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UMA CARACTERIZAÇÃO DOS ÂMBITOS INDIVIDUAL E SOCIAL EM TEORIA DAS ORGANIZAÇÕES POR MEIO DA TEORIA DA COMPLEXIDADE Ruben José Bauer Naveira TESE SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DA COORDENAÇÃO DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO DE ENGENHARIA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COMO PARTE DOS REQUISITOS NECESSÁRIOS PARA A OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR EM CIÊNCIAS EM ENGENHARIA DE PRODUÇÃO. Aprovada por: ________________________________________________ Prof. Rogério de Aragão Bastos do Valle, D.Sc. ________________________________________________ Prof. Cláudio Fernando Mahler, D.Sc. ________________________________________________ Prof. Ivan da Costa Marques, D.Sc. ________________________________________________ Prof. Henrique Rozenfeld, D.Sc. ________________________________________________ Profa. Nilda Teves Ferreira, D.Sc. ________________________________________________ Prof. Fernando Guilherme Tenório, D.Sc. RIO DE JANEIRO, RJ – BRASIL SETEMBRO DE 2005 i NAVEIRA, RUBEN JOSÉ BAUER Uma Caracterização dos Âmbitos Individual e Social em Teoria das Organizações por meio da Teoria da Complexidade [Rio de Janeiro] 2005 VI, 270 p. 29,7 cm (COPPE/UFRJ, D.Sc., Engenharia de Produção, 2005) Tese - Universidade Federal do Rio de Janeiro, COPPE 1. Teoria das organizações 2. Teoria da complexidade 3. Fenomenologia organizacional 4. Fenomenologia 5. Funcionalismo 6. Redundância 7. Variedade 8. Cognição 9. Gestão do conhecimento I. COPPE/UFRJ II. Título (série) ii Agradecemos o generoso apoio prestado pela PETROBRAS e pela Fundação CAPES, sem o que esse trabalho não teria sido possível. iii Resumo da Tese apresentada à COPPE/UFRJ como parte dos requisitos necessários para a obtenção do grau de Doutor em Ciências (D.Sc.) UMA CARACTERIZAÇÃO DOS ÂMBITOS INDIVIDUAL E SOCIAL EM TEORIA DAS ORGANIZAÇÕES POR MEIO DA TEORIA DA COMPLEXIDADE Ruben José Bauer Naveira Setembro/2005 Orientador: Rogério de Aragão Bastos do Valle Programa: Engenharia de Produção São destacadas crescentes insuficiências do corpus teórico historicamente predominante em Teoria das Organizações – a Administração como racionalização – para a lida com as também crescentes complexidades em que se encontram imersas as organizações. Para uma superação dessas limitações, são então delineadas as diretrizes gerais para uma nova teoria das organizações, inspirada na vertente, em Teoria da Complexidade, em que a grandeza “complexidade” de um sistema é referida ao entendimento que se detém desse sistema. Como fundamento para esta nova teoria, é formulada uma dinâmica gerativa para a fenomenologia organizacional, que consiste dos processos de mútua produção entre as condicionantes de variedade e de redundância presentes em toda organização. Um estudo de caso é desenvolvido, como modo de demonstrar a validade e a adequação do emprego desta dinâmica gerativa ao estudo, à compreensão e à descrição dos fenômenos organizacionais. iv Abstract of Thesis presented to COPPE/UFRJ as a partial fulfillment of the requirements for the degree of Doctor of Science (D.Sc.) CHARACTERIZATION OF SOCIAL AND INDIVIDUAL SCOPES IN ORGANIZATION THEORY BY MEANS OF COMPLEXITY THEORY Ruben José Bauer Naveira September/2005 Advisor: Rogério de Aragão Bastos do Valle Department: Production Engineering This dissertation points to reasons why the corpus of theory historically predominant in Organization Theory – Management as rationalization – has become increasingly inadequate to address the also increasing complexities in which organizations are immersed. As a means to overcoming these limitations, it sketches general guidelines for a new organization theory inspired in the body of thinking within Complexity Theory that refers the magnitude “complexity” of any system to the understanding that may be attained of that system. As a foundation for such a theory, it formulates a generative dynamic for organizational phenomenology, which consists in the processes of mutual production between the conditioning factors “variety” and “redundancy” that are present in every organization. It reports on a case study, carried out as a means to demonstrate that this generative dynamic is valid and appropriate for studying, understanding and describing organizational phenomena. v Índice Introdução........................................................................................................................1 1. Racionalização: O Funcionalismo em Teoria das Organizações...........................10 Teorias da conciliação, 12. A vez do Japão, 17. A explicitação dos contratos, 19. Limites da racionalização, 24. 2. A trajetória em busca da complexidade..................................................................27 A mecanização da mente, 30. O estatuto do modelo científico, 38. Entropia e complexidade, 44. A autonomia dos sistemas, 50. Ordem a partir do ruído, 55. O computador por ferramenta, 60. Complexidade aos olhos do observador, 73. 3. A teoria da autopoiesis de Maturana e Varela........................................................77 Distinguindo Biologia de Física, 79. Cognição, um fenômeno biológico, 88. A fenomenologia autopoiética dos seres vivos, 94. Autonomia coletiva – organismos e sociedades, 99. Varela versus Maturana, 105. Cognição, um fenômeno individualizado, 111. Comunicação e linguagem, 115. O peso da tradição, 122. O observador em sua experiência, 133. 4. A teoria da complexidade a partir do ruído de Atlan..........................................142 Uma teoria da informação, 143. Confiabilidade e aprendizagem, 147. Autoorganização multinivelar, 151. 5. Redundância e variedade como conceitos-chave a uma Teoria das Organizações................................................................................................................159 Definições formais, 160. A vertente metafórica, 173. Outros autores, 176. 6. Um estudo de caso....................................................................................................193 Redundância e variedade, 196. A qualidade das interações humanas, 209. Auto-organização, 213. Autonomia, poder e controle, 218. Conclusões, 227. 7. Por uma nova Teoria das Organizações................................................................230 Teoria da cooperação, 231. Teoria do conhecimento, 234. Teoria da natureza dos conhecimentos, 244. Teoria da (inter)ação, 247. Teoria do Brasil, 250. Teoria e prática, 255. Sumário e conclusões finais........................................................................................258 Referências bibliográficas...........................................................................................262 vi Introdução O problema central desta tese é a articulação indivíduo-organização, ou os limites e as possibilidades para a conjugação entre dois sentidos, ou significações, por natureza distintos: o sentido, para um indivíduo, de pertencer a uma organização (prover significação à sua existência, o que comporta, porém transcende, o aspecto pecuniário) e o sentido para que essa organização conte em seus quadros com esse indivíduo (relativo à contribuição deste à consecução dos objetivos organizacionais). Este é um tema antigo. Já no século XIX Marx1 o definiu como antagonismo capitaltrabalho, e situou sua resolução na disputa pela propriedade dos meios de produção; como é sabido, as experiências havidas de apropriação e coletivização dos meios de produção não lograram produzir alternativas qualitativamente diferentes para as insuficiências da conjugação indivíduo-organização2 (ainda que seja possível, em tese, que se venham a descortinar novos caminhos para implantação das idéias originais de Marx, e ainda que muito do valor diagnóstico dessas idéias possa ser considerado atual 3). O âmbito capitalista, como veremos, tampouco mostrou-se bem-sucedido. Compreender a articulação indivíduo-organização requer alguma inteligibilidade a respeito de como dois âmbitos de natureza distinta (o individual e o social) se determinam mutuamente. Propomos tomar como base para esta reflexão os referenciais 1 Karl Heinrich Marx; Alemanha (n. Prússia); 1818-1883; referência histórica: Das Kapital. Kritik der politischen Ökonomie. Hamburg (Alemanha): Otto Meißner, vol. 1 (Der Produktionsprozeß des Kapitals), 1867, vol. 2 (Der Zirkulationsprozeß des Kapitals, editado por Friedrich Engels), 1885, vol. 3 (Der Gesamtprozeß der kapitalistischen Produktion, editado por Engels), 1894. 2 “O extraordinário desenvolvimento da tecnologia científica, da produtividade do trabalho e, em certo grau, dos níveis ordinários de consumo da classe trabalhadora durante este século [XX] tiveram ... um profundo efeito sobre os movimentos trabalhistas em geral. ... os marxistas foram compelidos a adaptar-se a ele [este contexto] em graus variáveis. Essa adaptação assumiu formas diversas, muitas das quais podem ser encaradas agora como ideologicamente destrutivas. ... a crítica do modo de produção cedia lugar à crítica do capitalismo como modo de distribuição. Os marxistas ... adaptaram-se à maneira de ver a fábrica moderna como uma inevitável mas aperfeiçoável forma de organização do trabalho. ... a industrialização soviética imitava o modelo capitalista; e à medida que a industrialização avançava ... a União Soviética acomodava-se a uma organização do trabalho diferente apenas em pormenores em relação aos países capitalistas. Assim, os trabalhadores soviéticos carregam todos os estigmas das classes trabalhadoras ocidentais. ... a crítica do modo capitalista de produção, que era a mais contundente arma do marxismo, gradualmente perdeu o seu gume ... o marxismo tornou-se mais frágil, precisamente no ponto em que era originariamente mais forte” (BRAVERMAN, 1987 (1974): 21-23). 3 Cf., por exemplo, os chamados “Manuscritos Econômicos e Filosóficos” de 1844; ref. hist.: “ÖkonomischPhilosophische Manuskripte”. In: Karl Marx/Friedrich Engels: Historisch-kritische Gesamtausgabe. Werke/Schriften/Briefe (coleção MEGA, editada por David B. Riazanov). Berlin: Max-Engels-Verlag, Erste Abteilung, Band 3, 1932. Versão em inglês por Thomas B. Bottomore em: Early Writings. London: C. A. Watts and Co., 1963. 1 de que dispomos quanto a determinações causais, que são os da ciência natural (faremos uso, mais especificamente, dos da Biologia) – o que, reconhecemos, torna nossa análise algo positivista4 (não de todo, porém: tais referenciais não são aqui tomados como leis a que se deva submeter, mas tão somente como guias para reflexão). Na tradição da ciência natural, a determinação causal recebeu a forma de mecanicismo, a explicação dos fenômenos por meio das leis naturais da Física (mais especificamente as da mecânica newtoniana). Ao mecanicismo acabou associado o reducionismo, originalmente a noção de que fenômenos tidos como complexos possam ser explicados por (ou seja, reduzidos a) causas mais simples ou fundamentais.5 A partir do sucesso da mecânica newtoniana em explicar o movimento, tais causas fundamentais foram atribuídas às causas físicas associadas às leis naturais que regem os movimentos e as colisões da matéria, e já em meados do século XVII a Ciência adotou uma perspectiva de Universo em que tudo seria composto por substâncias elementares de matéria que se comportam por modos regulares, em conformidade com leis universais.6 Assim, reducionismo tornou-se redução ao mecanicismo. Tal visão mecanicista do Universo veio suceder uma visão teleológica (do grego telos: fim, resultado + logos: palavra, discurso; um estudo a respeito das finalidades) originada na Grécia clássica e predominante ao longo da Idade Média, por que os fenômenos eram compreendidos como orientados a alguma finalidade, ou seja, dotados de sentido, o que era compatível com a fé em Deus. Doravante, nos referiremos a essa perspectiva como substancialismo. Ora, a articulação indivíduo-organização não tem como ser compreendida nem unicamente em termos reducionistas (pois isso pressuporia ser a sociedade governada por completo pelas ações dos indivíduos em seu livre arbítrio; nossa experiência nos diz 4 O Positivismo é uma corrente filosófica surgida no século XIX a partir da crença de que a civilização ruma sempre numa direção “positiva”, orientada pelo progresso científico e tecnológico; seu ideal é a unidade entre as ciências naturais e as sociais, por meio da aplicação dos (já testados e comprovados) métodos daquelas a estas. 5 Denominado reducionismo metodológico, cujo referencial maior é a chamada “lâmina de Ockham” (ou princípio da parcimônia), pelo qual não se deve fazer com mais aquilo que se possa fazer com menos: trata-se de um preceito que valoriza a simplicidade na construção das teorias. 6 Denominado, este, reducionismo ontológico, ou analítico. Há ainda (de que não trataremos) os reducionismos teórico (as teorias mais antigas não são superadas, mas complementadas e aperfeiçoadas pelas que surgem), científico (a totalidade dos fenômenos pode ser reduzido a explicações científicas) e lingüístico (tudo pode ser descrito por meio de combinações na linguagem, a partir de um número finito de conceitos fundamentais). 2 que as coisas não se passam bem assim) nem unicamente em termos substancialistas (o que pressuporia o contrário, uma sociedade cuja evolução é dotada de sentido, ao qual encontrar-se-iam subordinadas as ações dos indivíduos; nossa experiência também nos diz que não é bem assim que as coisas se passam). Sabemos, por experiência, que nossas ações têm algum poder (ainda que possamos considerá-lo restrito) de determinar os rumos da sociedade, ao passo que a realidade social, tal como se encontra disposta, também conta com algum poder (ainda que possamos considerá-lo significativo) de determinar nossas ações. Dessa forma a Sociologia, bem como a Teoria das Organizações, impõe a busca por algum meio-termo epistemológico. Iremos, nesta tese, procurar por um tal meio-termo na assim chamada Teoria da Complexidade.7 A tarefa de descrever um sistema complexo são na verdade duas: a tarefa de descrever sua estrutura (por exemplo, o seqüenciamento do genoma humano) e a tarefa de descrever a gama de comportamentos de que essa estrutura é capaz. Uma destas dimensões não necessariamente implica a outra: por exemplo, a Teoria do Caos versa, em grande medida, a respeito de sistemas estruturalmente simples cujo comportamento é, precisamente, denominado caótico.8 A Teoria da Complexidade na verdade são várias. Grosso modo, é possível classificar essas teorias de acordo com o viés por que elas enfocam estas duas dimensões de complexidade, estrutural e comportamental. 7 No âmbito da Teoria das Organizações é muito utilizada a expressão Ciência da Complexidade, como forma de contornar os preconceitos nos ambientes empresariais em relação à palavra “teoria” (da mesma forma que Ciência das Organizações costuma ser empregada no lugar de Teoria das Organizações). 8 A Teoria do Caos versa sobre uma classe específica de fenômenos que são completamente descritos por equações deterministas e não-lineares mas que, se sujeitos a ínfimas variações quanto às condições iniciais (ou seja, sob condições reais), apresentam comportamentos imprevisíveis, ainda que circunscritos a limites. Por exemplo, ao se colocar duas rolhas de cortiça juntas em um fluxo d’água que escoa a baixa velocidade sobre um leito regular (fenômeno linear), a distância entre as rolhas aumenta proporcionalmente ao tempo, quantas vezes for repetido o experimento. Se se aumenta a velocidade do fluxo d’água até que o escoamento adquira um comportamento turbulento (fenômeno não-linear, caracterizado pelo surgimento de redemoinhos), ao se colocar as duas rolhas elas se afastam uma da outra segundo dinâmicas próprias a cada vez que o experimento é repetido. Sob condições nãolineares, diferenças infinitesimais no posicionamento inicial das rolhas geram, com o tempo, efeitos desproporcionais; é este o sentido da metáfora “o bater das asas de uma borboleta no Brasil pode desencadear um tornado no Texas”. O comportamento do sistema não é, todavia, errático (as rolhas não saem voando, nem retornam contra a correnteza): existe um atrator para o fenômeno (atrator estranho, ou fractal). O uso do termo “caos”, inspirado na cosmogênese da mitologia grega (em que da desordem do Khaos advém a ordem harmoniosa do Kosmos), uma metáfora que expressa que da aparente aleatoriedade advém a elegância estética da matemática fractal, pode induzir ao equívoco de que se trata de fenômenos complexos no sentido amplo do tempo (complexidade tanto comportamental como estrutural), o que não é o caso. 3 A perspectiva reducionista clássica em Ciência (que persegue a completa descrição dos fenômenos por meio das leis fundamentais da Natureza que se supõe governá-los) também se faz presente na Teoria da Complexidade, na sua vertente a que aqui chamaremos “computacional” (e é a esta vertente que a expressão “teoria da complexidade” mais comumente se refere). As pesquisas nesta área buscam chegar a uma linguagem, expressa em algoritmos recursivos (ou seja, em linguagem computacional), que permita a descrição, a um tempo, de fenômenos complexos (dimensão comportamental) e dos sistemas que os geram (dimensão estrutural).9 O objetivo último é uma resolução da complexidade, e devido a isso suas modelagens (na verdade, simulações) têm despertado enorme interesse nos meios organizacionais. De nossa parte, não consideramos a complexidade algo passível de resolução. É mais realista (e mais profícuo) propor-se a dialogar com a complexidade, e auferir proveito desse aprendizado. Nos referenciaremos aqui em duas abordagens não-reducionistas, ou seja, que tratam por modos distintos as dimensões comportamental e estrutural da complexidade. A articulação indivíduo-organização demanda ambas: compreender os processos de evolução das organizações requer a primeira; compreender as dinâmicas do seu funcionamento (de maneira a estar apto a atuar por modos adequados) requer esta última. A primeira teoria não-reducionista em que nos apoiaremos é a da autopoiesis de Maturana10 e Varela,11 que dissocia de forma bastante explícita estas duas dimensões. Para o operar dos sistemas, estes autores adotam uma abordagem assumidamente mecanicista. Já para a compreensão do seu comportamento é adotada uma abordagem de caráter fenomenológico. Soa estranho? À primeira vista, sem dúvida, mas trata-se de um casamento entre mecanicismo e Fenomenologia que acaba por se mostrar bastante consistente. O que eles negam com veemência é o reducionismo – seria não apenas impossível, mas cientificamente equivocado, reduzir-se comportamento à estrutura. Não 9 Possivelmente, a mais ambiciosa empreitada nessa direção é a de Wolfram (Stephen Wolfram; EUA (n. Inglaterra); 1959–); ver A New Kind of Science. Champaign (Illinois): Wolfram Media, 2002. 