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A tradução do humor negro: as metáforas
em Cyanide & Happiness1
Robson Falcheti Peixoto
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Resumo: Este artigo visa à discussão dos procedimentos e estratégias envolvidos na
tradução da linguagem metafórica geradora de humor em webcomics de Cyanide & Happiness, publicados entre 2007 e 2010 e notórios entre os jovens em virtude de seu humor
subversivo e politicamente incorreto. Este estudo adota a conceituação moderna de metáfora, segundo a qual ela é um processo cognitivo que determina os modos como os
indivíduos de determinada cultura pensam, agem e falam. A análise dos procedimentos
e obstáculos enfrentados pela tradução nas tirinhas selecionadas é realizada à luz da teoria descritivista de van den Broeck e de seu modelo de tradução de metáforas. Os dados
analisados apontam para a tendência da tradução literal mesmo em casos de incompatibilidade cultural de conceitos metafóricos, por força do elemento imagético indissociável. Em outra via, observa-se um exercício criativo por parte do tradutor no sentido
de metaforizar situações que, no texto-fonte, não se orientam pelo sentido figurado, o
que acentua não apenas o papel do tradutor na reprodução da tirinha, como também na
recriação do efeito humorístico na cultura-alvo.
Palavras-chave: Procedimento de tradução. Tradução de metáfora. Cultura. Humor
negro. Tirinha de Cyanide & Happiness.
Orientadora: Eliane Gurjão Silveira Alambert. Mestre em Linguística Aplicada pela PUC-SP. Docente do
curso de Pós-graduação em Tradutores de Língua Inglesa.
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Especialista em tradução em língua inglesa pelo Centro Universitário Claretiano de Batatais (SP). E-mail:
<[email protected]>.
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1. INTRODUÇÃO
O Carteiro ingenuamente pergunta ao Poeta o que eram, afinal,
aquelas tais metáforas a que ele tanto se referia em suas poesias. O Poeta,
paciente, apresenta-lhe uma definição literal e bastante precisa, mas que
confunde ainda mais os pensamentos do pobre Carteiro. O Poeta, então,
lhe lança um desafio:
– Bem, quando você diz que o céu está chorando, o que é que você quer
dizer com isso?
– Ora, fácil! Que está chovendo, ué!
– Bem, isso é uma metáfora.
O Carteiro devolve ao Poeta um olhar admirado, como que se lhe
houvesse descortinado um novo horizonte de sentidos.
– E por que se chama tão complicado, se é uma coisa tão fácil?
– Porque os nomes não têm nada a ver com a simplicidade ou a complexidade das coisas.
Essa cena do filme O Carteiro e o Poeta, sobre a vida do poeta chileno Pablo Neruda, traduz bem as dificuldades que muitas vezes se apresentam ao cotidiano dos profissionais que lidam com o texto. O Poeta
parece acertar na afirmação de que “[...] os nomes não têm nada a ver com
a simplicidade ou a complexidade das coisas”, o que constitui motivo de
grande reflexão para quem busca a máxima precisão com a palavra. Se tais
dificuldades já se revelam no contexto de um mesmo idioma, são ainda
amplificadas quando se tem de lidar com a transferência de significados de
uma língua para outra, notadamente em casos de tradução da linguagem
metafórica, que tem sido motivo de preocupação entre os estudiosos da
área (SCHÄFFNER, 2004).
A metáfora, sob a perspectiva adotada neste artigo, ultrapassa sua
mera função de ornamento estético em textos literários e assume o posto
cognitivo do qual orienta nosso modo de ver, pensar e agir no mundo,
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relacionando-se intimamente com nossas experiências pregressas e o nosso dia a dia (LAKOFF; JOHNSON, 2002). Nesse sentido, tal enfoque
ressalta, também, que os maiores desafios dos tradutores residem principalmente na expressão de abstrações e sentimentos, cuja tradução não
se limita a retirar da algibeira um vocábulo que, em tese, “resolve” lexicalmente um problema semântico. Nessa problemática, aliás, se insere o
clássico exemplo da palavra “saudade”, que não apresenta correspondente
lexical em outra língua e que encerra significados ainda mais extensos
que o contido mesmo em estruturas desenvolvidas como “I miss you”, à
semelhança do trabalho de um artista que, na falta do azul, mistura algumas cores da paleta para “chegar na cor”, nem sempre atingindo a perfeição. São tais a dificuldades linguísticas com que muitas vezes os tradutores se deparam. Ademais, “os valores de cada cultura poderão alterar
os conceitos metafóricos e, consequentemente, as expressões linguísticas
metafóricas geradas a partir destes poderão ter diferentes significações”
(KOGLIN, 2006, p. 4).
Voltando ao nosso artista, é como se, embora vivesse a expressar na
sua pintura, ao menos conscientemente, um estado de graça e felicidade
através do azul, o pintor tivesse sido marcado, ao longo dos tempos e em
uma determinada cultura, por uma imagem melancólica e soturna, visto
que a sociedade então exposta à sua obra não compartilhava da mesma
“paleta de sentimentos”, enxergando no azul traços de profunda tristeza
e desalento. A cultura, portanto, na maioria das vezes “dá o tom” das significações que as pessoas fazem da vida e do mundo.
