Ler on-line - Revista Historien

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Ler on-line - Revista Historien
ISSN: 2177 - 0786
ISSN: 2177 – 0786
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 2
Editoração eletrônica: Pablo Michel Cândido Alves de Magalhães
Edição e layout para internet: Francisco Cândido de Magalhães Junior
Ilustração da capa: miscelânea de imagens selecionadas por Christoval Araújo
Santos Júnior
EQUIPE DE EDITORAÇÃO
Andrew Jackson Fernandes Cruz (Graduando UPE)
Cléber Roberto Silva de Carvalho (Graduando UPE)
Christoval Araújo Santos Júnior (Graduando UPE)
Pablo Michel Candido Alves de Magalhães (Graduando UPE)
Rafael de Oliveira Cruz (Graduando UPE)
CONSELHO EDITORIAL
Profª Dra. Lina Maria Brandão de Aras
(UFBA)
Profª. Dra. Rossana Regina Guimarães
Ramos Henz (UPE)
Profª Ms. Andréa Bandeira (UPE)
Prof. Ms. Carlos Romeiro (UPE)
Prof. Ms. Moisés Almeida (UPE)
OBJETIVO DA REVISTA
A Revista Historien é uma produção do Grupo de Estudos Históricos Sapientia
et Virtute, sendo que seus membros são discentes da Licenciatura Plena em
História da Universidade de Pernambuco - Campus Petrolina, juntamente com
professores do corpo docente do referido curso. A proposta da Historien é o
incentivo a produção textual dos alunos da licenciatura, visando a expansão do
conhecimento em história por meio da produção dos próprios acadêmicos.
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meio. A violação dos direitos autorais (Lei nº 9.610/1998) é crime estabelecido
no artigo 184 do Código Penal.
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Petrolina – PE, Nº 1 – Out./Dez. 2009
Sumário
HISTORIA EM FOCO
- Trabalho invisível e relações de gênero.................................................... 5
Elizabete Rodrigues da Silva (UFBA)
- A participação feminina nos cursos de medicina, farmácia e odontologia
na Bahia...................................................................................................... 36
Iole Macedo Vanin (UFBA)
- Entre letras, pontos e agulhas: a educação de órfãos na Estância/SE
oitocentista................................................................................................. 61
Sheyla Farias Silva (UPE)
- O Feminino nas guerras.......................................................................... 88
Cléber Roberto Silva de Carvalho (Graduando UPE)
- Boa noite Fräulein... Os contos de fada e a construção da
feminilidade.. ........................................................................................ 101
Andréa Almeida Campos (UNICAP)
- A emancipação da mulher brasileira no final do século XIX sob a ótica de
Júlio Ribeiro na Obra "A carne"........................................................... 115
Jorge Luís Coelho Gomes (Graduando UEMA) e Jordania Maria Pessoa (UEMA)
PERFIS
- Nas entrelinhas, Zélia Almeida.
Alinne Suanne Araújo Torres (Graduanda UPE).......................................... 132
NORMAS EDITORIAIS .............................................................................. 136
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TRABALHO INVISÍVEL E RELAÇÕES DE GÊNERO
Elizabete Rodrigues da Silva1
Até o final dos anos 70, a produção historiográfica dedicada ao
estudo das mulheres trabalhadoras se preocupou em visibilizar a atuação
dessas mulheres no processo histórico, como sujeitos ativos, provendo o
sustento da família, a partir dos espaços públicos do universo fabril.2
Somente a partir da década de 80, é que foram surgindo novas contribuições
enfatizando o trabalho a domicílio como uma modalidade da força de
trabalho, suas características culturais e regionais, bem como, destacando
questões relacionadas ao lugar que, culturalmente, homens e mulheres
ocupavam e ainda ocupam nas relações de trabalho, como espaço gendrado.
São trabalhos que contribuíram significativamente para uma nova
concepção de história, a partir da introdução de novos temas, de um novo
olhar sobre
velhos temas e
Amparados,
de
um
lado
de
pelas
novas possibilidades metodológicas.
teorias
feministas,
resultantes
da
heterogeneidade dos seus movimentos, e, de outro pela história social,
alargaram o universo do historiador, abrindo as possibilidades para perceber
a distinção das experiências dos sujeitos em seu cotidiano.
Desta forma, analisar o trabalho das mulheres fumageiras nas
fábricas de charutos do Recôncavo Baiano, na primeira metade do século
XX, requereu uma visão, também, do seu entorno, principalmente perceber
aquelas mulheres que não tiveram acesso ao trabalho nos estabelecimentos
fabris, mas que executavam as mesmas tarefas no seu domicílio. Fez-se
necessário, portanto, compreender a dinâmica do cotidiano das mulheres
fumageiras envolvidas com o trabalho organizado no próprio domicílio,
1
Doutoranda do PPGNEIM/UFBA (Programa de Pós-graduação em Mulheres, Gênero e Feminismo do Núcleo
de Estudos Interdisciplinares em Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia). Mestre em
História social pela Universidade Federal da Bahia – UFBA (2001). Licenciada em História pela Universidade
do estado da Bahia – UNEB (1998). Professora dos cursos de História e Pedagogia da Faculdade Maria Milza –
FAMAM (desde 2005). Professora de História da Rede Pública Estadual de Ensino do Estado da Bahia. (desde
1991).
2
Grande parte desses estudos está voltada, em particular, para a presença das mulheres na indústria têxtil, como,
por exemplo, os trabalhos de Eva Blay, 1978; Maria Valéria Pena, 1980; Bárbara Weinstein, 1995, dentre outras.
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considerando os processos econômicos e sociais que lhes impulsionavam e,
prioritariamente, as relações de gênero aí imbricadas, como o resultado das
representações sociais de seu sexo que perpassavam as relações sociais de
gênero naquele tempo e espaço.
O contexto da indústria fumageira do Recôncavo reunia uma
diversidade de atividades laborais em torno do fumo, que ia do campo à
cidade, da casa à fábrica e vice-versa, bem como da legalidade à
clandestinidade e/ou informalidade. Em todas as situações as mulheres
protagonizavam, não apenas em número, mas, principalmente, pela
determinação sócio-cultural da feminização desse lugar – o das atividades
manuais e delicadas, estas que eram necessárias para o tratamento dos
fumos e confecção dos charutos e cigarrilhas.
A fábrica e a casa que, desde a Modernidade, foram constituídos
como espaços distintos por “natureza”, no cenário da indústria fumageira,
então, representavam uma polarização mais visível, pois, em se tratando de
espaços de trabalho a fábrica estava associada à idéia de legalidade e
formalidade, enquanto a casa, ao contrário, estava explicitamente associada
à idéia contrária e ao lugar de clandestinidade. Assim, escolher os fumos e
confeccionar os charutos na própria casa, fora do ritmo sistemático da
fábrica, sem a proteção de uma legislação, tanto no tocante aos direitos
trabalhistas quanto à regulação de preços dos charutos no mercado
clandestino, constituíram-se num trabalho invisível.
O trabalho produtivo realizado pelas mulheres fumageiras do
Recôncavo Baiano circunscreveu-se a esses espaços distintos – a fábrica e a
casa. O primeiro, a fábrica, caracteriza-se como espaço externo, disciplinado
e de disciplinamento, onde o controle e a vigilância dos sujeitos, no caso as
trabalhadoras, não advêm ou servem a uma tradição, mas a um sistema de
produção que tem como objetivo principal produzir em larga escala para
obter lucros imediatos e cada vez maiores, o que faz extraindo do/da
trabalhador(a) todo o seu tempo e a sua força laboral. O segundo
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caracteriza-se como um espaço privado, de constituição da família,3 lugar de
disciplina, de produção e reprodução dos gêneros, em correspondência com
as demandas morais, religiosas, culturais e sociais, em seus diversos
contextos. Lugar adequado à exploração e, de forma inseparável à opressão,
seja na produção ou na reprodução. Os valores produzidos e reproduzidos
no espaço doméstico refletem, diretamente, nos ambientes e nas relações de
trabalho.
A fábrica e a casa, espaços onde se desenrolaram as atividades
fumageiras de beneficiamento, preparação dos fumos e fabricação de
charutos, também se constituíram e se caracterizaram a partir das relações
sociais e relações de trabalho entre os sujeitos envolvidos, direta e
indiretamente, no cenário econômico e social da região do Recôncavo. Nas
fábricas, patrões, gerentes, mestres, operários e operárias, ocupavam a
cadeia hierárquica das posições e das funções para a realização do trabalho
fabril. Em casa, tanto a atividade doméstica, como o trabalho com o fumo
diretamente, eram realizados sob o comando das mulheres, mas, envolvia,
exceto os homens, todos os membros da família, inclusive as crianças.
Estes espaços estavam fisicamente separados e distintos em sua
função primeira, embora, fossem unidos pela rede de relações tecida pela
população fumageira, esta que transitava entre eles (re)inventando os seus
modos de vida, buscando a sobrevivência, ao mesmo tempo em que forjava
todas as possibilidades de resistência à exploração e a dominação4 impostas
pelo trabalho nos seus respectivos espaços.
3
Apesar de ter predominado no imaginário social do Recôncavo Baiano o modelo de família nuclear, na prática
esse modelo resumiu-se, apenas, à pequena elite econômica. Pois, nos meios populares a família constituía-se de
maneira mais contingente, cujo poder central, na maioria das vezes, era exercido pela mulher e não pelo homem,
como no chamado modelo “tradicional”. Em relação à noção do espaço da casa como privado, não se trata de
uma noção de lugar fechado, inacessível e sem relação com o mundo exterior, ao contrário, tratava-se, também,
de um espaço de produção, onde a linha que o separava da rua era muito tênue.
4
Não se trata aqui de uma dominação no sentido geral ou global, mas, de uma dominação específica das relações
de trabalho no contexto da indústria fumageira do Recôncavo, considerando as questões de classe, mas,
sobretudo as questões de gênero; como também, não se trata de uma dominação rígida de um grupo sobre o
outro, uma vez que, considera-se a dominação em questão como uma das múltiplas formas de dominação
exercidas na sociedade, pois, segundo Foucault, ela não ocorre, apenas, de cima para baixo na escala social, mas
nas “múltiplas sujeições que existem e funcionam no interior do corpo social”. FOUCAULT, 1979, p.181.
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Contudo, para efeito da análise histórica, na perspectiva das relações
sociais de gênero, esses espaços serão virtualmente separados e o trabalho
produtivo realizado no interior das casas das fumageiras será doravante
denominado de “Trabalho a domicílio”, considerado trabalho invisível.
O trabalho a domicílio realizado pelas mulheres fumageiras do
Recôncavo Baiano, percorreu um período que abarca desde a implantação
das primeiras fábricas de confecção de charutos, no início do século XX,5 até
o período que se estende entre as décadas de 50 a 80, quando
desencadearam a crise e falência da indústria fumageira na região,
constituindo um processo contraditório, pois é, exatamente, neste último
período que a atividade fumageira no domicílio cresce vertiginosamente e
ganha expressão.
No início, o trabalho a domicílio se justificava por ser uma indústria
ainda incipiente, funcionando em pequenos espaços e com mão-de-obra
reduzida, para atender a crescente exigência do mercado interno e externo
de derivados do tabaco, principalmente os charutos, cujas marcas foram
criadas concomitantemente ao processo de instalação e crescimento da
indústria. Assim, já em 1908, houve a distribuição de grande parte do
trabalho “em casas particulares onde era executado”.6 No segundo momento,
a crise e a conseqüente falência da indústria fumageira, foi gerando uma
massa ociosa de trabalhadoras(es) que, fora dos estabelecimentos fabris não
teve outra alternativa, dedicou-se ao trabalho a domicílio, fosse ele fruto de
uma relação de informalidade com as empresas que ainda mantinham-se na
ativa ou por conta própria confeccionando charutos e fornecendo ao
mercado informal.
O trabalho domiciliar é conhecido como aquele realizado no domicílio
da/do trabalhadora/trabalhador, por encomenda de uma empresa que
estipula uma tarefa a ser cumprida num determinado período, seja por dia
5
A primeira fábrica de charutos do Recôncavo foi fundada em 1905, pela empresa Suerdieck, em Maragojipe e,
é em 1908, com a crescente demanda da produção de charutos, que começa a distribuição dos fumos nos
domicílios para realização do trabalho de beneficiar (ou preparar os fumos) e confeccionar os charutos mais
simples. SUERDIECK S/A – CHARUTOS E CIGARRLHAS, 1955.
6
SUERDIECK S/A – CHARUTOS E CIGARRLHAS, 1955.
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ou por semana, determinando, também, o valor da produção. Embora, no
caso das fumageiras, não foi encontrado qualquer registro que indicasse que
em todos os casos de trabalho domiciliar fosse por encomenda das
empresas. Ao contrário, ao longo do tempo, registrou-se a crescente
iniciativa das próprias mulheres, as charuteiras especialmente, em produzir
por conta própria com o objetivo de comercializar no mercado informal.
Deve-se observar, no entanto, que esta iniciativa das mulheres não
foi uma questão de liberdade de escolha, mas esteve associada a um
contexto socioeconômico específico que figurou no interior do sistema
capitalista,
nos
processos
de
crises e
reestruturação da economia,
ocasionando o surgimento ou o aumento significativo das atividades não
assalariadas, circunscritas na categoria “por conta própria”,7 a exemplo de
outras regiões da América Latina, como o México.8
A produção a domicílio constituiu-se numa categoria ou modalidade
de atividade produtiva que, até então, fugia aos modelos convencionais de
organização do trabalho nas sociedades modernas. No Recôncavo fumageiro,
tratou-se de uma atividade produtiva realizada, tanto “por conta própria”
das fumageiras, quanto nos moldes da subcontratação mediante encomenda
e remuneração pelas empresas instaladas na região. Ambos os casos sem
vínculo empregatício. Também, observa-se o caráter de complementaridade
subordinada, imposta tanto pela divisão dos espaços – industriais e
domésticos –, quanto pela divisão de tarefas embutida num sistema de valor
hierárquico que se caracteriza como inferior por ser realizada por mulheres
no espaço doméstico, acentuando as desigualdades de direitos e as
contradições das relações de gênero.9
É preciso ressaltar, no entanto, que a subcontratação sob a forma de
trabalho domiciliar, não é um fenômeno recente ou específico da região do
7
Para entender a expressão “por conta própria”, toma-se o texto de Oliveira e Ariza (1997, p. 189) que afirmam
que, las actividade por cuenta própria son vistas em general como uma forma de trabajo más precário que le
trabajo asalariado. Debido a la própria naturaleza de su actividade, el trabajador por cuenta própria no tiene
contrato laboral, carece de prestaciones laborales e no recibe sueldo fijo.
8
OLIVEIRA, 1997, pp. 183-212, p.183.
9
SOIHET, 2001, p.12.
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Recôncavo Baiano, apenas. Braverman (1987), afirma que este sistema
surgiu nas primeiras fases do capitalismo industrial:
na tecelagem, fabricação de roupas, objetos de metal
(pregos e cutelaria), relojoaria, chapéus, indústria de lã e
couro. No caso, o capitalista distribuía os materiais na
base da empreitada aos trabalhadores, para manufatura
em suas casas, por meio de subcontratadores e agentes
em comissão.10
Segundo Abreu e Sorj (1993), “o trabalho industrial a domicílio tem
suas raízes nos séculos XVI e XVII na Europa, com a emergência da
economia doméstica, quando vida familiar e trabalho estavam intimamente
interligados”.11 Com o advento da Revolução Industrial, o trabalho a
domicílio, seja ele por conta própria ou pelas vias da subcontratação, toma
forma e caráter específicos em cada país e nas respectivas regiões, conforme
os contextos sociais, econômicos e culturais.
No Brasil, a partir da década de 1920 até os dias atuais, o trabalho a
domicílio vem se moldando, conforme as políticas econômicas e interesses de
alguns setores específicos da indústria, porém, quanto a sua composição
sexual,
mantêm-se
majoritariamente
feminino.
Aliás,
Abreu
e
Sorj
confirmam que “uma das características mais marcantes do trabalho a
domicílio contemporâneo é ser uma atividade essencialmente feminina em
todas as partes do mundo”.
12
É importante ressaltar que o trabalho a domicílio se configura
diferentemente conforme o espaço e o tempo em que o mesmo se localiza,
apenas mantendo algumas características comuns. Apesar de a literatura
confirmar que em muitos países industrializados o trabalho a domicílio se
concentrou e ainda se concentra nas grandes cidades, no caso em estudo,
trata-se de uma região de cultura agrária e de um aglomerado de pequenas
cidades e lugarejos, distante da dinâmica capitalista das grandes cidades.
10
BRAVERMAN, 1987, pp. 62-63.
ABREU e SORJ, 1993, p. 11.
12
ABREU e SORJ, p. 13.
11
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Trabalho a domicílio: uma experiência das mulheres fumageiras
A expansão gradativa do mercado de trabalho industrial brasileiro
tem início em fins do século XIX e início do século XX, se fazendo, em grande
parte, a partir da utilização da mão de obra feminina, principalmente, na
indústria têxtil, no nível do trabalho não-qualificado.13 O trabalho a
domicílio nas atividades de beneficiamento de fumos e de confecção de
charutos, também, possibilita perceber a inserção da mão-de-obra feminina
no mercado de trabalho regional nos seus primórdios.
No Recôncavo Baiano, as atividades industriais fumageiras tiveram
início no final do século XIX, com a fundação da Danneman em São Félix e o
grupo Suerdieck em Cruz das Almas. Mas, é com a crescente demanda
internacional de folhas de fumos e de charutos, provocada pelo fim da
Primeira Guerra Mundial, dentre outros fatores, que, além de criar as
filiais, estimulou-se o aumento do trabalho a domicílio, que se
desenvolveu
de
diversas
formas,
para
atender
a
uma
grande
produção, que somente a Suerdieck ultrapassava os 10.000.000 de
charutos anuais. 14
Inicialmente, o trabalho a domicilio no Recôncavo fumageiro
surgiu por força das circunstâncias econômicas da população local
que, sem alternativas de trabalho, encontrou no cenário industrial as
possibilidades de desenvolver mecanismos de sobrevivência. Quando
percebido pelos industriais, passou a ser explorado, embora sem o
caráter da subcontratação, mas utilizando o artifício de que se
13
BLAY, Eva Alterman. Trabalho domesticado: a mulher na indústria paulista. São Paulo: Ed.
Ática, 1978, p. 137.
14
Dentre as principais fontes que se pode ter acesso à trajetória de sucesso das empresas de fabricação de
charutos, estão as seguintes: Folhetim ilustrado da comemoração dos 125 anos da Dannemann. Casa da cultura. São
Félix, 1998; ARQUIVO MUNICIPAL DE SÃO FÉLIX: Correio De São Félix, nº876, 26/04/1952; BORBA, 1975,
pp. 46-48; SUERDIECK S/A CHARUTOS E CIGARRILHAS.
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tratava de uma iniciativa da população, já que se aplicaria bem o
termo do trabalho “por conta própria”.
Segundo Blay (1978), a partir da década de 1950 começa a ocorrer
um processo de declínio da incorporação das mulheres no setor de
atividades industriais no Brasil, chegando em 1970 com apenas 10,5% das
mulheres integradas. Daí, então, é que a partir dos anos 60, o trabalho a
domicílio aparecia como possível “reservatório inexplorado de flexibilidade”,
15
motivando a desregulamentação da jornada de trabalho, para as unidades
produtivas de algumas indústrias tradicionais, a exemplo das indústrias de
tabaco.16
Por outro lado, o contexto socioeconômico da região marcava
acentuadamente aquelas trabalhadoras, pois, segundo Guimarães (1979),
“não são apenas as necessidades do mercado que conduzem as mulheres ao
trabalho, mas, principalmente, é a deterioração das condições de vida, que
as conduz, ou melhor, torna-as disponíveis”.17 A população, envolvida com a
lida diária do fumo, apresentava uma pobreza bastante acentuada, que "não
resta dúvida que é aqui, entre as subáreas do Recôncavo, que o atraso e a
pobreza são mais visíveis e mais chocantes",18 revelando um modo de vida
característico da região do fumo, que se estendia do campo aos centros
urbanos e suas periferias, acompanhando o trajeto do fumo aos armazéns,
fábricas de charutos e às residências onde o trabalho de manipulação do
fumo era rotina.
A situação de precariedade vivenciada pela população da região
do fumo e, especificamente, pelas mulheres fumageiras e suas
famílias, define aspectos da vida sócio-econômica da zona tabaqueira
que explica, portanto, a expressão “lavoura dos pobres”, ao mesmo
tempo em que representa um paradoxo em relação ao fumo já que
15
BLAY, 1978, p. 141.
ABREU e SORJ, 1993, p. 19.
17
GUIMARÃES, 1979, p.19.
18
Se gu n d o C AS TR O, os "la vr a d or es " d e f u mo e r a m " ge r a l me n te a na lf ab et os e p ob r es" .
CASTRO, 1941, p. 1 0 4.
16
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este era a riqueza que movia de forma ascendente a economia do
Estado nos períodos em que esteve em ascensão. 19
Em quase todas as etapas da produção fumageira, é visível a
presença das mulheres pobres da região. Entre a lavoura e as manufaturas
de
charutos,
funcionavam
inúmeras
empresas
de
beneficiamento
e
distribuição de fumos, instaladas na região e conhecidas como "armazéns de
fumo", que empregavam grande contingente de mulheres, mas que não
exigiam qualificação para o trabalho, pois se tratava apenas da escolha do
fumo e do seu enfardamento, este último, por sua vez, era trabalho
masculino.
Paralelamente
aos
armazéns
de
fumos,
embora
ligada
diretamente aos mesmos, se desenrolava parte da mão-de-obra
marginalizada
constituída
de
mulheres.
Estas,
por
não
participarem formalmente do mercado de trabalho, executavam
em suas próprias casas a escolha e “destalação” do fumo. 20 Era
este trabalho denominado “trouxa de enrola”, por ser o fumo
transportado dos armazéns para as residências em trouxas de
panos de aniagem (juta) na cabeça de mulheres e crianças 21 que,
juntamente com as charuteiras no seu trajeto de vai-e-vem, iam
formando o cenário urbano e social da zona fumageira.
19
Para a expressão e o contexto da “lavoura dos pobres, dentre outros, ver: PINTO, Luiz Aguiar Costa.
Recôncavo Laboratório de uma experiência humana. In BRANDÃO, Maria de Azevedo (org.)
Recôncavo da Bahia: sociedade e economia em transição. Salvador: Academia Baiana de
Letras, Casa Jorge Amado; UFBA, 1998, pp. 122-134. PEDRÃO, Fernando Cardoso. Novos rumos,
novas personagens. In BRANDÃO, Maria de Azevedo (org.) Recôncavo da Bahia: sociedade e
economia em transição. Salvador: Academia Baiana de Letras, Casa Jorge Amado; UFBA, 1998,
pp.219-228.
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
1995, pp. 277-279. BORBA, Silza Fraga Costa. Industrialização e Exportação de Fumos da Bahia
de 1870 a 1930. (Dissertação de Mestrado em Ciências Humanas - UFBA) Salvador (BA): 1975,
vol. 2, p. 15. LAPA, J. R. Amaral. Economia Colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1973, p.
149. Correio de São Félix, nº21, 08/10/1944; LAPA, Amaral, 1973, p. 149.
20
O termo “destalação” refere-se ao trabalho realizado com o fumo específico da “trouxa de enrola”: era o
trabalho de tirar os talos do fumo, pois este iria se transformar em “torcida” – miolo de charutos. ASEVEDO,
1975, 1975, p. 10-12.
21
Descrição sobre o cenário das trouxas de fumos tiradas dos armazéns (Benedita Rodrigues da Silva, 85 anos,
2008).
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Paralelamente aos armazéns de fumo, funcionavam as fábricas
de charutos. O parque manufatureiro de charutos do Recôncavo era
composto por estabelecimentos fabris diversos, com volumes de
capitais e tamanhos diferenciados. É,
também,
no
bojo dessa
dinâmica fabril que se desenrolou outro quadro de mão-de-obra a
domicílio,
o
de
fazer
charutos
comercializar
no
mercado
por
informal.
conta
própria,
Assim,
a
para
indústria
de
charutos do Recôncavo não se restringia apenas às fábricas,
ocupava
também
diversos
espaços
e
invadia
a
maioria
das
residências da população de baixa renda, completando o quadro
do complexo industrial do charuto.
Em 1931, por época da Reforma Tributária do Estado,
representantes
desta
indústria,
ao
reivindicar
direitos
de
exportação iguais aos dados a outros produtos, chegaram a
afirmar que:
O charuto, cuja indústria penetra nos lo garejos
mais modestos, que dá a viver a milhares de
pessoas, mocinhas e velhos, esta indústria se
sobrecarrega de uma maneira extraordinária e
como única indústria do Estado. 22
Dispostos nos bares, nas mercearias, como também nas
janelas das casas, o charuto era parte da paisagem de cada
cidade, vila ou lugarejo. Os charutos feitos nas residências das
charuteiras eram conhecidos como "charutos de balaio" ou "charutos
de regalia", pela qualidade inferior dos fumos utilizados e pela falta
de
aprimoramento
qualidade
do
no
seu
produto
e
acabamento,
estabelecia
o
que
diferenças
comprometia
em
a
relação
aos
charutos
era
charutos das fábricas.
Mesmo
assim,
a
produção
a
domicílio
de
volumosa e comercializada nas próprias residências, já contando com
22
RE LA TÓ R IO D A A S SO C I AÇ ÃO CO ME R C IA L DA B AH I A, 1 9 3 2, p p . 1 7- 2 1.
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compradores fixos e viajantes que, sem pagar impostos ou outras
despesas fiscais, movimentavam grandes somas, comercializando
esses charutos no sul do estado e do país. A produção de charutos a
domicílio
chegou
a
representar
5%
da
nacional. 23
produção
Registrando-se, também, casos em que a produção a domicílio
pertencia a uma fábrica, que sem nenhum compromisso trabalhista,
fornecia o fumo para a charuteira, pagando-lhe apenas pela mão-deobra da confecção dos charutos, o que caracterizava o sistema de
subcontratação
que,
conforme
Braverman
(1987),
“o
capitalista
distribuía os materiais na base da empreitada aos trabalhadores,
para manufatura em suas casas, por meio de subcontratadores e
agentes em comissão”. 24 Retornando para a fábrica, esta produção
somava-se
à
produção
das
marcas
populares
também
ali
confeccionadas.
A produção de charutos a domicílio não foi uniforme, se
desencadeou também na modalidade de “fabricos”. A modalidade
convencional acontecia na residência onde trabalhavam as mulheres
pertencentes à mesma família. Porém, o “fabrico”, apesar de ser
instalado numa residência, onde as mulheres da mesma família
também trabalhavam, reuniam-se ali outras mulheres, sem vínculo
de
parentesco,
ligadas
apenas
pelo
interesse
no
trabalho
de
confeccionar charutos. Estas mulheres eram organizadas sob o
comando de uma outra mulher, 25 geralmente a dona da casa,
responsável pelo investimento e pela produção, não havendo laços
empregatícios ou qualquer possibilidade de cumprimento com a
legislação trabalhista da época. Conforme Sr. Sebastião:
fabrico era uma casa de fazer charutos, mas não era
fábrica, era um fabrico como o de Iaiá de Maninho,
23
CÉSAR, Elieser. O Império do Tabaco. Correio da Bahia. Salvador(Ba): jornal diário, 2000, p. 06.
BRAVERMAN, 1987, p. 63.
25
Uma espécie de subcontratadora, semelhante à situação descrita por BRAVERMAN, 1987, p. 63.
24
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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uma casa aonde 12 ou 15 pessoas iam conforme
quisesse, mas não era fábrica. 26
A produção de charutos a domicílio, seja em cada unidade
familiar, seja na modalidade de fabrico, apesar de não possuir a
estrutura de montagem nem a organização da fábrica propriamente
dita, era responsável por uma quantidade de charutos que atendia em
larga escala ao comércio informal e às encomendas das fábricas,
aquelas que se interessavam por esta produção, ocupando mulheres e
mocinhas que formavam uma rede de mão-de-obra marginal.
Ao se sentirem ameaçadas com a concorrência do comércio
“clandestino”, a Suerdieck e a C. Pimentel foram algumas das empresas que
passaram a adquirir os charutos "de balaio" diretamente da fonte, cortando
a ação contrabandista na região.27 Embora estas empresas não tivessem
selado nenhum compromisso de cunho legal com as charuteiras ou com os
repassadores dos charutos quando o negócio era realizado através destes. Ao
contrário, além de adquirirem os charutos a preços baixos, a mão-de-obra
feminina realizada no próprio domicílio diminuía consideravelmente os
custos operacionais, uma vez que as mulheres trabalhavam em casa, por
produção, sem vínculos empregatícios com as empresas que utilizavam seus
serviços, o que significou para elas o não-acesso a benefícios sociais, bem
como não ascender social e economicamente.
O registro de D. Joanna Silva na fábrica C. Pimentel & Cia. Ltda, data
de 02 de dezembro de 1967, estando a mesma com 52 anos de idade, sendo
sua ocupação “Charuteira Domicílio”. Ao discorrer sobre sua vida de
charuteira, Carmelita Oliveira de Jesus, prendeu-se às lembranças do
fazer charutos na casa de D. Joana Silva, esta que era conhecida na
26
SANTOS, Sebastião, 105 anos, ao ser entrevistado pôs-se a rememorar sua trajetória de vida destacando
aspectos ligados ao trabalho e as relações sociais que tecia ao circular na região; fala de sua esposa, D. Rosa,
charuteira de fábricas, bem como, a domicílio e de sua experiência enquanto trabalhador da fábrica Costa &
Penna.
27
IBGE, 1958, Vol. XX, pp. 95-105; CÉSAR, 2000.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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Vila de Cabeças 28 como Joana Preta e proprietária de um fabrico de
charutos que era uma espécie de extensão da fábrica C. Pimentel, de
onde vinha o material. Conforme Carmelita:
O material de lá, o rapaz trazia de lá [C. Pimentel],
agora o nome do rapaz eu não sei e ele trazia para
D. Joana. Ela chamava a gente aí para fazer charuto
lá na casa dela, trabalhava eu, trabalhava a mãe de
Iaiá - Polinha, já morreu também. Esse povo tudo
fazia charuto para D. Joana, muitas, muitas
pessoas fazia charuto pra D. Joana. Depois, passava
pra fábrica, vinha o rapaz buscar naqueles caçuar
grande, arrumava tudo e levava. 29
Dentre
formalmente
elas,
como
somente
operária
D.
da
Joana
fábrica
Silva
C.
era
Pimentel,
reconhecida
as
outras
charuteiras trabalhavam por conta dela recebendo apenas pelo
trabalho executado, ou seja, a "tarefa" diária ou semanal previamente
estipulada. 30
Assim, o trabalho a domicílio formava uma rede marginal de
produção de charutos que mantinha o comércio informal, este que
representava o grave problema da concorrência para as fábricas,
desfalque aos cofres públicos e a espoliação das charuteiras, pois a
prática de fazer charutos e comercializar de forma “clandestina” era
de amplo alcance e comum na região.
