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Num continente como África, a arte é necessariamente política
Terça, 10 Março 2015
O Coleccionador congolês de arte contemporânea, Sindika Dokolo, que esteve no Porto para
inaugurar a exposição “You Love Me, You Love Me Not”, pede aos artistas africanos que
critiquem e “mexam onde dói”, mas sem assumirem a perspectiva dos que olham para África
de fora.
Sindika Dokolo: “A minha identidade é muito complexa e plural, mas ao mesmo tempo é
claramente africana”.
Sindika Dokolo, um dos maiores coleccionadores africanos de arte contemporânea, esteve no
Porto para acompanhar a inauguração, na Galeria Municipal Almeida Garrett, de “You Love
Me, You Love Me Not”, a exposição que os curadores Suzana Sousa e Bruno Leitão
organizaram a partir do vasto acervo de obras reunido por este congolês-dinamarquêsangolano.
Casado com Isabel dos Santos, que esteve presente na inauguração, Dokolo é também um
assumido homem de negócios, mas a sua paixão é mesmo a arte contemporânea. O pai, um
banqueiro e empresário congolês, coleccionava arte tribal africana, e a mãe, dinamarquesa, fêlo correr os museus da Europa quando era criança. Uma peça de Jean-Michel Basquiat fez o
resto. Criou a Fundação Sindika Dokolo, que promove a Trienal de Luanda, cidade onde vive e
para a qual sonha com um grande museu de arte contemporânea.
Falou com o “PÚBLICO” sobre “You Love Me, You Love Me Not” – centrada na arte
contemporânea africana, a exposição que reúne meia centena de artistas (nem todos
africanos) e inclui nomes como Nástio Mosquito, Samuel Fosso, Cameron Platter, Marlene
Dumas, Nick Cave ou Kara Walker – e profetizou que este é apenas “o início de uma história”
entre a sua fundação e o Porto, que lhe atribuiu a Medalha de Ouro da cidade. Dokolo, que
nasceu em 1972, descreve ainda a sua visão de como a arte pode ao mesmo tempo
cartografar e promover a evolução das sociedades africanas. E não exclui que a actual
efervescência artística no continente venha a ser vista como a germinação de uma
“Renascença africana”.
- Esteve na quinta-feira à noite na inauguração da exposição “You Love Me You Love Me
Not”. O interesse que despertou correspondeu às expectativas que tinha?
- Foi muito além das minhas expectativas. Para lá da generosidade do acolhimento que
recebemos no Porto – sinto-me profundamente honrado por me terem dado a Medalha de Ouro
da cidade –, não fazia ideia do interesse que esta janela aberta sobre a arte contemporânea
angolana e africana ia provocar. Tanto eu como o pessoal da Fundação [Sindika Dokolo] e os
próprios artistas ficámos muito sensibilizados com o entusiasmo do público.
- Enquanto coleccionador, presume-se que compra de acordo com um gosto pessoal.
Como é que vê esta escolha que os curadores da exposição fizeram a partir da sua
própria escolha?
- Achei muito engraçado. Foi uma experiência diferente, porque geralmente os processos
curatoriais dos nossos projectos são feitos por nós, pelo Simon Djami ou pelo Fernando Alvim
[vice-presidente da Fundação Sindika Dokolo], que é artista mas também curador. Como
escolhi pessoalmente cada uma destas peças, e escolhi-as por paixão, foi muito interessante
ouvir os curadores explicar a narrativa da exposição. É um pouco como se as minhas palavras
fossem reorganizadas para contar já não a minha história, mas a deles.
- Tem insistido na ideia de que é mais um coleccionador de arte contemporânea em
África do que um coleccionador de arte africana contemporânea. Mas também diz fazer
questão de que a sua colecção tenha um ponto de vista africano. Pode caracterizar um
pouco esse ponto de vista?