Tais subjetividades, porém, não devem, em princípio, contaminar o
fim tradutório, embora possa contagiar seu processo – o que, aliás, justifica sua verve mais criativa do que técnica (a depender, claro, da natureza
do texto). Os desafios impostos aos tradutores tratam justamente desse esforço para contornar tais desvios de significado e interpretação, de modo
a apresentar ao leitor da língua-alvo uma criação correspondente aos objetivos da criação original. Ao artista cabe a expressão única e subjetiva
de uma arte. Ao tradutor cabe a expressão o mais fiel possível da intenção
do artista/autor, reproduzindo seu efeito e beleza. Em uma pintura, por
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exemplo, tais marcas são intraduzíveis1, e uma arte é o que é sejam lá quais
forem os atributos que as pessoas lhe concedem através dos séculos. Em
outras produções, notadamente de ordem humorística, nas quais por sua
vez se desenrola a linguagem escrita – e muitas vezes, também, a visual –, é
necessário que os tradutores tenham em mente a interferência da culturaalvo nas significações dos elementos importados da cultura-fonte, tanto
linguísticos quanto extralinguísticos. Essas criações, portanto, por mais
artísticas sejam suas origens, carecem de um tratamento mais pragmático
em sua modulação para outra língua, mesmo porque muitas delas visam
atender a fins comerciais. É o caso das histórias em quadrinhos (comics),
cuja presença da mensagem visual, em estreita sintonia com o material
verbal, é apenas mais um obstáculo para o tradutor, que também deve
enfrentar o maior deles: a reprodução do humor (KOGLIN, 2006).
Do universo das tiras em quadrinhos, desponta hoje uma categoria
que movimenta o mundo virtual e atrai a atenção de milhões de internautas em todo o mundo: os webcomics. Trata-se de publicações destinadas exclusivamente para a internet e que representam um tipo de humor bastante peculiar, em geral vinculado a uma cultura de subversão de
valores própria da sociedade da qual se origina (humor negro / humor
underground). Nesse contexto, observa-se outro movimento bastante significativo que orienta os fãs de determinadas criações a se mobilizarem
para traduzi-las e disponibilizá-las no ambiente on-line, fenômeno este
que deve marcar a história da tradução, visto que os leitores entram publicamente em discussões apaixonadas para defender ou criticar as traduções
postadas, em um evento de troca incessante de informações e farpas.
Almeida (2004) apresenta três tipos de intraduzibilidade: a linguística, que se refere às incompatibilidades
lexicais; a não linguística, que trata de vocábulos cujo significado não é exatamente o mesmo, embora seu
léxico muitas vezes se assemelhe entre dois idiomas; e a circunstancial, situação na qual um fator externo
impede a tradução adequada de determinado vocábulo ou expressão. Neste artigo, adota-se a compreensão
de que a intraduzibilidade é uma característica comum a toda e qualquer ordem de expressão artística que
não tenha por objetivo disseminar-se de acordo com a cultura em que se expõe, mas, sim, manter suas
qualidades particulares e originais, a despeito de interpretações dissonantes que estas venham a receber. Por
isso o exemplo da pintura como obra de arte intraduzível.
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Ressalta-se, também, que tais divergências são tão mais frequentes
quanto maior a liberdade tomada pelo tradutor para adaptar o humor das
tiras às significações e referências de sua própria cultura. Em tempos de
tradução automática, e quase instantânea, o humor underground dos webcomics parece estar longe de entrar no rol das traduções mecanicamente
satisfatórias, pois seu humor reside justamente na força metafórica – linguagem a qual a máquina ainda não domina com eficiência e precisão. Sobressaem, portanto, a importância do tradutor humano e suas estratégias
de tradução.
No Brasil, o blog pioneiro nessa prática tradutória é o Cyanide &
Happiness Traduzidos, que disponibiliza diariamente, em português, as
tiras de Cyanide & Happiness (Cianureto & Felicidade, em tradução livre)
originalmente publicadas em inglês no site Explosm. O C&HT foi eleito
pela Editora Abril, em 2009, como um dos 10 Melhores WebComics da
Internet.
Com vistas nessas especificidades, pretende-se neste artigo analisar
os webcomics de Cyanide & Happiness, publicados entre agosto de 2007
e outubro de 2010 e selecionados a partir da existência de metáforas cujo
sentido esteja atrelado ao contexto cultural da língua-fonte. Compreender,
também, como o humor das tiras renasce na cultura que espontaneamente
o adota e dissemina por meio das traduções, investigando, com vistas nos
desafios linguísticos e culturais ilustrados, quais os procedimentos e estratégias mais recorrentes utilizados pelo(s) tradutor(es) dos quadrinhos
selecionados e como se realizou a transferência de sentido e significado
das metáforas geradoras de humor.
1.1 Metodologia
Após breve revisão bibliográfica sobre concepções de metáforas, será
feita a seleção das tiras de Cyanide & Happiness em que seja observado o
uso da linguagem metafórica, a fim de se analisarem as soluções encontradas pelo(s) tradutor(s) para a transferência do sentido e humor dos
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quadrinhos e defrontar tais soluções com o modelo de procedimentos de
tradução de metáforas apresentado pela teoria descritivista de Van Den
Broeck (1981).