O Jornal Correio de São Félix publicou vários artigos e notas
advertindo para os prejuízos que a produção “clandestina” causava ao
comércio formal de charutos. Somente o redator Oldemar Santos
escreveu cinco artigos entre 08/10/1944 e 05/11/1944, sobre alguns
28
A Vila de Cabeças pertencia ao município de Muritiba até o ano de 1962, quando foi emancipada e passou a se
chamar Governador Mangabeira.
29
JESUS, Carmelita Oliveira de. 64 anos de idade.
30
A tarefa era o volume do trabalho exigido pelos estabelecimentos industriais dentro de um prazo determinado.
Quando se tratava do beneficiamento do fumo, como no caso da trouxa de enrola, a tarefa era estipulada entre 15
a 30 kg por pessoa num período de 24h, no caso da confecção de charutos, a tarefa variava entre 100 a 300/dia,
conforme os tipos/marcas de charutos e as fábricas.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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desses problemas que afetavam a indústria de fumos e charutos no
Recôncavo. O quinto artigo ressalta:
Um dos maiores inimigos do fabricante legalizado é
a concurrência subterrânea exercida por fabricante
que vivem e proliferam à margem de todas as
exigências legais. Eles imitam as marcas, não
pagam impostos, desrespeitam o salário mínimo,
ocultam-se das exigências trabalhistas e dentro do
próprio
Estado
roubam
um
mercado
importantissimo aos fabricantes que são onerados
com enormes despesas. 31
A fabricação a domicílio, porém, vista pela ótica da realidade
social e econômica da região, sabendo-se que o número de vagas
oferecido pelas fábricas era limitado, significou uma alternativa de
trabalho: o de "ganhar a vida", no amplo sentido das necessidades e
socialização
da
população
que
se
encontrava
na
periferia
da
legalidade fabril ou das oportunidades de emprego.
Na
Vila
de
Cabeças,
onde
grande
parte
das
mulheres
fumageiras se dedicava ao trabalho a domicílio, funcionaram vários
fabricos, dentre os quais, foram citados o fabrico de Miluzinha de
Pequeno, de Joana Silva, de Malaquias Ferreira, de Licinha de
Machado, de D. Tidinha de Domingos, de Loura de Maurílio, de D.
Zizi de Alberto e o de Iaiá de Maninho, este último, foi o mais citado
entre as charuteiras entrevistadas, por ter sido o que funcionou por
mais tempo e pelo número de charuteiras que abarcou, chegando até
30 mulheres, denotando um grau de importância mais elevado que os
outros, para as charuteiras da Vila.
D. Iaiá (Maria das Neves Fonseca Passos) era esposa do coronel
da Guarda Nacional na região, Jerônimo Damasceno Passos (seu
Maninho),
31
e
irmã
do
coronel
João
Altino
da
Fonseca,
grande
ARQUIVO MUNICIPAL DE SÃO FÉLIX: Correio de São Félix, 05/11/1944.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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comerciante e exportador de fumos na Vila de Cabeças. Diante das
influências políticas e facilidades na aquisição e preços da matériaprima, o fabrico de D. Iaiá ocupava uma posição privilegiada em
relação aos demais fabricos, pois, além da produção interna, fornecia
matéria-prima às mulheres que quisessem fazer os charutos em suas
casas e comprava-lhes, diretamente a produção.
O trabalho a domicílio das fumageiras, funcionou, sempre, de
forma ilegal, mas tornou-se uma prática comum forçada pelas
necessidades econômicas e a falta de alternativa de empregos na
região, tanto que, com o fechamento das fábricas, esse negócio, além
de continuar atendendo ao comércio informal, passou a ser a
principal atividade daquelas mulheres que ficaram desempregas.
Assim confere o Jornal:
A Cia. Brasileira de Charutos Dannemann lançada
na pior situação que uma outrora grande firma pode
se deparar ao tempo que tem os trabalhadores
atravessando faze apertada pelo desemprego em que
foram lançados vai se dividindo em fabricos
negócios correlatos à fabricação de charutos,
beneficiamento e vendas de fumo. 32
A modalidade de “fabricos” sobreviveu até a década de 70,
quando na antiga Vila de Cabeças (hoje município de Governador
Mangabeira), a freira Adélia Senn conhecendo o potencial da região,
ainda teve tempo de iniciar uma pequena fabricação de charutos na
sacristia da Igreja Matriz. Embora sabendo da oposição da Igreja
Católica em relação ao uso do fumo, 33 não viu alternativa no sentido
de organizar o grande número de mulheres ali existente cujo único
ofício era o de charuteira. Num esforço para atingir um número maior
de mulheres, ao longo desta década e início da década de 80, a freira
32
ARQUIVO MUNICIPAL DE SÃO FÉLIX: Correio de São Félix, 05/03/1955.
Sobre a proibição da Igreja Católica ao uso do fumo ver: LE REVEREND, Julio. Historia Economica
de Cuba. La Habana: Editorial de Ciencias Sociales, 1985, pp. 42-44.
33
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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fundou uma unidade da Cooperativa Artezanal Mixta do Vale do
Paraguaçu - COOVALE, que funcionava em convênio com a Leitalves
Agro Comercial e Industrial de Fumos S/A, sucessora da fábrica de
cigarrilhas Leite & Alves, passando a significar uma alternativa legal
de fabricação de charutos e de emprego para as charuteiras. 34
A Vila de Cabeças formava um grande cenário fabril de
charutos onde as pessoas e os lugares estavam impregnados dos
elementos característicos daquela atividade, desde o cheiro ativo do
fumo que se espalhava ao vento por toda a Vila, à presença do fumo
em "trouxas", em "manocas", espalmados e picotados nas casas e
espaços de comercialização, e, os próprios charutos que enfeitavam
as janelas das casas, até no chão das ruas e nos lixeiros podiam
encontrar restos de fumo e pontas de charutos que eram varridos
portas a fora, sendo rara a sua ausência.
Os armazéns de fumo e as fábricas de charutos da região
representaram a oportunidade de emprego e a garantia de um salário
para as charuteiras. O trabalho a domicílio do beneficiamento dos
fumos
e
da
fabricação
de
charutos,
mesmo
burlando
a
lei e
explorando em grau maior as mulheres, também representaram
alternativas de trabalho para aquelas que não tiveram acesso às
fábricas legalmente registradas e que faziam parte do expurgo
econômico e social na região.
O
fim
do
trabalho
a
domicílio
na
região
fumageira,
na
modalidade de “trouxa de enrola” e de confecção de charutos se
inscreve
no
mesmo
contexto
da
crise
da
indústria
tabaqueira
regional, acentuando-se, gradativamente, na segunda metade do
século XX, quando começou um processo sucessivo de fechamento
dos
estabelecimentos
e
de
decadência
econômica
na
região,
34
ARQUIVO MUNICIPAL DE CACHOEIRA. Memorial da Talvis: Cigarrilha Internacional. M.
Correspondências Diversas 1972-1974. Est. 6, Cx. 170.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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culminando nos anos 90, com o desaparecimento das principais
empresas pioneiras no ramo, inicialmente os armazéns de fumos, em
seguida as fábricas de charutos, como a Dannemann, a C. Pimentel e
a Suerdieck. 35
A partir de então, outras empresas se instalaram na região,
introduzindo novas tecnologias e inseridas no sistema de precarização
do
trabalho,
a
partir
de
contratos
temporários.
O
trabalho
a
domicílio, gradativamente foi se extinguindo, acompanhando o ritmo
do desaparecimento do comércio dos produtos derivados do tabaco de
fabricação artesanal, como se, ao mesmo tempo, também fossem
desaparecendo os próprios consumidores.
O trabalho a domicilio realizado pelas mulheres fumageiras do
Recôncavo da Bahia, no período em destaque, deve ser considerado e
analisado como um modo particular de organização da produção,
associada
a
uma
organização
específica
do
trabalho,
pois
se
desenvolveu pelo incentivo à subcontratação ou a não-contratação,
esta último pareceu mais comum, como uma forma particular de
trabalho. Assim, para a análise deste fenômeno, fez-se necessário
distinguir
o
estatuto
legal
das
trabalhadoras,
a
sua
posição
econômica, a partir de um breve olhar sobre o seu contexto.
O tempo, o espaço e o sexo do trabalho a domicílio
Mesmo considerando que o trabalho a domicílio está associado
ao desenvolvimento capitalista em certos setores da indústria, é de se
reconhecer que também tem estreitas ligações com a história, com as
35
O montante das Fichas de Registros de Empregados das Fábricas Suerdieck e Pimentel, depositadas no Centro
de Memória da Faculdade Maria Milza – FAMAM, em Cruz das Almas, e a documentação da Dannemann no
Arquivo Público de São Félix, permitem visualizar os momentos ascendentes e descendentes na trajetória da
indústria fumageira.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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tradições e com as relações sociais locais e regionais, conforme se
observa:
O trabalho a domicílio é organicamente relacionado
com a família e com as relações sociais nela
contidas, relações de classe, de sexo, de gerações
[...] O trabalho a domicílio sempre se apoiou no
trabalho doméstico e na divisão sexual do trabalho
tanto na esfera da produção como na da
reprodução. 36
O trabalho a domicílio das mulheres fumageiras localizou-se na
esfera da estratégia de sobrevivência, criada e recriada no cotidiano
feminino,
delineando
o
campo
da
conexão
entre
o
trabalho
assalariado e as atividades domésticas, interpenetrando o público e o
privado, tanto física quanto socialmente. A rua e a casa eram
separadas por uma linha tênue. A casa era o espaço de trabalho, no
âmbito
da
produção,
da
negociação
da
mão-de-obra
e
da
comercialização do produto, ali as pessoas trabalhavam e transitavam
na confusão das atividades laborativas, seja na lida do tabaco, do
charuto e/ou na lida das atividades domésticas. Neste caso, o
trabalho a domicílio força as relações e o espaço privado a se
tornarem públicos.
A discussão sobre as esferas privada/pública, presente na
historiografia, geralmente considera o interior da casa, o espaço
familiar, como a esfera privada, relacionada diretamente à mulher; e
todo o espaço exterior a este, principalmente o mundo urbano, a rua,
com suas instituições marcadas pela presença masculina, como a
esfera pública, oferecendo pouca importância às classes a que essas
esferas, em dados momentos e contextos, pertencem.
Essas
esferas
assim
concebidas,
como
estanques
e
eqüidistantes, valem mais para a aristocracia e a burguesia situadas
36
ABREU E SORJ, 1993, p.22.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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em períodos históricos determinados; enquanto que para as classes
subalternas
essas
esferas
sempre
estiveram
muito
próximas
e
intercambiadas, num movimento circular de relações que quebra,
também, a fixidez das diversas hierarquias, inclusive as de gênero.
Nesta trama, tecida por questões em grande parte econômicas, onde
transitavam as mulheres fumageiras, revela a “articulação fina dos
poderes e dos contrapoderes”, presente na teia social. As mulheres
das chamadas classes populares visitavam muito mais a rua, abriam
suas portas à vizinhança, trabalhavam e negociavam dentro e fora de
casa, (re)fundando um comportamento específico no seu cotidiano.
Essas mulheres, diferentemente dos homens, executavam as
atividades de produção e reprodução no mesmo espaço e tempo, sem
uma delimitação que pudesse tornar compreensível concretamente os
lugares do trabalho e das atividades domésticas, bem como a
dimensão, considerando o início e o fim de suas jornadas diárias.
Espaço e tempo eram diluídos entre as diversas atividades, não
podendo se perceber o tempo do trabalho e do não-trabalho, da
atividade
remunerada
e
não-remunerada;
também,
não
era
perceptível o tempo do trabalho e do descanso.
Assim,
não
se
pode
considerar
que
essas
mulheres
acumulavam uma dupla jornada de trabalho, tendo como referência o
parâmetro da jornada masculina de trabalho, cujo tempo era dividido
e delimitado com base em uma produção diária, de uma única
atividade laborativa, restando, ainda, um tempo real para outras
atividades, seja de descanso ou para atividades que dizia respeito à
vida particular. Para as mulheres fumageiras que trabalhavam no
próprio domicílio, tratava-se de uma única e longa jornada, marcada
pela multiplicidade de atividades diárias, cujo tempo de duração
ancorava-se entre o acordar e o dormir, sem que fosse permitido a
essas mulheres um tempo próprio, livre das amarras das obrigações
com o trabalho – cuja tarefa apresentava-se, ora determinada pelo
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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contratante, ora determinada pelo próprio ritmo de suas necessidades
concretas – e com as atividades domésticas, de cuidar da casa, da
alimentação, de crianças e, às vezes, de idosos e doentes que
habitavam o mesmo espaço.
O cotidiano das fumageiras quer no próprio domicílio, quer no
domicílio de outra mulher fumageira onde era organizado o fabrico, se
constituía numa jornada de trabalho bem maior que a média da
jornada
masculina, pela
superposição e
complementaridade das
atividades de produção e das atividades domésticas.
Trabalho e atividade domiciliar transcorriam no mesmo espaço
e, ao mesmo tempo, num processo contínuo de superposição de
tarefas,
estendendo-se
além
do
número
de
horas
e
dos
dias
determinados por lei para os trabalhadores em geral. Conforme
Matos, (1993) “a problemática do tempo no trabalho domiciliar está
diretamente vinculada à do espaço”. 37
O ritmo do trabalho e o uso do tempo pelas trabalhadoras a
domicílio são caracterizados na literatura como autônomos. Há de se
considerar, entretanto, que além da fatigante e rotineira jornada das
atividades domésticas, havia a exigência de uma produção diária a
ser cumprida pelas trabalhadoras, seja ela imposta pelo contratante,
seja pelas necessidades materiais das próprias trabalhadoras, uma
vez que, para o último caso, já havia um acordo verbal selado entre
elas e os comerciantes do produto.
Em lugar da autonomia no ritmo e no uso do tempo, permite-se
entender que o que ocorria era uma certa flexibilidade quanto à
organização cotidiana do tempo pelas trabalhadoras a domicílio, isto
porque as mulheres não estavam sob o controle direto da sirene e das
estruturas
hierárquicas
da
fábrica.
Todavia,
o
controle
estava
37
MATOS, Maria Izilda Santos de. Trabalho domiciliar – trabalho de agulha: um estudo sobre a costura
domiciliar nas indústrias de sacaria para o café (1890-1930). In ABREU, Alice Rangel de Paiva e SORJ,
Bila(Org.). O trabalho invisível: estudo sobre trabalhadores a domicílio no Brasil. Rio de Janeiro: Rio
Fundo Ed., 1993, p. 70.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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presente em um outro formato e, ao final, o trabalho das tabaqueiras
se estendia além do tempo determinado no espaço fabril.
Historicamente, a trajetória da jornada de trabalho feminina,
seja na fábrica ou no domicílio, tem se configurado diferentemente da
jornada de trabalho masculina. Esta última era bem definida quanto
ao
espaço,
tempo
e
a
própria
atividade.
Quando
os
homens
trabalhadores deslocavam-se até o espaço de trabalho, efetivamente
ocorria um corte e/ou um distanciamento entre a casa e o trabalho, a
primeira não estava presente no segundo, nem vice-versa; o tempo
no/do trabalho só começava a contar no momento em que os homens
começavam a produzir concretamente, numa escala rígida do uso do
tempo, até porque o tempo da fábrica é considerado um capital, era o
tempo do relógio controlado pelo apito; as tarefas a serem executadas
eram bem definidas para cada trabalhador.
O espaço doméstico não representava para os homens uma
continuidade do espaço fabril, nem mesmo um outro espaço que não
fosse o de seus aposentos. Ao contrário das mulheres, os homens
vivenciavam “a polarização entre tempo de trabalho e de nãotrabalho”. 38
Se não bastasse o tempo, o salário dos homens trabalhadores
desta mesma indústria era, na maioria das vezes, maior que o salário
das mulheres. Uma vez que o trabalho com o beneficiamento dos
fumos e a confecção de charutos constituía-se para as mulheres
fumageiras,
mulheres
pobres,
uma
ocupação
remunerada,
uma
estratégia de sobrevivência, também impunha-se sobre elas o estigma
do salário menor em relação aos homens e ainda em relação às
fumageiras que se encontravam inseridas no mercado de trabalho
formal. 39
38
ABREU, Alice Rangel de Paiva e SORJ, Bila, 1993, p. 69.
Neste caso, o salário significa todo e qualquer ganho financeiro que as mulheres tinham com a realização do
seu trabalho, independente de ser pago pela fábrica, por uma tarefa realizada no domicílio, ou o recebimento do
valor da venda dos charutos produzidos e vendidos “por conta própria”.
39
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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O salário menor para as mulheres fumageiras, trabalhadoras
no domicílio, naquele contexto, não obedece apenas a uma única
lógica explicativa, mas a diversos fatores intrínsecos, tanto ao
capitalismo
no
que
diz
respeito
à
exploração
da
mão-de-obra
canalizada para o lucro, a um contexto socioeconômico e político
favorável a atuação dessas empresas e às condições materiais das
mulheres, quanto à questões históricas e culturais.
Segundo Ramos (1993), “a pesar de la incorporación de las
mujeres e mercado laboral, éstas veían reducidas sus vidas, en el
hogar, al simulacro, (...) el trabajo femenino no era reconocido en los
mismos
términos
que
el
de
los
hombres”. 40
As
mulheres
trabalhadoras não estão desvinculadas do espaço doméstico, por isso
o trabalho feminino não tem o mesmo reconhecimento que o trabalho
dos homens, sendo a valoração que, culturalmente, foi agregada aos
espaços privado (como espaço feminino) e público (como espaço
masculino),
o
viés
preponderante
das
hierarquias
do
trabalho
masculino e feminino.
As condições de trabalho nos domicílios eram ínfimas, tal qual
o salário. As casas geralmente eram pequenas e com poucos móveis,
apenas o essencial para acomodar os moradores. Algumas cadeiras e
bancos de “tiras”, uma mesa, cama(s) e um fogão à lenha ou fogareiro
e os utensílios domésticos, dentre estes era comum, em todas as
casas, a existência de bacias para lavar pratos, roupas e tomar
banho, além de potes, moringas ou “talhas” para água de beber. E, na
sala, às vezes única e principal, um nicho ou altar de imagens,
quadros de santos, castiçal, vela e outros objetos, todos pertencentes
ao universo católico. Este ambiente era invadido pelos fumos dos
armazéns e das fábricas de charutos, espalhando-se por quase toda a
casa, seja em pequenas porções, conforme as etapas de trabalho, seja
40
RAMOS, Maria Dolores. Mujeres e História. Reflexiones sobre lãs experiências vividas em los espacios
públicos y privados. Málaga: ATENA (Estudos sobre lá mujer). 1993, p. 82.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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em resíduos; o cheiro forte do tabaco exalava em todo o ambiente
atingindo até a parte externa da casa. Ali as pessoas trabalhavam e
moravam, convivendo diariamente com o fumo espalhado, o pó, o
aroma e o cerol impregnados por toda a casa, propiciando doenças
alérgicas e a tuberculose.
À noite quando esse trabalho se estendia, a iluminação era
feita por candeeiros, conhecidos como “fifós”, a base de querosene,
que dissipavam no ambiente uma fumaça escura e o cheiro forte do
combustível. Devido a sua precária iluminação, eram colocados muito
próximos
das
trabalhadoras.
pessoas,
prejudicando
sensivelmente
a
visão das
41
Geralmente, o tabaco específico para a confecção dos charutos
eram
folhas
de
fumo
já
tratadas,
beneficiadas
e
selecionadas.
Diferentemente destes, o fumo das “trouxas de enrola”, era de
qualidade muito inferior, folhas muito pequenas, muito amassado por
ser proveniente de fardos imprensados, o aroma e a poeira eram
sufocantes, numa quantidade que variava entre 20 e 30 quilos cada
trouxa. O volume desse tipo de fumo, todo o processo de “destalação”
e o cheiro que exalava, transformava o ambiente domiciliar numa
espécie
de
extensão
do
armazém,
misturando-se
aos
móveis,
utensílios e pessoas, inclusive às crianças, formando um cenário
caótico
revelador
das
condições
socioeconômicas
das
famílias
chefiadas pelas mulheres fumageiras.
Conforme afirmam Abreu e Sorj (1993), “para qualquer tipo de
atividade a domicílio existe uma superposição do espaço e do tempo
dos trabalhos profissional e doméstico, situação que favorece um
acúmulo máximo das tarefas e que torna sua imbricação invisível aos
olhos do trabalhador”. 42 O trabalho a domicílio sempre esteve,
estritamente, interligado ao trabalho doméstico, sob a estrutura da
41
Bendita R. da Silva - descrição do domicílio das fumageiras que realizavam o trabalho de escolha do fumo em
suas casas .
42
ABREU E SORJ, 1993, p.23.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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divisão sexual do trabalho, de um lado na esfera da produção e de
outro na esfera da reprodução. Como no início do processo de
industrialização européia segundo Guimarães (1979), no contexto
socioeconômico da região fumageira e nesta modalidade de trabalho,
as mulheres também foram submetidas às piores condições de
trabalho, à medida que foram mantidas todas as tarefas domésticas. 43
Porém, mesmo considerando a sobrecarga de trabalho sob as piores
condições, o trabalho exercido pelas mulheres fumageiras, desde a fábrica ao
domicílio acarretou mudanças no comportamento e no modo de pensar, pois
ao ouvi-las percebe-se no tom da voz a expressão de um forte vínculo entre
trabalho e autonomia, mesmo que esta estivesse apenas relacionada às
questões econômicas, não havendo grandes alterações na estrutura
hierárquica das relações sociais de gênero. Apesar de tratar-se de situações
diferenciadas, mas analisando atitudes de mulheres em relação ao trabalho,
Besse (1999), também afirma que “suas carreiras lhes ofereciam mais do que
dinheiro: independência, prazer, consecução dos próprios objetivos e um
sentimento de valor pessoal e auto-realização.”
44
Ao analisar o impacto que o trabalho causa na vida das mulheres,
antes dedicadas apenas aos afazeres domésticos, percebe-se que as questões
de raça/etnia, classe, geração podem ser bastante díspares, mas a questão
de gênero, mesmo variando os graus de subordinação e oscilando nos
contextos históricos, tem perpassado a vida de todas elas, como uma marca
histórica que tem merecido a atenção daquelas – as feministas – que,
diuturnamente, vêm combatendo através da reflexão, análise e dos
movimentos, numa luta aberta contra os poderes constituídos ou não, a
subordinação das mulheres.
Na historiografia é visível como o trabalho a domicílio, aquele
que tem imbricação direta com as atividades domésticas, tem sido
imposto como uma atividade específica de mulheres, sempre ligada a
43
GUIMARÃES, 1979, p. 16.
BESSE, Susan K. Modernizando a desigualdade: Reestruturação da Ideologia de Gênero no Brasil 19141940. São Paulo: Adusp, 1999, p.173.
44
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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família, desde tempos remotos quando esta representava o núcleo da
produção de mercadorias destinadas ao consumo dos seus membros
e, em outros momentos, quando as mudanças na organização da
produção determinaram, também, mudanças nas atividades a serem
realizadas pelas mulheres.
45
A produção que, nos seus primórdios, surge no seio da família onde a
atuação das mulheres era mais marcante, com o advento da Revolução
Industrial e o processo de formação da força de trabalho deslocou-se para o
espaço fabril, trazendo graves implicações para as mulheres no campo do
trabalho e de sua autonomia, pois passaram a atuar apenas no campo
doméstico, desenvolvendo uma atividade que “não se inclui no circuito
monetário da produção social”.
46
Seguindo este percurso, o que a história revela, de fato, é que não há
profissões de natureza feminina ou masculina por excelência, elas se tornam
femininas ou masculinas, caracterizando uma cultura historicamente
construída e legitimada pela hierarquia de gênero, “no interior de um
sistema de relações desiguais”.47
Sendo no bojo do mesmo processo de industrialização que também
foram redefinidos os padrões sociais, fazendo emergir uma nova sociedade
que reordena um novo papel para as mulheres. Por outro lado, a
deterioração das condições de vida das classes trabalhadoras, conforme
afirmação de Guimarães (1979), “é o mecanismo mais perceptível para se
explicar o modo como as mulheres se inserem na formação da força de
trabalho”.48
No Recôncavo Baiano, além do envolvimento de grande parte
da população local no trato do fumo, seja na lavoura ou nas
manufaturas de modo geral, o número de mulheres registrado nas
fábricas de charutos e nos armazéns de fumo, durante a primeira
45
46
47
48
GUIMARÃES, 1979, p. 7-10.
GUIMARÃES, 1979, p. 7-10.
SOIHET, 2001, p.15.
GUIMARÃES, 1979, p. 13.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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metade do século XX, foi da mesma forma, significativo e revelador.
César (2000), afirma que nas fábricas de charutos as mulheres atingiam
mais de 70% da mão-de-obra.49 Apenas em um maço das Fichas de Registro
de Empregados da fábrica de charutos Suerdieck, localizada em Maragojipe,
é possível constatar que no período de 1906 a 1950, foram registrados 2.852
trabalhadores, sendo 2.262 mulheres, que representa aproximadamente
79.33% do total.
50
Quanto ao contingente das mulheres que trabalhavam a domicílio, na
preparação dos fumos ou na confecção de charutos, a documentação
consultada, bem como, os depoimentos pontuam categoricamente para o
envolvimento de quase toda a população feminina da região.51 Não sendo
registrado nenhum caso de homens trabalhando na atividade domiciliar de
“trouxa de enrola” ou de confecção de charutos.
Enfim, apesar de se tratar de uma região com um quadro social
característico de muita pobreza, acentuando-se mais ainda quando se
tratava da população envolvida com a atividade fumageira, mas a divisão
sexual do trabalho mantinha-se sob os parâmetros da sociedade patriarcal,
onde as funções e os lugares de cada um eram bem definidos na escala
social.
Os
homens,
empregados
ou
não,
exerciam
sempre
funções
caracterizadas pelo uso da força valorada positivamente e/ou do poder que
exerciam, conforme a posição que ocupavam na hierarquia do trabalho,
porém, uma das características fundamentais do trabalho masculino, para
aquela região naquele momento, era ser fora do domicílio. O trabalho
domiciliar relacionado ao tabaco no Recôncavo Baiano, mesmo que este
representasse a maior ou a única renda da família, não se tem registro que
também fosse uma atividade desempenhada por homens.
As mulheres fumageiras do Recôncavo Baiano se inscrevem no tempo
e na história ora corroborando ora modificando as diferenças sexuais,
49
CÉSAR, 2000, p. 06.
Informações resultantes da tabulação e análise de 2.852 Fichas de Registro de Empregados, da Fábrica de
charutos SUERDIECK, Maragogipe – Bahia, 2001.
51
Vê PINTO, 1998; Jornal O Correio de São Félix; Atas da ASSOCIAÇÃO COMECIAL DA BAHIA; dentre
outros.
50
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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sociais, a construção e a reelaboração do gênero. Visíveis, portanto, num
tempo e num espaço, compondo ativamente um cenário econômico e social,
onde puderam e souberam lutar para se fazerem sujeitos de suas
experiências e de suas histórias. Ainda assim, foram e continuam sendo
invisíveis diretamente na documentação, no olhar de certos historiadores
sobre as fontes, na literatura histórica, configurando a construção ideológica
das relações assimétricas de classe, de raça e, sobretudo, de gênero dessa
parcela de mulheres trabalhadoras.
Desta forma, a compreensão do trabalho a domicílio, realizado pelas
mulheres fumageiras da região do Recôncavo Baiano, deve passar,
prioritariamente,
pelo
entendimento
das
relações
de
gênero
tecidas
historicamente no cotidiano de mulheres e homens. Percebe-se que o gênero
dessas trabalhadoras define as características do trabalho a domicílio.
Também, deve-se entender o trabalho a domicílio das fumageiras como uma
estratégia de sobrevivência, uma vez que se tratava de mulheres pobres dos
meios urbanos. Mas, sobretudo, compreender os processos sociais e
econômicos agindo, simultaneamente, na construção tanto discursiva como
ideológica, de uma identidade para as trabalhadoras, no contexto da
sociedade contemporânea.
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trabalhador da Costa & Penna, residente à Rua Deocleciano Servilha, S/N,
Governador Mangabeira, 1999.
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fabrico e em domicílio, residente à Rua Laurêncio Moreira, Governador
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HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 34
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 35
A PARTICIPAÇÃO FEMININA NOS CURSOS DE MEDICINA, FARMÁCIA E
ODONTOLOGIA NA BAHIA1
Iole Macedo Vanin2
Em 18 de fevereiro de 2008, a Faculdade de Medicina da Bahia fez
duzentos anos. Muitas foram as comemorações durante o referido ano3.
Nenhuma, no entanto, teve como finalidade discutir a participação feminina
na instituição e nos seus cursos ao longo de sua história. Tal fato suscita
várias interrogações, que vão desde o teor androcêntrico das ciências até a
participação (ou não) das mulheres na biomedicina na Bahia.
Formalmente, as mulheres passaram a ter acesso à educação superior
- que lhes possibilitava a formação em medicina, farmácia e odontologia -, a
partir da Reforma Leôncio de Carvalho4 em 1879 e o acesso à formação
intelectual, proporcionada pelas faculdades, foi importante demanda das
brasileiras, a partir da segunda metade dos oitocentos como se pode verificar
nos jornais e revistas femininas do período, a exemplo da Mensageira. As
baianas
também
participaram
dessas
discussões,
encontramos
nos
periódicos baianos artigos escritos por mulheres, desde a década de 1870,
defendendo a capacidade intelectual feminina e o seu direito ao acesso aos
cursos superiores.
Foi, no entanto, na segunda e terceira década dos
novecentos, com a atuação da Federação Baiana pelo Progresso Feminino,
que a discussão sobre os direitos das mulheres, entre eles o acesso às
profissões liberais e a formação nestas, ganha destaque nos periódicos. E é
exatamente nesse período que a presença feminina nos cursos superiores da
Faculdade de Medicina da Bahia tem uma maior concentração.
1
Este artigo é faz parte da pesquisa “Feminismo e Biomedicina na Bahia (1879-1949): a produção intelectual
das médicas", que conta com o apoio institucional do CNPq.
2
Mestre e doutora em História pela Universidade Federal da Bahia, instituição onde atua como docente no
Bacharelado Estudos de Gênero e Diversidade. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a
Mulher/NEIM-UFBA. Desenvolve pesquisa na área de História das Mulheres na Ciência.
