Ler on-line - Revista Historien
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ISSN: 2177 - 0786 ISSN: 2177 – 0786 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 2 Editoração eletrônica: Pablo Michel Cândido Alves de Magalhães Edição e layout para internet: Francisco Cândido de Magalhães Junior Ilustração da capa: miscelânea de imagens selecionadas por Christoval Araújo Santos Júnior EQUIPE DE EDITORAÇÃO Andrew Jackson Fernandes Cruz (Graduando UPE) Cléber Roberto Silva de Carvalho (Graduando UPE) Christoval Araújo Santos Júnior (Graduando UPE) Pablo Michel Candido Alves de Magalhães (Graduando UPE) Rafael de Oliveira Cruz (Graduando UPE) CONSELHO EDITORIAL Profª Dra. Lina Maria Brandão de Aras (UFBA) Profª. Dra. Rossana Regina Guimarães Ramos Henz (UPE) Profª Ms. Andréa Bandeira (UPE) Prof. Ms. Carlos Romeiro (UPE) Prof. Ms. Moisés Almeida (UPE) OBJETIVO DA REVISTA A Revista Historien é uma produção do Grupo de Estudos Históricos Sapientia et Virtute, sendo que seus membros são discentes da Licenciatura Plena em História da Universidade de Pernambuco - Campus Petrolina, juntamente com professores do corpo docente do referido curso. A proposta da Historien é o incentivo a produção textual dos alunos da licenciatura, visando a expansão do conhecimento em história por meio da produção dos próprios acadêmicos. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS É proibida a reprodução total ou parcial, de qualquer forma ou por qualquer meio. A violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido no artigo 184 do Código Penal. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 3 Petrolina – PE, Nº 1 – Out./Dez. 2009 Sumário HISTORIA EM FOCO - Trabalho invisível e relações de gênero.................................................... 5 Elizabete Rodrigues da Silva (UFBA) - A participação feminina nos cursos de medicina, farmácia e odontologia na Bahia...................................................................................................... 36 Iole Macedo Vanin (UFBA) - Entre letras, pontos e agulhas: a educação de órfãos na Estância/SE oitocentista................................................................................................. 61 Sheyla Farias Silva (UPE) - O Feminino nas guerras.......................................................................... 88 Cléber Roberto Silva de Carvalho (Graduando UPE) - Boa noite Fräulein... Os contos de fada e a construção da feminilidade.. ........................................................................................ 101 Andréa Almeida Campos (UNICAP) - A emancipação da mulher brasileira no final do século XIX sob a ótica de Júlio Ribeiro na Obra "A carne"........................................................... 115 Jorge Luís Coelho Gomes (Graduando UEMA) e Jordania Maria Pessoa (UEMA) PERFIS - Nas entrelinhas, Zélia Almeida. Alinne Suanne Araújo Torres (Graduanda UPE).......................................... 132 NORMAS EDITORIAIS .............................................................................. 136 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 4 TRABALHO INVISÍVEL E RELAÇÕES DE GÊNERO Elizabete Rodrigues da Silva1 Até o final dos anos 70, a produção historiográfica dedicada ao estudo das mulheres trabalhadoras se preocupou em visibilizar a atuação dessas mulheres no processo histórico, como sujeitos ativos, provendo o sustento da família, a partir dos espaços públicos do universo fabril.2 Somente a partir da década de 80, é que foram surgindo novas contribuições enfatizando o trabalho a domicílio como uma modalidade da força de trabalho, suas características culturais e regionais, bem como, destacando questões relacionadas ao lugar que, culturalmente, homens e mulheres ocupavam e ainda ocupam nas relações de trabalho, como espaço gendrado. São trabalhos que contribuíram significativamente para uma nova concepção de história, a partir da introdução de novos temas, de um novo olhar sobre velhos temas e Amparados, de um lado de pelas novas possibilidades metodológicas. teorias feministas, resultantes da heterogeneidade dos seus movimentos, e, de outro pela história social, alargaram o universo do historiador, abrindo as possibilidades para perceber a distinção das experiências dos sujeitos em seu cotidiano. Desta forma, analisar o trabalho das mulheres fumageiras nas fábricas de charutos do Recôncavo Baiano, na primeira metade do século XX, requereu uma visão, também, do seu entorno, principalmente perceber aquelas mulheres que não tiveram acesso ao trabalho nos estabelecimentos fabris, mas que executavam as mesmas tarefas no seu domicílio. Fez-se necessário, portanto, compreender a dinâmica do cotidiano das mulheres fumageiras envolvidas com o trabalho organizado no próprio domicílio, 1 Doutoranda do PPGNEIM/UFBA (Programa de Pós-graduação em Mulheres, Gênero e Feminismo do Núcleo de Estudos Interdisciplinares em Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia). Mestre em História social pela Universidade Federal da Bahia – UFBA (2001). Licenciada em História pela Universidade do estado da Bahia – UNEB (1998). Professora dos cursos de História e Pedagogia da Faculdade Maria Milza – FAMAM (desde 2005). Professora de História da Rede Pública Estadual de Ensino do Estado da Bahia. (desde 1991). 2 Grande parte desses estudos está voltada, em particular, para a presença das mulheres na indústria têxtil, como, por exemplo, os trabalhos de Eva Blay, 1978; Maria Valéria Pena, 1980; Bárbara Weinstein, 1995, dentre outras. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 5 considerando os processos econômicos e sociais que lhes impulsionavam e, prioritariamente, as relações de gênero aí imbricadas, como o resultado das representações sociais de seu sexo que perpassavam as relações sociais de gênero naquele tempo e espaço. O contexto da indústria fumageira do Recôncavo reunia uma diversidade de atividades laborais em torno do fumo, que ia do campo à cidade, da casa à fábrica e vice-versa, bem como da legalidade à clandestinidade e/ou informalidade. Em todas as situações as mulheres protagonizavam, não apenas em número, mas, principalmente, pela determinação sócio-cultural da feminização desse lugar – o das atividades manuais e delicadas, estas que eram necessárias para o tratamento dos fumos e confecção dos charutos e cigarrilhas. A fábrica e a casa que, desde a Modernidade, foram constituídos como espaços distintos por “natureza”, no cenário da indústria fumageira, então, representavam uma polarização mais visível, pois, em se tratando de espaços de trabalho a fábrica estava associada à idéia de legalidade e formalidade, enquanto a casa, ao contrário, estava explicitamente associada à idéia contrária e ao lugar de clandestinidade. Assim, escolher os fumos e confeccionar os charutos na própria casa, fora do ritmo sistemático da fábrica, sem a proteção de uma legislação, tanto no tocante aos direitos trabalhistas quanto à regulação de preços dos charutos no mercado clandestino, constituíram-se num trabalho invisível. O trabalho produtivo realizado pelas mulheres fumageiras do Recôncavo Baiano circunscreveu-se a esses espaços distintos – a fábrica e a casa. O primeiro, a fábrica, caracteriza-se como espaço externo, disciplinado e de disciplinamento, onde o controle e a vigilância dos sujeitos, no caso as trabalhadoras, não advêm ou servem a uma tradição, mas a um sistema de produção que tem como objetivo principal produzir em larga escala para obter lucros imediatos e cada vez maiores, o que faz extraindo do/da trabalhador(a) todo o seu tempo e a sua força laboral. O segundo HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 6 caracteriza-se como um espaço privado, de constituição da família,3 lugar de disciplina, de produção e reprodução dos gêneros, em correspondência com as demandas morais, religiosas, culturais e sociais, em seus diversos contextos. Lugar adequado à exploração e, de forma inseparável à opressão, seja na produção ou na reprodução. Os valores produzidos e reproduzidos no espaço doméstico refletem, diretamente, nos ambientes e nas relações de trabalho. A fábrica e a casa, espaços onde se desenrolaram as atividades fumageiras de beneficiamento, preparação dos fumos e fabricação de charutos, também se constituíram e se caracterizaram a partir das relações sociais e relações de trabalho entre os sujeitos envolvidos, direta e indiretamente, no cenário econômico e social da região do Recôncavo. Nas fábricas, patrões, gerentes, mestres, operários e operárias, ocupavam a cadeia hierárquica das posições e das funções para a realização do trabalho fabril. Em casa, tanto a atividade doméstica, como o trabalho com o fumo diretamente, eram realizados sob o comando das mulheres, mas, envolvia, exceto os homens, todos os membros da família, inclusive as crianças. Estes espaços estavam fisicamente separados e distintos em sua função primeira, embora, fossem unidos pela rede de relações tecida pela população fumageira, esta que transitava entre eles (re)inventando os seus modos de vida, buscando a sobrevivência, ao mesmo tempo em que forjava todas as possibilidades de resistência à exploração e a dominação4 impostas pelo trabalho nos seus respectivos espaços. 3 Apesar de ter predominado no imaginário social do Recôncavo Baiano o modelo de família nuclear, na prática esse modelo resumiu-se, apenas, à pequena elite econômica. Pois, nos meios populares a família constituía-se de maneira mais contingente, cujo poder central, na maioria das vezes, era exercido pela mulher e não pelo homem, como no chamado modelo “tradicional”. Em relação à noção do espaço da casa como privado, não se trata de uma noção de lugar fechado, inacessível e sem relação com o mundo exterior, ao contrário, tratava-se, também, de um espaço de produção, onde a linha que o separava da rua era muito tênue. 4 Não se trata aqui de uma dominação no sentido geral ou global, mas, de uma dominação específica das relações de trabalho no contexto da indústria fumageira do Recôncavo, considerando as questões de classe, mas, sobretudo as questões de gênero; como também, não se trata de uma dominação rígida de um grupo sobre o outro, uma vez que, considera-se a dominação em questão como uma das múltiplas formas de dominação exercidas na sociedade, pois, segundo Foucault, ela não ocorre, apenas, de cima para baixo na escala social, mas nas “múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social”. FOUCAULT, 1979, p.181. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 7 Contudo, para efeito da análise histórica, na perspectiva das relações sociais de gênero, esses espaços serão virtualmente separados e o trabalho produtivo realizado no interior das casas das fumageiras será doravante denominado de “Trabalho a domicílio”, considerado trabalho invisível. O trabalho a domicílio realizado pelas mulheres fumageiras do Recôncavo Baiano, percorreu um período que abarca desde a implantação das primeiras fábricas de confecção de charutos, no início do século XX,5 até o período que se estende entre as décadas de 50 a 80, quando desencadearam a crise e falência da indústria fumageira na região, constituindo um processo contraditório, pois é, exatamente, neste último período que a atividade fumageira no domicílio cresce vertiginosamente e ganha expressão. No início, o trabalho a domicílio se justificava por ser uma indústria ainda incipiente, funcionando em pequenos espaços e com mão-de-obra reduzida, para atender a crescente exigência do mercado interno e externo de derivados do tabaco, principalmente os charutos, cujas marcas foram criadas concomitantemente ao processo de instalação e crescimento da indústria. Assim, já em 1908, houve a distribuição de grande parte do trabalho “em casas particulares onde era executado”.6 No segundo momento, a crise e a conseqüente falência da indústria fumageira, foi gerando uma massa ociosa de trabalhadoras(es) que, fora dos estabelecimentos fabris não teve outra alternativa, dedicou-se ao trabalho a domicílio, fosse ele fruto de uma relação de informalidade com as empresas que ainda mantinham-se na ativa ou por conta própria confeccionando charutos e fornecendo ao mercado informal. O trabalho domiciliar é conhecido como aquele realizado no domicílio da/do trabalhadora/trabalhador, por encomenda de uma empresa que estipula uma tarefa a ser cumprida num determinado período, seja por dia 5 A primeira fábrica de charutos do Recôncavo foi fundada em 1905, pela empresa Suerdieck, em Maragojipe e, é em 1908, com a crescente demanda da produção de charutos, que começa a distribuição dos fumos nos domicílios para realização do trabalho de beneficiar (ou preparar os fumos) e confeccionar os charutos mais simples. SUERDIECK S/A – CHARUTOS E CIGARRLHAS, 1955. 6 SUERDIECK S/A – CHARUTOS E CIGARRLHAS, 1955. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 8 ou por semana, determinando, também, o valor da produção. Embora, no caso das fumageiras, não foi encontrado qualquer registro que indicasse que em todos os casos de trabalho domiciliar fosse por encomenda das empresas. Ao contrário, ao longo do tempo, registrou-se a crescente iniciativa das próprias mulheres, as charuteiras especialmente, em produzir por conta própria com o objetivo de comercializar no mercado informal. Deve-se observar, no entanto, que esta iniciativa das mulheres não foi uma questão de liberdade de escolha, mas esteve associada a um contexto socioeconômico específico que figurou no interior do sistema capitalista, nos processos de crises e reestruturação da economia, ocasionando o surgimento ou o aumento significativo das atividades não assalariadas, circunscritas na categoria “por conta própria”,7 a exemplo de outras regiões da América Latina, como o México.8 A produção a domicílio constituiu-se numa categoria ou modalidade de atividade produtiva que, até então, fugia aos modelos convencionais de organização do trabalho nas sociedades modernas. No Recôncavo fumageiro, tratou-se de uma atividade produtiva realizada, tanto “por conta própria” das fumageiras, quanto nos moldes da subcontratação mediante encomenda e remuneração pelas empresas instaladas na região. Ambos os casos sem vínculo empregatício. Também, observa-se o caráter de complementaridade subordinada, imposta tanto pela divisão dos espaços – industriais e domésticos –, quanto pela divisão de tarefas embutida num sistema de valor hierárquico que se caracteriza como inferior por ser realizada por mulheres no espaço doméstico, acentuando as desigualdades de direitos e as contradições das relações de gênero.9 É preciso ressaltar, no entanto, que a subcontratação sob a forma de trabalho domiciliar, não é um fenômeno recente ou específico da região do 7 Para entender a expressão “por conta própria”, toma-se o texto de Oliveira e Ariza (1997, p. 189) que afirmam que, las actividade por cuenta própria son vistas em general como uma forma de trabajo más precário que le trabajo asalariado. Debido a la própria naturaleza de su actividade, el trabajador por cuenta própria no tiene contrato laboral, carece de prestaciones laborales e no recibe sueldo fijo. 8 OLIVEIRA, 1997, pp. 183-212, p.183. 9 SOIHET, 2001, p.12. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 9 Recôncavo Baiano, apenas. Braverman (1987), afirma que este sistema surgiu nas primeiras fases do capitalismo industrial: na tecelagem, fabricação de roupas, objetos de metal (pregos e cutelaria), relojoaria, chapéus, indústria de lã e couro. No caso, o capitalista distribuía os materiais na base da empreitada aos trabalhadores, para manufatura em suas casas, por meio de subcontratadores e agentes em comissão.10 Segundo Abreu e Sorj (1993), “o trabalho industrial a domicílio tem suas raízes nos séculos XVI e XVII na Europa, com a emergência da economia doméstica, quando vida familiar e trabalho estavam intimamente interligados”.11 Com o advento da Revolução Industrial, o trabalho a domicílio, seja ele por conta própria ou pelas vias da subcontratação, toma forma e caráter específicos em cada país e nas respectivas regiões, conforme os contextos sociais, econômicos e culturais. No Brasil, a partir da década de 1920 até os dias atuais, o trabalho a domicílio vem se moldando, conforme as políticas econômicas e interesses de alguns setores específicos da indústria, porém, quanto a sua composição sexual, mantêm-se majoritariamente feminino. Aliás, Abreu e Sorj confirmam que “uma das características mais marcantes do trabalho a domicílio contemporâneo é ser uma atividade essencialmente feminina em todas as partes do mundo”. 12 É importante ressaltar que o trabalho a domicílio se configura diferentemente conforme o espaço e o tempo em que o mesmo se localiza, apenas mantendo algumas características comuns. Apesar de a literatura confirmar que em muitos países industrializados o trabalho a domicílio se concentrou e ainda se concentra nas grandes cidades, no caso em estudo, trata-se de uma região de cultura agrária e de um aglomerado de pequenas cidades e lugarejos, distante da dinâmica capitalista das grandes cidades. 10 BRAVERMAN, 1987, pp. 62-63. ABREU e SORJ, 1993, p. 11. 12 ABREU e SORJ, p. 13. 11 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 10 Trabalho a domicílio: uma experiência das mulheres fumageiras A expansão gradativa do mercado de trabalho industrial brasileiro tem início em fins do século XIX e início do século XX, se fazendo, em grande parte, a partir da utilização da mão de obra feminina, principalmente, na indústria têxtil, no nível do trabalho não-qualificado.13 O trabalho a domicílio nas atividades de beneficiamento de fumos e de confecção de charutos, também, possibilita perceber a inserção da mão-de-obra feminina no mercado de trabalho regional nos seus primórdios. No Recôncavo Baiano, as atividades industriais fumageiras tiveram início no final do século XIX, com a fundação da Danneman em São Félix e o grupo Suerdieck em Cruz das Almas. Mas, é com a crescente demanda internacional de folhas de fumos e de charutos, provocada pelo fim da Primeira Guerra Mundial, dentre outros fatores, que, além de criar as filiais, estimulou-se o aumento do trabalho a domicílio, que se desenvolveu de diversas formas, para atender a uma grande produção, que somente a Suerdieck ultrapassava os 10.000.000 de charutos anuais. 14 Inicialmente, o trabalho a domicilio no Recôncavo fumageiro surgiu por força das circunstâncias econômicas da população local que, sem alternativas de trabalho, encontrou no cenário industrial as possibilidades de desenvolver mecanismos de sobrevivência. Quando percebido pelos industriais, passou a ser explorado, embora sem o caráter da subcontratação, mas utilizando o artifício de que se 13 BLAY, Eva Alterman. Trabalho domesticado: a mulher na indústria paulista. São Paulo: Ed. Ática, 1978, p. 137. 14 Dentre as principais fontes que se pode ter acesso à trajetória de sucesso das empresas de fabricação de charutos, estão as seguintes: Folhetim ilustrado da comemoração dos 125 anos da Dannemann. Casa da cultura. São Félix, 1998; ARQUIVO MUNICIPAL DE SÃO FÉLIX: Correio De São Félix, nº876, 26/04/1952; BORBA, 1975, pp. 46-48; SUERDIECK S/A CHARUTOS E CIGARRILHAS. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 11 tratava de uma iniciativa da população, já que se aplicaria bem o termo do trabalho “por conta própria”. Segundo Blay (1978), a partir da década de 1950 começa a ocorrer um processo de declínio da incorporação das mulheres no setor de atividades industriais no Brasil, chegando em 1970 com apenas 10,5% das mulheres integradas. Daí, então, é que a partir dos anos 60, o trabalho a domicílio aparecia como possível “reservatório inexplorado de flexibilidade”, 15 motivando a desregulamentação da jornada de trabalho, para as unidades produtivas de algumas indústrias tradicionais, a exemplo das indústrias de tabaco.16 Por outro lado, o contexto socioeconômico da região marcava acentuadamente aquelas trabalhadoras, pois, segundo Guimarães (1979), “não são apenas as necessidades do mercado que conduzem as mulheres ao trabalho, mas, principalmente, é a deterioração das condições de vida, que as conduz, ou melhor, torna-as disponíveis”.17 A população, envolvida com a lida diária do fumo, apresentava uma pobreza bastante acentuada, que "não resta dúvida que é aqui, entre as subáreas do Recôncavo, que o atraso e a pobreza são mais visíveis e mais chocantes",18 revelando um modo de vida característico da região do fumo, que se estendia do campo aos centros urbanos e suas periferias, acompanhando o trajeto do fumo aos armazéns, fábricas de charutos e às residências onde o trabalho de manipulação do fumo era rotina. A situação de precariedade vivenciada pela população da região do fumo e, especificamente, pelas mulheres fumageiras e suas famílias, define aspectos da vida sócio-econômica da zona tabaqueira que explica, portanto, a expressão “lavoura dos pobres”, ao mesmo tempo em que representa um paradoxo em relação ao fumo já que 15 BLAY, 1978, p. 141. ABREU e SORJ, 1993, p. 19. 17 GUIMARÃES, 1979, p.19. 18 Se gu n d o C AS TR O, os "la vr a d or es " d e f u mo e r a m " ge r a l me n te a na lf ab et os e p ob r es" . CASTRO, 1941, p. 1 0 4. 16 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 12 este era a riqueza que movia de forma ascendente a economia do Estado nos períodos em que esteve em ascensão. 19 Em quase todas as etapas da produção fumageira, é visível a presença das mulheres pobres da região. Entre a lavoura e as manufaturas de charutos, funcionavam inúmeras empresas de beneficiamento e distribuição de fumos, instaladas na região e conhecidas como "armazéns de fumo", que empregavam grande contingente de mulheres, mas que não exigiam qualificação para o trabalho, pois se tratava apenas da escolha do fumo e do seu enfardamento, este último, por sua vez, era trabalho masculino. Paralelamente aos armazéns de fumos, embora ligada diretamente aos mesmos, se desenrolava parte da mão-de-obra marginalizada constituída de mulheres. Estas, por não participarem formalmente do mercado de trabalho, executavam em suas próprias casas a escolha e “destalação” do fumo. 20 Era este trabalho denominado “trouxa de enrola”, por ser o fumo transportado dos armazéns para as residências em trouxas de panos de aniagem (juta) na cabeça de mulheres e crianças 21 que, juntamente com as charuteiras no seu trajeto de vai-e-vem, iam formando o cenário urbano e social da zona fumageira. 19 Para a expressão e o contexto da “lavoura dos pobres, dentre outros, ver: PINTO, Luiz Aguiar Costa. Recôncavo Laboratório de uma experiência humana. In BRANDÃO, Maria de Azevedo (org.) Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Academia Baiana de Letras, Casa Jorge Amado; UFBA, 1998, pp. 122-134. PEDRÃO, Fernando Cardoso. Novos rumos, novas personagens. In BRANDÃO, Maria de Azevedo (org.) Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Academia Baiana de Letras, Casa Jorge Amado; UFBA, 1998, pp.219-228. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, pp. 277-279. BORBA, Silza Fraga Costa. Industrialização e Exportação de Fumos da Bahia de 1870 a 1930. (Dissertação de Mestrado em Ciências Humanas - UFBA) Salvador (BA): 1975, vol. 2, p. 15. LAPA, J. R. Amaral. Economia Colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973, p. 149. Correio de São Félix, nº21, 08/10/1944; LAPA, Amaral, 1973, p. 149. 20 O termo “destalação” refere-se ao trabalho realizado com o fumo específico da “trouxa de enrola”: era o trabalho de tirar os talos do fumo, pois este iria se transformar em “torcida” – miolo de charutos. ASEVEDO, 1975, 1975, p. 10-12. 21 Descrição sobre o cenário das trouxas de fumos tiradas dos armazéns (Benedita Rodrigues da Silva, 85 anos, 2008). HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 13 Paralelamente aos armazéns de fumo, funcionavam as fábricas de charutos. O parque manufatureiro de charutos do Recôncavo era composto por estabelecimentos fabris diversos, com volumes de capitais e tamanhos diferenciados. É, também, no bojo dessa dinâmica fabril que se desenrolou outro quadro de mão-de-obra a domicílio, o de fazer charutos comercializar no mercado por informal. conta própria, Assim, a para indústria de charutos do Recôncavo não se restringia apenas às fábricas, ocupava também diversos espaços e invadia a maioria das residências da população de baixa renda, completando o quadro do complexo industrial do charuto. Em 1931, por época da Reforma Tributária do Estado, representantes desta indústria, ao reivindicar direitos de exportação iguais aos dados a outros produtos, chegaram a afirmar que: O charuto, cuja indústria penetra nos lo garejos mais modestos, que dá a viver a milhares de pessoas, mocinhas e velhos, esta indústria se sobrecarrega de uma maneira extraordinária e como única indústria do Estado. 22 Dispostos nos bares, nas mercearias, como também nas janelas das casas, o charuto era parte da paisagem de cada cidade, vila ou lugarejo. Os charutos feitos nas residências das charuteiras eram conhecidos como "charutos de balaio" ou "charutos de regalia", pela qualidade inferior dos fumos utilizados e pela falta de aprimoramento qualidade do no seu produto e acabamento, estabelecia o que diferenças comprometia em a relação aos charutos era charutos das fábricas. Mesmo assim, a produção a domicílio de volumosa e comercializada nas próprias residências, já contando com 22 RE LA TÓ R IO D A A S SO C I AÇ ÃO CO ME R C IA L DA B AH I A, 1 9 3 2, p p . 1 7- 2 1. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 14 compradores fixos e viajantes que, sem pagar impostos ou outras despesas fiscais, movimentavam grandes somas, comercializando esses charutos no sul do estado e do país. A produção de charutos a domicílio chegou a representar 5% da nacional. 23 produção Registrando-se, também, casos em que a produção a domicílio pertencia a uma fábrica, que sem nenhum compromisso trabalhista, fornecia o fumo para a charuteira, pagando-lhe apenas pela mão-deobra da confecção dos charutos, o que caracterizava o sistema de subcontratação que, conforme Braverman (1987), “o capitalista distribuía os materiais na base da empreitada aos trabalhadores, para manufatura em suas casas, por meio de subcontratadores e agentes em comissão”. 24 Retornando para a fábrica, esta produção somava-se à produção das marcas populares também ali confeccionadas. A produção de charutos a domicílio não foi uniforme, se desencadeou também na modalidade de “fabricos”. A modalidade convencional acontecia na residência onde trabalhavam as mulheres pertencentes à mesma família. Porém, o “fabrico”, apesar de ser instalado numa residência, onde as mulheres da mesma família também trabalhavam, reuniam-se ali outras mulheres, sem vínculo de parentesco, ligadas apenas pelo interesse no trabalho de confeccionar charutos. Estas mulheres eram organizadas sob o comando de uma outra mulher, 25 geralmente a dona da casa, responsável pelo investimento e pela produção, não havendo laços empregatícios ou qualquer possibilidade de cumprimento com a legislação trabalhista da época. Conforme Sr. Sebastião: fabrico era uma casa de fazer charutos, mas não era fábrica, era um fabrico como o de Iaiá de Maninho, 23 CÉSAR, Elieser. O Império do Tabaco. Correio da Bahia. Salvador(Ba): jornal diário, 2000, p. 06. BRAVERMAN, 1987, p. 63. 25 Uma espécie de subcontratadora, semelhante à situação descrita por BRAVERMAN, 1987, p. 63. 24 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 15 uma casa aonde 12 ou 15 pessoas iam conforme quisesse, mas não era fábrica. 26 A produção de charutos a domicílio, seja em cada unidade familiar, seja na modalidade de fabrico, apesar de não possuir a estrutura de montagem nem a organização da fábrica propriamente dita, era responsável por uma quantidade de charutos que atendia em larga escala ao comércio informal e às encomendas das fábricas, aquelas que se interessavam por esta produção, ocupando mulheres e mocinhas que formavam uma rede de mão-de-obra marginal. Ao se sentirem ameaçadas com a concorrência do comércio “clandestino”, a Suerdieck e a C. Pimentel foram algumas das empresas que passaram a adquirir os charutos "de balaio" diretamente da fonte, cortando a ação contrabandista na região.27 Embora estas empresas não tivessem selado nenhum compromisso de cunho legal com as charuteiras ou com os repassadores dos charutos quando o negócio era realizado através destes. Ao contrário, além de adquirirem os charutos a preços baixos, a mão-de-obra feminina realizada no próprio domicílio diminuía consideravelmente os custos operacionais, uma vez que as mulheres trabalhavam em casa, por produção, sem vínculos empregatícios com as empresas que utilizavam seus serviços, o que significou para elas o não-acesso a benefícios sociais, bem como não ascender social e economicamente. O registro de D. Joanna Silva na fábrica C. Pimentel & Cia. Ltda, data de 02 de dezembro de 1967, estando a mesma com 52 anos de idade, sendo sua ocupação “Charuteira Domicílio”. Ao discorrer sobre sua vida de charuteira, Carmelita Oliveira de Jesus, prendeu-se às lembranças do fazer charutos na casa de D. Joana Silva, esta que era conhecida na 26 SANTOS, Sebastião, 105 anos, ao ser entrevistado pôs-se a rememorar sua trajetória de vida destacando aspectos ligados ao trabalho e as relações sociais que tecia ao circular na região; fala de sua esposa, D. Rosa, charuteira de fábricas, bem como, a domicílio e de sua experiência enquanto trabalhador da fábrica Costa & Penna. 27 IBGE, 1958, Vol. XX, pp. 95-105; CÉSAR, 2000. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 16 Vila de Cabeças 28 como Joana Preta e proprietária de um fabrico de charutos que era uma espécie de extensão da fábrica C. Pimentel, de onde vinha o material. Conforme Carmelita: O material de lá, o rapaz trazia de lá [C. Pimentel], agora o nome do rapaz eu não sei e ele trazia para D. Joana. Ela chamava a gente aí para fazer charuto lá na casa dela, trabalhava eu, trabalhava a mãe de Iaiá - Polinha, já morreu também. Esse povo tudo fazia charuto para D. Joana, muitas, muitas pessoas fazia charuto pra D. Joana. Depois, passava pra fábrica, vinha o rapaz buscar naqueles caçuar grande, arrumava tudo e levava. 29 Dentre formalmente elas, como somente operária D. da Joana fábrica Silva C. era Pimentel, reconhecida as outras charuteiras trabalhavam por conta dela recebendo apenas pelo trabalho executado, ou seja, a "tarefa" diária ou semanal previamente estipulada. 30 Assim, o trabalho a domicílio formava uma rede marginal de produção de charutos que mantinha o comércio informal, este que representava o grave problema da concorrência para as fábricas, desfalque aos cofres públicos e a espoliação das charuteiras, pois a prática de fazer charutos e comercializar de forma “clandestina” era de amplo alcance e comum na região. O Jornal Correio de São Félix publicou vários artigos e notas advertindo para os prejuízos que a produção “clandestina” causava ao comércio formal de charutos. Somente o redator Oldemar Santos escreveu cinco artigos entre 08/10/1944 e 05/11/1944, sobre alguns 28 A Vila de Cabeças pertencia ao município de Muritiba até o ano de 1962, quando foi emancipada e passou a se chamar Governador Mangabeira. 29 JESUS, Carmelita Oliveira de. 64 anos de idade. 