PARFUMEURS X CONNAISSEURS: COMO A INTERNET

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PARFUMEURS X CONNAISSEURS: COMO A INTERNET
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PARFUMEURS X CONNAISSEURS: COMO A INTERNET INFLUENCIA NA
FORMAÇÃO, NA CONSTRUÇÃO DO GOSTO E NO CONSUMO DE UMA
PERFUMARIA DE LUXO
Morgana Hamester1
“Obviamente – continuou Baldini – há muito tempo que eu sei que Amor e Psique é
feito de estoraque, óleo de rosas e cravo, bem como bergamota, extrato de alecrim etc.
Para descobrir isso, só se precisa, como já disse, de um nariz razoável, e pode mesmo
ocorrer que Deus tenha dado a você um nariz razoavelmente refinado, como também a
muitos, muitos outros homens, inclusive da sua idade. O perfume, no entanto – e aqui
Baldini ergueu o indicador e estufou o peito –, o perfumista, no entanto, precisa de
mais do que um nariz razoável. Precisa de um órgão de olfato educado e trinado
durante vários decênios, um órgão que trabalhe sem se corromper, que o coloque em
condições de decifrar com segurança inclusive os perfumes mais complexos, segundo
espécies e quantidades, e que seja capaz de criar novas e desconhecidas misturas
aromáticas. Um nariz desses – e ele bateu vários vezes com o dedo no seu próprio nariz
– não se tem, meu rapaz! Um nariz desses só se consegue com persistência e esforço.
Ou será que você seria capaz de me dizer de uma tacada a fórmula exata de Amor e
Psique? Então? Seria capaz disso? Grenouille não respondeu”.
Perfume: a história de um assassino, 2008, p.85.
NOTAS INTRODUTÓRIAS
É por meio do trecho retirado da emblemática história sobre o perfume, de
Patrick Suskind (2008), que observo alguns aspectos inerentes essenciais para a
compreensão sobre as relações entre as pessoas e seus perfumes. Em seus meandros, é
possível perceber que a perfumaria desenvolve-se através de um processo educativo e
socializador, que envolve costumes e habilidades. Se existe uma razão de ser do próprio
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Mestranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Maria – Linha Etnicidades,
representações, mídia, consumo e educação. Especialista em Comunicação e Projetos de Mídia pelo
Centro Universitário Franciscano (UNIFRA). Especialista em GestãoPública (UFSM).
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perfume, esta razão é o nariz. Provavelmente, o perfume não existiria sem o nariz, ou
melhor, sem o olfato. Ou será que existiria? A conexão íntima entre a percepção olfativa
da humanidade e a essência do perfume e dos cheiros pode ser traduzida como de uma
ordem primária, ou seja, o perfume provavelmente não seria o que é sem a ação humana
ligada ao ato de ―sentir‖. Neste viés, é preciso levantar questionamentos sobre como
aprendemos a ―sentir‖ cheiros, odores e educar nossos próprios sentidos e nossa
percepção para uma perfumaria? Por um lado, a estrutura de hábitos sociais deflagrada
por um processo civilizador (ELIAS, 2011) eleva o uso do perfume a uma condição
distintiva de demarcação de pertencimentos e classes sociais. Por outro, os sentidos
deflagram uma percepção moldada entre o sensível e a estética do ser, fazendo-nos
sentir aquilo que é essencial (TODOROV, 2011). Uma busca individual pode
desenvolver uma sensorialidade específica, garantindo experiências e plenitudes em
matéria de reflexão, que dividem profundos conhecedores de uma perfumaria,
iluminados na figura do parfumeur2, de pretensos conhecedores de um universo tão
particular, que configura quase o aprendizado de uma nova língua. Assim, notáveis
diferenças podem ser observadas entre connaisseurs3, pretensos conhecedores da
perfumaria, que seguem trajetórias, arriscando-se no universo dos perfumes e
reconfigurando gostos, estilos e ideais de vida (BOURDIEU, 2011), passando a fazer de
seus ―narizes‖ instrumentos de educação sobre os perfumes, dos próprios perfumistas
com formação acadêmica, intelectual e científica voltada para o desenvolvimento de um
métier.
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Expressão, que do francês, designa o métier de perfumista, ou seja, de pessoas que estudam
profundamente a perfumaria, atuando na profissão, construindo perfumes, por meio do conhecimento de
notas (de saída, do coração e de fundo), acordes, texturas, extratos e concentrações (eau de cologne, eau
de toilette, eau de parfum e parfum), dentre outros elementos que perfazem a composição de um perfume.
Para criar perfumes, é um mister a exigência de uma sensibilidade do artesão, somada a maestria técnica
de um profissional, a princípio dotado de formação acadêmica. Atualmente, a Université des Sciences
Versailles – Saint Quentin dispõe de um dos cursos de maior renome mundial, que habilitam para o
desempenho em indústrias químicas, farmacêuticas e cosméticas, assim como especializações em
determinados tipos de perfumes, cosméticos e aromatizantes para alimentos. Também a Université de
Provence tem cursos para aprendizes e graduações oferecidas por seu departamento de tecnologias e
sociedade (aix-marseille 1), com licenciatura para valoração e comercialização de plantas aromáticas
mediterrâneas ( licence vacopam). Na cidade de Grasse, tem o Grasse Institute of Perfumerie e o AsfoGrasse, que se destinam oferecimento de cursos sazonais, de acordo com o crescimento das flores, para
formar especialistas em química e aromáticos, ofertando vários cursos nos desmembramentos destas
áreas.
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Expressão apropriada da língua francesa, que designa uma pessoa com conhecimento especializado ou
formação, especialmente em relação ao mundo das artes, mas, que pode designar pessoas que aspiram e
entendem sobre um determinado conhecimento, por vezes, sem acesso a um conhecimento
institucionalizado, mas pelo desenvolvimento educativo de determinadas habilidades.
3
Durante
algum
tempo,
confesso,
pensei
a
perfumaria
com
algo
fundamentalmente ligado ao supérfluo e ao fútil, relegado a ser um objeto ou bem de
luxo que se destinava para aqueles que não precisavam se preocupar com coisas
―realmente essenciais‖ na vida cotidiana. Enfim, ledo engano. Hoje, tenho a perfumaria
como objeto de pesquisa, e mais especificamente, por meio de uma antropologia ―com‖
o social, o urbano, o consumo, a educação e os sentidos, penso os usos, as práticas e as
implicações que existem por trás desta ação, e entre Voltaire e Miller (2007), vislumbro
um objeto de luxo como ―supérfluo indispensável‖, alocado em uma pesquisa que se
pretende investigar conseqüências específicas de um alto consumo perpassado por
significados muito particulares, e, praticamente inalienáveis (MILLER, 2009) quanto ao
preço ou o conteúdo de cada perfume escolhido por cada pessoa, e que, por meio de
habilidades humanas e competências adquiridas por uma certa educação da atenção
(INGOLD, 2010), podem desconstruir estéticas de relacionamento e construir relações
de afetividade e laços quase indecifráveis, em movimentos que ressignificam nossas
relações particulares com os objetos e com nós mesmos.
Neste contexto, o presente ensaio se propõe a discutir, a partir dos dados obtidos
em minha pesquisa de campo (etnografia nas comunidades ―perfumistas‖ e
―apaixonados por perfumes‖, do Orkut, e, nos grupos ―apaixonados por perfumes‖ e
―perfumania brasil‖ de Facebook) atrelados aos conceitos de educação da atenção e
enskilment, propostos por Ingold (2010), dentro ainda da perspectiva civilizadora de
Elias (2011), sobre como conhecedores de uma perfumaria de luxo adquirem,
compartilham e trocam informações refinadas a partir do diálogo em redes sociais,
blogs e sites especializados, como objetivo de construir um conhecimento bastante
seletivo, e, assim, aproximarem-se de uma sofisticada formação dos sentidos, em
especial, das sensibilidades olfativas para os perfumes, que pode ser percebida como
―quase‖ restrita a perfumistas de formação, dada a inseparabilidade entre humanidade e
materialidade (MILLER, 2007).
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1. PERFUMES
E
CORPOS:
CONSTRUINDO
PERCEPÇÕES
E
SENSIBILIDADES
É um retrato histórico que, até o séx. XVIII, na França, a preocupação com as
referências higiênicas não eram uma obrigação social do Estado. A partir do século
XIX, a chamada propreté corporelle4 instaura, a partir classes dominantes, hábitos e
normas pautados em um discurso da higiene, especialmente visível na voluptuosidade
burguesia em ascensão, que desencadeou toda uma aprendizagem de moral e maneiras
sobre a higiene corporal a partir daquilo que se encontra na memória dos objetos e dos
gestos habituais de uma sociedade (CSERGO, 1988). Mesmo assim, a história do
desenvolvimento das práticas e das indústrias da perfumaria e da cosmética, em suas
raízes culturais evocadas nos maus odores corporais, já ganhara expressão, de modo que
as novas noções do processo civilizador que permeava os comportamentos e costumes
daquela sociedade de corte (ELIAS, ANO), passaram a incorporar a elaboração de um
código fundado na olfatação (CORBIN, 1987).
A inovação reside, é bom que se repita, na coerência das decisões. A partir do
Consulado, elabora-se progressivamente um verdadeiro código, que ao
mesmo tempo define os malefícios e determina a política que convém ser
aplicada em relação a eles. A nova higiene pública ambiciona uma aceleração
do ritmo de desinfecção; desta feita, ela visa a totalidade do espaço da
sociedade (CORBIN, 1987, p.167).
Assim, todo um processo de higiene corporal, que diz respeito à eliminação de
odores e promoção dos cheiros aceitos socialmente, deve, por sua vez, garantir uma
legitimidade olfativa aos perfumes, na França, de modo que ―tais convicções levam a
muitas reticências no que toca à higiene individual‖ (CORBIN, 1987, p.53). Para tanto,
na medida em que o perfume torna-se parte do processo civilizador naquele contexto
(ELIAS, 2011), faz emergir e despontar um dos segmentos mais importantes para o
esplêndido mercado do luxo francês (CASTARÈDE, 2005; ALLÉRÈS, 2006).
