a intolerância religiosa face às religiões de matriz africana como

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a intolerância religiosa face às religiões de matriz africana como
Revista EDUC-Faculdade de Duque de Caxias/Vol. 01- Nº 03/Jan-Jun 2015
A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA FACE ÀS RELIGIÕES DE MATRIZ
AFRICANA COMO EXPRESSÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
BRASILEIRAS: O TERRENO DO COMBATE À INTOLERANCIA NO
MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS
Lucilia Carvalho da Silva
Graduada em Serviço Social, Mestre em Serviço Social pela UERJ e
Doutora em Educação pela UFF.
Docente da Faculdade Duque de Caxias – UNIESP e
Assistente Social do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.
Email: [email protected]
Katia dos Reis Amorim Soares
Graduada em Serviço Social pela Faculdade Duque de Caxias – UNIESP.
Técnica da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa do Município de Duque de Caxias.
Email: [email protected]
Resumo: Este artigo apresenta as expressões contemporâneas da intolerância religiosa
praticada contra as religiões de matriz africana, problematizando as origens do ódio às
manifestações de culto como resultante das relações étnico-raciais no Brasil, que revelam a
subalternização do negro na sociedade de classes e sua inserção cultural heterônoma. Ademais,
a presente produção acadêmica sinaliza as lutas de combate à intolerância religiosa no Brasil,
com ênfase nas atuais práticas construídas pelo Estado e pela sociedade civil no Município de
Duque de Caxias.
Palavras-chave: Relações étnico-raciais. Classes sociais. Intolerância religiosa.
Abstract: The article presents the contemporary expressions of religious intolerance practiced
against religions of African origin, questioning the origins of hatred of cult manifestations as a
result of ethnic-racial relations, which reveal the subordination of blacks in class society and its
heteronomous cultural integration. In addition, this academic production signals struggles to
combat religious intolerance in Brazil, with emphasis on current practices built by the state and
civil society in the municipality of Duque de Caxias.
Keywords: Ethnic-racial relations. Social classes. Religious intolerance.
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1 – INTRODUÇÃO
A intolerância religiosa não é um fenômeno recente, ao contrário, a história da
humanidade é marcada por disputas de território e poder que resultaram na supremacia das
manifestações culturais e religiosas do conquistador frente à submissão social, econômica e
política dos oprimidos. Muitas dessas disputas tiveram como mecanismo discursivo a fé e a
subsunção de um determinado ideário mistificador.
O desafio que ora empreendemos enfrentar é a reflexão sobre a questão da intolerância
religiosa na constituição da sociedade de classes, em especial, no contexto da sociedade de
capitalismo dependente brasileira, marcada pelo amálgama entre o “moderno” e o arcaico”.
Partimos do pressuposto que a revolução burguesa inconclusa das economias dependentes, nos
termos de Florestan Fernandes (2009), não superou as relações étnico-raciais do escravismo
para circunscrevê-las em relações estritamente classistas, dado que os vínculos tradicionais,
marcados pelo papel do “senhor branco” frente ao “negro submisso”, permaneceram presentes
mesmo com a passagem da abolição para o apogeu do “trabalho livre”. Neste sentido, o que ora
se apresenta como um fenômeno de rejeição às religiões de matriz africana, corresponde à
negação da identidade negra no Brasil.
Para dar conta do desafio proposto, o presente artigo foi desenvolvido obedecendo a três
eixos: i) o debate sobre as raízes da intolerância contra as religiões de matriz africana como
expressão das relações étnico-raciais e classistas no Brasil; ii) a sistematização dos principais
instrumentos regulatórios internacionais e nacionais que preservam a liberdade de fé como
preservação dos direitos fundamentais; iii) as políticas públicas de combate à intolerância
religiosa no Estado do Rio de Janeiro, com ênfase na experiência do Município de Duque de
Caxias.