30 A tarefa era o volume do trabalho exigido pelos estabelecimentos industriais dentro de um prazo determinado. Quando se tratava do beneficiamento do fumo, como no caso da trouxa de enrola, a tarefa era estipulada entre 15 a 30 kg por pessoa num período de 24h, no caso da confecção de charutos, a tarefa variava entre 100 a 300/dia, conforme os tipos/marcas de charutos e as fábricas. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 17 desses problemas que afetavam a indústria de fumos e charutos no Recôncavo. O quinto artigo ressalta: Um dos maiores inimigos do fabricante legalizado é a concurrência subterrânea exercida por fabricante que vivem e proliferam à margem de todas as exigências legais. Eles imitam as marcas, não pagam impostos, desrespeitam o salário mínimo, ocultam-se das exigências trabalhistas e dentro do próprio Estado roubam um mercado importantissimo aos fabricantes que são onerados com enormes despesas. 31 A fabricação a domicílio, porém, vista pela ótica da realidade social e econômica da região, sabendo-se que o número de vagas oferecido pelas fábricas era limitado, significou uma alternativa de trabalho: o de "ganhar a vida", no amplo sentido das necessidades e socialização da população que se encontrava na periferia da legalidade fabril ou das oportunidades de emprego. Na Vila de Cabeças, onde grande parte das mulheres fumageiras se dedicava ao trabalho a domicílio, funcionaram vários fabricos, dentre os quais, foram citados o fabrico de Miluzinha de Pequeno, de Joana Silva, de Malaquias Ferreira, de Licinha de Machado, de D. Tidinha de Domingos, de Loura de Maurílio, de D. Zizi de Alberto e o de Iaiá de Maninho, este último, foi o mais citado entre as charuteiras entrevistadas, por ter sido o que funcionou por mais tempo e pelo número de charuteiras que abarcou, chegando até 30 mulheres, denotando um grau de importância mais elevado que os outros, para as charuteiras da Vila. D. Iaiá (Maria das Neves Fonseca Passos) era esposa do coronel da Guarda Nacional na região, Jerônimo Damasceno Passos (seu Maninho), 31 e irmã do coronel João Altino da Fonseca, grande ARQUIVO MUNICIPAL DE SÃO FÉLIX: Correio de São Félix, 05/11/1944. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 18 comerciante e exportador de fumos na Vila de Cabeças. Diante das influências políticas e facilidades na aquisição e preços da matériaprima, o fabrico de D. Iaiá ocupava uma posição privilegiada em relação aos demais fabricos, pois, além da produção interna, fornecia matéria-prima às mulheres que quisessem fazer os charutos em suas casas e comprava-lhes, diretamente a produção. O trabalho a domicílio das fumageiras, funcionou, sempre, de forma ilegal, mas tornou-se uma prática comum forçada pelas necessidades econômicas e a falta de alternativa de empregos na região, tanto que, com o fechamento das fábricas, esse negócio, além de continuar atendendo ao comércio informal, passou a ser a principal atividade daquelas mulheres que ficaram desempregas. Assim confere o Jornal: A Cia. Brasileira de Charutos Dannemann lançada na pior situação que uma outrora grande firma pode se deparar ao tempo que tem os trabalhadores atravessando faze apertada pelo desemprego em que foram lançados vai se dividindo em fabricos negócios correlatos à fabricação de charutos, beneficiamento e vendas de fumo. 32 A modalidade de “fabricos” sobreviveu até a década de 70, quando na antiga Vila de Cabeças (hoje município de Governador Mangabeira), a freira Adélia Senn conhecendo o potencial da região, ainda teve tempo de iniciar uma pequena fabricação de charutos na sacristia da Igreja Matriz. Embora sabendo da oposição da Igreja Católica em relação ao uso do fumo, 33 não viu alternativa no sentido de organizar o grande número de mulheres ali existente cujo único ofício era o de charuteira. Num esforço para atingir um número maior de mulheres, ao longo desta década e início da década de 80, a freira 32 ARQUIVO MUNICIPAL DE SÃO FÉLIX: Correio de São Félix, 05/03/1955. Sobre a proibição da Igreja Católica ao uso do fumo ver: LE REVEREND, Julio. Historia Economica de Cuba. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1985, pp. 42-44. 33 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 19 fundou uma unidade da Cooperativa Artezanal Mixta do Vale do Paraguaçu - COOVALE, que funcionava em convênio com a Leitalves Agro Comercial e Industrial de Fumos S/A, sucessora da fábrica de cigarrilhas Leite & Alves, passando a significar uma alternativa legal de fabricação de charutos e de emprego para as charuteiras. 34 A Vila de Cabeças formava um grande cenário fabril de charutos onde as pessoas e os lugares estavam impregnados dos elementos característicos daquela atividade, desde o cheiro ativo do fumo que se espalhava ao vento por toda a Vila, à presença do fumo em "trouxas", em "manocas", espalmados e picotados nas casas e espaços de comercialização, e, os próprios charutos que enfeitavam as janelas das casas, até no chão das ruas e nos lixeiros podiam encontrar restos de fumo e pontas de charutos que eram varridos portas a fora, sendo rara a sua ausência. Os armazéns de fumo e as fábricas de charutos da região representaram a oportunidade de emprego e a garantia de um salário para as charuteiras. O trabalho a domicílio do beneficiamento dos fumos e da fabricação de charutos, mesmo burlando a lei e explorando em grau maior as mulheres, também representaram alternativas de trabalho para aquelas que não tiveram acesso às fábricas legalmente registradas e que faziam parte do expurgo econômico e social na região. O fim do trabalho a domicílio na região fumageira, na modalidade de “trouxa de enrola” e de confecção de charutos se inscreve no mesmo contexto da crise da indústria tabaqueira regional, acentuando-se, gradativamente, na segunda metade do século XX, quando começou um processo sucessivo de fechamento dos estabelecimentos e de decadência econômica na região, 34 ARQUIVO MUNICIPAL DE CACHOEIRA. Memorial da Talvis: Cigarrilha Internacional. M. Correspondências Diversas 1972-1974. Est. 6, Cx. 170. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 20 culminando nos anos 90, com o desaparecimento das principais empresas pioneiras no ramo, inicialmente os armazéns de fumos, em seguida as fábricas de charutos, como a Dannemann, a C. Pimentel e a Suerdieck. 35 A partir de então, outras empresas se instalaram na região, introduzindo novas tecnologias e inseridas no sistema de precarização do trabalho, a partir de contratos temporários. O trabalho a domicílio, gradativamente foi se extinguindo, acompanhando o ritmo do desaparecimento do comércio dos produtos derivados do tabaco de fabricação artesanal, como se, ao mesmo tempo, também fossem desaparecendo os próprios consumidores. O trabalho a domicilio realizado pelas mulheres fumageiras do Recôncavo da Bahia, no período em destaque, deve ser considerado e analisado como um modo particular de organização da produção, associada a uma organização específica do trabalho, pois se desenvolveu pelo incentivo à subcontratação ou a não-contratação, esta último pareceu mais comum, como uma forma particular de trabalho. Assim, para a análise deste fenômeno, fez-se necessário distinguir o estatuto legal das trabalhadoras, a sua posição econômica, a partir de um breve olhar sobre o seu contexto. O tempo, o espaço e o sexo do trabalho a domicílio Mesmo considerando que o trabalho a domicílio está associado ao desenvolvimento capitalista em certos setores da indústria, é de se reconhecer que também tem estreitas ligações com a história, com as 35 O montante das Fichas de Registros de Empregados das Fábricas Suerdieck e Pimentel, depositadas no Centro de Memória da Faculdade Maria Milza – FAMAM, em Cruz das Almas, e a documentação da Dannemann no Arquivo Público de São Félix, permitem visualizar os momentos ascendentes e descendentes na trajetória da indústria fumageira. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 21 tradições e com as relações sociais locais e regionais, conforme se observa: O trabalho a domicílio é organicamente relacionado com a família e com as relações sociais nela contidas, relações de classe, de sexo, de gerações [...] O trabalho a domicílio sempre se apoiou no trabalho doméstico e na divisão sexual do trabalho tanto na esfera da produção como na da reprodução. 36 O trabalho a domicílio das mulheres fumageiras localizou-se na esfera da estratégia de sobrevivência, criada e recriada no cotidiano feminino, delineando o campo da conexão entre o trabalho assalariado e as atividades domésticas, interpenetrando o público e o privado, tanto física quanto socialmente. A rua e a casa eram separadas por uma linha tênue. A casa era o espaço de trabalho, no âmbito da produção, da negociação da mão-de-obra e da comercialização do produto, ali as pessoas trabalhavam e transitavam na confusão das atividades laborativas, seja na lida do tabaco, do charuto e/ou na lida das atividades domésticas. Neste caso, o trabalho a domicílio força as relações e o espaço privado a se tornarem públicos. A discussão sobre as esferas privada/pública, presente na historiografia, geralmente considera o interior da casa, o espaço familiar, como a esfera privada, relacionada diretamente à mulher; e todo o espaço exterior a este, principalmente o mundo urbano, a rua, com suas instituições marcadas pela presença masculina, como a esfera pública, oferecendo pouca importância às classes a que essas esferas, em dados momentos e contextos, pertencem. Essas esferas assim concebidas, como estanques e eqüidistantes, valem mais para a aristocracia e a burguesia situadas 36 ABREU E SORJ, 1993, p.22. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 22 em períodos históricos determinados; enquanto que para as classes subalternas essas esferas sempre estiveram muito próximas e intercambiadas, num movimento circular de relações que quebra, também, a fixidez das diversas hierarquias, inclusive as de gênero. Nesta trama, tecida por questões em grande parte econômicas, onde transitavam as mulheres fumageiras, revela a “articulação fina dos poderes e dos contrapoderes”, presente na teia social. As mulheres das chamadas classes populares visitavam muito mais a rua, abriam suas portas à vizinhança, trabalhavam e negociavam dentro e fora de casa, (re)fundando um comportamento específico no seu cotidiano. Essas mulheres, diferentemente dos homens, executavam as atividades de produção e reprodução no mesmo espaço e tempo, sem uma delimitação que pudesse tornar compreensível concretamente os lugares do trabalho e das atividades domésticas, bem como a dimensão, considerando o início e o fim de suas jornadas diárias. Espaço e tempo eram diluídos entre as diversas atividades, não podendo se perceber o tempo do trabalho e do não-trabalho, da atividade remunerada e não-remunerada; também, não era perceptível o tempo do trabalho e do descanso. Assim, não se pode considerar que essas mulheres acumulavam uma dupla jornada de trabalho, tendo como referência o parâmetro da jornada masculina de trabalho, cujo tempo era dividido e delimitado com base em uma produção diária, de uma única atividade laborativa, restando, ainda, um tempo real para outras atividades, seja de descanso ou para atividades que dizia respeito à vida particular. Para as mulheres fumageiras que trabalhavam no próprio domicílio, tratava-se de uma única e longa jornada, marcada pela multiplicidade de atividades diárias, cujo tempo de duração ancorava-se entre o acordar e o dormir, sem que fosse permitido a essas mulheres um tempo próprio, livre das amarras das obrigações com o trabalho – cuja tarefa apresentava-se, ora determinada pelo HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 23 contratante, ora determinada pelo próprio ritmo de suas necessidades concretas – e com as atividades domésticas, de cuidar da casa, da alimentação, de crianças e, às vezes, de idosos e doentes que habitavam o mesmo espaço. O cotidiano das fumageiras quer no próprio domicílio, quer no domicílio de outra mulher fumageira onde era organizado o fabrico, se constituía numa jornada de trabalho bem maior que a média da jornada masculina, pela superposição e complementaridade das atividades de produção e das atividades domésticas. Trabalho e atividade domiciliar transcorriam no mesmo espaço e, ao mesmo tempo, num processo contínuo de superposição de tarefas, estendendo-se além do número de horas e dos dias determinados por lei para os trabalhadores em geral. Conforme Matos, (1993) “a problemática do tempo no trabalho domiciliar está diretamente vinculada à do espaço”. 37 O ritmo do trabalho e o uso do tempo pelas trabalhadoras a domicílio são caracterizados na literatura como autônomos. Há de se considerar, entretanto, que além da fatigante e rotineira jornada das atividades domésticas, havia a exigência de uma produção diária a ser cumprida pelas trabalhadoras, seja ela imposta pelo contratante, seja pelas necessidades materiais das próprias trabalhadoras, uma vez que, para o último caso, já havia um acordo verbal selado entre elas e os comerciantes do produto. Em lugar da autonomia no ritmo e no uso do tempo, permite-se entender que o que ocorria era uma certa flexibilidade quanto à organização cotidiana do tempo pelas trabalhadoras a domicílio, isto porque as mulheres não estavam sob o controle direto da sirene e das estruturas hierárquicas da fábrica. Todavia, o controle estava 37 MATOS, Maria Izilda Santos de. Trabalho domiciliar – trabalho de agulha: um estudo sobre a costura domiciliar nas indústrias de sacaria para o café (1890-1930). In ABREU, Alice Rangel de Paiva e SORJ, Bila(Org.). O trabalho invisível: estudo sobre trabalhadores a domicílio no Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed., 1993, p. 70. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 24 presente em um outro formato e, ao final, o trabalho das tabaqueiras se estendia além do tempo determinado no espaço fabril. Historicamente, a trajetória da jornada de trabalho feminina, seja na fábrica ou no domicílio, tem se configurado diferentemente da jornada de trabalho masculina. Esta última era bem definida quanto ao espaço, tempo e a própria atividade. Quando os homens trabalhadores deslocavam-se até o espaço de trabalho, efetivamente ocorria um corte e/ou um distanciamento entre a casa e o trabalho, a primeira não estava presente no segundo, nem vice-versa; o tempo no/do trabalho só começava a contar no momento em que os homens começavam a produzir concretamente, numa escala rígida do uso do tempo, até porque o tempo da fábrica é considerado um capital, era o tempo do relógio controlado pelo apito; as tarefas a serem executadas eram bem definidas para cada trabalhador. O espaço doméstico não representava para os homens uma continuidade do espaço fabril, nem mesmo um outro espaço que não fosse o de seus aposentos. Ao contrário das mulheres, os homens vivenciavam “a polarização entre tempo de trabalho e de nãotrabalho”. 38 Se não bastasse o tempo, o salário dos homens trabalhadores desta mesma indústria era, na maioria das vezes, maior que o salário das mulheres. Uma vez que o trabalho com o beneficiamento dos fumos e a confecção de charutos constituía-se para as mulheres fumageiras, mulheres pobres, uma ocupação remunerada, uma estratégia de sobrevivência, também impunha-se sobre elas o estigma do salário menor em relação aos homens e ainda em relação às fumageiras que se encontravam inseridas no mercado de trabalho formal. 39 38 ABREU, Alice Rangel de Paiva e SORJ, Bila, 1993, p. 69. Neste caso, o salário significa todo e qualquer ganho financeiro que as mulheres tinham com a realização do seu trabalho, independente de ser pago pela fábrica, por uma tarefa realizada no domicílio, ou o recebimento do valor da venda dos charutos produzidos e vendidos “por conta própria”. 39 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 25 O salário menor para as mulheres fumageiras, trabalhadoras no domicílio, naquele contexto, não obedece apenas a uma única lógica explicativa, mas a diversos fatores intrínsecos, tanto ao capitalismo no que diz respeito à exploração da mão-de-obra canalizada para o lucro, a um contexto socioeconômico e político favorável a atuação dessas empresas e às condições materiais das mulheres, quanto à questões históricas e culturais. Segundo Ramos (1993), “a pesar de la incorporación de las mujeres e mercado laboral, éstas veían reducidas sus vidas, en el hogar, al simulacro, (...) el trabajo femenino no era reconocido en los mismos términos que el de los hombres”. 40 As mulheres trabalhadoras não estão desvinculadas do espaço doméstico, por isso o trabalho feminino não tem o mesmo reconhecimento que o trabalho dos homens, sendo a valoração que, culturalmente, foi agregada aos espaços privado (como espaço feminino) e público (como espaço masculino), o viés preponderante das hierarquias do trabalho masculino e feminino. As condições de trabalho nos domicílios eram ínfimas, tal qual o salário. As casas geralmente eram pequenas e com poucos móveis, apenas o essencial para acomodar os moradores. Algumas cadeiras e bancos de “tiras”, uma mesa, cama(s) e um fogão à lenha ou fogareiro e os utensílios domésticos, dentre estes era comum, em todas as casas, a existência de bacias para lavar pratos, roupas e tomar banho, além de potes, moringas ou “talhas” para água de beber. E, na sala, às vezes única e principal, um nicho ou altar de imagens, quadros de santos, castiçal, vela e outros objetos, todos pertencentes ao universo católico. Este ambiente era invadido pelos fumos dos armazéns e das fábricas de charutos, espalhando-se por quase toda a casa, seja em pequenas porções, conforme as etapas de trabalho, seja 40 RAMOS, Maria Dolores. Mujeres e História. Reflexiones sobre lãs experiências vividas em los espacios públicos y privados. Málaga: ATENA (Estudos sobre lá mujer). 1993, p. 82. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 26 em resíduos; o cheiro forte do tabaco exalava em todo o ambiente atingindo até a parte externa da casa. Ali as pessoas trabalhavam e moravam, convivendo diariamente com o fumo espalhado, o pó, o aroma e o cerol impregnados por toda a casa, propiciando doenças alérgicas e a tuberculose. À noite quando esse trabalho se estendia, a iluminação era feita por candeeiros, conhecidos como “fifós”, a base de querosene, que dissipavam no ambiente uma fumaça escura e o cheiro forte do combustível. Devido a sua precária iluminação, eram colocados muito próximos das trabalhadoras. pessoas, prejudicando sensivelmente a visão das 41 Geralmente, o tabaco específico para a confecção dos charutos eram folhas de fumo já tratadas, beneficiadas e selecionadas. Diferentemente destes, o fumo das “trouxas de enrola”, era de qualidade muito inferior, folhas muito pequenas, muito amassado por ser proveniente de fardos imprensados, o aroma e a poeira eram sufocantes, numa quantidade que variava entre 20 e 30 quilos cada trouxa. O volume desse tipo de fumo, todo o processo de “destalação” e o cheiro que exalava, transformava o ambiente domiciliar numa espécie de extensão do armazém, misturando-se aos móveis, utensílios e pessoas, inclusive às crianças, formando um cenário caótico revelador das condições socioeconômicas das famílias chefiadas pelas mulheres fumageiras. Conforme afirmam Abreu e Sorj (1993), “para qualquer tipo de atividade a domicílio existe uma superposição do espaço e do tempo dos trabalhos profissional e doméstico, situação que favorece um acúmulo máximo das tarefas e que torna sua imbricação invisível aos olhos do trabalhador”. 42 O trabalho a domicílio sempre esteve, estritamente, interligado ao trabalho doméstico, sob a estrutura da 41 Bendita R. da Silva - descrição do domicílio das fumageiras que realizavam o trabalho de escolha do fumo em suas casas . 42 ABREU E SORJ, 1993, p.23. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 27 divisão sexual do trabalho, de um lado na esfera da produção e de outro na esfera da reprodução. Como no início do processo de industrialização européia segundo Guimarães (1979), no contexto socioeconômico da região fumageira e nesta modalidade de trabalho, as mulheres também foram submetidas às piores condições de trabalho, à medida que foram mantidas todas as tarefas domésticas. 43 Porém, mesmo considerando a sobrecarga de trabalho sob as piores condições, o trabalho exercido pelas mulheres fumageiras, desde a fábrica ao domicílio acarretou mudanças no comportamento e no modo de pensar, pois ao ouvi-las percebe-se no tom da voz a expressão de um forte vínculo entre trabalho e autonomia, mesmo que esta estivesse apenas relacionada às questões econômicas, não havendo grandes alterações na estrutura hierárquica das relações sociais de gênero. Apesar de tratar-se de situações diferenciadas, mas analisando atitudes de mulheres em relação ao trabalho, Besse (1999), também afirma que “suas carreiras lhes ofereciam mais do que dinheiro: independência, prazer, consecução dos próprios objetivos e um sentimento de valor pessoal e auto-realização.” 44 Ao analisar o impacto que o trabalho causa na vida das mulheres, antes dedicadas apenas aos afazeres domésticos, percebe-se que as questões de raça/etnia, classe, geração podem ser bastante díspares, mas a questão de gênero, mesmo variando os graus de subordinação e oscilando nos contextos históricos, tem perpassado a vida de todas elas, como uma marca histórica que tem merecido a atenção daquelas – as feministas – que, diuturnamente, vêm combatendo através da reflexão, análise e dos movimentos, numa luta aberta contra os poderes constituídos ou não, a subordinação das mulheres. Na historiografia é visível como o trabalho a domicílio, aquele que tem imbricação direta com as atividades domésticas, tem sido imposto como uma atividade específica de mulheres, sempre ligada a 43 GUIMARÃES, 1979, p. 16. BESSE, Susan K. Modernizando a desigualdade: Reestruturação da Ideologia de Gênero no Brasil 19141940. São Paulo: Adusp, 1999, p.173. 44 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 28 família, desde tempos remotos quando esta representava o núcleo da produção de mercadorias destinadas ao consumo dos seus membros e, em outros momentos, quando as mudanças na organização da produção determinaram, também, mudanças nas atividades a serem realizadas pelas mulheres. 45 A produção que, nos seus primórdios, surge no seio da família onde a atuação das mulheres era mais marcante, com o advento da Revolução Industrial e o processo de formação da força de trabalho deslocou-se para o espaço fabril, trazendo graves implicações para as mulheres no campo do trabalho e de sua autonomia, pois passaram a atuar apenas no campo doméstico, desenvolvendo uma atividade que “não se inclui no circuito monetário da produção social”. 46 Seguindo este percurso, o que a história revela, de fato, é que não há profissões de natureza feminina ou masculina por excelência, elas se tornam femininas ou masculinas, caracterizando uma cultura historicamente construída e legitimada pela hierarquia de gênero, “no interior de um sistema de relações desiguais”.47 Sendo no bojo do mesmo processo de industrialização que também foram redefinidos os padrões sociais, fazendo emergir uma nova sociedade que reordena um novo papel para as mulheres. Por outro lado, a deterioração das condições de vida das classes trabalhadoras, conforme afirmação de Guimarães (1979), “é o mecanismo mais perceptível para se explicar o modo como as mulheres se inserem na formação da força de trabalho”.48 No Recôncavo Baiano, além do envolvimento de grande parte da população local no trato do fumo, seja na lavoura ou nas manufaturas de modo geral, o número de mulheres registrado nas fábricas de charutos e nos armazéns de fumo, durante a primeira 45 46 47 48 GUIMARÃES, 1979, p. 7-10. GUIMARÃES, 1979, p. 7-10. SOIHET, 2001, p.15. GUIMARÃES, 1979, p. 13. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 29 metade do século XX, foi da mesma forma, significativo e revelador. César (2000), afirma que nas fábricas de charutos as mulheres atingiam mais de 70% da mão-de-obra.49 Apenas em um maço das Fichas de Registro de Empregados da fábrica de charutos Suerdieck, localizada em Maragojipe, é possível constatar que no período de 1906 a 1950, foram registrados 2.852 trabalhadores, sendo 2.262 mulheres, que representa aproximadamente 79.33% do total. 50 Quanto ao contingente das mulheres que trabalhavam a domicílio, na preparação dos fumos ou na confecção de charutos, a documentação consultada, bem como, os depoimentos pontuam categoricamente para o envolvimento de quase toda a população feminina da região.51 Não sendo registrado nenhum caso de homens trabalhando na atividade domiciliar de “trouxa de enrola” ou de confecção de charutos. Enfim, apesar de se tratar de uma região com um quadro social característico de muita pobreza, acentuando-se mais ainda quando se tratava da população envolvida com a atividade fumageira, mas a divisão sexual do trabalho mantinha-se sob os parâmetros da sociedade patriarcal, onde as funções e os lugares de cada um eram bem definidos na escala social. Os homens, empregados ou não, exerciam sempre funções caracterizadas pelo uso da força valorada positivamente e/ou do poder que exerciam, conforme a posição que ocupavam na hierarquia do trabalho, porém, uma das características fundamentais do trabalho masculino, para aquela região naquele momento, era ser fora do domicílio. O trabalho domiciliar relacionado ao tabaco no Recôncavo Baiano, mesmo que este representasse a maior ou a única renda da família, não se tem registro que também fosse uma atividade desempenhada por homens. As mulheres fumageiras do Recôncavo Baiano se inscrevem no tempo e na história ora corroborando ora modificando as diferenças sexuais, 49 CÉSAR, 2000, p. 06. Informações resultantes da tabulação e análise de 2.852 Fichas de Registro de Empregados, da Fábrica de charutos SUERDIECK, Maragogipe – Bahia, 2001. 51 Vê PINTO, 1998; Jornal O Correio de São Félix; Atas da ASSOCIAÇÃO COMECIAL DA BAHIA; dentre outros. 50 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 30 sociais, a construção e a reelaboração do gênero. Visíveis, portanto, num tempo e num espaço, compondo ativamente um cenário econômico e social, onde puderam e souberam lutar para se fazerem sujeitos de suas experiências e de suas histórias. Ainda assim, foram e continuam sendo invisíveis diretamente na documentação, no olhar de certos historiadores sobre as fontes, na literatura histórica, configurando a construção ideológica das relações assimétricas de classe, de raça e, sobretudo, de gênero dessa parcela de mulheres trabalhadoras. Desta forma, a compreensão do trabalho a domicílio, realizado pelas mulheres fumageiras da região do Recôncavo Baiano, deve passar, prioritariamente, pelo entendimento das relações de gênero tecidas historicamente no cotidiano de mulheres e homens. Percebe-se que o gênero dessas trabalhadoras define as características do trabalho a domicílio. Também, deve-se entender o trabalho a domicílio das fumageiras como uma estratégia de sobrevivência, uma vez que se tratava de mulheres pobres dos meios urbanos. Mas, sobretudo, compreender os processos sociais e econômicos agindo, simultaneamente, na construção tanto discursiva como ideológica, de uma identidade para as trabalhadoras, no contexto da sociedade contemporânea. REFERÊNCIAS ABREU, Alice Rangel de Paiva e SORJ, Bila(Org.). O trabalho invisível: estudo sobre trabalhadores a domicílio no Brasil. Rio de Janeiro: Rio Fundo Ed., 1993. ASEVEDO, Dorothy do Rego. O Trabalho Feminino na Agro-Indústria Fumageira no Estado da Bahia. (Dissertação de Mestrado em Ciências Humanas – UFBA) Salvador (BA): 1975, 1975. BESSE, Susan K. Modernizando a desigualdade: Reestruturação da Ideologia de Gênero no Brasil 1914-1940. São Paulo: Adusp, 1999. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 31 BLAY, Eva Alterman. Trabalho domesticado: a mulher na indústria paulista. São Paulo: Ed. Ática, 1978. BORBA, Silza Fraga Costa. Industrialização e Exportação de Fumos da Bahia de 1870 a 1930. 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Página 34 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 35 A PARTICIPAÇÃO FEMININA NOS CURSOS DE MEDICINA, FARMÁCIA E ODONTOLOGIA NA BAHIA1 Iole Macedo Vanin2 Em 18 de fevereiro de 2008, a Faculdade de Medicina da Bahia fez duzentos anos. Muitas foram as comemorações durante o referido ano3. Nenhuma, no entanto, teve como finalidade discutir a participação feminina na instituição e nos seus cursos ao longo de sua história. Tal fato suscita várias interrogações, que vão desde o teor androcêntrico das ciências até a participação (ou não) das mulheres na biomedicina na Bahia. Formalmente, as mulheres passaram a ter acesso à educação superior - que lhes possibilitava a formação em medicina, farmácia e odontologia -, a partir da Reforma Leôncio de Carvalho4 em 1879 e o acesso à formação intelectual, proporcionada pelas faculdades, foi importante demanda das brasileiras, a partir da segunda metade dos oitocentos como se pode verificar nos jornais e revistas femininas do período, a exemplo da Mensageira. As baianas também participaram dessas discussões, encontramos nos periódicos baianos artigos escritos por mulheres, desde a década de 1870, defendendo a capacidade intelectual feminina e o seu direito ao acesso aos cursos superiores. Foi, no entanto, na segunda e terceira década dos novecentos, com a atuação da Federação Baiana pelo Progresso Feminino, que a discussão sobre os direitos das mulheres, entre eles o acesso às profissões liberais e a formação nestas, ganha destaque nos periódicos. E é exatamente nesse período que a presença feminina nos cursos superiores da Faculdade de Medicina da Bahia tem uma maior concentração. 1 Este artigo é faz parte da pesquisa “Feminismo e Biomedicina na Bahia (1879-1949): a produção intelectual das médicas", que conta com o apoio institucional do CNPq. 2 Mestre e doutora em História pela Universidade Federal da Bahia, instituição onde atua como docente no Bacharelado Estudos de Gênero e Diversidade. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher/NEIM-UFBA. Desenvolve pesquisa na área de História das Mulheres na Ciência. 3 A programação encontra-se disponível em http://www.fameb200anos.med.ufba.br 4 Reforma Educacional empreendida pelo Ministro Leôncio de Carvalho que atingiu a educação superior ministrada no Império, e serviu de base para os outros níveis de ensino nas províncias. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 36 Neste artigo, pretendo analisar a participação feminina nos cursos superiores (Medicina, Farmácia e Odontologia) da Faculdade de Medicina da Bahia, no período compreendido entre 1879 e 1949. Para realizar tal tarefa torna-se imprescindível pontuar as relações desse fenômeno com o movimento e as idéias feministas existentes naquele momento histórico. Visto que a evidente escassez de discussões acerca destas relações - e que são pertinentes ao que atualmente classifica-se como pertencente ao campo da História da Ciência e Feminismo -, não foi total na instituição entre o final dos oitocentos e primeiras décadas dos novecentos; pois, a presença das mulheres nos cursos da Faculdade de Medicina e a sua articulação com as reivindicações da primeira onda feminista na Bahia foi ponto de discussão na sala de aula de alguns catedráticos da mencionada instituição. Ítala de Oliveira, médica e feminista sergipana, foi enfática, ao afirmar na sua tese de doutoramento, que alguns professores discutiam sobre o feminismo na sala de aula: O feminismo, que aliás ha sido muito mal comprehendido e interpretado, mesmo pelas proprias mulheres, não quer transformá-las em homens (...). A differença que ha entre os dois sexos reside só nas glandulas genitaes, porque são ellas que firmando o sexo, fixam os caracteres correlativos a cada um. Para o homem como para a mulher as demais funcções são identicas, como identico é o mundo que os envolve e os entes que o cercam. Aliás os espíritos esclarecidos e os estudiosos insuspeitos pensam assim. Ainda no curso deste anno lectivo, os provectos (sic) cathedraticos de M. Legal e Hygiene, respectivamente, drs. Estácio de Luna e J. de Aguiar Costa Pinto, com a equidade de espiritos rectos e insuspeitos abordaram o problema feminista. Identicas foram as suas opiniões apoiando ambas as justas aspirações da mulher ao trabalho e a uma vida útil. (OLIVEIRA, 1927, p. 166-167) No seu relato, infelizmente, a médica não detalhou o teor destas discussões e nem o que as teriam ocasionado, mas apresentou a articulação que devia existir entre feminismo e medicina. Após, essa breve introdução HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 37 devo apresentar de que maneira a participação feminina ocorreu nesta instituição, sinalizando as possíveis articulações com movimento feminista de então, situando especificamente, a Federação Baiana pelo Progresso Feminino. Durante o intervalo de tempo que compreende a Reforma Leôncio de Carvalho e a separação dos cursos de Farmácia e de Odontologia da Faculdade de Medicina da Bahia, encontrei o registro da presença de 412 (quatrocentos e doze) mulheres que concluíram os cursos superiores oferecidos pela Faculdade de Medicina da Bahia. Um número insignificante se comparado ao total de médicas e dentistas formadas nos Estados Unidos apresentado no Jornal Cidade do Salvador. Nos Estados Unidos da América, em três décadas (1870, 1890, 1899) teremos um total de 12.553 (doze mil quinhentos e cinqüenta e três) profissionais da área de saúde (dentistas e médicas), aumentado para 13.237 (treze mil duzentos e trinta e sete) se considerarmos as legistas; enquanto que, na Faculdade de Medicina da Bahia, no mesmo período (1870 a 1899), teremos a formatura de apenas 09 (nove) profissionais da área médica (farmacêuticas, odontólogas e médicas). Confirmando-se neste intervalo a predominância de escolhas pela medicina em detrimento da opção, estratégicas ou não, pelos cursos de farmácia e odontologia como se confirma ao verificar os números por curso de forma isolada: Medicina (06); Farmácia (02); Odontologia (01). As médicas, no entanto, foram as únicas lembradas pela Gazeta Médica da Bahia, no inicio do século XX, quando esta faz uma relação das mulheres formadas pela Faculdade de Medicina da Bahia: farmacêuticas e odontólogas são apagadas. A invisibilidade destas profissionais foi causada, talvez, pela visão setorizada das categorias funcionais; isto é, supõe-se que os médicos se consideravam no topo da pirâmide formada pelos profissionais que atuavam na área de saúde. Fonseca (1893), ao escrever sobre as atividades dos cursos, nas Memórias Históricas da Faculdade de Medicina da Bahia, 5 Filial da Federação Brasileira Pelo Progresso Feminino em 1931 por um grupo de senhoras baianas, lideradas por Edith Gama Abreu, com a finalidade de lutar pela mancipação intelectual, política e econômica das mulheres. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 38 evidencia o fato dos cursos de Farmácia e Odontologia não terem o mesmo prestígio que o de Medicina. Esse pouco "prestígio" da Odontologia, segundo Figueiredo (2007), devia-se ao fato desta ser uma arte manual e que envolvia a “carne e o sangue” (FIGUEIREDO, 2007, p. 128), ou seja, ligava-se ao mundo das coisas tidas como impuras. Carvalho (2003), ao estudar a instituição da odontologia no Brasil, fez as mesmas observações, além de acrescentar que na escala de prestígio o dentista e, depois o cirurgião dentista, ficava em último grau em relação ao farmacêutico e médico. Se o baixo status da cirurgia dentária era devido ao tipo de ofício, manual e envolvendo sangue, o de farmácia devia-se à sua identificação como uma arte complementar à medicina. Inicialmente, preparar os medicamentos necessários para efetivar a cura era uma função do médico, além do diagnóstico da doença. A separação da arte de curar iniciou-se a partir do século VIII, quando os médicos começaram a comprar os remédios de que necessitavam em vez de prepará-los. O estigma criado para a farmácia foi de que era “a cozinha da medicina”, assim caberia a este profissional “a função de ‘cozinhar para os médicos’” (MARQUES, 1999, p. 157). É justamente devido a esse imaginário que a presença feminina foi aceita sem muitas resistências, enquanto que aconteceu o contrário em relação à medicina, pois como afirma Schiebinger (2004, p. 346): “Não se surpreende que a botânica fosse considerada apta para as mulheres, pois – como a farmácia [grifo meu] – estava estreitamente unida (e delas haviam se originado) à cura por meio de ervas e a jardinagem, terrenos a que as mulheres se dedicavam há muito tempo”. Estas questões, por certo, sinalizam caminhos para se explicar a visão setorizada em relação aos farmacêuticos e odontólogos que perpassou a redação do artigo da Gazeta Médica da Bahia, onde nem mesmo a dupla formatura de Glafira Corina de Araújo – primeiramente em farmácia em outubro de 1892, apesar de no mesmo ano graduar-se também em medicina – foi mencionada, revelando a hierarquia de status existente entre os vários cursos baianos da área biomédica e que pode ser compreendida por uma HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 39 ótica de gênero na medida em que identifiquei as concentrações femininas em cada curso e as entrecruzei com as representações construídas acerca de cada um deles. As práticas setorizadas da medicina em relação à farmácia e odontologia, somada a uma compreensão sexista de ciência, produziram no interior da Faculdade de Medicina da Bahia o que podemos chamar de uma segregação territorial. Eulália Sedeño (2001), ao analisar de que forma as concepções de gênero, ao longo da história da ciência, estão imbricadas na constituição das instituições que se dedicam ao fazer cientifico, traz a cena os conceitos de discriminação territorial e hierárquica para explicar tal fenômeno: Por exemplo, se comprovou como as mulheres dedicam-se a determinadas disciplinas consideradas “mais” femininas (discriminação denominada territorial) e como ocupam os lugares mais baixos do escalão profissional (discriminação hierárquica), uma vez que se constata que o prestigio de uma disciplina é inversamente proporcional ao número de mulheres que a praticam. (SEDEÑO E., 2001, p. 23) Estes não são conceitos exclusivos de Eulália Sedeño (2001), uma vez que outras estudiosas feministas da ciência, ao analisarem de que maneira as relações de gênero estruturam o campo científico, chegam às mesmas conclusões da feminista espanhola. A exemplo cito o caso de Schiebinger (2001) que, ao dialogar com outras especialistas, constata no contexto norteamericano as mesmas características apontadas por Sedeño para o europeu. Há, no entanto, algumas diferenças entre essas duas autoras: a nomenclatura que Schiebinger (2001) utiliza é diferente da de Sedeño (2001), apesar de o conceito ser o mesmo. Aquela utiliza “segregação” em vez de “discriminação”: No inicio da década de 1980, Margaret Rossiter propôs dois conceitos para compreender a massa de estatísticas sobre mulheres na ciência e as desvantagens que as mulheres continuam a sofrer. O primeiro ela denominou segregação hierárquica, o conhecido fenômeno pelo qual, conforme se sobe a HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 40 escada do poder e prestígio, cada vez menos rostos femininos são vistos. (...) Rossiter discutiu também “segregação territorial” ou como as mulheres se agrupam em disciplinas cientificas.” (SCHIEBINGER, 2001, p. 76-77) Optei, neste artigo, por utilizar “segregação” em vez de “discriminação”, pois o primeiro termo me parece mais adequado ao universo do meu estudo, uma vez que além da discriminação houve a segregação, implicando na criação de “guetos”. A aplicação desses conceitos, contextualizados, se justifica por ser o caminho para explicar a presença feminina nos cursos da Faculdade de Medicina da Bahia, uma vez que a partir da sua utilização é possível vislumbrar, além do número crescente de mulheres naquela instituição, o que de forma simplista poderia ocasionar a interpretação equivocada de que o crescente processo de feminização dos seus cursos significou uma ruptura do mundo masculino da biomedicina na Bahia. É preciso ir além da cifra numérica. É necessário verificar os valores sociais atribuídos a estes cursos ou mesmo às especializações dentro dessa área de saber. A partir do “matrimônio metodológico” entre quantitativo e qualitativo, proposto por Poncela (1998, p.167), a presença feminina nos cursos de Medicina, Farmácia e Odontologia ganha um outro sentido e caracteriza bem a afirmação de Vallejos, Yannoulas, Lenarduzzi e Tindera (2003) de que a exclusão das mulheres das instituições responsáveis pela produção formal dos saberes, bem como o exercício profissional daí resultante, “não se efectua mais pela limitação no ingresso, mas pela transferência a seu interior” (VALLEJOS e outras, 2003, p. 288). Em outras palavras, a exclusão evidenciada pela proibição de acesso às universidades não deixa de existir no momento em que as mulheres adentram este espaço, ela apenas muda de direção, na medida em que a exclusão se fez presente no seu interior com a criação de “guetos”. Assim, a segregação territorial e hierárquica são os aspectos visíveis da performance da exclusão feminina na ciência e que terminam por estruturar a participação em medicina, farmácia e odontologia na Bahia do final dos HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 41 oitocentos e inicio dos novecentos. O universo feminino que freqüentou os cursos superiores da Faculdade de Medicina da Bahia, no período aqui trabalhado, encontrou a sua maior representatividade no curso de Farmácia com um total de 168 (cento e sessenta e oito) formaturas femininas, seguido por Odontologia, que fica em segundo lugar com um número de 160 (cento e sessenta), por Medicina com um total de 84 (oitenta e quatro). GRAFICO I CONCENTRAÇÃO FEMININA NOS CURSOS SUPERIORES DA FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA – 1879/1949 100 90 80 70 60 Medicina 50 Farmacia 40 Odontologia 30 20 10 0 1870 1890 1910 1930 Fonte: Livro Índice de Graduados (1808-1939); Livros de Registro de Diploma (1940-9) Dessa forma, a segregação territorial torna-se visível nos números de formadas em cada curso e as representações de gênero dominantes na sociedade baiana do período que estavam presentes na Faculdade de Medicina da Bahia mesclavam-se com as imagens de cada curso; isto é perceptível quando, nos dados apresentados no Gráfico I, Farmácia e Odontologia formam 76,09% do universo constituído entre 1879 e 1949, cuja dimensão equivale a 412 (quatrocentos e doze) mulheres. A presença feminina nas profissões liberais nas décadas de 1930 e 1940 foi estabelecida de acordo com os estereótipos de gênero vigente. As mulheres, em sua maioria, dirigiam-se para as licenciaturas, das recémHISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 42 criadas Faculdades de Filosofia; pois, o ato de ensinar era compreendido como uma atividade própria para elas devido as suas características e funções “inatas”. Passos (1999), no entanto, revela que mesmo no interior destas instituições havia uma hierarquia de gênero que estruturou desde as escolhas pelos cursos, até mesmo as atividades desenvolvidas. Os poucos homens que estudaram na Faculdade de Filosofia da Bahia optavam por Filosofia, Química e Física, ou seja, “identificavam-se com os cursos da área das ciências, da pesquisa, da abstração, e as mulheres com os que levassem ao ensino, cuidar e a ajudar no crescimento do outro”. (PASSOS, 1999, p. 133). A concentração feminina nos cursos da Faculdade de Filosofia, que tinha como uma das finalidades a formação de docentes, de São Paulo, nas décadas finais da primeira metade dos novecentos, foi objeto de discussão do artigo “A mulher universitária: códigos de sociabilidade e relações de gênero” (TRIGO, 1994). Pela leitura comparativa de Passos (1999) e Trigo (1994), chego à conclusão, não tão inédita, de que esta especificidade das referidas instituições em ter um publico eminentemente feminino, característica esta que atribuiu à instituição baiana, no período, a pecha de “a faculdade de saias” (PASSOS, 1999), foi reflexo da influência que os estereótipos de gênero tiveram nas escolhas profissionais dessas mulheres. Mas, nem todas que freqüentaram cursos universitários o fizeram nas Faculdades de Filosofia; houve aquelas que buscaram a formação em cursos das áreas de prestígio como a biomédica e a jurídica. E a hierarquia de gênero na escolha da formação não se revelou, especificamente na área biomédica, só pelo pequeno número de mulheres naquele universo, mas também por algumas sub-áreas particulares de formação (medicina, farmácia e odontologia) em que encontrei estas mulheres. A segregação territorial é notável e justificável ao se pensar que eram profissões a que se atribuíam relações com o feminino, como pontuei anteriormente, e de pouco prestigio, desde o século XIX. A inserção dessas mulheres no espaço da biomedicina foi direcionada em sua grande maioria para áreas que possuíam HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 43 identificação com o “ser feminino” – farmácia e enfermagem6 - ou de pouco prestigio como a odontologia. Esta foi uma conclusão a que chegou Saffioti (1969) ao procurar explicar a concentração no curso de Farmácia, em São Paulo, para as décadas de 1930 e 1940: A maior concentração feminina nesses ramos do ensino, notadamente no ramo farmacêutico, encontra explicações no processo de desvalorização social sofrido pela profissão de farmacêutico. Na verdade, o farmacêutico só tem conservado suas funções tradicionais nas pequenas comunidades onde o médico inexiste ou onde o nível de salários é suficientemente baixo para impedir que os pacientes se dirijam a um facultativo ou, ainda, onde persistem as tradições que envolviam a personagem do boticário. É muito provável que o referido desprestígio em que caiu a profissão de farmacêutico, transformando este em vendedor de remédios industrializados, seja o fator grandemente responsável pela penetração do elemento feminino neste setor ocupacional. Este argumento parece ser corroborado pelo fato de que a procura desse ramo de estudos por parte do elemento masculino era reduzidíssima em face da procura dos cursos de medicina, não chegando a procura daqueles a representar sequer 14,0% da procura destes. (SAFFIOTI, 1969, p. 233) As observações feitas por Saffioti (1969, p. 233) também foram ratificadas por Hahner (2003, p. 198), que justificou a concentração feminina nos cursos de Farmácia e Odontologia afirmado que: no primeiro, era devido à perda de prestigio deste; no segundo, a cirurgiã dentária, era porque “as mulheres podiam praticar sem abandonar os serviços domésticos”; mesmo porque os cursos mencionados não apresentavam discordâncias aparentes com os estereótipos femininos; visto que o primeiro não tinha prestígio e estava relacionado com o mundo doméstico; e, o segundo não atrapalhava o desempenho feminino na vida doméstica. As explicações que apontam para a concentração da presença feminina nesses cursos, majoritária em relação ao de medicina, podem ser 6 A atuação e formação feminina em enfermagem foi também objeto de analise de Elizete Passos, em De anjos HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 44 utilizadas como exemplo da forma como a Teoria da Complementaridade continuou a atuar para além do início do século XIX e do acesso feminino à área biomédica, pois aquela “ensinava que alguns campos científicos eram mais adequados para as mulheres” (SCHIEBINGER, 2004, p. 344) e foi para os cursos de farmácia e odontologia que as mulheres, em sua maioria, se dirigiram; demarcando explicitamente como a exclusão feminina se manteve nesta área do saber, configurando o que chamamos de segregação territorial. Desarte, no Gráfico I é visível uma oscilação crescente do número de formaturas, sendo que a partir da década de 1930 houve uma oscilação menor, chegando quase a um índice constante no curso de medicina em relação ao período posterior. Verifica-se, portanto, que apesar da Reforma Leôncio de Carvalho permitir o acesso feminino nos cursos superiores, somente a partir do início do século seguinte houve um número expressivo de mulheres na instituição baiana, considerando o universo estudado, o que suscitou a necessidade de refletir sobre o que teria incentivado um aumento da busca feminina por estes cursos, precisamente Farmácia e Odontologia. Aos dados apresentados no Gráfico I somam-se outros registros que encontrei no Arquivo da Faculdade de Medicina da Bahia, precisamente para as décadas de 1930 e 1940, e que ao acrescentarem dados como origem e faixa etária das discentes permitem construir um perfil e tornam perceptível a movimentação de mulheres de cidades do interior da Bahia e mesmo de outros estados que se dirigiam para a instituição baiana com o intuito de graduar-se nos cursos superiores que esta oferecia. Dentre a riqueza desse material, para a pesquisa histórica feminista, encontra-se a possibilidade de identificação de um dos fatores que ocasionaram o aumento da presença feminina. Destas mulheres, 279 (duzentos e setenta e nove) eram baianas, que em sua grande maioria localizavam-se entre a faixa etária de 15 a 25 anos. A maioria das discentes de outros estados era do Norte e Nordeste: Ceará (6), Sergipe (37), Alagoas (24), Maranhão (5), Piauí (4), Acre (1), Pernambuco (7), Amazonas (2), Mato Grosso (1), Rio Grande do Norte (1) e Pará (1). Fazem a mulheres (1998). HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 45 parte deste universo, ainda, sulistas (9) e estrangeiras (7). As mulheres transitavam, muitas iam e voltavam; outras permaneciam. E uma grande maioria teve contato com as reivindicações feministas. Esta minha hipótese tem sua origem no momento em que verifico de que foram os estados nordestinos que tinham filias da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, os que enviaram mais moças para os cursos da Faculdade de Medicina da Bahia, justamente no período de atuação da entidade feminista que tinham entre os seus setores a União Universitária Feminina e depois pela Ala Moça, cujo objetivo principal era estimular a formação intelectual feminina. Esta é uma questão a ser pelo menos considerada. Colabora com este argumento a estreita aproximação de algumas profissionais com as idéias e mesmo com organizações feministas do período, uma vez que dentre os fatores aglutinadores entre estas moças encontra-se além das relações familiares, os laços políticos que as mantinham unidas durante o curso ou mesmo com aquelas que já haviam se graduado em anos anteriores. Refiro-me, aqui, por exemplo, ao fato de que apesar da alagoana Quitéria Lyra ter concluído o curso de farmácia em 1927 e manter contato com as baianas Nair do Passo Cunha e Gladys Browne Boia, sócias da Federação Baiana Pelo Progresso Feminino, que formaram-se em medicina na década de 1930. Isto se deve não apenas ao fato da primeira não retornar ao seu estado de origem, mas, principalmente, devido ao fato dela atuar na União Universitária juntamente com as outras duas, como mostra artigo “O Feminismo Thimphando – Leaders do movimento far-se-hão ouvir amanhã” publicado pelo Jornal A Tarde e que noticiou a criação dessa entidade e da Federação Baiana pelo Progresso Feminino; nomeando inclusive o nome das mulheres que faziam parte das suas diretorias - entre as quais muitas médicas, farmacêuticas e odontologas formadas pela Faculdade de Medicina da Bahia. Na busca de explicações para a aumento da presença feminina nos cursos de Medicina, Farmácia e Odontologia, no intervalo de 1920 e 1940, não posso deixar de considerar que o período em questão situa-se entre o HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 46 denominado processo de modernização das grandes cidades do país, que compreende desde uma reestruturação arquitetônica até a mudança de comportamentos e, nesse processo uma intensificação do movimento feminista com a fundação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino que, dentre outras coisas, dava prosseguimento às reivindicações por educação das mulheres e o acesso às profissões liberais, fazendo com que o cotidiano feminino, em proporções diferenciadas, fosse afetado por estas transformações. Mesmo assim, as mulheres continuavam nos tradicionais papéis de mães e esposas, moralizadoras da sociedade e a educação, inclusive a aquela que possibilitava uma profissão, era pensada e defendida com este intuito. Nessa direção, Leite (1997, p.94-109) ao apresentar e analisar o imaginário republicano baiano acerca da educação feminina, destaca a palestra da professora Cordula Spinola, realizada em 1913, como um exemplo desta questão: Na memória apresentada, propugnava-se “a abertura de escolas profissionaes, onde a educação marche de accordo com as exigências da sociedade actual”, o que contribuiria sobremaneira para o equilíbrio feminino, pois o conteúdo ministrado nestas escolas normais não prejudicaria as funções da mãe e da esposa. A professora afirmava ainda que a degradação moral da mulher, bem como a sua falta de autonomia na sociedade, decorriam da falta de instrução profissional, já que “a mulher no Brasil, embora bem instruída, é quase sempre rica de theorias e paupérrima na pratica do trabalho da vida”. As idéias finais do trabalho de Cordula Spinola resumem as argumentações presentes nos discursos de vários intelectuais do período que pensaram e escreveram sobre a mulher. Entretanto, existiram algumas diferenças marcantes no pensamento da professora que, além de criticar a exclusão social da mulher, dava ênfase ao processo de autonomia econômica, obtida através de uma profissão. (LEITE, 1997, p. 104-105). A fala da referida docente, por intermédio da voz de Leite, salientou uma outra faceta do cotidiano feminino na capital baiana: o trabalho remunerado HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 47 fora do lar para as mulheres da classe média e da elite, uma vez que as pobres – em sua maioria mestiças e negras – já trabalhavam fora dos muros do espaço doméstico desde o período colonial. Assim, O projeto e as idéias educacionais dirigidas às mulheres constituíam apenas uma face da construção de uma cultura feminina de elite na Bahia republicana. Outras formas de socialização, como o trabalho e o lazer, vão evidenciar a dialética dos papéis sexuais e as múltiplas relações entre os gêneros nos diversos espaços sociais (LEITE, 1997, p. 109). Nesse sentido, o exercício profissional feminino nas décadas intermediarias da primeira metade do século XX, foi também um assunto abordado por Almeida (1986) que, ao analisar o contexto de constituição da Federação Baiana pelo Progresso Feminino, apresentou uma comparação entre índices sobre a presença das baianas no setor terciário, que de quase 3% (três pontos percentuais) em 1920, aumentou para 15% (quinze pontos percentuais) em 1940. Apesar de indicar o aumento de quase 12% (doze pontos percentuais) em duas décadas, sinalizando que “a profissionalização da mulher e sua participação nas chamadas atividades produtivas eram contudo inexpressivas no contexto da cidade, durante toda a primeira metade deste século “ (ALMEIDA M., 1986, p. 47), suas reflexões são insuficientes para explicar os fatores que ocasionaram o crescimento destes índices. Ela apenas relaciona o baixo percentual feminino ao fato de que “o desenvolvimento das relações de produção capitalistas, elemento incentivador e desencadeador desses processos no meio urbano, encontravase ainda num estágio incipiente e parecia não demandar tanto por braços femininos” (ALMEIDA M., 1986, p. 47). Foi em notícias publicadas pelo Jornal A Tarde e Diário de Noticias nas vozes de Maria Luiza Bittercourt, Lili Tosta e de Leda Ferraro -, que encontrei indicativos do que teria ocasionado o aumento desses índices e o direcionamento, “no final da década de 40”, das mulheres de classe média e da elite “de forma acentuada para atividades do setor terciário” (ALMEIDA HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 48 M., 1986, p. 47), facção do mercado de trabalho onde se encontram as profissões liberais como medicina, farmácia e odontologia. Em 1931, a feminista baiana Maria Luiza Bittercourt, entusiasmada como “a invasão victoriosa da mulher em todos os campos de actividade” (BITTENCOURT, 26/3/1931, p.2), afirmou que tal fato era reflexo do desenvolvimento das idéias feministas que já existiam na capital baiana. Concordo com essa afirmação, pois as idéias feministas já estavam em atuação em Salvador desde a segunda metade do século XIX e tiveram um reforço a partir das primeiras décadas do XX como demonstram os artigos de Francisca Praguer Fróes e até mesmo aqueles que, por serem contrários a essas idéias, negam a existência das reivindicações pelos direitos políticos. (VANIN, 2008) Nesse contexto, havia forte resistência ao exercício de atividades e funções femininas que não fossem as de esposa e mãe, mas não podemos ignorar que a exposição pública desses posicionamentos é dado sintomático da existência do fato de que novas idéias acerca dos papéis e atividades femininas estavam em circulação e que as ações resultantes dessas não eram tão invisíveis. Quanto à fala de Maria Luiza Bittecourt é evidente ser o depoimento apaixonado de uma militante, apesar desta solicitar de seus leitores que “não vejaes nisto exaggeração partidária” (BITTENCOURT, 26/3/1931, p. 2), que no afã de ter as suas idéias ouvidas e, quiçá, aceitas, atribuiu a estas a crescente presença da participação feminina em variadas atividades econômicas, desenvolvidas no espaço soteropolitano, conforme o excerto abaixo: É bem verdade que a outro despreocupado visitante, oriundo de um grande centro como o Rio, onde corriqueiro, encontradiço é o trabalho feminino, a impressão que nos causou a mulher bahiana se traduzira pela aceitação natural do facto a que se habituara. Mas, para nós, que já vivemos, assistindo, comprehendendo, participando da luta surda que a este resultado procede – da necessidade contra o preconceito, da vontade contra a opposição do ambiente, da consciência do dever contra o medo da responsabilidade, à acção da mulher no norte, HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 49 onde, não ignoramos, a importância destes obstáculos infinitamente maior, exigindo somma de sacrifícios, nos admira. Surprehendeu-a nossa ignorância, acompanha-a nossa sympatia, relata nossa orgulhosa satisfação. Entrei nas lojas, visitei as escolas, percorri as repartições, ingressei nas redacções, e por toda a parte incontrei, capaz, culta, respeitada, acatada a minha conterrânea, a minha irmã que trabalha, que estuda, que desempenha funcções, que escreve. Procurei ouvir os que a cercavam, e soube do respeito e da consideração que lhe votam. Procurei ouvi-la e surprehendi a história milagre da sua vontade, intelligente, aproveitada, apta. Por isso aceitei satisfeita a missão honrada de convidal-as para que se reunissem num centro onde promovessem a defesa do seu direito, a propagação das suas idéias (BITTECOURT, 26/03/1931, p.2) Nesse mesmo período, Lili Tosta7 ao responder a um plebiscito acerca do feminismo feito pelo Jornal A Tarde, especificamente em 1931, revela as maneiras pelas quais, na década de 1920, recém chegada da Europa, onde teve contato com as idéias feministas inglesas, começou a divulgar as suas opiniões acerca da situação e dos direitos das mulheres: Durante os dois annos que estudei na Escola Polytechnica de Londres, o convívio diário de cinco horas de trabalho naquelle pequeno mundo de nove mil estudantes, de ambos os sexos, e de todos os ramos de estudo, muito concorreram para a expansão do que, então, chamavam algumas pessoas, “as minhas idéias subversivas”. Estudei o feminismo no seu berço, por assim dizer, me irmanei com as suas lutas e os seus triumphos. Finalmente, voltei ao ninho pátrio! Triste experiência! Quase asphyxio! Durante dois longos annos lutei desesperadamente para me acclimatar, para me adaptar aos preconceitos locaes! A cada passo tropeçava num impecilho. Uma luta titânica entre os meus ideaes e a desharmonia do meio. Felizes aquelles que nunca conheceram esta qualidade de luta! Mas, como para tudo há remédio, 7 Sobre Lili Tosta recomenda-se a leitura do artigo "Lili Tosta e os fundamentos do Feminismo Baiano" (COSTA, 2002). HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 50 equilibrar-me, sendo feminista pratica, dando expansão pratica aos meus ideaes e, ao mesmo tempo, tolerando e respeitando o meio. Porém, desde 1922 que venho exteriorisando, mui discretamente, as minhas theorias por meio de artigos, publicados nos jornaes desta Capital, com o pseudonymo Russo de Souza Makaroff e algumas vezes com nome de homem. Sou, por conseguinte, feminista innata, convicta e de facto! (TOSTA, 9/4/1931, p.2) Cruzando as falas de Lili Tosta e de Maria Luiza Bittercourt, continuo a concordar que a expressão de idéias que questionavam a situação feminina e mostravam novos horizontes para as mulheres, além do papel de mãe e esposa, possivelmente puderam influenciar a participação delas no mercado de trabalho, principalmente no setor terciário; no entanto, as resistências explicitadas por Lili Tosta, me fazem refletir que existiram ainda outros fatores que explicariam o aumento do índice feminino no mercado de trabalho apontado por Almeida (1986, p. 47). Logicamente que o cenário descrito por Maria Luiza Bittercourt não era exclusivo de Salvador. O contexto econômico vivenciado pelas famílias de classe média e, também dos estratos mais abastados em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, era um dos fatores para o exercício feminino de profissões remuneradas fora do lar; pois para as famílias os rendimentos obtidos por suas mulheres, por meio de trabalho honesto, era um complemento a renda e, conseqüentemente, uma estratégia para manterem os padrões de vida a que estavam acostumadas (BESSE, 1999, p.143-181; HAHNER, 2003, p. 183-256; ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 94-95). Devo salientar ainda, que os índices encontrados por Almeida (1986, p. 47) para a Bahia não são destoantes dos apresentados por Saffioti (1969, p.253-255) para outras áreas do Brasil. Ao analisar a força de trabalho feminina na primeira metade dos novecentos, esta autora afirma ter ocorrido um aumento de 4,4% em 1900 para 22,4% em 1920, chegando a 22,7% na década de 1940. Apesar de destacar a elevação do número de mulheres atuando no mercado de trabalho, Saffioti alerta que isso não significou uma transformação na proporção entre o número de homens e mulheres, eles HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 51 continuaram a ser