Revista Acadêmica 4 - FAC – Faculdade Caraguá

Transcrição

Revista Acadêmica 4 - FAC – Faculdade Caraguá
2
Expediente
Faculdades São Sebastião
Rua Agripino José do Nascimento, 177
Vila Amélia – São Sebastião – SP
CEP11600-00
www.unibrsaoseba.com.br
Tel. (12) 3893-3100
Mantenedor
Profa. Maria Amélia Governo Merlin
Diretor Geral
Prof. Fábio Merlin
Diretor Acadêmico
Prof. Ms. Leandro José Giovanni Boaretto
Revista Acadêmica
www.unibrsaoseba.com.br
ISNN 2175-4659
A Revista Acadêmica é uma publicação semestral, de caráter multidisciplinar.
Diretora:
Profa. Dra. Eliane de Alcântara Teixeira
Conselho Editorial
Prof. Dr. Álvaro Cardoso Gomes
Prof. Ms. Leandro José Giovanni Boaretto
Prof. Dr. Silas D’Ávila Silva
3
Apresentação
Como toda Instituição de Ensino que se preze, as Faculdades São Sebastião,
desde a sua fundação, procuraram acentuar seu compromisso com a educação superior,
com a divulgação da cultura e com a produção científica. Desse modo, a criação de um
órgão, que divulgasse trabalhos acadêmicos de seus docentes (e de docentes de outras
instituições nacionais e estrangeiras), veio se mostrando como algo imperioso, o que fez
que seus gestores investissem na criação de uma publicação on-line – a Revista
Acadêmica –, cujo fim seria o de apresentar o que de mais atual houvesse no plano da
pesquisa e da produção científica. Vem daí que a revista tenha sido planejada com um
caráter propositadamente multidisciplinar, reunindo, em todas as suas edições desde sua
inauguração, artigos de diferentes áreas.
São Sebastião, outono de 2010.
Profª. Drª. Eliane de Alcântara Teixeira
Diretora
4
Sumário
ARTIGOS
1. Uso das tecnologias na Educação básica: uma pesquisa com professores, p. 6
Paulo Henrique ANSALDI
Laila Abi CHEDID
Jorge COVAC
Kátia Cilene Melo FRANCO
Edilson Geraldo de ALMEIDA
Igor LAZANEO
Sibéria Regina de CARVALHO
2. A representação da fala em literatura como processo mimético, p. 31
Milton A. AZEVEDO
3. A comunicação no circo, p. 49
Luciano Draetta FERREIRA
4. Considerações sobre a Separação de Poderes no estado Brasileiro, p. 66
Thaís MANTOVANI
5. A perícia contábil como importante instrumento contra o abuso nos contratos
bancários p. 91
Marcelo Luis de OLIVEIRA
6. O milagre medieval: Gil Vicente e William Butler Yeats, p. 105
Eliane de Alcântara TEIXEIRA
NORMAS EDITORIAIS, p. 124
5
ARTIGOS
6
O USO DAS TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO BÁSICA:
UMA PESQUISA COM PROFESSORES
Paulo Henrique ANSALDI
Laila Abi CHEDID
Jorge COVAC
Kátia Cilene Melo FRANCO
Edilson Geraldo de ALMEIDA
Igor LAZANEO
Sibéria Regina de CARVALHO1
Resumo: Este capítulo foi adaptado de uma pesquisa realizada pelos alunos do curso de
Mestrado em Educação, Linguagens e Tecnologias da Universidade Braz Cubas, dentro da
disciplina Tecnologias Aplicadas à Educação – no 2º semestre de 2010.Os responsáveis pela
pesquisa foram: Paulo Henrique Ansaldi, Laila Abi Chedid, Jorge Covac, Kátia Cilene Melo
Franco, Edilson Geraldo de Almeida, Igor Lazaneo, Sibéria Regina de Carvalho e a Doutora
em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, coordenadora do Curso de Mestrado em
Educação, Linguagens e Tecnologias da UBC: Luci Mendes Bonini, orientou a pesquisa.
A pesquisa iniciou-se a partir da necessidade, que se tornou evidente de
investigar a situação e problemática que envolvia as discussões sobre o uso das
tecnologias nas escolas de Educação básica. Algumas das indagações do grupo eram:
Os professores sabem o que significa a palavra tecnologia? Os professores utilizam-se
de tecnologias dentro da sala de aula? Se utilizarem, como o fazem?
Para esta pesquisa, cujo objetivo era identificar e avaliar o uso das tecnologias
nas escolas de Educação Básica, entregamos 268 questionários para professores de
algumas escolas municipais, estaduais e particulares das seguintes cidades: São José dos
Campos, Caraguatatuba, Poá, Ferraz de Vasconcelos, Suzano, Rio Grande da Serra e
Itaquaquecetuba, e escolha das cidades deu-se em virtude de os pesquisadores serem
professores em escolas nestes municípios. Cada pesquisador levou o número de
questionários suficiente para as escolas onde trabalhavam, distribuíram para os colegas
e aguardaram o retorno dentro do prazo de duas semanas. Retornaram 143 questionários
(anexo 5 ), dos 268 entregues originalmente (percentual de 53, 35% de respostas).
1
Alunos de Mestrado em Educação, Linguagens e Tecnologias da Universidade Braz Cubas
7
A pesquisa foi aplicada a professores de escolas municipais, estaduais e particulares
dos municípios de Poá, Ferraz de Vasconcelos, Suzano, Itaquaquecetuba, Rio Grande
da Serra, São José dos Campos, Caraguatatuba e São Paulo.
Quanto ao sexo 26,17% dos professores são homens e 73,83% são mulheres.
Nesta pesquisa o número de mulheres no magistério é mais significativo que o número
de homens, talvez até pela condição histórica determinante na Educação Brasileira,
onde ser professor parece ser uma profissão eminentemente feminina.
Pesquisamos também a idade destes professores. O fator idade, acreditamos,
inicialmente, que seria um bom indicador do uso de tecnologia. Imaginamos que quanto
mais jovem fosse o professor, mais acostumado ele seria à tecnologia. Com relação ao
uso das tecnologias a pesquisa mostra os seguintes dados:
Professores do sexo masculino:
18 a 20 anos
2,56%
21 a 25 anos
7,69%
26 a 30 anos
17,09%
31 a 40 anos
40,17%
mais de 40 anos 32,49%
Na porcentagem supramencionada notamos que os professores com mais de 31
anos são 72,66% e os com 30 anos ou menos são 27,34%. Este resultado pode ser um
fator indicativo de que o mercado de trabalho está cada vez mais competitivo e há muita
dificuldade para se conseguir emprego melhor, logo os professores estão ficando mais
tempo nas escolas evitando mudança de uma profissão e melhores salários.
Quanto ao ano de conclusão notamos que os professores formados entre 1990 e
2009 são 63,30% e os formados de 1960 a 1989 são 36,70%. (quadro 1)
Dos professores do sexo masculino 51,14% utilizam tecnologias e 42,86% não
utilizam. No que diz respeito às professoras 81,01% utilizam tecnologias em sala de
aula e 19,99% não utilizam.
Percebemos que as mulheres são mais familiarizadas com as tecnologias,
acreditamos que com a ida das mulheres para o mercado de trabalho sua adaptação com
os avanços tecnológicos dentro de casa foi muito rápida, como micro-ondas, vídeo
cassete, secretárias eletrônicas, forno elétrico etc... capacitaram as mulheres a conviver
com a tecnologia de uma forma natural.
8
O professor e o conceito de tecnologia
A humanidade testemunha transformações radicais, numa velocidade cada vez
mais crescente, sendo assim, a sociedade também é influenciada a mudar para
acompanhar e se adaptar às novas realidades.
A escola, no entanto, parece resistir a essas transformações. Segundo Alves &
Pretto, a escola está se transformando num lugar enfadonho e desprazeroso, valorizando
apenas as aprendizagens realizadas dentro da escola, deixando de lado a aprendizagem
assistemática, aquela construída no cotidiano de seus alunos. Alves & Pretto afirmam
que a presença intensa de instrumentos tecnológicos no campo educacional possibilita
um novo pensar sobre o conhecimento tornando a aprendizagem mais eficaz, pois o
aluno aprenderia de forma prazerosa e lúdica.
Para melhor compreender o que é tecnologia Lion assinala alguns mitos e
delineia realidades e utopias e faz diferentes tipos de análises. Entre os mitos, vamos
encontrar a supremacia do valor dos produtos acima dos processos, separando
tecnologia de técnica, a idéia de que somente para incorporar novos meios, produções,
ferramentas e instrumentos nas escolas, criamos inovações pedagógicas, a ilusão da
tecnologia como mecanismo de controle social.
Na produção industrial moderna, a importância é dada ao produto e não ao
produtor, se reduzindo a noção de técnica aos instrumentos utilizados e, entendendo por
tecnologia, o uso do conhecimento científico para especificar modos de fazer as coisas
de maneira reproduzível.
O homem é um ser tecnológico em contínua relação com a natureza. O homem
moderno só pensa em fabricar, construir ferramentas, máquinas e conquistar a natureza
evoluindo, de tal forma, que não questiona os produtos criados, se contribui, ou não,
para uma melhora real, sendo este o mito da máquina, a doutrina do progresso perpétuo.
Criar sempre para o progresso, adotar sempre o novo, o último e desprezar o velho.
No entanto, em matéria de Educação, a tecnologia foi alterada pelo ingresso de
toda uma parafernália eletrônica a qual o professor necessita dominar para impregnar de
interesse o seu aluno.
9
A tecnologia na sala de aula
Para uma melhor compreensão antes precisamos definir o que é Tecnologia
Educacional, para posteriormente analisarmos quais as tecnologias mais utilizadas em
sala de aula pelo professor nos dias de hoje.
Segundo Tajra :
Tecnologia educacional, não é uma ciência, mas uma disciplina
orientada para a prática controlável e pelo método científico, a
qual recebe contribuições das teorias de psicologias da
aprendizagem, das teorias da comunicação e da teoria de sistemas.
A utilização desses recursos baseia-se nas formas de
aprendizagens, nas fases de desenvolvimento infantil, nos
diversos tipos de meios de comunicação e na integração de todos
esses componentes de forma conjunta e interdependente por meio
de atividades educacionais e sociais.
e
Quando utilizamos o termo tecnologia educacional, os educadores
consideram como um paradigma do futuro, ma a tecnologia
educacional esta relacionada aos antigos instrumentos utilizados
no processo ensino-aprendizagem. O giz, a lousa, o retroprojetor,
o vídeo, a televisão, o jornal impresso, um aparelho de som, um
gravador de fitas cassetes e de vídeo, o rádio, o livro e o
computador são todos elementos instrumentais componentes da
tecnologia educacional.
Com o intuito de percebermos qual a compreensão do professor a respeito da
tecnologia que ele mais utiliza em sala de aula, apresentamos a esses professores duas
perguntas: Quais as tecnologias que você mais utiliza em sala de aula? Nosso objetivo
inicial através desta pergunta era em detectar qual seu entendimento sobre a tecnologia,
é que tipo de tecnologia ele mais utiliza durante suas aulas. Os resultados não nos
provocaram surpresas, pois muitos professores relacionam tecnologia equipamentos que
se liguem à energia elétrica, desconhecendo o giz, a lousa, régua, revista, jornais e livros
como tecnologias educacionais.
Na outra pergunta gostaríamos de saber a freqüência do uso do material de
apoio, onde fornecemos uma lista de materiais, tais como: livro didático; lousa e giz;
mural; jornais e revistas; vídeo cassete; programas de TV; computador, retroprojetor;
data-show; episcópio; projetor de slide; aparelho de som; material de fotocópia;
mimeógrafo; régua compasso, paradidáticos; gravuras; cartazes publicitários; bolas;
10
tinta; sólidos geométricos; CD-rom. Foi pedido para os professores assinalarem a
freqüência do uso desses materiais de apoio, diariamente, às vezes ou nunca (gráfico 1).
Destes dados ainda podemos apontar gráficos isolados para melhor compreensão
deste professor que vive mergulhado num mar de indefinições com relação ao uso
destas tecnologias (gráfico 2).
Percebemos que essa pergunta pode ter influenciado a resposta da pergunta
anterior, pois, durante a aplicação do questionário, foi observado que muitos professores
olhavam a lista de material para então responder.
Frequência de Uso das Tecnologias em Educação
140
120
Quant. Respostas
100
80
60
40
20
0
1
2
3
4
5
6
7
8
9
10 11 12 13 14 15 16 17 18 19 20 21 22
diariamente
Às vezes
Gráfico 1
nunca
11
Uso do Livro Didático
nunca
Às Vezes
diariamente
nunca
5%
diariamente
45%
Às Vezes
50%
Gráfico 2
Observamos, também, após tabulação das respostas, que ainda prevalecem o uso
dos matérias de apoio em sala de aula diariamente, tais como: lousa e giz; livro didático;
gravuras; mimeógrafo; material de fotocópia. Basta observarmos os gráficos que
deixam bem claro que a maioria dos nossos professores ainda utiliza esses materiais
durante sua aula.
Com relação à freqüência às vezes de acordo com os gráficos, os mais utilizados
em sala de aula são: vídeo-cassete; jornais e revistas; paradidáticos; mural; material
fotocópia; aparelho de som; cartazes publicitários; gravuras; régua e compasso;
programa de TV; mimeógrafos; livros didáticos. Notamos aqui alguns materiais
diferentes fazendo parte da aula do professor.
Por muito tempo, giz, lousa, livros, gravuras, mimeógrafos, cartazes e murais,
foram os primeiros recursos tecnológicos educacionais e ainda hoje continuam a fazer
parte, por mais que novos avanços de tecnologia possam existir.
Podemos concluir que, mesmo que as novas tecnologias educacionais possam
ser um poderoso instrumento de melhoria da educação, ou da qualidade da aula, é
possível que muitas escolas, mesmo com os mais modernos equipamentos continuem
praticando uma pedagogia “antiga” (tabela 1).
O livro didático nem sempre é o único apoio do professor como podemos ver no
resultado acima, mas ainda é um instrumento bastante utilizado, mesmo em escolas
urbanas, como as que foram pesquisadas, diferentemente da lousa e do giz, (gráfico 3).
A inserção de novas linguagens em sala de aula tem sido uma preocupação
constante não só dos teóricos da educação como também das novas diretrizes
12
curriculares nacionais, mesmo assim, o uso dessas linguagens na escola, principalmente
quando elas são veiculadas pelos jornais e pelas revistas, é restrito como veremos no
gráfico 4, e da televisão no gráfico 5.
As principais dificuldades que o professor encontra no uso do material de apoio
Notamos que apesar da falta de material ser o principal item apresentado como
dificuldade para ampliar o uso da tecnologia em sala de aula, seguido da disponibilidade
do mesmo, a presença deste material existe nas escolas, entretanto a falta de
capacitação, de tempo e o desconhecimento do uso desta tecnologia conjuntamente
respondem pelo maior obstáculo ao uso deste material.
Nas escolas públicas, a disponibilidade destes recursos existe, verba e material,
entretanto eles não conseguem atingir a sala de aula, ou porque o professor se confessa
despreparado para manipular este material, ou ainda, porque a direção restringe o uso
em função de perceber nesta tecnologia um bem imóvel da Escola, cujos danos, se
houve, devem ser justificados junto Diretoria Regional de Ensino.
Tabela 1 sobre a utilização de tecnologias pelos professores em Sala de Aula
Materiais de
Apoio
Livro Didático
Lousa e Giz
Mural
Jornais e revistas
Vudeocassete
Programa de TV
Computador
Retro-projetor
Data-Show
Episcópio
Projetor de Slide
Aparelho de Som
Mar. Fotocop
Mimeógrafo
Régua e Compasso
Paradidático
Gravuras
Cartazes Publicitário
Bolas
Tinta
Sólidos Geométricos
CD –ROM
diariamente
64
114
6
10
1
5
3
1
0
0
0
7
18
20
8
16
25
4
6
1
0
2
45%
79%
4%
7%
1%
3%
2%
1%
0%
0%
0%
5%
13%
14%
6%
12%
18%
3%
4%
1%
0%
1%
Às vezes
71
30
105
124
125
82
64
53
14
14
27
103
107
73
84
113
91
83
52
54
61
48
50%
21%
77%
85%
88%
57%
47%
37%
11%
10%
19%
71%
77%
52%
62%
81%
65%
69%
38%
48%
46%
35%
nunca
7
0
26
12
15
57
70
87
119
124
113
34
14
47
44
10
24
34
80
69
73
86
5%
0%
19%
8%
11%
40%
51%
61%
89%
90%
81%
24%
10%
34%
32%
7%
17%
28%
58%
51%
54%
64%
13
Constatamos que os professores utilizam de forma freqüente a programação da
TV em suas aulas (vide gráfico 5). Existe uma necessidade de atualização e discussão
do dia-a-dia do aluno e da sociedade em geral. Já os filmes em vídeo são bastante
utilizados (vide gráfico 1) para ilustrar ou complementar os assuntos ministrados na
aula. Um dos entrevistados revelou uma faceta cruel da má utilização dos vídeos em
sala de aula. Ele afirmou: “(...) quando estou de “saco cheio” passo um filme sobre o
conteúdo”. Isso é preocupante, pois nos dá a impressão de que alguns professores
utilizam o vídeo para “enganar” o aluno. O que estará escondido por trás dessa
afirmação?
Percebemos que o aparelho de som é usado em diversas disciplinas e para os
mais diversos fins (interpretação de música, leitura das letras, dança, teatro,
relaxamento, atividades físicas, entre outras).
Computadores e CD rom são usados pelo professor para tornar a aula mais
dinâmica, ou para enriquecer os conteúdos, ou até, para pesquisas domésticas. O
número de professores que nunca usam o computador ainda é pequeno (70
entrevistados, de um total de 157).
Uso da Lousa e Giz
nunca
0%
Às Vezes
21%
diariamente
79%
nunca
Às Vezes
diariamente
Gráfico 3
14
Uso de Jornais e Revistas
diariamente
7%
nunca
8%
nunca
Às Vezes
diariamente
Às Vezes
85%
Gráfico 4
Uso de Programas de TV
diariamente
3%
nunca
40%
Às Vezes
57%
nunca
Às Vezes
diariamente
Gráfico 5
Jornais, revistas e livros didáticos são utilizados para que os alunos aperfeiçoem
sua interpretação de textos, ortografia, leitura e até mesmo em educação artística, para
representar o que leu através de desenhos, esculturas, ou gravuras, ou por meio de
recortes e colagem. Usado para “economizar o ombro” de alguns professores, o
retroprojetor, ainda é muito solicitado para reproduzir figuras, esquemas de aula, mapas,
obras de arte, fotos, além de agilizar a aula.
15
Quando o professor alega falta de material para preparar sua aula com esses
instrumentos, é importante constatar que aí está verificado um grave problema de
formação deste profissional. Comprovando esta tese, detectamos a diferença entre a
rede pública e a rede privada, neste caso os alunos suplantam muitas vezes o
conhecimento do professor, entretanto o efeito é o mesmo o descompasso entre o agente
receptor- o aluno, e o condutor – o professor.
A falta de capacitação que aparece com destaque em nossa pesquisa é evidente
no uso específico de algumas tecnologias, aonde se confunde computador e Internet
como características do termo “tecnologia em sala de aula, pois lousa, giz, videocassete
e aparelho de som retroprojetor, por exemplo, são de uso cotidiano, e, portanto de fácil
acesso.
O professor que declara que não sabe ligar um aparelho, e esta dado nossa
pesquisa apurou, não saberá desfrutar dos ganhos de material a partir do momento que
saiba ligá-lo, pois a tecnologia é interativa, dinâmica e aplicada, desta forma o problema
não se encerra com uma capacitação técnica, mas com uma capacitação de qualificação
deste profissional com a tecnologia vista como modelo de ampliação do universo
escolar.
Sendo assim parece que o material existe tanto na rede pública como a
particular, que a não utilização está vinculada as dificuldades de acesso, por
interferência da direção e por despreparo dos professores, assim os alunos acabam não
sendo atingidos pelas facilidades que a tecnologia pode exercer na sua aprendizagem
por problemas do material, mas do operador deste material e da estrutura de apoio ao
mesmo.
Tecnologia educacional e crise
Lion afirma que a reconstrução histórica da relação entre escola e tecnologia
demonstrou que foram se incorporando às aulas diferentes produções materiais
impressos, gravador, televisão e vídeo, informática e agora as novas tecnologias da
informação e de comunicação.
Devemos como educadores, pensar na produção escolar como tarefa cotidiana e
aprofundar o estudo e a pesquisa de categorias de interpretação do mundo que nossos
alunos e nos mesmos construímos a partir do consumo e da produção tecnológica.
16
De acordo com Demo, assistimos, hoje, a uma diminuição das responsabilidades
educativas de outros agentes sociais, especialmente da família, e um simultâneo
aumento das exigências com relação ao professor, que além de ensinar
competentemente a disciplina sob sua responsabilidade, deve ser facilitador da
aprendizagem, organizador de atividades coletivas, orientador psicológico, social e
sexual, além de dar atenção especial aos alunos com necessidades especiais, integradas
na sala de aula. E para fazer tudo isso o professor continua tendo a mesma formação,
que não lhe oferece preparo para enfrentar situações conflituosas.
É importante que os professores se assumam como construtores da sua
profissão. Sabemos, no entanto, que não basta mudar o profissional; é preciso mudar
também o contexto no qual ele atua. É certo que as escolas não podem mudar sem o
empenho dos professores, mas estes não podem sem que haja transformação das
instituições em que trabalham.
Segundo Carvalho, o desenvolvimento profissional dos professores tem que
estar articulado com as mudanças na estrutura, com o funcionamento e as formas de
gestão das escolas e de seus respectivos projetos pedagógicos.
No Brasil, um dos países signatários de compromissos internacionais que, em
tese, visam à melhoria da escola pública, a preocupação é muito maior com a melhoria
das estatísticas a qualquer custo, do que com a conquista da qualidade decorrente de
uma política de formação ampla, permanente e contemporânea.
Para Valente, a nova questão que se coloca é: como conseguir essa mudança?
Parece que o sistema educacional, como um todo, resiste a essas mudanças. Existe uma
tendência de se manter o paradigma instrucionista por razões de ordem histórica – foi
assim que fomos educados é assim que fomos educados é assim que devemos educar –
ou pela falta de entendimento do que significa aprender ou ainda pela falta de
experiência acumulada que possa comprovar a efetividade educacional do paradigma
construcionista. Por outro lado, a análise dos resultados do paradigma instrucionista são
desoladores: provocamos o êxodo do aluno da escola ou produzimos um educando
obsoleto. Os que abandonam a escola engordam a fileira dos fracassados, dos que não
conseguem aprender. Os obsoletos não conseguem acompanhar o desenvolvimento
atual da sociedade, mais especificamente, não estão preparados para trabalhar no novo
sistema de produção ou serviço que está emergindo na sociedade atual.
17
Considerações sobre o uso das tecnologias na Educação Básica:
Nossa pesquisa pretendeu trazer dados par discussão de questões relativas ao
uso de tecnologia no ensino das escolas de educação básica. Também procuramos
identificar e avaliar o aproveitamento efetivo das tecnologias em sala de aula.
Para Carvalho, devemos analisar e compreender qual é o valor das inovações no
campo educacional e resgatá-las desde o repensar do cotidiano escolar, implantar
propostas inovadoras e avaliar toda criação tecnológica nos diferentes campos desde a
influência da linguagem dos vídeo clips, como se utilizam os softwares educativos, o
livro-texto, o giz e o quadro negro e a recomendação crítica que se desenvolve nas aulas
com o uso dessas tecnologias.
As noções de inovações e novidades vinculadas ao espírito de modernismo
servem como justificativa para as mais diferentes propostas de desenvolvimento
ilimitado, a livre concorrência e a competência industrial e essa obsessão pelo novo não
leva em conta o saber acumulado, não considerando o conhecimento gerado por
experiências anteriores.
Segundo Lion, a tecnologia educacional surge como a marca tecnicista, com um
caráter instrumental e com a finalidade de racionalizar a prática educativa. “É vista de
duas formas: a primeira como um elemento de controle social que, segundo os
apocalípticos”, sustenta uma postura crítica e que acredita na panacéia da tecnologia,
máquinas cada vez mais sofisticadas, que exigem poucos especialistas e muitos
operários de baixa qualificação, ou ainda, na opinião dos “integrados”, aqueles que
incorporam tecnologia apenas como inovação. Eles entendem a tecnologia como neutra,
objetiva e sinônimo de progresso.
De acordo com Lion, com a globalização, o mundo está interconectado, no
entanto, há uma crescente fragmentação de culturas, uma multiplicação de identidades.
A tecnologia acentua a barreira entre os que podem e os que não podem ter acesso a ela
ou produzi-la.
A tecnologia faz parte do acervo cultural de um povo e serve como ferramenta
física e simbólica, para vincular-se e compreender o mundo que nos rodeia. É preciso
incluir na escola as experiências que os alunos têm e a partir o debate, as discussões
sobre o uso da tecnologia na educação. Como docentes, precisamos encontrar um
sentido para a tecnologia. Permitir que os alunos construam os conhecimentos nas
diferentes disciplinas, participando, opinando, debatendo e elaborando produções.
18
Como exemplo de produção dos alunos em sala de aula, apresentaremos o projeto sobre
laboratório dos alunos em sala de aula o documentário “Catástrofe de 67”, realizado
pelos estudantes de Caraguatatuba em 2000.
Essas discussões e propostas, em grande parte, foram formalizadas nos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN). Nessa obra proposta pelo MEC e
publicada em 1998, diversos educadores explicitaram orientações
pedagógicas, metodológicas e conteúdos disciplinares pra que a educação
brasileira pudesse se adequar aos novos tempos. Em nosso entendimento, as
propostas dos PCN são importantes para que a escola deixe de ser um espaço
de transmissão burocrática do conhecimento acumulado. A escola deve se
tornar um local privilegiado para a formação de indivíduos que tenham autoconhecimento, aprimorem-se continuamente e mantenham relações sociais
conscientes, responsáveis e solidárias. Além disso, que desenvolvam a
capacidade de reflexão e possam interagir em suas trajetórias, considerando
o meio natural e social no qual vivem. Nesse espaço devem ser estimulados e
buscar novas informações, processá-las e aplicá-las em seu cotidiano.
Os conceitos de sujeito histórico e tempo histórico também podem ser
tratados de maneira inovadora. Ele, o aluno, é o sujeito da história, não um
mero espectador. A história não deve ser entendida como o resultado da
vontade de alguns poucos “ heróis”, e sim como um conjunto de atitudes
tomadas pela sociedade que trouxeram mudanças no contexto daqueles
povos. O professor deve evitar a transmissão da idéia de que a seqüência dos
conhecimentos é compartilhado por toda a humanidade num mesmo tempo
cronológico. Cada povo vive seu próprio tempo histórico.
Para Demo (1997), nos PCN do Ensino Médio, o estudo das ciências humanas
deve ser complementar, e não excludentes. Conhecimentos de Filosofia, Sociologia,
Antropologia, Política, Geografia e História são indispensáveis à formação básica do
cidadão e o exercício da cidadania requer o desenvolvimento das competências
envolvidas na leitura e na interpretação. É hora de atualizar a educação humanista,
através de uma organização escolar baseadas em princípios éticos. Para o PCN do
Ensino Médio o que importa não é a quantidade de informações, mas a capacidade de
lidar com elas, através da apropriação, comunicação, produção e reconstrução da
História.
As competências de contextualização sócio-cultural apontam relação da
sociedade e da cultura, em sua diversidade, na construção dos diferentes saberes. O
ensino da história para jovens deve proporcionar aos alunos contato ativo e crítico
19
através dos monumentos, edifícios públicos, obras de arte, documentos, para
oportunizar uma aprendizagem mais significativa, pois os estudantes já possuem
condições de ampliar os conceitos introduzidos nas séries anteriores do Ensino
Fundamental e podem contribuir para a formação dos laços de identidade, consolidação
da sua cidadania. Segundo o PCN, o papel do professor levar o aluno a compreender o
impacto das tecnologias contemporâneas sobre o mundo do trabalho e sobre a vida
social. O educando deve mostrar a História como elaboração humana para entender o
mundo.
Os PCN tanto de Ensino Fundamental, quanto no Ensino médio, buscam através
da disciplina História favorecer uma postura mais reflexiva e investigativa por parte do
aluno.
Esta metodologia de trabalho permite que se estabeleça uma relação de “ir e vir”
entre o passado e o presente, reforçando-se a noção de que a história não é uma
sucessão de fatos ligados numa seqüência linear. Jacques Le Goff já alertou para esta
possibilidade quando afirmou:
Existe um certo progresso quando se faz uma História narrativa desde a
carroça ao avião supersônico. Mas se é, em primeiro lugar, uma História que,
longe de ser a dos possíveis e da liberdade na História, de que falava Veyne,
se torna ao contrário, uma História mais determinista que nunca, que dá a
entender que se devia forçosamente passar da carroça ao barco a vapor, ao
comboio, ao automóvel e ao avião supersônico, receio que se tenham
tornado as coisas ainda piores do que estavam, na medida em que o conteúdo
deste ensino tem seduções óbvias e diminui ainda mais o espírito crítico dos
alunos... Mas o que eu noto nesta História temática, tal como ela se esboça, é
uma História que se encerra no tema e que não explica porque é que a
carroça e o automóvel apareceram, e como isso se inscreve na História geral
das sociedades.
Para Machado, a metodologia de ensino de História baseada em eixos temáticos,
temas transversais e interdisciplinaridade, pretende “ir além” de uma história
eminentemente temática. Para se evitar os riscos mencionados sobre a história temática,
os PCN mostram que os conteúdos escolhidos não obedecem a uma unidade temporal
linear. Vários assuntos podem ser abordados, guardando unidade entre si em função da
identidade que os mesmos possuem frente ao eixo tema considerado. Este deve abranger
20
uma questão suficientemente ampla, que possibilite a análise de diversas relações que
compõem o universo social de diferentes grupos humanos em variados tempos e
espaços.
Demo demonstra que o estudo da História através de um tema central que
oriente suas ações não significa uma fragmentação da história. Ao se analisar um
momento histórico em particular, os assuntos ou os conteúdos estudados devem ser
inseridos numa análise mais ampla da história das sociedades. Entendemos não ser
possível o estudo de todos os conteúdos relacionados a determinado eixo temático, nem
a quantificação do volume de conteúdos necessários para que a questão central
apresentada pelo mesmo seja apreendida.
Sobre a questão da inserção dos conteúdos em uma análise mais ampla da
história das sociedades, é importante frisar que isto não significa que nos referimos à
idéia de contexto enquanto ‘pano de fundo social” que condiciona a ocorrência de
diversas situações históricas particulares. Nos referimos ao fato de se analisar as
interrelações existentes entre o tema estudado e alguns dos elementos mais amplos
presentes na organização social como um todo, que sejam possíveis de serem
apreendidos. Ou seja, um movimento de complementação mútua entre o particular e o
geral, sem se estabelecer escalas de determinações.
Segundo Bittencourt: os desafios enfrentados na elaboração das propostas
residem substancialmente em articular a produção historiográfica que introduz o social e
o cultural em suas relações intrínsecas com o econômico e que redimensionam o
político. Na crítica sobre as propostas que elencam acontecimentos da política
institucional há, por vezes, o abandono do político, em uma visão fragmentada do
social. Alguns conceitos básicos como os de classe social, trabalho e alienação
poderiam ser melhor explicitados para a formulação de lutas e movimentos sociais
estendendo a concepção de ação política para a esfera das organizações da sociedade
civil, dos sindicatos e de lutas de resistências diversas, conforme preconizam estudos do
cotidiano, como dos de E. Thompson, Agnes Helles, Maria Odila da Silva, Michel de
Certeau, Henri Lefebvre, entre outros.
Desafios que implicam ainda rever e aprofundar o conceito de conhecimento
histórico escolar, que não pode ser entendido como mera e simples transposição de um
conhecimento maior, proveniente da ciência de referência e que é vulgarizado e
simplificado pelo ensino. As críticas ao conceito de transposição didática, proposta e
21
difundida pela obra de Chevallard, reiteram as especificidades do conhecimento escolar
(CHERVEL; FORQUIN; MONIOT).”
Para Circe Bittencourt (in Chauí, 1988),
O currículo enquanto texto oficial apresenta outras faces. Tem sido o veículo
ideal para a disseminação do discurso do poder e para a difusão da ideologia
entendida como um corpus de representações e normas que fixam e
preservam de antemão o que e como se deve pensar, agir e sentir, com a
finalidade de produzir uma universalidade imaginária da qual depende a
eficácia da ideologia para produzir um imaginário coletivo, no qual os
indivíduos se localizem. Identifiquem-se e assim legitimem
involuntariamente a divisão social. A ideologia deve representar o real e
prática social através de uma lógica coerente.
Segundo o PCN, o papel do professor levar ao aluno a compreender o impacto
das tecnologias contemporâneas sobre o mundo do trabalho e sobre a vida social. O
educando deve mostrar a História como elaboração humana para entender o mundo.
BIBLIOGRAFIA
ABREU, A. Especialização flexível e gênero: debates atuais. São Paulo em perspectiva.
P 52-57. Jan/Mar. 1994.
___________. Mudança tecnológica e gênero no Brasil : Primeiras reflexões .
Novos estudos, CEBRAP. Mar. 1993.
ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra.1995.
ALVES, Rubem: “Conversas com Quem Gosta de Ensinar”. 3ª ed. São Paulo: Cortez ,
1981.
ANDERSON, Perry . Zona de compromisso. São Paulo: UNESP. 1996.