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Refere-se ao processo de que envolve a problemática do corpo, em sua hexis (BOURDIEU, 2011), em
relação a perspectivas culturais, políticas, estéticas, de expressão, imaginário e representações, que, por
sua vez, demarca todo um código de posturas de propriedade, em nível de higiene e saúde, que envolve
valores compartilhados dentro da própria sociedade a que determinados indivíduos pertencem, dada ainda
a criação de instituições, que tem como objeto fazer adaptações para a prática corporal dos sujeitos.
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Evidentemente, a história da perfumaria precede seu desenvolvimento na
França, mas e lá que a evolução do perfume, por meio da história, torna-se reveladora e
faz uma inigualável correlação sociocultural com o luxo. Contudo, nos primórdios da
perfumaria, tinha-se o incenso, a mirra e outras madeiras aromáticas. Sua ―história teve
início no dia em que o homem primitivo, depois de ter descoberto o fogo, se apercebeu
de que certas madeiras e resinas, quando eram consumidas, transmitiam um gosto bom
às coisas que lhe eram agradáveis ao nariz‖ (GIRARD-LAGORCE, 2006, p. 6). No
antigo Egito, os faraós eram enterrados com ungüentos e óleos de substâncias como o
timo e o orégano.
Da religião à medicina, da higiene à beleza, o perfume fazia parte da vida do
homem, assim como da vida depois da morte, do seu cotidiano e dos seus
sonhos, dos seus desejos e da sua memória. Outrora criados no segredo dos
templos, em cujas paredes se viam gravadas as suas fórmulas sábias, os
perfumes foram codificados pelos boticários antes de verdadeiros artistas
terem posto o seu gênio a serviço de imortais fragrâncias, hoje em dia
prestigiosos marcos da alta costura e da indústria do luxo. Dispendiosos,
raros e preciosos, os perfumes tornaram-se assim, tremendas armas de
sedução, com utilizações profanas, como banhos perfumados, unções
corporais e queimadores de perfumes faziam do indivíduo e do seu ambiente
imediato uma esfera pesadamente odorífica. (GIRARD-LAGORCE, 2006,
p.8).
Assim, nas culturas antigas, o perfume era privilégio dos deuses e de seus
rituais, preparados pelos sacerdotes. Do uso divino para o alcance dos mortais, como os
imperadores, reis e rainhas, dignos representantes de Deus na terra, não se demorou
muito. São famosas as descrições de Cleópatra, com seus perfumes, viajando pelo Rio
Nilo, da Rainha de Sabá navegando a caminho de Jerusalém com um carregamento de
ervas odoríferas e, mais contemporaneamente, as duas famosas gotas de Chanel Nº 5
que Merilyn Monroe declarou ter colocado antes de dormir. No comportamento de
todas essas celebridades históricas, observa-se que elas combinam a essência simbólica
do perfume, que mescla um ritual de poder, sedução, mistério e um pouco da própria
alma humana. Com o passar do tempo, o perfume democratizou-se, saindo dos palácios
e espalhando-se pelo corpo dos gregos e dos romanos, nos grandes centros do Oriente,
em que o prazer do perfume tornou-se um hábito cotidiano. Mas, o que realmente é o
perfume? Como poderia ser definido seu envolvimento em relação à história do próprio
corpo? Para Luca Turin (2007),
os perfumes são misturas complexas de que as pessoas na indústria chamam
‗matérias-primas‘. As matérias-primas, por sua vez podem ser extratos de
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fontes naturais (misturas de moléculas), ou de matérias-primas sintéticas
(geralmente moléculas individuais). Misturas, naturais e sintéticos, são
frequentemente bonitas, e se projetam, em uma evolução, para atrair o outro.
No entanto, eles não dizem quase nada sobre como o cheiro é escrito nas
moléculas, ou seja, como sua propriedade de moléculas é responsável pelo
próprio cheiro. O estudo do olfato requer uma saída do reino do belo, descer
para o que os filósofos alemães costumavam chamar de "sublime", e ficar
cara a cara com a estranheza da sensação duradoura e pura (TURIN, 2007,
p.8, tradução minha).
Desta forma, pode-se entender que, do ponto de vista de um cientista e
pesquisador sobre os processos de recepção olfativa primaria e predição das
características do odor, o perfume pouco tem a ver com o imaginário que dele fazemos,
no sentido de Sartre (2010), e diz respeito a uma teoria da olfatação para descobrir
novas fragrâncias e essências moleculares. É neste aspecto que o perfume pode ser
observado da perspectiva da própria história do corpo, ligado a uma noção bio-psicosocial (MAUSS, 2003) que evidencia um homem total e envolve concepções históricas
da civilização, que vão desde os gestos, a maneira de caminhar, de dormir, de comer,
dentre outros aspectos do uso do próprio corpo, até a gastronomia, a sexualidade e a
moralidade psicologizadas, e todo um universo de dinâmicas temporais que dizem
respeito às formas de ver o mundo e de investimentos diferentes nos próprios corpos
(MAUSS, 2003; VIGARELLO, 2005).
Une attention historique au corps restitue d‟abord le coeur de la civilisation
matérielle, modes de faire et de sentir, investiments techniques, confrontation
aux éléments: l‟homme „concret‟ tel que l‟évoquait Lucien Febvre, „l‟homme
vivant, l‟homme em chair et en os‟. Un fourmillement d‟existence emerge de
cer univers sensible: un cumul d‟impressions, de gestes, de productions
imposant l‟aliment, le froid, l‟odeur, les mobilités ou le mal, en autant de
cadres „physiques‟ premiers. C‟est ce monde immédiat, celui des sans et des
milieux, celui des „états‟ physiques, que restitue d‟abord une histoire du
corps (VIGARELLO, 2005, p. 7).
Neste contexto, os entornos do próprio corpo podem ser percebidos como
associados aos modos de ser físicos e psíquicos, em um sentido sensível, que modulam
as próprias atitudes corporais, instaurando ainda, em cada sociedade, hábitos que lhes
são próprios (MAUSS, 2003). Para tanto, o desenvolvimento de tais hábitos pode ser
conectado às técnicas de cuidados do corpo, no sentido dado por Mauss (2003, p.418),
em ―esfregar, lavar e ensaboar‖ que conotam uma higiene das necessidades naturais,
bem como relacionado às técnicas de consumo, relacionada aos procedimentos
legitimados, normatizados e institucionalizados de determinados rituais cotidianos que
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perfazem níveis de civilidade relativos às condutas e aos comportamentos na vida
social.
Está a sociedade européia, sob a égide da palavra civilité, movendo-se aos
poucos para aquele tipo de comportamento refinado, aquele padrão de
conduta, hábitos e controle de emoções que em nossa mente é característico
de sociedade ‗civilizada‘, de ‗civilização‘ ocidental? [...] Se analisarmos os
modos de comportamento que, em todas as idades, cada sociedade esperou de
seus membros, tentando condicioná-los a eles, se desejamos observar
mudanças de hábitos, regras e tabus sociais, então essas instruções sobre
comportamento correto, embora talvez sem valor como literatura, adquirem
especial importância. (ELIAS, 2011, p.90).
Assim, o posicionamento do corpo diz respeito a toda uma invenção de modas e
comportamentos, à ampliação de costumes e sistemas de refinamentos e
aprimoramentos da própria conduta, especialmente desenvolvimentos, segundo Elias
(2011), em uma sociedade de corte instaurada no século XVIII, permeada por
mecanismos de desenvolvimento e difusão de um conceito de cortesia, extremamente
válido para a elite social, dissimulado por esquemas de imitação entre aristocracia e
burguesia, e que prevera sinais de distinção em padrões e categorias sociais da polidez.
O referido autor postula ainda que um controle das emoções é estabelecido na
―formação disciplinada do comportamento como um todo, que sob o nome de cidade se
desenvolveram na classe alta como fenômeno apena secular e social, como
conseqüência de certas formas de vida social, apresentam afinidades com tendências
particulares no comportamento eclesiástico tradicional‖ (ELIAS, 2011, p.107). Desta
forma, por meio de um controle social suave, estágios de cortesia, civilidade e
civilização articulam um processo civilizador pautado em uma economia das emoções,
que prevê uma transformação no sentimento, nas emoções, na sensibilidade,
inicialmente em pequenos círculos da sociedade de corte, e, posteriormente, permitindo
modificações que se difundiram lentamente pela sociedade. Na prática, regras de
propriedade e limpeza regulam a politesse cotidiana, e, requerem razões higiênicas,
enquanto sinônimos de moralidade, que modelem a dignidade humana e regulamentem
os padrões de exigências sociais feitas pelos indivíduos uns aos outros.
E na corte vive cercado de pessoas. Tem que comportar-se em relação a cada
uma delas em exata conformidade com a sua posição e a delas na vida.
Precisa aprender a ajustar seus gestos exatamente às diferentes estações e
posições das pessoas na corte, medis com perfeição a linguagem, e mesmo
controlar exatamente os movimentos dos olhos. É uma nova autodisciplina,
uma reserva incomparável mais forte, que é imposta às pessoas pelo novo
espaço social e os novos laços de interdependência (ELIAS, 2011, p.203).
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E mesmo com as mudanças nas estruturas sociais contemporâneas, em que as
cortes deram lugar aos Estados democráticos, adequar-se ao convívio social tornou-se
parte daquilo que se entende por educação na vida em sociedade, de maneira que
pessoas com hábitos distintos, dentro da lógica ocidental educativa, podem ser mais ou
menos aceitas em determinados círculos sociais. Neste sentido, o uso do perfume pode
ser entendido como integrado a este processo civilizador, tão caro a Norbert Elias
(2011), uma vez que pode constituir um ato de enobrecimento, virtude e
aperfeiçoamento das atividades costumeiras, com um percurso inserido, de início nas
classes altas socialmente privilegiadas, e, hodiernamente instaurado nas mais diversas
classes e frações sociais, dos modos mais diversificados possíveis, de acordo ainda com
segmentos de mercado, oportunidades e condicionantes de acesso, que vão depender
ainda de um certo capital cultural adquirido sobre o conhecimento em perfumaria
(BOURDIEU, 2011). Este capital cultural de leitura, que pode ser complexificado ou
não, refere-se ainda a um refinamento educativo, por meio da perspectiva da construção
do gosto voltado para o consumo da perfumaria de luxo. Desta forma, é importante
entender artifícios que ligam o pensamento à filosofia, ao olharmos para as coisas com
um dever de apreciação e reconhecimento (MERLEAU-PONTY, 1960). ―Só se vê
aquilo que se olha‖, e para Merleau-Ponty, o alcance do ―olhar‖ oferece dimensões
perceptivas da própria cultura nas práticas sociais. Assim, uma ―visibilidade secreta‖
persiste no próprio imaginário, que vai sendo construído ao longo do tempo e moldando
os aprendizados sobre o mundo exterior que nos cerca. Desta forma, as visibilidades são
recriadas diante da existência de um universo de significações, e nossos recortes sobre
isso vão moldar nosso ―pequeno mundo privado‖, entre projeções e ilusões, entre o
visível e o invisível, que, por sua vez, são descobertas a cada objeto em suas
particularidades e marcas prévias e intensas que atingem uma profunda latência
postural.