- Cresci na Europa e tive sempre o sentimento de ser o outro, o estrangeiro, e fui muitas vezes
vítima de uma certa apreciação que as pessoas faziam do meu contexto, das minhas
referências culturais, da minha maneira de ver o mundo. O meu trabalho com a arte foi também
uma afirmação, uma maneira de dizer: “Ao contrário do que pensam, eu não sou o que vocês
acham que eu sou”. Do mesmo modo, um dos objectivos de uma exposição como esta é não
tanto dizer o que é a contemporaneidade africana, mas destruir preconceitos, uma certa ideia
do que são os africanos, mesmo quando essas ideias resultam de boas vontades e de afectos.
E depois lançar sobre o mundo um olhar pertinente, contemporâneo, e que tenha a ver com
questões universais. Há uma obra do Samuel Fosse nesta exposição que sublinha com muita
elegância e humor o modo como o poder cultural e económico está a transferir-se do Ocidente
para o Oriente. O centro de gravidade mundial está de facto a deslocar-se para a China. Ora,
nós em África temos um conhecimento da China, de como ela funciona, muito mais completo
do que o da Europa. Convivemos com os chineses, a China é para nós uma realidade próxima.
Este é um bom exemplo de coisas que podemos afirmar sobre nós e que não são óbvias, que
surpreendem.
- Interessa-lhe uma arte que de algum modo ajude a ver a realidade?
- Queremos que a arte trate temas da actualidade, mas também nos interessa redefinir o modo
como ela aborda as questões da sociedade. No Ocidente, a arte vive muitas vezes no seu
mundo um pouco isolado do resto da vida. Em África temos a sorte de ter uma arte com muito
maior impacto na vida social. Foi o caso, por exemplo, da África do Sul nos anos 90, com a
nação arco-íris, ou em Angola neste período do final da guerra e do pós-guerra. A expressão
artística entre nós é muito mais do que só uma leitura estética, entra no debate cultural, social
e político, e isso torna-a mais relevante e mais interessante. Há três aspectos que tentamos
explicar a quem não conhece o nosso trabalho. 1) Não sou quem tu pensas que eu sou; 2) Em
questões universais tenho um ponto de vista que merece ser considerado tão pertinente como
qualquer outro; 3) Nas questões que têm a ver com o meu continente, e para as quais o resto
do mundo olha de fora – o estatuto da mulher nos países africanos muçulmanos, a questão da
democracia, a questão da sociedade civil, os equilíbrios geopolíticos, etc. –, temos a ambição
de retomar uma certa forma de autoridade, de dizer: “Muito bem, ter o seu ponto de vista é
interessante, mas eu, que estou mais contextualizado, tenho um ponto de vista mais
pertinente.” É preciso inverter essa perversão que leva a nossa opinião pública a ler os seus
próprios contextos através dos olhos de pessoas completamente alheias a esses contextos. O
que dizemos aos artistas é: “Critiquem, critiquem, mexam onde dói, mas por favor façam-no
com o vosso próprio ponto de vista.”
- A sua colecção já foi mostrada em Angola?
- Para mim, é um princípio: não podemos ser mais fortes fora do que dentro. A colecção faz
sentido no seu contexto africano, e é ele que lhe dá relevância. Foi mostrada nos projectos que
antecederam a primeira Trienal de Luanda, em 2007. E muitos artistas que estão nesta
exposição e que têm hoje grande reconhecimento começaram a trabalhar connosco,
emergiram ao mesmo tempo que nós, foi um processo feito em conjunto. Lembro-me de uma
performance que fizemos com o Nástio Mosquito, em 2003 ou 2004, que metia um Cristo
cercado de tinta preta e com coisas um pouco obscenas escritas à volta, e de ter pensado: isto
não será demasiado difícil para um público que nunca foi confrontado com propostas tão
contemporâneas? A verdade é que sucedeu o contrário. As pessoas envolveram-se com uma
grande naturalidade. Acho que o facto de não existir uma tradição de exposições em Angola
tornou isso menos complicado. Faz lembrar o que se passou nas telecomunicações, no final
dos anos 90, quando se lançou o projecto da Unitel: os engenheiros angolanos debatiam se
não seria necessário, num país completamente destruído pela guerra, ter primeiro linhas fixas,
antes de se avançar para os telemóveis. O que se concluiu é que quem já estava habituado à
rede fixa tinha muito mais dificuldade em tirar partido da nova tecnologia. Nós fizemos o
mesmo na arte: começámos com obras difíceis.