2 - RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
Florestan Fernandes (2008), em importante obra sobre a integração do negro na
sociedade de classes, conclui que a assimetria entre “brancos” e “negros” e seus descendentes
mestiços permaneceram como traço das relações étnico-raciais no Brasil, não como resultado
da concorrência racial ou das disputas deflagradas pelas desigualdades de classe do trabalho
sob o modo de produção capitalista, mas como expressão de uma assimetria de poder
monolítica. Restava ao “negro livre” o ajustamento para integração social, ou seja, “aceitar
passivamente as regras do jogo estabelecidas pelo e para o branco” (FERNANDES, 2008, p.
346). Ao sistematizar depoimentos de negros sobre suas condições de pertencimento social, o
autor tecerá os argumentos que revelam a construção sociológica da heteronomia sociocultural
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da identidade negra, conforme denota um de seus relatos:
A raça branca criou para si o conceito de superioridade e para a raça negra o
conceito de inferioridade. [...] Este conceito criado para o negro criou, no
elemento branco, a prevenção. Criou um estado de espírito que, se não
podemos dizer de atrocidade para o elemento negro, pelo menos o podemos
afirmar na condição a que deveria ser – relegado a um elemento inferior. E
esse conceito de inferioridade sentimos a cada passo (FERNANDES, 2008, p.
348).
A ideologia dominante que subjugava a raça negra em defesa da superioridade da raça
branca europeia, na constituição das relações assalariadas de trabalho, era partilhada por muitos
pesquisadores, lideranças políticas e chefes de Estado, que acreditavam na formação de uma
“sub-raça crioula e mestiça” (COSTA, 2012). Essa sub-raça deveria estar sob o governo dos
brancos em razão da sua cultura bem mais desenvolvida e, consequentemente, apta para liderar.
Conforme salienta MUNANGA (apud COSTA, 2012), mesmo com o fracasso físico do
processo de “branqueamento” da identidade nacional, nasceu um novo mecanismo psicológico
que manipulou o inconsciente nacional coletivo, impondo a superioridade da raça branca, sua
cultura, seus valores, sua crença, seus ritos, menosprezando qualquer traço ideológico ou
cultural da raça negra/mestiça. Este processo de aculturamento rompeu a escala do tempo e
persiste até os dias de hoje, sob uma prática de repulsa e intolerância àquilo que é “inferior”,
negando qualquer valor à cultura de outros povos não inseridos na raça “branca”, com
ascendência europeia.
Portanto, partilhamos das concepções que defendem estar o preconceito contra as
religiões de matriz africana intrinsecamente relacionado ao preconceito racial, declarado contra
o negro desde os navios negreiros. No contexto da revolução burguesa típica das economias
dependentes, o ódio racial, no Brasil, é intensificado pelas origens de classe dado que a
construção do trabalho “livre” foi historicamente marcada pela submissão dos negros e pardos
às profissões e tarefas laborativas mais terminais, até degradantes, na divisão social do trabalho.
Ademais, a população “liberada” das lavouras escravistas passa a compor o excedente das
necessidades médias de acumulação do capital nos marcos do capitalismo dependente
brasileiro.
Uma trajetória que teve início com a libertação dos escravos quando o negro é
abandonado à sua própria sorte, vivendo numa situação de extremo pauperismo,
aglomerando-se em bairros pobres, em habitações em estado de total miserabilidade,
trabalhando (quando conseguiam) em subempregos, em profissões que eram rejeitadas pelos
brancos, levando uma vida social de desagregação familiar, alcoolismo e abandono. Suas
manifestações culturais e religiosas tornaram-se ainda mais marginalizadas e discriminadas,
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impedindo a possibilidade da construção/reconstrução positiva de sua identidade
(FERNANDES, 1965).
No Brasil, conforme clarifica Iamamoto (2012) à luz de Fernandes (2009), a questão
social se intensifica com o fim da escravatura e a chegada do modelo capitalista
urbano-industrial. Não houve uma revolução, houve um “acordo de cavalheiros” que mantém a
mesma classe dominante no poder só que com uma nova roupagem, de senhores de engenho
para empresários capitalistas, que, aliados a outras categorias sociais e economicamente
dominantes, formam uma forte burguesia conservadora latifundiária. Essas frações da classe
burguesa se unem para excluir forças populares e inibir a ascensão das classes proletárias, seja
pela via econômica, seja pela participação nas decisões nacionais e, ainda, por suas
manifestações culturais que afirmam sua identidade.