Ingold (2008) observa que é possível admitir que nosso conhecimento de mundo
surge por meio de algumas formas de percepção, dentro da experiência dos cinco
sentidos. Para o referido autor, as possibilidades que ligam a visão ao ver, a audição ao
ouvir, o tato ou pegar, o olfato ao sentir e o paladar ao experimentar dizem respeito a
uma grande dificuldade em concebê-los e descrevê-los separadamente, de modo ainda
que é preciso desmistificarmo-nos daquelas ideias cartesianas que entendem a visão
como objetificadora e o som como personificador, operando cada um de modo isolado
do outro e com desenvolvimentos diferenciados. É por meio de um entendimento no
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relacionamento entre as pessoas e coisas, que diz respeito à língua e às práticas
sensoriais, especialmente observadas nas sociedades ocidentais contemporâneas, que
deve-se resgatar a importância da ―alma‖ envolvida pela ―sensação e pela emoção, ou
das questões ‗introspectivas‘ da vida, ultrapassando um conhecimento e a própria fé que
transcende a razão‖ (INGOLD,2008, p.4).
Sobretudo, percebe-se a elevação ao topo da hierarquia dos sentidos a própria visão, que
é entendida a partir das concepções de individualismo e individualidade que opõem
umas pessoas a outras. Este aspecto também é objeto de reflexão de Le Breton (2011),
da perspectiva do entendimento sobre as implicações da ritualização das atividades
corporais manifestadas nos processos de sociabilidade. Um mundo tornado imagem é
observado nos mais diversos indícios das relações entre o homem e estética.
As imagens tornam-se hoje as peças para a convicção de uma realidade
sempre mais evanescente. O mundo faz-se amostragem (e, portanto,
demonstração); ele organiza-se, antes de tudo, nas imagens que lhe dão a ver.
[...] Uma nova dimensão da realidade se oferecer por meio da universalidade
do espetáculo, e o homem se faz essencialmente visão, em detrimento dos
outros sentidos. As imagens tornam-se o mundo (mídia, tecnologia de ponta,
fotografia, vídeo). Elas o simplificam, corrigem suas ambivalências,
aplainam suas sinuosidades, tornam-no legível (frequentemente destinado
apenas aos especialistas). (LE BRETON, 2011, p.310).
Mas será mesmo que esta canalização de significantes para a imagem, fazem do
mundo, no entrelaçamento das coisas, uma realidade apenas da visão? O fundamento da
experiência postulado por Ingold (2008), realiza uma profunda reflexão sobre a
interação dos sentidos dos quais as pessoas percebem o mundo a sua volta, por meio da
captura de reflexos e das relações entre individualidade e coletividade compostas, em
todos os sentidos, por um processo potencialmente criativo e que se refere ainda a algo
que envolve o ―acostumar-se com uma percepção para a realidade dos objetos‖
(INGOLD, 2008, p.15).
Para o autor, a priori, é preciso pensar sobre uma desconstrução a cerca das
noções de animalidade e humanidade, dentro daquela lógica em que natureza e cultura
são lógicas opostas (INGOLD, 1994). A interminável e exuberante criatividade dos
pensamentos e das ações das pessoas em todos os lugares constrói uma novação própria
de humanidade, que conecta sociabilidade e educação em uma concepção peculiar da
singularidade humana. Neste contexto, Ingold (1994) entende uma essência humana
pré-existente, que transpõe as fronteiras entre humanidade e animalidade como estados
do ser, em que a natureza não é a oposição da cultura, de maneira que é possível
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conceber um processo evolutivo da consciência, que também é biologicamente singular
em cada indivíduo, na relação entre ―espécies e condição, entre seres humanos e ser
humano, [...] entre duas humanidades, entre uma espécie biologicamente peculiar e suas
condições sociais e culturais de existência‖ (INGOLD, 1994, p.15), pautadas na
corporalidade na prática enquanto dimensões reflexivas sobre o próprio homem.
Em um segundo ponto de reflexão sobre a construção de uma antropologia
―com‖ os sentidos, Ingold (2010) desconstrói a dicotomia entre capacidades inatas e
competências adquiridas, a partir do entendimento sobre o ―conceito de habilidades
humanas como propriedades emergentes de sistemas dinâmicos em que cada geração
alcança e ultrapassa a sabedoria de seus predecessores‖ (INGOLD, 2010, p.6). Neste
viés, Ingold (2010) propõe uma reflexão sobre o desenvolvimento dos próprios
mecanismos que processam a informação e conhecimento para habilidades, e entende
que todo o ser humano como um centro de percepções e de agência em um campo de
prática.
A solução, eu afirmo, é ir além da dicotomia entre capacidades inatas e
competências adquiridas, através de um enfoque sobre as propriedades
emergentes de sistemas dinâmicos. Habilidades, sugiro eu, são melhor
compreendidas como propriedades deste tipo. É através de um processo de
habilitação (enskilment), não de enculturação, que cada geração alcança e
ultrapassa a sabedoria de suas predecessoras. Isso me leva a concluir que, no
crescimento do conhecimento humano, a contribuição que cada geração dá à
seguinte não é um suprimento acumulado de representações, mas uma
educação da atenção. (INGOLD, 2010, p.7).
É neste intuito, que aprender e educar a sensorialidade humana passa por uma
certa pré-equipação dos mecanismos cognitivos que envolvem os processos de
aprendizado e desenvolvimento das habilidades por meio da chamada educação da
atenção, em que a própria habilidade passa a ser configurada como a base de todo
conhecimento. Assim, o aprendizado pode ser entendido como prática, por meio de uma
educação da atenção, em que o processo denominado por Ingold (2010) como
―enskilment‖, refere-se ao desenvolvimento das próprias habilidades, por meio de uma
contribuição que se dá e é aprimorada de geração para geração, dentro da lógica de uma
―educação da atenção‖, revelando ainda um rompimento com a perspectiva da ciência
cognitiva clássica. O ―sentimento do aprender‖ passa pela concepção de habilidade e
não de acúmulo de informação, dado que o ser humano é, para Ingold (2010), um centro
de percepções e agência, com particularidades biológicas, mas que tem seu
desenvolvimento centrado na prática.
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Para tanto, Ingold (2008) também dialoga com Merleau-Ponty (2011), que, por
sua vez, entende, em sua Fenomenologia da Percepção, que qualquer sentido traz
consigo operações concordantes com outras. Desta forma, Merleau-Ponty (2011)
observa o corpo como objeto e fisiologia mecanicista operada pela experiência, traduzse em fenômenos como ―sensação‖, ―atenção‖, ―juízo‖, entre o ―sentir‖, o ―espaço‖ e as
relações entre o ―outro‖, as ―coisas‖ e o ―mundo‖, dentro de uma realidade da percepção
que é entendida por meio de certas representações e conjecturas. Neste contexto, o os
sentidos podem ser entendidos como aspectos do funcionamento do corpo em seu
movimento integrado com o ambiente, dada ainda a fusão de diferentes registros de
sensações que orquestram uma sinergia corporal organizada sobre uma postura
colaborativa dos próprios sentidos (INGOLD, 2010).
No que concerne o envolvimento sensorial com o ambiente, Merleau-Ponty
(2011) entende o olhar visual como instrumento natural da percepção, na medida em é
capturado em um encontro exploratório dialógico entre perceptor e mundo, habilitando,
assim, uma experiência subjetiva redefinida na nossa própria experiência do mundo, que
pode conjugar os processos sociais da própria cultura. Para operacionalizar esta
experiência, é possível empregar artifícios ou gradientes que tornam o pensamento um
conjunto de técnicas (MERLEAU-PONTY, 2009), e redefinem o papel dos sentidos nas
sociedades humanas, a partir das dimensões perceptivas da própria cultura nas práticas
sociais. Dentro da linha de pensamento que envolve uma continuidade reflexiva entre
ambos autores, a inserção do corpo no mundo está conectada ao entrelaçamento dos
sentidos, das habilidades desenvolvidas a partir desta superposição, como produção de
humanidade, bem como na construção da percepção de mundo a partir de aspectos
como interioridade, reciprocidade e alteridade. Os desdobramentos em torno da
percepção devem ser concebidos dentro da perspectiva de união entre corpo e alma,
entre humanidade e animalidade, entre cultura e natureza (INGOLD, 1994), e referemse ainda a um mundo em torno de cada um em si mesmo, articulando uma lógica de
identidades, diferenças, contextos e materialidades particulares (MERLEAU-PONTY,
2009).
De fato, é preciso ―romper com estas barreiras artificiais, permitindo que as
realidades da experiência irrompam sobre o turfe santificado do debato intelectual‖
(INGOLD, 2008, p.59), na medida em que viver torna-se aprender e que existe uma
confluência entre gostos, fragrâncias, barulhos, temperos e cores que são deixados de
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fora nas experiências comuns ou mais individuais, que a cada geração, tem uma
transmissão diferenciada, e revela uma educação da atenção (INGOLD, 2010).
Não se trata de conhecimento que me foi comunicado; trata-sede
conhecimento que eu mesmo construí seguindo os mesmos caminhos dos
meus predecessores e orientado por eles. Em suma, o aumento do
conhecimento na história de vida de uma pessoa não é resultado de
transmissão de informação, mas sim de redescoberta orientada. [...] Como
observa Merleau-Ponty, nós não copiamos tanto outras pessoas quanto
copiamos suas ações, e ‗encontramos outros no ponto de origem dessas
ações‘. Este copiar, como já mostrei, é um processo não de transmissão de
informação, mas de redescobrimento dirigido. (INGOLD, 2010, p.21).