ARANHA, M.L.ª & Martins, M.H.P.: “Temas da Filosofia” 2ª ed. São Paulo: Editora
Moderna, 1994.
BRASIL. Ministério da educação . Lei das diretrizes e bases da educação nacional, 3ª
ed. Rio de Janeiro. 1969.
_____________.Conselho Nacional da Educação. Parecer CEB a 15/98: Diretrizes
Curriculares Nacionais para o ensino médio. Brasília, 1998.
____________. Secretaria Nacional de Educação Básica. Ensino das humanidades: A
modernidade em questão. São Paulo: Cortez. 1991.
22
BRAUDEL, Fernand. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva. 1978.
BURKE, Peter (Org.) A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: Ed. UNESP,
1992.
____________. A escola dos Annales (1939-1989): A revolução Francesa na
historiografia. São Paulo: E. UNESP, 1990.
CARR, Edward Hallet. Que é História? – Conferencias George Maeaulay Trevelyan
Proferidas por E. II. Carr na Universidade de Cambridge janeiro/março de 1961.
Tradução Lúcia Maurício de Alverga, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 38ª ed. 1982.
CARVALHO, Francisco Moreno de. Ensino e aprendizagem em história da ciência e
da tecnologia para o ensino médio e profissional. Brasília . 1997.
CHAUÍ, M. O que é ideologia. 27ª São Paulo: Brasiliense. 1988.
COSTA, Emília Viotti da. A dialética invertida: 1960-1990. Revista Brasileira de
História. São Paulo: Marco Zero. V. 14, nº 27, p, 9-26;
CUNHA, Euclides. A margem da História. Porto, Portugal: Ed. Leilo Brasileira, 1967.
DECCA. Edgar Salvadori, 1930: O silêncio dos vencidos. 48ª ed. São Paulo:
Brasiliense, 1988.
DELORS, Jacques (org) . Educação: Um tesouro a descobrir. São Paulo: Cortez. 1998.
DURANT, Will. A história da filosofia, 32 º ed. São Paulo: Nova Cultural. 1996.
DURKHEIN, Emile. “Educação e Sociologia” 11ª ed.São Paulo: Melhoramento, 1978.
FALKEMBURG, Kurt. Abismo. São Paulo. Editora clube dolivro, 1980.
FUNDACC, Fundação Educacional e Cultural de Caraguatatuba. Pescadores de
Caraguatatuba: história e estórias. Caraguatatuba, SAP: Fundacc, 2001.
GOFF, Jaques Le. História e nova história. Tradução por Carlos Veiga Ferreira Lisboa:
Teorema, 1986.
GOFFMAN, E. A. Representação do eu na vida cotidiana. 4 ª ed. Rio de Janeiro:
Vozes. 1985.
LAKATOS, Eva Maria, MARCONI, Marina de Andrade. Fundamentos de metodologia
científica. São Paulo: Atlas, 1985.
LAPA, José Roberto do Amaral. História e historiografia: Brasil pós-64. Rio de
Janeiro: Paz e terra. 1989.
LEFORT, Claude. As formas da história. Tradução por R. S. Fortes e Marilena de S.
Chuí. São Paulo: Brasiliense. 1990.
23
LIMA, Rossini Tavares. O folclore do Litoral Norte de São Paulo. São Paulo:
MEC/FUNART/UNITAU, 1981.
MACHADO, Nilson Joaquim. Metodologia do Trabalho Científico. 21 ed. ver. e ampl.
São Paulo: Cortez, 2000.
MONTENEGRO, Antônio Torres. História oral e memória. São Paulo: Ed. Contexto,
1992.
MORAM, José Manuel. Leituras dos meios de comunicações. São Paulo: Ed. Pancast,
1993.
______________. Como ver televisão. São Paulo: Ed. Paulinas, 1991.
NEVES, Ilka. Dinâmica de orientação educacional. Porto Alegre: ed. Globo, 1969.
PESSANHA, José Américo Motta. Santo Agostinho – Vida e obra. São Paulo: Nova
Cultural. 1996.
PIFFER, Marcos. Litoral Norte. São Paulo: Expressão Comunicação Visual, 1999.
POETA, Maurício Netto. Caraguá de provas em versos. Lendas e causos da Cultura
Caiçara. Ao sabor poético e pitoresco da Literatrura de Cordel , FUNDACC.
Caraguatatuba. SP. 2005
POMIAM, Kirzystof. El odem del tiempo. Madri. Espanha, Júcar Universidad. 1988.
SCHWARCZ, Lilia M. As barbas do imperador: D. Pedro II, um monarca nos
trópicos. 2 ª ed. São Paulo: Cia das Letras, 1998.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da burguesia brasileira. 4. ed. Petrópolis, Vozes,
1983.
TAPIA, Jesus Alonso. A motivação em sala de aula: O que é, como se faz? 3 ª ed. São
Paulo: Moderna. 1997.
TODOROV, Tzvetan. As morais da história, São Paulo: Publicações Europa-América,
2000.
WARREN, Dean. A ferro e fogo: a história da devastação da mata atlântica brasileira,
São Paulo: Cia das Letras. 1996.
24
Anexos
ANEXO 1
Questionário utilizado na pesquisa
Caro(a) professor (a)
Este questionário faz parte de uma pesquisa que vimos realizando no curso de
Pós-Graduação em Educação na Universidade Braz Cubas. Este estudo pretende discutir
questões relativas ao uso de tecnologias no ensino em escolas de Educação Básica .
O objetivo deste instrumento é identificar e avaliar o uso das tecnologias nas
escolas de Educação Básica, por isso precisamos da sua sinceridade.
Esperando contar com sua valiosa contribuição agradecemos antecipadamente.
Mestrandos da Universidade Braz Cubas
25
1- idade
( ) 18 a 20
( ) 21 a 25
2- Sexo ( ) masculino
( ) 26 a 30
( ) 31 a 40
( ) acima de 40
( ) feminino
3- Qual é a sua formação:
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________
( ) cursando
( ) formado
ano de conclusão
4– Faz uso de tecnologias em sala de aula? ( ) sim ( ) não
5– Quais tecnologias você usa em sala de aula?
______________ __________________ ______________________
______________ ___________________
______________________
______________ ___________________ _______________________
_____________
____________________
______________________
6– Com que freqüência você usa os seguintes materiais de apoio?
Livro didático
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Lousa e giz
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Mural
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
26
Jornais, revistas
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Vídeo cassete
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Programas de TV
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Computador
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Retro-projetor
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Data-show
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Episcópio
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Projetor de slide
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Aparelho de som
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Material em fotocópia
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Copias em mimeógrafo ( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Régua e compasso
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Livro paradidático
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Gravuras
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Bola
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Tinta
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
Sólidos geométricos
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
CD-rom
( ) diariamente
( ) às vezes ( ) nunca
7– aponte as dificuldades que você encontra no uso de material de apoio.
____________________________________________________________
27
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________
8 – como você faz uso dos recursos materiais listados abaixo:
Programa de Televisão
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________
Filmes de vídeo
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________
retro-projetor
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________
Aparelho de som
____________________________________________________________
28
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________
computador
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________
CD-rom
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________
Jornais e revistas
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________
Livros paradidáticos
____________________________________________________________
____________________________________________________________
____________________________________________________________
29
ANEXO 2
Resumo da Lei 5.692 de 11 de outubro de 1971.
Fixa Diretrizes e Bases para o ensino de 1 e 2 graus, e da providencias
O Presidente da República
Faço saber que o congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte lei:
CPITULO 1
Do Ensino de 1 e 2 graus
“Art. 1 – O ensino de 1 e 2 graus tem por objetivo geral proporcionar ao educando a
formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de
auto-realização, preparação para o trabalho e para o exercício da cidadania.
$ 1 . Para efeito do que dispõem os arts. 176 e 178 da Constituição, entende-se por
ensino primário a educação correspondente ao ensino de 1 graus e, por ensino médio, o
de 2 grau.
$ O ensino de 1 e 2 graus será ministrado obrigatoriamente na língua nacional.2
Art. 2. O ensino de 1 e 2 graus será ministrado em estabelecimentos criados ou
reorganizados sob critérios que assegurem plena utilização dos seus recursos materiais e
humanos, sem duplicação de meios para fins idênticos ou equivalentes .
Parágrafo único – A organização administrativa didática e disciplinar de cada
estabelecimento de ensino será regulada no respectivo regimento, a ser aprovado pelo
2
Redação dada pela Lei nº 7044, de 8 de outubro de 1982.
30
órgão próprio do sistema, com observância de normas fixadas pelo respectivo Conselho
Educação ( ...)
Art. 7. Será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física,
Educação Artística e programas de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de
1 e 2 graus, observado quanto à primeira o disposto no Decreto-Lei nº 869, de 12 de
setembro de 1969.
Parágrafo único – O ensino religioso, de matricula facultativa, constituirá disciplina dos
horários normais dos estabelecimentos de 1 e 2 graus.
Emilio G. Médici – Presidente da República
Jarbas G. Passarinho
Julio Barata.
(Publicada no DOU de 12 de agosto e retificada no DOU de 18 de agosto de 1971)
31
A representação da fala em literatura como processo mimético
Milton M. Azevedo∗
Resumo: Embora a escrita padrão imponha limites à representação literária da fala,
particularmente em suas modalidades não-padrão, as técnicas de dialeto literário
permitem criar representações esteticamente válidas de dialetos regionais ou sociais,
bem como de linguajares híbridos ou sotaques forasteiros. A compreensão cabal de tais
modalidades representativas, bem como de suas implicações cognitivas ou sociais,
requer noções de linguística, dialetologia e sociolinguística.
Palavras-chave: sociolingüística, representação da fala, modalidade não-padrão, dialeto
literário.
As normas da escrita, pensadas em termos da variedade padrão de uma língua,
impõem limites à representação literária da fala, particularmente quando se trata de
captar detalhes da conversação espontânea ou de dialetos regionais ou sociais.3 Ao
passo que adquirimos a capacidade de falar mediante a interação com nossa primeira
comunidade de fala,4 geralmente dentro do âmbito familiar, a variedade padrão,
sobretudo em seus registros formais, costuma ser adquirida através da instrução escolar,
que a apresenta como modelo estável de correção, operante segundo regras categóricas
que deixam pouca margem à variação. Por outro lado, certos aspectos da fala que
desempenham um papel fundamental na comunicação --como as variações no tom e
altura da voz-- são encobertos pela natureza gráfica e linear da escritura, aumentando
assim a distância entre linguagem falada e linguagem escrita. Certas modalidades de
discurso oral reduzem os momentos de silêncio: em uma conversa animada, por
∗
University of California, Berkeley
Este artigo, originalmente publicado na Revista de Comunicação e Linguagens, Núm. 36 (2005), págs.
31-44, recolhe elementos dos seguintes estudos: “Considerations on literary dialect in Spanish and
Portuguese”, Hispania 85:3(2002), pp. 505-514; “Implicaciones pedagógicas de la representación
literaria de la variación lingúística en español”, Hispania 87:3 (2004), pp. 464-475; Vozes em Branco e
Preto. A representação literária da fala não-padrão. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo,
2003.
4
A comunidade de fala (speech community) é definida por John Gumperz como “qualquer grupo humano
caracterizado pela interação regular e frequente, mediante um corpo de sinais verbais compartilhados e
distinguido de grupos semelhantes por diferenças significantes no uso da linguagem.” Ver Gumperz,
John, Language in Social Groups. Stanford, Califórnia, Stanford University Press, 1971, p. 114.
3
32
exemplo, os interlocutores evitam as pausas e usam marcadores do discurso5 que,
mesmo sem acrescentar informação nova, assinalam a intenção de seguir comunicando.
O diálogo literário, ao contrário, prescinde das hesitações, correções ou reiterações
habituais da fala, encadeando as frases como se os interlocutores nunca tivessem
dúvidas sobre o que querem dizer. Apesar de sua equivalência cognitiva, a organização
do conteúdo e demais características estruturais de um diálogo real contrastam com as
de sua versão escrita, que em vez de projetar uma ilusão de oralidade, costuma parecerse menos a uma gravação do que a uma transcrição corrigida segundo convenções
editoriais.
As limitações da escrita como meio representativo dos aspectos mais
expressivos da fala saltam à vista quando analisamos a transcrição de um segmento de
fala como o texto seguinte, que apresenta uma mensagem em estilo coloquial, na qual o
falante coordena improvisadamente os elementos essenciais do que deseja comunicar:
O o o o - Marcos - aqui é o Jonas que tá ligando - bom - eu - aaahhh - era
só para - bater um papo com você - bom - queria dizer que - - que aquela
- aquele - aquele arranjo da carona - para ir na festa do Bill - ah - hoje à
noite - não vai precisar - acontece que - eu não vou precisar - porque a
Renée - ela resolveu ir - e então eu vou com ela - queee - ela mora aqui
no prédio e então fica mais fácil - de maneira - bom - aí então cê não
precisa passar aqui - tá? - cê quiser cê me liga mais tarde - até - ah antes das oito - mas de qualquer forma - era só pra te dizer que eu NÃO
vou precisar - tá? - muito obrigado - até de noite - um abraço (Mensagem telefônica gravada, com nomes fictícios; falante paulista. Arquivo
do autor.)
Depois de uma breve hesitação, marcada por Oooo (foneticamente uma vogal
posterior média-alta prolongada), o falante nomeia o destinatário (Marcos), identifica-se
(aqui é o Jonas), acrescenta uma informação fática (que [es]tá ligando) e esclarece o
propósito aparente da mensagem (só para bater papo), para em seguida assinalar que o
telefonema tem uma razão importante (bom - queria dizer que). Segue-se uma breve
hesitação, marcada por uma pausa mais longa, motivada talvez por tratar-se, como se vê
em seguida, de uma mudança de planos passível de causar algum inconveniente. O
núcleo da mensagem organiza-se a partir de informação conhecida (aquele arranjo da
carona), passando por uma transição (acontece que) que conduz ao que realmente
5
Sobre marcadores do discurso, Cf. Silva-Corvalán, Carmen. 2001. Sociolinguística y pragmática del
español. Washington, D.C., Georgetown University Press, pp. 214-235.
33
conta, ou seja, que o falante já não necessita boléia (não vou precisar). Logo vem uma
explicação (a Renée - resolveu ir - e então eu vou com ela) seguida de outro marcador
do discurso (queee) funcionando como uma pausa oral, ou seja, uma palavra
cognitivamente vazia que assinala que a mensagem continua, introduzindo uma
justificação secundária (ela mora aqui no prédio e então fica mais fácil), seguida de
vários elementos de transição (de maneira - bom - aí então ) e de uma reiteração da
mensagem principal ( [vo]cê não precisa passar aqui). Segue-se um elemento
confirmatório (tá?) e uma continuação de cortesia, cognitivamente nula mas de valor
fático ([se vo]cê quiser cê me liga mais tarde - até - ah - antes das oito). Embora
pudesse terminar aí, a mensagem prossegue com outro elemento de transição (mas de
qualquer forma era só pra te dizer) que reitera o conteúdo principal para que não haja
dúvidas, desta vez com ênfase, marcada por maiúsculas na transcrição (que eu NÃO vou
precisar), completando com a fórmula confirmatória ([es]tá?) e por um agradecimento,
uma despedida e uma fórmula de cortesia (muito obrigado - até de noite - um abraço).
As dificuldades representativas aumentam quando se trata da fala não-padrão,
marcada por traços sociais ou regionais. A própria uniformidade da língua padrão, ao
favorecer a comunicação escrita, torna-a pouco adequada à representação de falas que
dela se apartem significativamente. Considere-se, por exemplo, o caso da consoante
palatal lateral [ ], grafada lh na ortografia padrão. Como o português brasileiro
vernáculo6 (PBV) emprega a semivogal palatal [j] em vez de [ ], na representação da
fala popular costuma-se empregar i por lh, como em malha > maia, folha > foia.
Outrossim, os traços morfossintáticos não-padrão são representados por variações
ortográficas, de maneira que uma frase como os bandidos renderam os guardas pode
aparecer como os bandido rendeu os guarda. Notam-se nesta oração dois fenômenos
típicos do PBV, a saber a falta de concordância nominal (os bandidos > os bandido, os
guardas > os guarda) e de concordância verbal, caracterizada pelo uso da forma de
terceira pessoa singular rendeu pelo plural renderam. Como a fala vernácula é marcada
pela variabilidade, tais representações não precisam ser categóricas, e portanto não se
indica a falta de concordância em todos os pontos em que poderia ocorrer, e devido a
6
Usa-se o termo “vernáculo” no sentido técnico de variedade linguística nativa de uma comunidade de
fala, em contraste com a variedade padrão, geralmente aprendida mediante instrução formal. Cf. K. M.
Peyt: “a form of speech transmitted from parent to child as a primary medium of communication” (The
Study of Dialect: An Introduction to Dialectology. Londres, André Deutsch, 1980, p. 25).
34
isso, formas como os bandido e os bandidos, os guarda e os guardas, podem coexistir
na fala da mesma personagem.
Em português, como em muitas outras línguas, existe um processo
representativo conhecido como dialeto literário, cuja função é “to represent in writing a
speech that is restricted regionally, socially, or both.”7
Esta caracterização inclui o
8
chamado “dialeto visual”, consistente em adaptar a ortografia para assinalar traços
específicos de pronúncia ou morfossintaxe. Assim, a representação de um enunciado
como PBV Si oceis num vai a gente tomém num vamo (Se vocês não forem a gente
também não vai) sugere processos fonológicos como a ditongação de uma vogal diante
de /s/ implosivo (nós > nóis) e a monotongação de um ditongo nasal em posição átona
(não > num). Por outro lado, o emprego de sabia, em vez de sabíamos, sem
concordância verbal, ou de essas coisa por essas coisas, sem concordância nominal, não
constitui dialeto visual, porquanto não se trata de pronúncia, senão de processos
morfossintáticos. Concebido o dialeto literário como um sistema mimético que abrange,
além da pronúncia, a morfologia, a sintaxe e o léxico, o seu estudo permite analisar
representações não apenas de dialetos regionais ou sociais, como também de outras
modalidades não padrão, tais como a fala forasteira ou as falas híbridas.9 Tal mimetismo
consiste em criar imagens evocativas da realidade linguística, mediante a combinação
de traços salientes das falas retratadas.
As representações de forasteiros a falar português com sotaque apareceram cedo
na Península Ibérica. Segundo Paul Teyssier, o exoticismo da fala de escravos africanos
já vem retratado num texto datável de 1455, incluído no Cancioneiro Geral de 1516, 10
e portanto Gil Vicente seguia uma tradição estabelecida ao escrever textos como o
seguinte:11
7
Sumner Ives, “A Theory of Literary Dialect”. Em A Various Language: Perspectives on American
Dialects. Juanita Williamson, & V. M. Burke (orgs.), Nova York, Holt, Rinehart and Winston [1950]
1971.
8
Cf. Paul Hull Bowdre Jr., “Eye Dialect as a Literary Device”, em A Various Language. Perspectives On
American Dialects. Juanita Williamson, & V. M. Burke, orgs. Nova York: Holt, Rinehart and Winston,
[1964] 1971, pp. 178-185.
9
Sobre o conceito de fala forasteira (ing. foreigner talk), Cf. Charles A. Ferguson, “‘Foreigner Talk’ as
the name of a simplified register’, International Journal of the Sociology of Language, 28, 1981, pp. 918. Sobre as falas híbridas, cf. Mark Sebba, Contact Languages. Pidgins and Creoles. Nova York, St.
Martin’s Press. 1997, pp. 74-81; Suzanne Romaine, Bilingualism, 2a. edição, Oxford, Blackwell, 1995,
pp. 68-82.
10
Paul Teyssier, La langue de Gil Vicente, Paris, Librairie C. Klincksieck, 1959, p. 228.
11
Gil Vicente, 1983. Tragicomédia da Frágua,; Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente. Volume II.
Maria Leonor Carvalhão Buescu (org.). Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, pp. 138-161.
35
Que inda que negro soo / bosso oyo he tam trabessa, / tam preta, que me
matoo. / Senhora, quem te frutasse / por o quatro dia no maas / e logo
morte me matesse, / que mas o dia nam durasse / pollo vida que boso
me das.
(Gil Vicente, Frágua de Amor)
Os traços fonológicos relevantes incluem o uso de b por v (bosso por vosso,
bos por vós), sugerindo uma consoante bilabial e não labiodental, a substituição de lh
por y indica uma ditongação (olho > oyo) como aquela assinalada no PBV, metátese de
r e u (furtasse > frutasse), e monotongação de ou (sou > soo, matou > matoo). Os
traços morfológicos incluem a falta de concordância nominal (o quatro dia por os
quatro dias, pollo vida por polla vida). Porquanto os escritores tendem a reproduzir e
desenvolver práticas estabelecidas pelos que os precederam, formou-se uma tradição
representativa, algo estereotipada, que foi passando de uma geração --tanto de autores
como de público-- à seguinte. Não surpreende, portanto, que no final do século
dezenove, escritores como Machado de Assis usassem a chamada “fala de negros” em
diálogos como o seguinte, no qual conversam um ex escravo chamado Pancrácio e seu
antigo amo:12
. . . chamei o Pancrácio e disse-lhe:
“ -Tu és livre, podes ir para onde quiseres . . .”
- Oh! meu senhô! fico. . . .
- Quando nasceste, eras um pirralho dêste tamanho; hoje estás mais
alto que eu....
-Artura não qué dizê nada, não, senhô. . . .
- Tu vales muito mais que uma galinha.
- Eu vaio um galo, sim, senhô.
(Machado de Assis, “Bons Dias,” Crônicas)
Os elementos fundamentais desta cacterização incluem rotacismo (artura por
altura), ditongação de lh seguido de vogal (vaio for valho) e perda de r final em
infinitivos and substantivos (dizer > dizê, senhor > senhô). Há uma clara semelhança
entre este texto e aquele de um conto do escritor modernista Mario de Andrade, na qual
12
Joaquim Maria Machado de Assis, “Bons Dias.” Crônicas. Obra completa, Vol. 3. A. Coutinho, org.
Rio de Janeiro, Companhia José Aguilar Editora, 1962a, pp. 489-491.
36
um negro pede perdão a uma mulher, chamada Florinda, que o abandonara para puni-lo
por sua infidelidade: 13
—Antão, Frorinda, que é isso! você tá lôca!... Será que você qué abandoná seu
negro pru causo de otra muié?... Inda que eu fose um dêse misarave que dêxum
fartá inté pão im casa, mais eu, Frorinda! . . . . Dêxa diso, Frorinda, eu ixprico
tudo! Num bamo agora se disgraçá pr’uma coisinha de nada!
(Mario de Andrade, “Foi sonho”)
Também aqui encontramos b por v (vamos > bamos), monotongação de ou
(louca > lôca, outra > otra),4 de ei (deixa > dêxa) e de -am (deixam > dêxum). Outros
processos incluem a variação do timbre da vogal pretônica, seja inicial (então > antão,
até > inté) ou medial (miserável > misarave); perda de r final (abandonar > abandoná,
quer > qué); substituição de lh por i (mulher > muié ); rotacismo (Florinda > Frorinda,
faltar > fartá); metátese de r e u átono em por > pru, e a combinação desta forma com o
artigo indefinido feminino uma em pr’uma. Há também um exemplo do pronome se,
que tendo perdido sua função reflexiva, passa a funcionar como uma sílaba extra do
infinitivo, em bamo se disgraçá (pronunciado como uma só palavra, sidisgraçá) por
vamos desgraçar-nos.
Na realidade, a maioria destes traços são típicos não da fala de qualquer grupo
racial ou étnico em particular, e sim do português brasileiro vernáculo em geral. Embora
a representação dialetal esteja muito associada ao estilo humorístico, como na obra de
autores como Cornélio Pires ou Belmiro Braga,14 tem sido usada também com
seriedade, como no caso de autores regionalistas como Afonso Arinos, Manoel de
Oliveira Paiva, Coelho Neto, ou Valdomiro Silveira.15 Este último mostrou-se
particularmente cioso de que suas representações da fala rural não tivessem conotações
cômicas. Usando com moderação de modificações ortográficas para representar a
13
14
Mário de Andrade,. “Foi sonho”. Os Filhos da Candinha. São Paulo, Livraria Martins, 1943 [1933].
Cornélio Pires, Estrambóticas Aventuras do Joaquim Bentinho (O Queima Campo). São Paulo,
Imprensa Metodista, 1924; Continuação das Estrambóticas Aventuras do Joaquim Bentinho (O Queima
Campo), São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1929. Belmiro Braga, Na Cidade (O Sete-Nomes).
Burleta em 1 Acto. 2a. edição. São Paulo, Livraria Teixeira, 1935.
15
Afonso Arinos, O Mestre de Campo. Em Obra Completa. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do
Livro,1969 [1898]. Manuel de Oliveira Paiva, Dona Guidinha do Poço. Em Obra Completa. Rolando
Morel Pinto (org.). Rio de Janeiro, Graphia Editorial, 1993 [escrito entre 1890 e 1892; 1a edição, 1952],
pp. 5-162. Henrique Coelho Neto, Rei Negro. 2a. edição. Porto: Livraria Chardron 1926 [1914].
37
pronúncia e a morfologia dialetais, Silveira empregou também a sintaxe e o léxico para
construir o tipo de voz refletida em textos como o seguinte, proveniente de um volume
de contos nos quais as personagens falam por si mesmas, sem mediação de uma voz
narradora em português padrão:16
Parece coisa que inda ’tou vendo o Tibúrcio, aquele negrão meio bobó, que
andava esfarrapado p’ro centro dessas ruas, na quentura do sol ou na força das
águas, dando gritos soturnos. Às vezes, quando ’tou suzinho nalgum ermo, em
hora ansim de mais sussego, inté me representa escuitar uns guinchos finos,
desguaritados da vozona grossa e carregada que ele soltava de repente, pondo
pavor nos outros. Eu sempre ’maginei, a só por só comigo, que não hai coisa
mais triste que andar um cristão p’ro mundo, sem companhia de jeito nem um,
sem o sapê de um rancho p’ra tapar o chão da orvalheira da noite, mal comido e
mal drumido, c’a frieza do desânimo no fundo do coiração. (Valdomiro Silveira,
“Visão”, Leréias)
Trata-se de uma representação muito discreta da pronúncia dialetal. Há alguns
casos de perda de vogal, como em imaginei > ’maginei, ainda > inda, para tapar > p’ra
tapar, pr’o centro, pr’o mundo, estou > ’tou, com > c’ (com a frieza > c’a frieza).
Outros processos incluem metátese (dormido > drumido), elevação de vogal átona
pretônica, seja [o] > [u] (sossego > sussego) ou [ ] > [u] (sozinho > suzinho). O léxico
inclui arcaísmos preservados na fala rural, como ansim, coiração, escuitar, hai (assim,
coração, escutar, há) e formas populares como bobó ou o aumentativo vozona (cf.
vozeirão). No conjunto, porém, somente um punhado de ítens --15 num total de 119 -desviam-se realmente da ortografia padrão. É notável a presença da concordância
padrão, que não é um rasgo da fala dialetal representada, como em dessas ruas, das
águas, gritos soturnos, uns guinchos finos, onde esperar-se-ia dessas rua, das água,
gritos soturno, uns guincho fino. Em contraste, é bem mais detalhada a representação de
Cornélio Pires do mesmo dialeto do interior do estado de São Paulo:
Digo: tô morto! Já num chegava os arrepiu que já tava sintino da sezão. . . . Fui
pra drento, ponhei áua ferveno na bacia, cinza, limão, ua foia de parma benta,
um pôco de alecrim, um raminho de arruda, tomei um escarda-pé e se deitei.
16
Valdomiro Silveira, Leréias. (Histórias contadas por eles mesmos). 2a. edição. Rio de Janeiro, Editora
Civilização Brasileira, 1975 [1945].
38
Tive um febrão e gumitei preto. No amiudá dos galo, garrei uvi um baruião fora
de perpósito. Principiô cumo baruio de rebentação de pipoca in caçarola
tampado cum testo. Despois parecia queimada de capoêra onde tem taquará...
Despois asvoroço e parecia baruio de mir cartêra de traque rebentano drento de
ua lata... Pro fim já parecia bataria de festa do Divino... Ô! pros quinto! Era a
bixiga que tava rebentano! (Cornélio Pires, Estrambóticas Aventuras do
Joaquim Bentinho (o Queima-Campo), 91)
Vemos nesta passagem muitos detalhes de processos fonológicos como perda de
consoante (água > áua, sentindo > sintino
fervendo > ferveno, rebentando >
rebentando), inclusive a perda de r final em verbos e substantivos (ouvir > uví, taquará
< taquaral). Há também perda de vogal (agarrei > garrei, para > pra), de sílaba
(estou > tô, estava > tava) e metátese (dentro > drento). Outros processos incluem a
elevação do timbre vocálico (como > cumo), rotacismo (palma > parma, escalda >
escarda, mil < mir), vocalização de lh (folha > foia, barulho > baruio, barulhão >
baruião) e monotongação (pouco > pôco, ouvi > uvi, principiou > principiô, capoeira
> capoêra, carteira > cartêra).17 Ao contrário do texto de Silveira, registra-se a falta de
concordância nominal, como em os arrepiu por os arrepios, caçarola tampado por
caçarola tampada, pros quinto por para os quintos. Há também um caso de
lexicalização do pronome átono se, incorporado ao infinitivo em se deitei por me deitei
(cf. sidisgraçá, supra). A morfologia dialetal aparece em gumitei (vomitei), despois
(depois), ponhar (pôr), a sintaxe dialetal no uso incoativo de (a)garrar + infinitivo
(garrei uvi < agarrei ouvir ou seja, comecei a ouvir), e o léxico rural em formas como
amiudá dos galo (< amiudar dos galos) e pros quinto! (< para os quintos [dos
infernos]).
A manipulação ortográfica para indicar sotaques ou variações morfossintáticas
já se encontra na técnica vicentina de atribuir a certas personagens o que Teyssier
chamou “un signe indicatif qui oppose ces personnages aux autres et les fait
immédiatement reconnaître”.18 É o que se nota, inter alia, na seguinte declaração de
amor que faz à Fama um italiano:19
17
Note-se, porém, que os processos de monotongação ou > o e ei > e são normais no português
brasileiro, exceto em modalidades formais.
18
Teyssier, op. cit., p. 7.
19
Gil Vicente, Farsa do Auto da Fama. Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente. Volume II. Maria
Leonor Carvalhão Buescu (org.). Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1983, pp. 360-376.
39
Italiano:
-- Oh, licore de la vita mia, / si brachi mei te pilhasse, / y
occhi mei te mirasse, / tote le ore, note e dia, / toti quanti / libérati qui
sun tanti, / y a companha de dia; / aqueste paradisa mia / me será multi
triumfanti. (Gil Vicente, Auto da Fama)
Encontram-se nessa paródia palavras comuns a ambos idiomas (dia, me),
vocábulos portugueses (pilhasse, mirasse) e italianos (licore, vita, mia, occhi, ore,
quanti). Assinalam o hibridismo algumas palavras italianas ligeiramente camufladas
pela ortografia portuguesa (libérati, companha, note) bem como um punhado de formas
inventadas (tote, toti, triumfanti, paradisa). Vários séculos mais tarde, encontramos tais
truques representativos na fala de um imigrante italiano cujo bom ouvido permitira-lhe
aprender o suficiente do português brasileiro para formar um idioleto híbrido: 20
Bene. Iso tudo si pasava em Napole. Io non dise? Pois é ... In Napole.
Mio babo era sarto ... como se diz? ah! alfaiato. Viu a bimba norveguesa,
molto bianca e bionda, de ôlho azurro e s’apaixonô. S’incontravano na
praia, ficavano olhando u mare e mais tarde eles me contarono ela
disenhava o ritrato do namorato na arena bianca da praia. Casarono.
Forano felice. (Érico Verísimo, Um Lugar ao Sol, p. 846)
Mesclam-se nesse texto palavras italianas (bene, s’incontravano) e portuguesas
(pois é, como se diz) e formas híbridas tais como ficavano (ptg. ficavam + it. -vano),
forano (ptg. foram / it. furono) , namorato (ptg. namorado / it. innamorato ), casarono
(ptg. casar + it. -ono), disenhava (ptg. desenhava / it. disegnava). Construções mistas
(na arena bianca da praia, ela de ôlho azurro) acrescentam um toque de
imprevisibilidade que sublinha a marginalização, tanto social quanto linguística, de um
homem que não conseguiu integrar-se na sua sociedade adotiva.
Se a linguagem normal é essencialmente oral, as falas mistas são-no, se é
possível, ainda mais intensamente: desenvolvidas em circunstâncias de contato para a
comunicação ao vivo, sem escrita regular nem preocupações de correção gramatical,
costumam ter uma estrutura flexível, que favorece a coexistência de formas paralelas. É
20
Veríssimo, Érico. Um Lugar ao Sol. Em Ficção Completa, Vol. 1. Rio de Janeiro, José Aguilar Editora,
1966.