2. DESENVOLVIMENTO
2.1 Concepção de metáforas
Se voltarmos ao exemplo de O Carteiro e o Poeta, perceberemos que a
admiração daquele ao compreender a metáfora contida na sentença “o céu
está chorando” muito tem a ver com a rápida associação que ele mesmo
se torna capaz de efetuar entre a linguagem metafórica e o fenômeno observável de seu cotidiano: “está chovendo”. Mas essa associação, ao longo
da história, nem sempre foi clara. Tal perspectiva vai de encontro, por exemplo, à concepção aristotélica de metáfora, segundo a qual a linguagem
figurada não beneficia a assimilação e compreensão de fatos novos – aliás,
o filósofo chega mesmo a ressaltar que tal linguagem é de compreensão
ainda mais complexa que a literal (KOGLIN, 2006).
Lakoff e Johnson (2002, p. 45), por sua vez, inauguraram, com o lançamento do livro Metaphors we live by, uma concepção de metáfora mais
próxima da realidade e do uso cotidiano, afirmando que “nosso sistema
conceptual ordinário, em termos do qual não só pensamos mas também
agimos, é metafórico por natureza”. Nessa perspectiva, “a principal função
da metáfora seria a compreensão” (KOGLIN, 2006, p. 4), o que parece
coincidir, por exemplo, com o pensamento atual de muitos profissionais
da área médica, que usam de metáforas para comunicar um diagnóstico
complicado a seus pacientes (em que a série televisiva estadunidense House
é um exemplo notável), e de alguns políticos, que simplificam metaforicamente suas ações de governo para facilitar a assimilação de um eleitorado
avesso a discursos rebuscados.
Quando a velha Rose, no filme Titanic, enuncia que O CORAÇÃO
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DE UMA MULHER É UM OCEANO DE SEGREDOS2, apresentanos uma metáfora conceptual que elucida sua própria experiência trágica
e, ao narrar sua história para os jovens exploradores, é como se a personagem se comportasse ela mesma como um oceano, vasto e misterioso,
de cujas profundezas suas lembranças e emoções naufragadas como que
viessem novamente à tona (grifos meus). A metáfora conceptual, assim,
encerra indícios da atitude de seu enunciador (no caso, a britânica Rose)
e articula expressões afins com o “universo oceânico” (naufragadas, profundezas, viessem à tona) que facilitam o intento deste autor de partilhar,
com os leitores deste artigo, a experiência de vida da personagem da referida película, razão pela qual a metáfora constitui, segundo a visão cognitiva, forma de “compreender e experenciar uma coisa em termos de outra”
(LAKOFF; JOHNSON, 2002, p. 47-48).
Segundo Schäffner (2004), dois termos essenciais compõem a metáfora: o veículo e o tópico. O primeiro, conforme insinua sua designação, é matéria pela qual se transportam atributos para o segundo. Simplificando-se o exemplo de Titanic, na sentença MULHER É OCEANO
configuram-se mulher como tópico e oceano como veículo, e apenas algumas características deste, como, por exemplo, sua imensidão e mistérios
profundos, são transferidas ao tópico, enquanto outras são desprezadas
(KOGLIN, 2006; OLIVEIRA, 2006), como, por exemplo, a matéria da
qual o oceano é formado (águas salgadas) e seu uso para a navegação.
No exemplo supracitado, ocorre a estruturação do conceito mulher
(compreendido, sobretudo, como o ideal feminino) em termos de oceano,
razão pela qual esse exemplo se enquadra nas metáforas do tipo estruturais (LAKOFF; JOHNSON, 2002). Além destas, os autores discriminam
mais dois tipos de metáfora: as orientacionais e as ontológicas. As primeiras não estruturam um conceito em termos de outro, e sim organizam um
sistema de conceitos em relação a outro, baseando nossas experiências
físicas e culturais em noções de orientação espacial, como em FELIZ É
PARA CIMA / TRISTE É PARA BAIXO. Já as metáforas ontológicas
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Lakoff e Johnson apresentam as metáforas conceituais em letras maiúsculas.
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são fruto de nossas experiências com objetos físicos, palpáveis, a partir dos
quais podemos compreender coisas abstratas tais como entidades e substâncias (MENTE É UMA MÁQUINA).
Além disso, segundo Koglin (2006, p. 4), “[...] os valores de uma cultura terão coerência com o conceito metafórico”, e os valores metafóricos,
por sua vez, estarão vinculados à cultura do indivíduo, uma vez que sua
aquisição é realizada ao longo da constante interação deste com os ambientes físicos e culturais em que vive (OLIVEIRA, 2006). Para nativos
de Portugal, ou mesmo para os demais falantes da língua portuguesa, por
exemplo, comparar mulher a oceano pode evocar vozes históricas que
transferem com mais força, do veículo ao tópico, um atributo que tenha
sido inicialmente descartado em outra cultura. Em virtude dos versos do
poeta Fernando Pessoa, pode-se ressaltar na mulher, antes dos “mistérios
profundos” do oceano, o “sal” que este comporta, que são nele as próprias
“lágrimas de Portugal” e, portanto, símbolo da angústia feminina (Ó mar
salgado, quanto do teu sal / São lágrimas de Portugal! / Por te cruzarmos,
quantas mães choraram [...] / Quantas noivas ficaram por casar). De modo
semelhante, “[...] um dado conceito metafórico em uma determinada
cultura pode apresentar ou não o mesmo sentido em outra” (KOGLIN,
2006, p. 4), situação esta que inviabiliza qualquer transferência coerente
entre veículo e tópico.