3
A programação encontra-se disponível em http://www.fameb200anos.med.ufba.br
4
Reforma Educacional empreendida pelo Ministro Leôncio de Carvalho que atingiu a
educação superior ministrada no Império, e serviu de base para os outros níveis de ensino nas
províncias.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 36
Neste artigo, pretendo analisar a participação feminina nos cursos
superiores (Medicina, Farmácia e Odontologia) da Faculdade de Medicina da
Bahia, no período compreendido entre 1879 e 1949. Para realizar tal tarefa
torna-se imprescindível pontuar as relações desse fenômeno com o
movimento e as idéias feministas existentes naquele momento histórico.
Visto que a evidente escassez de discussões acerca destas relações - e que
são pertinentes ao que atualmente classifica-se como pertencente ao campo
da História da Ciência e Feminismo -, não foi total na instituição entre o
final dos oitocentos e primeiras décadas dos novecentos; pois, a presença
das mulheres nos cursos da Faculdade de Medicina e a sua articulação com
as reivindicações da primeira onda feminista na Bahia foi ponto de
discussão na sala de aula de alguns catedráticos da mencionada instituição.
Ítala de Oliveira, médica e feminista sergipana, foi enfática, ao afirmar na
sua tese de doutoramento, que alguns professores discutiam sobre o
feminismo na sala de aula:
O feminismo, que aliás ha sido muito mal
comprehendido e interpretado, mesmo pelas
proprias mulheres, não quer transformá-las em
homens (...). A differença que ha entre os dois sexos
reside só nas glandulas genitaes, porque são ellas
que firmando o sexo, fixam os caracteres
correlativos a cada um. Para o homem como para a
mulher as demais funcções são identicas, como
identico é o mundo que os envolve e os entes que o
cercam. Aliás os espíritos esclarecidos e os
estudiosos insuspeitos pensam assim. Ainda no
curso deste anno lectivo, os provectos (sic)
cathedraticos
de
M.
Legal
e
Hygiene,
respectivamente, drs. Estácio de Luna e J. de Aguiar
Costa Pinto, com a equidade de espiritos rectos e
insuspeitos abordaram o problema feminista.
Identicas foram as suas opiniões apoiando ambas as
justas aspirações da mulher ao trabalho e a uma
vida útil. (OLIVEIRA, 1927, p. 166-167)
No seu relato, infelizmente, a médica não detalhou o teor destas
discussões e nem o que as teriam ocasionado, mas apresentou a articulação
que devia existir entre feminismo e medicina. Após, essa breve introdução
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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devo apresentar de que maneira a participação feminina ocorreu nesta
instituição, sinalizando as possíveis articulações com movimento feminista
de então, situando especificamente, a Federação Baiana pelo Progresso
Feminino.
Durante o intervalo de tempo que compreende a Reforma Leôncio de
Carvalho
e a separação dos cursos de Farmácia e de Odontologia da
Faculdade de Medicina da Bahia, encontrei o registro da presença de 412
(quatrocentos e doze) mulheres que concluíram os cursos superiores
oferecidos pela Faculdade de Medicina da Bahia. Um número insignificante
se comparado ao total de médicas e dentistas formadas nos Estados Unidos
apresentado no Jornal Cidade do Salvador. Nos Estados Unidos da
América, em três décadas (1870, 1890, 1899) teremos um total de 12.553
(doze mil quinhentos e cinqüenta e três) profissionais da área de saúde
(dentistas e médicas), aumentado para 13.237 (treze mil duzentos e trinta e
sete) se considerarmos as legistas; enquanto que, na Faculdade de Medicina
da Bahia, no mesmo período (1870 a 1899), teremos a formatura de apenas
09 (nove) profissionais da área médica (farmacêuticas, odontólogas e
médicas).
Confirmando-se neste intervalo a predominância de escolhas pela
medicina em detrimento da opção, estratégicas ou não, pelos cursos de
farmácia e odontologia como se confirma ao verificar os números por curso
de forma isolada: Medicina (06); Farmácia (02); Odontologia (01). As
médicas, no entanto, foram as únicas lembradas pela Gazeta Médica da
Bahia, no inicio do século XX, quando esta faz uma relação das mulheres
formadas pela Faculdade de Medicina da Bahia: farmacêuticas e odontólogas
são apagadas. A invisibilidade destas profissionais foi causada, talvez, pela
visão setorizada das categorias funcionais; isto é, supõe-se que os médicos
se consideravam no topo da pirâmide formada pelos profissionais que
atuavam na área de saúde. Fonseca (1893), ao escrever sobre as atividades
dos cursos, nas Memórias Históricas da Faculdade de Medicina da Bahia,
5 Filial da Federação Brasileira Pelo Progresso Feminino em 1931 por um grupo de senhoras baianas, lideradas por Edith Gama Abreu, com
a finalidade de lutar pela mancipação intelectual, política e econômica das mulheres.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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evidencia o fato dos cursos de Farmácia e Odontologia não terem o mesmo
prestígio que o de Medicina.
Esse pouco "prestígio" da Odontologia, segundo Figueiredo (2007),
devia-se ao fato desta ser uma arte manual e que envolvia a “carne e o
sangue” (FIGUEIREDO, 2007, p. 128), ou seja, ligava-se ao mundo das
coisas tidas como impuras. Carvalho (2003), ao estudar a instituição da
odontologia no Brasil, fez as mesmas observações, além de acrescentar que
na escala de prestígio o dentista e, depois o cirurgião dentista, ficava em
último grau em relação ao farmacêutico e médico.
Se o baixo status da cirurgia dentária era devido ao tipo de ofício,
manual e envolvendo sangue, o de farmácia devia-se à sua identificação
como uma arte complementar à medicina. Inicialmente, preparar os
medicamentos necessários para efetivar a cura era uma função do médico,
além do diagnóstico da doença. A separação da arte de curar iniciou-se a
partir do século VIII, quando os médicos começaram a comprar os remédios
de que necessitavam em vez de prepará-los. O estigma criado para a
farmácia foi de que era “a cozinha da medicina”, assim caberia a este
profissional “a função de ‘cozinhar para os médicos’” (MARQUES, 1999, p.
157). É justamente devido a esse imaginário que a presença feminina foi
aceita sem muitas resistências, enquanto que aconteceu o contrário em
relação à medicina, pois como afirma Schiebinger (2004, p. 346): “Não se
surpreende que a botânica fosse considerada apta para as mulheres, pois –
como a farmácia [grifo meu] – estava estreitamente unida (e delas haviam se
originado) à cura por meio de ervas e a jardinagem, terrenos a que as
mulheres se dedicavam há muito tempo”.
Estas questões, por certo, sinalizam caminhos para se explicar a visão
setorizada em relação aos farmacêuticos e odontólogos que perpassou a
redação do artigo da Gazeta Médica da Bahia, onde nem mesmo a dupla
formatura de Glafira Corina de Araújo – primeiramente em farmácia em
outubro de 1892, apesar de no mesmo ano graduar-se também em medicina
– foi mencionada, revelando a hierarquia de status existente entre os vários
cursos baianos da área biomédica e que pode ser compreendida por uma
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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ótica de gênero na medida em que identifiquei as concentrações femininas
em cada curso e as entrecruzei com as representações construídas acerca de
cada um deles.
As práticas setorizadas da medicina em relação à farmácia e
odontologia, somada a uma compreensão sexista de ciência, produziram no
interior da Faculdade de Medicina da Bahia o que podemos chamar de uma
segregação territorial. Eulália Sedeño (2001), ao analisar de que forma as
concepções de gênero, ao longo da história da ciência, estão imbricadas na
constituição das instituições que se dedicam ao fazer cientifico, traz a cena
os conceitos de discriminação territorial e hierárquica para explicar tal
fenômeno:
Por exemplo, se comprovou como as mulheres
dedicam-se a determinadas disciplinas consideradas
“mais”
femininas
(discriminação
denominada
territorial) e como ocupam os lugares mais baixos
do escalão profissional (discriminação hierárquica),
uma vez que se constata que o prestigio de uma
disciplina é inversamente proporcional ao número
de mulheres que a praticam. (SEDEÑO E., 2001, p.
23)
Estes não são conceitos exclusivos de Eulália Sedeño (2001), uma vez
que outras estudiosas feministas da ciência, ao analisarem de que maneira
as relações de gênero estruturam o campo científico, chegam às mesmas
conclusões da feminista espanhola. A exemplo cito o caso de Schiebinger
(2001) que, ao dialogar com outras especialistas, constata no contexto norteamericano as mesmas características apontadas por Sedeño para o europeu.
Há,
no
entanto,
algumas
diferenças
entre
essas
duas
autoras:
a
nomenclatura que Schiebinger (2001) utiliza é diferente da de Sedeño (2001),
apesar de o conceito ser o mesmo. Aquela utiliza “segregação” em vez de
“discriminação”:
No inicio da década de 1980, Margaret Rossiter
propôs dois conceitos para compreender a massa de
estatísticas sobre mulheres na ciência e as
desvantagens que as mulheres continuam a sofrer.
O primeiro ela denominou segregação hierárquica, o
conhecido fenômeno pelo qual, conforme se sobe a
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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escada do poder e prestígio, cada vez menos rostos
femininos são vistos. (...) Rossiter discutiu também
“segregação territorial” ou como as mulheres se
agrupam
em
disciplinas
cientificas.”
(SCHIEBINGER, 2001, p. 76-77)
Optei,
neste
artigo,
por
utilizar
“segregação”
em
vez
de
“discriminação”, pois o primeiro termo me parece mais adequado ao universo
do meu estudo, uma vez que além da discriminação houve a segregação,
implicando
na
criação
de
“guetos”.
A
aplicação
desses
conceitos,
contextualizados, se justifica por ser o caminho para explicar a presença
feminina nos cursos da Faculdade de Medicina da Bahia, uma vez que a
partir da sua utilização é possível vislumbrar, além do número crescente de
mulheres naquela instituição, o que de forma simplista poderia ocasionar a
interpretação equivocada de que o crescente processo de feminização dos
seus cursos significou uma ruptura do mundo masculino da biomedicina na
Bahia.
É preciso ir além da cifra numérica. É necessário verificar os valores
sociais atribuídos a estes cursos ou mesmo às especializações dentro dessa
área de saber. A partir do “matrimônio metodológico” entre quantitativo e
qualitativo, proposto por Poncela (1998, p.167), a presença feminina nos
cursos de Medicina, Farmácia e Odontologia ganha um outro sentido e
caracteriza bem a afirmação de Vallejos, Yannoulas, Lenarduzzi e Tindera
(2003) de que a exclusão das mulheres das instituições responsáveis pela
produção formal dos saberes, bem como o exercício profissional daí
resultante, “não se efectua mais pela limitação no ingresso, mas pela
transferência a seu interior” (VALLEJOS e outras, 2003, p. 288).
Em outras palavras, a exclusão evidenciada pela proibição de acesso
às universidades não deixa de existir no momento em que as mulheres
adentram este espaço, ela apenas muda de direção, na medida em que a
exclusão se fez presente no seu interior com a criação de “guetos”. Assim, a
segregação territorial e hierárquica são os aspectos visíveis da performance
da exclusão feminina na ciência e que terminam por estruturar a
participação em medicina, farmácia e odontologia na Bahia do final dos
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 41
oitocentos e inicio dos novecentos. O universo feminino que freqüentou os
cursos superiores da Faculdade de Medicina da Bahia, no período aqui
trabalhado, encontrou a sua maior representatividade no curso de Farmácia
com um total de 168 (cento e sessenta e oito) formaturas femininas, seguido
por Odontologia, que fica em segundo lugar com um número de 160 (cento e
sessenta), por Medicina com um total de 84 (oitenta e quatro).
GRAFICO I
CONCENTRAÇÃO FEMININA NOS CURSOS SUPERIORES DA
FACULDADE DE MEDICINA DA BAHIA – 1879/1949
100
90
80
70
60
Medicina
50
Farmacia
40
Odontologia
30
20
10
0
1870
1890
1910
1930
Fonte: Livro Índice de Graduados (1808-1939); Livros de Registro
de Diploma (1940-9)
Dessa forma, a segregação territorial torna-se visível nos números de
formadas em cada curso e as representações de gênero dominantes na
sociedade baiana do período que estavam presentes na Faculdade de
Medicina da Bahia mesclavam-se com as imagens de cada curso; isto é
perceptível quando, nos dados apresentados no Gráfico I, Farmácia e
Odontologia formam 76,09% do universo constituído entre 1879 e 1949,
cuja dimensão equivale a 412 (quatrocentos e doze) mulheres.
A presença feminina nas profissões liberais nas décadas de 1930 e
1940 foi estabelecida de acordo com os estereótipos de gênero vigente. As
mulheres, em sua maioria, dirigiam-se para as licenciaturas, das recémHISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 42
criadas Faculdades de Filosofia; pois, o ato de ensinar era compreendido
como uma atividade própria para elas devido as suas características e
funções “inatas”. Passos (1999), no entanto, revela que mesmo no interior
destas instituições havia uma hierarquia de gênero que estruturou desde as
escolhas pelos cursos, até mesmo as atividades desenvolvidas. Os poucos
homens que estudaram na Faculdade de Filosofia da Bahia optavam por
Filosofia, Química e Física, ou seja, “identificavam-se com os cursos da área
das ciências, da pesquisa, da abstração, e as mulheres com os que levassem
ao ensino, cuidar e a ajudar no crescimento do outro”. (PASSOS, 1999, p.
133).
A concentração feminina nos cursos da Faculdade de Filosofia, que
tinha como uma das finalidades a formação de docentes, de São Paulo, nas
décadas finais da primeira metade dos novecentos, foi objeto de discussão do
artigo “A mulher universitária: códigos de sociabilidade e relações de gênero”
(TRIGO, 1994). Pela leitura comparativa de Passos (1999) e Trigo (1994),
chego à conclusão, não tão inédita, de que esta especificidade das referidas
instituições em ter um publico eminentemente feminino, característica esta
que atribuiu à instituição baiana, no período, a pecha de “a faculdade de
saias” (PASSOS, 1999), foi reflexo da influência que os estereótipos de gênero
tiveram nas escolhas profissionais dessas mulheres.
Mas, nem todas que freqüentaram cursos universitários o fizeram nas
Faculdades de Filosofia; houve aquelas que buscaram a formação em cursos
das áreas de prestígio como a biomédica e a jurídica. E a hierarquia de
gênero na escolha da formação não se revelou, especificamente na área
biomédica, só pelo pequeno número de mulheres naquele universo, mas
também por algumas sub-áreas particulares de formação (medicina,
farmácia e odontologia) em que encontrei estas mulheres. A segregação
territorial é notável e justificável ao se pensar que eram profissões a que se
atribuíam relações com o feminino, como pontuei anteriormente, e de pouco
prestigio, desde o século XIX.
A inserção dessas mulheres no espaço da
biomedicina foi direcionada em sua grande maioria para áreas que possuíam
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 43
identificação com o “ser feminino” – farmácia e enfermagem6 - ou de pouco
prestigio como a odontologia. Esta foi uma conclusão a que chegou Saffioti
(1969) ao procurar explicar a concentração no curso de Farmácia, em São
Paulo, para as décadas de 1930 e 1940:
A maior concentração feminina nesses ramos do
ensino, notadamente no ramo farmacêutico,
encontra explicações no processo de desvalorização
social sofrido pela profissão de farmacêutico. Na
verdade, o farmacêutico só tem conservado suas
funções tradicionais nas pequenas comunidades
onde o médico inexiste ou onde o nível de salários é
suficientemente baixo para impedir que os pacientes
se dirijam a um facultativo ou, ainda, onde
persistem as tradições que envolviam a personagem
do boticário. É muito provável que o referido
desprestígio em que caiu a profissão de
farmacêutico, transformando este em vendedor de
remédios industrializados, seja o fator grandemente
responsável pela penetração do elemento feminino
neste setor ocupacional. Este argumento parece ser
corroborado pelo fato de que a procura desse ramo
de estudos por parte do elemento masculino era
reduzidíssima em face da procura dos cursos de
medicina, não chegando a procura daqueles a
representar sequer 14,0% da procura destes.
(SAFFIOTI, 1969, p. 233)
As observações feitas por Saffioti (1969, p. 233) também foram
ratificadas por
Hahner (2003, p. 198), que justificou a concentração
feminina nos cursos de Farmácia e Odontologia afirmado que: no primeiro,
era devido à perda de prestigio deste; no segundo, a cirurgiã dentária, era
porque
“as
mulheres
podiam
praticar
sem
abandonar
os
serviços
domésticos”; mesmo porque os cursos mencionados não apresentavam
discordâncias aparentes com os estereótipos femininos; visto que o primeiro
não tinha prestígio e estava relacionado com o mundo doméstico; e, o
segundo não atrapalhava o desempenho feminino na vida doméstica.
As explicações que apontam para a concentração da presença
feminina nesses cursos, majoritária em relação ao de medicina, podem ser
6
A atuação e formação feminina em enfermagem foi também objeto de analise de Elizete Passos, em De anjos
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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utilizadas como exemplo da forma como a Teoria da Complementaridade
continuou a atuar para além do início do século XIX e do acesso feminino à
área biomédica, pois aquela “ensinava que alguns campos científicos eram
mais adequados para as mulheres” (SCHIEBINGER, 2004, p. 344) e foi para
os cursos de farmácia e odontologia que as mulheres, em sua maioria, se
dirigiram; demarcando explicitamente como a exclusão feminina se manteve
nesta área do saber, configurando o que chamamos de segregação territorial.
Desarte, no Gráfico I é visível uma oscilação crescente do número de
formaturas, sendo que a partir da década de 1930 houve uma oscilação
menor, chegando quase a um índice constante no curso de medicina em
relação ao período posterior. Verifica-se, portanto, que apesar da Reforma
Leôncio de Carvalho permitir o acesso feminino nos cursos superiores,
somente a partir do início do século seguinte houve um número expressivo
de mulheres na instituição baiana, considerando o universo estudado, o que
suscitou a necessidade de refletir sobre o que teria incentivado um aumento
da busca feminina por estes cursos, precisamente Farmácia e Odontologia.
Aos dados apresentados no Gráfico I somam-se outros registros que
encontrei no Arquivo da Faculdade de Medicina da Bahia, precisamente para
as décadas de 1930 e 1940, e que ao acrescentarem dados como origem e
faixa etária das discentes permitem construir um perfil e tornam perceptível
a movimentação de mulheres de cidades do interior da Bahia e mesmo de
outros estados que se dirigiam para a instituição baiana com o intuito de
graduar-se nos cursos superiores que esta oferecia. Dentre a riqueza desse
material, para a pesquisa histórica feminista, encontra-se a possibilidade de
identificação de um dos fatores que ocasionaram o aumento da presença
feminina.
Destas mulheres, 279 (duzentos e setenta e nove) eram baianas, que
em sua grande maioria localizavam-se entre a faixa etária de 15 a 25 anos.
A maioria das discentes de outros estados era do Norte e Nordeste: Ceará (6),
Sergipe (37), Alagoas (24), Maranhão (5), Piauí (4), Acre (1), Pernambuco (7),
Amazonas (2), Mato Grosso (1), Rio Grande do Norte (1) e Pará (1). Fazem
a mulheres (1998).
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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parte deste universo, ainda, sulistas (9) e estrangeiras (7).
As mulheres
transitavam, muitas iam e voltavam; outras permaneciam. E uma grande
maioria teve contato com as reivindicações feministas.
Esta minha hipótese tem sua origem no momento em que verifico de
que foram os estados nordestinos que tinham filias da Federação Brasileira
pelo Progresso Feminino, os que enviaram mais moças para os cursos da
Faculdade de Medicina da Bahia, justamente no período de atuação da
entidade feminista que tinham entre os seus setores a União Universitária
Feminina e depois pela Ala Moça, cujo objetivo principal era estimular a
formação intelectual feminina. Esta é uma questão a ser pelo menos
considerada. Colabora com este argumento a estreita aproximação de
algumas profissionais com as idéias e mesmo com organizações feministas
do período, uma vez que dentre os fatores aglutinadores entre estas moças
encontra-se além das relações familiares, os laços políticos que as
mantinham unidas durante o curso ou mesmo com aquelas que já haviam
se graduado em anos anteriores.
Refiro-me, aqui, por exemplo, ao fato de que apesar da alagoana
Quitéria Lyra ter concluído o curso de farmácia em 1927 e manter contato
com as baianas Nair do Passo Cunha e Gladys Browne Boia, sócias da
Federação Baiana Pelo Progresso Feminino, que formaram-se em medicina
na década de 1930. Isto se deve não apenas ao fato da primeira não retornar
ao seu estado de origem, mas, principalmente, devido ao fato dela atuar na
União Universitária juntamente com as outras duas, como mostra artigo “O
Feminismo Thimphando – Leaders do movimento far-se-hão ouvir amanhã”
publicado pelo Jornal A Tarde e que noticiou a criação dessa entidade e da
Federação Baiana pelo Progresso Feminino; nomeando inclusive o nome das
mulheres que faziam parte das suas diretorias - entre as quais muitas
médicas, farmacêuticas e odontologas formadas pela Faculdade de Medicina
da Bahia.
Na busca de explicações para a aumento da presença feminina nos
cursos de Medicina, Farmácia e Odontologia, no intervalo de 1920 e 1940,
não posso deixar de considerar que o período em questão situa-se entre o
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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denominado processo de modernização das grandes cidades do país, que
compreende desde uma reestruturação arquitetônica até a mudança de
comportamentos e, nesse processo uma intensificação do movimento
feminista com a fundação da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino
que, dentre outras coisas, dava prosseguimento às reivindicações por
educação das mulheres e o acesso às profissões liberais, fazendo com que o
cotidiano feminino, em proporções diferenciadas, fosse afetado por estas
transformações.
Mesmo assim, as mulheres continuavam nos tradicionais papéis de
mães e esposas, moralizadoras da sociedade e a educação, inclusive a aquela
que possibilitava uma profissão, era pensada e defendida com este intuito.
Nessa direção, Leite (1997, p.94-109) ao apresentar e analisar o imaginário
republicano baiano acerca da educação feminina, destaca a palestra da
professora Cordula Spinola, realizada em 1913, como um exemplo desta
questão:
Na memória apresentada, propugnava-se “a
abertura de escolas profissionaes, onde a educação
marche de accordo com as exigências da sociedade
actual”, o que contribuiria sobremaneira para o
equilíbrio feminino, pois o conteúdo ministrado
nestas escolas normais não prejudicaria as funções
da mãe e da esposa. A professora afirmava ainda
que a degradação moral da mulher, bem como a sua
falta de autonomia na sociedade, decorriam da falta
de instrução profissional, já que “a mulher no
Brasil, embora bem instruída, é quase sempre rica
de theorias e paupérrima na pratica do trabalho da
vida”. As idéias finais do trabalho de Cordula
Spinola resumem as argumentações presentes nos
discursos de vários intelectuais do período que
pensaram e escreveram sobre a mulher. Entretanto,
existiram algumas diferenças marcantes no
pensamento da professora que, além de criticar a
exclusão social da mulher, dava ênfase ao processo
de autonomia econômica, obtida através de uma
profissão. (LEITE, 1997, p. 104-105).
A fala da referida docente, por intermédio da voz de Leite, salientou uma
outra faceta do cotidiano feminino na capital baiana: o trabalho remunerado
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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fora do lar para as mulheres da classe média e da elite, uma vez que as
pobres – em sua maioria mestiças e negras – já trabalhavam fora dos muros
do espaço doméstico desde o período colonial. Assim,
O projeto e as idéias educacionais dirigidas às
mulheres constituíam apenas uma face da
construção de uma cultura feminina de elite na
Bahia republicana. Outras formas de socialização,
como o trabalho e o lazer, vão evidenciar a dialética
dos papéis sexuais e as múltiplas relações entre os
gêneros nos diversos espaços sociais (LEITE, 1997,
p. 109).
Nesse
sentido,
o
exercício
profissional
feminino
nas
décadas
intermediarias da primeira metade do século XX, foi também um assunto
abordado por Almeida (1986) que, ao analisar o contexto de constituição da
Federação Baiana pelo Progresso Feminino, apresentou uma comparação
entre índices sobre a presença das baianas no setor terciário, que de quase
3% (três pontos percentuais) em 1920, aumentou para 15% (quinze pontos
percentuais) em 1940. Apesar de indicar o aumento de quase 12% (doze
pontos percentuais) em duas décadas, sinalizando que “a profissionalização
da mulher e sua participação nas chamadas atividades produtivas eram
contudo inexpressivas no contexto da cidade, durante toda a primeira
metade deste século “ (ALMEIDA M., 1986, p. 47), suas reflexões são
insuficientes para explicar os fatores que ocasionaram o crescimento destes
índices. Ela apenas relaciona o baixo percentual feminino ao fato de que “o
desenvolvimento
das
relações
de
produção
capitalistas,
elemento
incentivador e desencadeador desses processos no meio urbano, encontravase ainda num estágio incipiente e parecia não demandar tanto por braços
femininos” (ALMEIDA M., 1986, p. 47).
Foi em notícias publicadas pelo Jornal A Tarde e Diário de Noticias nas vozes de Maria Luiza Bittercourt, Lili Tosta e de Leda Ferraro -, que
encontrei indicativos do que teria ocasionado o aumento desses índices e o
direcionamento, “no final da década de 40”, das mulheres de classe média e
da elite “de forma acentuada para atividades do setor terciário” (ALMEIDA
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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M., 1986, p. 47), facção do mercado de trabalho onde se encontram as
profissões liberais como medicina, farmácia e odontologia.
Em 1931, a feminista baiana Maria Luiza Bittercourt, entusiasmada
como “a invasão victoriosa da mulher em todos os campos de actividade”
(BITTENCOURT, 26/3/1931, p.2), afirmou que tal fato era reflexo do
desenvolvimento das idéias feministas que já existiam na capital baiana.
Concordo com essa afirmação, pois as idéias feministas já estavam em
atuação em Salvador desde a segunda metade do século XIX e tiveram um
reforço a partir das primeiras décadas do XX como demonstram os artigos de
Francisca Praguer Fróes e até mesmo aqueles que, por serem contrários a
essas idéias, negam a existência das reivindicações pelos direitos políticos.
(VANIN, 2008)
Nesse contexto, havia forte resistência ao exercício de atividades e
funções femininas que não fossem as de esposa e mãe, mas não podemos
ignorar que a exposição pública desses posicionamentos é dado sintomático
da existência do fato de que novas idéias acerca dos papéis e atividades
femininas estavam em circulação e que as ações resultantes dessas não
eram tão invisíveis. Quanto à fala de Maria Luiza Bittecourt é evidente ser o
depoimento apaixonado de uma militante, apesar desta solicitar de seus
leitores que “não vejaes nisto exaggeração partidária” (BITTENCOURT,
26/3/1931, p. 2), que no afã de ter as suas idéias ouvidas e, quiçá, aceitas,
atribuiu a estas a crescente presença da participação feminina em variadas
atividades econômicas, desenvolvidas no espaço soteropolitano, conforme o
excerto abaixo:
É bem verdade que a outro despreocupado visitante,
oriundo de um grande centro como o Rio, onde
corriqueiro, encontradiço é o trabalho feminino, a
impressão que nos causou a mulher bahiana se
traduzira pela aceitação natural do facto a que se
habituara. Mas, para nós, que já vivemos,
assistindo, comprehendendo, participando da luta
surda que a este resultado procede – da necessidade
contra o preconceito, da vontade contra a opposição
do ambiente, da consciência do dever contra o medo
da responsabilidade, à acção da mulher no norte,
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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onde, não ignoramos, a importância destes
obstáculos infinitamente maior, exigindo somma de
sacrifícios, nos admira. Surprehendeu-a nossa
ignorância, acompanha-a nossa sympatia, relata
nossa orgulhosa satisfação. Entrei nas lojas, visitei
as escolas, percorri as repartições, ingressei nas
redacções, e por toda a parte incontrei, capaz, culta,
respeitada, acatada a minha conterrânea, a minha
irmã que trabalha, que estuda, que desempenha
funcções, que escreve. Procurei ouvir os que a
cercavam, e soube do respeito e da consideração
que lhe votam. Procurei ouvi-la e surprehendi a
história milagre da sua vontade, intelligente,
aproveitada, apta. Por isso aceitei satisfeita a missão
honrada de convidal-as para que se reunissem num
centro onde promovessem a defesa do seu direito, a
propagação
das suas idéias
(BITTECOURT,
26/03/1931, p.2)
Nesse mesmo período, Lili Tosta7 ao responder a um plebiscito acerca
do feminismo feito pelo Jornal A Tarde, especificamente em 1931, revela as
maneiras pelas quais, na década de 1920, recém chegada da Europa, onde
teve contato com as idéias feministas inglesas, começou a divulgar as suas
opiniões acerca da situação e dos direitos das mulheres:
Durante os dois annos que estudei na Escola
Polytechnica de Londres, o convívio diário de cinco
horas de trabalho naquelle pequeno mundo de nove
mil estudantes, de ambos os sexos, e de todos os
ramos de estudo, muito concorreram para a
expansão do que, então, chamavam algumas
pessoas, “as minhas idéias subversivas”. Estudei o
feminismo no seu berço, por assim dizer, me
irmanei com as suas lutas e os seus triumphos.
Finalmente, voltei ao ninho pátrio! Triste
experiência! Quase asphyxio! Durante dois longos
annos lutei desesperadamente para me acclimatar,
para me adaptar aos preconceitos locaes! A cada
passo tropeçava num impecilho. Uma luta titânica
entre os meus ideaes e a desharmonia do meio.
Felizes aquelles que nunca conheceram esta
qualidade de luta! Mas, como para tudo há remédio,
7
Sobre Lili Tosta recomenda-se a leitura do artigo "Lili Tosta e os fundamentos do Feminismo Baiano"
(COSTA, 2002).
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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equilibrar-me, sendo feminista pratica, dando
expansão pratica aos meus ideaes e, ao mesmo
tempo, tolerando e respeitando o meio. Porém,
desde 1922 que venho exteriorisando, mui
discretamente, as minhas theorias por meio de
artigos, publicados nos jornaes desta Capital, com o
pseudonymo Russo de Souza Makaroff e algumas
vezes com nome de homem. Sou, por conseguinte,
feminista innata, convicta e de facto! (TOSTA,
9/4/1931, p.2)
Cruzando as falas de Lili Tosta e de Maria Luiza Bittercourt, continuo
a concordar que a expressão de idéias que questionavam a situação feminina
e mostravam novos horizontes para as mulheres, além do papel de mãe e
esposa, possivelmente puderam influenciar a participação delas no mercado
de trabalho, principalmente no setor terciário; no entanto, as resistências
explicitadas por Lili Tosta, me fazem refletir que existiram ainda outros
fatores que explicariam o aumento do índice feminino no mercado de
trabalho apontado por Almeida (1986, p. 47).