É neste contexto que a população negra sobreviveu e praticou sua fé, sua crença, seus
cultos. Somado a isso, o fato das religiões de matriz africana promoverem seus cultos através
de muita música e dança, sempre com muito mistério, provocavam certa repulsa, medo e
indignação por parte de adeptos de outros segmentos religiosos derivados de religiões oficiais e
socialmente aceitas, cuja origem é branca e burguesa.
Neste breve ensaio, a despeito das discriminações sofridas pelas religiões de matriz
africana, destacamos as lutas nacionais para promoção de um comportamento tolerante,
compreendendo a liberdade religiosa e a preservação das identidades socioculturais como uma
forma de resistência ao modo de pensar e agir hegemônico e excludente.
3 - AS LUTAS DE COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA: O APARATO
JURÍDICO-NORMATIVO
No campo dos dispositivos jurídico-normativos do plano internacional, a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, adotada pela Organização das Nações Unidas em 1948,
constituiu-se em um grande marco na intervenção mundial proposta para conter os abusos e
violências em nome da religião. Como ponto de partida no debate sobre intolerância religiosa,
encontra-se em seu corpo o artigo que define o direito à liberdade de consciência e prática
religiosa, a saber:
Artigo 18º - Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de
consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião
ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou
convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo
ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos.
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Silva e Ribeiro (2007) destacam o momento em que a Organização das Nações Unidas
(ONU), tendo analisado a complexidade do tema e compreendido a necessidade de maior
reflexão acerca da questão, apresenta em Assembleia Geral das Nações Unidas, em 25 de
novembro de 1981, o documento denominado “Declaração sobre a eliminação de todas as
formas de intolerância e discriminação fundadas na religião ou nas convicções”. O documento
teve como intuito delinear a prática de intolerância e discriminação com origem na religião e,
assim, propor estratégias políticas e sociais para seu enfrentamento.
Os autores supracitados destacam também o posicionamento da ONU quanto ao fato de
que nenhuma medida de promoção da liberdade religiosa e do respeito aos cultos consegue se
substanciar caso não haja comprometimento do Estado em criar medidas e legislações que
possam prevenir e eliminar qualquer tipo de intolerância e discriminação.
Para Silva e Ribeiro (2007), tanto na sociedade antiga como na atual, o discurso
religioso tornou-se grande empecilho para o diálogo entre os povos. De um modo geral, apesar
de todas as concepções religiosas pregarem a paz e a união e terem a solidariedade como meta
para a construção de um mundo melhor, no que se refere às práticas religiosas esse ideário não
apresentou, historicamente, muito progresso. Sobretudo porque as disputas religiosas
constituem elementos justificadores de disputas geopolíticas que configuram interesses para
além das tradições e dogmas religiosos. Fato este que, de acordo com os referidos autores, pode
ser compreendido mediante a necessidade de afirmação de algumas doutrinas sobre outras.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos e as declarações específicas de combate
às práticas de intolerância religiosa, incluindo a Declaração de Princípios sobre a Tolerância,
assinada em Paris no ano de 1995, configuram, portanto, um esforço da Organização das
Nações Unidas na criação de dispositivos que têm a função de evitar guerras, promover a paz e
afirmar a democracia (SILVA & RIBEIRO, 2007).
Mesmo compreendendo que as
declarações internacionais escamoteiam o pano de fundo das disputas religiosas, cuja origem
transcende os aspectos subjetivos da fé, consideramos que estes não devem ser desprezados
pelas lutas populares de combate a qualquer forma de discriminação.
No que tange ao marco regulatório brasileiro, o ápice das conquistas com base na
liberdade religiosa foi constituído efetivamente no nosso país a partir da Constituição Federal
de 1988.
A Carta Magna em seu artigo 3º, inciso IV, assegura que o Estado deve “promover o
bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação” (Brasil, CF/1988).
