ROCHA, N. F. F. Tradução de Canção: Quando `The look of love` se

Transcrição

ROCHA, N. F. F. Tradução de Canção: Quando `The look of love` se
ROCHA, N. F. F. Tradução de Canção: Quando ‘The look of love’ se canta ‘O amor em
teu olhar’. Belas Infiéis, 2015 (no prelo)
TRADUÇÃO DE CANÇÃO: QUANDO ‘THE LOOK OF LOVE’ SE CANTA
‘O AMOR EM TEU OLHAR’
SONG TRANSLATION: SINGING „THE LOOK OF LOVE‟ IN PORTUGUESE
„O AMOR EM TEU OLHAR‟
Natanael F. França Rochai
Doutorando em Estudos da Tradução
Universidade Federal de Santa Catarina
[email protected]
Resumo: Este artigo propõe uma tradução comentada da canção The Look of Love de Burt Bacharach e Hal
David. O objetivo é a criação de uma tradução cantável que soe natural em língua portuguesa. A tradução levará
em conta diferentes aspectos pertinentes a esse gênero, a saber: significado, naturalidade, rimas, sonoridade,
ritmo e cantabilidade. A proposta inclui também a gravação do áudio em estúdio por uma intérprete.
Palavras-chave: Tradução; Canção; Letra; Música; The Look of Love.
Abstract: This paper proposes an annotated translation of the song The Look of Love composed by Burt
Bacharach and written by Hal David. It aims to create a singable translation intended to sound natural in the
Portuguese language. The translation will take into account different aspects relevant to this genre, namely
meaning, naturalness, rhymes, phonetic similarity, rhythm and singability. The proposal also includes a studio
recording of the song by a female singer.
Keywords: Translation; Song; Lyrics; Music; The Look of Love.
1. Introdução
A
palavra “canção”, do latim cantione (canto; encanto, encantamento), pode ser
entendida
como
uma
composição
poético-musical
destinada
ao
canto,
normalmente escrita em forma de texto poético e acompanhada por instrumentos
musicais; mas pode também ser escrita em prosa e/ou cantada a cappella. Peter Low (2006, p.
511) explica que a „canção‟, sendo um gênero, é caracterizada pela união harmoniosa de letra
e música, uma combinação que pode ser compreendida em sua plenitude através da
performance vocal.
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A tradução de um gênero que incorpora concomitantemente palavras e música pode
submeter o tradutor a um leque mais restrito de opções lexicais, pois a prosódia musical ii
implica em escolhas exatas quanto à posição das silabas tônicas e átonas das palavras na
melodia original, sem mencionar outros efeitos como o de sonoridadeiii semelhante à da
canção original.
Ao contrário do que possa parecer, há um espaço considerável na indústria da música
para traduções de canções. Atualmente, o mercado mundial consome traduções dos mais
variados gêneros musicais, mas principalmente do mainstream da música pop. Por exemplo, a
cantora Beyoncé, em seu álbum de 2008, lançou na Espanha e no México uma tradução em
espanhol da canção If I Were a Boy: Si Yo Fuera Un Chico. Artistas latinos como Shakira e
Ricky Martin costumam gravar várias de suas canções em dois idiomas: inglês e espanhol,
assim como o cantor espanhol Enrique Iglesias. A cantora italiana Laura Pausini também já
gravou traduções em inglês, espanhol e português de alguns de seus sucessos, com a
particularidade de que suas traduções prezam, inclusive em detrimento do sentido, por uma
sonoridade parecida à da canção original em italiano. Outros mercados de destaque são o de
dublagem de canções em filmes, como em animações da Disney ou em musicais, o mercado
de músicas e cantigas infantis, por exemplo o fenômeno Gummibäriv, e o mercado de música
gospel, que traduz um massivo volume de canções, principalmente americanas, todos os anos.