40
o caso de sistemas híbridos de português e espanhol, como a fala de fronteira
representada na passagem seguinte: 21
—Me sé tirar de hacha y de azada... Tengo trabalhado antes de ahora no
Foz-do-Iguasú; e fize una plantación de papas. [. . .] Ahí está el pozo —
señaló, para que yo no dudara de su existencia—. ¡Condenado!... No
trabajo más allá. O pozo que vosé fizo.. ¡No sabés hacer para tu pozo,
usted!. . . Muito angosto. ¿Qué hacemos ahora, patrón? —y se acodó en
la mesa, a mirarme. (Horacio Quiroga, “Un peón”, 452-453)
Ocorrem nesse trecho, contrastando com o espanhol normativo do narrador,
diversos elementos característicos das falas híbridas. Além da coexistência de palavras
de ambos idiomas, facilmente identificáveis, há certo hibridismo morfológico,
representado por fize (ptg. fiz, esp. hice), bem como a alternância de pronomes de
tratamento como vosé (ptg. você) e usted. Nota-se também hibridismo morfossintático,
em construções como tengo trabalhado (ptg. tenho trabalhado, esp. he trabajado) ou
muito angosto (esp. muy angosto, ptg. muito estreito). Essa fala tem, ademais, alguma
semelhança com certos linguajares híbridos mais estáveis, com o fronterizo/fronteiriço,
ou seja, os dialetos portugueses falados no Uruguai, ao longo da fronteira com o Brasil,
e representados no texto seguinte:22
Fui subiendo por aquel cerro, morro de los Estados, con su lomo chato,
un ventiño que no soplaba, quemado por el sol de la media mañana.
Muchas gentes tambéin trepaban, cuánto pobrerío, viernes santos era.
Ruido de charlas, risadas sin saber por qué, algunos de ropa béin limpiña,
los pelos acomodados, baños de caneco se notaban. . . .
21
Horacio Quiroga, 1978. “Un peón”. Em Cuentos completos. Alfonso Llambias de Azevedo (org.).
Montevideo: Ediciones de la Plaza, Vol. 1, pp. 452-465.
22
Saúl Ibargoyen Islas, Fronteras de Joaquim Coluna. Caracas: Monte Avila Editores, 1975. Sobre os
dialetos brasileiros do Uruguai, cf. Pedro Rona, El dialecto fronterizo del Norte del Uruguay.
Montevidéu, Adolfo Linardi, 1965; Frederick Hensey,. The Sociolinguistics of the Brazilian-Uruguayan
Border. Haia, Mouton. 1972; Frederick Hensey, “Spanish, Portuguese and Fronteiriço: Languages in
Contact in Northern Uruguay.” International Journal of the Sociology of Language, 34, 1982, pp. 9-23;
Adolfo Elizaincín, Dialectos en contacto. Español y portugués en España y América. Montevidéu: Arca
Editorial, 1992; Adolfo, Elizaincín, Luis Behares e Graciela Barrios, Nos falemo brasilero. Montevidéu:
Editorial Amesur, 1987; Ana Maria Carvalho, The Social Distribution of Spanish and Portuguese
Dialects in the Bilingual Town of Rivera, Uruguay. Tese de doutoramento, University of California,
Berkeley, 1998. Sobre o fronteiriço em literatura, cf. Magdalena Coll, “La narrativa de Saúl Ibargoyen
como representação literaria de una frontera lingüística”, Hispania 80: 4 (1995), pp. 745-752.
Carvalho (1998).
41
—La señora tiene que decirme el nombre del gurí... del niño.
Mi madre, la desgraciadita, nada de falar. Tres veces preguntó la mestra, mujer
un poquiño sudada y con paciencia. Llamó a mi padre, a mí me pidió que fuera.
—Señor Coluna, quiero saber el nombre enterito de su gurí... de su hijo.
—Joaquim, nomás... —dijo mi padre, nada en las manos quietas.
Enseguida se fue, sin costumbre de formar palabras ¿qué más podía
decir? Me hicieron sentar en una silla, cuaderno como mesa, lápiz puesto
en la mano izquierda, cañoto siempre fui, de eso no me curo. (Saúl
Ibargoyen Islas, Fronteras de Joaquim Coluna, p. 19)
A estrutura sintática vem marcada por palavras gramaticais que, com exceção de
alguns vocábulos comuns a ambas línguas (que, de, por, como), pertencem ao espanhol,
como os artigos e os demonstrativos (el, la, los, las, un, una, aquel), os possesivos (mi,
su) e as conjunções e preposições (y, en, sin). Nos advérbios béin e tambéin (ptg. bem,
também) a grafía -éin- evoca o ditongo nasal portugués [e)j)], ort. em, foneticamente
distinto da terminação correspondente espanhola -en. São calcadas no português a
expressão baños de caneco (habituais onde não haja água corrente) e a forma de
tratamento a señora (por esp. usted). O vocabulário inclui palavras portuguesas como
gurí, caneco, mestra, falar, além de poquiño, ventiño, limpiña e cañoto (pouquinho,
ventinho, limpinha, canhoto). Estas, disfarçadas com o ñ ortográfico, revelam por um
lado o empréstimo morfológico do sufixo diminutivo -inho (cf. esp. ventito, poquito,
limpiecita), e por outro lado, mediante o simbolismo gráfico de ñ em vez de nh, o seu
caráter híbrido. Trata-se de formas que, não sendo nem portuguesas nem espanholas,
pertencem a um tertius quid que deve ser interpretado em seus próprios termos.
Estes poucos exemplos permitem-nos ver o dialeto literário como um recurso
estilístico que opera sobre os contrastes entre variedades não-padrão e a variedade
padrão em que se escreve a maior parte da literatura. De fato, a variedade padrão é, por
definição, uma manifestação escrita23 tão fortemente associada à literatura que os
termos
“língua
literária”
e
“língua
padrão”
são
com
frequência,
embora
equivocadamente, usados como sinônimos. A padronização fornece um código comum
a todos os usuários, independentemente de suas características individuais ou regionais
23
Cf. Ralph Penny, Variation and Change in Spanish. Cambridge, Cambridge University Press, 2000, pp.
194 ff. Tem também interesse Richard Baum,. Lengua culta, lengua literaria, lengua escrita. Materiales
para una caracterización de las lenguas de cultura. Barcelona: Alfa, [1987] 1989.
42
de pronúncia e morfossintaxe. Não obstante, o fato de que o padrão escrito se baseie em
alguma variedade falada prestigiosa, propicia certa conexão entre a ortografia e a
pronúncia. Por isso, os sotaques que refletem mais de perto a ortografia padrão
costumam ter mais prestígio que os que parecem afastar-se desta. Trata-se de uma
ilusão, mas suficientemente poderosa para levar-nos a falar sobre pronúncia em termos
ortográficos: ao dizermos que certo sotaque perde o s ou o r finais, acusamo-lo
injustamente de incorreto por não refletir a ortografia padrão, como se tal “desvio” fosse
índice de corrupção. Esta linha de idéias aplica-se a todos os aspectos da língua: as
pronúncias, formas, estruturas, e lexemas considerados padrão são valorizados, ao passo
que as formas não-padrão vêem-se desprestigiadas, embora resultem de processos
linguísticos naturais.
Nos textos em linguagem padrão a morfologia e a sintaxe obedecem a
parâmetros normativos, o léxico está isento de idiossincrasias ou regionalismos
reveladores da procedência de alguma personagem, e a ortografia favorece a
concentração nos conteúdos semânticos. É como se a linguagem normativa filtrasse o
que há de mais típico na fala real, apresentando-a numa versão homogeneizada que faz
da língua um veículo sem protagonismo próprio. São muito distintos os dois textos
seguintes, nos quais a variação linguística desempenha um papel significativo, e onde os
personagens tipificam um Outro exótico, cuja fala extravagante distancia-os dos
leitores. No primeiro texto, do período romântico, o indígena, socialmente subalterno,
aparece idealizado, e há menos intenção de retratar a fala que de ressaltar certa nobreza
putativa, mediante a convenção de uma linguagem artificialmente elevada.24
Poti saudou o amigo e falou assim:
—”Antes que o pai de Jacaúna e Poti, o valente guerreiro Jatobá,
mandasse sôbre todos os guerreiros pitiguaras, o grande tacape da nação
estava na destra de Bauireté, o maior chefe, pai de Jatobá. Foi êle que
veio pelas praias do mar até o rio do jaguar, e expulsou os tabajaras para
dentro das terras, marcando a cada tribo seu lugar; depois entrou pelo
sertão até a serra que tomou seu nome.”
José de Alencar, Iracema, Cap. XXII, p.346.
24
Sobre oralidade em José de Alencar e outros autores brasileiros do século dezenove, cf. Marisa Lajolo,
“Oralidade, um Passaporte para a Cidadania Literária Brasileira”. Língua e Cidadania. O Português no
Brasil. Campinas, Pontes Editores, 1996, pp. 107-123. Sobre oralidade em autores portugueses, cf.
Evelina Verdelho,. “Linguagem regional e linguagem popular no romance regionalista português.”
Boletim de Filologia 26: 1-4 (1980-1981), pp. 193-244.
43
Bem diversa é a seguinte representação do linguajar de índios num romance do
final do século vinte, onde tampouco há uma intenção de reproduzir uma fala real, e sim
de moldar um dialeto literário que contrasta com a fala das demais personagens. Uma
sintaxe simplificada, sem artigos, com um mínimo de formas verbais, frases recortadas,
poucas preposições ou conjunções, e apenas orações simples, sem subordinadas, eis aí
os elementos básicos da fala dos índios Teju e Anhê, que contam a história:25
Camunhá vivia alto da terra. Em cima, Pai Pedi, embaixo, Mãe Cedi.
Caça, peixe, mandioca, milho, Camunhá fazia festa. Comia inimigo.
Terra boa, mulher plantação. . . Caça corria, peixe no rio. . . . Teju disse:
“Anhangá vem. Anhangá zangado”. Camunhá dançando. Pai Pedi brabo,
Mãe Cedi braba. Anhangá zangado, Anhangá descia.”
(Álvaro Cardoso Gomes, O Sonho da Terra, p. 137)
Induzindo-nos à suspensão das regras da linguagem normativa, o dialeto literário
confronta-nos com formas excluídas da variedade padrão. A escolha dos traços
representativos depende em boa parte de decisões do autor. Ao passo que alguns usam
apenas poucos traços, formando assim um quadro estilizado, outros visam a um
detalhismo mais particularizado. Portanto, não surpreende que representações
contemporâneas (como no caso do dialeto rural nas obras de Pires ou Silveira) difiram
nos detalhes, muito embora possam ser ambas esteticamente válidas. Isto é possível
porque o dialeto literário não trata de reproduzir a fala, e sim de emulá-la, gerando
mimeticamente um discurso heteroglóssico capaz de evocar a oralidade, realizando
assim uma visão bakhtineana do texto de ficção como veículo de uma pluralidade de
vozes sócio-ideológicas. Ao empregar uma fala socialmente estigmatizada e subverter
não apenas a norma gramatical como também as regras do bom uso, o dialeto literário
permite questionar implicitamente o purismo subjacente ao normativismo linguístico, e
25
Álvaro Cardoso Gomes, O Sonho da Terra. São Paulo, L R Editores, 1983. A análise da passagem
citada e de outros aspectos da linguagem do romance acha-se em Milton M. Azevedo, “Vernacular
Speech as a Social Marker in Álvaro Cardoso Gomes’ O Sonho da Terra.” Em Homenagem a
Alexandrino Severino: Essays on the Portuguese Speaking World. Margo Milleret e M. C. Eakin (orgs.)
Austin, Texas: Host Publications, 1993a, pp. 99-113.
44
ao fazê-lo, abre um espaço para a voz de personagens socialmente marginalizados, ao
mesmo tempo que cria o efeito paródico que Bakhtin chamou “carnavalesco”.26
Como nos gêneros líricos --ópera, opereta, zarzuela, ou musical-- o dialeto
literário modula a linguagem, realçando, no sentido praguiano no termo,27 certos traços
salientes e omitindo outros que seriam indispensáveis a uma análise dialetológica ou
sociolinguística. O resultado é um código estilizado que possibilita, como assinalou
Norman Page, “to increase the possibilities of fiction dialog, in a manner that could
hardly be achieved by other means.”28 O dialeto literário funciona assim como um
código marcado, atribuindo às vozes dos personagens um valor contrastivo que define
uma relação complexa entre modos linguísticos e se projeta além de oposições binárias
tradicionais, quais sejam “padrão vs. não-padrão” ou “correto vs. incorreto”, além de
constituir uma metalinguagem para expressar conotações do universo referencial que a
escrita normativa não seria capaz de captar. Embora uma leitura superficial pudesse
interpretar o dialeto literário apenas como meio de dar cor local à narrativa, ou como
recurso cômico de pouca transcendência, uma análise mais cuidadosa revela que é
compatível com o comentário social, o qual é enfatizado pelo desvio da norma prescrita.
Quando a voz de uma personagem é moldada pela língua padrão, o leitor pode
acessar seu conteúdo semântico diretamente. O dialeto literário, porém, choca-se
propositalmente com o código padrão, atribuindo ao texto uma dimensão que ultrapassa
os significados puramente referenciais e desfamiliariza a língua, exigindo uma
interpretação não só em termos do significado denotativo como também de conotações
sociolinguísticas essenciais, o que vale dizer daqueles traços que a língua padrão tende a
camuflar. Realçando assim a linguagem, o dialeto literário acrescenta ao significado
referencial um simbolismo que aponta às relações sociais entre os personagens.
A compreensão de um texto literário enriquece-se quando os leitores são capazes
de ultrapassar a alienação induzida pela representação da fala atípica e decifrar tanto as
suas denotações como as suas conotações. Isto significa ser capaz de ouvir as vozes do
26
Cf. Mikhail Bakhtin, The dialogic imagination. Tradução de Caryl Emerson e Michael Holquist,
Austin, Texas: University of Texas Press, 1987; Michael Holquist; Dialogism. Bakhtin and his World.
Londres e Nova York, Routledge, 1990, p. 89.
27
Sobre o conceito de realçamento (ing. foregrounding) na escola linguística de Praga, cf. Geoffrey
Leech, “Pragmatic Principles in Shaw's You Never Can Tell”, em Language, Text and Context. Essays in
Stylistics, M. Toolan (org.), Londres, Routledge, 1992, e Jan MukaÍovský, “Standard Language and
Poetic Language”, em A Prague School Reader on Aesthetics, Literary Structure and Style, Paul L.
Garvin (org) Washington, D.C., Georgetown University Press, 1964.
28
Norman Page, Speech in the English Novel. 2a. ed. Houndmills, Basingstoke, Hampshire, MacMillan
Press, 1988, p. 94.
45
texto através de um ouvido mental, por assim dizer, a fim de descobrir o que têm a
informar sobre os personagens. Assim como os contrastes heteroglóssicos assinalam a
condição social de uma personagem com respeito aos demais --e ao leitor--, a análise
sistemática do dialeto literário revela valiosa informação adicional, desde que se
compreenda que a relação entre o dialeto literário e a variedade linguística representada
é mimética e evocativa, e portanto, indireta. Aquela análise pode iluminar temas como
as relações entre língua e nacionalidade, o impacto da ideologia nas representações
linguísticas, e as relações entre estas e as idéias políticas que influenciam as normas
linguísticas, ademais de contribuir à investigação de temas de identidade individual ou
coletiva. Por outro lado, na medida em que o dialeto literário serve de veículo à
literatura de testemunho, é pertinente inquirir sobre a fiabilidade de uma mensagem
transmitida por uma personagem cuja voz é mediada por um autor que não pertence
necessariamente à comunidade de fala representada, temas estes que permitem
vislumbrar todo um campo de investigação. No tocante à leitura como atividade
formalmente aprendida e conscientemente cultivada, tais considerações sugerem que,
assim como a teoria literária é fundamental à compreensão da literatura, são-lhe também
indispensáveis noções de teoria linguística, dialetologia e sociolinguística que permitam
compreender e refletir sobre textos representativos da variação regional ou social da
língua. Revela-se-nos dessa maneira a linguística literária como amplo campo de
pesquisa, motivado por um modo representativo protéico e intrigante, que oferece um
poderoso contraponto à escrita normativa. Como leitores, o dialeto literário desafia-nos
a interpretar não apenas o conteúdo cognitivo semântico, como também as conotações
sociais das formas linguísticas. Aceitando esse desafio, assumimos as regras do jogo e
admitimos a subversão das normas habituais, e ao fazê-lo, aprofundamos nossa
interação com o texto, do nível das idéias ao nível da linguagem, cuja forma torna-se
assim inseparável do que simbolizam as personagens, ressaltando a manifestação de
vozes individuais e permitindo a recuperação da oralidade mediante a reinserção
estética da fala no texto. A análise dessas representações enriquece a experiência
literária, revelando a variação linguística como parte integral do idioma e as formas nãopadrão como manifestações de uma diversidade cultural comunicativamente válida e
digna de respeito.
46
BIBLIOGRAFIA
ANDRADE, Mário de. “Foi sonho” in Os Filhos da Candinha, São Paulo: Livraria
Martins, 1943 [1933].
ARINOS, Afonso.O Mestre de Campo, em Obra Completa. Rio de Janeiro, Instituto
Nacional do Livro,1969 [1898].
ASSIS, Joaquim Maria Machado de. “Bons Dias.” Crônicas. Obra completa, Vol. 3. A.
Coutinho, org. Rio de Janeiro, Companhia José Aguilar Editora, 1962a, pp. 489-491.
AZEVEDO, Milton M. “Vernacular Speech as a Social Marker in Álvaro Cardoso
Gomes’ O Sonho da Terra.” Em Homenagem a Alexandrino Severino: Essays on the
Portuguese Speaking World. Margo Milleret e M. C. Eakin (orgs.) Austin, Texas: Host
Publications, 1993a.
BAKHTIN, Mikhail. The dialogic imagination. Tradução de Caryl Emerson e Michael
Holquist, Austin, Texas: University of Texas Press, 1987.
BAUM, Richard. Lengua culta, lengua literaria, lengua escrita. Materiales para una
caracterización de las lenguas de cultura. Barcelona: Alfa, [1987] 1989.
BRAGA, Belmiro. Na Cidade (O Sete-Nomes). Burleta em 1 Acto. 2a. edição. São
Paulo, Livraria Teixeira, 1935.
BUESCU, Maria Leonor Carvalhão (org.). Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente,
Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Volume II, 1983.
CARVALHO. Ana Maria. The Social Distribution of Spanish and Portuguese Dialects
in the Bilingual Town of Rivera, Uruguay. Tese de doutoramento, University of
California, Berkeley, 1998.
COELHO NETO, Henrique. Rei Negro. 2a. edição. Porto: Livraria Chardron 1926
[1914].
COLL, Magdalena. “La narrativa de Saúl Ibargoyen como representação literaria de una
frontera lingüística”, Hispania 80: 4 (1995).
Continuação das Estrambóticas Aventuras do Joaquim Bentinho (O Queima Campo),
São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1929.
Cornélio Pires, Estrambóticas Aventuras do Joaquim Bentinho (O Queima Campo). São
Paulo, Imprensa Metodista, 1924.
ELIZAINCÍN, Adolfo. Dialectos en contacto. Español y portugués en España y
América. Montevidéu: Arca Editorial, 1992.
ELIZAINCÍN, Adolfo; BEHARES, Luis & BARRIOS, Graciela. Nos falemo brasilero.
Montevidéu: Editorial Amesur, 1987.
FERGUSON, Charles A., “‘Foreigner Talk’ as the name of a simplified register’,
International Journal of the Sociology of Language, 28, 1981.
47
GOMES, Álvaro Cardoso. O Sonho da Terra. São Paulo, L R Editores, 1983.
HENSEY, Frederick. The Sociolinguistics of the Brazilian-Uruguayan Border. Haia,
Mouton. 1972.
________________. “Spanish, Portuguese and Fronteiriço: Languages in Contact in
Northern Uruguay.” International Journal of the Sociology of Language, 34, 1982.
HOLQUIST, Michael. Dialogism. Bakhtin and his World. Londres e Nova York,
Routledge, 1990.
Horacio Quiroga, 1978. “Un peón”. Em Cuentos completos. Alfonso Llambias de
Azevedo (org.). Montevideo: Ediciones de la Plaza, Vol. 1.
ISLAS, Saúl Ibargoyen. Fronteras de Joaquim Coluna. Caracas: Monte Avila Editores,
1975.
LAJOLO, Marisa. “Oralidade, um Passaporte para a Cidadania Literária Brasileira” in
Língua e Cidadania. O Português no Brasil. Campinas: Pontes Editores, 1996.
LEECH, Geoffrey. “Pragmatic Principles in Shaw's You Never Can Tell”, em
Language, Text and Context. Essays in Stylistics, M. Toolan (org.), Londres, Routledge,
1992, e Jan MukaÍovský, “Standard Language and Poetic Language”, em A Prague
School Reader on Aesthetics, Literary Structure and Style, Paul L. Garvin (org)
Washington, D.C., Georgetown University Press, 1964.
PAGE, Norman. Speech in the English Novel. 2a. ed. Houndmills, Basingstoke,
Hampshire, MacMillan Press, 1988.
PAIVA, Manuel de Oliveira. Dona Guidinha do Poço, em Obra Completa. Rolando
Morel Pinto (org.). Rio de Janeiro, Graphia Editorial, 1993 [escrito entre 1890 e 1892;
1a edição, 1952].
PENNY, Ralph. Variation and Change in Spanish. Cambridge, Cambridge University
Press, 2000.
ROMAINE, Suzanne. Bilingualism, 2a. edição, Oxford, Blackwell, 1995.
RONA, Pedro. El dialecto fronterizo del Norte del Uruguay. Montevidéu, Adolfo
Linardi, 1965.
SEBBA, Mark. Contact Languages. Pidgins and Creoles. Nova York, St. Martin’s
Press. 1997.
SILVEIRA, Valdomiro. Leréias. (Histórias contadas por eles mesmos). 2a. edição. Rio
de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1975 [1945].
TEYSSIER, Paul. La langue de Gil Vicente, Paris, Librairie C. Klincksieck, 1959.
48
VERDELHO, Evelina. “Linguagem regional e linguagem popular no romance
regionalista português.” Boletim de Filologia 26: 1-4 (1980-1981).
VERÍSSIMO, Érico. Um Lugar ao Sol. Em Ficção Completa, Vol. 1. Rio de Janeiro
WILLIMSON, Juanita & BURKE, V. M. (orgs.). A Various Language: Perspectives on
American Dialects, Nova York, Holt, Rinehart and Winston [1950] 1971.
49
A Comunicação no circo
Luciano José Draetta Ferreira
29
Resumo: Este artigo é resultado de um trabalho de conclusão do curso de Letras em 2010 na
FASS – Faculdade São Sebastião. Propomos uma análise da comunicação no circo, isto é, das
formas narrativas e seus resultados estéticos. A pesquisa está apoiada na observação de
espetáculos e entrevistas de diretores, proprietários e artistas, de variadas faixas de idade e
experiências profissionais. O estudo bibliográfico buscou referências históricas, filosóficas e
antropológicas. Levamos em consideração as diversas apropriações e transformações do circo,
ao longo do tempo, e as distintas origens e cosmologias dos agentes envolvidos.
Palavras-chave: circo, comunicação, narrativas, resultado estético.
O público e os espaços dos espetáculos de circo
A arte circense teve maior ou menor apreço de seus expectadores ao longo da
história, por diversos motivos que passavam por questões econômicas, regionais,
culturais, de urbanização, de mercado, das mídias, entre tantas outras interferências que
refletiram na produção circense.
Os circos brasileiros de lona, de pequeno, médio e grande porte, sofreram as
consequências das transformações da sociedade do século XX. A densidade
demográfica e a ocupação dos centros das cidades pelas edificações limitaram a entrada
dos circos de lona nessas regiões. O alto grau de desenvolvimento tecnológico e a
orientação das regras de mercado, com um consumo voraz criado e impulsionado pela
indústria cultural influenciaram a produção e distribuição do espetáculo circense.
A região central da capital paulista ao longo do século XX assistiu a um
decréscimo da circulação dos circos de lona. Já o início do século XXI marcou o início
de um movimento contrário. Os terrenos dos bairros passaram a abrigar as lonas e seus
respectivos espetáculos. Já o espetáculo com técnicas circense apresentado em teatros,
ruas e instituições sócio-culturais têm um significativo crescimento na última década do
século XX.
29
Iniciou a carreira profissional de artista circense em 1995. Atua como palhaço Surubim no Circo
Navegador. Já montou dez espetáculos entre 1997 e 2011, revezando entre as funções de palhaço, ator,
autor, produtor e diretor.
50
No estudo de Magnani30 sobre o lazer na periferia, observamos a preferência das
“classes populares” pelos espetáculos de circo. Ele nos traz o surpreendente dado de
100 a 150 lonas de circo de pequeno e médio porte circulando pelos bairros periféricos
da capital paulista nos anos 70 e 80. Essa grande quantidade de lonas e espetáculos,
responsável por uma significativa fatia do lazer do paulistano, não é percebida,
“contabilizada” ou estimulada pelas instituições governamentais ou não governamentais
responsáveis pela gestão da cultura na cidade, nem, tão pouco, pela mídia, porém, isso
não anula sua força. No início do século XXI percebemos um grande êxodo desses
pequenos circos para cidades menores no entorno dos grandes centros.
As dificuldades de montagem de circos nas cidades urbanizadas são muitas.
Começam pela escassez de terrenos adequados, falta de apoio institucional e
governamental, restrições legislativas, concorrência com outras formas de lazer
“gratuitas”, entre outros tantos empecilhos.
A montagem de uma lona de circo está intimamente ligada à estruturação
arquitetônica, e o desenvolvimento sócio-cultural e econômico das cidades. Nesse
sentido, nos apoiamos nos pensamento da geógrafa Ana Fani A. Carlos31, que reflete
sobre a transformação do significado do espaço ao longo do tempo, deixando de ser um
“lugar de estar” para ser um “lugar de passagem” “em profundo processo de mutação
em que no seio da agitação a multidão cada vez mais densa, amorfa, perde sua
identidade”. Ainda segundo a autora: “Na rua encontra-se não só a vida, mas os
fragmentos da vida (...) no movimento da rua encontra-se o movimento do mundo
moderno” 32.
O circo quando é “convidado” a participar da vida da cidade, atribui-lhe a
virtude da sociabilidade e exerce sua função de intercâmbio, comunhão e encantamento
dos munícipes.
Originalmente a composição do público em espetáculos de circo de lona era
bastante heterogêneo, mas influenciada pelas transformações urbanas e sociais ficaram
estabelecidas linhas “invisíveis” de estratificação social orientadas, em grande parte,
pelos valores dos ingressos e pela localização das lonas que resistem as dificuldades
urbanas.
30
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço. São Paulo: Brasiliense, 1984.
CARLOS, Ana Fani A. O Lugar no/do Mundo. São Paulo: Hucitec, 1996. p.88
32
Idem. p. 85
31
51
O gosto e as escolhas dos moradores das regiões centrais da capital paulista
foram orientados pelo re-ordenamento urbano e também pela institucionalização da
fruição cultural. Algumas instituições como imprensa, críticos, prêmios, secretarias de
cultura, salas de teatro, SESC, SESI, instituições governamentais e não-governamentais,
entre outras, são mediadoras da produção e distribuição artística. Estas são responsáveis
pela atribuição de valores, expectativas e modelos que refletem diretamente no que é
apresentado ao público e interferem na elaboração do gosto dos espectadores.
Da mesma forma que são distribuídas as pessoas dentro de um centro urbano,
obedecendo às regras de mercado e valor social, também são estruturadas as suas
representações, instituições e formas de lazer. Seguindo essas regras, as lonas de circos
pequenos e menos estruturados são montadas nas periferias e atendem o público de
baixa renda. Estes circos sofrem as consequências da falta de recursos, da legislação que
não os favorece e da concorrência com entretenimento eletrônico e estruturas
comerciais que agregam uma grande diversidade de lazer e entretenimento.
Em São Paulo, Capital, os terrenos bem localizados, em pontos intermediários
entre o centro e as periferias, como a Marginal Tietê, próximo ao Anhembi, ou Radial
Leste, próximo a estação de metrô Tatuapé, entre outros, são ocupados pelos grandes
circos de lona, por exemplo: o Spacial e o Stankowish. A ocupação desses terrenos se
deve ao tamanho da lona, capacidade de atração de público e condições de custeio
desses espaços. Os benefícios são a grande visibilidade das avenidas movimentadas e a
facilidade de acesso.
Alguns circos voltaram a ocupar os terrenos do centro da cidade, nesta última
década, em razão da representatividade dos artistas, e sua institucionalização, por meio
de entidades como a Cooperativa Brasileira de Circo33. Os circos Roda Brasil, Fiesta,
Zanni e Vox, montaram suas lonas no Memorial da América Latina34, revitalizando este
circuito de circos de lona no centro da cidade. Esta retomada deve-se também ao
amparo de instituições governamentais, prêmios por intermédio de editais públicos,
investimento de empresas particulares por meio das leis de incentivo fiscal,
patrocinadores, ampla visibilidade da imprensa e investimentos de recursos dos próprios
circos.
33
Entidade sediada em São Paulo, criada e mantida pelo setor circense com objetivo de fortalecer o circo
no Brasil. Em 2010 reúne 400 cooperados de todo o país.
34
O Memorial é um conjunto arquitetônico projetado por Oscar Niemeyer que fica localizado ao lado do
metrô Barra Funda e nasceu com a missão de estreitar as relações culturais, políticas, econômicas e
sociais do Brasil com os demais países da América Latina.
52
Recentemente também foram usados terrenos particulares em bairros nobres,
como por exemplo, o Circo Vox que se mantém montado em terreno próprio no bairro
Chácara Santo Antonio. O Circo Zanni ocupou o terreno privilegiado da região central
da cidade, localizado na esquina da Rua Augusta com Rua Caio Prado. É importante
lembrar que essa reconquista de espaços urbanos conta com investimentos próprios,
apoio de patrocinadores e leis de incentivo fiscal. Somente o resultado de bilheteria não
é capaz de sustentar os altos custos imobiliários dos centros urbanos, além dos custos do
espetáculo e toda a sua estrutura.
O vale do Anhangabaú, local tradicional de instalação de lonas de circo na
primeira metade do século XX, foi retomado com eventos anuais desde 2006, com a
montagem da lona da Cooperativa Brasileira de Circo, para realização da “Palhaçaria
Paulistana”, que reúne dezenas de artistas em shows de variedade apresentados
gratuitamente ao longo de uma semana com várias sessões gratuitas por dia. Trata-se de
uma iniciativa de democratização do acesso e valorização do circo, que amplia a
visibilidade dos artistas e abriga os espectadores de maneira indiscriminada. A
receptividade por parte do público e da imprensa é surpreendente.
O Parque Vila Lobos, da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente,
localizado em uma das regiões mais nobres da cidade de São Paulo, foi “palco” por três
anos consecutivos (entre 2008 e 2010) do Cirque Du Soleil. Este além de contar com
terreno público, de ótima localização, “protegido” pelo parque, com estacionamento,
entre outros benefícios, contou com largo apoio dos mecanismos de incentivo fiscal35.
Assim sendo, os terrenos mais privilegiados foram ocupados pelos circos que
dominam os mecanismos de patrocínio e isenção fiscal, além de terem um ótimo
desempenho diante dos meios publicitários e jornalísticos. Trata-se também de uma
reorganização econômica.
Nesse cenário, estes espetáculos estão se aproximando de uma faixa da mais
privilegiada da população paulistana e estimulando o interesse deste grupo pelo circo,
na medida em que foram adequados alguns mecanismos que reforçam a comunicação.
Questões estéticas, de identidade, urbanísticas, entre outros fatores, contribuíram pra o
crescimento do interesse deste grupo pelo circo. O primor estético, o rigor técnico e a
35
O Cirque Du Soleil reuniu em uma única temporada em 2007, quatro vez mais recursos financeiros, do
que a totalidade do investimento da Funarte, órgão do Governo Federal responsável pelo fomento ao
setor, repassou por meio de editais para todos os circos brasileiros durante os 12 meses do mesmo ano. Os
recursos captados pelo circo canadense, via Lei Rouanet, são oriundos de renúncia fiscal, isto é, de
impostos que deixaram de ser recolhidos aos cofres públicos, pelas empresas patrocinadoras, e foram
investidos diretamente no empreendimento cultural estrangeiro.
53
boa qualidade das produções atendem as necessidades de entretenimento e de
“consumo” da sociedade contemporânea. O valor dos ingressos e a localização acabam
por impossibilitar o acesso das populações de baixa renda a estes espetáculos.
Formas de transmissão do conhecimento circense
Num processo continuo de reorganização urbana e social, como já foi visto
anteriormente, destacamos a mudança nas formas de transferência do conhecimento
circense, isto é, os métodos e instituições de ensino-aprendizagem das habilidades do
circo, como um fator de grande influência na transformação do setor.
Na tradição circense a transmissão do conhecimento se dá essencialmente no
interior das famílias, com algumas exceções a novos integrantes que assumem o modo
de pensar e viver dos circenses e são incorporados no grupo social. A transmissão do
conhecimento se dá de forma oral e corporal, orientadas pelas vivências e pelos laços de
consanguinidade, afinidade e reciprocidade. Esse modelo de organização social é um
elemento importante no processo de afirmação de uma identidade diferenciada.
Com a reorganização do “sistema” de distribuição dos espetáculos de circos de
lona, em razão das mudanças dos meios de produção de distribuição de bens, serviços,
conhecimentos e informações na sociedade da segunda metade do século XX, houve um
reflexo nos postos de trabalho nos circos de lona. Trata-se de uma equação que reflete
mudanças comportamentais. A fixação de um significativo número de circenses nas
cidades se dá, em parte pela escassez de vagas para o exercício da profissão. Em
paralelo ao êxodo de alguns que não tiveram escolha, percebe-se no discurso36 das
famílias de circo de maior ascensão econômica, um desejo de adesão aos “benefícios”
das sociedades urbanas, como por exemplo: o estudo na universidade. O que
possivelmente propiciaria melhor interação do circo e dos circenses com a sociedade
moderna.
Em meio a essas transformações surgiram outras possibilidades de transmissão
do conhecimento circense por meio de escolas especializadas. A transmissão de
conhecimento das artes do circo deixou de ser orientado exclusivamente pelos
princípios de consanguinidade, afinidade e reciprocidade, no interior das famílias
36
Observado nas entrevistas do trabalho de campo que originou esse artigo.