Assim, a percepção para Ingold (1994; 2008; 2010), envolve um processo de
aprendizado e redescobrimento das coisas, resignificando detalhes e sentidos próprios
de cada um, na interação dos indivíduos com seus respectivos ambientes, em que imana
nas próprias vivências uma consciência peculiar do conhecedor, uma cognição em
sentido singular que perpassa a coletividade, inseparável da prática e dos movimentos
deflagrados nas sociabilidades, sem que aja a anulação ou substituição de um sentido
por outro no todo que concerne a sensorialidade e corporalidade de cada um, em que o
aprendizado faz um sentido particular para cada indivíduo, mas também está na
vivência da cultura.
Dentro da perspectiva da perfumaria, no que se refere ao refinamento educativo
que separa parfumeurs de connaisseurs, é possível articular, não que os respectivos
domínios de conhecimento estejam demarcados por diferenças de elevação ou
subordinação de níveis, mas que uma construção do gosto, envolvendo toda uma
percepção e sensibilidade, desenvolve-se de modos diferentes e particulares de
apreensão de uma perfumaria concebida em sua mais ampla totalidade, que envolve
diferentes esferas, pontos de conexão e significados tecidos em múltiplas
subjetividades, e que não deixa ainda de ser uma experiência muito particular. A
formação acadêmica que perfaz o métier de perfumista pode ser considerada apenas
como uma destas interfaces que compõem o conhecimento de uma perfumaria inserida
nos meandros da vida social. Contudo, são ainda raridades os connaisseurs que puderam
manipular a fórmula de um perfume, ação que envolve conhecidos de química, biologia,
história, dentre tantos outros aspectos, que podem, por sua vez, ser percebidos como
habilidades que não tiveram meios para a educação de uma atenção e conseqüente
desenvolvimento.
13
―A metáfora é a moeda do conhecimento‖. Passei a vida aprendendo uma
quantidade incrível de conhecimentos díspares, desconectados, obscuros,
inúteis, e eles se revelaram, quase todos, extremamente úteis. Por quê?
Porque não existem fatos desconectados. Há apenas uma estrutura complexa.
E, tanto para explicar a estrutura complexa para os outros como – talvez mais
importante, o que é em geral esquecido – para compreendê-la nós mesmos,
precisamos de metáforas melhores. Se fui capaz de compreender isso, foi
porque a minha acumulação caótica de informações simplesmente me deu
metáforas melhores que as dos demais. Meu pai sempre dizia que, se alguém
traduz um provérbio de uma língua para outra, passa por poeta. Vale o
mesmo para a ciência. O que controla o seu avanço nesse processo é a sua
disposição de traduzir continuamente, de forçar linguagens estranhas a serem
suas, de viver na fronteira, de estar em toda parte e em nenhum lugar‖
(BURR, 2006, p. 392).
Quando Burr (2006), em ―O imperador do olfato‖, descreve esta passagem
relatada por Luca Turin, cientista reconhecido na comunidade científica por suas
pesquisas sobre olfato e perfumaria, pode-se perceber as conexões que se estabelecem,
especialmente por meio da linguagem, que dizem respeito aos modos de fazer (DE
CERTEAU, 2008) e à compreensão do encadeamento que as possíveis ―metáforas‖, ou
seja, o estabelecimento de correlações entre as interfaces e as barreiras simbólicas
dessas possíveis categorias, que dizem respeito aos relacionamentos morais, sociais,
econômicos, culturais das pessoas com as coisas (MAUSS, 2008), especialmente aqui
tratado – o sofisticado universo da perfumaria. Assim, parfumeurs e connaisseurs
podem ser percebidos em status diferentes de um mesmo empreendimento, que se refere
ao universo dos perfumes, cada qual operando a seu modo e construindo recortes desta
totalidade que é a perfumaria. Parte das reflexões sobre os níveis de raridade dos
produtos diz respeito a um processo de busca por produtos desejados e práticas que
envolvem atos de consumo enquanto atividades não só materialistas, mas configuram
um certo tipo de incorporação que definiria processos como o colecionismo (BELK,
1998), por exemplo. Desta forma, a percepção do consumo de perfumes não está restrita
apenas a uma esfera econômica, mas pode ser concebida como essencialmente social,
cultural, da ordem de uma série de requisitos classificatórios, mitologias sociais
(APPADURAI, 2008), dentre outros aspectos que permeiam a formação que pode
separar consumidores, por meio de uma linha muito tênue, em compradores,
apreciadores, colecionadores e compulsivos, na contemporaneidade.
14
2. CONSUMO
DE
LUXO:
OBJETOS
REFINADOS
E
PESSOAS
SOFISTICADAS
Sobretudo, foi a partir da Europa5 que se estabeleceu o centro irradiador para
todo o Ocidente de uma perfumaria disseminada e mercantilizada. No século XVI, Paris
recebia o título de capital dos perfumes, momento este registrado historicamente quando
Catarina de Médicis chega à capital francesa, em 1533, para se casar com o futuro rei
Henrique II. O fato dá um impulso decisivo à produção e comércio de produtos
aromáticos. Junto com a comitiva de Catarina de Médicis, chega o perfumista Renato
Bianco, que logo abriu sua boutique na Pont au Change, conquistando clientela
privilegiada. Desde aquele momento, as fragrâncias e suas formas de apresentação não
param de evoluir, de modo que a Europa se curvou diante dos perfumes, pomadas e
óleos aromáticos, bem como a moda dos couros, luvas e outros acessórios perfumados,
produzidos pelos maîtres gantie parfumeurs6. No século XVIII, as boutiques de Paris
criam novas combinações aromáticas para a produção perfumeira, que passam então
alcançar verdadeiros símbolos de classe e refinamento para além dos domínios da
aristocracia. Liberados do papel de dissimulador de odores desagradáveis, os perfumes
aromáticos tornam-se mais doces e suaves, com a predominância do aspecto floral,
crescendo ainda as pesquisas sobre novos cheiros e novas formulações sobre essências
raras e exóticas em flores, ervas, madeiras e secreções animais.
Em um caráter mais sociológico, quando se fala em perfumes, não se pode
esquecer que Sombart (2009) postula sobre os desdobramentos econômicos e sociais do
luxo, eminentemente instaurado em uma França do século XVII, especialmente em sua
formação para consumo, a partir de uma visão permeável das práticas sociais e seus
valores hedonísticos traduzido na figura das cortesãs e suas articulações para o processo
de conquista, bem como na instauração de um caráter blasé (SIMMEL, 2005) visível
no surgimento das grandes cidades enquanto lugar de economia monetária,
reestruturadas para de uma vida social pública movimentada, a partir dos hotéis,
5
É na Idade Média e no Renascimento, que o perfume entra nos costumes e práticas sociais. Assim, o
perfume tornou-se o instrumento ideal para as pessoas se fazerem notar: usar certos perfumes, assinados
por um grande nome, constituía um meio de penetrar no prestigioso mundo da aristocracia e das famílias
reinantes, que distribuíam os seus ―certificados‖ de honorabilidade. (GIRARD-LAGORCE, 2006, p. 11)
6
Refere-s aos grandes mestres da perfumaria do século XVII.
15
restaurantes, teatros que prevêem a revisão das vivências cotidianas individuais e
formas de vida em sociedade. Assim, para Sombart,
luxo é todo o dispêndio que vai além do necessário. Trata-se obviamente, de
um conceito relativo que tem sentido na medida em que dispomos de uma
noção do ―necessário‖. Há duas maneiras de determiná-lo: ou seja,
subjetivamente, mediante um juízo de valor (ético ou estético, por exemplo),
ou fixando uma medida objetiva. Como medida objetiva pode se tomar o
conjunto das necessidades fisiológicas, mas também podemos denominar o
conjunto de ―necessidades culturais‖ (tradução minha, SOMBART, 2009,
p.49).
Evidentemente, para o referido autor, o consumo de luxo está naquilo que é além
do necessário, e para tanto, um desperdício em excessos e extravagâncias. Contudo, é
nos limites das necessidades e certos requerimentos culturais, que os objetos vem suprir
as relações sociais, fornecendo ainda ao luxo vertentes qualitativas e quantitativas,
relacionadas à prodigalidade e à qualidade, respectivamente. Mas, sobretudo, é este luxo
que abre as portas do capitalismo moderno, em um refinamento que teve fins muito
definidos a partir do Renascimento, tendo como principais causas, a ambição, o
orgulho, a ostentação, os desejos de poder e de notoriedade, dentre outros sentimentos
que revelaram sua propagação, que começa a partir da corte (nobreza ou aristocracia
francesa) e chegam às demais classes sociais, virando um ideal de vida, que, por sua
vez, busca conquistar um lugar próximo às elites sociais.
O esbanjamento de uma aristocracia endinheirada torna as grandes cidades os
principais centros de consumo, em que uma elite dominante não pretendia apenas
consumir, mas adquirir cada vez mais bens, e, sobretudo, dinheiro. A aquisição e
acumulação de bens e riquezas geram a concepção e a preocupação com o dinheiro na
cultura contemporânea, em suas possibilidades de posse em escala interplanetária,
operada a partir de uma lógica impessoal e autônoma, é entendida por Simmel (1998),
nos diversos aspectos em que o dinheiro, na sua etimologia mais barata, passa a ser o
elemento que define uma sequência que leva ao consumo. Assim, o ser humano, em
seus limites do corpo inseridos e ordenados pelo tempo e espaço, tenta preencher
incessantemente a própria auto-estima, vivendo a personalidade em uma mistura de
sensações, que variam entre a solidão cosmopolita e o conseqüente estímulo de
diferenciação ao refinamento e enriquecimento, alimentados pelo crescente incremento
das necessidades do público que opera a lógica de sobrevivência do capitalismo, em seu
16
(re)nascimento nas grandes cidades, que podem ser vistas como verdadeiros cenários
desta cultura pautada na filosofia do dinheiro (SIMMEL, 2005). A cultura social na
contemporaneidade é distinta de outros tempos, uma vez que incorpora em quase todas
relações sociais o a figura do dinheiro, que sustenta seu processo, a partir de uma
mediação entre o homem e seus desejos, em nível de satisfação sempre plena. Assim,
mesmo que o dinheiro não possa compra toda a felicidade que o indivíduo almeja, ele
ainda é o meio mais eficaz de se obter outros bens (SIMMEL, 1896 apud SOUZA e
ÖELZE, 1998). Em uma sociedade estratificada pelo poder e acesso financeiro ou
montário, em sentido aquisitivo, uma clientela selecionada busca, por meio dos bens de
luxo, firmar sua posição de superioridade social e econômica, utilizada como sinônimo
de distinção e diferenciação, em sua inserção no campo do luxo. Assim, o luxo torna-se
parte da obstinação humana, ao revelar um padrão extravagante de consumo7,
especialmente a partir do século XVI, que infunde o imaginário humano, as identidades
sociais e os estilos de vida nos dias atuais.