A tradução de canção, portanto, transita em diferentes áreas e possui em sua essência
um caráter multidisciplinar, ou mesmo interdisciplinar, por exemplo, linguística, musicologia,
estudos culturais, literatura, entre outros, em nichos como a tradução de ópera, a dublagem, os
musicais, a música gospel, e até mesmo a língua de sinais, com traduções gestuais da letra
(sinais de mão e expressões faciais) e da musicalidade (movimentos corporais). A tradução de
poesia também é usualmente invocada quando se discute tradução de canção. Faz-se
necessário frisar que até certo ponto ambas possuem vários aspectos comuns; porém, entre
outras coisas, a tradução de canção está necessariamente „subordinada‟ às notas musicais que
compõem a melodia original e não necessariamente deve rimar ou se apresentar esteticamente
bem em sua forma escrita. No que tange a estética do texto vocal, Fox-Strangways (1921, p.
223) argumenta que é completamente desnecessário que a tradução se leia bem no papel;
embora isso possa encher os olhos do cantor ao ver a letra.
Compete ao tradutor de canção bastante sensibilidade às sutilezas do texto-fonte para
que possa reproduzi-las o mais próximo possível na tradução. A respeito disso, Drinker (1950,
p. 226) comenta sobre reproduzir o espírito e principalmente o significado do original. O
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letrista Gene Lees (1998, p. 222) acrescenta que o que se deve fazer é entender o espírito
essencial da canção e reconstruí-lo o mais próximo possível na outra língua. Para isso,
contudo, o tradutor poderá precisar fazer alterações substanciais na tradução para tentar
provocar no ouvinte alvo sensações semelhantes às que têm os ouvintes nativos do idioma no
qual a canção original foi escrita.
Demasiadas alterações, muitas vezes, caracterizam a tradução como „adaptação‟
devido ao distanciamento do sentido da canção original. John Milton (2009) explica que uma
adaptação geralmente contém omissões, reescrituras, adições, e só pode ser reconhecida como
obra do autor original se o objetivo da enunciação for mantido (p. 51). Seria plausível dizer
que quanto mais a versão traduzida se afasta do significado da letra original, mais próxima
está de ser definida como „adaptação‟. Além disso, em se tratando de canções, há um
elemento comum entre os textos fonte e alvo: a música, que geralmente é mantida “na
íntegra” na tradução, descartando, nesse aspecto, o termo „adaptação‟. No que tange o
distanciamento do original, Carlos Rennó, letrista e tradutor de canção, comenta: “se for para
fazer letra diferente do original, chamo um parceiro e faço outra canção” (RENNÓ apud
CLÁUDIO, 2009, p. 107). Por outro lado, como pontua Fox-Strangways (1921, p. 223), se
couber uma tradução, então que se traduza; mas às vezes adaptar vem mais a calhar, ou é de
fato primordial, assim, o tradutor trabalha em total liberdade e é julgado apenas pelo resultado
final.
Entretanto, por ser um tipo de tradução subordinada à música pré-existente, a tradução
de canção permite, de fato, mais liberdades do que outros tipos de tradução, como a literária
ou mesmo a poética. Peter Low (2003, p. 92) argumenta que uma abordagem sensata em
relação a liberdades pode abrir caminho para traduções melhores e acrescenta:
A necessidade de flexibilidade é raramente questionada quando se trata de sentido.
Tradutores de canção fazem uso não só de “ferramentas criativas” de bons artífices
da palavra, mas também de transposição, modulação, paráfrase e compensação,
sendo que quase todos fazem concessões semânticas que seriam inaceitáveis, digase, em uma tradução científica.v (LOW, 2005, p. 12).
Em suma, como exposto até aqui, a tradução de canção ocupa um lugar visível no
mercado artístico, principalmente na música popular, e, por suas várias particularidades,
possui um caráter multidisciplinar, transitando por diversas áreas. Traduzir e preservar o
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efeito da linguagem verbal em consonância com a linguagem musical é um desafio para
qualquer proposta séria de tradução de canção.
2. Proposta de tradução comentada
2.1 A proposta
Este artigo propõe uma tradução comentada da canção The Look of Lovevi. A proposta
inclui também a gravação do áudio em estúdio por uma intérprete. A versão de referência foi
a de Dusty Springfield, por ter sido a primeira gravação lançada.
O objetivo é a criação de uma tradução cantável que soe natural em língua portuguesa.
A tradução levará em conta diferentes aspectos pertinentes ao gênero traduzido, a saber:
significado, naturalidade, rimas, sonoridade, ritmo e cantabilidade. Não se pretende priorizar
nenhum desses aspectos em detrimento de outros, por isso serão considerados
simultaneamente no processo criativo. Contudo, o aspecto norteador da tradução tende a ser o
sentido do texto – a correspondência semântica. Em vista disso, algumas concessões poderão
ser feitas em função dos outros aspectos supramencionados.