Logicamente que o cenário descrito por Maria Luiza Bittercourt não
era exclusivo de Salvador. O contexto econômico vivenciado pelas famílias de
classe média e, também dos estratos mais abastados em cidades como São
Paulo e Rio de Janeiro, era um dos fatores para o exercício feminino de
profissões remuneradas fora do lar; pois para as famílias os rendimentos
obtidos por suas mulheres, por meio de trabalho honesto, era um
complemento a renda e, conseqüentemente, uma estratégia para manterem
os padrões de vida a que estavam acostumadas (BESSE, 1999, p.143-181;
HAHNER, 2003, p. 183-256; ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 94-95).
Devo salientar ainda, que os índices encontrados por Almeida (1986,
p. 47) para a Bahia não são destoantes dos apresentados por Saffioti (1969,
p.253-255) para outras áreas do Brasil. Ao analisar a força de trabalho
feminina na primeira metade dos novecentos, esta autora afirma ter ocorrido
um aumento de 4,4% em 1900 para 22,4% em 1920, chegando a 22,7% na
década de 1940. Apesar de destacar a elevação do número de mulheres
atuando no mercado de trabalho, Saffioti alerta que isso não significou uma
transformação na proporção entre o número de homens e mulheres, eles
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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continuaram a ser maioria. Esta é uma discussão importante, pois
demonstra
a
continuidade
das
hierarquias
de
gênero
atuando
na
organização do contexto nacional, especificamente no mundo do trabalho;
porém, para o meu argumento o que interessa, nesse momento, é a
explicação que Saffioti (1969, p. 254) construiu para esse fenômeno: com o
advento das guerras e o fortalecimento do desenvolvimento da indústria
nacional houve um direcionamento da mão de obra feminina do setor
secundário para o terciário.
A influência das transformações de comportamento ocasionadas pelas
guerras mundiais, sobretudo na Europa, é sinalizada por Maria Lúcia
Rocha-Coutinho (1994) quando esta menciona a necessidade de mão-obra
para substituir a masculina que foi direcionada para o combate; nesse
contexto, “as divisões entre os papéis masculinos e femininos, que incluíram
o principio da mãe no lar, foram esquecidas e varias facilidades criadas
(como creches e cantinas, por exemplo) para que elas melhor pudessem
cumprir seus novos papéis profissionais” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 44).
Esta mesma autora afirma que em contrapartida no período pósguerra, as atividades domésticas (mães, esposas e donas de casa) foram
novamente reafirmadas como próprias das mulheres, para que elas
retornassem às suas funções tradicionais e cedessem os espaços no mercado
do trabalho para os homens que retornavam, assim, foram criadas intensas
campanhas de valorização da “imagem estereotipada da boa mãe no lar”
(ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 95). Ou seja, no período pós-guerra houve
uma reformulação das representações de gênero na tentativa de imposição
dos antigos papéis femininos, afetando também a sociedade brasileira: “O
período do pós-guerra assiste, com assinalamos em capitulo anterior, a uma
profunda transformação nas sociedades européias e norte-americanas, no
que diz respeito ao papel da mulher na sociedade, transformação esta que
vai ter reflexos na sociedade brasileira” (ROCHA-COUTINHO, 1994, p. 95).
Pode-se inferir nessa afirmação de Rocha-Coutinho (1994) que se as
transformações do pós-guerra refletiram no contexto feminino brasileiro isso
se deu porque as próprias mudanças decorrentes das guerras também
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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afetaram a sociedade brasileira. A influência dos comportamentos femininos
norte-americano
e
europeu,
nas
décadas
iniciais
dos
novecentos,
terminaram por influenciar as brasileiras, sobretudo aquelas de classe
média e alta, como foi frisado por Hahner (2003):
As inovações culturais e tecnológicas que chegaram
aos centros urbanos do Brasil no inicio do século
XX afetaram as mulheres assim como os homens.
Como seus parceiros homens, as mulheres das
“famílias mais finas” encontravam-se e passavam
seu tempo em casas de chá e teatros. Logo elas
estariam dirigindo seus automóveis e indo ao
cinema, onde tomavam contato com novas atitudes
e modos de comportamento da mulher. As mulheres
da elite tinham visitado muitas vezes a Europa,
fazendo “freqüentes viagens com seus maridos,
trazendo para casa as últimas novidades da moda,
tanto no vestuário como na decoração de suas
casas”. Além de voltar com os paramentos da
modernidade e da moda, algumas mulheres também
adquiriam novas idéias sobre atividades e direitos
femininos. (HAHNER, 2003, p. 248)
As informações que Rocha-Coutinho (1994) sinaliza e que Hahner
(2003)
utiliza para o Brasil acerca da influência das transformações
ocasionadas nos comportamentos femininos no período das e entre guerras,
podem ser também aplicadas à realidade da Bahia se levarmos em
consideração que algumas notícias acerca das atividades que as mulheres
passaram a desempenhar com sucesso, na ausência dos homens, foram
absorvidas pelas baianas influenciando ações e desejos. A esse respeito,
encontrei vestígios de que estas notícias podem ter estimulado essas
mulheres; pois, esta perspectiva estava patente em texto que expressava
opinião favorável ao voto feminino enviado ao Jornal A Tarde, e que foi o
antepenúltimo publicado na coluna que este periódico dedicou aos
resultados do seu plebiscito acerca do acesso das brasileiras ao sufrágio
(1917). Sua autora, Anna de Almeida Soares Junquilho, residente na Villa
Nova da Rainha, manifestou a sua opinião favorável ao voto feminino e
justificou esse posicionamento afirmando que as mulheres tinham tanta
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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capacidade quanto os homens. E para ilustrar sua afirmação citou como
exemplo a participação das mulheres russas na guerra: “Não se discute,
hoje, a capacidade da mulher para as conquistas dos grandes ideaes. Ella
está substituindo o homem em todos os commetimentos na luta intensa da
vida, dando o último exemplo as jovens Russas, formando ao lado do
exercito, para a defesa de sua pátria.” (O PLEBISCITO..., 10/7/1917, p. 2).
Este texto não foi à única vez que, no período de janeiro a julho de 1917, o
Jornal A Tarde mencionou a participação das mulheres européias na
Guerra.
Em um artigo publicado na primeira pagina do dia 9 de janeiro de
1917, mas que foi escrito em Paris (França) em dezembro do ano anterior,
provavelmente por um correspondente, com o titulo de “As Revoluções da
Guerra – As novas profissões das mulheres inglezas”, relata a coragem e o
sacrifício das mulheres em deixar seus lares ao assumirem profissões
masculinas
como
uma
forma
de
colaborar
com
a
futura
paz
e,
conseqüentemente, o retorno de seus esposos e filhos.
Novos horizontes se desvendaram para aquellas que
são obrigadas a ganhar a vida. O trabalho das
munições tornou-se a sua occupação corrente; mas
há também muitas mulheres nos escriptorios de
commércio, nos bancos, nos ministérios. Por toda a
parte ellas substituíram, corajosamente, os homens
auzentes, nos “trans” e nos “burses”. São mulheres
que conduzem os carros; e, atarvez (sic) da chuva,
vêm-se outras que manobram as alavancas dos
pesados caminhões de mercado, envoltas n’um
“mackntoflh”, com um gorro enterrado na cabeça a
tal ponto, que não se saberia o seu sexo, se alguma
me acha espaçada ou o brilho e a frescura da sua
tez não as trahissem. Na Inglaterra as mulheres
substituíram ainda os carteiros: vêm-se algumas, de
facto, percorrendo as ruas, a passos largos, com o
sacco ao hombro, cheio de pacotes postaes. Ellas
acceitaram também, corajosamente, o papel de
bombeiros, e nos “films” de cinema de Londres,
vêm-se mulheres bombeiros que sobem por escadas
de cordas e brandem as lanças de esquicho. (...). É,
sobretudo, no momento da messe e das colheitas
que o esforço das mulheres inglezas se torna
característico. Ellas se inscrevem para o “farning
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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work”, em listas abertas pelos grande proprietários
ou pelas universidades. Quando, em algum lugar,
falta a mão d’obra, é a esse corpo de voluntários que
a nação se dirige pela via dos jornaes. Durante o
estio vêm-se mulheres que manobram pesadas
machinas agrícolas as cegadoras, as enfeixadoras e
as batedoras. São ellas que colhem as fructas.
Nenhuma tarefa lhes repugna. Uma immensa força
moral sustenta as suas forças physicas: sabem que
cada dia do seu trabalho adeanta um pouco a hora
da paz. (AS REVOLUÇÕES..., 9/1/1917, p.1)
As notícias da guerra eram constantes no referido periódico baiano e
era um assunto de tamanho interesse do público, que foi criada uma espécie
de coluna com flashes da guerra, onde pude verificar mais uma vez como os
estereótipos de gênero se faziam presentes. Em 10 de janeiro de 1917, a
imagem publicada que aparece sob a chamada “Aspectos da Guerra”, são de
mulheres francesas trabalhando na confecção da artilharia que os homens
utilizaram na guerra, como mostra uma outra foto publicada em 15 de
agosto de 1917, sob o titulo de “visões da guerra”. Que estas fotografias, a
exemplo das notícias publicadas, podem ter influenciado algumas reflexões
por parte das baianas é uma possibilidade, ao se considerar que as imagens
também ajudam os sujeitos a construírem suas interpretações da realidade
visto que podem se constituir como meios de transmissão de idéias e valores
que direcionam comportamentos e ações de quem as consome (LOURO,
2000; SABAT, 2001).
Apesar dos artigos publicados, no período em destaque, apontarem
nesta perspectiva, a natureza das representações de gênero apresentadas
não são apenas expressas nos textos. Isso é evidente quando analisamos a
ilustração que acompanha o artigo "As Revoluções da Guerra – As novas
profissões das mulheres inglezas”: uma foto de dois homens em pé ao lado
de um sentado, apesar de não existir nenhuma menção da ilustração no
texto as funções que eles estavam desempenhando, enquanto outros
estavam no campo de batalha, fica evidente para os(as) leituras e permitem
identificá-los como o diplomata, o líder político e o chefe militar. Desta sorte,
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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é notável como os estereótipos de gênero ordenaram o mundo em guerra: as
mulheres davam o suporte necessário para que eles permanecessem nos
campos de batalha de várias maneiras, isto é, cuidando dos feridos, levando
alimentação ou mesmo assumido seus postos, enquanto que aqueles que
não iam para o campo de batalha ficavam na área de estratégia militar,
política e na diplomacia - articulando o futuro.
O texto de Anna de Almeida Soares Junquilho e as notícias de jornais
mencionadas suscitam reflexões acerca das influências que reformulações
das atividades femininas nos países em guerra podem ter causado no
comportamento das brasileiras e baianas, a exemplo da formação e exercício
profissional em atividades tradicionalmente definidas como masculinas; isto
demanda que investigações mais aprofundadas sejam ainda realizadas. Esta
idéia, no entanto, se fortalece quando analisamos a explicação que Ferraro
(1944) construiu para a presença feminina no espaço público soteropolitano
na década de 1940, não só nas faculdades, mas também no mercado de
trabalho.
Ela
atribui
tal
fenômeno,
também,
a
reformulação
de
comportamentos ocasionada pelas duas guerras mundiais.
Aquele velho conceito que predominou no Oriente de
que a mulher letrada não obedece nem quer
trabalhar e que se estendeu no Ocidente
permanecendo
ainda
hoje
petrificado
no
pensamento de muitos homens, vai desaparecendo
tal o Niágara de fatos que se tem desencadeado,
arrastando aquelas velhas tradições, fazendo delas
pedaços de pensamentos que a correnteza leva.
Fatos esses que são trabalhos intelectuais e práticos
realizados pela mulher agindo com eficiência e
reagindo muito bem ao grande reativo psicológico
que é a guerra. Trabalhos esses que tem merecido
considerações elogiosas de intelectuais de valor.
(FERRARO, 1944).
A despeito do peso da argumentação supra citada, é evidentemente
que os exercícios profissionais eram perpassados pela classe, associada à
raça/etnia; ou seja, as damas baianas não estavam ou não iriam exercer
atividades não condizentes com a sua posição social. Elas se dirigiam para
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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as profissões de prestigio que dessem ou sedimentassem o status quo e,
talvez, por isto optaram pelos cursos da Faculdade de Medicina da Bahia.
È possível que a combinação de todos esses fatores tenham
contribuído para o aumento da presença das baianas da classe média e da
elite nos cursos da Faculdade de Medicina da Bahia. Assim, diante do
exposto considero que a elevação do número de mulheres nos cursos
superiores da Faculdade de Medicina da Bahia a partir de 1920, encontra-se
relacionada com a divulgação das idéias feministas, em um primeiro
momento, e depois, precisamente a partir da década de 1930, com a atuação
das filias da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, através das ações
realizadas pela União Universitária e a Ala Moça, uma vez que em todos os
estados de origem das alunas havia uma filial e muitas delas faziam parte
dessas instituições. Não podemos ignorar, no entanto, a influência das novas
relações de trabalho que foram sendo instituídas onde a presença de
mulheres brancas não pobres tornou-se mais evidente.
CORPUS DOCUMENTAL
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ENTRE LETRAS, PONTOS E AGULHAS: A EDUCAÇÃO DE ÓRFÃOS NA
ESTÂNCIA/SE OITOCENTISTA
Sheyla Farias Silva1
A infância tem suscitado interesses entre pesquisadores das diversas
áreas do saber desde a metade do século XIX, cujos estudos buscaram, entre
tantos desígnios, definir e “civilizar” a criança por meio de discursos
disciplinadores, educacionais, biológicos e sanitaristas. Atualmente, esse
tema tem sido alvo de trabalhos que tentam vislumbrar aspectos sociais,
psicológicos, antropológicos, jurídicos, sexistas entre outros. No campo do
saber histórico, tal tema ganhou predileção entre os pesquisadores adeptos
da chamada Escola dos Annales, em especial, com a terceira geração,
consagrando-se com a publicação da obra de Philippe Ariès História Social
da Criança e da Família (1960).
No Brasil, observa-se um crescente interesse pela história da infância,
evidenciado pelos inúmeros os trabalhos acadêmicos desenvolvidos que
abordam essa temática2, contudo em Sergipe esse campo do saber
desenvolve-se timidamente3.
1
Mestre em História, coordenadora do Grupo de Estudo e Pesquisa em História Cultural (GEPESHC),
professora Assistente da Universidade de Pernambuco/Campus Petrolina, Doutoranda em História pela
Universidade Federal da Bahia.
2
A historiadora Sylvia Arend fez um breve balanço sobre o crescimento deste campo de pesquisa no Brasil.
AREND, Sylvia. “Por uma história da infância no Brasil: desafios e perspectivas”. In: MIRANDA &
VASCONCELOS (Org.). História da Infância em Pernambuco. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2007, p. 1928.
3
Entre as monografias de graduação em História, encontramos apenas três trabalhos que abordam a criança
enquanto agente histórico, duas enfocando o trabalho infantil e outra sobre a educação de menores abandonados.
BISPO, Alessandra Barbosa. A educação dos menores abandonados em Sergipe: a Cidade de Menores Getúlio
Vargas (1939 – 1954). São Cristóvão, 2003, 64 f. Monografia (Graduação em História); JESUS, Luis Carlos de.
Trabalho Infantil: o labor de crianças nas olarias e a inserção do PETI no povoado Sapé em Nossa Senhora das
Dores 1998 a 2001. Nossa Senhora da Glória, 2002 60 f. Monografia (Graduação em História) e REIS, Cândida
Angélica Monteiro Santos. A erradicação do trabalho infantil em Lagarto nos anos 90. Lagarto, 2002, 81 f.
Monografia (Graduação em História). Do mesmo modo, observarmos a produção do Núcleo de Pós-graduação
em Educação da Universidade Federal de Sergipe, percebemos que a infância foi tema de quatro dissertações de
mestrado. BISPO, Alessandra Barbosa. A educação da infância pobre em Sergipe: a cidade de Menores "Getúlio
Vargas" (1942-1974). São Cristóvão, SE, 2007. 139 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade
Federal de Sergipe; LEAL, Rita de Cássia Dias. O primeiro jardim de infância de Sergipe: contribuição ao
estudo da educação infantil (1932-1942). 2004. 122 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade
Federal de Sergipe; NERY, Marco Arlindo Amorim Melo. A regeneração da infância pobre sergipana no início
do século XX: o patronato agrícola de Sergipe e suas práticas educativas. São Cristóvão, SE, 2006. 167 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Sergipe; SILVA, Nelly Monteiro Santos. Pater
Incertus, Mater Certa: as práticas de assoldadamento em Estância e sua contribuição para a História da
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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Ao estudarmos os diversos aspectos da vivência familiar dos moradores
da cidade de Estância/SE durante o século XIX4, percebemos a preocupação
do Estado, assim como das famílias com a educação das crianças. Destarte,
nesse artigo trataremos de analisar os significados atribuídos pelo Estado,
família e tutores à educação dos órfãos estancianos. Para isso, nos valemos
dos pressupostos teóricos e metodológicos da História Social, buscando
compreender através dos filtros da documentação – inventários post-mortem,
testamentos, autos de contas e ação de tutela, como a escolarização dessas
crianças foi pensada e executada na Estância Oitocentista, revelando assim
as distinções de classe, gênero e raça5.
1- Infância tutelada
Os estudos historiográficos acerca da criança apontam que o conceito
de infância foi sendo construído historicamente, moldando-se às normas da
família burguesa6. Para esta família, a criança era considerada um ser em
formação, necessitando de cuidados especiais, sejam eles materiais e
afetivos, os quais deveriam ser garantidos em primeira instância pela família
e na sua ausência, pelo Estado, até que o infante atingisse a vida adulta.
No Oitocentos brasileiro, a noção adotada de infância, diferia de acordo
com o sexo e a condição social do indivíduo, não ficando explícito na
legislação os critérios etários para o fim da infância, apesar de estabelecer a
idade de 21 anos para a emancipação dos indivíduos7. Entretanto, podemos
Educação da Infância em Sergipe. São Cristóvão, SE, 2007. 237 f. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade Federal de Sergipe.
4
Tese de doutoramento desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação de História da Universidade Federal
da Bahia, intitulada De amores e dissabores: histórias de famílias na Imperial cidade de Estância (1840-1890),
sob a orientação da Profª Drª Lígia Bellini.
5
O uso desses documentos, por muito utilizado pela história demográfica, nos permitiu o acompanhamento da
trajetória de alguns órfãos; percebermos as teias de relações vivenciadas entre eles com seus tutores e suas
famílias, além de observarmos de algumas práticas educativas, a exemplo do ingresso nas aulas de Primeiras
Letras, ensino secundário ou aprendizado de um ofício.
6
ARIÉS (1981) afirma que o conceito de infância foi uma invenção da modernidade européia, visto que na Idade
Média a criança era tratada como adulto.
7
VENÂNCIO, Renato Pinto. “Os aprendizes da guerra”. In: PRIORE, Mary del. História das Crianças no
Brasil.São Paulo: Contexto, 2007, p. 198.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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perceber que alguns cuidados aplicados aos infantes nos ajudam a
compreender as várias fases da infância.
Ao estudar a vida das crianças de elite durante o império, Ana Maria
Mauad, classificou as fases da infância e considerou sendo a primeira
infância a fase correspondente aos primeiros anos de vida até 3 ou 4 anos, o
que equivale o fim da amamentação; a segunda fase – puerícia está
relacionada aos atributos físicos: fala, dentição, desenvolvimento de
caracteres secundários femininos e masculinos, tamanho etc. e meninice,
período em que as crianças passavam a desenvolver algumas pequenas
atividades, estudavam ou aprendiam algum ofício8.
Para nortear nossa discussão, optamos por considerar infância a fase
etária do indivíduo desde o seu nascimento até a sua maioridade,
entretanto, procuramos entender no conjunto das experiências desses
indivíduos os significados dessa etapa da vida.9
Podemos iniciar nossa observação sobre os significados da infância no
Brasil oitocentista, ao analisarmos as Ordenações Filipinas - conjunto de leis
que vigoraram no Brasil desde 1603 até 1916(em especial a parte cível), na
qual o Estado Português, por conseguinte, o Império Brasileiro, atestou sua
preocupação com o amparo das crianças.
Segundo essa legislação, o pai tinha poder sobre os filhos – o patria
potestas – até que eles atingissem a maioridade10, ou seja, 21 anos, se
casassem ou se emancipassem por iniciativa paterna. Todavia, com a morte
do pai, os filhos menores de 21 anos passariam a condição de órfãos,
necessitando de serem amparados por um tutor, pessoa idônea nomeada
pelo juiz de órfãos11, que passaria a cuidar de sua educação12 e da
administração de seus bens até que atingissem sua emancipação.13
8
MAUAD, Ana Maria. “A vida das crianças de elite durante o Império”. In: PRIORE, História das Crianças no
Brasil.São Paulo: Contexto, 2007, p. 141-143.
9
Para isso nos valemos dos pressupostos teóricos de Geertz e Thompson, os quais nos alerta para os múltiplos
significados atribuídos a uma ação, seja pelos agentes como pelos observadores. GEERTZ, Clifford. “Uma
descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: A Interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar,
1978, p. 13-41. THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. da
UNICAMP, 2001. “O significado de um ritual só pode ser interpretado quando as fontes deixam de ser olhadas
como fragmento folclórico, uma sobrevivência, e são inseridas no seu contexto total”. (p. 238).
10
Pela Lei de 31 de outubro de 1831 a maioridade foi reduzida de 25 anos para 21 anos.
11
De acordo com as Ordenações Filipinas eram atribuídas ao Juiz de Órfãos as seguintes funções: 1º Cuidar dos
órfãos, de seus bens e rendas; 2º fazer um levantamento do número de órfãos do lugar; 3º elaborar com o
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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No caso do falecimento da mãe e permanência do pai, o infante com
idade inferior a 21 anos não era considerado juridicamente órfão e sim
menor, ou seja, a condição de órfão estava atrelada à ausência do pai.
Nessas condições, o pai continuava a cuidar dos menores, administraria
seus bens, o que por sua vez, dispensava a necessidade de nomeação de um
tutor.
Ainda de acordo com essa legislação, havia três tipos de tutela: a
testamentária, quando o pai antes de falecer já havia designado em seu
testamento o nome da pessoa indicada para zelar a criança; a legítima,
utilizada quando existiam pessoas ligadas ao órfão, privilegiando os parentes
paternos mais próximos; e a dativa , quando o juiz dos órfãos nomeava um
tutor
externo
aos
laços
de
parentesco
sanguíneo,
geralmente
pela
inexistência ou incapacidade dos parentes. Apesar dessas recomendações,
as mães ou avós podiam desempenhar a função de tutora, desde que
obtivessem confirmação junto às autoridades competentes e permanecessem
no estado de viúva honesta.14
Ao voltarmos o nosso olhar para as vivências familiares dos moradores
da cidade de Estância/SE15 durante o século XIX, verificamos no corpus
documental pesquisado a constante presença das crianças, seja em
escrivão dos órfãos, um livro onde constaria o nome de cada órfão, filiação, idade, local de moradia, com quem
mora, tutor e curador, bem como fazer o inventário de seus bens móveis e de raiz e o estado que se encontram; 4º
fazer que os culpados aos bens dos órfãos paguem por seus crimes. 5º inventariar os bens dos defuntos que
deixarem filhos menores de 21 anos; 6º avaliar, com o escrivão dos órfãos menores e outras pessoas
juramentadas, os bens pertencentes aos órfãos que estiverem sem processo de inventário ou partilha; 7º entregar
os órfãos e desamparados a pessoas capazes de criá-los, determinando que estas recebam o necessário ao seu
sustento; 8º fazer pregão dos órfãos maiores de sete anos, que forem dados por soldada; 9º garantir o necessário
ao mantimento, o vestuário, o calçado e tudo mais dos órfãos que não forem de soldada, mandando registrar os
gastos no inventário; 10º mandar ensinar a ler e escrever os órfãos que tiverem qualidade para isto, até a idade de
12 anos; 11º fiscalizar a ação dos tutores e curadores em relação aos bens dos órfãos; 12º conceder aos órfãos
licença para casarem e cartas de suprimento de idade; 13º depositar o dinheiro dos órfãos numa arca com três
chaves que ficaram com o juiz dos órfãos, depositário e o escrivão dos órfãos; 14º ter jurisdição em todos os
feitos civis em que os órfãos estiverem envolvidos, enquanto não forem emancipados ou casados; 15º ter
jurisdição sobe os feitos civis movidos pelos órfãos contra os que administrarem mal seus bens; 16º fazer a
partilha dos bens dos órfãos. (Livro I Título LXXXVIII)
12
Tomaremos a Educação como o conjunto de experiências voltadas para instruir, considerando as formas
institucionalizadas ou não - seja a que se processe nos espaços escolares, nas oficinas de artesãos ou lavouras.
Cf. GONDRA & SCHUELER, 2008:12.
13
Ordenações Filipinas (Livro I Título LXXXVIII § 6)
14
Ordenações Filipinas (Livro IV Título CII § 1-7)
15
A cidade de Estância, localizada na mata-sul da Província de Sergipe, construiu sua economia pautada na
agro-exportação de açúcar e no comércio de gêneros trazidos da Bahia. Em meados do Oitocentos tornou-se a
mais próspera cidade da Província, contando com 3.231 fogos, enquanto São Cristóvão, então capital da
Província possuía 3.624 fogos. (FREIRE, 1977, p. 305)
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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situações que atestem afetividade – em especial nos testamentos; cuidados
com sua educação, conforme consta nos autos de contas dos tutores; ou
mesmo em situações conflituosas, como na disputa pela tutela do órfão; em
episódios de violência, registrados nos processos-crimes. Para esse artigo,
optamos por utilizar apenas documentos que possibilitem compreender a
que tipo de educação os órfãos estancianos tiveram acesso, por isso
investigamos o emaranhado de relações a qual estavam envolvidos, a
exemplo de quem eram seus pais, seus tutores e parentes mais próximos,
considerando os argumentos utilizados pelos tutores no ato de habilitação.
Ao analisarmos 548 inventários post-mortem dos moradores da cidade
de Estância entre os anos de 1840 e1890, identificarmos a presença de 538
filhos-herdeiros menores de 21 anos, sendo que 60% destes estavam
enquadrados juridicamente na categoria órfãos e deste modo, necessitavam
de tutores16.
Após a identificação dos órfãos estancianos, coligimos as informações
prestadas pelos documentos com as prescrições do Código Filipino, a fim de
mensurarmos os tipos de tutorias predominantes em Estância e assim
percebermos as relações entre pais, tutores e órfãos.
Já mencionamos que um dos tipos de tutoria reconhecidos pelas
Ordenações Filipinas era a indicada em testamento, na qual, geralmente, o
pai nomeava alguém de sua confiança para ser o tutor de seu filho. Nesse
tipo de tutoria, a vontade do pai expressa em testamento era respeitada pelo
juiz de órfãos, que homologaria o quanto antes a tutoria do órfão, exceto nos
casos de filhos naturais ou nomeação feita pelas mães em testamento.17
Entre os estancianos não era comum o ato de elaborar testamentos. Foramnos legados, dessa época, apenas 18 exemplares desse ato jurídico tão rico
em detalhes sobre as impressões dos autores sobre suas vivências. Destes,
somente em 4, os pais nomearam tutores para cuidar de seus filhos. Vale
salientar, que todos os órfãos registrados eram filhos naturais sendo
habilitados neste documento.
16
Os outros 40% correspondiam aos menores que estavam sob o domínio da patria potestas.
Se algum pai em testamento deixasse tutor ou curador a seu filho natural, e não legítimo, ou a mãe deixasse
tutor, ou curador em seu testamento a seus filhos, estas tais tutorias ou curadorias deveriam ser confirmadas pelo
Juiz dos Órfãos. Ordenações Filipinas (Livro IV Título CII § 2).
17
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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Esses filhos naturais habilitados em testamento - num total de 7,
nasceram em sua maioria quando os pais estavam solteiros, a exemplo da
órfã Laurentina Merenciana das Flores, filha habilitada no testamento do
lavrador Francisco Xavier Soares, o qual reconheceu que em tempos de
solteirice teve “relações de amizade ilícita com Bárbara Maria, por mim teúda
e manteúda e alimentada, com a qual poderia casar, visto não ter
impedimento algum, mas não o quis”.
Trechos desse testamento nos
revelam alguns cuidados do pai para com sua única filha, a exemplo de
separar Laurentina, com apenas 5 meses de nascida, de sua mãe e depositála na casa de D. Isabel Maria das Flores Soares com o pretexto de melhor
educá-la. Ao registrar suas últimas vontades para a vida presente não
escondeu o apreço que nutria pela pequenina, visto que solicitou a seu
amigo Joaquim Moreira de Magalhães que cuidasse da administração dos
bens da órfã e que a conservasse em companhia da dita senhora Isabel.18
As tutorias denominadas de legítimas - aquelas exercidas por parentes
próximos, os quais sendo convocados pelo juiz de órfãos não poderiam
recusar a tutoria, correspondia a 33% das tutelas concedidas em Estância,
distribuídas entre avôs, tios, irmãos, cunhados e padrinhos do órfão.
Destarte, pelos idos de 1883, o lavrador Francisco de Aquino Cardoso,
recebeu
do
juiz
de
órfãos,
Dr.
Jucundino
Vicente
de
Souza,
a
responsabilidade de cuidar e educar suas sobrinhas Jovina (18 anos),
Herendina (13 anos) e Ana (9 anos), filhas legítimas de sua irmã Josefa da
Silva
Cardoso com João Cardoso da
Silva
Barreto.
Seguindo as
recomendações da legislação19, o juiz realizou o inventário post-mortem dos
bens de D. Josefa da Silva Cardoso20, os quais somavam 1:060$000
distribuídos em poucos trastes do lar e duas escravas (entre elas uma que
estava fugida havia mais de 4 anos). Ao se coligir a situação material da
família, atestada no arrolamento dos bens com a estrutura material dos
moradores da cidade de Estância, pode-se concluir que esta família não
gozava de abastança econômica, o que se agravaria ainda mais com a
18
AGJS - Translado do testamento de Francisco Xavier Soares, caixa 530 – 1852.
Ordenações Filipinas (Livro I Título LXXXVIII§ 4).
20
AGJS - Inventário de Josefa da Silva Cardoso, caixa 566 – 1883.
19
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 66
partilha dos bens entre as outras herdeiras maiores - Carolina e Zerefina e
consequentemente os parcos recursos restantes não garantiriam o sustento
das órfãs.
