Quando eu era criança, uns seis, sete anos, meu pai me levou a um

Transcrição

Quando eu era criança, uns seis, sete anos, meu pai me levou a um
A garota do Espelho
“Prepare seu coração,
Pras coisas que eu vou contar. ”i
Quando eu era criança, uns seis, sete anos, meu pai me
levou a um parque de diversões. Hoje sei que era um parque
bem pequeno, daqueles que passam pelos bairros de periferia
das cidades. Na época eu achei uma maravilha passear entre as
barracas coloridas, andar no carrossel, gritar de medo quando a
roda gigante balançava. A tarde toda foi de sonho e fantasias, no
entanto, a mais sensacional de todas, aquela que realmente me
deixou sem fala, presa em um mundo limítrofe entre a luz e as
trevas, entre a fascinação e o terror, foi à casa dos espelhos.
Para cada lugar que olhava havia uma imagem distorcida
de mim mesma, muito alta, muito baixa, muito magra, muito
gorda, muito torta. Imagens estranhas e assustadoras. Eu me
perdi naquele labirinto de espelhos, talvez por uns poucos
segundos, não sei, mas o suficiente para que o pavor tomasse
minha mente. As risadas que ecoavam no labirinto, vindas de
pessoas um pouco mais a frente ou mais atrás, pareciam ser de
mim. Milhares de pessoas riam de mim, riam das minhas
imagens, que choravam e ficavam ainda mais feias. Então
comecei a gritar. Gritei e gritei até que imagens distorcidas de
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Thais Leonardo
homens surgiram e me agarraram, gritei ainda mais, até perceber
pela voz e pelo toque que era meu pai que me pegava no colo e
me tirava da casa de espelhos.
Bem que ele tentou, após me explicar o mecanismo dos
espelhos, me fazer voltar ao labirinto. Ele dizia que seria
diferente, que ele estaria comigo e que riríamos juntos daquilo
tudo. Eu não quis, não queria mais ver as tristes e feias
projeções de mim mesma. Meu pai então enxugou minhas
lagrimas e me ofereceu um último sorvete ou algodão doce antes
de irmos para casa. Eu, claro, adorei. E quando íamos embora,
eu com uma enorme nuvem cor de rosa de açúcar nas mãos, não
podia imaginar o quanto aqueles espelhos ainda fariam parte dos
meus pesadelos.
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A garota do Espelho
“Sou pequeninha, de perna grossa,
Vestido curto, Papai não gosta. ”ii
Não sei que mania irritante os adultos tem de acharem
crianças gordas bonitinhas. Não tem nada de “fofa” ou de
“gostosa”. Acabei de olhar para um monte de fotos de quando
era pequena. Eu era deformada. Enorme. Gorda. Eu queria
queimar todas, aliás, teria feito isso se minha mãe não chegasse
na hora “H” e salvasse as fotos idiotas.
Ela disse que estava chocada comigo. Ou ela finge muito
bem ou realmente gosta de ver aquelas fotos medonhas onde
apareço cheia de dobrinhas e pelancas. Acabei gritando com ela,
que recolheu as fotos e disse que estou passando dos limites, que
vai me levar ao médico, que vai conversar com meu pai, enfim,
que vai infernizar a minha vida.
Continuei gritando com ela enquanto a empurrava para
fora do meu quarto. MEU QUARTO!!! Ela nem deveria estar
ali. E se aquelas fotos imbecis eram MINHAS, eu tinha todo o
direito de queimá-las. Mas minha mãe sabe ser bem teimosa
quando quer, e pegou todos os álbuns fotográficos antes de sair.
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Thais Leonardo
Eu fiquei com muita raiva, muita mesmo, e comecei a
jogar algumas coisas no chão. Nem sei bem o motivo pelo que
fiz aquilo, acabei quebrando algumas coisas de que gostava
muito, entre elas meu anjinho da guarda e a caixinha de música
que Vovó me deu quando fiz oito anos.
Quando ela se chocou com o chão e começou a tocar a
valsinha de Chopin, eu me ajoelhei ao lado dela e comecei a
balançar e chorar, até que vi minha irmã mais nova, os olhos
arregalados, parada na porta olhando para mim com o que
acreditei ser pena. Levantei e bati com a porta na cara dela. Foi
então que as dores no estomago começaram. Senti gosto de
metal na boca e ao levar minha mão aos lábios percebi que ele
estava molhado de sangue. Eu estava tonta e enjoada, a boca se
enchendo de liquido que tentei limpar com a barra da camiseta.
Olhei atordoada para o espelho onde uma garota tinha o rosto, as
mãos e a roupa ensangüentados e desabei no chão.
De longe, muito longe, ouvia as vozes agitadas de minha
mãe e de minha irmã. Ouvi a porta abrir, senti mãos afagando
minha testa e depois de muito tempo tive a sensação de
movimento, de sirenes, de corredores brancos e por fim, de um
abençoado silêncio.
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A garota do Espelho
“Serei de você confidente fiel,
Se seu pranto molhar meu papel.” iii
Não esta entendendo nada? Tudo bem! Vamos começar
do inicio. Afinal a idéia é contar uma história, a minha história.
Uma história nada bonita, diga-se de passagem. Por que contar
então? Porque a terapeuta mandou, ou como ela disse:
“sugeriu”, o que é praticamente a mesma coisa. É mais fácil
escrever do que tentar explicar para ela porque não quis
escrever.
Para ser bem sincera até que estou começando a gostar
da “atividade terapêutica” (outra perola da doutora). No começo
não foi fácil, para escrever os dois trechos iniciais eu levei um
tempão. Sei lá o que me dava. Eu chorava muito, amassava os
papéis, chorava mais, e voltava a escrever. Tudo doía muito.
Cada frase doía. Mas a “Doc” disse que isso é muito salutar, que
estou em processo de catarse o que é muito bom.
Tenho que admitir que depois de começar 500 mil vezes
a história do parque, ela foi ficando menos assustadora. Parece
que cada vez que eu escrevia, conseguia colocar uma palavra a
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mais, até que estava tudo lá. Realmente acredito que o processo
de enxergar minha imagem distorcida, ou distanciada da
realidade começou ali, ou talvez ali tenha começado o medo de
ser diferente do padrão. Pode até ser que tudo isso não passe de
bobagem, e que uma coisa não tenha nada a ver com a outra. De
qualquer forma era uma mancha, uma dor, uma coceira na
minha alma. Putz! Coceira na alma ninguém merece. Isso tá
ficando ridículo.
Minha irmã, que é um verdadeiro papagaio de Pirata,
esta aqui lendo sobre meu ombro e dizendo que coceira na alma
é massa! Ela disse que com alguma sorte eu até ganho o Nobel
de literatura. Vou lá colocar a debochada para fora e respirar um
pouco de ar fresco no jardim. Quem sabe isso clareia minhas
idéias e eu consigo escrever algo que preste.
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A garota do Espelho
“Silêncio
Façam silêncio
Quero dizer-vos minha tristeza” iv
Fui lá, andei pelo jardim, e cheguei a três conclusões
importantes. Primeira: minha irmã é doida. Acredita que ela foi
embora dizendo pra todo mundo que eu sou escritora? Segunda:
este lugar esta precisando de um jardineiro novo. Terceira: Até
agora eu falei, falei, mas ainda não disse nada.
Na realidade tudo é muito simples e muito complexo ao
mesmo tempo. Muito simples porque é a história comum, de
uma garota comum, de uma família comum, de um bairro
comum, de uma cidade comum. Ou seja, nada de princesa, nada
de nada. Apenas eu. Muito complexa porque eu tinha 12 para 13
anos quando tudo começou, ou seja, adolescente. E a
adolescência, acreditem, é super-hiper complexa.
O que aconteceu? O de sempre. Eu era feliz até descobrir
que não era mais. Eu era protegida até começar a acreditar que
era sufocada. Eu era inocente até começar a ficar dissimulada.
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Sou a filha do meio. Tenho um irmão três anos mais
velho, e uma irmã três anos mais nova. Minha mãe achava o três
um número cabalístico. Três filhos, um a cada três anos. Não
tive problemas de rivalidade, de ciúmes, de nada com nenhum
dos dois. É meio brega dizer isso, mas a gente se dava bem pra
caramba. Eu adorava e copiava meu irmão e minha irmã me
adorava e copiava. Costumávamos brincar juntos apesar da
diferença de idade. Assistíamos desenhos, jogávamos vídeo
game, líamos na cama da minha mãe antes dela nos mandar
dormir.
Engraçado, mas a cama da minha mãe era um lugar
especial. Quando ficávamos doentes deitávamos lá, apertadinhos
um no outro, solidariedade pura. Como estávamos sempre juntos
tivemos todas as doenças de criança ao mesmo tempo, meu
irmão propagando os vírus que pegava na escola.
Também fazíamos acampamentos lá, obrigando meus
pais a colocarem o colchão de casal no chão junto a pelo menos
mais um ou dois de solteiro para dormirmos todos juntos. Nós as
crianças adorávamos. Hoje, penso que os velhos detestavam
pelo menos a cara deles não era das melhores no dia seguinte.
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Era tão bom quando éramos pequenos. Só que a gente
cresceu. E lá fora as coisas não eram tão legais. Ou melhor,
eram muito legais só que eu não era legal. Ou melhor, eu era
legal só que não estava no contexto.
Ok! Ok! Estou novamente falando sem dizer. Cara que
saco. Mas vamos lá, vamos contar o problema de uma vez,
porque mais cedo ou mais tarde eu vou ter que colocar a
verdade, não só para a “Doc” parar de me perturbar, mas para
finalmente eu vomitar o problema. E o problema é exatamente
esse: vomitar.
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“Volto ao jardim
Com a certeza que devo chorar” v
Fui má quando afirmei que era preciso um novo
jardineiro. Aqui até que é bem bonito. Meio bagunçado, como
se fossem plantando tudo que aparecesse em qualquer lugar, o
que resultou em um monte de cores vibrantes de vários tipos de
plantas. É como se tivessem jogado mudas e sementes diferentes
a esmo.
Minha avó teria um chilique se visse esse jardim. O dela
era tão arrumadinho, tão ajeitadinho. Canteirinhos separados por
pedrinhas e cerquinhas pintadas de branco delimitando o lugar
das rosas, dos cravos, das margaridas. Bem a cara dela: um lugar
para cada coisa e uma coisa para cada lugar. Ela tinha um
caramanchão no jardim. Sabe o que é isso? É uma espécie de
mini pracinha, com um banco e uma cobertura de flores, tipo um
telhadinho de madeira cheio de plantinhas.
Eu ficava muito lá. Eu e ela. Líamos, tomávamos
lanchinhos, ela tentava me ensinar a fazer tricô (sem esperança,
eu sempre tive duas mãos esquerdas), ou fazia roupas para
minhas bonecas. E conversávamos sobre tudo e sobre todos.
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Você deve estar se perguntando sobre meus irmãos,
sobre onde eles estariam enquanto eu ficava ali guardando
minha avó só para mim. Meus irmãos com certeza estariam
praticando algum esporte, coisa que eu sempre abominei. Espera
ai, já estou perdendo a direção de novo, depois eu volto a esse
assunto de esporte, agora quero falar do jardim, ou dos jardins.
O jardim da vovó era limpo, organizado, certinho como
deveria ser a vida. Mas o jardim daqui é bagunçado, cheio de
cor, mas também de cantos escuros. Cheio de plantas, mas cheio
de mato. Acho que talvez mais perto do que é a vida. Pelo
menos mais perto do que é a minha vida.
Eu me sinto assim perdida, bagunçada. Às vezes cheia de
esperança e outras vezes cheia de tristeza. Eu faço parte do
mundo, mas andei caminhando pelas beiradas. Com medo de ser
diferente. Achando que tinha que ser igual aos outros. Tentando
entrar em um padrão que um dia disseram que era o certo.
Nesse processo eu quase me destruí, quase destruí minha
família. Perdi anos que não voltam mais. Perdi a saúde. Perdi a
alegria. E perdida que estava, deixei passar as pessoas, deixei
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passar os momentos, deixei de curtir minha avó, que partiu antes
que eu recobrasse a razão.
Eu briguei com ela. Como naqueles dias brigava com
todo mundo. Não queria ouvir os seus conselhos: “Você tem que
se amar, para que os outros a amem”; “As pessoas tem que ver
você e não o seu corpo”; “Corpo acaba, a essência da alma é o
importante”; “Quem tenta ser o que não é, acaba por não ser
nada”. Tantas verdades que eu não quis ouvir, e para não ouvir
sai e não voltei. Não foi tão simples assim. Mais ainda não
posso reviver os detalhes.
Um ano sem visitá-la, um ano sem ligar, um ano sem
atender ao telefone, um ano saindo de casa quando sabia que ela
viria, apenas para não ter que ouvir, apenas para não reconhecer
suas palavras. E então, um dia, ela simplesmente morreu. Como
uma de suas flores sendo podada. Deixando apenas saudade e
culpa.
Agora que começo a me recuperar ela não esta aqui para
que eu peça perdão. Ela não esta aqui para que eu lhe diga que
ela sempre teve razão. E esta é uma dor que eu vou ter que
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aprender a carregar. Eu paguei carinho com rejeição, devolvi
ingratidão quando recebi amor.
Fiz isso também com meus pais, com meus irmãos, com
os amigos verdadeiros. Mas eles estão ai. Eu posso abraçar e
pedir desculpas. Eu posso tentar consertar. Vovó não. Sento
aqui sozinha nesse banco duro, neste jardim tão diferente do
dela, e penso em rezar para que ela me perdoe, seja lá onde
estiver. Só que ainda não consigo rezar. Mal comecei a
enxergar. Não sei ainda como explicar o que só há pouco tempo
comecei a entender.
Por mais que reclame da “Doc” tenho que admitir que
ela, pelo menos em relação a isso, teve razão. Escrever me
obriga a ordenar a confusão ambulante em que me tornei. Me
obriga a pensar. Me obriga a enxergar o que posso mudar e a
aceitar o que não tem mais jeito. E por não ter jeito transformo
estas páginas em pedido de perdão e transformo minha culpa e
minha saudade em lágrimas.
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“Um, dois, três e quatro,
Dobro a perna e dou um salto,
Viro e me viro ao revés
e se eu cair conto até dez.” vi
Sabe aquela expressão “geração saúde”? Pois é, ela diz
respeito à geração dos meus pais. Eles frequentam academia,
correm no Ibirapuera e no Jardim da Aclimação, andam de
bicicleta, jogam tênis, acham divertidíssimo fazer rappel, e
realmente acreditam que consumir um monte de grãos, frutas,
suco de uva e verduras vai deixá-los jovens para sempre. Ok!
Estou sendo má novamente. Eles só querem viver bem, e
envelhecer bem. Viu! Eu até conheço a ladainha.
Minha irmã joga vôlei, faz aeróbica, é da equipe de
ginástica rítmica do colégio e mesmo no maior frio não dispensa
umas boas braçadas. Eu acho que ela já nasceu de meia soquete
e tênis.
Meu irmão pratica remo, windsurfe, surf, natação, enfim,
tem água ele esta lá. Também adora correr e pedalar, o que o
coloca na equipe de triatlo.
Minha família era toda esportiva. Toda menos eu. Céus!
Será que alguém pode me mandar uma carta, um e.mail, um
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sinal de fumaça, tentando me explicar como seres normais,
aparentemente civilizados e supostamente inteligentes podem
adorar viver suando?
Eu e bola nunca combinamos. Ela olha para mim eu olho
para ela e fatalmente eu nunca a acerto e ela sempre me acerta,
ou na cara ou no peito. Aprendi a nadar apenas o suficiente para
não me afogar muito rápido. Ou seja, vou morrer com certeza,
mas vou espernear o suficiente para prolongar o sofrimento mais
alguns minutos. Meus joelhos estão cheios de marcas que
registram as minhas sofridas tentativas no reino das corridas.
Minha melhor concepção de caminhada sempre se restringiu ao
espaço do shopping. Não curto academia. Não sou adepta de
violência real ou fictícia, o que descarta definitivamente as artes
marciais.
É através dos jogos de vídeo game que sempre gastei
todo e qualquer ímpeto esportivo. Sentada no macio, com
refrigerante e salgadinhos na mesinha ao lado, sempre fui
campeã em todas as categorias e sem nenhum risco de lesão,
olho roxo e afins.
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Apenas uma atividade física me atraía. Sonho fruto dos
muitos filmes da sessão da tarde e posteriormente dos canais de
TV a cabo, eu queria ser bailarina.
Minha vó, mais uma vez ela, me levou a uma escola de
balé. Ali, vestida com malha cor de rosa e envolta em tules eu
sonhava ser primeira bailarina. Imaginava os grandes saltos que
daria, os solos que faria e os grandes palcos em que me
apresentaria.
Lembra a caixinha de música que eu estupidamente
quebrei? Foi um presente para marcar a primeira apresentação
de fim de ano, quando tinha oito anos. A música era a mesma
valsinha que meu grupinho dançou. A caixinha dourada, quando
aberta revelava a bailarinazinha com tutu rosa, que rodopiava ao
som da musiquinha. Era eu, vovó me disse, dançando nos palcos
da vida. E a menina que eu era dançava pelo quarto imitando a
bonequinha.
Durante quatro lindos anos, eu dancei e sonhei. Duas
vezes por semana vovó me levava para as aulas e depois
assistíamos juntas algum velho filme de Fred Astaire ou de
Gene Kelly. Um dos mais sensacionais, que revi vezes sem
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A garota do Espelho
conta foi Chorus Line. Eu fui cada uma das candidatas a corista
do filme. Cada solo daqueles foi meu. Cada rodopio, cada salto
fui eu quem deu, no reino da imaginação enquanto de olhos
arregalados acompanhava mais uma vez as imagens projetadas.
Além dos filmes existia o teatro. Minha avó não deixava
de me acompanhar em nenhuma estréia de balé da cidade. Uma
vez, chegamos a ir ao Rio de Janeiro assistir a uma apresentação
especial do Balé do Teatro Municipal. Tudo era lindo, e eu me
sentia linda. Meu futuro com certeza seria brilhar nos palcos do
Brasil e do Mundo. Pena que as coisas não foram exatamente
assim.
