Israel Kuperman - KBR Editora Digital

Transcrição

Israel Kuperman - KBR Editora Digital
Israel do Brasil
Israel Kuperman
Israel do Brasil
1ª Edição
POD
KBR
Petrópolis
2015
Coordenação editorial Noga Sklar
Editoração KBR
Transcrição das entrevistas Flaviana Dias Barbosa
Mendes
Capa KBR, sobre “Cavaleiro”, óleo sobre tela de
Chanina, 1993
Fotos do miolo Acervo pessoal do autor
Copyright © 2015 Israel Kuperman
Todos os direitos reservados ao autor.
ISBN: 978-85-8180-358-6
KBR Editora Digital Ltda.
www.kbrdigital.com.br
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55|21|3942.4440
BIO002000 - Autobiografia, Herança cultural
Israel Kuperman é engenheiro e juiz classista aposentado.
Fazendeiro tardio, foi pioneiro da hotelaria em Belo Horizonte, onde
fundou a Rede Royal de Hotéis, hoje expandida a nível nacional. Participou do crescimento e desenvolvimento da capital mineira e de suas
instituições sociais. Como descendente de imigrantes e “filho do Holocausto”, construiu sua própria “persona” numa vida de lutas e dedicação absoluta à família e aos valores morais. Sua história se confunde
com a história de um país eternamente em construção chamado Brasil.
Email: [email protected]
Ao Seu David, cobre bruto que a vida transformou em joia rara
de sabedoria e bom senso.
Agradeço a Angélica Bonome, cujo empenho, dedicação
e competência permitiram a realização desta obra, tida inicialmente como impossível.
Sumário
Prefácio • 15
O começo de tudo • 21
A casa da Rua Mauá • 29
A redoma e o pião • 43
Escola de vida • 57
Uma menina para ser esposa • 75
Aventuras de rapaz • 91
Excelência • 105
Seguindo o script • 121
O memorial de Betim • 137
Erguer prédios, transpor obstáculos • 149
Sabedoria paterna • 169
Três novos bairros • 181
Pampulha: sua origem, sua gente • 193
Sustos e surpresas no hotel • 209
Saber levar, saber administrar • 229
O pinheiro e a neve • 241
As crianças • 255
Se o problema é dinheiro... • 273
Turismo forçado em Johanesburgo • 285
Fênix • 301
Intramuros • 317
O hiato: “Luz, quero luz.” • 331
Ampliando o espaço • 349
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A Rede Royal • 371
Um recanto à beira d’água • 387
Hora de colher frutos • 403
O negócio dos 10% • 419
Outro patamar • 435
Minha Pasárgada • 453
Resumo da ópera • 471
Posfácio: o Homem das Cavernas • 491
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Prefácio
Há pouco mais de um ano, quando me convidou para ajudá-
-lo a organizar um memorial em sua fazenda, Israel resumiu sua
trajetória desde o Colégio Estadual de Minas Gerais, onde fomos
contemporâneos. Depois de vitoriosa carreira como engenheiro,
hoteleiro, líder classista e juiz do Tribunal Regional do Trabalho,
queria homenagear seus ancestrais, judeus poloneses, e registrar
a história da família, a partir da vinda de Seu David e Dona Malka para o Brasil, com ênfase na nova árvore Kuperman, plantada
entre nós.
Mostrou-me farta coleção de fotos; relatou uma viagem à
Polônia, onde pouco encontrou que ajudasse em seu projeto, e,
repetidas vezes, referiu-se ao judeu que “saíra da Arca”.
Naquele primeiro encontro, lhe transmiti a convicção
de que um memorial era pouco para conter tanta informação e,
principalmente, para acolher aquele manancial que borbulhava
poderosamente de sua memória e de seu coração.
Antevi claramente o belo livro que poderíamos ter. Mas
percebi, com igual nitidez, que deveríamos caminhar sistematicamente, um passo de cada vez.
Para o encontro seguinte, convidei Angélica Bonome,
com quem eu trabalhara, na Fundação João Pinheiro, na edição
de dez fascículos sobre empresas de Belo Horizonte, utilizando
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a metodologia de História Oral. E mesmo sem se comprometer
em escrever um livro, Israel deu sinal verde para começarmos.
As entrevistas foram realizadas de abril a dezembro de
2013, em encontros iniciados por volta das nove e meia da manhã das terças-feiras, nas “salas do horóscopo” do Royal Center Hotel. Só duas vezes houve mudança de local: uma, para o
restaurante do hotel, e outra para a sede da Fazenda Royal, em
Betim.
O tempo médio das entrevistas foi de uma hora e meia,
durante as quais o cuidadoso roteiro de Angélica era frequentemente atropelado pelo Israel, que já chegava com assunto na
agulha. O registro em áudio era imediatamente passado para
transcrição a Flaviana Dias Barbosa Mendes, que já trabalhara
comigo na Secretaria de Estado da Cultura e, depois, em um
projeto pessoal.
De volta à Angélica, a transcrição passava pela conferência de fidelidade, verificando-se a correspondência com o que
foi dito e buscando solucionar eventuais problemas. Em seguida, fazia a pré-edição, eliminando perguntas, eventuais erros
ortográficos, de digitação e de concordância, bem como repetições e cacoetes comuns na linguagem oral, além de realizar uma
conferência preliminar de fatos históricos, nomes e datas.
No arquivo, identificado pelo número da entrevista (de
1 a 30) pela inicial “A”, de Angélica, e a indicação “Sem gordura”,
eu aprofundava a intervenção no texto, que era encaminhado ao
Israel para verificação da grafia de nomes, correção, retificação
ou esclarecimentos de determinadas passagens — supressão do
santo, do milagre ou de ambos — e checagem de nomes e fatos
num processo repetido, até que não restassem dúvidas.
Preocupado em preservar o estilo típico do autor, só na
segunda entrevista encontrei o nível adequado de intervenção
no texto. A partir daí, havia a cada semana uma nova gravação
e pelo menos um novo arquivo enviado ao Israel, que, segundo
me confidenciou depois, foi imprimindo e acumulando tudo
junto ao cofre.
Certo dia, disse que sua vida era como um videogame,
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e que, com o projeto do livro, ele havia mudado de etapa. Mais
tarde afirmou, com entusiasmo: “Este é um dos projetos mais
importantes da minha vida”. Em dado momento, diante de trezentas páginas impressas, separou a primeira delas com o indicador direito e confessou: “Nunca pensei em passar desta”.
Selecionadas as fotos, elaboradas as legendas, a decisão, sempre cautelosa, foi fazer uma edição particular de 100
exemplares, que deveria estar pronta até 28 de abril, dia de seu
aniversário. A conclusão do livro, que quase certamente pedirá
uma edição maior,1 veio acompanhada por um sentimento de
gratidão pela oportunidade de trabalhar de forma tão harmoniosa, num caminho demarcado pela imersão, pela disponibilidade, pela clareza de propósito, pela comunicação constante,
por uma às vezes mal disfarçada ansiedade do Israel, que, no
entanto, jamais deixou de lado sua firmeza de propósito e segurança de direção.
Angélica assinala que, pelo caráter informativo do depoimento oral, podemos conhecer costumes, traçado urbano,
formas de convivência e uma rica trama de relações de uma antiga Belo Horizonte. Pontua ainda que, dada a sua subjetividade, “o que é lembrado ou esquecido, a forma como se lembra, o
recorte que se faz, o significado que se dá a isso ou àquilo, tudo
empresta singularidade ao depoimento: um sujeito falando de si
próprio, de seus valores e princípios, de sua consciência de plenitude ou incompletude, de sua insatisfação diante do mundo
ou adequação a ele, da forma como deseja ser (re)conhecido”.
Guiados pelo olhar sempre atento de Israel, o leitor poderá viajar pelas últimas sete décadas de nossa cidade, penetrar
na intimidade da rica cultura judaica, conviver com a “turma do
Minas”,2 participar de variadas atividades empresariais, assistir
ao surgimento de novos bairros, acompanhar as significativas
1 N. E.: A presente se trata da solicitada edição maior, pela KBR. A edição
limitada original foi publicada sob o título Notas e Tons de Israel. Algumas
datas, idades e referências do passado foram atualizadas nesta edição, de
março de 2015.
2 Minas Tênis Clube, de Belo Horizonte.
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Israel Kuperman
mudanças sociais, conhecer um raro espécime de egrégio engenheiro e viver as aventuras de um fazendeiro urbano, sempre
imbuído do propósito de ampliar oportunidades para sua descendência.
Como seu contemporâneo, pude reconhecer incontáveis fatos e personagens de sua narrativa, reencontrar inúmeros
amigos, muitos de convivência fraterna na Escola Albert Einstein, de cuja direção colegiada participei e onde meus filhos estudaram.
Participar da elaboração deste livro deu-me o privilégio
de testemunhar o relato de uma vida obstinada, de um personagem movido pela solidariedade, pelo espírito conciliador, com
um talento extraordinário para se comunicar e fazer amizades,
para se adaptar a situações novas, sempre alcançando patamares mais altos e abrindo espaços para um novo ramo à sombra
do frondoso tronco Kuperman, que ele enraizou em terras mineiras.