Um último fator importante destacar é que a letra de The Look of Love é quase
integralmente composta por palavras monossílabas – uma prerrogativa da língua inglesa. Esta
proposta de tradução não ignorou este fato e tentou utilizar o maior número possível de
palavras monossílabas e, em segundo lugar, dissílabas.
2.2 A canção
The Look of Love, pensada inicialmente para ser apenas instrumental, foi composta
pelo cantor, compositor e pianista americano Burt Bacharach. Pouco tempo depois, o letrista
americano Hal David escreveu a letra. Em 1967, a canção foi lançada na voz da inglesa Dusty
Springfield, como canção tema do filme paródico Casino Royale, referência à cine-série
James Bond. Em 1968, The Look of Love foi indicada para o Oscar de melhor canção original.
Diversos artistas gravaram a canção, a citar, por exemplo, os músicos Odell Brown, Ramsey
Lewis e Stanley Turrentine, e as cantoras Claudine Longet, Nina Simone, Dionne Warwick e
Shirley Bassey. Biógrafo e crítico de música, Matthew Greenwald enaltece o trabalho dos
autores e afirma:
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Certamente um dos hits de ritmo mais lento da época, a música é carregada de
mudanças excitantes de acordes de sétima menor e sétima maior. Isto sempre foi, de
fato, marca registrada de Bacharach, mas a forma como ele fez a canção avançar foi
diferente de tudo o que ele já havia composto. Hal David também não ficou atrás e
criou uma letra que expressa em sua essência saudade e, sim, sensualidade. vii
(GREENWALD, 2014, p. 1)
A canção ainda está viva e vem sendo gravada e interpretada por dezenas de músicos
e cantores por todo o mundo. Em 2001, por exemplo, a cantora canadense Diana Krall lançou
um álbum intitulado The Look of Love com a canção. Em 2008, a composição de Bacharach e
Hal David entrou para o Grammy Hall Of Fameviii – curadoria que desde 1973 homenageia
gravações com mais de 25 anos e com relevância histórica e artística.
Romântica, envolvente e monossilábica, The Look of Love propõe um desafio ao
tradutor que deseja vertê-la para outro idioma. A seguir, apresento a tradução da canção e
algumas particularidades técnicas e criativas evolvidas no processo.
3. A tradução de ‘The Look of Love’ para o português
Na canção original, o vastíssimo número de palavras monossilábicas favorece a
escansão e a musicalidade com que soam as palavras cantadas individualmente em língua
inglesa. The Look of Love tem 126 palavras e a tradução teve apenas 90. A base melódica para
vocal possui 136 notas musicais preenchidas com o som de cada sílaba poética na letra da
canção. Interessa salientar que as monossílabas ocupam 82% da letra original, ao passo que na
tradução proposta as monossílabas representaram apenas 35%.
Houve, então, o desafio de expressar a mesma quantidade de informação com um
número menor de palavras. Em função disso, a letra em português apresenta 19 sílabas
gramaticais comuns elididas em 9 sílabas poéticas, enriquecendo semanticamente a letra e
favorecendo a cantabilidade. A canção original em língua inglesa possui apenas 8 sílabas
gramaticais comuns elididas em 4 sílabas poéticas.
O título, assim como em vários tipos de produção textual, pode ser a última coisa a
ser feita. No caso em questão, foi. Como se vê na tradução abaixo (Quadro 1), a frase “the
look of love” foi reduzida a “o amor”. O termo “look”, neste caso, refere-se a „aspecto‟, „ar‟,
„expressão‟, como se a pessoa demonstrasse a „expressão do amor‟ em sua face, “um ar
apaixonado”. O título, então, agregou a expressão “in your eyes”, vertendo-se como “O amor
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em teu olhar”. A segunda coluna do quadro traz uma tradução literal, não cantável, da letra
original, para compreensão caso o leitor não tenha proficiência na língua inglesa. O áudio da
canção original está disponível em <youtu.be/KcRrFx4KcGc> e da tradução em
<youtu.be/l73HbVmZYP4>, ambas cantadas pela mesma intérpreteix e no mesmo arranjo
musical, para uma melhor comparação.
