exigências.
Será realizada uma análise comparativa entre as diferentes abordagens de trabalho em grupo, tendo como foco
de atenção os níveis de autonomia introduzidos no chão
de fábrica e a maneira como são tratadas as demais questões correlatas que envolvem competitividade e eficiência dos processos de produção. A referência básica da
análise comparativa será o modelo clássico de gestão – o
fordismo-taylorismo e sua abordagem centrada no posto
de trabalho.
Dentre as abordagens passíveis de serem utilizadas
como base para o processo de reestruturação, pelo menos
duas parecem destacar-se como referências importantes,
tanto para o balizamento teórico como para os processos
reais de mudança em andamento.
A primeira é oriunda da experiência japonesa, da qual
a indústria automobilística foi pioneira, sendo conhecida
por diversas denominações: lean-production, just in time,
etc. Originário do período pós-Segunda Guerra, num país
67
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
semidestruído e carente de recursos necessários para um
processo de reconstrução industrial, o ohnoísmo – cuja
designação vem do nome de seu idealizador, Taiichi Ohno,
um engenheiro da Toyota – tem como base a redução geral de desperdícios e uma ênfase no atendimento do consumidor, ao qual foi dada uma importância até então inédita, pelo menos no setor automotivo. Desde os resultados
iniciais obtidos pela Toyota, a partir dos anos 50 e até o
início dos 90, o ohnoísmo tem se tornado uma referência
básica para uma parte substancial dos processos de reestruturação industrial iniciados por organizações de todo o
mundo. O trabalho em grupo é uma de suas características mais importantes (Ohno, 1990; Womack et alii, 1990).
A segunda abordagem tem como origem a escola sóciotécnica e seus autores (Cherns, 1976, entre outros), cuja proposta é a formação de Grupos Semi-Autônomos. O surgimento destas proposições data dos anos 50 e 60 e, em vez de
possuir como mentores intelectuais, engenheiros/gerentes de
produção (casos de Ohno, Taylor e Ford), provém de pesquisas e trabalhos de consultoria de um grupo de pesquisadores ingleses reunidos em torno do Tavistock Institute, em
Londres. Dos anos 60 ao final dos 80, foram relativamente
poucos os casos de introdução desta opção organizacional,
sendo que os casos suecos da Volvo (impulsionados pelos
sindicatos e por um governo social-democrata) são os mais
representativos e conhecidos.
Tanto o ohnoísmo como os GSAs incorporam diversos aspectos da flexibilidade na organização do trabalho
e representam alternativas ao modelo clássico de organização. Porém, e esta é uma questão para a qual se procurará respostas, seriam, de fato, o ohnoísmo e os GSAs abordagens distintas sob o ponto de vista de como combinam
os vários aspectos da flexibilidade na organização e dos
resultados que buscam obter? Representariam, portanto,
escolhas organizacionais diferentes para orientar e conduzir processos de mudança organizacional do sistema de
produção? Em caso positivo, como se pode comparar os
resultados obtidos?
Adota-se para o trabalho em grupo uma definição ampla,
pois não parece relevante discutir com maior precisão um
termo genérico por si só. Em vez disso, propor-se-á um
quadro analítico que explicite a diferença entre tipos de
grupos. Neste sentido, a definição de Shonk (1992:1) para
trabalho em grupo nos parece adequada: “Um grupo compõe-se de duas ou mais pessoas que devem coordenar suas
atividades a fim de alcançar um determinado objetivo.
Objetivo e coordenação definem o grupo.”
A partir da análise da literatura pertinente, são propostas
duas modalidades de trabalho em grupos: Grupos Enriquecidos e GSAs. Ambas podem ser consideradas alternativas à abordagem clássica, de inspiração fordistataylorista e centrada no posto de trabalho.
Os Grupos Enriquecidos – inspirados na abordagem
ohnoísta (Ohno, 1990), que se baseia fundamentalmente
na flexibilidade de alocação dos trabalhadores aos postos
– representam uma organização grupal com autonomia
relativa, fortemente baseados no conceito de responsabilização e polivalência na gestão local. Seus graus de autonomia e o alcance de suas atribuições são predeterminados por um projeto organizacional definido e conduzido
externamente em relação aos trabalhadores. Enfatiza
melhorias operacionais circunscritas ao local de trabalho,
o que restringe as possibilidades de crescimento das competências profissionais e a contribuição dos trabalhadores em melhorias de cunho estratégico. Tem como ponto
forte a incorporação sistemática de metodologias e de técnicas de gestão oriundas da abordagem de TQC (Total
Quality Control) que propiciam a estes grupos uma consolidação mais “segura” e bem conhecida pela gerência.
Grupos Enriquecidos representam, portanto, uma abordagem centrada na flexibilidade de alocação dos trabalhadores, assemelhando-se a uma adaptação dos princípios do modelo de postos de trabalho a um ambiente
marcado por uma maior competição (característica dos
anos 80 em diante), particularmente observáveis em processos produtivos discretos que dependam fortemente dos
ganhos de escala para a manutenção de seus resultados –
caso paradigmático da indústria automotiva. Nestes ambientes, é possível manter-se a preocupação com padronização de métodos e procedimentos, estabelecendo-se
formas mais complexas de cooperação, que incluem trabalho grupal, fluxos mais rápidos de informação entre
trabalhadores e gerentes, aproveitamento de sugestões de
melhoria por parte dos trabalhadores diretos. Qualidade,
tempo, custo, flexibilidade são prioridades quase sempre
presentes nestes ambientes produtivos, porém a prerrogativa gerencial de projetar e controlar o trabalho se mantém, muito embora grande parte das responsabilidades
cotidianas de controle do processo de produção passe a
ser executada pelos próprios trabalhadores.
Baseado na autonomia, outro conjunto de abordagens
parte do princípio de que esta configura-se como um recurso estratégico para a obtenção de melhores resultados
empresariais, apesar de a sócio-técnica (nos anos 50 e 60)
ter enfatizado bem mais a questão da qualidade de vida
no trabalho. A autonomia dos trabalhadores e a conseqüente descentralização do processo de decisão sobre
métodos, alocação e gestão de recursos passariam a ser
características presentes no cotidiano da produção. Gerência e “facilitadores/animadores” (sem os poderes hierárquicos do supervisor, agora eliminado da hierarquia)
cobram resultados e dão garantias quanto aos recursos
necessários para o seu atingimento. Fluxos de informação e decisão passam a contar com a participação dos tra-
68
AUTONOMIA, TRABALHO EM GRUPO E ESTRATÉGIA EMPRESARIAL: O QUE...
balhadores do chão de fábrica e o trabalho grupal é conseqüência natural destes princípios.
Quanto maiores forem a possibilidade técnica e a disposição gerencial de abandonar a prescrição rígida de tempos e métodos, maiores as chances de aplicação destes
princípios. Este tipo de abordagem também se presta a
ambientes marcados pela competição por qualidade, custo, tempo e principalmente pelo fator flexibilidade. A este
tipo de grupos chamaremos de GSAs, de maneira a adotar um termo corrente. Para este tipo de grupos, atividades como as desenvolvidas por task-forces e grupos de
sugestão (doravante denominados de grupos off-line) seriam absorvidas como fazendo parte das prerrogativas e
da autonomia decisória do próprio grupo, não sendo necessária (a princípio) uma estrutura paralela para conduzi-los, como no caso anterior.
A discussão do processo de difusão de novas formas
de organização do trabalho no Brasil nos mostra uma forte presença de pesquisas em torno do modelo de leanproduction ou ohnoísmo (Marx e Salerno, 1995, entre
outros). Se na literatura internacional, casos recentes de
GSAs já tenham sido observados (Ellegard, 1994,
Berggren, 1992, entre outros), no Brasil estes estudos são
ainda em menor número. A amostra escolhida, direcionada para as empresas que estão reconhecidamente mais
avançadas nos processos de introdução de trabalho em
grupos – de ambos os tipos acima mencionados – procura representar o que poderá vir a se tornar tendência mais
amplamente difundida na organização do trabalho no
Brasil, a partir do momento em que o efeito “demonstração” for suficientemente forte para influenciar outras
empresas brasileiras a assumirem formas de organização
do trabalho que priorizem a autonomia.
A análise comparativa dos casos a seguir procurará responder às seguintes questões básicas: que motivos orientam as escolhas entre modalidades de trabalho em grupo
no Brasil? Tendo como referência o modelo clássico, em
que condições e em que tipo de indicadores uma modalidade pode ser considerada superior à(s) outra(s)? Até que
nível de autonomia dos trabalhadores organizados em
grupos na produção já se chegou no processo de implantação destes grupos? Quais são os fatores limitantes à sua
ampliação? Quais são os ensinamentos que podem ser tirados do processo decisório que vai do projeto à implantação de esquemas de trabalho em grupos?
em grupos. Os GSAs oferecem potencialmente uma resposta mais adequada à demanda por flexibilidade, porém
os Grupos Enriquecidos são muitas vezes adotados por
oferecerem uma alternativa que convive mais facilmente
com mudanças menos profundas na infra-estrutura organizacional e nas relações de poder no interior da fábrica.
As mudanças nas empresas estudadas podem ser
explicadas a partir da busca de maior competitividade ou,
mais especificamente, no esforço de se investir nos fatores competitivos: custos, qualidade e flexibilidade. Ambas as modalidades de trabalho em grupo têm possibilitado às empresas operar com um contingente menor de
trabalhadores e níveis de qualidade e flexibilidade superiores, comparativamente às situações anteriores.
Trabalho em grupo possibilita, portanto, um melhor
aproveitamento do trabalho direto, o que é feito através
de esforços na busca de polivalência (capacidade técnica
de operar vários equipamentos, além de desempenhar tarefas de apoio e limpeza) e de um comportamento do tipo
“colaborativo” que irá, de fato, induzir o trabalhador a
utilizar sua capacidade técnica de maneira compatível aos
interesses da empresa: cobertura de componentes da equipe quando necessário, disposição para variar ritmos de
trabalho, para garantir a qualidade de cada serviço (minimizando a necessidade de inspeções finais), para executar serviços de primeira manutenção, análises laboratoriais mais simples, serviços de limpeza, entre outros. Deste
modo, uma alocação mais flexível dos trabalhadores aos
postos e uma estratégia de descentralização de tarefas
anteriormente executadas pela manutenção e qualidade
traduzem-se em redução de custos com o fator trabalho
ao mesmo tempo que contribuem para a melhoria de alguns indicadores de flexibilidade.
A flexibilidade no lançamento de novos produtos (ou
flexibilidade de gama, como propõe Salerno, 1991:78)
pareceu pouco afetada pelo trabalho em grupos (uma vez
que nas empresas estudadas tais eventos podem ser considerados pouco freqüentes); no entanto, a flexibilidade
para dar conta do mau funcionamento do sistema produtivo, para suportar erros de previsão e para suprir a flexibilidade de mix, parece ser de grande relevância.1
Uma necessidade crescente de flexibilidade (como resultado de pressões “ambientais”) é, portanto, característica comum a todas as empresas estudadas. Ocorre que a
alternativa de Grupos Enriquecidos mostra ganhos de
menor escopo se comparado ao caso dos GSAs. Nesta
última, as dimensões da flexibilidade mais ligadas à inovação (de produto, processo e organização) são mais facilmente atingidas do que a alternativa de Grupos Enriquecidos, uma vez que os GSAs possibilitam maior
flexibilidade e autonomia de atuação para os trabalhadores. Mesmo assim, os casos de GSAs estudados não são
ANÁLISE DOS CASOS ESTUDADOS
Motivação para a Mudança e Resultados Obtidos
A necessidade de incremento da flexibilidade é o principal fator competitivo que induz à adoção do trabalho
69
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
suficientes para evidenciar este potencial, uma vez que
estas empresas muito pouco têm investido nesta direção.
No caso dos Grupos Enriquecidos, a busca da polivalência e do comprometimento é obtida com maior ênfase
na coerção e na prescrição. A participação em grupos offline (nos quais os trabalhadores são instados a cooperar a
partir de solicitações dos gerentes e demais chefias) parece ser uma das maneiras mais importantes pelas quais
isto é buscado nos casos de Grupos Enriquecidos. A relação entre gerência e trabalhadores tende a mudar menos
neste caso: se no passado o que a gerência esperava era
uma postura passiva e centrada no posto, agora (via pressões ambientais) ela necessita da polivalência e da melhoria contínua.
A questão que aparece como decorrência deste quadro
é: quais são as perspectivas futuras para as empresas estudadas em relação à questão da profundidade das mudanças na organização do trabalho? Uma resposta definitiva parece pouco provável, mas a mudança nestes casos
dependerá das (eventuais) futuras necessidades de flexibilidade (oriundas do próprio mercado) e de (possíveis)
pressões que os trabalhadores façam pelo aumento da
autonomia na organização do trabalho. Nos casos de Grupos Enriquecidos, um ambiente mais exigente em termos
de flexibilidade deverá colocar em xeque o atual alcance
da autonomia destes grupos, uma vez que tal situação dificulta decisões mais rápidas, de menor custo e até mesmo de maior qualidade.
Já nos GSAs, polivalência e comprometimento andam
mais juntos, estando integrados em função de uma maior
autonomia decisória no interior dos grupos, nos quais
grande parte das competências e do comprometimento são
gerados. Nos GSAs, o sentimento de pertencer a um grupo em que se pratica a autonomia parece ser fator relevante para induzir maior comprometimento do trabalhador com os objetivos da empresa (que poderia ser
considerada como um prolongamento do próprio grupo).
Por outro lado, os riscos e limitações presentes nos casos de Grupos Enriquecidos também devem ser considerados nos casos de GSAs, uma vez que em todos eles não
é possível falar em situações “maduras” ou processos definitivamente implantados. Casos como o de Uddevalla
(Marx, 1992) mostram que os ganhos potenciais que os
GSAs oferecem nem sempre são visualizados ou buscados pela gerência, o que aumenta os riscos desta modalidade organizacional.
No que se refere aos indicadores de desempenho que
as empresas da amostra utilizam, pode-se concluir que eles
não foram redefinidos ao longo do processo de mudança.
Os indicadores de produção horária, produção por homem/
ano, número de defeitos, set-ups, disponibilidade de máquinas e demais recursos apresentam quase sempre me-
lhorias significativas, mesmo que isso não ocorra sempre
desde o primeiro momento. Assim, parece correto afirmar que no contexto de todo o processo de reestruturação vivido pelas empresas, o trabalho em grupo contribuiu efetivamente para a redução de custos, o aumento
de qualidade e de certas dimensões da flexibilidade.
Cabe questionar, porém, até que ponto tais indicadores estão de fato captando e sinalizando os resultados da
empresa em um contexto diferente do que até então ela
vivia. Seria necessário que se redefinissem ou fossem criados indicadores diferentes, ou pelo menos complementares aos atuais, para que fosse possível medir fatores complexos (e novos), tais como capacidade de aprendizado
organizacional, perspectivas de ganhos de produtividade
a longo prazo, flexibilidade de mix, gama e de capacidade de lidar com imprevistos. Para que tal ocorra, porém,
é necessário que o interesse por estes indicadores de fato
exista, o que não tem sido percebido até o momento.
Segundo o que pode ser observado pelos indicadores e
por uma análise mais abrangente das empresas da amostra, particularmente as que introduziram GSAs, os resultados obtidos são importantes se comparados com a situação anterior, porém, pouca importância ainda é dada à
questão da capacidade interna de mudança e aprendizado
a longo prazo, o que implicaria uma maior preocupação
com o perigo do enrijecimento das atuais características
da organização, mesmo que pautadas pela autonomia e pela
ênfase dada à ampliação das competências dos trabalhadores.
Neste sentido, as observações de Zarifian (1992) sobre os limites e perigos das chamadas novas organizações
(ou, nas suas próprias palavras, nas organizações “qualificadas” – em oposição às “qualificantes”) parecem confirmar grande parte das conclusões sobre as empresas estudadas nesta amostra.
O princípio sócio-técnico da compatibilidade entre
projeto e implantação tem sido muito pouco considerado
pelas empresas estudadas. As decisões relativas ao projeto organizacional envolvendo trabalho em grupos são
concentradas na alta gerência. A principal referência utilizada pelas empresas são aquelas oriundas de casos bemsucedidos, o que facilita o processo de adoção da modalidade de Grupos Enriquecidos em detrimento dos GSAs.
Abordagens conceituais são consideradas pouco relevantes
pelos condutores destes processos. Esquemas de trabalho
em grupo estão sendo formulados com muito maior ênfase na produção do que nas áreas técnica e administrativa.
Há um claro processo de enfraquecimento dos papéis ligados à supervisão direta dos trabalhadores fabris.
Os casos de plantas estudadas possuem características
semelhantes no que se refere ao fato de que toda a fase de
concepção e detalhamento do projeto de mudança orga-
70
AUTONOMIA, TRABALHO EM GRUPO E ESTRATÉGIA EMPRESARIAL: O QUE...
nizacional que incluía os grupos de trabalho foi conduzida unicamente pela direção e corpo gerencial das empresas. Deste modo, diferentemente do que recomenda o princípio sócio-técnico da compatibilidade, as empresas não
buscaram um enfoque participativo (com relação aos trabalhadores e/ou representações sindicais) na fase de
formulação do projeto organizacional.
No tocante ao processo de implantação e de aperfeiçoamento dos projetos, as informações obtidas nos levam a concluir que também eles são ainda eminentemente oriundos e
geridos pelo corpo gerencial e diretivo das empresas, embora, em alguns casos, a participação de trabalhadores diretos
e demais funcionários seja mais significativa.
Quanto à questão sindical, embora haja manifestação de
alguns sindicatos, segundo a qual a introdução do trabalho
em grupos pode ser negociada e desta forma implementada,
todas as empresas estudadas parecem querer evitar a influência sindical nas questões organizacionais, seja introduzindo
Grupos Enriquecidos ou GSAs. A escolha de regiões em que
os sindicatos são fracos, embora seja fator relevante no processo decisório relativo à localização da planta em greenfields, deve-se também a outras características, como a decisão de se contar com trabalhadores mais jovens e de alto
nível educacional, sem experiências em fábricas convencionais. Para as empresas, este perfil de trabalhadores parece
ser mais adequado à introdução de novas práticas do tipo do
trabalho em grupo.
possuem ainda uma visão do potencial benefício que um
perfil de flexibilidade e autonomia pode proporcionar
dentro de um contexto mais amplo. Percebe-se, por exemplo, as dificuldades que muitas têm tido para modificarem suas sistemáticas de remuneração e avaliação, para
diminuírem a pressão sobre resultados de curto prazo (produção/homem/ano; número de defeito, entre outros) e para
abrirem maior espaço de reflexão e processos comunicacionais inter e intra-áreas, visando o aprendizado organizacional.
Neste sentido, vale a pena comentar sobre as políticas
e procedimentos de RH, um dos aspectos mais críticos
dos processos de mudança organizacional que contemple
grupos de trabalho.
Os casos de novas fábricas revelam um novo tipo de
perfil de pessoal buscado pelas empresas industriais: jovens, com alto nível de formação básica (2o grau ou curso técnico), com potencial para trabalhar em equipes,
apresentando requisitos que isto exige: trato com conflitos e com processos de negociação. Este tipo de perfil
também começa a ser buscado pelas brown-fields em processo de reestruturação.
Os processos de seleção, na busca de perfis como os
citados, têm sido cada vez mais exigentes, demorados e
cuidadosos com a escolha dos trabalhadores. Dinâmicas
de grupo, várias entrevistas em diversos níveis (inclusive
com participação de prováveis colegas de grupos) estão
sendo incluídas nesses processos.
O caso de uma das empresas estudadas, porém, ilustra
um lado importante desta questão: a experiência técnica,
advinda da prática na operação e gestão dos equipamentos, é fundamental para o desempenho de organizações
industriais e não pode ser repassada unicamente através
de programas de treinamento para trabalhadores com boa
formação educacional e atitudes compatíveis com o projeto organizacional. O aprendizado é mais lento e requer
uma composição de competências técnicas, educacionais
e comportamentais. As primeiras, normalmente provêm
de trabalhadores mais antigos, formados segundo modelos tradicionais de gestão. Um projeto organizacional
baseado em grupos – particularmente o de novas plantas
– deve levar em conta tais características e contradições.