O artigo 5º, incisos VI e VIII, acrescentam:
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VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o
livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção
aos locais de culto e a suas liturgias; (...)
VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença
religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para
eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação
alternativa, fixada em lei (Brasil, CF/1988).
Um importante instrumento regulatório no campo da educação e da cultura foi a
exaração da Lei Nº 10.639/2003, que inclui a disciplina de História e Cultura Afro-brasileira
nos parâmetros curriculares nacionais, alterando a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei
9394/96).
Já é amplamente discutido por autores que abordam o tema do combate à intolerância
religiosa, o papel primordial que a educação possui na busca pela eliminação de todas as formas
de preconceito e discriminação, dado que o processo educativo envolve a reflexão acerca dos
valores morais e religiosos socialmente construídos e determinantes na identificação do que é
“certo” ou “errado”.
Cabe somar a este debate, os riscos em torno dos impactos provocados diretamente na
formação ética, social, política e cultural de crianças e adolescentes, devido à propagação de
uma intolerância histórica que massacra o “diferente”, reproduzindo um preconceito religioso e
social, assim como sinaliza McLaren (2000 apud CAPUTO, 2012, p. 270). Caputo (2012)
sinaliza, em pesquisa realizada com crianças e adolescentes no espaço escolar, que o
pré-requisito para ‘juntar-se à turma’ é desnudar-se, desracializar-se e despir-se de sua própria
cultura.
As observações da autora coadunam com o que impõe o Estatuto da Criança e do
Adolescente, Lei Nº 8.069 de 13/07/1990, ao definir a liberdade de profissão da fé como um dos
requisitos de preservação da identidade e da dignidade de crianças e adolescentes, conforme
expressam os artigos:
Artigo 5º.: Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de
negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão,
punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus
direitos fundamentais (...).
Artigo 16º.: O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos: (...)
III - crença e culto religioso.
Artigo 17º.: O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade
física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação
da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos
espaços e objetos pessoais (BRASIL, 1990).
Outro marco regulatório importante foi a criação da Lei nº 7.716 de 05 de janeiro de
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1989, denominada como “Lei Cao”, que a princípio veio qualificar crimes relacionados ao
preconceito de raça e cor, sendo mais tarde alterada pela Lei nº 9.459 de 13 de maio de 1997,
com o objetivo de atender as demandas emergentes no âmbito da prática de discriminação e
intolerância religiosa, em especial contra as religiões de matriz africana, que já apresentava um
número alarmante de casos registrados. A Lei Cao determina hoje que:
Artigo. 1. Serão punidos, na forma desta Lei os crimes resultantes de
discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência
nacional. [nova redação dada pela Lei nº 9.459, de 13 de maio de 1997] .
(...)
Artigo. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça,
cor, etnia, religião ou procedência nacional.
Pena: reclusão de um a três anos e multa (BRASIL, 1997).
As legislações de preservação da identidade negra e de defesa da tolerância religiosa
face às religiões de matriz africana constituem importantes instrumentos de luta. Contudo, são
inócuas se não combinadas com ações de controle social da população para um permanente
monitoramento do que está preconizado na lei, e com medidas de promoção de um
comportamento tolerante e socialmente responsável.
Neste espírito, a Medida Provisória nº 111 de 21 de março de 2003, convertida na Lei nº
10.678 de 23 de maio de 2003, representou uma conquista das lutas históricas do Movimento
Negro no Brasil. Deste marco regulatório se originou a Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) com o objetivo de fomentar o debate, criar políticas
públicas e capacitar seus respectivos executores acerca das questões relacionadas à população
negra, igualdade racial e o combate a toda espécie de discriminação e intolerância contra
indivíduos e grupos étnicos.
A SEPPIR é responsável por políticas nacionais em torno das questões que envolvem a
população negra, prioritariamente, e outros grupos étnicos subalternalizados. No entanto, a
preocupação com a questão da intolerância religiosa, especialmente, deve ser uma questão de
cuidado permanente que articule o governo, nas instâncias Federal, Estadual e Municipal, com
as organizações da sociedade civil.