54
tradicionais e das lonas, para ser fornecido como um “produto” de forma institucional
em aulas nas escolas de circo.
No Brasil a primeira experiência de ensino das artes circenses em escola foi a
Academia Piolin de Artes Circenses, fundada em 1978 na cidade de São Paulo. Foi uma
iniciativa dos circenses aliada a uma parceria institucional governamental. No Rio de
Janeiro, surgiu em 1982 a Escola Nacional de Circo com o apoio do Instituto Nacional
de Artes Cênicas (INACEN).
Estas iniciativas visavam atender preferencialmente os filhos dos circenses, a
escola tinha o objetivo de tentar reabilitar as condições de profissionalização,
preservando o conhecimento dos mestres circenses. Segundo Erminia Silva37 “o que de
fato acabou acontecendo é que os filhos de gente de circo pouco frequentavam tais
escolas, cujos alunos eram, na maioria, pessoas de todas as idades, vindas dos mais
diferentes estratos sociais e com propostas e objetivos também diversos”. Um grande
número de artistas de teatro e dança que procuraram as técnicas circenses como
complementação de sua performance cênica, bem como, outros jovens, não artistas, em
busca de novas experiências, se transformaram em artistas. Alguns desses jovens
fundaram companhias que hoje despontam pela excelência artística e representam o
circo brasileiro inclusive internacionalmente.
Nas entrevistas aplicadas na pesquisa de campo foi possível observar que as
famílias tradicionais assistiram a essas transformações, algumas se articulando dentro da
nova realidade como artistas, professores, mestres, diretores, orientadores, etc; outras se
sentindo roubadas preferiram manter a distância e se apegar nas formas de produção e
vida tradicional do circo.
Comunicabilidade
Segundo Marcondes38, a comunicação se dá num campo “invisível” entre o
emissor e o receptor, que não é nem um, nem o outro, trata-se de um produto que resulta
da intenção e da percepção. Entre os meios de se estabelecer comunicação, entre os
37
SILVA, Ermínia; CÂMARA, Rogério Sette. O ensino de Arte Circense no Brasil: Breve histórico e
algumas reflexões. http://www.funarte.gov.br/circo/escola-nacional-de-circo-um-historico/ Acesso em: 20
nov. 2010.
38
MARCONDES FILHO, Ciro. Até que ponto, de fato, nos comunicamos?. São Paulo: Paulus, 2004.
55
homens, podemos destacar a potencialidade das manifestações artísticas, pela poética,
pela subjetividade e capacidade de sublimação. Santaella39 nos lembra que:
“os artistas conseguem dar forma a interrogações humanas que as
outras linguagens da cultura ainda não puderam claramente explicitar
(...) há que se prestar atenção ao que os artistas fazem, pois, com suas
antenas ligadas a uma sensibilidade pensante, sinalizam os rumos do
projeto humano”.
Segundo Aristóteles40 “não compete ao poeta narrar exatamente o que
aconteceu, mas sim o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança
ou a necessidade”. Arriscaríamos dizer que a poética estimula as sensações e preocupase principalmente com o impossível e com o intangível, capazes de florescer camadas
mais sutis “no/do” ser humano.
O circo diante das demais manifestações artísticas, ainda vai além, alcançando
destaque no que diz respeito à comunicação. Esse potencial de comunicabilidade se dá
com maior ênfase no circo por se tratar de uma manifestação estética expressa
essencialmente pela corporeidade.
Santaella41 nos lembra: “os seres humanos são, (...) corporificados, a despeito de
todas as tentativas dos filósofos, desde o Iluminismo, para descrevê-lo como criaturas
de razão e afirmar que essa capacidade para raciocinar afasta os humanos de suas
características como criaturas.” Nessa perspectiva, apontamos que a comunicação no
circo se dá inicialmente pelo contato visual, não se exige do espectador nenhum
conhecimento prévio ou domínio de faculdades complexas. A compreensão de suas
mensagens depende basicamente das sensações causadas pelo artista no espectador. É
importante lembrar que a essa leitura sensorial do movimento corporal, está
intimamente ligada à capacidade do artista de transformar o virtuosismo em espetáculo.
O estimulo das sensações se dá na medida em que este corpo desafia as leis naturais
como, por exemplo, a da gravidade, realizando o “improvável” e atribuindo-lhe a
“espetacularidade” que justifica o interesse do público.
As “regras” no circo são simples e rapidamente apreendidas pelo público,
qualidade esta, que potencializam a comunicação. A superação dos limites do corpo lhe
atribui novos significados e causa encantamento e admiração do espectador. Esse corpo,
apesar de ser comum a todos os homens e, por isso mesmo, entendido na sua
39
SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação. São Paulo: Paulus, 2004.
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro:
Tecnoprint, s/d.
41
Op.cit.
40
56
fisicalidade, no circo assume a função de “super-corpo” reflete o desejo, o sonho, a
sublimação, a superação e, em última instância, o desafio da própria existência do
corpo.
Segundo Mário Fernando Bolognesi42, na maioria das situações do circo a
questão posta está relacionada à eterna tensão entre o erro e o acerto, entre a vida e a
morte. Essa tensão que permeia toda a existência humana é mais um fator de
potencialização da comunicação circense. Pode trata-se de um risco simbólico, no qual
o erro não causa danos além da frustração da expectativa, como no caso do
malabarismo. Mas também pode representar um risco real de morte, no caso dos
trapezistas voadores, que de fato arriscam suas vidas. O palhaço, por sua vez, traz uma
nova perspectiva de denúncia e transgressão das limitações que a vida impõe, ele não
atribui ao erro a frustração, mas percebe a incongruência da obrigatoriedade do acerto.
O resultado dessa perspectiva oferecida pelo palhaço é a identificação da potencialidade
do homem, expectador, com seus erros, ele é capaz de criar poesia e sublimação nas
contrariedades da existência. Esse possível “escapismo” tem uma função vital de trazer
ao público o relaxamento das tensões criadas pela defesa da vida nos números que
trazem a sensação do risco de morte.
Mais uma vez contamos com o apoio de Bolognesi que contribui de forma clara
e objetiva para o entendimento do corpo no circo:
a matriz do circo é o corpo, ora sublime, ora grotesco. O corpo não é
uma coisa, mas um organismo vivo que desafia seus próprios limites. O
artista tem consciência da possibilidade do fracasso, que pode se dar em
qualquer espetáculo, independentemente de todo treino e de toda
perícia. A queda do trapezista em seu desempenho não é apenas
imagem ficcional. O público presencia a construção do suspense, do
calafrio, seguido de sua superação. No momento seguinte, o espetáculo
é “interrompido” e o público é acometido pela descontração da
performance dos palhaços. O corpo feito espetáculo deixa de lado a
roupa cotidiana que o esconde para se mostrar em sua grandeza
contraditória, no jogo incessante entre o sublime e o grotesco.
Espetacularmente, ele se desnuda para revelar toda a sua
potencialidade. A possibilidade do fracasso é evidente, para ser
superada, no momento seguinte, com o riso dos palhaços. O corpo
sublime, no chão ou nas alturas, desafia, em forma de espetáculo, as
leis naturais. O circo, assim, trouxe às artes cênicas, no século XIX, a
reposição do corpo humano como fator espetacular.
42
BOLOGNESI,
Mário
Fernando.
O
Circo
“Civilizado”.
http://sitemason.vanderbilt.edu/files/c36CfC/Bolognesi%20Mrio%20Fernando.pdf Acesso em: 27 jun.
2010. p.4
57
Destacamos ainda outra característica que reforça a comunicabilidade no circo: a
possibilidade de interlocução entre o expectador e o artista. Em maior ou menor grau,
dependendo do tipo de espetáculo, a platéia assume papel indispensável na
representação circense. Essa característica apóia-se também na estrutura arquitetônica
do circo, que em geral tem o formato de arena, os artistas em nível inferior e a platéia
disposta em arquibancadas posicionadas em sentido ascendente em torno do picadeiro.
Nessa perspectiva observamos um traço característico das artes populares que dá status
aos expectadores e em alguns casos permite até a participação, e o “protagonismos” em
outras situações.
Segundo Magnani “o entretenimento popular sobrevive adaptando-se as
características e gostos do seu público”43, ele aponta três importantes características que
reforçam a comunicação no circo: a festa, a música e o drama. Observamos que esses
elementos contribuem na percepção da potência do circo:
•
A festa, uma característica de euforia embutida no circo, que transparece
desde a montagem da lona com suas cores vibrantes e do envolvimento
de um grande número de pessoas (famílias do circo, artistas, peões,
crianças e adultos da comunidade), essa festa se concretiza no espetáculo
que reúne características de: glamour, alegria e performances
surpreendentes. Trata-se, acima de tudo, da criação do lugar de encontro
para o público.
•
A música, peça fundamental no circo das suas mais variadas
modalidades, ela apóia o espetáculo como estímulo sensorial da platéia e
como moldura da movimentação cênica, imprimindo tensão, poesia,
comicidade, magia e encantamento, de acordo com a intencionalidade do
número circense.
•
O drama, com o sentido de ação, está presente em todas as atividades do
espetáculo circense e reforça a “tensão” na narrativa do circo que
mantém o espectador atento em razão de um perigo iminente que
permeia a maioria das situações da cena circense.
A interdependência público-espetáculo reforça a comunicação, por trata-se do
“empoderamento” do espectador. A compra do ingresso dá ao público o direito de
43
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.111.
58
sentar-se, geralmente, em nível superior ao artista, bater palmas ao longo do espetáculo,
comer e beber durante a apresentação, fazer comentários sobre o que está vendo. Em
alguns casos, em espetáculos muito populares, intervir de forma oral com a aprovação
ou rejeição do que é apresentado.
O público do espetáculo circense é tratado com distinção, muito bem
representado pelos clássicos bordões usados pelos apresentadores: “respeitável
público”, “excelentíssima platéia”, “distinta localidade”, entre outros. Esses são mais
alguns traços que valorizam o público e causam a sensação de participação ativa e
interlocução com o espetáculo.
Na relação com outros meios de comunicação eletrônico, Magnani nos lembra
que a arte circense “apesar da concorrência e presença da televisão, rádio, indústria do
disco, etc, não foi destruída pela ação dos meios de comunicação de massas; ao
contrário, não só sobrevive como ademais mantém com eles uma série de vínculos”44.
Nota-se uma apropriação da popularidade de outras mídias, que são traduzidas de
acordo com as conveniências, para dentro do espetáculo de circo, re-significando-as
com a perspectiva de atingir os objetivos de comunicabilidade.
Essa apropriação se dá em diferentes níveis de acordo com o universo simbólico
dos artistas-criadores e do público. Da intenção à realização existe um grande espaço,
isto é, entre o processo de elaboração (por parte do artista) e recepção (por parte do
espectador) há um percurso a ser trilhado, o que demanda muita atenção. Algumas
dificuldades postas para a elaboração e execução da performance circense são: a falta de
recursos financeiros e de conhecimento tecnológico.
Essas duas carências podem
indicar, em alguns casos, um ótimo resultado, na medida em que a escassez de recursos
materiais potencializa os recursos humanos e evidencia a capacidade de criativa dos
artistas. No entanto, notamos por meio das entrevistas com artistas e proprietários, em
inúmeras lonas de pequeno porte, que a escassez de recursos materiais inibe, de certa
forma, o desenvolvimento artístico e compromete o resultado estético.
Alguns entrevistados declararam a necessidade de recursos financeiros para
melhorar a sua condição de vida e capacidade profissional. Fica claro a necessidade de
recursos para atender necessidades primárias de um espetáculo como, por exemplo: a
interação com tecnologias de iluminação e sonorização, automação de aparelhos por
44
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 24.
59
meio de motores, melhorias nas condições de recepção do público, confecção de
cenários e figurinos, entre outras ferramentas que podem “modernizar” o espetáculo
circense.
Em busca da comunicabilidade o circo que detêm mais recursos interage com
tecnologias sofisticadas que causam maior interesse no público urbano de estratos
sociais superiores que estão doutrinados para gostar de produtos de alto grau de
sofisticação.
Os circos menos privilegiados economicamente que necessitam ampliar a
entrada de recursos, a atração de público e venda de ingressos, investem na
comunicação com as camadas mais populares da sociedade, muitas vezes, por meio da
incorporação de elementos – a sua maioria televisivos – em seus shows, como por
exemplo: personagens, bordões, arquétipos, idéias e até mesmo programas. Essa escolha
pode resultar no “empobrecimento” da performance artística, em razão da
incompatibilidade entre os recursos da produção televisiva e da apresentação (ao vivo)
nos circos. Os recursos técnicos e linguagens, do circo e da TV, são muito distintos. É
impossível obter os resultados de uma mídia em outra, consequentemente, esta
iniciativa em geral cumpre com a função de atração de público, mas é nociva para o
circo, na medida em que o descaracteriza, abrindo mão, em muitos casos, do princípio
de “espetacularidade” e da superação física intrínsecas ao circo.
É indispensável lembrar que outras mídias como o cinema e a televisão
constantemente se apropriam do circo, e neste caso obtêm êxito na maioria das vezes.
Destacamos alguns exemplos em épocas distintos: “Carlitos” criado por Charlie
Chaplin, apresentada no cinema a performance acrobática e a lógica do palhaço. Os
shows de palhaços na televisão: Arrelia, Torresmo e Carequinha, entre outros, que
migraram com a magia do circo para a televisão atribuído a figura do palhaço a função
de apresentador e animador. “Os Trapalhões”, quarteto que marcou a TV brasileira com
a apresentação de cenas de circo obedecendo às rotinas tradicionais, a lógica e as
técnicas do circo. Esses casos denotam a capacidade das outras mídias apropriarem-se
da popularidade e da capacidade de comunicação do circo.
Algumas dificuldades cotidianas
O artista de circo sempre foi reconhecido pela sua versatilidade, percebida
principalmente em razão da auto-suficiência e grande capacidade de gerir adversidades.
60
Essa característica está relacionada com a vida nômade e necessidade de domínio de
habilidades das mais diversas. O circense na tradição é responsável pela criação de seu
número assumindo funções de figurinista, cenógrafo, ensaiador, etc, que vão além do
virtuosismo e da performance artística. Entendendo o espetáculo como um todo, o
artista, principalmente dos circos pequenos, também se dedica a funções de eletricidade,
porteiro, bilheteiro, capataz, administrador, iluminador, montador, divulgador etc.
A gestão tradicional ou familiar dos circos tem dificuldade de adequação com o
sistema de produção da sociedade do século XXI. Os mecanismos de renúncia fiscal,
capitação de recursos, elaboração de projetos e inscrição em editais públicos, exigem do
artista, proprietário ou produtor circenses um domínio de ferramentas nem sempre
disponíveis dentro da sua perspectiva pessoal e profissional.
Outros dois aspectos das transformações sofridas pelo circo nos últimos tempos
são: sistema de contratação de artistas e de criação de espetáculos. No primeiro aspecto
as formas de contratação deixaram de ser o tradicional encontro no Café dos Artistas45
no Largo do Paissandu, transformando-se na seleção por meio de audição46. Nessa nova
perspectiva a informalidade na contratação, em alguns casos, deu espaço formalização
com recolhimento de impostos, garantia de direitos trabalhistas etc. No segundo aspecto
a direção do espetáculo deixou de ser responsabilidade exclusiva do dono do circo – que
a realizava de maneira intencional ou de acordo com as condições e conveniências de
cada momento – e foi transferida a um grupo de pessoas contratadas para as áreas de
coreografia, direção cênica, direção musical, criação de cenografia e figurinos.
Devemos levar em consideração que na transformação das formas de criação e
produção circenses, há ainda espaço para o cooperativismo. Nessas estruturas de gestão
horizontal, um grupo de artistas, orientados pelo seu desejo de realização profissional,
reúnem-se buscando o fortalecimento das estruturas artística, empresarial e
administrativa.
De acordo com as entrevistas colhidas na pesquisa de campo, as famílias
tradicionais de circo, apontam que as escolas são capazes de transmitir a técnica e as
habilidades circenses, no entanto, não incluem em seus currículos a vivência na lona de
45
O “Café dos Artistas” é um encontro de artistas e empresários circenses que acontecia no dia de folga
da categoria, segunda-feira, no Largo do Paissandu, chegando a reunir mais de 600 pessoas. Era um lugar
de encontros sociais, um marco importante de referência dos artistas, que iam procurar trabalho, e de
empresários, agentes culturais e donos de circo de todo Brasil, que procuravam artistas para trabalhar em
seus espetáculos.
46
Processo de seleção de artistas que busca os mais talentosos para a participação de espetáculos.
61
circo que exige muitos outros atributos, além da destreza para a realização da
performance individual de cada artista.
Nas visitas aos circos e entrevistas, percebemos que, em alguns casos, os
recursos financeiros não cobrem os custeios operacionais. As equipes muito reduzidas
se revezam em funções artísticas, técnicas, domésticas e comerciais. Essa situação
consome a energia dos artistas nas necessidades básicas para a subsistência. Eles estão
ocupados na manutenção dos precários equipamentos e na divulgação, em busca de
êxito na próxima apresentação. Percebemos mais uma reclamação dos circenses mais
velhos, que sinalizam a dedicação de tempo dos artistas jovens aos computadores, sites
de relacionamentos, chats e jogos virtuais. O tempo dividido entre as diversas funções
compromete a dedicação aos ensaios e limita o exercício criativo.
Apropriação e re-significação
O contraste de artistas e maneiras de se apropriar da manifestação circense
aponta distinções nas práticas, nos resultados estéticos e na relação com as platéias. O
cenário circense do século XXI está composto de maneira plural e multifacetada,
abrigando as mais diversas tendências e vertentes. A riqueza do convívio de tantas
formas distintas de se manifestar por meio da mesma arte é a construção de novas
perspectivas a partir de um mesmo ponto de partida: o circo.
A apropriação e a re-significação são traços marcantes na trajetória do circo,
encaminhamos o estudo no sentido do entendimento de como se dão as escolhas que
compõem os espetáculos circenses. A estrutura tradicional de vida no circo é orientada
pelos laços de consanguinidade, afinidade e reciprocidade. Nessa perspectiva a
identidade do circense reafirma-se na forma de vida, na relação com a lona, na
cosmologia, na criação estética, na estrutura empresarial e nas formas de transmissão do
conhecimento.
É indispensável para o espetáculo circense uma adequação ao universo
simbólico do espectador. A intencionalidade nas escolhas, desde o terreno ou bairro em
que se monta a lona, os equipamentos e números que serão apresentados, e acima de
tudo, as escolhas estéticas, serão determinantes no resultado do espetáculo e sua
apreciação por parte do público. A sujeição, geralmente por limitações econômicas,
pode resultar na incompatibilidade entre a criação artística e a expectativa da platéia.
Muitas vezes a apropriação de uma grande variedade de signos que não dialogam entre
62
si, fruto da falta de referências ou de recursos financeiros, resulta em um desastroso
descompasso entre as expectativas dos artistas e o resultado da performance artística.
Na composição do mosaico que resulta num espetáculo, se os elementos não se
comunicam com fluidez, o espectador, seja qual for o seu universo simbólico, é capaz
de perceber o hiato entre a intenção e a execução. De acordo com Amir Haddad47 “a
arte deve ser uma armadilha perfeita e imperceptível”, isto é, ao espectador deve-se
reservar o estímulo sensorial, a possibilidade de perceber a ação e se envolver no jogo,
sem se dar conta das particularidades técnicas e dos recursos empregados na sua
execução.
Na grande confluência do cenário circense contemporâneo; este pode ser o
antídoto e o veneno da criação estética no circo. No espetáculo as regras têm que ser
conhecidas pelos participantes, isto é, o apreço das platéias depende de uma interação
de símbolos e de um discurso que faça sentido para o expectador. A re-significação de
elementos contemporâneos num espetáculo tradicional, bem como, a apropriação da
tradição, de maneira descontextualizada, corre o risco de não alcançar o objetivo de
comunicação esperado.
Para provocar mais sobre os possíveis contrastes nas manifestações circenses
trazemos o conceito de bricolagem: que segundo Lévi-Strauss, apud Magnani, é
“resultado de um processo que, com fragmentos de estruturas de diferentes épocas e
origens, elabora um novo arranjo onde são visíveis, no entanto as marcas das antigas
matrizes, e de algumas de suas regras”48. Nessa perspectiva é salutar percebermos o
empenho na re-elaboração constante das práticas circenses, levando-se em consideração
a capacidade de recriação do espetáculo de acordo com as necessidades de
comunicabilidade, a adequação ao público e os anseios estéticos dos artistas.
Nessas perspectivas foram observados os espetáculos de circo no trabalho de
campo. Identificamos uma experiência que pode nos auxiliar no estudo das confluências
estéticas no universo circense. O Circo Zanni, em suas temporadas de 2007 e 2008, traz
a cena traços nítidos do espetáculo tradicional como a presença do apresentador, a
banda, a sequencia de números encadeados de forma clássica, reprises de palhaço, a
música ao vivo, a cenografia, as arquibancadas, a programação visual, o tratamento do
público, entre outras tantas características.
47
48
Amir Haddad (1937-). Diretor e ator de teatro. Em conversa informal.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço. São Paulo: Brasiliense, 1984, p. 74.
63
Trata-se de um grupo de jovens, brasileiros e argentinos, que aprenderam as
técnicas circenses em escolas e desenvolveram uma performance de alto grau de
dificuldade. O espetáculo traz o virtuosismo em uma medida adequada lembrando
sempre a condição humana dos artistas. A capacidade de superação e entrega ao risco, é
combinada com uma presença respeitosa e um carisma admirável. O espetáculo é capaz
de dialogar com um público bastante heterogêneo lembrando-o da matriz tradicional do
circo.
Os números foram elaborados individualmente de acordo com o universo
simbólico e as experiências de cada artista e agrupados em sequência pelo diretor do
circo, a trilha sonora, criada exclusivamente para o espetáculo e executada ao vivo pelos
próprios artistas que se revezam tocando diversos instrumentos enquanto seus
companheiros estão no picadeiro executando os números de habilidades. Essa
cooperação ainda é reforçada na medida em que os artistas também fazem a função de
barreira49 e se colocam a serviço do número dos protagonistas de cada número. O
destaque para este circo se dá em razão da comunicabilidade alta e o apreço que o
espetáculo atinge diante da platéia.
Na experiência acima percebemos artistas muito presentes num diálogo intenso
com a platéia. Existem outros espetáculos que fazem caminho contrário. De certa forma
virtualizam a relação do espetáculo com a platéia. Talvez essa seja uma tendência da
sociedade moderna. Percebendo a virtualização da vida, tende-se a acreditar na
existência a partir de referências externas ao corpo. Os aparelhos e sistemas de
comunicação virtualizam os sentidos como, por exemplo, a audição, a vista e a
percepção. De acordo com Moreno (apud) Santaella “pode-se experimentar uma
crescente integração dinâmica de diferentes modalidades perceptivas”50. O paradoxo
entre a importância que o corpo tem no circo e a “descorporificação” da vida moderna
fomenta ainda mais a questão das expectativas depositadas no circo.
No painel de espetáculos observados, na pesquisa de campo, percebemos
escolhas estéticas muito distintas. Na visita ao “Cirque Du Soleil” em sua temporada do
espetáculo Alegria em 2008 em São Paulo observamos uma construção intencional do
artista como
“super-homem”, levado
as últimas conseqüências.
A escolha
provavelmente dos proprietários e diretores do circo atribuem aos artistas uma perfeição
49
Função dos funcionários do circo que preparam os equipamentos no picadeiro e garantem a segurança
dos artistas.
50
SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação. São Paulo: Paulus, 2004, p. 58.
64
incomum aos humanos. A performance de extremo virtuosismo causa distanciamento
entre o homem comum da platéia e o “semi-deus” do picadeiro. O que nos parece é que
ao artista, não é permitida, na maioria das vezes, demonstrar emoções, suar, em alguns
casos é quase impossível perceber sua respiração; ao final do número os artistas se
despedem com um agradecimento que preserva o glamour do espetáculo e beira a
indiferença. Esse comportamento cria uma barreira de comunicação entre o corpo vivo
do espectador e o “andróide” que se apresenta no espetáculo. A relação estabelecida é
apenas de admiração, contrariando uma virtude do circo que é a interação entre o artista
e o espectador.
As escolhas citadas acima estão em consonância com o empenho frenético de
afirmação da “idéia do eu”, por parte da sociedade contemporânea, confirmando-lhe a
miragem do ego, e alimentando um monólogo, “ensimesmado” de afirmações da
imagem do corpo “fetichizado”. O espectador acostumado a compartilhar das emoções e
dificuldades do artista, está sendo doutrinado a apenas admirá-lo.
A busca do individual, do exclusivo, leva também a uma padronização dos
corpos, orientados pela indústria para atender os interesses do mercado. A avidez pelo
consumo ultrapassa os limites do acúmulo e chega a excitação do novo. Essa “loucura”
da criação de novas tentações frívolas, também estão no campo da arte, e sedem a
velocidade do descarte instantâneo que visa a criação de uma nova necessidade a ser
satisfeita.
Santaella nos apóia com a conceituação de pós-humano:
significa a superação das fragilidades e vulnerabilidades de nossa
condição humana, sobretudo, do nosso destino para o envelhecimento
e a morte. Tal superação seria atingida pela substituição de nossa
natureza biológica por uma outra natureza artificialmente produzida
que não sofreria as limitações e contingenciamentos do nosso ser
orgânico, hoje obsoleto. A meu ver, além de simplista, reducionista,
essa compreensão é ilusionista.51
As análises de espetáculos serviram pra criar parâmetros da pesquisa e expor
para os interessados na pesquisa algumas sugestões de percepção da comunicação no
espetáculo de circo. Finalizamos a reflexão reafirmando a observação do circo em suas
mais variadas perspectivas e camadas, e acima de tudo, entendendo a necessidade de
apropriação e re-significação das variadas escolhas estéticas e modos de produção. O
mosaico do espetáculo é a composição do universo simbólico do artista e suas
51
SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação. São Paulo: Paulus, 2004, p. 55.
65
intencionalidades num constante processo de bricolagem. Essa busca pautada pela
orientação estética e atendendo a necessidade de comunicação com o expectador resulta
na experiência sensorial, na maioria das vezes, de prazer, que se espera de uma
realização artística.
Referências Bibliográficas
ARISTÓTELES. Arte Retórica e Arte Poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de
Janeiro: Tecnoprint, s/d.
BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: Unesp, 2003.
_________________________.
O
Circo
“Civilizado”.
http://sitemason.vanderbilt.edu/files/c36CfC/Bolognesi%20Mrio%20Fernando.pdf
Acesso em: 27 jun. 2010.
CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Lugar no/do Mundo. São Paulo: Hucitec, 1996.
CASTRO, Alice Viveiros de. O Elogio a Bobagem. Rio de Janeiro: Família Bastos,
2005.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Festa no pedaço. São Paulo: Brasiliense, 1984.
MARCONDES FILHO, Ciro. Até que ponto, de fato, nos comunicamos?. São Paulo:
Paulus, 2004.
SANTAELLA, Lucia. Corpo e comunicação. São Paulo: Paulus, 2004.
SILVA, Ermínia; CÂMARA, Rogério Sette. O ensino de Arte Circense no Brasil:
Breve
histórico
e
algumas
reflexões.
Disponível
em:
http://www.funarte.gov.br/circo/escola-nacional-de-circo-um-historico/ Acesso em: 20
nov. 2010.
SILVA, Ermínia. A linha do tempo das artes circenses Disponível em:
http://www.circonteudo.com.br/v1/index.php?option=com_content&view=category&la
yout=blog&id=161&Itemid=424 Acesso em: 20 nov. 2010.
SLONIM, Marc. El Teatro Russo. Buenos Aires, Argentina: Editorial Universitária de
Buenos Aires, 1965.
TAMAOKI, Verônica. Circo Nerino. São Paulo: Códex, 2004.
TORRES, Antônio; CASTRO, Alice Viveiros; CARRILHO, Márcio. O Circo no Brasil.
Rio de Janeiro: Funarte; São Paulo: Atração, 1998.
66
Considerações sobre a Separação de Poderes no Estado Brasileiro
Thaís Mantovani*
Resumo: Este artigo analisa a separação de poderes no Estado Brasileiro a partir
do funcionamento das Instituições Políticas e do relacionamento entre os poderes
Executivo e Legislativo, especialmente no que concerne a elaboração e aprovação de
políticas públicas. O argumento central é que, apesar da promulgação da Constituição
em 1988 e do retorno do regime democrático, o poder Executivo permanece como o
principal ator na arena política, detendo em suas mãos, fortes instrumentos capazes de
determinar a pauta e o ritmo dos trabalhos no Congresso.
Palavras-chave: Separação de Poderes, Executivo, Legislativo, MedidasProvisórias.
“É uma experiência eterna que todo homem que tem poder é levado a dele abusar;
ele vai até onde encontra limites.”
(Montesquieu, Espírito das Leis, Livro XI, cap.IV)
Introdução
A intenção deste artigo é fazer um esboço do funcionamento dos poderes do
Estado brasileiro para compreendermos melhor a relação entre o poder Executivo e o
poder Legislativo e suas ações. Um dos principais focos é analisar o controle que o
Executivo exerce sobre a iniciativa legislativa, tornando-se o principal legislador na
medida em que conta com o poder de editar medidas provisórias com força de lei e
determinar a agenda e o ritmo dos trabalhos legislativos.
Para tratar da relação entre o Executivo e o Legislativo é preciso abordar a
questão da separação de poderes e relembrar os princípios do liberalismo que foi
basicamente seu ponto de partida. O liberalismo como sistema político visa restringir ao
mínimo possível a existência do Estado. Basicamente, ele se preocupa com a
manutenção da ordem e proporciona ao indivíduo espaço para que cuide por si só de seu
bem-estar. No entendimento clássico, o Estado deveria ter um sistema de garantias que
limitassem sua atuação, e a primeira delas seria a própria separação de poderes para
evitar os abusos deste. “Daí a fundamental relevância do ‘princípio’ da separação de
poderes, um tema já legível em Aristóteles, retomado por Locke e reformulado com
*
Doutora em Ciência Política e professora da Faculdade São Sebastião – FASS.
67
maior eficácia por Montesquieu”52.
No entanto, para que a questão da separação dos poderes se tornasse mais
concreta e assimilável, o Estado precisou adotar uma Constituição escrita, assim, o que
estivesse ali registrado não poderia ser descumprido e vigoraria por muito tempo. Os
debates sobre a Constituição corresponderam também às discussões sobre o próprio
Estado: sobre o intervencionismo, a dilatação dos poderes do Executivo e o gradual
enfraquecimento de algumas recomendações do liberalismo clássico, particularmente no
que se refere à igualdade dos poderes e à separação entre o direito público e o direito
privado.
Ao longo dos dois últimos séculos, tanto nos regimes ditatoriais quanto nas
democracias, ocorreu a ampliação do governo e do Poder Executivo. No sentido liberal,
o Legislativo deveria ao menos se igualar ao Executivo e ao Judiciário deveria ser forte
e livre. No plano prático, a separação consiste em organizar o funcionamento dos órgãos
políticos fundamentais, de modo que a existência de certo tipo de governo não
comprometa o grau de liberdade social já obtido.
O Brasil adotou o sistema presidencialista e as imagens da sociedade em relação
ao
governo
centram-se,
sobretudo,
nas
atividades
do
Executivo;
decisões,
planejamentos, poder e administração. Neste regime também vigora a separação de
poderes, porém, na prática, não há nem a igualdade, nem o equilíbrio preconizados pela
forma clássica. Após a Constituição de 1988, o Executivo, através do mecanismo das
medidas provisórias, encontrou uma maneira de estender seus poderes e superar o
Legislativo impondo sua vontade ao Congresso. Inicialmente, esta medida foi adotada
pela nova Constituição com o intuito de substituir o decreto-lei do regime militar, assim
acabava-se com o principal símbolo do autoritarismo, mas se mantinha a iniciativa de
legislar do Executivo.
Argelina Figueiredo e Fernando Limongi analisaram detalhadamente as relações
do Executivo e do Legislativo na nova Constituição53. Nesta obra, encontramos uma
52
53
SALDANHA, Nelson. O Estado moderno e a separação de poderes. São Paulo: Saraiva, 1987, p. 38.
Figueiredo, Argelina & Limongi, Fernando. Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. Rio de
Janeiro: FGV, 1999. Os principais trabalhos analisados por Figueiredo e Limongi para a realização dessa extensa
pesquisa são: Carvalho, M. I. V. “Mecanismo conflitual de decisão na Câmara dos Deputados”. Dados, RJ, 11, 1973.
Couto, C. “A agenda constituinte e a difícil governabilidade.” Lua Nova, SP: Cedec, 39, 1997. Figueiredo &
Limongi, F. “Poderes legislativos e o poder do Congresso”. Monitor Público, RJ, 5, 1995. Figueiredo A. & Limongi,
F. “O Congresso Nacional: organização, processo decisório e produção legal.” Cadernos de Pesquisa, Cebrap, 5,
1996. Figueiredo, A. & Limongi, F. “As reformas (des)necessárias.” São Paulo em perspectiva, Seade, 10, 1997.
Huber, J.D. “Restrictive legislative procedures in France and the United States.” American Political Science Review,
86, 1992. Lamounier, B. “ Brazil: toward parliamentarism?” in: Linz, J. & Valenzuela, A. (eds.). The failure of
presidential democracy: the case of Latin America. Baltimore, Johns Hopkins University press, 1994. Mainwaring, S.