Por essa razão, os tradutores são constantemente desafiados em sua
prática cotidiana, pois sempre devem buscar essa coerência ao transportar os sentidos culturalmente marcados no texto de partida. No caso
dos quadrinhos de humor, esse desafio é ainda mais complexo, uma vez
que, além do plano do conteúdo, o tradutor deve almejar, também, a reprodução do plano expressivo, isto é, o efeito cômico desejado.
2.2 Estratégias e desafios na tradução de metáforas
As metáforas representam dificuldades de tradução porque seu significado, muitas vezes, é intrínseco à cultura da qual se originam. Tendo-se
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em vista que “[...] todo e qualquer fato cultural, toda e qualquer atividade
ou prática social constituem-se como práticas significantes, isto é, práticas de produção de linguagem e sentido” (SANTAELLA, 1983, p. 12),
dimensiona-se o desafio imposto aos tradutores, em especial àqueles não
familiarizados com a cultura em que a metáfora é usada (OLIVEIRA,
2006).
Segundo Venutti (1995 apud OLIVEIRA, 2006, p. 2773), “[...] o
texto estrangeiro e a tradução são constituídos de materiais linguísticos
e culturais diferentes”. É como se os tradutores, portanto, tivessem à mão
ingredientes diferentes daqueles da receita original, mas precisassem imprimir ao novo preparo a mesma consistência, tempero e sabor. Longe,
porém, de se buscarem receitas prontas, “[...] numerosos procedimentos
de tradução foram sugeridos como soluções alternativas ao ideal de reprodução intacta da metáfora” (SCHÄFFNER, 2004).
Este artigo leva em conta, assim, o modelo de tradução de metáforas
apresentado por Van Den Broeck (1981), o qual, contudo, não se prestará à prescrição de como as metáforas devem ser traduzidas, mas, sim, à
descrição e explicação das soluções existentes para fazê-lo, razão pela qual
tal teoria é chamada descritivista (KOGLIN, 2006). Adiante, as três possibilidades descortinadas pelo autor:
• Tradução “stricto sensu”: trata-se da tradução literal, em que
veículo e tópico coincidem no par de línguas envolvidas. Como exemplo,
pode-se citar a expressão “money doesn’t grow on trees”, a qual equivale à
tradução literal para o português: “dinheiro não cresce em árvores”.
• Substituição: ocorre, aqui, a substituição do veículo então usado
na língua-fonte por outro de teor compatível na língua-alvo. Por exemplo,
a expressão “on the nuts and bolts”, cuja tradução literal seria “com as porcas
e parafusos”, encontra na língua portuguesa seu equivalente metafórico: “o
feijão com arroz”, isto é, os detalhes práticos, os fundamentos.
• Paráfrase: interpreta-se a metáfora da língua-fonte e a traduz
segundo padrões não metafóricos na língua-alvo. Exemplificando, a expressão “head and shoulders above”, literalmente “cabeça e ombros acima”,
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não se relaciona, na língua portuguesa, a qualquer expressão metafórica,
razão por que, na maioria das vezes, ela é traduzida em sentido literal:
“muito superior a”.
Sobre o último procedimento, é complexo, sobremaneira, fornecer
seguramente um exemplo definitivo, pois, dada a riqueza da língua portuguesa e seu número de falantes, não seria de admirar que existisse (ou
surgisse), em algum recanto qualquer dos países que partilham desse idioma, uma expressão metafórica equivalente a “head and shoulders above”,
ou mesmo que vingasse, no decorrer do tempo, o uso literal do termo.
Koglin (2006), em seu artigo, incorreu nessa “armadilha”, pois, ao exemplificar a paráfrase de van den Broeck (1981), lançou mão da expressão
metafórica “it’s raining cats and dogs” (“está chovendo gatos e cachorros”),
para a qual afirmou não existir expressão com o mesmo sentido na língua
portuguesa. Todavia, não são poucos os registros populares da expressão
“está chovendo canivetes”, de mesmo sentido e aplicação, o que coloca em
xeque a afirmação da autora. A tradução parafraseada, porém, pode ser indicada caso se considere o termo em desuso ou artificial para o contexto.
2.3 Os webcomics de Cyanide & Happiness
Criadas pelos americanos Kris Wilson, Rob DenBleyer, Matt Melvin e Dave McElfatrick, as tiras eletrônicas de Cyanide & Happiness despertam, desde sua estreia na internet, sentimentos controversos. Se, por
um lado, seus personagens espantam pelos traços ingênuos, quase infantis
– “bonequinhos de pau” (stick figures) –, por outro chocam ao desenrolarem historinhas de humor bastante ácido, buscando claramente o politicamente incorreto e o humor negro de situações e temas polêmicos.
A vida de Jesus, o 11 de Setembro, câncer e pedofilia são apenas alguns
dos assuntos explorados. Atualmente, sua página na internet (Explosm)
recebe mais de 1 milhão de visitas diárias.