4 - POLÍTICAS PÚBLICAS DE COMBATE À INTOLERÂNCIA RELIGIOSA: A
EXPERIÊNCIA DO MUNICÍPIO DE DUQUE DE CAXIAS
No Estado do Rio de Janeiro a questão da intolerância religiosa ganha espaço nas pautas
de elaboração das políticas públicas municipais. Na cidade do Rio de Janeiro, a SEASDH
(Secretaria de Estado de Assistência Social e Direitos Humanos) passa como “Grupo de
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Trabalho Permanente de Enfrentamento à Intolerância Religiosa para Promoção dos Direitos
Humanos”, que possui em sua composição, dentre diversos segmentos, um representante do
CRESS (Conselho Regional do Serviço Social) e um representante da OAB/RJ (Ordem dos
Advogados do Brasil).
Com a formação do GT, a cidade do Rio de Janeiro tornou-se pioneira no que tange à
criação e promoção de políticas públicas e serviços que auxiliam no combate à discriminação
racial e intolerância religiosa, e suas propostas tornaram-se incentivo para as demais cidades, na
promoção de debates e mobilizações em prol desta questão.
Movimentos de ecumenismo, dentre outros de caráter inter-religioso, vêm fomentando a
discussão no interior da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos
(SEASDH). A pressão social em torno do tema resultou na formação de um Grupo de Trabalho
de Enfrentamento à Intolerância e Discriminação Religiosa para a Promoção dos Direitos
Humanos (GTIREL), cuja data de início das atividades conta a partir de 06 de julho de 2015. O
GT possui assento de diversos segmentos religiosos militantes no combate à intolerância
religiosa, de representantes de diversos órgãos públicos, do CRESS e de outras organizações da
sociedade civil. Cabe salientar que as cadeiras do GTIREL foram ocupadas por representantes
de diversos municípios do Estado do Rio de Janeiro. A perspectiva da SEASDH é o
desdobramento do GTIREL até dezembro de 2015 para formação de um Conselho estadual de
luta contra a intolerância religiosa.
Uma das cadeiras do GTIREL é ocupada pela COMPPIRD (Coordenação Municipal de
Políticas de Promoção de Igualdade Racial, Intolerância Religiosa e Direitos Humanos
Individuais Coletivos e Difusos – LGBT), coordenação vinculada à Secretaria de Assistência
Social e Direitos Humanos de Duque de Caxias. A COMPPIRD, no ano de 2011, era
responsável pela promoção da liberdade racial e movimento LGBT, e a partir de 30 de setembro
de 2011 passou a abarcar as questões de intolerância religiosa através do Decreto nº 6090/GP.
Conforme o Decreto supracitado, a COMPPIRD passa a ter como objetivo principal o
enfrentamento e o combate à violência e à discriminação por orientação sexual, por cor/raça e
por credo. Cabe a Coordenação a promoção de projetos e ações que assegurem a igualdade e o
direito ao pleno exercício da cidadania por toda população, respeitando a diversidade, a livre
expressão, o direito de ir e vir e a preservação da liberdade de culto.
A COMPPIRD acrescenta ao seu aparato legal a Lei 9.459 de 13 de maio de 1997 que
altera os termos da Lei 7.716/89 (Lei Caó), considerando crime a prática de discriminação ou
preconceito contra religiões, que nos termos da lei é inafiançável e imprescritível.
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Compete à COMPPIRD: a) fortalecer instituições públicas e não-governamentais que
atuam na promoção da cidadania; b) disseminar informações sobre direitos; c) promover a
autoestima e incentivo à denúncia de violações dos direitos humanos de seu público alvo, em
especial os grupos religiosos de matriz africana, que sofrem abusos de intolerância religiosa, e a
população LGBT, atingida por crimes de homofobia.
No início do ano de 2014, a COMPPIRD foi apresentada às lideranças religiosas da
população de Duque de Caxias, como a Coordenação Municipal responsável pela promoção da
discussão sobre liberdade de culto na região. Esta apresentação foi divida em dois momentos.