“Presidencialism in Latin America.” Latin American Research Review, 25, 1990. Mainwaring, S. “Políticos, partidos
68
ótima avaliação do comportamento dos partidos na Câmara dos Deputados e no Senado
e os autores mostram que a ideia vigente de que os partidos brasileiros se comportam
todos da mesma forma e de que faltaria uma organização partidária não é real. Apesar
das fortes evidências a esse respeito (devido, principalmente, à elevada migração
partidária e à falta de uma ideologia coerente), os partidos, só pelo fato de formarem
blocos no Congresso e serem reconhecidos como de esquerda, de centro e de direita, já
mostram que há uma tomada de posição contradizendo a interpretação de que são todos
iguais. Os autores demonstram que os partidos têm um comportamento típico previsível,
e a coesão é bem maior do que se supõem, e o Executivo normalmente contando com o
apoio dos líderes partidários tem força para aprovar o que deseja.
Uma outra abordagem pode ser encontrada na pesquisa coordenada por Luiz
Werneck Vianna54 em que os autores levantam a questão da judicialização da política
como um recurso das minorias diante da maioria parlamentar. Isto é, o Executivo
cooperando com os partidos majoritários formam um presidencialismo de coalizão, no
qual as medidas provisórias não seriam uma imposição unilateral da vontade do
Executivo e sim um resultado da cooperação deste com a maioria parlamentar. Desde a
Constituição de 1988, o que se tem observado é o uso continuado das medidas
provisórias. Justamente por isso, o Poder Judiciário foi convocado pelos sindicatos e
pelos partidos menores para exercer suas prerrogativas consolidando-se como ator
importante no processo decisório como uma forma de enfrentar a atividade legislativa
do Executivo. A pesquisa coordenada por Werneck Vianna também mostra que as
associações de trabalhadores, de profissionais e de empresários representam, juntas, o
segmento que mais recorre à judicialização da política, em uma tendência que se afirma,
sobretudo, nos últimos anos, e entre os partidos políticos, os de esquerda são os mais
ativos nesse processo. Uma conclusão geral dos autores é de que isso revela a
progressiva importância que a sociedade civil vem assumindo como intérprete da
Constituição de 1988.
Para analisar a questão da separação de poderes no Brasil foi necessário nos
remetermos ao período da ditadura em alguns momentos, para comparar a ação do
Executivo daquela época, e posteriormente, analisar esta questão sob a égide da
e sistemas eleitorais”. Novos Estudos, SP: Cebrap, 29, 1991. Pessanha, C. “O poder Executivo e a produção legal no
Brasil:1964-1991.” In XV Encontro Anual da Ampocs. Caxambu, 1991. Tsebellis, G. “Processo decisório em
sistemas políticos: veto players no presidencialismo, parlamentarismo, multicameralismo e pluripartidarismo”.
Revista Brasileira de Ciências Sociais, 12, 1997.
54
VIANNA, Luiz Werneck, CARVALHO, Maria Alice R., MELO, Manuel Palácios cunha e BURGOS, Marcelo
Baumann. A Judicialização da Política e das relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
69
Constituição de 1988 em que, paradoxalmente, se teve uma distribuição de poderes
mais favorável ao Executivo.
Os autores que trabalham com esse tema, geralmente reconhecem a delegação
do poder Legislativo ao Executivo como um fato recorrente nos sistemas políticos
contemporâneos, mas lembram que ela tanto pode significar abdicação quanto
cooperação entre eles. Como no caso de quando os governadores pressionam suas
respectivas bancadas federais com o intuito de utilizá-las como moeda de troca com o
governo federal, isto é, a bancada de um governador vota a favor de um determinado
projeto proposto pelo Executivo em troca de receber mais recursos públicos.
No que se refere aos parlamentares, vários deles defendem a idéia de que dotar o
Executivo de poderes legislativos emergenciais é atender às necessidades da vida
moderna. Estariam, portanto, admitindo que a produção do Legislativo é lenta e
ineficiente, incapaz de elaborar rapidamente uma legislação solicitada pelo Executivo,
em geral para a intervenção na economia. No entanto, a manutenção de medidas
provisórias no texto Constitucional é motivo de preocupação, pois sua grande maioria
está em dissonância com a Constituição, ou seja, não estão sendo respeitados os
requisitos de relevância e urgência e essas medidas acabam sendo usadas de forma
rotineira.
Não raro encontramos artigos em jornais a respeito deste tema55. Durante o
governo Fernando Henrique Cardoso, o Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal
Federal, chegou a afirmar em sessão plenária que o comportamento do presidente é
preocupante em um regime democrático, visto que o presidente exerce atribuições que
desrespeitam a divisão dos três poderes, e o número de medidas provisórias editadas por
ele em seis anos de governo equivale a 60% dos decretos-lei em oito anos de ditadura
Vargas56.
Esse tipo de atitude faz com que exista a preocupação em relação à utilização
frequente das medidas provisórias, e por isso este tema ainda exige debate. Este artigo
não aborda todo o material necessário para o entendimento profundo do assunto, pois o
objetivo é esclarecer da melhor maneira os pontos mais relevantes, apresentando o que
55
Como por exemplo, no jornal Folha de São Paulo de 27 de Agosto de 2000, o colunista Elio Gaspari usa o termo
“autoritário” para se referir ao governo FHC. Sua coluna tratava da reedição, pela 17a vez, de uma medida provisória
pela qual a Agência de Vigilância teria o controle total de propagandas e produtos submetidos ao seu controle, para
tentar impedir propagandas enganosas. O colunista afirmava que esta legislação é inepta e autoritária. Inepta porque
sob a fiscalização da Vigilância Sanitária estão produtos muito diferentes, desde antibióticos até papel higiênico. E
seria autoritária porque não seria de sua competência controlar as propagandas publicitárias e sim punir o que
estivesse errado.
56
Jornal Folha de São Paulo, 7/09/00
70
está sendo discutido no momento, os problemas decorrentes deste tipo de iniciativa e as
principais posições tomadas por intelectuais e especialistas da área.
Atualmente, os debates, a polêmica e as frequentes discussões principalmente na
área jurídica, da política e da sociologia nos convencem de que ainda há espaço para
esse estudo. O que nos move é a preocupação de entender o sentido, a atuação e o
processo histórico destas medidas em governos democráticos.
A Separação dos Poderes
A concentração de poder em mãos únicas era a característica principal do
Estado absolutista monárquico. Nesta forma de Estado, as práticas de legislar, prestar
justiça e administrar estavam todas submetidas unicamente à responsabilidade do
governante, portanto, não havia espaço para qualquer tipo de discussão sobre os
problemas do sistema. O soberano impunha sua vontade e o povo lhe devia estrita
obediência.
Contrariamente a esse sistema absolutista, alguns autores, como Locke e
Montesquieu, pregavam uma forma de governo descentralizado, onde não vigorasse a
vontade de apenas um indivíduo, e as decisões teriam características mais populares. O
poder centralizado não permitia ao povo participar da vida política expressando suas
vontades e opiniões e não havia outra instância a qual pudesse recorrer caso se sentisse
lesado pelo Estado, é nesse contexto de concentração de decisões que Montesquieu vai
formular sua teoria da divisão dos poderes.
A separação de poderes acabou sendo adotada em diversos países, tanto
parlamentaristas,
quanto
presidencialistas.
No
Brasil,
também
foi
adotada
constitucionalmente, mas na prática sempre houve um fortalecimento do Poder
Executivo. Desde a primeira República, este poder é tido como o centro de referência no
processo de tomada de decisões, e, durante a ditadura militar, essa forma de governar
foi legalizada por meio das reformas constitucionais introduzidas. Esse foi o momento
em que o poder Executivo adquiriu maior autonomia frente aos outros poderes e teve
todas as decisões governamentais concentradas em suas mãos.
Entre 1967 e 1985, o Executivo serviu-se de dois instrumentos para obter a
legislação que julgava necessária. O primeiro era o decurso de prazo, em que o projeto
de lei que não fosse rejeitado num determinado período estaria automaticamente
aprovado. O segundo era o decreto-lei. Já naquela época, os parlamentares
consideravam afrontoso o decurso de prazo, e durante a abertura do regime ele foi o
71
primeiro a ser afrouxado (passaria a ser incluído na discussão de até dez sessões, e só
seria aprovado se passasse em branco por todas elas). O decreto-lei merece atenção
especial e falaremos dele adiante.
Com o fim do regime autoritário, a luta se direcionou principalmente
contra o acúmulo de poder nas mãos do Executivo. Essa era uma das principais questões
discutidas durante a elaboração da nova Constituição, pois havia um relativo consenso
quanto ao caráter arbitrário de tal prerrogativa.
No entanto, Carey e Shugart57, após análise detalhada a respeito do poder
de decreto do Executivo, em diversos países, chegam à conclusão de que interpretar os
poderes legislativos do Executivo como abuso de poder pode ser um exagero. Os
autores admitem que realmente há casos em que o Executivo agiu além de seus limites
constitucionais alegando emergência, e assim, marginalizou legislaturas ou mesmo
tomou ações diretas contra o Legislativo. Mas afirmam que é bem possível que o
Executivo esteja somente antecipando as preferências de outros atores políticos como,
por exemplo, o Legislativo. E também agilizando a ação sobre políticas já que os
processos legislativos são frequentemente lentos e algumas necessidades a serem
implementadas são urgentes.
A nova Constituição brasileira foi promulgada em outubro de 1988, e introduziu
diversas modificações e possibilitou maior abertura à realização de movimentos sociais
e manifestações populares. Mas a reforma aprovada anteriormente, em maio de 1985, já
estabelecia
eleições diretas em dois turnos para a presidência da República; eleições
diretas para prefeito das capitais, áreas de segurança e estâncias
hidrominerais; representação do Distrito Federal na Câmara dos
Deputados e no Senado; direito de voto dos analfabetos; liberdade de
organização partidária, até mesmo para partidos comunistas; direito de
participação nas eleições municipais de 1985 aos partidos em formação;
redução do prazo de domicílio eleitoral de dois para um ano, e para cinco
meses nas eleições de 1985; abolição da fidelidade partidária, isto é, da
proibição de mudar de partido ou contrariar diretriz partidária sob pena
de perda de mandato e abolição do voto distrital, introduzido em 1979,
mas nunca posto em prática58.
E quanto aos poderes do presidente, algumas de suas iniciativas foram
subtraídas, outras foram preservadas. Com a reforma constitucional, houve uma grande
57
CAREY, John M. e SHUGART, Matthew. “Poder executivo de decreto: Chamando os tanques ou usando a
caneta?” Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, vol.13, n.37, p.5-213, Junho de 1998.
58
(SALLUM JR., Brasílio. Labirintos: dos generais à nova República. São Paulo: Hucitec, 1996, p.118.
72
ampliação dos direitos de participação autônoma das organizações dos trabalhadores o
que permitia as massas populares mais oportunidade de lutarem por seus interesses com
mais liberdade de ação.
A transição entre o fim da ditadura e a construção da democracia foi, como era
de se esperar, cheia de contratempos, eram muitas as dificuldades de se acabar com um
regime autoritário como o que se teve no Brasil. Até mesmo no interior dos grupos
militares havia conflitos e divergências dificultando as negociações, mas mesmo com
esses conflitos internos conseguiram, por um longo tempo, controlar a sociedade
brasileira desmobilizando-a e limitando toda e qualquer forma de participação popular.
E o advento da Nova República não foi o suficiente para superar as crises,
principalmente econômicas, que abalavam a sociedade, e que se tornariam o grande
desafio dos próximos governantes. A democracia precisaria se fortalecer rapidamente
para que não fosse ameaçada por algum resquício do regime militar. Essa preocupação
existia devido ao fato dos militares continuarem com certa voz ativa no processo
decisório.
Outro ponto que entrou em discussão com a promulgação da nova Constituição
foi a possibilidade de mudança para um sistema parlamentarista. Uma das explicações
para essa questão do parlamentarismo ter ficado em aberto diz respeito ao mandato do
presidente José Sarney59, que desejava a confirmação do mandato de cinco anos e dos
plenos poderes correspondentes ao regime presidencialista.
Durante a Assembléia Nacional Constituinte, havia um movimento para fazer
do Legislativo o principal poder, o centro das decisões. Esse movimento ganhou maior
expressão e importância quando uma facção de centro-esquerda do PMDB o tomou
como bandeira. Era uma facção do partido que não acreditava no governo Sarney e o via
como incapaz de realizar as reformas tão desejadas. Esta parcela queria ganhar maior
identidade política e favorecer a situação dos partidos que ainda se sentiam ameaçados
pela possibilidade de dissolução pelo Executivo e com o sistema parlamentarista o
Legislativo teria seus poderes valorizados e, consequentemente, os partidos políticos
ficariam numa situação mais segura e confortável.
Entretanto, esse movimento não vingou. Ele foi banido principalmente
pela força dos governadores de Estado que, em sua maioria, desejavam a presidência da
República e os poderes executivos intactos. Consideravam que uma alteração no sistema
59
José Sarney assumiu o mandato de presidente devido ao falecimento do presidente eleito Tancredo
neves.
73
de governo mudaria os objetivos de inúmeros políticos, que por exemplo, eleitos
vereadores já se imaginavam numa carreira ascendente e, através de troca e
financiamentos de campanhas, poderiam se tornar prefeitos, deputados estaduais,
deputados federais, governadores, senadores.
Quanto à população, a impressão é a de que devido à insegurança para
decidir entre os dois sistemas, preferiam dar prioridade à ordem e à estabilidade ao
invés de arriscar em um sistema de governo completamente novo. A adoção do
parlamentarismo também quebraria uma das principais características adquiridas pelo
Estado brasileiro que é a subordinação do Legislativo ao Executivo em que Presidente e
governadores atuam no papel principal, e o Congresso e as Assembléias Legislativas
ficam com o papel secundário. Ou melhor, o presidente e os governadores articulam
coalizões de apoio às suas políticas e decisões, distribuindo recursos públicos de forma
privilegiada em troca de lealdade política. Alguns estudos60 mostram que as pastas
ministeriais são distribuídas aos partidos com vistas à obtenção de maiorias
parlamentares, esta seria uma característica típica dos governos de coalizão no Brasil.
“Por isso, quando os governadores de estado mobilizaram as bancadas
estaduais para que assegurassem na Assembléia Constituinte a manutenção do
presidencialismo, não defendiam apenas a preservação da integridade do cargo
máximo do sistema. Defendiam também a estrutura básica das máquinas políticas
estaduais sob seu comando do eventual “assalto” parlamentar, já que a aprovação do
governo de gabinete no plano federal tenderia a estimular sua introdução também nos
estados da federação”61.
Outra categoria que apoiava o presidencialismo e o mandato de cinco
anos, era a dos militares. Ainda exercendo participação no cenário político, e com uma
considerável voz ativa nas decisões, os militares alegavam que um prazo mais curto
entre eleições daria mais oportunidades ao povo de intervir no processo político sem
falar nos riscos que se corria de líderes populistas ascenderem ao poder, portanto, os
militares se engajaram e utilizaram das influências que ainda detinham para apoiar a
manutenção do sistema presidencialista e do mandato presidencial de cinco anos.
Neste contexto percebemos que foi devido a falta de apoio significativo
que o movimento em prol do parlamentarismo não seguiu adiante, os interesses
60
Como por exemplo ABRANCHES, Sérgio Henrique. “Presidencialismo de coalizão: o
institucional brasileiro.” Dados, Rio de Janeiro, vol.38, n.1, p.5-34, 1988.
61
SALLUM JR., Brasílio. Labirintos: dos generais à nova República. São Paulo: Hucitec, 1996 p.146 e147.
dilema
74
contrários eram muitos e, posteriormente, um plebiscito realizado em sete de Setembro
de 1993, constataria a preferência popular pelo presidencialismo.
O Decreto-Lei e a Medida Provisória
Ao promulgarem a Constituição de 1988, os parlamentares decidiram manter em
seu texto a competência exclusiva do poder Executivo de legislar em questões
emergenciais e orçamentárias. Digo manter porque esse foi um dos mecanismos
constitucionais adotados pelos militares em suas reformas implementadas durante o
período autoritário e que acabou sendo aproveitado pela nova Constituição, ampliando
imensamente os poderes do presidente se comparados a Constituição democrática de
1946.
Os militares buscavam uma atuação mais livre frente ao Congresso e ao
judiciário, e por isso precisavam de um Executivo independente e com fortes poderes
legislativos. O instrumento específico a que estamos nos referindo é o decreto-lei.
A Constituição de 1967 o previa como um ato normativo, com força de
lei, de uso exclusivo do presidente da República, em casos de urgência ou interesse
público relevante, como por exemplo, segurança nacional ou finanças públicas. No
prazo de sessenta dias ele deveria ser aprovado ou rejeitado, e não poderia ser jamais
emendado. A rejeição não implicaria na anulação dos atos praticados durante a sua
vigência. Ou seja, ele possuía vigência imediata desde a sua promulgação, mas mesmo
assim era submetido ao Congresso. Decorrido o prazo sem deliberação ocorria a
aprovação por decurso de prazo. Devido a essas vantagens ele se tornou o instrumento
preferido dos militares. Os outros não ofereciam as mesmas vantagens, pois o projeto de
lei podia ser emendado pelos parlamentares, o que o tornava inconveniente; e a lei
delegada não podia ser aplicada sobre determinadas matérias e ainda necessitava de uma
autorização prévia do Congresso Nacional onde deveria ser especificado seu conteúdo.
O decreto-lei era, portanto, o único instrumento independente de qualquer outra ação
pois era editado sem qualquer alteração ou restrição; e também por isso se tornou tão
repudiado e símbolo maior do autoritarismo do regime. Esse instrumento discricionário
tornou-se o principal símbolo do autoritarismo não somente no Brasil e sim dos regimes
militares em toda a América Latina. Dessa forma os militares tinham o poder
institucional de colocar em prática as medidas que lhes conviessem mantendo o rígido
controle da representação político-partidária através de cassações de mandatos, anulação
das funções legislativas e desestruturação do sistema partidário, desmobilizando a
75
sociedade e limitando a participação popular através da violência.
Com o fim da ditadura e a promulgação de uma nova Constituição, os
parlamentares acreditavam que mantendo o Executivo com uma certa iniciativa
legislativa estariam atendendo aos reclamos dos tempos atuais. Justificavam que alguns
problemas necessitam de uma tomada de atitude rápida e urgente, e o Executivo seria o
responsável por estas resoluções de urgência através da utilização das medidas
provisórias. Com esse argumento incluíram no texto Constitucional a medida provisória
com o intuito de substituir o decreto-lei. Eis o trecho da Constituição que estabelece
essa prerrogativa:
“Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar
medidas provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso
Nacional.” (art. 62 da Constituição Federal)
O objetivo, com isso, era o de acabar com os resquícios da ditadura mas ao
mesmo tempo manter uma forma hábil de governar. A capacidade de editar e reeditar
medidas provisórias fez com que fosse mantida a preponderância do Executivo sobre o
Legislativo que já era notada no regime militar. Esse instrumento adotado no Brasil foi
inspirado no modelo dos provvedimenti provisori com forza di legge, do artigo 77 da
Constituição Italiana. Na Itália, a Constituição estabelece que:
“O governo não pode, sem delegação das Câmaras, elaborar decretos com
valor de lei ordinária. Quando, em casos extraordinários de necessidade e urgência, o
governo, por sua responsabilidade, tomar providências provisórias com força de lei,
deverá, no mesmo dia, submetê-las para efeitos de conversão às Câmaras, as quais são
imediatamente convocadas, mesmo se dissolvidas, e reúnem-se dentro de cinco dias. A
eficácia dos decretos cessa retroativamente caso não sejam convertidos em lei nos
sessenta dias posteriores à sua publicação. As Câmaras, todavia, podem regular por lei
as relações jurídicas decorrentes dos decretos não convertidos”62
Nota-se que na Itália o regime é parlamentarista, portanto, a
responsabilidade da edição das medidas é do gabinete, enquanto que no nosso regime
presidencialista a responsabilidade é exclusiva do presidente. Desde que instituídas
constitucionalmente, o Poder Executivo brasileiro tem recorrido às medidas provisórias
para tratar dos mais variados assuntos, até direitos de pesca no rio Amazonas foram
62
PESSANHA, Charles Freitas. Relações entre os poderes Executivo e Legislativo no Brasil: 1946-1994.
Tese de Doutorado, IUPERJ, 1997, pg. 59
76
regulados por medidas provisórias63. A questão da relevância e urgência determinadas
pela Constituição passa, portanto, a ser um critério subjetivo de julgamento do
Executivo, e a capacidade de reedição quase que ilimitada levou ao que Amorim Neto e
Tafner64 definiram como a excepcionalidade legislativa no Brasil, visto que as MPs
passaram a ser um instituto legal amplamente utilizado pelos governos desde a
promulgação da Constituição em 1988.
Em 2001, o governo aprovou a Emenda Constitucional n.32 que regulamentou a
utilização das medidas provisórias, com o principal objetivo de conter o excesso de
reedições a que o poder Executivo estava recorrendo. Segundo dados de Figueiredo e
Limongi65, até setembro de 2001, quando passou a vigorar a emenda constitucional n.
32, o Executivo brasileiro editou 6.109 medidas provisórias, o equivalente a quase 40
por mês. Sendo que estes valores consideram tanto as originais quanto todas as
reedições. Se forem contabilizadas somente as medidas originais, o número cai para
623, mas de qualquer forma é difícil sustentar que durante este período houvesse tantos
casos de “relevância e urgência” que justificassem a utilização de MPs.
A partir da aprovação da emenda constitucional ficou estabelecido que se a
medida provisória não for apreciada em até sessenta dias contados de sua publicação,
entrará em regime de urgência, subseqüentemente, em cada uma das Casas do
Congresso Nacional, ficando as demais deliberações legislativas ‘trancadas’ até que se
ultime a votação da medida. A medida poderá ser prorrogada por uma única vez por
igual período, sessenta dias, caso não tenha sido encerrada a sua votação nas duas Casas
do Congresso Nacional (CF).
Como o decreto-lei presumia urgência ou interesse público relevante,
poderíamos concluir que ele regulamentava tanto os assuntos urgentes quanto os não
urgentes, mas que fossem de interesse relevante. Então não era considerado abusivo
editá-lo para matéria não urgente. Já a medida provisória, parece ter sido prevista para o
caso de uma urgência qualificada pela relevância. Mas atualmente, muitos especialistas
da área defendem que alguns casos poderiam ser examinados tranqüilamente pelo
63
AMORIM NETO, Octavio. “O Poder Executivo, centro de gravidade do Sistema Político Brasileiro”
In: AVELAR, Lúcia e CINTRA, Antônio Octávio (org.) Sistema Político Brasileiro: uma introdução.
Rio de Janeiro: Fundação Konrad-Adenauer-Stiftung; São Paulo: Fundação Unesp, 2004, pg.130
64
AMORIM NETO, Octavio e TAFNER, Paulo. “O Congresso e as medidas provisórias: Delegação,
coordenação e conflito”. IUPERJ: Rio de Janeiro, 1999.
65 FIGUEIREDO, Argelina & LIMONGI, Fernando. “Medidas Provisórias” In BENEVIDES, Maria
Victória, KERCHE, Fábio e VANNUCHI, Paulo (orgs.) Reforma Política e Cidadania. São Paulo:
Editora, Fundação Perseu Abramo, 2003.
77
processo legislativo comum. Quanto à matéria, a do decreto-lei era restrita aos casos de
segurança nacional, finanças públicas, incluindo normas tributárias e criação de cargos
públicos e fixação de vencimentos. A matéria da medida provisória não tem nenhuma
restrição explícita. Quanto ao prazo, o decreto-lei deveria ser apreciado em sessenta
dias, e então seria aprovado. “A legislação do período autoritário estabelecia que o
silêncio do Congresso implicava a aprovação da matéria enviada. A atual Constituição
força a manifestação do Congresso, seja para rejeitar, seja para aprovar”66. Quanto
aos efeitos, ambos têm efeito imediato desde a publicação. Mas enquanto os efeitos do
decreto-lei são válidos mesmo que ele seja rejeitado, os da medida provisória são
anulados. Nesta comparação a medida provisória fica em desvantagem, pois como ela
tem eficácia imediata, tem de ser cumprida e aplicada imediatamente, mas como não há
certeza de que ela será convertida em lei, ou passar pelo Congresso sem modificações,
quem a cumpre e quem a aplica corre o risco de ter a sua eficiência desconsiderada, seja
pela não conversão dela ou pela conversão noutros termos. Outra diferença importante é
o fato de o Congresso poder emendar a medida editada pelo presidente.
A medida provisória também admite renovação, e essa é a principal
causa que torna seu uso abusivo, pois o governo pode reeditá-la. Algumas foram
renovadas até trinta vezes antes da aprovação da emenda constitucional. A reedição
deveria apresentar o mesmo texto na íntegra, mas o que ocorre é que fazem uma
pequena modificação que justifique apresentá-la como sendo uma nova medida. Esta
parece ser também a principal diferença entre a medida provisória e o decreto-lei, pois
se ela não for rejeitada por uma maioria legislativa pode ser reeditada e vigorar por mais
trinta dias e assim por diante. Já o decreto-lei, terminado o prazo de apreciação ele é
automaticamente aprovado. O que percebemos é que além de ser muito semelhante ao
decreto-lei a medida provisória aumentou seu campo de atuação tornando-se, inclusive,
mais arbitrária. Vale considerar as palavras de Bolívar Lamounier: “Não querendo
enfrentar o desafio da reforma institucional, a maioria da elite prefere fingir que um
instrumento arbitrário como a medida provisória é compatível com a democracia, ou
vê-lo como um dado irremovível da realidade”67.
Há uma certa unanimidade entre os autores a respeito deste tema. A
66
FIGUEIREDO, Argelina & LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. Rio de
Janeiro: FGV, 1999, p.44.
67
LAMOUNIER, Bolívar. “A democracia brasileira de 1985 à década de 90: a síndrome da paralisia hiperativa”. In:
Velloso, J. P. Reis (org). Governabilidade, sistema político e violência urbana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994,
p.44.
78
grande maioria considera a medida provisória um recurso autoritário, dissonante com a
situação democrática e duvidosa quanto ao caráter de urgência. Entretanto, a sociedade
aparentemente está conformada com essa situação, ou não se dá conta da realidade.
A utilização freqüente das medidas provisórias pelo governo deixa o
Legislativo praticamente de “mãos atadas” ficando destituído de sua principal função
que é a de legislar. Essa questão também se confronta diretamente com o princípio de
separação dos poderes (a que nos referimos anteriormente), pois o Executivo passa a ter
uma atuação autônoma e estratégica para a aprovação de seus projetos diante do
Legislativo e do Judiciário.
Mesmo com esse forte mecanismo de legislar em suas mãos, o Executivo
não conseguiria governar contra a vontade de uma maioria, pois as proposições por ele
apresentadas precisam ser aprovadas pelo Congresso. E nesse sentido o Executivo pode
se utilizar habilmente de seus poderes legislativos para induzir a formação e a
manutenção dessas maiorias. Ele pode, inclusive, acusar o Legislativo de estar
impedindo a aprovação das medidas mais necessárias.
“Quanto mais difícil para os legisladores construir e manter coalizões
capazes de aprovar a legislação, mais atrativa será a alternativa de promover ao
Executivo o poder de decreto, seja delegado ou constitucional”68.
Inicialmente as medidas provisórias foram utilizadas principalmente na
formulação de planos de estabilização econômica, mas na prática seu uso se estendeu
para além desse campo. Assim, os governos que não contam com uma maioria no
Congresso, ou os governos sem grandes aliados, podem recorrer às medidas provisórias
como forma de fazer valer sua vontade; e os que já contam com um apoio majoritário se
tornam, através de tais medidas, ainda mais fortes, preservando acordos e se protegendo
de atitudes impopulares. Seriam, portanto, instrumentos muito eficientes no sentido de
manter a governabilidade, que é um ponto de preocupação de governantes assim que
assumem um cargo político.
No Brasil, o meio acadêmico discute muito a respeito de uma suposta
crise de governabilidade, que seria a incapacidade do Estado de promover reformas
estruturais em suas políticas públicas.
Com a derrocada do regime autoritário observou-se o esgotamento de um
certo modelo de desenvolvimento econômico baseado na intervenção estatal. Segundo
68
CAREY, John M. e SHUGART, Matthew. “Poder executivo de decreto: Chamando os tanques ou usando a
caneta?” Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, vol.13, n.37, p.5-213, Junho de 1998, p.158.
79
Sallum Jr69, foi tornando-se presente entre os empresários que o crescimento econômico
e a redução das tensões sociais não poderia mais depender da presença dominante do
Estado no sistema produtivo. Posteriormente a isso, as novas prioridades eram a
estabilização econômica, reinserir o país no âmbito internacional e institucionalizar a
democracia.
Com a instauração da Nova República, em 1985, e devido a grave crise
econômica na qual o país estava inserido, o principal objetivo parecia ser conter a
inflação, nem que para isso se utilizassem de meios coercitivos dificultando o
aprimoramento das instituições democráticas. Essas políticas resultavam no alijamento
do Legislativo. “Assim, a tensão entre as formas de alcançar as metas reforça o
confronto entre as prioridades da agenda, tornando-se parte constitutiva da crise do
Estado, já que compromete as bases de sustentação política do governo. Tal
modalidade de gestão pública, por sua vez, tende a produzir o isolamento do Executivo,
comprometendo a racionalidade governativa”70.
Para enfrentar essa crise seria necessário um Estado eficiente, e a
concepção dominante de Estado eficiente era sinônimo de Executivo forte. As
dificuldades se agravavam cada vez que ao invés de se promover reformas sociais,
priorizava-se os programas de estabilização econômica. Assim, o desejo de diminuir as
desigualdades sociais e incentivar o desenvolvimento para gerar empregos no país
ficava cada vez mais distante. Todas as atenções estavam voltadas para o objetivo de
controlar a inflação.
O fracasso de sucessivos planos de estabilização gerou uma descrença
nas instituições políticas brasileiras. O termo ingovernabilidade estava sendo atribuído à
falta de capacidade das instituições e dos próprios líderes de resolver as necessidades
básicas do país. O grande argumento é de que com o advento da democracia houve um
excesso de participação social, impedindo o governo de conseguir atender tais
demandas, e diante disso o Estado deveria ser forte para se colocar acima desses
interesses.
Predominou uma grande autonomia do Estado com a concentração do
poder decisório no Executivo associada a estratégias coercitivas de implementação. A
tendência foi retomar a idéia de Estado forte como forma de não comprometer o bom
69
SALLUM JR., Brasílio. Labirintos: dos generais à nova República. São Paulo: Hucitec, 1996.
DINIZ, Eli. “Governabilidade, Democracia e Reforma do Estado: Os Desafios da Construção de uma Nova ordem
no Brasil dos Anos 90.” Dados, Rio de Janeiro, vol.38, n.3, 1995, p.387.
70
80
desempenho do governo. Mas para o Estado viabilizar suas políticas, deveria ser capaz
de articular coalizões e alianças que lhe permitissem consolidar uma maioria. Isso diz
respeito à forma com que o governo vai negociar com cada partido para obter apoio. A
governabilidade torna-se então dependente da estrutura política que será formada.
Devido a uma suposta falta de urgência no processo de tomada de decisões por
parte do Congresso, é comum ouvir falar em uma crise na implementação de políticas
públicas. Porém uma observação mais detalhada da política nacional, revela justamente
o contrário: há uma grande produção de decisões pela burocracia governamental, de tal
modo que o argumento da paralisia decisória não se confirma.
“Como falar em paralisia decisória em um país onde, desde o governo
Sarney, os núcleos tecnocráticos já produziram nove programas de estabilização
econômica, apoiados por um número prodigioso de decretos-lei e medidas
provisórias?”71
A falta de iniciativa legislativa não é a questão principal. O que se discute é
quem está legislando, e isso pode ser corroborado através do crescimento da utilização
de medidas provisórias no decorrer dos anos. Em 1988 fora editadas 15 medidas
provisórias durante todo o ano, em 1989 esse número foi para 97, em 1990 chegou a
163, nos anos de 1991 e 1992 teve uma queda e foram editadas 8 e 10 MPs
respectivamente, mas em 1993 esse número voltou a subir e foi para 96, no ano
seguinte, 1994, um novo aumento, foram 397 medidas provisórias editadas durante o
ano72.
Esses números demonstram que o montante de decisões vindas do Executivo é
suficientemente grande para não considerá-lo paralisado. O Legislativo quase não tem
atuação autônoma e na maioria das vezes não se constitui em obstáculo aos projetos
apresentados pelo Executivo. O fato de ganhar nas urnas pode levar o presidente a ter a
sensação de ser o portador da vontade popular, e portanto, com o livre arbítrio para
tomar qualquer decisão.
Essa capacidade que o Executivo tem de legislar acarreta, muitas vezes,
erros e mudanças bruscas nas regras do jogo. Editando freqüentemente medidas
provisórias que passam a vigorar imediatamente sem consulta ou negociação no
Congresso é comum que estas não alcancem os resultados almejados ou não sejam as
71
DINIZ, Eli. “Governabilidade, Democracia e Reforma do Estado: Os Desafios da Construção de uma Nova ordem
no Brasil dos Anos 90.” Dados, Rio de Janeiro, vol.38, n.3, 1995, p.395.
72
Esses dados são de Monteiro, Jorge Vianna, 1995 in Diniz, 1995, p. 396.
81
mais apropriadas para a necessidade do momento, tornando-se ineficazes. Assim, acabase por editar uma outra na tentativa de corrigir os erros da primeira, podendo resultar em
confusão.