maioria. Esta é uma discussão importante, pois demonstra a continuidade das hierarquias de gênero atuando na organização do contexto nacional, especificamente no mundo do trabalho; porém, para o meu argumento o que interessa, nesse momento, é a explicação que Saffioti (1969, p. 254) construiu para esse fenômeno: com o advento das guerras e o fortalecimento do desenvolvimento da indústria nacional houve um direcionamento da mão de obra feminina do setor secundário para o terciário. A influência das transformações de comportamento ocasionadas pelas guerras mundiais, sobretudo na Europa, é sinalizada por Maria Lúcia Rocha-Coutinho (1994) quando esta menciona a necessidade de mão-obra para substituir a masculina que foi direcionada para o combate; nesse contexto, “as divisões entre os papéis masculinos e femininos, que incluíram o principio da mãe no lar, foram esquecidas e varias facilidades criadas (como creches e cantinas, por exemplo) para que elas melhor pudessem cumprir seus novos papéis profissionais” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 44). Esta mesma autora afirma que em contrapartida no período pósguerra, as atividades domésticas (mães, esposas e donas de casa) foram novamente reafirmadas como próprias das mulheres, para que elas retornassem às suas funções tradicionais e cedessem os espaços no mercado do trabalho para os homens que retornavam, assim, foram criadas intensas campanhas de valorização da “imagem estereotipada da boa mãe no lar” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 95). Ou seja, no período pós-guerra houve uma reformulação das representações de gênero na tentativa de imposição dos antigos papéis femininos, afetando também a sociedade brasileira: “O período do pós-guerra assiste, com assinalamos em capitulo anterior, a uma profunda transformação nas sociedades européias e norte-americanas, no que diz respeito ao papel da mulher na sociedade, transformação esta que vai ter reflexos na sociedade brasileira” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 95). Pode-se inferir nessa afirmação de Rocha-Coutinho (1994) que se as transformações do pós-guerra refletiram no contexto feminino brasileiro isso se deu porque as próprias mudanças decorrentes das guerras também HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 52 afetaram a sociedade brasileira. A influência dos comportamentos femininos norte-americano e europeu, nas décadas iniciais dos novecentos, terminaram por influenciar as brasileiras, sobretudo aquelas de classe média e alta, como foi frisado por Hahner (2003): As inovações culturais e tecnológicas que chegaram aos centros urbanos do Brasil no inicio do século XX afetaram as mulheres assim como os homens. Como seus parceiros homens, as mulheres das “famílias mais finas” encontravam-se e passavam seu tempo em casas de chá e teatros. Logo elas estariam dirigindo seus automóveis e indo ao cinema, onde tomavam contato com novas atitudes e modos de comportamento da mulher. As mulheres da elite tinham visitado muitas vezes a Europa, fazendo “freqüentes viagens com seus maridos, trazendo para casa as últimas novidades da moda, tanto no vestuário como na decoração de suas casas”. Além de voltar com os paramentos da modernidade e da moda, algumas mulheres também adquiriam novas idéias sobre atividades e direitos femininos. (HAHNER, 2003, p. 248) As informações que Rocha-Coutinho (1994) sinaliza e que Hahner (2003) utiliza para o Brasil acerca da influência das transformações ocasionadas nos comportamentos femininos no período das e entre guerras, podem ser também aplicadas à realidade da Bahia se levarmos em consideração que algumas notícias acerca das atividades que as mulheres passaram a desempenhar com sucesso, na ausência dos homens, foram absorvidas pelas baianas influenciando ações e desejos. A esse respeito, encontrei vestígios de que estas notícias podem ter estimulado essas mulheres; pois, esta perspectiva estava patente em texto que expressava opinião favorável ao voto feminino enviado ao Jornal A Tarde, e que foi o antepenúltimo publicado na coluna que este periódico dedicou aos resultados do seu plebiscito acerca do acesso das brasileiras ao sufrágio (1917). Sua autora, Anna de Almeida Soares Junquilho, residente na Villa Nova da Rainha, manifestou a sua opinião favorável ao voto feminino e justificou esse posicionamento afirmando que as mulheres tinham tanta HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 53 capacidade quanto os homens. E para ilustrar sua afirmação citou como exemplo a participação das mulheres russas na guerra: “Não se discute, hoje, a capacidade da mulher para as conquistas dos grandes ideaes. Ella está substituindo o homem em todos os commetimentos na luta intensa da vida, dando o último exemplo as jovens Russas, formando ao lado do exercito, para a defesa de sua pátria.” (O PLEBISCITO..., 10/7/1917, p. 2). Este texto não foi à única vez que, no período de janeiro a julho de 1917, o Jornal A Tarde mencionou a participação das mulheres européias na Guerra. Em um artigo publicado na primeira pagina do dia 9 de janeiro de 1917, mas que foi escrito em Paris (França) em dezembro do ano anterior, provavelmente por um correspondente, com o titulo de “As Revoluções da Guerra – As novas profissões das mulheres inglezas”, relata a coragem e o sacrifício das mulheres em deixar seus lares ao assumirem profissões masculinas como uma forma de colaborar com a futura paz e, conseqüentemente, o retorno de seus esposos e filhos. Novos horizontes se desvendaram para aquellas que são obrigadas a ganhar a vida. O trabalho das munições tornou-se a sua occupação corrente; mas há também muitas mulheres nos escriptorios de commércio, nos bancos, nos ministérios. Por toda a parte ellas substituíram, corajosamente, os homens auzentes, nos “trans” e nos “burses”. São mulheres que conduzem os carros; e, atarvez (sic) da chuva, vêm-se outras que manobram as alavancas dos pesados caminhões de mercado, envoltas n’um “mackntoflh”, com um gorro enterrado na cabeça a tal ponto, que não se saberia o seu sexo, se alguma me acha espaçada ou o brilho e a frescura da sua tez não as trahissem. Na Inglaterra as mulheres substituíram ainda os carteiros: vêm-se algumas, de facto, percorrendo as ruas, a passos largos, com o sacco ao hombro, cheio de pacotes postaes. Ellas acceitaram também, corajosamente, o papel de bombeiros, e nos “films” de cinema de Londres, vêm-se mulheres bombeiros que sobem por escadas de cordas e brandem as lanças de esquicho. (...). É, sobretudo, no momento da messe e das colheitas que o esforço das mulheres inglezas se torna característico. Ellas se inscrevem para o “farning HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 54 work”, em listas abertas pelos grande proprietários ou pelas universidades. Quando, em algum lugar, falta a mão d’obra, é a esse corpo de voluntários que a nação se dirige pela via dos jornaes. Durante o estio vêm-se mulheres que manobram pesadas machinas agrícolas as cegadoras, as enfeixadoras e as batedoras. São ellas que colhem as fructas. Nenhuma tarefa lhes repugna. Uma immensa força moral sustenta as suas forças physicas: sabem que cada dia do seu trabalho adeanta um pouco a hora da paz. (AS REVOLUÇÕES..., 9/1/1917, p.1) As notícias da guerra eram constantes no referido periódico baiano e era um assunto de tamanho interesse do público, que foi criada uma espécie de coluna com flashes da guerra, onde pude verificar mais uma vez como os estereótipos de gênero se faziam presentes. Em 10 de janeiro de 1917, a imagem publicada que aparece sob a chamada “Aspectos da Guerra”, são de mulheres francesas trabalhando na confecção da artilharia que os homens utilizaram na guerra, como mostra uma outra foto publicada em 15 de agosto de 1917, sob o titulo de “visões da guerra”. Que estas fotografias, a exemplo das notícias publicadas, podem ter influenciado algumas reflexões por parte das baianas é uma possibilidade, ao se considerar que as imagens também ajudam os sujeitos a construírem suas interpretações da realidade visto que podem se constituir como meios de transmissão de idéias e valores que direcionam comportamentos e ações de quem as consome (LOURO, 2000; SABAT, 2001). Apesar dos artigos publicados, no período em destaque, apontarem nesta perspectiva, a natureza das representações de gênero apresentadas não são apenas expressas nos textos. Isso é evidente quando analisamos a ilustração que acompanha o artigo "As Revoluções da Guerra – As novas profissões das mulheres inglezas”: uma foto de dois homens em pé ao lado de um sentado, apesar de não existir nenhuma menção da ilustração no texto as funções que eles estavam desempenhando, enquanto outros estavam no campo de batalha, fica evidente para os(as) leituras e permitem identificá-los como o diplomata, o líder político e o chefe militar. Desta sorte, HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 55 é notável como os estereótipos de gênero ordenaram o mundo em guerra: as mulheres davam o suporte necessário para que eles permanecessem nos campos de batalha de várias maneiras, isto é, cuidando dos feridos, levando alimentação ou mesmo assumido seus postos, enquanto que aqueles que não iam para o campo de batalha ficavam na área de estratégia militar, política e na diplomacia - articulando o futuro. O texto de Anna de Almeida Soares Junquilho e as notícias de jornais mencionadas suscitam reflexões acerca das influências que reformulações das atividades femininas nos países em guerra podem ter causado no comportamento das brasileiras e baianas, a exemplo da formação e exercício profissional em atividades tradicionalmente definidas como masculinas; isto demanda que investigações mais aprofundadas sejam ainda realizadas. Esta idéia, no entanto, se fortalece quando analisamos a explicação que Ferraro (1944) construiu para a presença feminina no espaço público soteropolitano na década de 1940, não só nas faculdades, mas também no mercado de trabalho. Ela atribui tal fenômeno, também, a reformulação de comportamentos ocasionada pelas duas guerras mundiais. Aquele velho conceito que predominou no Oriente de que a mulher letrada não obedece nem quer trabalhar e que se estendeu no Ocidente permanecendo ainda hoje petrificado no pensamento de muitos homens, vai desaparecendo tal o Niágara de fatos que se tem desencadeado, arrastando aquelas velhas tradições, fazendo delas pedaços de pensamentos que a correnteza leva. Fatos esses que são trabalhos intelectuais e práticos realizados pela mulher agindo com eficiência e reagindo muito bem ao grande reativo psicológico que é a guerra. Trabalhos esses que tem merecido considerações elogiosas de intelectuais de valor. (FERRARO, 1944). A despeito do peso da argumentação supra citada, é evidentemente que os exercícios profissionais eram perpassados pela classe, associada à raça/etnia; ou seja, as damas baianas não estavam ou não iriam exercer atividades não condizentes com a sua posição social. Elas se dirigiam para HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 56 as profissões de prestigio que dessem ou sedimentassem o status quo e, talvez, por isto optaram pelos cursos da Faculdade de Medicina da Bahia. È possível que a combinação de todos esses fatores tenham contribuído para o aumento da presença das baianas da classe média e da elite nos cursos da Faculdade de Medicina da Bahia. Assim, diante do exposto considero que a elevação do número de mulheres nos cursos superiores da Faculdade de Medicina da Bahia a partir de 1920, encontra-se relacionada com a divulgação das idéias feministas, em um primeiro momento, e depois, precisamente a partir da década de 1930, com a atuação das filias da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, através das ações realizadas pela União Universitária e a Ala Moça, uma vez que em todos os estados de origem das alunas havia uma filial e muitas delas faziam parte dessas instituições. Não podemos ignorar, no entanto, a influência das novas relações de trabalho que foram sendo instituídas onde a presença de mulheres brancas não pobres tornou-se mais evidente. CORPUS DOCUMENTAL A MULHER nos Estados. In.: Jornal Cidade do Salvador. Salvador, 11/02/1899. [Biblioteca Pública do Estado da Bahia. Secção de Periódicos Raros] AS MULHERES médicas. In.: Gazeta Médica da Bahia. Salvador, março de 1901, Ano XXXII, n. 9. 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No campo do saber histórico, tal tema ganhou predileção entre os pesquisadores adeptos da chamada Escola dos Annales, em especial, com a terceira geração, consagrando-se com a publicação da obra de Philippe Ariès História Social da Criança e da Família (1960). No Brasil, observa-se um crescente interesse pela história da infância, evidenciado pelos inúmeros os trabalhos acadêmicos desenvolvidos que abordam essa temática2, contudo em Sergipe esse campo do saber desenvolve-se timidamente3. 1 Mestre em História, coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Cultural (GEPESHC), professora Assistente da Universidade de Pernambuco/Campus Petrolina, Doutoranda em História pela Universidade Federal da Bahia. 2 A historiadora Sylvia Arend fez um breve balanço sobre o crescimento deste campo de pesquisa no Brasil. AREND, Sylvia. “Por uma história da infância no Brasil: desafios e perspectivas”. In: MIRANDA & VASCONCELOS (Org.). História da Infância em Pernambuco. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007, p. 1928. 3 Entre as monografias de graduação em História, encontramos apenas três trabalhos que abordam a criança enquanto agente histórico, duas enfocando o trabalho infantil e outra sobre a educação de menores abandonados. BISPO, Alessandra Barbosa. A educação dos menores abandonados em Sergipe: a Cidade de Menores Getúlio Vargas (1939 – 1954). São Cristóvão, 2003, 64 f. Monografia (Graduação em História); JESUS, Luis Carlos de. Trabalho Infantil: o labor de crianças nas olarias e a inserção do PETI no povoado Sapé em Nossa Senhora das Dores 1998 a 2001. Nossa Senhora da Glória, 2002 60 f. Monografia (Graduação em História) e REIS, Cândida Angélica Monteiro Santos. A erradicação do trabalho infantil em Lagarto nos anos 90. Lagarto, 2002, 81 f. Monografia (Graduação em História). Do mesmo modo, observarmos a produção do Núcleo de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal de Sergipe, percebemos que a infância foi tema de quatro dissertações de mestrado. BISPO, Alessandra Barbosa. A educação da infância pobre em Sergipe: a cidade de Menores "Getúlio Vargas" (1942-1974). São Cristóvão, SE, 2007. 139 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Sergipe; LEAL, Rita de Cássia Dias. O primeiro jardim de infância de Sergipe: contribuição ao estudo da educação infantil (1932-1942). 2004. 122 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Sergipe; NERY, Marco Arlindo Amorim Melo. A regeneração da infância pobre sergipana no início do século XX: o patronato agrícola de Sergipe e suas práticas educativas. São Cristóvão, SE, 2006. 167 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Sergipe; SILVA, Nelly Monteiro Santos. Pater Incertus, Mater Certa: as práticas de assoldadamento em Estância e sua contribuição para a História da HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 61 Ao estudarmos os diversos aspectos da vivência familiar dos moradores da cidade de Estância/SE durante o século XIX4, percebemos a preocupação do Estado, assim como das famílias com a educação das crianças. Destarte, nesse artigo trataremos de analisar os significados atribuídos pelo Estado, família e tutores à educação dos órfãos estancianos. Para isso, nos valemos dos pressupostos teóricos e metodológicos da História Social, buscando compreender através dos filtros da documentação – inventários post-mortem, testamentos, autos de contas e ação de tutela, como a escolarização dessas crianças foi pensada e executada na Estância Oitocentista, revelando assim as distinções de classe, gênero e raça5. 1- Infância tutelada Os estudos historiográficos acerca da criança apontam que o conceito de infância foi sendo construído historicamente, moldando-se às normas da família burguesa6. Para esta família, a criança era considerada um ser em formação, necessitando de cuidados especiais, sejam eles materiais e afetivos, os quais deveriam ser garantidos em primeira instância pela família e na sua ausência, pelo Estado, até que o infante atingisse a vida adulta. No Oitocentos brasileiro, a noção adotada de infância, diferia de acordo com o sexo e a condição social do indivíduo, não ficando explícito na legislação os critérios etários para o fim da infância, apesar de estabelecer a idade de 21 anos para a emancipação dos indivíduos7. Entretanto, podemos Educação da Infância em Sergipe. São Cristóvão, SE, 2007. 237 f. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Federal de Sergipe. 4 Tese de doutoramento desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação de História da Universidade Federal da Bahia, intitulada De amores e dissabores: histórias de famílias na Imperial cidade de Estância (1840-1890), sob a orientação da Profª Drª Lígia Bellini. 5 O uso desses documentos, por muito utilizado pela história demográfica, nos permitiu o acompanhamento da trajetória de alguns órfãos; percebermos as teias de relações vivenciadas entre eles com seus tutores e suas famílias, além de observarmos de algumas práticas educativas, a exemplo do ingresso nas aulas de Primeiras Letras, ensino secundário ou aprendizado de um ofício. 6 ARIÉS (1981) afirma que o conceito de infância foi uma invenção da modernidade européia, visto que na Idade Média a criança era tratada como adulto. 7 VENÂNCIO, Renato Pinto. “Os aprendizes da guerra”. In: PRIORE, Mary del. História das Crianças no Brasil.São Paulo: Contexto, 2007, p. 198. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 62 perceber que alguns cuidados aplicados aos infantes nos ajudam a compreender as várias fases da infância. Ao estudar a vida das crianças de elite durante o império, Ana Maria Mauad, classificou as fases da infância e considerou sendo a primeira infância a fase correspondente aos primeiros anos de vida até 3 ou 4 anos, o que equivale o fim da amamentação; a segunda fase – puerícia está relacionada aos atributos físicos: fala, dentição, desenvolvimento de caracteres secundários femininos e masculinos, tamanho etc. e meninice, período em que as crianças passavam a desenvolver algumas pequenas atividades, estudavam ou aprendiam algum ofício8. Para nortear nossa discussão, optamos por considerar infância a fase etária do indivíduo desde o seu nascimento até a sua maioridade, entretanto, procuramos entender no conjunto das experiências desses indivíduos os significados dessa etapa da vida.9 Podemos iniciar nossa observação sobre os significados da infância no Brasil oitocentista, ao analisarmos as Ordenações Filipinas - conjunto de leis que vigoraram no Brasil desde 1603 até 1916(em especial a parte cível), na qual o Estado Português, por conseguinte, o Império Brasileiro, atestou sua preocupação com o amparo das crianças. Segundo essa legislação, o pai tinha poder sobre os filhos – o patria potestas – até que eles atingissem a maioridade10, ou seja, 21 anos, se casassem ou se emancipassem por iniciativa paterna. Todavia, com a morte do pai, os filhos menores de 21 anos passariam a condição de órfãos, necessitando de serem amparados por um tutor, pessoa idônea nomeada pelo juiz de órfãos11, que passaria a cuidar de sua educação12 e da administração de seus bens até que atingissem sua emancipação.13 8 MAUAD, Ana Maria. “A vida das crianças de elite durante o Império”. In: PRIORE, História das Crianças no Brasil.São Paulo: Contexto, 2007, p. 141-143. 9 Para isso nos valemos dos pressupostos teóricos de Geertz e Thompson, os quais nos alerta para os múltiplos significados atribuídos a uma ação, seja pelos agentes como pelos observadores. GEERTZ, Clifford. “Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 13-41. THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2001. “O significado de um ritual só pode ser interpretado quando as fontes deixam de ser olhadas como fragmento folclórico, uma sobrevivência, e são inseridas no seu contexto total”. (p. 238). 10 Pela Lei de 31 de outubro de 1831 a maioridade foi reduzida de 25 anos para 21 anos. 11 De acordo com as Ordenações Filipinas eram atribuídas ao Juiz de Órfãos as seguintes funções: 1º Cuidar dos órfãos, de seus bens e rendas; 2º fazer um levantamento do número de órfãos do lugar; 3º elaborar com o HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 63 No caso do falecimento da mãe e permanência do pai, o infante com idade inferior a 21 anos não era considerado juridicamente órfão e sim menor, ou seja, a condição de órfão estava atrelada à ausência do pai. Nessas condições, o pai continuava a cuidar dos menores, administraria seus bens, o que por sua vez, dispensava a necessidade de nomeação de um tutor. Ainda de acordo com essa legislação, havia três tipos de tutela: a testamentária, quando o pai antes de falecer já havia designado em seu testamento o nome da pessoa indicada para zelar a criança; a legítima, utilizada quando existiam pessoas ligadas ao órfão, privilegiando os parentes paternos mais próximos; e a dativa , quando o juiz dos órfãos nomeava um tutor externo aos laços de parentesco sanguíneo, geralmente pela inexistência ou incapacidade dos parentes. Apesar dessas recomendações, as mães ou avós podiam desempenhar a função de tutora, desde que obtivessem confirmação junto às autoridades competentes e permanecessem no estado de viúva honesta.14 Ao voltarmos o nosso olhar para as vivências familiares dos moradores da cidade de Estância/SE15 durante o século XIX, verificamos no corpus documental pesquisado a constante presença das crianças, seja em escrivão dos órfãos, um livro onde constaria o nome de cada órfão, filiação, idade, local de moradia, com quem mora, tutor e curador, bem como fazer o inventário de seus bens móveis e de raiz e o estado que se encontram; 4º fazer que os culpados aos bens dos órfãos paguem por seus crimes. 5º inventariar os bens dos defuntos que deixarem filhos menores de 21 anos; 6º avaliar, com o escrivão dos órfãos menores e outras pessoas juramentadas, os bens pertencentes aos órfãos que estiverem sem processo de inventário ou partilha; 7º entregar os órfãos e desamparados a pessoas capazes de criá-los, determinando que estas recebam o necessário ao seu sustento; 8º fazer pregão dos órfãos maiores de sete anos, que forem dados por soldada; 9º garantir o necessário ao mantimento, o vestuário, o calçado e tudo mais dos órfãos que não forem de soldada, mandando registrar os gastos no inventário; 10º mandar ensinar a ler e escrever os órfãos que tiverem qualidade para isto, até a idade de 12 anos; 11º fiscalizar a ação dos tutores e curadores em relação aos bens dos órfãos; 12º conceder aos órfãos licença para casarem e cartas de suprimento de idade; 13º depositar o dinheiro dos órfãos numa arca com três chaves que ficaram com o juiz dos órfãos, depositário e o escrivão dos órfãos; 14º ter jurisdição em todos os feitos civis em que os órfãos estiverem envolvidos, enquanto não forem emancipados ou casados; 15º ter jurisdição sobe os feitos civis movidos pelos órfãos contra os que administrarem mal seus bens; 16º fazer a partilha dos bens dos órfãos. (Livro I Título LXXXVIII) 12 Tomaremos a Educação como o conjunto de experiências voltadas para instruir, considerando as formas institucionalizadas ou não - seja a que se processe nos espaços escolares, nas oficinas de artesãos ou lavouras. Cf. GONDRA & SCHUELER, 2008:12. 13 Ordenações Filipinas (Livro I Título LXXXVIII § 6) 14 Ordenações Filipinas (Livro IV Título CII § 1-7) 15 A cidade de Estância, localizada na mata-sul da Província de Sergipe, construiu sua economia pautada na agro-exportação de açúcar e no comércio de gêneros trazidos da Bahia. Em meados do Oitocentos tornou-se a mais próspera cidade da Província, contando com 3.231 fogos, enquanto São Cristóvão, então capital da Província possuía 3.624 fogos. (FREIRE, 1977, p. 305) HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 64 situações que atestem afetividade – em especial nos testamentos; cuidados com sua educação, conforme consta nos autos de contas dos tutores; ou mesmo em situações conflituosas, como na disputa pela tutela do órfão; em episódios de violência, registrados nos processos-crimes. Para esse artigo, optamos por utilizar apenas documentos que possibilitem compreender a que tipo de educação os órfãos estancianos tiveram acesso, por isso investigamos o emaranhado de relações a qual estavam envolvidos, a exemplo de quem eram seus pais, seus tutores e parentes mais próximos, considerando os argumentos utilizados pelos tutores no ato de habilitação. Ao analisarmos 548 inventários post-mortem dos moradores da cidade de Estância entre os anos de 1840 e1890, identificarmos a presença de 538 filhos-herdeiros menores de 21 anos, sendo que 60% destes estavam enquadrados juridicamente na categoria órfãos e deste modo, necessitavam de tutores16. Após a identificação dos órfãos estancianos, coligimos as informações prestadas pelos documentos com as prescrições do Código Filipino, a fim de mensurarmos os tipos de tutorias predominantes em Estância e assim percebermos as relações entre pais, tutores e órfãos. Já mencionamos que um dos tipos de tutoria reconhecidos pelas Ordenações Filipinas era a indicada em testamento, na qual, geralmente, o pai nomeava alguém de sua confiança para ser o tutor de seu filho. Nesse tipo de tutoria, a vontade do pai expressa em testamento era respeitada pelo juiz de órfãos, que homologaria o quanto antes a tutoria do órfão, exceto nos casos de filhos naturais ou nomeação feita pelas mães em testamento.17 Entre os estancianos não era comum o ato de elaborar testamentos. Foramnos legados, dessa época, apenas 18 exemplares desse ato jurídico tão rico em detalhes sobre as impressões dos autores sobre suas vivências. Destes, somente em 4, os pais nomearam tutores para cuidar de seus filhos. Vale salientar, que todos os órfãos registrados eram filhos naturais sendo habilitados neste documento. 16 Os outros 40% correspondiam aos menores que estavam sob o domínio da patria potestas. Se algum pai em testamento deixasse tutor ou curador a seu filho natural, e não legítimo, ou a mãe deixasse tutor, ou curador em seu testamento a seus filhos, estas tais tutorias ou curadorias deveriam ser confirmadas pelo Juiz dos Órfãos. Ordenações Filipinas (Livro IV Título CII § 2). 17 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 65 Esses filhos naturais habilitados em testamento - num total de 7, nasceram em sua maioria quando os pais estavam solteiros, a exemplo da órfã Laurentina Merenciana das Flores, filha habilitada no testamento do lavrador Francisco Xavier Soares, o qual reconheceu que em tempos de solteirice teve “relações de amizade ilícita com Bárbara Maria, por mim teúda e manteúda e alimentada, com a qual poderia casar, visto não ter impedimento algum, mas não o quis”. Trechos desse testamento nos revelam alguns cuidados do pai para com sua única filha, a exemplo de separar Laurentina, com apenas 5 meses de nascida, de sua mãe e depositála na casa de D. Isabel Maria das Flores Soares com o pretexto de melhor educá-la. Ao registrar suas últimas vontades para a vida presente não escondeu o apreço que nutria pela pequenina, visto que solicitou a seu amigo Joaquim Moreira de Magalhães que cuidasse da administração dos bens da órfã e que a conservasse em companhia da dita senhora Isabel.18 As tutorias denominadas de legítimas - aquelas exercidas por parentes próximos, os quais sendo convocados pelo juiz de órfãos não poderiam recusar a tutoria, correspondia a 33% das tutelas concedidas em Estância, distribuídas entre avôs, tios, irmãos, cunhados e padrinhos do órfão. Destarte, pelos idos de 1883, o lavrador Francisco de Aquino Cardoso, recebeu do juiz de órfãos, Dr. Jucundino Vicente de Souza, a responsabilidade de cuidar e educar suas sobrinhas Jovina (18 anos), Herendina (13 anos) e Ana (9 anos), filhas legítimas de sua irmã Josefa da Silva Cardoso com João Cardoso da Silva Barreto. Seguindo as recomendações da legislação19, o juiz realizou o inventário post-mortem dos bens de D. Josefa da Silva Cardoso20, os quais somavam 1:060$000 distribuídos em poucos trastes do lar e duas escravas (entre elas uma que estava fugida havia mais de 4 anos). Ao se coligir a situação material da família, atestada no arrolamento dos bens com a estrutura material dos moradores da cidade de Estância, pode-se concluir que esta família não gozava de abastança econômica, o que se agravaria ainda mais com a 18 AGJS - Translado do testamento de Francisco Xavier Soares, caixa 530 – 1852. Ordenações Filipinas (Livro I Título LXXXVIII§ 4). 20 AGJS - Inventário de Josefa da Silva Cardoso, caixa 566 – 1883. 19 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 66 partilha dos bens entre as outras herdeiras maiores - Carolina e Zerefina e consequentemente os parcos recursos restantes não garantiriam o sustento das órfãs. Ao assumirem a tutela dos órfãos, os tutores assinavam o Termo de Tutela, no qual se comprometiam a alimentar, cuidar e educar os órfãos, tanto nas Primeiras Letras como na doutrina cristã. Certamente foi uma tarefa difícil para muitos tutores, em especial para aqueles detentores de parcos recursos, a exemplo de Francisco de Aquino Cardoso. Em sua primeira prestação de contas ao juízo de órfãos da comarca de Estância, comprovou o apreço que tivera nos tratos com suas sobrinhas, salientando que Herendina havia contraído enlace matrimonial com o negociante João Severiano de Souza; Jovina já se encontrava emancipada e Ana, com 11 anos, continuava a viver em sua companhia, aprendendo com dificuldades as Primeiras Letras, porém mostrava-se apta na doutrina cristã e nas prendas domésticas. Por meio desse relato, podemos inferir que para as órfãs sem parcinômia, o caminho para uma vida tranquila seria encontrar um bom consórcio, parece que foi o caso de Herendina e talvez por isso, o entusiasmo do tio em preocupa-se com a instrução da pequena Ana em prendas domésticas, bem como em sua formação cristã. O desvelo com a educação da órfã Ana mostrou-se mais evidenciado quando ela foi levada ocultamente da casa do tutor, por sua irmã Carolina – mulher solteira e de costumes repreensíveis. Ao analisar o conjunto dos argumentos utilizados pelo tutor, para que o juiz de órfãos restituísse a criança ao seu lar, nos perguntamos quais seriam esses costumes tão perigos para a formação moral da pequenina? Para a sociedade oitocentista, uma mulher que morasse sozinha e que recebesse em sua residência um homem, já era um indício de conduta perigosa. Neste caso, quem sabe se o fato de Carolina não ser casada poderia expor sua irmã a uma perdição ou mesmo ela poderia ser amásia de um homem casado ou mesmo te uma “vida libertina”, ainda não conseguimos perseguir a história de Carolina, porém sabemos que seu tio tão logo registrou a denúncia de rapto da menor, conseguiu resgatá-la. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 67 No cômputo das tutorias, ainda temos aquelas exercidas pelas mães, as quais só poderiam gozar desse direito com a permissão do Juiz de órfãos. Para isso, deveriam comprovar que viviam honestamente e renunciasse diante do juiz o beneficio da Lei do Velleano (não contrair novas núpcias), contudo, caso viessem a casar-se novamente a custódia dos órfãos passaria para outro parente21. Em Estância, esse tipo de tutoria corresponde a 38% das Ações de Tutela, ou seja, a maioria dos órfãos estancianos permaneceu aos cuidados da mãe. Destarte, considerando que ninguém melhor que ela, a mãe, cuidaria e defenderia os interesses dos seus filhos, D. Josefa Maria de Jesus, logo após o falecimento de seu esposo, o padeiro Francisco José Rodrigues, solicitou ao juiz de órfãos, Dr. Eduardo Gomes Ferreira Veloso, a tutoria dos seus filhos: Jesuíno (19 anos), Pedro (18 anos), José (15 anos), Josefa (13 anos) e Etelvina (12 anos), assim tratou de assinar a renúncia do benefício de Senatus Consultum Vellano. Dois anos após ter assumido a tutoria dos órfãos declarou na prestação de contas que “todos os órfãos moravam em sua companhia, já sabiam ler e escrever, bem como a doutrina cristã; Pedro e José sabiam latim e francês e todos trabalham com ela na padaria, sendo auxiliados pelos escravos”22. A partir desse exemplo, podemos perceber que o universo infantil estanciano não estava tão somente relacionado às andanças pela Rua Baixa, aos banhos de rio, aos passeios na Ponte do Bonfim e a colheita de araçá23, mas também aos ofícios que garantissem a subsistência da família. Nesse caso, a permanência dos órfãos junto à mãe possibilitou a manutenção do funcionamento da padaria, visto que os 5 escravos legados por ocasião do inventário post-mortem do seu esposo, certamente não responderiam positivamente à demanda econômica. O espaço da padaria – espaço do trabalho, também se configurou num lugar de sociabilização familiar e aprendizado, que englobava órfãos, cativos e clientes. 21 Ordenações Filipinas (Livro I Título LXXII § 37 e Livro IV Título CII § 3) 22 AGJS - Inventário de Francisco José Rodrigues, caixa 563 – 1876. AMADO, Gilberto. História da minha infância. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo Teixeira, 1999. 23 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 68 Os inventários post-mortem nos revelam outras nuances em relação à vivência das crianças, uma dela era evidenciada na tutela de órfãos pobres, uma vez que não eram desejados nem pelos parentes próximos, muito menos por tutores externos ao seio familiar. Na tentativa de evitar a exclusão dos órfãos pobres, o Código Filipino estabelecia a impossibilidade de recusa da tutela, sendo o rechaçador sujeito a penalidades judiciais, caso não apresentasse as devidas justificativas.24 Diante de algumas situações os candidatos a tutor poderiam ser liberados do seu chamado, entre elas: ser portador de uma enfermidade grave; ter mais de cinco filhos legítimos ou netos em seu poder; exercer alguma função no serviço público como: desembargador, corregedor, ouvidor, juiz, vereador, oficiais, procurador, escrivão, inquiridor, carcereiro, porteiro e caminheiros, védor da fazenda, contador, tesoureiro, almoxarife e todos os maiores de 70 anos. A utilização de tais argumentos fez parte do enredo da história de muitos órfãos estancianos, os quais em sua maioria eram pobres e foram rejeitados por seus familiares. Valendo-se dessa cláusula, D. Ana Maria do Nascimento, viúva de Manoel Francisco dos Santos, de cujo consórcio nasceram 8 filhos, recusou custodiar seus filhos Lina (15 anos), Lucinda (14 anos), Miguel (10 anos) e Manuel (9 anos), sendo convocado seu primogênito para assumir o zelo pelos órfãos. No inventário do seu esposo, ficou evidente a pobreza material compartilhada por aquela família, cujo conjunto dos bens somavam 417$00, distribuídos em 6 bois, 1 carro forrado, 1 roda de mão e uma posse de terras25. Já deliberamos as implicações para as mães que desejassem tutelar os filhos, a principal delas era a renúncia do beneficio da Lei do Velleano. Exposta a situação vivenciada por D. Ana Maria, poderíamos nos questionar se de fato estava doente e com a idade avançada, conforme argumentou; ou se utilizou esses argumentos para se livrar da obrigação de cuidar dos órfãos, ao tempo que pensava em contrair nova núpcias ou vendo-se em 24 Se algum parente mais chegado se escusar de ser tutor, não herdará os bens do dito órfão, se morrer antes de haver quatorze anos, se for varão e antes de doze se for fêmea. Ordenações Filipinas (Livro 4 Título CII § 6). Ainda segundo as Ordenações Filipinas, o exercício da Tutela era proibido aos menores de 25 anos, aos escravos, aos religiosos, aos loucos, aos infantes, aos doentes incuráveis, aos pobres e padrastos dos órfãos, visto que para isso deveriam solicitar licença especial. 25 AGJS - Inventário de Manoel Francisco dos Santos, caixa 544 – 1860. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 69 meio à escassez material pensou que outro tutor poderia oferecer melhores condições de criação aos seus filhos. Por hora, não sabemos ao certo o que D. Ana Maria pensou ao recusar a tutela dos seus filhos. Em outro episódio da experiência da família estanciana no século XIX, constatamos a disputa pela tutela de um órfão, Joaquim (14 anos), habilitado em testamento por seu pai Agostinho Ramos Ferreira26, fruto do seu relacionamento com Joaquina Rosa do Sacramento, em tempo de viuvez. Apesar da carência material atestada no inventário post-mortem do Sr. Agostinho, no qual foram arroladas quinhões em dois sítios e uma casa já arruinada na Rua do Rosário (centro comercial da cidade de Estância), bens que somaram 249$800, a serem partilhados entre os herdeiros legítimos: Maria, Geraldo, Constantila e Nonata e o órfão legitimado Joaquim. Talvez, a última vontade do patriarca, expressa em seu testamento -“sendo minha livre e espontânea vontade que ele concorra com os legítimos na herança paterna dos bens havidos e por haver, desejo ainda que a morada de casa na Rua do Rosário faça parte da legítima de Joaquim”, tenda despertado o interesse de Geraldo Ramos Ferreira, irmão do órfão, em solicitar a sua tutela, visto que o menor sempre morou com a mãe. Na disputa confirmassem sua judicial, conduta D. de Joaquina, reuniu mulher honesta27 testemunhas e seu que advogado argumentou: “havendo a suplicante alimentado o seu filho até a idade de que já conta de 14 anos, trazendo-o decentemente na Aula Pública em mesma cidade com seus recursos, é uma prova exuberante de que ninguém mais do que a suplicante poderá concorrer para a prosperidade dele.” Os argumentos usados pela mãe foram aceitos pelo juiz de órfão que lhe concedeu a tutela de Joaquim. Outro tipo de tutela prevista nas Ordenações seria quando o órfão, não tivesse parentes próximos capazes de zelar por sua formação, o juiz de órfãos deveria nomear, entre os moradores da Comarca, alguém que pudesse 26 AGJS - Inventário de Agostinho Ramos Ferreira caixa 569 – 1886. 27 Para os contemporâneos do Oitocentos, mulher honesta seria a mulher não mal falada; aquela discreta, recatada no falar e no vestir. Cf. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São Paulo: Edusp, 1984, p. 71. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 70 suprir as carências materiais, afetivas e espirituais do órfão. Esses tipos de tutorias eram denominadas de Dativas e em Estância corresponderam a 28% do total da ações de tutela, distribuídas entre empregados públicos, professores, padres, lavradores e negociantes. Assim, o próspero negociante Aynarim Pereira Leite, que gozava de prestígio na cidade de Estância, mesmo após os escândalos suscitados com o processo de divórcio canônico impetrado por sua esposa Guilhermina Gomes de Sousa28, foi escolhido para cuidar dos órfãos Maximiniano (18 anos) e Francisco (9 anos), filhos de Pedro Ferreira do Nascimento e Josefa Maria do Nascimento29. Apesar de ter recebido a incumbência de zelar pelo bem-estar dos órfãos, o Sr. Aynarim demonstrou em sua a primeira prestação de contas ao Juízo dos Órfãos que apenas administrava os bens dos órfãos, visto que: Maximiniano, já de 20 anos, mora na casa herdada – situada na Rua Riachuelo e trabalha no seu sítio de onde tira os meios para sua pouca subsistência, enquanto o menor Francisco, 11 anos, vive em casa do seu padrinho, José Antônio Leiturga, que a sua conta o educa e alimenta, pelo que é merecedor de justos elogios, tendo também em sua casa a escrava Maria para tratar e cuidar do menor30. A partir da análise de outras prestações de contas de órfãos, podemos inferir que a tutoria dativa não correspondia obrigatoriamente ao convívio órfão/tutor, visto que muitos órfãos eram autorizados pelos tutores a morar com suas mães ou padrinhos, sendo esses tutores responsáveis pela administração dos bens, bem como em fiscalizar se os órfãos estavam frequentando as aulas de Primeiras Letras ou aprendendo algum ofício. 2- A educação dos órfãos na Estância Oitocentista O Brasil oitocentista foi palco de inúmeras transformações econômicas, políticas, sociais que conduziram a rupturas nas estruturas sociais, a 28 Arquivo da Cúria Metropolitana da Bahia - Libelo Cível de Ação de Divórcio nº 01, Caixa 512 DI-31, 1880. AGJS - Inventário de Josefa Maria do Nascimento, caixa 565 – 1880. 30 AGJS – Prestação de contas dos órfãos, f. 18, caixa 565 – 1880 29 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 71 exemplo do processo de abolição da escravatura, o que refletiu no comportamento do Estado frente às práticas educativas. A proliferação das idéias liberais, desde os tempos coloniais, não só contribuíram para afirmar nossa emancipação política (1822), mas alavancou uma série de mudanças na estrutura educacional brasileira, que visavam inserir o Brasil no ideário civilizador do século XIX, bem como capacitar os filhos da então nascente elite brasileira para ocuparem os cargos administrativos, aos poucos deixados pelos portugueses. Deve-se ainda, levar em consideração que foi nesse período que o Brasil se firmou como nação, fase de elaboração de novas identidades tanto individuais, quanto coletivas. Porquanto, dentro dessa realidade, foram visíveis também variações nas relações entre crianças e adultos, conseqüência dos últimos acontecimentos naquela sociedade civil. Nas palavras de Louro (2000): Proclamada a Independência, parecia haver, ao menos como discurso oficial, a necessidade de construir uma imagem do país que afastasse seu caráter marcadamente colonial, atrasado, inculto e primitivo. É bem verdade que os mesmos homens e grupos sociais continuavam garantindo suas posições estratégicas nos jogos de poder da sociedade. No entanto, talvez fossem agora necessários outros dispositivos e técnicas que apresentassem as práticas sociais transformadas, ainda que muitas transformações fossem apenas aparentes31. Durante esse período, tornar todo um povo civilizado teria sido parte de uma dinâmica funcional para a afirmação de um governo representativo, em que o equilíbrio de poderes e sua legitimidade se fundamentassem essencialmente na formação da opinião pública, na produção do “nósimagem” nacional ou de um padrão nacional de comportamento.32 Nesse momento, alguns setores das elites perceberam que a civilização não era apenas um estado, mas um processo que deveria prosseguir. Assim, 31 LOURO, Guacira Lopes. “Mulheres na sala de aula”. In: PRIORE, Mary del. (org.). História das mulheres no Brasil. 3ª ed. – São Paulo: Contexto, 2000, p. 443. 32 VEIGA, Cynthia Greive. “Pensando com Elias as relações entre Sociologia e História da Educação”. In: FARIA FILHO, Luciano Mendes de (org.). Pensadores sociais e História da Educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2005, p. 151. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 72 o termo ‘civilização’ passou a referir-se a um padrão universal de moral e costumes e a escola do século XIX configurou-se como o lócus para a disciplinarização e higienização social.33 Desde o final do século XVIII a capitania subalterna de Sergipe Del Rei dava sinais de prosperidade, gêneros como fumo, farinha de mandioca, açúcar, derivados do gado, sal, tucum e arroz faziam parte da nossa pauta de exportação34, o número de habitantes ultrapassava 6.265, compreendendo brancos, pardos, pretos e índios e o desejo por emancipação dos laços de dependência política com a capitania da Bahia crescia. Contrapondo-se a esse cenário de prosperidade, a situação educacional assemelhava-se à experimentada pelo restante da Colônia, faltavam professores capacitados, o ensino das Primeiras Letras restringia-se a cadeiras na capital – São Cristóvão e na próspera vila de Santa Luzia.35 Por meio da Carta Magna de 1824, item 32 artigo 178, a educação primária tornou-se gratuita a todos os cidadãos, sendo três anos mais tarde, complementado pelo Decreto-Lei de 15/10/1827, o qual estabeleceu que deveria ser oferecido o ensino de Primeiras Letras em todas as cidades, vilas e lugares mais populosos do país. Nesse tempo, a população sergipana estava assistida com dezoito cadeiras de primeiras letras e oito de aulas de gramática latina, número deveras insuficiente para atender a demanda da Província. 36 Ainda acompanhando as inovações trazidas pela onda liberal, tivemos a inserção das mulheres na vida pública. Desse modo, em 1831, visando atender os apelos da elite sergipana, o governo provincial resolveu criar na capital – São Cristóvão, e nas vilas de Estância, Propriá e Laranjeiras a cadeira pública destinada ao sexo feminino. Assim, temos que em 1834 Sergipe contava com 160.452 habitantes, sendo que nas escolas de Primeiras Letras estavam matriculados apenas 25 meninos e 4 meninas. 33 Para discussão sobre o papel da escola na modernidade ver ÁRIES, Philippe. “A vida Escolástica” In: História social da Criança e da família. São Paulo: LTC, 2 edição, 1981, p. 107-129. 34 NUNES, Maria Thetis. Sergipe Colonial I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 145. 35 NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz & Terra/Aracaju: Secretaria do Estado da Educação/UFS, 1984, p. 29. 36 NUNES História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz & Terra/Aracaju: Secretaria do Estado da Educação/UFS, 1984, p. 34. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 73 Segundo a historiadora Maria Thétis Nunes,37o pequeno número de alunos matriculados nas aulas de Primeiras Letras em Sergipe poderia ser explicado pelas condições ofertadas pela Província, entre elas: a improvisação de professores, assim como os baixos salários a eles pagos e a inexistência de ensino mútuo. Entretanto, o nosso olhar sobre a documentação da cidade de Estância nos permite acrescentar outros motivos. Com o principalmente desenvolvimento da economia econômico açucareira, da Província, percebemos que advindo o quadro educacional em Sergipe também prosperou. Em 1860, foram registradas 66 escolas, das quais 23 eram destinadas à educação feminina, somando 743 alunas e 43 escolas masculinas com 1.893 alunos38. Assim, a próspera cidade de Estância – a mais populosa e comerciante de toda a Província de Sergipe, que desde o final do século XVIII já possuía a cadeira de Latim, não tardou por consolidar o ensino primário como atividade necessária aos seus infantes. Contando com 01(uma) escola pública e 02 (duas) escolas particulares de Primeiras Letras, o governo provincial autorizou em 1830 a implantação do ensino secundário nesta cidade com as cadeiras de Filosofia, Retórica, Poética e Francês e um ano depois foi criada a cadeira pública de Primeiras Letras destinadas ao ensino feminino. Esse ambiente cultural tornou-se propício para surgimento do primeiro jornal sergipano, o Recopilador Sergipano (1833), bem como a consolidação da imprensa estanciana como veículo de circulação de idéias. Todavia, em uma sociedade profundamente marcada pelo privilégio enquanto diferenciador social, a educação passou a ser um elemento de distinção social. Aos homens livres e pobres era permitido freqüentar as aulas de Primeiras Letras, ou seja, poderiam aprender a ler, escrever e contar, além de aprenderem a doutrina cristã e por vezes um ofício, enquanto os filhos da elite estanciana poderiam cursar o ensino secundário a fim de se preparar para os concursos destinados ao ingresso nas faculdades. 37 NUNES, História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz & Terra/Aracaju: Secretaria do Estado da Educação/UFS, 1984, p. 55. 38 NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II:1840-1889. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p. 63. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 74 O discurso jurídico do Brasil oitocentista assegura o acesso aos bancos escolares a todas as crianças – excetuando as escravas. Essa legislação indica a preocupação do Estado em oferecer uma educação letrada aos seus súditos, entretanto, observamos que diversos fatores influenciaram no aprendizado dos órfãos estancianos. Percebemos, por meio dos filtros da documentação consultada, que o sentido de instruir os órfãos ganhava significações diferenciadas a depender do segmento social envolvido, quer seja entre os senhores de engenho, negociantes, descendentes de africanos, filhos de clérigos, europeus residentes no Brasil etc. Segundo Chartier, as representações sobre o mundo social não são vazias de significados, não são inocentes, estão comungadas a interesses de classes. Assim, “as representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelo interesses do grupo que as forjam”. 39 Nesse contexto, quais os significados atribuídos pelos estancianos as práticas educativas? Como as famílias e os tutores em suas vivências direcionaram as experiências educacionais dos órfãos? Como os discursos e práticas foram se constituindo em interesses de classe40? Para essas inquietações, analisaremos alguns casos, talvez os mais recorrentes, buscando, quiçá, revelar as diferenças. Para analisarmos as experiências educacionais dos órfãos, considerando a categoria analítica classe, utilizarmos como estratégia de investigação os nomes dos pais e tutores, assim conseguimos identificar o lugar que o sujeito ocupava no mercado, na produção, na vida política e econômica.41 Deste modo, a origem genealógica da família do infante, nos auxiliou a identificar quais as teias de relacionamentos que envolviam os órfãos que 39 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro:Difel/Bertrand, 1988. p. 17. 40 Para a discussão sobre a categoria analítica Classe, nos valemos das concepções de Thompson (2001: 227281). Segundo esse historiador, Classe não é uma categoria estática; ela está em constante construção, utilizando-se de não somente de influências econômicas, mas especialmente, de aspectos culturais. Desse Modo, “as pessoas se vêem numa sociedade estruturada de um certo modo, suportam a exploração, identificam os nós dos interesses antagônicos, debatem-se em torno desses mesmos nós e, no curso de tal processo de luta, descobrem a si mesmas como uma classe.(p. 274) 41 GINZBURG, Carlo. “O nome e o como”. In: A micro-história e outros ensaios. Lisboa/Rio de Janeiro:Difel/Bertrand, 1989. p. 173-174. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 75 frequentavam as aulas públicas de Primeiras Letras, as aulas de latim e francês e os que se dedicavam ao aprendizado de um ofício. Na Estância oitocentista, a riqueza material estava concentrada nas mãos dos negociantes de grosso trato (atacadistas), contudo eles não gozavam de prestígio social. Para conseguirem status social, alguns negociantes recorreram à aquisição de quinhões de engenhos ou passaram a investir na educação, como fator de diferenciação social. Desse modo, Joaquim Moreira de Magalhães42, negociante de grosso trato, profissão herdada de seu pai, casado com D. Emília Barbosa de São Calisto, procurou direcionar a instrução de seus 5 filhos. A leitura atenta do testamento desse patriarca revela a estima que este nutria pelas letras, artes e profissões liberais. Seus filhos, Tobias e João, após concluírem as Primeiras Letras e as aulas de ensino secundário na cidade de Estância, migraram para a cidade da Bahia a fim de ingressarem na Faculdade de Medicina. Já Emília, a única infante do sexo feminino, foi estudar piano e as prendas relacionadas ao seu sexo no Recolhimento do Senhor Bom Jesus dos Perdões, também na capital baiana. Permaneceram em Estância, Joaquim e José, os quais também deveriam seguir o caminho predestinado pelo pai em testamento – ingressar na Faculdade de Medicina da Bahia. Acompanhando a trajetória dos filhos do Sr. Joaquim Moreira de Magalhães, constatamos que 3 seguiram a carreira sonhada pelo pai: Tobias, com apenas 19 anos já era reconhecido pelo seu talento musical, migrando para Gênova concluir seus estudos na área de Música, tornando um talento professor de piano; João e José formaram-se na Faculdade de Medicina da Bahia exercendo sua profissão em várias cidades da província de Sergipe. Quanto a Emília, não sabemos se ela continuou no Recolhimento ou se seguiu o caminho de outras tantas mulheres dessa sociedade, aperfeiçoou na prática os ensinamentos de prendas do seu sexo, tornando-se esposa, mãe e administradora do lar. Por meio desse exemplo, podemos conferir que 42 AGJS – Inventário de Joaquim Moreira de Magalhães, caixa 544 – 1860. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 76 as condições materiais da família Moreira Magalhães possibilitaram o seu ingresso na elite intelectual sergipana43. Entretanto, não só as condições materiais eram determinantes para que os órfãos estancianos ingressassem na escola. O órfão Pedro (10 anos), neto e filho de africanos, mesmo sendo herdeiro de uma fortuna equivalente a 1:017$000, o que corresponderia a uma média fortuna para a sociedade estanciana,44 segundo seu tutor, Francisco Pacheco de Ávila, ele não se adaptaria ao ensino das Primeiras Letras, visto que o órfão: tem desenvolvido um gênio que para ser útil de futuro a si próprio e a sociedade, precisa que seja modificado por uma educação severa e forte, a qual o suplicante não pode dar, [...] que não lhe permitir reprimir os vícios e excessos de um menino travesso e turbulento, o que só um estabelecimento, como o de aprendizes, pode ser devidamente educado.45 O que poderia impedir esse órfão de cursar as aulas de Primeiras Letras juntamente com outras crianças – brancas, filhas da elite estanciana? Seria apenas o seu mau gênio? A resposta pode está associada a sua origem, neto e filho de ex-escravos africanos. A solução apresentada pelo tutor mostrouse consoante com a concepção educacional da época, a qual recomendava o aprendizado de ofícios mecânicos para os membros das categorias menos abastada da sociedade. Desse modo, o ingresso do infante Pedro em uma instituição que domesticasse o seu “mau gênio”, quem sabe herdado pelos seus genitores, seria mais útil a sociedade estanciana, que na época, já se ressentia, em decorrência das medidas abolicionistas, da falta de braços cativos nas lavouras de cana-de-açúcar e nos armazéns. Após autorização do juiz dos órfãos, Pedro foi enviado para a Companhia de Aprendizes, na 43 Grupo de sergipanos que frequentaram as faculdades do Império, as escolas militares e seminários, compondo assim o quadro dirigente no Império. SILVA, Eugênia Andrade da. A formação intelectual da elite sergipana (1822-1889). São Cristóvão, SE, 2004. 120 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Sergipe. 44 SILVA, Sheyla Farias. Riqueza em Movimento: A Construção de Fortunas na Estância Escravocrata (18501888). São Cristóvão, 2002. Monografia (Graduação em História). Universidade Federal de Sergipe, p. 48. 45 AGJS – Inventário de Emílio Ribeiro de Araujo, caixa 549 – 1866. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 77 cidade da Bahia e assim conhecendo o “lugar” destinado pela elite branca para os seus irmãos de cor46. Assim, na própria experiência, os órfãos, descobriram em meio ao acesso/negação a educação institucionalizada, qual o lugar social a eles estava destinado; era nesse momento que elas tomariam consciência do que as une e as separam.47 A preocupação em oferecer ao órfão uma educação não era privilégio do Estado, visto que nos documentos pesquisados verificamos que essa preocupação também era compartilhada por parte das famílias48. Isso se torna mais explícito ao observamos os testamentos dos pais, onde alguns deixavam recomendações concernentes ao trato educacional do órfão. Ao vê-se doente e com a idade avançada, o súdito francês, residente na cidade de Estância, Sr. João Batista Antônio Marcelo Duverdier de Marsilac, registrou em testamento suas últimas vontades, dentre as quais estava à recomendação que seu irmão, morador na vila de Laranjeiras/SE vigiasse a educação do seu único herdeiro, João. Este órfão, filho natural da viúva Isabel Francisca do Nascimento, fora habilitado em testamento, porém era público e notório entre os estancianos sua filiação, visto que morava com o pai desde seu nascimento, gozando de todos as regalias de filho legítimo. Ainda no testamento, Sr. Marsilac especificou o tipo de educação que o órfão deveria receber “tanto em ciências como em línguas estrangeiras e belasartes, seja nesse país ou na Franca, aonde ele meu filho poderá ser mandado o quanto antes para preservá-lo do contágio das paixões deste continente.49” Para tanto, designou seu irmão João Jerônimo, doutor em medicina, para cuidar do órfão na França. Não conseguimos saber, se o órfão João Teófilo Marsilac realizou a vontade de seu pai, seguindo para a Europa, assim se livrando das paixões das proporcionadas pelas terras brasileiras. 46 Para a discussão sobre raça Cf. ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 25. 47 THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2001, p. 227-281. 48 Durante o século XIX foi se consolidando a noção burguesa da família, na qual os genitores deveriam assegurar o bem-estar do infante. 49 AGJS – Translado do testamento de João Batista Antônio Marcelo Duverdier de Marsilac , caixa 540 – 1856. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 78 A crescente penetração das idéias liberais na sociedade brasileira - em especial as idéias relacionadas à “Era dos Talentos”50, como a valorização das profissões liberais e do espírito da razão, associada ao contexto da construção da nação brasileira, bem como de sua elite letrada, teve como consequência uma busca pela educação institucionalizada. Em Estância, as famílias almejavam legar a seus filhos algum tipo de instrução, seja por meio das aulas públicas ou mesmo pela contratação de professores particulares. Entretanto, percebemos que o tipo de instrução aplicada às crianças diferenciava-se em relação ao sexo. Destarte, torna-se fundamental entender como a educação foi direcionada para homens e mulheres na sociedade sergipana na época perquirida. Para isso, utilizaremos o conceito de gênero formulado por Joan Scott (1990), para a qual gênero não se baseia na diferença sexos, mas na diferença construída social e culturalmente para distinguir homens e mulheres, incorporando as relações de poder. Desde 1831, a cidade de Estância contava com a cadeira pública de ensino de Primeiras Letras destinada ao feminino, na qual as meninas aprendiam, além de ler, escrever e contar, “prendas próprias do seu sexo”, tais como: trabalhos com agulhas – prendas de bordar, fazer flores; tocar piano; a doutrina cristã e ensinamentos morais, visando formar uma esposa submissa. O pequeno número de órfãs que foram enviadas as aulas de Primeiras Letras na cidade de Estância, pode ser explicado pela forte presença de valores patriarcalistas nessa sociedade, que contava com o apoio do padre local, o qual costumava comentar em seus discursos: Vossas filhas não necessitam mais de instrução do que de educação; queremos dizer – não devem ser mais letradas que religiosas. E quem há tão insensato que se queira esposar com uma virgem de grande desembaraço, de muito desenvolvimento, virgem muito filosófica?51 50 REMOND, René. “A Idade do Liberalismo”. In: O século XIX. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 49. SOUZA, Domingos Quirino de, Carta Pastoral de D. Quirino de Souza, apud ALMEIDA NETO, Dionísio de. Pelo Império da Virtude: Formação, saberes e práticas de Dom Quirino de Souza (1813-1863). Aracaju: Triunfo, 2007, p. 152. 51 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 79 Em poucos lares estancianos, percebemos o empenho dos tutores em educar as órfãs, a educação restringia em prepará-las para serem boas esposas. Ana Dantas de Magalhães, filha do senhor de engenho, foi educada para ser uma esposa submissa e boa mãe, ainda jovem contraiu núpcias com o negociante Manoel Inácio Pereira de Magalhães, com o qual teve 4 filhos: José, João, Manoel e Ana. Provavelmente, complicações durante o parto a ceifou da convivência e sevícias com seu esposo, que não tardou em contrair segunda núpcias. Segundo as Ordenações Filipinas, cabia naturalmente ao pai cuidar da educação e dos interesses dos menores, entretanto, o avô materno, o senhor de engenho, João Martins dos Reis, ingressou com petição solicitando a tutela dos netos, argumentando que garantiria melhores cuidados que o genitor52. Assim, os netos passaram a estar submetidos a custodia do avô materno. Na prestação de contas, constam as notas que comprovam os gastos com a manutenção dos órfãos, em especial com a educação. Os garotos estudaram nas melhores escolas da Província, entre eles o Parthenon Sergipense,53 depois seguiram para o Colégio Francisco Bernardino de Souza na cidade da Bahia e em 1884 Manoel foi para a Imperial Escola Agrícola da Bahia e João e José para o Colégio Bahiano Pedro 2º de Dr. Augusto Guimarães. Após concluírem os estudos secundários José seguiu para a Faculdade de Direito do Recife e João para a Faculdade de Medicina da Bahia, enquanto Manoel continuava no Instituto Agrícola da Bahia. Já a educação dada à Ana, restringiu-se a sua rápida passagem em internatos na própria Província, nas quais aprendeu a ler, escrever e contar e todas as prendas do seu sexo. Aos 14 anos, retornou ao Engenho Fortaleza, aonde conviveu com o avô até os 21 anos, quando casou com Filomeno de Vasconcelos Hora, fazendo jus a educação que recebeu. O Código Filipino atestava a preocupação do Estado com os cuidados com os infantes órfãos, visto que obrigava a nomeação de tutores para todos 52 AGJS – Ação de Tutela, João Dantas Martins, caixa 435 – 1879. Estabelecimento que funcionava em caráter de internato e externato com sede na Capital(Aracaju), destinavase a instrução primária e secundária. 