- É um coleccionador, quer abrir um museu em Luanda para a sua colecção, um centro
de arte contemporânea, e as suas ambições de mudar a sociedade não destoariam num
responsável político. Como é que lida com essa sobreposição de papéis com lógicas
diversas?
- É preciso esclarecer que sou apenas um observador, um comentador, mas com uma
conjugação de factores que dá mais força à minha voz. Não faço política, mas tenho um
posicionamento que privilegia a ética, a moral e a política. Num continente como África, que
precisa de recuperar a sua autoridade, a arte é necessariamente política. Não posso dizer:
“Vou-vos mostrar peças bonitas” e visitar convosco esta exposição como se fosse uma
exposição de egiptologia. Estas obras não são só uma proposta estética, vêm de um contexto
tenso, e intenso… E necessariamente político.
- Na sua relação com as grandes instituições do mundo da arte, estabeleceu a regra de
que só empresta obras para exposições na condição de que quem as solicita leve a
exposição em causa a um país africano, seja ele qual for. Esse princípio da
reciprocidade, como lhe chama, já teve resultados?
- Teve no âmbito da Trienal de Luanda, mas não escondo que é das áreas em que temos tido
menos resultados. O problema é que, tirando a África do Sul, não há infra-estruturas, não
existem museus em África com capacidade para acolher grandes exposições. Mas fiz dessa
questão um cavalo de batalha porque era fundamental colocar no centro do relacionamento
com as instituições do mundo da arte esse princípio da consideração do outro.
- E parece-lhe mais urgente mostrar aos africanos a arte africana ou dar-lhes a ver a arte
ocidental?
- As duas coisas são importantíssimas, mas sem infra-estruturas é mais fácil promover a
exposição de artistas africanos. E essa é também uma responsabilidade nossa. Não posso
responsabilizar os outros quando eu, que tenho a possibilidade de mudar as coisas no meu
país, não o faço.
- Quando fala do seu país está a falar de Angola?
- Falo como se África fosse um país. Nasci no Congo, cresci em França, vivo em Angola e a
minha mãe é dinamarquesa. A minha identidade é muito complexa e plural, mas ao mesmo
tempo é claramente africana. Na geração dos nossos pais, as coisas eram mais claras, porque
a injustiça do sistema racista era tão óbvia que se tornava fácil não o aceitar. Hoje, os campos
de batalha são mais subtis e é difícil ao jovem africano encontrar uma actividade social, cultural
ou política em que sinta estar a fazer algo de útil, para lá do seu interesse próprio.
- Essa sua identidade plural reflecte-se na própria colecção?
- Acho que seria preciso uma sessão de psicanálise para responder a isso, mas imagino que
sim.
- Além do gosto pessoal, que critérios orientam a colecção? Há nela, por exemplo,
núcleos temáticos ou outros?
- Temáticos, não há. E o primeiro critério é que não compro nada que não tenha validado do
ponto de vista estético e intelectual. Ou seja, de que não gosto. Mas o meu sentido de
responsabilidade obriga-me a pensar que tenho de estruturar a Fundação de modo a que esta
tenha uma solidez que ultrapasse as nossas individualidades. Depois da nossa morte, é
importante que o que deixarmos seja inteligível e acessível. Estamos a tentar construir a
colecção em torno de vários pilares: Angola, que tem uma grande visibilidade histórica nesta
exposição, é um deles. Está aqui o Vitreix, está o mestre [Paulo] Kapela, e ando a reunir uma
enorme colecção de obras de Fernando Alvim, que continua a trabalhar como artista de forma
secreta. Outro objectivo é tentar dar testemunho fiel de um momento, de um estado de espírito,
de uma questão relevante num determinado período de um país, de uma região ou de todo o
continente africano. Por exemplo, a questão de como os africanos vivem e aceitam, ou
rejeitam, a homossexualidade, ou a situação das mulheres nos países muçulmanos. Quero que
a colecção seja também uma cartografia da evolução da sociedade africana.