Relações Executivo-Legislativo
Este item é uma breve apresentação do sistema político-partidário
brasileiro para entendermos melhor o funcionamento do Poder Legislativo. Não é
objetivo deste artigo um tratamento profundo desse funcionamento, e sim o suficiente
para demonstrar as características principais do processo decisório no parlamento e
retomar a discussão a respeito de se existe ou não paralisia decisória.
Tornou-se lugar comum na bibliografia contemporânea falar que as
Assembléias Legislativas estão sendo marginalizadas e que as instituições democráticas
são ineficazes, como forma de justificar a maior liberdade de ação do Executivo.
Em alguns casos, visando principalmente superar problemas de ação coletiva,
coordenação e instabilidade das decisões às quais estaria particularmente sujeito, o
Legislativo pode preferir que as iniciativas venham do Executivo ao invés de advirem
dos processos legislativos ordinários. Esse tipo de delegação significaria, portanto, mais
estabilidade nas decisões e maior eficiência nos resultados de políticas73. Mas, quando
se observa um Executivo implementando políticas públicas, o primeiro impulso é
concluir que ele as está definindo segundo seus interesses, e a grande parte das análises
a esse respeito não têm sequer considerado a possibilidade de que os decretos possam
significar outra coisa que não usurpação. É por isso que analisar o comportamento
parlamentar se torna fundamental para entender melhor essa questão.
A literatura especializada insiste que falta o mínimo de estruturação em
nosso sistema partidário, assim, o que valeria mesmo seria o comportamento individual
de cada parlamentar. O número excessivo de partidos seria um reflexo da fraca coesão
interna, como também a freqüente mudança de parlamentares de partidos, visando
muitos vezes seus interesses pessoais. Essas seriam as bases de sustentação dos
argumentos dos que consideram o Legislativo como um poder que tem um
funcionamento ineficiente.
No Brasil, existem cerca de trinta partidos políticos legalizados. O
73
Uma explicação mais aprofundada deste argumento pode ser encontrada em CAREY, John M. e SHUGART,
Matthew. “Poder executivo de decreto: Chamando os tanques ou usando a caneta?” Revista Brasileira de Ciências
Sociais. São Paulo, vol.13, n.37, p.5-213, Junho de 1998.
82
regime democrático é o grande responsável por essa possibilidade dos indivíduos se
associarem formando partidos. Para se formar um partido é preciso que haja um número
de assinaturas que corresponda a 0,5% dos eleitores do país, e que estejam distribuídas
em nove unidades da federação. No caso específico do Brasil, a existência desses trinta
partidos não implica que haja uma concorrência pelo poder muito acirrada entre todos
eles, pois na realidade, há muitos partidos pequenos, chamados “nanicos”, e que não
tem grande importância no cenário político nacional. Normalmente, esses partidos
pequenos acabam tendo que se aliar aos grandes partidos para não serem esmagados, e
para que tenham alguma chance de chegar ao poder. Nem todos os partidos tem
representação no Congresso, e mesmo entre os que estão representados, o grau de
importância entre eles é variável.
É comum nos países onde é adotado o sistema multipartidário, a
existência de governos de coalizão, ou seja, a formação de alianças para que se consiga
obter maioria nas casas legislativas para que seja possível a aprovação de propostas.
Portanto, a maneira como o Legislativo age, e a posição que toma diante dos projetos do
governo, está intimamente ligada com as alianças que foram formadas pelos membros
do Parlamento.
Retomando a questão da existência ou não de uma coesão interna,
Argelina Figueiredo e Fernando Limongi74 afirmam que ela existe e que se pode falar
tranqüilamente em partidos de centro, de direita e de esquerda. Os partidos de centro
estariam bem mais próximos da direita do que da esquerda. E quanto mais próximos
estiverem ideologicamente, menor é a probabilidade de seus líderes encaminharem
votos conflitantes. É comum que um partido de mesmo bloco ideológico vote de
maneira similar. Também é comum que as indicações dos líderes de cada partido sejam
seguidas pela maioria de suas respectivas bancadas. “A unidade interna dos partidos de
esquerda independe de como votam os demais partidos. Já a disciplina dos partidos de
centro e de direita varia amplamente de acordo com a posição assumida pelos outros
partidos”75.
Os líderes definem os seus votos em quase todas as questões e são
seguidos pela maioria de suas bancadas. Observando as indicações dos líderes dos
grandes partidos é comum acertar o resultado final das votações. Concluindo, o grau de
74
FIGUEIREDO, Argelina & LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. Rio de
Janeiro: FGV, 1999.
75
FIGUEIREDO, Argelina & LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na Nova Ordem Constitucional. Rio de
Janeiro: FGV, 1999, p.83.
83
coesão interna é suficientemente grande para tornar o comportamento do plenário
previsível. Devido a uma série de dificuldades do sistema político brasileiro em
promover reformas sociais, foram feitas algumas propostas de mudança na legislação
eleitoral com o objetivo de facilitar a formação de maiorias de apoio governamental.
O PSDB, o PFL e o PTB que eram os partidos que compunham a
coalizão eleitoral que apoiou a candidatura de Fernando Henrique Cardoso para a
presidência, conquistaram 183 cadeiras na Câmara dos Deputados. O PMDB foi
incorporado logo no início do mandato, por força de agenda de reformas constitucionais
do governo através da distribuição de pastas ministeriais. Assim, as cadeiras passaram a
287. O PPB fora atraído desde o início da gestão, mas só passou a compor formalmente
a coalizão quando o governo começou a perceber que estava enfrentando algumas
dificuldades na formação de uma maioria. O PMDB e o PPB fazem parte da coalizão
ampliada, ou seja, não apoiaram a candidatura do presidente, mas votaram a favor de
seus projetos na maioria dos casos.
Na primeira composição ministerial, a totalidade de representação dos
partidos da coalizão governamental na Câmara não alcançava o quorum de 3/5 dos
votos exigidos para a aprovação das reformas constitucionais. Com a inclusão do PPB,
o governo passou a contar com uma expressiva margem de segurança. “Não foi por
acaso, então, que a incorporação do PPB se fez após o projeto de reforma da
previdência ter sido enviado ao Senado”76.
No Senado, o apoio partidário proporcionava ao governo uma maioria
mais folgada, pois antes mesmo da incorporação do PPB já contava com 79% das
cadeiras; com a incorporação este número foi para 84%. Contando com essa maioria, as
chances dos projetos governamentais serem aprovados eram grandes. As derrotas
geralmente ocorreram quando houve uma diminuição do apoio da base ampliada, isto é,
do PMDB e do PPB, normalmente em medidas que desfavoreciam grupos específicos.
“No Brasil, a presidência da República dispõe de recursos institucionais
e de experiência intervencionista de muitas décadas que lhe asseguram iniciativa e
instrumentos de poder significativamente maiores que os do Congresso. Mas este não
deixa de ter uma certa capacidade de bloquear políticas”77. Mas no geral o que
percebemos é uma habilidade do governo FHC em articular essa maioria cuidando para
76
FIGUEIREDO, Argelina C. & LIMONGI, F. “Reforma da previdência e Instituições políticas.” Novos Estudos,
São Paulo: Cebrap, n.51, 1988, p. 70.
77
ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares e MOYA, Maurício. “A reforma negociada: o Congresso e a política de
privatização.” Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, vol.12, n.34 p.5-190, Junho de 1997, p.130.
84
não desagradar a certos grupos, tomando uma posição neutra quando julgou necessário.
Quanto ao comportamento partidário dentro do Congresso Nacional,
nota-se que os partidos de esquerda mostram-se menos abertos às negociações
pluralistas, pois são mais apegados a princípios ideológicos; os partidos de direita
negociam desde que esteja implícita, entre os termos da barganha, a troca de favores; e
os partidos do centro negociam de forma pluralista. Essas coalizões pluralistas são
tipicamente instáveis, já que se estruturam em função de questões e interesses volúveis.
Mas é por meio desta instabilidade e destes interesses volúveis que o Executivo,
negociando privilégios e cargos, consegue formar uma maioria.
Fabiano Santos78 defende que o sistema partidário brasileiro é altamente
fragmentado dificultando a formação de coalizões estáveis de sustentação do governo.
Portanto, o Executivo deve se empenhar em construir uma maioria a cada nova votação.
As elites partidárias, geralmente movidas pelos ganhos materiais e pelos benefícios
políticos, nem sempre estão dispostas a apoiar as propostas do governo, então este se
empenha e utiliza seu poder de barganha sempre que considera necessário.
Em se tratando do Congresso, no caso, por exemplo, das políticas de
privatizações, toda a parte legal foi discutida e negociada pelo Legislativo e o
Parlamento não se constituiu como um obstáculo à realização desse item da reforma
econômica. O Executivo foi sem dúvida o principal articulador desse processo de
redução da participação direta do Estado na produção de bens e prestação de serviços
públicos
Já o poder de agenda pode ser entendido como a capacidade de determinar quais
as propostas serão consideradas pelo Congresso e quando o serão, ou seja, é através do
poder de agenda que algumas matérias ganham prioridade de votação sobre outras.
Para propostas de alteração da Constituição é necessário o apoio de 3/5
da Câmara dos Deputados em dois turnos e igualmente para o Senado. É comum,
portanto, o presidente organizar a distribuição dos ministérios para os partidos dispostos
a apoiá-lo, visando assim uma maioria parlamentar79. O governante também conta com
outros meios para induzir os parlamentares à cooperação, como por exemplo, a
distribuição de benefícios como a influência sobre a política, cargos, verbas, nomeações
78
SANTOS, Fabiano. “Patronagem e Poder de Agenda na Política Brasileira.” Dados, Rio de Janeiro, vol.40, n.3,
p.329-540, 1997.
79
Esta forma de obter apoio parlamentar através da distribuição de pastas ministeriais pode ser melhor discutida em
Abranches, Sérgio Henrique. “Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro.” Dados, Rio de Janeiro,
vol.38, n.1, 1988.
85
e prestígio. Em troca, espera-se destes beneficiados o voto favorável às suas propostas, e
quando for necessário, ameaça-se com a retirada destes benefícios. Assim, a posição
que o Executivo ocupa diante das negociações é muito vantajosa determinando o que
deve ser votado primeiro.
Em regimes multipartidários, como no Brasil, é difícil que um presidente
seja eleito com uma base parlamentar majoritária. Isso quer dizer que, como existem
muitos partidos, as chances de que apenas um deles conquiste 50% + 1 das cadeiras
parlamentares é baixíssima. Não contando com uma maioria, só resta ao presidente
formá-la. Para conseguir uma maioria de apoio o presidente se utiliza de inúmeros
recursos. Segundo Fabiano Santos80, existem dois recursos básicos mediante os quais
uma coalizão de apoio governamental pode ser formada ou mantida: a utilização
estratégica da patronagem e o poder de agenda. Exemplificando melhor, os deputados
brasileiros, procuram maximizar seu acesso a cargos governamentais e se comportam
basicamente de uma maneira que lhes seja possível ampliar seus votos. Portanto, a
decisão de um deputado em participar ou não de coalizões de apoio ao presidente
depende muito mais do acesso que essa cooperação dará aos cargos políticos do que da
concordância com o programa de governo.
No multipartidarismo seria ingenuidade imaginar uma coalizão se
sustentando unicamente por afinidade e simpatia ao governo. O excessivo número de
partidos faz com que haja uma constante mudança de opinião e uma base de apoio
estável se torna praticamente impossível. A patronagem é vista, portanto, como um
recurso para completar algumas dessas deficiências. O presidente acaba distribuindo
cargos no governo federal como moeda de troca na busca pelo apoio parlamentar tão
desejado.
Nas situações em que o presidente tem poucos poderes legislativos, ele se
vê forçado à negociação com os parlamentares como única forma de conseguir a
aprovação de seus projetos, enquanto que os presidentes que podem contar com maiores
poderes legislativos, tem em suas mãos melhores condições de superar as resistências e
até mesmo de induzir o Legislativo a aprovar suas medidas.
Fernando Henrique Cardoso conseguiu sustentar uma maioria de apoio
relativamente estável no início de seu mandato. Sua popularidade estava intimamente
associada ao êxito inicial do Plano Real o que foi decisivo para atrair a cooperação da
80
SANTOS, Fabiano. “Patronagem e Poder de Agenda na Política Brasileira.” Dados, Rio de Janeiro, vol.40, n.3,
1997, p.470.
86
elite política. Entretanto, sabemos que as coalizões políticas costumam ser frágeis e
mudam muito rapidamente. O desafio do Executivo passou a ser o de negociar
simultaneamente com os partidos, com os grupos de interesse e com os governadores, a
fim de criar e manter um espaço onde fosse possível colocar em prática sua agenda
política. Mas as alianças são formadas conforme a conveniência do momento e nada
garante que se formarão novamente.
O presidente Fernando Henrique se utilizou habilmente de práticas clientelistas
para articular maiorias de apoio, não era, portanto, um governo fraco, mas mesmo assim
recorreu com frequência ao uso de medidas provisórias81. Além de se utilizar dessas
medidas mais vezes que os presidentes anteriores, FHC teve um índice baixíssimo de
rejeição de suas proposições. Os principais argumentos encontrados para justificar este
aparente paradoxo, dizem respeito à sustentação do Plano Real. Para conseguir por em
prática e manter tal plano econômico o presidente teve que recorrer aos seus poderes
legislativos, devido à agilidade da medida provisória de começar a vigorar assim que é
editada. Mas algumas delas não tiveram relação com o plano de estabilização e tratavam
dos mais variados temas.
Para poder dedicar toda sua força na manutenção da estabilidade
econômica o governo FHC contava com uma coligação partidária majoritária e
poderosa. Essa coligação, com a orientação do presidente, dominava o Executivo e
também o Legislativo e ainda contava com forte presença na Federação.
“O que estamos querendo dizer é: ao contrário daqueles que, desde a
promulgação da Constituição de 1988, simplesmente lutaram contra o Congresso,
Fernando Henrique passou a utilizar o Parlamento também como escudo, passou a
conferir ao Congresso o papel de arena legítima para o gerenciamento de conflitos. O
Executivo conseguiu intervir, por meio de suas lideranças parlamentares, no regime
parlamentar e, por meio de negociações de balcão, completou a sua ‘maioria
desorganizada’, como a qualifica o próprio presidente.”82
A impressão é de que a utilização destas medidas se tornou cômodo, e o
Legislativo delegava sua principal função a outro poder sem que houvesse um motivo
aparente para isso. Talvez devido ao excesso de iniciativas do Executivo, o Legislativo
81
Para melhor comprovarmos esta afirmação, apresentamos a média mensal de reedições de medidas provisórias por
cada governo: no governo Sarney é de 1, 26; no governo Collor ela é de 2,26; no governo Itamar Franco é de 13,50, e
só no primeiro ano de governo FHC a média é de 33,75 (fonte: Banco de Dados Legislativos).
82 NOBRE,
Marcos e FREIRE, Vinícius Torres. “Política difícil, estabilização imperfeita: os anos FHC.” Novos Estudos. São Paulo:
CEBRAP, n.51, 1998, p.144
87
acabe preferindo evitar um confronto entre os poderes e as acate com tanta freqüência.
Carey e Shugart83 sugerem que de forma mais comum do que se aceita correntemente, o
decreto do Executivo é tolerado e mesmo preferido pelas maiorias parlamentares.
É a esta situação, de tolerância e preferência, que são dirigidas a maioria das
críticas ao uso de medidas provisórias, pois o recurso que era para ser usado somente
em caso de relevância e urgência não foi considerado, consequentemente, o princípio de
separação de poderes também não. O próprio presidente FHC justificou que as medidas
provisórias tornam possível a governabilidade, já que as decisões do Legislativo são
muito lentas. Além de defender o uso das medidas provisórias o presidente defendia que
o Estado deveria ser liberado das preocupações do setor produtivo, da economia, para
que pudesse se empenhar melhor na área social. Todavia, o baixo índice de
investimentos do governo nesta área e as políticas de privatização que, através dos juros
altos, visavam o capital externo, contradizem esses argumentos.
Acreditava-se que o crescimento econômico resolveria por si só o
problema social do país e, assim, a popularidade do presidente declinou quando a classe
média começou a sentir os altos preços da educação, saúde e habitação, devido a
redução dos subterfúgios governamentais.
Considerações Finais
Tendo visto um pouco sobre a separação de poderes no Brasil e as possibilidades
de ação nas mãos do poder Executivo, tanto no que se refere ao uso de mecanismos de
legislação emergencial, como as medidas provisórias, quanto às capacidades de ditar a
ordem e o ritmo de trabalho no Congresso, fica mais fácil demonstrar a preponderância
de atuação deste poder sobre o Legislativo.
A adoção de políticas neoliberais não exclui uma forte atuação do governo nas
mais variadas questões, muitas vezes suprimindo o papel dos outros poderes de estado.
Muitos especialistas na questão da separação de poderes e nas relações entre eles
são da opinião de que mecanismos como a medida provisória deveriam ser abolidos da
Constituição ou, no mínimo, ter seu uso diminuído, comedido, em prol de aperfeiçoar
ainda mais o regime democrático no Brasil.
Alguns defendem a necessidade da medida provisória devido à dificuldade do
governo em articular uma maioria para aprovar suas normas, e que, portanto, seria um
83
CAREY, John M. e SHUGART, Matthew. “Poder executivo de decreto: Chamando os tanques ou usando a
caneta?” Revista Brasileira de Ciências Sociais. São Paulo, vol.13, n.37, p.5-213, Junho de 1998, p.150.
88
instrumento imprescindível de governabilidade. Mas algumas experiências de reformas
constitucionais, como por exemplo, a emenda da reeleição parece comprovar que,
quando o governo realmente se empenha, ele consegue a maioria desejada.
Sempre haverá o argumento de que determinada matéria é urgente para
justificar o uso da medida provisória. Porém países como os Estados Unidos da
América não tem recursos de urgência na sua legislação, e aparentemente, não tem
problemas de governabilidade devido a isso.
A urgência normalmente está relacionada à intervenção do Estado na
economia. E para executar sua intervenção o governo edita e reedita atos normativos,
hoje num sentido, amanhã em outro, pois a economia é dinâmica e mutável e exige
tomada de decisões rápidas e urgentes. São necessárias muitas leis e o parlamento não é
preparado para todo esse dinamismo, pois a cada nova lei é preciso que haja uma
discussão prévia, e estas discussões são sempre demoradas, por isso é tão comum o
argumento da ineficiência do Legislativo em matérias de urgência. Entretanto, também
não podemos esquecer que qualquer intervenção, principalmente no campo econômico,
fere interesses, e os parlamentares sempre vão tentar defender os seus ou os que lhes
forem mais simpáticos.
Talvez o Legislativo diante de reformas necessárias, mas impopulares, permita o
governo fazê-las por medida provisória e simplesmente não as aprecie, sabendo que isso
levará à sua reedição, talvez como forma de lavar as mãos e se livrar da
responsabilidade sobre determinadas matérias. Mas se é verdade que mesmo antes da
Constituição de 1988, o Executivo tem o domínio do processo legislativo e determina a
agenda do Congresso, também é verdade que, a cada votação, ele teve que construir
suas maiorias para que os mesmos projetos fossem aprovados, pois sua base de apoio
não é estável e confiável.
O aprofundamento deste assunto só torna mais difícil encontrar pontos
positivos na utilização de medidas provisórias para colocar em prática políticas
públicas. Enquanto este quadro não se altera, resta-nos discutir e pensar uma maneira
melhor e mais democrática de agilidade nas ações governamentais para substituir a
utilização deste tipo de instrumento.
89
Referências Bibliográficas
ABRANCHES, Sérgio Henrique. “Presidencialismo de coalizão: o dilema
institucional brasileiro.” Dados, Rio de Janeiro, vol.38, n.1, p.5-34, 1988.
ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares e MOYA, Maurício. “A reforma
negociada: o Congresso e a política de privatização.” Revista Brasileira de Ciências
Sociais. São Paulo, vol.12, n.34 p.5-190, Junho de 1997.
AMORIM NETO, Octavio e TAFNER, Paulo. “O Congresso e as medidas
provisórias: Delegação, coordenação e conflito”. IUPERJ: Rio de Janeiro, 1999.
AMORIM NETO, Octavio. “O Poder Executivo, centro de gravidade do Sistema
Político Brasileiro” In: AVELAR, Lúcia e CINTRA, Antônio Octávio (org.) Sistema
Político Brasileiro: uma introdução. Rio de Janeiro: Fundação Konrad-AdenauerStiftung; São Paulo: Fundação Unesp, 2004.
CARDOSO, Fernando Henrique. Discurso ao Senado, 14 -12-1994.
CAREY, John M. e SHUGART, Matthew. “Poder executivo de decreto:
Chamando os tanques ou usando a caneta?” Revista Brasileira de Ciências Sociais. São
Paulo, vol.13, n.37, p.5-213, Junho de 1998.
DINIZ, Eli. “Governabilidade, Democracia e Reforma do Estado: Os Desafios
da Construção de uma Nova ordem no Brasil dos Anos 90.” Dados, Rio de Janeiro,
vol.38, n.3, p.379-670, 1995.
FIGUEIREDO, Argelina & LIMONGI, Fernando. Executivo e Legislativo na
Nova Ordem Constitucional. Rio de Janeiro: FGV, 1999.
FIGUEIREDO, Argelina C. & LIMONGI, F. “O processo legislativo e a
produção legal no Congresso pós-Constituinte.” Novos Estudos. São Paulo: Cebrap,
n.38, 1994.
FIGUEIREDO, Argelina C. & LIMONGI, F. “Reforma da previdência e
Instituições políticas.” Novos Estudos, São Paulo: Cebrap, n.51, 1988.
LAMOUNIER, Bolívar. “A democracia brasileira de 1985 à década de 90: a
síndrome da paralisia hiperativa”. In: Velloso, J. P. Reis (org). Governabilidade,
sistema político e violência urbana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.
LIMA JR., Olavo Brasil. Democracia e instituições políticas no Brasil os anos
80. São Paulo: Loyola, 1993.
NOBRE, Marcos e FREIRE, Vinícius Torres. “Política difícil, estabilização
imperfeita: os anos FHC.” Novos Estudos. São Paulo: CEBRAP, n.51, 1998.
OLIVEIRA, Francisco de. “A derrota da vitória: a contradição do absolutismo
de FHC.” Novos Estudos. São Paulo: Cebrap, n.50, 1998.
PESSANHA, Charles Freitas. Relações entre os poderes Executivo e Legislativo
90
no Brasil: 1946-1994. Tese de Doutorado, IUPERJ, 1997.
SARTORI, Giovani. “Nem presidencialismo nem parlamentarismo”. Novos
Estudos. São Paulo: Cebrap, n.35, 1993.
SALDANHA, Nelson. O Estado moderno e a separação de poderes. São Paulo:
Saraiva, 1987.
SALLUM JR., Brasílio. Labirintos: dos generais à nova República. São Paulo:
Hucitec, 1996.
SALLUM JR., Brasílio. O Brasil sob Cardoso: neoliberalismo e
desenvolvimentismo. Tempo Social-Revista de Sociologia da USP. São Paulo, v.11,n.2,
1999.
SANTOS, Fabiano. “Patronagem e Poder de Agenda na Política Brasileira.”
Dados, Rio de Janeiro, vol.40, n.3, p.329-540, 1997.
SANTOS, Marcelo de Oliveira Fausto Figueiredo. A medida provisória na
Constituição: doutrina, decisões judiciais. São Paulo: Atlas, 1991.
SANTOS, Maria Helena de Castro. “Governabilidade, Governança e
Democracia: Criação de Capacidade Governativa e Relações Executivo-Legislativo no
Brasil Pós-Constituinte.” Dados, Rio de Janeiro, vol.40, n.3, p.329-540, 1997.
VIANNA, Luiz Werneck, CARVALHO, Maria Alice R., MELO, Manuel
Palácios cunha e BURGOS, Marcelo Baumann. A Judicialização da Política e das
relações Sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.
91
A Perícia contábil como importante instrumento contra o abuso nos
contratos bancários
84
Marcelo Luís de Oliveira85
Resumo: Este artigo tem como objetivo evidenciar a importância da perícia contábil para
as críticas nos contratos bancários. A perícia contábil é um importante instrumento para
identificação de uma determinada realidade, esclarecendo dúvidas nas lides sobre a matéria
analisada. Desta forma, este trabalho teve como base e fonte principal, a experiência
profissional do autor, seja no patrocínio de causas relativamente ao tema, seja na realização
de perícias contábeis no âmbito judicial, em especial, nas comarcas do litoral paulista, o que
lhe credencia com muita tranqüilidade a desenvolver o presente trabalho, sempre na
esperança de contribuir, um pouco que seja, ao cumprimento dos fundamentos e objetivos
contemplados em nossa constituição, em especial, a cidadania, a dignidade da pessoa
humana, construção de uma sociedade mais justa e solidária e finalmente, na redução das
desigualdades sociais.
Palavras-chave: Perícia Contábil; Contrato Bancário; Juros abusivos.
Introdução
A perícia prima pela objetividade, precisão, clareza, fidelidade,
concisão. O entendimento sobre o objeto da perícia deve estar alicerçado nas
normas, na ética e na moral inerente à pessoa do profissional e acima de tudo deve
ser imparcial. Nas lides relacionadas a revisão de cláusula contratual nos contratos
bancários, a perícia contábil tem se mostrado como importante instrumento do Juízo
no sentido de desvendar os abusos praticados por determinados bancos,
inerentemente a cobrança de tarifas bancárias, em prol do consumidor e
principalmente à dignidade da pessoa humana.
84
Tema de artigo para reflexão e discussão entre profissionais e alunos de direito.
Graduado em Ciências Contábeis pela Universidade de Taubaté (1995) e em Direito pela Universidade
do Vale do Paraíba de São José dos Campos ( 2004), Especialista em Direito Público pelo Centro
Universitário Salesiano de São Paulo (2005),Especialista em Direito Processual Civil e Direito Civil pela
Universidade Católica Dom Bosco; Advogado, Diretor Administrativo da Prefeitura de São Sebastião-SP,
Contador, Perito Contábil Judicial, Ex-Professor na graduação do Centro Universitário Módulo de
Caraguatatuba-SP, nas disciplinas de Direito Previdenciário, Direito Tributário, Direito do Consumidor e
Perícia Contábil. Professor da Faculdade de São Sebastião –SP- FASS, nas disciplinas de Direito
Alfandegário e Direito Municipal. E-mail: [email protected]
85
92
1 Sobre a Perícia
A palavra perícia vem do latim peritia, é o conhecimento proveniente
da experiência; habilidade e talento. É uma espécie de prova que consiste no parecer
técnico de profissional habilitado a produzi-lo. Ao contrário do que alguns pensam,
a perícia se revelou num primeiro momento já nos primórdios da sociedade. O chefe
dos grupos que viviam nas cavernas, ao escolher a melhor caça, externava seu
conhecimento adquirido pela experiência, o que trazia segurança para o grupo
durante o procedimento de abate. No Brasil, a perícia ganhou relevância através do
Código de Processo Civil de 1939. O Decreto-lei 9.295 de 1946, que cuida da
normatização das funções do contabilista, passou a regulamentar, por conseqüência,
a perícia contábil.
A perícia contábil judicial, que é sem dúvida nenhuma, um
instrumento da prova real, auxiliando no deslinde das questões debatidas
judicialmente, traz elementos que proporcionam ao magistrado segurança em suas
decisões com absoluta convicção, esclarecendo as questões propostas e emitindo
laudo pautado nos motivos que ensejaram a perícia.
Vale trazer à baila o conceito contemplado na Norma Contábil (NBC
T 13)86, que trata da perícia contábil, e no item 13.1.1 diz o seguinte:
A perícia contábil constitui o conjunto de procedimentos
técnicos e científicos destinados a levar à instância
decisória elementos de prova necessários a subsidiar à justa
solução do litígio, mediante laudo pericial contábil e/ou
parecer pericial contábil, em conformidade com as normas
jurídicas e profissionais, e a legislação específica no que for
pertinente.
A contabilidade confere, portanto, à perícia, a possibilidade de
apresentar os esclarecimentos técnicos sobre matéria concreta levada à apreciação do
perito, sempre com respaldo técnico e legal, utilizando-se, para tanto, do Código de
Processo Civil, quanto aos seus procedimentos, assim como avaliação dos
documentos submetidos ao crivo dos exames periciais, ou seja, ao objeto da perícia.
86
Normas Brasileiras de Contabilidade – Perícia Contábil
93
A perícia, portanto, submete ao magistrado, inegavelmente,
informações com absoluta segurança acerca da matéria debatida na lide, permitindo
a produção de uma decisão mais justa e, dentro dos padrões esperados pela
sociedade.
2 Sobre os juros bancários
Feitas as primeiras considerações inerentes ao procedimento pericial
contábil, necessário, neste momento, fazer alguns esclarecimentos acerca dos
institutos técnicos inseridos nos contratos bancários, antes de comentar sobre os
contratos bancários, a fim de melhor entender estes entabulamentos.
Os juros bancários normalmente são pagos juntamente com o
respectivo capital, na data avençada para o término do empréstimo, ocorrendo a
inevitável capitalização do montante dos juros no momento em que é liquidado,
quando é incorporado ao capital, confundindo-se com este. Em certas situações o
juro é pago periodicamente, antes do fim do prazo do empréstimo.
Nesses casos ocorre uma capitalização periódica, pois o montante dos
juros pagos é incorporado ao capital de quem empresta, antes do vencimento do
prazo para restituí-lo, assim, o emprestador tem condições de reaplicá-lo, usufruindo
de novos juros.
A capitalização ocorre no momento em que os juros são pagos ou, se
debitados, no vencimento de um período de tempo preestabelecido de utilização do
capital emprestado. Durante o lapso de tempo em que é utilizado dinheiro
emprestado ocorre o processo de formação de juros, a formação temporal dos juros
completa-se a cada dia; para sua contagem pode-se utilizar um número indicativo de
dias, meses ou anos; podem-se convencionar meses de 30 dias e anos de 360 dias:
não se conta o primeiro dia, mas o último.
Com o pagamento ou o débito dos juros ocorre, por conseqüência, a
transferência de seu montante, do patrimônio do devedor para o do credor, sendo,
portanto, incorporado ao capital deste último, de maneira que o novo capital
resultante lhe renda, ou possa render-lhe, novos juros em períodos subseqüentes.
Em outras palavras, os juros, após seu processo de formação, no
instante em que são recebidos ou debitados pelo credor, são incorporados ao capital
deste, ocorrendo a capitalização pois o montante dos juros entra no patrimônio do
94
credor, possibilitando-lhe sua capitalização com qualquer tomador, seja o que lhe
pagou o montante dos juros ou outro.
Alguns bancos cobram, no decorrer do contrato, de forma ilegal, juros
sobre juros. O anatocismo tem proibição expressa em normas legais. Não pode haver
a cobrança a ser exigida do consumidor, cabendo revisão de tal cláusula ilegalmente
pactuada.
A proibição de capitalização mensal dos juros vem de longa data.
Desde os primórdios do século passado, mais precisamente com a edição da Lei de
Usura, nos idos de 1933, o legislador já determinava que era proibido contar juros
sobre juros (art. 4º, do Decreto nº 22.626/33). Mesmo assim, passados todos esses
anos, a legislação não é observada.
Tal proibição já foi inclusive sumulada pelo eg. STJ. A capitalização
de juros é vedada pelo nosso direito, mesmo quando expressamente convencionada,
não tendo sido revogada a regra do art. 4º do Decreto nº 22.626/33 pela Lei nº
4.595/64. O anatocismo é repudiado, ainda, pelo verbete nº 121 da súmula do
Supremo Tribunal Federal.
A mais atual jurisprudência sobre o tema, inclusive, proíbe
a capitalização dos juros em qualquer periodicidade, quer mensal,
semestral ou ainda anual.
Portanto, a prática do Anatocismo, ou ainda a suposta
existência de cláusula permissiva de capitalização mensal devem ser
declaradas nulas, eis que há entendimento inclusive da impossibilidade
de tal contratação mesmo de forma anual, conforme jurisprudência
predominante.
3 Nulidade do Ato Jurídico
Ainda na esteira consumerista, no art. 39 está expressamente vedada ao
fornecedor de produtos ou serviços, vantagem manifestamente excessiva, inciso V.
Já no art. 51, assim prevê o dispositivo:
“São nulas de pleno direito entre outras, as cláusulas
contratuais relativas ao fornecimento de produtos e
serviços que:
[...]
95
IV – estabeleçam obrigações consideradas iníquas,
abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem
exagerada, ou sejam incompatíveis com a boa-fé ou a
equidade;
[...]
XIII – autorizem o fornecedor a modificar
unilateralmente o conteúdo ou a qualidade do contrato,
após sua celebração;
[...]
§ 1º - Presume-se exagerada entre outros casos, a
vantagem que:
[...]
III – se mostra excessivamente onerosa para o
consumidor, considerando-se a natureza e o conteúdo
do contrato, o interesse das partes e outras
circunstâncias peculiares ao caso”.
Complementando esse raciocínio o Novo Código Civil assim faz
previsão legal:
“ Art. 166. É nulo o negócio jurídico quando:
[...]
II - for ilícito, impossível ou indeterminável o seu
objeto;
[...]
VII - a lei taxativamente o declarar nulo, ou proibir-lhe
a prática, sem cominar sanção.
[...]
Art. 168. As nulidades dos artigos antecedentes podem
ser alegadas por qualquer interessado, ou pelo
Ministério Público, quando lhe couber intervir.
[...]
Parágrafo único. As nulidades devem ser pronunciadas
pelo juiz, quando conhecer do negócio jurídico ou dos
seus efeitos e as encontrar provadas, não lhe sendo
permitido supri-las, ainda que a requerimento das
partes”.