Ao assumirem a tutela dos órfãos, os tutores assinavam o Termo de
Tutela, no qual se comprometiam a alimentar, cuidar e educar os órfãos,
tanto nas Primeiras Letras como na doutrina cristã. Certamente foi uma
tarefa difícil para muitos tutores, em especial para aqueles detentores de
parcos recursos, a exemplo de Francisco de Aquino Cardoso. Em sua
primeira prestação de contas ao juízo de órfãos da comarca de Estância,
comprovou o apreço que tivera nos tratos com suas sobrinhas, salientando
que Herendina havia contraído enlace matrimonial com o negociante João
Severiano de Souza; Jovina já se encontrava emancipada e Ana, com 11
anos, continuava a viver em sua companhia, aprendendo com dificuldades
as Primeiras Letras, porém mostrava-se apta na doutrina cristã e nas
prendas domésticas. Por meio desse relato, podemos inferir que para as
órfãs sem parcinômia, o caminho para uma vida tranquila seria encontrar
um bom consórcio, parece que foi o caso de Herendina e talvez por isso, o
entusiasmo do tio em preocupa-se com a instrução da pequena Ana em
prendas domésticas, bem como em sua formação cristã.
O desvelo com a educação da órfã Ana mostrou-se mais evidenciado
quando ela foi levada ocultamente da casa do tutor, por sua irmã Carolina –
mulher solteira e de costumes repreensíveis. Ao analisar o conjunto dos
argumentos utilizados pelo tutor, para que o juiz de órfãos restituísse a
criança ao seu lar, nos perguntamos quais seriam esses costumes tão
perigos para a formação moral da pequenina? Para a sociedade oitocentista,
uma mulher que morasse sozinha e que recebesse em sua residência um
homem, já era um indício de conduta perigosa. Neste caso, quem sabe se o
fato de Carolina não ser casada poderia expor sua irmã a uma perdição ou
mesmo ela poderia ser amásia de um homem casado ou mesmo te uma “vida
libertina”, ainda não conseguimos perseguir a história de Carolina, porém
sabemos que seu tio tão logo registrou a denúncia de rapto da menor,
conseguiu resgatá-la.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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No cômputo das tutorias, ainda temos aquelas exercidas pelas mães,
as quais só poderiam gozar desse direito com a permissão do Juiz de órfãos.
Para isso, deveriam comprovar que viviam honestamente e renunciasse
diante do juiz o beneficio da Lei do Velleano (não contrair novas núpcias),
contudo, caso viessem a casar-se novamente a custódia dos órfãos passaria
para outro parente21. Em Estância, esse tipo de tutoria corresponde a 38%
das Ações de Tutela, ou seja, a maioria dos órfãos estancianos permaneceu
aos cuidados da mãe.
Destarte, considerando que ninguém melhor que ela, a mãe, cuidaria e
defenderia os interesses dos seus filhos, D. Josefa Maria de Jesus, logo após
o falecimento de seu esposo, o padeiro Francisco José Rodrigues, solicitou ao
juiz de órfãos, Dr. Eduardo Gomes Ferreira Veloso, a tutoria dos seus filhos:
Jesuíno (19 anos), Pedro (18 anos), José (15 anos), Josefa (13 anos) e
Etelvina (12 anos), assim tratou de assinar a renúncia do benefício de
Senatus Consultum Vellano. Dois anos após ter assumido a tutoria dos
órfãos declarou na prestação de contas que “todos os órfãos moravam em
sua companhia, já sabiam ler e escrever, bem como a doutrina cristã; Pedro
e José sabiam latim e francês e todos trabalham com ela na padaria, sendo
auxiliados pelos escravos”22. A partir desse exemplo, podemos perceber que
o universo infantil estanciano não estava tão somente relacionado às
andanças pela Rua Baixa, aos banhos de rio, aos passeios na Ponte do
Bonfim e a colheita de araçá23, mas também aos ofícios que garantissem a
subsistência da família. Nesse caso, a permanência dos órfãos junto à mãe
possibilitou a manutenção do funcionamento da padaria, visto que os 5
escravos legados por ocasião do inventário post-mortem do seu esposo,
certamente não responderiam positivamente à demanda econômica. O
espaço da padaria – espaço do trabalho, também se configurou num lugar de
sociabilização familiar e aprendizado, que englobava órfãos, cativos e
clientes.
21
Ordenações Filipinas (Livro I Título LXXII § 37 e Livro IV Título CII § 3)
22
AGJS - Inventário de Francisco José Rodrigues, caixa 563 – 1876.
AMADO, Gilberto. História da minha infância. São Cristóvão: Editora UFS; Aracaju: Fundação Oviêdo
Teixeira, 1999.
23
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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Os inventários post-mortem nos revelam outras nuances em relação à
vivência das crianças, uma dela era evidenciada na tutela de órfãos pobres,
uma vez que não eram desejados nem pelos parentes próximos, muito
menos por tutores externos ao seio familiar. Na tentativa de evitar a exclusão
dos órfãos pobres, o Código Filipino estabelecia a impossibilidade de recusa
da tutela, sendo o rechaçador sujeito a penalidades judiciais, caso não
apresentasse as devidas justificativas.24 Diante de algumas situações os
candidatos a tutor poderiam ser liberados do seu chamado, entre elas: ser
portador de uma enfermidade grave; ter mais de cinco filhos legítimos ou
netos em seu poder; exercer alguma função no serviço público como:
desembargador, corregedor, ouvidor, juiz, vereador, oficiais, procurador,
escrivão, inquiridor, carcereiro, porteiro e caminheiros, védor da fazenda,
contador, tesoureiro, almoxarife e todos os maiores de 70 anos.
A utilização de tais argumentos fez parte do enredo da história de
muitos órfãos estancianos, os quais em sua maioria eram pobres e foram
rejeitados por seus familiares. Valendo-se dessa cláusula, D. Ana Maria do
Nascimento, viúva de Manoel Francisco dos Santos, de cujo consórcio
nasceram 8 filhos, recusou custodiar seus filhos Lina (15 anos), Lucinda (14
anos), Miguel (10 anos) e Manuel (9 anos), sendo convocado seu primogênito
para assumir o zelo pelos órfãos. No inventário do seu esposo, ficou evidente
a pobreza material compartilhada por aquela família, cujo conjunto dos bens
somavam 417$00, distribuídos em 6 bois, 1 carro forrado, 1 roda de mão e
uma posse de terras25.
Já deliberamos as implicações para as mães que desejassem tutelar os
filhos, a principal delas era a renúncia do beneficio da Lei do Velleano.
Exposta a situação vivenciada por D. Ana Maria, poderíamos nos questionar
se de fato estava doente e com a idade avançada, conforme argumentou; ou
se utilizou esses argumentos para se livrar da obrigação de cuidar dos
órfãos, ao tempo que pensava em contrair nova núpcias ou vendo-se em
24
Se algum parente mais chegado se escusar de ser tutor, não herdará os bens do dito órfão, se morrer antes de
haver quatorze anos, se for varão e antes de doze se for fêmea. Ordenações Filipinas (Livro 4 Título CII § 6).
Ainda segundo as Ordenações Filipinas, o exercício da Tutela era proibido aos menores de 25 anos, aos
escravos, aos religiosos, aos loucos, aos infantes, aos doentes incuráveis, aos pobres e padrastos dos órfãos, visto
que para isso deveriam solicitar licença especial.
25
AGJS - Inventário de Manoel Francisco dos Santos, caixa 544 – 1860.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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meio à escassez material pensou que outro tutor poderia oferecer melhores
condições de criação aos seus filhos. Por hora, não sabemos ao certo o que
D. Ana Maria pensou ao recusar a tutela dos seus filhos.
Em outro episódio da experiência da família estanciana no século XIX,
constatamos a disputa pela tutela de um órfão, Joaquim (14 anos),
habilitado em testamento por seu pai Agostinho Ramos Ferreira26, fruto do
seu relacionamento com Joaquina Rosa do Sacramento, em tempo de viuvez.
Apesar da carência material atestada no inventário post-mortem do Sr.
Agostinho, no qual foram arroladas quinhões em dois sítios e uma casa já
arruinada na Rua do Rosário (centro comercial da cidade de Estância), bens
que somaram 249$800, a serem partilhados entre os herdeiros legítimos:
Maria, Geraldo, Constantila e Nonata e o órfão legitimado Joaquim. Talvez,
a última vontade do patriarca, expressa em seu testamento -“sendo minha
livre e espontânea vontade que ele concorra com os legítimos na herança
paterna dos bens havidos e por haver, desejo ainda que a morada de casa na
Rua do Rosário faça parte da legítima de Joaquim”, tenda despertado o
interesse de Geraldo Ramos Ferreira, irmão do órfão, em solicitar a sua
tutela, visto que o menor sempre morou com a mãe.
Na
disputa
confirmassem
sua
judicial,
conduta
D.
de
Joaquina,
reuniu
mulher
honesta27
testemunhas
e
seu
que
advogado
argumentou: “havendo a suplicante alimentado o seu filho até a idade de
que já conta de 14 anos, trazendo-o decentemente na Aula Pública em
mesma cidade com seus recursos, é uma prova exuberante de que ninguém
mais do que a suplicante poderá concorrer para a prosperidade dele.” Os
argumentos usados pela mãe foram aceitos pelo juiz de órfão que lhe
concedeu a tutela de Joaquim.
Outro tipo de tutela prevista nas Ordenações seria quando o órfão, não
tivesse parentes próximos capazes de zelar por sua formação, o juiz de
órfãos deveria nomear, entre os moradores da Comarca, alguém que pudesse
26
AGJS - Inventário de Agostinho Ramos Ferreira caixa 569 – 1886.
27
Para os contemporâneos do Oitocentos, mulher honesta seria a mulher não mal falada; aquela discreta,
recatada no falar e no vestir. Cf. SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Sistema de Casamento no Brasil Colonial. São
Paulo: Edusp, 1984, p. 71.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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suprir as carências materiais, afetivas e espirituais do órfão. Esses tipos de
tutorias eram denominadas de Dativas e em Estância corresponderam a 28%
do total da ações de tutela, distribuídas entre empregados públicos,
professores, padres, lavradores e negociantes. Assim, o próspero negociante
Aynarim Pereira Leite, que gozava de prestígio na cidade de Estância, mesmo
após os escândalos suscitados com o processo de divórcio canônico
impetrado por sua esposa Guilhermina Gomes de Sousa28—, foi escolhido
para cuidar dos órfãos Maximiniano (18 anos) e Francisco (9 anos), filhos de
Pedro Ferreira do Nascimento e Josefa Maria do Nascimento29. Apesar de ter
recebido a incumbência de zelar pelo bem-estar dos órfãos, o Sr. Aynarim
demonstrou em sua a primeira prestação de contas ao Juízo dos Órfãos que
apenas administrava os bens dos órfãos, visto que:
Maximiniano, já de 20 anos, mora na casa herdada –
situada na Rua Riachuelo e trabalha no seu sítio de onde
tira os meios para sua pouca subsistência, enquanto o
menor Francisco, 11 anos, vive em casa do seu padrinho,
José Antônio Leiturga, que a sua conta o educa e alimenta,
pelo que é merecedor de justos elogios, tendo também em
sua casa a escrava Maria para tratar e cuidar do menor30.
A partir da análise de outras prestações de contas de órfãos, podemos
inferir que a tutoria dativa não correspondia obrigatoriamente ao convívio
órfão/tutor, visto que muitos órfãos eram autorizados pelos tutores a morar
com suas mães ou padrinhos, sendo esses tutores responsáveis pela
administração dos bens, bem como em fiscalizar se os órfãos estavam
frequentando as aulas de Primeiras Letras ou aprendendo algum ofício.
2- A educação dos órfãos na Estância Oitocentista
O Brasil oitocentista foi palco de inúmeras transformações econômicas,
políticas, sociais que conduziram a rupturas nas estruturas sociais, a
28
Arquivo da Cúria Metropolitana da Bahia - Libelo Cível de Ação de Divórcio nº 01, Caixa 512 DI-31, 1880.
AGJS - Inventário de Josefa Maria do Nascimento, caixa 565 – 1880.
30
AGJS – Prestação de contas dos órfãos, f. 18, caixa 565 – 1880
29
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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exemplo do processo de abolição da escravatura, o que refletiu no
comportamento do Estado frente às práticas educativas.
A proliferação das idéias liberais, desde os tempos coloniais, não só
contribuíram
para
afirmar
nossa
emancipação
política
(1822),
mas
alavancou uma série de mudanças na estrutura educacional brasileira, que
visavam inserir o Brasil no ideário civilizador do século XIX, bem como
capacitar os filhos da então nascente elite brasileira para ocuparem os
cargos administrativos, aos poucos deixados pelos portugueses.
Deve-se ainda, levar em consideração que foi nesse período que o Brasil
se firmou como nação, fase de elaboração de novas identidades tanto
individuais, quanto coletivas. Porquanto, dentro dessa realidade, foram
visíveis
também
variações
nas
relações
entre
crianças
e
adultos,
conseqüência dos últimos acontecimentos naquela sociedade civil. Nas
palavras de Louro (2000):
Proclamada a Independência, parecia haver, ao menos
como discurso oficial, a necessidade de construir uma
imagem do país que afastasse seu caráter marcadamente
colonial, atrasado, inculto e primitivo. É bem verdade que
os mesmos homens e grupos sociais continuavam
garantindo suas posições estratégicas nos jogos de poder
da sociedade. No entanto, talvez fossem agora necessários
outros dispositivos e técnicas que apresentassem as
práticas sociais transformadas, ainda que muitas
transformações fossem apenas aparentes31.
Durante esse período, tornar todo um povo civilizado teria sido parte
de uma dinâmica funcional para a afirmação de um governo representativo,
em que o equilíbrio de poderes e sua legitimidade se fundamentassem
essencialmente na formação da opinião pública, na produção do “nósimagem” nacional ou de um padrão nacional de comportamento.32
Nesse momento, alguns setores das elites perceberam que a civilização
não era apenas um estado, mas um processo que deveria prosseguir. Assim,
31
LOURO, Guacira Lopes. “Mulheres na sala de aula”. In: PRIORE, Mary del. (org.). História das mulheres no
Brasil. 3ª ed. – São Paulo: Contexto, 2000, p. 443.
32
VEIGA, Cynthia Greive. “Pensando com Elias as relações entre Sociologia e História da Educação”. In:
FARIA FILHO, Luciano Mendes de (org.). Pensadores sociais e História da Educação. Belo Horizonte:
Autêntica, 2005, p. 151.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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o termo ‘civilização’ passou a referir-se a um padrão universal de moral e
costumes e a escola do século XIX
configurou-se como o lócus
para a
disciplinarização e higienização social.33
Desde o final do século XVIII a capitania subalterna de Sergipe Del Rei
dava sinais de prosperidade, gêneros como fumo, farinha de mandioca,
açúcar, derivados do gado, sal, tucum e arroz faziam parte da nossa pauta
de
exportação34,
o
número
de
habitantes
ultrapassava
6.265,
compreendendo brancos, pardos, pretos e índios e o desejo por emancipação
dos laços de dependência política com a capitania da Bahia crescia.
Contrapondo-se a esse cenário de prosperidade, a situação educacional
assemelhava-se à experimentada pelo restante da Colônia, faltavam
professores capacitados, o ensino das Primeiras Letras restringia-se a
cadeiras na capital – São Cristóvão e na próspera vila de Santa Luzia.35
Por meio da Carta Magna de 1824, item 32 artigo 178, a educação
primária tornou-se gratuita a todos os cidadãos, sendo três anos mais tarde,
complementado pelo Decreto-Lei de 15/10/1827, o qual estabeleceu que
deveria ser oferecido o ensino de Primeiras Letras em todas as cidades, vilas
e lugares mais populosos do país.
Nesse tempo, a população sergipana estava assistida com dezoito
cadeiras de primeiras letras e oito de aulas de gramática latina, número
deveras insuficiente para atender a demanda da Província. 36
Ainda acompanhando as inovações trazidas pela onda liberal, tivemos
a inserção das mulheres na vida pública. Desse modo, em 1831, visando
atender os apelos da elite sergipana, o governo provincial resolveu criar na
capital – São Cristóvão, e nas vilas de Estância, Propriá e Laranjeiras a
cadeira pública destinada ao sexo feminino.
Assim, temos que em 1834
Sergipe contava com 160.452 habitantes, sendo que nas escolas de
Primeiras Letras estavam matriculados apenas 25 meninos e 4 meninas.
33
Para discussão sobre o papel da escola na modernidade ver ÁRIES, Philippe. “A vida Escolástica” In: História
social da Criança e da família. São Paulo: LTC, 2 edição, 1981, p. 107-129.
34
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Colonial I. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 145.
35
NUNES, Maria Thetis. História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz & Terra/Aracaju: Secretaria do
Estado da Educação/UFS, 1984, p. 29.
36
NUNES História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz & Terra/Aracaju: Secretaria do Estado da
Educação/UFS, 1984, p. 34.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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Segundo a historiadora Maria Thétis Nunes,37o pequeno número de alunos
matriculados nas aulas de Primeiras Letras em Sergipe poderia ser explicado
pelas condições ofertadas pela Província, entre elas: a improvisação de
professores, assim como os baixos salários a eles pagos e a inexistência de
ensino mútuo. Entretanto, o nosso olhar sobre a documentação da cidade de
Estância nos permite acrescentar outros motivos.
Com
o
principalmente
desenvolvimento
da
economia
econômico
açucareira,
da
Província,
percebemos
que
advindo
o
quadro
educacional em Sergipe também prosperou. Em 1860, foram registradas 66
escolas, das quais 23 eram destinadas à educação feminina, somando 743
alunas e 43 escolas masculinas com 1.893 alunos38.
Assim, a próspera cidade de Estância – a mais populosa e
comerciante de toda a Província de Sergipe, que desde o final do século XVIII
já possuía a cadeira de Latim, não tardou por consolidar o ensino primário
como atividade necessária aos seus infantes. Contando com 01(uma) escola
pública e 02 (duas) escolas particulares de Primeiras Letras, o governo
provincial autorizou em 1830 a implantação do ensino secundário nesta
cidade com as cadeiras de Filosofia, Retórica, Poética e Francês e um ano
depois foi criada a cadeira pública de Primeiras Letras destinadas ao ensino
feminino. Esse ambiente cultural tornou-se propício para surgimento do
primeiro jornal sergipano, o Recopilador Sergipano (1833), bem como a
consolidação da imprensa estanciana como veículo de circulação de idéias.
Todavia, em uma sociedade profundamente marcada pelo privilégio
enquanto diferenciador social, a educação passou a ser um elemento de
distinção social. Aos homens livres e pobres era permitido freqüentar as
aulas de Primeiras Letras, ou seja, poderiam aprender a ler, escrever e
contar, além de aprenderem a doutrina cristã e por vezes um ofício,
enquanto os filhos da elite estanciana poderiam cursar o ensino secundário
a fim de se preparar para os concursos destinados ao ingresso nas
faculdades.
37
NUNES, História da Educação em Sergipe. Rio de Janeiro: Paz & Terra/Aracaju: Secretaria do Estado da
Educação/UFS, 1984, p. 55.
38
NUNES, Maria Thetis. Sergipe Provincial II:1840-1889. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006, p. 63.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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O discurso jurídico do Brasil oitocentista assegura o acesso aos
bancos escolares a todas as crianças – excetuando as escravas. Essa
legislação indica a preocupação do Estado em oferecer uma educação letrada
aos seus súditos, entretanto, observamos que diversos fatores influenciaram
no aprendizado dos órfãos estancianos.
Percebemos, por meio dos filtros da documentação consultada, que o
sentido de instruir os órfãos ganhava significações diferenciadas a depender
do segmento social envolvido, quer seja entre os senhores de engenho,
negociantes, descendentes de africanos, filhos de clérigos, europeus
residentes no Brasil etc.
Segundo Chartier, as representações sobre o mundo social não são
vazias de significados, não são inocentes, estão comungadas a interesses de
classes. Assim, “as representações do mundo social assim construídas,
embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são
sempre determinadas pelo interesses do grupo que as forjam”.
39
Nesse contexto, quais os significados atribuídos pelos estancianos as
práticas educativas? Como as famílias e os tutores em suas vivências
direcionaram as experiências educacionais dos órfãos? Como os discursos e
práticas foram se constituindo em interesses de classe40? Para essas
inquietações, analisaremos alguns casos, talvez os mais recorrentes,
buscando, quiçá, revelar as diferenças.
Para analisarmos as experiências educacionais dos órfãos, considerando
a categoria analítica classe, utilizarmos como estratégia de investigação os
nomes dos pais e tutores, assim conseguimos identificar o lugar que o
sujeito ocupava no mercado, na produção, na vida política e econômica.41
Deste modo, a origem genealógica da família do infante, nos auxiliou a
identificar quais as teias de relacionamentos que envolviam os órfãos que
39
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa/Rio de Janeiro:Difel/Bertrand,
1988. p. 17.
40
Para a discussão sobre a categoria analítica Classe, nos valemos das concepções de Thompson (2001: 227281). Segundo esse historiador, Classe não é uma categoria estática; ela está em constante construção,
utilizando-se de não somente de influências econômicas, mas especialmente, de aspectos culturais. Desse Modo,
“as pessoas se vêem numa sociedade estruturada de um certo modo, suportam a exploração, identificam os nós
dos interesses antagônicos, debatem-se em torno desses mesmos nós e, no curso de tal processo de luta,
descobrem a si mesmas como uma classe.(p. 274)
41
GINZBURG, Carlo. “O nome e o como”. In: A micro-história e outros ensaios. Lisboa/Rio de
Janeiro:Difel/Bertrand, 1989. p. 173-174.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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frequentavam as aulas públicas de Primeiras Letras, as aulas de latim e
francês e os que se dedicavam ao aprendizado de um ofício.
Na Estância oitocentista, a riqueza material estava concentrada nas
mãos dos negociantes de grosso trato (atacadistas), contudo eles não
gozavam de prestígio social. Para conseguirem status social, alguns
negociantes recorreram à aquisição de quinhões de engenhos ou passaram a
investir na educação, como fator de diferenciação social. Desse modo,
Joaquim Moreira de Magalhães42, negociante de grosso trato, profissão
herdada de seu pai, casado com D. Emília Barbosa de São Calisto, procurou
direcionar a instrução de seus 5 filhos. A leitura atenta do testamento desse
patriarca revela a estima que este nutria pelas letras, artes e profissões
liberais. Seus filhos, Tobias e João, após concluírem as Primeiras Letras e as
aulas de ensino secundário na cidade de Estância, migraram para a cidade
da Bahia a fim de ingressarem na Faculdade de Medicina. Já Emília, a única
infante do sexo feminino, foi estudar piano e as prendas relacionadas ao seu
sexo
no Recolhimento do Senhor Bom Jesus dos Perdões, também na
capital baiana. Permaneceram em Estância,
Joaquim e José, os quais
também deveriam seguir o caminho predestinado pelo pai em testamento –
ingressar na Faculdade de Medicina da Bahia.
Acompanhando a trajetória dos filhos do Sr. Joaquim Moreira de
Magalhães, constatamos que 3 seguiram a carreira sonhada pelo pai: Tobias,
com apenas 19 anos já era reconhecido pelo seu talento musical, migrando
para Gênova concluir seus estudos na área de Música, tornando um talento
professor de piano; João e José formaram-se na Faculdade de Medicina da
Bahia exercendo sua profissão em várias cidades da província de Sergipe.
Quanto a Emília, não sabemos se ela continuou no Recolhimento ou se
seguiu o caminho de outras tantas mulheres dessa sociedade, aperfeiçoou
na prática os ensinamentos de prendas do seu sexo, tornando-se esposa,
mãe e administradora do lar. Por meio desse exemplo, podemos conferir que
42
AGJS – Inventário de Joaquim Moreira de Magalhães, caixa 544 – 1860.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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as condições materiais da família Moreira Magalhães possibilitaram o seu
ingresso na elite intelectual sergipana43.
Entretanto, não só as condições materiais eram determinantes para que
os órfãos estancianos ingressassem na escola. O órfão Pedro (10 anos), neto
e filho de africanos, mesmo sendo herdeiro de uma fortuna equivalente a
1:017$000, o que corresponderia a uma média fortuna para a sociedade
estanciana,44
segundo seu tutor, Francisco Pacheco de Ávila, ele não se
adaptaria ao ensino das Primeiras Letras, visto que o órfão:
tem desenvolvido um gênio que para ser útil de futuro a si
próprio e a sociedade, precisa que seja modificado por
uma educação severa e forte, a qual o suplicante não pode
dar, [...] que não lhe permitir reprimir os vícios e excessos
de um menino travesso e turbulento, o que só um
estabelecimento, como o de aprendizes, pode ser
devidamente educado.45
O que poderia impedir esse órfão de cursar as aulas de Primeiras Letras
juntamente com outras crianças – brancas, filhas da elite estanciana? Seria
apenas o seu mau gênio? A resposta pode está associada a sua origem, neto
e filho de ex-escravos africanos. A solução apresentada pelo tutor mostrouse consoante com a concepção educacional da época, a qual recomendava o
aprendizado de ofícios mecânicos para os membros das categorias menos
abastada da sociedade. Desse modo, o ingresso do infante Pedro em uma
instituição que domesticasse o seu “mau gênio”, quem sabe herdado pelos
seus genitores, seria mais útil a sociedade estanciana, que na época, já se
ressentia, em decorrência das medidas abolicionistas, da falta de braços
cativos nas lavouras de cana-de-açúcar e nos armazéns.
Após autorização
do juiz dos órfãos, Pedro foi enviado para a Companhia de Aprendizes, na
43
Grupo de sergipanos que frequentaram as faculdades do Império, as escolas militares e seminários, compondo
assim o quadro dirigente no Império. SILVA, Eugênia Andrade da. A formação intelectual da elite sergipana
(1822-1889). São Cristóvão, SE, 2004. 120 p. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de
Sergipe.
44
SILVA, Sheyla Farias. Riqueza em Movimento: A Construção de Fortunas na Estância Escravocrata (18501888). São Cristóvão, 2002. Monografia (Graduação em História). Universidade Federal de Sergipe, p. 48.
45
AGJS – Inventário de Emílio Ribeiro de Araujo, caixa 549 – 1866.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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cidade da Bahia e assim conhecendo o “lugar” destinado pela elite branca
para os seus irmãos de cor46.
Assim, na própria experiência, os órfãos, descobriram em meio ao
acesso/negação a educação institucionalizada, qual o lugar social a eles
estava destinado; era nesse momento que elas tomariam consciência do que
as une e as separam.47
A preocupação em oferecer ao órfão uma educação não era privilégio
do Estado, visto que nos documentos pesquisados verificamos que essa
preocupação também era compartilhada por parte das famílias48. Isso se
torna mais explícito ao observamos os testamentos dos pais, onde alguns
deixavam recomendações concernentes ao trato educacional do órfão.
Ao vê-se doente e com a idade avançada, o súdito francês, residente na
cidade de Estância, Sr. João Batista Antônio Marcelo Duverdier de Marsilac,
registrou em testamento suas últimas vontades, dentre as quais estava à
recomendação que seu irmão, morador na vila de Laranjeiras/SE vigiasse a
educação do seu único herdeiro, João. Este órfão,
filho natural da viúva
Isabel Francisca do Nascimento, fora habilitado em testamento, porém era
público e notório entre os estancianos sua filiação, visto que morava com o
pai desde seu nascimento, gozando de todos as regalias de filho legítimo.
Ainda no testamento, Sr. Marsilac especificou o tipo de educação que o órfão
deveria receber “tanto em ciências como em línguas estrangeiras e belasartes, seja nesse país ou na Franca, aonde ele meu filho poderá ser mandado
o quanto antes para preservá-lo do contágio das paixões deste continente.49”
Para tanto, designou seu irmão João Jerônimo, doutor em medicina, para
cuidar do órfão na França. Não conseguimos saber, se o órfão João Teófilo
Marsilac realizou a vontade de seu pai, seguindo para a Europa, assim se
livrando das paixões das proporcionadas pelas terras brasileiras.
46
Para a discussão sobre raça Cf. ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e
cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p. 25.
47
THOMPSON, E. P. As peculiaridades dos ingleses e outros artigos. Campinas: Ed. da UNICAMP, 2001, p.
227-281.
48
Durante o século XIX foi se consolidando a noção burguesa da família, na qual os genitores deveriam
assegurar o bem-estar do infante.
49
AGJS – Translado do testamento de João Batista Antônio Marcelo Duverdier de Marsilac , caixa 540 – 1856.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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A crescente penetração das idéias liberais na sociedade brasileira - em
especial as idéias relacionadas à “Era dos Talentos”50, como a valorização
das profissões liberais e do espírito da razão, associada ao contexto da
construção da nação brasileira, bem como de sua elite letrada, teve como
consequência uma busca pela educação institucionalizada. Em Estância, as
famílias almejavam legar a seus filhos algum tipo de instrução, seja por meio
das aulas públicas ou mesmo pela contratação de professores particulares.
Entretanto, percebemos que o tipo de instrução aplicada às crianças
diferenciava-se em relação ao sexo.
Destarte,
torna-se
fundamental
entender
como
a
educação
foi
direcionada para homens e mulheres na sociedade sergipana na época
perquirida. Para isso, utilizaremos o conceito de gênero formulado por Joan
Scott (1990), para a qual gênero não se baseia na diferença sexos, mas na
diferença construída social e culturalmente para distinguir homens e
mulheres, incorporando as relações de poder.
Desde 1831, a cidade de Estância contava com a cadeira pública de
ensino de Primeiras Letras destinada ao feminino, na qual as meninas
aprendiam, além de ler, escrever e contar, “prendas próprias do seu sexo”,
tais como: trabalhos com agulhas – prendas de bordar, fazer flores; tocar
piano; a doutrina cristã e ensinamentos morais, visando formar uma esposa
submissa.
O pequeno número de órfãs que foram enviadas as aulas de Primeiras
Letras na cidade de Estância, pode ser explicado pela forte presença de
valores patriarcalistas nessa sociedade, que contava com o apoio do padre
local, o qual costumava comentar em seus discursos:
Vossas filhas não necessitam mais de instrução do que de
educação; queremos dizer – não devem ser mais letradas
que religiosas. E quem há tão insensato que se queira
esposar com uma virgem de grande desembaraço, de
muito desenvolvimento, virgem muito filosófica?51
50
REMOND, René. “A Idade do Liberalismo”. In: O século XIX. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 49.
SOUZA, Domingos Quirino de, Carta Pastoral de D. Quirino de Souza, apud ALMEIDA NETO, Dionísio de.
Pelo Império da Virtude: Formação, saberes e práticas de Dom Quirino de Souza (1813-1863). Aracaju: Triunfo,
2007, p. 152.
51
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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Em poucos lares estancianos, percebemos o empenho dos tutores em
educar as órfãs, a educação restringia em prepará-las para serem boas
esposas. Ana Dantas de Magalhães, filha do senhor de engenho, foi educada
para ser uma esposa submissa e boa mãe, ainda jovem contraiu núpcias
com o negociante Manoel Inácio Pereira de Magalhães, com o qual teve 4
filhos: José, João, Manoel e Ana. Provavelmente, complicações durante o
parto a ceifou da convivência e sevícias com seu esposo, que não tardou em
contrair
segunda
núpcias.