Desta forma, as práticas de consumo de luxo passaram a ser disputadas, na
medida em que uma burguesia desenvolveu sua riqueza e passou a competir consumo
de objetos de luxo com a nobreza, rivalizando estilos de vida, e, alimentando assim,
uma (re)organização da produção industrial. Todo este movimento pode ser visto como
uma busca de novas oportunidades de vida, em alegria, felicidade, exuberância, que,
consequentemente, moldaram as estruturas da cidade e o espírito blasé8 dos indivíduos,
especialmente após incorporação do dinheiro9, e sua cristalização do crescimento da
economia, muito bem observado por Simmel (1998). Neste viés, Sombart entende que o
consumo de luxo desencadeou várias tendências de organização da vida cotidiana, que
7
Grandes talentos criativos da humanidade, por assim dizer, deram origem a prestigiosas grifes, nos
diversos segmentos do luxo, como Baccarat, Fabergé, Cartier, Bollinger, Ritz, Vuitton, Gucci, Lesage,
dentre outras. Especialmente tratando da moda de luxo, as grandes maisons, dirigidas por estilistas
reconhecidos como produtores da alta-costura, por sua vez, dão origem a marcas globais e fazem
investimentos significativos na moda prêt-à-porter, sejam em roupas, acessórios, cosmética, perfumes,
etc. A partir de Charles Frederick Worth (1825-1895), considerado o pai da alta-costura, muitas
mudanças se processaram no setor, e, uma nova percepção sobre a sensibilidade íntima do luxo instaurouse, juntamente com a nova perspectiva capitalista da sociedade de consumo.
8
Uma vida desmedida de prazeres urbanos torna-se blasé, fundada em uma incapacidade de reagir a
novos estímulos, em uma fonte que deságua na economia monetária. (SIMMEL, 1903, apud MANA,
2005, p.577-591).
9
Cada vez mais coisas podem ser compradas com o dinheiro. [...] O dinheiro seduz – por meio de seu
caráter objetivo e indiferente, pelo qual ele se oferece, do mesmo modo e sem relação interna, não só à
ação mais nobre como também à ação mais baixa – uma certa leveza e irresponsabilidade do agir, que é
inibido, com frequência, quando falta a mera intermediação do dinheiro, por meio da estrutura peculiar
dos objetos e da relação individual dos agentes com eles(SIMMEL, 1896, apud SOUZA e ÖELZE, 1998,
p. 23-40).
17
permeiam a organização dos espaços públicos e privados, seja em ornamentos da
decoração dos espaços internos, seja em encontros nos bares, restaurantes, hotéis, lojas e
outros pontos que formam a urbe, operados pela aquisição de objetos10, levando em
consideração sensualidade e refinamento, e transformando a vivência do dia-a-dia em
arte e momentos de prazer. Foi na configuração e no crescimento das grandes cidades,
que se deve ao comércio e às indústrias, que uma classe consumidora desenvolveu-se,
colocando a concentração do consumo por trás do crescimento de cidades como
Veneza, Amisterdã, Roma, Madrid, Nápoles, Londres e Paris, em uma confluência de
riqueza e capital que configurava a natureza da urbe daquela época.
A respeito do desenvolvimento urbano, a economia política do séc. XVIII
dedicou especial atenção ao destino que devia dar às rendas territoriais e ao
fenômeno do luxo no desenvolvimento do consumo. Trata-se, de fato, de três
questões relacionadas entre si: as rendas são gastas nas cidades, o consumo
de luxo acontece nas cidades e as cidades crescem. (SOMBART, 2009, p. 32,
tradução minha).
Esta relação entre o surgimento da urbe e o desenvolvimento do consumo do
luxo, relacionando o próprio luxo à formação das cidades, tem como eixo um novo
grupo de cidadãos e uma circulação econômica de riquezas e objetos de prazer social.
Neste viés, por meio da construção de uma perspectiva sociológica, o luxo pode ser
compreendido como uma atividade que é parte das regularidades do agir humano,
sobretudo, sem desprezar a pluralidade e a diversidade do mundo. Sombart (2009)
pensa sob novos prismas da prática cultural e econômica ocidental, e observa
determinadas relações de causa e efeito, peculiares a este campo da sociedade
aparentemente visto como fútil e insignificante.
É na vida amorosa da classe dominante, permeada pelas relações na corte, entre
a nobreza, a burguesia e o sentido capitalista que toma aquela sociedade em seus
círculos sociais, no desfrutar de prazeres, nos conceitos hedonistas que passaram a
10
Sobre os objetos, é interessante referir a idéia do fetichismo da mercadoria, muito bem articulada em
Marx (2006). Os objetos viram produtos, ou seja, mercadorias, após a incidência dos modos de produção,
e podem ser vistos como um resultado final deste, de modo que na interação com os consumidores,
exercem algum tipo de sedução, feitiço ou magia para a consumação da aquisição, enquanto um processo
que compõe o sistema capitalista. A partir da mercantilização da subjetividade e das relações de
dominação e poder que complexificam a produção industrial, um novo sentimento é despertado no
consumidor pela mercadoria, que acondiciona suas relações sociais.
18
conduzir o significado da beleza das mulheres, que relações ilegítimas entre os sexos
podem produzir efeitos no desenvolvimento do sistema capitalista. A figura da mulher,
em especial da cortesã, promove, segundo Sombart (2009), tendências gerais no
desenvolvimento do luxo, como o culto à interiorização, ou seja, a preocupação com o
luxo nos domicílios, atribuindo-lhe um caráter doméstico, a partir do uso dos
ornamentos, como tapetes, cristais, porcelanas, tecidos finos, peças em ouro e prata,
dentre outros atributos moveleiros que passaram a constituir a arquitetura das casas;
uma tendência à objetivação, no sentido de as relações serem cada vez mais mediadas
pela acumulação dos objetos, pela produção pessoal a partir de uma preocupação com
os trajes suntuosos, as jóias, as maquiagens e outros adereços; desta forma, também
passa a existir uma tendência à sensualidade e refinamento, centrada na influência social
das cortesãs da época, em uma busca por satisfação e quantidade de adornos raros; por
fim, vislumbrou-se uma maior capacidade de produção de bens de luxo, na sofisticação
das demandas e uma crescente e acelerada comercialização.
Neste contexto, cabe salientar ainda o papel da coquetterie11, tão caro à
sociologia dos sexos de Simmel (2006), que mescla os sentidos de aceitação e recusa,
do erótico e da sexualidade em uma cultura feminina, orquestrados por novas
concepções de beleza e amor, que, em opulência e do excesso, promovem o surgimento
e fixação do consumo de luxo. Este movimento, precursos do esplendor da alta costura
contemporânea (BOURDIEU, 2008), aparentemente irônico e contraditório, que previa
o ―empavonamento‖ das mulheres, mergulhadas em seus adornos e formas elementares
eróticas, observadas nas sociabilidades da corte francesa12, desencadeia novas relações
sociais, cujos efeitos puderam ser visualizados na indústria de luxo.
11
Para Simmel, a coquetterie pode ser definida como uma forma não propriamente adequada de
sociabilidade que envolve um jogo das relações entre os sexos. A questão erótica envolve-se, neste
contexto, em torno da aceitação e da recusa comportamental entre homens e mulheres, em um conteúdo
decisivo que situaria dois pólos do coquetismo. Em outras palavras Simmel explica que ―a coqueteria é
um jogo da ironia e do gracejo com o qual o elemento erótico ao mesmo tempo desata os puros esquemas
de suas interações de seu conteúdo material ou totalmente individual‖, jogando com as formas de
erotismo e suas simbólicas implícitas. (SIMMEL, 2006, p. 74).
12
Uma figura emblemática da coquetteria é Jeanne-Antoinette Poisson, ou Marquise de Pompadour
(Paris, 29 de dezembro de 1721 — Versalhes, 15 de abril de 1764), mais conhecida como Madame de
Pompadour, foi uma cortesã francesa e amante do Rei Luís XV de França considerada uma das figuras
mais emblemáticas do século XVIII francês. Dotada de inteligência, encanto, beleza, e ao mesmo tempo
uma mulher fria, em termos físicos e na alma, Madame de Pompadour via seu papel como o de uma
secretária confidencial do Rei. Governava Versalhes, concedia audiências a embaixadores e tomava
decisões sobre todas as questões ligadas à concessão de favores, de forma tão absoluta quanto qualquer
19
Assim, enquanto empreendimento capitalista, o luxo associa-se ao consumo e
dita algumas diretrizes do surgimento do capitalismo, na intenção de descobrir o espírito
das forças produtivas por trás das aparências; prazer pelo luxo que promove o
refinamento dos sentidos. Respaldado em uma estética voluptuosa, Sombart (2009)
pensa o luxo a partir da ―futilidade‖, da ―vain ostentation‖, do ―supérfluo indispensável‖
tão caro a Voltaire, e que engendra nas relações sociais um grande crescimento do
capitalismo mundial, orquestrado com maestria a partir de sentimento de prazer, que
passa ser um dos móveis mais preciosos da sociedade capitalista que forja a cultura no
ocidente. O consumo dos bens passa a satisfazer um capricho e prazeres passageiros, de
modo que a proliferação de fábricas toma conta dos entornos das cidades, para atender
demandas de manufaturas sofisticadas, como seda, couro, renda de bilro, dentre outras
especiarias do luxo. Neste sentido, o luxo instala novas possibilidades de
desenvolvimento para as grandes cidades, a partir da criação de hotéis, teatros, salões de
baile, boutiques, restaurantes, e outros espaços sociais sofisticados que, dali por diante,
dão o tônus das vivências em sociedade, hierarquizando, de certa forma, as distinções
entre classes, a partir das condições de acesso que se geraram na transferência de
riquezas da aristocracia à burguesia e da criação de novos mercados voltados para a
acumulação e refinamento de bens (SOMBART, 2009).