Quadro 1. Comparativo entre letra original, tradução literal e tradução cantável.
Para facilitar a referenciação às partes da canção, o quadro acima mostra uma divisão
por estrofes e por versos. A estrofe 3, em negrito, corresponde ao refrão.
Como se pode observar, a tradução literal apresentada não é cantável, uma vez que o
número de sílabas poéticas é diferente e não condiz com a prosódia musical original. Cabe
salientar que a tradução cantável levou em conta, além do número de notas musicais, diversos
fatores simultaneamente como o conteúdo semântico original, rimas, sílabas tônicas e átonas,
tentativa de correspondência de sonoridade vocálica, entre outros.
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O quadro a seguir mostra a escansão, isto é, a decomposição dos versos da canção
em seus elementos métricos, exibindo as sílabas poéticas separadas por barras. As elisões são
representadas por grifos de sublinhado ( _ ).
Quadro 2. Escansão da letra de The Look of Love e da tradução O Amor em teu Olhar.
Na tradução de uma canção, como se vê no quadro acima, o número de sílabas
poéticas deve ser mantido o mesmo, visto que cada uma delas corresponde a um som
pronunciado juntamente a uma nota musical, nem que para isso seja necessário elidir ou
contrair sílabas. Por exemplo, as duas primeiras sílabas gramaticais da palavra “es-pe-rei”, no
refrão (verso 09), foram contraídas para apenas uma sílaba poética („spe-), preenchendo o
espaço da palavra „how‟ na letra original.
Essas e outras questões serão discutidas com mais profundidade na seção a seguir
dedicada à discussão da tradução de The Look of Love.
4. Discussão
Peter Low (2003, p. 98) comenta sobre a competência linguística do tradutor de
canção ao manipular a língua alvo e recomenda, assim como o faz Fox-Strangways (1923, p.
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95), que o tradutor seja falante nativo da língua para a qual traduz. Low (2003, p. 98) ressalta
que o tradutor deve estar munido de bons dicionários de sinônimos e de rimas, e ser perspicaz
o suficiente para não começar do primeiro verso. No entanto, em The Look of Love, o
primeiro verso é bastante emblemático e a expressão “look of love” se repete ao longo da
canção, e não aparece no refrão. Low (2003, p. 99), todavia, comenta sobre identificar as
partes cruciais da letra, e ressalta que o refrão ou outra parte que se repita geralmente será
mais importante que os outros versos. Na tradução desta canção, comecei pelo primeiro verso
que, desde o início, se manteve “o amor está em teu olhar”. O refrão, em contrapartida, foi o
último a ser traduzido, e foi a parte que mais tomou tempo no processo criativo.
As subseções a seguir trazem uma discussão sobre alguns aspectos específicos do
processo criativo tradutório da canção The Look of Love para o português. Os aspectos
discutidos serão: significado, naturalidade, rimas, sonoridade, ritmo e cantabilidade.
4.1 Significado e Naturalidade
Quando se trata de tradução de canção, geralmente um dos primeiros
questionamentos é se o sentido original foi preservado. Naturalmente, espera-se que seja
repassado na tradução o conteúdo semântico da letra, o sentido, seja ele qual for, que se revela
através das palavras em consonância com a música. Peter Low (2005, p. 194) comenta que
algumas pessoas criam textos que se encaixam perfeitamente à melodia, mas sem relação
semântica nenhuma com a letra original, e afirma que isso não é tradução.
Em vista disso, pode-se dizer que o significado da letra é o fator norteador da
tradução. E a tradução de um „texto oral‟, como ressalta Low (2003, p. 98), só valerá a pena
se puder ser entendida durante a performance, isto é, enquanto a canção está sendo cantada.
Para isso, é fundamental que as palavras sejam muito bem colocadas, de fácil dicção e que
soem de forma natural ao ouvinte alvo. A questão da naturalidade envolve também clareza da
informação, evitando ambiguidades, cacofonias, léxico complexo e/ou pouco usual, ordem
sintática forçada, entre outros. A exemplo disso, Gorlée (1997, p. 247) comenta que muitos
tradutores, por falta de boas estratégias, acabam utilizando clichês pedantes, fraseologia
desgastada, sintaxe invertida, acentos mal-colocados, ritmo distorcido e outras soluções
infelizes (GORLÉE, 1997, p. 247 apud LOW, 2005, p. 195).