Mesmo assim, o fortalecimento dos programas de treinamento tem sido considerado de maneira praticamente unânime como uma das molas mestras para sustentar os programas de reestruturação com base em trabalho grupal.
Os dados colhidos pelas empresas desta amostra confirmam esta hipótese, como pode ser observado pelo número de horas de treinamento e pelo aumento da amplitude dos temas tratados, em todos os casos estudados. O
treinamento deixa de ser voltado unicamente para a operação de equipamentos/processos, passando a envolver
Nível de Autonomia e Fatores Limitantes
No caso dos Grupos Enriquecidos, a autonomia concentra-se nos aspectos relativos à gestão da produção. A
partir do quadro analítico proposto, os GSAs apresentam
maior espectro e profundidade de sua utilização. A sua
ampliação parece depender dos resultados obtidos por
outras empresas neste processo e das pressões externas,
notadamente por flexibilidade, caso aumentem significativamente em médio e longo prazos. A adoção de formas
embrionárias de remuneração por competências e de processos de seleção, avaliação e treinamento compatíveis
observados em algumas das empresas estudadas indicam
trajetórias que podem levar a mudanças significativas na
gestão de recursos humanos nestas organizações. A importância do fluxo informacional é bem maior nos casos
de GSAs, uma vez que esta modalidade parece exigir um
processo mais profundo de busca do comprometimento
dos trabalhadores diretos. Os Grupos Enriquecidos convivem melhor num envolvimento mais restrito ao cotidiano da produção, o que, em geral, os exclui dos processos
de inovação organizacional e de processos estratégicos.
Cabe ressaltar mais uma vez que as próprias organizações que estão introduzindo a referência dos GSAs não
71
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
capacitações nas áreas de qualidade, manutenção, tratamento de informação, comportamento em ambientes
grupais, etc.
No que se refere aos esquemas de remuneração e avaliação, muito ainda há que se evoluir, pelo menos quanto
ao panorama apresentado pelas seis empresas estudadas
e por várias outras visitadas. Embora a necessidade de
novos modelos de remuneração e avaliação seja sempre
citada pelos gerentes entrevistados, as formas particulares pelas quais estes modelos devem ser conduzidos e projetados ainda carecem de estudos e exemplos calcados em
experiências concretas e mais consolidadas.
Pode-se apresentar, ainda, algumas observações sobre as
razões pelas quais as empresas estudadas não ampliam a autonomia atualmente observada nos grupos de trabalho.
De maneira geral, embora nenhum caso se mostrasse
como um processo já acabado (ou “maduro”), a ampliação da autonomia é um objetivo presente em todos eles.
Não obstante, os casos de Grupos Enriquecidos mostram
uma opção organizacional em que a autonomia possui um
caráter restrito e controlado: é uma concepção organizacional que pode chegar até a proporcionar graus de liberdade nos aspectos relativos à gestão de RH, o que já não
parece ocorrer com os aspectos relacionados à gestão do
planejamento, pelo seu caráter limitado de enfoque da
autonomia.
Nos casos de GSAs, os aspectos que parecem explicar, pelo menos até o presente, a não ampliação da autonomia são: a falta de clareza dos resultados que a autonomia pode alavancar, a falta de referências práticas sobre
as quais tal ampliação pode se fundamentar e, finalmente, o estágio ainda inicial em que estas empresas se encontram dentro do processo de aprendizagem e inovação
organizacional, baseado no trabalho em grupos e na autonomia.
to de busca de maior competitividade; disposição do corpo gerencial no sentido de conduzir um processo em que
as suas próprias responsabilidades e trajetórias individuais
e grupais passam a ficar mais vulneráveis a mudanças e
em que um novo tipo de compromisso seja atingido em
torno dos resultados empresariais, particularmente na sua
relação com os trabalhadores diretos e suas instâncias de
representação internas e externas; tipos de processos de
produção em que a relação homem-equipamento é marcada por uma presença significativa de atividades de
monitoração, cognição e uso de múltiplas habilidades. Isto
pode ocorrer, como no caso de Uddevalla, a partir do
reprojeto de processos tradicionalmente caracterizados
pela opção da referência da organização clássica – caso
da montagem final de automóveis.
Como tanto GSAs como Grupos Enriquecidos são conceitos que envolvem um projeto organizacional mais amplo, apreendidos ao longo de uma trajetória de longo prazo,
trata-se, em primeiro lugar, de se fazer uma opção em torno
do projeto de mudança mais amplo que se deseja. É a partir
deste projeto que o planejamento e a implantação devem ter
início. Os casos aqui analisados mostram a viabilidade dos
dois tipos de projetos organizacionais.
Quanto ao Processo de Formulação e Implementação – As alternativas organizacionais, os cuidados e a dinâmica do processo de implantação devem ser previstos
a priori (e revistos continuamente), sendo objeto de reflexão e de discussão de um Grupo de Projeto, constituindo-se como a base do projeto de mudança. A composição deste grupo deve ser a mais ampla possível, embora a
agregação de novos integrantes possa ocorrer ao longo
de ciclos sucessivos de busca de compromissos a partir
de um grupo básico inicial, cuja composição deve ser
definida caso a caso.
O processo de mudança organizacional que apresente
profundidade necessária para a implantação de grupos
operando com grande autonomia, depende de um aprendizado contínuo dos próprios atores envolvidos. Porém,
a existência de planos e reflexões prévios, com a participação do maior número de representantes dos vários setores, que discutam critérios de projeto e formas de obtenção de compromissos em torno do projeto de mudança,
é fator crítico de sucesso.
Grande parte do percurso da implantação depende mais
da postura adequada dos gerentes e coordenadores para
facilitar o processo do que propriamente dos trabalhadores encarregados da operação industrial. A iniciativa da
mudança, normalmente sob a responsabilidade do corpo
gerencial, exige que este assuma compromissos com o
restante da organização, os quais, pelo seu caráter geralmente inusitado, constituem-se em outro fator crítico de
Que “Lições” podem ser Extraídas desta Amostra?
Quanto à Escolha entre Grupos Enriquecidos e Grupos Semi-Autônomos – De maneira coerente com os argumentos que foram desenvolvidos ao longo desta pesquisa, os GSAs oferecem potencialmente ganhos mais
consistentes e sustentáveis do que os Grupos Enriquecidos. Ocorre que, para a sua implantação, é necessário que
o corpo gerencial esteja convencido de que esta escolha
seja a mais adequada, além do fato de que os riscos e dificuldades do processo de implantação são maiores, uma
vez que se trata de um processo menos conhecido e mais
dependente de soluções apropriadas caso a caso.
Como aspectos indutores da escolha de GSA, tem-se
também: ambientes competitivos mais intensamente marcados pela necessidade de flexibilidade como instrumen-
72
AUTONOMIA, TRABALHO EM GRUPO E ESTRATÉGIA EMPRESARIAL: O QUE...
sucesso. Esquemas de comunicação e negociação devem
ser cuidadosamente formulados e conduzidos.
Um processo de descentralização decisória baseado na
autonomia do chão de fábrica implica o estabelecimento
de uma estratégia de capacitação e aprendizado nas áreas
técnica, comportamental e de gestão. Nos casos de GSAs,
boa parte das competências relativas à operação e aos seus
procedimentos são cada vez menos objeto de treinamento formal e cada vez mais competências a serem adquiridas on-the-job, ou seja, no interior das equipes e no cotidiano da produção.
Desta forma, indicadores do tipo “horas de treinamento por trabalhador por ano” devem ser considerados com
reservas no que diz respeito à medida da qualidade de
programas e enfoques de treinamento.
Assim, recomenda-se evitar grandes programas de treinamento, que afastam, por vezes, trabalhadores por tempo excessivo da produção, sem que o aprendizado/resultado seja compatível. A melhor orientação parece ser a
seguinte: o treinamento formal deve ser ministrado em
função da necessidade de utilização do conhecimento dele
advindo. Pequenos e flexíveis “pacotes” de conhecimento
tendem a ser mais úteis do que extensos programas de
treinamento formal.
As formas de remuneração e de gestão de RH em geral
devem ser compatíveis com o tipo de organização adotado. Esquemas baseados em salário fixo e/ou único são
restritivos e enrijecedores. Como alternativas, deve-se
pensar em sistemáticas mais complexas de avaliação de
competências e resultados, tanto individuais como grupais.
Obviamente, estruturas de cargos e salários tradicionais,
baseadas em avaliações subjetivas e em carreiras calcadas na especialização em funções/postos de trabalho tendem a ser substituídas por sistemáticas compatíveis com
estruturas organizacionais mais “enxutas” e que se fundamentem em resultados de processos e fluxos em vez de
departamentos e funções.
Há novos e estratégicos espaços de intervenção que
devem ser considerados e ocupados pelos antigos supervisores e técnicos de manutenção, qualidade, etc. Ao se
promoverem demissões ou processos de realocação de
funcionários sem uma análise mais cuidadosa, corre-se o
risco de se perder competências importantes para a organização, tanto a curto, médio como a longo prazos.
O escopo de atuação de setores de apoio, como manutenção e qualidade, pode ser agora ampliado, incorporando-se a ele não só tarefas de treinamento e orientação direta dos operadores, mas envolvendo atividades de
planejamento de operações, prospecção de oportunidades
(compra ou reforma de equipamentos/processos nos casos da manutenção; desenvolvimento e certificação de
fornecedores, no caso da qualidade).
Para tanto, o projeto organizacional de reestruturação
destas atividades deve prever a inserção dinâmica destes
setores no ambiente de produção, criando laços e mecanismos pelos quais o diálogo e as interfaces entre eles e a produção possam ocorrer da maneira mais integrada possível.
Na questão comunicacional, a principal recomendação
diz respeito ao acesso e à qualidade dos sistemas de informações colocados à disposição dos trabalhadores: o
critério de acessibilidade deve ser o mais amplo possível.
Além disso, técnicas de projeto de sistemas de informação que levem em conta os processos cognitivos dos trabalhadores devem ser igualmente incorporados.
As decisões estratégicas precisam estar referenciadas
(e reforçadas) pela prática dos gerentes e de sua relação
com os trabalhadores e demais funcionários: o discurso
precisa estar referendado pela prática. Estas posturas e
iniciativas são mais compatíveis com os processos de
mudança baseados nos GSAs do que nos Grupos Enriquecidos, uma vez que aqueles são mais abertos a uma
dinâmica mais flexível da organização e das necessidades de sua mudança.
A noção de compromisso pode englobar também a
participação dos sindicatos no processo de mudança, o
que exige uma abertura de ambas as partes para que este
possa ser obtido. A participação sindical, a princípio, pode
ser um auxílio ao processo. O caso da indústria siderúrgica francesa (Usinor/Sacilor, s.d.), por exemplo, confirma
esta possibilidade.
Os indicadores de desempenho devem ser definidos e
gerenciados de maneira coerente com o modelo organizacional adotado. Para uma organização mais complexa,
flexível e competitiva, novos indicadores devem completar
os mais tradicionais para que seja possível não só acompanhar os resultados do processo de mudança mas também reforçar um comportamento dos trabalhadores diretos no rumo da obtenção de compromissos para com esta
mudança. Devem ser levados em conta nesta escolha fatores técnicos e comportamentais que, ao que tudo indica, é um caminho importante a ser trilhado, tanto por
empresas como por pesquisas de âmbito acadêmico. Definir indicadores não convencionais para situações cada
vez mais complexas e instáveis é também um fator crítico de sucesso.
CONCLUSÕES
As abordagens centradas no posto de trabalho têm dado
lugar a iniciativas que configuram formas de organização do trabalho mais flexíveis, priorizando o desempenho de fluxos produtivos em detrimento dos resultados
obtidos em cada tarefa. Muitas organizações têm passado
a adotar diferentes formas de trabalho grupal na produ-
73
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
ção, como decorrência de pressões pelo incremento da
flexibilidade.
A partir da análise da literatura pertinente, foram propostas duas modalidades desta alternativa organizacional:
Grupos Enriquecidos e GSAs. O conceito de GSA, oriundo da abordagem sócio-técnica, tem conquistado uma atenção crescente desde o final dos anos 80. Diferentemente
dos trabalhos iniciais elaborados nos anos 60 e 70, em
que foram enunciados os princípios gerais de projeto organizacional baseados nesta abordagem, começa a tomar
forma um corpo de conhecimentos (alimentados por experiências concretas, numerosas e mais variadas em termos de tipos de sistemas de produção) já capaz de orientar processos de mudança na globalidade da organização.
Estes conhecimentos se baseiam no conceito de autonomia, voltando-se para metas de eficiência e competitividade industriais, flexibilidade organizacional e incremento
das competências profissionais dos atores envolvidos neste
processo.
Os GSAs podem ser considerados alternativas organizacionais potencialmente capazes de possibilitar melhoria do desempenho operacional, sob uma perspectiva bastante diversa de iniciativas centradas na questão social
(seja como decorrência de pressões sindicais ou do perfil
do mercado de trabalho), objetivo que orientou grande
parte dos processos de introdução ocorridos nos anos 70.
Os Grupos Enriquecidos (inspirados na abordagem
ohnoísta) representam uma organização grupal com autonomia relativa, fortemente baseada no conceito de responsabilização e polivalência na gestão local. Seus graus
de autonomia e o alcance de suas atribuições são bastante restritos e predeterminados por um princípio de projeto organizacional que limita totalmente a participação dos
trabalhadores em sua formulação.
Enfatiza melhorias operacionais circunscritas ao local
de trabalho, o que restringe as possibilidades de crescimento das competências profissionais e a contribuição dos
trabalhadores em melhorias de cunho estratégico. Tem
como ponto forte a incorporação sistemática de metodologias e de técnicas de gestão oriundas da abordagem de
TQC, que propiciam a estes grupos uma consolidação mais
“segura” e melhor conhecida pela gerência.
Já os GSAs, uma vez que enfatizam a autonomia e a flexibilidade, possuem maior potencial de crescimento profissional dos componentes do grupo para a discussão e melhoria de resultados locais e globais da organização, incluindo
até mesmo a própria inovação organizacional, de produtos e
de processos. Os princípios sócio-técnicos – sobre os quais
os GSAs se apóiam – privilegiam a participação de todos os
envolvidos (inclusive os trabalhadores) na formulação do
projeto organizacional de mudança, o que inclui o desenho
e a dinâmica de funcionamento dos GSAs.
Seguindo uma perspectiva de dinâmica organizacional,
uma trajetória que se inicie com Grupos Enriquecidos e se
consolide como GSAs parece ser perfeitamente plausível,
embora o mesmo não possa ser dito do caminho inverso:
tal trajetória se constituiria em um retrocesso em relação à
busca de flexibilidade organizacional, com riscos possivelmente maiores para todos os envolvidos.
No estudo realizado junto a seis empresas industriais
brasileiras foi possível constatar que a justificativa para a
adoção de ambas as modalidades de grupos é a melhoria
da competitividade, tendo relação direta com a redução
de custos e aumento da flexibilidade operacional. Faz parte
de um conjunto de mudanças que envolve novo tratamento
à qualidade, fluxos de informação, redução de desperdícios, reprojeto da produção baseado em células, dentre
os mais importantes. Os resultados concretos, já obtidos
e sinalizados por indicadores de gestão, mostram melhorias flagrantes de desempenho em relação ao modelo clássico. Ambas as alternativas organizacionais possibilitam
resultados positivos e superiores (em termos de indicadores quantitativos) do que os provenientes da abordagem clássica baseada no posto de trabalho. Não é possível, com os dados empíricos disponíveis até o momento,
proceder-se a uma comparação entre as duas formas organizacionais diretamente, já que as empresas têm optado, em seu processo de mudança, por somente uma das
duas abordagens. No entanto, sob o ponto de vista prospectivo e de longo prazo, analisando a questão da inovação organizacional e do crescimento profissional dos envolvidos, a modalidade de GSAs oferece um tratamento
mais avançado e integrado, com melhores possibilidades
de ganhos nestes aspectos.
Ao se considerar que a autonomia relaciona-se com três
grandes grupos de características – Organização da Produção, Gestão de Recursos Humanos e Gestão de Planejamento e Estratégia –, observa-se que é no primeiro deles que se concentram com maior intensidade os aspectos
da autonomia existentes nos casos dos Grupos Enriquecidos. Nos GSAs, os casos estudados mostram pouca ênfase somente nos itens relativos à Gestão de Planejamento e Estratégia. O alargamento da autonomia depende de
alguns fatores, dentre os quais o mais importante é o requisito de ela estar simultaneamente no centro das preocupações da estratégia empresarial e no comportamento
gerencial. A organização precisa, a um só tempo, assumir que a autonomia impulsiona o negócio da empresa e
que há mecanismos internos (esquemas de remuneração,
de avaliação, de comunicação) que lhe dão suporte.
A complexidade, o risco e a profundidade das mudanças
requeridas pelos GSAs são maiores e por isso menos dominadas pelas empresas. Isso as induz, muitas vezes, a optarem por enfoques mais conhecidos e de resultados já
74
AUTONOMIA, TRABALHO EM GRUPO E ESTRATÉGIA EMPRESARIAL: O QUE...
comprováveis pelo teste da prática. À medida que os resultados positivos obtidos pelos GSAs se confirmarem e se
mantiverem, tais barreiras poderão cair ou, pelo menos, diminuir substancialmente. A decisão de adoção de GSAs é
facilitada nos casos de projeto e instalação de uma nova planta ou quando se opta por esta modalidade organizacional (ao
lado de outras iniciativas) em uma situação de crise envolvendo a sobrevivência da empresa. Além disto, os sistemas
de produção em fluxo contínuo apresentam características
operacionais (e de relação operadores-equipamentos) que
também facilitam este processo.
Há diferentes alternativas de projeto organizacional
para GSAs, com maior ou menor risco e complexidade,
que podem ser seguidas em etapas sucessivas ou não. A
consideração destas alternativas e de sua evolução no tempo é parte do trabalho de um grupo de projeto organizacional e de coordenação da implantação, que deve incorporar trabalhadores e sindicatos, o mais amplamente
possível. Este grupo deve estar atento às “armadilhas”,
aos riscos inerentes a este processo. Em particular, as decisões tomadas devem levar em conta os ciclos “curto” e
“longo”de inovação, evitando um projeto de organização
rígido. O alerta em relação a estes cuidados e a sugestão
de alternativas organizacionais existentes pode ser uma
parte relevante do papel a ser desempenhado por um consultor externo.
A modalidade de GSAs abertos ilustra uma ênfase
importante na questão da flexibilidade intrínseca de um
dado projeto organizacional. Um dos aspectos que deve
ser objeto de grande preocupação em qualquer processo
de mudança baseado em grupos é a necessidade de se
evitar o enrijecimento das novas estruturas, o que limitará as possibilidades de adaptação organizacional e incremento das competências profissionais a longo prazo. Os
GSAs não devem ser encarados como uma resposta adequada a qualquer ambiente competitivo e sistema de produção. Tem como pressupostos e necessidades um conjunto de mudanças e perspectivas de como “olhar” o
processo produtivo e de como conduzir processos de
mudança, que não é ainda facilmente encontrável nas
empresas brasileiras. Para que seus ganhos potenciais
possam ser obtidos de fato, é preciso que ocorram mudanças bem mais profundas do que a modalidade de Grupos Enriquecidos tem originado, nos aspectos infra-estruturais da organização.
Nos casos em que a necessidade de flexibilidade no
tratamento às questões de inovação de produto, processo
e de organização for mais intensa, os GSAs representam,
de fato, um potencial significativo no que diz respeito à
adoção de um novo tipo de articulação e de compromisso
entre trabalhadores, corpo gerencial e diretivo da empresa. Isto se constituirá, certamente, em uma mudança significativa no panorama da organização do trabalho no
Brasil, reduzindo em muito a importância que a abordagem clássica – em suas várias formas – ainda possui.
NOTAS
E-mail do autor: [email protected]
1. Salerno (1991) define os tipos de flexibilidade da seguinte forma:
– gama: capacidade de introdução ou modificação de produtos, peças ou componentes de uma determinada linha/processo.
– mix: capacidade de suportar alterações no mix de produção, dada uma determinada gama de produtos, peças ou componentes.