Quando eu tinha 12 anos, em uma apresentação de balé,
mais uma das festas de encerramento repletas de familiares.
Onde menininhas vestidas de fadas, gnomos, flores e bonecas,
corriam de sapatilhas pelos corredores laterais da platéia
ansiosas para serem vistas e aplaudidas. Eu, que vestia naquela
noite uma fantasia prateada toda cheia de pequenos pingentes,
pois faria o papel de gota de orvalho, passei apressadamente
entre algumas pessoas, aflita em chegar ao local de encontro
com as colegas e professoras.
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Aos doze anos somos bem estabanadas não é? Somos um
tanto desengonçadas não é verdade? Isso acontece com todas
não é? Diz-me que é, por favor, diz que também foi assim com
você.
Aquele dia eu esbarrei no pai de uma colega. Muito legal
a menina, eu sempre gostei muito dela, e ao virar para acenar e
pedir desculpas, ouvi seu pai afirmando: essa ai não é uma gota
de orvalho, é a chuva completa mesmo, é um “orvalhão”. Eu vi
a mãe da colega corar e cutucar o marido com o cotovelo,
enquanto ele gentilmente retrucava: estou falando alguma
mentira?
Eu dancei muito mal aquela noite. Errei os passos. Cai
no palco. No ano seguinte não voltei para o balé. Sem essa de
bailarina de coxas grossas.
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“As muito feias que me perdoem
Mas beleza é fundamental.” vii
Eu falei que tudo começou aos doze. Aos doze eu
descobri que era gorda. Até ali eu me achava “forte”. Um monte
de tias do meu pai apertavam minhas bochechas e afirmavam
que eu era bela, corada, forte, uma beleza de menina. Elas
também afirmavam que minha irmã era muito magra e que devia
comer melhor para crescer.
Minha irmã “puxou” minha mãe. Estatura mediana,
magra, o famoso tipo mignhon. Eu e meu irmão saímos a meu
pai. Mais altos que a média, ombros mais largos, ossos mais
pesados. Muito legal para um homem. Ele na piscina era um
verdadeiro Tarzan. Minha irmã era uma versão delicada da Jane
e eu obviamente não parecia a Chita. Eu parecia mais o King
Kong.
Era maior que todas as meninas da sala e mais alta do
que a maioria dos meninos, e mesmo estes eram bem mais finos
que eu. Naquela idade ser alta era um problema, mais tarde eu
até curti este lance da altura, mas ser tão gorda era um pesadelo.
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Thais Leonardo
Meus dias estavam cheios de momentos de terror para
mim, e que aparentemente passavam despercebidos pelos
demais. Quer exemplos?
Cena 1 - A professora resolvia passar um filme na aula e
pedia para todos virem para frente para assistirem melhor. Os
garotos ofereciam a beira das carteiras para as coleguinhas que
aceitavam dando risadinhas nervosas. Você sabe né, nesta época
os meninos e meninas começam a achar bem legal ficarem perto
uns dos outros. É o fim da fase Clube da Luluzinha e Clube do
Bolinha e o inicio da fase high school musical, todo mundo
junto, paquerando adoidado e se divertindo pra valer. Eu
perguntava pro garoto, um enorme que não podia me chamar de
gorda, se podia sentar com ele, e o troglodita dizia que não, que
não cabia, que íamos quebrar a carteira. Cinco segundos depois
ele chamava uma garota qualquer para sentar com ele.
Cena dois – Todos resolvem pegar um taxi para irem pro
shopping. Ninguém quer ir no meu taxi por que sempre cabe um
a menos pra dividir o valor.
Cena três – Uma amiga arruma um programa no sábado
a tarde só para pares: ir ao cinema. Todo mundo de mão dada no
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A garota do Espelho
escurinho e eu comendo pipoca, enquanto o outro garoto
desacompanhado alegando não estar enxergando bem senta
várias fileiras na frente.
Chega né. Você já entendeu.
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“Barrados no Baile
Oh! Oh!” viii
Os anos seguintes não foram melhores. Eu era a amiga
legal, a prestativa. Enquanto todas tinham algum namoradinho
ou paquera mais firme, eu era a confidente dos amigos.
O garoto que eu gostava me falava das meninas com que
queria ficar, me pedia para bancar o cupido, levar bilhetinhos, e
eu aceitava. Queria morrer depois, mais ia lá e levava o recado,
na esperança estúpida de que um dia ele enxergasse que ela era
bonita, mas eu era legal, inteligente e companheira. Realmente
eu era muito legal para fazer trabalhos de escola e colocar o
nome dele, para emprestar o tênis novinho que meu pai trouxe
dos EUA (afinal calçávamos o mesmo número), ou para
emprestar o celular para ele bater papo com as meninas sem a
mãe delas saber (eu fazia a ligação).
Estávamos próximos aos quinze anos e as meninas
começavam a planejar os bailes de debutantes, e foi justamente
quando aconteceu o primeiro que a água entornou de vez.
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A garota do Espelho
A debutante era uma colega da classe. A primeira a
completar as benditas “quinze primaveras”, ainda que fosse um
verão de rachar.
Ela era filha única de um empresário de posses, que não
poupou verba para que ela tivesse um baile tipo Cinderela. Um
clube foi fechado para o evento e as quinze grandes amigas
escolhidas para serem a moldura da valsa, passaram mais de um
mês ensaiando as coreografias, com direito a professor e
lanchinho após as duas horas de vira pra lá, vira prá cá, e
voltinha.
Eu fiquei muito feliz e surpresa em ter sido escolhida
para ser uma das quinze damas. Apesar de a garota ser até legal,
nunca fomos muito chegadas. Outras meninas, mais amigas dela
que eu, ficaram de fora. Mais tarde o grande mistério ficou
resolvido quando descobri que o pai dela era velho conhecido do
meu, mas confesso que isso não diminuiu em nada minha
alegria em estar participando dos bastidores daquela que estava
sendo apontada como a que seria a melhor festa do ano.
A sensação de pertencer a um grupo fechado, que ria e
brincava o tempo todo era maravilhosa. Claro que qualquer papo
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Thais Leonardo
sempre passava pelo quesito garotos, o que me deixava pouco a
vontade, porque eu não tinha muito a dizer. Pra falar a verdade,
eu não tinha nada a dizer.
Segundo o planejado a aniversariante usaria um vestido
branco com uma fita dourada na cintura, e as damas usariam
vestidos brancos com fitas prateadas. Todos seriam iguais e
feitos pela mesma costureira. Eu lembro que meu pai arfou
quando viu a conta, perguntando para minha mãe se o vestido
seria feito “da mais pura seda chinesa”, ela disse para ele não ser
pão duro e o encheu de beijinhos até que ele “desamarrasse o
burro” e começasse a rir.
Ninguém sabia como seria o vestido. Tirando a cor, tudo
o mais estava cercado do mais absoluto segredo. A mãe da
garota, uma típica perua, dizia que não queria que a surpresa
vazasse antes da hora. Uma tarde, logo no inicio dos ensaios de
valsa, a costureira, ou design de moda como dizia a mãe,
acompanhada de dois assistentes apareceu para tirar as medidas
das damas.
Na verdade os dois assistentes tiraram as medidas
enquanto a design e a mãe da garota ficavam sentadas em um
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A garota do Espelho
sofá fofocando. Olhavam croquis e falavam sem parar. Teve um
momento em que falavam olhando diretamente para mim, o que
me deixou bem apreensiva, porque tive certeza que o assunto era
o meu tamanho. Tive medo que a mulher levantasse e dissesse
que lamentava muito, mas que eu não poderia participar porque
destoava das outras meninas, mas isso não aconteceu e eu
comecei a relaxar, com certeza estava vendo coisas onde não
existia nada.
Tudo bem que um dos assistentes sugeriu que eu fizesse
uma dietazinha. Nada de drástico, disse ele, apenas para
marcar um pouco mais sua cintura. Na verdade não me ofendi
porque ele disse só pra mim, e fez de uma forma tranquila, como
se falasse isso pra todas. Ele era gay, e bem delicado, pelo
menos bem mais delicado que eu. Por falar nisso, deixa
esclarecer uma coisa, tenho vários amigos gays. Normalmente
eles são bem mais bacanas comigo do que as garotas. E dez mil
vezes mais bacanas do que os garotos heteros que conheci no
meu passado. Mas naquela época eu era bem boboca, queria me
mostrar para as outras garotas, e fiz com ele a mesma coisa que
faziam comigo, julguei pela aparência e cheia de preconceitos
parti para a agressão. Com as mãos na cintura, exagerando nas
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Thais Leonardo
caras e bocas, revirando os olhos, num arremedo de falsete soltei
um: é mesmo santa!?
Ele deu de ombros - foi só uma sugestão – e se afastou
com toda calma, passos lentos e elegantes, um perfeito
profissional. Eu quis morrer. Tive muita vontade de correr atrás
dele e pedir desculpas. Mas fiquei ali parada, com a maior cara
de tacho do mundo, sabendo que estava errada, mas sem saber
como consertar a besteira. Acho que este é o meu segundo maior
defeito, paraliso no erro e raramente consigo encarar e voltar
atrás.
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A garota do Espelho
“Quando precisar
de uma amizade verdadeira
que perdure a vida inteira
é só me chamar” ix
Não fui totalmente sincera quando disse que nenhum
garoto olhava para mim. Na verdade havia um, mas ele não fazia
meu tipo.
Se esta imaginando um cara horroroso pode parar. Ele
não era feio. Só que não era bonito. Pra falar a verdade eu não
sei se era feio ou bonito, porque nunca prestava atenção nele.
Ele era amigo do meu irmão. Ou melhor, ele era irmão
do amigo do meu irmão. Tinha dois anos mais que eu e vez por
outra aparecia lá em casa. O problema é que ele não falava nada,
ou quase nada, o que me irritava bastante.
Ficava gaguejando na minha frente e nunca tinha uma
opinião formada sobre nada. Sempre perguntava o que eu
achava das coisas.
Se eu perguntava se ele queria ouvir musica, ele
respondia: Você que sabe.
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Thais Leonardo
Se eu oferecesse um refrigerante, ele dizia: Se você
também tomar. Fala sério, ele só tomaria o refresco se eu
tomasse também?
Uma vez ele ficou mais de meia hora parado na sala
esperando meu irmão e o irmão dele chegarem, para irem juntos
para a praia. Ficou lá parado, com a mochila nas costas,
mudando o peso do corpo de um pé para o outro de uma forma
totalmente enlouquecedora. Quando falei para ele sentar, ficou
vermelho como um pimentão e disse que não queria incomodar.
Não queria incomodar quem? O sofá?
Queria tanto agradar que acabava desagradando. Eu
ficava louca quando percebia que ficava me olhando pelo canto
do olho, tentando disfarçar.
Ele era bem diferente dos garotos populares que
chamavam minha atenção no colégio. Eles faziam piadinhas,
ocupavam espaço, chamavam a atenção.
Aquele garoto, Alex, parecia apagado perto deles. Sem
graça mesmo. Ele era naturalmente quieto, reservado. Mesmo
quando estava com os garotos mais velhos mais ouvia do que
falava. E, no entanto era muito querido por eles. Mais de uma
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A garota do Espelho
vez ouvi meu irmão ligando para convidar o irmão dele para
algum programa, e insistir para que ele fosse junto.
Ele também se dava muito bem com minha irmã.
Algumas vezes ficava jogando xadrez ou damas com ela e
conversavam muito. Ela afirmava que ele era muito legal.
Outra pessoa que estava na sua lista de fãs era minha
avó, que o classificava como um rapaz inteligente, educado e
promissor. Eca!!!
Talvez, se todos não gostassem tanto dele, eu teria
percebido algo mais, teria visto a pessoa maravilhosa e
iluminada que ele era. Mas todos gostavam, e eu era uma
adolescente de quase quinze anos, e como toda adolescente eu
tinha que ser rebelde em alguma coisa, e ele foi a minha escolha
para discordar da opinião geral.
Particularmente eu tinha
classificado o cara de chato e acabou. Não ia ter propaganda que
me fizesse engolir o produto.
Um dia eu estava chegando do colégio e ele barrou
minha entrada no portão de casa. Disse que queria falar comigo,
timidamente pediu uns minutinhos.
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Thais Leonardo
Eu disse que só se fossem apenas uns minutinhos
mesmo, pois estava muito ocupada. Sabia que estava sendo
grosseira, coisa que não era comum. Acreditem-me era legal a
maior parte do tempo, mas Alex tinha o dom de despertar o que
havia de pior em mim. Como resultado da minha falta de
gentileza ele começou a gaguejar e eu fui ficando mais irritada.
Por fim, ele enfiou um bilhete na minha mão e falou que
estaria esperando a resposta, antes de praticamente sair
correndo. Entrei em casa, subi para meu quarto e jogando a
mochila na poltrona, sentei na cama e abri o papelzinho.
Como eu temia, ele dizia que gostava de mim. Me pedia
em namoro e deixava um numero de telefone para que eu ligasse
caso resolve-se aceitar. Afirmava que eu era muito especial e
que era uma das meninas mais interessantes que ele já havia
conhecido. Por último, colocava que na hipótese de minha
resposta ser um não, mesmo assim continuaria me admirando e
que eu poderia contar para sempre com sua amizade.
Nem preciso dizer que não liguei.
44
A garota do Espelho
“Eu sonhei que tu estavas tão linda!
Numa festa de raro esplendor. ”x
Finalmente o grande dia chegou. Tentei ficar na cama o
máximo possível para estar bem descansada à noite, mas não
deu. Eu estava com o tal bicho carpinteiro que vovó sempre
falava e pulei cedo incapaz de ficar parada.
Desci e fui para a cozinha em busca de café e algo para
comer, mas no primeiro gole me senti saciada. A excitação pela
festa não deixava espaço para mais nada.
Fiquei andando pela casa esperando o tempo passar.
Liguei e desliguei a televisão uma dúzia de vezes e já estava
cogitando a possibilidade de acordar minha irmã para conversar
quando minha mãe apareceu.
Ela franziu a testa surpresa por me ver em pé, depois
lembrou do baile e sorriu. Esta ansiosa?
Acenei com a cabeça confirmando enquanto sentava na
banqueta da cozinha com o rosto entre as mãos, os cotovelos
fincados na mesa.
45
Thais Leonardo
Minha mãe fingiu estar pensando para tomar uma grande
decisão e disparou: Que tal uma manhã de meninas?
Uauh! Eu adoraria! Ela riu com meu entusiasmo.
Mandou que eu chamasse minha irmã, enquanto ela tirava o
carro da garagem e deixava um recadinho para o papai.
Em menos de 15 minutos estávamos no automóvel rumo
ao salão de beleza preferido de mamãe. Quando entramos no
espaço perfumado e feminino, ela se dirigiu à recepcionista,
pedindo tratamento completo e especial para três. Foi
divertidíssimo.
Fizemos sauna, massagem e tomamos banho de imersão
com pétalas de rosas e óleos perfumados. Lógico que antes
passamos pela tortura denominada depilação.
Eu teria
dispensado de bom grado a cera quente e os puxões dolorosos,
mas minha mãe achou que era fundamental e que faria toda a
diferença. Não adiantou argumentar que a saia seria longa e que
ninguém veria minhas pernas, pois ela contra-argumentou com o
fato inquestionável de que eu saberia, o que segundo ela me
daria maior autoconfiança. Não sei no que.
46
A garota do Espelho
Além disso, concluiu minha irmã, eu não sabia o modelo
do vestido, que poderia ter alguma fenda profunda e sexy até o
alto da coxa. Minha mãe não pareceu muito feliz diante desta
perspectiva, afirmando que a mãe da jovem com certeza deveria
ter optado por um modelo juvenil que combinasse com nossa
faixa etária.
Este vestido era o grande senão da festa. Eu sabia que
meus pais haviam questionado o fato do modelo do vestido ter
sido mantido em segredo. Absurdo havia dito meu pai. Minha
mãe tinha tentado conseguir a informação, mas a mãe da
debutante havia se mostrado irredutível, os vestidos seriam uma
surpresa.
Ao contrário de mim, minha irmã insistiu na depilação.
Estava louca para fazer e seria a primeira vez, o que nos rendeu
muitas risadas diante de suas caretas e gemidos.
Passamos o dia nos cuidando, bebericando chazinhos e
comendo salgadinhos, um verdadeiro tratamento de princesas.
Lavamos e hidratamos os cabelos e as cabeleireiras se
esmeraram em transformá-los em verdadeiras cascatas de ondas
largas e brilhantes.
47
Thais Leonardo
As mãos e os pés tiveram cuidados especiais, tanto de
manicure quanto de massagens com óleos emolientes. Minha
mãe e eu usamos esmaltes vermelhos, minha irmã teve que se
contentar com uma cor clara por imposição de mamãe. Ela
acabou optando por um bege perolado que deixou suas mãos
muito chiques e nos fez pensar se teríamos errado na escolha
pelo vermelho.
Por último a maquiagem.
Minha irmã teve direito a
batom rosado e nada mais. Não houve biquinho que alterasse
esta determinação. Já eu tive direito a tudo: base, sobras, pó,
blush, rimel, batom. Tudo o que ressaltasse minha condição de
jovem aspirante a condição de mulher.
Eu estava me achando linda, e nem o muxoxo de papai
quando me viu, perguntando se não havia ocorrido um certo
exagero, diminuiu esta sensação de poder feminino.
Eu estava amando tudo. O cabelo, a maquiagem, a
sandália prateada de tiras delicadas e salto fino que me deixava
ainda mais alta, mas que segundo mamãe ia me obrigar a manter
a postura. Só faltava agora o vestido.
48
A garota do Espelho
Meus pais me levaram para o salão duas horas antes da
festa. Conforme o combinado todas as garotas chegariam mais
cedo para se vestirem, e se houvesse necessidade ainda haveria
tempo hábil para um ou outro pequeno ajuste, uma vez que os
vestidos tinham sido elaborados sem prova.