Explicando melhor essa relação: banco e consumidor, temos:
As relações de consumo de natureza bancária ou financeira devem
ser protegidas pelo Código de Defesa do Consumidor (CDC). Esse foi o
entendimento do Plenário do Supremo Tribunal Federal que, por maioria, (nove
votos a dois) julgou improcedente o pedido formulado pela Confederação Nacional
das Instituições Financeiras (Consif) na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI)
96
nº 259187.
A entidade pedia a inconstitucionalidade do § 2º do art. 3º do Código
de Defesa do Consumidor (CDC) na parte em que inclui, no conceito de serviço
abrangido pelas relações de consumo, as atividades de natureza bancária, financeira,
de crédito e securitária. Nos termos do art. 12 da Lei nº 9.868/199988, iniciou-se o
julgamento de mérito da ação direta ajuizada pela Confederação Nacional do
Sistema Financeiro contra a expressão constante do § 2º do art. 3º do Código de
Defesa do Consumidor - Lei nº 8.078/1990.
Essa lei inclui, no conceito de serviço abrangido pelas relações de
consumo, as atividades de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária (§
2º: Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e securitária,
salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista). Sustenta-se que a expressão
atacada ofende o princípio do devido processo legal e invade a reserva de lei
complementar para regular o sistema financeiro.
O Min. Carlos Velloso, relator, por entender que o Código de Defesa
do Consumidor limita-se a defender o consumidor, não interferindo na estrutura
institucional do sistema financeiro, proferiu voto no sentido de julgar procedente em
parte a ação para emprestar ao § 2º, do art. 3º, da Lei nº 8.078/199089, interpretação
conforme a CF para excluir da incidência a taxa dos juros reais nas operações
bancárias, ou sua fixação em 12% ao ano, dado que essa questão diz respeito ao
Sistema Financeiro Nacional.
De sua parte, o Min. Néri da Silveira, embora acompanhando a
fundamentação do voto do Min. Carlos Velloso, concluiu de forma diversa e votou
pela improcedência da ação por considerar que, sendo proibida a aplicação do
Código de Defesa do Consumidor. Como Néri da Silveira já apresentou seu voto no
julgamento da ação, o Min. Gilmar Mendes, que o substituiu em decorrência da
aposentadoria compulsória, não vota. Ainda faltam proferir seus votos os Mins. Eros
Grau, Joaquim Babosa, Carlos Ayres Britto, Cezar Peluso, Ellen Gracie, Marco
Aurélio, Celso de Mello e Sepúlveda Pertence. No início do julgamento, votaram o
Min. Rel. da ADI, Carlos Velloso (aposentado) e Néri da Silveira (aposentado).
87
Ação Direta de Inconstitucionalidade
Dispõe sobre o processo e julgamento da ação direta de inconstitucionalidade e da ação declaratória de
constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
89
Dispõe sobre a proteção do consumidor, e dá outras providências
88
97
Ambos consideraram constitucional a aplicação das regras do CDC aos contratos
bancários.
Velloso entendeu que o CDC não contraria as normas que regulam o
Sistema Financeiro e deve ser aplicado às atividades bancárias. No entanto, disse
que o Código não se aplica à regulação da taxa dos juros reais nas operações
bancárias, bem como a sua fixação em 12% (doze por cento) ao ano.
Essa matéria, segundo entendeu Velloso, é exclusiva do Sistema
Financeiro Nacional e deve ser regulada por lei complementar. Nesse sentido, deu
interpretação conforme a Constituição ao § 2º do art. 3º da Lei nº 8.078/1990 (CDC).
Já o ministro Néri da Silveira julgou totalmente improcedente o pedido formulado
pela Consif.
A ação entrou novamente na pauta, ocasião em que votou o então
presidente do STF, Min. Nelson Jobim (aposentado), proferindo voto-vista. Jobim
acompanhou o entendimento do Min. Carlos Velloso, no sentido de julgar
procedente em parte o pedido. Ele diferenciou as operações bancárias dos serviços
bancários e concluiu que, no caso destes, deverá ser aplicado o CDC. O Min. Eros
Grau decidiu acompanhar o Min. Néri da Silveira (aposentado) e julgou
improcedente o pedido formulado na ADI. Grau argumentou que “a relação entre
banco e cliente é, nitidamente, uma relação de consumo”. O ministro acrescentou
que é “consumidor, inquestionavelmente, toda pessoa física ou jurídica que utiliza,
como destinatário final, atividade bancária, financeira e de crédito”. Assim, Eros
Grau não acolheu a distinção feita pelo Min. Nelson Jobim entre “operações
bancárias”, às quais não caberiam as regras do CDC e “serviços bancários” sujeitos à
aplicação do Código.
Eros observou, no entanto, que o Banco Central deve continuar a
exercer “o controle e revisão de eventual abusividade, onerosidade excessiva ou
outras distorções na composição contratual da taxa de juros, no que tange ao quanto
exceda a taxa base [de juros].”
Em seguida, votou o Min. Joaquim Barbosa que também entendeu
que o pedido formulado pela Consif é improcedente. Para o ministro, não existe
inconstitucionalidade a ser pronunciada no § 2º do art. 3º do CDC. “São normas
plenamente aplicáveis a todas as relações de consumo, inclusive aos serviços
prestados pelas entidades do sistema financeiro”, completou.
O mesmo entendimento foi adotado pelos Min. Carlos Ayres Britto e
98
Min. Sepúlveda Pertence que, após o pedido de vista de Cezar Peluso, decidiu
antecipar o voto. Ao votar, o Min. Pertence observou que após a revogação do § 3º
do art. 192 da Constituição Federal pela Emenda nº 40/2003, o voto do Min. Carlos
Velloso “perdeu a sua base positiva”. O dispositivo limitava a taxa anual de juros a
12%. O Min. Celso de Mello, ao proferir seu voto na Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) nº 2591, ressaltou que proteção ao consumidor
qualifica-se como valor constitucional. Para o ministro, as atividades econômicas
estão sujeitas à ação de fiscalização e normativa do Poder Público, pois o Estado é
agente regulador da atividade negocial e tem o dever de evitar práticas abusivas por
parte das instituições bancárias. Nesse sentido, Celso de Mello entende que o
Código de Defesa do Consumidor (CDC) cumpre esse papel ao regulamentar as
relações de consumo entre bancos e clientes.
O ministro acrescentou que o Sistema Financeiro Nacional (SFN)
sujeita-se ao princípio constitucional de defesa do consumidor e que o CDC limitase a proteger e defender o consumidor "o que não implica interferência no SFN".
Assim, ao concluir que as regras do CDC aplicam-se às atividades bancárias, Celso
de Mello julgou improcedente o pedido formulado na ADI. A Minª. Ellen Gracie
também julgou improcedente o pedido de declaração de inconstitucionalidade feito
pela Consif na ADI 2591.
Assim, por maioria de votos (nove a dois) o Plenário declarou a
constitucionalidade do dispositivo do CDC que havia sido questionado pela Consif.
O Min. Cezar Peluso, ao encerrar seu voto-vista na Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) nº 2591, entendeu que o Código de Defesa do
Consumidor (CDC) se restringe às relações de consumo entre os bancos e os
clientes. Para ele, não há como sustentar que o CDC teria derrogado a legislação
referente ao Sistema Financeiro Nacional (SFN).
A última a votar, a presidente do STF, Minª. Ellen Gracie, também
entendeu que as relações de consumo nas atividades bancárias devem ser protegidas
pelo CDC. O placar do julgamento definitivo da ADI ficou assim: votaram pela
improcedência do pedido formulado pela Consif os Mins. Néri da Silveira
(aposentado), Eros Grau, Carlos Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Sepúlveda
Pertence, Cezar Peluso, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ellen Gracie. Ficaram
parcialmente vencidos os Mins. Carlos Velloso (aposentado), relator, e Nelson
Jobim (aposentado).
99
4 Fornecedor dos serviços bancários de consumo
Várias são as interpretações doutrinárias sobre a definição de
fornecedor. Em relação aos bancos, há de se fazer a seguinte explanação:
O art. 3º caput, do Código de Defesa do Consumidor, estabelece que:
Fornecedor é toda pessoa física ou jurídica, pública ou
privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes
despersonalizados, que desenvolvem atividades de
produção,
montagem,
criação,
construção,
transformação, importação, exportação, distribuição
ou comercialização de produtos ou prestação de
serviços
E, em seguida, no seu § 2º define que “Serviço é qualquer atividade
fornecida no mercado de consumo, mediante remuneração, inclusive as de natureza
bancária, financeira, de crédito e securitária, salvo as decorrentes das relações de
caráter trabalhista”.
Desta forma, outra não é a conclusão, senão definir a relação como
sendo consumerista, inclusive pelas já consagradas decisões de nossos tribunais.
5 Correntista ou consumidor dos serviços bancários?
Desta forma na relação bancária, surge o consumidor como sendo o
tomador do crédito para utilização própria ou o correntista da instituição financeira.
A jurisprudência e a doutrina por vezes se confundem em definir
quem é o consumidor final de determinado produto disponível no mercado. Há quem
diga que prostituição é relação de consumo!
O critério definido no art. 29 é mais amplo, razão por que os
destinatários finais efetivos ou virtuais estabelecem outra espécie de consumidores
dos serviços e contratos bancários: o conceito de consumidor se amplia, para
proteger quem for "equiparado". É o caso do art. 29. Para o efeito das práticas
comerciais e da proteção contratual, "equiparam-se aos consumidores todas as
pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele previstas".
100
6 Importância da aplicação do Código de Defesa do Consumidor aos contratos
bancários e às cláusulas adesivas
As cláusulas ou condições contratuais gerais constituem parte
essencial do direito bancário. Permitem a racionalização da contratação em massa
com milhares de pessoas, ganhando tempo e poupando transtornos aos clientes que
desejam ser atendidos pelas instituições financeiras. O ponto crucial é que essas
cláusulas pré-elaboradas ou utilizadas pelos bancos em contratos singulares, sem
influência do cliente no respectivo conteúdo, sejam justas, eqüitativas e razoáveis.
O contrato de adesão constitui aquele cujo conteúdo foi total ou
parcialmente estabelecido de modo arbitrário e geral anteriormente ao período
contratual. Caracteriza-se pela ausência de negociação individual prévia em vista do
acordo das vontades. Apresenta-se, na maioria das vezes, sob a forma de condições
gerais ou individuais estabelecidas unilateralmente por uma das partes.
O abuso não resulta do fato que o consumidor é obrigado a aderir a
este ou aquele texto pré-impresso, mas, efetivamente, do conteúdo eventual de uma
convenção, cuja redação ele não participou, e que não poderá modificar, visto a
relação de forças existentes entre as partes confrontadas, e que provavelmente
encontrará uniformizada no setor respectivo.
A abusividade de cláusulas cria, em detrimento do consumidor, um
desequilíbrio significativo entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do
contrato. E há abuso quando o consumidor sofreu um prejuízo desproporcionado
resultante, diretamente, de um desequilíbrio flagrante entre os direitos e os deveres
recíprocos dos parceiros da relação. Daí a qualificação desta lesão em qualificada, e,
uma vez verificada, o contrato fica eivado de vício insanável, acarretando a nulidade
absoluta, eis que constitui culpa in contrahendo o fato de se comportar para com o
contratante de contrária à boa-fé.
O contrato de adesão surge como necessidade de o Direito adequar-se
às exigências econômicas e sociais, compatíveis com a modernidade da economia de
escala, produção em série, consumo em massa, pressa do agir dos sujeitos
envolvidos nas transações. Deixada para trás a fase em que os contratantes se
reuniam para discutir cláusula a cláusula até formação definitiva da avença. Ao
consenso opõe-se agora a aderência, ao contrato de comum acordo, o contrato de
adesão, ficando as cláusulas ao encargo unilateral de uma das partes, no caso, o
101
fornecedor a estabelecê-las previamente.
O cerne do Código de Defesa do Consumidor reside na proibição de
certas cláusulas em contratos bancários. A nulidade de cláusulas inseridas em
contratos singulares deveria acarretar a invalidade do conjunto. Outro aspecto
tecnicamente importante tem a ver com a estruturação das cláusulas contratuais
gerais proibidas e assenta numa contraposição entre cláusulas absolutamente
proibidas e cláusulas relativamente proibidas. As cláusulas absolutamente proibidas
não podem, a qualquer título, serem incluídas em contratos através do mecanismo de
adesão. As cláusulas relativamente proibidas não podem ser incluídas em tais
contratos desde que, sobre elas, incida um juízo de valor suplementar que a tanto
conduza.
Nas relações com consumidores finais aplicam-se as regras do art. 51
do Código de Defesa do Consumidor, envolvendo principalmente a nulidade de
cláusulas contratuais abusivas. Entretanto, devemos analisar a questão da aplicação
da normatização de defesa do consumidor aos contratos bancários e depois uma
análise das cláusulas abusivas.
7 O desvendamento das altas taxas de juros através da Perícia Contábil e a
teoria da Lesão Enorme
Após 11 anos auxiliando o Juízo das Comarcas do litoral de São
Paulo, podemos aduzir, com a maior tranqüilidade, que das perícias realizadas nas
lides cujo objeto era a revisão de cláusula contratual e a depuração das taxas de
juros, 100 (cem) por cento dos cálculos desenvolvidos demonstraram cobrança de
juros acima daqueles pactuados em contratos bancários de empréstimo, cheque
especial, dentre outros.
É demasiadamente flagrante a forma como os bancos cobram suas
taxas de juros em patamares bem acima daqueles contratados.
A mídia vem noticiando mês a mês, os recordes de lucratividade das
instituições financeiras. Na mão inversa, a equipe econômica do governo Lula vem
estudando incessantemente, fórmulas complexas para reduzir os rendimentos da
caderneta de poupança. Realmente, os rendimentos da caderneta de poupança, que
não devem chegar a 1% ao mês, onde 95% dos “investidores” são comprovadamente
os intitulados como sendo “pobres”, é que são os responsáveis pela crise econômica
102
no país. Sinceramente!
A teoria da lesão enorme, em poucas palavras, demonstra a obtenção por
uma parte, de vantagem em detrimento de outra, de forma exageradamente
desproporcional, incompatível com a boa fé e a equidade.
Os defensores dessa teoria aplicada aos contratos bancários se
utilizam dos seguintes dispositivos legais para fundamentação dessa teoria: artigo
173, § 4º, da CF, reprime o aumento arbitrário do lucro; art. 4º, inciso III, do
Código de Defesa do Consumidor (boa fé ); art. 6º, inciso V, do CDC ( diz que são
direitos básicos do consumidor a modificação das cláusulas contratuais que
estabeleçam prestações desproporcionais); art. 51 do CDC, inciso IV, e § 1º do
CDC ( diz que são abusivas as obrigações que coloquem o consumidor em
desvantagem exagerada, ou que sejam incompatíveis com a boa fé, o parágrafo
primeiro define o que é vantagem exagerada); art. 3º, inciso VII, Decreto 2.181/97,
o qual dispõe sobre a organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor
(define a competência do SNDC, para a vedação de abusos ); art. 9º, Decreto
2.181/97 (determina que a entidade competente para exercer as atividades de
fiscalização dos abusos é o Departamento de proteção e Defesa do Consumidor,
órgão da Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça); art. 12, inciso
VI, Decreto 2.181/97 (determina que é pratica infrativa exigir do consumidor
vantagem manifestadamente excessiva); art. 18, Decreto 2.181/97 ( determina as
penas para quem cometer as práticas infrativas, que vão de multa até cassação da
licença do estabelecimento ou de atividade);
Além da abusividade destacada ao norte, os bancos insistem em
acumular a cobrança de juros remuneratórios com as comissões de permanência, que
hoje é expressamente vedada pelo STJ, que na súmula 296, inclusive, estabelece a
taxa do banco central média como parâmetro de cobrança, limitada aquela fixada em
contrato.
Aí é que começam os problemas. Primeiramente, na condição de
consumidor, o correntista que se sentir prejudicado deve procurar conciliar as taxas
de juros praticadas com aquelas estabelecidas em contrato entabulado entre as
partes. Começam as primeiras dificuldades, ou seja, ter acesso ao contrato. Quando o
correntista pede uma via de seu contrato, vem a costumeira resposta: “é só aguardar
o gerente assinar que lhe enviaremos para o local apontado no contrato”, e
obviamente, esse contrato nunca chega. Deve então o correntista requerer através de
103
documento escrito, devidamente protocolizado na agência, a fim de comprovar a sua
boa-fé perante o MM. Juízo, apesar dos ditames consumeristas dispensarem tais
condutas.
É através desse contrato que o perito vai desenvolver as planilhas e
proceder a depuração dos encargos bancários, a fim de se identificar os juros, mês a
mês, que foram cobrados pelo banco.
Conhecendo-se as taxas efetivamente cobradas, o segundo passo do
perito é identificar a forma como foram cobrados estes juros, ou seja, se foram
capitalizados ou não, se foram aplicados um sobre o outro, mês a mês.
O terceiro passo é identificar se houve cumulação da cobrança dos
encargos como: comissão de permanência, juros remuneratórios, correção
monetária, etc.
O quarto e mais importante passo, no nosso ponto de vista, é a
conciliação geral e a produção do laudo pericial que deverá responder a todos os
quesitos das partes e formando elementos para a convicção adequada do MM. Juiz.
Vale trazer à baila o pronunciamento do Ministro do Supremo
Tribunal Federal Marco, Aurélio Mello, em que:
As taxas de juros que estão sendo praticadas, hoje, no
Brasil são taxas que nenhum empresário é capaz de
suportar. Nós sabemos que o fenômeno que se
denomina, de ciranda financeira, é que é a tônica, hoje
do mercado financeiro engordando os lucros dos que
emprestam dinheiro e empobrecendo a força do
trabalho e do capital produtivo.
8 Das consequências do resultado da Perícia Contábil nas cobranças bancárias
Os colegas causídicos mais atentos conseguem buscar uma realidade
que de longe o correntista não enxerga, ou seja, de inverter os resultados
testemunhados na relação contratual, onde o correntista poderá se situar em situação
mais confortável.
Os juros moratórios, por exemplo, são cobrados pelo atraso de
pagamento, e os tribunais, tranquilamente vem admitindo, nestes casos, que esses
juros não são devidos por faltar-lhes tal característica, ou seja, o laudo poderá
demonstrar a liquidez dos saldos do correntista de forma positiva não fosse a
104
abusividade do banco.
Outra situação é a possibilidade de repetir os indébitos praticados
pelo banco, também de forma já pacificada em nossos tribunais, onde, correntistas
que em tese, estavam com seus saldos negativos, passaram a ter saldos bancários
positivos. É fato.
Considerações Finais
As transformações econômicas verificadas ao longo dos anos
constituíram uma tarefa difícil para a grande parte dos pequenos empresários e
consumidores brasileiros, cujas conseqüências se fizeram perceber em face do
quadro recessivo que se instalou no país e efetivamente aos abusos cometidos pelas
instituições financeiras com o alto custo, o avanço usuário das taxas de juros e dos
encargos em contratos bancários e comerciais, levando inclusive uma intervenção do
Governo Federal com a Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça e
do Banco Central do Brasil.
Desta forma, deve prevalecer a dignidade da pessoa humana sobre
todos os outros interesses materiais, por mais privilegiados que sejam, na certeza de
que as ciências: jurídicas e contábeis, em plena harmonia, venham contribuir com a
formação de uma sociedade mais justa, digna e solidária.
Referências Bibliográficas
CONSELHO FEDERAL DE CONTABILIDADE. RESOLUÇÃO 857/99. Normas
profissionais do perito. Disponível no site: http://www.cfc.org.br – 25 de abril de
2009.
RESOLUÇÃO
858/99.
Da
Perícia
Contábil.
Disponível
no
site:
http://www.cfc.org.br – 25 de abril de 2009.
DE SÁ, Antonio Lopes. Perícia Contábil. 3 ed. São Paulo: Atlas, 1997.
MOURA, Ril. Perícia Contábil Judicial e Extrajudicial. 2 ed. Rio de Janeiro: Ed.
Freitas Bastos, 2007.
NERY JÚNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado. 9 ed. São Paulo:
RT, 2006;
105
O milagre medieval: Gil Vicente e William Butler Yeats
Eliane de Alcântara Teixeira∗
Resumo: O presente artigo, de caráter comparativo, procura aproximar dois autos – um de Gil
Vicente, o Auto da Alma, o outro do poeta irlandês Yeats, The countess Cathleen –, tentando
mostrar como dramaturgos de períodos tão distintos, escrevendo o mesmo gênero de drama –
os chamados milagres medievais –, manipulam idênticos mitos e valores religiosos.
Palavras-chave: drama, medieval, mistérios, milagres, personagens.
Este artigo pretende aproximar textos teatrais de períodos distintos e de autores
pertencentes a literaturas diversas. O primeiro autor é Gil Vicente, dramaturgo
português, que teria vivido entre 1465 ou 1466 e 1536 ou 1540. Sua produção é intensa,
escreveu quarenta e seis peças, em diferentes estilos: peças satíricas, místicas, comédias
e farsas. O texto a ser analisado será o Auto da Alma, revisitação de um gênero medieval
conhecido como “milagre”. O segundo autor é William Butler Yeats, dramaturgo
irlandês, que viveu entre 1865 e 1939. Além de poeta, o escritor irlandês escreveu e
dirigiu peças teatrais, é autor de ensaios e estudos autobiográficos90. A peça escolhida
foi The Countess Cathleen, escrita em 1892, e ela nos atraiu justamente por reproduzir,
em certos aspectos, o milagre medieval.
Afinal, por que William Butler Yeats resolve reproduzir a estrutura do milagre
medieval nesta peça? Na tentativa de responder a essa pergunta, neste trabalho
comparativo, em primeiro lugar, vamos analisar esses dois textos distintos para
observarmos as analogias, as semelhanças e comprovarmos a tese de que se trata de
uma utilização, por parte de Gil Vicente, de um gênero tipicamente medieval para
revitalizar o espírito religioso, já bastante abalado pelo materialismo crescente, dentro
da era renascentista e, por parte de Yeats, desse mesmo gênero também com
intenções críticas. Em segundo lugar, iremos buscar, nas circunstâncias temporais de
∗
Doutora em Literatura Portuguesa pela USP, professora do Mestrado Interdisciplinar da Universidade
São Marcos e da Faculdade São Sebastião, foi Visiting Professor no Middlebury College (1996-1997),
autora de Almeida Faria e a revisitação do mito sebástico.
90
A respeito da grande contribuição de Yeats para a cultura, consultar a obra de Ifor Evans, História da
Literatura Inglesa, trad. port., Lisboa: Ed. 70, p. 141.
106
cada autor, a possível resposta para esse mergulho na Idade Média, de certo modo
anacrônico, de dramaturgos pertencentes a épocas, culturas e países diferentes.
1. O Milagre Medieval
Desde de sua origem, o teatro foi identificado com os ritos religiosos e ligado
aos fenômenos naturais, como por exemplo, os cultos a Dioniso ou em louvor à
Primavera e à renovação da Natureza. O teatro na Antigüidade foi amplamente
desenvolvido, porém, entre ele e o teatro medieval, parece existir uma grande lacuna
e, até, uma total separação, como se um não apresentasse nenhuma relação com o
outro. Isso se deve naturalmente à inflexível posição da Igreja contra as práticas
teatrais, antes comuns em Grécia e Roma. Em verdade, os padres da Igreja católica,
por toda Europa, com seus ataques, muito contribuíram para a decadência da tradição
clássica. No entanto, é irônico que esta mesma Igreja, que tanto proibiu essas práticas,
delas tenha se servido ao longo da Idade Média:
Do mesmo modo como o drama grego se desenvolveu a partir da
adoração a Dioniso, a dramaturgia litúrgica medieval desenvolve-se da
liturgia cristã, particularmente das celebrações da Páscoa, desde a
Ressurreição, ou mais, desde a Natividade, que era o foco principal do
ano cristão. O processo foi lento e desigual. Em alguns lugares, a Igreja
era muito revolucionária, em outros, mais conservadora. Mas, em geral,
um claro padrão emerge, mostrando um progresso definitivo do simples
ato de fé que se transforma numa cerimônia ritual para um espetáculo da
vida de Cristo em escala natural, encenado sobre carroças de dois
andares (pageants), interpretado em Latim e utilizando todo o edifício da
igreja. Com a introdução do vernáculo e a transferência da performance
para o pátio do lado de fora da igreja, o caminho estava aberto para o
desenvolvimento de um teatro nacional em cada país.91
Essas obras de caráter religioso receberam o nome de “mistérios ou milagres”: os
primeiros, representando episódios da Bíblia; os segundos, as encenações inspiradas
nas vidas dos santos.
91
HARTNOLL, Phyllis. The Theatre: a concise history, 3a ed., London: Thames and Hudson, 1998, p.
35.
107
Esse processo também ocorre na Inglaterra. Segundo o texto de introdução de
O teatro inglês da Idade Média até Shakespeare, o teatro inglês na Idade Média
inicia-se pela necessidade do clero de transmitir seus ensinamentos:
Desde tempos bem antigos, o clero tentara transmitir os ensinamentos
cristãos através do ritual e da música, pois a liturgia, em latim, não era
compreendida pelo povo em geral. Desse drama litúrgico, em voga até o
século XII, originaram-se os MISTÉRIOS ou MILAGRES.(...) Os
mistérios ou milagres tiveram seu apogeu entre 1300 e 1450. Derivados
do drama litúrgico, dele diferem por serem falados em vernáculo, em vez
de serem cantados em latim.92
Com o tempo, essas peças foram se afastando da Igreja, transformando-se em
manifestações cada vez mais populares. As cidades haviam crescido e com elas o
comércio, portanto esse tipo de encenação tornava-se cada vez mais necessária para a
vida desses burgos, que eram os únicos centros de desenvolvimento de cultural da
Idade Média. Vieram os “ciclos de mistérios”, que eram, ainda segundo a mesma
fonte, “o conjunto das peças apresentadas em uma festividade”93. Entre os séculos
XIII e XIV, essas representações constituíram mais uma responsabilidade das
comunidades do que da Igreja e, portanto, já se tinham secularizado. Esses ciclos só
irão desaparecer durante o reinado de Henrique VIII, com a reforma eclesiástica.
Em Portugal, o fenômeno dos dramas populares também aconteceu num
processo muito parecido com o do teatro inglês, porém pouco ou quase nada restou
dessas encenações. Segundo Massaud Moisés:
Antes de Gil Vicente, houve teatro em Portugal? É possível que sim, em
consonância com o que ia no resto da Europa, mas não subsistem provas
documentais. Só sabemos da existência de breves representações, de
caráter cavaleiresco, religioso, satírico ou burlesco, que receberam o
nome de momos, arremedilhos e entremezes, cujo sentido
originariamente diverso, acabou por se confundir. (...) O mais antigo
documento referente ao assunto data de 1193, dando notícia do
pagamento que D. Sancho I efetuava a dois jograis, Bonamis e
Acompaniado, por seus arremedilhos.94
92
STEVENS, Kera. O teatro inglês da Idade Média até Shakespeare, org. da antologia Kera Stevens e
Munira H. Mutran, São Paulo: Global, 1988, p. 10-11.
93
Ibidem
94
MOISÉS,Massaud. A Literatura Portuguesa, 27a ed., São Paulo: Cultrix, 1992, p. 40.
108
Além desses festejos mais populares, ou sem ligação religiosa, havia as muito
comuns romarias aos lugares santos. Durante as longas viagens, os romeiros, para
amenizar o cansaço e a saudade de suas famílias, organizavam, geralmente durante à
noite ou comemorando datas religiosas, festejos que se compunham de danças,
cantigas e momos considerados práticas proibidas pela Igreja. Muitos documentos
episcopais condenam essas práticas e daí que inferimos a existência desse teatro
primitivo. O melhor exemplo disso está relatado no concílio de Toledo de 1473 (cap.
19):
Reunido em Aranda, falava de festejos semelhantes aos da Inglaterra e
mais países da Europa ocidental: “Tanto nas igrejas metropolitanas,
como nas catedrais e mais templos da nossa província, meteu-se um
costume, a saber: pelas festas do Nascimento de Nosso Senhor Jesus
Cristo, de S. Estevão, S. João e na SS. Inocentes e em certos outros dias
festivos, mesmo quando se celebram as cerimônias divinas, nas
solenidades das missas novas, introduzem-se na igreja representações
teatrais, mascaradas, espetáculos, figuras monstruosas”.95
Dois aspectos importantes podemos apreender do que foi dito acima, o
primeiro, que Inglaterra e Portugal tiveram um desenvolvimento muito semelhante no
que diz respeito à arte e, principalmente, ao teatro, fato que podemos confirmar nos
demais países europeus, e segundo, uma vez que um autor moderno resolve fazer uma
incursão a esse período, isso significa que a Idade Média ainda oferece muito material
e caminhos para a interpretação do nosso tempo.
2. O Auto da Alma, de Gil Vicente
Pareceu-nos claro que, apesar da inexistência de documentação comprobatória,
o teatro português medieval existiu efetivamente, e mais, que ele teria influenciado de
modo direto os chamados autos de devoção do mais importante dramaturgo português
do período subseqüente, Gil Vicente:
95
MARTINS, Mário. “Teatro Sagrado na nossa Idade Média” in Brotéria, vol. L (II), Lisboa, fev. de
1950, p. 147.
109
Outros testemunhos ainda existem de cerimônias litúrgicas do ciclo
pascal que interferem com o teatro. Se apenas em um missal bracarense
de 1558 se nos depara o texto dialogado de um Depositio Christi, certo é
que tal cerimônia há mais de um século era conhecida entre nós, como se
depreende de uma alusão que o rei D. Duarte lhe faz no Leal
Conselheiro (capítulo 97) e permite confirmá-lo o remate do Auto da
Alma vicentino, (...) E haverá também de retroceder à primeira metade
do século XV para encontrar vestígios diretos de uma das composições
dramáticas mais freqüentes na liturgia medieval: o Pranctus, ou Pranto
de Nossa Senhora, que, dotado inicialmente de autonomia, passou mais
tarde a integrar-se nos ‘mistérios’ sobre a Paixão de Cristo.96
Como vimos, o Auto da Alma é um bom exemplo de encenação religiosa que
se aproxima muito dos milagres medievais. Esse auto foi um presente à rainha D.
Leonor, que dava à luz o futuro rei D. João III. Foi representado pela primeira vez na
corte de D. Manuel, na cidade de Lisboa, em uma noite de Endoenças, ano de 1508.
Dissemos que é uma peça com estrutura de milagre medieval, pois Gil Vicente,
apesar de humanista, ainda mantém fortes traços medievais em sua obra,
principalmente nos autos. O teatro vicentino é popular por excelência desde sua
origem; e o aspecto litúrgico desses autos reflete uma das principais características do
povo português – a religiosidade. São personagens desse auto: a Alma, o Anjo
Custódio, a Igreja, Santo Agostinho, Santo Ambrósio, S. Jerônimo, S. Tomás e dois
Diabos. O enredo conta que do mesmo modo que caminhantes cansados precisam
parar em estalagens para se refazer, assim também as almas precisam de uma parada
de repouso, quando jornadeiam rumo à eternal morada de Deus. Essa estalagem é
comandada por uma estalajadeira das almas, que é a Madre Santa Igreja e que, no
início da peça, está reunida com seus quatro doutores: Santo Tomás, São Jerônimo,
Santo Ambrósio e Santo Agostinho. Eles discutem a necessidade de algo que proteja
a almas da perdição, e esse algo seria a própria Igreja. Nesse momento, entram o Anjo
Custódio e a Alma. O anjo aconselha a Alma a não cair em tentações, pois estas são
obstáculos criados pelo Demônio para tirá-la do caminho certo. Como contraponto à
intervenção angelical, o Diabo que tenta desviá-la do caminho, oferecendo-lhe bens
supérfluos como um par de sapatos e um vestido de seda.
96
REBELLO, Luiz Francisco. História do Teatro Português, Lisboa: Instituto de Cultura
Portuguesa/Secretaria de Estado da Investigação Científica, 1968, p. 41.
110
A Alma, persuadida de que ainda muito tempo tinha antes da morte, começa a
achar razão no que diz o Diabo, e que mal não havia em se enfeitar um pouco e em
gozar a vida. Ciente da calamitosa situação, o Anjo aconselha a Alma a ir hospedar-se
em abrigo seguro, a Madre Santa Igreja, e a Alma concorda. Os dois Diabos,
praguejando, esperam a Alma sair da Igreja para tentá-la novamente. Enquanto isso,
dentro da igreja os quatro doutores, a Alma e o Anjo estão sentados, todos oram, e
Santo Agostinho benze a mesa. No decorrer da cerimônia, vão os doutores mostrando
os martírios: as insígnias da Paixão, os açoites, a coroa de espinhos, cravos e o
crucifixo. A Alma, agora despida das vestes do pecado, pura, resignada e arrependida,
caminha para o sepulcro e depois para a casa celestial, onde descansará eternamente.
Como se viu, o teor religioso nessa peça é muito alto, o que a faz muito
próxima de um ensinamento cristão, como se constituísse ela um verdadeiro ato
litúrgico, no qual existe a idéia de que o maior proveito que se tira da vida terrena são
as boas ações, a entrega total aos mandamentos bíblicos, abalizados pela Igreja
Católica. Também não há dúvida de que esta peça seja uma alegoria, ou seja, nela
acontece a concretização de conceitos, idéias ou sentimentos que são representados
por pessoas, seres reais, como é o caso da Madre Santa Igreja, que aparece na forma
de uma estalajadeira; a Igreja em si, como um lugar seguro, um abrigo para o
caminhante cansado, onde são servidas refeições, as insígnias da Paixão, sobre a mesa
que é o altar. A vida terrena é representada por uma caminhada na qual o homem
pode tomar o bom ou o mau caminho. O homem, representado pela personagem
Alma, é frágil e suscetível de ser tentado, de ser aliciado pelo Diabo, porém, em seu
socorro e para que ele não desrespeite os princípios da Igreja Católica, surge o Anjo
Custódio auxiliando-o para que ele não caia em tentação e se deixe seduzir pelos bens
materiais.