– para suportar mau funcionamento do sistema produtivo: capacidade de resposta a imprevistos na produção (falta de suprimentos, variabilidade de insumos,
equipamentos, problemas de coordenação).
– para suportar erros de previsão: flexibilidade relativa à minimização de seus
efeitos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BERGGREN, C. Alternatives to lean production: work organization in the
swedish auto industry. Cornell ILR Press, 1992.
CARVALHO, R. e SCHMITZ, H. “Fordism is alive in Brazil”. IDS Bulletin.
Brighton, v.20, n.4, 1989, p.18-22.
CHERNS, A. “The principles of sociotechnical design”. Human Relations, v.29,
n.8, 1976, 783-792.
ELLEGARD, K.; ENGSTROM, T. e NILSSON, L. “La réforme du travail
industriel – principles et réalites de la planification de l’usine de montage
d’automobiles Volvo a Uddevalla”. Actes du Gerpisa. Paris, n.9, Gerpisa,
1994, p.55-108.
LAWLER, E.; MOHRMAN, S. e LEDFORD, G. Employment involvement and
total quality management. San Francisco, Jossey-Bass, 1992.
MARX, R. “Processo de trabalho e grupos semi-autônomos: a evolução da experiência sueca de Kalmar aos anos 90”. RAE – Revista Brasileira de Administração de Empresas. São Paulo, 1992, p.36-43.
MARX, R. e SALERNO, M. Team work in a brazilian automotive plant: what is
changing in the way work is organized? Group work in car industry.
Troisieme Rencontre Internationale: les nouveau modeles industrieles. Paris, Gerpisa, 1995.
OHNO, T. Toyota production system. Productivity Press, 1990.
SALERNO, M. Flexibilidade, organização e trabalho operatório: elementos para
análise da produção na indústria. Tese de doutorado. São Paulo, Escola
Politécnica, Universidade de São Paulo, 1991.
__________ . “Trabalho em grupo semi-autônomo: uma análise sobre problemas de concepção e implantação. Workshop internacional Para onde caminham as organizações. Anais... São Paulo, Epusp, 18-19 de agosto de 1994.
SHONK, J. Team based organizations. New York, Irwin, 1992.
WELLINS, R.; BYHAM, W. e DIXON, G. Inside teams. San Franciso, JosseyBass, 1994.
WOMACK, J.; JONES, D. e ROOS, D. The machine that changed the world.
New York, Rawson Associates, 1990.
ZARIFIAN, P. Caderno de encargos da organização qualificante e flexível. Paris,
s. ed., 1992.
__________ . Novas formas de organização e modelo de competência na indústria francesa. Paper apresentado no workshop internacional: Implementação de Novas Formas de Organização do Trabalho. São Paulo, Indústrias
Gessy Lever, 15-18 de agosto de 1995.
75
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
A IGREJA CATÓLICA E A QUESTÃO SOCIAL
LUIZ ALBERTO GÓMEZ DE SOUZA
Diretor Executivo Substituto do Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais
A
como o próprio von Ketteler, que em 1864 escrevera sobre “A questão operária e o cristianismo”, mas também
haviam leigos como Albert de Mun, na França, Toniolo,
na Itália ou o Cardeal Manning, na Inglaterra (Roos, 1993:
56-65; Ávila, 1972 e 1991). A encíclica social do papa
teria discreta acolhida, sendo boicotada, inclusive, por
igrejas locais (não foi distribuída, por exemplo, no México). O Concílio Plenário da Igreja Católica latino-americana, que se reuniu em Roma entre maio e julho de 1899,
tratou de problemas internos de fé e de doutrina e do assunto candente das relações entre Igreja e Estados, mas
não dos temas sociais (König, 1993: 132-144).
Entretanto, sempre é possível encontrar, como no caso
de Ozanam, figuras que se adiantavam ao seu tempo.
Assim, no Brasil, o padre Júlio Maria escreveu em artigo
do mesmo ano de 1899: “Como no mundo inteiro, hoje
no Brasil não há, não pode haver senão duas forças: a Igreja e o povo (...) a questão social (...) é a questão por excelência, porque ela afeta os interesses fundamentais do
homem e da sociedade (...) (há que) mostrar aos pequenos, aos pobres, aos proletários que eles foram os primeiros chamados pelo Divino Mestre, cuja Igreja foi logo,
desde o início, a Igreja do povo; (...) enfim – unir a Igreja
ao povo” (Maria, 1950: 244-247).
Depois de 40 anos da primeira encíclica, o papa Pio
XI voltou ao problema com Quadragesimo Anno, em
1931, logo após a crise econômica internacional, sob o
impacto da revolução soviética e da ascensão do fascismo na Itália. Pio XII tocaria lateralmente nas Mensagens
de Natal de 1944 e 1945, mas o tema seria central com
João XXIII (Mater et Magistra e Pacem in Terris), Paulo
VI (Populorum Progressio), o Concílio Vaticano II
(Gaudium et Spes), até João Paulo II (Sollicitudo Rei
Socialis, Laborem Exercens e Centesimus Annus).
s igrejas cristãs têm uma história antiga de apoio
assistencial e de doutrinas sobre a caridade e a justiça social. Entretanto, o tema da questão social,
tal como conhecido hoje, surgiu a partir da revolução industrial, no final do século XVIII, das lutas sociais na Inglaterra
e logo depois na França, na Bélgica e na Alemanha. Começam então as mobilizações operárias e são criados os primeiros sindicatos, que enfrentam a exploração do trabalho
de mulheres e crianças e os baixos salários, propondo a defesa dos direitos trabalhistas e pressionando pelas leis protetoras diante da pobreza (poor laws). O ano de 1848 foi um
momento de violentas comoções sociais em toda a Europa.
Neste período, Marx e Engels elaboraram o Manifesto Comunista, a pedido da Liga dos Comunistas, e o bispo de
Mogúncia, von Ketteler, pronunciou os sermões de advento
sobre o tema da questão operária. Na mesma ocasião, o líder
católico Frederico Ozanam, em artigo para uma revista francesa, lançou seu chamado “Passemos aos bárbaros”. Para ele,
a Igreja Católica, como o fizera nos séculos VIII e IX, deveria deixar as velhas alianças e ir ao encontro da classe operária e da República.1
Mas essa Igreja, enredada com seus apoios às monarquias e às aristocracias no poder, permanecia na defensiva diante tanto do novo mundo capitalista industrial que
ia surgindo, quanto do proletariado que dentro dele se
mobilizava. Assim, quando em 1891 o papa Leão XIII
publicou sua carta encíclica sobre a questão social, com o
título “Sobre as coisas novas” (Rerum Novarum), isso era
novidade para boa parte dos círculos da Igreja, mas não
para lideranças dos movimentos sindicais e políticos da
época, cujos bisavós provavelmente tinham lutado em
1830 nas barricadas de Paris, seus avós novamente em
1848 e os pais, talvez, na Comuna de 1870. É verdade
que alguns líderes católicos vinham tratando do tema,
76
A IGREJA CATÓLICA E A QUESTÃO SOCIAL
No Brasil, no começo do século, a questão social foi
levantada como bandeira por lideranças sindicais anarquistas e, logo depois, socialistas e marxistas. Para o governo da República Velha, seria considerada “questão de
polícia”. Nos meios religiosos, a Ação Católica tratou dela,
nos anos 30, através da Juventude Operária Católica (JOC),
que se espalhava por muitas cidades de São Paulo e do
Rio Grande do Sul. Alceu Amoroso Lima, presidente da
Ação Católica, naquele período, foi influenciado pelo
“distributivismo” de Chesterton, que propunha a multiplicação de pequenas propriedades, e escreveu Problema
da Burguesia (1932) e mais tarde O Problema do Trabalho
(1946) (Souza, 1984:58-64, 91-93).
O tema adquiriu importância na Juventude Universitária Católica (JUC), organismo especializado da Ação
Católica que, em 1954, escolheu como programa nacional a temática da “universidade e a questão social”. Nesse mesmo ano, veio ao Brasil o padre Lebret, frade
dominicano francês, que lançara no pós-guerra sua organização “Economia e Humanismo” e assessorava diversos governos nacionais (Senegal, Líbano) e locais (São
Paulo, Montevidéu e Bogotá). Para ele, tratava-se de construir uma economia solidária e de planejar administrações
públicas a serviço do bem comum. Lebret teria grande
influência tanto na JUC como diante de um bom número
de jovens profissionais católicos.2
Já em 1950, o bispo de Campanha, Minas Gerais, dom
Inocêncio Engelke, ligado à Juventude Agrária Católica,
tinha lançado sua carta-pastoral: “Conosco, sem nós ou
contra nós se fará a reforma rural”. O tema, sempre polêmico, dividia a Igreja. Dez anos depois, em direção contrária, outros bispos, Castro Mayer de Campos e Proença
Sigaud de Diamantina, juntamente com dois leigos, um
deles o líder da TFP – Tradição, Família e Propriedade,
Plínio Correia de Oliveira, escreveriam, contra a proposta, o livro Reforma agrária, problema de consciência,
opondo-se a qualquer política de reformas sociais, em
nome do velho integrismo católico.
Reuniões de bispos do Rio Grande do Norte (1951),
da Amazônia (1952 e 1957) e do Vale do São Francisco
(1952) trataram dos temas do desenvolvimento, da reforma agrária e das migrações. Em 1956, realizou-se uma
reunião no Nordeste, com dirigentes da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e do governo, a qual,
segundo o testemunho do próprio presidente Kubitschek,
esteve na origem da criação da Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (Sudene).
Nesses anos de rápidas transformações, foi ficando
evidente a estrutura social crescentemente desigual e polarizada do Brasil, que se caracterizava por ser um país
em desenvolvimento, com capas enormes de pobreza e,
nos termos da época, dramática marginalização social.
Uma mensagem da Comissão Central da CNBB, de julho
de 1962, afirmava que: “Ninguém desconhece o clamor
das massas que, martirizadas pelo espectro da fome, vão
chegando, aqui e acolá, às raias do desespero(...) o povo
da cidade e dos campos começa a compreender que, sem
a participação na vida das instituições e da própria sociedade, jamais será libertado do estado de ignomínia em que
se encontra.”
O Estado tratava de ir desenvolvendo suas políticas
públicas em educação, saúde e habitação, sendo que a
sociedade debatia as chamadas “reformas de base”. Em
30 de abril de 1963, um ano antes do golpe-de-estado, os
bispos voltaram ao problema em nova mensagem: “Nossa ordem é, ainda, viciada pela pesada carga da tradição
capitalista, que dominou o ocidente nos séculos passados.
É uma ordem de coisas na qual o poder econômico, o dinheiro, ainda detém a última instância das decisões econômicas, políticas e sociais. Exigem-se profundas e sérias transformações.” E enumerava, a seguir, a questão rural,
a reforma da empresa, a reforma tributária, a reforma
administrativa, a reforma eleitoral e o problema educacional. Agenda aliás, mais de 30 anos depois, de uma atualidade impressionante e que mostra o pouco que se avançou desde então em matéria de políticas sociais. Nesses
anos, produziu-se uma enorme fermentação social, polarizando-se as opções ideológicas e políticas. Dirigentes
cristãos estiveram presentes nas atividades de educação
popular (iniciativas de Paulo Freire, do Movimento de
Cultura Popular de Recife, do Movimento de Educação
de Base da CNBB, etc.), de sindicalização popular e em
diferentes mobilizações sociais. O golpe de 64, logo depois, tratou de interromper esse processo incômodo para
o sistema (Souza, 1984:64-70).
Assim a Igreja, como instituição, às vésperas de abril
de 1964, tomava posição a favor das reformas sociais. Um
bom número de seus membros – especialmente militantes
ou ex-militantes da Ação Católica – participavam dos processos de mudança. Mas não se pode esquecer que outros
católicos se mobilizaram em direção contrária, através das
Marchas com Deus pela Família e pela Liberdade, com
apoio de figuras importantes do episcopado, no combate
ao que julgavam ser o perigo da subversão da ordem. No
momento do golpe, a Igreja, no dizer de um autor, ficaria
“na corda bamba”. Vários cristãos foram presos, se asilaram em embaixadas ou partiram para o exílio, enquanto
outros fariam parte do primeiro governo militar ou dos
órgãos de repressão. A própria CNBB, em sua mensagem
de 27 de maio de 1964, estranhamente declarava: “Agradecemos aos militares, que com grave risco de suas vidas
(sic) se levantaram em nome dos supremos interesses da
Nação e gratos somos a quantos concorreram para libertar-nos do abismo iminente.” Mais adiante, entretanto, fez
77
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
uma defesa corporativa de alguns de seus membros: “Não
aceitamos e nem podemos aceitar nunca a acusação injusta, generalizada, gratuita, velada ou explícita, pela qual
bispos, sacerdotes, fiéis ou organizações, como por exemplo a Ação Católica e o MEB são comunistas ou comunizantes”. Deve-se ressaltar que os conflitos sociais, que
atravessam a sociedade, também dividem a Igreja e aí refratam seu espectro ideológico (Souza, 1994:130-136). Esta
é uma instituição inserida na vida social e sujeita às pressões dos interesses contraditórios.
Durante os anos do pacto autoritário (1964-1985), a
Igreja esteve ativamente presente no cenário político, tanto
na defesa dos direitos humanos e na denúncia da tortura
ou da Lei de Segurança Nacional, quanto como espaço
de organização social. Logo começaram os conflitos entre setores da Igreja e o governo militar (Volta Redonda,
Crateús, Goiás, São Félix do Araguaia, Conceição do
Araguaia, São Paulo, etc.). As Comissões Justiça e Paz,
no âmbito nacional ou de alguns estados (especialmente
a de São Paulo) vão intervir diante da violação de direitos, tentativas de expulsão de sacerdotes e de um bispo
(dom Pedro Casaldáliga), prisões de cristãos, conflitos de
terra, etc.
Nesse momento, os espaços de associação ficaram fortemente cerceados. Após duas tentativas de greves em
1968 (Osasco e Contagem), começou um tempo de dificuldades para o movimento sindical. Passaram-se dez anos
para que ocorressem as grandes mobilizações do ABC
paulista, a partir de 1978 e 1979. Dissolvidos os partidos
políticos em 1966, estes foram substituídos por um
bipartidismo artificial e estreito. Quase não havia lugar,
na sociedade civil, para associações livres. E com as medidas ortodoxas, que tinham a pretensão de preparar o
“milagre econômico brasileiro”, aumentava o desemprego e diminuía o poder aquisitivo dos salários. Na área
acadêmica, um espaço aberto à crítica foi constituído pela
Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC),
com seus enormes congressos anuais. Na sociedade se
faziam presentes a Ordem dos Advogados do Brasil
(OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e, cada
vez mais, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
(CNBB).
Além disso, o espaço da Igreja Católica tornou-se um
dos poucos lugares possíveis de reunião e de articulação
de interesses populares, num tempo de sociedade civil
rarefeita. O povo, tradicionalmente religioso, encontrava-se nos lugares de culto para suas celebrações, e ali ia
tratando também de seus problemas concretos e cotidianos: terra para trabalhar, teto para viver, educação para
os filhos, saúde, salários, emprego, transportes, etc. Nos
setores populares, não ocorre tão claramente a separação
dos lugares sociais que a modernidade foi introduzindo:
lugar político, cultural, religioso, privado, etc. Para eles,
tudo está unido num mesmo lugar vital, podendo passar,
praticamente sem transição, da reza à festa, ou à discussão dos problemas de saúde e de emprego. Assim, nas
comunidades religiosas dos anos 70, articulavam-se estreitamente a vida social e a religiosa. Surgem, então, as
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), em que se estrelaçam Fé e Vida (Mainwaring, 1989:101-134; Bruneau,
1974). Isso não nasceu de uma elaboração abstrata, mas
sim de uma experiência concreta, ligada a uma conjuntura política e social. A Teologia da Libertação, que foi se
constituindo na América Latina entre 1968 e 1971, seria
teoricamente a expressão e a conseqüência dessa relação.
No dizer de Gustavo Gutiérrez, um de seus iniciadores,
tentaria ser “uma palavra coerente com uma prática”
(Gutiérrez, 1979:177).
Em 1972, durante uma reunião de bispos e agentes
pastorais da Amazônia, nasceu uma instituição que três
anos mais tarde tornar-se-ia a Comissão Pastoral da Terra (CPT), articulada de maneira flexível à CNBB. Ela estaria presente desde então nos diferentes conflitos do campo e daí sairiam muitos quadros para os sindicatos rurais,
na origem da chamada oposição sindical. Não foi por acaso
que a CPT passou a ser alvo preferido das ameaças, ações
e pressões nos anos seguintes por parte tanto do Ministério da Justiça quanto das associações de proprietários com
suas milícias privadas. A presidência da Comissão estava
nas mãos de bispos (D. Moacyr Grecchi, do Acre, e Purus
ou d. José Gomes, de Chapecó), que inclusive receberam
ameaças de morte. O caráter ecumênico da organização,
nesses primeiros anos, era mantido por um vice-presidente
de uma Igreja Evangélica. A CPT espalhou-se por todo o
país e foi um dos órgãos mais ativos na denúncia da violência rural.
Ainda em 1972, começaram as atividades do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), logo conhecido internacionalmente pela defesa das nações indígenas ameaçadas pelo genocídio e pela expulsão de suas reservas
históricas. Dom Tomás Balduíno, de Goiás, foi um dos
primeiros presidentes do Conselho. Outras pastorais foram se reorganizando: a Pastoral Operária, que continuou
o trabalho anterior da Juventude Operária Católica (JOC)
e da Ação Católica Operária (ACO); a Pastoral Universitária, que retomou o trabalho da Juventude Universitária
Católica (JUC), praticamente dissolvida pelos bispos em
1967; além de diversas Pastorais da Juventude, que se
desenvolveram nas várias regiões do país, como a Pastoral da Juventude dos Meios Populares, a Pastoral da Juventude Rural, etc. (Souza e Chaponay, 1990:586-591).
A Igreja, historicamente, sempre esteve ligada à educação, com uma grande rede de estabelecimentos de ensino. Foi participando também de novas experiências de
78
A IGREJA CATÓLICA E A QUESTÃO SOCIAL
educação popular, como o já citado Movimento de Educação de Base – MEB. Iniciativas da pastoral da saúde
trataram de unir as práticas científicas com a medicina
popular, recuperando algumas de suas tradições. Diversas pastorais foram surgindo – dos migrantes, dos pescadores, da mulher marginalizada – ampliando-se assim o
espectro da intervenção da Igreja na sociedade.
Vale indicar uma característica nova de algumas dessas experiências. A antiga Ação Católica tinha uma organização centralizada, com direções diocesanas, nacionais
e inclusive internacionais (JOC Internacional, JEC Internacional, etc.). Era o estilo próprio da estruturação do
mundo industrial moderno, com suas grandes empresas,
centrais sindicais, aglomerados urbanos, burocracias estatais, etc. O ano de 1968, a partir dos jovens, sinalizou
uma crise desse mundo moderno concentrado, piramidal
e burocrático, tanto no modelo capitalista das multinacionais, quanto do socialismo real estatista e autoritário. Com
as transformações tecnológicas da informática e a crítica
ao mundo massificado e cada vez mais asfixiante, vai se
configurando um mundo pós-industrial, que busca desenhos descentralizados e unidades menores, tanto de produção quanto de vida e de decisão. Essas novas experiências procuravam adequar-se às diversidades regionais e
locais e às diferentes práticas das regiões urbanas e rurais
do país. Assim, as CEBs não se constituíram em um movimento nacional igual aos anteriores, mas sim como uma
rede flexível e diversificada de iniciativas de Igrejas locais. Uma CEB de Crateús era diferente de outra de Goiás,
de Vitória ou da periferia de São Paulo e encontravam-se
periodicamente, nos chamados Encontros Intereclesiais,
para trocas de experiências e reflexão comum, mantendo
entretanto suas identidades próprias (Souza, 1992:5-11).
Durante os anos 70, ficaram evidentes, nas CEBs, as resistências populares, as reivindicações e as mobilizações
sociais. Aliás, o período compreendido entre a reunião
latino-americana dos bispos católicos em Medellin (1968)
e a seguinte em Puebla (1979) foi um momento privilegiado de presença da Igreja da região nos problemas sociais e políticos. Essa Igreja, acusada tantas vezes de chegar atrasada ao cenário dos conflitos sociais dos últimos
séculos, parecia então bastante adequada à consciência
histórica desses tempos.