Olavo Romano
Presidente da Academia Mineira de Letras
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Capa da edição limitada original, com o óleo sobre tela de Marc
Chagall, “O violinista azul”, de 1947.
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O começo de tudo
Meu nome é Israel Kuperman. Diferentemente do brasileiro
médio, não tenho um nome do meio. Nasci em Belo Horizonte, no dia 28 de abril de 1939, fiz 74 anos neste fim de semana,
quando, como é meu costume, reuni a família que se originou do
meu casamento com a Miriam.
Ah, o nome completo dos meus pais merece uma observação. Naquela época, como até hoje, a imigração europeia era
muito pequena no Brasil, e o nome dos meus pais já indica uma
certa diferença: meu pai chamava Izaac com Z e dois As, David
com D, e Kuperman como sobrenome. Se fosse falar o nome dos
meus avós, eu mesmo não saberia pronunciar, “Mordka”, e aí já
vai para outro caminho.
Meu pai nasceu no tempo dos latifúndios, no dia 25 de
dezembro de 1909, numa pequena aldeia rural que pertencia a
uma cidadezinha chamada Tiepélov. Soletro: C-W-I-E-P-E-L-O-V, e ainda ficou faltando um Z, que vou encaixar aqui: Czwiepelov. Era uma aldeia típica de judeus na Europa Oriental, o
chamado shtetl, não sei se você já ouviu falar, como a que aparece no filme “O Violinista no telhado”.
Então, era uma cidadezinha característica, parte da propriedade rural do nobre feudal e dividida em duas partes, devido à estrutura colonial da época e às leis vigentes. Nela con| 23 |
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viviam duas comunidades: a dos gentios, não judeus — em iídiche, goyim — e a dos judeus. A população judaica era muito
numerosa, e havia centenas dessas cidades por toda a Europa
Oriental, praticamente sob o domínio da Rússia czarista. Seus
habitantes eram súditos do czar.
Os gentios viviam da agricultura e da pecuária, em terras
arrendadas aos nobres, que não podiam trabalhar. Os judeus se
dedicavam a outras atividades, como prestação de serviços para
os gentios e judeus mais ricos, locação e comércio, pois lhes era
vedada por lei a propriedade de terras. Por vezes trabalhavam
também como meeiros nas colheitas, para usar o termo brasileiro.
Quando visitei o shtetl, encontrei a casa de meu pai. Era
de madeira, como a maioria das residências no começo do século XX, e estava em ruínas. A sinagoga e a escola, construídas
através de contribuições, eram feitas de pedra, e resistiram melhor.
Meu pai tinha irmãos, mas não vou conseguir dizer
quantos, nem seus nomes. Era o mais velho de uma família
tradicional de artesãos do shtetl. Na estrutura familiar judaica
de então, que se regia por hábitos e tradições milenares, crianças de ambos os sexos se alfabetizavam no cheder, espécie de
escola caseira — em iídiche, não na língua do país. O homem
se desenvolvia mais intelectualmente, e depois do cheder frequentava a yeshiva, escola religiosa onde se dedicava ao estudo
da Torá e do Talmud — uma compilação de costumes, leis e
suas interpretações, histórias orais transcritas. E meu avô seguiu esse padrão.
Era uma sociedade hierarquizada. O shtetl tinha um rabino, que era o chefe da comunidade, e os professores. Os dois
papéis por vezes se confundiam, e o rebe — palavra em iídiche
que também significa sábio — era o líder, o juiz, o governador.
Fazia os casamentos, o Brit-Milá (circuncisão) e os enterros, e
era mediador nas desavenças, uma estrutura tribal que ainda
prevalece até hoje, no ishuv (comunidade judaica) de Belo Horizonte ou outros lugares do mundo.
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A sinagoga preservava a mesma estrutura do Templo de
Salomão: no topo, os sacerdotes, da tribo dos Cohanim, de onde
vem o sobrenome “Cohen” tão comum entre judeus. As cerimônias religiosas não precisam de um lugar físico, mas de um grupo de dez homens, o minian, exigência respeitada ainda hoje,
quando temos sinagogas ortodoxas e liberais, as chamadas “reformistas”, que até admitem mulheres em sua hierarquia, mas
naquela época isso não existia. Os Cohen eram (e são) descendentes diretos dos sacerdotes do Templo. Em seguida, vêm os
levitas, os guardiões do Templo. A tribo de Israel era a plebe, o
povão. Então, um Cohen e um levita, que pertenciam à nobreza,
eram chamados para abrir as cerimônias, fazer uma prece junto
ao livro sagrado; depois, vinha Israel, o povo. Então, a família
do meu pai era o povo, Israel, enquanto o Cohen, fazendo um
paralelo com outras hierarquias, seria comparável ao rei, um
sábio, e que se fazia líder pela sabedoria.
Na sociedade judaica, os homens nomeiam a descendência, embora as mulheres sejam responsáveis por ela. Assim,
também os nomes seguiam uma estrutura. Meu pai, por exemplo, era Izaac David ben Mordka, “filho de Mordka”; até hoje,
na sinagoga, sou conhecido por sou Israel ben David, filho de
David, e assim sou chamado, como qualquer judeu no mundo,
para fazer uma prece junto à Torá, entendeu?
No dia a dia, era a mulher que se encarregava da educação das crianças, como ainda hoje. A maioridade religiosa
masculina — Bar Mitzvá, “filho das leis” —, aos treze anos, era
considerada a maioridade civil (hoje em dia há uma adaptação
moderna, que é a maioridade para as mulheres, o Bat Mitzvá,
“filha das leis”) e um dos eventos mais importantes da vida em
sociedade, um rito de passagem celebrado mesmo pelas famílias mais pobres.
E aqui eu faria um parêntese. Fala-se muito da riqueza
dos judeus, que os judeus têm todo o dinheiro do mundo, mas
a grande riqueza dos judeus é a cultura, a educação. Não existe
judeu analfabeto, e por quê? Por causa da obrigatoriedade de ler
o livro sagrado em frente à Comunidade, aos treze anos, numa
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idade em que outros meninos estão subindo em árvores. Este é
o grande diferencial.
O Bar Mitzvá é o ponto alto dessa tradição cultural. Uma
das finalidades da fundação do Estado de Israel foi criar um
lugar para o judeu errante, pois ao longo do tempo as perseguições continuam as mesmas... Então, o primeiro artigo da sua
Constituição é: “Israel é um país aberto a todos os judeus do
mundo”, mas para se enquadrar nessa lei do retorno, não basta
dizer “Eu sou judeu”. É preciso provar, e o Bar Mitzvá é um dos
requisitos.
Na Etiópia, por exemplo, há uma população enorme
de judeus negros. E apesar do subdesenvolvimento da região
e da indigência cultural da Europa Oriental, a obrigatoriedade
escolar foi mantida, tinham que sobreviver sob o comando da
mãe. Como a pobreza era muito grande, as crianças começavam a trabalhar prestando pequenos serviços domésticos em
sua própria casa. Se a família tinha um ofício, o filho se tornava
aprendiz, fosse artesão, lavrador ou açougueiro, esta última uma
atividade de elite devido às leis dietéticas e às regras religiosas
no abate de animais. Mas meu pai, desde cedo, ajudou na sobrevivência material da família como mensageiro, levando ou
buscando coisas, e transmitindo recados.
A produção de alimentos era a única forma de economia
facultada aos judeus que quisessem manter uma atividade rural.
A família do meu pai, por exemplo, tinha uma vaca, então por
que meu pai seguiu um caminho diferente? Talvez por influência materna, talvez conduzido pelo antissemitismo.
Os judeus vivam isolados, e o shtetl era fiscalizado e pagava
impostos aos nobres, que sempre eram gentios. Para ter uma convivência harmônica, tinham que agradar os coletores do feudo e também os alferes, emissários do czar. Mas muitas vezes a relação azedava e ocorriam choques entre as duas comunidades antagônicas,
com culturas estanques. Os goyim frequentavam a escola do estado
e sua educação era totalmente diferente, então o relacionamento oscilava entre ser amigável e provocar atrito. Os ritos de casamento de
cada comunidade, por exemplo, não eram válidos na outra.
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Quando estive no Memorial do Holocausto, escrevi uma
frase que seria uma pá de cal nessas histórias antigas: “O inconsciente coletivo da humanidade odeia o judeu”.
Já naquele tempo, antes da Revolução Comunista na
Rússia, havia movimentos sociais de reivindicação de empregos, reivindicação econômica, política, entre eles o movimento
socialista sionista e sua demanda por uma terra, por um Estado.
Já havia diversas organizações judaicas em torno das quais a comunidade se congregava, discutindo ideias da época, e muitas
delas existem até hoje — de centro, de direita e de esquerda.
Meu pai sempre foi de centro, porque a nossa é uma família
pragmática, isso parece que está no DNA. Somos de centro e
pronto. Havia um partido judaico, os Poalei Tzion, e sua primeira preocupação, não exclusivamente judaica, era a melhoria social da humanidade. Ideais socialistas ou ideais capitalistas, não
importa, a conquista de um Estado era o ponto de confluência
de todas essas tendências. O que congregava todos era o ideal de
uma terra para os judeus.