No Brasil, o blog pioneiro na tradução dos webcomics originais é o Cyanide & Happiness Traduzidos, cuja tradução hoje está a cargo do baiano
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Luiz Phelippe Santos Magalhães. Em entrevista concedida por e-mail ao
autor deste artigo, o tradutor confessou utilizar-se de tradutores on-line
e recorrer a demais sites de referência, como o Urban Dictionary (http://
www.urbandictionary.com), para pesquisas de expressões idiomáticas
(idioms) e gírias (slang). Seu trabalho é prestigiado por uma média de 700
mil visitantes ao mês, muitos dos quais participam ativamente das atualizações, seja elogiando ou sugerindo traduções alternativas às publicadas,
em um fenômeno que justifica a fama dos quadrinhos e ampara estudos
mais detalhados sobre as estratégias de tradução compartilhadas por esses
jovens internautas, com vistas nos desafios linguísticos e culturais com os
quais se defrontam.
2.4 As metáforas em Cyanide & Happiness Traduzidos3
Entre os webcomics selecionados a partir da existência de linguagem
metafórica, publicados de agosto de 2007 a outubro de 2010, constatouse que a estratégia mais utilizada para a tradução de metáforas foi a stricto
sensu, como no exemplo a seguir:
Todas as imagens aqui utilizadas foram retiradas do site: <http://www.cyanidetraduzidos.com.br/>.
Acesso em: 10 jul. 2010.
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Figura 1 – Tradução stricto sensu de metáfora ontológica.
Nessa tirinha, a opção pela tradução, em maior medida, literal induz
à existência do compartilhamento cultural de uma metáfora ontológica
que se pode elaborar como MENTE É UM EQUILIBRISTA, a qual
constitui a personificação “[...] por meio da qual coisas abstratas tornamse mais palpáveis e/ou perceptíveis” (KOGLIN; OLIVEIRA, 2008, p. 3).
O humor decorre, porém, não da metáfora em si, mas do jogo estabelecido
entre o real (o caso de um equilibrista suicida) e o ideal (equilibrista como
sinônimo de sanidade, autocontrole, comedimento etc.), cujo mapeamento seletivo de propriedades resulta na palavra “desequilibrado”. Portanto, a
transferência de sentidos para a cultura-alvo é bem-sucedida mantendo-se
a noção de “equilíbrio”, uma vez que também compartilhamos da compreensão de que a mente é uma entidade humana constantemente desafiada por situações capazes de desestabilizá-la, como na de um equilibrista
“na corda bamba” à mercê, por exemplo, de um vento mais forte ou de
um breve momento de desatenção. Na metáfora conceptual da tirinha,
a figura do equilibrista é o veículo pelo qual se transfere ao tópico (no
caso, a mente) essa capacidade de equilíbrio, e a piada decorre justamente
da ruptura dessa suposta “harmonia”, uma vez que o suicídio do artista,
na visão do personagem, constitui indicativo de desequilíbrio mental (no
texto-fonte, embora se trate, em tradução mais exata, de “quimicamente
desequilibrado”, termo que se refere a uma teoria bastante propalada, na
cultura-fonte, acerca das causas químicas das doenças mentais, assumese que tais substâncias em desacordo atuaram no cérebro do indivíduo,
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desequilibrando-o mentalmente, o que faz constituir a mesma metáfora
conceptual). Por meio de um trocadilho “infame” que estabelece o paradoxo entre ser (“equilibrista”) e estar (“desequilibrado”), arremata-se o humor, plenamente reproduzido pela tradução literal, embora tenha havido,
como dito, um “ajuste” cultural por meio da substituição de “chemically”
por “mentalmente”, de modo a se fazer uma referência mais exata, e mais
culturalmente corriqueira, ao verdadeiro tópico da metáfora subentendida. Convém ressaltar que a fala do irmão do equilibrista, em resposta
grosseira não somente à insensibilidade do amigo, como também ao lugar-comum do trocadilho, tem seu veículo alterado pela tradução (procedimento de substituição), com sentido e força mantidos.
Outro caso bem-sucedido de tradução stricto sensu é apresentado a
seguir.
Figura 2 – Tradução stricto sensu de metáfora ontológica.
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Nos Estados Unidos, Plenty of Fish é um popular site de relacionamentos que promove encontros amorosos, o que reforça a contextualização da metáfora na cultura da qual se origina a gag. No Brasil, por sua vez,
não é raro se associar uma mulher atraente e voluptuosa a um “peixão”, de
cuja comparação derivam expressões como “ela vai cair na minha rede”.
Além disso, a expressão “o mar não está para peixe” é, também, bastante
difundida entre os brasileiros, associando-se a situações em que são poucas
as oportunidades ou os elementos de conquista e/ou sucesso. Portanto, é
com eficiência que a metáfora “plenty of fish in the sea” é literalmente traduzida, isto é, tem tópico e veículo fielmente transpostos da cultura-fonte
para a cultura-alvo, e a preexistência de metáforas envolvendo o mesmo
universo semântico é a razão pela qual se compreende facilmente a metáfora “o mar tá cheio de peixes”.
Na tirinha a seguir, é apresentado outro caso de tradução literal, agora envolvendo uma metáfora orientacional.
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Figura 3 – Tradução stricto sensu de metáfora orientacional.