10 11 Humberto Maturana Romesín (Chile; 1928–). Francisco Javier Varela García (França; n. Chile; 1946-2001). 4 há “ciência única”, há aqui duas ciências, Biologia (comportamento) e Física (estrutura), que atuam em arenas distintas, e irredutíveis uma à outra. Mecanicismo dissociado de reducionismo? Ora, o único mecanicismo empiricamente comprovável é aquele a que se consegue chegar – ou seja, reduzir. Um mecanicismo ao qual não se possa ter acesso é um mecanicismo presumido, que toma assento na teoria porque faz sentido – porque torna a teoria consistente. Com efeito, boa parte do trabalho de Maturana e Varela é devotado a demonstrar como a totalidade dos fenômenos biológicos (origem da vida, reprodução, adaptação ao meio, evolução, hereditariedade e, aquele que nos interessa mais de perto, a cognição) pode ser explicada (ainda que não possa ser comprovada empiricamente) por meio do “mecanismo autopoiético” por eles proposto; ao mesmo tempo, eles apontam as insuficiências da teoria concorrente (a biologia molecular, esta sim de índole reducionista, centrada no papel supostamente causal exercido pelo DNA) para a explicação de todos esses fenômenos. Não é outra a situação da Teoria das Organizações (bem como a da Sociologia). Se por um lado nos é possível presumir que a sociedade seja o resultado do conjunto das ações dos indivíduos em suas interações (o que corresponderia a um mecanicismo), é todavia impraticável qualquer reducionismo do fenômeno social a um tal mecanicismo (o conjunto das ações humanas), que assim permaneceria apenas presumido. Há portanto alguma conveniência em se distinguir a dimensão dos fenômenos comportamentais da sociedade (referidos ao âmbito social) da dimensão de seus fenômenos estruturais (referidos ao âmbito individual). Construir uma explicação que permita articular estas duas dimensões por um modo consistente (e, principalmente, inteligível) foi precisamente o trabalho desenvolvido por Maturana e Varela no campo da Biologia, e é o que nos propomos fazer nesta tese, no campo da Teoria das Organizações. Ora, não existe procedimento empírico factível que permita desvendar a dinâmica de encadeamentos causais envolvida – seja o caso de um tal mecanicismo ou de alguma dinâmica de co-determinação entre os âmbitos individual e social (o que também consideraremos); nisto consiste uma das distinções de natureza entre ciência natural e social. Assim, o objetivo a ser alcançado passa a ser consistência ao invés de fidedignidade (noção que, em Ciência, tem sua origem na busca por precisão para os instrumentos de medida), e é nesse sentido que Maturana e Varela tencionam, 5 precisamente por meio da demonstração de que todos os fenômenos biológicos são explicáveis pela teoria da autopoiesis, demonstrar também a consistência desta teoria. De nossa parte, alinhamo-nos com a posição de Popper12 quanto a que, em ciência social ainda mais que em ciência natural, toda validade que se possa postular para uma pesquisa advém da amplitude de sua exposição à crítica por parte da comunidade científica. Tal procedimento não permite uma comprovação definitiva da teoria (objetivo que Popper considera inatingível), mas permite que esta venha a ser refutada por argumentos melhores. A segunda teoria a que faremos recurso é a da complexidade a partir do ruído de Atlan,13 uma teoria a respeito do entendimento possível quanto à realidade, pelo que esta se encontraria disposta em níveis hierárquicos sucessivamente superpostos. A cada nível, seria possível medir-se a complexidade (estrutural) em termos da quantidade de informação envolvida; já a complexidade comportamental em um dado nível seria necessariamente relativa a algum outro nível (para o qual um tal comportamento apresenta sentido), e corresponderia ao significado, daquela informação, de acordo com a interpretação (a codificação da informação) própria a este outro nível. Ora, atribuir significados distintos aos códigos que, a cada nível, dotam de sentido os agregados quantitativos de informação equivale, no nosso entender (ressalve-se não ser esta a posição de Atlan),14 a postular uma descrição fenomenológica para as dimensões estrutural e comportamental da complexidade (ou: o que é complexidade estrutural em um dado nível é complexidade comportamental em outro). 12 Karl Raimund Popper (Inglaterra; n. Áustria (Áustria-Hungria); 1902-1994); ver “Die Logik der Sozialwissenschaften”. In: ADORNO, Theodor W. et alii (eds.). Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie. Neuwied (Alemanha): Hermann Luchterhand Verlag, pp. 103-123, 1969. 13 Henri Atlan (França; n. Argélia; 1931–). 14 Em termos do ramo da Filosofia a que se denomina Teoria do Conhecimento, Atlan pode ser considerado um caso especial, pois suas proposições escapam tanto à corrente representacionista predominante (o conhecimento como uma representação do real, formatada pela razão; devido à subjetividade, haveria representações mais ou menos fiéis à realidade) quanto a seu contraposto, a fenomenologia (o conhecimento como atribuição de significado ao real pela razão – somente se pode chegar a uma “realidade” individualizada, correspondente aos significados gerados por cada um). Ambas pressupõem a razão como entidade pré-dada, enquanto Atlan a vê como fenômeno emergente compreensível em bases biológicas; para lastro de sua própria teoria da consciência e da intencionalidade (ver ATLAN, 1998) Atlan se referencia em Spinoza (Benedictus (Baruch) de Spinoza; Holanda; 1632-1677). O que nos importa aqui é que Atlan também tem por individualizado o processo de atribuição de significados, e é somente nesse sentido que, para os propósitos práticos a que aqui nos propomos, a sua epistemologia pode ser vista como compatível com a Fenomenologia. 6 Não é por outra razão que escolhemos a teoria de Atlan como pilar fundamental para a Teoria das Organizações que aqui propomos (e a partir de que conceberemos uma dinâmica gerativa do fenômeno organizacional). Não que a teoria da autopoiesis não sirva também a esse propósito, tanto que diversos autores (como Luhmann)15 a transpuseram ao domínio sociológico. Em verdade, ela provê um entendimento muito profundo (magistral, se o leitor nos permite) para a dimensão comportamental das organizações; apenas, devido ao mecanicismo por que a dimensão estrutural é compreendida não admitir redução (e ser portanto, em termos práticos, inatingível), seu valor para as esferas da Administração (uma ciência aplicada por excelência) é discutível (o que não é de forma alguma o caso da Sociologia, para que a autopoiesis é deveras preciosa). Podemos agora resumir (Quadro 1) nossa breve “tipologia” (entre aspas devido a este não ser um levantamento exaustivo, para o que seria necessário a investigação de muitos outros autores e correntes): Teoria relação entre complexidades estrutural e comportamental vertente “computacional” reducionista Maturana e Varela não-reducionista Atlan não-reducionista dimensão estrutural dimensão comportamental variados enfoques funcionalistas enfoque mecanicista enfoque fenomenológico enfoque fenomenológico enfoque fenomenológico Quadro 1: tipologia para as correntes em Teoria da Complexidade consideradas neste trabalho. O que diferencia um enfoque fenomenológico de um funcionalista é a natureza interpretativista do primeiro, em contraste com o caráter de “verdade última” de que este é portador; tratam-se, pois, de visões de mundo distintas. O Funcionalismo tem esse nome devido à conformação social, tal como se apresenta, ser compreendida como o resultado fatal da evolução histórica, com o que cabe meramente tratar todo e cada elemento constitutivo da sociedade como portador de sua função própria, sua contribuição específica à funcionalidade geral do todo social. Por conseguinte, uma 15 Cf. LUHMANN, 1995 (1984); Niklas Luhmann (Alemanha; 1927-1998). 7 ciência social de viés funcionalista encontra-se voltada à busca por eficiência e otimização. Já por Fenomenologia (em que fenômeno é a realidade tal como percebida pela experiência subjetiva) designa-se um modo em ciência social por que se admite toda uma múltipla gama de possibilidades para a conformação da sociedade, com o que ganham relevo a faculdade da percepção (individualizada) e a atividade de interpretação. De volta então à articulação indivíduo-organização: frente a uma realidade a cada dia mais complexa (complexidades de mercado, econômicas, sociais, políticas, tecnológicas, ecológicas e outras), uma mera busca por otimização e por maior eficiência para as funcionalidades da organização, tais como existentes, é evidentemente insuficiente. Desculpando-nos pela obviedade: problemas novos, no instante em que surgem, passam a demandar soluções... que ainda não existem. Como descobri-las? A sabedoria popular sempre soube indicar o caminho: “cada cabeça, sua sentença” (cada indivíduo interpreta a realidade de forma individualizada); e “muitas cabeças pensam melhor que uma” (a sinergia das diversas interpretações faz aflorar a melhor solução). Percepção. Interpretação. Fenomenologia. Reservamos neste trabalho, à teoria da autopoiesis de Maturana e Varela, um papel específico (e em nada menos relevante que aquele de que dotamos a teoria de Atlan): o provimento de bases biológicas para a Fenomenologia (mais precisamente, quanto à cognição humana), para que esta cesse de ser desacreditada devido a seu caráter meramente especulativo (inerente à Filosofia). A autopoiesis será o objeto do capítulo 3, com a teoria de Atlan logo em seqüência (cap. 4). Antes (cap. 2), investigaremos as bases comuns de que brotam ambas estas teorias (bem como aquela a que chamamos vertente “computacional” em Teoria da Complexidade). Em seguida (cap. 5), sintetizaremos aquele que é o eixo de nossa proposição de tese, a dinâmica gerativa do fenômeno organizacional, que nos propomos a demonstrar (cap. 6) por meio de um estudo de caso. Discorreremos, por fim (cap. 7), 8 sobre a necessidade da consecução de uma nova Teoria das Organizações, e sobre as bases a partir de que esta deva se assentar. Iniciaremos agora (cap. 1) pelo exame do processo de esgotamento do corpus teórico de caráter funcionalista historicamente predominante em Teoria das Organizações – a racionalização. 9 1. Racionalização: O Funcionalismo em Teoria das Organizações Os conhecimentos componentes do campo genericamente denominado Administração provêm tanto da experiência prática quanto da proposição teórica. Exemplos pelo lado prático: a linha de montagem que se tornou padrão para a indústria de produção de bens de consumo surgiu pela sagacidade de Ford 16 como disposição prática, não como proposição teórica; meio século depois, foi a realidade da penetração nos mercados ocidentais dos produtos japoneses que chamou atenção para as formas de gestão praticadas naquele país. Exemplos pelo lado teórico: a repercussão de textos como o The Principles of Scientific Management 17 de Taylor18 ou o Organizations19 de March20 e Simon21 implicou significativas mudanças nos perfis de gestão então praticados. Teoria e prática não estão jamais dissociadas, mas antes se nutrem uma da outra: as teorias de Taylor são oriundas de seus anos de prática na Bethlehem Steel;22 já o advento das práticas japonesas de gestão teve início nas proposições teóricas de Deming23 e Juran.24 Nos últimos cem anos (mais precisamente a partir de Taylor) a Administração, tanto em teoria como prática, assumiu o caráter de racionalização.25 Chamamos racionalização ao processo de estabelecimento e consolidação de um modo particular de codeterminação entre razão e ação, que é tido pelos homens de um dado tempo histórico como o mais, ou o único, natural, e que dispõe os limites e as possibilidades para os 16 Henry Ford (EUA; 1863-1947). Ver My Life and Work. Garden City (Nova Iorque): Doubleday, Page and Company, 1922. 17 18 19 20 21 New York: Harper and Brothers, 1911. Frederick Winslow Taylor (EUA; 1856-1915). New York: John Wiley and Sons, 1958. James Gardiner March (EUA; 1928–). Herbert Alexander Simon (EUA; 1916-2001). 22 Referências históricas: “A Piece Rate System”. Transactions of the American Society of Mechanical Engineers, vol. 16, pp. 856-893, 1895; “Shop Management”. Transactions of the ASME, vol. 24, pp. 1337-1480, 1903; e “On the Art of Cutting Metals”. Transactions of the ASME, vol. 28, pp. 31-350, 1907. 23 William Edwards Deming (EUA; 1900-1993); ver Dr. W. Edwards Deming’s Lectures on Statistical Control of Quality. Tokyo: Nippon Kagaku Gijutsu Remmei (Union of Japanese Scientists and Engineers – JUSE), 1950. 2nd. ed. Elementary Principles of the Statistical Control of Quality, 1952. 24 Joseph Moses Juran (EUA; n. Romênia; 1904–); ver Juran’s Quality Control Handbook. New York: McGraw-Hill, 1951. Publicação contratada em 1945. 25 Esta é a principal tese de VALLE (2005). 10 seus modos de ver o mundo e agir nele. Weber26 descreveu o processo de racionalização no Ocidente, ao longo da Era Moderna, como uma progressiva predominância de um agir de caráter teleológico (que significa orientado a objetivos, ao sucesso; do grego telos: fim, resultado).27 Ao tomar por referência última os seus próprios interesses, o homem se posta diante de uma realidade objetivada sob forma de um encadeamento entre fins e meios, estes subordinados àqueles. Habermas,28 em um desenvolvimento das idéias de Weber, descreveu o agir teleológico como comportando duas componentes, uma instrumental e outra estratégica.29 O agir instrumental (ou técnico), referido ao universo material, busca controle e intervenção eficientes sobre a realidade; trata-se, portanto, da eficiência no emprego dos meios visando os fins (disso acaba conferida uma primazia aos conhecimentos de natureza técnico-científica). Já o agir estratégico, referido ao universo das relações socais, corresponde à decisão entre possíveis alternativas de ação por ponderações que levam em conta as chances de se influenciar as ações de terceiros; trata-se, portanto, da eficiência na seleção dos meios (pessoas incluídas) visando os fins. A racionalização em Administração deu origem assim a um padrão particular de ordenamento institucional que, em detrimento das demais possibilidades, privilegia os conhecimentos de cunho eminentemente técnico, e as formas estratégicas de interação social. As sucessivas ondas de racionalização nas organizações surgiram como resposta aos problemas, impasses e dilemas (isto é, à complexidade, no sentido coloquial do termo) que as afetaram a cada momento histórico; não obstante, a resolução das complexidades próprias a um dado tempo necessariamente acabou por concorrer para a gestação de novas complexidades. Examinaremos agora, referenciados no minucioso levantamento 26 Karl Emil Maximilian (Max) Weber (Alemanha (n. Prússia); 1864-1920). 27 Cf. VALLE, 1990. Ver Wirtschaft und Gesellschaft: Grundriß der verstehenden Soziologie. Tübingen (Alemanha): J. C. B. Mohr (Paul Siebeck), 1922. 2 vols. 28 Jürgen Habermas (Alemanha; 1929–). 29 Cf. VALLE, 1990. Ver Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt am Main (Alemanha): Suhrkamp Verlag, 1981. 2 vols. 11 realizado por Valle,30 as trajetórias casadas da complexidade e da racionalização em Administração, bem como os limites e possibilidades para esta última nos tempos atuais. Teorias da conciliação As idéias de Taylor foram concebidas em meio a um contexto de crescentes conflitos entre proprietários e trabalhadores. Aqueles compreendiam a posição que ocupavam como decorrência natural da superioridade, como indivíduos, de que se supunham dotados, o que lhes justificava o autoritarismo para com os trabalhadores; já estes acorriam de forma maciça a uma sindicalização aguerrida. Inspirado nos avanços científicos da segunda revolução industrial que haviam tornado viáveis máquinas a vapor projetadas para um rendimento máximo, Taylor imaginou ser possível projetar-se também as atividades humanas para rendimento máximo com base nas leis científicas da fisiologia: haveria one best way de se executar o trabalho. Supôs ele que os aumentos de produtividade que inevitavelmente se seguiriam trariam mais lucros para os proprietários e melhores salários para os trabalhadores, permitindo uma superação, pela razão, da violência então praticada por ambas as partes (para Taylor, recusar a ciência seria irracional; numa leitura weberiana, recusar tais ganhos não seria agir estrategicamente). Todavia, a supressão do controle pelos trabalhadores das fábricas (blue collars) da condução das suas atividades viria a torná-los substituíveis como se peças de máquina fossem – e, em grande parte das vezes, pior pagos. A racionalização taylorista do trabalho, que o decompunha em unidades as menores possíveis (as tarefas) cada vez mais velozmente realizáveis, implicou um novo problema: o da velocidade no encadeamento das tarefas (o processo). Para resolvê-lo, Ford concebeu a linha de montagem, e para aumentar o desempenho desta ele estendeu a especialização à gerência, criando o modelo de empresa dividida em departamentos funcionais que Sloan31 aperfeiçoaria na General Motors,32 numa racionalização também do trabalho dos trabalhadores de escritório (white collars). 30 31 VALLE, 2005. Rogério de Aragão Bastos do Valle (Brasil; 1955–). Alfred Pritchard Sloan Jr. (EUA; 1875-1966). 12 O taylorismo-fordismo veio agravar as já precárias condições de trabalho nas fábricas, o que terminou por pôr os empresários na defensiva, ao atingir dimensões de questão social (tema, por exemplo, de Tempos Modernos, de Chaplin33). Entrementes, eram conduzidos estudos no campo da Ergonomia que dariam origem (a partir dos trabalhos de Mayo)34 à Escola das Relações Humanas, cujos pesquisadores compreenderam que o fator determinante para o comportamento no trabalho é o sentimento do trabalhador em relação a seus pares, ou seja, o contexto psicossocial. Tomando por base a Psicologia então nascente, a ênfase dos propositores da Escola das Relações Humanas saltou da Ergonomia aos conceitos de satisfação no trabalho, também de função saneadora, e de motivação (desejo de trabalho), numa retomada dos ideais de Taylor de uma conciliação duradoura entre os interesses de patrões e operários. Novamente, subestimava-se a capacidade humana de concepção de novas direções estratégicas quando sob circunstâncias novas. Também novamente, a modelagem de uma complexidade (agora, a subjetividade humana) terminou na prática conduzida como racionalização, com predomínio (à revelia de alguns dentre os teóricos, como Argyris35) da atitude funcionalista de estender o procedimento científico clássico (a formulação de hipóteses verificáveis pela experimentação empírica de variáveis isoladas) a arranjos sociais (em que por natureza há afetividade, criatividade, reflexão e amadurecimento, e em que diferentes pessoas reagem de modo particularizado a uma mesma situação), no intento de identificar one best way de se motivar as pessoas – uma “objetivação da subjetividade”. Como resultado, generalizações a respeito do comportamento humano, em que são desconsideradas as diferenças individuais de personalidade, e em que a motivação é vista como um processo “de fora para dentro”. 