Os pais convidados, era o caso dos meus, deveriam
voltar na hora marcada no convite. Eu estava empolgadíssima e
nem esperei que o carro se afastasse antes de subir correndo a
escadaria do clube rumo à sala destinada para servir de camarim
para as garotas.
Quando entrei a sala já estava lotada, apesar de ainda ser
muito cedo fui uma das últimas. A bagunça era total, a
costureira e seus ajudantes corriam de um lado para o outro, as
meninas falavam e riam alto, e tanto a aniversariante como sua
mãe, apesar de já estarem maquiadas, ostentavam grandes bobs
na cabeça.
Durante uns instantes fiquei parada observando a cena
caótica, depois me aproximei da mãe da menina em busca de
orientação. Atendendo ao celular e mal olhando na minha cara a
49
Thais Leonardo
perua apontou para os sofás gesticulando para que eu sentasse e
esperasse. Foi exatamente o que eu fiz.
No começo beleza, estava na boa, esperando como todo
mundo. Conforme o tempo foi passando, assim como todo
mundo, comecei a ficar preocupada. Afinal, quando íamos ver e
provar os tais vestidos? Já fazia um tempo que a tal design
estava trancada com a perua e os assistentes em uma pequena
saleta adjacente ao local onde estávamos e as meninas já
começavam a externar, ainda que em cochichos, o medo de que
os vestidos não estivessem prontos.
Quando lembrei o preço que meu pai tinha pagado pelo
meu, rezei para que estivessem erradas, porque não acreditava
que ele aceitasse uma coisa dessas de bom grado.
A situação se acalmou quando o esquadrão da moda saiu
da tal saleta empurrando araras móveis com montes de vestidos
rosa - salmão, a doida tinha desistido do branco, dizendo que
nos chamariam pelo nome, uma a uma, para que pegássemos
nossas roupas e nos vestíssemos.
Finalmente recebi o meu tão esperado traje de noite.
Quando isso aconteceu eu já não tinha a esperança de que fosse
50
A garota do Espelho
um vestido de contos de fada, que tivesse o dom de me fazer
brilhar a noite inteira enquanto príncipes lutassem por mim.
Duas ou três meninas já tinham vestido os seus e francamente, a
perua podia ter dinheiro, mas gosto não se vende em shopping.
O tecido poderia ser bom, eu não tinha idéia por que não
entendia nada de tecidos; o corte poderia ser bom, eu também
não tinha a menor idéia; mas o modelo era super estranho.
Parecia uma roupa de Colombina, aquela fantasia de
carnaval. O corpete de tecido brilhante drapeado, a parte de
baixo era feita com losangos de tecido opaco alternados com
tecido brilhante, com uma saia muito, mas muito exagerada
mesmo. Por baixo, muito tule fazia com que aquilo ficasse
armado de uma forma tão absurda que me lembrava os tutus do
balé.
A hora que os assistentes apareceram com bolas de tule
salmão que deveriam ser fixadas na frente do vestido, não
aguentei e comecei a rir. A reação da perua não foi das
melhores: posso saber o que esta acontecendo aqui?
Tentei ser espirituosa e disse que estava tentando
adivinhar se os cadetes que dançariam a valsa estariam vestidos
51
Thais Leonardo
de Arlequim ou de Pierrô. Só pra constar: a mulher não tinha o
menor humor.
Acho que fui a última a me vestir. Tentei protelar ao
máximo aquilo que sabia seria o maior desastre da minha vida.
As meninas magras estavam imensas, só de imaginar como eu
ficaria começava a suar frio o que não melhorava em nada a
situação. Quando me olhei no espelho perdi de vez a vontade de
rir, eu queria era sentar e chorar. Lembra de quando um idiota
me chamou de orvalhão? Naquela noite todo mundo com certeza
ia me chamar de Colombinão.
52
A garota do Espelho
“Os dedos do destino a desenharam gorda demais
Cada volta ou pirueta era um desastre, eram risadas gerais” xi
Ninguém riu dos vestidos. Todos eram educados demais.
A grande sacanagem é que o vestido da debutante era
simplesmente uma graça. Feio isso da mãe dela querer diminuir
as outras para ressaltar a filha. Jurei que nunca mais entraria em
outra roubada dessas.
A única coisa legal na fantasia ridícula que vestíamos
eram as luvas. Tá, eu sei que luvas de cetim até o cotovelo são
bem cafonas, ainda mais com vestido de Colombina com
pompom e tudo. Mas já pensou eu tendo que esconder as mãos a
noite inteira porque o bendito esmalte vermelho não tinha nada a
ver com o vestido rosa - salmão?
Todo mundo fez a coreografia direitinho, e servimos de
moldura para a aniversariante sem reclamar. O cadete que
dançava comigo, como todos os outros era bonito e alto. Mas ao
contrário dos outros não sorria. Tão logo terminou a dança ele
me entregou para meu pai e sumiu. Eu fiquei ali parada vendo as
outras meninas continuarem conversando com seus pares.
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Thais Leonardo
Algumas até chegaram a dançar mais uma música ou duas,
depois da overdose de valsas da debutante: com o pai, com o
padrinho, com o irmão, etc, etc, etc. Algumas muito sortudas
depois de algum charminho acabaram dando o telefone para os
bonitões que ficaram de ligar na primeira folga.
Meu pai depois de torcer o nariz para o vestido,
afirmando que iria pedir o dinheiro de volta, frase que rendeu
um beliscão dado por mamãe, até me convidou para dançar, o
que eu recusei alegando dor nos pés por não estar acostumada
com saltos altos. Ele até insistiu, mas quando viu que eu não iria
mesmo, chamou mamãe, e os dois se divertiram pra valer dando
um verdadeiro show na pista. Me senti vingada quando vi a cara
de inveja da perua. Ta aí uma coisa que ela não tinha planejado
e que ela não podia impedir: que alguns pais tivessem como
hobby fazer aulas de dança de salão e literalmente fossem muito
melhores que ela e o marido bobalhão.
Eu estava de boa. Ia ficar ali comendo salgadinhos e
docinhos até estourar aquele vestido medonho que eu com
certeza nunca mais ia querer vestir. Quando meus pais
voltassem para a mesa, eu ia pedir para ir embora alegando uma
dor de cabeça. Para não estragar a diversão deles talvez até
54
A garota do Espelho
ligasse pedindo que meu irmão fosse me buscar. Ele tinha
acabado de tirar a carteira de motorista e não perdia a
oportunidade de pegar o carro da mamãe emprestado.
Ultimamente ele tinha se tornado o mais simpático motorista
particular da cidade, não se incomodando de levar a mim e a
minha irmã para todo canto. Se ele passasse no vestibular, papai
lhe daria um carro e vovó não acreditava que o veríamos muito
depois disso.
Estava justamente pegando o celular na bolsinha de festa
quando o garoto dos meus sonhos, aquele que era o gatão do
colégio, aquele fofo e descolado que vivia me pedindo favores
apareceu e me convidou para dançar.
Se eu não estivesse sentada teria caído. Larguei o celular
e a bolsinha na mesa e levantei rápido, já andando para a pista
antes que ele mudasse de idéia. Ele sorriu, pegou no meu braço
e me conduziu. Eu queria ficar mais no meio, longe das
beiradas, mas ele fazia questão de dançar próximo às mesas.
Cheguei a sonhar que ele gostava de mim, afinal não parecia ter
vergonha de estar dançando com uma verdadeira moranga de
tule e cetim.
55
Thais Leonardo
Foi quando em um dos rodopios, vi um flash pipocar
quando um de seus amigos tirou uma foto de nós dois quando
passamos pela mesa onde a turma que ele andava estava sentada.
Algo no olhar deles, na maneira como riam acendeu a luzinha
vermelha no meu cérebro. Eu podia ser gorda, mas não era
burra. Tinha algo de sórdido na maneira como eles nos olhavam.
Não sei quantas fotos já tinham tirado, mas aquela eu vi.
Comentei com ele a respeito, ele deu uma risadinha e
disse que era pra colocar no facebook. Olhei bem pra ele e voltei
a questionar pra que uma foto nossa no FB. Ele disse que era de
recordação da festa, da dança com a garota mais legal do
colégio. Eu meneei a cabeça concordando. Ok! Depois me
manda uma cópia então.
Ele não falou mais nada, eu também não. A atenção dele
voltava constantemente para a mesa dos amigos, que
aparentemente checavam as fotos tiradas e se matavam de rir.
Eu tive a impressão de ter visto um arremedo de sorriso no seu
rosto, o canto do lábio voltado para baixo num misto de enfado
e desdém, mas talvez fosse só minha imaginação.
56
A garota do Espelho
O fim da musica finalmente chegou e ele nem teve a
decência de me acompanha até a mesa, perguntou se tudo bem
se ele me deixasse ali, porque precisava muito falar com uma
pessoa. Eu respondi que tudo bem, mas acho que ele não ouviu,
porque já estava cruzando o salão em passos rápidos.
Voltei devagar para o meu lugar. Cheguei quase ao
mesmo tempo em que meus pais. Mamãe me pediu para
acompanhá-la ao banheiro e já ia me negando, quando vi duas
meninas da mesa do garoto indo para lá. Topei na hora e
praticamente fui carregando minha mãe para o toalete enquanto
ela reclamava da minha pressa. Se estava tão necessitada devia
ter ido antes.
O banheiro tinha uma ante sala com espelhos dos dois
lados para que as mulheres retocassem a maquiagem, e depois
se dividia em dois outros ambientes repletos de cabinezinhas
individuais, e de pias para que as mãos fossem devidamente
higienizadas. Na verdade os dois ambientes eram divididos por
uma parede de mármore fina, e relativa baixa, que não chegava
até o fim do cômodo. Eu vi o lado para onde as garotas foram e
fui pelo outro. Se tivesse sorte poderia ouvi-las sem que me
vissem.
57
Thais Leonardo
Naquele momento eu era a própria Matahari em uma
missão de espionagem. Estava na escola a tempo suficiente para
saber que garotas como aquelas adoravam comentar maldades,
principalmente se fossem recentes. E quem pensa que mulheres
vão juntas ao banheiro só para fazer xixi, não sabem nada sobre
elas, porque mulheres vão juntas ao banheiro para fofocar.
Dito e feito, elas falavam de mim. Aparentemente não
estavam de acordo com a armação dos demais, mas também não
haviam feito nada para impedir. Pelo que pude entender eu fazia
parte de uma aposta bem idiota, o bonitão tinha que dançar
comigo e eles postariam as fotos com algum tipo de legenda
sacana sobre um príncipe e uma garota que virava abobora a
meia noite. Muito engraçado!
Eu estava segurando na borda da parede com tanta força
que achei que seria capaz de quebrar o mármore, ligeiramente
antes de quebrar meus dedos. Senti as mãos de mamãe em meus
ombros, e sua exclamação de advertência e horror chamou não
só minha atenção, mas também a das meninas, que deram a
volta na paredinha dando de cara comigo.
58
A garota do Espelho
As duas ficaram extremamente pálidas e uma delas
balançava as mãos com a boca aberta sem conseguir falar,
enquanto a outra parecia petrificada. Virei as costas e sai
rapidamente do banheiro. Mamãe corria atrás de mim, mas aqui
entre nós minhas pernas eram bem mais longas e eu estava com
muita raiva.
Caminhei diretamente para a mesa dos monstros, e antes
que eles tivessem tempo de reagir apanhei a maquina fotográfica
de cima da mesa, e desviando do rapaz que tentou barrar meu
caminho, corri para fora do salão e atirei a câmera no lago das
carpas. Ouvi quando ela bateu nas pedras no fundo do lago e
fiquei muito satisfeita em pensar que se o lodo do fundo e a
água não fossem suficientes, com certeza os grandes pedaços de
granito seriam.
Ouvi o galãzinho de meia tigela se lamentando atrás de
mim, sobre a câmera profissional do pai que tinha acabado de
chegar do Japão e pensei que ele teria dificuldades para explicar
a perda. Ele estava tão desesperado que entrou de smoking e
tudo no laguinho, passando as mãos pelo fundo tentando
encontrar a maquina. Naquele momento ele não era o bonzão da
59
Thais Leonardo
escola. Era apenas um moleque de quinze anos apavorado com
as conseqüências de seus atos.
Olhei para o lado e vi minha mãe com nossas bolsas e
meu celular na mão. Peguei o telefone e calmamente tirei uma
foto do bonzão dentro do laguinho. Depois virei para o pessoal
em volta e com o sorriso mais irônico que consegui buscar na
minha alma de atriz fracassada, convidei: entra no facebook
pessoal, vai ter uma foto legal de um príncipe que virou sapo.
Lógico que eu não iria postar. Meus velhos jamais permitiriam,
e eu não sou tão sacana assim, mas tive meu momento de
vingança. Triste e amarga vingança.
Cada passo dado para o carro foi muito difícil. A cada
um o personagem da menina forte ia se desfazendo e quando
enfim eu me sentei no banco de trás, tudo que eu queria era
sumir para sempre.
60
A garota do Espelho
É a vovó quem manda o tédio
Passear, lamber sabãoxii
Pedi para que me levassem para a casa da vovó, e pela
primeira vez na minha vida meus pais não questionaram minha
necessidade. Acredito que estavam tão perdidos, confusos e
magoados quanto eu. Como eu, não sabiam como lidar com a
situação.
Quando abriu a porta eu entrei direto para a sala,
enquanto meus pais na porta despejavam de forma incoerente a
história toda em cima dela. Eles falavam ao mesmo tempo em
tom de urgência, como crianças pedindo a intervenção de um
adulto. Creio que foi neste instante que descobri que eles não
sabiam de tudo, e confirmei aquilo que minha intuição já
gritava, que só a idade e a experiência de vovó poderia
realmente me ajudar a suportar aquele momento.
Entenda, eu não estava criticando meus pais. Eu sabia
que eles eram solidários com meu sofrimento e que realmente
queriam poder fazer algo concreto para me aliviar. Mas eu
também podia perceber que eles não tinham a menor idéia de
qual atitude tomar. Provavelmente meu pai estava com gana de
61
Thais Leonardo
surrar os fedelhos. Provavelmente minha mãe se culpava por ter
permitido que eu usasse algo no escuro, escolhido por outra
pessoa, e obviamente por razões pouco cristãs. Provavelmente
no dia seguinte ela ligaria para a já ex-amiga e deixaria bem
claro sua opinião sobre ela, sua festa e seu péssimo gosto.
Eles sofriam por mim. Estranhos tinham machucado um
de seus bebês e eles estavam loucos para mostrar o quanto me
amavam, para me pegarem no colo e jurarem que nunca mais
isso aconteceria. Mas estavam chocados por descobrirem que
isso não era verdade. Eu não era mais um bebê, eles não podiam
me proteger, e tinham acabado de ver que a vida poderia ser
bem cruel.
De uma certa forma os acontecimentos da noite haviam
abalado o mundinho perfeito em que eles viviam. Por mais pena
que eu sentisse deles, tinha plena consciência de que tinham um
ao outro, e que alcançariam mais sucesso se consolando
mutuamente do que tentando fazer o mesmo comigo.
Eu queria a vovó. Também queria morrer. Mas queria
morrer no colo dela, que saberia entender e respeitar tanto a
minha dor, quanto a minha morte.
62
A garota do Espelho
Meus pais foram embora e eu fiquei chorando no colo da
minha vó. Acho que chorei horas e horas, sei lá. Só sei que
acabei dormindo no colo dela no sofá da sala.
Em algum momento ela me ajudou a tirar o vestido
fatídico e a vestir um roupão de banho enorme e confortável.
Em algum momento ela tirou minhas sandálias, soltou meus
cabelos da tiara da festa e me cobriu com uma velha manta de
crochê.
No dia seguinte acordei bem tarde, com a sensação de ter
dormido demais, com uma leve dor de cabeça causada,
provavelmente, pelo choro e pelo nervoso passado na noite
anterior.
Fiquei bem quieta, aproveitando a maciez do roupão e o
calor da manta enquanto sentia o perfume floral que impregnava
as peças. Eu adorava aquele perfume, que estaria para sempre
associado à figura da minha avó. Era seu toque pessoal e ela
fazia questão de que todas as roupas de cama e banho exalassem
a fragrância. Uma vez, quando eu era pequena tentei fazer
minhas roupas ficarem perfumadas como as dela e salpiquei
perfume nas gavetas e nos armários. O resultado foram roupas
63
Thais Leonardo
manchadas e perfumadas em excesso em alguns pontos. Então
ela me ensinou como fazer saches que perfumariam tudo por
igual sem estragar nenhuma peça.
Respirei mais fundo e senti um aroma diferente.
Hum...café. Levantei, caminhei descalça até a cozinha, e
encontrei vovó em plena atividade.
Ela olhou para mim e sorriu. Depois ficou séria e
perguntou: Eu sei que você quer morrer, mas, acha que dá
tempo de tomar um café antes? Fiz panquecas recheadas com
creme de queijo, patê de gorgonzola, torradas quentes, e
biscoitos de chocolate. Temos café, chá de hortelã, e suco de
laranja.
Entrei na brincadeira na mesma hora. Claro que ainda
quero morrer. Mas como enterros e velórios costumam demorar
muito, seria um desperdício perdemos tanta comida.
Ela concordou gravemente.
Quer comer aqui ou no jardim? Afirmei que o jardim
seria o lugar ideal. Preparamos duas grandes bandejas e fomos
nos sentar no velho caramanchão.
64
A garota do Espelho
Ficamos comendo e jogando conversa fora durante uns
bons quarenta minutos. Falamos sobre o céu, sobre as frutas da
estação, sobre o clima e sobre as flores do jardim. Elogiei muito
umas rosas beges enormes e espetaculares que pendiam dos
galhos de uma roseira recém transplantada.
Ela ficou bebericando café, e me contou que a roseira
tinha sido presente de uma amiga, e era o resultado de muitas
experiências e enxertos realizados ao longo de anos.
Reparou que ela é quase um sépia? As folhas são
delicadas como pergaminho antigo. O problema é que seus
galhos têm espinhos em demasia. Sabe querida, de uma
determinada forma ela rosa é como a vida: linda, perfumada,
misteriosa, e cheia de espinhos. Vovó era meio poeta.