A informação semântica contida em cada estrofe de The Look of Love pode ser
interpretada da seguinte forma:
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Quadro 3. Interpretação semântica geral por estrofes da canção The Look of Love.
Em geral, a tradução da canção conseguiu preservar o sentido, mas há pontos que
merecem discussão. Por exemplo, no verso 05 ocorre „personificação‟ da palavra “heart”
(...what my heart has heard...), que foi mantida na tradução (...meu coração, então, só se
deixa...), mas o significado foi parafraseado omitindo o sentido humano da audição, e
tomando o verbo “surpreender” como correspondente de “takes my breath away” (tirar o
fôlego).
Além disso, houve uma omissão no verso 11. Em função da rima com a palavra
“apagar” (verso 12), optou-se por repetir “o amor está em teu olhar” por dois motivos: para
reforçar o equivalente de “the look of love” e porque a palavra “face” (ou “rosto”,
“semblante”) não se encaixaria à prosódia musical do verso, que exigia uma palavra oxítona
no final.
Outra omissão importante pontuar é a do verso 15. Considerou-se que o verbo
“selar” por si só pode pressupor um “juramento” (a lover’s vow). Aparentemente, tal omissão
não comprometeu o sentido do verso, como se vê abaixo:
Quadro 4. Correspondência semântica de um verso da letra original e sua tradução.
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No que tange a naturalidade, apesar da escolha da segunda pessoa do singular tu,
tentou-se evitar o uso de ênclises, próclises e, sobretudo, mesóclises com o pronome do caso
oblíquo te. Houve, contudo, apenas um caso de ênclise no verso 16 com as frases “mas não te
vás” e “nunca te vás”, de uso mais familiar, nesta construção, ao português de Portugal.
Convém destacar que os versos 10 e 16 estão semanticamente ligados (Now that I have found
you, don’t ever go: agora que te encontrei, nunca te vás). A informação do verso 10 foi
omitida na tradução e, por isso, optou-se por utilizar um elemento coesivo (mas) que
mantivesse essa continuidade com o refrão. Desta forma, como se lê nos versos 08, 09, 10 e
16, expressou-se a ideia, mesmo que implicitamente, de que a pessoa amada foi encontrada,
visto que a conjunção “mas” é adversativa, isto é, implica uma oposição, por isso a frase “mas
não te vás” pode sugerir que a pessoa está ali. O esquema abaixo mostra a relação de
correspondência semântica do refrão:
Quadro 5. Correspondência semântica entre o refrão original e sua tradução.
O verso 13 representou um grande desafio tradutório. Composto por apenas quatro
sílabas, o verso deveria expressar “seja meu/minha esta noite”. Embora com menos
expressividade, mas dentro da proposta monossilábica, o verso foi traduzido como “vem cá,
meu bem”, sem marcar gênero e significando algo como um chamado sensual para o amor,
logo continuado pelos versos 14 e 15.
Por fim, voltando ao Quadro 3, observa-se que na tradução houve um alto grau de
correspondência semântica para com a canção original; embora a “indicação de ter encontrado
a outra pessoa” (I have found you), o “pedido de entrega” (Be mine) e a “proposta de um
juramento de amor” (Let’s take a lover’s vow) tenham sido traduzidos de forma parafraseada
e menos expressiva.
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4.2 Rimas e Sonoridade
A rima pode dar graça, poeticidade, sofisticação à sonoridade da canção. Em
tradução de poesia, por exemplo, é extremamente recomendável manter as rimas presentes no
texto original. Porém, como comenta Fox-Strangways (1921, p. 221), não se pode afirmar que
a rima é uma necessidade vital à canção, muito menos a uma canção traduzida. Peter Low
(2005, p. 199) argumenta que na tradução de canção, muitas vezes, a cantabilidade, a
naturalidade, o sentido ou mesmo o ritmo são prezados em detrimento da rima. Isso não quer
dizer, entretanto, que as rimas são menos importantes. Em canções com temas sentimentais,
por exemplo, Low (2005, p. 202) afirma que a rima é uma característica normal e, portanto,
seria estranho omiti-la. O que tradutor pode fazer é usar uma rima próxima, ou realocá-la em
outro lugar na canção, bem como rearranjar todo o esquema rímico original. Flexibilidade é
essencial quando se trata de rima em tradução de canção. Low (2008, p. 7) acrescenta que não
existe nenhuma norma que diga que o esquema rímico da canção deva ser replicado na
tradução.