Neste sentido, várias observações sobre o luxo tem sido feitas a partir de
remarques sociais associados à ligação do próprio luxo com a figura da mulher, à
opulência dos usos, à ostentação e distinção, em suas relações com a arte e a indústria,
que dizem respeito aos procedimentos de qualificação dos produtos e bens de luxo.
Neste sentido, a tradição do luxo tem sido amplamente pesquisada a partir de
identidades culturais, da produção ou reprodução técnica dos objetos de luxo, que por
sua vez, colocam em cheque o sagrado e o divino que ditam a vida e a morte do luxo
enquanto fenômeno social. Desta forma, o luxo também é mistificado em efeitos
perversos, e questionado sobre sua dessacralização em nome do mercado, das indústrias
e suas estratégias, da filosofia econômica da contemporaneidade que remontam a
história do próprio luxo, que conheceu diversos graus e variações de culturas, épocas e
circunstâncias, e que não deixa ―morrer‖ a reputação de Chanel, Dior e Yves Saint
Laurent na memória dos sujeitos que reconhecem mais seus produtos do que seus
monarca. Influenciando politicamente as decisões reais, ela se tornou uma empreendedora, incentivando a
fundação da fábrica de porcelanas de Sèvres.
20
objetos (BERGÉ, 2005). No cenário em questão, o luxo continua sobrevivendo,
enquanto palavra, discurso, fenômeno ou até conceito, representando um fator
importante na economia mundial, na fusão de grifes e gestão de marcas por
conglomerados mundiais, defendido por comitês especializados no ―assunto‖ luxo. Para
tanto, sua importância está para além da simples avaliação a partir da sociedade de
consumo e de uma generalização mercadológica, mas, permeia as necessidades
humanas, que são relativizadas pelo significado daquilo que é útil ou inútil, da
versatilidade das marcas ou da infidelidade dos consumidores sensíveis às diferenças
sociais (PAQUOT, 2005). O luxo como emblema de status social divide terreno com o
luxo hedonista, mas sempre distintivo social e culturalmente, de modo que observamos
um luxo de múltiplos significados entre a fabricação de produtos, internacionalização da
clientela e peculiares usos e desusos em sua consumação para cada indivíduo. É desta
forma que formar um visão do luxo pode dizer respeito à arte de viver, de fazer, ao
tempo e ao silêncio, à vastidão do seu universo concreto e abstrato manipulado por
―sonhos‖ que o tornam muito útil à vida social (PAQUOT, 2005).
É neste viés que, pensar perspectivas para o consumo de luxo, perpassa a própria
cultura material e como determinadas abordagens vem sendo conduzidas a respeito das
razões que levam e que sustentam determinados consumos. É a partir do pensamento de
Daniel Miller (2007), podemos pensar o conceito de consumo, por meio de
investigações específicas, e, neste sentido, perceber uma certa ―ignorância‖ sobre o
consumo enquanto um aspecto da vida material. Neste viés, o consumo, por um lado, é
amplamente associado a uma atividade maligna de destruição e deteriorização das
relações e recursos, em uma abordagem celebrada em Marx (2006), Bataille (1988),
dentre outros, que buscam estabelecer uma moldura moral de um consumo visto de
acordo com padrões de preocupação com o materialismo contemporâneo, que, por sua
vez, discutem a centralidade dos desejos versus o desperdício da ―essência‖ da
humanidade. Por outro lado, um contra-discurso emerge, a partir da observação dos
benefícios do consumo sempre presente nas relações entre pessoas e coisas,
esclarecendo ainda uma certa ―confusão‖ relacionada aos entrelaçamentos equivocados
entre a postura moral do consumo e a história do próprio consumo enquanto atividade
humana (MILLER, 2007), afirmando sua contribuição cultural permeada por aspectos
como posturas de intenção, necessidade de bens e natureza dos usos.
21
Neste contexto, agrupamentos de consumidores, cujas tendências culturais
comandam suas demandas por bens são inseridos, no contexto que separa necessidades
e desejos, que se traduz em um campo de escolhas que eleva o próprio consumo a uma
importância ideológica e prática. Desta forma, podemos observar a organização de
rituais recíprocos, dada a influência mútua entre consumidores, o que pode configurar
uma teoria das necessidades por inveja, mas, sobretudo, significados privados que
emergem de cada relação entre pessoas e coisas(DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009).
Visto que os bens podem ser percebidos como a parte material da cultura, e, para tanto,
produzem significações e interações em determinados espaços, devem ser entendidos
com parte da realização da vida, por meio de sua contribuição positiva às relações
econômicas e sociais dos indivíduos (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009).
Contudo, primeiramente, sentimentos como inveja, exibição, ostentação e
prestígio, ainda perfazem as escolhas e as necessidades, extravagantes ou não, na busca
por pertencimento social, laços estes que podem significar a mais profunda satisfação
encontrada nos usos e nas práticas que envolvem mercadorias escolhidas e apropriadas.
Aquilo que Douglas e Isherwood (2009) denominam serviços de marcação, diz respeito
a estas conexões, por meio de um entrelaçamento com o campo das preferências, dos
gostos, das razões e dos sentidos enquanto critérios pré-estabelecidos, que fazem dos
próprios bens tipos de marcadores da vida social. Desta forma, perfumes, enquanto
objetos de luxo, podem conotar competições, compartilhamento de experiências,
profundas diferenças e ambições variadas em relação aos círculos sociais.
Em segundo lugar, novas mercadorias geram novas necessidades, e o luxo do
ontem se torna a necessidade de hoje, o que por outro lado, garante que sempre haverá
bens de luxo, dada a freqüência de uso enquanto demarcadora de posição hierárquica,
uma vez que a posse de determinados bens podem garantir vantagens sociais. Assim,
objetos de luxo podem ser entendidos como armas de exclusão, pois bens que tem baixa
freqüência de consumo garantem um alto status e modos de ostentação e prestígio
diferenciados (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009). É neste intento, que a alta
perfumaria pode diferenciar-se de uma perfumaria dita ―rasa‖ e ―midiática‖, e
estabelece um estilo de vida baseado no consumo, em que bens podem ser utilizados
com propósitos sociais pré-definidos, como graus de relacionamento e conexões que
visivelmente podem identificar um determinado tipo de elite. Também Bourdieu (2011)
pontua o consumo como sinônimo de distinção e preocupa-se com a influência da
22
construção do gosto nos estilos de vida e na constituição das classes sociais, em suas
demarcações recíprocas, na ―estilização de vida‖ que reside nas variações de distâncias
do mundo que, por sua vez, perfazem disposições e sensos estéticos, classificações e
suas estratégias de reconversão, bem como maneiras de adquirir, configurando o próprio
habitus e os estilos de vida.
Na relação entre as duas capacidades que definem o habitus, ou seja,
capacidade de produzir práticas e obras classificáveis, além da capacidade de
diferenciar e de apreciar essas práticas e esses produtos (gosto), é que se
constitui o mundo social representado, ou seja, o espaço dos estilos de vida.
[...] O gosto, propensão ou aptidão para apropriação – material e/ou
simbólica – de determinada classe de objetos ou de práticas classificadas e
classificantes é a fórmula geradora que se encontra na origem do estilo de
vida, conjunto unitário de preferências distintivas, que exprimem, na lógica
específica de cada um dos subespaços simbólicos – mobiliário, vestuário,
linguagem ou hexis corporal – a mesma intenção expressiva. (BOURDIEU,
2011, p.162 – 165).
Sobretudo, é preciso entender o gosto como a forma de amor por excelência, que
parte daquilo que nos sensibiliza, de modo que um habitus configura-se para engendrar
representações e práticas, ajustas às disposições éticas e estética, de aparência e de
essência, tão fundamentais à própria busca por distinção. Neste contexto, os bens e as
virtudes reivindicam necessidades e usos diferenciados em cada classe social,
arraigados a valores e intenções socialmente reconhecidas, que devem tonalizar os
níveis de distribuição sobre o que constitui o próprio luxo, que, para um lado, não passa
de um ―fantasia absurda‖ e inacessível, constituída de sonhos e desejos raros, quando de
ocupantes de níveis inferiores na sociedade; para outros, torna-se banal ou comum,
relegado à ordem do necessário, do evidente e do cotidiano. Neste conjunto de
possibilidades permeadas por disposições estéticas e simbólicas, encontramos distâncias
marcadas entre classes, cada qual com competências específicas que dão condições
diferenciadas ao consumo de bens de cultura legítimos.
Por outro lado, Miller (2009), no sentido de superar as divisões entre o
microcosmo que significa o indivíduo frente ao macrocosmo que se refere à sociedade,
adotando como ponto-de-partida para uma reflexão sobre as práticas e os usos que
envolvem os processos de consumo a compatibilidade entre o indivíduo e a sociedade,
observa a relação entre os diversos gêneros materiais (a música, os enfeites, as roupas, a
comida, a fotografia, etc) e os gêneros sociais (relações entre famílias, amigos, colegas,
23
etc), especialmente desenvolvida dentro das possibilidades inalienáveis que se
estabelecem nos processos de objetificação do próprio indivíduo. Neste sentido, a
perfumaria, ou melhor, o perfume, pode representar uma capacidade diferente de objeto,
e, que é autenticado de um modo diferente para cada um. Tal inalienabilidade que pode
estar presente em um perfume e que diz respeito ao meio pelo qual o objeto personifica
o indivíduo (MILLER, 2009), pode ser percebida para além do status, do prestígio, da
ambição de círculos sociais que perfazem o ―peso‖ da estrutura das classes suas frações
sobre as vivências dos indivíduos, mas, pode representar a capacidade criativa dos
indivíduos, em reinventar modos de relacionamento dos gêneros da cultura material
para constituir um sentimento de valor inalienável nos usos, nas trocas e nas práticas,
movidas por alteridades e reciprocidades, e que remontam novos processos de
objetificação. Assim, o consumo assume um significado muito mais intenso, no sentido
das pessoalidades, das individualidades e suas peculiaridades, que se refere a uma
formação estética de relacionamento, em que os objetos podem assumir significações
nas histórias de vida de uma pessoa, por meio de conexões, associações e percepções
muito próprias, em contextos individuais e, ao mesmo tempo, sociais.