Segundo
as
Ordenações
Filipinas,
cabia
naturalmente ao pai cuidar da educação e dos interesses dos menores,
entretanto, o avô materno, o senhor de engenho, João Martins dos Reis,
ingressou com petição solicitando a tutela dos netos, argumentando que
garantiria melhores cuidados que o genitor52. Assim, os netos passaram a
estar submetidos
a custodia do avô materno. Na prestação de contas,
constam as notas que comprovam os gastos com a manutenção dos órfãos,
em especial com a educação. Os garotos estudaram nas melhores escolas da
Província, entre eles o Parthenon Sergipense,53 depois seguiram para o
Colégio Francisco Bernardino de Souza na cidade da Bahia e em 1884
Manoel foi para a Imperial Escola Agrícola da Bahia e João e José para o
Colégio Bahiano Pedro 2º de Dr. Augusto Guimarães. Após concluírem os
estudos secundários José seguiu para a Faculdade de Direito do Recife e
João para a Faculdade de Medicina da Bahia, enquanto Manoel continuava
no Instituto Agrícola da Bahia. Já a educação dada à Ana, restringiu-se a
sua rápida passagem em internatos na própria Província, nas quais
aprendeu a ler, escrever e contar e todas as prendas do seu sexo. Aos 14
anos, retornou ao Engenho Fortaleza, aonde conviveu com o avô até os 21
anos, quando casou com
Filomeno de Vasconcelos Hora, fazendo jus a
educação que recebeu.
O Código Filipino atestava a preocupação do Estado com os cuidados
com os infantes órfãos, visto que obrigava a nomeação de tutores para todos
52
AGJS – Ação de Tutela, João Dantas Martins, caixa 435 – 1879.
Estabelecimento que funcionava em caráter de internato e externato com sede na Capital(Aracaju), destinavase a instrução primária e secundária.
53
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 80
os órfãos.54 Cabia ao tutor zelar da saúde, educação e formação cristã do
órfão, bem como administrar os bens por estes legados55. Tal zelo, deveria
ser comprovado através das prestações de contas, apresentadas ao juiz de
órfãos a cada dois anos até que o órfão atingisse a maioridade ou se casasse.
Com essa medida fiscalizadora, o Estado visava, sobretudo, evitar que a
herança dos órfãos fosse espoliada pelos tutores, garantindo a preservação
dos bens até que estes tivessem condições de administrá-los.
Em relação aos órfãos pobres, o Estado, por meio de sua legislação
também manifestou preocupação com seu bem-estar. De modo, que
procurou um meio de garantir que estes infantes recebessem uma instrução
que possibilitasse o aprendizado de algum ofício, assim conseguiriam meios
para se sustentar quando se tornassem adultos, evitando assim que se
tornassem mendicante ou vadios. Assim, a prática do Assoldadamento
passou a ser imputada somente aos órfãos pobres.56
De acordo com as Ordenações Filipinas, os órfãos designados à prática
do assoldadamento seriam anunciados em pregões pelo juiz de órfãos da
localidade, o qual não poderia mencionar os nomes dos órfãos, tampouco de
seus pais. Aos interessados, cabia dirigir-se à residência do dito juiz, onde
receberiam as informações sobre o órfão, ao tempo que deveriam informar o
valor que estavam dispostos a pagar pela soldada. Após esse procedimento, o
juiz concederia o direito de assoldadar o órfão àquele que oferecesse maior
soldada.
O
acordo
então
seria
registrado
em
escritura
pública,
discriminando o valor e o tempo para pagamento. O valor deveria ser
depositado no Cofre dos órfãos, para ser sacado pelo órfão quando este
completasse a maioridade.
Assim,
o
assoldador
deveria
assumir
os
encargos concernentes à tutoria e responsabilizar-se em ensinar um ofício ao
órfão.
54
O juiz de órfãos deve nomear no prazo de um mês tutores a todos os órfãos da Comarca, quer sejam eles ricos,
pobres ou expostos, estes logo completem 7 anos. Ordenações Filipinas (Livro IV Título CII § 1).
55
Após o falecimento dos pais dos infantes, o juiz dos órfãos procederá ao inventário post-mortem. Cf. nota 11
56
Ordenações Filipinas (Livro I Título LXXXVIII § 13).
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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Na cidade de Estância a prática de Assoldadamento também se fez
presente57.
Assim, respondendo ao anúncio feito pelo juiz de órfãos, Pio
Xavier Garcia de Noronha, o Sr. Antônio Bento Fernandes, homem idôneo,
casado, calafate e pequeno negociante da Praça de Estância, viu uma
oportunidade de ampliar, sem muitos custos, a mão-de-obra empregada em
suas atividades, além de aplicar a caridade cristã. Desse modo, assoldadou
pelo
período
de
5
anos,
o
órfão
desvalido
Francisco
(12
anos)
comprometendo-se a educá-lo nos bons costumes, ensinando a doutrina cristã
e o ofício de calafate58.
Analisando o conjunto das ações de assoldadamento59, constatamos
que a preocupação do Estado, era apenas garantir ao órfão pobre o acesso a
um ofício que possibilitasse seu sustento quando atingisse a maioridade.
Desse modo, percebemos que perpassava a idéia de que as atividades
laborais e ofícios mecânicos deveriam ser exercidos pelos escravos ou
camadas menos abastadas, visto que não havia incentivo para que esses
órfãos frequentassem as aulas públicas.60
Conclusão
Ao estudarmos a vida familiar em Estância/SE durante o século XIX,
nos deparamos com histórias de inúmeros órfãos que após perderem os pais,
foram criados por tutores, que por vezes eram pessoas sem qualquer laço de
parentesco com o infante.
Destarte, atrelada a essa análise, não nos esquivamos de relacionar o
tipo de educação empregada a esses agentes com as categorias gênero e
raça. Assim concluímos que quanto à questão de classe, havia uma
distinção nos discursos para a educação dos filhos da elite, os quais
deveriam se preparar para os concursos preparatórios, enquanto os órfãos
desvalidos eram incentivados a aprenderem com seus tutores um ofício, a
57
SILVA, Nelly Monteiro Santos. Pater incertus, mater certa: as práticas de assoldadamento em Estância e sua
contribuição para a história da educação e da infância em Sergipe (1865-1895). São Cristóvão, SE, 2007. 237 f.
Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal de Sergipe.
58
AGJS – Termo de Tutela e Fiança de órfãos caixa 618 – 1876.
59
Para essa pesquisa só utilizamos as ações registradas no Termo de Tutela e Fiança de órfãos.
60
MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Bahia: A cidade do Salvador e seu mercado no século XIX. São Paulo:
Hucitec; Salvador: Secretaria Municipal de Educação e Cultura, 1978, p. 248.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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exemplo de calafate, alfaiate ou ferreiro; quanto à raça, evidenciamos nos
poucos vestígios relacionados à cor e origem dos órfãos que os descendentes
de escravos eram caracterizados pelos tutores como de mau gênio,
impróprios para a aprendizagem das Primeiras Letras, portanto deveriam ser
disciplinados pelo trabalho e pela fé cristã; já em relação à educação
destinadas a meninos e meninas, percebemos que mesmo com a instalação
da aula pública destinada ao sexo feminino foi pequeno o número de órfãs
que freqüentaram essas aulas, visto que a própria Igreja exortava aos pais
quanto ao perigo de permitirem que suas filhas estudassem.
Assim, em meio a esse cenário de transformações vivenciadas pelos
moradores de Estância no Oitocentos, concluímos que a educação destinada
aos órfãos foi utilizada para reforçar as posições sociais ocupadas pelos
indivíduos, visto que direcionava os pobres e negros ao trabalho e restringia
às mulheres ao espaço doméstico.
REFERÊNCIAS
Fontes
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Justificação Cível (1840–1888) Cx. 594 -600.
Justificação para emancipação (1840-1888) Cx. 602-603
Livro de Termos de Tutela e fianças de órfãos (1840-1888) Cx. 618
1.2. Laboratório de Conservação e Restauração Reitor Eugênio de
Andrade Veiga (LEV) / Arquivo da Cúria Metropolitana de Salvador
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Editorial, 2004.
Filipinas.
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Página 86
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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O FEMININO NAS GUERRAS.
Cleber Roberto Silva de Carvalho1
Introdução
A guerra é um evento plenamente humano, em que os homens,
como se refere Clausewitz2, por meio da violência, vem a obrigar a um
inimigo a realizar as suas vontades. Num evento em que a imposição da
força física e da agressividade vem a ser predominante, as mulheres
acabam
sendo
excluídas
de
tais
acontecimentos,
por
serem
consideradas, numa concepção masculina, frágeis e dóceis para um ato
de brutalidade como uma guerra. Contudo ao longo da história, vê-se a
presença feminina nos eventos beligerantes da humanidade. Quer
numa guerra localizada, ou num âmbito intercontinental, de vitima da
violência masculina, ou presente nas forças de trabalho de um esforço
de guerra, e até mesmo participante ativa dos campos de batalha, a
presença feminina se faz atuante, superando não somente a força do
inimigo, mas o preconceito dos homens.
A guerra como ato masculino e de submissão feminina.
Desde o principio dos confrontos humanos, a guerra é tida como
pratica quase que exclusiva dos homens, onde a força física de
empunhar a espada ou a lança era particular dos homens, mesmo com
descrições da existência das chamadas amazonas, que viveriam na
região do Ponto, próximo a costa do atual Mar Negro:
Povo mítico de mulheres, governado por uma rainha
e não admitindo homens na sua cidade senão como
servos, as Amazonas, vindas do Cáucaso,
estabeleceram o seu reino na Capadócia (Ásia
1
Cleber Roberto Silva de Carvalho é graduando do curso de licenciatura plena em História pela
Univesidade de Pernambuco – Campus Petrolina
2
CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra, São Paulo: Martins Fontes, 1996.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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Menor). Elas descendiam do deus da guerra Ares e,
por isso, as suas paixões eram a guerra e a caça. As
Amazonas veneravam, particularmente, a deusa
Ártemis, de quem seguiam, escrupulosamente, o
exemplo (atribui-se-lhes a fundação da cidade de
Éfeso e do famoso templo de Ártemis, uma das
maravilhas do mundo antigo).
Uma vez por ano, elas aceitavam no seu reino a
presença de homens, a fim de assegurar a sua
descendência, mas matavam ou mutilavam todos os
recém-nascidos do sexo masculino. As filhas
retiravam o seio direito, a fim de lhes permitir
manejar o arco mais comodamente.
Segundo a lenda, as Amazonas aparecem,
constantemente,
em
oposição
aos
Gregos.
Belerofonte é um dos heróis que irá lutar contra
estas mulheres guerreiras. Essa luta constitui uma
das provas a que ele deverá submeter-se, por ordem
do seu sogro, o rei da Lícia. Este combate resultará
num grande massacre das Amazonas.3
Nas concepções atuais de conflitos, com armas mais leves e de
fácil manuseio, a guerra é tida, por alguns autores, como um
instrumento de ação puramente masculina:
A guerra é uma atividade humana da qual as
mulheres, com exceções insignificantes, sempre em
todos os lugares ficaram excluídas. As mulheres
procuram os homens para protegê-las do perigo e
censuram-nos amargamente quando eles não
conseguem defendê-las [...] Se a guerra é tão antiga
quanto a história e tão universal quanto a
humanidade,
devemos
agora
acrescentar a
limitação mais importante: trata-se de uma
atividade inteiramente masculina.4
Há condição feminina em meio a um conflito bélico vêm a ser, em
diversas ocasiões, a de vítima em potencial do confronto, em especial
aquelas que se encontram na posição dos derrotados, haja vista que, as
mesmas são vistas também como “inimigas” pelos vitoriosos, e dessa
forma as mulheres acabam por sofrer com os abusos masculinos, sendo
na maioria das vezes físicos e sexuais. Como os sofridos pelas mulheres
3
4
HACQUARD, Georges. Dicionário da Mitologia Gregas e Romana. Lisboa: Edições ASA, 1996
KEEGAN, Jonh. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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da Bósnia e Herzegovina durante a Guerra Civil na antiga Iugoslávia,
em que as mesmas foram confinadas em espécies de campos de
concentração, ficando a mercê de abusos sexuais constantes por partes
dos soldados Iugoslavos. E a mesma e situação vem a ocorrer em outros
conflitos, como nas guerras civis no continente africano:
[Freetown, Serra Leoa]: forças rebeldes invadem a
cidade. A apenas 40 quilômetros dali, a pequena
vila de Mamamah é alvo fácil dos revolucionários,
que executam a maioria dos moradores e raptam as
adolescentes. Mariatu, de apenas 16 anos, e pega
após seus pais serem mortos. É estuprada repetidas
vezes por todos os homens do grupo. Dezenas de
garotas da tribo têm o mesmo destino.5
A condição feminina em meio a uma guerra é extramente
delicada, haja vista as condições em que as mesmas podem se
encontrar, no caso das mulheres em meio à população civil, indefesa
perante um inimigo, elas acabam por ficar a mercê das forças
“vitoriosas”. Podendo ser citado as agressões sofridas pelas mulheres
que participaram do colaboracionismo ao nazismo na França ocupada,
tendo em vista que após o recuo das tropas alemãs, as mesmas ficaram
expostas ao revanchismo francês, em especial dos homens, e acabaram
por sofrer com toda “sorte” de humilhações públicas, espancamentos,
ou como descrito por Jean-Paul Picaper
6:
”Um grande número de
mulheres foram sumariamente executadas nas horas que se seguiram a
Libertação, cometeram suicídio quando iriam ser presas ou na prisão”.
A guerra por esse ângulo se transforma no que pode ser chamado
de “ápice da testosterona”, ou seja, num acontecimento em que os
atores principais são os homens, e suas agressões acabam por recair,
pesadamente, sobre as mulheres, como num ato de revanche, ou como
numa concepção de que as mulheres de um inimigo se tornam
“inimigas”.
5
6
Superinteressante, p. 69, 2004
História Viva. Editora Duetto, nº28, fev. 2006.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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E ao contrario das penalidades impostas contra os inimigos
(homens) derrotados, a “punição” contra as mulheres (inimigas) acaba
por se tornar numa imposição do instinto masculino sobre a mulher,
perfazendo o discurso de poder masculino, ou seja, torna-se num
castigo físico, sexual e psicológico, comparável ao que é defendido por
Susan Brownmiller, em que a mesma propôs que o estupro não tinha
relação com o desejo sexual dos homens em si, mas como um ato de
violência dos homens contras as mulheres, para oprimi-las por meio da
força e sendo uma forma do homem demonstra sua “posição superior”
em relação à mulher, podendo-se, dessa forma, aproximasse de uma
analogia com o que descreve Clausewitz
7
que declara que: “A guerra é
pois um ato de violência destinado a forçar o adversário a submeter-se
à nossa vontade”.
A mulher se torna uma inimiga do homem, e o mesmo impõem a
sua força para “castigá-la”, mas não como um inimigo “homem”, que
estando derrotado, deve ser punido sob uma conduta militar, mas como
um homem impondo seu discurso de poder, em que comanda por meio
da força, contra a mulher, que na sua interpretação é frágil e submissa,
estando passiva a sua violência.
A guerra como um ato masculino, em que se faz necessária a
participação do feminino.
A guerra é um ato dos homens, em que a atuação é plenamente
dos homens, e tal ato é finalizada pelos homens. Historicamente, sob
uma perspectiva masculino-ocidental, este contexto tem seu sentido,
pois nas guerras que se desenrolaram ao longo da história humana, a
participação das mulheres em meio às próprias escaramuças é
extremamente restrita:
7
CLAUSEWITZ, Carl von. Op. Cit.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 91
No caso da guerra, a História não oferece essas
alternativas para os sexos. Certamente há muitos
exemplos de guerreiras, mas, excetos pelo
regimento feminino dos reis de Dahomei, no oeste
da África, eles costumam ser lendários – como as
amazonas – ou nobres, como a antiga guerreira
inglesa, a rainha Boadicéa.8
Porém, as mulheres, também assumiram posições em conflitos,
não precisamente como nos papéis de combatentes, mas ocupando
espaços abertos na própria sociedade civil. Espaços que eram ocupados
por homens, que em meio a uma crise de uma guerra, cederam estes
lugares, quando os mesmos partiram para as zonas de conflitos.
Um período histórico em que ocorreu este fato foi na Idade Média,
no período das Cruzadas do Oriente. Os cavaleiros cristãos partiram
para as cruzadas e as suas mulheres assumiam os seus lugares até o
retorno dos mesmos, e nesta situação estas damas adquiriram as
funções dos homens, atuaram como defensoras de suas posses, e até
mesmo nos ritos de vassalagem, algo exclusivo dos homens no medievo,
superando as concepções mentais de supremacia masculina medieval.
Assim como outras mulheres obtiveram espaço em diversas situações
de conflitos, assumindo posições de mediadoras, com maior influência
que homens de governo concedido por Deus, que eram os reis:
The Bohemian queen Johanna of Rozmital was an
active diplomat during the Hussite wars. Sainted, or
merely pious, women were valued practitioners of
dispute resolution. Catherine of Siena is well known
for her intervention in papal politics in 1376, […]
But sanctity was only one way to practice
diplomacy. Queens, shielded by their rank and
proximity to the king, could practice a forceful
diplomacy that used anger and outright threats as
rhetorical weapons. Eleanor of Castile used barely
veiled threats during the English baronial revolt in
the late thirteenth century to get the earl of
Cornwall, count of Bigorre, and bishop of Worcester
to comply with royal wishes. In 1429, Maria of
Castile used her own anger as a diplomatic tool and
8
EHRENREICH, Bárbara. Ritos de Sangue. Rio de Janeiro: Record, 2000
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 92
averted war by literally setting up her tent on the
battlefield between the armies of her husband,
Alfonso V of Aragon, and her brother, Juan II of
Castile.∗ 9
No século XX, com os avanços tecnológicos e a ampliação em
escala colossal dos exércitos pós-napoleônicos, [o Grande Armée de
Napoleão possuía 500 mil homens, e os Aliados na Batalha da França
possuíam em torno de 3 milhões de homens] pode ser identificado à
feminina no espaço beligerante, ao assumirem postos de atuação dos
homens, em virtude da “industrialização da guerra” ocorrida no início
do século XX.
Nos conflitos do início do século passado, os parques industriais
começaram a se tornar em elementos fundamentais na manutenção dos
gigantescos exércitos, onde as mulheres passaram a ocupar vagas na
indústria armamentista, como por exemplo, na indústria aeronáutica
nos finais da Primeira Guerra Mundial e durante a Segunda Guerra
Mundial, ou até mesmo com o retorno das mesmas para o campo,
através de programas governamentais, num esforço de aumenta a
produção devido a demanda por gêneros alimentícios e a falta de mãode-obra masculina.
Com a eclosão da Primeira Guerra Mundial, os grandes impérios
arregimentaram exércitos em escalas de milhões de homens, e dessa
corrida por soldados para o combate surgiu a necessidade de ocupar as
vagas de trabalho deixadas pelos homens. Mas não somente economia
civil, a própria organização militar da Grande Guerra necessitou das
mulheres para ocupar vagas tipicamente masculinas:
∗
A rainha da Boémia Johanna Rozmital foi uma diplomata ativa durante as guerras hussitas. Santa, ou
meramente piedosas, as mulheres eram valorizadas das resoluções de litígios. Catarina de Siena é bem
conhecida por sua intervenção na política papal em 1376, [...] Mas a santidade foi apenas uma maneira de
praticar a diplomacia. Rainhas, protegidas por suas posições e proximidade com o rei, poderiam praticar
uma diplomacia forte em que a raiva e as ameaças definitivas eram usadas como armas retóricas. Leonor
de Castela usando ameaças abertamente durante a revolta Inglesa baronial no final do século XIII, para
obter do conde da Cornualha, conde de Bigorre, e bispo de Worcester a cumprir com os desejos reais. Em
1429, Maria de Castela usou sua própria raiva como um instrumento diplomático e evitou a guerra,
literalmente, em sua tenda no campo de batalha entre os exércitos de seu marido, Afonso V de Aragão, e
seu irmão, Juan II de Castela.
9
SCHAUS, Margaret. Women and Gneder in Medieval Europe. Londres: Routledge, 2006.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 93
Durante 1914 -1918, as mulheres, pela primeira vez
na história da guerra, usaram uniformes e foram
para as fileiras. Em 1917, a Grã-Bretanha criou o
Corpo Auxiliar de Mulheres no Exército [...] e o
Serviço Real Naval de Mulheres [...] com o objetivo
de prover substitutos para homens em funções
cozinheiros,
sinalizadores,
escriturários
e
motoristas de transporte. Na Grã-Bretanha, as
mulheres já haviam começado a substituir em larga
escala os homens recrutados para a guerra, a partir
do estabelecimento do Registro de Mulheres para
Serviços de Guerra, em março de 1915. Em agosto
de 1916, 750 mil mulheres britânicas atuavam em
trabalhos de homens e outras 350 mil estavam em
empregos pela economia de guerra. A criação de
Terra atraiu 240 mil mulheres para a agricultura
em 1918. 10
Ou seja, num momento de crise, como no caso de uma guerra, as
mulheres acabam por substituir as posições ocupadas pelos homens,
numa forma de evitar que tais posições fossem usurpadas por outros,
sendo mediadoras políticas, num esforço “patriótico” evitar a derrota da
nação frente a um inimigo, ou como forma de garantir espaço no meio
social, como as mulheres da Inglaterra na Primeira Guerra Mundial.
Porém os ganhos sócio/políticos femininos, como os da Grande Guerra,
foram ínfimos, e restritos as grandes potências, e sendo que muitas
mulheres jamais encontraria um esposo, em virtude da mortandade
masculina nos campos de batalha, e isso era um fator de dificuldade
para as mulheres:
A solidão das mulheres sempre gera uma situação
difícil, pois radicalmente impensada. ‘A mulher
morre se não tem um lar nem proteção’, diz
Michelet com piedade; e o coro dos epígonos
declara: ‘Se há uma coisa que a natureza nos
ensina com clareza é feita para ser protegida, para
viver quando jovem junto a mãe, e esposa sob a
guarda e autoridade do marido’” 11
10
Keegan, Jonh. História Ilustrada da Primeira Guerra Mundial. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004
Perrot, Michelle. História da Vida Privada, 4: Da revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009.
11
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 94
A guerra como um ato masculino, em que participação feminina é
belicosa.
A participação feminina atuando nas guerras como força militar
de reservar ou em posições ocupadas predominantemente por homens,
quando os mesmo são deslocados para zonas de combate é descrita
superficialmente, mesmo com as várias situações da presença feminina
na retaguarda ou em ocupações logísticas dos exércitos. Não obstante,
em diversos momentos as mulheres acabam por ocupar as posições
militares ofensivas, ou seja, as mulheres vão para os campos de
batalha, como combatentes efetivas.
Tais situações são vistas em graves momentos de crise, em que a
necessidade de efetivo humano se faz necessário, como na Segunda
Guerra Mundial, quando a União Soviética formou um regimento de
combate aéreo, formado apenas por mulheres, descrito na revista
Grandes Guerras12: “O 46º Regimento de Bombardeio da Guarda era
um dos três grupos inicialmente formados só por mulheres – porém o
único exclusivamente feminino”. Esse regimento de aviadoras femininas
foi responsável por diversos ataques noturno no front leste entre 1943 e
1945.
No período medieval a rainha Leonor de Aquitânia esteve presente
na Segunda Cruzada, junto como seu esposo, Luis VII. O exemplo mais
conhecido no período medieval é o de Joana D’arc, que esteve junto com
o exército francês na Guerra dos Cem Anos, participou da Libertação de
Orléans e da Campanha do Loire, onde a mesma atuou em diversas
batalhas, como a de Jargeau, comandando os soldados franceses, algo
impensado em virtude da posição social de Joana D’arc. Principalmente
se tratando de uma mulher, tida como inferior em relação aos homens
no medievo:
12
Grandes Guerras. São Paulo, Editora Abril, nº19, set. 2007.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 95
Fraqueza e qualidade negativas: por natureza, a
mulher só pode ocupar uma posição secundária,
procurar apoio masculino. Homem e mulher não se
equilibram nem se completam: o homem está no
alto, a mulher em baixo.13
Mas a participação feminina nos embates medievais não se
resume apenas as grandes personalidades, no período medieval pode
ser visto a participação feminina em vários combates:
It would be misleading to categorize these women as
passive participants. Even those traditionally
perceived as victims could have contributed actively
to combat. There are numerous accounts of towns women aiding in defense by throwing rocks at
besiegers. In the thirteenth century, Simon of
Montfort, the leader of the Albigensian Crusade,
was said to have died from blows inflicted by stones
hurled from a catapult operated by the women of
Toulouse, the town he was attempting to subdue. A
century later, the chronicler Jean Froissart
enthusiastically praised Countess Jeanne of
Montfort for rallying her towns - women to assault
their attackers with hot tar and paving stones
pulled up from the streets.∗ 14
Não somente no Ocidente existiram mulheres participando de
questões militares, em outras regiões este tema acaba por ser abordado,
como por exemplo, no Extremo Oriente pode ser mencionado a
participação feminina em eventos de ordem militar, como em descrições
existentes no Japão no período feudal:
Não é surpreendente encontrar na literatura dos
bujutsu [treinamento nas artes marciais militares] a
anotação que as mulheres dos buke [famílias
13
LE Goff, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru: Edusc,
2006
∗
Seria enganoso para categorizar essas mulheres como participantes passivos. Mesmo aquelas
tradicionalmente vistas como as vítimas podem ter contribuído ativamente para o combate. Existem
inúmeros relatos de citadinas ajudando na defesa, jogando pedras em sitiantes. No século XIII, Simão de
Montfort, o líder da cruzada albigense, foi dito ter morrido de golpes infligidos por pedras lançadas de
uma catapulta operadas pelas mulheres de Toulouse, a cidade estava tentando subjugar. Um século
depois, o cronista Jean Froissart entusiasticamente elogiado Condessa Jeanne de Montfort para mobilizar
suas citadinas para assaltar seus atacantes com alcatrão quente e paralelepípedos puxados para cima das
ruas.
14
SCHAUS, Margaret. Op. Cit.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 96
militares] eram treinadas no uso de armas
tradicionais, e que se esperavam que utilizassem
contra um inimigo ou, em caso necessário para
acabar com suas próprias vidas. Além do mais,
muitos episódios relativos à ascensão da classe
guerreira
mencionam
mulheres
que
desempenharam papéis militares determinantes –
inclusive ao se unir em certas ocasiões, a seus
homens no campo de batalha.15
Dessa forma pode-se ver que as mulheres ocupam posições
militares em conflitos armados, período das Guerras Civis do Japão
feudal, onde o governo era o do xogunato (governo militar) em que os
clãs liderados pelos seus xogus (generais) disputavam entre si o controle
do Japão, ou seja, era um momento de crise onde se fazia necessário a
presença feminina naqueles postos.
A atuação das mulheres em tais eventos devem ser visto sob uma
óptica feminina, ou seja, em que os valores sociais e pessoais da
mulheres são diferenciados dos homens:
A divisão sexual dos papéis se baseia em seus
‘carascteres naturais’, segundo uma oposição entre
passivo e ativo, interior e exterior, que governa todo
o século. ‘O homem possui sua vida substancial real
no Estado, na ciência etc., e também no trabalho e
na luta com o mundo e consigo mesmo. ’A mulher
encontra seu destino substancial na moralidade
objetiva da família, cuja piedade exprime as
disposições morais. ‘ 16
Assim pode ser visto que os homens se atem a mentalidade de
honradez e glória pública, contudo as mulheres se focalizam mais nos
valores familiares, e na proteção de bens familiares, porém utilizandose, assim como homens, da força para defender tais bens:
In frontier societies where crusading conflicts were
in progress, women were more than likely in settled
societies to have to resort to military force in
defence of self, family, or family possessions, and
15
16
RATTI, Oscar. Segredo dos Samurais: As artes Marciais no Japão Feudal. São Paulo: Madras, 2006.
PERROT, Michelle. Op. Cit.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 97
many accounts in medieval records show such
women using force against their enemies […].∗ 17
Conclusão
Pode-se ver que a presença feminina dentro dos conflitos armados
apresentam diversas circunstâncias, desde os momentos em que as
mulheres são vitimas dos homens, por imposição do instinto masculino
sobre o feminino, e dessa forma as mulheres acabam por sofrer com
abusos dos homens, por estes se intitularem “superiores”. Há as
situações em que a presença das mulheres se faz necessária, mesmo
em ocupações tradicionalmente ocupadas por homens, sendo estes
espaços tomados por mulheres, que neste momento de convulsão
social, sua presença se torna de suma importância, até como força ativa
em campanhas militares, sendo que as mulheres deixam as posições
intermediarias nas ocupações econômicas civis, e passam a ser força
essencial de produção, ou soldados oficiais ou guerreiras em defesa de
suas causas, que muitas vezes ultrapassam as questões de ordem
militar, muitas vezes estas conquistas só ocorrem após os conflitos.
A participação feminina nas guerras torna-se algo visível não
somente como “coadjuvantes” nos momentos beligerantes, mas como
participantes reais e ativas, superando as barreiras impostas pela
mentalidade
masculino-ocidental
de
superioridade
sexual,
e
demonstrando igualdade de ação quando a presença feminina se faz
necessária.
Bibliografia
CLAUSEWITZ, Carl von. Da Guerra. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
∗
Nas sociedades de fronteira onde os conflitos cruzados estavam em andamento, as mulheres eram mais
suscetíveis nas sociedades estáveis a ter que recorrer à força militar na defesa própria, família, ou posses
da família, e muitos registros de mulheres medievais mostram como usavam a força contra seus inimigos
[...].
17
SCHAUS, Margaret. Op. Cit.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 98
EHRENREICH, Bárbara. Ritos de Sangue. Rio de Janeiro: Record, 2000.
GRANDES GUERRAS. São Paulo, Editora Abril, n. 19, set. 2007.
HACQUARD, Georges. Dicionário da Mitologia Gregas e Romana.
Lisboa: Edições ASA, 1996
KEEGAN, Jonh. Uma História da Guerra. São Paulo: Companhia da
Letras, 2006.
____________.História Ilustrada da Primeira Guerra Mundial. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2004.
LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário Temático do
Ocidente Medieval. Bauru: Edusc, 2006
PERROT, Michelle. História da Vida Privada, 4: Da Revolução Francesa
à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
PICAPER, Jean-Paul. História Viva. Editora Duetto, n. 28, fev. 2006.
RATTI, Oscar. Segredos dos Samurais: As artes marciais no Japão
Feudal. São Paulo: Madras, 2006.
SCHAUS, Margaret. Women and Gender in Medieval Europe. Londres:
Routledge, 2006.
SUPERINTERESSANTE. São Paulo, Editora Abril, n. 207, dez. 2004
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 99
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 100
BOA NOITE FRÄULEIN...