Na tradução de The Look of Love, o esquema rímico foi mantido, exceto no refrão,
que houve um verso a mais rimado. Além disso, a sonoridade das palavras rimadas também
foi respeitada, através da utilização de sílabas com os mesmos sons fonéticos vocálicos, ou
parecidos (realçados em azul no quadro comparativo abaixo).
Quadro 6. Transcrição fonética das palavras rimadas, em final de verso, no original e na tradução.
Tal similaridade fonética tenta manter a identidade sonora da canção, além de exigir
um esforço do aparelho fonador do cantor parecido ao exigido na performance da canção
original. Pode-se perceber também que algumas escolhas lexicais privilegiaram uma
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sonoridade similar ao longo dos versos, e não apenas nos finais, por exemplo, entre as
palavras (smile|vai: /aɪ/), (time|vai: /aɪ/), (takes|deixa: /eɪ/), (more|só: /ɔː/), (many nights|mil
noites), (take|beijos: /eɪ/) e (can hardly /æ/ /ˈaː/ /ɪ/ - saudade /a/ /ˈa/ /ɪ/).
Outros efeitos que favoreceram a sonoridade e a cantabilidade são as repetições de
determinados sons, como a aliteração do som consonantal /t/ no refrão (aguento, teus, tanto,
tempo, momento, estar, teus) e do som consonantal /s/ (saudade, sem, os, teus, abraços,
esperei, só, estar, teus, braços). Houve também um efeito de assonância nos versos 04 e 05,
com a repetição do som vocálico nasal “ão” /ə̃w/: poderão, coração, então, produzindo um
eco, porém não cacofônico. No refrão da canção original, nota-se uma aliteração sutil, mais
espaçada, do /h/ sonoro: hardly, hold, how, have, have. Nota-se isso também no verso 05, em
uma sequência de três repetições do /h/: heart has heard. No verso 04, há uma sutil aliteração
do /s/: saying, so, words, say, compensados na tradução por: palavras, só, jamais, bem como
no verso 05 com /s/ e /∫/: coração, só, se, deixa, surpreender. Nos versos 14 e 15, também
ocorre aliteração do /s/: this, just, start, so, nights, this, let’s, lover’s, seal, kiss. Na tradução,
tentou-se replicar o efeito com: este, começo, outras, noites, assim, beijos, selaremos, nosso.
O próprio título The Look of Love apresenta aliteração da consoante /l/, talvez compensada
pela assonância da vogal “o”: O amOr em teu Olhar.
Conforme destaca Fox-Strangways (1921, p. 223), é vantagem, para a musicalidade
dos versos, que se mantenham os sons vocálicos e/ou consonantais que de alguma forma são
importantes ao sentido da canção, e para que a versão fique sonoramente parecida com a
original. No entanto, nem sempre é possível replicar esses efeitos sonoros, podendo ser
compensados com outros. Assim como o conteúdo semântico da canção pode ser realocado
em espaços diferentes na letra traduzida, os efeitos sonoros podem ser recriados e/ou
rearranjados ao longo da canção.
4.3 Ritmo e Cantabilidade
O ritmo musical pode ser entendido como uma sequência de batidas fortes e fracas
que se repetem, divididas em compassos e organizadas através da métrica e do tempo das
notas. O tradutor de canção trabalha, até certo ponto, subordinado ao número de sílabas
poéticas que se encaixam às notas da melodia, respeitando a duração de cada nota e a posição
em que as sílabas entonadas aparecem na partitura. Low (2003, p. 97) ressalta que isso é
fundamental para que o ritmo seja mantido e a canção seja contável. Contudo, na tradução de
12
The Look of Love, a acentuação da palavra “noites” (verso 14) foi colocada na segunda sílaba
/nojˈtʃɪs/: “MIL noiTES” está exatamente no espaço de “MAny NIGHTS” na partitura (ver
Apêndice I). Essa mudança de acento átono para tônico na palavra “noites”, entretanto, não
comprometeu a cantabilidade nem sua naturalidade na performance vocal.