Esse era o futuro que meu pai teria que abraçar, tornando-se um profissional dentro das possibilidades... da causa?
Não! Da sobrevivência. Deixando de lado a política e partindo
da família, tinha que melhorar de vida. Havia muita pobreza.
Então era preciso crescer trabalhando, exercendo os ofícios
possíveis na época e avançando neles, dentro das limitações impingidas pelo Estado czarista.
Já havia o sistema de cotas, e desde aquela época, para
frequentar a escola católica oficial, o judeu tinha que ser especialíssimo, se destacar nos estudos, já ter uma formação profissional dentro dos trâmites da sociedade czarista, não judaica.
No sentido intelectual, não acho que o meu avô apostasse que
poderia galgar degraus muito altos, mas melhorar de vida era
uma imposição para a sobrevivência. E aí, aconteceu uma coisa
na família do meu pai que mudou tudo: a matriarca ficou doida!
O termo é esse mesmo: louca.
O nome da minha avó era Dina, Denise, o mesmo de
minha filha. Então, dentro daquela família estruturada segundo
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Israel Kuperman
os princípios do shtetl, ela enlouqueceu. O que nos contaram
foi que ela ficou doente, mas sua doença era mental. E qual era
o destino de um doente mental na época? Hospício. Nossa organização matriarcal implodiu, algo semelhante ao que ocorre
ainda hoje em uma cidadezinha do interior, no Vale do Jequitinhonha: o pai é um lavrador, a mãe é dona de casa, cuida lá
das coisas. Quando se rompe a estrutura que, bem ou mal, vem
funcionando, o que acontece? Procura-se a ajuda de um parente, um tio, um cunhado...
Pois meu pai procurou um tio-avô estabelecido em Varsóvia, e foi morar com ele, não sei dizer precisamente a data, mas
se ele nasceu em 1909 e emigrou para o Brasil com 23 anos...
Até os treze viveu no vilarejo, onde fez o Bar Mitzvá, e logo
depois sua mãe adoeceu. Então, aos 15 anos, com a ajuda do tio
chamado Israel Glatt, teve que procurar serviço, providenciar o
próprio sustento. E como ele saiu do shtetl? Se fosse para uma
aldeia próxima, uma cidadezinha chamada Radom — eu estive
lá — iria de carroça, a cavalo, de jardineira. Mas Israel Glatt,
seu parente, natural de Radom, agora morava em Varsóvia, uma
cidade grande, a capital da Polônia.
O episódio da poupança rural era o seguinte: havia as
feiras, onde se negociavam os bens de primeira necessidade,
como vacas ou ovelhas, que forneciam leite, um cabrito, um cavalo — o patrimônio familiar. E quando família Kuperman se
desintegrou, tiveram que dispor de seu maior bem: a vaca. Então, meu pai foi a pé até a feira levando a vaquinha, ele mesmo
me contou a história dessa jornada de mais de dez quilômetros
para se desfazer do grande patrimônio de sua família, tomando
cuidado para que ela não se ferisse, porque ia escorregando na
neve e ele tinha que segurá-la, um menino de pouco mais de
13 anos, isso, antes de David decidir procurar o tio, que tinha
negócios, era estabelecido, e arrumou-lhe um emprego numa
fábrica de sapatos. Meu pai sempre foi muito trabalhador e, apesar de analfabeto na língua oficial, era muito perspicaz. Conversava com o tio em iídiche, e eu mesmo, quando criança, fui
educado nessa língua.
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Em Varsóvia, a comunidade judaica tinha outra escala.
Os primos distantes de David tinham uma malharia, não eram
mais artesãos rurais. Ele me contou que os considerava os ricos
da família, industriais na cidade grande. Como a produtividade
de meu pai era muito alta, tornou-se logo o chefe, gerente de
produção. Seu David enxergava longe, tinha ambição, queria
progredir, então se esforçava muito. Creio que herdei dele essa
coisa de administrar.
Nessa altura já tinha dinheiro sobrando para sustentar a
família lá na aldeia, mesmo sendo semianalfabeto, também em
iídiche! Entendeu? Português, ele nunca aprendeu a escrever.
Suas cartas eram sempre em iídiche. E assim chegamos ao fim
dessa fase de Europa Oriental.
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A casa da Rua Mauá
O jovem daquela época, principalmente o judeu, tinha uma
preocupação muito grande com a cidadania, com os valores sociais. Sua primeira aspiração era adquirir todos os direitos de
cidadão, e para isso se voltavam ao socialismo, uma solução para
a mocidade toda, a solução universal cuja força era grande, por
causa das desigualdades, da influência de Karl Marx e da Revolução Russa, ainda muito próxima
Seu David, como todos os jovens de seu tempo, era engajado. Aos 20 e poucos anos, já com a subsistência garantida, se
filiou ao Poalei Tzion. Não sei o significado exato, mas Tzion era
a terra de Israel,3 onde existia o bíblico monte de mesmo nome.
Viena era o centro da cultura europeia, e lá viveu Theodor Herzl,
criador do conceito de sionismo, que já em 1896 havia publicado
seu livro O Estado Judeu. Pois antes mesmo de existir o Estado
judeu já ocorriam as imigrações pioneiras de jovens, que formaram os primeiros kibutzim, fazendas coletivas baseadas no ideal
socialista. No início do século XX, muitos deles deixavam suas
cidades natais, principalmente na Alemanha e Europa Oriental,
e emigravam para a Palestina, onde seriam agricultores.
Enquanto isso, Seu David superava a pobreza com trabalho duro, e ao visitar a aldeia natal já levava, como presente,
3 N. E. Poalei Tzion vem do hebraico “trabalhadores de Tzion”.
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pares de sapatos para proteger seus irmãos do frio. Aí, vamos
pular uns dez anos e chegar à crise de 1929, quando a quebra da
Bolsa de Nova York afetou o mundo inteiro. A primeira consequência na pequena oficina de calçados onde ele trabalhava foi
a dispensa de empregados.
Com Varsóvia em crise, o desafio era “fazer a América”,
como se dizia na época. Todo jovem europeu, fosse italiano, judeu ou irlandês, desejava as oportunidades do novo mundo, e
os Estados Unidos, cujo governo reagia com investimentos em
infraestrutura, recebiam imigrantes de todas as nacionalidades.
Nas grandes cidades da Europa o antissemitismo ainda não era
tão forte, mas a pobreza era o grande inimigo, e a primeira tentativa de todo jovem para melhorar de vida era imigrar.
Mas houve uma leva muito grande de imigrantes do mundo inteiro, e os EUA começaram a restringir a imigração. No começo do século XX, a Argentina era uma potência, a 10a economia do mundo, à frente da Austrália e do Canadá: tinha petróleo,
tinha madeira, tinha carne e tinha lã, um paraíso. E muitos jovens, como meu pai, tentaram emigrar para lá, porque era mais
fácil. Não havia nenhum contato prévio, somente a vontade de
subir na vida. Algumas organizações, movimentos pontuais, ajudavam o jovem emigrante, mas ele tinha que se virar por conta
própria, porque era muita gente querendo “fazer a América”.
Seu David, então, partiu com destino a Buenos Aires,
mas o Brasil já era o “Brasil brasileiro”, esse “mulato inzoneiro”.
Em 1932 ele desembarcou na Praça Mauá, no Rio de Janeiro,
deu uma olhada, e decidiu: “Por cá ficamos”.
Não vinha sozinho. Como todo jovem gosta de se enturmar, havia o que eles chamavam de “irmãos de viagem”
— jovens na casa dos 20, companheiros da terceira classe que
continuavam cultivando essa amizade muitos anos depois. A
perenidade e a universalidade do judaísmo vêm da congregação
em torno da maioridade judaica, da aliança. Aonde um judeu
chegasse, sabendo rezar ou não, desde que conhecesse as tradições, ele nunca estaria sozinho: ia ao centro comunitário e se
comunicava em iídiche.
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Pois sem saber uma palavra de português, meu pai perguntou, em iídiche: “Irmão, o que posso fazer?” Arrumaram
para ele um lugar de servente na construção da antiga Rio-Petrópolis, também chamada União Indústria. Era um trabalho
duro e pesado como pedra, assentando paralelepípedos. E aí,
bem, devido à qualificação de cada um, as pessoas sempre se
ajeitam, as peças se ajustam. E Seu David logo percebeu que ali
o trabalho era braçal, não conduziria a nada se ele não tivesse
estudo.
Havia no Rio um sistema de bondes, explorado pela
Light. Com alguma indicação, ele foi ser cobrador. E, como
ainda acontece, se ele fosse diligente, na hora de fechar o caixa
sempre teria um troco a mais: vamos dizer, a passagem é 2,80,
2,70; a pessoa está com pressa: “Três tá bom, pode ficar”. Então,
jovem e solteiro, David tinha um salário e essas pequenas gorjetas para sobreviver. Foi morar na região da Lapa.