Nessa tirinha, a piada decorre justamente dos dois sentidos, conotativo e denotativo, da expressão “Está tudo direito”: está “tudo bem” com o
personagem após o “acidente”, assim como ele, agora, só tem os membros
direitos do corpo. As metáforas orientacionais que se podem inferir desse
enunciado são tais como POSITIVO É DIREITO / NEGATIVO É ESQUERDO, como em “Hoje acordei com o pé esquerdo”. Vale ressaltar
que, segundo a perspectiva cognitivista, tais orientações metafóricas não
são arbitrárias e têm como bases as experiências físicas e culturais dos indivíduos (LAKOFF; JOHNSON, 2002) No último quadrinho, revela-se
que o personagem chegou ao cúmulo de mutilar-se somente para justificar
o uso ambivalente da expressão, cuja tradução literal remete aos mesmos
significados na cultura-alvo, revelando-se, portanto, um sistema compartilhado de valores.
Nem sempre, porém, essas significações foram satisfatoriamente reproduzidas por meio da tradução stricto sensu, justamente em razão da
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ausência de equivalente cultural e/ou da impossibilidade de substituição,
como no caso mostrado a seguir:
Figura 4 – Tradução stricto sensu de metáfora incompatível.
Para o leitor não familiarizado com a cultura dos povos de língua
inglesa, essa piada fica sem sentido. A expressão “find one’s sea legs” referese à situação em que a pessoa, em alto-mar, tenta recuperar-se das náuseas
provocadas pelo balanço do navio. Aparentemente, não existe expressão
equivalente em língua portuguesa, e o procedimento sugerido por van den
Broeck (1981) para essa situação (a paráfrase) não resolve adequadamente
o problema em questão, visto que o humor dessa tirinha reside justamente
nos elementos contidos na expressão metafórica original: a pessoa que está
observando o mar é aleijada e, ao ouvir a pergunta, volta-se ao interlocutor
e ironiza melancolicamente a própria deficiência física, isto é, confirma
estar procurando no mar as pernas “perdidas”. Desse modo, o efeito humorístico advém da [...]“tensão semântica manifestada entre os planos literal e metafórico” (KOGLIN; OLIVEIRA, 2008, p. 9).
Um exemplo comentado anteriormente neste artigo também surge
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em uma das tirinhas de Cyanide & Happiness, ilustrando bem as limitações impostas pelo componente imagético às adaptações que buscam
conservar o sentido e o humor.
Figura 5 – Tradução stricto sensu de metáfora.
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Como vimos, a expressão “está chovendo canivetes” serviria à substituição dessa metáfora, porém os elementos pictóricos contidos na tirinha
impedem essa troca. A metáfora é usada no sentido literal, e surpreendentemente ingênuo: a personagem apenas anuncia a seus interlocutores
(cachorros e gatos) a condição do tempo. A vírgula é o elemento que desconstrói a metáfora original “it’s raining cats and dogs”, alterando seu sentido em um lance sutil de humor. Nesse caso, nada mais restou à tradução
brasileira senão inserir uma nota explicativa.
Houve outros casos em que o tradutor, embora dispusesse de metáforas equivalentes na cultura-alvo, viu-se obrigado a traduzir literalmente
determinadas expressões, por força justamente da imagem. Por outro
lado, ocorreram, em menor quantidade, substituições que deram conta
de expressões em sentido figurado, e um fato a ser destacado é que quase
sempre estas estavam desvinculadas ao entendimento direto da piada central, como a seguir:
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Figura 6 – Tradução por substituição de metáfora.
Nesse exemplo, além de “ugly as hell” ter sido traduzido, por substituição, como “feia pra cacete”, a expressão “make sweet gross intercourse at
you” foi substituída por “fazer um rala e rola com você”, gíria que também
sugere, em língua portuguesa, atividade sexual, de modo que se manteve,
na tirinha, o tom coloquial, mas não profundamente vulgar, do personagem masculino.
Algumas substituições de metáforas, em contrapartida, poderiam ter
sido promovidas em prol de maior articulação do humor de determinadas
tirinhas. O fato comum é que essas metáforas estavam, agora, associadas
ao núcleo do humor, como na tirinha que segue:
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Figura 7 – Tradução stricto sensu de metáfora que poderia ter sido substituída.
O personagem dessa tirinha tenta, sem sucesso, fazer com que a esposa,
pelo telefone, compreenda a mensagem literal contida em uma expressão
metafórica, a fim de obter seu auxílio. O tradutor, em primeira análise,
parece ter sido bem-sucedido na reprodução do sentido de “held up”, que
pode ser tanto “assaltado” quanto “preso, obstruído”, porém o humor poderia ter sido amplificado caso ele tivesse optado por uma substituição mais
ousada: o personagem poderia dizer, por exemplo, “Estou numa roubada
aqui no trabalho”, que inclui uma expressão bastante comum entre os brasileiros, a qual, tomada em sentido literal, remete de modo mais objetivo à
cena do segundo quadrinho; afinal, o que acontece ali é um roubo, e não
propriamente a prisão do atendente de caixa. Além disso, tal escolha justificaria melhor o assassinato do personagem, uma vez que seu atrevimento
soaria ainda mais delator (embora a esposa não entendesse o apelo).