No primeiro houve a promoção de encontros com líderes religiosos, separados por segmento,
sendo: 1) Com pastores (as) e missionários (as) do segmento evangélico; 2) Com yalorixás e
babalorixás (zeladores de santo) do segmento de matriz africana e 3) com padres e diáconos do
segmento católico. Nestes encontros, a COMPPIRD revelou o interesse em desenvolver ações
de parceria no combate à intolerância religiosa; apresentou a proposta de construção do I Fórum
de Combate à Intolerância Religiosa e a I Caminhada Contra a Intolerância Religiosa do
Município; bem como a formação de uma Comissão Municipal de Combate à Intolerância
Religiosa, responsável por esta construção.
A proposta foi aprovada na íntegra pelos convidados presentes nos encontros por
segmento e a Comissão Municipal de Combate à Intolerância Religiosa foi instituída por
representações dos segmentos: evangélico, católico e de matriz africana (candomblé e
umbanda).
No momento posterior à aprovação, foi realizado no dia 14 de abril de 2014, na sala de
reunião da Secretaria Municipal de Assistência Social e Direitos Humanos de Duque de Caxias,
o primeiro encontro com diversas lideranças religiosas do município. Neste segundo encontro,
de caráter mais amplo e já com a presença da Comissão Municipal de Combate à Intolerância
Religiosa, foi apresentado o documento de Consulta Pública do Plano Estadual de Promoção da
Liberdade Religiosa e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro, organizado pelo Centro
de Promoção da Liberdade Religiosa e Direitos Humanos (CEPLIR) e pela Superintendência de
Direitos Individuais, Coletivos e Difusos (SUPERDIR) do Estado. O documento objetiva ser
um recurso para consulta e orientação, que enfatiza a necessidade de organização e parceria
entre a sociedade civil religiosa e a gestão municipal no combate ao crescimento assustador dos
casos de violência na prática de intolerância religiosa.
A Comissão passou a reunir-se semanalmente com o objetivo de promover a proposta
da construção do 1º Fórum e a 1ª Caminhada Contra a Intolerância Religiosa no Município de
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Duque de Caxias. Para além da organização destas atividades, a Comissão realiza um esforço
de empreender ações afirmativas em parceria com a sociedade civil religiosa e sensibilizar a
população quanto à urgência das ações em prol do combate às manifestações violentas e
intolerantes contra movimentos religiosos, templos e indivíduos que desejam exercer sua
crença, em especial contra manifestações e casas religiosas de matriz africana. Contudo, é
importante salientar que a Comissão é um movimento aberto a demais segmentos religiosos e
sociais que tenham interesse em participar e somar nesta luta contra o preconceito e a
discriminação.
Cabe destacar que a Comissão tem por objetivo abarcar toda e qualquer forma de
combate à intolerância religiosa, contudo, compreende-se que a evidência do alto número de
atos de intolerância contra as religiões denominadas de matriz africana pede urgência na
criação de medidas que assegurem a liberdade de culto aos adeptos deste segmento religioso.
De acordo com o Centro de Promoção da Liberdade Religiosa & Direitos Humanos (CEPLIR)
do Rio de Janeiro, de julho de 2012 a dezembro de 2014 foram registrados 948 denúncias de
intolerância religiosa, sendo 71% contra religiões de matriz africana. Estes dados foram
divulgados em 18 de agosto de 2015 através da apresentação preliminar de um dossiê elaborado
pela Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) do Rio de Janeiro, em audiência
pública na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ). O documento destaca
ainda, o número de denúncias do Disque 100 que vem aumentando desde 2011, e o crescimento
da prática de intolerância religiosa virtual, que necessita também ser cuidadosamente
qualificada e punida na forma da Lei.
A COMPPIRD ofereceu suporte para a Comissão na realização do 1º Fórum Contra a
Intolerância Religiosa, realizado em 20 de setembro de 2014, e para a 1ª Caminhada Contra a
Intolerância Religiosa, realizada no dia 23 de novembro de 2014, que percorreu o trajeto entre
as praças Humaitá e Roberto Silveira, no bairro 25 de Agosto, no Município de Duque de
Caxias, RJ. A Caminhada contou com a presença de diversas representações da sociedade civil
religiosa, tais como: evangélicos, católicos, candomblecistas, umbandistas, kardecistas e filhos
de Gandhi.