32 Ver My Years with General Motors. Garden City (Nova Iorque): Doubleday, 1963. Ver também DRUCKER, Peter F. Concept of the Corporation. New York: John Day, 1946. 33 Charles Spencer Chaplin (EUA; n. Inglaterra; 1889-1977). 34 George Elton Mayo (EUA; n. Austrália; 1880-1949); ver The Human Problems of an Industrial Civilization. Boston (Massachusetts): Harvard Business School, 1933; ver também ROETHLISBERGER, Fritz J., DICKSON, William J. Management and the Worker. Cambridge (Massachusetts): Harvard University Press, 1939. 35 Christopher (Chris) Argyris (EUA; 1923–); ver Personality and Organization: The Conflict between System and the Individual. New York: Harper and Brothers, 1957. 13 Simon foi o pioneiro na racionalização de uma outra complexidade: o processo de tomada de decisões, cuja aparente racionalidade foi por ele posta a nu. Uma vez que as pessoas tomam decisões sem dispor de todas as informações pertinentes e sem ter como antever as conseqüências, elas somente deveriam almejar para suas decisões resultados satisfatórios, jamais ótimos – ainda que não se dêem conta disso. Elas na verdade decidem com base em uma espécie de “modelo simplificado” da realidade em que se encontram imersas – ou seja, as decisões são condicionadas por uma leitura empobrecida das situações: uma racionalidade limitada (bounded).36 Com Simon, adveio uma melhor compreensão do agir estratégico, afinal passível de alguma coordenação (uma vez que, ao agir, as pessoas levam em conta as expectativas que possuem quanto às ações e reações dos outros). E buscou-se remediar as limitações percebidas nos processos decisórios por uma ênfase ainda maior em rotinas (para que haja menos, e mais simples, decisões) e pela modelagem desses processos (adveio a pesquisa operacional) com farto uso das tecnologias de informação (Simon inaugurou o campo da inteligência artificial);37 os resultados, todavia, situaram-se aquém das expectativas. Simon foi também um dos mentores da corrente do equilíbrio organizacional,38 uma explicitação do agir estratégico: por um lado os trabalhadores contribuem não apenas com trabalho, mas com dedicação e lealdade, e em contrapartida a organização lhes confere não apenas salários e benefícios, mas a satisfação de algumas de suas necessidades sociais e psicológicas – um contrato implícito. O equilíbrio provém de uma correlação entre incentivos e contribuições: as pessoas contribuem para a 36 Ver Models of Bounded Rationality Cambridge (Massachusetts): MIT Press, vols. 1-2, 1982, vol. 3, 1997. Como marcos iniciais, ver “A Behavioral Model of Rational Choice”. Quarterly Journal of Economics, vol. 69, n. 1, pp. 99118, 1955; “Rational Choice and the Structure of the Environment”. Psychological Review, vol. 63, n. 2, pp. 129-138, 1956; SIMON, CYERT, Richard M., TROW, Donald B. “Observation of a Business Decision”. Journal of Business, vol. 29, n. 4, pp. 237-248, 1956; Models of Man. New York: Wiley, 1957; e MARCH, SIMON, op. cit. (nota 19, p. 10), 1958. Para abordagens contemporâneas das limitações e insuficiências da racionalidade nos processos decisórios, ver KAHNEMAN, Daniel, TVERSKY, Amos. (eds.). Choices, Values and Frames. Cambridge (Reino Unido): Cambridge University Press, 2000. 37 Ver NEWELL, Alan, SIMON. “GPS, a Program that Simulates Human Thought”. In: BILLING, Heinz (ed.). Lernende Automaten. München (Alemanha): R. Oldenbourg, pp. 109-124, 1961. Reimpresso em: LUGER, George F. (ed.). Computation and Intelligence: Collected Readings. Menlo Park (Califórnia): AAAI Press, pp. 415-428, 1995. 38 Ver Administrative Behavior. New York: MacMillan, 1947; SIMON, op. cit (nota 36, p. 14), 1957; MARCH, SIMON, op. cit. (nota 19, p. 10), 1958; CYERT, Richard M., MARCH. A Behavioral Theory of the Firm. Englewood Cliffs (Nova Jérsei): Prentice-Hall, 1963; e VROOM, Victor H. Work and Motivation. New York: John Wiley and Sons, 1964. Como marco inicial, ver BARNARD, Chester I. The Functions of the Executive. Cambridge (Massachusetts): Harvard University Press, 1938. 14 organização na expectativa de um retorno maior que as energias despendidas; já no interesse da organização, é preciso identificar os motivos que levam as pessoas a cooperar, para que suas contribuições sejam superiores ao custo de mantê-las empregadas. Tal modelo é viável apenas na medida em que os incentivos e as contribuições possuem diferentes significados de valor para os dirigentes e para os trabalhadores (pois boa parte dos incentivos não é de natureza econômica); são porém aqueles, não estes, que dispõem de margem de manobra para definir tal correlação em seus próprios termos.39 Ainda outra contribuição oriunda da Escola das Relações Humanas foi o planejamento estratégico,40 com o que a racionalização atingiu as atividades dos altos executivos. Entrementes, os estudos no campo da motivação relativos ao comportamento dos grupos conduziram à compreensão daquele que se tornaria um dos focos centrais do planejamento estratégico: a cultura organizacional,41 um amálgama das estruturas informais que moldam o comportamento humano nas organizações, compreendendo as crenças, os valores, e as regras informais de conduta que mantêm os relacionamentos interpessoais confinados a limites socialmente aceitáveis. O desenvolvimento organizacional,42 uma das primeiras vertentes em planejamento estratégico, teve por pressuposto a inexistência de um modelo ideal de organização aplicável a todo e qualquer ambiente, com o que deveria ser buscado, para cada organização, um perfil de adaptação indicado a suas circunstâncias específicas. Esta 39 Para a crítica do equilíbrio organizacional, ver PERROW, Charles. Complex Organizations: A Critical Essay. 3rd. ed. New York: McGraw-Hill, 1986. 1st. ed. Glenview (Illinois): Scott, Foresman, 1972; e STORING, Herbert J. “The Science of Administration: Herbert A. Simon”. In: STORING (ed.). Essays on the Scientific Study of Politics. New York: Holt, Rinehart and Winston, pp. 63-105, 1962. 40 Como marcos iniciais, ver SELZNICK, Philip. Leadership in Administration: A Sociological Interpretation. New York: Harper and Row, 1957; e CHANDLER, Alfred D. Strategy and Structure: Chapters in the History of the American Industrial Enterprise. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1962. Para o quadro de referência ao advento do planejamento estratégico, ver KNIGHT, Frank H. Risk, Uncertainty, and Profit. Boston (Massachusetts): Houghton Mifflin, 1921; CHAMBERLIN, Edward H. The Theory of Monopolistic Competition: A Re-Orientation of the Theory of Value. Cambridge (Massachusetts): Harvard University Press, 1933; ALCHIAN, Armen A. “Uncertainty, Evolution, and Economic Theory”. Journal of Political Economy, vol. 58, n. 3, pp. 211-221, 1950; HEFLEBOWER, Richard B. “Toward a Theory of Industrial Markets and Prices”. American Economic Review, vol. 44. n. 2, pp. 121-139, 1954; BAIN, Joe S. Barriers to New Competition. Cambridge (Massachusetts): Harvard University Press, 1956; e PENROSE, Edith T. The Theory of the Growth of the Firm. Oxford (Reino Unido): Basil Blackwell, 1959. 41 Como marco inicial, ver BECKHARD, Richard. Organization Development: Strategies and Models. Reading (Massachusetts): Addison-Wesley, 1969. 42 Como marco inicial, ver BRADFORD, Leland P., GIBB, Jack R., BENNE, Kenneth D. (eds.). T-Group Theory and Laboratory Method: Innovation in Re-education. New York: John Wiley & Sons, 1964. 15 adaptação seria obtida pela mudança planejada das características próprias à organização, tanto formais (a organização do trabalho) como informais (a cultura organizacional). A teoria da contingência43 surgiria posteriormente como uma variante do desenvolvimento organizacional em que se reconhece que uma adaptação bem-sucedida deve estar orientada mais às características do ambiente que às da organização, ou seja, que são aquelas que determinam estas. A nova vertente herda assim do desenvolvimento organizacional o ideal de que as organizações estão aptas a dirigir sua evolução e moldar seu futuro – desde que sejam capazes de monitorar as tendências de evolução do ambiente. Pode-se assim considerar a teoria da contingência como uma extensão, para um nível macro, das considerações de Simon quanto à racionalidade limitada a um nível micro, o do indivíduo: a compreensão quanto às incertezas do ambiente (de que decorre o planejamento para a organização como um todo) não tem como ser perfeita ou completa mas, por meio de racionalização, deve ser a melhor possível. Cabe registrar que, já nos anos 80, adviria a corrente da ecologia populacional,44 em que se pressupõe que a inércia inerente a qualquer instituição restringe sua capacidade de adaptação às mudanças ambientais. Adaptação e sobrevivência seriam na verdade atributos de “populações” de organizações (conjuntos com características comuns) em competição por recursos finitos e desigualmente distribuídos tanto no espaço como no tempo; assim, considera-se que somente uma parcela das organizações existentes a um dado tempo permanecerá compatível com as condições ambientais futuras, ou seja, que população organizacional seja mantida em um estado ótimo por mecanismos de seleção natural. 43 Como marco inicial, ver DILL, William R. “Environment as an Influence on Managerial Autonomy”. Administrative Science Quarterly, vol. 2, n. 4, pp. 409-443, 1958. 44 Como marco inicial, ver HANNAN, Michael T., FREEMAN, John H. “The Population Ecology of Organizations”. American Journal of Sociology, vol. 82, n. 5, pp. 929-964, 1977. 16 A vez do Japão A partir das contribuições originais de Taylor, e ao longo de mais de meio século, a organização taylorista-fordista, com o aporte das contribuições da Escola das Relações Humanas, pôde ser bem-sucedida no trato de suas complexidades internas, num contexto de relativa estabilidade externa: mercados em expansão e ávidos por produtos de massa, inovação tecnológica incremental, e ambiente regulatório dos negócios estável (o welfare state). A integridade dos processos de produção, espalhados pelos distintos departamentos funcionais, era assegurada por uma realidade física: a linha de montagem. Ao longo dela, cada seção podia se ater à busca de suas eficiências próprias, a otimização de cada função tornando o processo um somatório dos ótimos locais. Essa própria dinâmica virtuosa do capitalismo nos países desenvolvidos terminou por se esgotar, ao conduzir à saturação dos mercados, à demanda por produtos diversificados e de mais qualidade, à explosão na inovação tecnológica, e a uma menor regulação pelo Estado. De uma forma mais acentuada na indústria de bens de consumo, a busca por eficiência com ênfase nas funções cedeu lugar a uma busca por flexibilidade com ênfase nos processos, à medida que se percebia que, sob circunstâncias de mudança, a soma dos ótimos locais não necessariamente corresponde ao ótimo global. Quanto à Escola das Relações Humanas, sobretudo nas grandes corporações (sua influência nas pequenas empresas foi mínima, devido aos elevados custos indiretos e à própria concepção de organização adotada),45 também as buscas pela felicidade dos trabalhadores esbarraram em seus limites – quando os incentivos oferecidos se haviam convertido em exigências contratuais, quando adveio a necessidade de reduzir a centralização e os custos indiretos, e quando por fim as empresas começaram a demitir e a comprimir salários.46 Na indústria de bens de consumo, a racionalização prosseguiu pela adoção dos métodos de base estatística, em seu conjunto denominados gestão pela qualidade total (GQT),47 que tanto distinguiram as indústrias japonesas nas novas circunstâncias de mercado. 45 46 Cf. VALLE, 2005: 43. Cf. ibid., p. 44. 47 Como marcos iniciais, ver SHEWHART, Walter A. “Some Applications of Statistical Methods to the Analysis of Physical and Engineering Data”. Bell System Technical Journal, vol. 3, pp. 43-87, 1924; e DODGE, Harold F., ROMING, Harry G. “A Method for Obtaining and Analysing Sensitivity Data”. Bell System Technical Journal, vol. 8, pp. 613–631, 1929. 17 Como identidades para com o taylorismo: a qualidade baseada dos métodos ao invés da inspeção, o planejamento prévio do trabalho a cargo de especialistas, e o ideal de cooperação entre trabalhadores e direção. Como diferenciais em relação a ele (alguns já advogados desde a Escola das Relações Humanas): o aperfeiçoamento contínuo (ao invés da one best way) a partir de sugestões dos trabalhadores, o trabalho em equipe, algum grau de delegação, o alargamento do escopo de tarefas (e conseqüentemente da qualificação), e a referência ao método ao invés da Ciência.48 A diferença principal consiste na necessidade de uma comunicação horizontal ao longo dos processos (o taylorismo-fordismo somente requeria uma comunicação vertical, dados sobem e ordens descem), se se deseja dotá-los de flexibilidade em lugar de rotina. Isso implica que os atores ao longo do processo (dentro da empresa, os trabalhadores e, fora dela, os fornecedores e clientes) deixam de ser substituíveis, posto que sua integração passa a fator primordial. Dito de outra forma, ao longo do processo torna-se vital não apenas o fluxo de materiais e energia a serem transformados, mas também o de informações, despontando a logística como a gestão combinada desses fluxos. No interior das empresas, a logística desenvolveu-se em duas direções. Em uma correção de rumos no fordismo (agora ajustado para um reequilíbrio entre função e processo), foram desenvolvidas sofisticadas modelagens para previsão da demanda de modo a propiciar um planejamento de fluxos descontínuos – ou seja, um controle dos estoques. Este caminho resultou no MRP (inicialmente material requirement planning, depois manufacturing resources planning), que viria a se transmutar no atual ERP (enterprise resource planning). A alternativa foi importada do Japão juntamente com a GQT: o JIT (just in time), o desenvolvimento da capacidade de resposta imediata às oscilações da demanda sem se depender de quaisquer previsões, com os ritmos e os volumes de produção sendo ditados pelos pedidos dos clientes. Trata-se aqui de uma gestão de fluxos contínuos, e de um ideal de eliminação dos estoques. Ao contrário do que indica a literatura mais superficial, JIT e MRP-ERP não são necessariamente concorrentes, pois sob circunstâncias específicas um ou outro é mais indicado.49 48 49 Cf. VALLE, 2005: 52-53. Cf. ibid., p. 123. 18 No que diz respeito ao Japão, é correto tomar a GQT por uma escola de gestão, para além de um mero conjunto de métodos para maiores qualidade e flexibilidade na produção; isso não se aplica, porém, ao Ocidente. No Japão, uma cultura ancestral que preconiza a precedência do interesse coletivo sobre o individual (em termos sociológicos, um desprendimento quanto ao agir estratégico, ou ainda um agir orientado a valores, que são atributos necessariamente sociais) torna natural a cooperação nos ambientes de trabalho enquanto que, no Ocidente, esta necessita ser induzida até que venha a ser considerada uma vantagem mútua. A oportunidade para um resgate dos conceitos sobre equipes da Escola das Relações Humanas que de algum modo transcendiam o agir estratégico (e que foram aprofundados pela chamada escola sóciotécnica,50 influente apenas na Escandinávia) foi largamente desperdiçada; ao contrário, foram os japoneses que aperfeiçoaram seus modos de gestão a partir dessas idéias. Ainda outro aspecto: no Ocidente, a adoção da GQT pouco influenciou as formas de direção (algo fundamental no Japão); testemunho disso é a quase ausência de recomendações gerenciais nas normas ISO-9000.51 A explicitação dos contratos Assimilado o que era palatável dos modelos japoneses, as sucessivas complexidades que se seguiram foram, grosso modo, racionalizadas por variações sobre o receituário básico estabelecido com Simon, naquela que consistiria a essência de um american way of management: em tudo o que for possível, rotinas, com cada vez mais recurso às 50 Em que a organização é compreendida como composta por dois subsistemas em permanente interação, um técnico (formal, composto pela tecnologia, pelas instalações físicas e pela especificação das tarefas) e outro social (informal, composto pelas pessoas, suas relações sociais e valores, suas aspirações e expectativas); é proposto que, em adição à tradicional função administrativa técnica (voltada a coordenar a execução das tarefas), deva haver uma função administrativa social (voltada à facilitação dos relacionamentos entre as pessoas). Como marcos iniciais, ver TRIST, Eric L., BAMFORTH, Ken W. “Some Social and Psychological Consequences of the Longwall Method of Coalgetting”. Human Relations, vol. 4, n. 1, pp. 3-38, 1951; RICE, Albert K. Productivity and Social Organisation: The Ahmedebad Experiment. London: Tavistock Publications, 1951; e EMERY, Fred E., TRIST. “Socio-technical Systems”. In: CHURCHMAN, Charles W., VERHULST, Michel (eds.). Management Sciences: Models and Techniques. New York: Pergamon, pp. 83-97, 1960. Para um estudo compreensivo, ver RICE. The Enterprise and its Environment: A System Theory of Management Organization. London: Tavistock Publications, 1963; KATZ, Daniel, KAHN, Robert L. The Social Psychology of Organizations. New York: John Wiley and Sons, 1966; EMERY (ed.). Systems Thinking: Selected Readings. Harmondsworth (Reino Unido): Penguin, 1969. 2 vols.; EMERY, TRIST. Towards a Social Ecology: Contextual Appreciation of the Future in the Present. London: Plenum, 1972; e PASMORE, William A., SHERWOOD, John J. (eds.). Sociotechnical Systems: A Sourcebook. La Jolla (Califórnia): University Associates, 1978. Para uma antologia dos textos da Sócio-técnica, ver TRIST, E. L., MURRAY, Hugh, TRIST, Beulah (eds.). The Social Engagement of Social Science: A Tavistock Anthology. Philadelphia (Pensilvânia): University of Pennsylvania Press, vol. 2 (The Socio-technical Perspective), 1993. 51 Cf. VALLE, 2005: 50. 