Ela continuava bebendo seu café e comentando sobre o
jardim, enquanto eu me encharcava de suco de laranja e
semicerrava os olhos tentando protegê-los da luz do dia,
pensando em rosas feitas de pergaminho e nos espinhos da vida.
Quando dei por mim ela falava sobre um sapo, que
aparentemente andava morando no jardim. Disse a ela que
achava que sapos não moravam em jardins, que eles gostavam
65
Thais Leonardo
mais de locais úmidos. Mas estava falando por falar, porque
meu conhecimento sobre sapos, rãs e afins era bem precário.
Neste momento ela deu uma risadinha e perguntou
baixinho se meu pai tinha deletado a foto do sapo na lagoa ou se
eu tinha conseguiu salva-la. Esta no meu telefone, você quer
ver? Ela acenou que sim e eu corri em busca do celular. Na
verdade foram três fotos batidas em seqüência e estavam
hilárias. Nós nos divertimos muito comentando os detalhes da
cara de espanto e medo, da roupa molhada, das mãos
mergulhadas no lodo. Em uma delas ele estava agachado, e
realmente parecia um sapo prestes a saltar.
Ela bateu no meu ombro e disse: Boa menina! Você
ensinou a eles.
Então me disse para guardar a foto como
garantia. Diante do meu olhar perplexo explicou que enquanto
ele achasse que eu tinha a foto, ele não aprontaria mais nenhuma
e nem deixaria ninguém aprontar. Disse que seriamos como a
Rússia e os EUA durante a guerra fria, poderíamos até ser
inimigos, mas ninguém ia querer pagar pra ver a reação do
outro.
66
A garota do Espelho
Ela tinha razão. Nunca mais nos falamos. Mas nem ele,
nem ninguém do grupo dele, nunca mais sequer tocou no meu
nome.
Com certeza este teria sido o momento ideal para que eu
entendesse de uma vez por todas que quem vê cara não vê
coração, e que a beleza interna é que deveria ser buscada. Mas
eu sempre fui do tipo que precisa apanhar muito pra aprender. E
o que eu queria mesmo era ser linda por fora. Queria estar
dentro dos padrões de beleza das atrizes de televisão e das
modelos das revistas de moda, e isso com certeza não incluía
pernas grossas, seios fartos e quadris cheios.
67
Thais Leonardo
“A minha amiga, ela é tão gira
Maldita! Roubou a minha vida” xiii
Alexia me pegou no banheiro. E ai!? Colocou na NET?
Levei uns segundos para entender sobre o que ela estava
falando, finalmente caiu a ficha, ela queria saber da história do
sapo, neguei com a cabeça e entrei em uma das cabines.
Quando sai ela ainda estava lá. Estava fumando
encostada na bancada e aparentemente não estava nem ai para a
possibilidade do alarme de fumaça tocar. Percebeu que eu olhei
para ele e deu de ombros. Pegou uma ou duas folhas de papel
toalha, molhou e subindo na bancada firmou a massa úmida
sobre o detector. Pronto, aprendeu a primeira lição!
De que Mané primeira lição ela estava falando. Alexia
nunca tinha trocado mais que meia dúzia de palavras comigo
desde que havia chegado à escola dois anos antes, vinda do Rio
de Janeiro, e agora estava ali parada na minha frente com ar de
quem queria conversar.
68
A garota do Espelho
Depois do fiasco do baile eu estava pra lá de desconfiada
de tudo e de todos e decididamente não ia mais fazer papel de
boba pra ninguém. Alexia fazia parte dos descolados do colégio,
e sem sombra de dúvidas era uma das garotas mais bonitas da
escola, ela era “popular”, e eu não conseguia imaginar nenhum
motivo plausível para que ela quisesse se aproximar de mim.
Coloquei tudo isso pra fora e fiquei no aguardo da reação dela,
que não se fez tardar, e ficou a anos luz do que eu esperava.
Alexia afirmou que eu tinha toda razão em ficar com o
pé atrás porque as pessoas não eram realmente legais. Mas que
ela tinha adorado a história do baile, pois mostrou que eu tinha
garra, e que por isso tinha resolvido me ajudar.
Como assim ajudar?
Ajudar a transformar você em uma das garotas mais
gatas da escola.
Olhei para o corpo escultural dela e aloprei. Pô, eu fazia
dietas desde que me conhecia por gente. Dieta do chá verde, do
chá branco, da sopa, do suco, do diabo que carregue. Claro que
emagrecia, mas recuperava tudo de novo em menos tempo do
que tinha levado pra perder. No ano anterior depois de um
69
Thais Leonardo
escândalo que dei por não conseguir mais entrar em uma calça
jeans comprada quinze dias antes, minha mãe tinha me levado a
um médico que mandou fazer uma fórmula milagrosa, que me
fez perder dez quilos e engordar doze. Ninguém podia me
ajudar. Eu era gorda e fim.
Ela me chamou de boba e começou a rir. Fiquei
possessa, mas comecei a me tocar que não havia maldade
aparente nela, que me olhava nos olhos e afirmava que tudo o
que eu tinha feito era bobagem.
Você não é gorda. Você é grande, e esta cheinha. Mas
isso é muito simples de resolver. Eu vou te ensinar. Aprendi com
uma prima ainda no Rio de Janeiro. Garota, eu era como você
ontem, e você será como eu amanhã.
Alexia me chamou para irmos para o apartamento dela.
Era o momento ideal porque os pais estariam no trabalho e
poderíamos ter sossego para conversarmos. Foi a primeira de
muitas vezes que cabulei aula.
Passamos a tarde inteira no quarto dela, que era uma
pequena, mas muito bem mobiliada, suíte em um apartamento
de classe média alta do Klabin. O pai era executivo de uma
70
A garota do Espelho
multinacional e tinha sido transferido para a sucursal de São
Paulo dois anos antes, por isso tinha se mudado do Rio. Sua mãe
era advogada e tinha recentemente entrado na qualidade de sócia
júnior em um escritório nos jardins, o que a obrigava a trabalhar
muito para firmar seu nome e justificar sua permanecia na firma.
Como resultado Alexia passava muito tempo sozinha,
tendo apenas a companhia da empregada, que passava a maior
parte do tempo na cozinha assistindo televisão e preparando
lanchinhos e realmente não estava nem ai com o que a garota
aprontasse desde que não fizesse bagunça e não sujasse nada.
Começamos neste dia o projeto de mudança do meu
corpo, que acabaria mudando a minha mente e quase acabaria
com minha vida.
71
Thais Leonardo
“Mia, arranha o céu
Mia, lua de mel ao léu” xiv
Alexia me contou que já tinha tido exatamente o mesmo
problema que eu: brigas eternas com a balança. Mas um dia,
depois de uma conversa com a prima tudo mudou.
Difícil acreditar no que ela dizia, pois tinha a maior pinta
de modelo. Ela era uma garota alta, quase tanto quanto eu, com
um corpo de arrasar. Ela seria aquilo que meu irmão classificaria
como um avião. Acho que percebeu minha descrença, porque
levantou abriu a porta do armário e tirou de lá uma caixa de
madeira com chavinha. Dentro dúzias e dúzias de fotos de uma
Alexia corpulenta pacas. Céus, ela tinha sido mais gorda que eu.
Fiquei pasma segurando uma das fotos. Minha mão
tremia e minha boca estava seca. As fotos contavam uma
história parecida com a minha. Um bebe gordinho que se
transformava em uma menina gordinha, que se transformava em
uma adolescente gordinha, fadada a vir a ser uma mulher
gordinha.
72
A garota do Espelho
De alguma forma ela havia virado o jogo. Queria muito
saber que milagre tinha sido aquele. Ela analisava minhas
reações e esperava a pergunta inevitável.
Ok! Como?
Fácil. A gente mia.
A gente o que?
Mia.
Cara se prepara por que agora vem a parte nojenta do tal
projeto. Miar significa vomitar. A gente come e depois vomita.
A pessoa tem a sensação de ter comido, se sente saciada, mas o
corpo não tem tempo de absorver nutrientes para que a gente
engorde. Pelo menos foi isso que a Alexia disse.
Não vou negar que fiquei meio decepcionada com o que
ela disse. Enfiar o dedo na garganta, meia dúzia de vezes por
dia, não era bem o que imaginava ser a forma mais legal de
viver. Enfiar o dedo é forma de falar, porque segundo ela esta
deveria ser a última coisa que eu deveria fazer.
73
Thais Leonardo
Segundo minha “orientadora”, isso acabava causando
uma espécie de calo no dedo, na parte em que os dentes batiam
nele quando o esôfago contraia para expelir os alimentos. O tal
calo era um denunciador do que estava acontecendo, e com
certeza a dona do dedinho acabaria deitada no divã de alguma
psicóloga se os pais descobrissem.
Também seria muito importante não os deixarem ouvir
os barulhos provocados pelo ato. Abrir as torneiras, dar descarga
ao mesmo tempo, ligar o chuveiro, colocar musica alta no
quarto, tudo isso poderia ajudar.
Posso dizer que tive um curso intensivo de “miação”
aquela tarde. Alexia chegou ao ponto de fazer uma exibição da
técnica para mim. Acabei tendo um ataque de vomito solidário.
ECA!!! Que nojo.
Voltei para casa pensativa. Não tinha certeza de que
realmente queria fazer aquilo. Mas as palavras finais de minha
nova amiga ficaram martelando na minha cabeça muito tempo
depois que subi para dormir: Faz uma semana de teste. Se achar
que não vale a pena é só parar.
74
A garota do Espelho
Resolvi tentar e no fim da semana a balança marcava
dois quilos a menos. Viva Alexia! Ela tava certa, toda gata tem
que miar.
75
Thais Leonardo
“Escondo um louco
No meu corpo” xv
Comecei a emagrecer de forma acentuada. Nos quatro ou
cinco meses seguintes perdi mais de dez quilos. Mesmo assim,
ficava paranóica com a possibilidade de engordar. Adquiri o
costume de me pesar toda hora. Perturbei tanto que ganhei uma
balança show do meu pai, coloquei dentro do banheiro do meu
quarto, bem do lado da privada e toda vez que entrava lá, fosse
para o que fosse, conferia o meu peso.
Foi assim que descobri que tinha parado de emagrecer.
Já fazia mais de 24 horas que eu não perdia uma grama e entrei
em pânico. Devido à experiência de dietas anteriores sabia que
parar de perder peso significava começar a recuperá-lo. Liguei
desesperada para Alexia pedindo socorro. Como sempre ela
ouviu com paciência e disse pra ficar fria que tava tudo certo,
que eu estava com um corpo muito bom, agora era só manter.
Como tudo certo, eu ainda não tinha chegado ao peso ideal,
tinha muito pra perder ainda.
76
A garota do Espelho
Ela discordou. Afirmou que eu estava ótima. Lembrou
que minha família já estava começando a questionar minha
dieta.
Eu sabia que ela estava certa. Meus pais andavam
reclamando muito do que estavam chamando de exagero. Na
frente deles eu só comia salada e sucos. Eles nem sonhavam que
escondido eu comia muito e rapidamente antes de miar.
Eu tinha biscoitos, chocolates e sacos de salgadinho
escondidos no armário. Às vezes passava no Mc e comprava três
ou quatro sanduíches que trazia escondido dentro da mochila,
trancava a porta do quarto e fazia a festa, depois passava dias só
na frutinha pra compensar.
Uma vez eu comi uma lata inteira de doce trancada no
banheiro e logo em seguida joguei tudo pra fora.
Eu e Alexia costumávamos fazer orgias de comida. Uma
loucura total. Depois era só miar.
Esta era minha rotina alimentar. Quando estava
acompanhada comia como um passarinho. Quando estava só
77
Thais Leonardo
comia como uma vaca, vomitava tudo e mal lavava a boca me
pesava. Louco não é? Eu não achava.
O problema é que meu humor andava bem instável e eu
não conseguia controlar isso muito bem. Eu passava da agitação
para a apatia com muita facilidade e andava bem irritadiça e até
agressiva.
Uma vez meu irmão ao agradecer quando passei um
livro para ele me chamou de fofa. Quando dei por mim estava
gritando com ele, perguntando o que queria dizer com fofa, se
eu estava gorda. Ele levantou furioso, me pegou pelo braço e
gritou que com fofa queria dizer meiga, terna, mas que retirava o
que tinha dito, porque o correto seria louca, histérica, saiu da
sala e ficou dias sem falar comigo. Foi uma das poucas vezes
que o vi perder a paciência com alguém. Chorei muito depois
disso, mas simplesmente não conseguia tolerar qualquer alusão
ao meu peso, ou ao meu corpo.
Fiquei insistindo com Alexia. Subornei, ameacei,
implorei, perturbei, até que ela prometesse vir a minha casa e
ampliar o projeto “corpo nosso de cada dia”.
78
A garota do Espelho
“Eu faço xixi na cama
É difícil segurar” xvi
Como prometeu Alexia chegou cedo. Quando desci, ela
estava tomando café com minha família, eles a adoravam. Meus
pais a achavam uma ótima menina. Minha mãe dizia que ela era
educada e gentil; meu pai a considerava responsável e madura
para a idade; segundo meu irmão ela era uma gostosa, e minha
irmã a odiava.
Ninguém levava minha irmã muito a sério, todos
concordavam que ela tinha ciúmes de Alexia. Era a síndrome da
irmãzinha caçula que perdia espaço para a amiga da irmã,
quando esta começava a crescer.
Certa vez passando pelo corredor, ouvi pela porta
entreaberta do quarto de minha irmã ela se queixando com
mamãe, que dizia que ela tinha que entender que a diferença de
idade fazia com que tivéssemos interesses distintos.
Ela discordava argumentando que nossa diferença era a
mesma desde que ela tinha nascido e sempre tínhamos sido
amigas e companheiras, que foi Alexia que estragou tudo.
79
Thais Leonardo
Mamãe explicava que agora era diferente e que seria por
alguns anos, porque quando ela tinha dez e eu tinha treze anos,
éramos duas meninas. Mas que agora eu tinha quinze, e ela
doze. Uma mocinha e uma menina. Que nossos mundos tinham
se distanciado um pouco, mas que um dia eles voltariam a se
ajustar.
Minha irmã estava muito triste e eu me senti uma maldita
traidora, porque adorava minha irmã e não a achava uma criança
importuna, muito pelo contrario, achava que ela era esperta e
inteligente. Apenas tinha medo que ela descobrisse o que eu
fazia e contasse para os demais.
Depois do café da manhã, Alexia e eu dissemos que
tínhamos trabalhos escolares para concluir e subimos para meu
quarto.
Lá, ela abriu a bolsa e tirou vários frasquinhos com
comprimidos: laxantes e diuréticos. Franzi o nariz. Putz! Além
de vomitar sem parar, agora eu também ia me tornar uma
mijona-cagona. Enfim, se me ajudasse a emagrecer.
Durante um tempo fez efeito. Eu estava perdendo peso.
Mas depois de uns meses eu tinha “estacionado” novamente.
80
A garota do Espelho
Então acrescentamos exercícios físicos. Isso se tornou
uma compulsão. Nada de musculação, eu não queria ganhar
massa, eu queria perder. Começamos a fazer esteira, bicicleta
ergométrica e drenagem linfática. Somado miar, aos diuréticos e
aos laxantes isso segurou mais um bom tempo. A esta altura
tinha dezessete anos e todos diziam que eu estava muito magra.
Eu sabia que todos estavam errados porque tinha um
espelho enorme no meu quarto e eu me olhava, totalmente nua,
várias vezes. Gostava de conferir o material, e tinha certeza de
que tinha muita coisa sobrando no meu corpo. Eu tinha peito
demais, bunda demais, coxa demais. Isso me deprimia muito.
Pra piorar a situação Alexia andava pegando no meu pé.
Dizia que eu estava exagerando e que todo mundo já estava
notando minhas mudanças. Em verdade, ela conseguia manter o
peso. Queria estar bonita e bem e usava aquilo para não
engordar. Já eu, queria emagrecer cada vez mais. Eu me achava
gorda e tinha necessidade de perder peso. Nós duas já não
comungávamos os mesmos objetivos, mas éramos amigas e
estávamos sempre juntas. Como a maioria das pessoas que tem
algum tipo de compulsão, nós desenvolvemos várias. Algumas
81
Thais Leonardo
poderiam até parecer virtudes, como estudar e limpar, mas
nenhuma compulsão é benéfica.
Eu cismava que estava suando e ia tomar banho. Seria
normal, se isso não estivesse acontecendo seis, oito vezes por
dia. Um dia quando estávamos jantando, percebi que minha
família tinha parado de conversar e estava me olhando
fixamente: eu estava limpando as uvas da cesta de frutas que
estava sobre a mesa, uma por uma com o guardanapo e
arrumando simetricamente no prato. Tinha que me policiar o
tempo todo para não separar a comida por cores, e arrumar a
estante do meu quarto se tornou um vicio diário.
Eu era dez mil vezes mais vacilona que a Alexia, mas foi
ela que acabou tendo problemas.
Como já disse, o objetivo de Alexia era simplesmente
manter o peso. Pesava-se diariamente para verificar se estava
dentro do padrão previamente estabelecido. De acordo com a
informação dada pela balança ela decidia sua postura: se ia
comer muito e miar, se ia comer pouco e malhar, se ia usar
medicamentos.
82
A garota do Espelho
Aquele dia ela notou uma alteração de 250 gramas para
mais. Decidiu que faria dieta e tomaria diuréticos. Ela teve um
revertério do tipo eletrolítico: faltou potássio, rolaram alterações
no ritmo cardíaco e ela desmaiou no colégio.