Por sua vez, Campbell (2001) percebe as relações entre o comportamento do
consumidor contemporâneo e o movimento romântico do séc XVIII, também estudado
por Sombart (2009). Para além desta proposição, Colin Campbell ressalta as influências
culturais que transformam os relacionamentos e consumismo articulado pelo
hedonismo, a ânsia pela novidade, dentre outros aspectos originários em uma
determinada época, associando o consumo ao prazer, sonho e imaginação, e que, por
lógicas economicistas, tem desdobramentos na sociedade de consumo atual e
polemizam as práticas morais do próprio consumo revelado no comportamento
justificado do consumidor.
Como o seu tradicional antecessor, o hedonismo moderno é ainda,
basicamente, uma questão de conduta arrastada para a frente pelo desejo da
antecipada qualidade de prazer que uma experiência promete dar. O
contraste, porém, é considerável. Em primeiro lugar, o prazer é procurado por
meio de estimulação emocional e não meramente sensorial, enquanto, em
segundo, as imagens que preenchem esta função são ora criadas
imaginativamente, ora modificadas pelo indivíduo para o autonconsumo,
havendo pouca confiança na presença dos estímulos ―reais‖. (CAMPBELL,
2001, p. 114).
24
Assim, pode-se compreender as relações de consumo a partir de um
entendimento dos fatores imaginativos ou ilusórios, que produzem um hedonismo
autônomo que, por sua vez, requer a produção de uma capacidade de obter prazer em
uma experiência auto-construída para os modos de desejar, sonhar e, consequentemente,
viver. Para tanto, uma expectativa do prazer diante dos novos objetos ou atividades
estabelece-se, na medida em que a apreciação é elevada a tal ponto, que pode traduzir-se
apenas na busca pela qualidade experimental, que perfaz o ―hiato entre os prazeres
imaginados e experimentados‖ (CAMPBELL, 2001, p.132). Neste sentido, identifica-se
um consumo contemporâneo, que estabelece uma ligação íntima com o papel político,
econômico e cultural das marcas na sociedade. Dada uma capacidade emblemática de
representação, segundo Semprini (2006), as marcas tomaram uma proporção social para
além dos próprios objetos, que, transformados em produtos, provocaram uma reflexão
no contexto econômico e social, nos últimos tempos. A força deste nome, símbolo,
termo, desenho ou combinação de elementos está para além da semiótica, pois, carrega
consigo uma carga significativa de tradição, discurso estratégico e histórico, que, por
vezes, diferenciam marcas de moda de marcas de luxo. Neste viés, o consumo das
marcas é constituído por meio de um imaginário construído a partir do individualismo,
do corpo, da mobilidade das próprias marcas que desfronteirizam os objetos
(SEMPRINI, 2001).
Também Bourdieu13 (1983) sinaliza em relação às marcas elaboradas por grifes
de luxo, um processo de transubstanciação, que promove a sobrevivência da grife à
perda de seus criadores, por meio da exploração da própria marca, que se perpetua na
forma de perfumes.Sobre o conceito de marca, também Sahlins (2003) ao relacionar a
cultura e a razão prática, concebe a importância da pretensa superioridade funcional em
relação a outras alternativas possíveis em conseqüência dos valores imbricados na
estrutura da economia a partir da organização social das coisas. Assim, o valor da
mercadoria passa a ser regulado não só por sua utilidade ou significação das qualidades
objetivas, mas também por outros significados de apropriação simbólica que modificam
13
As maisons que sobreviveram à morte de seus fundadores só se perpetuaram com a exploração
industrial da grife – sob a forma de perfumes. (...) O costureiro realiza uma operação de
transubstanciação. Você tem um perfume do Monoprix por três francos. A grife transforma-o num
perfume Chanel, valendo trinta vezes mais. Esta faz dele um objeto de arte, assim transmutado econômica
e simbolicamente. A grife é a marca que não muda a natureza material, mas a natureza social do objeto.
Mas esta marca é um nome próprio. E, ao mesmo tempo, coloca-se o problema da sucessão, pois se
herdam nomes comuns ou funções comuns, não um nome próprio. (...) Na verdade, o que está em jogo
não é a raridade do produto, mas a raridade do produtor (BOURDIEU, 1983, p.7).
25
a natureza social do objeto (BAUDRILLARD, 2008), evidenciando a função simbólica
da marca. Por sua vez, Everardo Rocha (2000) observa as relações entre objetos e
marcas no sentido da demarcação de pessoas e grupos por meio de funções simbólicas,
em função ainda do reconhecimento de certos ―segredos‖ dos próprios consumidores,
que podem significar a diferença entre o sucesso e o fracasso de produtos e serviços, de
forma que o consumo, no contexto das marcas, poderia ser pensado como um sistema
simbólico que articula coisas e seres humanos de uma forma muito privilegiada dentro
da complexidade que envolve determinados processos de magia no funcionamento do
próprio capitalismo. Neste viés relacionado à magia da marca, Lévi-Strauss (1975)
conceitua eficácia simbólica, de forma que a magia depende da crença coletiva, a priori,
conquistada pelo reconhecimento social que uma determinada marca pode adquirir,
operados modernamente a partir de dispositivos de mídia e anúncios de todo gênero.
Neste intuito, a carga simbólica dos atos que envolvem as marcas para o consumo
constitui uma linguagem própria, que envolve rituais e mensagens em uma relação
íntima entre o símbolo e a coisa simbolizada, em um sentido próprio para atingir o
indivíduo, inebriando-o com o poder simbólico da própria marca, que se torna um dos
recortes contemporâneos do consumo, mesmo que ainda assuma um sentido individual.
3. A INTERNET E AS PESSOAS: RECONHECIMENTO DA FIGURA DO
CONNAISSEUR NA REDE
Quando comecei minha pesquisa nas comunidades e grupos das redes sociais,
não esperava chegar a discussões como esta, que envolve níveis de educação,
refinamento e conhecimento sobre um tema específico. Com a facilidade de acesso e os
processos de evolução e incorporação do hipertexto, enquanto um sistema de janelas
conectadas que forma a tessitura da própria internet, os modos de comunicação e
compartilhamento de informações tornaram-se acelerados, evidenciando não só o papel
da tecnologia na vida das pessoas, no sentido de modificá-las e, para elas, revelar um
mundo paralelo, mas, a possibilidade de incorporação gradual e definitiva da internet no
ethos dos indivíduos. Pensar em impactos on-line e off-line já tornou-se ―lugar comum‖
frente às práticas e aos usos pelos quais os sujeitos fazem conexões, vivências,
experiências e sociabilidades na espacialidade virtual.
26
Muito embora a internet seja democrática e não gratuita, é possível perceber uma
crescente utilização, de forma construtiva, no que se refere aos modos de fazer coisas
colaborativas e compartilhadas, evidenciando o verdadeiro caráter democrático da
própria rede. Anteriormente, conhecimentos especializados ficaram restritos a fóruns
especializados, localizados em espaços restritos, como as universidades ou instituições
privilegiadas, de certo modo, detentoras, por assim dizer, de saberes qualificados. Com
o advento da rede, tudo mudou, de forma que os processos de interatividade e
acessibilidade passaram a ser trabalhados por meio de sociabilidades, que se geraram
somente com o advento da própria internet.
Assim, o conceito de rede passou a ser incorporado, de fato, na cotidianidade, no
sentido de aprimoramento da comunicação interpessoal, o que permitiu a observação de
um ―espírito da internet‖, algo em torno dos espaços de sociabilidades (GUIMARÃES
JR, 1999), em especial aqui tratando das sociabilidades intencionais e especializadas,
como é o caso do culto que se apresenta em torno do consumo de perfumaria, que por
sua vez, divide a própria perfumaria em ―de nicho‖ e ―comercial‖, por exemplo. O
ciberespaço contempla a forma de imagens específicas, de pessoas entendidas por um
público virtual como ―formadores de opinião‖, experts sobre determinada área ou
assunto, de forma que a possibilidade que se constrói em torno de uma só faceta de uma
determinada pessoa diante de seu grupo de interesse acaba só sendo possível diante do
nível de conhecimento acumulado ou adquirido através de sua própria imersão na rede,
dentro da perspectiva básica da criação da internet que compreendia o diálogo com
pessoas do outro lado do mundo. Meus ―perfumistas‖ mais reconhecidos são pessoas
como inserção em grupos internacionais de diálogo sobre perfumaria, que recebem e
trocam amostras de perfumes com pessoas do mundo todo, que tem contatos
internacionais sólidos para comercialização de perfumes das marcas ou grifes
reconhecidamente de nicho, e, portanto de luxo, e vão educando suas atenções e
realizando seus processos de redescoberta orientada de modo bastante acelerado
(INGOLD, 2010). Como leitores de resenhas em sites especializados como
fragrantica.com, nowsmellthisperfume.com e basenotes.net, e compradores em sites
como fragrancenet.com ou saksfifthavenue.com, todos internacionais, estes indivíduos
não podem ser considerados simples consumidores, até porque, por deterem um
conhecimento especializado considerado pela maioria como muito sofisticado, passam a
desempenhar um papel no grupo, de certo modo, hierárquico, elencando o topo da
27
―pirâmide abstrata‖ que se pode imaginar dentro do próprio grupo, no que diz respeito
ao conhecimento prático e conceitual sobre perfumaria de nicho. Para essas pessoas, a
chamada perfumaria ―comercial‖, das peças publicitárias evidentes na TV à cabo, das
lojas de depertamento mais acessíveis ao grande público, é relegada a produto comum, à
condição de perfumaria mundana, que não vale a pena ser conhecida ou reconhecida.
Uma divisão dramática em torno dessa perfumaria demarca o status do
connaisseur, que se empenha fortemente em apresentar e representar seu conhecimento
sobre uma perfumaria diferenciada, conquistada a duras penas, no convívio com
taxações da receita federal, com extravios dos correios, com impostos e tantas outras
dificuldades de ser acessada. A escala freqüência dos bens, proposta a partir de Mary
Douglas (2009) demarca fortemente o que se percebe sobre a circulação da perfumaria
nestes espaços de sociabilidade. Quanto mais difíceis e restritos, mais status o possuidor
tem; quanto mais acessíveis, em nível de prêt-à-porter, mais relegados a segundo plano
ficam determinados perfumes. Uma certa preocupação em manter uma coleção de
perfumes de nicho, difíceis de serem encontrados e até mesmo reconhecidos, perfazem
o imaginário dos connaisseurs em cada grupo, e eles podem ser facilmente identificados
enquanto possíveis experts, em razão destas coleções, até certo ponto ―absurdas‖ e
surreais, já que trabalham arduamente para obter um conhecimento específico sobre esta
perfumaria mais refinada, que se reflete em seus processos efetivos de aquisição e
consumo de bens de luxo.