Agora quero fazer mais um parêntese. No mundo todo,
a maioria das comunidades judaicas se localizava perto da zona
boêmia — no Rio era na Lapa, Praça Tiradentes; em São Paulo
era no Bom Retiro; e em Belo Horizonte, na Rua dos Caetés, a
parte comercial —, o que é interessante, sociologicamente. Tenho a impressão de que era uma defesa, ainda que instintiva,
porque, afinal de contas, os outros moradores eram clandestinos também. Parece que ali o Estado era mais conivente com
a população, um fato constatado. Não quer dizer que os judeus
se comunicassem com os demais, mas a presença do Estado era
menor.
A organização judicial do Brasil era muito fraca, a organização cartorial muito precária, o que tornaria mais fácil para
meu pai conseguir uma carteira de estrangeiro que lhe possibilitaria trabalhar. Não teria todos os privilégios e obrigações dos
brasileiros, mas a situação já permitia certa estabilidade. Então,
legalizada sua situação como estrangeiro, voltou aquele velho
espírito empreendedor. Descartada a ideia de fazer América,
procurou ver as oportunidades no Brasil.
A imigração judaica foi principalmente para o Rio, en| 33 |
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tão a capital federal, onde a comunidade era bem maior, mas
sobreveio a crise do café... O mercado começava a saturar, então
famílias muito interessantes, como os Klabin e os Haas, já estabelecidas no Rio de Janeiro desde o século XIX, pois o país propiciava facilidades para quem quisesse trabalhar, iam subindo a
serra e chegavam às Minas Gerais.
Aqui já havia o ramal ferroviário, que era uma fonte de
emprego. Havia em Nova Lima a mina de ouro de Morro Velho
e a Light, da qual fazia parte, se não me engano, a Companhia
Força e Luz de Belo Horizonte. Mas o objetivo dos migrantes
não era arranjar emprego, e sim viver em função das companhias prestando serviços em áreas de suporte. Belo Horizonte
era uma cidade nova, recém-criada. No bairro dos Funcionários, uma folha de pagamento garantida era promissora para
novos negócios, então David veio para Belo Horizonte, em
1932, certamente de trem. Aqui chegando, conforme a tradição,
procurou a comunidade que era o elo do idioma.
Nessa época, com algum tempo de Brasil, já conseguia
crédito como mascate de gravatas, visitava uma fábrica e conseguia, digamos, 50 gravatas. Bijuterias e gravatas eram mais
fáceis de vender, todo mundo, todo estudante de Direito, por
exemplo, usava gravata. O Correio, onde ele mascateava, era na
Avenida Afonso Pena, em frente ao Edifício Guimarães, aqueles
dois prédios Sul-América e Sulacap. Seu David me contava que
os negócios no Brasil começavam assim, e que muitos políticos
conhecidos, como Bilac Pinto, Capanema e Melo Franco, tinham sido seus fregueses. Minas era um centro político importante, e ao vender suas gravatas ele convivia com esse pessoal.
Cada gravata tinha um selo, o imposto de consumo, e imagine
você que o próprio político que ocupava um cargo na administração estadual, às vezes até mesmo o secretário das finanças ou
da educação, dizia para ele: “Ô, patrício, tira esse selo daqui e
aproveita na outra gravata”. É isso. Brasil, meu Brasil brasileiro.
Para conseguir a primeira moradia, o costume era procurar os habitantes mais antigos, que estavam há mais tempo
no lugar. E ele foi dar no bairro Carlos Prates, onde havia uma
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Israel do Brasil
razoável população de judeus, e na casa de uma família cuja matriarca me marcou muito: Dona Sarah Schainberg. Tentando se
estabelecer, David foi morar na casa da Dona Sarah, que acolhia
jovens solteiros. A casa da família ainda existe, na Rua Piratininga.
Os Schainberg eram uma família de cinco filhos, manobrada, como de hábito, pela matriarca. Seu marido, Aron
Schainberg, era pouco mais velho que o meu pai, mas já estava
estabelecido, tinha casa e um início de empreendimento comercial na Rua dos Caetés, que lhes dava o sustento. Então eles se
associaram e criaram a firma Schainberg & Kuperman.
Psicologicamente, me espelhei muito no Seu Aron, figura silenciosa e sábia (o sábio não precisa falar), respeitado
na sinagoga e na comunidade. Seu Aron era calmo, tinha uma
autoridade física, mas não uma autoridade real. Descobri por
mim mesmo que o patriarca, sendo por princípio uma figura de
respeito, consegue manter sua liderança sem se expor. Seu Aron
era o suporte social, e Seu David, com seu dinamismo, dava o
suporte e a força de trabalho. O capital social da empresa era de
1.237 réis e 23 centavos, um valor preciso, mas muito primário,
com esses números quebrados.
Com a nova colocação, Seu David conseguiu uma estabilidade de cidadão, embora provisória. Tinha agora uma identidade, uma situação econômica concreta, uma firma registrada
na Junta Comercial. Era um negócio de roupas feitas, e a loja
se chamava “Mina das Roupas”. Funcionou na Rua dos Caetés
entre 1932 e 1936.
Foram os judeus que introduziram o conceito de roupa
pronta no Brasil. Em 1930 já existiam os fabricantes de malha
e roupas no Bom Retiro, em São Paulo, e era de lá que vinha
a mercadoria da “Mina das Roupas”. Seu David tinha crédito,
porque os “patrícios” confiavam nele. Revendia na loja, pagava
os fornecedores e refazia o ciclo.
O que havia em Belo Horizonte? Para começo de conversa, era uma cidade administrativa; e com a mudança da capital,
vinda de Ouro Preto, surgiram as universidades. Era, portanto,
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Israel Kuperman
uma cidade de estudantes, funcionários e fazendeiros — a clientela de Seu David. Fazia muito frio, e lembro que eles vendiam
aquelas capas Ideal, capas de boiadeiro, sempre no estoque da
loja.
A casa dos Schainberg, e também a casa onde nasci, ficava às margens da linha de trem da Rede Mineira de Viação, hoje
Rua Nossa Senhora de Fátima, na época Rua Mauá. Na Mauá de
Cima ficavam as residências, e a casa que meu pai construiu era
uma das melhores da época. A Mauá de baixo era a zona.
Então, com seu espírito sociável, meu pai cultivou paralelamente um relacionamento com funcionários da Rede Mineira de
Viação, e isso significou um grande avanço para o seu negócio, porque da loja de varejo que vendia para os passantes, evoluiu para o
acesso a uma empresa que exigia ternos para os funcionários, além
de uniformes para os chefes de linha, essas coisas. Valendo-se de sua
amizade com essas famílias da Rede, meu pai oferecia uma venda
consignada, com desconto em folha: o funcionário vinha com uma
ordem do departamento de pessoal ou equivalente, que o autorizava
a comprar a indumentária necessária para o trabalho, e o pagamento era descontado de seu salário. Tendo crédito com os fornecedores
de São Paulo, Seu David podia esperar os 30, 60, 90 dias de prazo
que a Rede praticava, e com isso formou uma carteira que sempre
tinha “haveres” junto à Rede Mineira.
Ainda criança, eu ia muitas vezes receber a fatura na Rua
Sapucaí. A Mina das Roupas era também uma espécie de alfaiataria, faziam pequenos consertos, coisas assim. Se o terno
estava um pouco largo na frente, meu pai puxava atrás: “Aqui
está justo”. E quando dizia “agora vira”, puxava na frente. Era um
vendedor imbatível. Efetuada a venda, ele mesmo embrulhava a
rapidamente a mercadoria com papel tirado de uma bobina de
papel cor-de-rosa e amarrava com barbante (não existia durex).
Certa vez, um cliente virou para ele e falou assim: “Ô, doutor, o
senhor podia abrir, me mostrar o que eu comprei?”
Tinha uma dedicação intensa, era um traço da personalidade dele, que foi herdado por mim, por meus filhos e meus
netos: somos uma gente trabalhadora.
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Israel do Brasil
Fora do horário de trabalho, Seu David retomou suas
origens, passando a cultivar seus ideais em debates na União
Israelita, na Av. Afonso Pena, ao lado do Conservatório Mineiro de Música, um prédio que atualmente é da Fiat. Criar um
centro social para rezar e conversar às sextas-feiras era uma das
primeiras providências de uma comunidade de imigrantes, e
conheci muito bem a União Israelita, ia muito lá. A política não
era deixada de lado, e mesmo numa comunidade pequena havia
os de esquerda, de direita e de centro. Meu pai continuou sendo
de centro. Além da prática religiosa, o centro mantinha atividades culturais, porque os judeus sempre foram muito ligados
às artes. Naquela época já traziam artistas de teatro e exibiam
peças em iídiche, além das encenadas por atores locais. Havia
um grupo de teatro e famílias de artistas amadores, e muitos
continuaram com essas atividades por várias gerações, como os
descendentes dos Lansky.
Os judeus enfrentavam muita dificuldade, muita discriminação. O ensino particular era dominado por ordens religiosas, quase sempre católicas, como os jesuítas e as irmãs carmelitas... E o que poderiam ensinar? O catecismo, claro. E como
corolário vinha a expressão “judeu deicida”. Houve épocas de
maiores pressões, mas o Brasil até hoje nunca foi radical em
nada. A formação do povo brasileiro é única, com características próprias, e sua cultura, sua índole, é conciliadora. Nunca
seremos uma civilização como a anglo-saxônica, cultivaremos
sempre o jeito mais tranquilo do brasileiro.