53 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 80 os órfãos.54 Cabia ao tutor zelar da saúde, educação e formação cristã do órfão, bem como administrar os bens por estes legados55. Tal zelo, deveria ser comprovado através das prestações de contas, apresentadas ao juiz de órfãos a cada dois anos até que o órfão atingisse a maioridade ou se casasse. Com essa medida fiscalizadora, o Estado visava, sobretudo, evitar que a herança dos órfãos fosse espoliada pelos tutores, garantindo a preservação dos bens até que estes tivessem condições de administrá-los. Em relação aos órfãos pobres, o Estado, por meio de sua legislação também manifestou preocupação com seu bem-estar. De modo, que procurou um meio de garantir que estes infantes recebessem uma instrução que possibilitasse o aprendizado de algum ofício, assim conseguiriam meios para se sustentar quando se tornassem adultos, evitando assim que se tornassem mendicante ou vadios. Assim, a prática do Assoldadamento passou a ser imputada somente aos órfãos pobres.56 De acordo com as Ordenações Filipinas, os órfãos designados à prática do assoldadamento seriam anunciados em pregões pelo juiz de órfãos da localidade, o qual não poderia mencionar os nomes dos órfãos, tampouco de seus pais. Aos interessados, cabia dirigir-se à residência do dito juiz, onde receberiam as informações sobre o órfão, ao tempo que deveriam informar o valor que estavam dispostos a pagar pela soldada. Após esse procedimento, o juiz concederia o direito de assoldadar o órfão àquele que oferecesse maior soldada. O acordo então seria registrado em escritura pública, discriminando o valor e o tempo para pagamento. O valor deveria ser depositado no Cofre dos órfãos, para ser sacado pelo órfão quando este completasse a maioridade. Assim, o assoldador deveria assumir os encargos concernentes à tutoria e responsabilizar-se em ensinar um ofício ao órfão. 54 O juiz de órfãos deve nomear no prazo de um mês tutores a todos os órfãos da Comarca, quer sejam eles ricos, pobres ou expostos, estes logo completem 7 anos. Ordenações Filipinas (Livro IV Título CII § 1). 55 Após o falecimento dos pais dos infantes, o juiz dos órfãos procederá ao inventário post-mortem. Cf. nota 11 56 Ordenações Filipinas (Livro I Título LXXXVIII § 13). HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 81 Na cidade de Estância a prática de Assoldadamento também se fez presente57. Assim, respondendo ao anúncio feito pelo juiz de órfãos, Pio Xavier Garcia de Noronha, o Sr. Antônio Bento Fernandes, homem idôneo, casado, calafate e pequeno negociante da Praça de Estância, viu uma oportunidade de ampliar, sem muitos custos, a mão-de-obra empregada em suas atividades, além de aplicar a caridade cristã. Desse modo, assoldadou pelo período de 5 anos, o órfão desvalido Francisco (12 anos) comprometendo-se a educá-lo nos bons costumes, ensinando a doutrina cristã e o ofício de calafate58. Analisando o conjunto das ações de assoldadamento59, constatamos que a preocupação do Estado, era apenas garantir ao órfão pobre o acesso a um ofício que possibilitasse seu sustento quando atingisse a maioridade. Desse modo, percebemos que perpassava a idéia de que as atividades laborais e ofícios mecânicos deveriam ser exercidos pelos escravos ou camadas menos abastadas, visto que não havia incentivo para que esses órfãos frequentassem as aulas públicas.60 Conclusão Ao estudarmos a vida familiar em Estância/SE durante o século XIX, nos deparamos com histórias de inúmeros órfãos que após perderem os pais, foram criados por tutores, que por vezes eram pessoas sem qualquer laço de parentesco com o infante. Destarte, atrelada a essa análise, não nos esquivamos de relacionar o tipo de educação empregada a esses agentes com as categorias gênero e raça. Assim concluímos que quanto à questão de classe, havia uma distinção nos discursos para a educação dos filhos da elite, os quais deveriam se preparar para os concursos preparatórios, enquanto os órfãos desvalidos eram incentivados a aprenderem com seus tutores um ofício, a 57 SILVA, Nelly Monteiro Santos. Pater incertus, mater certa: as práticas de assoldadamento em Estância e sua contribuição para a história da educação e da infância em Sergipe (1865-1895). São Cristóvão, SE, 2007. 237 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Sergipe. 58 AGJS – Termo de Tutela e Fiança de órfãos caixa 618 – 1876. 59 Para essa pesquisa só utilizamos as ações registradas no Termo de Tutela e Fiança de órfãos. 60 MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia: A cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo: Hucitec; Salvador: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1978, p. 248. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 82 exemplo de calafate, alfaiate ou ferreiro; quanto à raça, evidenciamos nos poucos vestígios relacionados à cor e origem dos órfãos que os descendentes de escravos eram caracterizados pelos tutores como de mau gênio, impróprios para a aprendizagem das Primeiras Letras, portanto deveriam ser disciplinados pelo trabalho e pela fé cristã; já em relação à educação destinadas a meninos e meninas, percebemos que mesmo com a instalação da aula pública destinada ao sexo feminino foi pequeno o número de órfãs que freqüentaram essas aulas, visto que a própria Igreja exortava aos pais quanto ao perigo de permitirem que suas filhas estudassem. Assim, em meio a esse cenário de transformações vivenciadas pelos moradores de Estância no Oitocentos, concluímos que a educação destinada aos órfãos foi utilizada para reforçar as posições sociais ocupadas pelos indivíduos, visto que direcionava os pobres e negros ao trabalho e restringia às mulheres ao espaço doméstico. REFERÊNCIAS Fontes 1. 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Cleber Roberto Silva de Carvalho1 Introdução A guerra é um evento plenamente humano, em que os homens, como se refere Clausewitz2, por meio da violência, vem a obrigar a um inimigo a realizar as suas vontades. Num evento em que a imposição da força física e da agressividade vem a ser predominante, as mulheres acabam sendo excluídas de tais acontecimentos, por serem consideradas, numa concepção masculina, frágeis e dóceis para um ato de brutalidade como uma guerra. Contudo ao longo da história, vê-se a presença feminina nos eventos beligerantes da humanidade. Quer numa guerra localizada, ou num âmbito intercontinental, de vitima da violência masculina, ou presente nas forças de trabalho de um esforço de guerra, e até mesmo participante ativa dos campos de batalha, a presença feminina se faz atuante, superando não somente a força do inimigo, mas o preconceito dos homens. A guerra como ato masculino e de submissão feminina. Desde o principio dos confrontos humanos, a guerra é tida como pratica quase que exclusiva dos homens, onde a força física de empunhar a espada ou a lança era particular dos homens, mesmo com descrições da existência das chamadas amazonas, que viveriam na região do Ponto, próximo a costa do atual Mar Negro: Povo mítico de mulheres, governado por uma rainha e não admitindo homens na sua cidade senão como servos, as Amazonas, vindas do Cáucaso, estabeleceram o seu reino na Capadócia (Ásia 1 Cleber Roberto Silva de Carvalho é graduando do curso de licenciatura plena em História pela Univesidade de Pernambuco – Campus Petrolina 2 CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra, São Paulo: Martins Fontes, 1996. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 88 Menor). Elas descendiam do deus da guerra Ares e, por isso, as suas paixões eram a guerra e a caça. As Amazonas veneravam, particularmente, a deusa Ártemis, de quem seguiam, escrupulosamente, o exemplo (atribui-se-lhes a fundação da cidade de Éfeso e do famoso templo de Ártemis, uma das maravilhas do mundo antigo). Uma vez por ano, elas aceitavam no seu reino a presença de homens, a fim de assegurar a sua descendência, mas matavam ou mutilavam todos os recém-nascidos do sexo masculino. As filhas retiravam o seio direito, a fim de lhes permitir manejar o arco mais comodamente. Segundo a lenda, as Amazonas aparecem, constantemente, em oposição aos Gregos. Belerofonte é um dos heróis que irá lutar contra estas mulheres guerreiras. Essa luta constitui uma das provas a que ele deverá submeter-se, por ordem do seu sogro, o rei da Lícia. Este combate resultará num grande massacre das Amazonas.3 Nas concepções atuais de conflitos, com armas mais leves e de fácil manuseio, a guerra é tida, por alguns autores, como um instrumento de ação puramente masculina: A guerra é uma atividade humana da qual as mulheres, com exceções insignificantes, sempre em todos os lugares ficaram excluídas. As mulheres procuram os homens para protegê-las do perigo e censuram-nos amargamente quando eles não conseguem defendê-las [...] Se a guerra é tão antiga quanto a história e tão universal quanto a humanidade, devemos agora acrescentar a limitação mais importante: trata-se de uma atividade inteiramente masculina.4 Há condição feminina em meio a um conflito bélico vêm a ser, em diversas ocasiões, a de vítima em potencial do confronto, em especial aquelas que se encontram na posição dos derrotados, haja vista que, as mesmas são vistas também como “inimigas” pelos vitoriosos, e dessa forma as mulheres acabam por sofrer com os abusos masculinos, sendo na maioria das vezes físicos e sexuais. Como os sofridos pelas mulheres 3 4 HACQUARD, Georges. Dicionário da Mitologia Gregas e Romana. Lisboa: Edições ASA, 1996 KEEGAN, Jonh. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 89 da Bósnia e Herzegovina durante a Guerra Civil na antiga Iugoslávia, em que as mesmas foram confinadas em espécies de campos de concentração, ficando a mercê de abusos sexuais constantes por partes dos soldados Iugoslavos. E a mesma e situação vem a ocorrer em outros conflitos, como nas guerras civis no continente africano: [Freetown, Serra Leoa]: forças rebeldes invadem a cidade. A apenas 40 quilômetros dali, a pequena vila de Mamamah é alvo fácil dos revolucionários, que executam a maioria dos moradores e raptam as adolescentes. Mariatu, de apenas 16 anos, e pega após seus pais serem mortos. É estuprada repetidas vezes por todos os homens do grupo. Dezenas de garotas da tribo têm o mesmo destino.5 A condição feminina em meio a uma guerra é extramente delicada, haja vista as condições em que as mesmas podem se encontrar, no caso das mulheres em meio à população civil, indefesa perante um inimigo, elas acabam por ficar a mercê das forças “vitoriosas”. Podendo ser citado as agressões sofridas pelas mulheres que participaram do colaboracionismo ao nazismo na França ocupada, tendo em vista que após o recuo das tropas alemãs, as mesmas ficaram expostas ao revanchismo francês, em especial dos homens, e acabaram por sofrer com toda “sorte” de humilhações públicas, espancamentos, ou como descrito por Jean-Paul Picaper 6: ”Um grande número de mulheres foram sumariamente executadas nas horas que se seguiram a Libertação, cometeram suicídio quando iriam ser presas ou na prisão”. A guerra por esse ângulo se transforma no que pode ser chamado de “ápice da testosterona”, ou seja, num acontecimento em que os atores principais são os homens, e suas agressões acabam por recair, pesadamente, sobre as mulheres, como num ato de revanche, ou como numa concepção de que as mulheres de um inimigo se tornam “inimigas”. 5 6 Superinteressante, p. 69, 2004 História Viva. Editora Duetto, nº28, fev. 2006. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 90 E ao contrario das penalidades impostas contra os inimigos (homens) derrotados, a “punição” contra as mulheres (inimigas) acaba por se tornar numa imposição do instinto masculino sobre a mulher, perfazendo o discurso de poder masculino, ou seja, torna-se num castigo físico, sexual e psicológico, comparável ao que é defendido por Susan Brownmiller, em que a mesma propôs que o estupro não tinha relação com o desejo sexual dos homens em si, mas como um ato de violência dos homens contras as mulheres, para oprimi-las por meio da força e sendo uma forma do homem demonstra sua “posição superior” em relação à mulher, podendo-se, dessa forma, aproximasse de uma analogia com o que descreve Clausewitz 7 que declara que: “A guerra é pois um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se à nossa vontade”. A mulher se torna uma inimiga do homem, e o mesmo impõem a sua força para “castigá-la”, mas não como um inimigo “homem”, que estando derrotado, deve ser punido sob uma conduta militar, mas como um homem impondo seu discurso de poder, em que comanda por meio da força, contra a mulher, que na sua interpretação é frágil e submissa, estando passiva a sua violência. A guerra como um ato masculino, em que se faz necessária a participação do feminino. A guerra é um ato dos homens, em que a atuação é plenamente dos homens, e tal ato é finalizada pelos homens. Historicamente, sob uma perspectiva masculino-ocidental, este contexto tem seu sentido, pois nas guerras que se desenrolaram ao longo da história humana, a participação das mulheres em meio às próprias escaramuças é extremamente restrita: 7 CLAUSEWITZ, Carl von. Op. Cit. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 91 No caso da guerra, a História não oferece essas alternativas para os sexos. Certamente há muitos exemplos de guerreiras, mas, excetos pelo regimento feminino dos reis de Dahomei, no oeste da África, eles costumam ser lendários – como as amazonas – ou nobres, como a antiga guerreira inglesa, a rainha Boadicéa.8 Porém, as mulheres, também assumiram posições em conflitos, não precisamente como nos papéis de combatentes, mas ocupando espaços abertos na própria sociedade civil. Espaços que eram ocupados por homens, que em meio a uma crise de uma guerra, cederam estes lugares, quando os mesmos partiram para as zonas de conflitos. Um período histórico em que ocorreu este fato foi na Idade Média, no período das Cruzadas do Oriente. Os cavaleiros cristãos partiram para as cruzadas e as suas mulheres assumiam os seus lugares até o retorno dos mesmos, e nesta situação estas damas adquiriram as funções dos homens, atuaram como defensoras de suas posses, e até mesmo nos ritos de vassalagem, algo exclusivo dos homens no medievo, superando as concepções mentais de supremacia masculina medieval. Assim como outras mulheres obtiveram espaço em diversas situações de conflitos, assumindo posições de mediadoras, com maior influência que homens de governo concedido por Deus, que eram os reis: The Bohemian queen Johanna of Rozmital was an active diplomat during the Hussite wars. Sainted, or merely pious, women were valued practitioners of dispute resolution. Catherine of Siena is well known for her intervention in papal politics in 1376, […] But sanctity was only one way to practice diplomacy. Queens, shielded by their rank and proximity to the king, could practice a forceful diplomacy that used anger and outright threats as rhetorical weapons. Eleanor of Castile used barely veiled threats during the English baronial revolt in the late thirteenth century to get the earl of Cornwall, count of Bigorre, and bishop of Worcester to comply with royal wishes. In 1429, Maria of Castile used her own anger as a diplomatic tool and 8 EHRENREICH, Bárbara. Ritos de Sangue. Rio de Janeiro: Record, 2000 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 92 averted war by literally setting up her tent on the battlefield between the armies of her husband, Alfonso V of Aragon, and her brother, Juan II of Castile.∗ 9 No século XX, com os avanços tecnológicos e a ampliação em escala colossal dos exércitos pós-napoleônicos, [o Grande Armée de Napoleão possuía 500 mil homens, e os Aliados na Batalha da França possuíam em torno de 3 milhões de homens] pode ser identificado à feminina no espaço beligerante, ao assumirem postos de atuação dos homens, em virtude da “industrialização da guerra” ocorrida no início do século XX. Nos conflitos do início do século passado, os parques industriais começaram a se tornar em elementos fundamentais na manutenção dos gigantescos exércitos, onde as mulheres passaram a ocupar vagas na indústria armamentista, como por exemplo, na indústria aeronáutica nos finais da Primeira Guerra Mundial e durante a Segunda Guerra Mundial, ou até mesmo com o retorno das mesmas para o campo, através de programas governamentais, num esforço de aumenta a produção devido a demanda por gêneros alimentícios e a falta de mãode-obra masculina. Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, os grandes impérios arregimentaram exércitos em escalas de milhões de homens, e dessa corrida por soldados para o combate surgiu a necessidade de ocupar as vagas de trabalho deixadas pelos homens. Mas não somente economia civil, a própria organização militar da Grande Guerra necessitou das mulheres para ocupar vagas tipicamente masculinas: ∗ A rainha da Boémia Johanna Rozmital foi uma diplomata ativa durante as guerras hussitas. Santa, ou meramente piedosas, as mulheres eram valorizadas das resoluções de litígios. Catarina de Siena é bem conhecida por sua intervenção na política papal em 1376, [...] Mas a santidade foi apenas uma maneira de praticar a diplomacia. Rainhas, protegidas por suas posições e proximidade com o rei, poderiam praticar uma diplomacia forte em que a raiva e as ameaças definitivas eram usadas como armas retóricas. Leonor de Castela usando ameaças abertamente durante a revolta Inglesa baronial no final do século XIII, para obter do conde da Cornualha, conde de Bigorre, e bispo de Worcester a cumprir com os desejos reais. Em 1429, Maria de Castela usou sua própria raiva como um instrumento diplomático e evitou a guerra, literalmente, em sua tenda no campo de batalha entre os exércitos de seu marido, Afonso V de Aragão, e seu irmão, Juan II de Castela. 9 SCHAUS, Margaret. Women and Gneder in Medieval Europe. Londres: Routledge, 2006. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 93 Durante 1914 -1918, as mulheres, pela primeira vez na história da guerra, usaram uniformes e foram para as fileiras. Em 1917, a Grã-Bretanha criou o Corpo Auxiliar de Mulheres no Exército [...] e o Serviço Real Naval de Mulheres [...] com o objetivo de prover substitutos para homens em funções cozinheiros, sinalizadores, escriturários e motoristas de transporte. Na Grã-Bretanha, as mulheres já haviam começado a substituir em larga escala os homens recrutados para a guerra, a partir do estabelecimento do Registro de Mulheres para Serviços de Guerra, em março de 1915. Em agosto de 1916, 750 mil mulheres britânicas atuavam em trabalhos de homens e outras 350 mil estavam em empregos pela economia de guerra. A criação de Terra atraiu 240 mil mulheres para a agricultura em 1918. 10 Ou seja, num momento de crise, como no caso de uma guerra, as mulheres acabam por substituir as posições ocupadas pelos homens, numa forma de evitar que tais posições fossem usurpadas por outros, sendo mediadoras políticas, num esforço “patriótico” evitar a derrota da nação frente a um inimigo, ou como forma de garantir espaço no meio social, como as mulheres da Inglaterra na Primeira Guerra Mundial. Porém os ganhos sócio/políticos femininos, como os da Grande Guerra, foram ínfimos, e restritos as grandes potências, e sendo que muitas mulheres jamais encontraria um esposo, em virtude da mortandade masculina nos campos de batalha, e isso era um fator de dificuldade para as mulheres: A solidão das mulheres sempre gera uma situação difícil, pois radicalmente impensada. ‘A mulher morre se não tem um lar nem proteção’, diz Michelet com piedade; e o coro dos epígonos declara: ‘Se há uma coisa que a natureza nos ensina com clareza é feita para ser protegida, para viver quando jovem junto a mãe, e esposa sob a guarda e autoridade do marido’” 11 10 Keegan, Jonh. História Ilustrada da Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004 Perrot, Michelle. História da Vida Privada, 4: Da revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 11 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 94 A guerra como um ato masculino, em que participação feminina é belicosa. A participação feminina atuando nas guerras como força militar de reservar ou em posições ocupadas predominantemente por homens, quando os mesmo são deslocados para zonas de combate é descrita superficialmente, mesmo com as várias situações da presença feminina na retaguarda ou em ocupações logísticas dos exércitos. Não obstante, em diversos momentos as mulheres acabam por ocupar as posições militares ofensivas, ou seja, as mulheres vão para os campos de batalha, como combatentes efetivas. Tais situações são vistas em graves momentos de crise, em que a necessidade de efetivo humano se faz necessário, como na Segunda Guerra Mundial, quando a União Soviética formou um regimento de combate aéreo, formado apenas por mulheres, descrito na revista Grandes Guerras12: “O 46º Regimento de Bombardeio da Guarda era um dos três grupos inicialmente formados só por mulheres – porém o único exclusivamente feminino”. Esse regimento de aviadoras femininas foi responsável por diversos ataques noturno no front leste entre 1943 e 1945. No período medieval a rainha Leonor de Aquitânia esteve presente na Segunda Cruzada, junto como seu esposo, Luis VII. O exemplo mais conhecido no período medieval é o de Joana D’arc, que esteve junto com o exército francês na Guerra dos Cem Anos, participou da Libertação de Orléans e da Campanha do Loire, onde a mesma atuou em diversas batalhas, como a de Jargeau, comandando os soldados franceses, algo impensado em virtude da posição social de Joana D’arc. Principalmente se tratando de uma mulher, tida como inferior em relação aos homens no medievo: 12 Grandes Guerras. São Paulo, Editora Abril, nº19, set. 2007. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 95 Fraqueza e qualidade negativas: por natureza, a mulher só pode ocupar uma posição secundária, procurar apoio masculino. Homem e mulher não se equilibram nem se completam: o homem está no alto, a mulher em baixo.13 Mas a participação feminina nos embates medievais não se resume apenas as grandes personalidades, no período medieval pode ser visto a participação feminina em vários combates: It would be misleading to categorize these women as passive participants. Even those traditionally perceived as victims could have contributed actively to combat. There are numerous accounts of towns women aiding in defense by throwing rocks at besiegers. In the thirteenth century, Simon of Montfort, the leader of the Albigensian Crusade, was said to have died from blows inflicted by stones hurled from a catapult operated by the women of Toulouse, the town he was attempting to subdue. A century later, the chronicler Jean Froissart enthusiastically praised Countess Jeanne of Montfort for rallying her towns - women to assault their attackers with hot tar and paving stones pulled up from the streets.∗ 14 Não somente no Ocidente existiram mulheres participando de questões militares, em outras regiões este tema acaba por ser abordado, como por exemplo, no Extremo Oriente pode ser mencionado a participação feminina em eventos de ordem militar, como em descrições existentes no Japão no período feudal: Não é surpreendente encontrar na literatura dos bujutsu [treinamento nas artes marciais militares] a anotação que as mulheres dos buke [famílias 13 LE Goff, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2006 ∗ Seria enganoso para categorizar essas mulheres como participantes passivos. Mesmo aquelas tradicionalmente vistas como as vítimas podem ter contribuído ativamente para o combate. Existem inúmeros relatos de citadinas ajudando na defesa, jogando pedras em sitiantes. No século XIII, Simão de Montfort, o líder da cruzada albigense, foi dito ter morrido de golpes infligidos por pedras lançadas de uma catapulta operadas pelas mulheres de Toulouse, a cidade estava tentando subjugar. Um século depois, o cronista Jean Froissart entusiasticamente elogiado Condessa Jeanne de Montfort para mobilizar suas citadinas para assaltar seus atacantes com alcatrão quente e paralelepípedos puxados para cima das ruas. 14 SCHAUS, Margaret. Op. Cit. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 96 militares] eram treinadas no uso de armas tradicionais, e que se esperavam que utilizassem contra um inimigo ou, em caso necessário para acabar com suas próprias vidas. Além do mais, muitos episódios relativos à ascensão da classe guerreira mencionam mulheres que desempenharam papéis militares determinantes – inclusive ao se unir em certas ocasiões, a seus homens no campo de batalha.15 Dessa forma pode-se ver que as mulheres ocupam posições militares em conflitos armados, período das Guerras Civis do Japão feudal, onde o governo era o do xogunato (governo militar) em que os clãs liderados pelos seus xogus (generais) disputavam entre si o controle do Japão, ou seja, era um momento de crise onde se fazia necessário a presença feminina naqueles postos. A atuação das mulheres em tais eventos devem ser visto sob uma óptica feminina, ou seja, em que os valores sociais e pessoais da mulheres são diferenciados dos homens: A divisão sexual dos papéis se baseia em seus ‘carascteres naturais’, segundo uma oposição entre passivo e ativo, interior e exterior, que governa todo o século. ‘O homem possui sua vida substancial real no Estado, na ciência etc., e também no trabalho e na luta com o mundo e consigo mesmo. ’A mulher encontra seu destino substancial na moralidade objetiva da família, cuja piedade exprime as disposições morais. ‘ 16 Assim pode ser visto que os homens se atem a mentalidade de honradez e glória pública, contudo as mulheres se focalizam mais nos valores familiares, e na proteção de bens familiares, porém utilizandose, assim como homens, da força para defender tais bens: In frontier societies where crusading conflicts were in progress, women were more than likely in settled societies to have to resort to military force in defence of self, family, or family possessions, and 15 16 RATTI, Oscar. Segredo dos Samurais: As artes Marciais no Japão Feudal. São Paulo: Madras, 2006. PERROT, Michelle. Op. Cit. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 97 many accounts in medieval records show such women using force against their enemies […].∗ 17 Conclusão Pode-se ver que a presença feminina dentro dos conflitos armados apresentam diversas circunstâncias, desde os momentos em que as mulheres são vitimas dos homens, por imposição do instinto masculino sobre o feminino, e dessa forma as mulheres acabam por sofrer com abusos dos homens, por estes se intitularem “superiores”. Há as situações em que a presença das mulheres se faz necessária, mesmo em ocupações tradicionalmente ocupadas por homens, sendo estes espaços tomados por mulheres, que neste momento de convulsão social, sua presença se torna de suma importância, até como força ativa em campanhas militares, sendo que as mulheres deixam as posições intermediarias nas ocupações econômicas civis, e passam a ser força essencial de produção, ou soldados oficiais ou guerreiras em defesa de suas causas, que muitas vezes ultrapassam as questões de ordem militar, muitas vezes estas conquistas só ocorrem após os conflitos. A participação feminina nas guerras torna-se algo visível não somente como “coadjuvantes” nos momentos beligerantes, mas como participantes reais e ativas, superando as barreiras impostas pela mentalidade masculino-ocidental de superioridade sexual, e demonstrando igualdade de ação quando a presença feminina se faz necessária. Bibliografia CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1996. ∗ Nas sociedades de fronteira onde os conflitos cruzados estavam em andamento, as mulheres eram mais suscetíveis nas sociedades estáveis a ter que recorrer à força militar na defesa própria, família, ou posses da família, e muitos registros de mulheres medievais mostram como usavam a força contra seus inimigos [...]. 17 SCHAUS, Margaret. Op. Cit. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 98 EHRENREICH, Bárbara. Ritos de Sangue. Rio de Janeiro: Record, 2000. GRANDES GUERRAS. São Paulo, Editora Abril, n. 19, set. 2007. HACQUARD, Georges. Dicionário da Mitologia Gregas e Romana. Lisboa: Edições ASA, 1996 KEEGAN, Jonh. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia da Letras, 2006. ____________.História Ilustrada da Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2006 PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4: Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. PICAPER, Jean-Paul. História Viva. Editora Duetto, n. 28, fev. 2006. RATTI, Oscar. Segredos dos Samurais: As artes marciais no Japão Feudal. São Paulo: Madras, 2006. SCHAUS, Margaret. Women and Gender in Medieval Europe. Londres: Routledge, 2006. SUPERINTERESSANTE. São Paulo, Editora Abril, n. 207, dez. 2004 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 99 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 100 BOA NOITE FRÄULEIN... OS CONTOS DE FADA E A CONSTRUÇÃO DA FEMINILIDADE Andrea Almeida Campos1 Pedindo licença a todas as belas interpretações que já foram feitas em torno dos contos de fada, gostaria de lançar sobre eles uma nova luz2. Esta luz revela que muitos contos de fadas são, essencialmente, histórias da construção da feminilidade resultante do rompimento da relação neurótica entre mãe e filha. Mas, poder-se-á surgir a seguinte pergunta: onde estão as mães dos contos de fada? Geralmente estão mortas, ausentes ou silentes sob o véu de suas sacralidades. Quase sempre a menina ou a princesa é órfã, e tem por destino fatal e maldito, suportar um novo casamento de seu pai com a sua futura madrasta. No início tudo transcorre às mil maravilhas até que, de súbito, o pai também morre, sai de cena, deixando o palco livre para o desenrolar da tragédia entre a madrasta e a enteada. Mas... Entre a madrasta e a enteada? Não, até os contos de fada tiveram pudor em revelar as verdadeiras protagonistas deste teatro. Seria horripilante e arrepiante, mostrar-se a verdade, dessacralizar a mãe, trazer à tona a princesa em forma de filha e a sua luta para suplantar a mãe, conquistar a sua identidade. Não se assustem, mas as madrastas dos contos de fadas são as verdadeiras mães das princesas, diríamos que intitulá-las como madrastas seria apenas um eufemismo para que não se revelasse a real tragédia da relação neurótica entre mãe e filha. 1 Coordenadora do Núcleo de Estudos Especializados em Gênero, Enfrentamento à Violência contra a Mulher e Direitos Humanos da Unicap. Coordenadora do Núcleo Direito e Literatura da Unicap. Mestre. Professora de Direito da Unicap. 2 A análise é feita sobre as adaptações de Walt Disney sobre os contos do francês Charles Perrault (1697) e dos alemães Wilhem e Jacob Grimm (1812-1815). Os contos de Grimm nada mais são do que uma coletânea de contos folclóricos alemães. Eles consideravam os contos como uma expressão legítima do espírito do povo alemão. No intuito de preservação da memória desse espírito, os Irmãos Grimm passaram a ouvir pessoas que trabalhavam e viviam em fazendas e vilarejos nas proximidades de Kassel na Alemanha. Nessa compilação, deixaram-se influenciar pelo romantismo alemão da época, como também levaram em consideração elementos históricos e mitológicos, da natureza, da fantasia e do sobrenatural. Fica claro, já que alguns contos já haviam sido escritos pelo francês Perrault, que os contos de fada revelam o inconsciente coletivo do homem medieval europeu. Nosso inconsciente ocidental. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 101 Um fato basilar que corrobora e endossa a tese é o de que os conflitos entre enteada e madrasta, na vida real, dão-se em razão da competição entre as duas mulheres pelo amor do mesmo homem, ou seja, o pai da enteada e o marido da madrasta. Este também é um dos motivos de conflito entre mãe e filha que é solucionado, muitas vezes, ou com a morte desse homem ou com a separação do casal, ou, da melhor forma: com a solução da neurose edipiana pela filha. O inverso é o que ocorre nos contos de fadas, é apenas após a morte desse homem que as rivalidades e hostilidades tomam lugar. Ou seja, quando o objeto de disputa já não existe mais, quando não haveria mais razão de ser para tanto ódio, inveja e destruição. As madrastas são, pois, em realidade, as mães das princesas. E a disputa entre elas não é a disputa por um homem específico, mas a disputa pela feminilidade e o seu pleno exercício como rainhas da criação e da sedução. Abramos as páginas de um conto. Virando a sua bela capa, deparamo-nos com o suave transportador de nossas fantasias, de nosso imaginário coletivo, ali está o “Era uma vez...”