Suas coleções sempre são mostradas, a partir de imagens de perfumes quase
desconhecidos por uma maioria, que, observa, ―cochichando‖ entre si, como a
sociedade de corte de Norbert Elias, a ―grandeza‖ das coleções, a astúcia dos
colecionadores ―tops‖, conhecedores de uma perfumaria restrita, de marcas
desconhecidas, que, por vezes, dão ―o ar da graça‖ de suas imagens cultuadas quase na
lógica do fetichismo da mercadoria proposta em Marx, e por um detalhe, a adoração aos
objetos não substitui sua função mais elegante enquanto bens mediadores das relações
sociais da cultura material. Assim, connaisseurs vão se confundindo com parfumeurs,
especialmente após o impacto on/off line (HINE, 2004, MILLER, 2012) gerado com a
maior democratização do uso da internet para o acesso a um consumo diferenciado de
perfumes de luxo. Trocas, rituais e discussões passaram a ser observados, em torno de
prestigiosas grifes como Serge Lutens, L‘Artisan Parfumeur, Tauer e Etat Libre
D‘Orange que, por sua vez, formam um mundo a parte do circuito midiático que
28
transnacionalizou marcas de perfumes Chanel, Dior e Yves Saint Laurent. Mas, será que
tal processo desencadeou um efeito real ou apenas representa a simulação
(BAUDRILLARD, 1991) de uma suposta democratização de um conhecimento ainda
muito condicionado a modos de aquisição intelectual que estão para além do
ciberespaço.
Sobretudo, é preciso considerar que a plataforma desempenha um papel
fundamental para que a pessoalidade do connaisseur seja reconhecida diante de seu
grupo ou comunidade de atuação, já que todo seu conhecimento depende, em grande
parte, de seu desempenho, em nível de competência, capacidade e habilidade
(INGOLD, 2010) de articulação na plataforma digital, de reproduzir e traduzir
conteúdos, de apropriação de informações e trabalhar, com notoriedade, sua opinião no
imaginário social local, internamente dentro de um determinado espaço de
sociabilidade, operacionalizando metáforas e analogias que propunham uma conexão
imaginativa dos cheiros com outras experiências olfativas relativas ao cotidiano de
todos, na tentativa de interpretar as notas e os acordes de um perfume a partir de um
diálogo no espaço virtual. O desdobramento dos sentidos, das percepções e
sensorialidades fica condicionado ao uso própria da plataforma, que demonstra na
atuação do connaisseur um conhecimento de mundo não somente restrito aos perfumes,
mas a outras vivências possíveis, a condições quase máximas de detenção dos capitais
social, econômico, cultural e simbólico (BOURDIEU, 2011), que se transfiguram a
partir de seus modos de expressão e exibição dentro do próprio grupo. Contudo, um
connaisseur pode dizer que ―abre‖ as notas de um determinado perfume e pode explicar
sua percepção sobre cada uma delas a partir de metáforas possíveis e restritas ao uso de
uma determinada linguagem, mas, ele ainda não é um criador de perfumes, não se
apercebe ou consegue apropriar-se de processos metodológicos e organizados para criar
um perfume, e, neste viés, não passa de um bricoleur, da figura proposta por LeviStrauss, bastante articulada, que organiza e classifica com certa habilidade seus
interesses no mundo.
29
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A habilidade de um perfumista, portanto, não está apenas em inovar e inventar, mas em
considerar as mudanças que estão sempre ocorrendo nos componentes e encontrar as
proporções corretas necessárias para recriar um aroma que é de algum modo eterno. É
sempre a busca de criar de novo e preservar na nuance e complexidade a essência de
algo fugaz. Acima de tudo, como Coco Chanel sabia, perfume é um ato de memória.
[...] Hoje, o aroma de Chanel Nº5 – em particular na concentração parfum luxuosa,
considerada a melhor versão – permanece fiel à fragrância original de 1920. É o
aroma que os perfumistas da Chanel se esforçam para preservar, e isso tem significado,
diante das mudanças, descobrir como adaptar sem fazer concessões. Agora, com quase
90 anos de idade, o Chanel Nº 5 está prestes a continuar sendo o perfume mais famoso
do mundo por mais um século.
O segredo do Chanel Nº5, 2011, p. 239.
Pensando no que significa conhecer a perfumaria, outro dia, antes de dormir,
apaguei a luz do abajur e fechei os olhos. Já no escuro, abri rapidamente meus olhos, e
em fração de segundos, deparei-me com uma escuridão total e uma sensação de nada
conseguir ver, e que, aos poucos, foi se desfazendo na medida em que as sinuosidades,
as sombras em tons de preto foram aparecendo de cada coisa que compunha meu
quarto. Continuei deitada e me ocorreu que a habilidade que podemos adquirir na
perfumaria passa por esta ―penumbra‖, este momento sombrio em que pouco se
distingue cheiros, e aos poucos, novas definições vão tomando contornos extravagantes,
e um refinamento dos sentidos pode ser percebido a partir de uma educação da atenção
(INGOLD, 2010), tão própria do universo dos perfumes. E é por meio destas
articulações que perfumes como o famoso Chanel Nº5 se mantém, especialmente que se
trata de interações das práticas e experiências, físicas e espirituais, em que os indivíduos
realizam suas molduras de conhecimento, dadas ainda as influências nestas construções,
em nível de alteridade ou ação midiática, que engendram uma cultura de luxo, operada a
partir de critérios de poder, tempo, memória, linguagem e outras demarcações que
formalizam as distinções mais expressivas dos diversos públicos sociais que vivenciam
o luxo.
Séculos sob o signo do perfume desdobram-se desde a Idade Barroca, em que o
perfume era cultuado em aromas fortes, passando pelo século XVIII, em que as cortes
prestigiaram as mais célebres glórias da perfumaria mundial, e chegando a uma Idade
Moderna (GIRARD-LAGORCE, 2006), da qual faz parte a imensa contribuição do
30
próprio Chanel Nº 5, bem como de marcas da alta perfumaria atual, como Caron,
Guerlain, Coty, Molinard, dentre outros nomes da perfumaria francesa que fizeram
história, juntando-se aos grandes costureiros, em um fenômeno magistral desde o século
XX (BOURDIEU, 2008). A partir da década de 30, começa a irresistível combinação do
perfume à alta costura, e se abre o caminho para um novo ciclo da perfumaria na
França: Givenchy, Dior, Marcel Rochas, dentre outros, lançam suas fragrâncias em
badaladas e chiques embalagens, concebidas semioticamente como verdadeiras armas
de sedução que mexem com os sentidos das mulheres no mundo todo. A tendência
continuou para as gerações seguintes, e criadores como Pierre Cardim, Yves Saint
Laurent, Cacharel e Paloma Picasso imprimiram suas marcas pessoais em perfumes
cuidadosamente
trabalhados.
Sobretudo,
Sombart
(2009),
ao
associar
o
desenvolvimento do materialismo às novas percepções sociais e econômicas da
humanidade, reconhecendo uma cultura material de consumo nas relações entre sujeitos
e objetos, já vislumbrava na modernidade diversas vivências que emolduram o espírito
dos indivíduos e tornavam certas práticas do cotidiano, verdadeiros rituais de arte e
satisfação, que podem ser visualizados mais nitidamente na contemporaneidade, por
meio da intensificação das ações midiáticas, em publicidades e marcas, em suas
estratégias e discursos.
Contudo, em se tratando de uma doxa (BOURDIEU, 2011) da perfumaria
contemporânea, para além do luxo, é preciso considerar dois critérios basilares: a
percepção e o consumo. A primeira, refere-se à construção de uma sensorialidade ligada
a uma questão corporal, a uma hexis (BOURDIEU, 2011), que produz sentidos e
significações, que, ao mesmo tempo, podem ser entendidas por meio de recortes
individuais, e estão ligadas à dinâmica das transformações constantes na sociedade, e
entre reciprocidade e alteridade, cada indivíduo produz uma educação da atenção
(INGOLD, 2010) muito particular. Assim, um saber construtivista sobre a perfumaria
pode ser entendido nas conexões entre estética, historicidade, pluralidade, culturalidade,
corporalidade e tantos outros aspectos que legitimam um processo de educação
sentimental, que, por sua vez, perfaz a formação do ethos, seja dentro da perspectiva de
Ingold (2010) sobre o enskilment, seja pela lógica do habitus postulado por Bourdieu
(2011), mas que envolve, principalmente, uma profundidade de compreensão no tocante
à sensibilidade dos próprios processos de percepção.
O segundo ponto está organizado em torno do próprio consumo, entendido como
cultura material (MILLER, 2007), que envolve, evidentemente, os capitais cultural,
31
econômico e social tão caros à Bourdieu (2011), mas que também dizem respeito a
significados particulares encontrados nos objetos, nos processos de objetificação dos
indivíduos, bem como na inalienabilidade das coisas, para além do próprio valor
material de cada bem adquirido. Assim, assumimos uma autoridade estética (MILLER,
2009) diante das coisas que escolhemos, e em cada frasco de perfume, podem estar
escondidos motivos inimagináveis, que são permeados por uma série de significados e
representações, que, por sua vez, arranjam uma razão natural à prática da cosmética e
perfumaria no cotidiano social dos indivíduos e garantem, assim, importância no
trabalho dos perfumistas, que caminha com o trabalho dos próprios conhecedores.
Desta forma, uma conexão entre percepção e consumo, perfumeurs e
connaisserus, e é inegável a influencia das práticas virtuais e dos usos da plataforma online para a modelização das percepções destes últimos, que envolve a totalidade da
perfumaria de luxo pode ser encontrado nas formas de aprendizagem, na produção de
habilidades específicas, que não opõem produtores e consumidores, mas cria entre eles
um laço natural e consecutivo e convergem para dar sentido ao próprio perfume.
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