A problemática rural foi sempre um dos eixos centrais
da questão social brasileira. A CNBB, em sua Assembléia
de 1980, aprovou uma declaração sobre Igreja e os problemas da terra, que despertou fortes reações nos ambientes conservadores e nos setores dirigentes do sistema,
uma vez que relativizava, a partir de sua doutrina mais
tradicional, o direito de propriedade, subordinando-o ao
uso e à destinação universal dos bens. Suas Diretrizes da
ação pastoral, de 1983 e de 1987, enfatizaram a necessi-
dade de transformações estruturais, bem como a declaração de 1988, Igreja: comunhão e missão na evangelização dos povos, no mundo do trabalho, da política e da
cultura, e a do ano seguinte, Exigências éticas da ordem
democrática. Este último documento afirma que: “A democracia não se realiza, de fato, quando o sistema econômico exclui parcelas da população dos meios necessários a uma vida digna.”3
Com estas últimas declarações, já estamos saindo do
pacto autoritário para os anos recentes da transição para
a democracia. Mudou então totalmente o cenário político. Os novos partidos, que vinham se estruturando, retomam sua posição de centralidade. Os sindicatos reorganizam-se, fortalecidos com as mobilizações do começo
da década. Brotam por todas as partes movimentos sociais criativos. É um tempo de intensa mobilização na
sociedade civil. A Igreja, que nos tempos do pacto autoritário, na expressão de um de seus membros, fora “a voz
dos sem voz”, teve de reaprender a conviver com outros
espaços de organização social e deixar para eles muitas
iniciativas que vinha fazendo supletivamente. Por outro
lado, várias de suas lideranças encaminharam-se para as
atividades partidárias, sindicais ou dos movimentos sociais. Analistas apressados previram então que a Igreja
perderia a importância que tinha tido até então no cenário político e social. Alguns de seus dirigentes, inclusive,
não esconderam uma certa nostalgia por um tempo de
aparente hegemonia sem rivais. É verdade que, na nova
situação, a Igreja poderia se voltar mais para suas tarefas
diretamente religiosas, mas permaneceria como uma importante escola de quadros para a vida em sociedade, de
onde seguiram saindo lideranças sociais e políticas (Souza, 1982:237-246). Por outro lado, nos anos 80 e seguintes, ao contrário do que tinham vaticinado as teorias da
secularização, as religiões mantêm uma centralidade decisiva na sociedade e uma enorme força de convocação
(Souza, 1986:2-15).
Pesquisando a origem de dirigentes de movimentos
sociais, políticos e sindicais, nota-se que uma parte significativa deles foi formada nas pastorais da Igreja. Assim,
por exemplo, muitas lideranças do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) vieram, na década
anterior, das pastorais de juventude do Rio Grande do Sul
e de Santa Catarina e, mais recentemente, têm origem nas
diferentes pastorais populares de todo o país. Situação idêntica ocorreu em relação aos posseiros do Norte e CentroOeste, nos anos 70, quando foi grande a influência das
CEBs e da CPT. Igual realidade verifica-se no que se refere
à sindicalização rural, aos movimentos urbanos contra o custo
de vida, às associações de bairro, etc.
As pastorais desenvolvem uma pedagogia de compromisso e de inserção na sociedade, encaminhando
79
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
seus membros para uma presença ativa nos processos
de mudança social. O mesmo ocorre, no âmbito local,
com um bom número de vereadores em centenas de
municípios, assim como membros ativos nos conselhos
de saúde e do menor. Considerações semelhantes poderiam ser feitas em relação à presença em partidos
políticos. Vale indicar que uma pesquisa, durante o
Encontro Intereclesial das CEBs de 1986, constatou,
entre os delegados, que mais de 70 tinham sido candidatos a postos eletivos e que 118 participantes eram
filiados ao PT, 69 ao PMDB, 11 ao PDT, 7 ao PDS e 4
ao PFL (Betto, 1986:582-584; Souza, 1982:247-268).
No Encontro Intereclesial, em julho de 1997, realizado em São Luiz do Maranhão, 1.406 participantes (40%
dos presentes) estavam filiados a 220 partidos diferentes, sendo a maioria ao PT (710), PMDB (39), PSB (38),
PDT (33), PSDB (24) e PFL (19). Verifica-se que há
presença em vários partidos, ainda que a concentração
maior esteja naturalmente no Partido dos Trabalhadores (entre as várias tendências dentro deste partido, às
vezes fala-se dos “igrejeiros”). Entretanto, é interessante notar que este segmento não constitui, no parlamento ou nos movimentos sociais, um “bloco católico”, como visto na formação de um “bloco evangélico”.
Por um lado, os membros da Igreja têm posições diversificadas, mas, além disso, desde os tempos da Ação
Católica, houve resistência à formação de um partido
católico, como ocorreu em outros países da América
Latina (Chile, Venezuela). Em reação a um velho
integrismo nostálgico dos tempos de cristandade, desenvolveram-se um pensamento e uma prática que privilegiaram a presença de cristãos em movimentos e organizações pluralistas (Souza, 1984:61).
Uma intensa mobilização tem se realizado nos últimos
anos, em torno das Semanas Sociais Brasileiras, patrocinadas pela Pastoral Social da CNBB. A primeira, em 1991,
tratou do tema do trabalho e a segunda, em 1994, teve
como título Brasil: alternativas e protagonistas. Por uma
sociedade democrática. Realizam-se reuniões locais, regionais e finalmente um grande encontro nacional. Como
indicou a proclamação da 2a Semana, tratava-se de “buscar com ampla participação de brasileiros de todas as regiões, alternativas e protagonistas para o Brasil que todos queremos (...) Apostar na construção da cidadania
significa afirmar a urgência de se concretizar, e para todos os cidadãos, o acesso à terra, à educação, à saúde, ao
trabalho, à moradia, ao conjunto de direitos sociais básicos” (CNBB, 1994:154-156).
Outra iniciativa do setor de pastoral social da CNBB,
com a participação do MST, da CUT e da Central dos
Movimentos Populares, foi a mobilização, no dia de comemoração da Independência, do chamado “grito dos ex-
cluídos”, que cada ano chama a atenção para alguns problemas sociais graves. Teve sua origem em 1987, por
ocasião de uma romaria de trabalhadores a Aparecida,
adquirindo sua configuração atual a partir de 1995. Neste
ano, vários acontecimentos estão sendo lembrados: massacres, violência policial e contra os índios, corrupção e
compra de votos, política de privatizações, parcialidade
da justiça.4 Aliás, as romarias têm sido revalorizadas como
momentos de tomada de posição popular. Tradicionalmente, elas se realizam em lugares históricos, dentro dos ritmos da religiosidade popular: Bom Jesus da Lapa,
Juazeiro, Aparecida. Mais recentemente, as romarias da
terra, como a marcha de lavradores de Ronda Alta a Porto Alegre, têm buscado articular esses momentos de fé
com reivindicações e lembranças de resistências populares. Numa sociedade de massas, é a ocasião de visibilizar
os temas candentes da questão social.
Participação, solidariedade e cidadania são palavraschave em todas essas atividades mobilizadoras, contribuindo decisivamente para construir um espaço público em
que sociedades civil e política, através das iniciativas dos
movimentos e do Estado, questionam a realidade social e
elaboram políticas sociais capazes de refazê-la em profundidade. A Igreja, por seus membros e suas instituições,
vem a ser um dos atores decisivos na arena político-social. É necessário considerá-la com suas divisões internas, suas contradições, limites e instituições criadoras.
Essa presença na vida social é tanto mais importante
quando uma ideologia dominante tende a minimizar a
importância da questão social e das políticas sociais, em
nome de medidas de mera profilaxia econômica. Um comunicado da CNBB, de 29 de fevereiro de 1996, interpelava enfaticamente os poderes públicos: “basta de sacrificar vidas para salvar planos econômicos” (CNBB,
1996:87).
NOTAS
E-mail do autor: [email protected]
1. Os dois últimos séculos tiveram cada um seu ano decisivo: 1848 e 1968 foram
sacudidos por mobilizações sociais em vários países ao mesmo tempo. No último, foram os jovens e a rebelião cultural; no primeiro, o proletariado que surgia.
Ozanam fez o paralelo com a atitude da Igreja diante da decadência do império
romano quando abandonou “o trono carunchado de Bizâncio” e foi ao encontro
dos povos “bárbaros” que vinham do Oriente. Para ele, os novos bárbaros, com
vigor histórico, eram a classe operária nascente e a República. Ver Souza (1982:
299-304).
2. Nas comemorações do centenário de seu nascimento, o pensamento do padre
Lebret vem sendo recuperado por sua enorme atualidade, como antídoto ao economicismo reinante em tantos círculos de pensamento. Foi pioneiro, entre nós,
em projetos de planejamento, a partir de sua assessoria a São Paulo. Ver Souza
(1984:114-117).
3. Ver a coleção “Documentos da CNBB”, com 42 volumes, publicados pelas
Edições Paulinas, em que estão reunidas as inúmeras declarações dos bispos. O
texto citado está no volume 42, n. 69.
4. Ver abundante documentação, CNBB, 1997.
80
A IGREJA CATÓLICA E A QUESTÃO SOCIAL
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
MAINWARING, S. Igreja Católica e política no Brasil, 1916-1985. São Paulo,
Brasiliense, 1989.
ÁVILA, F.B. de. O pensamento social dos cristãos antes de Marx: textos e comentários. Rio de Janeiro, José Olympio, 1972.
__________ . Pequena enciclopédia da doutrina social da Igreja. São Paulo,
Loyola, 1991.
BETTO, F. “As CEBs e o projeto político popular”. Revista Eclesiástica Brasileira. Petrópolis, Vozes, v.46, fasc. 183, setembro 1986.
BOFF, C. et alii. As comunidades de base em questão. São Paulo, Ed. Paulinas, 1997.
MARIA, P.J. O catolicismo no Brasil. Rio de Janeiro, Agir, 1950.
ROOS, L. “A procura do caminho na história da Doutrina Social Católica na
Europa”. In: SCHÜHLY, K. et alii. Op. cit., 1993.
SCHERER-WARREN, I. Redes de movimentos sociais. São Paulo, Loyola, 1993.
SOUZA, L.A.G. de. Classes populares e Igreja nos caminhos da história.
Petrópolis, Vozes, 1982.
__________ . A JUC: os estudantes católicos e a política. Petrópolis, Vozes,
1984.
BRUNEAU, T. O catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo,
Loyola, 1974.
__________ .“Secularização em declínio e potencialidade transformadora do
sagrado”. Religião e sociedade. Rio de Janeiro, Iser, 13/2, julho 1986,
p.2-16.
__________ . “Centralização ou pluralidade? O caminho criativo das CEBs”.
Mutações sociais. Rio de Janeiro, Cedac, ano 1, n.1, julho-setembro 1992,
p.5-11.
CARITAS. Sobrevivência e cidadania. Brasília, Ed. Univ. de Brasília, 1995.
CNBB. Brasil: alternativas e protagonistas. Por uma sociedade democrática.
Petrópolis, Vozes, 1994.
__________ . Comunicado mensal. Brasília, ano 45, n.498, jan.-fev. 1996.
__________ . O grito dos excluídos. Brasília, boletim n.12, jun. 1997.
GUTIÉRREZ, G. La fuerza historica de los pobres. Lima, CEP, 1979.
__________ .“O papel dos leigos na luta pela liberdade”. In: RAPOSO,
E. (coord.). 1964 – 30 anos depois. Rio de Janeiro, Agir, 1994, p.130136.
SOUZA, L.A.G. de. e CHAPONAY, H. de. “Église et société au Brésil: le
rôle des communautés ecclesiales de base et des pastorales populaires”.
Revue Tiers Monde. Paris, Iedes, t. XXXI, n.123, jul.-set. 1990.
KÖNIG, H.J. “A questão social na América Latina e no Brasil. Fins do século
XIX, inícios do século XX”. In: SCHÜHLY, K., KÖNIG, G. e SCHNEIDER,
J.O. (orgs.). Consciência social: a história de um processo através da Doutrina Social da Igreja. São Leopoldo, Ed. Unisinos, 1993.
81
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA E
MODERNIZAÇÃO
as insuficiências
GILDO MAGALHÃES
Professor-visitante na Escola Politécnica e Pesquisador-doutor do Centro de História da Ciência da USP
A
quirido com os “olhos do espírito” (Vargas,1985:13-25). Por
outro lado, o conceito grego de techné gerou a “técnica” no
sentido ocidental de “prática”. Destaque-se que, até o século passado (como por exemplo assinala o Dictionnaire
Universel de Larousse, 1876), “técnica” se referia às “artes”, ciências e ofícios, ao passo que “tecnologia” dizia respeito exclusivamente a processos industriais.1
Ainda segundo Milton Vargas (1985), a ciência ocidental pós-renascentista fundiu a teoria com a prática,
sendo que a técnica passou a ser um saber fazer apoiado
em teorias científicas. Há no entanto um sentido leigo da
palavra, pelo qual “técnica” continua denotando um conjunto de regras práticas para se fazer coisas, mesmo que
não haja uso consciente de alguma ciência para tal. Como
exemplos, diz-se de uma boa técnica de um pintor de parede, de um sapateiro, etc.
Já a tecnologia seria o estudo científico dos materiais
usados pela técnica e dos processos de construção, fabricação e organização (Vargas,1985). Isto se coaduna com
o que diz Ruy Gama, que seguiu as pegadas do uso moderno desta palavra no rastro de Leibnitz, através de um
discípulo deste, Christian Wolff, para concluir que tecnologia é “o estudo e conhecimento científico das operações técnicas” (Gama,1987:30).
Mário Bunge (1980) tem a idéia sugestiva de que há
um quadrinômio interligando a ciência básica, a ciência
aplicada, a técnica e a economia, que se desencadeia a
partir de uma dada inovação. Por exemplo, o descobrimento e as leis do efeito fotoelétrico pertenceriam à ciência básica, enquanto o estudo dos materiais foto-sensíveis,
visando tirar proveito das referidas leis, já seria uma tarefa da ciência aplicada. Na fase da técnica, poder-se-ia
ter um laboratório de P&D que empregasse os resultados
da pesquisa dos materiais foto-sensíveis para, por exem-
palavra tecnologia costuma ser associada facilmente à conotação de uma mudança historicamente determinada, no sentido de uma evolução. Há diferenças sutis mas importantes entre ciência
aplicada, técnica e tecnologia. Para demarcar mais nitidamente os contornos destas atividades, é interessante
recorrer aos conceitos de invenção, inovação e difusão,
sujeitos a menos controvérsias na literatura sobre desenvolvimento econômico.
A modernidade, por sua vez, tem suscitado um longo e
acalorado debate, que por sua complexidade às vezes leva
aos mais desencontrados equívocos. Isto vale não somente para os impasses resultantes na política, como também
para as leituras estéticas do termo – de onde aliás no século XIX surgiu a apropriação que o termo veio a ter contemporaneamente.
Para escapar aos limites estreitos que a transgressão
estética acaba impondo, apresenta-se, em suas linhas gerais, uma proposta de modelo de modernidade em suas
manifestações tecnológico-científicas, econômicas, culturais e sociais.
Procurando resgatar uma conceituação mais precisa dos
termos, este trabalho aponta para a necessidade de a modernização de uma sociedade como a brasileira incluir a
vertente tecnológica, mas sem a ela se restringir. Esta perspectiva diverge da presente “abertura de mercado”, cuja
inserção numa ordem globalizante, totalitária e supostamente inevitável justamente ignora as demais condições
da modernidade.
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Como recorda Milton Vargas, a ciência deriva do epistéme
theoretiké grego – isto é, daquele saber que é teórico, ad-
82
EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA
plo, projetar baterias fotovoltaicas para uso em satélites
de telecomunicações. O componente final, o econômico,
realizar-se-ia numa fábrica que produzisse tais baterias
em escala industrial. Essa distinção seqüencial parece boa
para efeito didático, embora muitas vezes o ciclo não decorra exatamente nessa ordem – podendo até ocorrer ao
inverso do descrito por Bunge.2
Na prática, muitas pessoas, seguindo a confusão estabelecida seja pelos especialistas seja pelos dicionários,
consideram a técnica como sinônimo da tecnologia, ou
ainda, da ciência aplicada. O importante para a presente
finalidade é enfatizar que a tecnologia implica conhecimento. Em conseqüência, “tecnologia” não pode ser nem
mercadoria nem bem de consumo, algo a ser comprado
ou vendido, uma diferenciação importante na história dos
debates sobre a política tecnológica no Brasil.
E
MODERNIZAÇÃO: AS
INSUFICIÊNCIAS
co haveria como traçar linhas rígidas entre técnica e tecnologia – e, numa escala ainda mais ampla, poder-se-ia
criticar a separação entre ciências e humanidades.
Voltando a Solo, este ressalta que é importante existir
uma estrutura de conhecimento na sociedade, evidenciada
por aptidões intelectuais que se revelam na competência
para resolução de problemas a partir de conhecimentos
adquiridos. Muitos, imprecisa e vagamente, denominam
isto de know-how (e para nós, o verdadeiro conhecimento
tecnológico precisa incluir o know-why). O autor o chama
de “cognição”, uma estrutura que ele visualiza com o
auxílio da imagem de uma pirâmide. Na base desta,
estariam as capacidades que se podem adquirir de uma
forma mecânica – e que para os nossos fins preferimos
chamar de técnica. No meio da pirâmide estão os processos
que envolvem a inter-relação de máquinas, materiais, mãode-obra e informação – e que aqui podem ser dos de
tecnologia. No topo, Solo coloca a ciência, que pressupõe
um esforço voltado para o desenvolvimento das potencialidades humanas. Propõe ainda acrescentar a esta
estrutura, uma liderança política esclarecida, ou um
empresariado agressivo. Essa idéia poderia ser completada sem excluir mutuamente as duas possibilidades,
conciliando assim os papéis do Estado (Keynes) e do
empreendedor (Schumpeter).
Theotônio dos Santos estudou o vínculo entre o que
chama (embora algo vagamente) de “revolução científico-técnica” e a acumulação de capital. Inicialmente, faz
uma distinção entre invenção e inovação mais precisa do
que os autores anteriores: “O passar da invenção de um
novo produto ou processo para a sua utilização comercial
é chamado inovação. (...) A etapa que se segue à introdução de uma inovação é sua difusão em direção ao conjunto do sistema produtivo” (Santos, 1987:17-22).
O processo de difusão seria em geral exponencial, lento
no começo e se acelerando ao longo do tempo. A correlação entre inovação e êxito comercial se revela mais
alta naqueles ramos que apresentam maior taxa de
mudanças tecnológicas (Santos, 1987:25). Os fatores
imediatos responsáveis pelo crescimento da produção
serão então a inovação e a difusão, e não a invenção. Esta
deve ser considerada um fator mediato e, obviamente,
necessário, devido à etapa de sua utilização comercial
futura e ao atraso temporal entre seu surgimento e os
eventos subseqüentes (Santos, 1987:54).
Theotônio dos Santos, seguindo uma tendência comum
a autores marxistas e não-marxistas, relaciona a concentração do capital com a de tecnologia. De fato, não é difícil imaginar que as grandes empresas controlem as inovações. Como conseqüência da preeminência dos EUA e
do dólar norte-americano, tampouco há como negar o
papel fundamental desse país no domínio das inovações.4
INVENÇÃO, INOVAÇÃO E DIFUSÃO
Atenta-se, agora, para as distinções possíveis entre três
termos intimamente relacionados: invenção, inovação e
difusão. Iniciando pela inovação, Vernon Ruttan (1971:
83) sugere que se estenda o termo (para ele indistinto da
invenção) “para cobrir toda a gama de processos (...) pelos quais coisas novas emergem em ciência, tecnologia e
arte”. Esta é, todavia, uma definição praticamente tautológica. Dizer que inovação é uma “coisa nova” nada
acrescenta, e talvez encubra uma tentativa de fugir ao
historicismo normalmente atribuído às palavras mais fortes
de desenvolvimento, modernização, ou evolução.