OS CONTOS DE FADA E A CONSTRUÇÃO DA FEMINILIDADE
Andrea Almeida Campos1
Pedindo licença a todas as belas interpretações que já foram feitas
em torno dos contos de fada, gostaria de lançar sobre eles uma nova
luz2. Esta luz revela que muitos contos de fadas são, essencialmente,
histórias da construção da feminilidade resultante do rompimento da
relação neurótica entre mãe e filha. Mas, poder-se-á surgir a seguinte
pergunta: onde estão as mães dos contos de fada? Geralmente estão
mortas, ausentes ou silentes sob o véu de suas sacralidades. Quase
sempre a menina ou a princesa é órfã, e tem por destino fatal e maldito,
suportar um novo casamento de seu pai com a sua futura madrasta. No
início tudo transcorre às mil maravilhas até que, de súbito, o pai
também morre, sai de cena, deixando o palco livre para o desenrolar da
tragédia entre a madrasta e a enteada. Mas... Entre a madrasta e a
enteada? Não, até os contos de fada tiveram pudor em revelar as
verdadeiras protagonistas deste teatro. Seria horripilante e arrepiante,
mostrar-se a verdade, dessacralizar a mãe, trazer à tona a princesa em
forma de filha e a sua luta para suplantar a mãe, conquistar a sua
identidade. Não se assustem, mas as madrastas dos contos de fadas
são as verdadeiras mães das princesas, diríamos que intitulá-las como
madrastas seria apenas um eufemismo para que não se revelasse a real
tragédia da relação neurótica entre mãe e filha.
1
Coordenadora do Núcleo de Estudos Especializados em Gênero, Enfrentamento à Violência contra a
Mulher e Direitos Humanos da Unicap. Coordenadora do Núcleo Direito e Literatura da Unicap. Mestre.
Professora de Direito da Unicap.
2
A análise é feita sobre as adaptações de Walt Disney sobre os contos do francês Charles Perrault (1697)
e dos alemães Wilhem e Jacob Grimm (1812-1815). Os contos de Grimm nada mais são do que uma
coletânea de contos folclóricos alemães. Eles consideravam os contos como uma expressão legítima do
espírito do povo alemão. No intuito de preservação da memória desse espírito, os Irmãos Grimm
passaram a ouvir pessoas que trabalhavam e viviam em fazendas e vilarejos nas proximidades de Kassel
na Alemanha. Nessa compilação, deixaram-se influenciar pelo romantismo alemão da época, como
também levaram em consideração elementos históricos e mitológicos, da natureza, da fantasia e do
sobrenatural. Fica claro, já que alguns contos já haviam sido escritos pelo francês Perrault, que os contos
de fada revelam o inconsciente coletivo do homem medieval europeu. Nosso inconsciente ocidental.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 101
Um fato basilar que corrobora e endossa a tese é o de que os
conflitos entre enteada e madrasta, na vida real, dão-se em razão da
competição entre as duas mulheres pelo amor do mesmo homem, ou
seja, o pai da enteada e o marido da madrasta. Este também é um dos
motivos de conflito entre mãe e filha que é solucionado, muitas vezes,
ou com a morte desse homem ou com a separação do casal, ou, da
melhor forma: com a solução da neurose edipiana pela filha. O inverso é
o que ocorre nos contos de fadas, é apenas após a morte desse homem
que as rivalidades e hostilidades tomam lugar. Ou seja, quando o objeto
de disputa já não existe mais, quando não haveria mais razão de ser
para tanto ódio, inveja e destruição. As madrastas são, pois, em
realidade, as mães das princesas. E a disputa entre elas não é a disputa
por um homem específico, mas a disputa pela feminilidade e o seu
pleno exercício como rainhas da criação e da sedução.
Abramos as páginas de um conto. Virando a sua bela capa,
deparamo-nos com o suave transportador de nossas fantasias, de nosso
imaginário coletivo, ali está o “Era uma vez...”. Este primeiro conto que
ora percorro os dedos sobre as suas páginas é a história da Bela
Adormecida. Esta é, talvez, uma das mais profundas, reveladoras e
belas histórias sobre o inconsciente feminino, no caso o das mães e o
das filhas. É uma linda história com final feliz sobre os sentimentos de
ambivalência e ambiguidade, de amor e de ódio da mãe em relação à
filha onde, ao fim e a cabo, a mãe consegue vencer os seus próprios
demônios, a filha consegue livrar-se da relação erótica com a mãe e
construir a sua feminilidade, restando entre as duas, apenas, uma
relação afetuosa.
A ambivalência da mãe está presente desde antes de a filha
nascer. Ela, mesmo sem ser estéril, nem o sendo, também, o seu
marido, leva anos a fio, após o seu casamento, para engravidar. As suas
reticências e dúvidas acerca da maternidade, já, então, começam a ser
reveladas. Note-se que essa mãe, a rainha da história, nunca fala,
nunca age, nem nunca pensa, ela é apenas a simbologia do útero, a
mãe biológica, o corpo de mulher que dá à luz e, mesmo assim,
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 102
somatiza as ambivalências do seu inconsciente. Este inconsciente da
mãe, os seus conflitos e os seus desejos são representados pelas três
fadas boas e pela bruxa-má. As quatro fazem parte de uma só matriz,
as quatro são porções esfaceladas da estrutura psíquica da mãe da
princesa. Uma transfere-lhe a beleza, ou seja, a mãe também é bela, a
outra outorga-lhe os seus talentos, enquanto que o lado positivo do
inconsciente sentimental da mãe deseja que a sua filha ame e que seja
amada.
A mãe, que tanto demorou a engravidar, acaba de dar à luz e
almeja que a sua filha cresça em graça e beleza e que seja amada por
todos. Na surdina do inconsciente materno, no entanto, há um lado
perverso que se ressente da vinda da menininha que com ela irá
competir e destroná-la. Mas o seu lado amoroso, ao detectar a presença
de sentimentos tão vis, bloqueia-os imediatamente nos porões de seu
subconsciente. Fica lá, portanto, viva, mas recalcada, a bruxa-má, que
se ressente por não ter podido vir à tona e perfazer os seus ardis. Ela
não foi convidada para o momento do nascimento e nem para
acompanhar a infância da menina. Ela aguentará o seu exílio, até
porque, a criança não traz nenhuma ameaça ao seu poder. No entanto,
às vésperas de completar, a princesa, os seus dezesseis anos, ou seja,
ao debutar como moça, a bruxa má, ou bruxa-mãe, transporá o
inconsciente da mãe e destruirá a filha. Esta maldição é revelada pela
bruxa-mãe ao profetizar que, às vésperas de seu décimo-sexto
aniversário, a filha colocará o dedo em uma roca e morrerá. Ao mesmo
tempo em que esse desideratum é exteriorizado, um dos lados-fada
dessa mesma mãe, mais especificamente o lado sentimental, não deseja
que a filha morra, mas o seu narcisismo não consegue debelar por
inteiro o desejo de morte da filha pela bruxa-mãe e, então, fará com que
a filha adormeça, ou seja, ainda não terá identidade (mesmo a mãefada, ainda quer a filha como um prolongamento seu e assusta-se com
a sua puberdade) para que, só depois, através do amor de um homem e
não através do amor a si mesma, possa voltar a viver.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 103
A menina, então, cresce ao lado das mães-fada que procuram
salvaguardá-la ao máximo de seu lado bruxa. O seu amor pela filha
tenta resistir aos instintos maus da sua bruxa interior. Para que o lado
perverso não venha à superfície, destrói-se a identidade da menina que,
de princesa, passa a ser camponesa, de forma a burlar as maldades da
mãe-bruxa. Durante os dezesseis anos em que a filha é criada pelas
mães-fada, fica mais evidente que a sua mãe no conto, ou seja, a
rainha, é mesmo, tão somente, o símbolo da maternidade biológica, pois
nunca, sequer, foi visitar a filha, saber como ela passava, se estava
bem, mesmo sendo a princesa a sua filha única. Este dado do conto
apenas endossa estar o psicológico dessa mãe representado pelas três
fadas e pela bruxa má.
Enquanto
as
mães-fada
criam
a
menina,
a
mãe-bruxa,
encarcerada no subconsciente, está ansiosa pela destruição da filha.
A menina chega à puberdade, mesmo sem nunca haver lido
histórias de amor, os seus hormônios preparam-na para a sedução,
despertando em seu corpo o desejo. Ela deseja ardentemente e sonha
com o amor, suspira pelo amor e se pergunta onde o encontrará, anseia
pelo amor ardorosamente. Não aceita mais ser tratada como uma
criança pelas mães-fada, o instinto sexual está nela explodindo e ela
fantasia com o homem ideal. Note-se que este é o primeiro impulso da
filha em desenlaçar-se da mãe, romper com a relação erótica que tem
com ela e passar a estabelecer esta relação com um homem ou, caso
seja homossexual, com uma outra mulher. Daí se conclui que,
diversamente do que já foi dito acerca dos contos de fadas, o príncipe
não vem despertar a sexualidade da princesa, o desejo e a feminilidade
da moça preexistem ao príncipe, ela apenas lhe dá sinais para que ele
se aproxime. Portanto, não são os contos de fada machistas. O príncipe,
em realidade, atende ao chamado da princesa que, com ele já sonha e,
por ele, já se porta no sentido de ela, sim, despertar-lhe o desejo e
seduzi-lo. No caso da Bela Adormecida, ela o seduz com o seu canto em
meio ao bosque.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 104
Sendo vésperas do debut da moça, as mães-fada preparam a sua
festa, a festa que comemorará a sua entrada no mundo adulto. No
entanto,
mesmo
estando
felizes
pelos
preparativos,
elas
estão
entristecidas com a perda da infância da filha, e, inclusive, continuam a
tentar manipulá-la, proibindo-a de encontrar-se com o rapaz por quem
a mesma se apaixonou, pois, este não é o rapaz ideal, o rapaz ideal para
a filha é o príncipe encantado.
Não obstante, ao mesmo tempo em que as mães-fada tentam
salvaguardá-la de seu próprio lado bruxa, este recalque exterioriza-se e
é incontrolável pelas mães-fada. A filha sente-se bastante atraída,
dominada e hipnotizada por sua mãe-bruxa, estabelece-se a relação
erótica sadomasoquista entre as duas. A filha está inebriada pela mãebruxa que é, mais do que as mães-fada, magnetizante e sedutora.
Hipnotizada pela mãe-bruxa, ela é conduzida para o fuso e coloca o seu
dedo sobre a roca, dando-se, aí, a sua morte. Saliente-se que a filha é
seduzida e não resiste aos apelos de sedução da mãe por seu livre
arbítrio. Ela quer seguir a mãe-bruxa, fazer as suas vontades, ela
também é parte ativa nesta relação doentia que leva à sua própria
morte. Esta morte na vida real, na maior parte das vezes, é
representada pela timidez, recalque, anorexia, bulimia e retraimento da
filha. No limite, esta filha poderá fazer, de fato, o que a sua mãe-bruxa
queria, ou seja, colocar o dedo na roca, o que significaria suicidar-se.
Mas, voltemos ao nosso belo conto. Diante da morte da filha, as fadasmãe ficam cheias de sentimentos de culpa por não terem sido fortes o
suficiente para refrearem os seus lados bruxa. Tendo sido a destruição
da feminilidade da filha consubstanciada, as mães-fada não querem
que ninguém saiba do mal que deixaram ser realizado e tentam
esconder a tragédia dos olhos dos demais. Não querem deixar entreverse o quanto foram negligentes com a filha, o quanto não foram boas
mães e o quanto isso golpeia os seus narcisismos. Assim, as mães-fada
colocam todos para dormir até que a filha possa, enfim, despertar.
Iniciando-se o processo de ajuda à filha na reconstrução de sua
feminilidade.
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Neste interregno, ao ir o príncipe ao encontro da princesa,
depara-se, o mesmo, com a sua mãe-bruxa que o sequestra como forma
de que ele não seja cúmplice da filha no seu renascer como mulher. Ao
constatarem, as mães-fada, que o rapaz que deseja a sua filha é o
príncipe encantado, estas passam a duelar com a mãe-bruxa, tentando
vencer os seus instintos cruéis. As mães-fada tentam enfrentar os seus
próprios demônios, ou seja, a mãe-bruxa que, por sua vez, está
satisfeita por haver conseguido matar a filha e separá-la da testemunha
de sua sexualidade despertada, o príncipe.
As mães-fada encorajam o príncipe a chegar perto de sua filha,
autorizam-no, não obstante ele tenha que vencer os mais horríveis
obstáculos que são impostos pela mãe-bruxa. No ápice, a mãe-bruxa se
transforma em um dragão e luta frente a frente com o príncipe tentando
dizimá-lo. E é aí que, mais uma vez, o conto vem reafirmar a tese ora
sustentada: Não é o príncipe quem mata o dragão, mas a sentimental
mãe-fada! A batalha não é vencida pelo príncipe que salva a princesa e
a desperta para a vida. A batalha verdadeira, entre o lado-fada e o ladobruxa de uma mesma mãe, é vencida pelo lado-fada que, enfim, mata
os seus dragões. Ela supera os seus próprios sadismos, os seus desejos
de destruir a filha para que a filha viva, torne-se mulher e exerça a sua
sexualidade ao lado de um homem. Ela não quer a filha morta e, para
tanto, mata o seu lado de mãe-bruxa e com a filha compartilha a sua
coroa. No fim, a filha vai amar e exercer a sua feminilidade ao lado de
um homem, não sem presenciar as lágrimas de saudade de sua infância
derramadas por suas mães-fada.
As histórias de Cinderela e da Branca de Neve seguem um roteiro
semelhante. Cinderela é órfã de mãe, o seu pai casa-se com uma viúva,
mãe de duas filhas. O pai vem logo a falecer e, aí, inicia-se a sua
batalha com a madrasta. Pelos mesmos pudores os quais destacamos, a
mãe traveste-se na madrasta de Cinderela. A madrasta é a mãe de
Cinderela que, ao ter mais duas filhas que são destituídas de beleza e
de encantos, assim como ela o é, empenha-se na destruição,
inicialmente, da identidade de Cinderela que de princesa passa a ser
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faxineira. Cinderela é resignada, ela também quer o amor da mãe e
relaciona-se com ela na forma de um anelo sadomasoquista3, aceitando
perder a sua identidade e travestindo-se de criada. As outras duas
filhas com as quais a mãe se identifica, deverão sobrepujar Cinderela,
casarem-se com um príncipe e serem felizes, portanto, o que a mãe
gostaria para si mesma. A mãe deste conto é, ao mesmo tempo, uma
mãe-fálica em relação à Cinderela e uma mãe-sacrificada em relação às
demais filhas. No entanto, a quebra do anelo é feita com a iniciativa de
Cinderela, mais uma vez não é o príncipe que vem salvá-la e tirá-la do
inferno e levá-la ao paraíso através de um casamento, é a própria
Cinderela que, com a puberdade, passa a ter desejos, os hormônios
explodem, ela sonha com um amor, quer exercer a sua feminilidade e a
sua sexualidade. Chega a oportunidade de ir a um baile. A mãe
(madrasta) não a deixa ir, ela deverá ficar em casa, enquanto que as
suas outras duas filhas, parecidas com ela, irão e serão candidatas a
um casamento com o príncipe que promove a grande festa em busca de
uma
esposa.
Inobstante
a
relação
erótica-sadomasoquista
que
Cinderela tem com a sua mãe e que a fez ser subserviente durante toda
a sua infância e inícios de sua adolescência como forma de barganhar o
seu amor, ela é quem quer ir ao baile de qualquer maneira, mesmo que
seja escondida, mesmo que totalmente contra os desígnios de sua mãe.
Os seus hormônios falam mais alto e ela consegue, através de uma
fada-madrinha (que no mundo real coincidiria com a figura de uma tia,
irmã de sua mãe ou de seu pai que não se dá bem com a mãe de
Cinderela, ou com o próprio lado bom de sua mãe), o vestido e o
transporte para ir ao baile. Lá, Cinderela conhece o príncipe. Veja-se
que ela é quem vai seduzi-lo, ela, sim, veste-se para atraí-lo. O príncipe,
novamente, assim como no conto da Bela Adormecida, apenas atende
ao chamado da princesa.
Para não ser descoberta pela mãe e pelas irmãs, Cinderela retorna
mais cedo do baile, obedecendo aos conselhos de sua fada-madrinha4.
3
4
Termo cunhado por Erich Fromm (1950).
A figura da fada-madrinha é o contra-ponto às perversões maternas. Ela também é maternal, daí o termo
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Não chega a revelar a sua identidade para o príncipe, em realidade, nem
ela mesma sabe quem ela é ao certo. E abandona-o, mal se despedindo
do recém-apaixonado. Ao perder o sapatinho de cristal, o conto revela
que o casal estabeleceu relações sexuais. O sapatinho é um símbolo
fálico e Cinderela não sai do baile da mesma forma que entrou, algo
dela foi “perdido”.
Após o baile, Cinderela não é a mesma, está recobrando a sua
identidade e quer, mais do que nunca, romper o anelo neurótico com a
sua mãe. Portanto, ao ser o mensageiro do príncipe enviado para
experimentar o sapatinho em todas as moças de seu reinado, Cinderela
desafia a mãe e as irmãs e se apresenta ao mesmo para calçá-lo. O
sapatinho, ou melhor, o falo, cabe nela perfeitamente. Cinderela sai de
casa e vai exercer a sua sexualidade e a sua feminilidade junto ao
príncipe.
Ao folhearmos o Conto de Branca de Neve, novamente nos
depararemos com os mesmos signos que revelam uma relação doentia e
problemática entre mãe e filha. Branca de Neve é órfã também de mãe.
Ou seja, mata-se a mãe para não ousar dessacralizá-la, mas a relação
entre mãe e filha estabelece-se através da madrasta. Mais uma vez, o
pai vem a falecer logo após o casamento com a madrasta e, mais uma
vez o palco é integralmente da mãe e da filha. Na história de Branca de
Neve, a sua mãe na figura da madrasta também é bela, por sinal é
belíssima e, talvez, tenha sido considerada uma das mulheres mais
belas em seu tempo. A menina ao revelar-se, também, bonita, tem a sua
identidade "roubada" pela mãe, deixando de ser o que ela realmente é,
ou seja, uma princesa, e passando a ser uma criada, assim como ocorre
no conto de Cinderela e no próprio conto da Bela Adormecida em que,
mesmo não passando a menina a ser uma criada, ela também perde a
sua identidade, tornando-se uma camponesa pelos esforços das mãesfada. Bem, atenhamo-nos ao conto da Branca de Neve. Com o tempo, a
mãe, percebendo não ser a mais bela dentre as belas e estando a perder
“madrinha” a designá-la. No entanto, não é uma mãe humana, não traz em si a miséria da humanidade.
Ao invés, ela é sobrenatural, ela é uma “fada”.
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tal posição para a sua própria filha que, sendo de seu conhecimento, já
desperta o interesse e a afetividade de um belo homem, encomenda a
sua morte a um caçador subalterno seu. Este, com um punhal nas
mãos (um símbolo também fálico) sensibilizado pela vontade de viver de
Branca de Neve e pela sua beleza, manda-a fugir, enquanto que ele
forjará a sua morte diante de sua mãe. Aqui temos a morte simbólica da
filha. Ela perde a identidade, deixa de ser princesa, na vida real,
enfeiar-se-ía, adoeceria e escravizar-se-ía nas mãos de um homem. O
caçador que é chamado para matá-la seria simbolicamente um mau
casamento arranjado e apressado para a filha, com vias de que ela logo
se tornasse uma matrona, mãe de família e deixasse a beleza e o
esplendor sob o monopólio de sua mãe. Em casos mais perversos e
extremos, o caçador seria um estuprador. A moça também não teria o
direito de amar e de ser amada. O coração da menina em sangue levado
pelo caçador à presença de sua mãe, provavelmente, significaria o seu
amor e a sua virgindade oferecidos ao caçador que, deles, passaria a ser
o detentor. Mas não é isso o que ocorre. Branca de Neve vai de encontro
aos desígnios maternos e, mesmo com uma identidade que não é a dela,
não cumpre com a vontade maternal, tendo, junto a si, a cumplicidade
e a compaixão do caçador que leva para sua mãe a prova do amor e da
virgindade de uma outra mulher.
Branca de Neve, em sua fuga, terá perdido muito de sua beleza,
tanto que a mesma não foi mais percebida como existente pela sua mãe,
nem foi mais anunciada pelo seu “espelho mágico”. No entanto, mesmo
vilipendiada e em ostracismo, ela vai reconstruindo-se aos poucos, com
a ajuda dos “sete anões” que são, de fato, características de sua própria
personalidade (maturidade, raiva, alegria, dispersão, vulnerabilidade,
dengo e infantilidade). Note-se ser “sete” um número cabalístico que
empresta magia à personalidade da princesa. Ou seja, torna a sua
personalidade também mágica para que possa confrontar-se com os
poderes da bruxa-má que detém poderes mágicos malignos. Branca de
Neve ao encontrar a casinha dos sete anões, acha-a em total desordem,
ou seja, ela mesma está depauperada e, à medida que vai arrumando e
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 109
organizando a casa, vai-se reconstruindo aos poucos. A princesa
desenvolve-se, torna-se mulher e, com os hormônios e o desejo em
ebulição, também clama por seu homem, o príncipe que, no caso, já
veio a conhecer antes de fugir para o seu exílio. Atente-se que nenhuma
das princesas sabe que os homens pelos quais se apaixonaram são
príncipes, apenas fazem esta descoberta quando já estão a caminho do
altar. Desfaz-se, assim, a tese de que as mulheres, identificadas com os
contos de fadas, sonham com um príncipe encantado. Não, se as três
princesas sub oculi revelam o imaginário feminino, elas apenas sonham
com um homem para amar e serem amadas. Se forem príncipes será
apenas uma feliz coincidência tanto que a Bela Adormecida, ao saber
que está prometida a um príncipe e que terá que se afastar do homem
por qual se apaixonou no bosque, cai em profunda depressão. Cinderela
também, ao apaixonar-se pelo belo rapaz que encontrou nos arredores
do palácio, não sabia que ele era o príncipe encantado. Disso, concluise que, quem encanta os príncipes são as próprias mulheres ao amálos. Mas não fujamos de nossa querida Branca de Neve. No auge de sua
adolescência, a sua mãe descobre que ela é bela e que não foi destruída.
Mostra-se para ela como uma bondosa mulher idosa, ou seja, que não
competirá com ela, escondendo dentro de si uma mãe-bruxa. Branca de
Neve, assim como a Bela Adormecida, também se deixa seduzir e
magnetizar pelos ardis da mãe-bruxa. Esta sedução é exercida através
da maçã. Branca de Neve morre por deixar-se vencer pelo seu próprio
masoquismo. Ao morder a maçã, Branca de Neve refaz a sua relação
erótica com a mãe (a maçã é, desde a Bíblia, símbolo do erotismo e da
tentação). No entanto, mesmo tendo a sua feminilidade e beleza sido
destruídas, ao retornar ao anelo doentio com a sua mãe, outros lados
de sua personalidade simbolizados pelos sete anões e guiados
justamente pelo anão que se chama "Zangado", portanto a sua própria
raiva, conseguem matar a mãe-bruxa. Logo, é a raiva e a zanga de
Branca de Neve por ter retornado à relação doentia com a sua mãe que
mobiliza toda a sua personalidade na simbologia dos sete anões e serve
como antídoto contra a mãe-bruxa. Portanto, mais uma vez, não é o
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 110
príncipe que salva a princesa das garras da mãe-bruxa, mas a
personalidade fortificada da própria princesa emblematizada nos sete
anões.
Ao
superar
a
mãe-bruxa,
Branca
de
Neve
consegue,
definitivamente, quebrar o anelo e, mesmo estando com a sua
sexualidade congelada representada pelo seu caixão de cristal, ela, por
ele, ainda chama, tanto que não se enterra, mas continua a expor a sua
sedução como uma morta-viva. Na presença do homem que ela deseja,
ela desperta e com ele também parte. Ela troca um resto de maçã com o
qual ainda está engasgada e que a deixa imobilizada sem exercer a sua
feminilidade, ou seja, um pouco de sua relação erótica com a sua mãe,
pelo beijo do príncipe que, através de sua boca, ajuda-a a cuspir
simbolicamente o que restava dessa relação doentia para fora.
Mais uma vez, não é o príncipe quem a traz de volta à vida, foi ela
mesma quem se salvou e que continua viva em seu esquife de ouro e
cristal. Mas, por amá-lo, ela desperta o seu corpo com o seu beijo e,
com ele, segue para viver plenamente como mulher.
Esta nova luz dada aos contos de fadas tem, por consequência, a
elaboração de juízos totalmente diversos dos construídos anteriormente,
quais sejam: as princesas não são vítimas, submissas e coitadinhas,
elas são agentes ativos, construtoras de suas próprias histórias, tanto
quando mantêm uma relação erótica-sadomasoquista com as suas
mães, barganhando as suas identidades, como quando resolvem, pelos
seus próprios desejos afetivos e sexuais, quebrarem o anelo neurótico.
Nos três casos não é o príncipe que consegue resgatá-las, mas sim, elas
mesmas ou suas próprias mães, como no caso da Bela Adormecida.
Nessa linda história, é a mãe quem mata os seus próprios demônios
para dar espaço à feminilidade da filha que terá a sua sexualidade
naturalmente exercitada junto a um homem, a menos que, para tanto,
prefira uma mulher ou a masturbação. Logo, os contos não são
machistas, pois quem salva as mulheres, tanto as mães como as filhas,
dessas relações neuróticas, são elas mesmas. O fato de os pais estarem
mortos, dando espaço para a luta neurótica entre mães e filhas,
demonstra que a ausência e a omissão paterna incentivam e endossam
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 111
a neurose. Essa morte é simbólica e enfatiza a importância da presença
de homens amorosos e saudáveis tanto em relação às suas filhas como
em relação às mães delas. Quanto aos
príncipes, esses são apenas
coadjuvantes nesses contos sobre a construção da feminilidade pela
mulher a partir do rompimento da sua relação neurótica com a mãe e
com o pai morto (omisso e ausente). Todavia, não pouco importantes
mas, ao invés de salvadores, eles são companheiros e cúmplices da
mulher nessa jornada. Neste caminho que terá que, primordialmente,
ser escolhido por ela mesma, para que possa ser enfrentado e
percorrido.
Após percorrer as doces, saborosas e trágicas linhas de um conto
de fada, a menina recebe o beijo de boa noite de quem a contou, dorme
tranqüila e sonha com a mulher que, um dia, ela, também, há de ser.
Ela, como as princesas dos contos, sente receber um outro beijo, não o
de um príncipe, mas o de seu confortante destino inarredável que assim
se traduz ao final do conto: “...e foram mulheres
para sempre...”.
Fecha-se o livro. Apaga-se a luz. A menina-mulher germina.
Consultas Bibliográficas
Disney, Walt (2000). Branca de Neve e os Sete Anões. São Paulo: Ed.
Melhoramentos. Baseado nos Contos de Grimm (1812) dos Irmãos
Grimm.
Disney, Walt (2000). Cinderela. São Paulo: Ed. Melhoramentos. Baseado
nos Contos de Grimm (1812) dos Irmãos Grimm e na obra A Gata
Borralheira (1697) de Charles Perrault.
Disney,
Walt
(2000).
A
Bela
Adormecida.
São
Paulo:
Ed.
Melhoramentos. Baseado nos Contos de Grimm (1812) dos Irmãos
Grimm e na obra A Bela Adormecida no Bosque (1697) de Charles
Perrault.
Goethe, Johann Wolfgang Von (1991). Fausto. Belo Horizonte: Ed.
Itatiaia.
Yourcenar, Marguerite (1990). Peregrina e Estrangeira. Rio de Janeiro:
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 112
Nova Fronteira.
Indicações Bibliográficas
Apter, Terri (1997). Amores Alterados (Mães e Filhas durante a
Adolescência). Rio de Janeiro: Rocco.
Aroso, Albino (2001). De Mães para Filhas, de Filhas para Mães. Lisboa:
Âmbar.
Beauvoir, Simone (1987). A Velhice. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Beauvoir, Simone (1987). Força da Idade. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
Beauvoir, Simone (1980). O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira.
Bettelheim, Bruno (2001). A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de
Janeiro: Paz e Terra.
Exley, Helen (2000). Mães e Filhas. Lisboa: Texto Editora.
Hunter, Evan (1980). Mães e Filhas I. Lisboa: Ed. Europa-América.
Hunter, Evan (1980). Mães e Filhas I I. Lisboa: Ed. Europa-América.
Larsen, Carolyn (1999). A Bíblia das Meninas (Para Mães e Filhas). São
Paulo: Mundo Cristão.
Naouri, Aldo (1998). As Filhas e Suas Mães. Lisboa: Pergaminho.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 113
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 114
A EMANCIPAÇÃO DA MULHER BRASILEIRA NO FINAL DO SÉCULO
XIX SOB A ÓTICA DE JÚLIO RIBEIRO NA OBRA “A CARNE”
1
Jorge Luis Coelho Gomes2
Jordânia Maria Pessoa3
INTRODUÇÃO
Iniciamos a escrita desse trabalho explicando um pouco a
respeito da obra escolhida para análise, “A Carne” de Júlio Ribeiro, que se
constituí em uma obra naturalista, período literário que segundo Alfredo
Bosi: “[...] é uma escola literária conhecida por ser a radicalização do
Realismo, baseando-se na observação fiel da realidade e na experiência,
mostrando que o
hereditariedade”.
4
indivíduo é determinado pelo ambiente e pela
Nos debruçando com mais afinco a respeito da obra
pudemos perceber que no período de seu lançamento a mesma foi
censurada sob a acusação de pornografia; fazendo-se necessário saber que
não foi apenas a obra de Júlio Ribeiro que recebeu essa “punição” mas
também outros literatos que se dispuseram a escrever sob determinado
assunto, que assim como A carne, foram considerados como uma
literatura promíscua e de desvio de conduta.
O
XIX foi um século bastante agitado no que tange a esfera
nacional, pois iniciou-se sob a pressão de reivindicações independentistas
de cunho liberal, que logo poriam termo ao período colonial, em seguida
viu crescer pressões abolicionistas, explodirem revoltas provinciais que
uniam elites insatisfeitas e massas dessasistidas, e, ao fim, viu surgirem
1
Artigo apresentado à Disciplina: História Contemporânea I para obtenção da 3ª nota referente ao período
2009.2 .
2
Acadêmico do Curso de História, 7º Período, CESC/UEMA
3
Professora Mestre do Departamento de História e Geografia do CESC/UEMA
4
BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006, p. 196.