19 tecnologias de informação (o que pode ser chamado computer-aided taylorism, de que o ERP é o estado da arte, uma racionalização da totalidade das atividades administrativas);52 para tudo o mais, contratos. No mundo anglo-saxão, os contratos são a forma tradicional de conciliação do agir estratégico com o interesse mútuo: as interações entre os agentes econômicos têm por pressuposto um cumprimento confiável dos contratos particulares firmados (negócios) e dos contratos gerais vigentes (leis). Desde que confinado aos limites previstos (é esse o calcanhar de Aquiles) nos contratos, observáveis de acordo com os requisitos de transparência neles estipulados, o agir estratégico é a forma natural de se ser no mundo. Nos anos 80, com Williamson,53 é resgatada uma teoria concebida nos anos 30 por Coase54 como explicação da função das organizações no mercado, a teoria dos custos de transação,55 agora como uma racionalização para a esfera cada vez mais complexa dos contratos, ou seja, da regulação possível para o agir estratégico. Uma vez que a tomada de decisões se dá a partir de uma compreensão restrita da realidade e de estimativas imprecisas quanto aos desdobramentos futuros, as transações de negócio envolvem necessariamente assimetrias de informação – diferenças entre os conjuntos de informações que cada parte detém. A função primordial do contrato é então a atenuação dos efeitos danosos dessas assimetrias, restringindo o espaço para que estas se tornem alvo de manipulação oportunista (omissões, comunicações distorcidas etc.), notadamente quando ainda não há juízo formado quanto à sinceridade da outra parte. A ocorrência de oportunismo não é necessariamente prévia à formalização das transações, podendo advir de situações imprevisíveis (por exemplo, um técnico que diante de um 52 53 Cf. ibid., p. 37. Oliver Eaton Williamson (EUA; 1932–). 54 Ronald Harry Coase (EUA; n. Inglaterra; 1910–); ver “The Nature of the Firm”. Economica, vol. 4, n. 16, pp. 386405, 1937. 55 Esta retomada da teoria dos custos de transação tem por marco inicial “Hierarchical Control and Optimum Firm Size”. Journal of Political Economy, vol. 75, n. 2, pp. 123-138, 1967; seguem-se “The Vertical Integration of Production: Market Failure Considerations”. American Economic Review, vol. 61, n. 2, pp. 112-123, 1971; “Managerial Discretion, Organization Form, and the Multidivision Hypothesis”. In: MARRIS, Robin, WOOD, Adrian (eds.). The Corporate Economy: Growth, Competition, and Innovative Potential. Cambridge (Massachusetts): Harvard University Press, pp. 343-386, 1971; e “Markets and Hierarchies: Some Elementary Considerations”. American Economic Review, vol. 63, n. 2, pp. 316-325, 1973. Williamson dota de sistematização esta sua reconcepção da teoria em Markets and Hierarchies: Analysis and Antitrust implications – A Study in the Economics of Internal Organization. New York: Free Press, 1975; e lhe confere uma forma acabada em The Economic Institutions of Capitalism: Firms, Markets, Relational Contracting. New York: Free Press, 1985. 20 problema inesperado recorre a uma solução cuja inadequação não tem como ser percebida de imediato pelo cliente).56 Como o limiar a partir do qual o agir estratégico se torna má fé é nebuloso (literalmente, oportunismo significa aproveitamento de oportunidades), o contrato almeja a demarcação dessas fronteiras. O fordismo preconizava a máxima integração vertical possível (Ford, nos anos 30, chegou a adquirir minas e usinas siderúrgicas para o provimento de aço), numa época em que a imobilização de capital sob forma de ativos implicava poucos riscos e, sobretudo, custos suportáveis. Hoje, frente às oportunidades de remuneração do capital em liquidez, mesmo a manutenção de estoques é um custo a ser evitado. A teoria dos custos de transação apregoa que o grau ótimo de integração vertical para as cadeias de suprimentos é determinado pelos menores custos de transação: entra em cena a terceirização, ou a substituição de contratos de trabalho (internos) por contratos de negócio (externos), com o repasse a terceiros de parte do processo de produção juntamente com os ônus de especificidade57 dos ativos. Na direção oposta, busca-se pelas fusões e aquisições reduzir os riscos de se transacionar ativos de elevada especificidade por meio de contratos – o que muitas vezes termina por acarretar novas complexidades, como choques entre as culturas das companhias reunidas. A teoria dos custos de transação postula ainda que o grau ótimo de concentração nos mercados (que, conforme o caso, pode consistir em monopólios ou oligopólios) é também determinado pelos menores custos de transação, o que por sua vez pressiona pela menor regulação pública dos negócios privados (relações de trabalho inclusive). Uma tal redução da regulação de mercado a meros mecanismos de compensação das assimetrias de informação sob o agir estratégico desconsidera as especificidades culturais (dentre elas, os espaços do agir orientado a valores) dos diferentes países. Esta teoria assume como universais as “leis” de mercado, o que, em tempos de uma globalização que reprime diferenças e impõe padrões, soa natural e inevitável. 56 Cf. VALLE, 2005: 62. 57 O grau de especificidade de um dado ativo é proporcional ao seu grau de dependência de produtores, ou de processos de produção, específicos: por exemplo, são ativos altamente específicos os equipamentos feitos sob encomenda por um ou poucos fornecedores, os trabalhadores cujo desempenho é derivado da experiência (leaning by doing), os produtos ou processos produtivos projetados para atendimento a um ou poucos clientes etc. 21 Para além do marco anglo-saxão, entretanto, estilos próprios de regulação de países com cultura cooperativa (como na Europa central e Escandinávia) ou mesmo corporativa (Japão, Coréia) entre empresas mostram-se mais benéficos que a livre competição, em setores outros que não a produção de bens de consumo, e que requeiram vínculos mais estáveis entre fornecedores e clientes bem como integração com a infra-estrutura de P&D nas universidades.58 Tome-se ainda uma vez o caso do Japão, em que, para a superação da crise de crescimento praticamente nulo e bancos à beira da insolvência, foi insistentemente prescrito o receituário “universal”: um choque de competitividade pelo fim das barreiras às importações, dos subsídios governamentais e das associações entre empresas, e pela flexibilização das relações de trabalho. Descartado porém o corpus teórico dominante, e decorrida mais de uma década, o país continua apresentando sucessivos superávits comerciais, baixos desemprego e inflação, elevada poupança interna e moeda valorizada, numa clara indicação de que são os traços culturais do país que dotam sua economia de robustezas próprias.59 Entrementes, a busca por combinações ao mesmo tempo flexíveis e a custos suportáveis entre as alternativas ditas “make” (que implica integração vertical, e complexidade logística interna) e “buy” (que implica margens de segurança nos estoques, e complexidade logística externa) ampliou em muito a diversidade de tempos e lugares para a produção – ou seja, a complexidade nas relações entre fluxos (leia-se produção) e demandas. Atingidos os limites da racionalização interna às empresas, o passo seguinte foi a extensão da logística para fora delas (e aos respectivos contratos, que passaram a perseguir estabilidade nas relações entre clientes e fornecedores), pelo que hoje se denomina gestão integrada da cadeia de suprimentos. Nos ambientes MRP-ERP, é implantado um sistema de previsão de demanda único para toda a cadeia; na alternativa JIT, parâmetros quanto a quantidades, qualidade, prazos e preços são incorporados aos contratos, sob uma perspectiva de longo prazo; em ambos, as racionalizações internas, desde os indicadores de desempenho até a estratégia de competição, tornam-se subordinadas às características e objetivos da cadeia como um todo. 58 59 Cf. ibid., pp. 66-67. Cf. Ibid., p. 55. 22 Ainda outra vez, o ideal das “leis” universais de mercado, que se supunha propiciariam uma regulação isenta do agir estratégico por meio dos contratos, veio mascarar as assimetrias nas relações entre o elo mais forte da cadeia e os demais, aspecto em geral omitido na literatura, que vai até mesmo à idealização de uma “cooperação”. A empresa que domina a cadeia pode estar situada mais à montante ou mais à jusante (pode, por exemplo, ser fabricante, como montadoras de automóveis, ou distribuidor, como redes de supermercados ou de lojas de departamentos), mas é o seu perfil de racionalização o que determina os objetivos e a estratégia da cadeia como um todo, e, por conseguinte, os modos de racionalização para os demais elos, à medida que estes vão se tornando progressivamente dependentes da empresa dominante.60 Em seguida à logística chega a vez dos métodos de trabalho; se a integração logra atingir a estrutura de custos da cadeia, isto na prática determina a lucratividade de cada elo. Como a freqüência de rompimentos e disputas judiciais tem demonstrado na prática, a ampla flexibilização para as relações de negócio e de trabalho preconizada pelo corpus teórico dominante situa-se em contradição direta com a necessidade de se reduzir a complexidade pela construção de estabilidade e confiança mútua nas relações internas (entre pessoas) e externas (entre empresas). Evidentemente, não cabe transplantar para o Ocidente a solução keiretsu dos japoneses (laços de lealdade entre empresas), que não tem como ser dissociada da cultura local (e que mesmo no Japão encontra-se sob questionamento). Mas a Europa continental possui toda uma antiga tradição de organização industrial por concentração geográfica de produtores em pequena escala sob relações simétricas – no passado, cidades industriais especializadas em tecelagem, ou relojoaria etc.; hoje, clusters de pequenas e médias empresas em que os trabalhadores são os herdeiros dessa longa tradição artesanal (por exemplo, o de máquinas-ferramenta na região da Emília-Romanha italiana). Já apropriado pelo agir estratégico, o termo cluster vem sendo citado de forma deturpada na literatura, de modo a incluir sob esta denominação cadeias de produção estáveis, porém assimétricas, em que uma empresa principal predomina.61 60 61 Cf. Ibid., p. 127. Cf. Ibid., p. 131. 23 Limites da racionalização Elegemos Simon como a figura central na história da Administração porque a ele coube compreender o papel do agir estratégico nas organizações, apontar suas limitações (as decisões são sempre tomadas a partir de um conhecimento parcial – em outra palavra, local – da realidade, e de visões imprecisas quanto ao futuro) e sintetizar a essência dessa disciplina, uma racionalização fundada no tripé rotinas (para simplificar as decisões), tecnologia (para propiciar algum tratamento da incerteza por meio de novas rotinas) e contratos (para tornar compatíveis as diversas racionalidades locais). No passado, este tripé pode ser identificado já em Taylor (toda atividade como rotinizável, o cronômetro, e o discurso dos ganhos econômicos para todos à guisa de contrato) e Ford (os departamentos funcionais, a linha de montagem, e o five dollar day como o princípio de contrato social que viria a inspirar o New Deal que retiraria os Estados Unidos da depressão). Hoje, a busca frenética por modelar a complexidade e eliminar a incerteza das decisões vem levando a um cada vez mais sofisticado (e caro) computer-aided taylorism, que no mais das vezes requer que seja a empresa que se adapte a ele – one best way – ao invés do contrário (como em boa parte das implantações do ERP);62 para a gestão integrada da cadeia de suprimentos, o aporte tecnológico vai do EDI (electronic data interchange) ao comércio eletrônico (ecommerce). Não se deve esquecer as lições deixadas pelo breve reinado da reengenharia,63 o auge da vontade de poder-se racionalizar a organização como um todo a partir do zero, com base nas tecnologias de informação. Já no terreno das relações de trabalho, um extremo contemporâneo da motivação “de fora para dentro” da Escola das Relações Humanas é a crescente tendência das organizações em buscar suprir as necessidades de seus empregados por vida privada, 62 “... a maior desvantagem dos sistemas ERP – afora os preços exorbitantes dos softwares – é a dificuldade de implantação. De fato, é preciso selecionar o fornecedor do sistema ERP; escolher os módulos a serem instalados; redefinir os processos de negócio da organização, de forma a compatibiliza-los com o sistema adquirido; ajustar as tabelas de configuração dos módulos, de acordo com os processos redefinidos; tratar os casos de incompatibilidade entre o sistema e os requisitos da empresa” (VALLE, 2005: 123). Ver também ZANCUL, Eduardo, ROZENFELD, Henrique. Sistemas ERP. São Carlos (São Paulo), 1999. Disponível em: <http://www.numa.org.br/conhecimentos/conhecimentos_port/pag_conhec/ERP_v2.html>. Acesso em: 25 fev. 2005. 63 Ver HAMMER, Michael, CHAMPY, James. Reengineering the Corporation: A Manifesto for Business Revolution. New York: Harper Business, 1993. 24 sejam estas de natureza material, psicológica, afetiva ou de lazer,64 um padrão de agir estratégico para com as pessoas que lhes impõe o risco de se tornarem crescentemente dependentes da organização sem a contrapartida da estabilidade no emprego. No que diz respeito a contratos, uma crescente burocratização (no sentido weberiano, significando formalização das relações sociais) transmuta as formas habituais de avaliação dos trabalhadores e de feedback a eles em termos de compromisso quanto a desempenho a serem firmados; para os gerentes, isto se dá sob a denominação de governança corporativa. Foi aqui recapitulada a trajetória da racionalização como resposta aos sucessivos acréscimos de complexidade: primeiramente, exigências por melhores condições de trabalho, depois demandas dos consumidores por qualidade e diversidade dos produtos que se refletiram no advento das legislações de defesa do consumidor, descontinuidades trazidas pela inovação tecnológica, saturação dos mercados, desregulação da economia e, mais recentemente, exigências quanto a cuidados para com o meio ambiente – que não se limitam ao tratamento de resíduos, a exigências quanto aos produtos, e ao retorno destes ou de suas embalagens após o consumo para reciclagem; mesmo a decisão sobre a instalação de uma nova fábrica, que há cem anos requeria pouca coisa além da compra ou arrendamento de um terreno, hoje envolve o cumprimento de exigências legais não apenas nacionais mas também locais, atrai a interferência de ONGs etc. Contemporaneamente, foram tornados alvo de atenção também os riscos associados ao distanciamento entre o universo dos negócios e o restante da sociedade, com o advento de um novo padrão de discurso, o da “responsabilidade social”. Dentre todos os reflexos de tais complexidades externas sob forma de aumento da complexidade interna às organizações, o mais dramático – porque em contradição direta com os esforços de racionalização – é a crescente demanda por micro-decisões 64 Ver, por exemplo, ARNOTT, Dave. Corporate Cults: The Insidious Lure of the All-consuming Organization. New York: Amacom, 2000; e WARDE, Ibrahim. “Surexploitation Joyeuse aux États-Unis: Cadres et Employés Communient dans la ‘Religion’ du Travail”. Le Monde Diplomatique, p. 27, 16 mars 2002. Versão em inglês disponível em: <http://mondediplo.com/2002/03/16work>. Acesso em: 25 fev. 2005. Em português, ver STEINBERG, Gustavo, MASAGÃO, Marcelo. “Yes, Temos Motivação: Pérolas e Impressões Colhidas numa Viagem ao Eletrizante Mundo da Nova Cultura Gerencial”. Carta Capital, vol. 9, 15 maio 2002. 25 (decisões operacionais pelos trabalhadores),65 em adição às desde sempre necessárias meso- (decisões táticas, confiadas aos gerentes) e macro-decisões (decisões estratégicas pelos executivos). Em todos estes níveis, cada vez menos as rotinas se mostram opções adequadas. Também em todos eles, os fantasmas da leitura empobrecida da realidade e da satisfação com a primeira alternativa viável denunciados por Simon estão à espreita. Abraçar a complexidade ao invés de racionalizá-la – este, o desafio presente à teoria das organizações. 65 Para o processo de crescente complexificação da esfera das micro-decisões, ver VALLE, Rogério A. B. La theorie de l’agir communicatif face aux apports d’une sociologie comparative des organisations. Thèse (D.Sc. Sociologie) à l’Université Paris V (Sorbonne, Sciences Humaines). Paris, 1989. 26 2. A trajetória em busca da complexidade Teoria da Complexidade nada mais é que um dedobramento contemporâneo da busca ancestral do homem (progressivamente sob forma de Ciência) por desvendar os mistérios do mundo. O que a distingue nesse processo histórico é sua orientação ao geral ao invés do específico: seu objetivo presumido é a elaboração e consolidação de uma “ciência geral dos sistemas complexos”. Podemos, inicialmente (revisaremos adiante), definir sistemas complexos por contraposição aos sistemas simples, como aqueles cujas explicações não são robustas a ponto de propiciar graus satisfatórios de previsibilidade quanto ao comportamento futuro; ou seja, trata-se dos tais “mistérios do mundo”. Essas são, obviamente, definições vagas – mas não as há mais precisas. Ou melhor, há – às dúzias. Desde que, em meados do século XX, a grandeza “complexidade” de um sistema passou a objeto do proceder científico, muitos cientistas criaram para ela definições (ou adaptaram anteriores) de forma derivada de suas conveniências específicas.66 Nem poderia ser diferente, uma vez que a complexidade de um sistema não é algo conhecido: trata-se justamente de algo que se ignora, e se busca desvendar. Só o que se pode ter por certo é que, sob a denominação genérica de “Teoria da Complexidade”, abrigam-se linhas de pesquisa as mais diversas, que têm por traço comum a perspectiva de que a natureza da complexidade dos sistemas também os mais diversos seja a mesma, ou seja, que haja fundamentos universais para a complexidade. Assim, por extensão – e no que nos interessa mais diretamente – a Teoria da Complexidade representa também um desdobramento contemporâneo da busca histórica por unificação entre as ciências naturais e sociais, na perspectiva de poder-se finalmente chegar a aplicações práticas, em ciência social, de validade, abrangência e funcionalidade correlatas às suas congêneres em ciência natural. 66 No mais das vezes, de forma associada às dificuldades envolvidas na tarefa de descrição dos sistemas em tela; remeter à p. 3. 