Naturalmente, tampouco é necessário agregar um sentido isoladamente positivo a quaisquer dessas palavras,
mas a evolução técnica é facilmente associável a um crescente desempenho energético e, correspondentemente, a
uma tendência decrescente de custo econômico, inclusive pela mudança de tecnologia – e a isto se denomina
genericamente de otimização dos recursos envolvidos.
Esta relação torna-se ainda mais válida a longo prazo,
quando se revela uma correlação maior entre desenvolvimento, energia e tecnologia.3
Parece que Robert Solo tem uma percepção melhor
desta ligação entre tecnologia e desenvolvimento, quando comenta sobre a capacidade de um país (ou região)
assimilar tecnologias avançadas e caminhar progressivamente: “Enquanto o conhecimento existente não for o
suficiente, isto é, para essa assimilação, deve ser adquirida a capacidade de produzir conhecimento que o seja”
(Solo, 1971: 482).
Se o próprio mecanismo da tecnologia avançada implica a adaptação e o progresso do conhecimento, não há
como separar a ciência, pura ou aplicada, bem como sua
utilização, do desenvolvimento como um todo. Tampou-
83
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
Historicamente, a produtividade do trabalho também
vem aumentando com as referidas concentrações, o que
pode ser creditado a: maior ritmo do trabalho; ocupação
mais intensiva dos meios de produção; e mudanças tecnológicas.
O capitalismo, por concentrar capital e tecnologia, assume cada vez mais as formas monopólica e oligopólica,
gerando anarquia e desperdício na utilização dos recursos da sociedade, aí se incluindo em especial os resultados da produção científica e tecnológica. Contra o “irracionalismo” das grandes empresas, dos trustes e do Estado,
lembra Theotônio dos Santos a insurgência do pensamento
pequeno-burguês, que freqüentemente se apóia na ideologia “liberal” para defender as pequenas e médias empresas, ao mesmo tempo em que ataca o “totalitarismo”
do Estado. Para esse autor, (...) a intervenção do estado e
o caráter concentrado e monopólico dos seus contratos
de financiamento surgem como a única forma de estabelecer a racionalidade na destinação de recursos para P&D
(Santos, 1987:16).
Theotônio dos Santos argumenta, porém, que, em realidade, o processo que ocorre é precisamente o inverso
na ordem das coisas: a concentração (monopolização) –
e não a atomização e o apequenamento – é que permite o
aumento da produtividade. Um exemplo concreto disso
foi o crescimento estupendo da Apple e das empresas de
microinformática em geral.
Entretanto, a via tecnológica é freqüentemente de mão
dupla. De fato, observa-se, como exemplo de clareza especial na história da informática, que as pequenas empresas podem conseguir realizar um grande número de inovações, que são posteriormente apropriadas pelas grandes
empresas, caso aquelas empresas menores não se expandam. É o que ocorreu nos casos da difusão das unidades
de memória em disco e no da própria história dos microcomputadores.
Rosenberg e Birdzell (1986), em interessante estudo
sobre o tema da riqueza no Ocidente, argumentam que as
causas do crescimento econômico, a partir do século XV,
foram as inovações no comércio, tecnologia e organização, combinadas com a acumulação acelerada de capital,
mão-de-obra e recursos naturais aplicados. A partir do
século XIX, a ciência veio a influir cada vez mais no rol
das inovações, especialmente depois da criação de laboratórios de pesquisas industriais, que sistematizaram os
elos entre ciência, técnica e tecnologia.
do complexo tecnológico-militar como decorrência de um
Estado cada vez mais apoiado na tecnoburocracia, foi buscar em Hegel um fundamento para o conceito de modernidade. O presente, ao ser entendido dialeticamente, exige para Habermas “uma renovação contínua, a cisão que
esses novos tempos levaram a cabo com o passado”. É por
isso que os “tempos modernos” se conectam aos conceitos de revolução, progresso, desenvolvimento, crise, etc.
Para alguns, como Baudelaire, “a experiência estética
fundia-se com a experiência histórica da modernidade”
(Habermas, 1990:I/II), ou seja, o novo se bastava a si
mesmo e poderia ser algo puramente subjetivo. Pensamos,
no entanto, que esta afinidade é meramente superficial,
não passando de um equacionamento apressado de “modernidade” com “moda”, isto é, com o efêmero e fugaz.
A descrição do “presente”, que elude qualquer apreensão, permanece como um dos desafios para se entender o
que é “moderno”. Dentro desta linha de preocupação, escreve Habermas (1990:I/III): “Na modernidade, portanto, a vida religiosa, o Estado e a sociedade, bem como a
ciência, a moral e a arte transformam-se em outras tantas
encarnações do princípio da subjetividade.”
No entanto, Habermas não deixa de notar que a ciência se pretende objetiva, e não subjetiva, criando-se assim uma contradição. Na arte, isto não ocorre necessariamente, haja vista o uso da palavra “antigo”, com o peso
claramente subjetivo e pejorativo que lhe confere o “moderno”, na “Querela dos Antigos e Modernos”. Esta questão opôs inicialmente Nicolas Boileau (1636-1711), amigo de Molière e Racine, a Charles Perrault (1628-1703),
respectivamente, um defensor do paradigma classicista no
teatro e na literatura franceses ao final do século XVIII, e
um adepto da renovação iluminista.
Parece conveniente uma digressão filológica, pois Habermas se engana ao afirmar que nas línguas européias o
adjetivo “moderno” foi substantivado somente em meados do século XIX. O Oxford English Dictionnary apresenta o adjetivo modernus emergindo no latim do século
VI, derivado da expressão de modo, significando “contemporâneo”, “recente”. Neste sentido, já surge o substantivo desde o século XVI em inglês, usado inclusive em
tratado sobre a técnica de construção de armas. O advérbio modo, por sua vez, era empregado com o sentido acima pelos autores clássicos (Cícero, Plauto, Tito Lívio), nada
tendo a ver com modus, que traz consigo uma idéia de
modelo repetitivo (ver Dicionário Latino-Português, de
Ernesto Faria) – como se pode ver, por exemplo, no caso
dos “modos” musicais (modo frígio, etc.).
O que Habermas quer defender é a associação da expressão modernidade com vanguarda estética (seguindo
o modelo baudelairiano e as teorias de Benjamin), para
privilegiar seu lado subjetivo. Abandona-se neste ponto
MODERNIZAÇÃO E DESEQUILÍBRIO
O desequilíbrio causado pela inovação naquilo que já
está estabelecido remete à discussão da modernidade.
Jürgen Habermas (1990), que refletiu sobre a formação
84
EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA
a digressão, lembrando que a própria pretensão de objetividade na ciência é um vasto campo a ser explorado, como
se depreende do retorno de idéias aparentemente derrotadas, “antigas”, na história da ciência, como por exemplo
o éter e a ausência de vácuo absoluto, hoje novamente
objetos de disputa na física “moderna”.
A discussão filosófica precedente sobre modernidade
não é, como poderia parecer à primeira vista, distante da
discussão histórica que vinha sendo empreendida aqui. Foi
a partir da conscientização crescente do efeito do progresso
científico e das inovações tecnológicas que houve o ensejo para uma postura, tanto individual quanto social, sobre
a necessidade e a conveniência das mudanças acarretadas.
Henri Léfèbvre (1969) produziu um alentado estudo
sobre a questão da modernidade, em que assinala que o
início do século XX contemplou na política o advento
duma revolução social, ao mesmo tempo em que na ciência as descontinuidades propostas pela teoria quântica se
opõem à visão continuísta da física, em geral, e da mecânica, em particular, identificadas com o século anterior.
A modernidade pode passar a ser vista como transição
brusca, e não mais gradual e contínua – sem o que, aliás,
não se caracteriza o novo. Apropriando-se da palavra
“modernidade” para seus próprios fins, o político, da
mesma forma que o esteta, dela faz uso sem se preocupar
com conteúdos, mas somente com formas, subvertendo
as relações de objetividade com subjetividade (e o Brasil
sentirá isto muito de perto com o discurso da “modernidade” a partir do governo Collor, mas finalmente posto
em prática por Fernando Henrique Cardoso). Em conseqüência, diz Léfèbvre (1969:217): “Segue-se um terrorismo, intelectual e cultural, partido de um terrorismo mais
vasto e mais geral, uma vez que crescem vivamente em
todos os domínios os processos e as técnicas de intimidação, da propaganda, das hierarquias burocráticas e do
mandarinato. O Modernismo quer impor-se, sem discussão ou escolhendo o terreno da controvérsia.”
Não seria esta uma boa descrição do que aconteceu no
Brasil após a “Semana de Arte Moderna” de 1922, e a
apropriação estética do “modernismo” por uma elite
agrária e paradoxalmente retrógrada? O processo envolve
elementos contraditórios, 5 sendo até sintomático das
dificuldades de articular com clareza um projeto de
desenvolvimento mais geral pela sociedade brasileira.
De qualquer forma, a modernidade carrega indissoluvelmente o germe da mobilidade, seja social, intelectual, moral ou técnica, criando diversas polarizações:
criatividade x conhecimento; objetividade x subjetividade;
aleatoriedade x determinismo e assim por diante. Para
Léfèbvre (1969:266), o curso dos acontecimentos se deu
de forma que o avanço técnico não foi acompanhado por
um correspondente progresso nas relações humanas,
E
MODERNIZAÇÃO: AS
INSUFICIÊNCIAS
chegando mesmo a haver um processo de alienação
imposto pela técnica.
Enquanto atitude intelectual, pode-se sugerir que a
modernidade leve continuamente a um posicionamento
perante o futuro. Ora, nesta possibilidade está implícita a
idéia de um método comparativo, que faculte a tomada
de decisões e que permita absorver o conhecimento histórico do passado. Acredita-se que esta sugestão possa ser
explorada mais detidamente pelo recurso à noção de “singularidade”, desenvolvida pelo matemático Georg Cantor (1845-1918), em sua teoria dos conjuntos.6 Cantor
entende o Universo como uma sucessão ilimitada de “agregados”, conjuntos infinitos de ordem sucessivamente crescente (os “álefes”) (Paoli, 1991).
Esse conceito de “singularidade” pode também ser entendido pelos métodos e idéias do físico-matemático
Bernhard Riemann (1826-1866), até hoje utilizados, por
exemplo, para resolver os problemas de campo na superfície de separação entre dois meios dielétricos. Em um dos
lados da superfície valem determinadas condições de contorno e no outro lado as condições são outras: como ocorre
a transição, que é a singularidade? Neste aspecto, o “meio”
é como o tempo presente, que existe mas é indefinível: afinal, o que é uma superfície de separação? Outro exemplo da
metodologia riemanniana é o da formação de ondas de choque no ar, quando um objeto nele se propaga a velocidades
maiores do que a do som (“Mach-1”). No “contínuo” de
velocidades crescentes surge uma singularidade, uma espécie de quantização, que se denomina onda de choque, ou
super-sônica, fenômeno estudado por Riemann e até então
negado pela física (Parpart,1979).
Um processo capaz de gerar singularidades dentro de
um espaço multidimensional (um espaço de fases, como
parece ser o nosso contínuo espaço-tempo) pode ser equiparado a este complexo que vem sendo chamado de modernidade, que abrange a vertente tecno-econômica da
modernização.
De acordo com essas idéias, propõe-se aqui um modelo que pode ser suficientemente abrangente para se entender qualquer tipo de progresso associado ao conceito
de modernidade, em quaisquer de suas manifestações científicas, econômicas, culturais ou sociais. Para tal, faz-se
uma analogia do processo com as camadas superpostas
de uma hipotética “cebola” que estivesse em expansão de
seu volume na direção externa, assim definindo uma direção, a que será chamada de dimensão temporal. Qualquer “camada” desta “cebola” pode, por sua vez, ser considerada o locus de uma transformação, um tipo de
fronteira (como a referida superfície de separação entre
meios dielétricos distintos), em que se formam singularidades. Estas não são passíveis de descrição em termos das
propriedades válidas no interior englobado pela “cama-
85
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
2. A proposição de Bunge passa ao largo da necessidade ou não de distinguir
técnica de tecnologia. Este é um problema que tem fundo ideológico e ainda não
foi totalmente esclarecido pela história e filosofia da ciência.
da”, uma vez que tais propriedades sofrem uma transformação radical, mas que só se deixa perceber situando-nos
no exterior da “camada”. A singularidade que engloba “n”
camadas indica que o processo está numa ordem superior, “n+1”. Historicamente, seria dito que se cria uma
nova situação que supera um “agregado” de multiplicidades aninhadas nas “camadas” interiores da “cebola”. E, neste contexto interpretativo, pode-se novamente
se aproximar da caracterização da modernidade por
Léfèbvre, como transição descontínua.
Foram repassados aqui alguns enfoques sobre a modernidade, enfatizando sua afinidade com a evolução tecnológica. Esta afiliação, por demais evidente para ser
negada, não constitui entretanto um passaporte imediato
para o desenvolvimento como um todo – falta-lhe no mínimo a inovação também no plano social e sua difusão
pela maioria da população, sem mencionar a formação
da atitude crítica que permita decidir os caminhos que a
evolução poderá trilhar.
Estes são, porém, processos que, para usar a analogia aqui
proposta, se situam numa ordem superior. A compreensão
ou o descarte dessas limitacões podem viabilizar ou não o
próprio processo de desenvolvimento, sendo interessante
verificar como isto se tem dado no Brasil. Certamente as
alianças dos setores mais inibidores de um desenvolvimento no sentido amplo, e que promoveram a vitória de Collor
e, posteriormente, de Fernando Henrique Cardoso, resultaram na proscrição de debates e ações em torno de uma modernização que fosse, ao mesmo tempo, condição necessária e suficiente para a transformação de uma das realidades
mais perversas do planeta: a presença de abundantes recursos humanos e naturais ao lado de uma concentração desmesurada de riquezas; a deterioração geral das condições de
saúde pública e educação concomitante com a intensificação do narcocrime; a fraqueza política das elites aliada à
ignóbil subserviência político-econômica ao capital bancário internacional e nacional.
3. A correlação costuma ser refutada justamente pelos defensores do “crescimento sustentável” e pelos apocalípticos do “crescimento nulo” (MAGALHÃES,
1992).
4. As enormes importações dos EUA levaram esse país a um endividamento sem
precedentes, que acaba sendo exportado em escala mundial graças ao seu poderio econômico-militar, no que concordamos com Celso Furtado: “Poder emitir
moeda de curso forçado internacional, independentemente da própria situação
da balança de pagamentos, é privilégio real.” (FURTADO, 1983: 41)
5. Para visualizar duas facetas da contradição, chamamos a atenção para alguns
aspectos de um representante “progressista”, mas ao mesmo tempo anti-industrial e bucólico como Mário de Andrade (o gigante de Macunaíma e o carro lerdo da poesia Louvação da Tarde). O contraponto é a ala mais direitista, onde há
pessoas como Cassiano Ricardo, com uma defesa explícita do desenvolvimento
econômico.
6. Insiste-se na relevância do pensamento de Cantor porque ele elaborou filosoficamente a hipótese fundamental sobre a realidade dos conjuntos transfinitos,
dando-lhes uma descrição matemática precisa. Em suas palavras: “e em particular penso que o entendimento humano tem uma capacidade inerente e ilimitada
para a formação gradual de classes de número inteiro que estão numa relação
definida para com os modos infinitos e cujas potências são de força ascendente”
(CANTOR, 1976: 76). Aqui, está sendo empregado o termo “modos infinitos”
na tradição filosófica e “potência” designa a ordem dos transfinitos (álefe zero,
um, etc.), imagens que poderiam ser apropriadas para o processo de desenvolvimento, assim como para o de conhecimento.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUNGE, M. Ciência e desenvolvimento. São Paulo, Itatiaia/Edusp, 1980 (trad.
por Cláudia Junqueira).
CANTOR, G. Foundations of a general theory of manifolds. Campaigner, v.9,
n.1 e 2, jan.-fev. 1976.
FURTADO, C. O mito do desenvolvimento econômico. 6 a ed. Rio de Janeiro,,
Paz e Terra, 1983.
GAMA, R. A tecnologia e o trabalho na história. São Paulo, Nobel/Edusp, 1987.
HABERMAS, J. O discurso filosófico da modernidade. Lisboa, Dom Quixote,
1990 (trad. por Ana Maria Bernardo et alii).
LÉFÈBVRE, H. “O que é a modernidade”. A modernidade em questão. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1969.
MAGALHÃES, G. “Energia e tecnologia”. São Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.6, n. 1 e 2, jan.-jun. 1992.
PAOLI, D. de .”A refutation of artificial intelligence: Georg Cantor’s contribution
to the study of human mind”. 21 st Century. v.4, n.2, Summer, 1991.
PARPART, U. “Riemann declassified – his method and program for the natural
sciences”. Fusion, v.2, n.6, mar.-abr. 1979.
ROSENBERG, N. e BIRDZELL, Jr., L.E. A história da riqueza do Ocidente – A
transformação econômica do mundo industrial. Rio de Janeiro, Record,
s.d.,1986 (trad. por Ruy Jungmann).
RUTTAN, V. W. “Usher and schumpeter on invention, innovation and
technological change. In: ROSENBERG, N. (ed.). The economics of
technological change. Suffolk, Penguin, 1971.
SANTOS, T. dos. Revolução científico-técnica e acumulação de capital.
Petrópolis, Vozes, 1987.
SOLO, R. “The capacity to assimilate an advanced technology”. In:
ROSENBERG, N. (ed.). Op. cit., 1971.
VARGAS, M. “Tecnologia, técnica e ciência”. A metodologia da pesquisa científica. Rio de Janeiro, Globo, 1985.
NOTAS
E-mail do autor: [email protected]
1. Conforme comunicação oral feita por Júlio Katinsky, ao I Simpósio Internacional de História da Ciência e Epistemologia, ocorrido em Piracicaba (SP), em
1991.
86
A EMIGRAÇÃO INTERNACIONAL DE BRASILEIROS: O SENTIDO DA SAÍDA
A EMIGRAÇÃO INTERNACIONAL
DE BRASILEIROS
o sentido da saída
AURÍLIO SÉRGIO COSTA CAIADO
Professor do Departamento de Economia da Universidade de Sorocaba, Analista da Fundação Seade
O
ma mundial de produção e comercialização de mercadorias. Isto porque o debate sobre o novo ciclo de migração
internacional deve ser inserido em uma discussão mais
ampla, que contemple o padrão fordista-taylorista de trabalho, a reestruturação produtiva, o surgimento do paradigma tecnológico da terceira revolução industrial e a
globalização da economia, responsáveis por profundas
alterações nas relações sociais de trabalho.
Assim, tendo como principal objetivo elaborar um balanço inicial da produção acadêmica nacional sobre o tema,
localizando o fenômeno da migração internacional no conjunto de transformações por que tem passado a economia
brasileira, o artigo tem por consideração central que a divisão social do trabalho é o fator estruturante para o entendimento do atual processo de migração internacional. Ele
é dividido em quatro partes. A primeira contém uma breve
síntese das principais transformações em curso na economia mundial. A segunda trata da crise da economia nacional
dos anos 80 e do ajuste neoliberal adotado nos anos 90. A
terceira sumaria os principais estudos sobre o fenômeno da
migração internacional de brasileiros, procurando situá-los
quanto à região de origem e ao país de destino. Por fim, a
quarta parte contém uma discussão sobre a temporalidade
de tal fenômeno, procurando-se mostrar que, muito mais que
uma saída individualizada para um período de crise, o fenômeno da migração internacional é parte do amplo processo de
redução das barreiras ao livre fluxo de capitais e mercadorias.
Brasil sempre foi um país receptor de migrantes.
Desde a descoberta, em 1500, até recentemente,
grandes contingentes de migrantes atravessaram
os mares para aqui se estabelecerem e, em muito, foram
responsáveis pela construção da nação brasileira. Seja pela
transferência forçada de africanos, feitos escravos, seja
pela vinda de europeus e asiáticos de diversas origens, a
imigração, pode-se dizer, foi parte constitutiva da nação
brasileira, plural e miscigenada. Este processo foi engendrado e gerido pelo Estado brasileiro que, desde a independência, se utilizou da migração internacional para
implementar a colonização e a ocupação do território, em
distintos momentos e períodos.