Chamaram uma ambulância e ela foi levada para o
hospital. Depois de algumas horas foi liberada. Eu fiquei
sentada na sala de espera do hospital o tempo todo em que ela
ficou lá. Quando os pais dela chegaram nervosos e esbaforidos
eu estava lá, e eles falaram comigo carinhosamente antes de
serem chamados para vê-la. Quando ela estava saindo amparada
pelos pais, eles foram bem frios comigo. Alexia tentou me
advertir com o olhar, mas eu não percebi e continuei andando ao
lado deles, fazendo perguntas sobre o estado dela. Lá fora, o pai
foi buscar o carro enquanto esperávamos. Alexia meneava a
cabeça devagar, fazendo um não lento, mas claro. E eu falando,
falando, externando toda a minha preocupação. A mãe dela tinha
o olhar firme, o maxilar travado, como se ela tivesse medo de
começar e não conseguir parar. Quando o carro chegou, o casal
acomodou a garota no banco de trás, o homem foi para trás do
volante e a mulher para o banco do passageiro. Quando fiz
83
Thais Leonardo
menção de entrar junto com Alexia, a mãe dela disse um sonoro:
não!
Como não! Eles com certeza não iriam me largar ali no
hospital sendo que morávamos do outro lado da cidade. Creia,
foi exatamente o que fizeram. Não sem antes deixarem bastante
claro, com o pragmatismo que só um executivo e uma advogada
poderiam ostentar, que me consideravam persona non grata.
Eu não era uma boa companhia para a filha deles. Na
verdade eles me consideravam uma péssima influência para
Alexia, e eu faria um grande favor se tivesse a decência de ficar
bem longe dela. Aconselharam que eu procurasse um médico e
me tratasse e foram embora.
No dia seguinte os pais de Alexia foram ao colégio e
pediram transferência. Tentei falar com ela pelo celular, mas a
mensagem dizia que o número não existia mais. Nunca mais nos
vimos.
Fiquei muito mal. Mas outras perdas, maiores e mais
graves viriam. A fase negra mal estava começando.
84
A garota do Espelho
Foi mais ou menos nesta época que descobri que álcool
tira a fome.
85
Thais Leonardo
“Eu devia ter te escutado
Quando me aconselhou” xvii
Cheguei trançando as pernas. Acho que devia estar até
vesga de tão tonta. O pessoal me largou na porta da casa da
minha avó porque achei mais fácil lidar com ela do que com
meus pais.
Só podia estar bêbada mesmo para achar isso. Minha avó
podia ser mais compreensiva que eles, mas enxergava mais
longe. E o que andava vendo nos últimos tempos não a agradava
nem um pouquinho e ela não ia deixar barato minha falta de
juízo.
A primeira coisa que fez foi me meter embaixo de um
chuveiro gelado. Ela tirou minhas roupas sem a menor
delicadeza e me fez ficar dentro do Box até que o cheiro de
bebida e de vomito, eu tinha tomado todas e o balanço do carro
me fez vomitar no portão, se tornassem suportáveis.
Depois meteu um sabonete na minha mão, um cor de
rosa, redondo e cheiroso que me fez piscar para segurar as
lagrimas, pois o perfume remetia a minha infância quando
86
A garota do Espelho
éramos bem mais amigas e ela nunca me obrigaria a passar tanto
frio e vergonha.
Minha avó não estava nem ai para os meus sentimentos
ou para minha pele arrepiada. Mandou que eu me esfregasse e
como achou que eu não estava fazendo isso direito, fez ela
mesma. Com o auxílio de uma bucha me esfregou toda, e
quando reclamei que ela estava me arrancando a pele, me deu
um tapa na bunda tão forte que eu perdi o fôlego.
Fico falando vovó, e talvez tenha passado a imagem de
uma velhinha frágil. Se fiz isso peço desculpas. Ela com certeza
não tinha nada de frágil, tanto que ainda que bêbada fui sensata
o suficiente para calar a boca e terminar meu banho, porque ela
tinha toda condição de me dar uma boa surra e eu nenhuma de
me esquivar.
Talvez eu me identificasse tanto com ela, porque se
parecia comigo, antes de aprender a miar. Minha avó era uma
mulher alta, mais alta que eu, quase tanto quanto seu filho, meu
pai. Era forte também. Cuidava do jardim, fazia aulas de natação
e adorava caminhar e dançar. Um ano antes tinha percorrido o
87
Thais Leonardo
caminho de Santiago de Compostela a pé. Tínhamos planejado
ir juntas, mas na última hora dei pra trás e ela foi só.
Ela sempre foi uma mulher ativa. Ao contrario de mim
não tinha nenhum problema com seu tamanho. Gostava de ser
grande. Gostava da sensação da força física. Meu pai tinha
nascido quando ela tinha 17 anos, a mesma idade que eu tinha, e
em poucos dias ela completaria sessenta e dois anos, e
aparentava pouco mais de cinquenta.
Tinha e demonstrava um amor absurdo pelo filho e pelos
netos, amor que generosamente estendia a minha mãe. Para ela
na família estava o alicerce de todo ser humano. Quando meu
irmão nasceu ela se aposentou porque sabia que meus pais
precisariam de ajuda para criar os filhos, mas nunca aceitou
morar com eles. Enquanto meus velhos trabalhavam, ela foi de
tudo para os netos: babá, motorista, massagista, enfermeira. Sua
casa sempre foi um porto seguro e um refúgio para todos,
especialmente para mim. Por me amar tanto, por ter ajudado a
me criar, por ser uma verdadeira guardiã da família, minha avó
achou por bem me enfrentar. Mas não faria isso no meio da
madrugada comigo ainda sob o efeito da bebida. Então me
meteu em uma camisola e me colocou na cama, não sem antes
88
A garota do Espelho
me obrigar a tomar uma xícara de chá de boldo sem açúcar.
Ranhetei, mas tomei até o último gole antes de dormir de roncar.
Acordei com o cheiro do café. Procurei minhas roupas e
não encontrei. Conhecia bem minha avó, e elas deveriam estar
na lavadora, isso se não estivessem no lixo. Ela não ia deixar as
roupas sujas e molhadas empesteando sua casa.
Resolvi descer de camisola mesmo. Estava com
vergonha do papelão que tinha feito, e não tinha a menor
intenção de ser malcriada. Juro por Deus que pretendia ouvir o
sermão, pedir desculpas e ficar em paz.
Revendo a cena e analisando bem meus sentimentos, não
é que eu estivesse genuinamente arrependida, simplesmente
acreditava que pedir desculpas era a forma mais rápida e segura
de dobrar minha avó. Até hoje não sei como pude acreditar
nisso.
Como esperava a vovó estava na cozinha. Entrei na hora
exata em que ela tirava do forno uma bandeja repleta de pães de
queijo quentinhos.
89
Thais Leonardo
Ela fez sinal para que eu sentasse o que fiz
mecanicamente enquanto ela enchia um prato com os pãezinhos.
Não acreditei quando colocou o recipiente bem na minha frente.
O aroma era torturador e comecei a sentir a boca enchendo de
água. Minha avó encheu duas xícaras com café, me entregou
uma e começou a bebericar o conteúdo da outra.
Coma, esta precisando.
Obrigada. Não estou com fome.
Ela pegou um pão e começou a comer bem devagar.
Devia estar ótimo, porque quando ela mordeu deu pra ver o
miolo bem amarelinho e sentir mais forte o cheiro do parmesão.
Tem certeza que não quer? Esta uma delicia.
Por que esta fazendo isso comigo?
Fazendo o que? Oferecendo um pão de queijo? Porque
quando era criança você adorava.
Era um tipo de jogo. Se eu comesse ela ganhava, se não
comesse ela ganhava também. Eu vagamente sabia que estava
delirando. Não comia nada desde a manhã do dia anterior, ou a
90
A garota do Espelho
noite antes dele, não sabia mais. O efeito inibidor de apetite do
álcool tinha passado e eu sentia dores no estomago. Minhas
mãos tremiam e eu sabia que estava a um passo de uma crise
compulsiva.
Pensei em ir para a sala, mas minha avó tinha se
deslocado e estava consciente ou inconscientemente bloqueando
a saída. Comecei a tremer. Não conseguia para de mexer as
pernas e sentia o suor escorrendo pelo corpo.
Saco, saco, saco. Minha avó esperava.
Não agüentei e peguei um. Depois outro e outro. Comi
vários, em segundos, sem quase mastigar. Enfiava na boca,
triturava um pouco com os dentes e engolia os pedaços quase
inteiros. Eu comia e chorava, vendo entre lagrimas o horror no
rosto dela.
Levantei e sai correndo escadas acima com ela bem nos
meus calcanhares. Nem me dei ao trabalho de fechar a porta do
banheiro, deixei que ela presenciasse o espetáculo mais dantesco
da face da terra. Limpei a boca na barra da camisola e sentei no
chão me debulhando em lágrimas.
91
Thais Leonardo
Esta feliz agora? Mágoa.
Não estou feliz, e você também não. Eu fui diretora de
escola durante 25 anos antes de você nascer, e continuo sendo
voluntária em instituições para jovens. Sei exatamente o que
você tem.
Sabe? Então porque fez isso comigo? Confusão
Porque eu desconfiava, mas precisava da certeza. Você
precisa de ajuda querida. Precisa vencer esta situação. Precisa
aprender a se amar e a se enxergar como realmente é.
Gorda! Sou gorda. Ninguém gosta de mulheres gordas e
feias. Desespero.
Você não é gorda. Você esta só pele e osso. Esta doente
e precisa de cuidados. Precisamos falar com seus pais, cuidar
de sua saúde.
Não! Medo.
Por favor, vovó. Não pode contar a ninguém. Eu
prometo que não vai acontecer mais. Prometo me alimentar.
Pavor.
92
A garota do Espelho
Ela passou a mão no meu rosto, e me ajudou a levantar.
Sentamos juntas na cama, eu coloquei a cabeça em seu colo
enquanto ela acariciava meus cabelos. Ficamos algum tempo
assim, em silêncio. A tristeza no ar era quase palpável, porque
sabíamos que o que havia sido quebrado nunca mais seria
recuperado. De uma determinada forma um ciclo tinha se
encerrado. A menininha da vovó não existia mais, em seu lugar
havia uma garota que estava perdendo o controle da própria
vida.
Sinto muito querida. Eu amo você mais do que a mim
mesma, e por este motivo, por saber que você precisa de ajuda,
vou fazer com que você a receba, querendo ou não. A voz dela
era dor pura e meu coração se apertou no peito. Afastei o amor,
o carinho, a esperança. Deixei que meu ódio aflorasse, frio, feio,
imenso.
Pulei feito um bicho para longe dela, as feições desfeitas,
manifestando todo o meu transtorno mental, físico e até mesmo
psicótico. Eu arfava e babava e ela teve o bom senso de não
tentar se aproximar de mim.
93
Thais Leonardo
É horrível admitir, mas acho que poderia ter reagido com
violência, e talvez ela tivesse pressentido isso. Tenho certeza
que ela não manteve a distancia por medo, e sim por que sabia
que quando eu recobrasse a razão, e hoje eu tenho certeza que
ela acreditava que esse dia chegaria, eu não suportaria viver com
mais esta culpa no coração.
Desci as escadas pulando os degraus de dois em dois,
com risco de cair e me arrebentar. Ela não me seguiu.
Tirei minha roupa ainda úmida da secadora e vesti assim
mesmo. Quando já estava na porta lembrei-me da minha bolsa e
tive que voltar para pegar. Minha avó continuava sentada na
cama, o olhar perdido na distância, as mãos postas como se
estivesse rezando. Isso me irritou ainda mais. Lembrei o quanto
tinha rezado durante a minha vida toda para ser um pouco mais
magra. Para que os meninos olhassem para mim como olhavam
para as outras.
Rezar não adianta. Sabe por quê? Porque só o mal
existe. Ela fechou os olhos e apertou mais as mãos.
Por favor, por favor, não conte nada a ninguém.
Implorei novamente e ela meneou a cabeça. Não posso.
94
A garota do Espelho
Minha raiva cresceu novamente, agarrei a bolsa e sai
gritando como uma possessa.
Não se meta na minha vida nunca mais. Nunca mais.
Só percebi que estava descalça depois de um quarteirão.
Peguei um taxi e fui para casa. Tinha que ser rápida. Mandei o
carro esperar e enfiei apressadamente algumas roupas em uma
mochila. Entrei no quarto de meus pais e vasculhei o criadomudo de papai, ele sempre tinha dinheiro ali. R$ 500,00 reais.
Legal.
Abri o porta jóias de minha mãe e peguei o que deu,
enfiando tudo na mochila. Eu tinha que ir embora, com certeza
minha avó já teria ligado pros meus pais, e se ficasse eles iriam
me engordar feito um porco.
Nunca fui a lugar nenhum. Quando cheguei à sala eles já
estavam me esperando.
95
Thais Leonardo
“Fugindo ao invés de encarar
Buscando a maneira mais cômoda de viver” xviii
O diagnóstico foi: bulimia.
Pela primeira vez entendi que “mia” era o apelido de
bulimia.
Tive que fazer um tratamento de “reequilíbrio corporal”
e fiquei um ano freqüentando o consultório de um psiquiatra.
Saca só que chique: Psiquiatra. Nada de psicólogo. Psicólogo é
coisa pra menininha que os pais se separaram. Eu fui vítima de
um surto psicótico causado por alterações neuroquímicas
cerebrais nas concentrações de serotonina e noradrenalina.
Claro que eu era caso de psiquiatria.
Fiquei um ano sem ver minha avó. Todo mundo,
inclusive o Psiq, achava que eu morria de raiva dela, por isso
fugia de qualquer contato com ela. Segundo o Psiq, eu tinha
inconscientemente estabelecido um processo de transferência da
rejeição à gordura para uma rejeição a ela, que foi a responsável
pela descoberta do meu problema. Técnico né!? Pura balela.
96
A garota do Espelho
Eu não tinha raiva da minha avó. Eu morria de saudade
dela, mas também morria de medo dela. Ela já tinha provado
que era a pessoa mais inteligente e ligada da família e eu não
podia correr o risco dela descobrir aquilo que ninguém mais
sabia: eu era a atriz do século.
Tudo bem eu tinha sido pega, e obrigada a fazer um
tratamento para recuperar a saúde. Mas tinha sido por burrice
minha. Eu tinha exagerado na dose e a culpa era da bebida. Até
ali tudo estava bem. Foi quando eu comecei a misturar o álcool
com os diuréticos e laxantes que o trem saiu dos trilhos. Eu não
ia cometer o mesmo erro novamente, mas também não ia virar
uma baleia novamente só pra agradar a família.
Então montei meu personagem menina-arrependidaquer-se-redimir e comecei a mostrar para todos exatamente
aquilo
que
eles
queriam
ver.
Agora,
enganar
vovó,
principalmente depois de tudo que ela tinha visto, não seria tão
fácil, ela me conhecia demais para cair na minha. Então era
melhor que ficasse longe. Sentia falta dela, mas estava lutando
pela minha felicidade. E a minha felicidade não passava por
mesa farta.
97
Thais Leonardo
Apesar de faltar apenas seis meses para me formar
larguei a escola. Para isso tive que convencer o médico da
minha
necessidade
de
tranqüilidade
para
buscar
um
autoconhecimento que fundamentasse meu equilíbrio físico e
mental. Ele estava encantado com minha recuperação. Eu era
dócil e interessada, fazia perguntas pertinentes e aceitava sem
questionar suas determinações. Assim sugeriu aos meus pais que
acatassem minha decisão de me afastar temporariamente do
colégio. Talvez, quando eu estivesse melhor, pudesse fazer
alguns cursos lúdicos e terapêuticos como pintura, desenho,
música, etc.
Na verdade eu não queria voltar para a escola porque lá
estaria cheio de espiões. A diretora, os professores e os alunos,
todos estariam prestando atenção em mim e a menor falha seria
notada e comunicada.
Depois de um ou dois meses, disse a meus pais e ao Psiq
que vinha pensando em aceitar a sugestão do mesmo e começar
alguns cursos para preencher meu tempo. Eles adoraram.
Afirmei que gostaria de fazer cursos de áreas distintas para
conhecer mais gente e ampliar meus horizontes. Eles exultaram.
98
A garota do Espelho
Fiz minha inscrição em um curso de cabeleireira, um de
maquiagem, um de teatro amador e um de manequim, o último
com a desculpa de que queria melhorar minha postura. No
começo ficaram meio que de olho, mas com o passar do tempo
acabaram relaxando.
Eu havia ganhado algum peso, os exames de sangue
estavam normais e eu estava tão bem emocionalmente falando,
que o Psiq me deu alta. Fez um belo elogio à minha dedicação e
afirmou para meus pais que eu estava pronta para recomeçar a
vida.
O único senão era a rejeição que eu ainda apresentava
em relação à minha avó, mas o Psiq acreditava que seria apenas
uma questão de tempo para que eu superasse isso. Melhor não
forçar.
Depois da alta eu estava livre para executar a segunda
parte do meu plano: comecei a “puxar” meus horários, de tal
forma que eu sempre almoçasse na rua. Eu sempre pegava
dinheiro para o almoço e vivia largando as notinhas de
lanchonete e restaurante em cima dos móveis, ou jogando
99
Thais Leonardo
abertas no lixo da cozinha, onde ficavam bem visíveis para a
empregada, que reportava tudo para a mamãe.
Além disso, à noite eu me comportava muito bem. Não
comia muito, mas comia. Tranquilamente, sem ansiedade. Aos
poucos ninguém mais prestava atenção em mim. Tudo estava
normal novamente e a família feliz por ter vencido o problema.
Eu nunca comia na hora do almoço. Na janta enchia meu
prato de folhas para que o volume enganasse quem resolvesse
prestar atenção na quantidade de comida. Mas eu nunca deixei
de contar os pontos calóricos e sabia que estava consumindo
cerca de 400 calorias diárias. Comecei a disfarçar o
emagrecimento usando roupas largas e soltas.
Tinha aprendido várias técnicas de maquiagem e sempre
ostentava uma aparência saudável. O teatro tinha me ensinado a
chamar a atenção das pessoas para aquilo que eu queria que elas
notassem.
Eu tinha me destacado no curso de manequim e
começava a fazer pequenos comerciais e algumas fotos para
publicidade principalmente de lojas de roupas ou de artigos
esportivos.