27 O homem sempre buscou elaborar explicações para o comportamento da Natureza, da sociedade e de si próprio. Na Antiguidade, predominaram explicações centradas na crença em um todo harmonioso, o Kosmos; na Idade Média, explicações em termos da vontade de Deus; na Era Moderna, explicações emanadas da Ciência. Uma unicidade para suas explicações também foi um objetivo sempre perseguido; para os antigos que compreendiam o Universo como um todo coerente, era razoável crer que a posição dos astros no céu determinasse os comportamentos humanos. Na Era Moderna, essa busca por unicidade foi manifestada por diversos modos: Hobbes67 e depois Newton68 consolidaram uma compreensão mecanicista para tudo no Universo (em 1748 o médico de La Mettrie69 lançou L’homme machine;70 quase dois séculos depois, Loeb71 escreveu The Mechanistic Conception of Life72); Locke73 postulou serem as sociedades governadas pelas leis da Natureza; para Madison,74 o equilíbrio entre as forças políticas seria correlato ao equilíbrio gravitacional entre os corpos celestes, e devido a isso a democracia seria intrinsecamente harmoniosa; as explicações de Darwin75 em termos de sobrevivência dos mais competitivos e melhor adaptados foram em larga escala tomadas para explicação das diferenças sociais; o Positivismo elevou a unidade entre as ciências naturais e sociais a um ideal a ser alcançado, por meio da aplicação dos já validados métodos das primeiras nas segundas. Já no século XX, a Cibernética surgiu como uma teoria unificada do comportamento de sistemas orientados a objetivos, englobando máquinas e seres vivos; a Teoria Geral dos Sistemas estabeleceu bases gerais e universais para o seu estudo; e o Estruturalismo pressupôs a ação humana como governada por uma estrutura de regras estáveis, que determinam o escopo de possibilidades para a vida em sociedade. Contemporaneamente, a Teoria da Complexidade é a herdeira de toda essa busca histórica por uma explicação universal. 67 Thomas Hobbes of Malmesbury (Inglaterra; 1588-1679); ref. hist.: Leviathan; or the Matter, Form and Power of a Commonwealth, Ecclesiastical and Civil. London: Andrew Crooke, 1651. 68 Isaac Newton (Inglaterra; 1642-1727); ref. hist.: Philosophiae Naturalis Principia Mathematica. London: Joseph Streater, 1687. 69 70 71 72 73 74 75 Julien Offray de La Mettrie (França; 1709-1751). Leiden (Holanda): Elie Luzac, 1748. Jacques Loeb (EUA; n. Alemanha (Prússia); 1859-1924). The Mechanistic Conception of Life: Biological Essays. Chicago (Illinois): University of Chicago Press, 1912. John Locke (Inglaterra; 1632-1704). James Madison Jr. (EUA; 1751-1836). Charles Robert Darwin (Inglaterra; 1809-1882). 28 As raízes da Teoria da Complexidade encontram-se, assim, imbricadas com a trajetória toda da Ciência. Em busca dessas raízes, pode-se escolher para referencial a revolução epistemológica representada pelo advento da física quântica, em que uma importante interpretação do universo quântico como auto-organizante foi a de Bohm.76 Se se opta pela Biologia, há que se citar Weiss.77 A linguagem como modeladora do entendimento do real, Korzybski.78 A Ciência como literatura, Koestler.79 A Matemática, por seu turno, comporta múltiplos caminhos, dentre eles a Teoria do Caos.80 Se se chega à Filosofia, pode-se mesmo remontar ao pensamento de clássicos como Heráclito,81 para quem... ... tudo flui e nada perdura; tudo cede lugar e nada se mantém fixo ... é no mudar que as coisas encontram repouso.82 ... este Universo ... sempre foi, é, e será um fogo eternamente vivo, que se acende e se apaga na medida certa.83 Pode-se atribuir validade a todas essas perspectivas. Rastrear as origens das teorias científicas é rastrear a evolução do pensamento humano, em que jamais se chega a uma origem única. Contudo, é sempre possível, ainda que de forma arbitrária, delimitar um corpo de idéias que possa ser considerado um tronco principal em cujas ramificações situar o campo em questão. No caso da Teoria da Complexidade, essa matriz original é 76 David Joseph Bohm (Inglaterra; n. EUA; 1917-1992); ver Wholeness and the Implicate Order. London: Routledge and Kegan Paul, 1980; e BOHM, David, HILEY, Basil J. The Undivided Universe: An Ontological Interpretation of Quantum Theory. London: Routledge, 1993. 77 Paul Alfred Weiss (EUA; n. Áustria (Áustria-Hungria); 1898-1989); ver Dynamics of Development: Experiments and Inferences. New York: Academic Press, 1968; e Within the Gates of Science and beyond: Science in its Cultural Commitments. New York: Hafner, 1971. Como marco inicial, ver “Tierisches Verhalten als ‘Systemreaktion’. Die Orientierung der Ruhestellungen von Schmetterlingen (Vanessa) gegen Licht und Schwerkraft”. Biologia Generalis, vol. 1, pp. 168-248, 1925; ver também a transcrição da argumentação oral de Weiss, que antecipa o que viria a ser a teoria da autopoiesis, em JEFFRESS, Lloyd A. (ed.). Cerebral Mechanisms in Behavior: The Hixon Symposium. New York: John Wiley and Sons, pp. 72-74, 140-142, 1951. 78 Alfred Vladislavovich Habdank Skarbek Korzybski (EUA; n. Polônia (Rússia); 1879-1950); ver Science and Sanity: An Introduction to Non-Aristotelian Systems and General Semantics. Lancaster (Pensilvânia): Science Press, 1933. 2nd. ed., 1941. 3rd. ed., 1948. 4th. ed., 1958. 79 Arthur Koestler (Inglaterra; n. Artur Kösztler, Hungria (Áustria-Hungria); 1905-1983), para quem a realidade é composta por múltiplos níveis de complexidade sucessivamente acoplados. Ver The Ghost in the Machine. London: Hutchinson, 1967; “Beyond Atomism and Holism – The Concept of the Holon”. In: KOESTLER, SMYTHIES, John R. (eds.). Beyond Reductionism: New Perspectives in the Life Sciences. London: Hutchinson, pp. 192-232, 1969; e Janus: A Summing Up. London: Hutchinson, 1978. 80 81 82 83 Remeter à nota 8, p. 1. Heráclito de Éfeso (c. 540-470 AC). Fragmentos de Heráclito compilados por WHEELWRIGHT, 1959: 29. Ibid., p. 37. 29 a Cibernética, que revisitaremos tomando por fio condutor o criterioso trabalho de historiador de Dupuy.84 A mecanização da mente Como o pai fundador da Cibernética considera-se Wiener,85 autor desde a década de 20 de diversas inovações importantes,86 e que durante a Segunda Guerra Mundial participou do projeto de dispositivos de artilharia antiaérea previamente programados segundo a orientação de vôo dos aviões de manobra rápida, comportando correções no padrão de tiro a partir das variações de movimento do alvo. Ora, tal correção pode se dar tanto a partir da atualização das informações recebidas de radar (quanto a tipo de aeronave, altitude, velocidade etc.) quanto pela coordenação motora do artilheiro que busca manter o alvo em mira, com o que Wiener percebeu haver uma identidade de natureza entre o ajuste fino de comportamento por meio de feedback (um conceito até então incipiente) em máquinas e em organismos vivos. À época, com o conceito de informação também incipiente, considerava-se o feedback como o retorno de uma parcela da energia produzida pelo sistema em seu comportamento orientado a um objetivo.87 O feedback era então denominado positivo quando esta parcela retornada possuía sinal idêntico ao estímulo original (input), somando-se a ele e desta forma reforçando-o e a seus efeitos (output). E o feedback era dito negativo quando a parcela retornada possuía sinal oposto ao do input, desta forma atenuando-o, e possibilitando assim um ajuste fino de aproximação entre os resultados reais (output) e pretendidos (objetivo): “pode-se considerar que todo comportamento 84 Jean-Pierre Dupuy, (França; 1941–). A tese central de DUPUY, 1995 (1994) é que diversos importantes campos científicos contemporâneos, coma as ciências cognitivas, a Teoria da Complexidade e a biologia molecular (além, obviamente, das tecnologias de informação) têm como origem principal a Cibernética. Como outra referência para a história da Cibernética, ver HEIMS, Steve J. The Cybernetics Group. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1991. 85 Norbert Wiener (EUA; 1894-1964); ver WIENER (1948), obra posteriormente adaptada para um maior acesso pelo público leigo: The Human Use of Human Beings: Cybernetics and Society. Boston (Massachusetts): Houghton Mifflin, 1950. 86 Zadeh (1991 (1962): 310) compilou uma lista de importantes contribuições à Matemática feitas por Wiener nos anos 20 e 30, e que vieram a compor a base para o advento da Teoria dos Sistemas: a representação de um sistema não-linear por meio de séries polinomiais de Laguerre e de Hermite, a sua teoria de filtragem e predição, a análise harmônica generalizada, o cinema-intergraph, o teorema de Paley-Wiener, e o processo de Wiener. 87 Cf. DUPUY, 1995 (1994): 47. 30 dotado de propósito requeira feedback negativo. Se um objetivo é para ser atingido, alguns sinais quanto ao objetivo são necessários em algum momento para direcionar o comportamento”.88 Estavam lançadas as bases para o que viria a ser o esquema input-output-feedback: uma máquina capaz de, a cada momento, modificar seu estado interno (output) pela combinação do input recebido e do seu estado no instante anterior (feedback). A explosão combinatória produzida por um número finito para os estados internos e por uma faixa de valores também finita para o input (ou seja, a aplicação recursiva de um conjunto finito sobre si mesmo) dota a máquina de possibilidades de comportamento incomensuráveis – o que seria mais uma identidade em relação aos organismos vivos. Mais: um observador externo vê a máquina como capaz de processar o estímulo recebido produzindo uma resposta específica de acordo com uma lógica interna, sendo assim capaz de ajustar seu comportamento, com a correção de eventuais desvios, a partir das respostas que produz; ou seja, ele a vê como perseguindo um propósito – o que seria também uma identidade para com os organismos vivos. Identidade que, à época, foi compreendida como o operar de “mecanismos teleológicos”, como um modo de manter afastada da explicação científica qualquer subjetividade. Por teleologia (do grego telos: fim, resultado + logos: palavra, discurso; estudo das finalidades)89 compreende-se o comportamento regido por alguma “causa final”, ou seja, uma causa posterior no tempo aos efeitos por ela provocados (um propósito), o que era desacreditado por ir justamente... de encontro ao mecanicismo (que pressupõe um encadeamento linear entre causas e efeitos). Os ciberneticistas pretenderam contornar esta dificuldade ao (re)definir teleologia como o comportamento propositalmente (não intencionalmente, porém) orientado a objetivos, devido a tal comportamento se dar de uma forma mecanicamente regulada por feedback; eles 88 89 ROSENBLUETH, WIENER, BIGELOW, 1943: 19. Remeter à p. 2. 31 reduziram assim a noção de teleologia a um recurso de linguagem, útil ao tipo de descrição que propunham:90 Uma vez que nós consideramos o propósito como um conceito necessário à compreensão de determinados modos de comportamento, nós postulamos que um estudo teleológico é útil, desde que ele evite problemas de causalidade e se atenha meramente à investigação do propósito. Nós restringimos a conotação de comportamento teleológico, ao empregar esta designação somente para reações propositais que são controladas pelo erro da reação – ou seja, pela diferença entre o estado em um dado momento do objeto que se comporta e o estado final, interpretado como o propósito ... O conceito de teleologia guarda uma única coisa em comum com o conceito de causalidade: um eixo do tempo. Mas a causalidade implica uma relação funcional unidirecional, relativamente irreversível, enquanto que teleologia diz respeito a comportamentos, não a relações funcionais.91 Até então, a Ciência havia sempre compreendido máquinas como o pêndulo, o relógio ou a máquina a vapor como mecanismos desprovidos de organização, tida por pensadores como Kant 92 e Maupertuis93 como propriedade exclusiva dos seres vivos.94 No início dos anos 40, ganha corpo a idéia de máquina organizada (que a Cibernética denominará autômato) como uma noção universal, aplicável à compreensão tanto dos organismos vivos como dos artefatos auto-reguláveis construídos pelo homem, e num primeiro momento caracterizada pelas identidades percebidas (ainda) não nas formas de organização interna, mas no comportamento de ambos: A classificação de comportamentos proposta [por Wiener e seus pares] ... revela que uma análise comportamental uniforme é aplicável tanto a máquinas como a organismos vivos, independente da complexidade do comportamento ... Novas comparações entre organismos vivos e máquinas levam às seguintes inferências. Os métodos de estudo para os dois grupos são, até o momento, similares. Se deverão ser eles sempre os mesmos dependerá de haver ou não uma ou mais características qualitativamente distintas, únicas, presentes em um grupo e ausentes no outro. Tamanhas diferenças qualitativas não apareceram até agora. ... a análise comportamental de máquinas e organismos vivos é amplamente uniforme...95 90 O recurso a esta solução de compromisso ou a variantes dela é ainda hoje largamente utilizado; não obstante, ela foi criticada tanto em círculos acadêmicos mais conservadores (ver, por exemplo, as proposições para adoção do conceito de teleonomia, mais adiante), como naqueles mais abertos à interdisciplinaridade: “A distinção, tão fundamental na história da psicologia, entre comportamento voluntário e comportamento reflexo perde com eles [os princípios cibernéticos] todo sentido, bem como a diferença entre consciência e inconsciente” (DUPUY 1995 (1994): 52). 91 92 ROSENBLUETH, WIENER, BIGELOW, 1943: 23-24. Immanuel Kant (Prússia; 1724-1804); ref. hist.: Kritik der Urteilskraft. Berlin: Lagarde und Friederich, 1790. 93 Pierre-Louis Moreau de Maupertuis (França; 1698-1759); ref. hist.: Système de la nature. Essai sur la formation des corps organisés. 1a. ed. Alemanha (latim), 1751. 2a. ed. (francês), 1754. 94 95 Cf. ATLAN, 1992a (1979): 23. ROSENBLUETH, WIENER, BIGELOW, 1943: 21-22. 32 Pelos padrões científicos tradicionais, identidades entre os entes estudados somente são consideradas em termos de suas estruturas ou propriedades, as relações entre objeto de estudo e ambiente tomadas como meramente incidentais. Já por meio da Cibernética em sua fase nascente buscou-se discernir identidades entre sistemas a partir de seus comportamentos, independentemente de suas organizações internas. O que ainda levaria anos para ficar claro, e que somente seria empunhado por bandeira por uma nova geração de ciberneticistas, é que qualquer comportamento pode somente ser externamente considerado, e corresponde portanto antes a um atributo daquele que observa o sistema do que a uma propriedade intrínseca deste. Ainda que despercebida à época, uma tal perspectiva já se encontra latente em um dos textos fundadores da Cibernética (de 1943): Por comportamento entende-se qualquer mudança em um ente com respeito àquilo que o rodeia ... qualquer modificação em um objeto, detectável externamente, pode ser denotada como comportamento.96 (ênfase nossa) Entrementes, uma outra revolução conceitual já estava em curso, e elas não tardariam a se encontrar. Em 1931, para chegar a seu teorema da incompletude, Gödel 97 demonstrou ser possível codificar, por meio de números inteiros, os sistemas formais de lógica, ou seja, as linguagens matemáticas.98 Em 1936, Turing99 concebe em termos abstratos uma “máquina”, para a posteridade denominada máquina de Turing, na verdade um formalismo lógico para a descrição de todo e qualquer procedimento mecânico.100 No ano seguinte, ele iria demonstrar a natureza recursiva desses procedimentos mecânicos,101 com o que atraiu atenção para a natureza mecânica – mais, mecanizável – dos cálculos aritméticos. 96 97 Ibid., p. 18. Kurt Friedrich Gödel (EUA; n. Tchecoslováquia (Áustria-Hungria); 1906-1978). 98 Ver “Über formal unentscheidbare Sätze der Principia Mathematica und verwandter Systeme – I”. Monatshefte für Mathematik und Physik, vol. 38, pp. 173-198, 1931. 99 Alan Mathison Turing (Inglaterra; 1912-1954). 100 Ver “On Computable Numbers, with an Application to the Entscheidungsproblem”. Proceedings of the London Mathematical Society (2nd. series), vol. 42, pp. 230-265, 1936-1937. 101 Ver “Computability and Lambda-definability”. Journal of Symbolic Logic, vol. 2, n. 4, pp. 153-163, 1937. 33 Como, desde Gödel, a lógica simbólica já se havia tornado “aritmetizável”,102 a máquina conceitual de Turing foi percebida pela comunidade científica da época, com surpresa e choque,103 como o primeiro104 artefato materializável capaz de efetuar cálculos lógicos. Com efeito, a lógica que uma máquina de Turing é capaz de comportar é ilimitada, mas para isso ela foi idealizada como dotada de uma “fita” (isto é, uma memória) infinita – o que, evidentemente, não é materializável. Esse aspecto, porém, terminou subestimado diante das incomensuráveis potencialidades abertas, e que conduziriam ao advento dos computadores;105 assim, quando em 1938 Shannon106 concebe uma descrição lógica de uma disposição física (os circuitos elétricos),107 já pairava entre os cientistas a crença de que toda lógica (leia-se toda matemática) pudesse ser expressa em termos materiais, fossem estes os da Natureza ou os que viessem a ser concebidos pelo homem. É nesse contexto que, em 1943, McCulloch108 e Pitts109 propõem uma compreensão da mente humana como uma máquina lógica encarnada em uma máquina física (o cérebro), em um trabalho que configura um marco em neurofisiologia,110 ciência historicamente dividida entre paradigmas conhecidos como “continuísta” (ou reticularista) e “neuronista”. De acordo com as teses continuístas, o comportamento do cérebro só pode ser apreendido se este for considerado um todo indivisível, enquanto que o neuronismo, na melhor tradição cartesiana e reducionista, busca apreender o todo a partir das partes – os neurônios. Trata-se agora, porém – e nesse sentido a contribuição 102 É devido a isso que cálculos sofisticados (por exemplo, trigonométricos ou logarítmicos) são efetuados em computadores por meio de sua decomposição em um grande volume de somas e subtrações. 103 Cf. DUPUY, 1995 (1994): 55-56. 104 Um século antes, Charles Babbage (Inglaterra; 1791-1871) havia trilhado com razoável sucesso o caminho inverso, da máquina para a Matemática; com Turing, o que surge é uma concepção matemática para as máquinas. Ref. hist.: Passages from the Life of a Philosopher. London: Longman, Green, Longman, Roberts and Green, 1864. 105 As conseqüências – que se propagam até os dias atuais – dessa interpretação imperfeita são detalhadamente analisadas em DUPUY (1995 (1994)). 106 Claude Elwood Shannon (EUA; 1916-2001). 107 Ver “A Symbolic Analysis of Relay and Switching Circuits”. Transactions of the American Institute of Electrical Engineers, vol. 57, pp. 713-723, 1938. 108 Warren Sturgis McCulloch (EUA; 1898-1969); ver Embodiments of Mind. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1965. 109 Walter Harry Pitts Jr. (EUA; 1923-1969). 