Os diversos fluxos de imigração internacional para o
Brasil vêm sendo estudados há algumas décadas, e são bem
conhecidos dos brasileiros.1 Nos anos 80, entretanto, uma
série de fatores econômicos, nacionais e internacionais,
alteraram o sentido dos fluxos, quando um conjunto significativo de brasileiros buscou na emigração uma saída
individualizada para a longa crise que o país atravessou.
Mas, como escreveu Singer (1977:52), “convém sempre
distinguir os motivos (individuais) para migrar das causas
(estruturais) da migração. Os motivos se manifestam no
quadro geral de condições sócio-econômicas que induzem a
migrar. (...) O que importa é não esquecer que a primeira
determinação de quem vai e de quem fica é social, ou, se
quiser, de classe”.
Este artigo discute os fatores (externos e internos) que
determinaram o surgimento do recente fluxo migratório
internacional no país e faz uma síntese dos principais estudos realizados por pesquisadores brasileiros sobre o
tema. A partir da análise do desempenho da economia
nacional, apresentam-se as principais transformações econômicas estruturais que vêm ocorrendo em todo o siste-
MIGRAÇÃO INTERNACIONAL,
REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E
AMPLIAÇÃO DA CONCORRÊNCIA
Desde o final dos anos 70, o esgotamento do padrão
de acumulação da Segunda Revolução Industrial levou
87
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
à ruptura da estabilidade macroeconômica internacional – possibilitada pelo regime monetário herdado de
Bretton Woods e pela relativa convergência nos padrões
produtivos entre países –, assim como a uma série de
modificações nesses padrões produtivos, devido à necessidade de reforçar ou adquirir competitividade
(Bandt e Petit, 1992).
Relacionados a esses novos padrões de produção estão: a mudança da base técnica (com a emergência da
automação de base microeletrônica, em oposição ao padrão eletromecânico); o uso crescente da informática e
da telemática; o desenvolvimento de novos produtos e
novos materiais; o aumento do conteúdo eletrônico dos
produtos; e a mudança dos chamados “paradigmas organizacionais” (através da implantação de processos de focalização/desverticalização, de aumento da cooperação
intra e interempresas e de mudanças nas relações entre
empresas, trabalhadores e fornecedores).2 .
Em síntese, o crescente peso do complexo eletrônico e
dos novos materiais, a automação integrada flexível como
novo paradigma industrial, a revolução nos processos de
trabalho, a transformação nas estratégias empresariais, as
alianças tecnológicas como forma de competição são as
principais inovações em curso nas economias capitalistas, apontadas pela bibliografia.
A reestruturação produtiva tem causado forte impacto
tanto sobre as relações econômicas internacionais quanto
sobre as relações de trabalho. No primeiro caso, pode-se
dizer que está ocorrendo um processo de reinserção dos
países nas relações hierárquicas da economia mundial.
Esse processo é marcado – embora não se reduza a isso –
pelo crescimento dos fluxos de investimentos diretos no
exterior (IDE), muito concentrados na tríade (Estados Unidos, Europa Ocidental e Japão). Embora, a partir do final
da década de 80, os países em desenvolvimento do sudeste asiático e da América Latina tenham registrado algum influxo de IDE, deve-se notar que, no caso brasileiro, parte destes fluxos estão relacionados a processos de
reestruturação patrimonial.3
Esses fluxos refletem o aprofundamento da concorrência oligopolista, ampliada à escala mundial (daí o termo
“oligopólio global”). Os vultosos fluxos de capitais entre
os países da tríade, na última década, “ajudaram a cultivar um novo neologismo – a globalização dos mercados
– tentando disseminar a falsa idéia de que o paraíso será
para todos” (Cano, 1997:2). Portanto, o fenômeno da globalização não deve ser entendido como uma queda generalizada das barreiras e fronteiras entre países. O movimento de internacionalização diz respeito a capitais
privados, com origem em economias nacionais determinadas, que vêm redefinindo sua localização no globo segundo estratégias concorrenciais específicas.
Assim, a globalização da economia, que segundo
Coutinho (1995) deve ser entendida como um estágio mais
avançado do processo histórico de internacionalização do
capital, está assentada sobre um período de aceleração intensa e desigual da mudança tecnológica entre as economias centrais; de reorganização dos padrões de gestão e
de produção, de forma a combinar os movimentos de globalização e regionalização; de difusão desigual da revolução tecnológica, reiterando os desequilíbrios comerciais
e de balanço de pagamentos; de significativo aumento do
número de oligopólios globais; de intensos fluxos de capitais; e da interpenetração patrimonial dentro da tríade
na ausência de um padrão monetário mundial.4
Alerta-se para a grande confusão provocada pela banalização do conceito de globalização, pois o padrão
internacional de comportamento e consumo capitalistas, gerado pelos modernos sistemas de comunicações
via satélite, não pode ser visto como tendência à criação de um mundo sem fronteiras. Contrariamente a
esses conceitos generalistas, o recente recrudescimento nas restrições impostas a imigrantes indocumentados,
ocorrido em vários países da Europa e também nos
Estados Unidos, é uma demonstração inequívoca de que
não é dado o mesmo tratamento à mobilidade da força
de trabalho que à mobilidade do capital e das mercadorias. “O quadro que se delineia é de ampliação da
globalização da economia conjugada a um intenso processo de internalização a cada país, região ou local, de
seus problemas sociais, notadamente o da ocupação de
suas populações” (Carleial, 1994:309).
Isso porque a reestruturação dos processos produtivos
vem engendrando uma crise no mundo do trabalho. Essa
crise é revelada pela redução do trabalho assalariado, pela
ampliação das formas de trabalho não-assalariado, pela
redução do número de trabalhadores sindicalizados e pela
ampliação da taxa de desemprego aberto, com o conseqüente arrefecimento da ação sindical.
No que diz respeito às recentes transformações nas
relações de trabalho, Mattoso (1994:523-524) aponta a
existência de duas formas de um mesmo processo de transformação no mundo do trabalho. A primeira seria o surgimento do novo trabalhador, mais escolarizado, participativo e polivalente (em contraposição ao trabalhador
especializado, parcelizado e desqualificado da produção
fordista) e até mesmo portador de uma revalorização da
ética e da utopia do trabalho. “Esse trabalhador”, afirma
o autor, “emerge como resultado lógico e funcional dos
requisitos tecnológicos do novo paradigma de produção
industrial de massa de bens diferenciados e do sistema
integrado de produção flexível”. A outra face seria a “crescente massa de trabalhadores que perdem seus antigos
direitos e não se inserindo de forma competitiva, embora
88
A EMIGRAÇÃO INTERNACIONAL DE BRASILEIROS: O SENTIDO DA SAÍDA
funcional ao novo paradigma tecnológico, tornam-se desempregados, marginalizados ou trabalham sob ‘novas’
formas de trabalho e de qualificação, em relações muitas
vezes ‘precárias’ e ‘não padronizadas’” . Assim, ao mesmo tempo em que gerou um “novo trabalhador”, o novo
paradigma tecnológico, segundo ainda o autor, “tem acentuado a fragmentação e a heterogeneidade do mundo do
trabalho, rompendo com as diferentes formas de defesas
ou seguranças do trabalho geradas no pós-guerra”.
segundo Ianni (1995), emerge do processo de globalização da economia como um produto inevitável da instantaneidade da informação, ou, como justifica Harvey
(1994), da compressão do espaço pelo tempo. Isso graças
à velocidade das informações difundidas pelos modernos
sistemas de comunicações — que fazem com que uma
grande variedade de informações chegue instantaneamente
a milhões de residências em diversos países.
Essas informações trazem consigo normas e valores que
se internacionalizam, “possibilitando a diferentes povos
a redefinição de padrões e aspirações de comportamento
na construção de um novo imaginário sobre o seu e os
outros países”, como afirma Brito (1995:63). Segundo esse
autor, “é com base nesse novo imaginário que o migrante
potencial cria sua ‘ilusão migratória’, sem a qual ninguém
migra a longa distância, principalmente entre países”.
Assim, à existência de uma racionalidade baseada no
cálculo dos custos e benefícios da migração internacional, e condicionada por processos sociais internacionalizados, soma-se a “ilusão migratória”, que possibilita a
mitigação dos ônus da migração e a expansão de seus
benefícios econômicos, sociais e psicológicos, sem a qual,
segundo Brito, os custos se transformariam em obstáculos intransponíveis.
Entretanto, se a “ilusão migratória” é fator constitutivo do processo de decisão de migrar, as “redes sociais de
migrantes” são fundamentais na definição do país de destino. “Os que migram estabelecem entre si uma ‘rede’ de
informações e apoio, visando não só informar sobre as
condições do país de destino como também facilitar a
adaptação dos migrantes” (Brito, 1995). A existência de
uma “colônia” contribui na decisão do local de destino
na medida em que pode oferecer melhores condições de
recepção aos recém-chegados, além de facilitar o acesso
à moradia e emprego (Sassen-Koob, 1979). Sem dúvida,
a existência dessas redes contribui, inclusive, através do
circuito de notícias e informações dirigidas à comunidade de origem, para a construção e/ou fortalecimento do
imaginário, fortalecendo a “ilusão migratória”.
No caso específico dos brasileiros emigrantes internacionais, o cálculo de custos e benefícios não tem apontado para um fluxo com destino a uma única região ou país
de destino. Ao contrário, a diversidade de anseios e objetivos, bem como de facilidades oferecidas pelas colônias
ou “redes de solidariedade” existentes por graus de parentesco ou descendência, tem contribuído para a existência de vários fluxos distintos, conforme se verá adiante.
Antes, porém, chama-se a atenção para outra face do
mesmo fenômeno. Se por um lado, o Brasil não satisfaz o
imaginário de um conjunto de nacionais – que buscam na
migração a possibilidade de melhor remuneração pelo trabalho –, por outro lado, é um centro de atração para a
A Construção do Imaginário Migratório
O atual fluxo migratório internacional, de maneira
geral, não tem relação com aquele ocorrido até o início
desse século, quando grandes levas de migrantes deixavam o velho mundo para construir o mundo novo. Inversamente, o sentido dos principais fluxos é, atualmente,
da periferia para os países centrais, ou de países com baixo grau de desenvolvimento para aqueles cuja divisão
social do trabalho é mais complexa, atraídos pela possibilidade de melhores ganhos pelo trabalho.
A inserção do migrante internacional no mercado de
trabalho ocorre quase sempre através de ocupações clandestinas ou precárias, cujos salários são inferiores àqueles auferidos pelos trabalhadores nacionais, além de não
dispor do aparato de proteção social existente. Mesmo
assim, segundo Sassen-Koob (1988), ele se sujeita porque, no cálculo de custo-benefício do migrante internacional, seu ponto de comparação é a economia do país de
origem, contando muito pouco, para sua decisão, a comparação entre seus possíveis rendimentos e aqueles recebidos pelos nacionais do país de destino.
Além das questões relativas à crise fiscal dos estados
nacionais e à falência dos precários programas de proteção social na periferia, a reestruturação produtiva – poupadora de mão-de-obra e geradora de desemprego estrutural – e a eliminação das barreiras nacionais ao livre
trânsito de capitais e mercadorias, ao obrigarem que a
indústria nacional trabalhe com os indicadores de produtividade e com os custos de oportunidade do capital elevados à escala mundial em todos os mercados, acabam
por restringir a produção nacional e ampliar os níveis de
importação de produtos acabados. Isso significa “exportar” empregos da periferia para os países centrais ou para
os chamados New Industrialized Countries (NICs) e, ao
mesmo tempo, através dos sistemas globais de marketing,
criar novas demandas, expectativas e anseios em todas as
economias nacionais.
Apesar do grande esforço dos países centrais em manter os processos sociais limitados às fronteiras nacionais,
inibindo o ingresso e a permanência de não nacionais, há
um processo de construção da “sociedade global” que,
89
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
população de alguns países de sua periferia, como bolivianos, peruanos e colombianos, que têm migrado clandestinamente para a cidade de São Paulo. Isto reflete, também no país, o cenário de superexploração dos migrantes
internacionais indocumentados, como ocorre nos países
centrais.5
Por outro lado, a existência de uma rede de solidariedade, construída pelos primeiros membros de uma colônia já estabelecida, tem contribuído para ampliar o ingresso
de coreanos que, com um pouco de capital e apoiados
sobre uma sólida rede de solidariedade, inclusive com
traços mafiosos, têm se estabelecido no comércio da maior
metrópole sul-americana, São Paulo, onde controlam o
comércio de pequenas bugigangas importadas ilegalmente
do oriente e vendidas diretamente por eles em shopping
centers de pequenos boxes ou através de camelôs nas ruas
do centro da cidade.6
período de crescimento próximo de zero rompeu o mecanismo de mobilidade social ascendente, principal mecanismo de incorporação das classes trabalhadoras do regime autoritário.
A interrupção do processo de crescimento econômico
fez da década de 80 uma “década perdida”. Além da inflação anual ter ultrapassado a casa dos 1.000% em alguns anos e as taxas de desemprego serem crescentes, a
conjuntura política, de forte restrição das liberdades individuais pelo regime militar ditatorial implantado desde
1964, contribuía para ampliar a frustração dos jovens que
não viam alternativas econômicas ou políticas de curto
prazo.10 A mobilidade social truncada e a falta de perspectiva de alteração da conjuntura socioeconômica fizeram com que um grande número de jovens procurasse na
migração internacional uma saída individualizada para o
longo período de crise.
CRISE ECONÔMICA E AJUSTE NEOLIBERAL
Reestruturação Produtiva e Implantação
do Receituário Neoliberal
A principal característica da economia brasileira na
década de 80 foi a queda acentuada do ritmo de crescimento, interrompendo um ciclo de quatro décadas de crescimento econômico e significativas taxas de investimento. O longo período de crise que atravessou toda a década,
marcando-a pela estagnação econômica, na verdade significou “o esgotamento de um padrão que lhe conferiu
impressionante dinamismo ao longo de todo o período da
moderna industrialização, particularmente após meados
dos anos 50” (Carneiro, 1991:38).7
Sem dúvida, o período que vai do final dos anos 70 até
o início da década de 90 foi marcado pela mais longa crise das últimas décadas, com a recessão, a inflação e as
taxas de desemprego assumindo grandes dimensões. Foi
somente graças à recuperação proporcionada pelo incremento das exportações, a partir de 84, e posteriormente
pelas propostas implementadas a partir do Plano Cruzado, que os resultados do período não foram ainda mais
reduzidos. Apesar dos curtos períodos de recuperação entre 1984 e 1986, em 1989 e após 1993, o que prevaleceu
foi uma trajetória de crescimento médio baixo, comparada aos valores históricos da economia brasileira, que rompeu uma longa trajetória de crescimento e trouxe à tona
um comportamento denominado por Pacheco (1996:79)
de cronicamente instável.
De fato, entre 1940 e 1980, o PIB teve um crescimento
médio de 6,9% ao ano, enquanto a população cresceu a
uma taxa média anual de 2,7%, o que fez com que a renda
per capita fosse quintuplicada. Já na década de 80, o crescimento do PIB foi inferior ao incremento populacional,8
ocasionando uma redução no PIB per capita de 1.940
dolares para 1.860 dólares, entre 1980 e 1990.9 O longo
A globalização e a reestruturação vêm causando impacto sobre a indústria e o conjunto da economia brasileira, apesar do caráter periférico de seu capitalismo. O
impacto é tanto maior na medida em que os processos de
globalização e reestruturação econômica surgiram, nas
economias centrais, num período em que o país estava
mergulhado em uma forte crise, cuja tônica foi o desajuste estrutural da economia, expresso pelo desequilíbrio na
balança de pagamentos, crise cambial, déficit fiscal e escalada inflacionária, aliado à ausência de política industrial e de desenvolvimento regional – fatos que contribuíram para ampliar o gap tecnológico.
A interrupção do longo período de estagnação, com o
novo plano de estabilização da economia no início dos
90 – consolidando o receituário neoliberal no país – veio
acompanhada de uma confusa abertura da economia, que
expôs a indústria nacional à abrupta concorrência de importados, comercializados a preços bem menores que os
praticados pelos nacionais.
A resposta imediata da indústria foi um forte ajuste na
estrutura de custos de produção, concentrado, em grande
parte, na redução dos postos de trabalho, na terceirização
e na redução dos níveis hierárquicos, num movimento que
ficou conhecido como “reestruturação espúria”.
Assim, a reestruturação produtiva e o processo de globalização da economia, aliados ao ajuste neoliberal do
início dos anos 90, expuseram a indústria nacional à concorrência externa, impondo-lhe um forte ajuste. Ou seja,
a necessidade de produzir com uma estrutura de custos
de produção internacionalmente competitivos exigiu fortes medidas de ajuste patrimonial, nos sistemas produti-
90
A EMIGRAÇÃO INTERNACIONAL DE BRASILEIROS: O SENTIDO DA SAÍDA
vos e gerenciais, e ampliou a importação de bens de capital e a incorporação de componentes importados aos produtos nacionais. Isso, junto com a importação de produtos acabados, tem contribuído para a redução dos níveis
de integração na indústria nacional, com alterações na divisão social e espacial do trabalho.
As estatísticas brasileiras sobre desemprego são muito
precárias, entretanto, é possível visualizar a tendência geral
a partir dos resultados da Pesquisa de Emprego e Desemprego – PED.11 Estes mostram que tem havido uma sistemática queda nas taxas de emprego formal, notadamente
do emprego industrial, com ampliação das taxas de desemprego. As estatísticas começaram no ano de 1985,
quando o desemprego, refletindo o período de profunda
crise econômica, era de 12,2%. Entre 1986 e 1989, a taxa
de desemprego na RMSP oscilou em torno de 9%, atingindo a menor taxa anual (8,7%) em 1989. A partir daquele ano, passou por um processo de ampliação sistemática, chegando a uma média anual de 15,1% da PEA
em 1996, e elevando-se para 16,0% em maio de 1997. O
desemprego aberto, que era de 6,5% em 1989, cresceu
sistematicamente, atingindo 10% da PEA em 1996. O
desemprego oculto pelo trabalho precário passou de uma
média anual de 1,5% para 3,8% da PEA, entre 1989 e 1996,
depois de atingir o máximo de 4,7% em 1993, enquanto
o desemprego oculto por desalento cresceu de 0,9% para
1,3% da PEA, no mesmo período.
No que se refere à ocupação, a participação dos ocupados na indústria foi reduzida de 34,7% para 22,6% do total
de ocupados entre 1986 e 1996, enquanto a participação dos
ocupados no comércio e no setor serviços (exclusive serviços domésticos) teve um crescimento de 14,0% para 17,2%
e de 39,4% para 48,6%, respectivamente.
Sem dúvida, parte do crescimento da participação da
ocupação observada no setor serviços pode ser explicada
pelo crescente processo de terceirização de atividades
industriais. Como já foi dito, esse processo de externalização de parcela considerável do emprego industrial faz
parte da estratégia de reestruturação denominada espúria, por ser centrada fundamentalmente na compressão da
massa salarial, com a conseqüente precarização das relações de trabalho.
Em síntese, em que pese ter havido uma retomada no
crescimento econômico nacional nos últimos anos, as estatísticas de emprego mostram que continua havendo redução relativa do número de postos de trabalho, com o
crescimento do desemprego.12 Por outro lado, tem havido uma crescente precarização dos postos de trabalho, com
redução do trabalho assalariado (de uma média anual de
71% para 62,6% dos ocupados entre 1986 e 1996, caindo
para 61,9% no levantamento de abril de 97) e ampliação
da participação dos trabalhadores autônomos (de 15,1%
para 19,4% entre os anos considerados, chegando a 19,7%
do conjunto dos ocupados em abril de 97).13
Assim, apesar da redução do número de famílias vivendo abaixo da linha de pobreza e da ampliação dos
níveis de consumo, propiciados pela interrupção do processo inflacionário, a falta de oportunidades de emprego
e as elevadas taxas de desemprego mantêm as dificuldades de incorporação dos jovens ao mercado de trabalho. Essa conjuntura econômica desfavorável, somada às determinantes globais do atual processo de
migração internacional, dentre as quais destaca-se a
massificação do acesso às redes de informações mundiais, possibilitada pela recepção de sinais de satélites
nas televisões e pelo barateamento das tarifas internacionais de transportes e comunicações – fatos que provocam uma redução relativa das distâncias (ou compressão do espaço pelo tempo) – deve manter e até
ampliar o fluxo de migração internacional no Brasil.