100
A garota do Espelho
Foi então, em uma linda tarde de primavera, que vovó
morreu. A empregada a encontrou sentada no caramanchão.
Achou que ela estava dormindo e só percebeu que estava morta
quando se aproximou para entregar uma xícara de café recém
passado, seu único e grande vício, além da família.
Nas mãos ela tinha uma revista de moda, aberta em uma
propaganda de jeans, onde uma das modelos era eu.
101
Thais Leonardo
“Manequim,
seu sorriso é um colar de marfim. ”xix
Alta e magra. Magérrima. Investir firme na carreira de
manequim tinha sido meu passo seguinte. Desfilar parecia bem
melhor do que estudar álgebra, muito melhor do que estudar
qualquer coisa, além disso, eu já tinha decidido não voltar ao
colégio.
Sim, agora eu tomava as minhas próprias decisões. Já
fazia um ano que vovó tinha tido o enfarto fulminante que a
matou, eu tinha 19 anos, era maior de idade e ganhava meu
próprio dinheiro.
Poderia morar sozinha se quisesse, mas mamãe pediu
que eu ficasse em casa, e como eu viajava muito para desfiles no
interior ou em outros estados, parecia um desperdício manter um
apartamento para morar nele uma média de três ou quatro dias
por semana.
Quando estava em São Paulo sempre apareciam
trabalhos de modelo e como eu tinha curso de teatro e modéstia
parte sabia atuar, sempre era chamada para propagandas e até
bicos em programas de TV. Sabe como é, ficar sentada na
102
A garota do Espelho
platéia, enfeitando o pedaço, e fazendo cara de oh-como-estoume-divertindo cada vez que a câmera focava em mim.
Mulher raramente queima a imagem, mesmo que
participe de muitos eventos, porque temos o dom da
multiplicação. Maquiagem bem feita e uma boa peruca, e você
se transforma em outra pessoa num passe de mágica.
Quanto a desfilar, quanto mais, melhor. Eu nunca seria
uma top model internacional, tinha começado tarde, mas era
bem requisitada no país. Trabalhava bem, era profissional, se
necessário fazia minha própria maquiagem e meu próprio
cabelo, era educada, prestativa e pontual.
Tudo seria perfeito se não fosse a culpa pela vovó
somada a saudade imensa que sentia dela. E o fato de começar a
achar que estava engordando novamente.
Ninguém dizia nada, sinal de que ainda não era nada
assustador, mas eu conhecia meu corpo e percebia a necessidade
de um controle maior. Eu continuava tendo muito trabalho, mas
pelo sim, pelo não, vinha prestando mais atenção nas coxas, na
barriga, e nas vezes em que me olhava no espelho sempre
percebia uma ou outra dobrinha incomoda. Cheguei à conclusão
103
Thais Leonardo
de que tinha andado me descuidando e que estava na hora de me
cuidar melhor. Talvez massagens, ou caminhadas. Talvez
diminuir a ingestão de calorias. Eu faço parte daquele grupo de
pessoas que até água engorda. Meu metabolismo é lento e meu
corpo transforma tudo em gordura. Vou tirar o tomate da salada,
ele é redondo de tanta água, e acho que de alguma forma deixa
quem o come assim também. Melhor ficar firme nas folhas.
104
A garota do Espelho
“Garotos gostam de iludir
Sorriso, planos, promessas demais
Eles escondem o que mais querem
Que eu seja outra entre outras iguais”
xx
Sabe aquele lance do cuidado com o que desejas, porque
pode ser concedido, pois é rolou assim comigo, o sonho virou
pesadelo.
Como disse eu trabalhava muito, viajava muito. Quando
isso acontece você acaba conhecendo todo o pessoal do meio. É
muito comum ficar encontrando e reencontrado as mesmas
pessoas pelo país afora.
Eu nunca fui muito requisitada pelos homens. Com
franqueza o único que já havia se aproximado de mim tinha sido
Alex, uma vida antes dessa. Com o tempo desencanei, cheguei à
conclusão que devia ser meu cheiro. Claro que eu não cheirava
mal, mas talvez faltasse uma dose de feromônio. Tinha lido um
artigo sobre isso em um dos bastidores da vida. Era um tipo de
substancia química exalada pelas pessoas que fazia com que os
outros a achassem atraente ou não. Isso não tinha nada a ver
com beleza, sabia que me achavam bonita, tinha a ver com atrair
ou não o sexo oposto.
105
Thais Leonardo
Estava tão convencida disso, que tinha afastado
completamente de meus pensamentos a possibilidade de
encontrar alguém. Nos últimos dois anos eu tinha estado tão
ocupada em emagrecer, enganar minha família e ganhar
dinheiro, que contato amoroso tinha ficado para um segundo ou
terceiro plano.
Estávamos, eu e um bando de manequins, representando
diversas agências, em um mega evento em uma das mais belas
capitais nordestinas. Quase uma semana de desfiles e festas,
uma programação intensa marcando o início dos lançamentos
para a próxima temporada.
Aproveitando
tantos
profissionais
especializados
disponíveis, várias lojas e ateliês aproveitavam para coletar
material para a confecção de seus folders de divulgação. Da
mesma forma, algumas revistas de moda e beleza, na esteira do
grande evento, e aproveitando a natureza exuberante, nos
chamava para fotos que comporiam a edição.
Assim, estávamos trabalhando muito: fotos, desfiles,
gravações de comerciais para empresas locais e festinhas. Claro
que cobramos para irmos a festinhas, muita gente paga um bom
106
A garota do Espelho
cachê para passarmos algum tempo em um evento social.
Estávamos faturando bem, dormindo pouco, e eu, comendo
menos ainda.
Eu e um colega estávamos na praia tirando fotos para
uma campanha de chinelos de borracha. Os modelos eram lindos
e coloridos, um charme. Quem vê uma foto em revista, não tem
a idéia do trabalhão que dá a elaboração de uma campanha
promocional. São dezenas e dezenas de fotos, para no fim cinco
ou seis serem utilizadas, o resto fica em arquivo do fotografo ou
da empresa (dependendo do contrato) e nunca virá a público.
Uma equipe enorme trabalha durante horas, fotógrafo,
iluminadores, maquiador, cabeleireiros, roteiristas, entre outros.
Acredita que já cheguei a fotografar fotos de praia dentro do
estúdio, porque a natureza estava atrapalhando? Já rolou. Mas
neste dia tudo seria ao natural, em um cenário mágico criado por
Deus.
Eu e o colega fotografamos o dia inteiro. A idéia era a de
um jovem casal apaixonado em uma viagem de férias ao
paraíso, claro de sandálias. Trocamos de roupas algumas vezes:
maios, sungas, cangas, shorts, vestidinhos. Tudo para provar que
a sandália ficava bem com tudo. Foi um trabalho gostoso de
107
Thais Leonardo
fazer. A equipe estava integrada e eu e o meu parceiro
estávamos fazendo bem o papel de apaixonados. Tão bem, que
ele começou a dizer gracinhas no meu ouvido, a apertar minha
cintura um pouco mais do que o necessário, a aproveitar cada
toque ou olhar para passar a mensagem: eu quero você.
No começo eu achei que estava fantasiando, mas depois
suas palavras deixaram bem claro que era real. Céus! Será?
Comecei a ficar ligeiramente ansiosa, afinal ele era um gato e eu
não era das mais bonitas do grupo, além de estar meio acima do
peso. Porque eu? Bom, ele deveria saber, porque estava
atacando de verdade. Paramos quando o sol já estava se pondo.
Esta noite não estávamos escalados para nenhum dos desfiles.
Nossa escala era para os marcados para o dia seguinte, o dia do
encerramento do evento, no entanto aconteceria uma festa
imensa no Iate Clube local, e ele estava justamente me
chamando para ir com ele quando fomos interrompidos pelo
representante da empresa dos chinelos e pelo representante da
nossa agência.
Topam um extra hoje à noite? As fotos ficaram tão boas,
que pensamos na possibilidade de aproveitarmos vocês dois
para as fotos da linha urbana e a linha night. Vai ter uma festa
108
A garota do Espelho
no Iate Clube hoje à noite e seria interessante fotos do casal
curtindo a noite, a garota usando as sandálias de salto. O cachê
é bom!
Eu e ele nos entreolhamos, pensando na sorte que
tínhamos, e o cara da sandália entendeu errado achou que era
hesitação e melhorou a proposta: Vocês podem ficar com todos
os pares que usarem, inclusive os de hoje na praia. Claro que
topamos.
Deixa eu explicar rapidinho uma coisa: manequim e
modelo não ganha as peças que veste nos desfiles e nas
campanhas. A gente usa e deixa lá. As únicas peças que
costumam ficar com a gente são calcinhas em desfiles e
catálogos de lingerie. Creio que por uma questão de higiene. Eu
pelo menos, que fiz muito catálogo de lingerie no comecinho da
carreira sempre recebi as peças fechadas e fiquei com elas. Mas
o resto, os vestidos maravilhosos e os sapatos divinos, a gente
devolve.
Seria sensacional se ficássemos com todos os vestidos,
blusas, calças e sapatos. Se fosse assim manequim e modelo só
usaria grife não é? Mas não rola. Quer um vestido daqueles?
109
Thais Leonardo
Compre. Ou vire a queridinha do costureiro para que ele de um
no seu aniversário ou empreste um de vez enquando na base de
uma mão-lava-a-outra: você tem uma roupa bacana pra balada e
ele divulga a coleção. Só vale pra ocasiões cobertas pela mídia,
tipo naquelas sessões quem-veste-quem. Bom demais.
A noite no Iate Clube foi memorável sob todos os
aspectos. Trabalhamos bem, ganhamos dinheiro e produtos, e
iniciamos um romance tórrido. Pelo menos era o que eu achava.
Como vocês sabem, eu era uma estreante no assunto. Ele
não sabia, e esta é a única desculpa que hoje enxergo. Ele
realmente achava que eu era do babado. E nem beijo de boca eu
tinha dado. Me recuso a classificar os selinhos trocados no
teatro e em campanhas publicitárias como beijos.
Conversamos, dançamos, trocamos mil beijos na festa.
No começo eu estava meio dura, nada que umas doses de vodka
não resolvessem. Tenho que admitir que o cara sabia levar.
Acabamos a noite no quarto dele. Não foi maravilhoso, não foi
lindo, foi normal, acho. Talvez eu não estivesse pronta, ou tenha
criado uma expectativa tão absurda que nada pudesse nem
chegar perto. De qualquer forma também não tinha sido um
110
A garota do Espelho
horror. E o que eu queria mesmo era um carinho, dormir
abraçadinha, chegar de mãos dadas no dia seguinte mostrando
pras outras meninas: sintam o gato que eu peguei.
Mas minha noite romântica terminou mal tinha
começado, ele saiu do banheiro e disparou um: amei gata, mas
estou cansado, e a gente precisa dormir, é só bater a porta
quando sair.
Fiquei petrificada. Como assim? Ele tava me mandando
embora?
Pensei que a gente fosse passar a noite juntos, tomar
café da manhã, conversar um pouco.
Gata, gosto muito de você, mas não suporto grude. Foi
legal, nos divertimos, a gente se vê por ai.
Juntei minhas coisas, me arrumei mecanicamente e sai
com o rabo entre as pernas. Acho que quando fechei a porta ele
já estava dormindo.
O dia seguinte foi terrível. Pela primeira vez desde que
tinha abraçado a carreira cheguei atrasada. A sensação que tive
foi de que todos pararam o que estavam fazendo para me ver
111
Thais Leonardo
passar. Não tinha conseguido pregar os olhos e só perto da hora
do almoço cai em um sono agitado que só serviu para acentuar
minhas olheiras e minha dor de cabeça. Todo mundo já estava
pronto e eu ainda nem estava maquiada. Por fim, o coordenador
da marca para qual eu desfilaria começou a arrumar minha arara,
fazendo sinal para que a cabeleireira e o maquiador cuidassem
de mim. Quando anunciaram a grife eu já estava pronta e no
meu lugar. O colega da noite anterior estava relativamente
próximo, flertando abertamente com uma morena alta e
lindíssima, pertencente ao staff local e cotada como uma das
potenciais finalistas do próximo Top Faces. Ele mal me
cumprimentou quando me viu. Acho que foi o profissionalismo
que fez com que eu conseguisse chegar ao fim, porque minha
vontade era sair correndo e sumir.
Depois do término do evento peguei o primeiro vôo de
volta pra Sampa. Estava um lixo e realmente não estava a fim de
voltar no dia seguinte com um monte de pessoas do mundo da
moda no mesmo avião. Sabia que talvez alguns viajassem
naquele mesmo dia, mas com certeza não tão rápido quanto eu.
Na boa, eu já havia saído do hotel com essa idéia, já tinha
providenciado a passagem pela internet, e feito o pré check-in
112
A garota do Espelho
então levei minha bagagem para o desfile, era só chegar ao
aeroporto e embarcar.
Sentei e desabei. Chorei pra caramba. Como entrei numa
roubada daquelas. Alguém segurou minha mão e levei o maior
susto. Nem acreditei quando vi quem era. Mas estava tão triste,
que nem liguei, encostei a cabeça no peito dele e lavei a alma.
113
Thais Leonardo
“Aprendi a me virar sozinha
E se eu to te dando linha
É pra depois te abandonar...” xxi
Alex, doce e ingênuo Alex.
Chegou na hora errada,
quando eu não acreditava em nada, nem em mim nem em
ninguém. Foi o típico caso do inocente pagar pelo pecador.
Contei tudo pra ele. Despejei cada burrada dos últimos
tempos. Estava sentindo um prazer mórbido em fazer aquilo.
Afinal, ele tinha sido o único cara na face da terra a demonstrar
um interesse genuíno em mim. Era bom que soubesse do que
tinha escapado.
Quando terminei estávamos chegando a São Paulo. O
rosto dele estava sério e triste, mas não chocado, como se fosse
normal ouvir sobre as mazelas humanas de forma tão dura e
crua.
Ele parecia muito jovem e muito maduro ao mesmo
tempo. Pelo que me lembrava ele tinha dois anos mais que eu,
vinte e dois então. Ele era o oposto de mim, porque com 20 anos
eu me sentia acabada e imatura.
114
A garota do Espelho
Expus meus pensamentos para ele, que sorriu e
concordou que eu era meio infantil, e me convidou para tomar
um sorvete. Tomamos um sorvete de massa ali mesmo no
aeroporto, depois ele me deu uma carona, porque seu carro
estava no estacionamento.
Quando me deixou na porta de casa, perguntou
timidamente, mas sem gaguejar, se eu estaria em São Paulo na
noite seguinte, e se estivesse gostaria de ir a um cinema com ele.
Cinema! Fazia séculos que eu não entrava em um. Concordei e
ele ficou de me pegar as 19:00 horas.
Abriu a porta do carro para que eu descesse, levou minha
bagagem até a entrada e esperou que eu abrisse para me ajudar a
colocar tudo para dentro. Deu um beijo na minha testa e foi
embora. Fiquei parada um tempo antes de subir pro quarto,
abismada pelo contraste: um tinha me agarrado e usado sem
nenhum respeito por meus sentimentos, o outro tinha tanto
respeito que me beijou na testa. Não consegui decidir de qual
dos dois estava sentindo mais raiva.
Ficamos juntos exatos doze meses, um ano, o que deixou
claro que eu namorava o rei da paciência. Fiz tudo para estragar
115
Thais Leonardo
a relação. Era só saber que ele não gostava de algo que eu fazia.
Além disso, criticava sem parar tudo que ele curtia.
Tinha voltado a beber para não sentir fome. Bebia muito
e diariamente. Também tinha voltado a usar laxantes e
diuréticos.
Os trabalhos começaram a rarear e eu tinha certeza de
que era porque estava gorda demais, o que me levava a comer
cada vez menos. Só agora sei que era justamente ao contrario, eu
estava pateticamente cadavérica. Ser magra é uma coisa, ser um
feixe de ossos sem forma era outra. Mas o espelho devolvia uma
imagem bem gorda e eu acreditava nos meus olhos.
Alex começou a tentar fazer apenas programas caseiros
na tentativa de evitar que eu me embriagasse, sabia que a
presença de meus pais e de meus irmãos ainda era um fator de
controle sobre meus desvarios. Mas é claro que não tinha como
justificar não querer sair, principalmente comigo toda arrumada
e fazendo beicinho, na frente de todos.
Ele passou um ano tentando fazer com que eu comesse,
com que eu me tratasse, com que eu não bebesse, que eu fosse a
um médico. Obviamente nunca conseguiu nada, provando ser
116
A garota do Espelho
correto o ditado popular que diz que santo de casa não faz
milagre. Hoje sei que se eu fosse uma estranha ele teria sido
mais duro comigo, como a Doc, mas ele me amava e tinha medo
de me machucar e eu deitava e rolava, abusado ao máximo da
sua bondade.
Acho que não contei que quando nos reencontramos
Alex estava no último ano de psicologia. Ele se formou com
louvor e foi escolhido orador da turma. Estava todo mundo lá no
dia da colação de grau: minha família e a dele. Nossos pais e
minha irmã, uma das moças mais bonitas, exuberante nos seus
dezoito anos. Meu irmão e a noiva, e o irmão dele e a esposa.
Ela grávida de seis meses. Acho que foi este o fator que doeu
mais e acabou deflagrando a crise.
Algumas semanas antes eu achei que estava grávida.
Fiquei maluca. Louca de vontade de contar pra todo mundo, mas
resolvi fazer um teste antes. Afinal filho é coisa séria, o Alex
estava fazendo as últimas provas, e ainda nem tínhamos ficado
noivos. Com certeza seria um choque para todos. Estranhamente
eu estava feliz. Vá entender as mulheres.
117
Thais Leonardo
Sem que ninguém soubesse procurei um médico e ele
descartou a gravidez. Ele falou em amenorréia, que é a
interrupção dos ciclos menstruais, no meu caso, segundo a
abalizada opinião dele só de olhar para a minha cara: por
desnutrição. Levantei e sai, antes que ele começasse com a
lengalenga sobre recuperação de peso corporal e reeducação
alimentar. Balela. Toda vez que alguém vai ao médico é a
mesma coisa ou é falta ou excesso de alimentação ou é virose.