110 McCULLOCH, PITTS, 1965 (1943). Dupuy (1995 (1994): 70-71) chama atenção para o fato de que esse crédito lhes é negado, de forma geral, no âmbito desta disciplina; como exceção à regra, ver LETTVIN, Jerome Y. “Introduction to Volume 1”. In: McCULLOCH, Rook (ed.). The Collected Works of Warren S. McCulloch. Salinas (Califórnia): Intersystems Publications, vol. 1, 1989; e LETTVIN. “Warren and Walter”. In: McCULLOCH, op. cit. (supra), vol. 2, 1989. 34 de McCulloch e Pitts é decisiva – de uma articulação entre as partes, associadas em forma de redes em que cada neurônio formal (denominação que surgiria posteriormente, para distinção relativamente ao neurônio real), a cada momento (ou seja, a cada estado do neurônio), recebe ou não dos neurônios vizinhos uma estimulação sob forma de impulso, o que é digitalmente codificado como “0” ou “1”, com o que a soma ponderada do conjunto de impulsos, caso venha a exceder um determinado limiar, ativa o neurônio em questão e o leva a mudar de estado.111 A neurofisiologia continuísta privilegiava o tratamento matemático de variáveis contínuas (por isso, percebidas como analógicas) do tipo químico-hormonal, enquanto que a abordagem neuronista que McCulloch e Pitts impulsionam é vista como “descontínua”, por privilegiar os estados discretos (por isso, digitais) dos neurônios em redes, bem como seus impulsos sinápticos também discretos no tempo – em suma, o operar mecânico de uma lógica, encarnada na matéria (no título da obra de McCulloch, embodiments of mind). Nas primitivas redes neurais de McCulloch, originam-se as ciências cognitivas.112 A busca inicial por correlações de comportamento entre autômatos naturais e artificiais vai, aos poucos, sendo transcendida em uma busca de identidades não de conteúdo (nos seres vivos proteínas e neurônios, nas máquinas tubos eletrônicos de vácuo então denominados válvulas) mas de forma (a lógica interna: organização). Em 1947 Wiener cunha o termo cibernética, (do grego kubernetes: aquele que governa o curso de um navio), conferindo identidade própria a uma ciência centrada nas noções de comunicação (a circulação de informações internamente ao autômato, e entre o autômato e o ambiente) e controle113 (a auto-regulação do autômato frente às variações no ambiente). O piloto de um navio opera como um processador de informações, 111 A neurofisiologia prossegue operando por meio desta soma ponderada, aferida a partir do que hoje se denomina “pesos sinápticos”; McCulloch e Pitts consideraram todos os coeficientes de ponderação para cada sinapse como iguais a 1, ou seja, o neurônio seria ativado desde que o número de impulsos recebidos excedesse o limiar estipulado. 112 Posição firmada por Dupuy (1995 (1994)), que foi particularmente feliz ao discorrer sobre as razões pelas quais nas ciências cognitivas contemporâneas se desconhece, ou se prefere recusar, esta ancestralidade. 113 A tradução consagrada para o português do control cibernético é “comando”; assim se fala, por exemplo, em máquinas de comando numérico (em que a ênfase reside na instrução, enquanto que para o autômato cibernético em sentido amplo a ênfase está na regulação). Não obstante, entendemos ser “controle” mais apropriado, por expressar melhor o sentido de ajuste, de sintonia, enquanto que “comando” pressupõe, ainda que implicitamente, a idéia de uma instância de comando, o que não é, em absoluto, o caso. Lembramos ainda existirem, no idioma inglês, o verbo e o substantivo command, deliberadamente preteridos pelos fundadores da Cibernética em favor de control. 35 perseguindo a rota previamente traçada por meio de comandos que a todo tempo mudam (por exemplo, porque o vento mudou). Governar o curso de um navio equivale a controlá-lo por meio da comunicação com todos os demais navegadores envolvidos; é a comunicação o que faz do autômato um todo integrado, e é o controle o que regula seu comportamento. A Cibernética nasce portanto como uma teoria unificada da máquina e do vivente, fruto de um casamento entre Matemática e neurofisiologia; seu objetivo maior, o de desvendar os mecanismos lógicos que se supõe governar a mente humana. Nos termos de Wiener... A válvula eletrônica ... pode ser um instrumental bastante efetivo para o desempenho das operações desejadas ... Nós estamos começando a nos dar conta de que elementos tão importantes como os neurônios, os átomos do complexo nervoso de nosso corpo, realizam sua atividade sob praticamente as mesmas condições das válvulas eletrônicas ... o recente estudo dos autômatos, seja em metal ou em carne, é um ramo da engenharia de comunicações, e suas noções cardinais são as de mensagem, volume de perturbação ou “ruído” – um termo tomado ao engenheiro de telecomunicações – quantidade de informação, técnica de codificação, e assim por diante.114 ... e nos de McCulloch: Tudo o que nós aprendemos sobre os organismos nos leva a concluir que eles são não meramente análogos às máquinas, mas que eles são máquinas. As máquinas feitas pelo homem não são cérebros, mas os cérebros são uma variedade muito mal-compreendida de máquinas computacionais. A Cibernética contribuiu para derrubar o muro entre o mundo grandioso da Física e o gueto da mente.115 Tendo os ciberneticistas tomado a máquina de Turing por modelo universal, pelo que toda lógica poderia ser compreendida em termos mecânicos, e estes por sua vez em termos materiais, a abordagem daquela que foi sempre tida como a fronteira última da complexidade – a mente humana – foi em sua origem mecanicista e materialista.116 Ao longo das décadas seguintes, seria uma contínua evolução dessas idéias, como veremos, o que conduziria à Teoria da Complexidade (e não qualquer ruptura deliberada para com as tradições da Ciência – como muitos preferem vendê-la). 114 115 WIENER, 1948: 53-54. McCULLOCH, 1965a (1955): 163. 116 Dupuy (1995 (1994): 149-158) desmistifica a noção, hoje corrente, de que a Cibernética já teria se originado como uma ciência das “formas” (ou modos de organização), portanto imaterial; é o papel central da informação no pensamento cibernético o que induz a esta incorreta apreensão. Todavia, seria apenas bem mais tarde, a partir da reificação da noção de informação a reboque da cada vez mais dominante presença dos computadores nos diversos domínios sociais (sobre o que falaremos adiante), que tal aura passaria a ser evocada. 36 Assim, malgrado ser McCulloch o campeão dentre os cibernéticos desse determinismo do mental pelo material, é a seu gênio que são devidos diversos pioneirismos que irão se revelar decisivos para um posterior questionamento dessa mentalidade. Um deles é o papel desempenhado pelo feedback em sistemas complexos: McCulloch pretendeu demonstrar que as faculdades atribuídas à mente (como pensamento, percepção, memória, conhecimento e intencionalidade) poderiam ser deduzidas a partir dos ciclos de feedback positivo117 das redes de neurônios, pelo aproveitamento de “rastros” de acontecimentos passados em meio ao que, à época, eram denominados “circuitos reverberantes” de neurônios.118 Outro avanço decisivo foi a introdução do acaso nos modelos de redes como forma de simular o ruído oriundo do ambiente, por meio de redes de neurônios aleatoriamente conectadas119 (cabe ressalvar que, à exceção de Wiener,120 a primeira geração de ciberneticistas mostrava-se bastante refratária à idéia de que a desordem pudesse concorrer para a produção de ordem e organização).121 E, já em 1948,122 McCulloch 117 Em que o feedback, ao invés de atuar no sentido de manter estável o estado do neurônio (a isso corresponde o feedback negativo), exerce influências ao nível da rede como um todo, e é esta que poderá convergir rumo a alguma estabilidade. 118 “... nós consideramos ... a aprendizagem como uma mudança duradoura capaz de sobreviver ao sono, anestesia, convulsões e coma ... O sistema nervoso contém muitos caminhos circulares” (McCULLOCH, PITTS, 1965 (1943): 22); “é possível estabelecer-se atividade em um circuito que continue a reverberar em torno dele por tempo indeterminado, de modo que as Pr [propriedades] resultantes podem referenciar eventos passados a um grau indefinidamente remoto” (ibid., p. 30); “a atividade regenerativa dos círculos constitutivos torna infinda a referência relativamente ao tempo passado” (ibid., p. 35). 119 Em apresentação conduzida por Pitts na segunda conferência do ciclo conhecido como “Conferências Macy” organizado pela fundação filantrópica Josiah Macy Jr, ocorrida em Nova Iorque em outubro de 1946 e intitulada “Teleological Mechanisms and Circular Causal Systems”; ver também a apresentação por McCulloch em 2 de maio de 1946 como J. A. Thompson lecture em “Finality and Form in Nervous Activity”. American Lecture Series, publication n. 11, Springfield (Illinois): Charles C. Thomas, 1952. Reimpresso em McCULLOCH, op. cit. (nota 108, p. 34), pp. 256-275, 1965; cf. DUPUY, 1995 (1994): 63, 197. 120 Que advogava uma visão de mundo em que predomina o aleatório: “Em um mundo governado por uma sucessão de milagres realizados por um Deus irracional, sujeito a caprichos súbitos, nós deveríamos ser forçados a aguardar cada nova catástrofe em estado de perplexa passividade. Nós temos uma imagem de um tal mundo no jogo de croquê em Alice no País das Maravilhas, onde ... as regras são o decreto da temperamental e imprevisível Rainha de Copas” (WIENER 1948: 62-63); ver também HEIMS, Steve. John von Neumann and Norbert Wiener: From Mathematics to the Technologies of Life and Death. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1980; cf. DUPUY, 1995 (1994): 159160. 121 Uma perspectiva incorporadora da desordem se consolida apenas a partir de Ashby (sobre quem falaremos adiante), cujas idéias despertaram reações indignadas ao serem expostas à comunidade cibernética na nona Conferência Macy, em 1952. Ver a leitura desse episódio por Dupuy (1995 (1994): 201-210); para a transcrição desse debate, ver von FOERSTER, Heinz, MEAD, Margaret, TEUBER, Hans L. (eds.). Cybernetics: Circular Causal and Feedback Mechanisms in Biological and Social Systems – Transactions of the Ninth Conference, New York, Mar. 20-21, 1952. New York: Josiah Macy, Jr. Foundation, pp. 73-108, 151-154, 1953. 37 reporta o aprendizado como o processo de estabelecimento de novas conexões (ou seja, interações) entre os neurônios:123 Wiener calculou que o volume máximo de informação que nossos cromossomos podem portar ... poderia especificar todas as conexões de dez mil neurônios, se isso fosse tudo o que houvesse por ser feito. Uma vez que nós possuímos 1010 neurônios, nós apenas podemos herdar o esquema geral de estrutura dos nossos cérebros. Todo o restante deve ser deixado ao acaso. O acaso inclui a experiência, que dá origem à aprendizagem. Ramon y Cajal124 indicou que aprendizagem é o desenvolvimento de novas conexões.125 Ainda outro pioneirismo de McCulloch foi o recurso à física de sistemas desordenados, em que os processos de aprendizagem nas redes de neurônios eram comparados a processos de imantação.126 O estatuto do modelo científico Quem primeiro se deu conta das limitações do determinismo com que os cibernéticos compreendiam a mente foi von Neumann,127 que destoava dos demais ciberneticistas por sua atitude independente128 e não-dogmática. Como intuía que o modelo de uma máquina lógica equivalente à máquina de Turing era insuficiente para dar conta das faculdades superiores da mente, von Neumann propõe-se a dimensionar o tamanho do autômato capaz de tais desempenhos, e conclui que o número de neurônios formais necessários à reprodução dessas faculdades é, de muito, superior ao número de neurônios reais contidos no cérebro.129 122 Em apresentação no simpósio Cerebral Mechanisms in Behavior, promovido pelo Hixon Fund Committee em Pasadena (Califórnia) no California Institute of Technology, de 20 a 25 de setembro de 1948. 123 Cf. DUPUY, 1995 (1994): 63, 156. 124 Santiago Ramón y Cajal (Espanha; 1852-1934); a referência na qual McCulloch se apoiou foi Histologie du système nerveux de l’homme et des vertébrés. Paris: Maloine, 1909-1911. 2 vols. Do original: Textura del Sistema Nervioso del Hombre y de los Vertebrados. Madrid: Imprenta y Librería de Nicolás Moya, 1899-1904. 3 vols. 125 126 McCULLOCH, 1951: 55. Ver McCULLOCH, op. cit. (nota 119, p. 37), 1952. 127 John von Neumann (EUA; n. János von Neumann, Hungria (Áustria-Hungria); 1903-1957); ver The Computer and the Brain. New Haven (Connecticut): Yale University Press, 1958. 128 Heinz von Foerster o chamava “inside-outsider”; cf. DUPUY, 1995 (1994): 79-81, 95, 192. 129 Cf. von NEUMANN, 1951. Von Neumann apresentou esta postulação em 1948, no simpósio Cerebral Mechanisms in Behavior, promovido pelo Hixon Fund Committee em Pasadena (Califórnia) no California Institute of Technology, de 20 a 25 de setembro. 38 Num encontro do grupo do qual estaria ausente,130 von Neumann envia aos demais uma mensagem em que afirma que 1010 neurônios formais em um autômato são claramente insuficientes para dar conta de faculdades como a memória.131 Repetidas vezes, ele afirmará que a lógica formal, em seu estado presente, era demasiado rígida para poder ser elevada à condição de lógica interna dos autômatos, naturais ou artificiais, e incapaz de descrever as faculdades superiores da mente de forma completa e sem ambigüidade: Nós aqui estamos lidando com porções da lógica com as quais nós não temos praticamente nenhuma experiência passada. A ordem de complexidade está fora de qualquer proporção relativamente a qualquer coisa que já tenhamos conhecido. Nós não temos o direito de assumir que as notações e procedimentos lógicos utilizados no passado sejam adequados a esta parte da temática. Não está de todo certo que, neste domínio, um objeto real não deva constituir a descrição mais simples de si próprio, ou seja, qualquer tentativa de descrevê-lo pelo método usual da literatura ou da lógica formal pode levar a algo menos administrável e mais complicado ... Assim, não é de todo improvável que seja fútil procurar por um conceito lógico preciso.132 O que von Neumann procura dizer (não em termos tão crus) é que a principal ferramenta da Ciência e sua linguagem por excelência, a Matemática, esbarrava em seus próprios limites. Para fazer face a tal limitação, ele vislumbra uma saída nas crescentes capacidades dos então ainda rudimentares computadores, máquinas que poderiam ser postas pelo homem a sondar, veloz e incansavelmente, domínios de possibilidades por mais vastos que fossem, como que tateando em busca das respostas até as encontrar (como veremos adiante, essa antevisão de von Neumann mostrar-se-á decisiva ao advento da Teoria da Complexidade). Para von Neumann, o que permite estabelecer uma fronteira entre autômatos “simples” e “complexos” é o grau de dificuldade envolvido na descrição de seu comportamento:133 descrever o comportamento de autômatos simples é tarefa mais fácil que descrever sua estrutura (por exemplo, para uma máquina, descrever seus circuitos elétricos); já para autômatos complexos dá-se o inverso, tornando-se mais fácil descrever sua estrutura do 130 A sexta Conferência Macy, intitulada Circular Causal Mechanisms in Biological and Social Systems, em Nova Iorque em março de 1949. 131 Cf. DUPUY, 1995 (1994): 69. Ver também von FOERSTER, Heinz (ed.). Cybernetics – Circular Causal Mechanisms in Biological and Social Systems – Transactions of the Sixth Conference, New York, Mar. 24-25, 1949. New York: Josiah Macy, Jr. Foundation, pp. 12-26, 1950. 132 133 von NEUMANN, 1951: 24. Remeter à p. 3. 39 que descrever por completo e sem ambigüidade os comportamentos de que ele é capaz, o que faria o grau de complexidade da descrição tender ao infinito. Todo modelo matemático de um objeto complexo torna-se, ele próprio, um objeto complexo. Cabem aqui algumas palavras a respeito da origem dos modelos científicos. Deve-se a Newton,134 mais uma vez a partir das contribuições prévias de Hobbes,135 a consolidação do edifício metodológico da ciência clássica, pela integração das abordagens indutiva de Bacon136 (calcada na experimentação empírica) e dedutiva de Descartes137 (calcada no raciocínio matemático). Pôde ele fazer isso por ter concebido uma ferramenta – o cálculo138 com suas equações diferenciais – que lhe permitiu descrever a evolução, de uma forma contínua no tempo, dos comportamentos sob estudo. Após Newton, consolidava-se o modelo como o centro da metodologia científica: uma descrição matemática dos fenômenos que é empiricamente validável em laboratórios ou experiências de campo. A afirmação de uma continuidade no comportamento dos fenômenos veio confirmar e reafirmar a noção (precedente) de causalidade, uma causalidade unidirecional que, de acordo com a mentalidade mecanicista vigente, estaria necessariamente direcionada das partes para o todo. Consolidava-se assim também o reducionismo: o comportamento do todo visto como efeito necessariamente causado pela mecânica dos comportamentos das partes (e portanto a eles redutível); como ferramenta para o desvendamento dessas correlações, o modelo. 134 135 Ver referência histórica à nota 68, p. 28. Ver referência histórica à nota 67, p. 28. 136 Francis Bacon (Inglaterra; 1561-1626); ref. hist.: Novum organum, sive indicia vera de interpretatione naturae. London: John Bill, 1620. 137 René Descartes (Holanda; n. França; 1596-1650); ref. hist.: Discours de la méthode pour bien conduire sa raison et chercher la verité dans les sciences. Leiden (Holanda): Jean Maire, 1637. 138 A invenção do cálculo é também atribuída a Leibniz (Gottfried Wilhelm Leibniz; Ducado de Hanover (hoje Alemanha); n. Eleitorado da Saxônia (hoje Alemanha); 1646-1716). De um modo geral é aceito (não sem alguma controvérsia) que ambos tenham desenvolvido o cálculo de modo independente, Newton primeiro (na década de 1660), a partir da noção de limite, e Leibniz logo a seguir (na década de 1670), a partir do conceito de infinitesimais; não obstante, Leibniz foi o primeiro a publicar suas descobertas. Ref. hist. (Newton): ver nota 68, p. 28; refs. hist. (Leibniz): “Nova methodus pro maximis et minimis, itemque tangentibus, quae nec fractas, nec irrationales quantitates moratur, et singulare pro illis calculi genus”. Acta Eruditorum. Leipzig (Alemanha): J. Gross und J. F. Gleditsch, vol. 3 (Oct.), pp. 467-473, 1684; e “De geometria recondita et analysi indivisibilium atque infinitorum”. Acta Eruditorum, vol. 5 (Juni), pp. 292-300, 1686. 