O judeu tem a capacidade de ser cosmopolita e se adaptar às condições locais, e eu hoje sou mais brasileiro do que
qualquer um dos meus amigos, sou completamente integrado,
e posso afirmar que no tempo do meu pai era assim também.
Mas ele continuou mantendo contato com sua família, de quem
recebia notícias, e na comunidade sempre conversavam em iídiche, tinham dificuldade de aprender português. Ouvi muitas
vezes uma dessas palavras ou expressões em iídiche, que são as
mesmas em alemão, e marcou minha infância: “Heim”, lar, “in
mein heim”, lá em casa.
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Israel Kuperman
A imigração era tipicamente masculina. Havia uma carência de mulher, e isso ocorria também na comunidade de
Belo Horizonte. A questão do casamento entre judeus era um
dogma fortíssimo, eles procuravam uma igual, só queriam se
casar entre si. E uma das missões divinas da mulher de um rabino era ser casamenteira.
Sentados, os avós paternos Dina e Moshé Baruch Kuperman. Em pé, a
segunda da esquerda para a direita é a jovem Malka Rachla bat Ydel,
antes de migrar da Polônia para o Brasil na década de 1930.
Pois Seu David não encontrava uma moça. Como iria
fazer? Meu pai era extremamente prático, muito decidido, em
um ano já havia obtido cidadania provisória, feito negócio,
construído a melhor casa do Carlos Prates. Lembrava de uma
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Israel do Brasil
moça que era amiga de suas irmãs, Malka, a palavra iídiche para
“rainha”. Os nomes eram assim, Pérola, Rainha... Seu segundo
nome era o bíblico, Rachel, em polonês, Rachla. Assim, minha
mãe se chamava Malka Rachla bat Ydel — filha de Ydel, que
era meu bisavô. Como começava a surgir na Europa a obrigatoriedade do registro civil, era preciso um sobrenome para os
documentos oficiais, como o passaporte, então muitas vezes
eram escolhidos nomes ligados à profissão ou a características
pessoais, como Calic, por exemplo, que queria dizer aleijado,
perneta. Schainberg significa “montanha bonita”, e Kuperman,
é o “homem do cobre”. Então o sobrenome da minha mãe era
Szpigelman, “homem do espelho”. No shtetl era Malka Rachla,
filha de Ydel. Mas, para efeitos civis, era “Malka Rachla Homem
do Espelho”.
Dona Malka Rachla nasceu em 15 de maio de 1915 na
mesma aldeia de meu pai, Czwiepelov. Sua situação social e econômica era idêntica à dele, e ele se lembrava dela como uma
moça bonita. Ah, nesse meio tempo ele conseguira dinheiro
suficiente para trazer de lá seu único irmão que ficara no shtetl
quando implodiu a família, e meu tio tinha o mesmo nome que
eu, Israel Kuperman. Se não pudesse ficar na casa de Dona Sarah, o irmão iria para a casa dos Golgher, da Dona Shoshana e
Seu Isaías. Então ele decidiu mandar uma carta, poucas linhas
mal redigidas, porque mesmo em iídiche ele era semianalfabeto, e propôs à jovem Malka que viesse para o Brasil se casar com
ele, assim, preto no branco: “Você quer? Você também está aí,
na pindaíba, nessa aldeia aí”.
Minha mãe era mesmo uma mulher muito bonita, mas
também muito voluntariosa. Era peruqueira, fabricante de
perucas — uma profissão interessante, pois até hoje as judias
ortodoxas usam peruca. Quando meu pai lhe escreveu, já tinha saído da aldeia para trabalhar numa cidade industrial na
Polônia. Ainda muito jovem, viu que faltava pão para a irmã
casada. Diz o ditado que “em casa onde falta pão, todo mundo
fala e ninguém tem razão”, e minha mãe já percebia isso. Como
era bonita, tinha um namorado e vida social, mas a pobreza era
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Israel Kuperman
muito grande. Então, por seus próprios meios, que não sei bem
quais eram, aprendeu a fazer perucas e se mudou para a casa de
parentes em Lodz. Vivia na cidade, tinha namorado, mas via a
falta de possibilidades. E quando recebeu essa carta, ela, que era
muito corajosa até o final de sua vida, o que fez? Respondeu:
“Eu vou”. Meu pai mandou-lhe a passagem com a promessa de
casamento em Belo Horizonte.
Como era usual em sua época, Malka era moça virgem,
com todas as características de uma moça do interior. E com
20 anos, daquela distância, teve a coragem, a ousadia de largar
tudo. Ainda me lembro do enxoval que ela trouxe: um grande
travesseiro de penas de ganso, um edredom, porque na Polônia
era frio, e uma toalha de veludo. Pôs tudo na mala e embarcou
na terceira classe.
Meu pai foi ao Rio para recebê-la. Alugou uma lanchinha, daquelas de pescadores, comprou um buquê de flores e foi
buscá-la em alto mar, muito bonito. Ela viu que estava tratando
com uma pessoa em quem podia confiar. Tinha emigrado, mas
não estava perdida, e foi morar na casa de Dona Sarah. Os dois
se casaram imediatamente, não teve muita coisa para conversar,
não. Ela tinha vindo para casar, chegou e casou, porque minha
irmã nasceu em outubro de 1936.
Quando chegou, já tinha uma casa na Rua Mauá, que
meu pai tinha construído a uns 50 metros da casa de Dona
Sarah. Não sabia falar uma palavra de português, e muito mal
o polonês. O casal conversava em iídiche. Minha mãe tinha 20
anos e Dona Sarah tinha uma filha de quatro, já nascida no
Brasil; essa menina grudou em minha mãe, que assim tinha
“paz e companhia”, ficou conhecida na família como “rabo de
saia”.
Naquela época havia muitos vendedores a domicílio,
e o Carlos Prates era um bairro importante no início de Belo
Horizonte. Então, como minha mãe não sabia nada de nada,
meu pai, muito prático, só lhe ensinou que quando batessem na
porta ela devia fazer “assim” com o dedo, a única coisa que ela
aprendeu em português.
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Israel do Brasil
Em pé, ladeando o menino, meus avós maternos Sura Reisel e Ydel
Szpigelman.
A comunidade judaica de Belo Horizonte era pequena, e hoje continua do mesmo tamanho, 400, 500 famílias no
máximo. Minha mãe repetiu até morrer que “Belo Horizonte
dava para encaixotar, porque não crescia”. Na época, não era su| 41 |
Israel Kuperman
ficiente para ter um rabino fixo, mas eles traziam professores e
criavam escolas. Então, já que para qualquer cerimônia judaica
o único requisito são dez pessoas, a cerimônia de casamento foi
realizada na varanda da casa de Dona Sarah. E como Seu Aron
não falava, mas transpirava autoridade e liderança foi ele quem
fez o casamento. Viu como aqui transparece a personalidade
dele?
O casamento dos meus pais, Izaac David Kuperman e Malka Rachla
Kuperman, em 1935, na casa de Sarah e Aron Schainberg.
Naquela época no Brasil a mulher não trabalhava, em
Minas, principalmente. Cuidava da casa e mantinha a tradição,
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Israel do Brasil
era o costume. Meus pais frequentavam a União Israelita e seguiam à risca o calendário religioso, com suas festas, marcos da
comunidade. Minha mãe já gozava de certo conforto; e convivendo com sua amiga de seis anos de idade aprendeu português
razoavelmente — com sotaque, mas aprendeu.
Minha irmã Helena Kuperman nasceu no Hospital São
Lucas, o que era um pouco fora do comum, porque os partos
eram quase sempre em casa. Eu mesmo, que sou dois, três anos
mais novo, nasci em casa com uma parteira. Minha família tinha um bom padrão de vida, e até empregada, coisa que nem
sonhavam na Europa. Minha mãe era dona de casa e meu pai
trabalhava, ganhava dinheiro, mas não gastava muito.
Era muito dinâmico. A foto da casa que ele mesmo construiu na Rua Mauá, datada de 1941, me foi dada por um amigo
do Minas Tênis Clube, e foi ele que me contou essa história,
porque eu não sabia. O pai dele era funcionário da Caixa Econômica Federal, e a mãe desse meu amigo dizia: “Ô bem, que
casa linda, hein? Será que um dia eu vou poder morar numa
casa assim?” Eles também moravam no Carlos Prates, mas em
uma casa mais simples.
A construção foi no sistema mineiro, e o mestre de obras
que acompanhou meu pai era José de Souza, uma figura, preto,
retinto. Seu José de Souza era o engenheiro, o arquiteto, pedreiro, tudo, o factótum de Seu David na construção da casa.
Então, logo ao desembarcar no Brasil, minha mãe já tinha uma vida de pequena burguesa, que antes era impossível.