. Este primeiro conto que ora percorro os dedos sobre as suas páginas é a história da Bela Adormecida. Esta é, talvez, uma das mais profundas, reveladoras e belas histórias sobre o inconsciente feminino, no caso o das mães e o das filhas. É uma linda história com final feliz sobre os sentimentos de ambivalência e ambiguidade, de amor e de ódio da mãe em relação à filha onde, ao fim e a cabo, a mãe consegue vencer os seus próprios demônios, a filha consegue livrar-se da relação erótica com a mãe e construir a sua feminilidade, restando entre as duas, apenas, uma relação afetuosa. A ambivalência da mãe está presente desde antes de a filha nascer. Ela, mesmo sem ser estéril, nem o sendo, também, o seu marido, leva anos a fio, após o seu casamento, para engravidar. As suas reticências e dúvidas acerca da maternidade, já, então, começam a ser reveladas. Note-se que essa mãe, a rainha da história, nunca fala, nunca age, nem nunca pensa, ela é apenas a simbologia do útero, a mãe biológica, o corpo de mulher que dá à luz e, mesmo assim, HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 102 somatiza as ambivalências do seu inconsciente. Este inconsciente da mãe, os seus conflitos e os seus desejos são representados pelas três fadas boas e pela bruxa-má. As quatro fazem parte de uma só matriz, as quatro são porções esfaceladas da estrutura psíquica da mãe da princesa. Uma transfere-lhe a beleza, ou seja, a mãe também é bela, a outra outorga-lhe os seus talentos, enquanto que o lado positivo do inconsciente sentimental da mãe deseja que a sua filha ame e que seja amada. A mãe, que tanto demorou a engravidar, acaba de dar à luz e almeja que a sua filha cresça em graça e beleza e que seja amada por todos. Na surdina do inconsciente materno, no entanto, há um lado perverso que se ressente da vinda da menininha que com ela irá competir e destroná-la. Mas o seu lado amoroso, ao detectar a presença de sentimentos tão vis, bloqueia-os imediatamente nos porões de seu subconsciente. Fica lá, portanto, viva, mas recalcada, a bruxa-má, que se ressente por não ter podido vir à tona e perfazer os seus ardis. Ela não foi convidada para o momento do nascimento e nem para acompanhar a infância da menina. Ela aguentará o seu exílio, até porque, a criança não traz nenhuma ameaça ao seu poder. No entanto, às vésperas de completar, a princesa, os seus dezesseis anos, ou seja, ao debutar como moça, a bruxa má, ou bruxa-mãe, transporá o inconsciente da mãe e destruirá a filha. Esta maldição é revelada pela bruxa-mãe ao profetizar que, às vésperas de seu décimo-sexto aniversário, a filha colocará o dedo em uma roca e morrerá. Ao mesmo tempo em que esse desideratum é exteriorizado, um dos lados-fada dessa mesma mãe, mais especificamente o lado sentimental, não deseja que a filha morra, mas o seu narcisismo não consegue debelar por inteiro o desejo de morte da filha pela bruxa-mãe e, então, fará com que a filha adormeça, ou seja, ainda não terá identidade (mesmo a mãefada, ainda quer a filha como um prolongamento seu e assusta-se com a sua puberdade) para que, só depois, através do amor de um homem e não através do amor a si mesma, possa voltar a viver. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 103 A menina, então, cresce ao lado das mães-fada que procuram salvaguardá-la ao máximo de seu lado bruxa. O seu amor pela filha tenta resistir aos instintos maus da sua bruxa interior. Para que o lado perverso não venha à superfície, destrói-se a identidade da menina que, de princesa, passa a ser camponesa, de forma a burlar as maldades da mãe-bruxa. Durante os dezesseis anos em que a filha é criada pelas mães-fada, fica mais evidente que a sua mãe no conto, ou seja, a rainha, é mesmo, tão somente, o símbolo da maternidade biológica, pois nunca, sequer, foi visitar a filha, saber como ela passava, se estava bem, mesmo sendo a princesa a sua filha única. Este dado do conto apenas endossa estar o psicológico dessa mãe representado pelas três fadas e pela bruxa má. Enquanto as mães-fada criam a menina, a mãe-bruxa, encarcerada no subconsciente, está ansiosa pela destruição da filha. A menina chega à puberdade, mesmo sem nunca haver lido histórias de amor, os seus hormônios preparam-na para a sedução, despertando em seu corpo o desejo. Ela deseja ardentemente e sonha com o amor, suspira pelo amor e se pergunta onde o encontrará, anseia pelo amor ardorosamente. Não aceita mais ser tratada como uma criança pelas mães-fada, o instinto sexual está nela explodindo e ela fantasia com o homem ideal. Note-se que este é o primeiro impulso da filha em desenlaçar-se da mãe, romper com a relação erótica que tem com ela e passar a estabelecer esta relação com um homem ou, caso seja homossexual, com uma outra mulher. Daí se conclui que, diversamente do que já foi dito acerca dos contos de fadas, o príncipe não vem despertar a sexualidade da princesa, o desejo e a feminilidade da moça preexistem ao príncipe, ela apenas lhe dá sinais para que ele se aproxime. Portanto, não são os contos de fada machistas. O príncipe, em realidade, atende ao chamado da princesa que, com ele já sonha e, por ele, já se porta no sentido de ela, sim, despertar-lhe o desejo e seduzi-lo. No caso da Bela Adormecida, ela o seduz com o seu canto em meio ao bosque. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 104 Sendo vésperas do debut da moça, as mães-fada preparam a sua festa, a festa que comemorará a sua entrada no mundo adulto. No entanto, mesmo estando felizes pelos preparativos, elas estão entristecidas com a perda da infância da filha, e, inclusive, continuam a tentar manipulá-la, proibindo-a de encontrar-se com o rapaz por quem a mesma se apaixonou, pois, este não é o rapaz ideal, o rapaz ideal para a filha é o príncipe encantado. Não obstante, ao mesmo tempo em que as mães-fada tentam salvaguardá-la de seu próprio lado bruxa, este recalque exterioriza-se e é incontrolável pelas mães-fada. A filha sente-se bastante atraída, dominada e hipnotizada por sua mãe-bruxa, estabelece-se a relação erótica sadomasoquista entre as duas. A filha está inebriada pela mãebruxa que é, mais do que as mães-fada, magnetizante e sedutora. Hipnotizada pela mãe-bruxa, ela é conduzida para o fuso e coloca o seu dedo sobre a roca, dando-se, aí, a sua morte. Saliente-se que a filha é seduzida e não resiste aos apelos de sedução da mãe por seu livre arbítrio. Ela quer seguir a mãe-bruxa, fazer as suas vontades, ela também é parte ativa nesta relação doentia que leva à sua própria morte. Esta morte na vida real, na maior parte das vezes, é representada pela timidez, recalque, anorexia, bulimia e retraimento da filha. No limite, esta filha poderá fazer, de fato, o que a sua mãe-bruxa queria, ou seja, colocar o dedo na roca, o que significaria suicidar-se. Mas, voltemos ao nosso belo conto. Diante da morte da filha, as fadasmãe ficam cheias de sentimentos de culpa por não terem sido fortes o suficiente para refrearem os seus lados bruxa. Tendo sido a destruição da feminilidade da filha consubstanciada, as mães-fada não querem que ninguém saiba do mal que deixaram ser realizado e tentam esconder a tragédia dos olhos dos demais. Não querem deixar entreverse o quanto foram negligentes com a filha, o quanto não foram boas mães e o quanto isso golpeia os seus narcisismos. Assim, as mães-fada colocam todos para dormir até que a filha possa, enfim, despertar. Iniciando-se o processo de ajuda à filha na reconstrução de sua feminilidade. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 105 Neste interregno, ao ir o príncipe ao encontro da princesa, depara-se, o mesmo, com a sua mãe-bruxa que o sequestra como forma de que ele não seja cúmplice da filha no seu renascer como mulher. Ao constatarem, as mães-fada, que o rapaz que deseja a sua filha é o príncipe encantado, estas passam a duelar com a mãe-bruxa, tentando vencer os seus instintos cruéis. As mães-fada tentam enfrentar os seus próprios demônios, ou seja, a mãe-bruxa que, por sua vez, está satisfeita por haver conseguido matar a filha e separá-la da testemunha de sua sexualidade despertada, o príncipe. As mães-fada encorajam o príncipe a chegar perto de sua filha, autorizam-no, não obstante ele tenha que vencer os mais horríveis obstáculos que são impostos pela mãe-bruxa. No ápice, a mãe-bruxa se transforma em um dragão e luta frente a frente com o príncipe tentando dizimá-lo. E é aí que, mais uma vez, o conto vem reafirmar a tese ora sustentada: Não é o príncipe quem mata o dragão, mas a sentimental mãe-fada! A batalha não é vencida pelo príncipe que salva a princesa e a desperta para a vida. A batalha verdadeira, entre o lado-fada e o ladobruxa de uma mesma mãe, é vencida pelo lado-fada que, enfim, mata os seus dragões. Ela supera os seus próprios sadismos, os seus desejos de destruir a filha para que a filha viva, torne-se mulher e exerça a sua sexualidade ao lado de um homem. Ela não quer a filha morta e, para tanto, mata o seu lado de mãe-bruxa e com a filha compartilha a sua coroa. No fim, a filha vai amar e exercer a sua feminilidade ao lado de um homem, não sem presenciar as lágrimas de saudade de sua infância derramadas por suas mães-fada. As histórias de Cinderela e da Branca de Neve seguem um roteiro semelhante. Cinderela é órfã de mãe, o seu pai casa-se com uma viúva, mãe de duas filhas. O pai vem logo a falecer e, aí, inicia-se a sua batalha com a madrasta. Pelos mesmos pudores os quais destacamos, a mãe traveste-se na madrasta de Cinderela. A madrasta é a mãe de Cinderela que, ao ter mais duas filhas que são destituídas de beleza e de encantos, assim como ela o é, empenha-se na destruição, inicialmente, da identidade de Cinderela que de princesa passa a ser HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 106 faxineira. Cinderela é resignada, ela também quer o amor da mãe e relaciona-se com ela na forma de um anelo sadomasoquista3, aceitando perder a sua identidade e travestindo-se de criada. As outras duas filhas com as quais a mãe se identifica, deverão sobrepujar Cinderela, casarem-se com um príncipe e serem felizes, portanto, o que a mãe gostaria para si mesma. A mãe deste conto é, ao mesmo tempo, uma mãe-fálica em relação à Cinderela e uma mãe-sacrificada em relação às demais filhas. No entanto, a quebra do anelo é feita com a iniciativa de Cinderela, mais uma vez não é o príncipe que vem salvá-la e tirá-la do inferno e levá-la ao paraíso através de um casamento, é a própria Cinderela que, com a puberdade, passa a ter desejos, os hormônios explodem, ela sonha com um amor, quer exercer a sua feminilidade e a sua sexualidade. Chega a oportunidade de ir a um baile. A mãe (madrasta) não a deixa ir, ela deverá ficar em casa, enquanto que as suas outras duas filhas, parecidas com ela, irão e serão candidatas a um casamento com o príncipe que promove a grande festa em busca de uma esposa. Inobstante a relação erótica-sadomasoquista que Cinderela tem com a sua mãe e que a fez ser subserviente durante toda a sua infância e inícios de sua adolescência como forma de barganhar o seu amor, ela é quem quer ir ao baile de qualquer maneira, mesmo que seja escondida, mesmo que totalmente contra os desígnios de sua mãe. Os seus hormônios falam mais alto e ela consegue, através de uma fada-madrinha (que no mundo real coincidiria com a figura de uma tia, irmã de sua mãe ou de seu pai que não se dá bem com a mãe de Cinderela, ou com o próprio lado bom de sua mãe), o vestido e o transporte para ir ao baile. Lá, Cinderela conhece o príncipe. Veja-se que ela é quem vai seduzi-lo, ela, sim, veste-se para atraí-lo. O príncipe, novamente, assim como no conto da Bela Adormecida, apenas atende ao chamado da princesa. Para não ser descoberta pela mãe e pelas irmãs, Cinderela retorna mais cedo do baile, obedecendo aos conselhos de sua fada-madrinha4. 3 4 Termo cunhado por Erich Fromm (1950). A figura da fada-madrinha é o contra-ponto às perversões maternas. Ela também é maternal, daí o termo HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 107 Não chega a revelar a sua identidade para o príncipe, em realidade, nem ela mesma sabe quem ela é ao certo. E abandona-o, mal se despedindo do recém-apaixonado. Ao perder o sapatinho de cristal, o conto revela que o casal estabeleceu relações sexuais. O sapatinho é um símbolo fálico e Cinderela não sai do baile da mesma forma que entrou, algo dela foi “perdido”. Após o baile, Cinderela não é a mesma, está recobrando a sua identidade e quer, mais do que nunca, romper o anelo neurótico com a sua mãe. Portanto, ao ser o mensageiro do príncipe enviado para experimentar o sapatinho em todas as moças de seu reinado, Cinderela desafia a mãe e as irmãs e se apresenta ao mesmo para calçá-lo. O sapatinho, ou melhor, o falo, cabe nela perfeitamente. Cinderela sai de casa e vai exercer a sua sexualidade e a sua feminilidade junto ao príncipe. Ao folhearmos o Conto de Branca de Neve, novamente nos depararemos com os mesmos signos que revelam uma relação doentia e problemática entre mãe e filha. Branca de Neve é órfã também de mãe. Ou seja, mata-se a mãe para não ousar dessacralizá-la, mas a relação entre mãe e filha estabelece-se através da madrasta. Mais uma vez, o pai vem a falecer logo após o casamento com a madrasta e, mais uma vez o palco é integralmente da mãe e da filha. Na história de Branca de Neve, a sua mãe na figura da madrasta também é bela, por sinal é belíssima e, talvez, tenha sido considerada uma das mulheres mais belas em seu tempo. A menina ao revelar-se, também, bonita, tem a sua identidade "roubada" pela mãe, deixando de ser o que ela realmente é, ou seja, uma princesa, e passando a ser uma criada, assim como ocorre no conto de Cinderela e no próprio conto da Bela Adormecida em que, mesmo não passando a menina a ser uma criada, ela também perde a sua identidade, tornando-se uma camponesa pelos esforços das mãesfada. Bem, atenhamo-nos ao conto da Branca de Neve. Com o tempo, a mãe, percebendo não ser a mais bela dentre as belas e estando a perder “madrinha” a designá-la. No entanto, não é uma mãe humana, não traz em si a miséria da humanidade. Ao invés, ela é sobrenatural, ela é uma “fada”. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 108 tal posição para a sua própria filha que, sendo de seu conhecimento, já desperta o interesse e a afetividade de um belo homem, encomenda a sua morte a um caçador subalterno seu. Este, com um punhal nas mãos (um símbolo também fálico) sensibilizado pela vontade de viver de Branca de Neve e pela sua beleza, manda-a fugir, enquanto que ele forjará a sua morte diante de sua mãe. Aqui temos a morte simbólica da filha. Ela perde a identidade, deixa de ser princesa, na vida real, enfeiar-se-ía, adoeceria e escravizar-se-ía nas mãos de um homem. O caçador que é chamado para matá-la seria simbolicamente um mau casamento arranjado e apressado para a filha, com vias de que ela logo se tornasse uma matrona, mãe de família e deixasse a beleza e o esplendor sob o monopólio de sua mãe. Em casos mais perversos e extremos, o caçador seria um estuprador. A moça também não teria o direito de amar e de ser amada. O coração da menina em sangue levado pelo caçador à presença de sua mãe, provavelmente, significaria o seu amor e a sua virgindade oferecidos ao caçador que, deles, passaria a ser o detentor. Mas não é isso o que ocorre. Branca de Neve vai de encontro aos desígnios maternos e, mesmo com uma identidade que não é a dela, não cumpre com a vontade maternal, tendo, junto a si, a cumplicidade e a compaixão do caçador que leva para sua mãe a prova do amor e da virgindade de uma outra mulher. Branca de Neve, em sua fuga, terá perdido muito de sua beleza, tanto que a mesma não foi mais percebida como existente pela sua mãe, nem foi mais anunciada pelo seu “espelho mágico”. No entanto, mesmo vilipendiada e em ostracismo, ela vai reconstruindo-se aos poucos, com a ajuda dos “sete anões” que são, de fato, características de sua própria personalidade (maturidade, raiva, alegria, dispersão, vulnerabilidade, dengo e infantilidade). Note-se ser “sete” um número cabalístico que empresta magia à personalidade da princesa. Ou seja, torna a sua personalidade também mágica para que possa confrontar-se com os poderes da bruxa-má que detém poderes mágicos malignos. Branca de Neve ao encontrar a casinha dos sete anões, acha-a em total desordem, ou seja, ela mesma está depauperada e, à medida que vai arrumando e HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 109 organizando a casa, vai-se reconstruindo aos poucos. A princesa desenvolve-se, torna-se mulher e, com os hormônios e o desejo em ebulição, também clama por seu homem, o príncipe que, no caso, já veio a conhecer antes de fugir para o seu exílio. Atente-se que nenhuma das princesas sabe que os homens pelos quais se apaixonaram são príncipes, apenas fazem esta descoberta quando já estão a caminho do altar. Desfaz-se, assim, a tese de que as mulheres, identificadas com os contos de fadas, sonham com um príncipe encantado. Não, se as três princesas sub oculi revelam o imaginário feminino, elas apenas sonham com um homem para amar e serem amadas. Se forem príncipes será apenas uma feliz coincidência tanto que a Bela Adormecida, ao saber que está prometida a um príncipe e que terá que se afastar do homem por qual se apaixonou no bosque, cai em profunda depressão. Cinderela também, ao apaixonar-se pelo belo rapaz que encontrou nos arredores do palácio, não sabia que ele era o príncipe encantado. Disso, concluise que, quem encanta os príncipes são as próprias mulheres ao amálos. Mas não fujamos de nossa querida Branca de Neve. No auge de sua adolescência, a sua mãe descobre que ela é bela e que não foi destruída. Mostra-se para ela como uma bondosa mulher idosa, ou seja, que não competirá com ela, escondendo dentro de si uma mãe-bruxa. Branca de Neve, assim como a Bela Adormecida, também se deixa seduzir e magnetizar pelos ardis da mãe-bruxa. Esta sedução é exercida através da maçã. Branca de Neve morre por deixar-se vencer pelo seu próprio masoquismo. Ao morder a maçã, Branca de Neve refaz a sua relação erótica com a mãe (a maçã é, desde a Bíblia, símbolo do erotismo e da tentação). No entanto, mesmo tendo a sua feminilidade e beleza sido destruídas, ao retornar ao anelo doentio com a sua mãe, outros lados de sua personalidade simbolizados pelos sete anões e guiados justamente pelo anão que se chama "Zangado", portanto a sua própria raiva, conseguem matar a mãe-bruxa. Logo, é a raiva e a zanga de Branca de Neve por ter retornado à relação doentia com a sua mãe que mobiliza toda a sua personalidade na simbologia dos sete anões e serve como antídoto contra a mãe-bruxa. Portanto, mais uma vez, não é o HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 110 príncipe que salva a princesa das garras da mãe-bruxa, mas a personalidade fortificada da própria princesa emblematizada nos sete anões. Ao superar a mãe-bruxa, Branca de Neve consegue, definitivamente, quebrar o anelo e, mesmo estando com a sua sexualidade congelada representada pelo seu caixão de cristal, ela, por ele, ainda chama, tanto que não se enterra, mas continua a expor a sua sedução como uma morta-viva. Na presença do homem que ela deseja, ela desperta e com ele também parte. Ela troca um resto de maçã com o qual ainda está engasgada e que a deixa imobilizada sem exercer a sua feminilidade, ou seja, um pouco de sua relação erótica com a sua mãe, pelo beijo do príncipe que, através de sua boca, ajuda-a a cuspir simbolicamente o que restava dessa relação doentia para fora. Mais uma vez, não é o príncipe quem a traz de volta à vida, foi ela mesma quem se salvou e que continua viva em seu esquife de ouro e cristal. Mas, por amá-lo, ela desperta o seu corpo com o seu beijo e, com ele, segue para viver plenamente como mulher. Esta nova luz dada aos contos de fadas tem, por consequência, a elaboração de juízos totalmente diversos dos construídos anteriormente, quais sejam: as princesas não são vítimas, submissas e coitadinhas, elas são agentes ativos, construtoras de suas próprias histórias, tanto quando mantêm uma relação erótica-sadomasoquista com as suas mães, barganhando as suas identidades, como quando resolvem, pelos seus próprios desejos afetivos e sexuais, quebrarem o anelo neurótico. Nos três casos não é o príncipe que consegue resgatá-las, mas sim, elas mesmas ou suas próprias mães, como no caso da Bela Adormecida. Nessa linda história, é a mãe quem mata os seus próprios demônios para dar espaço à feminilidade da filha que terá a sua sexualidade naturalmente exercitada junto a um homem, a menos que, para tanto, prefira uma mulher ou a masturbação. Logo, os contos não são machistas, pois quem salva as mulheres, tanto as mães como as filhas, dessas relações neuróticas, são elas mesmas. O fato de os pais estarem mortos, dando espaço para a luta neurótica entre mães e filhas, demonstra que a ausência e a omissão paterna incentivam e endossam HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 111 a neurose. Essa morte é simbólica e enfatiza a importância da presença de homens amorosos e saudáveis tanto em relação às suas filhas como em relação às mães delas. Quanto aos príncipes, esses são apenas coadjuvantes nesses contos sobre a construção da feminilidade pela mulher a partir do rompimento da sua relação neurótica com a mãe e com o pai morto (omisso e ausente). Todavia, não pouco importantes mas, ao invés de salvadores, eles são companheiros e cúmplices da mulher nessa jornada. Neste caminho que terá que, primordialmente, ser escolhido por ela mesma, para que possa ser enfrentado e percorrido. Após percorrer as doces, saborosas e trágicas linhas de um conto de fada, a menina recebe o beijo de boa noite de quem a contou, dorme tranqüila e sonha com a mulher que, um dia, ela, também, há de ser. Ela, como as princesas dos contos, sente receber um outro beijo, não o de um príncipe, mas o de seu confortante destino inarredável que assim se traduz ao final do conto: “...e foram mulheres para sempre...”. Fecha-se o livro. Apaga-se a luz. A menina-mulher germina. Consultas Bibliográficas Disney, Walt (2000). Branca de Neve e os Sete Anões. São Paulo: Ed. Melhoramentos. Baseado nos Contos de Grimm (1812) dos Irmãos Grimm. Disney, Walt (2000). Cinderela. São Paulo: Ed. Melhoramentos. Baseado nos Contos de Grimm (1812) dos Irmãos Grimm e na obra A Gata Borralheira (1697) de Charles Perrault. Disney, Walt (2000). A Bela Adormecida. São Paulo: Ed. Melhoramentos. Baseado nos Contos de Grimm (1812) dos Irmãos Grimm e na obra A Bela Adormecida no Bosque (1697) de Charles Perrault. Goethe, Johann Wolfgang Von (1991). Fausto. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia. Yourcenar, Marguerite (1990). Peregrina e Estrangeira. Rio de Janeiro: HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 112 Nova Fronteira. Indicações Bibliográficas Apter, Terri (1997). Amores Alterados (Mães e Filhas durante a Adolescência). Rio de Janeiro: Rocco. Aroso, Albino (2001). De Mães para Filhas, de Filhas para Mães. Lisboa: Âmbar. Beauvoir, Simone (1987). A Velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Beauvoir, Simone (1987). Força da Idade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Beauvoir, Simone (1980). O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. Bettelheim, Bruno (2001). A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra. Exley, Helen (2000). Mães e Filhas. Lisboa: Texto Editora. Hunter, Evan (1980). Mães e Filhas I. Lisboa: Ed. Europa-América. Hunter, Evan (1980). Mães e Filhas I I. Lisboa: Ed. Europa-América. Larsen, Carolyn (1999). A Bíblia das Meninas (Para Mães e Filhas). São Paulo: Mundo Cristão. Naouri, Aldo (1998). As Filhas e Suas Mães. Lisboa: Pergaminho. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 113 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 114 A EMANCIPAÇÃO DA MULHER BRASILEIRA NO FINAL DO SÉCULO XIX SOB A ÓTICA DE JÚLIO RIBEIRO NA OBRA “A CARNE” 1 Jorge Luis Coelho Gomes2 Jordânia Maria Pessoa3 INTRODUÇÃO Iniciamos a escrita desse trabalho explicando um pouco a respeito da obra escolhida para análise, “A Carne” de Júlio Ribeiro, que se constituí em uma obra naturalista, período literário que segundo Alfredo Bosi: “[...] é uma escola literária conhecida por ser a radicalização do Realismo, baseando-se na observação fiel da realidade e na experiência, mostrando que o hereditariedade”. 4 indivíduo é determinado pelo ambiente e pela Nos debruçando com mais afinco a respeito da obra pudemos perceber que no período de seu lançamento a mesma foi censurada sob a acusação de pornografia; fazendo-se necessário saber que não foi apenas a obra de Júlio Ribeiro que recebeu essa “punição” mas também outros literatos que se dispuseram a escrever sob determinado assunto, que assim como A carne, foram considerados como uma literatura promíscua e de desvio de conduta. O XIX foi um século bastante agitado no que tange a esfera nacional, pois iniciou-se sob a pressão de reivindicações independentistas de cunho liberal, que logo poriam termo ao período colonial, em seguida viu crescer pressões abolicionistas, explodirem revoltas provinciais que uniam elites insatisfeitas e massas dessasistidas, e, ao fim, viu surgirem 1 Artigo apresentado à Disciplina: História Contemporânea I para obtenção da 3ª nota referente ao período 2009.2 . 2 Acadêmico do Curso de História, 7º Período, CESC/UEMA 3 Professora Mestre do Departamento de História e Geografia do CESC/UEMA 4 BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 196. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 115 ideias republicanas, fortemente influenciadas pelo positivismo muito em voga, em meio a ventos democráticos e socialistas.5 Tratamos também de um fato corriqueiro dentro da história da literatura brasileira que são as influências; estas que se fazem presentes desde o começo da obra de Júlio Ribeiro, onde o autor dedica seu livro primeiramente à Émile Zola, um francês que foi o idealizador do naturalismo e o escritor que mais se identificou com o movimento. Com base no seguimento (cumprimento) dessas ideologias francesas transpostas para a escrita de Júlio Ribeiro foi que ocasionou com que seu livro, poucos anos após a sua publicação se tornassse uma obra de mau gosto e considerada um erro no que corresponde a essa estética naturalista, e que sob o olhar de Antônio Candido e de José Aderaldo Castelo: “[...] a obra levou os dogmas naturalistas ao extremo, misturando uma narrativa ficcionalmente débil a um arsenal pseudocientífico de mau gosto, sem função na estrutura do livro, que redundou em fracasso estético[...]”.6 Abordando a questão da mulher brasileira, a história e a literatura neste ponto mantém uma certa convergência, pois observamos na escrtia do autor um anseio na representação dessa mulher que com o decorrer dos anos vem adquirindo um novo desejo de estar presente na sociedade, mas não adquirindo um papel apenas de figurante e sim atuando de forma significativa, que é o que evidenciamos quando Júlio Ribeiro nos fala: “[...] Lenita: a que devora obras de ciência”.7 Mostra-nos atráves de inúmeras partes do seu livro esse desejo que a mulher começa a manifestar de ser um ser humano atuante, e que faz-se presente não somente na literatura mas bem como na realidade, onde podemos citar Sandra Jatahy Pesavento, no seu Artigo intitulado História & literatura: uma velha-nova história que nos mostra que: 5 Cf. FAUSTO, Boris (org.). O Brasil Republicano. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004. CANDIDO, Antonio e CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira II: do Romantismo ao Simbolismo. 3. ed. São Paulo: Ed. Difusão Européia do Livro, 1968, p. 76. 7 RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 50. 6 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 116 Por vezes, esta aproximação da história com a literatura tem um sabor de dejà vu, dando a impressão de que tudo o que se apregoa como novo já foi dito e de que se está “reinventando a roda”. A sociologia da literatura desde há muitos anos circunscrevia o texto ficcional no seu tempo, compondo o quadro histórico no qual o autor vivera e escrevera sua obra. A história, por seu lado, enriquecia por vezes seu campo de análise com uma dimensão “cultural”, na qual a narrativa literária era ilustrativa de sua época. Neste caso, a literatura cumpria face à história um papel de descontração, de leveza, de evasão, “quase” na trilha da concepção beletrista de ser um sorriso da sociedade... 8 Pelo fato de estarmos utilizando em nossa análise a cidade de Santos localizada no estado de São Paulo (lugar social onde a obra é contada pelo autor) no final do século XIX; percebemos que é de extrema importância adequarmos a esse estudo o prefácio que Sérgio Adorno faz sobre o livro: Os Prazeres da Noite, de Margareth Rago, já que a mesma trabalha com a última década do século XIX, e no que tange à essa mulher com um viés emancipatório nos diz o seguinte: “[...] a família burguesa, a mulher burguesa que reivindica sua presença no espaço público”.9 Universo povoado por muitos estereótipos e acreditando-se em um senso comum, a sociedade brasileira do período analisado também à vê sob essa mesma ótica, a mulher, o ser feminino, é vista como um sexo frágil, algo dependente e incapaz de estar dissociada de um matrimônio ou de outras formas de sociabilidades que lhe deixem sob o julgo de um marido (homem), pois faz parte da masculinidade se ter um controle sobre a mulher, e a que se manifestar contrária a essas imposições corre o risco de sofrer as consequências e os estigmas da sociedade. 8 Sandra Jatahy Pesavento, « História & literatura: uma velha-nova história », Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En línea], Debates, 2006, Puesto en línea el 28 janvier 2006. URL : http://nuevomundo.revues.org/index1560.html. 9 RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 19. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 117 HISTÓRIA E FICÇÃO A História e a Literatura, nos referimos à ambas como disciplinas, possuem o papel de inserir o indivíduo no universo da ciência e das artes, que constituem duas faces do mesmo ser: o homem na sua integralidade; e partindo para uma análise um tanto quanto semântica, a raiz (princípio) de tudo mesmo é a palavra, a linguagem verbal que, enquanto ação humana, constrói, reconstrói e destrói realidades. De acordo com o discurso proferido no College de France por Focault: “[...] uma mesma e única obra literária pode dar lugar, simultaneamente, a tipos de discursos bem distintos [...]”. 