40 O reducionismo e a modelagem mostraram-se particularmente bem-sucedidos para explicações no campo da Física, enquanto que fenômenos como a vida e a psique permaneceram irredutíveis; para estes, persistiram explicações alternativas, de cunho substancialista, como o vitalismo (os seres vivos animados por uma energia vital) e o dualismo (as idéias e demais estados mentais tidos como imateriais). Já no século XIX, com o advento da termodinâmica, o decurso natural da evolução no mundo físico foi visto como rumando para a máxima entropia (ou seja, para o equilíbrio térmico), noção que foi estendida por Boltzmann139 para uma distribuição homogênea dos estados moleculares – uma máxima desorganização; posto de outra forma, a matéria não se organizaria sozinha. Instâncias de organização crescente (como a vida, a psique e a cultura) chegaram a ser percebidas como improbabilidades estatísticas ou mesmo aparências ilusórias, ao passo que explicações como o vitalismo e o dualismo foram se tornando cada vez menos aceitáveis perante a ortodoxia científica. O reducionismo ainda hoje ocupa vastos espaços: com a descoberta do DNA sobreveio todo um arcabouço teórico (predominante porém jamais consensual, como veremos) inspirado no funcionamento dos computadores e centrado na idéia de uma programação genética, que intenta explicar a evolução biológica e suas crescentes complexidades por sua redução a mecanismos físico-químicos ao nível molecular; no que tange à mente, boa parte dos esforços (até aqui infrutíferos) das ciências cognitivas estiveram voltados à identificação dos processos físicos supostamente causadores dos estados mentais. De acordo com Dupuy,140 a partir de von Neumann o estatuto científico do modelo matemático torna-se carente de redefinição, uma vez que ele é despojado de sua principal finalidade – a de ser resolvível.141 O modelo, até então subordinado à Natureza real que ele procura reproduzir, emancipava-se dela e, para fins metodológicos, tornavase equivalente a ela. No que tange aos sistemas complexos (como a vida e a psique), o modelo deixava de ser o espaço do cientista para validação empírica de suas hipóteses; doravante, tal papel viria a ser exercido pela simulação em computadores (Figura 1), e foi esta crença o que impulsionou von Neumann (que se refere a um “uso heurístico” para os computadores)142 a lançar-se em seu desenvolvimento. O objeto a ser testado, tal 139 Ludwig Eduard Boltzmann (Áustria; 1844-1906). 41 como se componente da Natureza fosse, seria doravante o modelo matemático em si, a especulação a respeito da realidade cuja validade se deseja estimar. Figura 1: Antevisão de von Neumann quanto à modelagem de sistemas complexos. Nos termos de von Neumann: ... métodos completamente novos serão necessários para problemas não-lineares ... de um ponto de vista heurístico ... existem vastas áreas em matemática pura em que ... a computação, que não é tão matemática assim ... no sentido tradicional ... poderia ser uma ferramenta mais flexível e mais adequada.143 O enfoque alternativo que von Neumann delineia recusa não apenas a pretensa universalidade para a máquina de Turing como a mentalidade determinista que lhe deu origem. Uma renovada abordagem da complexidade pressupõe que esta possa ser 140 Cf. DUPUY, 1995 (1994): 79-81, 188-192. 141 A matemática, havia séculos, já não era resolvível em campos como a dinâmica dos fluidos, em que os fenômenos são predominantemente não-lineares; acreditava-se, porém, que ela progrediria rumo a soluções para impasses como esse. Seria somente na década de 70, com o advento da Teoria do Caos (em que os atratores dos fenômenos são mapeados não mais analiticamente, mas por meio de computadores que experimentam possibilidades e selecionam todas as que se mostram factíveis; cf. nota 8, p. 3) que a antevisão de von Neumann passaria ao terreno do óbvio. 142 Cf. von NEUMANN, 1966a. Trata-se de transcrição de palestra proferida na Universidade de Illinois em dezembro de 1949. 143 Ibid., pp. 34-35. 42 descrita apenas parcialmente, e de modo probabilístico; o objetivo a que se pode almejar é uma melhor compreensão das propriedades gerais dos sistemas estudados. É a partir desse novo enfoque que a theory of automata, que versa sobre objetos reais, naturais ou artificiais, se verá transcendida em automata theory,144 pura matemática “empiricamente” (nos termos de von Neumann, heuristicamente) testável por meio de simulações computacionais. Tamanho desprendimento foi recusado por conservadores como McCulloch: ... nos originais de Pitts e McCulloch de 1943 ... as expressões proposicionais temporais são eventos que se dão no tempo e no espaço, em uma rede fisicamente real. Os neurônios propostos, apesar de todas as suas extremas simplificações, são ainda neurônios físicos, tão verdadeiramente quanto os átomos do químico são átomos físicos.145 ... Os fatos [temas científicos] com que nos ocupávamos ao longo dos anos de 1947 a 1963 eram, simplesmente, que os cérebros reais ... são compostos por componentes não-confiáveis, e capazes de computar em presença de ruído. A teoria dos autômatos mostrou-se mais instigante que a automata theory divorciada dos autômatos.146 Um processo de bifurcação encontrava-se em marcha. Enquanto que aqueles que se mantinham fiéis ao projeto fundador de desvendar a máquina natural que se supõe ser a mente iriam, frente às limitações da abordagem determinista original, desenvolver as direções delineadas por von Neumann e compor a chamada “segunda Cibernética” que desaguaria na Teoria da Complexidade, ortodoxos como McCulloch, mais fiéis ao sonho da máquina de Turing materializável, preferiram se desvencilhar dos rigores da neurofisiologia e privilegiar a abstração, na busca de uma reprodução da mente na máquina artificial que acaba de nascer (não por acaso inspirada na máquina de Turing), o computador. O projeto cibernético viria assim a cindir-se entre aqueles, que enxergavam uma máquina na mente, e estes, que sonhavam construir uma mente na máquina, e que viriam a fundar o campo da inteligência artificial.147 Ora, uma vez tendo sido postulado ser o cérebro uma máquina natural, a indagação quanto à viabilidade de “máquinas pensantes” era uma questão de tempo. A mídia americana encarregou-se de promover essa especulação com uma série de artigos 144 Para uma apresentação das bases gerais, originadas na teoria dos autômatos, da então nascente automata theory, ver BOOTH, Taylor L. Sequential Machines and Automata Theory. New York: John Wiley and Sons, 1967. 145 146 McCULLOCH, 1965b: 393. Ibid., p. 394. 147 A existência desse processo de cisão é outra posição firmada por Dupuy (1995 (1994)), que o examina em profundidade, e a seus desdobramentos. 43 sensacionalistas no início de 1950,148 recebidos com lamentação pelos ciberneticistas, que os atribuíram ao primarismo da mídia e do público.149 A perspectiva, porém, era tentadora demais para permanecer inexplorada, e antes do final dessa década experimentos estariam sendo deslanchados. Em paralelo, os primeiros computadores tornaram-se conhecidos como “cérebros eletrônicos”, e os engenheiros que os projetaram se deixam também levar pela onda: assim, persistem na linguagem corrente, até hoje, termos como “memória” e “linguagem” empregados como atributos de computadores. Entropia e complexidade Nesse ínterim, foi novamente Shannon no campo da engenharia elétrica quem veio contribuir com a Cibernética, dessa vez descortinando o caminho para as descrições probabilísticas que von Neumann viria advogar: ao pesquisar o problema da perda de conteúdo de mensagens ao longo de linhas de transmissão devido ao ruído, Shannon chega a uma teoria estatística da informação,150 inspirada na noção de entropia. Convém aqui outra digressão histórica, desta vez para elucidar esse conceito, pivô de toda sorte de confusões e mal-entendidos.151 A primeira lei da termodinâmica, ou lei da conservação da energia (da década de 1840), dispõe que nos processos de conversão de energia (por exemplo, de potencial para cinética, ou de elétrica para térmica) a quantidade total de energia envolvida é conservada. A segunda lei da termodinâmica (da década seguinte) assevera que, embora a totalidade da energia seja conservada, a sua parcela aproveitável (ou seja, disponível para futuros processos de conversão) é sempre decrescente (por exemplo, alguma parcela da energia resultante da explosão da gasolina nos cilindros de um motor de carro converge espontaneamente para o aquecimento desse motor, não podendo ser aproveitada como força motriz para as rodas). Isso 148 149 150 Ver, por exemplo, “The Thinking Machine”, Time, vol. 55, n. 4, capa, pp. 54-60, Jan. 23, 1950. Cf. DUPUY, 1995 (1994): 111-112. SHANNON, 1949 (1948). 151 Alguns elementos dessa digressão foram extraídos de KLYCE (2000). Outras visões para esta mesma problemática podem ser encontradas em ATLAN (1992a (1979): 27-35) e em TONNELAT, Jacques. Thermodynamique et biologie. Paris: Maloine, vol. 1 (Entropie, Désordre et Complexité), 1977, vol. 2 (L’Ordre Issu du Hasard), 1978. 44 implica que um sistema fechado (ou seja, que não seja reabastecido de energia do exterior) necessariamente convergirá para o estado de equilíbrio térmico, ou seja, para uma mesma temperatura em todos os seus pontos (o que, óbvio hoje, à época foi surpreendente, pois até então acreditava-se que o calor fosse um fluido, quando na verdade ele resulta da diferença entre temperaturas). Somente em 1865 Clausius152 introduz o conceito nada intuitivo de entropia,153 antes uma abstração que uma manifestação física, expresso em joules (ou calorias) por grau (ou seja, uma taxa entre energia e temperatura), que acabou por vingar como parâmetro para mensuração desse inelutável processo de dissipação da energia disponível, e logo passou a referencial para enunciação da (precedente) segunda lei (por exemplo sob a forma “a entropia em um sistema fechado é sempre crescente”). Posteriormente (em 1877), Boltzmann utilizou-se da noção de entropia para caracterizar a evolução da distribuição estatística dos estados moleculares em um sistema (posições, velocidades etc.) rumo à uniformidade,154 após o que o estatuto de universalidade155 conferido à segunda lei acabou inadvertidamente estendido, do campo da energia para o da organização da matéria. Boltzmann demonstrou seu ponto com um experimento em que se misturam dois gases distintos: eles se expandem, e com o tempo a mistura homogeneiza-se. Uma máxima uniformidade na distribuição dos estados moleculares significa a ausência de qualquer ordenação no sistema – uma máxima desordem. Ora, entender que esta “entropia” será sempre crescente equivale a afirmar que a matéria não se organiza sozinha, o que contradiz a evolução biológica. Ocorre que a entropia de Boltzmann é uma grandeza matemática, enquanto que a entropia original da termodinâmica é uma grandeza física; elas somente podem relacionar-se por analogia. Com efeito, para que Boltzmann possa atribuir realidade física à sua entropia ele 152 Rudolf Julius Emanuel Clausius (Alemanha (n. Prússia); 1822-1888); ref. hist.: “Über verschiedene für die Anwendung bequeme Formen der Hauptgleichungen der mechanischen Wärmetheorie”. Poggendorffs Annalen, vol. 125, pp. 353-400, 1865. 153 Do grego entrope: transformação; Clausius escolheu esta raiz para criar um termo similar à palavra “energia”. 154 Ref. hist.: “Über die Beziehung zwischen dem zweiten Hauptsatze der mechanischen Wärmetheorie und der Wahrscheinlichkeitsrechnung respektive den Sätzen über das Wärmegleichgewicht”. Wiener Berichte (Sitzungsberichte der Kaiserlichen Akademie der Wissenschaften), vol. 76, pp. 373–435, 1877. 155 Os enunciados de Clausius em seu artigo de 1865 (ver nota 152, p. 45) para as leis foram: primeira lei – “A energia do Universo é constante”; segunda lei – “A entropia do Universo tende a um máximo”. 45 multiplica o seu valor por uma constante.156 Há ainda outra distinção de natureza: ao contrário da entropia termodinâmica, uma grandeza absoluta, a entropia de Boltzmann versa sobre a distribuição da matéria no espaço, e é portanto relativa ao mapeamento em subdivisões, sempre arbitrário, adotado para o espaço justamente para que se possa medir a entropia – muda a escala de divisão, muda a entropia. Em resumo: a entropia termodinâmica é necessariamente crescente; não há, contudo, bases seguras para afirmar-se o mesmo a respeito da entropia a que se pode chamar “organizacional” (ou “configuracional”). É claro que, em um sentido intuitivo, presumese que um aumento de organização esteja associado a algum consumo de energia – mas daí a estabelecer-se uma equivalência entre leis térmicas empíricas e “leis” organizacionais supostas vai alguma distância (ou: conhecer as relações entre energia e matéria não implica conhecer as relações entre energia e organização da matéria). Desse modo, as duas distintas concepções de entropia acabaram confundidas como se uma única fossem, e assim biólogos puderam (podem) considerar os sistemas biológicos como de entropia decrescente (trata-se da organizacional) devido a serem abertos, por receber energia do Sol; se o Sol for incluído como parte do sistema, a entropia (aqui, termodinâmica) torna-se crescente: usa-se uma mesma palavra para referenciar coisas diferentes. E, mesmo se não são confundidos os conceitos, a segunda lei continua tomada por válida para ambos os domínios, com o que a evolução biológica na Terra por decréscimo de entropia (organizacional) pôde ser compreendida como uma improbabilidade estatística, no contexto da totalidade do Universo. 156 Posteriormente denominada K (constante de Boltzmann), que relaciona a energia cinética média de uma molécula à sua temperatura. 46 Quando em 1948 Shannon formula a sua noção de entropia (a que poderíamos chamar “informacional”) ele estava aparentemente ciente de todo esse imbroglio, pois a concebe como uma grandeza estritamente matemática, omite-se quanto a especificar unidades de medida e divisões no espaço,157 e desvencilha-se da constante de Boltzmann.158 A escolha do nome “entropia” para sua medida contribuiu para acirrar ainda mais as controvérsias, e assim até hoje a Teoria da Complexidade encontra-se impregnada de confusões relativas à validade ou não da segunda lei. Esta é uma saborosa “confissão” atribuída a Shannon: Minha maior preocupação era do que chamá-la. Eu pensei em chamá-la “informação”, mas esta palavra estava por demais utilizada, então decidi chamá-la “incerteza”. Quando discuti isso com John von Neumann, ele teve uma idéia melhor. Von Neumann me disse, “Você deveria chamá-la entropia, por dois motivos. Em primeiro lugar, a sua função de incerteza tem sido utilizada na mecânica estatística [referia-se aos postulados de Boltzmann] sob essa denominação, logo ela já tem um nome. Em segundo lugar, e mais importante, ninguém sabe direito o que é entropia, assim você sempre terá a vantagem em um debate”.159 Shannon opta por definir entropia como a quantidade de informação transmitida em uma comunicação, atribuindo assim à grandeza “informação” um significado técnico específico160 (paradoxalmente, oposto à sua acepção corrente). Para o engenheiro de linhas de transmissão, importa que as quantidades de informações enviadas sejam corretamente recebidas, quaisquer que sejam os seus conteúdos, relevantes ou fúteis. Assim, “informação” não se refere ao significado (reconhecimento) do que é transmitido; ao contrário, ela é vista como uma medida da incerteza (desconhecimento) acerca do que é transmitido. Ou seja, informação é aquilo que o receptor (ainda) não conhece pois, se ele já a possui, não se pode dizer que tenha havido uma comunicação. Segundo Shannon, a quantidade de informação contida em um único símbolo de uma mensagem corresponde à probabilidade do aparecimento deste símbolo na mensagem; quanto mais improvável, a priori, a ocorrência de um dado símbolo, mais informativa, a 157 “Há uma diferença importante entre as entropias contínua e discreta. No caso discreto a entropia mede, de um modo absoluto, a probabilidade da variável aleatória. No caso contínuo a mensuração é relativa ao sistema de coordenadas. Se nós alterarmos as coordenadas a entropia vai, em geral, mudar” (SHANNON, 1949 (1948): 57). 158 159 “... a constante K meramente corresponde à escolha de uma unidade de medida” (ibid., p. 20). TRIBUS, McIRVINE, 1971: 180. 160 Porque ele não pôde utilizar o termo sinal (signal), o que seria o correto, uma vez que este termo já estava associado às características elétricas das linhas de transmissão. 47 posteriori, será a sua ocorrência. Calculando-se a quantidade de informação contida em cada símbolo do código empregado (por exemplo, as letras do alfabeto) pode-se, estatisticamente, calcular a quantidade média de informação por símbolo; a quantidade total de informação na mensagem será igual a essa quantidade média de informação por símbolo multiplicada pelo número de símbolos da mensagem. Shannon havia descoberto que a solução para o problema da distorção pelo ruído na comunicação reside na aplicação de redundância à mensagem, ao constatar sua existência na comunicação natural humana. Por exemplo, uma conversação em um ambiente ruidoso (como uma festa) não impede a compreensão do que é dito, posto que o idioma comporta uma significativa dose de redundância que permite a apreensão daquelas palavras ouvidas de forma truncada. Pelo mesmo motivo, leitores são capazes de detectar erros de digitação nas mensagens escritas que recebem (Shannon estimou que a redundância ocupa cerca de 50% da língua inglesa). Quanto maior for a variedade própria a cada conjunto de símbolos (código) empregado, mais incerteza haverá quanto a qual será o próximo símbolo, e maior a redundância necessária a garantir uma comunicação confiável frente ao ruído – o que por sua vez implica numa redução da quantidade total de informação passível de ser transmitida. Não por outro motivo Shannon concebeu o bit,161 cuja variedade é mínima (zero ou um), como a unidade de informação ideal à codificação da comunicação. Ao resolver seus problemas em transmissão de mensagens, Shannon acabou também por oferecer aos ciberneticistas a “teoria do ruído” que eles tanto perseguiam, incorporou a mensuração justamente no campo cibernético por excelência, o da informação, e sepultou de vez a ambigüidade pela qual o feedback havia sido visto como um “retorno de energia”. Já em 1949 162 von Neumann buscava tratar a grandeza “complexidade” (mais precisamente, o potencial para a auto-organização associado) nos termos de Shannon, sem ter ainda encontrado (embora usando-o!) um termo que a expressasse: Existe um conceito que será definitivamente útil aqui, de que temos uma certa idéia intuitiva, mas que é vago, não-científico, e imperfeito. Este conceito claramente pertence ao campo da 161 162 Contração das duas primeiras com a última letra na expressão binary digit. Em palestra proferida na Universidade de Illinois, no mês de dezembro. 