E ela gostava de coisas boas. Tenho fotografias dela na Igreja
São José, e passeando, em São Lourenço, em Araxá. A família
de imigrantes era um sucesso, mas não deixava de lado suas
origens, sempre se correspondia com os parentes na Europa, as
cartas indo e vindo por navio, e como parte da sociedade judaica, cultivavam as festas e as tradições.
As rezas são todas em hebraico, e não quer dizer que eles
entendiam. Os caracteres eram hebraicos, mas eles liam e sabiam rezar mecanicamente, porque tinham feito o Bar Mitzvá
aos 13 anos. Desde o casamento a família Kuperman se reunia
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Israel Kuperman
em torno da mesa, como na ceia de Páscoa, no início só Dona
Malka e Seu David, às vezes junto com os Schainberg, porque
eram sócios e mantinham uma ligação afetiva. E aí começa a
minha história.
Então, eu brinco: é o início da tribo. E isso é coisa minha,
entendeu? Formar uma tribo, a nossa tribo.
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A redoma e o pião
Criei uma teoria para o fato de minha irmã ter nascido no São
Lucas. Minha mãe, vinda da Europa, chegou a uma terra nova;
sendo o primeiro filho, meus pais quiseram se cercar das maiores garantias e cuidados possíveis. Afinal de contas, era seu objetivo sair da vila onde tinha parteira para a cidade grande e para
o novo mundo, a América, onde as crianças de melhor condição
nasciam em hospitais. Malka engravidou logo após se casar, e
minha irmã mais velha veio coroar aquele romance, aquela acomodação em terra estrangeira, já numa situação melhor. O Hospital São Lucas, com ginecologista e obstetra, era o melhor que
havia pelos padrões da sociedade belo-horizontina, cuja tradição estabelecia: quem podia, ia ter filho no hospital.
No meu caso, segundo filho, três anos depois, já havia
uma sedimentação do casamento, da vida do casal. E o usual, o
tradicional, era a parteira. Nasci em casa porque tinha se completado a transição familiar, do imigrante, sem qualquer referência social e econômica, para uma família já estabelecida dentro
dos padrões possíveis da época. Dar à luz um filho passou a ser
uma coisa normal, sem muita expectativa. E eu fui o menor, o
último da tribo.
Minha família continuou se espelhando nos Schainberg,
cuja dominante matriarca, Dona Sarah, me influenciou demais,
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Israel Kuperman
até mais do que minha mãe. Na casa vizinha havia uma escadinha: Simão, o primogênito, 14 anos mais velho que eu; Isaac, 12
anos mais velho; Iêta, a menina que aos quatro anos passeava
com a minha mãe, portanto 8 anos mais velha; Leão, uns cinco
anos mais velho do que eu; e Marcos, o caçula, apenas seis meses mais velho. E eu vinha como o fecha-fila da tribo.
Os Schainberg funcionavam como uma equipe, inclusive
na parte emocional. Então era mais fácil para a família Kuperman educar por imitação, seguindo o exemplo do adolescente
de 14, 15 anos, o filho mais velho, e dos outros todos atravessando as diversas fases.
Nossa casa na Rua Mauá em 1941 e as lembranças de lá: o
quaradouro, o trem da Rede Mineira de Viação.
Morei na casa da Rua Mauá por dois anos, tenho poucas
lembranças. Mas me chamava atenção o quaradouro, um quadrado, um cercado de grama de cinco por cinco, onde se colocavam ao sol as roupas recém-lavadas. Lembro-me também do
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Israel do Brasil
relacionamento do meu pai com o pessoal da Rede Mineira de
Viação: quando o trem passava na porta da minha casa, diminuía a marcha, quase parava, “Ô, vamos passar devagar em frente à casa do Seu David”, e os amigos nos jogavam uns canudos,
cestos cilíndricos feitos de taquara, tendo dentro uma galinha
ou alguma fruta vinda da roça. Eu tinha dois, três anos.
Também me lembro do meu pai começando a ouvir os
informativos da BBC, aquilo era sagrado: a família se reunia em
torno do rádio de válvula, ele muito atento, ouvindo as notícias da Segunda Guerra. Eu até brinquei uma vez, dizendo que
quando estourou a Segunda Guerra Mundial e Hitler invadiu a
Polônia, estourou a bolsa da minha mãe anunciando o nascimento do primeiro varão de Belo Horizonte, um dilema para
Dona Malka, uma moça corajosa de vinte e poucos anos, ainda
ligada à Europa por seu cordão umbilical.
Havia comunicação, minha mãe recebia notícias ruins,
a situação na Europa piorando cada vez mais, principalmente
no que se referia ao antissemitismo, ao Mein Kampf de Hitler e
sua tese de “superioridade ariana”. Havia um receio quanto ao
que estava acontecendo lá, mas, apesar disso, a vida prosseguia
normal, dentro das possibilidades que o trabalho de meu pai
nos permitia. A Pampulha foi construída na época, e eles iam
ao cassino, ao cinema, saíam para passear, nos padrões de uma
burguesia incipiente, com casa própria, trabalho, rendimentos.
E tinha a parte comunitária, os aspectos sociais e religiosos.
A vida da família judaica, naquela época, era marcada
pelo calendário das festas, um calendário lunar. Os judeus diziam: “Ah, eu nasci tantos dias depois do Pessach”, que é a Páscoa; ou “Eu viajei quatro ou cinco dias depois do Rosh Hashaná”, que é o Ano Novo. Os costumes tinham vindo com eles no
navio, mas dentro do possível se adaptavam aos hábitos locais.
Com outros componentes da comunidade, seguiam dentro do
possível uma rotina dentro dos parâmetros normais, e no começo da década de 1940, isso significava uma sociedade matriarcal, onde a mulher era mesmo dona da casa.
Depois de cinco anos, Seu David já estava adaptado. De| 47 |
Israel Kuperman
dicava-se ao trabalho, uma bênção na vida de qualquer homem.
Lembro-me do meu pai se dedicando a progredir. Já tendo um
horizonte aberto, percebeu que a cidade estava se deslocando,
economicamente, para a Savassi, inicialmente o nome de uma
padaria no bairro dos Funcionários. A mudança da capital mineira para Belo Horizonte tinha pouco mais de quarenta anos, e
meu pai, devido à sua ascensão econômica e seu hábito de olhar
para frente, percebeu que já tinha ultrapassado a Rua Mauá.
Fora da coletividade judaica, na Rua dos Caetés, seus
vizinhos eram famílias mineiras tradicionais, os Cançado, os
de Paula, os Pinto Rodrigues, os Silviano, os Mascarenhas, os
Bahia Mascarenhas; o pai do embaixador Paulo Tarso Flecha
de Lima, Sebastião Dayrell de Lima, era atacadista na Rua dos
Caetés... Eram atacadistas, não funcionários públicos.
Convivendo com esses vizinhos por uns quatro, cinco
anos, de 1936 a 1940, 41, Seu David percebeu que a classe média
emergente mineira vivia nos Funcionários. Na época, havia as
chácaras e as subdivisões das chácaras. Ele se habilitou e, como
era “da tribo”, conseguiu comprar dois lotes na Rua Alagoas, um
ao lado do outro. A casa da Rua Mauá, vendida no dia cinco
de setembro de 1941, ficou como o elo da história, que resgatei
mais tarde no Minas Tênis Clube, onde meus amigos eram classe média, bancários, um deles professor, o Milton de Oliveira.
Moravam todos no Carlos Prates e já não eram burguesia. Nossa casa foi comprada por um amigo do Minas e financiada pelo
IAPB (Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Bancários): era
a tal da mudança de classe, da ascensão social que ainda existe
no Brasil, um grande fator de sucesso.
Seu David construíra a casa para receber Dona Malka, e
era uma casa confortável, mas ele percebeu que era a casa certa
no lugar errado. Intuitivamente, embora se afastando da tradição judaica de estabelecer núcleos próximos à zona, meu pai,
intuitivamente, deve ter pensado: Para onde se dirigem meus
amigos, meus companheiros de maior sucesso, é para lá que eu
vou”.
E assim Seu David continuou na tribo, mas já pensando
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Israel do Brasil
num futuro casamento de minha irmã com um dos varões da
Dona Sarah, comprou os dois lotes na Rua Alagoas. Como decidir qual lote era de quem? De quem seria o n° 1.150 e de quem
o 1.160? O menorzinho, o fecha-fila aqui, foi lá e tirou a sorte, e
o 1.150 ficou sendo dos Kuperman e o 1.160 dos Schainberg. E
como o Seu David era o capitão, foi ele que começou a construir,
levando para lá o mesmo mestre de obras da casa na Rua Mauá,
o Zé de Souza.
Agora já existiam engenheiros judeus, os primeiros engenheiros formados em Belo Horizonte, como David Lerman,
ligado ao Isaías Golgher. David Lerman era o primogênito de
uma outra tribo, e meu pai contratou seus serviços para construir uma casa no estilo da época, “normando”. Mas acabou
construindo as duas. Naquele momento ele era o condutor da
nossa tribo, Dona Sarah a mandante e Seu Aron continuava pairando na sua grande sabedoria, plena de silêncios. Plantavam
raízes em Belo Horizonte, mas sem cortar as raízes da Europa.