10 E é justamente sob essa conjuntura que história e ficção de entrelaçam, pois cada uma faz uso do discurso que lhe é mais adequado para a exposição de suas ideias e proposições, julgamentos e observações, utilizando-se de mecanismos aliados ao campo da linguagem para uma enunciação. A identidade feminina, como se vê, caminha ao lado da identidade nacional, pelo menos era essa a perspectiva do neorrealismo11, no entanto essa perspectiva associa reivindicações de gênero às sociais, isto é, as articulações feministas subordinavam-se às representações da sociedade. O autor faz uso desse tipo de articulação no seguinte trecho, onde há a evidência desse desejo feminino por uma relação, uma efetivação de sua sexualidade, visto que de acordo com a sociedade da época era inconcebível uma mulher pura e direita manifestar esse tipo de desejo, todavia, observemos que: 10 FOCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 17. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 24. 11 Segundo Alfredo Bosi; a literatura neorrealista teve no Brasil e em Portugal motivações semelhantes, resgatando valores do realismo e naturalismoo do fim do século XIX com forte influência do modernismo, marxismo e da psicanálise freudiana. No entanto, o determinismo social e psicológico do naturalismo é mantido, assim como a analogia entre o homem e o bicho, a busca pela objetividade e neutralidade como formas de dar credibilidade à narração. BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 118 “Depois mudava de pensar: não estava doente, seu estado não era patológico, era fisiológico. O que ela sentia era o aguilhão genésico12, era o mando imperioso da sexualidade, era a voz da carne a exigir dela o seu tributo de amor, a reclamar o seu contingente de fecundidade para a grande obra da perpetuação da espécie”. 13 Com base na citação anterior podemos perceber que o que chamamos de história é também uma percepção da memória, a memória própria de quem viveu ou observou o que aconteceu, o testemunho de outros, registros, documentos, imagens, etc. A História nunca é aquilo que aconteceu, mas aquilo que permite significar o que aconteceu; pois assim como o discurso14 literário, o discurso histórico é uma representação semântica15 “retocada” porque, como qualquer representação, implica numa perspectiva autorial, uma seleção de fatos e uma ideologia. Corroborando com os pressupostos afirmados acima, o estudioso Helder Macedo em um artigo que escreveu para o livro: Literatura e história: três vozes da expressão portuguesa nos mostra que: “[...] há uma diferença irredutível entre a História e a Literatura, mesmo quando o ato da escrita ambiguamente as aproxima: a narrativa histórica assenta sobre aquilo que se pode provar que aconteceu, enquanto que a narrativa literária pode lidar com o que aconteceu, ou não aconteceu, ou poderia ou não acontecer.” 16 12 Segundo o Dicionário de Termos eróticos e afins, o termo genésico significa “[...]que tem faculdade de procriar[...]”, ou seja, quem está hábil a ter filhos. ALMEIDA, Horácio de. Dicionário de Termos Eróticos e Afins. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1981. 13 RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 40. 14 Cf. FOCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 17. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 24. 15 Cf. OLIVEIRA, Luciano Amaral. Manual de Semântica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. 16 CARVALHAL, Tania Franco e TUTIKIAN, Jane. (org). Literatura e história: três vozes da expressão portuguesa. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 1999. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 119 O que a historiografia moderna também acabou por entender é que, com a emergência de uma História já não exclusivamente devotada aos chamados grandes acontecimentos e às personalidades dominantes das nações triunfantes, mas também às vidas cotidianas dos sem-nome, às comunidades marginais (como as prostitutas por exemplo), e até mesmo àquilo que “desaconteceu” nas sociedades humanas. O resultado deste alargamento do campo semântico da História foi torná-lo capaz de abranger, através da sua metodologia própria, todo um relativismo que até então só a literatura tinha sido capaz de significar. O historiador trabalha voltado para o passado; o escritor também quer recuperar o passado. Contudo, a diferença, porém, está no fato de que o escritor tem a permissão de alterar o passado e, com isso, sugerir que o presente e o futuro possam ser outros. O passado para o literato não pode ser alterado pelo presente, mas o futuro sim. História e Literatura, cada um desses discursos vai refratar a realidade a partir dos seus domínios, suas convergências, visto que cada um deles tem uma função social específica na totalidade da sociedade. Com base nessa diferença é que a Profª Teresa Cristina Cerdeira da Silva em sua participação no livro Literatura e história: três vozes da expressão portuguesa nos mostra como se dá o trabalho de pesquisa e elaboração historiográfica, evidenciando também os cuidados necessários para tal elaboração, observemos que: “Ao saber-se incapaz de assumir o papel de ‘ressuscitar os mortos’, a História se propõe uma releitura dos documentos, não mais como armazéns da verdade, mas como formas discursivas que fixaram, de maneira parcial e pessoal, um dado acontecimento. De certa maneira o historiador, para crer no documento, começou por duvidar dele, pois o compreendeu como uma produção que determinados agentes sociais HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 120 puderam fixar no tempo de modo a preservar o poder.”17 O que podemos evidenciar dentro desse viés História e Ficção é que se estabelece uma distinção entre realidade e imaginação, entre real concreto e representação. Consequentemente, conhecer a realidade se constituí no objetivo da História e produzir ficção, no da Literatura. Ambas, nessa perspectiva, se colocam em campos opostos: a História uma ciência e a Literatura uma arte. Acreditamos, contudo, que em concordância com Luiz Eugênio Véscio e Pedro Brum Santos faz-se necessário evidenciar o que dizem sobre Nelson Rodrigues no livro Literatura e História: perspectivas e convergências onde nos mostra que: “[...] o autor não se pejou nunca de fabular a vida, inventando o que fosse necessário para dizer a verdade”. 18 A MULHER NO SÉCULO XIX Durante o século XIX a sociedade brasileira protagonizará uma série de transformações que irão propiciar novas alternativas de sociabilidades no que se refere ao universo feminino; as mesmas começam a ter certa liberdade para usufruir de novas atividades tanto familiares quanto domésticas, onde poderemos observar uma inserção dessas mulheres em um mercado de trabalho, bem como num período marcado pela valorização da intimidade e da maternidade. 19 Marco dentro da escrita de “A carne” 20 é que Júlio Ribeiro é capaz de nos mostrar como estava se dando essas novas formas de comportamento dentro desse espaço feminino, sendo esse um dos 17 CARVALHAL, Tania Franco e TUTIKIAN, Jane. (org). Literatura e história: três vozes da expressão portuguesa. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 1999, p. 111. 18 VÉSCIO, Luiz Eugênio e SANTOS, Pedro Brum (org). Literatura e História: perspectivas e convergências. São Paulo: EDUSC, 1999, p.13. 19 Cf. PRIORE, Mary Del. História das Mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2008. 20 RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 121 objetivos do naturalismo, retratar com fidelidade aquilo que acontecia, e por mais que ele esteja utilizando de um romance, que se constitui como uma obra de ficção, podemos comparar (a obra) com escritos historiográficos que nos mostram o Brasil da época abordada para uma comparação efetiva e eficaz. Primeiramente temos uma descrição de Júlio Ribeiro sobre a protagonista de sua obra no que se refere à essa permissão da mulher ter conhecimentos educacionais, observemos que: “Leitura, escrita, gramática, aritmética, álgebra, geometria, geografia, história, francês, espanhol, natação, equitação, ginástica, música, em tudo isso Lopes Matoso exercitou a filha porque em tudo era perito: com ela leu os clássicos portugueses, os autores estrangeiros de melhor nota, e tudo quanto havia de mais seleto na literatura do tempo.” 21 No que se refere ao começo do século XIX essa era uma realidade ainda pouco vista, pois o que se idealizava para a mulher brasileira era um vida cheia de afazeres domésticos, um sólido ambiente familiar, filhos educados, dedicação exclusiva ao marido tanto para vida domiciliar quanto social, esse sim era considerado o tesouro da mulher no limiar do século XIX. Júlio Ribeiro faz uso do cotidiano brasileiro para representar por meio de seu romance esse processo de mudança social que no começo do século era de uma forma, a mulher direcionada especialmente para o seu lar, e no final do oitocentos percebemos um direcionamento mais conciso para uma esfera emancipatória dessa mulher ansiosa por mudanças sociais e capazes de mostrar seus desejos, sejam eles luxuriosos ou não. Julio Ribeiro ao escrever sua obra prima, procurou expressar aquilo que até então não tinha sido evidenciado pela literatura brasileira, ou melhor, procurou falar de uma mulher (e para isso escolheu a figura de Lenita) que representasse os anseios (no que se refere ao saber 21 RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 13. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 122 educacional) e os desejos (no que se refere aos prazeres da carne) dessa mulher que durante tanto tempo foi “excluída” de uma escrita que retratasse suas singularidades. Utilizamos de um paralelo intertextual para analisarmos a escrita de Maria Aparecida Baccega, que em seu livro intitulado Palavra e Discurso: História e Literatura nos mostra como está enraizado dentro da nossa cultura historiográfica e nas entrelinhas da escrita literária, uma preferência pela vida das “estrelas” e não pela vida dos “excluídos”, vejamos o que ela diz: “O que buscamos quando estudamos história, quando procuramos estabelecer o passado, é saber como os homens, em culturas diferentes, portanto com outros meios, lutaram por seus valores; buscamos compreender o passado como construtor do nosso presente, o qual já traz em si o futuro; buscamos avaliar, interpretar como ocorreram as transformações do homem no seu relacionamento com o mundo, no processo de construção das sociedades. Para que esse objetivo seja alcançado, é preciso ter ‘ouvidos para ouvir’ e ‘olhos para ver’ a história dos vencidos, dos silenciados pela força. Essa é a história que a história oficial não contempla”. 22 Dentro do romance, o autor procurou mostrar que desde menina, as mulheres do século XIX eram ensinadas a ser mãe e esposa, sua educação limitava-se a aprender a cozinhar, bordar, costurar, tarefas estritamente domésticas. Carregava o estigma da fragilidade, da pouca inteligência, entre outros que fundamentava a lógica patriarcal de mantêla afastada dos espaços públicos. A negação de outros espaços além da casa/quintal as afastava também da educação formal, não sendo permitido o acesso à escola. E foi com o objetivo de contrapor a todos esses conceitos até então já pré-estabelecidos por uma sociedade patriarcal23 que Júlio Ribeiro escreveu o livro em questão, pondo em cheque conceitos 22 BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso: História e Literatura. São Paulo: Ed. Ática, 2003, p. 66. 23 Cf. PRIORE, Mary Del. História das Mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2008. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 123 que estavam sendo mudados e que a mulher a partir de então já começava a adquirir um novo espaço dentro das relações sociais, sendo o de não mais ser educada exclusivamente para o casamento (lar) e sim para a vida. Expressão desse sentimento é a forma com que Júlio Ribeiro nos fala de Lenita, : “Depois, quando ficasse velha, quando se quisesse aburguesar, viver como toda gente, casar-se-ia. Era tão fácil, tinha dinheiro, não lhe haviam de faltar titulares, homens formados que se submetessem ao jugo uxório que lhe aprouvesse a ela impor-lhes. Era pedir por boca, era só escolher”.24 O texto acima nos mostra claramente como era o pensamento de Lenita à respeito do casamento, e com base em sua protagonista é que mais uma vez o autor fez uso de suas ações para uma demonstração de como o comportamento feminino estava adquirindo uma nova significância no âmbito das sociabilidades. OS PRAZERES DA CARNE De acordo com os estudos de Maria Aparecida Baccega25 podemos entender que as questões colocadas no discurso literário são questões do cotidiano, manifestadas nos discursos do cotidiano; e é através desses discursos que o autor utiliza para uma descrição particular a respeito dessa mulher brasileira, no entanto, novamente devemos ficar atentos à esse discurso literário26, que pode ser visto como uma apresentação através da palavra, de um pensamento, de uma visão de mundo do autor, pois a literatura , mais que nenhum outro domínio 24 RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 45. BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso: História e Literatura. São Paulo: Ed. Ática, 2003. 26 Cf. FOCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 17. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008. 25 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 124 ideológico, trabalha com a globalidade, ou seja, apropria-se de todos os discursos. Para entendermos a questão do discurso dentro da obra nos remetemos a outro tema bastante peculiar que aparecerá nos romances naturalistas, despidos dos véus idealizantes próprios do movimento literário anterior que é o Romantismo e que está ligado à questão da sexualidade. Dentro da história da literatura brasileira27 – no Naturalismo – entramos em contato com inúmeros personagens que são guiados pelas influências do meio (teoria determinista), mas, sobretudo por seus instintos, que os levam a concretização dos atos pelos desejos da carne, atos estes muitas vezes condenados pela Igreja Católica que como é o caso da pederastia28. Júlio Ribeiro dentro de seu romance trabalha com a sua personagem de uma forma bastante particular, onde vem nos mostrar através de sua escrita uma mulher independente, culta, à frente de seu tempo, embora não siga com este modelo até o final de seu romance o que o autor procura mostrar com tal representação é uma mulher totalmente diferente daquela visão pré concebida, uma mulher diferente, utilizada como símbolo triunfante da feminilidade e que não suprime suas convicções sobre o sexo; observemos que: “O cheiro humano masculino que respirara na travessia de Barbosa fora realmente um veneno para os seus nervos. Sentia-se de novo presa do mal-estar do histerismo antigo. Tinha anseios, tinha desejos, mas anseios, desejos acentuados, visando a objetivo certo. Ela ansiava por Barbosa, ela desejava Barbosa”. 29 27 BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. Segundo o Dicionário de Termos eróticos e afins, o termo pederastia significa: Relação sexual entre homens, homossexualismo. . ALMEIDA, Horácio de. Dicionário de Termos Eróticos e Afins. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1981. 29 RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 56,57. 28 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 125 Durante toda a obra o autor versa sob a ótica de uma mulher sagaz, inteligente, determinada; fazendo nos lembrar que a literatura, diferentemente, além de nos trazer o cotidiano “vivo”, com todas as ações e reações aí presentes, vai construir seu próprio herói; e Lenita se constitui na heroína de Júlio Ribeiro, e utilizando as palavras de Margareth Rago30, a femme fatale que, embora não seja originariamente prostituta, é frequentemente associada a ela, pelo simples fato de possuir uma personalidade diferente das demais donzelas da sociedade a qual faz parte. Diferentemente da prostituta, que utiliza as relações sexuais de forma comercial, e que era estigmatizada pela sociedade, Lenita representa dentro da literatura brasileira essa mulher “diferente” que não sente medo nem vergonha de expor suas vontades (desejos) e que está disposta a enfrentar as mais diversas concepções para ter seus desejos saciados, observemos que: “Se era a necessidade orgânica, genésica de um homem que a torturava, por que não escolher de entre mil um marido forte, nervoso, potente, capaz de saciála? E se um lhe não bastasse, por que não conculcar preconceitos ridículos, por que não tomar dez, vinte, cem amantes, que lhe fatigassem o organismo? Que lhe importava a ela a sociedade e as suas estúpidas convenções de moral?”. 31 Com um olhar voltado mais para o viés do prazer, Margareth Rago32 nos mostra como a entrada da mulher nos espaços de sociabilidades não foi vista de uma forma saudável pela sociedade, mas sim dotada de ambivalências e que podia-se chegar à confundi-las com mulheres da vida, pois pelo fato de estarem circulando nas ruas e nas praças com uma frequência maior, sua entrada no mercado de trabalho (fábricas), as reuniões sociais, os restaurantes da moda, as festas badalas 30 Cf. RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 43. 32 Cf. RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008. 31 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 126 nos teatros e dentre uma vasta gama de sociabilidades que se refere ao lazer são percebidas de maneira maliciosas; pois as mulheres “desonestas” e “perdidas” poderiam frequentar também os mesmos espaços. Nessa representação de contemporaneidade registra-se uma intensa transformação no imaginário sexual e no perfil dessa “nova” mulher, já muito diferente das citadas em períodos anteriores ao Naturalismo, onde o autor manuseia ingredientes duma porção infalível; que se constituem sobretudo na figura de Lenita, a representante dessa tematização do corpo feminino, onde o que está em discussão seria o novo estatuto da mulher nos últimos anos referentes ao século XIX. CONSIDERAÇÕES FINAIS Acreditamos, contudo, que a literatura pode nos revelar aspectos importantes das formas de pensar e sentir de uma determinada sociedade. Os romances traduzem os anseios, captam as angústias, fantasias, desejos de uma determinada época, e não apenas de uma classe social a que pertencia o autor. Além do mais, a literatura constrói a sua representação do fenômeno, que tanto pode atuar como ponto de referência para o leitor, como responder às suas aspirações. Contudo percebemos que o historiador contemporâneo se encontra imerso na multiplicidade e na diferença, nega-se a deixar sempre calados “os esquecidos da História”; faz, então, falar diferentemente os documentos, indaga-os em seus silêncios, em suas ausências, em suas falhas. E nada melhor do que uma obra literária, que se constitui para uns historiadores como um documento, para outros não, para percebermos as diferentes possibilidades de análise que a mesma pode suscitar dentro dessa ótica historiográfica, e como se constitui em um “documento” 33 33 Coloco em aspas a palavra documento justamente por haver essa dicotomia em se tratar uma obra literária como um documento ou não. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 127 silenciado, cabe a nós historiadores darmos as interpretações cabíveis e indispensáveis a tal escrito. Pelo fato de nos defrontarmos com um mundo povoado por estereótipos e clichês, vimos a necessidade de tentar desfazer alguns; sendo que temos a plena consciência de que essas rupturas não se dão da noite pro dia, e que todo processo de ruptura se constitui em um processo traumático, nos dispomos aqui a enfrentarmos essa empreitada de mostrar a mulher como um ser indubitavelmente indispensável dentro da historiografia e que compete a nós historiadores tecermos uma escrita que venha legitimar essa verdadeira e importante participação feminina dentro da história, seja ela a nível nacional ou não. Para isso utilizamos da literatura como fonte capaz de nos mostrar o que os historiadores da época não tinham coragem ou até mesmo não se atentaram para as mais diversas particularidades que o ser feminino podia lhes proporcionar, mas que os literatos se dispuseram a fazer o trabalho que por motivos desconhecidos a história por um momento os negligenciou. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Horácio de. Dicionário de Termos Eróticos e Afins. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1981. AMARAL, Pedro. Revista de História e Estudos Sociais: Contradições da Carne – A Mulher e o Negro em dois momentos do naturalismo brasileiro. Vol. 4. Ano IV. Nº 02. BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso: História e Literatura. São Paulo: Ed. Ática, 2003. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 128 BARROS, José D’Assunção. O Campo da História: especialidades e abordagens. Petrópolis: Vozes, 2004. BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura brasileira. 43. ed. 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Sandra Jatahy Pesavento, « História & literatura: uma velha-nova história », Nuevo Mundo Mundos Nuevos [En línea], Debates, 2006, Puesto en línea el 28 janvier 2006. URL : http://nuevomundo.revues.org/index1560.html. SANTOS, Pedro Brum. Teoria do Romance: relações entre ficção e história. Santa Maria: Editora da UFMS, 1996. VÉSCIO, Luiz Eugênio e SANTOS, Pedro Brum (org). Literatura e História: perspectivas e convergências. São Paulo: EDUSC, 1999. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 130 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 131 Nas entrelinhas, Zélia Almeida “Se eu não fosse professora, eu queria ser professora” Alinne Suanne1 Bem disposta, a professora Zélia Almeida me aguardava na sala de professores da Universidade de Pernambuco (UPE), em Petrolina. Recepcionou-me com elegância e um belo sorriso nos lábios. A sua gentileza se sobressaia naquele cenário agitado, com professores apressados, alunos passeando pelos corredores e funcionários falando ao telefone. Emocionada, Zélia Almeida abriu o baú da sua infância e recordou-se da fazenda Boa Sorte, localizada no município de Mundo Novo-Ba, onde nasceu no dia sete de Janeiro de 1930. Seu pai, Izidro Bispo de Oliveira, era um agregado da fazenda e, com o tempo, mudou-se com sua família para a fazenda Caldeirão onde a sua esposa, Maria Almeida de Oliveira, tinha sido criada. Com muita alegria, relembra as peraltices da Zélia criança na fazenda Caldeirão. “Brincava muito. Brinquei bastante com borboletas, de casinha, de quitute, bonecas e de comadre. Foi muito gostoso”. Apreciadora da natureza, na fazenda, ela tinha contato com animais, dos quais a borboleta era o que chamava mais atenção. “A beleza e o colorido me atraiam e até hoje eu acho bonito, mas não me sinto uma pessoa voadora”, conta, entre risos. 1 Aluna do curso de licenciatura plena em História da UPE – Campus Petrolina. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 132 Mesmo com as dificuldades que enfrentava, o gosto pelos estudos foi bastante incentivado pela matriarca da família. ”Não fui menina rica, sempre fui pobre. Mas minha mãe era voltada sempre para o estudo, podia não ter nada, mas tinha que estudar”. Orgulhosa ressalta que a sua mãe foi a sua primeira professora, autodidata, pois não tinha curso de magistério. Na adolescência, a garota Zélia foi escolhida pela Igreja Presbiteriana, a qual fazia parte, para ir estudar no colégio Instituto Ponte Nova, na cidade de Vagner-BA. Era uma escola fundada por americanos e tinha alunos de todo o Estado. Os requisitos para a vaga era obediência e bom comportamento. Após muitas dificuldades, conseguiu ser selecionada e concluir o curso secundário. A partir desse momento, começaria a realizar o seu maior sonho: ser professora. O primeiro emprego foi numa escolhinha da Igreja Batista, na cidade Rui Barbosa-BA. Posteriormente, recebeu um convite dos diretores da escola que havia estudado para ensinar no Instituto Samuel Granam, em Jataí, no sudoeste de Goiás. “Mas será que eu estou fazendo a vontade de Deus?”, perguntava-se. Bastante religiosa, conta que rogou a Deus: se for sua vontade, eu aceito o convite. Zélia não recusou o convite e foi morar em Jataí. “Eu estava radiante, começando a conhecer outras cidades. Sofri muito, sentir muitas saudades da minha família. Passei dois anos sem vêlos”. Sempre muito dedicada, a Zélia adulta dividia-se em várias personalidades. Professora exigente, amiga, filha, irmã, tia e religiosa. Como educadora, sempre muito ativa, dedicou-se a várias áreas do saber, inclusive Educação Física. Em busca de mais oportunidades de estudo, decidiu vir morar em Juazeiro em 1968. A iniciação como aluna de ensino superior foi na década de 1970 na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras em Juazeiro – BA. Optou pelo curso de Ciências Sociais, mas não concluiu, pois a faculdade deixou de funcionar. Contudo, não desistiu do sonho. Ela ingressou na Faculdade de Formação de Professores de Petrolina (FFPP), no curso de Licenciatura curta em Estudos Sociais. Para a jovem ainda era pouco. Zélia desejava formar-se em HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 133 Licenciatura Plena em Geografia, porém conseguiu licenciar-se em História na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras na cidade de Caruaru - PE. Durante alguns anos foi Coordenadora Pedagógica da Escola Marechal Antonio Filho (EMAAF). Na época, surgiu mais uma oportunidade de conhecer novas áreas do conhecimento. Zélia voltou à universidade e concluiu o curso de Pedagogia também na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras, de Caruaru. Ao longo de sua trajetória como profissional, Zélia Almeida trilhou um caminho de sucesso e deixou boas lembranças no colégio Edson Ribeiro em Juazeiro - BA, onde lecionava Educação Artística, no Ginásio Industrial de Petrolina e no Colégio Estadual de Petrolina. A convite do professor Joaquim Santana, Zélia ingressou como professora substituta no curso de Licenciatura Plena em História, na FFPP. No ano de 1988, passou no concurso público e se tornou docente da disciplina História da Educação. Atuou como chefe no departamento de Pedagogia, como representante dos professores no Conselho de Ensino e Pesquisa, em Recife, e atualmente ensina nas disciplinas de Estágio Supervisionado. É a professora mais querida da faculdade. O que mais encanta esta profissional é o relacionamento que mantém com os alunos. “É um sentimento de contribuição e isso me faz vibrar com a Educação”. Ser professor, para esta mestra, é um compromisso com a vida. “Educar é contribuir para a transformação de vida nos limites da ética, da moral e do espiritual”. Emocionada, recorda-se de um episódio difícil nestes 21 anos de carreira. “Uma turma do curso de Pedagogia conseguiu o rascunho de uma prova minha. Todos tiraram notas boas. Desconfiei do que tinha ocorrido e não entreguei o resultado. Os alunos ficaram zangados ao ponto de falar que não ensinava nada. Fiquei muito chateada. Mas não chorei, fui forte, e toda vez, que entrava na sala deles dizia: apesar de que eu não ensino nada a vocês, vou trabalhar para que vocês aprendam alguma coisa”. Os momentos felizes são muitos e com os olhos cheios de lágrimas, narra as palavras amigas de uma ex-aluna durante uma banca examinadora HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 134 na Universidade do Estado da Bahia (UNEB). A aluna lhe disse: não gostava de História, mas aprendi a gostar com essa mulher. Para Zélia, foi uma felicidade ouvir aquelas palavras. Zélia hoje se sente uma menina com espírito jovial. Estuda diariamente e tem como livro de cabeceira a Bíblia. Assiste a filmes religiosos ou voltados ao campo educacional. Sorrindo, diz que é uma pessoa muito amada preferindo aconselhar a entrar em conflitos. Quanto ao trabalho, almeja permanecer mais um tempo: “nunca me vir em outra profissão, porque foi um sonho. Eu sou feliz sendo professora. Professor é como se fosse o tijolinho da casa que se chama Educação”. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 135 NORMAS EDITORIAIS GERAIS A revista Historien têm por finalidade publicar artigos, ensaios, resumos comentados e resenhas. Esta publicação dependerá da observância das Normas Editoriais. Os conceitos e as opiniões emitidos são de inteira responsabilidade dos autores. 1. O docente/discente pesquisador interessado na publicação de obra própria deve encaminhar os originais, apresentados em arquivo eletrônico, digitados em Word, espaço 1.5, Times New Roman ou Arial 12 e devem conter, no mínimo de 5 laudas; não usar sublinhado; os textos não devem ter quebra de página, quebra de coluna e quebra de seção. 2. Os artigos devem ser escritos em português; 3. Usar somente nomenclaturas oficiais e abreviaturas consagradas, não empregando abreviaturas no título do artigo; 4. O original deve ser precedido de uma folha de rosto contendo: - Nome do autor; -Referência aos seus principais títulos e atividades acadêmicas segundo a ordem de importância e em harmonia com a matéria do texto. Utilizar no máximo 3 (três) linhas; - Telefone (s) e endereço do autor para correspondência por correio e por meio eletrônico; 5. O artigo deve ser precedido de: a. resumo contendo, preferencialmente, a descrição e das conclusões do trabalho (no caso de artigo). Não devem constar citação de autores e tabelas. Para sua elaboração, a norma ABNT deve ser considerada. O resumo deve ser apresentado em português 5 a 10 linhas. b. As citações devem ser feitas por sobrenome do autor, data e, se possível, número de página. Em nota de rodapé. As citações seguem a normalização da ABNT. 6. Caso o texto tenha ilustrações é necessária a obtenção pelo autor, dos direitos de utilização. a. As imagens devm vir em formato eletrônico (JPG ou GIF). Caso contrário, enviar os respectivos originais para serem escaneados. b. As tabelas devem ser geradas em Word; HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 136 7. As referências devem ser arranjadas em ordem alfabética por sobrenome do autor. Os títulos de periódicos devem ser mencionados por extenso. As referências seguem a normalização da ABNT 8. Para agilizar o processo de produção gráfica, deverão ser obedecidos os seguintes critérios: - boa legibilidade; - para qualquer destaque no corpo do texto usar negrito; - ilustrações: mencionar a fonte de onde foi extraída; os dados bibliográficos (autor, obra, página) abaixo da legenda obrigatória. A referência completa, relativa à fonte da ilustração, deve figurar no final do trabalho. As ilustrações devem ser numeradas seqüencialmente e próximas do trecho onde são mencionadas. Os títulos dos gráficos devem vir logo abaixo do desenho e os das tabelas e quadros vêm acima, centralizados; - as citações (palavras, expressões, períodos) devem ter referência bibliográfica e ser cuidadosamente conferidas pelos autores e/ou tradutores, já que são de inteira responsabilidade destes quaisquer incorreções; - as citações textuais longas (mais de três linhas) devem vir em parágrafo independente, recuado da margem esquerda 4 cm, com Times New Roman ou Arial 10. - as citações textuais pequenas (até três linhas) devem ser inseridas no texto, Entre aspas e sem itálico. - nas notas bibliográficas deve-se evitar op. cit., ibidem e idem, utilizando sempre o nome da obra por extenso. Repetir quantas vezes forem necessárias as indicações bibliográficas. - unificação do modo de citar os nomes das obras dentro do texto: • obras em geral (livros, filmes, músicas, programas de TV, quadros, esculturas etc.): itálico e só a primeira palavra com inicial maiúscula, exceção para os nomes próprios. HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 137 HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 138