Quanto ao terceiro procedimento de tradução descrito por van den
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Broeck (1981), a paráfrase, não houve qualquer ocorrência identificada
ao longo das tirinhas de Cyanide & Happiness. No entanto, outras estratégias não previstas pelo modelo de tradução de metáforas adotado foram
levadas a cabo e produziram efeitos bastante interessantes e eficientes,
como na tirinha adiante:
Figura 8 – Tradução geradora de metáfora não existente no texto-fonte.
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Além da sentença “Would you take a bullet for me?”, traduzida literalmente e cujo sentido busca investigar os limites do amante para com o ser
amado, constituindo caso em que “[...] a interpretação literal do enunciado metafórico contribui para a criação do efeito humorístico” (KOGLIN;
OLIVEIRA, 2008, p. 6), a tirinha apresenta a construção “I think we should
see other people”, que não indicia uma metáfora em especial e poderia, portanto, ter sido traduzida “ao pé da letra”. O tradutor, porém, a fim de adequar o discurso à cultura-alvo, na qual os rompimentos amorosos quase
sempre são marcados por um “cuidado” muitas vezes excessivo e por uma
cordialidade algo hipócrita, não raro conduzida por expressões figuradas e
eufemísticas, preferiu lançar mão da fórmula “dar um tempo”, que encerra
uma infinidade de significações que vão muito além de uma simples pausa
na relação, mas perpassam, também, pela vontade do parceiro em sair com
outras pessoas (na cultura brasileira, essa confissão soaria desajustada aos
dizeres habituais dos namorados) ou mesmo pela realidade que tentam
atenuar: eis o fim definitivo do relacionamento. Criando essa metáfora a
partir de um discurso denotativo, o tradutor acentuou o caráter cultural
brasileiro que evidencia o “cinismo” dessa situação típica, sustentando até
mesmo o comportamento extremista, e deliciosamente “cômico”, do personagem no último quadrinho, uma vez que ele é a catarse de todo o sentimento represado pela “cordialidade” do abandono.
Esse recurso tradutório despontou outras vezes em que o tradutor
buscou a inserção cultural, em mais um caso não previsto pelo modelo de
Van Den Broeck (1981):
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Figura 9 – Tradução geradora de metáfora não existente no texto-fonte.
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Nessa tirinha, é eficiente a criação da metáfora “O último a chegar
naquela árvore é mulher do padre” a partir de uma fala sem traços metafóricos (“Race you to that tree over there”), pois, no contexto da cultura-alvo, é
corriqueira a linguagem mais descontraída em uma aposta realizada entre
duas crianças. Não houve comprometimento algum do sentido, embora
tenha sido criada uma imagem forte (a de um suposto padre) que não
se vincula de maneira orgânica ao desenrolar da tirinha. Observou-se, ao
longo da análise das tirinhas, que muitas “sacadas” de C&H consistem
justamente na desconstrução de metáforas consagradas, e os elementos
destas, muitas vezes, surgem fisicamente nos quadrinhos de modo a arrematar a piada, reduzindo ou anulando todas as possibilidades de ambiguidade (QUELLA-GUYOT, 1994 apud KOGLIN; OLIVEIRA, 2008, p.
9). Por isso, a tradução dessa tirinha, embora em princípio bem-sucedida,
vai de encontro a essa “tradição” de C&H, pois a metáfora da “mulher
do padre” evoca imagens fortes demais para serem usadas e não resgatadas posteriormente. Poder-se-ia imaginar no último quadrinho, em uma
versão livre para tratar esse desvio, um padre correndo enquanto carrega
sobre os ombros, com dificuldade, a árvore que as crianças estabeleceram
como ponto de chegada, a fim de ele, padre, não ter como “mulher” um
dos dois garotos.
Aliás, pensar na alteração da imagem, se antes era uma cogitação impossível e vaga, hoje ganha contornos reais. Publicados no ambiente on-line
e de arte assumidamente tosca, os webcomics de C&H parecem oferecer
ainda mais essa condição, uma vez, ainda, que os próprios autores incentivam publicações de fãs. Esse incentivo parece ter levado o tradutor brasileiro de C&H a sentir-se à vontade para proceder a uma interferência que não
somente se restringiu ao campo textual, como também avançou sobre a arte
do desenho original. Em uma das tirinhas analisadas, houve, para a adequação da metáfora introduzida pelo tradutor, a modificação de um elemento
próprio da cena, modificação esta quase imperceptível, mas que acena para
as atuais “forças” do profissional de tradução, munido de softwares capazes
de tais execuções, o que reacende, também, novas discussões acerca de ética
e fidelidade à obra original, levando-se em conta, agora, as recentes modali-
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dades de publicação de quadrinhos. O caso será demonstrado na tirinha a
seguir, na qual o tradutor, mediante uma solução bastante criativa na geração de uma metáfora originalmente inexistente, viu-se obrigado a adaptar as
peças do humor (e excluir uma) para sustentar sua versão:
Figura 10 – Tradução geradora de metáfora não existente no texto-fonte.