Médico não sabe de nada.
Mas a barriga da minha cunhadinha estava me fazendo
mal. Sei lá, inveja. Culpa do Alex que não prestava nem pra me
engravidar.
Já entendeu qual era meu estado de espírito naquele dia?
Espírito de porco. Tava chata, emburrada, nem eu estava me
agüentando. Não devia ter ido, mas se não fosse teria magoado o
Alex. Devia ter saído logo que terminou a colação, mas daí ele
teria insistido em ir comigo e estragaria a alegria de todos.
Acabei ficando e indo para o restaurante onde o pai de
Alex tinha reservado uma mesa para um jantar comemorativo. O
baile só aconteceria em janeiro, e todos queriam festejar de
118
A garota do Espelho
alguma forma aquele dia. Teria dado tudo certo se o velho não
tivesse pedido vinho, e se o vinho não fosse tão bom. Comecei a
beber, e daí, queria comemorar assim como todo mundo.
Minha mãe fez que ia arrumar meu cabelo e pediu que eu
parasse de beber, irritante pra caramba isso. Devia ter me tocado
que tinha algo errado, porque fiz algumas piadas e ninguém riu.
Tinha uma pista e eu queria dançar. Alex formou um não com a
boca quando insisti. Se ele não queria ir, eu ia. Levantei e
comecei a dançar. De longe vi quando minha mãe cobriu o rosto
com as mãos. O pai dele estava muito vermelho, o homem devia
ir ao médico, devia ser pressão alta, gente assim não pode beber.
Alex estava petrificado na cadeira. Quem acabou com minha
graça foram meus irmãos, um de cada lado, praticamente me
arrastaram pro carro. Quando tentei discutir, minha irmã jurou
que se eu abrisse a boca ela me arrebentaria. Ela estava com
uma cara tão feia que resolvi não duvidar, não que eu tivesse
medo da pirralha. Meu irmão arrancou com o carro antes que eu
pudesse ver se mais alguém ia conosco. Apaguei antes de chegar
em casa, me contaram que ele teve que me carregar pro quarto.
Depois disso Alex desistiu de mim.
119
Thais Leonardo
“Eu sou o seu sacrifício
A placa de contramão
O sangue no olhar do vampiro
E as juras de maldição “xxii
Sabe o fundo do poço? Pois é ninguém nunca acredita
que chegou lá. Tá fazendo tudo errado, besteira em cima de
besteira, mas ainda acha que esta dominando a situação.
Alex foi pra Europa fazer um curso de especialização de
um ano. Passou rapidinho antes de embarcar, uma semana
depois da colação, dizendo que não carregava mágoas e sim uma
grande frustração por não ter conseguido me ajudar. Lógico que
afirmei que não precisava de ajuda de ninguém, muito menos
dele.
Pensei que ele fosse dizer alguma coisa pela forma como
olhou para mim, mas deu de ombros, murmurou um: Se cuida, e
foi embora. Dizem que os ratos sempre abandonam o navio
quando ele esta para afundar.
Nos tempos seguintes, muitos e longos meses, eu estava
ainda mais insociável do que o normal. Passava muito tempo
dormindo. Evitava encontrar as pessoas e comia cada vez
120
A garota do Espelho
menos. Quando comia miava. Depois de tanto tempo tinha
voltado a miar. Sentia muito frio, o que fazia com que eu
estivesse sempre com roupas pesadas, abrigos e malhas. Talvez
este tenha sido o motivo pelo qual demoraram tanto para
perceber a gravidade do meu caso.
Minha pele estava extremamente seca e coberta por uma
penugem estranha no meu rosto e no meu corpo, agora sei que
era lanugo, um dos sintomas da minha doença, e uma defesa do
organismo, uma tentativa de reter o calor e manter o corpo
aquecido.
A ironia estava no fato de que quanto mais peluda eu
ficava, mais meus cabelos enfraqueciam e começavam a cair. Eu
estava descendo a ladeira, e morrendo de medo, ainda que não
soubesse exatamente do que.
Os barulhos me incomodavam muito. Tudo me cansava e
me irritava.
Sentia muita falta de Alex, mais do que gostaria de
admitir. E constantemente tentava imaginar se ele em algum
momento pensava em mim ou sentia minha falta.
121
Thais Leonardo
E eu tinha voltado a levar a mania de limpeza e de
organização ao extremo. Quando não estava deitada, ou
tomando banho, estava arrumando meu quarto. Fazia isso com
mil interrupções porque vivia fatigada, mas não conseguia parar
de arrumar e rearrumar as gavetas, os móveis e os armários.
Nessas acabei encontrando as fotos de quando era bebe. Um
bebê gordo e cheio de dobras. O inicio de tudo, de todo o meu
sofrimento, de toda a minha dor.
122
A garota do Espelho
“Tudo pisado, tudo partido.
Tudo no chão jogado. ”xxiii
Foi então que aconteceu a crise que me trouxe para cá.
Aquela onde quebrei a caixinha de música da vovó.
Cheguei ao hospital em um estado bastante crítico. Com
um enorme sangramento do esôfago e caquexia. Fiquei entre a
vida e a morte, mas acabei me recuperando.
O diagnóstico foi taxativo, eu andava acompanhada pelas
duas maiores inimigas do peso a Mia e a Ana, respectivamente
bulimia e anorexia.
Explicaram para minha família que algumas pessoas,
normalmente meninas, por pavor de engordar, ou por quererem
muito ser magras acabam se utilizando de várias estratégias para
perder peso.
Essas pessoas, assim como eu usam laxantes e diuréticos,
e provocam vômitos na tentativa de conseguirem um corpo
magro de acordo com o modelo de beleza atual. Então
mergulham num ciclo vicioso de distorção da própria imagem,
luta para perda de peso, problemas físicos e psicológicos.
123
Thais Leonardo
Explicaram também que não raro estas pessoas chegam à morte,
ou por inanição, ou por suicídio.
Quando questionados se eu voltaria logo para casa,
disseram que uma vez que meu diagnóstico tinha sido fechado e
que eu apresentava os distúrbios há muitos anos deveria ser
submetida a um tratamento elaborado por uma equipe
multidisciplinar.
Eu teria a atenção de um clinico, de um psicólogo, de um
psiquiatra e de um nutricionista, e ficaria internada por algum
tempo, talvez alguns meses, pois apresentava uma complexa
interação de situações de debilidade fisiológica e de problemas
emocionais.
A idéia seria a recuperação do peso e das condições
físicas. Mas principalmente terapias e até mesmo uso de
antidepressivos, tudo com o objetivo de que eu viesse a superar
todos os problemas psicológicos, a insegurança em relação ao
próprio corpo, a própria beleza, e a própria capacidade de ser
amada, sem o que sempre haveriam recaídas.
Isso levaria tempo. Não podiam precisar quanto.
124
A garota do Espelho
“As meninas são minhas
Só minhas
As minhas meninas
Do meu coração” xxiv
Papai será para sempre o homem mais lindo do mundo.
Mesmo assim, com os olhos vermelhos e inchados de chorar,
com o cabelo levemente grisalho nas têmporas despenteado de
tanto ele passar as mãos por eles. A roupa amassada denuncia a
noite insone em algum canto do hospital. O desespero em seus
olhos faz com que eu aperte os meus com força e deseje que ele
vá embora. Não suporto vê-lo assim.
Não sei há quanto tempo estou aqui, nem sei há quanto
tempo ele esta. Mas deve ser muito, pela aparência dele e pelas
dores que sinto no corpo.
Existe um tubo na minha garganta. E estou tão fraca que
mal consigo apertar a mão dele, tentando confortá-lo. Sei que é
tudo culpa minha. A máquina ao lado da minha cama começa a
apitar e uma enfermeira constata uma alteração qualquer. Ela
esta ansiosa - diz ela ao meu pai.
125
Thais Leonardo
Logo em seguida ela aplica alguma coisa no fio ligado ao
meu braço - conte até cinco – mal chego ao dois.
Na próxima vez, eu já não tinha o tubo, mas em
compensação não tinha vontade de falar. Ficava olhando a
janela e pensando o que existiria além dela. Ainda passava mais
tempo dormindo do que acordada.
A partir daí ele lia para mim. Coisas bem simples no
começo, livros infanto- juvenis pegos nas minhas estantes. Eu
ouvia sua voz grave e suave lendo as aventuras de personagens
de minha infância e adorava.
De certa forma eu sempre seria a sua menina. E eu soube
que ele nunca deixaria de estar comigo, de cuidar de mim, e que
se culpava muito pelo que acreditara ser uma negligência sua.
Ele sofria tanto, que comecei a me obrigar a melhorar,
nem se fosse para poupá-lo da dor de me ver prostrada naquela
cama.
“Minha mãe alisa de minha fronte
todas as cicatrizes do passado “xxv
126
A garota do Espelho
Cada vez que eu acordava ela estava lá. Foi quando
descobri que sentimentos têm cheiro. No começo ela cheirava a
desespero, depois a perplexidade, por último a mais simples e
pura tristeza.
Ela olhava para mim tentando encontrar naquela
desconhecida maltratada a menina que ela havia gerado, e não
era tão boa atriz para agir como se entendesse. Ela não entendia,
não conseguia imaginar o que realmente tinha acontecido, mas
não fazia perguntas, e eu era grata por isso.
Ela simplesmente ficava por ali, sentada na poltroninha
desconfortável no canto do quarto simples, com cara de
cachorro que caiu da mudança. Não tentava se aproximar, só
fazendo isso para me entregar um copo d’água ou me ajudar a ir
ao banheiro. E mesmo quando nos tocávamos não dizia nada
além do necessário para se certificar de que eu estava
confortável.
No começo eu pensei que ela estava me dando um
tempo, afinal eles, o pessoal da clinica, me mantinha meio
127
Thais Leonardo
dopada. Mas depois percebi que na verdade ela estava se dando
um tempo.
Minha mãe sempre saia quando outra pessoa chegava,
fossem meu pai, meus irmãos, algum dos médicos ou a Doc.
Acho que ela aproveitava para arejar, tomar um café na cantina,
se é que aquele lugar tinha uma cantina, ou dar uma volta pelo
jardim. Mas sempre voltava assim que saíssem. Às vezes eu
achava que ela ficava do lado de fora da porta, esperando para
entrar. O fato é que nunca me deixava sozinha.
128
A garota do Espelho
“Que um dia ele vai embora, maninha
Prá nunca mais voltar...” xxvi
Eles sempre foram fundamentais. No intimo eu sempre
soube disso, não sei como pude esquecer.
Meus irmãos foram a mola que me obrigou a ir em
frente, eles não deixariam por menos. Com eles não teve choro e
nem mãozinha na cabeça, os dois resolveram usar outro tipo de
estimulo, resolveram me enlouquecer de vez.
Minha irmã, depois do susto inicial com meu surto em
casa, resolveu que se eu era forte o suficiente para quebrar
coisas, era forte o suficiente para ouvir verdades. Não fez isso
com raiva ou com agressividade, mas com uma calma e uma
determinação que mostrava que apesar de seus dezenove anos
era bem mais madura do que eu com meus vinte e dois.
Disse que não ia tolerar nenhuma ceninha de Ai! Coitada
de mim! Que sabia da gravidade do problema porque conhecia
alguns casos bem graves ocorridos com garotas e até com
garotos do colégio. Contou que uma menina da sala ao lado
havia morrido e que os professores tinham organizado um
movimento de combate a bulimia e a anorexia.
129
Ela foi a
Thais Leonardo
primeira pessoa a dar nome aos bois, quando eu ainda estava
deitada na cama hospitalar, cheia de tubos e acreditando que era
a pessoa mais infeliz do mundo, porque com certeza eles iriam
me engordar como um porco.
Quando eu tentei negar, ela levantou um dedo até os
lábios fazendo um sinal de silêncio. Tão séria, que eu me calei.
Então ela falou do seu amor por mim. Falou do quanto ela se
orgulhava da pessoa que eu era antes de pirar. Deixou claro que
não gostava do que eu tinha me tornado. E então me fez uma
proposta que classificou como irrecusável: Ela estaria comigo,
ao meu lado durante todo o tratamento. Daria apoio e força, mas
não toleraria mais nenhum tipo de agressividade, com ninguém.
Nem com os outros nem comigo mesma. No acordo também
estava a obediência irrestrita às ordens médicas, a leitura
conjunta de alguns livros e materiais que ela traria, e a proibição
completa de qualquer tipo de auto-piedade. A pequena tirana
continuou com uma ladainha repleta de obrigações e vedações
que me deixou tonta e com a sensação de missão impossível. Ela
falava e falava e eu olhava atônita para seu rosto esperando um
vestígio de humor que não encontrei. Mas é claro que aquilo
130
A garota do Espelho
tudo só poderia ser piada, afinal eu sabia que meu estado exigia
paciência e cuidados, foi o que a Doc havia dito.
Então ela chegou bem perto e disse: seu estado exige
determinação e força de vontade. Eu estou aqui porque te
conheço e sei que você consegue. Se você quiser lutar eu estarei
ao seu lado, porque sei que você é mais que pele e osso, que
você é a neta da vovó e minha irmã querida. Agora, se achar que
encarar a vida para você é demais, me avisa que eu vou embora
e te deixo morrer em paz.
Eu comecei a chorar e pedi que ela ficasse. Seus olhos
estavam secos, mas sorriu de mansinho e sussurrou baixinho
enquanto apertava de leve minhas mãos: É isso ai maninha,
vamos juntas mandar este fantasma embora.
131
Thais Leonardo
“Sei que você também tem
motivos pra rir e chorar
mas saiba que o céu só é azul
devido as profundezas do mar” xxvii
Meu irmão se manteve fiel ao gênero surfista sangue
bom ê-ai-brother. Só entrou no meu quarto quinze dias depois
do surto, depois que todos já haviam dado seus recados, não
falou absolutamente nada sobre a doença, sobre o risco de vida
que eu tinha corrido, sobre as causas ou as conseqüências que
ainda seriam enfrentadas.
Ele simplesmente entrou e brilhou como um raio de sol
em um lugar escuro. Contou mil histórias engraçadas sobre a
sua última viagem para o litoral. De como uma gatinha que
havia conhecido na praia havia gritado até perder a voz por ter
confundido dois golfinhos que queriam brincar com a prancha
com dois tubarões assassinos.
Seu riso era fácil, sonoro e contagiante, e quando dei por
mim estava rindo com ele. O meu era baixo e rouco, áspero
como a garganta agredida da qual ele brotava, mas mesmo assim
estava lá, e me surpreendia pelo fato dele ainda existir. Tudo
bem que era um riso estranho, mas era meu e estava lá.
132
A garota do Espelho
Meu irmão alheio as minhas sensações continuava seu
diário de viagens. De repente parou me olhou e disse na lata:
Menina, você esta um lixo. Tá mais magra que meu remo e mais
seca que uma ameixa. E emendou uma história fantástica sobre
um peixe que eles secaram ao sol depois de salgado, e que
serviu de jantar ao gato da tia de um amigo, pois eles acharam o
bicho muito seco e cadavérico para comerem. E que o pobre
gatinho quase morreu engasgado com uma espinha do tal peixe,
o que fez que a pobre senhora os expulsasse de sua casa de
hospedes, o que os obrigou a dormir em uma pousada mal
assombrada onde existia um fantasma muito parecido comigo e
que tinha o mau costume de passar pelos buracos de fechadura.
Ha! Ha! Ha!..Muito engraçado.
Quando ele finalmente foi embora, rendido pela minha
mãe, fiquei muito grata pelo costumeiro silêncio dela.
Meu irmão voltou muitas e muitas vezes. Assim como
minha irmã esteve presente em todas as fases de meu
tratamento. Sempre tinha uma história engraçada, uma piadinha
sem graça, uma frase de efeito.
133
Thais Leonardo
Os dois nunca permitiram o desânimo. Foram e são o
meu equilíbrio. Uma noite, quando eu estava com muito frio.
Uma crise de hipotermia gerada pela falta de gordura no corpo,
os dois recordando os tempos de criança em que dividíamos a
cama dos nossos pais, se enfiaram cada um de um lado na cama
do hospital para me aquecer. A enfermeira que entrou atraída
pelos risos altos encontrou meus dois
loucos irmãos
praticamente dependurados na maca, agarrados na grade,
grudados em mim e com a maior parte do corpo, principalmente
as bundas, para fora do leito.
Ela torceu o nariz e voltou para trás, não sem antes
resmungar alguma coisa sobre acréscimos de custos na hipótese
de cama quebrada.
Meses depois perguntei a minha mãe porque meu irmão
só tinha vindo me ver quinze dias depois da internação. Ela
franziu a testa confusa e afirmou que ele tinha estado lá desde o
primeiro dia. Quando perguntei onde, que eu não o tinha visto,
ela respondeu que na capela, rezando por minha vida.
134
A garota do Espelho
“Sonhar mais um sonho impossível...” xxviii
Por saber que não merecia, deixei de acreditar que um
dia o veria novamente. Algumas vezes sonhava com ele, e
nesses sonhos eu recuperava seu amor e seu respeito.
Assim que sai da cama descobri que além da janela havia
um jardim, lembrei de vovó e estabeleci minha primeira meta:
um dia descer àquele jardim.
Eu tinha outras: ficar curada, visitar o tumulo de vovó,
voltar para casa, e um dia escrever para Alex e contar o quanto
ele tinha sido importante, ainda que na época eu fosse incapaz
de perceber isso.
Ouvi a porta se abrir e virei para receber minha irmã que
tinha ido buscar outra manta para minhas pernas. E ele estava lá.
Achei que estava delirando novamente, mas ele atravessou o
quarto e me pegou em seus braços.
Comecei a chorar de mansinho enquanto ele me
embalava. Alex....
135
Thais Leonardo
“Chega de mágoa
Chega de tanto penar” xxix
E um dia sem mais nem menos para de doer. Ou melhor,
você decide que não vai mais deixar doer.
Você decide que já deu. Que vai levantar, sacudir a
poeira e tocar o barco.