TRANSFORMAÇÕES NA ECONOMIA
NACIONAL E MIGRAÇÃO INTERNACIONAL
Por ser um fenômeno recente, não há no Brasil uma
tradição em estudos da migração internacional. Entretanto, diversos pesquisadores têm se debruçado sobre o tema
na tentativa de estudar as motivações da migração, o perfil do migrante e sua inserção no mercado de trabalho do
país de destino.14
Recentemente, o Ministério das Relações Exteriores
realizou, através de suas representações consulares, um
censo de brasileiros no exterior, chegando ao número
aproximado de 1.560 mil.15 Em 1995, foi feita a primeira
contagem, porém, seus resultados apresentam menor precisão, não merecendo comparação.
Estimativas recentes, entretanto, apontam que este
número talvez seja um pouco maior. Carvalho (1996:7)
utilizou os dados dos censos demográficos de 1980 e 1991,
tendo como pressuposto que a aplicação das Relações
Intercensitárias de Sobrevivência – RIS, da década de 70
na população de 1980, deveria indicar a população de
1990, caso não tivesse havido migração no período. Assim, segundo Carvalho, a diferença entre a população
observada em 1990 e a esperada no mesmo ano corresponde à estimativa do saldo migratório. Se se consideram constantes as taxas de mortalidade entre as duas décadas, o que é uma hipótese irreal, os cálculos indicam
ter havido saldos migratórios negativos de 302 mil para
mulheres e 741 mil para homens.
Entretanto, quando o autor acrescenta o pressuposto de declínio da mortalidade e adota as estimativas
realizada pelo Celade, em 1995, de esperança de vida
ao nascer – de 60,8 e 64,8 anos nas décadas de 70 e 80,
91
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
TABELA 1
para ambos os sexos –, 16 chega a números bem mais
expressivos, concluindo por um saldo migratório negativo da ordem de 1.180 mil mulheres e de 1.350 mil
homens, ambos de 10 anos ou mais.
Assim, fazendo um cálculo mais realista, e ainda
desconsiderando a migração de crianças menores de 10
anos, Carvalho aponta para um fluxo negativo de mais de
2,5 milhões de migrantes, durante a década de 80.17
Considerando que o censo oficial da emigração, realizado pelo Ministério das Relações Exteriores encontrou
1,5 milhão de brasileiros emigrados, é correto o raciocínio do professor Carvalho e, efetivamente, o número total deve superar aquele encontrado pelo governo brasileiro. 18 Mas, independentemente da discussão sobre a
precisão do número de emigrados, o importante é sua
magnitude, pois, apesar de representar em torno de 1%
do conjunto da população brasileira, em termos absolutos representa um grande contingente – equivalente à
população de uma grande cidade européia.
Constatada a magnitude do fluxo de brasileiros para o
exterior, a pergunta que se coloca de imediato diz respeito à motivação (ou motivações) para o surgimento de tal
processo. Outra interrogação imediata é quanto à efemeridade de tal processo. Sem dúvida, o processo de migração internacional de brasileiros não pode ser explicado somente à luz das determinantes conjunturais da
política macroeconômica nacional, mas dentro de um espectro mais amplo de questões que têm motivado a ampliação dos fluxos internacionais de pessoas.
Emigrantes Brasileiros, segundo o Continente de Destino
1996
Continente
N os Absolutos
Total
1.560.162
100,00
África
3.126
0,20
1.157.527
2.052
610.539
544.936
74,19
0,13
39,13
34,93
Ásia
212.462
13,62
Europa
174.543
11,19
Oceania
12.504
0,80
América
América Central
América do Norte
América do Sul
%
Fonte: Ministério das Relações Exteriores da República Federativa do Brasil. Elaboração do
autor.
TABELA 2
Emigrantes Brasileiros, segundo País de Destino
1996
Região (ou País)
Nos Absolutos
Total
1.560.162
100,00
3.126
2.052
11.212
598.526
460.846
19.986
15.035
15.404
13.000
6.676
5.307
9.483
1.923
201.139
9.400
40.118
36.092
32.068
10.361
19.510
9.846
8.353
8.219
6.033
2.503
950
80
410
12.504
0,20
0,13
0,72
38,36
29,54
1,28
0,96
0,99
0,83
0,43
0,34
0,61
0,12
12,89
0,60
2,57
2,31
2,06
0,66
1,25
0,63
0,54
0,53
0,39
0,16
0,06
0,01
0,03
0,80
África
América Central
Canadá
Estados Unidos
Paraguai
Uruguai
Guiana Francesa
Argentina
Suriname
Bolívia
Venezuela
Demais países da América
Ásia exclusive Japão
Japão
Oriente Médio
Itália
Alemanha
Portugal
Espanha
Inglaterra
Países Nórdicos
Suíça
França
Países Baixos
Grécia
Áustria
Irlanda
Europa Oriental
Austrália
Migração Internacional de Brasileiros
O censo da emigração de 1996 constatou que existe
uma grande dispersão na localização dos brasileiros emigrados, encontrando 63 comunidades com mais de 1.000
brasileiros em 29 países.19 Entretanto, 74,1% (1.157 mil)
optaram por países da América (39% da América do Norte,
35% da América do Sul e 0,1% da América Central);
13,6% (212,4 mil), por países da Ásia; 11,2% (174,5 mil),
da Europa; e 0,8% e 0,2% da Oceania e da África, respectivamente 12,5 e 3,1 mil.
Dentre os emigrantes que permaneceram no continente americano, 53,85% optaram por países não latinos e os
restantes 46,15% por países da América Latina. Dentre
os que optaram pela Europa, a quase totalidade (99,76%)
reside em países da Europa Ocidental, sendo quase nula
a comunidade de brasileiros na Europa do Leste. Dos que
foram para a Ásia, 95,6% estão no Oriente e 4,4% nos
países do Oriente Médio. Na África, 35,2% dos brasileiros estão nas jurisdições consulares de Angola e 27,2%
nas da África do Sul. Na Oceania, todos estão nas jurisdições consulares da Austrália.
%
Fonte: Ministério das Relações Exteriores da República Federativa do Brasil. Elaboração do
autor.
92
A EMIGRAÇÃO INTERNACIONAL DE BRASILEIROS: O SENTIDO DA SAÍDA
Em que pese a dispersão, podem-se observar quatro sentidos bem distintos como destino dos emigrantes. Grande
parte dirige-se para os Estados Unidos da América. O sonho de uma vida melhor, que habita o imaginário de jovens que sofrem pela ausência de perspectiva de emprego, tem levado muitos a migrar clandestinamente para
aquele país, onde se sujeitam a trabalhos aquém de sua
capacidade profissional, no mercado de trabalho secundário, mas com uma remuneração bem superior da que teriam no Brasil. Há um fluxo transfronteiriço, que ocorre
no sul do país em direção ao Paraguai, à Argentina e ao
Uruguai, particularmente ao primeiro. A principal característica desse fluxo é ser composto de produtores rurais
que extrapolaram as fronteiras nacionais em busca de terras para produzir, incentivados pelo diferencial de preços
no mercado de terras.20 Há um outro fluxo de saída de brasileiros em direção à Europa Ocidental. A existência de
laços culturais e de sangue, advindos de uma “emigração
colonizadora”, é apontada por Bógus (1995) como um dos
principais fatores constitutivos desse fluxo.21
A emigração de brasileiros, descendentes de japoneses
que migraram para o Brasil no início do século, compõe
outro fluxo bem específico. Denominados de dekasseguis,
nisseis (primeira geração) e sanseis (segunda geração) têm
encontrado no país de seus antepassados a possibilidade
de maiores rendimentos.
trabalho tipicamente ocupados por sua classe social no
Brasil, em que pese representar um rebaixamento de status,
tem esse ônus atenuado pelo ganho financeiro imediato,
retendo o migrante nos Estados Unidos. O ganho financeiro compensa a mobilidade social truncada no Brasil,
pela ausência de emprego e longo período de crise econômica. Assim, “a maioria dos migrantes faz, como trabalho, nos EUA, o que no Brasil sua condição de classe
(classe média brasileira) e os preconceitos daí decorrentes não permitiriam” (Carleial, 1994:299).
A existência de uma rede de relações é sempre evocada
como a principal justificativa para o grande fluxo de brasileiros, principalmente naturais da cidade de Governador Valadares, no Estado de Minas Gerais, para Boston e
Nova York. 24 O número de brasileiros em Boston é tão
expressivo que existe um jornal, o Brasilian Times, onde
se lêem anúncios de terrenos e casas para vender em Governador Valadares, de agências que remetem dinheiro e
vendem passagens aéreas, programas de rádio em português especialmente dirigidos a esse público constituído
de imigrantes brasileiros (Sales, 1994:253).
Os brasiguaios – O fluxo mais antigo de emigração de
brasileiros talvez seja aquele estimulado pela expansão
da fronteira agrícola do país. Os agricultores da região
Sul, ao seguirem rumo ao centro-oeste, extrapolaram a
fronteira nacional e passaram a cultivar terras do vizinho
Paraguai, onde ocupam vasta faixa de terras fronteiriças
e são conhecidos como brasiguaios.25 Esse movimento
transfronteiriço foi incentivado pela expansão da propriedade de terras paraguaias por brasileiros que, no período
de expansão da fronteira agrícola brasileira, foram atraídos pelo diferencial de preços existentes nos dois mercados de terras, ou então pela possibilidade de rendimento
do trabalho agrícola (Reydon e Plata, 1995).
Salim (1995) aponta que a questão dos brasiguaios, com
seu conjunto de determinantes e conseqüências, está estreitamente relacionada com as ações estratégicas planejadas pelos governos dos dois países, notadamente o Tratado de Aliança e Cooperação Econômica (1975), que
previa a povoação do território paraguaio com mais de
1,2 milhão de brasileiros – 45% da população do Paraguai –, em uma área de quase 122 mil quilômetros quadrados, cerca de 30% do território paraguaio. O objetivo
precípuo era criar uma “cerca viva” ao redor do lago de
Itaipu e assegurar a expansão da fronteira econômica brasileira no Paraguai, de forma a consolidar o Tratado de
Itaipu, assinado em 1973, que possibilitou a construção
da Hidrelétrica de Itaipu.
Em que pese os objetivos inicialmente traçados não
terem sido alcançados, estimativa extra-oficial aponta que
o número de brasileiros residindo no Paraguai aumentou
Os brasileiros nos EUA – Os Estados Unidos da América têm sido o destino de um grande número de jovens brasileiros de classe média, que ingressam clandestinamente
naquele país e, em sua grande maioria, se sujeitam a trabalhos pesados e desqualificados, no chamado mercado
de trabalho secundário, mas que lhes rende um ganho bem
maior do que aufeririam no Brasil.22 O censo da emigração encontrou 600 mil brasileiros vivendo naquele país.
Pesquisa realizada com os emigrantes brasileiros em Nova
York constatou que seu perfil é bem distinto daquele estereótipo (de semi-analfabeto) que os americanos associam aos clandestinos que vivem no país. Quase metade dos
entrevistados já freqüentaram curso superior e 31% têm
diploma universitário – índice superior à média americana de 24% de adultos com formação superior.23
O ingresso no mercado de trabalho secundário é facilitado, como explica Castro (1994:281), por este ser composto de atividades normalmente recusadas “por brancos
norte-americanos e não aberta aos negros de igual nacionalidade, como as ocupações de garçom, lavador de pratos, atendente em bares, etc. Assim estariam, segundo a
autora, dadas pelo lado dos dois países, de origem e destino, as condições para a mobilidade do trabalho. A inserção secundária no mercado de trabalho, em ocupações
muito abaixo da qualificação profissional e dos postos de
93
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
de 40 mil para 400 mil entre 1975 e 1984 (Cortez, 1993).
Dados da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil –
CNBB, órgão da Igreja Católica Apostólica Romana,
apontavam para a existência de 500 mil brasileiros no
Paraguai no ano de 1985 (Salim, 1995). Em 1996, o MRE
encontrou 460.846 brasileiros residindo naquele país.
Palau (1995:202) adverte que os brasiguaios não
compõem uma corrente migratória homogênea, mas
podem ser encontrados pelo menos quatro grupos distintos: o primeiro é formado por uma espécie de burguesia agrária relativamente capitalizada, cujos integrantes são proprietários de 100 ou mais hectares de
terras e constituem, na atualidade, o segmento e a agricultura farmer 26 ; o segundo, por agricultores médios
que têm título da terra e ocupam entre 20 e 100 hectares de terras férteis, porém sem uma capitalização importante; o terceiro, por arrendatários – atividade até
então desconhecida no Paraguai –, agricultores capitalizados, mas sem terra, que, diferentemente dos farmers
e dos agricultores médios, produzem para o mercado,
não para subsistência; finalmente, o quarto grupo, é
constituído por agricultores sem título da terra, mais
conhecidos como brasiguaios, que ocupam áreas inferiores a cinco hectares, proprietários com título provisório, famílias “agregadas” que trabalham por contrato, normalmente verbal, em terras alheias, e também
assalariados agrícolas sem terras e sem contratos fixos,
que formam o maior contingente.
Os brasiguaios, hoje, estão pauperizados e impedidos
de ter acesso à cidadania e aos direitos sociais básicos. A
situação, segundo Salim (1995:155), vem-se deteriorando desde meados da década passada e eles passam, atualmente, por um processo de “dessocialização, pois não se
aculturaram no Paraguai e nem aprenderam o castelhano
ou o guarani, e tampouco buscaram o caminho da naturalização”.
sil, que retornam com toda a família, com membros brasileiros, são os principais fatores explicativos do crescimento
do fluxo migratório do Brasil para os dois países. A Alemanha, país que possui rígido controle de entrada de migrantes, também reconhece a dupla cidadania de brasileiros descendentes de alemães, até a terceira geração, mas
com algumas restrições.27 A existência de um grande número de brasileiros descendentes de alemães nos estados
do sul, o processo de unificação alemã e o crescimento de
sua economia talvez possam explicar a grande expansão
no número de brasileiros residentes naquele país.
As estatísticas oficiais brasileiras indicam que dos 174,5
mil brasileiros que vivem na Europa, 40,18 mil moram
na Itália, 36,1 mil na Alemanha, 32 mil em Portugal, 19,5
mil na Inglaterra, 10,3 mil na Espanha, 8,2 mil na França, 9,8 mil nos Países Nórdicos, 8,5 mil na Suíça, 6 mil
nos Países Baixos, 2,5 mil na Grécia, 1 mil na Áustria e
80 na Irlanda, segundo dados do MRE. Os países do leste
europeu, juntos, inclusive Rússia e Ucrânia, contam com
somente 410 brasileiros.
O que deve ser destacado é a alteração quanto à preferência do local de destino dos brasileiros, pois Portugal e
Itália eram, até há alguns anos, os países preferenciais para
os migrantes brasileiros. Ao que parece, a estabilidade da
economia alemã, associada a alterações na legislação local sobre o reconhecimento de cidadania, foram responsáveis pela ampliação do fluxo de brasileiros com destino àquele país, enquanto os recentes episódios envolvendo
brasileiros indocumentados em Portugal – dos quais o não
reconhecimento do diploma e a proibição do exercício
profissional pelos dentistas brasileiros é o mais conhecido – parecem ser as principais justificativas para a aparente redução do fluxo de brasileiros para Portugal.
A imprensa nacional, de tempos em tempos, apresenta
casos de brasileiros indocumentados residentes na Europa. Normalmente, se trata de jovens, de cor branca, de
classe média e grau de escolaridade acima da média nacional (ensino básico completo e, em muitos casos, com
formação universitária) e que emigraram sozinhos. Essa
migração é quase sempre temporária e relacionada ao interesse em aprender a língua e conviver com o cotidiano
daquela comunidade, daquela cultura. Para tanto, aceitam
realizar trabalhos leves no chamado mercado secundário
de trabalho (babá, garçom, etc.) e utilizam os ganhos para
realizar viagens pelo próprio continente europeu.
Esse traço distingue o migrante brasileiro que vai para
a Europa de seus patrícios que migram para outros continentes, pois, distintamente, aqueles que vão para os Estados Unidos têm o objetivo de juntar dinheiro para retornar ao Brasil com ganho monetário efetivo. Esse objetivo
é bem menos perceptível nos jovens que optam por migrar para países da Europa Ocidental.
Brasileiros na Europa Ocidental – Dentre os fatores comumente lembrados para justificar a criação e a permanência de um fluxo migratório internacional (tais como, internacionalização da produção, desemprego no país de origem,
diferenciação interna no mercado de trabalho do país receptor e existência de uma colônia anterior), sem dúvida, no
caso da emigração de brasileiros rumo à Europa, a existência de laços culturais e de sangue é de grande importância.
A possibilidade de reconhecimento da cidadania italiana concedida aos descendentes até a segunda geração paterna dos imigrantes italianos chegados ao Brasil no início do século, bem como a assinatura de diversos acordos
culturais e de reciprocidade, assinados entre os governos
do Brasil e de Portugal na década de 70, e, ainda, a migração de retorno, no caso de portugueses residentes no Bra-
94
A EMIGRAÇÃO INTERNACIONAL DE BRASILEIROS: O SENTIDO DA SAÍDA
Há, entretanto, um tipo de migração com fins específicos
de “trabalho”. Trata-se de travestis e dançarinas que se apresentam nos cabarés e casas de espetáculos de diversas capitais e grandes cidades européias, principalmente em Roma,
Paris, Bolonha, Zurique, Amsterdã que, não por acaso, são
também grandes centros de prostituição européia.
cada país”, o que pode estar sendo reforçado pela rede
social formada pelos dekasseguis para dekasseguis.
CONCLUSÃO
O fato de o país ter revertido a trajetória dos indicadores econômicos que, durante mais de uma década, apontavam para a estagnação da economia nacional, e de ter
estabilizado sua economia, sem, contudo, ter revertido o
fluxo de migração internacional iniciado na década de 80,
expressa que esse fenômeno não é conjuntural, mas deve
ser entendido dentro das transformações estruturais por
que têm passado as economias dos países centrais.
A categoria que mais bem explica o movimento migratório internacional no período recente é, sem dúvida,
o trabalho, conforme já apontado por diversos autores,
principalmente Sassen-Koob (1988). Sua centralidade para
os movimentos migratórios internacionais é colocada por
Carleial (1994:300) ao afirmar que “a racionalidade econômica aplicada ao mundo do trabalho está subjacente à
busca pela modernidade”.
Entretanto, o movimento da força de trabalho deve ser
estudado à luz do movimento do capital no espaço, que,
conforme afirmado anteriormente, tem observado uma concentração dos novos investimentos na tríade. Isso significa
considerar que a mobilidade do capital é que tem criado novas
condições para a mobilidade do trabalho (Sassen-Koob,
1988). Assim, pode-se dizer que as migrações internacionais ocorrem por determinações claras do movimento do
capital no espaço, o que permite concentração espacial de
oportunidades de trabalho (Carleial, 1994). Ou seja, a migração internacional, principalmente a clandestina, “parece
constituir o tipo de movimento específico dessa nova etapa
do capitalismo” (Patarra e Baeninger, 1995:86).
Assim, apesar de os números da emigração brasileira não
indicarem a existência de uma diáspora, pode-se dizer que,
mais que uma saída individualizada para um momento de
crise econômica ou política, o atual fluxo de migração internacional está inserido, como contraface, no novo contexto
de redução de barreiras ao livre fluxo de capitais e mercadorias. Isso significa que deverá conti-nuar havendo migração
internacional de trabalhadores, principalmente de in-documentados, enquanto houver diferencial de remuneração e de
qualidade de vida entre os países e regiões, a despeito do
forte controle de entrada nos países desenvolvidos.