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Nessa tirinha, o personagem é indagado sobre seu “hobbie” [sic]
mais radical, ao que responde “I like to lick stamps” (“Gosto de lamber
selos”), o que corresponde a uma atividade bastante banal, causando estranheza ao amigo. Na sequência, o personagem demonstra o perigo de tal
passatempo e descobre-se, assim, que os “stamps” na verdade são as “tamp
stamps” (ou “tatuagens vagabundas”), que se tornaram populares nos Estados Unidos na década de 1990 e que, estampadas na altura do cóccix
das mulheres, buscam simbolizar erotismo e atração sexual. Na tradução,
por não haver, a princípio, qualquer outro item ordinário e/ou cotidiano
que pudesse ser confundido, na cultura-alvo, com uma tatuagem, optouse por descartar completamente a ideia da gravura corporal, substituindo-a por uma ambiguidade de natureza metafórica, somente aplicável à
cultura brasileira: “cofres”, no Brasil, podem ser tanto “caixas-fortes”, no
seu sentido estrito, quanto a gíria (em geral no diminutivo, “cofrinhos”)
que estabelece a semelhança entre o orifício pelo qual se inserem moedinhas em cofres na forma de “porquinhos” e a região do corpo humano,
entre as nádegas e a região pré-lombar, que se revela quando uma pessoa,
vestindo calça de cós baixo, eventualmente se agacha, “pagando cofrinho”.
Na tirinha, as personagens usam tais calças, e a língua do “aventureiro”
se direciona para a região que tomamos por “cofrinho”. Por isso, é muito
bem-sucedida a adaptação, reproduzindo-se um humor que, se por um
lado não é fiel, por outro está à altura do original. O tradutor, como dito
anteriormente, chega mesmo a apagar a tatuagem da terceira mocinha da
fila, de modo a diminuir o “ruído” que a presença das gravuras causaria
à sua recriação, uma vez que esta não necessita de tais elementos para a
construção da metáfora e geração do humor.
3. CONCLUSÃO
Neste artigo, o humor negro das tirinhas de Cyanide & Happiness
foi selecionado segundo um filtro metafórico que permitiu a visualização de duas ocorrências: a metáfora, na maior parte das vezes, constitui
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o elemento central do humor; e os elementos visuais da tirinha são quase
indissociáveis dos enunciados verbais, levando-nos à interpretação literal
da metáfora em um contexto inusitado.
Quanto aos procedimentos de tradução, não houve ocorrência de
paráfrases, mesmo porque o humor das tirinhas tem o “[...] enunciado
metafórico como frio condutor para sua criação” (KOGLIN; OLIVEIRA, 2008, p. 9). Houve predominância, todavia, da tradução stricto sensu
dos enunciados metafóricos, mesmo quando seus elementos constitutivos
não coincidiam no par cultural, gerando, em alguns casos, ligeira ou total
incompreensão. Entre as poucas ocorrências de substituição, destaca-se o
fato de que estas não se associavam ao núcleo do qual se extraiu o maior
efeito humorístico, e sim tangenciaram enunciados periféricos. Pode-se
supor que algumas substituições, mesmo as que, em tese, eram possíveis,
somente não foram executadas em virtude do elemento pictórico, sendo
este comprometido com o desencadeamento da piada central.
Mesmo havendo essa restrição aparentemente incontornável, este
estudo relata caso em que o tradutor arrumou meio de burlar o material visual, excluindo um elemento próprio da cena, a fim de amparar sua
tradução. Esta, por sua vez, inovou também quanto à estratégia adotada,
uma vez que, ao criar um conceito metafórico a partir de um enunciado
originalmente literal, o tradutor ultrapassou a teoria descritivista de van
den Broeck (1981), a qual não previa tal recurso. Outros casos dessa natureza foram observados, indiciando a grande versatilidade da prática
tradutória diante de uma teoria que ainda não a esgota.
Para finalizar, vale recomendar ao tradutor que evite sempre a transposição forçada dos elementos metafóricos, pois esta pode aniquilar por
completo a meta riso dos webcomics, e teste, antes, todas as possibilidades
de substituição ou, em última instância, recorra à alternativa da paráfrase,
levando-se em conta o enredo da tirinha e, sobretudo, fatos cotidianos
e corriqueiros da cultura-alvo, os quais, a despeito das perdas inerentes
a alguns aspectos linguísticos e/ou históricos, podem, por outro lado,
fornecer material metafórico para reavivar ainda mais o sentido e humor
originais.
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Title: The translation of black humor: the metaphors in Cyanide & Happiness
Author: Robson Falcheti Peixoto
ABSTRACT: This article aims to discuss the procedures and strategies involved in translating the language of metaphor in generating humor in Cyanide & Happiness webcomics, published between 2007 and 2010 and notorious among young people because of
their subversive and politically incorrect humor. This study adopts the modern conceptualization of metaphor, that it is a cognitive process that determines the ways in which
individuals of a certain culture think, act and speak. The analysis of the procedures and
obstacles faced by the translation is performed in accordance with the van den Broeck’s
theory descriptivist and his model of translation of metaphors. Results point to a trend
of literal translation even in cases of cultural incompatibility of metaphorical concepts,
under imagery inseparable element. In the other hand, there is a creative exercise by the
translation in sense of create metaphors in situations that are not guided by the figurative
sense in the source text, which emphasizes not only the translator’s role in the reproduction of the comic, but also in recreation of humorous effect in the target culture.
Keywords: Translation procedure. Translation of metaphor. Culture. Black humor.
Cyanide & Happiness Webcomic.
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