Na tradução, houve também um caso de mais de uma sílaba poética no espaço de
uma única nota. Trata-se da pronúncia prolongada da primeira sílaba da palavra “te_____mpo” (verso 12) graças à ligadura da nota mi semínima a uma mi mínima (
) de quatro
tempos ( ), em clave de sol ( ), até a próxima nota ré ( ) onde cai a palavra “não” (ver
Apêndice I). Todavia, considerando o fato de que a sílaba “-po” é átona, a cantabilidade não
foi comprometida.
Pode-se notar, portanto, que a mesma quantidade de sílabas poéticas e ênfases em
palavras específicas conforme a letra original é o que garante cantabilidade à tradução. Carlos
Rennó, por exemplo, destaca como lidou com essa questão em suas traduções para o
português de várias canções de Cole Porter:
Quanto à cantabilidade, pretendi fazer com que as palavras, vertidas, soassem
naturais ao serem cantadas, justapondo-se de tal modo às melodias que não lhes
afetassem o caráter. Ou seja, as letras deveriam se colocar exatamente sobre as
frases melódicas originais, respeitando suas marcas acentuais, suas divisões e seu
número de notas, e assim se adaptar a uma perfeita e espontânea interpretação, não
se prestando a modificações das linhas dos cantos (RENNÓ, 1991, p. 42).
Ademais, Low (2005, p. 192) compara a questão da cantabilidade com traduções
feitas para o teatro, as quais demandam “efetividade no palco” e explica que, da mesma forma
que a tradução teatral requer palavras que possam ser representadas como parte de um todo, a
tradução de canção também requer “performabilidade”, isto é, a possibilidade de ser bem
representada/cantada pelo artista. Bem como destaca Fox-Strangways (1921, p. 223), pode-se
até alterar o comprimento das notas originais desde que não se destrua a formulação musical.
Porém, fora isso, salienta o autor, não se deve jamais por o cantor em dificuldades quanto à
acentuação nas notas ou questões vocais.
Na tradução de The Look of Love houve o uso de elisões, através de hiatos e colisões,
bem como o uso de contrações, através de sinéreses. Entre os itens mencionados, as colisões
são as únicas que representaram dificuldades para performance vocal. O caso em questão é
que o som sibilante /s/ colidiu em “palavraS Só” (verso 04) e “beijoS Selaremos” (verso 15),
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podendo dificultar a dicção se o intérprete optar por pronunciar separadamente tais
consonantes na tentativa de evitar que o substantivo pareça estar no singular (palavra só /
beijo selaremos). Os hiatos poéticos, no entanto, favorecem a cantabilidade, por exemplo,
o_amor, de_estar, e_o, este_é_o, nosso_amor, te_amo. Da mesma forma, as sinéreses em
“'spe-rei” (cantada como se fosse dissílaba) e “sur-preen-der” (cantada como se fosse
trissílaba) são necessárias para que haja cantabilidade.
A manutenção do ritmo e da cantabilidade, em harmonia com os outros aspectos aqui
discutidos (sentido, naturalidade, rima e sonoridade), garantem o que muitos autores
defendem em relação à tradução de canção: soar tão bem ao ouvinte alvo a ponto de não
deixar transparecer o fato de que se trata de uma tradução (e.g. Fox-Strangways, 1921, p. 223;
Dyer-Bennet apud Emmons & Sonntag, 1979, p. 292; Drinker, 1950, p. 226; Peter Low,
2003).
5. Considerações finais
Este trabalho teve como objetivo realizar uma tradução comentada da canção The
Look of Love, acompanhada de uma gravação em áudio. O processo tradutório envolveu
questões pertinentes à tradução de canção, como cantabilidade, ritmo, rima, sonoridade,
sentido e naturalidade. Pôde-se observar que o tradutor trabalha subordinado à melodia préexistente e precisa conciliar essas questões para obter um produto final satisfatório, de acordo
com sua proposta de tradução.