Você decide deixar de ser farol alternando claro e escuro.
E assume a luz.
Sabe o que é sensacional quando se assume a luz? É que
você se torna outra pessoa. Você se da uma nova chance de
recomeçar, de refazer o seu caminho, de mudar as escolhas.
Não estou falando de apagar o passado, ou de esquecer
os erros. Tanto uns quantos os outros foram fundamentais para a
construção da pessoa que você se tornou, e conhecê-los bem
pode evitar que você passe a vida rebobinando e assistindo o
mesmo filme sem parar, até que finalmente consiga mudar o
final, e ele não seja tão feliz.
136
A garota do Espelho
Talvez algumas pessoas, talvez você que esta lendo estas
páginas pense: Credo! O que existe de feliz em uma história
dessas. Eu responderia sem pestanejar: o final!
Desculpa. Não resisti ao humor. Deve ser influência dos
meus irmãos.
No começo eu escrevia a mão e guardava os papéis.
Como ainda estava na fase meio-totalmente-bagunçada, ia
guardando de qualquer jeito dentro das gavetas. Foi então que
minha irmã, a miss-deixa-que-eu-dou-um-jeito, resolveu digitar
tudo.
Não vi problema nenhum em entregar as folhas pra ela.
Afinal, ela lia cada linha mal ela saia das minhas mãos. Tivemos
algumas brigas por isso. Porque ela estava tão mergulhada no
papel de critica literária que ficava sugerindo alterações. Pô, é a
minha história. Segundo a Doc, minha terapia ocupacional, ou
seja, lá como seja seu nome técnico, mas minha. Então nada de
alterações, de adaptações, de sugestões. Apenas a verdade.
Verdade nua, crua, feia, cruel, mas definitivamente libertadora.
Assim, entreguei as primeiras folhas para ela, mas entrei
em crise no meio da madrugada. Queria tudo de volta. Não
137
Thais Leonardo
conseguia dormir sabendo que as páginas não estavam ali. Era
como se tivesse entregado uma perna ou um braço. Fui ficando
nervosa, começando a perder o controle. Resultado, papai teve
que vir, plena uma hora da madruga, trazer minha irmã com a
pastinha de papéis. Dormi abraçada com ela. Triste por estar
deixando claro que estava muito longe da cura.
Esperei que minha irmã soltasse um sonoro: fresca! Mas
isso não aconteceu, o que por algum motivo obscuro me
entristeceu ainda mais. Ao invés disso, ela deitou ao meu lado,
as duas apertadinhas na cama de solteiro. Colocou o braço sob
minha cabeça e me puxou para seu peito.
Desculpa tá. Eu não devia ter levado seu filho embora.
Não é meu filho!
É como se fosse. Você esta em processo de gestação. E
eu esqueci como grávidas podem ser emotivas.
Eu estava tão fragilizada que levei um tempo para
perceber que ela estava literalmente tirando uma com a minha
cara. Olhei para seu rosto, que obviamente, estava quase
explodindo em gargalhadas. Mas antes que eu começasse a
138
A garota do Espelho
reclamar, ela puxou minha cabeça novamente para seu colo,
acariciando meu cabelo e murmurando bem baixinho: dorme
fresquinha, do meu coração!
No dia seguinte papai voltou trazendo um computador
que foi instalado na mesinha do quarto. Minha irmã recomeçou,
ou melhor, começou a realmente digitar tudo. A coisa entrou em
um ritmo meio linha de montagem: eu escrevia, ela lia, digitava
e arquivava os originais que ficavam bem ao alcance de meus
olhos, em um pequeno arquivo que papai comprou. Aliás, as
enfermeiras
brincavam
dizendo
que
nós
estávamos
transformando o quarto em um pequeno escritório.
Quem visse poderia imaginar que o resultado seriam
quinhentas ou mesmo mil páginas de um drama urbano
surpreendente. Realmente devo ter rabiscado e rasgado mais de
mil folhas nos seis meses que passei na clinica. Talvez umas dez
mil folhas de sulfite. O que me deixa com algum remorso
quando penso nos eucaliptos necessários para tanto papel.
Mas a minha história ainda é curta, porque ainda sou
muito jovem, mesmo que em muitos aspectos me sinta muito
139
Thais Leonardo
velha. Uma história muito curta, muito pesada, muito feia, muito
verdadeira. Minha história.
Em alguns momentos, quando tive que falar dos garotos,
ou da bebida, hesitei. Doc disse que eu estava escrevendo para
mim e para ela que esta presa em um juramento de sigilo
profissional bem parecido com o segredo de confissão dos
padres, e que eu não precisava mostrar para mais ninguém.
Mas desde o começo eu sabia que outras pessoas leriam.
Minha experiência foi com minha irmã. Ela que leu tudo antes
dos outros. Ela que esteve comigo neste processo, foi mudando
com a leitura. Às vezes fazia perguntas sem fim, querendo saber
detalhes sobre determinadas situações, como por exemplo, como
era fácil comprar laxantes, diuréticos e outras besteiras que
tomei. Outras vezes ficava quieta, quase sem fôlego, como
quando escrevi sobre a promiscuidade sexual, que maculava
meu corpo e destruía minha autoestima. Nestas horas ela lia,
digitava e depois me abraçava apertado. Lógico que sendo
minha irmã o abraço vinha seguido de um carinhoso: babaca!
Eu me reencontrando e ela me conhecendo, e por tabela
se questionando. Eu fui crescendo e ela foi amadurecendo. No
140
A garota do Espelho
fim, ela segurou minhas mãos e agradeceu, afirmando que
graças ao fato de eu ter ido ao inferno, ela decididamente iria
permanecer no céu. Seu tom era jocoso, como sempre, mas
julguei ver um brilhinho extra em seus olhos.
Foi quando decidi que quando estivesse pronto faria
cópias extras. O original com certeza para a Doc, afinal a idéia
foi dela. Mas entregaria cópias para meu irmão, meus pais e
Alex.
Presentes de mim para eles. Pois se eu cheguei ao fundo
do poço, eu também escalei as paredes lodosas de volta para a
vida, o que só ocorreu graças a eles. Por isso, nada mais justo
que eles conhecessem todos os detalhes, para poderem entender
a importância de cada um para mim.
Claro que a leitura traria sofrimento. Claro que certos
pontos iriam magoá-los ainda mais. Mas eu sabia que para que
tudo desse certo, para que plantássemos um novo futuro
teríamos que limpar o terreno antes. Nada de segredos, nada de
meias palavras. A ordem era pura e simples: libertação.
Deixar de ser farol e se tornar barco. Lançar-se além da
rebentação no oceano revolto e intenso chamado vida. Mas com
141
Thais Leonardo
a certeza de equipamentos corretos e de uma tripulação no
mínimo sensacional.
142
A garota do Espelho
“Te perdôo
Por fazeres mil perguntas” xxx
A Doc esta sentada na cadeira ao lado da mesinha.
Sempre que a vejo penso que são necessários muitos anos de
prática para parecer tão confortável em uma cadeira tão dura.
Ela fecha devagar o caderno e olha pra mim daquele jeito
que me desconcerta e irrita ao mesmo tempo, como se
conseguisse enxergar através do meu corpo.
Ela tira os óculos bem devagar e fico impressionada ao
constatar que é a primeira vez que noto que ela os usa.
Engraçado, pois sempre tive noção do seu olhar penetrante,
firme. Será que os óculos eram uma novidade? Perguntei, e ela
afirmou que usava desde os sete anos de idade e que raramente
os tirava do rosto.
Pediu então que eu fechasse os olhos e me recostasse o
mais confortavelmente possível no sofá grande e macio.
Confesso que tive muito medo. Será que minha pergunta iria
fazer com que cancelasse minha alta? Não perceber os óculos
seria algum sintoma de que alguma crise terrível estava por vir?
143
Thais Leonardo
Ela pediu que eu a descrevesse. O que em linhas gerais
foi muito fácil. Mulher, branca. Embatuquei nos detalhes. Alta
ou baixa? Cara não sabe. Não era loura com certeza, mas era
castanha ou tinha cabelos negros? Deviam ser longos, porque
tinha um vago registro de um coque. Perguntou então sobre o
que eu pensava dela como profissional. Ai eu tirei a diferença,
rasguei o verbo. Falei da sua voz calma, do seu jeito suave mais
decidido. Falei do seu interesse e das conversas bacanas que
havíamos tido. Falei da maneira que tinha de ficar parada,
pensando, cada vez que algo a emocionava, como se estivesse
tentando recuperar o próprio equilíbrio e o distanciamento
necessário para o atendimento. Da forma como colocava o dedo
na ferida, não com crueldade, mas buscando endereçar as
sessões para o que era realmente necessário, e eu não me
perdesse em divagações.
Depois ela pediu que eu descrevesse cada membro da
família, não como eles eram na minha memória pregressa e sim
como eles eram atualmente. Foi muito, muito difícil. Lógico que
em geral foi tranquilo. Eles não tinham mudado a cor dos olhos
ou dos cabelos. Mas quanto aos detalhes, fiquei em dúvida. Eu
tinha visto realmente pequenas linhas de expressão nos olhos e
144
A garota do Espelho
boca de meus pais? Existiam novos fios brancos em seus
cabelos? Meu irmão não havia encolhido, claro, mas ainda era
forte como touro e bronzeado como um caiçara?
Minha irmã, companheira de tantas e tantas horas. Minha
escriba. Minha secretária particular. Minha confidente. Meu
grilo falante. Ela tinha cortado os cabelos? Usava franjas como
eu mesma?
Senhor!!! Como pude ser tão egoísta!
A Doc interferiu e pediu que eu falasse sobre eles. Sobre
as pessoas que eram, sobre a importância deles para mim. Foi
uma torrente sem fim. Falei muito tempo traduzindo cada um
deles em sentimentos. Palavras e palavras que poderiam se
resumir em integridade, presença, carinho, ou simplesmente em
amor.
Quando enfim eu parei, Doc mandou que eu abrisse os
olhos. Eu estava em paz comigo mesma e recebi o documento
que atestava minha alta com tranquilidade. Ela apertou minhas
mãos e pela primeira vez em tanto tempo me beijou. Um beijo
leve, fluido, que mal roçou meu rosto, mas que valeu para mim
como um troféu.
145
Thais Leonardo
Pode ir mocinha. Cuidado e sorte na vida. A principal
lição você já aprendeu. Não importa o físico, o que realmente
fica é a alma.
Quando sai da sala e fechei a porta atrás de mim, vi que
o corredor estava lotado pelos membros de minha família. Não
sei como meus irmãos conseguiram fazer isso, sei que foram
eles porque estavam com cara de culpados, mas até minha
cadela estava lá. Com um enorme laço de fita no pescoço.
Soltaram a coleira e ela avançou para mim abanando o rabo.
Ajoelhei e deixei que ela lambesse minha cara, uma forma
pouco ordotoxa de esconder as lágrimas.
Foi então que eu o vi. Meio encoberto por meu pai e meu
irmão. O homem mais lindo da face da terra. Alex.
146
A garota do Espelho
“Venho reabrir as janelas da vida
E cantar como jamais cantei” xxxi
As janelas do quarto, escancaradas, deixam entrar as
primeiras luzes da manhã e me acordam. Me mexo preguiçosa e
jogo as pernas para fora da cama. Ando até a sacada e respiro
com prazer o ar ainda frio da manhã. O dia vai ser lindo com
certeza. Olho para as flores que plantei no pequeno jardim que
criei em homenagem a vovó. Todos os dias depois do café da
manhã eu arranco ervas daninhas, misturo a terra, tiro folhinhas
mortas e rego as flores. Nestes instantes é como se ela estivesse
comigo, quase ouço a sua voz. Volto para o quarto e pego com
carinho a caixinha de música em cima da cômoda, papai fez um
excelente trabalho e ainda que repleta de cicatrizes ela ainda
toca a valsinha e a bailarina ainda rodopia sobre o novo espelho
que foi colocado substituindo o antigo palco que quebrei.
O espelho é tão diminuto que só enxergo meus olhos e
um pedaço de nariz. Olhos castanhos claros, cor de mel, assim
como a franja de cabelos que escondem a testa. Sinto um
pequeno frio na barriga. Será que já esta na hora? Será chegado
o momento?
147
Thais Leonardo
Foram seis meses na clinica e mais cinco meses neste
pequeno cárcere voluntario que me impus. Durante estes onze
longos meses só sai à rua três vezes. Uma para visitar o tumulo
da vovó, assim que tive alta, e duas para ir ao hospital realizar
exames mais complexos que não poderiam ser coletados em
casa.
No mais me dei esse tempo para me fortalecer. Meus
pais entenderam e apoiaram. Meus irmãos não entenderam, mas
apoiaram também. Mas fieis ao seu estilo, transformaram a casa
em um centro de atividades, e não permitiram que eu me
esquivasse aos jogos, às brincadeiras e as danças. De tal forma,
que pouco a pouco fui me acostumando ao que chamo de
bagunça organizada, a tal ponto de sentir muita falta quando os
dois não estão.
Em breve voltarei à escola. Não ao colégio normal, pois
sei que essa época já passou para mim por muitos motivos.
Voltarei a estudar em um curso noturno, um supletivo para
terminar o segundo grau que abandonei. Se tudo correr bem em
um ano e meio estarei apta a prestar um vestibular para a
faculdade de psicologia.
148
A garota do Espelho
Tenho conversado muito com a Doc e com o Alex e
cheguei à conclusão de que poderei vir a me tornar uma boa
profissional.
Pretendo
me
especializar
no
trato
com
adolescentes, pelo menos tenho experiência na área, conheço
muito sobre garotas problemáticas que distorcem a realidade.
Hoje sei quanta sorte tive. Poderia estar morta. Por
pouco isso não aconteceu. Quase destruí minha família. Quando
voltei acabei sabendo pela diarista que meus pais, envoltos pela
culpa e pelo desespero, quase haviam se separado, o que não
ocorreu devido à interferência oportuna de meus irmãos.
Caraca... esses dois!
Estava cega para todos, para o mundo, para a família,
para o Alex, e principalmente para mim mesma. De certa forma
é como se tivesse nascido de novo. Começado a viver
novamente de outro jeito, sob uma nova perspectiva. Para isso
tive que mergulhar dentro do meu eu interno, e descobrir quem
eu verdadeiramente era. Quais os meus valores reais. O que
realmente valia à pena.
Tive que enfrentar meus medos, meus traumas e minhas
culpas. Antes de deletar o passado, tive que relembrar. Tive que
149
Thais Leonardo
reviver cada momento e entender quando e porque eu havia
perdido o rumo.
Juntei os cacos e reconstruí uma nova pessoa, que no
fundo era a velha pessoa, só que mais firme, mais consciente de
mim mesma, mais consistente. De certa forma sou como a
caixinha que tenho nas mãos, cheia de cicatrizes, mas ainda
tocando a velha valsa e fazendo a vida girar.
Só falta um último ponto. Uma última barreira a ser
vencida, para deixar definitivamente para trás aquele campo de
batalha. Segundo a Doc, é mais um dos momentos cruciais,
talvez o mais importante.
Ando até o grande espelho na parede do quarto. Ele esta
coberto com uma manta, assim como todos os espelhos grandes
da casa. Apenas os pequenos de rosto estão liberados, e mesmo
assim, nunca me aproximo deles.
Sinto uma pontada de pânico. Lembro da casa dos
espelhos. Fecho os olhos e tento me controlar. Lembro que meu
pai chegou para me resgatar, assim como todos os meus
queridos um dia vieram me resgatar de mim mesma e de minha
imagem distorcida pela mente doente. Lembro do algodão doce
150
A garota do Espelho
que papai me deu, doce como o amor e o carinho dos meus,
como a dedicação de Doc e de Alex.
Dou corda na caixinha de musica e a coloco no chão.
Afrouxo os laços da camisola e deixo que deslize para o chão.
Com uma pequena prece a minha avó, puxo a manta e pela
primeira vez em onze meses me olho por inteira.
Alta, saudável, corada do sol. A pele brilhante de vida,
os olhos cheios de ternura e de esperança. Um corpo normal,
uma mulher normal. Sorrio com aprovação para a garota do
espelho.
i
“Disparada” - Geraldo Vandré
ii
Cantiga de Roda - Cancioneiro Popular
“O Caderno” – Toquinho e Mutinho
iv
“A mais dolorosa das histórias” – Vinicius de Moraes
iii
v
vi
“As rosas não falam” – Cartola
“A bailarina” - Toquinho/Mutinho
vii
“Receita de Mulher” – Vinicius de Moraes
“Barrados no Baile” - Eduardo Dusek
ix
“Amizade Verdadeira” - Jeito Moleque
x
“Eu sonhei que tu estavas tão linda” – Lamartine Babo
viii
xi
“A bailarina gorda” - Oswaldo Montenegro
151
Thais Leonardo
xii
“Os avós” - Xuxa
“O Convite” - Halloween (Hip Hop)
xiv
“Fora da lei” - Ed Motta e Rita Lee
xiii
xv
“Diabo No Corpo” - Pedro Abrunhosa
xvi
“Funk do Xixi” - Ivete Sangalo
xvii
“Mãe” - Minas do Gueto
“Rebeldia Premeditada” - Bulimia
xix
“Manequim” - Juan Carlos Nieto / Edgard Poças
xx
“Garotos” – Leoni e Paula Toller
xxi
“Garganta” – Ana Carolina e Totonho Villeroy
xxii
“Gitá” - Raul Seixas
xxiii
“A Rosa desfolhada” – Vinicius de Moraes
xxiv
“As Minhas Meninas” - Chico Buarque
xxv
“A brusca poesia da mulher” – Vinicius de Moraes
xviii
xxvi
“Maninha” – Chico Buarque
“O Equilibrio” - Tom do Ceará
xxvii
xxviii
xxix
xxx
xxxi
“Sonho Impossível” - J.Darion / M.Leigh / Ruy Guerra
“Chega de Mágoa” - Djavan
“Mil perdões” - Chico Buarque
“Onde a dor não tem razão” - Paulinho da Viola e Elton Medeiros
152

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