Pegue um engenheiro judeu já brasileiro, nascido e formado aqui: apesar da diferença de idade, convivi muito com
David Lerman. Sempre fui precoce, sempre fiz tudo muito cedo
na vida. Eu era o mais novo, e também o mais atirado, participava de tudo. Convivi muito com ele na obra da Associação Israelita Brasileira, que ele construiu na Rua Rio Grande do Norte.
Estávamos os dois na diretoria, e seu senso de humor era muito
legal. David era casado com Ruth, irmã de uma tia da Miriam,
minha futura esposa — Shoshana, esposa do Isaías Golgher —,
mas eu ainda não tinha nenhum vínculo com a Miriam. Ruth
também era irmã do Dr. José Feldman, catedrático da Escola de
Medicina. Isaías Golgher era escritor, e pertencia a uma família
mais antiga em Belo Horizonte.
Eu costumava brincar com o David, que era muito engraçado: se a gente se encontrava nas festas, somava um; se
fosse num enterro, diminuía um. David era o self-made man,
o engenheiro que se formou com sacrifício e com dificuldade,
e se casou com uma moça de uma geração já estabilizada em
Minas. Com Ruth Lerman, que era muito ativa nos trabalhos
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Israel Kuperman
comunitários, teve dois filhos e uma filha. O filho mais velho,
Mely, mais novo que eu e sempre contestador, se envolveu com
“terrorismo” na revolução de 1964 e foi preso.
Dona Ruth tinha sido colega de um delegado, que era
patrício. E o que uma mãe faz? “O senhor vai tirar meu filho”. E
o delegado: “Não, não, ele está envolvido, revolução”, era aquele
negócio de ditadura. No final das contas, ele se virou para ela e
falou: “Ô, Ruth, dia tal vou dar ordens para manter a cela aberta. Nesse meio tempo, você compra uma passagem para Israel
e some com ele”. Dito e feito. No dia combinado, ela pegou o
rapaz e ele foi para Israel, deixando aqui os pais, um irmão que
era arquiteto e a menina, Sofia.
Acontece que o David falava comigo: “Ô, Israel, minha
situação financeira não é boa. Quando fiz a casa do seu pai, eu
era o único engenheiro da comunidade. Agora os filhos são todos engenheiros e doutores, não tem serviço pra mim”. Ele tinha
feito o projeto e a construção das duas casas da Rua Alagoas,
primeiro, a nossa, e aproveitando o embalo a outra. Minha família se mudou para lá em fins de 1942. Não era uma casa como
a de Flecha de Lima, o embaixador, cujo lote era nos fundos da
nossa casa. Mas como eram dois lotes, era quase uma mansão,
no padrão dos ministros e professores que moravam na região,
uma casa muito boa, de dois pavimentos, com varanda, jardim
e quintal.
Mas logo que nos mudamos tomamos conhecimento da
“solução final” de Hitler. E lembro que o comportamento da minha mãe para comigo mudou completamente. Ela era carinhosa, sempre me acariciava até 1942, 1943, mas depois ela cortou.
A única coisa de que me lembro é isso: a mudança afetiva da
minha mãe em relação a mim. Naquele momento passei a viver
a infância de um judeu. Hitler estava no auge, conquistando a
Polônia, anexando um país atrás do outro, e o mal, a peste da
humanidade, era o judeu. Com aquele ambiente de antissemitismo e aquela discriminação, nos isolamos, nos isolamos muito! Meus amigos iam à missa, eu não ia; a procissão passava em
frente da nossa casa mas eu não ia... Éramos “diferentes”. Na mi| 50 |
Israel do Brasil
nha família, eu e minha irmã éramos muito bem tratados, mas
encerrados em uma redoma, não nos deixavam sair, circular.
Prevalecia o medo.
No nosso entorno vivia a juventude burguesa, a famosa
turma da Savassi... e eu estava no meio deles, sempre o mais
novo. Eram adolescentes, uns 10, 15 anos mais velhos do que eu,
que estava com três ou quatro, uma criança. A turma da Savassi
se encontrava na casa dos Longo, onde hoje é o Shopping 5ª
Avenida, na casa da família Dolabela...
As coisas que me marcaram: o quebra-quebra da padaria Savassi, nos anos 1940, quando o Brasil entrou na Guerra e
as lojas de alemães e italianos foram quebradas; lembro de um
monte de latas velhas na Praça da Savassi, todo mundo as jogava
lá num esforço de guerra; lembro de um personagem, que era o
mais velho da turma e me ameaçava por eu ser judeu, hoje seria
bullying. Ele morava na Cristovão Colombo, ao lado do Cine
Pathê, e ameaçava me levar para a casa dele. Os “velhos” diziam,
a frase era meio chula, mas eu gravei: “Entra pra dentro, senão
menino brasileiro faz bobagem bunda seu”. Isso ficou aqui, ó,
70 anos!
Tinha também na rua a turma da Savassi dos pequenos,
meus amigos Francisco Halfeld, o Chiquinho, os filhos do Vicente Longo, e outras famílias mais humildes, nos fundos do
Cine Pathê, com as quais convivi; havia uma família ligada ao
Juscelino,4 e o Sérgio Vasconcelos, todos meus amigos. Eu podia sair sem nem atravessar a rua, e convivendo com os menores, jogava botão, jogava pião, soltava papagaio. Mas na tribo eu
era dependente, porque o último dos Schainberg era seis meses
mais velho do que eu, e ele era o parâmetro para minha mãe.
“Posso ir ao cinema?”
“Se o Marcos for.”
“Posso soltar papagaio?”
“Só se o Marcos for.”
“Posso jogar finca?”
4 N.E.: Juscelino Kubitschek, presidente do Brasil entre 1956 e 1961.
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Israel Kuperman
“Só se for com o Marcos.”
O Marcos era um gênio, uma inteligência excepcional.
Morreu novo. Na turma da Savassi, era aceito porque tinha o
amparo dos dois irmãos: “Ah, meu irmão me defende”. Então, a
informação que eu tinha do mundo, minha relação com o mundo exterior até o casamento, era através do Marcos.
Como membro da tribo Kuperman, eu estava envolvido
com o Holocausto — para o qual minha mãe estava exclusivamente voltada —, ao contrário dos Schainberg, que já estavam
aqui há mais tempo, tinham irmãos em Niterói, primos médicos, haviam imigrado antes e estavam livres do peso do nazismo. Mas não posso condenar uma moça de vinte e poucos anos
que todo dia recebe a notícia de que caiu um, caiu outro, caiu a
mãe, caiu o pai. O que ela podia fazer? Chorar. Então, a minha
educação foi entregue às domésticas, à babá... e ao Marcos.
Até a matinê no Cine Brasil era: “O Marcos vai? Pode ir”.
Ou os seriados no Cine Pathê, “Dick Tracy”, “Os Três Patetas”,
“O Gordo e o Magro”: “Ah, o Marcos vai? Pode ir”. Era uma
grande dependência. Curiosamente, tenho mais casos curiosos
da Dona Sarah do que da minha mãe. Dona Sarah, originalmente, era carroceira, o equivalente a um taxista, a um chofer
de caminhão aqui no Brasil. E era muito bronca.
Ela estabeleceu comigo um padrão de concorrência, de
comparação com o Marcos, que sendo da tribo dela ela valorizava acima de tudo, enfatizava as suas qualidades. E ele me
influenciou muito mesmo. Nossa relação era muito estreita. Eu
vivia mais na casa dele, que era do lado da nossa, do que na minha, e sua mãe manobrava o nosso relacionamento. Como diz
a piada, comparando a mãe judia e a mãe italiana. A mãe judia
fala: “Se você não comer, meu filho, eu me mato”. E a mãe italiana: “Se você não comer, eu te mato”. Então vou dar um exemplo
da personalidade da Dona Sarah. Eu ia lá de manhã e muitas
vezes o Marcos não acordava. Então, eu ia acordá-lo, e um dia
ele demorou a descer e esperei lá embaixo. Quando ele desceu,
a mãe subiu na cristaleira e falou, em iídiche, exatamente como
a mãe italiana:
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“Marcos, você vai me matar! Você vai me matar! Eu vou
pular daqui da cristaleira!”
Deu para imaginar? Ela mandava na tribo, e até hoje
todas mulheres Schainberg fazem igualzinho, as netas, as bisnetas e até as noras, são elas que assumem a responsabilidade.
Os homens são todos como Seu Aron, cordatos, e as mulheres,
dominantes.
Jogávamos pelada, mas como eu era o pequenininho,
tinha que ser o dono da bola. A bola antigamente era uma câmara de ar, de borracha, dentro de uma cobertura de couro, de
gomos costurados, chamada “capotão”. Enchia-se a câmara de
ar com uma bomba, como as de bicicleta, e vedava-se a fresta do
capotão, por onde passava o bico da câmara, com uma espécie
de cadarço de sapato cruzado. Meu pai viajou para a Argentina
e trouxe de lá a bola para o filhinho, e era uma bola moderna, a
primeira bola com furinho, a válvula onde se introduzia o pino
da bomba de encher. Foi um sucesso para mim, e eu agora podia jogar porque era o dono da bola, entendeu? A gente jogava
na Rua Alagoas, no quarteirão fechado da Antônio de Albuquerque, porque não tinha trânsito, jogava na Getúlio Vargas,
onde tinha o canteiro gramado.