Logo no início da peça, Santo Agostinho, o mais importante doutor da Igreja,
por ter escrito as bases da doutrina cristã, é quem fala. O lugar escolhido é uma mesa
posta com uma cadeira que naturalmente deve ser destinada à Alma, dentro do
templo, o que representa a idéia de que a Igreja é o lugar onde as almas devem buscar
o alimento divino. Durante essa primeira fala, Santo Agostinho, num tom de muita
austeridade, refere-se à necessidade de o homem procurar consolo para seus
tormentos:
Porque a humana transitória
111
natureza vai cansada
em várias calmas,
nesta carreira da glória
meritória,
foi necessário pousada
para as almas.
Pousada com mantimentos,
mesa posta em clara luz,
sempre esperando,
com dobrados mantimentos
dos tormentos
que o Filho de Deus na Cruz
comprou, penando.97
Vemos aqui a própria celebração da missa, ou seja, a mesa é o altar, os
mantimentos representados pelas insígnias do Paixão (açoites, coroa de espinhos,
cravos, crucifixo) são os ensinamentos transmitidos durante a missa por meio das
palavras dos padres (Santo Agostinho foi apenas um deles), ou por meio da própria
imagem de sofrimento de Cristo na Cruz. Aliás, nessa mesma fala, aparece resumida
toda a penosa trajetória de Cristo – Filho de Deus – que sofreu com dobrados
tormentos – o ato da crucificação e os demais martírios – para salvar o homem. Essa
mesa está iluminada de sabedoria, a verdadeira luz, ou pela própria posição do púlpito
que fica em posição privilegiada, isto é, bem acima das cabeças dos fiéis, e iluminada
pela luz das rosetas, imensas janelas estrategicamente colocadas para provocar, com
uma luz intensa, essa sensação de êxtase e purificação do ambiente.
Em seguida, aparece o Anjo que acompanha a Alma para ter certeza de que
esta não entrará em algum caminho escuso. A Alma, porém, logo será abordada pelo
Diabo, que se aproveitara do fato de que o Anjo se afasta para cumprir outra missão.
Essa cena apresenta os perigos que o homem corre ao se distanciar muito da Igreja,
que figura como a mais importante instituição da sociedade. Por mais que essa
sociedade mude, ela permanecerá firme em seu propósito e em sua missão, nunca
abalada, nunca descaracterizada. O Diabo, em sua fala, acentua a brevidade da
existência e a necessidade de se desfrutar das boas coisas da vida. Em seu discurso,
também, notamos um certo tom coloquial. Observe-se que ele chama a atenção para o
que é prazeroso, efêmero:
97
VICENTE, Gil . Obras Primas do Teatro Vicentino, int., org. e com. de Segismundo Spina, São
Paulo: Difusão Européia do Livro/ Edusp, 1970, p. 138.
112
Oh! Descansai neste mundo,
que todos fazem assi.
Não são embalde os haveres,
não são embalde os deleites
e fortunas;
não são debalde os prazeres e comeres:
tudo são puros afeites
das criaturas98
O Diabo, em seu discurso, procura atrair a Alma com alguns dos pecados
capitais: preguiça, gula, luxúria, com isso, opondo-se à austeridade imposta pela
Igreja. Nota-se que sua fala é bastante informal em relação ao discurso grave,
circunspeto de Santo Agostinho. Cria-se, assim, uma espécie de oposição dentro da
peça: o poder da Igreja, representado pelos Santos, instaura-se também pela sabedoria
e dom da palavra; a Igreja seria então uma espécie de elite espiritual e cultural,
enquanto que os Diabos, com seu linguajar menos rebuscado, sua banalidade e o
apego aos bens materiais, ficariam numa posição inferior na sociedade. A Igreja ligase à idéia do sacrifício e da purgação dos pecados, com a projeção das benesses para
um outro plano, o celestial; os agentes da tentação ligam-se à idéia de que não se pode
contar com algo além da vida, mas, sim, de que todos devem desfrutar dos prazeres
da vida aqui mesmo na terra. A Alma sente-se tentada pela oferta do Diabo – um brial
(vestido de seda ou de fino brocado), uns chapins (sapatos), um colar de ouro, dez
anéis e pendentes para as orelhas e até a solução para questões jurídicas. A Alma,
com certeza, é representada alegoricamente por uma mulher, logo, o Diabo apela para
sua fraqueza, a vaidade. Nessa época, a figura feminina era considerada um ser frágil,
suscetível de ser facilmente tentada - como Eva -; daí o fato de a mulher ser uma
metonímia do ser humano, que também é frágil e passível de ser seduzido pelo
Demônio.
Enfim, o Anjo Custódio consegue levar, por meio de hábil discurso, a Alma
para um abrigo seguro, isto é, a Igreja, que sem demora, apresenta os “manjares”
servidos por Santo Agostinho, Santo Ambrósio, São Jerônimo e São Tomás, alicerces
ou “pilares” da Igreja Católica. Inicia-se, neste ponto do auto, cuidada preleção sobre
a Igreja, sua função e finalidades pelos já referidos santos, o que acentua o caráter
98
VICENTE, Gil . Obras Primas do Teatro Vicentino, op. cit., p. 142.
113
pedagógico, didático do teatro vicentino. Essa preleção final apresenta os quatro
santos (observe que são quatro justamente para que formem, como numa figura
geométrica, os quatro alicerces necessários para a construção de qualquer edifício,
neste caso, a Igreja), e cada um será responsável por uma parte da oração.
Gil Vicente, como já se disse, procura tornar o exemplo muito concreto, como
acontece em toda alegoria, do mesmo modo que a Igreja, que se serve em suas
práticas do recurso de se utilizar do concreto para representar o abstrato, tornando a
mensagem mais palatável ao fiel geralmente inculto, principalmente se pensarmos no
público da Idade Média. A força da Igreja fica evidente, uma vez que o autor não só
defende os seus valores, como também se utiliza de recursos persuasivos similares
aos dos sacerdotes. Sem dúvida, ainda é o mundo medieval que predomina em
Portugal ou, pelo menos, é o que acontece na obra do dramaturgo.
Não é sem propósito que a Alma acaba por retornar ao bom caminho
representado pela Igreja. Esta, por ser o alicerce da vida feudal, emblematizaria a
própria Idade Média. Gil Vicente, com esse procedimento, vira, em parte, as costas à
Renascença, que privilegia a cultura clássica, despreza o feudalismo e sucumbirá
frente ao capitalismo comercial. Com o Auto da Alma, Gil Vicente acaba por
antecipar, segundo Segismundo Spina, muitas das resoluções do Concílio de Trento:
Antes que o Concílio de Trento, realizado pouco depois de sua morte
(1545-1563), viesse tentar uma reposição do Homem nos quadros
culturais da Idade Média, já o bom do Gil Vicente procurava lembrar ao
homem que possuía uma alma para salvar: se em 1517, com a
representação do Auto da Embarcação do Inferno, mostrou cruamente a
crise moral em que estavam metida todas as classes sociais de seu tempo
– desde o sapateiro ao fidalgo, desde o clérigo aos homens do foro –, em
1518 propôs-lhes com o Auto da Alma o caminho para a salvação.99
Essa postura só vai confirmar sua simpatia pelos ideais da Idade Média e pela Igreja,
que já se preocupava com seu papel e influência na sociedade portuguesa.
99
VICENTE, Gil . Obras Primas do Teatro Vicentino, op. cit., p. 12.
114
3. The Countess Cathleen, de William Butler Yeats
A peça de William Butler Yeats, The Countess Cathleen, possui apenas um ato
dividido em cinco cenas, sendo que a extensão delas é bastante variável. O número de
personagens não é muito grande. São elas: a Condessa Cathleen, Aleel, um poeta,
Oona, mãe adotiva da condessa, Shemus Rua, um camponês, Mary, sua esposa,
Teigue, o filho do casal, dois demônios que se fazem passar por mercadores,
camponeses, empregados e seres angelicais. A cena tem lugar numa pequena vila
(numa casa, nos campos, num castelo), na Irlanda dos velhos tempos. Nela,
encontramos um motivo religioso semelhante à do auto de Gil Vicente: se isso não
acontece quanto à forma como é tratado e quanto às personagens, acontece quanto à
representação da doutrina cristã. Camponeses famintos são tentados por mercadores,
na verdade, demônios, que lhes oferecem fartura em troca de suas almas. A condessa
Cathleen, percebendo o engodo, promete a própria alma para livrar os pobres dessa
desgraça. Por ser pura e desprendida, a personagem é cobiçada pelo Demônio que
aceita a troca. No final, uma interferência divina, representada por seres angelicais,
impede que sua alma vá para o inferno.
Já a uma leitura inicial da peça, percebemos o trabalho de artesão executado
por Yeats. A primeira cena é um bom indicativo dessa apurada lapidação, que se
percebe na descrição mais lírica que objetiva do cenário e no aprimoramento da
linguagem, o que serve para tornar o texto extremamente poético. Como veremos, as
outras artes, principalmente as visuais, unir-se-ão à poesia na composição dessa peça
tão original. O cenário, descrito como se fosse uma tela, compõe-se de uma sala, onde
arde o fogo de uma lareira, e uma porta de saída pela qual se vê um bosque e suas
árvores “upon a gold or diapered sky”100. Essa imagem do bosque junto à casa, em
que há um perfeito equilíbrio, sem excesso de sombra ou de luz, as cores suaves e o
dourado lembram uma ilustração de pintores Pré-rafaelitas, ou como afirma Liam
Miller:
As indicações de palco de Yeats para The Countess Cathleen sugerem
que a ação acontece num bosque, tal como pode ser visto em uma
100
YEATS, William Butler. The Collected Plays, Dublin: Gill and Macmillan, s/d, p. 3
115
iluminura medieval (...) porém a visão de Yeats desse mundo medieval
está mesclada a uma visão Pré-rafaelita, e um paralelo pode ser traçado
por meio das ilustrações de Sir Edward Burne-Jones para Chaucer, cuja
impressão William Morris terminou pela Editora Kelmscott em 1896.101
.
Na segunda cena, Mary e Teigue conversam, mas parecem agitados, os
diálogos transcorrem paralelamente, como se as personagens falassem sozinhas – a
mãe preocupa-se com a demora do marido, o rapazinho, com fatos estranhos
acontecidos na vizinhança: o aparecimento de um homem cujas orelhas se
movimentavam como asas de morcego e de um outro homem sem face. A referência a
essas monstruosidades é uma sugestão de que a normalidade do mundo começa a ser
perturbada pela intervenção do demoníaco. Nesse sentido, cria-se uma atmosfera de
mistério, na qual o elemento sobrenatural coexiste com o mundo real, dando a
sensação ao leitor da existência de dois mundos paralelos que se intercomunicam a
todo momento, como nas lendas de qualquer lugar. Contudo, neste caso, as lendas são
aquelas das tradições irlandesas dos tempos ancestrais, que Yeats faz questão de
relembrar:
Por meio de símbolos, presentes na mitologia e lendas irlandesas, como
o poço e a aveleira, e também nas referências aos famosos heróis
irlandeses como Cuchulain, ele conseguia facilmente evocar o mundo
sobrenatural e dar ao público uma visão intensa e mística da realidade.
(...) Yeats empregava símbolos, em sua maioria, retirados de mistérios
celtas.102
Poderíamos apontar aqui as duas principais constantes do autor: a primeira, a sua
paixão pelo Ocultismo, o que o torna um fascinado por lendas e pelo sobrenatural,
levando-o, até, a ser membro de sociedades secretas, característica também muito
comum aos simbolistas; a segunda, seu patriotismo que o faz constantemente retornar
às origens, na tentativa de criar uma literatura genuinamente irlandesa. Segundo
Fernanda Mendonça Sepa: “em The Countess Cathleen (1892), o mundo sobrenatural
é evocado por dois grupos distintos: o dos Demônios e o dos seres Angelicais”103, e é
101
MILLER, Liam. The Noble Drama of W. B. Yeats, Dublin: The Dolmen Press, 1977, p. 44.
SEPA, Fernanda Mendonça, O teatro de William Butler Yeats: teoria e prática, São Paulo:
Ollavobrás/Abey, 1999, p. 38.
103
SEPA, Fernanda Mendonça, O teatro de William Butler Yeats: teoria e prática, São Paulo:
Ollavobrás/Abey, 1999, p. 29.
102
116
dessa oposição entre o bem e o mal, desse jogo de forças que se compõe a peça. Mais
do que simplesmente trabalhar com elementos sobrenaturais, Yeats, assim como todo
artista do Simbolismo, deseja criar uma atmosfera mística, propícia ao devaneio.
No instante em que a mulher e o filho dialogam, Shemus chega à casa sem
nada nas mãos, pois sua busca por trabalho ou comida fora em vão. Nesse ambiente
de fome e penúria, muitas manifestações de ânimo acontecem: a mulher roga a
piedade divina, faz orações e tem pressentimentos negativos; o marido pragueja, pois
se diz abandonado por Deus; e o jovem simplesmente se desespera diante da situação
de fome extrema.
Entram em cena uma dama, uma velha senhora e um poeta cansados de longa
caminhada. A dama, representante da antiga nobreza, é a condessa Cathleen, no
entanto, a idéia de uma nobreza egoísta e mesquinha não se concretiza nessa
personagem, pois ela é extremamente generosa, tendo distribuído todos os seus bens,
tudo que trazia consigo para os famintos. A melhor descrição de Cathleen aparece no
final da peça, quando um dos camponeses a chama de “the great white lily of the
world” e um outro a compara com “the pale stars”. Essa aproximação com a cor
branca sinaliza sua pureza de alma inigualável e absoluta. Seu destino é um velho
castelo no interior do bosque, lugar de fartura e alegria. A condessa, acima da idéia de
classe social, representaria o povo de origem da Irlanda, ela é como que uma espécie
de entidade celta retirada das lendas. Vemos aqui uma das principais preocupações do
dramaturgo, a de acordar no homem o poder de imaginar, de sonhar com um passado
mítico. A figura da condessa remonta a um passado imemorial, o mundo feudal, no
qual os servos mantinham uma relação de positiva vassalagem em relação ao seu
senhor. O melhor exemplo disso verifica-se no respeito, sem traços de negativa
submissão, que Mary tem pela condessa:
But first sit down and rest yourself awhile,
For my old fathers served your fathers, lady,
Longer than books can tell – and it were strange
If you and yours should not be welcome here104.
Nessa primeira fase de produção dramática de Yeats, o esforço para conseguir
compor seu próprio “livro sagrado” é perseguido incansavelmente.
104
YEATS, William Butler. The Collected Plays, Dublin: Gill and Macmillan, s/d, p. 7.
117
Oona, a criada fiel, uma espécie de ama ou mãe adotiva, representa o plano real,
pois, com seus comentários, tenta constantemente trazer Cathleen para a realidade.
Não bastasse isso, também repreende o poeta por ser tão sonhador e por ser
absolutamente inútil, assim como a sua arte: “you were as helpless as a worm”. Oona
opõe-se tanto ao misticismo de Cathleen quanto ao lirismo de Aleel e, em seu
pragmatismo, emblematiza a figura arquetípica da Mãe, ligada à natureza, à terra.
Não é à toa que, tendo criado a condessa, acaba por ampará-la nos braços quando ela
morre. Essa bela cena, por acaso, não lembraria a tocante escultura da Pietá?
Aleel é um aedo, ou seja, o poeta itinerante, típico do mundo arcaico, uma
espécie de memória coletiva de um povo, pois está sempre contando velhas lendas
pagãs, mantendo com isso viva a tradição. É ele que canta as canções da peça, e
concretiza a comunhão entre o teatro e a música. Esse artista vive, aparentemente,
distante da realidade de extrema pobreza, seus olhos estão voltados para a beleza e o
amor. Além de cantar, Aleel também conta a Cathleen, na segunda cena, a história da
Rainha Maeve. Essa lenda teria acontecido há nove séculos e fala da paixão de um
homem por Maeve, “the Queen of all the invisible host”, que terminaria em morte.
Em realidade, há aqui uma visão poética das fases da lua, como dos demais
fenômenos da natureza. Ou seja, o poeta, ao invés de descrever objetivamente o
mundo natural, carrega-o de subjetividade, ao transformá-lo numa espécie de
alegoria, como se houvesse um sentido em tudo o que existe. Para ele, a lembrar
Baudelaire, tudo é hieroglífico, tudo é misterioso, a natureza, como um templo de
enigmas, fala. Nesse sentido, Aleel seria o alter ego de Yeats. Enquanto a condessa
representa a transcendência, e por isso é a única cuja alma pode salvar seu povo,
Aleel representa o sentido estético da vida, “a condessa, que vende sua alma para
aliviar o sofrimento de seus servos, pertence mais ao mundo de Oisin do que ao
mundo de Patrick e seu leal poeta, Aleel, parece pertencer também a uma antiga
ordem”105. Segundo C. M. Bowra, em The Heritage of Symbolism,
A imagem do poeta itinerante tem seu próprio significado, contudo, para
Yeats, tem uma importância simbólica, porque serve a suas próprias
inclinações por forças ocultas e misteriosas e pode ser aplicada a
qualquer um que tenha tais inclinações. (...) O poeta individual torna-se
105
MILLER, Liam. The Noble Drama of W. B. Yeats, Dublin: The Dolmen Press, 1977, p. 43.
118
um símbolo do universal anseio que é revelação, por se apresentar numa
vívida, concreta, particular circunstância106.
Logo após a partida dos três caminhantes, chegam os demônios, vestidos de
mercadores a fim de tentar os míseros camponeses. Eles são trazidos, principalmente,
pela invocação de Shemus. Vêm em nome do “Mestre dos mercadores” e seu único
interesse é negociar almas. Cria-se, assim, uma oposição maior dentro da peça: o
mundo de Deus, que rege a vida aqui na Terra, com vistas a conquistar o homem para
a pureza e o amor e o do demônio, que procura seduzir a alma com dinheiro. É,
portanto, significativo que o diabo apareça sob a forma de um mercador, o que serve
para atestar a crítica de Yeats a um mundo em que os valores materiais superam os
espirituais e estéticos. Tal como na peça de Gil Vicente, o diabo usa de várias armas
para seduzir o homem, todas que levam ao desfrute dos prazeres da vida. Quem são
esses homens cristãos, senão os ingleses, que durante o processo de dominação,
impuseram a língua e a religião ao povo nativo da Irlanda?
Quando a condessa descobre as artimanhas dos demônios mercadores, tenta de
todas as maneiras impedir essa desgraça, vende todos os seus bens, demonstrando um
total desprendimento, com exceção do castelo que, como vimos, representa a
integridade do ‘eu’, e luta desesperadamente pela salvação dessa gente inculta, iludida
por promessas vãs, gente que se esquece do mais precioso bem do homem – a alma.
Essa alma, aparentemente cristã, nada mais é que a própria essência de um povo, ou
seja, sua história, seus valores, sua tradição. Neste ponto, além da crítica aos rumos
que a Modernidade impõe ao homem, Yeats também visa a preservar a arte e, em
especial o teatro, contra o mercantilismo crescente. A condessa, com esse ato, define
para si própria uma missão, a de doar em prol de uma nobre causa:
Na terceira cena, como comentamos acima, Aleel relata uma visão
premonitória que teve enquanto dormia, porém Cathleen, que reza em seu oratório,
recusa-se a mudar de idéia, nem em nome das antigas entidades, os velhos deuses,
nem por qualquer força natural ou sobrenatural. Ela está firme em seu propósito e
nada poderá fazê-la mudar, sua escolha fora feita. Mais tarde, ela recebe a visita dos
dois mercadores astutos que tentam iludir a doce e pura dama que, por ser
extremamente inocente, nem percebe que os trapaceiros levam todo o seu ouro.
106
BOWRA, C. M. The Heritage of Symbolism, London: Macmillan, 1962, p. 189.
119
Após a breve quarta cena, em que camponeses conversam sobre o dinheiro, ou
para sermos mais exatos, o ouro que esse metal precioso que poucos possuem e que
tudo pode comprar. Eles tentam imaginar como seria esse tesouro e a melhor
associação é com o brilho do sol. Os dois mercadores observam escondidos e calados,
e para fechar a cena, aparece Aleel cantando mais uma canção.
Chegamos à quinta cena que chama a atenção pelo fato de jogar ao mesmo
tempo com um tom jocoso e um tom grave, aquele criando um forte contraste com
este. Se a peça em quase toda sua totalidade caracteriza-se pela força poética, pelo
tom elevado, pelo transcendente, as primeiras páginas da quinta cena surpreendem o
leitor com a grotesca imagem de um mercado, onde os demônios mercadores
organizam um leilão das almas. Ao fundo, o corpo de Mary jaz solitário rodeado de
velas, ninguém chora ou reza por ela. O grotesco instaura-se com a vulgarização do
sagrado, reduzido a profano, no instante em que o sublime é transformado em
mercadoria. Os mercadores começam a fazer uma espécie de leilão. Utilizando um
livro, que contém um resumo das atividades lícitas ou ilícitas dos pretensos
vendedores, os mercadores avaliam o que seria um bem eterno – a alma. A cena
transcorre como num mercado: ruído de vozes, protestos contra o baixo valor
atribuída à alma de uma senhora, barganha e discussão, enfim, há uma total
banalização do que é considerado sagrado. Em Yeats, esse valores materialistas
lembram, de maneira bem evidente, o Capitalismo inglês que ele tanto rejeitava.
No final da peça, a condessa Cathleen aparece para salvar os camponeses: em
troca das pobres almas, oferece de livre vontade a sua, a mais pura, a mais valiosa – a
alma de uma santa. Sem titubear, os mercadores aceitam a barganha, porém mediante
um documento assinado com a pena. Apesar dos apelos de Aleel, Cathleen, assim
como Fausto, assina e o negócio está fechado. Pouco depois, quando a Condessa está
para morrer, algo extraordinário acontece: figuras angelicais vestidas como cavaleiros
descem do céu. Essa cena, como outras da peça, reproduz uma visão que se aproxima
de um quadro. O próprio autor confessa ter criado as figuras dos Anjos a partir de
uma gravura de um pintor francês:
Quando eu tinha uns vinte anos, eu vi um desenho ou água-forte, feito
por um artista francês, de um anjo de pé contra um céu à meia-noite. O
anjo era velho, sem asas e armado como um cavaleiro, tão
impossivelmente alto quanto uma daquelas figuras da Catedral de
120
Chartres, e seu rosto estava marcado pelo tempo e pelas inumeráveis
batalhas107.
O inesperado acontece e o anjo descreve a entrada de Cathleen no paraíso.
4. A homologia entre as peças de Gil Vicente e William Butler Yeats
Nas duas peças, algumas situações se repetem, como as tentações do Demônio,
as preces, o conflito das almas inseguras, no que diz respeito ao caminho que devem
seguir, mas há muitas diferenças também. Enquanto em Gil Vicente as alegorias são
simples e as imagens acessíveis e universais, em Yeats, a metáfora é muito mais
elaborada A referência à Irlanda e ao seu contexto fazem que a obra, além do caráter
universal, por ela se prender a motivos clássicos, acentue a cor local, a defesa dos
valores nacionais (o que não acontece no autor português). Nos dois autos, aparecem
as questões terrenas, como as dificuldades e sofrimentos que se nos apresentam, pois
a vida está repleta de provações e as tentações são várias. No Auto da Alma, a
tentação se traduz em bens materiais, que, em nosso ponto de vista, podem parecer
insignificantes, como um vestido de seda ou um par de sapatos. No entanto, levandose em conta o contexto histórico, chegaremos à conclusão de que o mundo ainda no
início do Mercantilismo, não tinha notícia de mercadorias de outros lugares, pois o
mundo medieval era muito pequeno e as relações internacionais quase inexistentes.
Em The Countess Cathleen, o dinheiro é a maior arma de corrupção. Já vivendo num
mundo capitalista, Yeats condena a incessante busca por bens de consumo, hábito,
aliás, introduzido desde a Revolução Industrial que teve início na Inglaterra.
As personagens de ambas as obras são divididas em grupos, aquelas que zelam
pela alma ou pelo humano, aquelas que procuram atrapalhar o processo de elevação
por que a alma estaria passando, no meio delas pessoas que tentam descobrir
respostas para suas dúvidas e alívio para seus sofrimentos. Observe-se que há uma
similaridade evidente entre a figura do Diabo vicentino com a do mercador de Yeats.
Não é à toa, inclusive, que a figura demoníaca seja representada por um comerciante,
o que atesta a sua ligação com os valores materiais. Também há uma similaridade
107
MILLER, Liam. The Noble Drama of W. B. Yeats, Dublin: The Dolmen Press, 1977, p. 46.
121
entre o mercantilismo renascentista, criticado por Gil Vicente, e o mercantilismo
inglês, pós-industrial, criticado por Yeats. Segundo Fernanda Mendonça Sepa: “em
The Countess Cathleen (1892), os demônios que se tornam mercadores representam,
em nossa opinião, o imperialismo e o materialismo inglês.”108
Apesar de viverem em épocas e países tão diferentes, Gil Vicente e Yeats
tentam criar um teatro genuíno, o primeiro não tão conscientemente como o segundo.
Ambos passam por um período de transição, Gil Vicente encontra-se no período
transitório entre a Idade Média, que durou dez séculos, e a Renascença que traz
consigo muitas inovações estéticas, científicas e sociais; Yeats vê um longo passado
de submissão da Irlanda em relação à Inglaterra, ainda mais grave durante a era
vitoriana, e deposita no novo século a esperança de uma Irlanda livre e autônoma,
principalmente em relação à arte. Em seu auto, Gil Vicente deixa muito clara sua
costela pedagógica e dá uma perfeita lição de respeito aos valores religiosos. Para ele,
o mais importante é praticar boas ações, pois somente elas restarão no momento de
acerto de contas. Para Yeats, existe um propósito ou até uma missão para quem faz
literatura. Em seu ensaio intitulado “An Irish National Theatre”, encontramos o
seguinte comentário a respeito desse tópico:
Literatura é, na minha mente, o grande poder educativo do mundo, o
supremo criador de todos os valores, e ela é isso, não somente nos livros
sagrados cujos poder todos conhecem, mas por meio de cada movimento
da imaginação em uma canção, ou enredo ou no drama que dá a
dimensão da intensidade e sinceridade que faz dela literatura afinal. A
literatura deve se responsabilizar por seu poder, e manter sua
liberdade.109 .
Os dois dramaturgos estão presos à tradição popular: Gil Vicente liga-se ao
teatro popular medieval, inclusive na concepção que tem da vida social hierarquizada;
Yeats, por sua vez, liga-se às lendas e à Mitologia irlandesas na procura ou afirmação
de suas raízes. Devemos lembrar também que, enquanto o teatro vicentino apontava
para o universal, o do escritor irlandês fincava os pés no solo de sua pátria. As
personagens do teatro de Gil Vicente são tipos bem marcados, e a força de seu teatro
está nos diálogos bem construídos, uma vez que em suas encenações não se valia de
108
109
Op. cit., p. 26.
HARRINGTON, John. Modern Drama, New York: Norton, 1991, p. 390.
122
cenários ou quaisquer outros recursos cênicos, suas peças são constituídas de uma
série de quadros, similarmente às pinturas medievais e às novelas de cavalaria. As
personagens de Yeats são simbólicas, a palavra é poética criando assim, em certos
momentos, imagens penumbrosas e oníricas. O dramaturgo português faz um teatro
de reflexão, porém Yeats, ao negar o intelecto, privilegia o místico e o sobrenatural,
mesmo em se tratando de sua idéias políticas, entranhadas no texto. Desse modo, é
importante afirmar que essas idéias são refinadas e amortecidas pelo seu lirismo. Gil
Vicente, indo na direção contrária, faz um texto repleto de vocábulos populares,
muito coloquiais, facilitando ao máximo nos exemplos e tornando as idéias bem
acessíveis.
No que diz respeito ao modo como cada um representa a sociedade, devemos
observar que ambos são muitos críticos em relação aos costumes e à estrutura social.
Gil Vicente, por exemplo, critica a luxúria na figura do Frade, mas não a Igreja como
instituição, ou o onzeneiro, pela sua ganância. Entretanto, não perde de vista a
sociedade que cria esses monstros, o sistema social que corrompe e dá privilégios a
poucos. Naturalmente, Yeats tem uma visão bem mais profunda dos problemas de seu
país. Sua própria experiência política levou-o a uma postura mais crítica da situação
de povo dominado, subjugado nos rumos da História. A diferença está no fato de que
a solução proposta pelo poeta e dramaturgo está na Arte, na sensibilização do homem,
pelo transcendental. A revolução deve começar pelo interior e não nas questões
externas, como pensavam seus companheiros anarquistas.
Bibliografia
BOWRA, C. M. The Heritage of Symbolism, London: Macmillan, 1962.
HARRINGTON, John. Modern Drama, New York: Norton, 1991.
HARTNOLL, Phyllis. The Theatre: a concise history, 3a ed., London: Thames and
Hudson, 1998.
MARTINS, Mário. “Teatro Sagrado na nossa Idade Média” in Brotéria, vol. L (II),
Lisboa, fev. de 1950.
MILLER, Liam. The Noble Drama of W. B. Yeats, Dublin: The Dolmen Press, 1977.
MOISÉS,Massaud. A Literatura Portuguesa, 27a ed., São Paulo: Cultrix, 1992.
123
REBELLO, Luiz Francisco. História do Teatro Português, Lisboa: Instituto de Cultura
Portuguesa/Secretaria de Estado da Investigação Científica, 1968.
SEPA, Fernanda Mendonça, O teatro de William Butler Yeats: teoria e prática, São
Paulo: Ollavobrás/Abey, 1999.
STEVENS, Kera. O teatro inglês da Idade Média até Shakespeare, org. da antologia
Kera Stevens e Munira H. Mutran, São Paulo: Global, 1988.
VICENTE, Gil . Obras Primas do Teatro Vicentino, int., org. e com. de Segismundo
Spina, São Paulo: Difusão Européia do Livro/ Edusp, 1970.
YEATS, William Butler. The Collected Plays, Dublin: Gill and Macmillan, s/d.
124
NORMAS EDITORIAIS
1. A Revista Acadêmica publica trabalhos originais de professores das Faculdades São
Sebastião e de outras instituições nacionais ou internacionais, na forma de artigos,
revisões, comunicações, notas prévias, resenhas e traduções e que tenham relevância
acadêmica.
2. Os trabalhos podem ser redigidos em português, espanhol, inglês, italiano ou francês.
3. Só serão aceitas resenhas de livros publicados no Brasil nos últimos três anos e, no
exterior, nos cinco últimos anos.
4. Os originais submetidos à apreciação da Comissão Editorial deverão ser acompanhados de documento de transferência de direitos autorais.
5. Os artigos terão a extensão máxima de 30 páginas, digitadas em fonte Times New
Roman 12, espaço 1,5 e margens de 2,5 em.
6. As notas devem ser obrigatoriamente de rodapé, remetidas, portanto, ao pé da
página.
7. As imagens, quando houver, devem ser remetidas junto com os artigos, com extensão
jpg.
8. Os artigos devem ser acompanhados de resumo de 10 linhas, no máximo, e de
palavras-chave, em português, no início, logo após o título.
9. As resenhas não devem exceder a sete páginas.
10. O título do trabalho deve vir centralizado, fonte Times, corpo 12, em negrito, caixa
baixa (usar maiúscula só com a primeira palavra ou com nomes próprios ou
patronímicos).
11. O nome do autor deve vir à direita, logo abaixo do título, com um asterisco
remetendo para o pé da página a titulação e a instituição à qual se vincula.
12. Caso o artigo seja resultante de uma pesquisa contemplada com auxílio financeiro, a
instituição responsável pelo auxílio deve ser mencionada.
13. Os trabalhos devem ser enviados por e-mail para o seguinte endereço:
[email protected] , em formatoWord for Windows 97.
14. Todos os textos serão submetidos a dois pareceristas. No caso de divergências na
avaliação, a Comissão Editorial enviará o trabalho a um terceiro consultor.
15. Cabe à Comissão Editorial a decisão referente à oportunidade da publicação das
contribuições recebidas.
125
16. Normatização das notas:
SOBRENOME, Nome. Título do livro em itálico: subtítulo. Tradução, edição, Cidade:
Editora, ano, p. ou pp.
SOBRENOME, Nome. Título do capítulo ou parte do livro em redondo. In: Título do
livro em itálico. Tradução, edição, Cidade: Editora, ano, p. x-y.
SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade:
Editora, vol., fascículo, p. x-y, ano.
17. As notas explicativas devem ser reduzidas ao mínimo e remetidas ao rodapé por
números, situados na entrelinha superior.
19. “Anexos” ou “Apêndices” só serão incluídos se forem considerados absolutamente
imprescindíveis à compreensão do texto.
20. As figuras e suas legendas devem ser claramente legíveis após sua redução no texto
impresso de 10 x 17 cm. As legendas das ilustrações nos locais em que aparecerão as
figuras devem ser numeradas consecutivamente, em algarismos arábicos, e iniciadas
pelo termo “Figura”.
21. Os dados e conceitos emitidos nos trabalhos são de inteira responsabilidade dos
autores.
22. Os trabalhos que não se enquadrarem nas normas da revista serão devolvidos aos
autores, ou serão solicitadas adaptações, indicadas em carta pessoal.
Profª. Drª. Eliane de Alcântara Teixeira
Diretora Responsável