Durante a marcha foram realizadas apresentações de grupos étnico-raciais,
afrodescendentes, indígenas e católicos, que teve como objetivo provocar uma reflexão quanto
às diversas formas de enfrentamento desta violência, a criação de políticas públicas de combate
ao preconceito e discriminação e a promoção da liberdade religiosa, respeito à diversidade. Em
última instância o evento teve como expectativa a mobilização da população para o fim da
prática de intolerância que negligencia os direitos constitucionais de todo cidadão.
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A aprovação da sociedade civil e religiosa do município de Duque de Caxias para este
evento fomentou a efetivação do ato para os anos subsequentes como marco na história do
município na luta contra a intolerância religiosa. A previsão de realização da II Caminhada é o
dia 08 de novembro de 2015, data esta que está em processo de avaliação no calendário público.
A Comissão Municipal de Combate a Intolerância Religiosa de Duque de Caxias tem
demonstrado, na prática, a possibilidade de uma articulação inter-religiosa na defesa do direito
constitucional à liberdade de culto. Para além, no que tange a ação afirmativa da identidade
negra, a Comissão tem contribuído, de forma tímida pelo muito que ainda precisa ser
construído, mediante a defesa do patrimônio socio-histórico e cultural das religiões de matriz
africana.
5 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ampliação dos direitos ao exercício pleno da liberdade religiosa tem se destacado
como um importante fenômeno na democracia brasileira, contudo, a resistência “branca”
latente na sociedade civil e mesmo no espaço público e governamental provoca manifestações
constantes de preconceito e intolerância que, segundo Quintão (2012), preserva certa
resistência à liberdade religiosa que se configura inclusive dentro dos espaços institucionais
onde se deveria priorizar a justiça e a garantia de direitos.
Diante de uma realidade retrógrada que reproduz um contexto histórico marcado pelo
preconceito contra a raça e a cultura negra, apesar de todos os avanços legais neste combate,
emerge uma preocupação quanto à relevância das legislações conquistadas ao longo dos tempos
e sua aplicabilidade, ressaltando o papel importante dos movimentos sociais, a formação de
grupos de trabalho, de Comissões de Combate à Intolerância Religiosa e de veículos para
suporte e orientação à população vítima deste crime de discriminação.
Este é um trabalho lento, entretanto é preciso resistir e perseverar na manutenção desta
pauta, mediante a criação de fóruns, seminários, caminhadas, com destaque para debates nos
espaços educacionais a fim de legitimar a implantação desta discussão nos componentes
curriculares de todos os níveis e modalidades de ensino. Esta última estratégia visa estabelecer
este diálogo tão polêmico e conflitante para dentro das escolas e, em especial, no interior dos
muros das faculdades e universidades, como forma de fomentar o debate sobre a questão racial
e classista.
Por fim, cabe salientar a necessidade de se repensar a questão religiosa no que tange a
criminalização da prática das religiões de matriz africana no Brasil, que ainda nos dias de hoje,
sofre cotidianamente com a incitação ao ódio e a violência através de atos de intolerância
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religiosa. A intolerância fere física, psíquica e socialmente os adeptos das religiões de matriz
africana, enquanto cidadãos de direitos constitucionalmente adquiridos e endossados através de
legislações específicas.
Para nós, denunciar as origens da discriminação e preconceito contra as religiões de
matriz africana no Brasil (o candomblé, a umbanda e derivações) significa resituar o lugar do
negro e do trabalhador pauperizado no Brasil na construção da sua subjetividade.
6 - REFERÊNCIAS
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, CRF de 1988.
_______. Lei Nº 7.716, de 05 de janeiro de 1989. Define os crimes resultantes de preconceito
de raça ou de cor. Disponível em: http://www.planalto.gov.br. Acesso em 08 de agosto de 2015.
_______. Lei Nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do
Adolescente e dá outras providências.
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