Vale ressaltar que os efeitos de sonoridade buscados aqui são detalhes de sofisticação
que podem ser facilmente descartados em favor dos outros aspectos envolvidos. Bem como
sublinha Fox-Strangways (1921, p. 222), as pessoas que apreciam determinada canção a tal
ponto de notar seus efeitos de sonoridade jamais ficariam satisfeitas com qualquer tradução;
enquanto aquelas que são indiferentes a tais efeitos sequer notariam esses primores na versão
traduzida.
Notou-se que a prática da tradução de canção exige do tradutor não apenas
conhecimento linguístico, mas também musical, considerando que o gênero canção é a
combinação da linguagem verbal (letra) com a linguagem musical (melodia). Além disso, seu
caráter multidisciplinar pode levar o tradutor a áreas como a tradução de canções em filmes e
animações, musicais, óperas, entre outros.
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A tradução proposta aqui não está livre de críticas e sugestões de melhorias. As
possibilidades e combinações lexicais são abundantes e, a meu ver, na qualidade de “obra”, tal
como a artística ou a literária, a tradução pode ser sempre considerada inacabada.
Referências Bibliográficas
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RENNÓ, Carlos. Cole Porter - Canções, Versões. São Paulo: Paulicéia, 1991. 183p.
15
APÊNDICE I: THE LOOK OF LOVE / O AMOR EM TEU OLHAR
Música: Burt Bacharach & Letra: Hal David / Tradução: Natanael F. França Rocha
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i
Currículo Lattes: <http://lattes.cnpq.br/1334310722020905>
Prosódia musical é o ajuste das palavras à música e vice-versa, a fim de que o encadeamento e a sucessão das
sílabas fortes e fracas coincidam, respectivamente, com os tempos fortes e fracos dos compassos. Fonte: Dicionário
Aurélio Eletrônico Século XXI. Versão 3.0, Lexikon Informática Ltda. Editora Nova Fronteira, 1999.
iii
Aqui, entende-se por sonoridade o uso, na tradução, de palavras com sons vocálicos e/ou consonantais
foneticamente parecidos ou semelhantes aos usados na canção original, provavelmente para gerar no ouvinte alvo
um efeito de reconhecimento e identificação. Por exemplo, na canção de Laura Pausini Se Fué, tradução de Non C’è,
o trecho original "Non c'è la tua bocca di fragola" se verteu para "Se fué su sonrisa de fábula". O que se perde em
sentido, se ganha em sonoridade, por assim dizer.
iv
Gummibär é um personagem animado infantil mundialmente conhecido, principalmente como Gummy Bear, com
três álbuns lançados e diversos singles. O primeiro álbum foi “I Am Your Gummy Bear” (2007) e o single mais
recente é “Gummy Twist” (2013). As canções são traduzidas e distribuídas em diversos países em mais de dez
idiomas. Site Oficial: <http://www.thegummybear.com>.
v
“The need for flexibility is seldom doubted in the matter of sense. Not only do all song-translators make use of
standard „creative tools‟ of good wordsmiths, such as transposition, modulation, paraphrase and compensation, but
almost all make semantic compromises that would be unacceptable in, say, a scientific translation.”
vi
Áudio da canção original The Look of Love disponível em: <http://youtu.be/MPkp-pCJYCc>.
vii
“Easily one of the slowest-tempo hits of the era, the song is loaded with sultry minor-seventh and major-seventh
chord changes. These were indeed a Bacharach trademark, but the way that Bacharach made the song move forward
was what made it like no other tune he had constructed. Not to be outdone, Hal David created a set of lyrics that
epitomized longing and, yes, lust.”
viii
Fonte: GRAMMY Hall Of Fame (2014). Disponível em: <http://www.grammy.org/recording-academy/
awards/hall-of-fame#l> Acesso em 10 jun. 2014.
ix
A intérprete é Claudia Lopez, tecladista e vocalista da Banda Trama. A banda surgiu em São Paulo em 1987,
criada por Lúcio de Freitas (bateria, flauta transversal e violão) e Claudia Lopez (voz e teclado), e inclui também os
músicos Claudio Rocha (baixo) e Jorge Ervolini (guitarra e violão). Tocam estilos variados e são contratados para se
apresentarem em eventos diversos. Site Oficial: <http://www.bandatrama.com.br>.
ii
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