Os brasileiros no Oriente (os dekasseguis) – Desde o
início do atual século até final dos anos 60, houve um significativo fluxo de japoneses para o Brasil, estimado em
250 mil migrantes.28 Entretanto, esse fluxo foi invertido,
com a arregimentação de um grande número de brasileiros, descendentes de japoneses, por firmas especializadas no fornecimento de mão-de-obra temporária para a
indústria no Japão, graças a dispositivos legais que permitem o ingresso de descendentes de japoneses para trabalhar oficialmente naquele país.
O censo da emigração encontrou 201,2 mil brasileiros
trabalhando no Japão, aos quais devem ser acrescidos cerca
de 20 mil com dupla nacionalidade, que, provavelmente,
não participaram da contagem, por entrarem no Japão com
status de cidadãos japoneses e não de dekasseguis.
O perfil da migração de trabalhadores brasileiros para
o Japão tem-se alterado nos últimos anos, passando de
migração e trabalho clandestinos, no início do fluxo migratório, em meados dos anos 80, para migração temporária oficial, com emprego agenciado por empresas especializadas e com escritórios no Brasil.29
O fato de ingressarem formalmente no país, e na grande
maioria das vezes já saírem do Brasil com um contrato de
trabalho, além da descendência e do prazo predeterminado
de estadia no Japão, são os fatores que distinguem esses
emigrantes brasileiros dos que vão procurar trabalho nos
Estados Unidos. Outro fator distintivo é o volume de divisas
enviadas mensalmente ao país. Dos aproximadamente 4,0
bilhões de dólares em remessas espontâneas do exterior (rubrica quase totalmente destinada a computar o envio de dólares de brasileiros residentes no exterior), no ano de 1996,
cerca de 50% foram enviados por brasileiros no Japão.
Pesquisa realizada por Sasaki (1996) mostra que os
nipo-brasileiros que emigraram eram de classe média
média ou baixa, tinham emprego no Brasil antes de migrar e, em muitos casos, apresentavam um alto nível de
escolaridade – traços que lhes possibilitavam maiores
chances de inserção no mercado de trabalho. O principal
fator apontado para a migração, segundo a pesquisa, foi a
crise que assolou o país na década de 80, o que podava as
esperanças de melhoria nas condições de vida, que a autora chama “busca pelo ouro”. Mas, aos poucos, o caráter
temporário da migração está se dissolvendo e se tornando confuso, à medida que eles retornam para o segundo
ou terceiro período de trabalho e “ficam com um pé em
NOTAS
E-mail do autor: [email protected]
Uma síntese desse trabalho foi apresentada no XXIII rd General population
conference, session 01: International migration: it’s impact on the country of
origin (Beijing, China, outubro de 1997).
95
SÃO PAULO EM PERSPECTIVA, 11(4) 1997
1. Entre outros estudos, destacam-se Levy (1974) e Bessanezi (1995).
14. O mais completo estudo sobre o recente processo de migração internacional
no Brasil foi realizado pelo Programa Interinstitucional de Avaliação e Acompanhamento das Migrações Internacionais no Brasil, coordenado pela professora Neide L. Patarra, no qual nos baseamos fartamente para tecer as considerações a seguir.
2. Para uma síntese das mudanças produtivas e organizacionais relacionadas à
reestruturação industrial, ver Salerno (1992) e Coutinho (1992).
3. A reestruturação patrimonial refere-se às formas de alteração do controle de
capital acionário das empresas. Os dados sobre investimento direto no exterior,
sua distribuição geográfica e os fatores que explicam seu perfil podem ser encontrados no Survey of Current Business, publicado bienalmente pelo Departamento de Comércio dos EUA, e no World Investment Report (publicação anual
das Nações Unidas), principalmente em seu primeiro número “The Triad in
Foreign Direct Investment”, de 1991.
15. A contagem do Ministério das Relações Exteriores, em dezembro de 1996
foi realizada segundo as Jurisdições Consulares, que representam a área de atuação de cada consulado. O termo comunidade, aqui, não tem conotação de colônia assentada no mesmo espaço físico, mas de conjunto de brasileiros residentes
na mesma região (jurisdição consular).
16. A partir da esperança de vida, o autor identificou no Sistema de TábuasModelo Brasil de Mortalidade (IBGE, 1981) as tabelas de sobrevivência correspondentes. Para cada sexo e grupo etário foram calculados os quocientes entre
as relações de sobrevivência de dez anos das tabelas referentes às décadas de 80
e 70. Os quocientes foram multiplicados pelas RIS correspondentes da década
de 70, para estimar quais seriam as relações intercensitárias de sobrevivência na
década de 80, caso a população brasileira tivesse permanecido fechada. A diferença entre a população esperada de 1990 (calculada a partir das RIS aplicada à
população recenseada de 1980) e a população encontrada em 1990 (calculada a
partir dos dados do Censo de 1991) expressa o contingente de população que
migrou no período.
4. Sobre a natureza do processo de globalização, ver Coutinho (1995).
5. Sassen-Koob (1987), em um dos primeiros estudos sobre a migração de trabalhadores e a reestruturação global, já chamava a atenção para a existência de
diferentes fluxos de migração internacional. A autora descreveu três fluxos de
trabalhadores migrantes internacionais, dois dos quais intraperiferia e o terceiro
do sudeste asiático e de regiões do Caribe e América Central para grandes áreas
urbanas nos países desenvolvidos, num momento de alto desemprego e severa
decadência urbana. Nos fluxos intraperiferia, a autora distinguia a migração para
países exportadores de petróleo do fluxo que se dirigia para zonas de crescimento industrial que produzem para o mercado mundial. Acredita-se ser esse último
o caso da migração de latino-americanos para São Paulo.
17. Os cálculos apresentados por Carvalho referem-se ao saldo da migração internacional no período, consideradas as entradas de estrangeiros que, como se
verá, não podem ser desprezadas. Logo, a saída de brasileiros deve ser maior
que os números por ele apresentados.
6. Sobre o atual processo de imigração para o Brasil, ver Galleti (1995).
7. Um forte componente para o esgotamento do padrão de crescimento e a instalação da crise foi a ruptura do padrão de financiamento internacional, após o
choque financeiro externo no início dos 80, com a política econômica, até meados da década, subjugada por pressões dos credores externos e o Estado assumindo grande parte do ônus do ajuste do setor privado. Essa política econômica
gerou uma situação paradoxal na qual “o Estado acumulou um crescente estoque
de dívida para cumprir com o serviço da dívida externa e para socializar o ônus
do ajuste do setor privado, enquanto esse último, por sua vez, passou a financiar
o Estado via operações de mercado aberto”(Baer, 1993:40). Por esse motivo, o
desajuste das finanças públicas esteve intimamente associado à aceleração da
inflação e à desaceleração do crescimento econômico.
18. É importante observar que o trabalho do professor Carvalho compreende o
movimento realizado no período intercensitário (1980-1991), enquanto o Censo
de emigração do MRE foi realizado em 1996. Em função da estabilização da
economia nacional a partir de 1994, é possível que tenha havido uma redução do
número de brasileiros em alguns países. Os dados do Consulado Brasileiro de
Lisboa informam que o número de brasileiros residentes em Portugal caiu pela
metade entre 1993 e 1996 (Klintowitz, 1996).
19. A contagem envolveu os migrantes documentados e os clandestinos, sem
restrição entre ambos.
8. O PIB brasileiro cresceu 1,57% a.a. e a população 1,93% a.a, entre 1980 e 1990.
20. Sobre o mercado de terras agrícolas nas regiões de fronteira com os países
de Mercado Comum do Sul, ver Reydon e Plata (1995).
9. É importante destacar que, passado o período do milagre econômico entre 1967
e 73, quando a indústria manufatureira cresceu a uma média de 12,7% a.a., o
produto industrial iniciou um período de retração, passando de 15,8% para 8,4%
e 4,5% em 1973, 1974 e 1975, respectivamente, enquanto o PIB declinava de
14% para 9,8% e 5,6%. Mas o desempenho da economia no período pós-milagre
foi, em grande parte, condicionado pelo II Plano Nacional de Desenvolvimento
(II PND), o mais importante esforço do Estado para promover mudanças estruturais na economia desde o Plano de Metas (1956-1959). Sua extraordinária especificidade, segundo Serra (1984: 97), “é que foi formulado, e parcialmente
implantado (a partir de 1974), precisamente quando a economia brasileira esgotara a fase expansiva iniciada em 1967 e a economia mundial entrava na mais
severa recessão desde os anos 30”. Foi a maturação desses investimentos que
garantiu que as taxas de crescimento do PIB na década de 80 não fossem ainda
mais reduzidas.
10. O grande movimento nacional por eleições diretas para presidente da República – maior movimento cívico nacional de toda a história republicana – foi
derrotado em votação pelo Congresso Nacional em 1984, que manteve o processo de abertura política lenta e gradual preconizado pelos militares, mas deixou
frustrada toda a Nação que havia se mobilizado em prol da democracia.
11. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística só realiza pesquisa sobre desemprego nas regiões metropolitanas do país, restringindo-se a medir o desemprego aberto. A Fundação Seade realiza, junto com o Dieese, um acompanhamento
mensal da ocupação na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), a Pesquisa de
Emprego e Desemprego. A PED apresenta um conceito mais amplo de desemprego, captando-o não somente na sua forma aberta, mas também o desemprego oculto. Por outro lado, a RMSP – maior metrópole da América do Sul – abriga cerca de
15% da População Economicamente Ativa do país e é responsável por mais de
20% da produção industrial nacional, sendo o espaço de maior concentração industrial do Brasil, além de abrigar os compartimentos mais modernos do setor de
serviços e as sedes da maioria das grandes corporações industriais e financeiras.
Trabalhar com os indicadores de ocupação e desemprego da RMSP significa apresentar os números da porção mais desenvolvida do país.
21. É estimado em 1,66 milhão e 1,62 milhão, respectivamente, de migrantes
portugueses e italianos no Brasil entre 1872 e 1972, de um conjunto de 5,35
milhões de imigrantes internacionais, no período. Portugueses e italianos são os
grupos mais expressivos de imigrantes, seguidos pelos espanhóis (716 mil). Foi
significativa também a entrada de alemães (223 mil). Entretanto, no que se refere à migração de retorno a nacionalidade de maior expressão foi a italiana, com
um índice de 10,61, seguida pela espanhola (5,50), alemã (4,31) e portuguesa
(3,79), no mesmo período (Levy, 1974:62-66).
22. Os empregos no mercado de trabalho secundário são aqueles que “requerem
pequeno ou nenhum treino, estão na mais baixa escala de salário, oferecem pouca ou quase nenhuma oportunidade de mobilidade e são caracterizados pelo rápido turnover. (...) é pois um trabalho usado para preencher a base da estrutura
ocupacional e, simultaneamente, para combater os esforços organizativos da classe
trabalhadora doméstica” (Sales, 1995:99).
23. Pesquisa realizada por Maxine Margolis, citada por Klintowitz (1996:27).
24. Em 1996, eram cerca de 200 mil residindo na região de Nova York, 150 mil em
Boston, 140 mil em Miami, 48 mil em Washington, 22,5 mil em San Francisco e
Los Angeles, além de 15 mil em Chicago e 7,5 mil em Houston, segundo o MRE.
25. O movimento transfronteiriço não se restringe, entretanto, ao Paraguai. Patarra
e Baeninger (1995) estimaram em 30 mil o número de agricultores brasileiros
vivendo na região de Missiones, na Argentina (os chamados brasentinos), além
de aproximadamente 2,8 mil vivendo do garimpo na cidade venezuelana de Santa Elena do Uiaren. De fato, o MRE apurou a existência de 20 mil brasileiros no
Uruguai, 15,4 mil na Argentina, 15 mil na Guiana Francesa, 13 mil no Suriname,
6,6 mil na Bolívia, 3 mil no Peru, 5,3 mil na Venezuela (3 mil em Santa Elena do
Uiaren) e 500 na Guiana, todos países limítrofes com o Brasil. Entretanto, é
importante destacar que, enquanto o movimento transfronteiriço nos países do
Cone Sul tem relação com a expansão da fronteira agrícola brasileira, no caso da
fronteira norte (Guiana, Suriname, Guiana Francesa e Venezuela) a migração
está mais diretamente relacionada ao movimento de garimpeiros.
12. O nível de ocupação cresceu 7,9% entre junho de 1994 e maio de 1997, período que corresponde à implantação do plano de estabilização econômica há
três anos (Plano Real). No mesmo período, a PEA cresceu 8,9%, o que significa
que o Plano Real criou menos empregos que o necessário para atender a procura, ampliando, portanto, a informalidade. No mesmo período, o desemprego cresceu 14,6% na RMSP e 177 mil pessoas tornaram-se desempregadas. Segundo o
Dieese, o desemprego vem crescendo também em outras áreas metropolitanas.
Em Porto Alegre, em abril de 97, o desemprego era 21,1% maior que em junho
de 1994, e 30,5% no Distrito Federal.
26. Estima-se que os farmers brasiguaios são responsáveis por 90% da produção de soja e 60% da produção de carne do Paraguai.
27. Só nos casos em que os pais não sejam naturalizados.
28. Estima-se que habitam no Brasil cerca de 1,5 milhão de descendentes de
japoneses (nikkeis), incluídos os remanescentes migrantes.
29. “Em 1 o de junho de 1990 foi aprovada uma lei de controle de entrada de
estrangeiros, pela qual nisseis e sanseis adquiriram o direito de contratação legal
pelas empresas. (...) 63% dos dekasseguis estão com contrato indireto, isto é,
são pessoas enviadas aos locais de trabalho por agenciadores ou intermediários,
ou ainda, por representantes de empresas japonesas” (Rossini, 1995:105).
13. Em 13 anos de pesquisa (1985-1997), a PED constatou um crescimento de
assalariados sem carteira de trabalho assinada (contrato de trabalho ilegal e sem
proteção social) e de autônomos, de 97% e 84%, respectivamente.
96
A EMIGRAÇÃO INTERNACIONAL DE BRASILEIROS: O SENTIDO DA SAÍDA
IANNI, O. A sociedade global. 3a ed., Rio de Janeiro, Civilização Brasileira,
1995.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
KLINTOWITZ, J. “Nossa gente lá fora”. Veja, n.1438, p.26-29, abr. 1996.
BAER, M. O rumo perdido. São Paulo, Paz e Terra, 1993.
LEVY, M.S. “O papel da migração internacional na evolução da população brasileira: 1872-1972.” Revista de Saúde Pública, n.8 (supl.), 1974.
BANDT, J. e PETIT, P. “Competitivité: la place des rapports industrie/services.
Seminario”. Les nouvelles armes du défi industriel. Paris, 7-9 set. 1992,
mimeo.
MATTOSO, J.E.L. “O novo e inseguro mundo do trabalho nos países desenvolvidos.” O mundo do trabalho: crise e mudança no final do século. São Paulo,
Ed. Página Aberta Ltda., 1994.
BESSANEZI, M.S. Imigrações internacionais no Brasil: um panorama histórico. In: PATARRA, N.L. (org.). Emigração e imigração internacionais no
Brasil contemporâneo. Campinas, FNUAP, 1995.
PACHECO, C.A. A questão regional brasileira pós 1980: desconcentração econômica nacional. Tese de Doutoramento. Campinas, Unicamp, 1996.
BÓGUS, L. “Migrantes brasileiros na Europa ocidental: uma abordagem preliminar”. In: PATARRA, N.L. (org.). Op. cit., 1995.
PALAU, T. “Migração transfronteiriça entre Brasil e Paraguai: o caso dos
brasiguaios.” In: PATARRA, N.L. (org.). Op. cit., 1995.
BÓGUS, L. e BESSANEZI, M.S. “Do Brasil para a Europa – imigrantes brasileiros na península itálica nesse final de século”. XX Encontro Nacional da
Associação Brasileira de Estudos de População. Anais... Caxambu, Abep,
1996.
PATARRA, N. L. e BAENINGER, R. “Migrações internacionais recentes: o caso
do Brasil.” In: PATARRA, N.L. (org.). Op. cit., 1995.
PELLEGRINO, A. “As migrações no Cone Sul, com ênfase no caso do Uruguai.” In: PATARRA, N.L. (org.). Op. cit., 1995.
BRITO, F. “Os povos em movimento: as migrações internacionais no desenvolvimento do capitalismo”. In: PATARRA, N.L. (org.). Op. cit., 1995.
REYDON, B. e PLATA, L.A. “Migrações e mercado de terras agrícolas no Cone
Sul.” In: PATARRA, N.L. (org.). Op. cit., 1995.
CAIADO, A.S.C. “A inserção do Brasil no novo ciclo internacional de migrações”.
Revista Brasileira de Estudos de População. Abep,v.13 n.1 jan./jun. 1996.
ROSSINI, R.E. “O exemplo dos dekasseguis do Brasil em direção ao Japão”. In:
PATARRA, N.L. (org.). Op. cit., 1995.
__________ . “Globalização, reestruturação e desenvolvimento regional: novos
requisitos para a localização industrial – o caso de São Paulo”. São Paulo
em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.10, n.2, 1996.
SALERNO, M.S. “Reestruturação industrial e novos padrões de produção.” São
Paulo em Perspectiva. São Paulo, Fundação Seade, v.6, n.3, p.100-108, 1992.
CANO, W. Concentração e desconcentração econômica regional no Brasil: 19701995. Campinas, 1997, mimeo.
SALES, T. “O Brasil no contexto das recentes migrações internacionais.” In
LAVINAS, L. et alii (orgs.). Op.cit., 1994.
CARLEIAL, L.M.F. “Integração internacional e (i)mobilidade da força de trabalho.
Alguns comentários. In: LAVINAS, L. et alii (orgs.). Integração, região e regionalismo. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand do Brasil, 1994.
__________ . “O trabalhador brasileiro no contexto das novas migrações internacionais.” In: PATARRA, N.L. (org.). Op. cit., 1995.
SALIM, C. “A questão dos brasiguaios e o Mercosul”. In: PATARRA, N.L. (org.).
Op. cit., 1995.
CARNEIRO, R. de M. Crise, estagnação e hiperinflação (A economia brasileira nos anos 80). Tese de Doutorado. Campinas, IE/Unicamp, 1991, mimeo.
SASAKI, E.M. “Os dekasseguis retornados”. Revista Brasileira de Estudos de
População. Abep, v.13, n.1 jan./jun. 1996.
CARVALHO, J.A.M. “O saldo dos fluxos migratórios internacionais do Brasil
na década de oitenta – uma tentativa de estimação”. Revista Brasileira de
Estudos de População. v.13, n.1, Abep, 1996.
SASSEN-KOOB, S. “Colombians and dominicans in New York city”.
International Migration Review, n.13, 1979.
CASTRO, M.G. Latinos nos EUA, fazendo a América de lá ou perdendo a nossa
América? In: LAVINAS, L. et alii (orgs.). Op.cit., 1994.
__________ . “Issues of core and periphery: labour migration and global
restructuring.” In: CASTELLS, M. e HENDERSON, J. (orgs.). Global
restructuring and territorial development. London, Sage Publications Ltd.,
1987.
CORTEZ, C. Brasiguaios: os refugiados desconhecidos. Campo Grande, Brasil
Agora, 1993.
__________ . The mobility of labor and capital. Cambridge, Cambridge
Universite Press, 1988.
COUTINHO, L. “A terceira revolução industrial e tecnológica: as grandes tendências de mudança”. Economia e sociedade. Campinas, Instituto de Economia da Unicamp, n.1, 1992.
SERRA, J. “ Ciclos e mudanças estruturais na economia brasileira do pós-guerra”. In: COUTINHO, R. e BELLUZZO, L.G. de M. Desenvolvimento Capitalista no Brasil. 3a ed. São Paulo, Brasiliense, v.1,1984.
__________ . “Nota sobre a natureza da globalização”. Economia e sociedade.
Campinas, IE/Unicamp, n.4, 1995, p.21-26.
GALETTI, R. “Migrantes brasileiros no centro de São Paulo: coreanos e bolivianos. In: PATARRA, N.L. (org.). Op. cit., 1995.
HARVEY, D.A. A condição pós-moderna. São Paulo, Ed. Loyola, 1992.
SINGER, P. Economia política da urbanização. São Paulo, Brasiliense, 1977.
VAINER, C. “Estado e imigração internacional: da imigração à emigração”. In:
PATARRA, N.L. (org.). Op. cit., 1995.
97

Documentos relacionados