O caso da bicicleta também me marcou, mas primeiro
vamos falar sobre o Natal. Todo mundo tinha Natal, ganhava
presente, menos os judeus. No dia 25 a criançada aparecia com
as coisas novas, mas o judeu não tinha. O único presente que
me lembro de ter recebido mais ou menos na época do Natal
foi um velocípede, em sociedade com a minha irmã, embora as
moças fossem preparadas desde pequenas exclusivamente para
casar. Mas, e a redoma, o medo de sair da redoma? Meu pai
falou assim: “Vou depositar 1.500 cruzeiros para você na poupança, é o valor da bicicleta, mas não vou te dar a bicicleta.” Ele
deve ter pensado: Não vou arriscar o meu filho, não. Vou resolver
com o dinheiro. Então eu não tive bicicleta, e o Marcos teve.
Aprendi a andar de bicicleta com dificuldade. Eu aprendia tudo com o Marcos, estava sempre um passo atrás dele, então soltava papagaio mal, jogava pião mal, andava mal de bici| 53 |
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cleta. Aprendia com o que sobrava, não aprendia diretamente
na fonte. Até a liberdade infantil de jogar bola mais longe era
vedada para mim. Tudo era só na frente de casa. Ir até a Praça
da Liberdade sozinho, nem pensar; só sob as vistas de um adulto, de uma babá.
Me lembro muito de uma babá, a Emília. Naquela época, a única indústria que eu conhecia era a fábrica de pregos
Marçola, não, Marçola era sabonete. A fábrica de pregos era de
uma família italiana lá no Anchieta, que hoje é um bairro chique, mas no meu tempo era uma vila, paupérrima. A família de
Emília morava lá e às vezes ela me levava, eu via aquela pobreza
toda. Ela praticamente me criou, minha mãe delegou a tarefa
para uma empregada.
Ah, figurinhas, eu também fazia álbuns. Tudo que não
demandasse carinho ou cuidado, e que pudesse ser comprado,
eu tinha, o que era possível. Tem uma frase lapidar do Seu David que eu uso até hoje: “Quando o problema é dinheiro, já está
resolvido”. Pode demorar, mas está, e isso era um dogma lá em
casa, desde o meu tempo de criança. Comprar figurinhas, por
exemplo, era muito fácil, era só questão de dinheiro, então meu
pai podia sair, comprar uma caixa e trazer para mim.
Na infância, eu não tinha as coisas que pudessem me
causar problemas. Animais de estimação não eram permitidos,
porque envolviam o sentimento de perda e minha mãe quis me
poupar ao máximo. Então meus amigos tinham cachorro e eu
não, e isso me incomodava. Quando casei, a primeira coisa que
eu fiz foi comprar um cachorro.
Meus pais conversavam em iídiche, e na Escola Israelita
nós aprendíamos iídiche, não hebraico. Eu entendia iídiche e
alemão perfeitamente. O português aprendi na escola, no contato com as empregadas da minha mãe. Eu só queria falar português, sempre procurei me aprimorar, mas com meu pai não
podia, era difícil para ele. Entrei no primário, na Escola Israelita
Brasileira, aos seis anos. Na comunidade não tinha o jardim da
infância, então minha mãe tentou me colocar no Bueno Brandão, em frente ao Barão do Rio Branco. Mas sendo um menino
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pequeno e muito inseguro, não consegui me adaptar. Cheguei a
ir, mas não fiquei.
A Escola Israelita funcionava na Rua Sergipe esquina de
Guajajaras, nos fundos do Conservatório Mineiro de Música.
Era muito difícil ter carro, então tinha um táxi que vinha buscar a gente, o táxi n° 63, um Dodge que fazia ponto na Avenida
Afonso Pena; levava meu pai para o serviço e deixava as crianças na escola de manhã. O uniforme era calça curta azul, com
suspensório. Os amigos da escola passaram a ser o meu mundo.
Eu era muito preso.
Na escola judaica, onde todos eram iguais, o que nos diferenciava era a situação econômica dos pais. A diretoria era
formada pelos pais dos alunos, e meus pais faziam parte; minha
mãe participava mais, sempre foi ativa nas entidades filantrópicas. E dentro da escola eu era considerado privilegiado por
causa do dinheiro do meu pai, que me dava status. Mas quanto
aos relacionamentos, eu era pobre, muito pobre. Nossa infância
na década de 1940 era paupérrima, tínhamos somente os núcleos judaicos, os grupos infantis judaicos, o movimento juvenil
judaico.
Na escola ensinavam as matérias básicas, língua pátria,
aritmética, história e geografia. Depois havia a aula de iídiche,
estudava-se a Bíblia5 em iídiche. Havia uma tradução chamada
A Bíblia para crianças, em iídiche Rumash für Kinder, mais ou
menos como em alemão. Não havia educação física, artes, nada
disso. Os professores vinham de fora, em Belo Horizonte não
havia nenhum, eram contratados em comunidades maiores,
como São Paulo e Rio.
Houve um professor que marcou a nossa infância, a infância de toda uma geração. Ele morava na escola, um casarão
antigo, onde tinha seus aposentos. Era solteirão, alcoólatra, e
seu método de ensino era através do temor. Não tinha vara de
marmelo, mas chegava a pegar nas crianças e sacudi-las, e a
nossa vida era dentro da escola, onde ficávamos completamen5 N.E.: Velho Testamento.
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te isolados. A pedagogia dele era a seguinte: se a criança não
aprendesse, ou fosse um mau aluno, ia para o quarto escuro,
finster zimmer. Para lá iam também os meninos mais arredios,
enquanto os outros cantavam, em iídiche: “Fulano de tal, vai
pro finster zimmer”.
Eu e minha irmã Helena.
A escola tinha poucos alunos, as turmas eram pequenas,
e continua do mesmo jeito. Você vai à Escola Theodor Herzl,
são quatro, cinco crianças, não passa disso. A comunidade tem
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apenas 400 famílias, “encaixotada mesmo”, como dizia a minha
mãe. São 70 anos, gente!
Na minha sala éramos apenas cinco, algumas meninas,
eu e o José Goifman, que era muito meu amigo, filho de um comunista famoso, o Nute Goifman. José já morava no Centro, os
pais dele tinham sido presos como comunistas, e ele tinha mais
liberdade, saía de bicicleta de sua casa na Rua Guarani e ia até a
minha casa. José Goifman era o terror da escola.
Não cheguei a ir para o quarto escuro, mas houve um
fato muito pior. Nosso professor já acordava alcoolizado, e um
dia eu comentei com os colegas que ele estava com bafo de cachaça. Um dos meninos contou para um dos pais, que era da
diretoria, e chamaram o solteirão lá. No dia seguinte, quando
cheguei na escola, ele me chamou à sala dele, me colocou entre
suas pernas e me sacudiu com força... me lembro até hoje: “Você
falou que eu tava bêbado!” Isso me traumatizou, foi um furor,
uma agressão. Era o método dele.
O Marcos Schainberg estava na turma da frente e era
o primeiro aluno. Na minha turma, eu era sempre o mediano,
a vida toda fui mediano, sempre fui vice. E consegui tudo na
minha vida sendo vice, mas eu era um vice do tipo Pio Canedo, José Maria Alkmin, um vice que manda, quer dizer, o outro
aparece, mas o vice é que faz.
Então, devido a essa insegurança na minha casa, me tornei uma criança ansiosa, que suava na mão, e ainda por cima era
daltônico. Quando escrevia, molhava o papel; tinha que escrever no lápis o nome da cor, e eu tinha dificuldade em identificá-la, mas sempre fui esperto, e desde menino eu superava tudo,
o que faço até hoje. Surgem os problemas, e nunca deixo nada
em aberto. Aprendi a me defender por instinto, na adrenalina.
O suor na mão só fui resolver aos 40 anos, acontecia principalmente nas situações de estresse, em qualquer situação em que
eu tivesse que me mostrar.
Por isso, nós vamos tentar levar a coisa da seguinte forma: sou o judeu que saiu da Arca Sagrada, o pinto que saiu do
armário — porque a primeira marca do judeu da Arca é a circun| 57 |
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cisão, e isso diferencia o menino completamente. O casamento
só entre judeus, por exemplo, é um dogma que foi rompido há
apenas duas gerações. Hoje em dia sou dos poucos em Belo Horizonte que tem uma mulher judias, com filhos judeus casados
com judias. De onde tirei isso? A Miriam, minha mulher, tem
uma tia casada com um fazendeiro de São João Evangelista, que
se converteu. A tia está com mais de noventa anos e isso ainda
choca, a avó da Miriam ficou abalada com o casamento.
Já na infância segregávamos e éramos segregados, mas
eu, com a minha esperteza, criei formas de me defender, procurei os atalhos dentro dos princípios. Fui procurar a minha
mulher quando ela tinha 14 anos, e ela era judia, mas foi um
namoro espontâneo. Eu fiz isso.
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