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ideias republicanas, fortemente influenciadas pelo positivismo muito em
voga, em meio a ventos democráticos e socialistas.5
Tratamos também de um fato corriqueiro dentro da história da
literatura brasileira que são as influências; estas que se fazem presentes
desde o começo da obra de Júlio Ribeiro, onde o autor dedica seu livro
primeiramente à Émile Zola, um francês que foi o idealizador do
naturalismo e o escritor que mais se identificou com o movimento. Com
base
no
seguimento
(cumprimento)
dessas
ideologias
francesas
transpostas para a escrita de Júlio Ribeiro foi que ocasionou com que seu
livro, poucos anos após a sua publicação se tornassse uma obra de mau
gosto e considerada um erro no que corresponde a essa estética
naturalista, e que sob o olhar de Antônio Candido e de José Aderaldo
Castelo: “[...] a obra levou os dogmas naturalistas ao extremo, misturando
uma narrativa ficcionalmente débil a um arsenal pseudocientífico de mau
gosto, sem função na estrutura do livro, que redundou em fracasso
estético[...]”.6
Abordando a questão da mulher brasileira, a história e a
literatura neste ponto mantém uma certa convergência, pois observamos
na escrtia do autor um anseio na representação dessa mulher que com o
decorrer dos anos vem adquirindo um novo desejo de estar presente na
sociedade, mas não adquirindo um papel apenas de figurante e sim
atuando de forma significativa, que é o que evidenciamos quando Júlio
Ribeiro nos fala: “[...] Lenita: a que devora obras de ciência”.7 Mostra-nos
atráves de inúmeras partes do seu livro esse desejo que a mulher começa a
manifestar de ser um ser humano atuante, e que faz-se presente não
somente na literatura mas bem como na realidade, onde podemos citar
Sandra Jatahy Pesavento, no seu Artigo intitulado História & literatura:
uma velha-nova história que nos mostra que:
5
Cf. FAUSTO, Boris (org.). O Brasil Republicano. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004.
CANDIDO, Antonio e CASTELLO, José Aderaldo. Presença da Literatura Brasileira II: do Romantismo
ao Simbolismo. 3. ed. São Paulo: Ed. Difusão Européia do Livro, 1968, p. 76.
7
RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 50.
6
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 116
Por vezes, esta aproximação da história com a
literatura tem um sabor de dejà vu, dando a impressão
de que tudo o que se apregoa como novo já foi dito e de
que se está “reinventando a roda”. A sociologia da
literatura desde há muitos anos circunscrevia o texto
ficcional no seu tempo, compondo o quadro histórico
no qual o autor vivera e escrevera sua obra. A história,
por seu lado, enriquecia por vezes seu campo de
análise com uma dimensão “cultural”, na qual a
narrativa literária era ilustrativa de sua época. Neste
caso, a literatura cumpria face à história um papel de
descontração, de leveza, de evasão, “quase” na trilha
da concepção beletrista de ser um sorriso da
sociedade... 8
Pelo fato de estarmos utilizando em nossa análise a cidade de
Santos localizada no estado de São Paulo (lugar social onde a obra é
contada pelo autor) no final do século XIX; percebemos que é de extrema
importância adequarmos a esse estudo o prefácio que Sérgio Adorno faz
sobre o livro: Os Prazeres da Noite, de Margareth Rago, já que a mesma
trabalha com a última década do século XIX, e no que tange à essa mulher
com um viés emancipatório nos diz o seguinte: “[...] a família burguesa, a
mulher burguesa que reivindica sua presença no espaço público”.9
Universo povoado por muitos estereótipos e acreditando-se em
um senso comum, a sociedade brasileira do período analisado também à
vê sob essa mesma ótica, a mulher, o ser feminino, é vista como um sexo
frágil, algo dependente e incapaz de estar dissociada de um matrimônio ou
de outras formas de sociabilidades que lhe deixem sob o julgo de um
marido (homem), pois faz parte da masculinidade se ter um controle sobre
a mulher, e a que se manifestar contrária a essas imposições corre o risco
de sofrer as consequências e os estigmas da sociedade.
8
Sandra Jatahy Pesavento, « História & literatura: uma velha-nova história », Nuevo Mundo Mundos
Nuevos [En línea], Debates, 2006, Puesto en línea el 28 janvier 2006. URL :
http://nuevomundo.revues.org/index1560.html.
9
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008, p. 19.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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HISTÓRIA E FICÇÃO
A História e a Literatura, nos referimos à ambas como
disciplinas, possuem o papel de inserir o indivíduo no universo da ciência
e das artes, que constituem duas faces do mesmo ser: o homem na sua
integralidade; e partindo para uma análise um tanto quanto semântica, a
raiz (princípio) de tudo mesmo é a palavra, a linguagem verbal que,
enquanto ação humana, constrói, reconstrói e destrói realidades. De
acordo com o discurso proferido no College de France por Focault: “[...]
uma mesma e única obra literária pode dar lugar, simultaneamente, a
tipos de discursos bem distintos [...]”.
10
E é justamente sob essa
conjuntura que história e ficção de entrelaçam, pois cada uma faz uso do
discurso que lhe é mais adequado para a exposição de suas ideias e
proposições, julgamentos e observações, utilizando-se de mecanismos
aliados ao campo da linguagem para uma enunciação.
A identidade feminina, como se vê, caminha ao lado da
identidade nacional, pelo menos era essa a perspectiva do neorrealismo11,
no entanto essa perspectiva associa reivindicações de gênero às sociais,
isto é, as articulações feministas subordinavam-se às representações da
sociedade. O autor faz uso desse tipo de articulação no seguinte trecho,
onde há a evidência desse desejo feminino por uma relação, uma
efetivação de sua sexualidade, visto que de acordo com a sociedade da
época era inconcebível uma mulher pura e direita manifestar esse tipo de
desejo, todavia, observemos que:
10
FOCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 17. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 24.
11
Segundo Alfredo Bosi; a literatura neorrealista teve no Brasil e em Portugal motivações semelhantes,
resgatando valores do realismo e naturalismoo do fim do século XIX com forte influência do modernismo,
marxismo e da psicanálise freudiana. No entanto, o determinismo social e psicológico do naturalismo é
mantido, assim como a analogia entre o homem e o bicho, a busca pela objetividade e neutralidade como
formas de dar credibilidade à narração. BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura brasileira. 43. ed.
São Paulo: Cultrix, 2006.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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“Depois mudava de pensar: não estava doente, seu
estado não era patológico, era fisiológico. O que ela
sentia era o aguilhão genésico12, era o mando
imperioso da sexualidade, era a voz da carne a exigir
dela o seu tributo de amor, a reclamar o seu
contingente de fecundidade para a grande obra da
perpetuação da espécie”. 13
Com base na citação anterior podemos perceber que o que
chamamos de história é também uma percepção da memória, a memória
própria de quem viveu ou observou o que aconteceu, o testemunho de
outros, registros, documentos, imagens, etc. A História nunca é aquilo que
aconteceu, mas aquilo que permite significar o que aconteceu; pois assim
como o discurso14 literário, o discurso histórico é uma representação
semântica15 “retocada” porque, como qualquer representação, implica
numa perspectiva autorial, uma seleção de fatos e uma ideologia.
Corroborando com os pressupostos afirmados acima, o estudioso Helder
Macedo em um artigo que escreveu para o livro: Literatura e história:
três vozes da expressão portuguesa nos mostra que:
“[...] há uma diferença irredutível entre a História e a
Literatura, mesmo quando o ato da escrita
ambiguamente as aproxima: a narrativa histórica
assenta sobre aquilo que se pode provar que
aconteceu, enquanto que a narrativa literária pode
lidar com o que aconteceu, ou não aconteceu, ou
poderia ou não acontecer.” 16
12
Segundo o Dicionário de Termos eróticos e afins, o termo genésico significa “[...]que tem faculdade de
procriar[...]”, ou seja, quem está hábil a ter filhos. ALMEIDA, Horácio de. Dicionário de Termos Eróticos e
Afins. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1981.
13
RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 40.
14
Cf. FOCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 17. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008, p. 24.
15
Cf. OLIVEIRA, Luciano Amaral. Manual de Semântica. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
16
CARVALHAL, Tania Franco e TUTIKIAN, Jane. (org). Literatura e história: três vozes da expressão
portuguesa. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 1999.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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O que a historiografia moderna também acabou por entender é
que, com a emergência de uma História já não exclusivamente devotada
aos chamados grandes acontecimentos e às personalidades dominantes
das nações triunfantes, mas também às vidas cotidianas dos sem-nome,
às comunidades marginais (como as prostitutas por exemplo), e até mesmo
àquilo que “desaconteceu” nas sociedades humanas. O resultado deste
alargamento do campo semântico da História foi torná-lo capaz de
abranger, através da sua metodologia própria, todo um relativismo que até
então só a literatura tinha sido capaz de significar.
O historiador trabalha voltado para o passado; o escritor também
quer recuperar o passado. Contudo, a diferença, porém, está no fato de
que o escritor tem a permissão de alterar o passado e, com isso, sugerir
que o presente e o futuro possam ser outros. O passado para o literato não
pode ser alterado pelo presente, mas o futuro sim. História e Literatura,
cada um desses discursos vai refratar a realidade a partir dos seus
domínios, suas convergências, visto que cada um deles tem uma função
social específica na totalidade da sociedade. Com base nessa diferença é
que a Profª Teresa Cristina Cerdeira da Silva em sua participação no livro
Literatura e história: três vozes da expressão portuguesa nos mostra
como se dá o trabalho de pesquisa e elaboração historiográfica,
evidenciando também os cuidados necessários para tal elaboração,
observemos que:
“Ao saber-se incapaz de assumir o papel de
‘ressuscitar os mortos’, a História se propõe uma
releitura dos documentos, não mais como armazéns da
verdade, mas como formas discursivas que fixaram, de
maneira parcial e pessoal, um dado acontecimento. De
certa maneira o historiador, para crer no documento,
começou por duvidar dele, pois o compreendeu como
uma produção que determinados agentes sociais
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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puderam fixar no tempo de modo a preservar o
poder.”17
O que podemos evidenciar dentro desse viés História e Ficção é
que se estabelece uma distinção entre realidade e imaginação, entre real
concreto e representação. Consequentemente, conhecer a realidade se
constituí no objetivo da História e produzir ficção, no da Literatura.
Ambas, nessa perspectiva, se colocam em campos opostos: a História uma
ciência
e
a
Literatura
uma
arte.
Acreditamos,
contudo,
que
em
concordância com Luiz Eugênio Véscio e Pedro Brum Santos faz-se
necessário evidenciar o que dizem sobre Nelson Rodrigues no livro
Literatura e História: perspectivas e convergências onde nos mostra que:
“[...] o autor não se pejou nunca de fabular a vida, inventando o que fosse
necessário para dizer a verdade”.
18
A MULHER NO SÉCULO XIX
Durante o século XIX a sociedade brasileira protagonizará uma
série
de
transformações
que
irão
propiciar
novas
alternativas
de
sociabilidades no que se refere ao universo feminino; as mesmas começam
a ter certa liberdade para usufruir de novas atividades tanto familiares
quanto domésticas, onde poderemos observar uma inserção dessas
mulheres em um mercado de trabalho, bem como num período marcado
pela valorização da intimidade e da maternidade.
19
Marco dentro da escrita de “A carne”
20
é que Júlio Ribeiro é
capaz de nos mostrar como estava se dando essas novas formas de
comportamento dentro desse espaço feminino, sendo esse um dos
17
CARVALHAL, Tania Franco e TUTIKIAN, Jane. (org). Literatura e história: três vozes da expressão
portuguesa. Porto Alegre: Editora da Universidade/ UFRGS, 1999, p. 111.
18
VÉSCIO, Luiz Eugênio e SANTOS, Pedro Brum (org). Literatura e História: perspectivas e
convergências. São Paulo: EDUSC, 1999, p.13.
19
Cf. PRIORE, Mary Del. História das Mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2008.
20
RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006.
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objetivos do naturalismo, retratar com fidelidade aquilo que acontecia, e
por mais que ele esteja utilizando de um romance, que se constitui como
uma
obra
de
ficção,
podemos
comparar
(a
obra)
com
escritos
historiográficos que nos mostram o Brasil da época abordada para uma
comparação efetiva e eficaz. Primeiramente temos uma descrição de Júlio
Ribeiro sobre a protagonista de sua obra no que se refere à essa permissão
da mulher ter conhecimentos educacionais, observemos que:
“Leitura, escrita, gramática, aritmética, álgebra,
geometria, geografia, história, francês, espanhol,
natação, equitação, ginástica, música, em tudo isso
Lopes Matoso exercitou a filha porque em tudo era
perito: com ela leu os clássicos portugueses, os
autores estrangeiros de melhor nota, e tudo quanto
havia de mais seleto na literatura do tempo.” 21
No que se refere ao começo do século XIX essa era uma realidade
ainda pouco vista, pois o que se idealizava para a mulher brasileira era um
vida cheia de afazeres domésticos, um sólido ambiente familiar, filhos
educados, dedicação exclusiva ao marido tanto para vida domiciliar quanto
social, esse sim era considerado o tesouro da mulher no limiar do século
XIX. Júlio Ribeiro faz uso do cotidiano brasileiro para representar por meio
de seu romance esse processo de mudança social que no começo do século
era de uma forma, a mulher direcionada especialmente para o seu lar, e no
final do oitocentos percebemos um direcionamento mais conciso para uma
esfera emancipatória dessa mulher ansiosa por mudanças sociais e
capazes de mostrar seus desejos, sejam eles luxuriosos ou não.
Julio Ribeiro ao escrever sua obra prima, procurou expressar
aquilo que até então não tinha sido evidenciado pela literatura brasileira,
ou melhor, procurou falar de uma mulher (e para isso escolheu a figura de
Lenita) que representasse os anseios (no que se refere ao saber
21
RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 13.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 122
educacional) e os desejos (no que se refere aos prazeres da carne) dessa
mulher que durante tanto tempo foi “excluída” de uma escrita que
retratasse suas singularidades. Utilizamos de um paralelo intertextual
para analisarmos a escrita de Maria Aparecida Baccega, que em seu livro
intitulado Palavra e Discurso: História e Literatura nos mostra como está
enraizado dentro da nossa cultura historiográfica e nas entrelinhas da
escrita literária, uma preferência pela vida das “estrelas” e não pela vida
dos “excluídos”, vejamos o que ela diz:
“O que buscamos quando estudamos história, quando
procuramos estabelecer o passado, é saber como os
homens, em culturas diferentes, portanto com outros
meios, lutaram por seus valores; buscamos
compreender o passado como construtor do nosso
presente, o qual já traz em si o futuro; buscamos
avaliar, interpretar como ocorreram as transformações
do homem no seu relacionamento com o mundo, no
processo de construção das sociedades. Para que esse
objetivo seja alcançado, é preciso ter ‘ouvidos para
ouvir’ e ‘olhos para ver’ a história dos vencidos, dos
silenciados pela força. Essa é a história que a história
oficial não contempla”. 22
Dentro do romance, o autor procurou mostrar que desde
menina, as mulheres do século XIX eram ensinadas a ser mãe e esposa,
sua educação limitava-se a aprender a cozinhar, bordar, costurar, tarefas
estritamente domésticas. Carregava o estigma da fragilidade, da pouca
inteligência, entre outros que fundamentava a lógica patriarcal de mantêla afastada dos espaços públicos. A negação de outros espaços além da
casa/quintal as afastava também da educação formal, não sendo
permitido o acesso à escola. E foi com o objetivo de contrapor a todos esses
conceitos até então já pré-estabelecidos por uma sociedade patriarcal23
que Júlio Ribeiro escreveu o livro em questão, pondo em cheque conceitos
22
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso: História e Literatura. São Paulo: Ed. Ática, 2003, p.
66.
23
Cf. PRIORE, Mary Del. História das Mulheres no Brasil. 9. ed. São Paulo: Contexto, 2008.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 123
que estavam sendo mudados e que a mulher a partir de então já começava
a adquirir um novo espaço dentro das relações sociais, sendo o de não
mais ser educada exclusivamente para o casamento (lar) e sim para a vida.
Expressão desse sentimento é a forma com que Júlio Ribeiro nos fala de
Lenita, :
“Depois, quando ficasse velha, quando se quisesse
aburguesar, viver como toda gente, casar-se-ia. Era tão
fácil, tinha dinheiro, não lhe haviam de faltar titulares,
homens formados que se submetessem ao jugo uxório
que lhe aprouvesse a ela impor-lhes. Era pedir por
boca, era só escolher”.24
O texto acima nos mostra claramente como era o pensamento de
Lenita à respeito do casamento, e com base em sua protagonista é que
mais uma vez o autor fez uso de suas ações para uma demonstração de
como o comportamento feminino estava adquirindo uma nova significância
no âmbito das sociabilidades.
OS PRAZERES DA CARNE
De acordo com os estudos de Maria Aparecida Baccega25
podemos entender que as questões colocadas no discurso literário são
questões do cotidiano, manifestadas nos discursos do cotidiano; e é
através desses discursos que o autor utiliza para uma descrição particular
a respeito dessa mulher brasileira, no entanto, novamente devemos ficar
atentos à esse discurso literário26, que pode ser visto como uma
apresentação através da palavra, de um pensamento, de uma visão de
mundo do autor, pois a literatura , mais que nenhum outro domínio
24
RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 45.
BACCEGA, Maria Aparecida. Palavra e Discurso: História e Literatura. São Paulo: Ed. Ática, 2003.
26
Cf. FOCAULT, Michel. A Ordem do Discurso. 17. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2008.
25
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 124
ideológico, trabalha com a globalidade, ou seja, apropria-se de todos os
discursos.
Para entendermos a questão do discurso dentro da obra nos
remetemos a outro tema bastante peculiar que aparecerá nos romances
naturalistas, despidos dos véus idealizantes próprios do movimento
literário anterior que é o Romantismo e que está ligado à questão da
sexualidade. Dentro da história da literatura brasileira27 – no Naturalismo
– entramos em contato com inúmeros personagens que são guiados pelas
influências do meio (teoria determinista), mas, sobretudo por seus
instintos, que os levam a concretização dos atos pelos desejos da carne,
atos estes muitas vezes condenados pela Igreja Católica que como é o caso
da pederastia28.
Júlio Ribeiro dentro de seu romance trabalha com a sua
personagem de uma forma bastante particular, onde vem nos mostrar
através de sua escrita uma mulher independente, culta, à frente de seu
tempo, embora não siga com este modelo até o final de seu romance o que
o autor procura mostrar com tal representação é uma mulher totalmente
diferente daquela visão pré concebida, uma mulher diferente, utilizada
como símbolo triunfante da feminilidade e que não suprime suas
convicções sobre o sexo; observemos que:
“O cheiro humano masculino que respirara na
travessia de Barbosa fora realmente um veneno para
os seus nervos. Sentia-se de novo presa do mal-estar
do histerismo antigo. Tinha anseios, tinha desejos,
mas anseios, desejos acentuados, visando a objetivo
certo. Ela ansiava por Barbosa, ela desejava Barbosa”.
29
27
BOSI, Alfredo. História Concisa da literatura brasileira. 43. ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
Segundo o Dicionário de Termos eróticos e afins, o termo pederastia significa: Relação sexual entre
homens, homossexualismo. . ALMEIDA, Horácio de. Dicionário de Termos Eróticos e Afins. Rio de
Janeiro. Civilização Brasileira, 1981.
29
RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 56,57.
28
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 125
Durante toda a obra o autor versa sob a ótica de uma mulher
sagaz, inteligente, determinada; fazendo nos lembrar que a literatura,
diferentemente, além de nos trazer o cotidiano “vivo”, com todas as ações e
reações aí presentes, vai construir seu próprio herói; e Lenita se constitui
na heroína de Júlio Ribeiro, e utilizando as palavras de Margareth Rago30,
a femme fatale que, embora não seja originariamente prostituta, é
frequentemente associada a ela, pelo simples fato de possuir uma
personalidade diferente das demais donzelas da sociedade a qual faz parte.
Diferentemente da prostituta, que utiliza as relações sexuais de
forma comercial, e que era estigmatizada pela sociedade, Lenita representa
dentro da literatura brasileira essa mulher “diferente” que não sente medo
nem vergonha de expor suas vontades (desejos) e que está disposta a
enfrentar as mais diversas concepções para ter seus desejos saciados,
observemos que:
“Se era a necessidade orgânica, genésica de um
homem que a torturava, por que não escolher de entre
mil um marido forte, nervoso, potente, capaz de saciála? E se um lhe não bastasse, por que não conculcar
preconceitos ridículos, por que não tomar dez, vinte,
cem amantes, que lhe fatigassem o organismo? Que
lhe importava a ela a sociedade e as suas estúpidas
convenções de moral?”. 31
Com um olhar voltado mais para o viés do prazer, Margareth
Rago32
nos
mostra
como
a
entrada
da
mulher
nos
espaços
de
sociabilidades não foi vista de uma forma saudável pela sociedade, mas
sim dotada de ambivalências e que podia-se chegar à confundi-las com
mulheres da vida, pois pelo fato de estarem circulando nas ruas e nas
praças com uma frequência maior, sua entrada no mercado de trabalho
(fábricas), as reuniões sociais, os restaurantes da moda, as festas badalas
30
Cf. RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
RIBEIRO. Júlio. A Carne. São Paulo: Ed. Martin Claret, 2006, p. 43.
32
Cf. RAGO, Margareth. Os prazeres da noite. 2. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.
31
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 126
nos teatros e dentre uma vasta gama de sociabilidades que se refere ao
lazer são percebidas de maneira maliciosas; pois as mulheres “desonestas”
e “perdidas” poderiam frequentar também os mesmos espaços.
Nessa representação de contemporaneidade registra-se uma
intensa transformação no imaginário sexual e no perfil dessa “nova”
mulher, já muito diferente das citadas em períodos anteriores ao
Naturalismo, onde o autor manuseia ingredientes duma porção infalível;
que se constituem sobretudo na figura de Lenita, a representante dessa
tematização do corpo feminino, onde o que está em discussão seria o novo
estatuto da mulher nos últimos anos referentes ao século XIX.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Acreditamos, contudo, que a literatura pode nos revelar aspectos
importantes das formas de pensar e sentir de uma determinada sociedade.
Os romances traduzem os anseios, captam as angústias, fantasias, desejos
de uma determinada época, e não apenas de uma classe social a que
pertencia o autor. Além do mais, a literatura constrói a sua representação
do fenômeno, que tanto pode atuar como ponto de referência para o leitor,
como responder às suas aspirações.
Contudo
percebemos
que
o
historiador
contemporâneo
se
encontra imerso na multiplicidade e na diferença, nega-se a deixar sempre
calados “os esquecidos da História”; faz, então, falar diferentemente os
documentos, indaga-os em seus silêncios, em suas ausências, em suas
falhas. E nada melhor do que uma obra literária, que se constitui para uns
historiadores como um documento, para outros não, para percebermos as
diferentes possibilidades de análise que a mesma pode suscitar dentro
dessa ótica historiográfica, e como se constitui em um “documento”
33
33
Coloco em aspas a palavra documento justamente por haver essa dicotomia em se tratar uma obra literária
como um documento ou não.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
Página 127
silenciado, cabe a nós historiadores darmos as interpretações cabíveis e
indispensáveis a tal escrito.
Pelo fato de nos defrontarmos com um mundo povoado por
estereótipos e clichês, vimos a necessidade de tentar desfazer alguns;
sendo que temos a plena consciência de que essas rupturas não se dão da
noite pro dia, e que todo processo de ruptura se constitui em um processo
traumático, nos dispomos aqui a enfrentarmos essa empreitada de
mostrar a mulher como um ser indubitavelmente indispensável dentro da
historiografia e que compete a nós historiadores tecermos uma escrita que
venha legitimar essa verdadeira e importante participação feminina dentro
da história, seja ela a nível nacional ou não.
Para isso utilizamos da literatura como fonte capaz de nos
mostrar o que os historiadores da época não tinham coragem ou até
mesmo não se atentaram para as mais diversas particularidades que o ser
feminino podia lhes proporcionar, mas que os literatos se dispuseram a
fazer o trabalho que por motivos desconhecidos a história por um
momento os negligenciou.
REFERÊNCIAS
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Janeiro. Civilização Brasileira, 1981.
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São Paulo: Edições
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HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010.
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Nas entrelinhas, Zélia Almeida
“Se eu não fosse professora, eu queria ser professora”
Alinne Suanne1
Bem disposta, a professora Zélia Almeida me aguardava na sala de
professores
da
Universidade
de
Pernambuco
(UPE),
em
Petrolina.
Recepcionou-me com elegância e um belo sorriso nos lábios. A sua gentileza
se sobressaia naquele cenário agitado, com professores apressados, alunos
passeando pelos corredores e funcionários falando ao telefone.
Emocionada, Zélia Almeida abriu o baú da sua infância e recordou-se
da fazenda Boa Sorte, localizada no município de Mundo Novo-Ba, onde
nasceu no dia sete de Janeiro de 1930. Seu pai, Izidro Bispo de Oliveira, era
um agregado da fazenda e, com o tempo, mudou-se com sua família para a
fazenda Caldeirão onde a sua esposa, Maria Almeida de Oliveira, tinha sido
criada.
Com muita alegria, relembra as peraltices da Zélia criança na fazenda
Caldeirão. “Brincava muito. Brinquei bastante com borboletas, de casinha,
de quitute, bonecas e de comadre. Foi muito gostoso”. Apreciadora da
natureza, na fazenda, ela tinha contato com animais, dos quais a borboleta
era o que chamava mais atenção. “A beleza e o colorido me atraiam e até
hoje eu acho bonito, mas não me sinto uma pessoa voadora”, conta, entre
risos.
1
Aluna do curso de licenciatura plena em História da UPE – Campus Petrolina.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 132
Mesmo com as dificuldades que enfrentava, o gosto pelos estudos foi
bastante incentivado pela matriarca da família. ”Não fui menina rica, sempre
fui pobre. Mas minha mãe era voltada sempre para o estudo, podia não ter
nada, mas tinha que estudar”. Orgulhosa ressalta que a sua mãe foi a sua
primeira professora, autodidata, pois não tinha curso de magistério.
Na adolescência, a garota Zélia foi escolhida pela Igreja Presbiteriana,
a qual fazia parte, para ir estudar no colégio Instituto Ponte Nova, na cidade
de Vagner-BA. Era uma escola fundada por americanos e tinha alunos de
todo o Estado. Os requisitos para a
vaga era obediência e
bom
comportamento. Após muitas dificuldades, conseguiu ser selecionada e
concluir o curso secundário.
A partir desse momento, começaria a realizar o seu maior sonho: ser
professora. O primeiro emprego foi numa escolhinha da Igreja Batista, na
cidade Rui Barbosa-BA. Posteriormente, recebeu um convite dos diretores da
escola que havia estudado para ensinar no Instituto Samuel Granam, em
Jataí, no sudoeste de Goiás. “Mas será que eu estou fazendo a vontade de
Deus?”, perguntava-se. Bastante religiosa, conta que rogou a Deus: se for
sua vontade, eu aceito o convite. Zélia não recusou o convite e foi morar em
Jataí. “Eu estava radiante, começando a conhecer outras cidades. Sofri
muito, sentir muitas saudades da minha família. Passei dois anos sem vêlos”.
Sempre
muito
dedicada,
a
Zélia
adulta
dividia-se
em
várias
personalidades. Professora exigente, amiga, filha, irmã, tia e religiosa. Como
educadora, sempre muito ativa, dedicou-se a várias áreas do saber, inclusive
Educação Física. Em busca de mais oportunidades de estudo, decidiu vir
morar em Juazeiro em 1968.
A iniciação como aluna de ensino superior foi na década de 1970 na
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras em Juazeiro – BA. Optou pelo curso
de Ciências Sociais, mas não concluiu, pois a faculdade deixou de funcionar.
Contudo, não desistiu do sonho. Ela ingressou na Faculdade de Formação
de Professores de Petrolina (FFPP), no curso de Licenciatura curta em
Estudos Sociais. Para a jovem ainda era pouco. Zélia desejava formar-se em
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 133
Licenciatura Plena em Geografia, porém conseguiu licenciar-se em História
na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras na cidade de Caruaru - PE.
Durante alguns anos foi Coordenadora Pedagógica da Escola Marechal
Antonio Filho (EMAAF). Na época, surgiu mais uma oportunidade de
conhecer novas áreas do conhecimento. Zélia voltou à universidade e
concluiu o curso de Pedagogia também na Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras, de Caruaru.
Ao longo de sua trajetória como profissional, Zélia Almeida trilhou um
caminho de sucesso e deixou boas lembranças no colégio Edson Ribeiro em
Juazeiro - BA, onde lecionava Educação Artística, no Ginásio Industrial de
Petrolina e no Colégio Estadual de Petrolina.
A convite do professor Joaquim Santana, Zélia ingressou como
professora substituta no curso de Licenciatura Plena em História, na FFPP.
No ano de 1988, passou no concurso público e se tornou docente da
disciplina História da Educação. Atuou como chefe no departamento de
Pedagogia, como representante dos professores no Conselho de Ensino e
Pesquisa, em Recife, e atualmente ensina nas disciplinas de Estágio
Supervisionado. É a professora mais querida da faculdade.
O que mais encanta esta profissional é o relacionamento que mantém
com os alunos. “É um sentimento de contribuição e isso me faz vibrar com a
Educação”. Ser professor, para esta mestra, é um compromisso com a vida.
“Educar é contribuir para a transformação de vida nos limites da ética, da
moral e do espiritual”.
Emocionada, recorda-se de um episódio difícil nestes 21 anos de
carreira. “Uma turma do curso de Pedagogia conseguiu o rascunho de uma
prova minha. Todos tiraram notas boas. Desconfiei do que tinha ocorrido e
não entreguei o resultado. Os alunos ficaram zangados ao ponto de falar que
não ensinava nada. Fiquei muito chateada. Mas não chorei, fui forte, e toda
vez, que entrava na sala deles dizia: apesar de que eu não ensino nada a
vocês, vou trabalhar para que vocês aprendam alguma coisa”.
Os momentos felizes são muitos e com os olhos cheios de lágrimas,
narra as palavras amigas de uma ex-aluna durante uma banca examinadora
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 134
na Universidade do Estado da Bahia (UNEB). A aluna lhe disse: não gostava
de História, mas aprendi a gostar com essa mulher. Para Zélia, foi uma
felicidade ouvir aquelas palavras.
Zélia hoje
se
sente
uma menina com espírito jovial. Estuda
diariamente e tem como livro de cabeceira a Bíblia. Assiste a filmes religiosos
ou voltados ao campo educacional. Sorrindo, diz que é uma pessoa muito
amada preferindo aconselhar a entrar em conflitos. Quanto ao trabalho,
almeja permanecer mais um tempo: “nunca me vir em outra profissão,
porque foi um sonho. Eu sou feliz sendo professora. Professor é como se
fosse o tijolinho da casa que se chama Educação”.
HISTORIEN - REVISTA DE HISTÓRIA [2]; Petrolina, jan./mar. 2010. Página 135
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