- Voltando atrás, como é que se desenvolveu o seu gosto pela arte contemporânea?
- Foi o resultado de uma exposição muito precoce ao mundo da arte. Em criança, a minha mãe
levava-me aos museus todos, e eu, claro, queria fugir, mas ela intuía que era importante
plantar essas sementes. E na adolescência, quando já me tornara um terreno fértil, a grande
revelação foi a descoberta de Jean-Michel Basquiat. Vi uma tela dele, Pharynx, que resumia
completamente as coisas que eu sentia, e que tinham a ver com identidade, energia, revolta,
sexualidade, coisas muito íntimas que estavam ali reunidas numa forma de expressão límpida.
Foi uma epifania. Essa obra esteve depois exposta no pavilhão angolano da Bienal de Veneza
de 2007.
- E na última edição (2013), o pavilhão angolano venceu o Leão de Ouro. Foi um
momento decisivo de afirmação internacional da arte angolana?
- Foi muito importante, do ponto de vista histórico, esse reconhecimento da qualidade e
relevância das propostas dos artistas africanos. Mas claro que a corrida só começa agora. O
que posso dizer é que o novo pavilhão de Angola vai ser realmente angolano, realmente
africano e realmente universal.
- O seu entusiasmo pela vitalidade da produção artística contemporânea em África já o
levou a falar de uma “Renascença africana”. É uma maneira de dizer, ou é a sério?
- É preciso mais tempo e distância para se perceber o que é um movimento e o que é apenas
um momento. Mas essa aceleração da história que estamos a viver, a invasão e omnipresença
de novas maneiras de comunicar, com a Internet, é como um precipitado químico, do qual
ainda não sabemos que reacção vai desencadear. Mas a probabilidade é que seja explosiva.
São ingredientes muito potentes que estão a ser colocados num espaço muito confinado e que
vão produzir com certeza coisas completamente diferentes das que existem.
- O vereador da Cultura da Câmara do Porto sugeriu que a cidade poderia vir a acolher
um pequeno núcleo da sua colecção. O projecto tem hipóteses reais de se vir a
concretizar?
- Como disse ao presidente da Câmara, para nós o mais importante é o que virá daqui para
frente. E há várias possibilidades muito concretas e imediatas. Acho que isto é o início de uma
história entre nós e a cidade do Porto.
- É frequentemente criticado pela sua proximidade com o Governo de Angola e com o
Presidente José Eduardo dos Santos, de quem é genro. Mesmo a medalha que lhe foi
atribuída no Porto criou, como sabe, alguma polémica. Estas críticas são um obstáculo
ao trabalho da fundação? E são justas?
- Dou muita importância à liberdade de expressão. E não conseguiria ter a relação que tenho
com os artistas, honesta e de amizade, se tentasse orientar a sua criatividade. Acho que o
debate de opiniões contrárias é a base da vida democrática, e é normal que as pessoas
tenham opiniões diversas. Aceito a liberdade de crítica, mas acho que alguns argumentos são
falaciosos. Em geral, esses argumentos têm a ver com a percepção de Angola como um país
com problemas de corrupção, mas acho que são manipulativos.
- Independentemente do juízo que se faça sobre o papel da elite que tem governado
Angola, os números relativos à desigualdade social não são factuais?
- É um país pobre destruído pela guerra. Tem desigualdades, mas não sei o que é que isso
prova. Com apenas dez anos de paz, como é que isso serve de base para a conclusão de que
o problema de África são as elites africanas, que seriam um grupinho de pessoas que só
querem destruir os seus países? Acho que essa é uma concepção racista. Há erros
estratégicos, há falta de boa gestão, sim. Também há países europeus em crise. Eu sou um
homem de negócios e vejo o mundo sem complexos. Quero fazer negócios na China, como
quero fazer negócios em Portugal.