48 informação, e considerações em termos termodinâmicos são relevantes para ele. Eu não conheço nenhum nome adequado para ele ... Trata-se efetivamente ... da potencialidade para fazer coisas. Eu não estou pensando a respeito de quão complicado é o objeto, mas de quão complicadas são as suas operações voltadas a propósitos. Nesse sentido, um objeto é do mais alto grau de complexidade se ele puder fazer coisas muito difíceis e complicadas.163 (ênfases nossas) Nessa época, von Neumann passa a dedicar-se às duas questões que considerava essenciais ao tratamento da complexidade (à época, os cientistas referiam-se a graus de liberdade, o número de variáveis necessárias à descrição completa de um fenômeno) e cuja resolução (esta empreitada foi interrompida por sua morte prematura)164 conduziria a uma teoria unificada dos autômatos naturais e artificiais: em que condições um autômato constituído por componentes não-confiáveis adquire confiabilidade;165 e com que princípios de organização um autômato deve contar para se auto-reproduzir, ou seja, para gerar cópias de si mesmo por sua vez capazes de gerar novas cópias, tal como na reprodução biológica166 (lembrando que o conceito de autômato correspondia ao conjunto de hardware e software; um exemplo contemporâneo de software autoreprodutor são os vírus de computadores). Em 1951, ele concebe seu projeto para um autômato auto-reprodutor a partir da troca de idéias com Ulam,167 que lhe recomenda uma disposição em grade de um grande número de autômatos idênticos (chamados células) e identicamente programados, interagindo com seus vizinhos imediatos de acordo com regras simples e fixas, num arranjo a que denominou tesselation structure, e que seria posteriormente rebatizado como redes de autômatos celulares (cellular automata).168 É atribuído um estado inicial a cada uma das células que, de forma sincronizada (paralelismo), definem seu novo estado em função do estado atual e do estado das células vizinhas às quais se encontram conectadas. Presume-se que o comportamento coletivo de um grande número de células em 163 von NEUMANN, 1966b: 78. 164 Postumamente, Arthur W. Burks editaria e complementaria seus manuscritos, em von NEUMANN, John. Theory of Self-reproducing Automata. Urbana (Illinois): University of Illinois Press, 1966. 165 Ver “Probabilistic Logics and the Synthesis of Reliable Organisms from Unreliable Components”. In: SHANNON, Claude E., McCARTHY, John (eds.). Automata Studies. Princeton (Nova Jérsei): Princeton University Press, pp. 43-98, 1956. 166 Ver von NEUMANN, op. cit. (nota 164, p. 49), 1966; as linhas gerais dessa investigação foram delineadas primeiramente em von NEUMANN (1951). 167 Stanislaw Marcin Ulam (EUA, n. Polônia (Áustria-Hungria (hoje Ucrânia)); 1909-1984). 168 Para um estudo compreensivo dos autômatos celulares, ver WOLFRAM, Stephen (ed.). Theory and Applications of Cellular Automata. Singapore: World Scientific Publishing, 1986; e TOFFOLI, Tommaso, MARGOLUS, Norman. Cellular Automata Machines: A New Environment for Modeling. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1987. 49 interação possa, em um plano abstrato, simular os comportamentos complexos dos seres vivos, o que foi posteriormente verificado em redes de autômatos celulares mais sofisticadas como as redes booleanas aleatórias (como veremos). A autonomia dos sistemas Ao longo das décadas de 50 e 60, quem dá continuidade à jornada de von Neumann em busca da complexidade é Ashby,169 referenciado na presumida universalidade para a formulação de Shannon (afinal, inspirada na Física). No interior das linhas de transmissão de Shannon, contava-se haver mais mensagem que ruído; Ashby viu no cérebro um “canal de transmissão de informações” de caráter oposto, em que, relativamente a cada mensagem em trânsito, haveria muitíssima mais capacidade disponível – “ruído”, entendido como variedade. A primeira rede de neurônios construída por McCulloch para o estudo de seu comportamento coletivo possuía somente seis neurônios;170 o cérebro humano possui cerca de 40 bilhões deles, e estima-se que para cada neurônio o número de sinapses é da casa da centena, o que resulta em alguns trilhões de ligações estritamente físicas – sem levar em conta que a atividade de cada neurônio influencia neurônios distantes, a ele ligados apenas indiretamente. McCulloch via no cérebro uma abundância de capacidades excedentes (que ele chamou redundantes), o que explicaria porque o funcionamento do cérebro é confiável a despeito de suas partes, os neurônios, não o serem (pois a todo instante morrem neurônios sem aviso prévio, e mudam os limiares de ativação das sinapses; uma única dose de bebida alcoólica altera toda a ecologia cerebral). Ocorre que apenas em parte são as funções cerebrais dedicadas e localizadas. Para McCulloch, é a catálise circunstancial de “informação” relevante em um dado conjunto de neurônios o que leva 169 William Ross Ashby (Inglaterra; 1903-1972); ver ASHBY (1952, 1956), e a coletânea de seus artigos em CONANT, Roger C. (ed.). Mechanisms of Intelligence: Ashby’s Writings on Cybernetics. Seaside (Califórnia): Intersystems Publications, 1981. 170 Ver McCULLOCH, Warren S. “A Heterarchy of Values Determined by the Topology of Nervous Nets”. Bulletin of Mathematical Biophysics, vol. 7, n. 2, pp. 89-93, 1945; reimpresso em McCULLOCH, op. cit. (nota 108, p. 34), pp. 40-45, 1965. 50 alguns deles a “comandar” os demais, numa atividade coordenada. O cérebro seria assim dotado de “redundância de comando potencial”:171 a importância de cada neurônio é, potencialmente, a mesma; a cada momento, é a capacidade de um dado neurônio de contribuir para o resultado global o que lhe confere proeminência em relação aos demais. Já Ashby compreendeu o cérebro como um gigantesco repositório de variedade (ou seja, diversidade),172 a contrapartida da redundância que Shannon identificara nos códigos de comunicação. É preciso variedade para que possa haver seleção (escolha); o campo de possibilidades em que um autômato pode perseguir sua auto-regulação é assim delimitado pelo volume de variedade disponível. Nos termos dos princípios cibernéticos clássicos, a comunicação está associada à circulação da variedade (de modo a fazer uso da riqueza das informações, ou seja, da própria variedade) enquanto que o controle requer sua redução por seleção. Um autômato que se proponha a controlar variações no ambiente deve, pois, possuir suficiente variedade interna para poder representá-las: “todo regulador ... tem de modelar aquilo que ele regula ... Não pode mais haver dúvida quanto a se o cérebro modela o seu ambiente: ele está obrigado a isso”.173 Seguindo a trilha aberta por von Neumann, Ashby concebe a complexidade como pertencente a uma classe de estruturas definíveis apenas em parte, e apenas de modo estatístico;174 ele procurou então identificar quais seriam as suas propriedades gerais, que fossem também universais. 171 Ver “Agatha Tyche: Of Nervous Nets – the Lucky Reckoners”. In: Mechanisation of Thought Processes: Proceedings of the Symposium of the National Physical Laboratory, Teddington, England, Nov. 24-27, 1958. London: Her Majesty’s Stationery Office, vol. 2, pp. 611-634, 1959. Reimpresso em: McCULLOCH, op. cit. (nota 108, p. 34), pp. 203-215, 1965. 172 Ashby não emprega o termo “diversidade”, mas seu conceito de variedade tem esse sentido (como veremos adiante). 173 CONANT, ASHBY, 1981 (1970): 214. 174 “... tão logo é feita uma estimativa quantitativa a respeito de quanta informação tem de chegar ao observador, se é para que ele compreenda plenamente o que está diante de si em um organismo humano, nós imediatamente nos damos conta de que a quantidade de informação tende a exceder todos os limites do que é possível, mesmo com as mais generosas tolerâncias. Parece claro que quando nós abandonamos os velhos métodos de pensamento a respeito do cérebro, com suas excessivas e grosseiras simplificações, e alternamos para os métodos modernos, nós devemos tomar a sério a questão da quantidade de informação, pelo medo de desperdiçar tempo tentando o impossível” (ASHBY, 1981d (1967): 19). 51 Ele já vinha se dedicando também ao desenvolvimento do conceito de homeostasis de Cannon:175 a capacidade de auto-regulação de um organismo que lhe permite se manter em equilíbrio dinâmico pela retenção de determinadas variáveis vitais em faixas de oscilação aceitáveis, ainda que as influências do ambiente as pressionem para fora dessas regiões de conforto. Cannon já havia antevisto a aplicação deste conceito para além da fisiologia, chegando até às sociedades: para um sistema simples como o pêndulo, todo o equilíbrio se resume a uma situação única; ao contrário, quanto mais englobante for o sistema (ou seja, mais complexo), mais vasta será a sua região de homeostasis. Asbhy chega então a uma lei da variedade indispensável (law of requisite variety),176 segundo o que quanto maior a variedade das ações internas de controle disponíveis a um sistema, maior será a variedade de perturbações que ele estará apto a compensar, logo mais preparado ele estará para lidar com contingências imprevistas. Dito de outra forma, para que um sistema seja mantido numa variedade muito pequena de estados, mesmo estando submetido a uma variedade muito grande de agressões, é preciso uma grande variedade nas respostas possíveis. Nos termos de Ashby, “somente a variedade [ao nível das partes] pode dar cabo da variedade [ao nível do todo, de modo a assegurar a integridade do sistema]”.177 Ashby compreende a organização de um sistema como o conjunto das regras internas que lhe conduzem a novos estados a partir de seu estado presente, e ele o vê como “sistema isolado” desde que tais regras sejam imutáveis (ou seja, imunes à ação do ambiente). Todo e qualquer sistema isolado seria auto-regulável por homeostasis, desde que conte com suficiente variedade interna e disponha do tempo necessário à produção de sua adaptação. Sempre que alguma mudança no ambiente trouxer uma ou mais dentre as variáveis vitais para fora da região de conforto, o sistema irá se reconfigurar mudando suas conexões internas ao acaso, até lograr atingir (na prática, selecionar, em função das regras internas) um estado satisfatório, ou viável (não necessariamente – aliás, pouco provavelmente – um estado ótimo). 175 176 177 Walter Bradford Cannon (EUA; 1871-1945); ver The Wisdom of the Body. New York: W. W. Norton, 1932. ASHBY, 1981b (1958). ASHBY, 1956: 207. 52 Para Ashby, a evolução (compreendida como adaptação ao ambiente por aumento de complexidade) não ocorre de forma alguma por acidente; muito pelo contrário, ela seria um processo inevitável, por razões estritamente matemáticas. Toda adaptação de um sistema ao ambiente requer, evidentemente, que suas variáveis vitais permaneçam restritas a um subconjunto muito pequeno, relativamente ao espaço de possibilidades a que elas poderiam, em princípio, acessar. Seja um conjunto S de estados internos e um conjunto I de inputs; a cada mudança de estado, o novo estado para o autômato é determinado pela conjugação do estado interno (feedback) com o input, por meio da função f que corresponde às regras de organização do autômato. Na terminologia da teoria dos conjuntos, diz-se que f é a projeção do conjunto produzido por I x S em S. Dito de outra forma, um autômato é uma aplicação matemática de um conjunto finito sobre si mesmo, de forma recursiva – o que necessariamente converge para um subconjunto deste;178 em sistemas dotados de gigantescos volumes de variedade interna como os organismos, cada equilíbrio alcançado representa uma redução do número total de estados disponíveis ao sistema, porém esse total ainda continua vasto o bastante para muitas novas adaptações frente a mudanças futuras no ambiente. Partindo deste raciocínio, Ashby torna-se o pioneiro em um outro avanço que viria a se mostrar decisivo, ao recusar a solução de compromisso da “mecanicidade teleológica” dos primeiros ciberneticistas e partir para dissociar explicitamente o ponto de vista do observador externo do ponto de vista do sistema, uma vez que, para ele, a evolução não se dá por acidente (acaso) nem liberdade (intencionalidade na escolha) – o que há é somente adaptação, fatal, matematicamente universal: Uma máquina ou um animal comportou-se de uma dada maneira em um dado momento porque a sua natureza física e química não lhe permitiu nenhuma outra ação. Nós nunca utilizaremos a explicação segundo o que a ação é realizada porque mais tarde ela será vantajosa para o animal ... 178 A menos que a função f seja bijetora, uma classe de funções que é a minoria dentre o universo de funções existentes; além disso, quanto maior o tamanho do conjunto S menor será, proporcionalmente, o número de funções bijetoras a ele aplicáveis. 53 porque nosso propósito é o de explicar a origem do comportamento que aparenta estar teleologicamente direcionado.179 As pessoas seriam então portadoras de percepções ilusórias acerca de coisas como “liberdade”, “acidente” ou “intencionalidade”, uma vez que se encontram aferradas à sua posição de observadores externos, e não alcançam o ponto de vista do sistema sobre si próprio. Assim, é a Ashby que se deve esse pioneirismo, que viria a ser aprofundado como afirmação da autonomia dos sistemas por von Foerster,180 Maturana e Varela. Ashby foi também provavelmente o primeiro a empregar a expressão “autoorganização” em um artigo científico, em 1947,181 ainda que para atribuí-la às aparências percebidas por um observador. Em 1962, ele enuncia sua demonstração matemática para esta impossibilidade de qualquer auto-organização:182 para que a função f que define a organização de um sistema possa ser internamente modificada, ela teria que ou poder mudar a si própria ou tornar-se função do estado s do sistema; matematicamente falando, ambas as proposições são absurdas. Seria plausível que a função f fosse regida por uma função f ’ imutável e externa ao sistema – mas, então, já não se trataria de uma auto-organização. Para Ashby, as faculdades superiores da mente, e mesmo as propriedades biológicas dos seres vivos, nada têm que lhes seja próprio e que não possa ser reproduzido em uma máquina: ... todo sistema dinâmico gera sua própria forma de vida inteligente ... o grau de adaptação e de complexidade a que este [qualquer] organismo pode chegar é limitado apenas pelo tamanho do sistema dinâmico como um todo, e pelo tempo em que lhe for permitido avançar rumo ao equilíbrio. ... todo sistema dinâmico determinado isolado desenvolverá organismos que estarão adaptados a seus ambientes ... não há dificuldade, em princípio, quanto a se desenvolver organismos sintéticos tão complexos e tão inteligentes quanto se deseje. Porém nós devemos atentar a duas qualificações fundamentais: primeiro, suas inteligências serão uma adaptação a, e uma especialização relativamente a, seus ambientes específicos, sem nenhuma implicação de validade quanto a qualquer outro ambiente, tal como o nosso; segundo, suas inteligências serão direcionadas à manutenção de suas variáveis essenciais próprias dentro de limites ... nós podemos nos dar conta hoje de que a geração de sistemas artificiais com “vida” e “inteligência” não é apenas simples – é inevitável, desde que os requerimentos básicos sejam satisfeitos. Estes não são 179 180 ASHBY, 1952: 9-10. Heinz von Foerster (EUA; n. Förster, Áustria (Áustria-Hungria); 1911-2002); 181 Ver “Principles of the Self-organizing Dynamic System”. Journal of General Psychology, vol. 37, pp. 125-128, 1947. 182 ASHBY, 1981c (1962). 54 carbono, água, ou qualquer outra entidade material, mas a persistência, ao longo do tempo, da ação de qualquer operador que seja tanto inalterável quanto de cardinalidade unitária.183 184 McCulloch, preso à crença na universalidade da máquina de Turing, perseguia na matéria uma modelagem da mente, tendo a Matemática por ferramenta; Ashby persegue idéias como “mente”, “vida”, “corpo”, “espírito” ou “inteligência” sob forma de matemática pura, vista como estrutura universal. McCulloch abstraía a máquina lógica (mente) da máquina física (cérebro); Ashby abstrai toda forma de toda matéria. Ashby radicaliza e torna explícito aquilo que os ciberneticistas da primeira fase contemporizavam pelo recurso à teleologia: a única definição racional para o comportamento de qualquer autômato, natural ou artificial, passa a ser a aplicação matemática de uma função que, para todo par estado do sistema – estado do ambiente (todo par feedback – input), seleciona um dentre os estados possíveis para o novo estado do sistema. Em suma, Ashby opõe a verdade (da Matemática) à aparência (as percepções ilusórias de quem se situa na posição de observador dos demais sistemas). Suas proposições iriam, por muito tempo, exercer considerável influência;185 diante da força de seus argumentos, fundada na Matemática, aos demais pareceu precisarem optar entre a aquiescência e a irracionalidade.186 Ordem a partir do ruído Em 1958, von Foerster187 funda o Laboratório de Biologia Computacional da Universidade de Illinois, o primeiro centro de pesquisas próprio com que a Cibernética 183 No original, single-valued. Um operador inalterável e de cardinalidade igual a 1 é a aplicação matemática clássica, em que para todo elemento do conjunto domínio (ou argumento) corresponde necessariamente um único elemento dentre os que compõem o conjunto imagem (ou função). 184 Ibid., pp. 67-69, 73. 185 No apêndice B de KLIR, George J. (ed.). Applied General Systems Research: Recent Developments and Trends. New York: Plenum Press, 1978, constam os resultados de um levantamento, entre pesquisadores de sistemas, quanto aos autores em quem se referenciaram. Ashby, disparado o mais citado, influenciou quase o dobro de pesquisadores do segundo em número de menções, Bertalanffy (Karl Ludwig von Bertalanffy; Canadá; n. Áustria (ÁustriaHungria); 1901-1972), e quase o triplo de Wiener, que aparece em terceiro lugar; cf. KLIR, 1991: 36. 186 “O procedimento de Ashby ... não lhe deixa [ao leitor] outra escolha do que entre a submissão e o irracional” (DUPUY, 1995 (1994): 207). 187 Ver as coletâneas de artigos Observing Systems. Seaside (Califórnia): Intersystems Publications, 1981; e Understanding Understanding: Essays on Cybernetics and Cognition. New York: Springer-Verlag, 2003. Ver 55 pôde contar,188 e que funcionaria até 1975. A marca do Laboratório, e que caracteriza a Cibernética em sua segunda fase pela manutenção do mecanicismo com abandono do materialismo, foi a busca de isomorfismos que levassem a princípios matemáticos universais,189 e em 1959 von Foerster chega a seu princípio de ordem a partir do ruído (order from noise).190 O magnetismo foi percebido por von Foerster como um princípio organizador próprio à Natureza e propício à extração de tais isomorfismos. Para desempenhar o papel das “partes” que iriam interagir em seu autômato, ele aplicou sobre as faces de cubos feito de material leve finas folhas quadradas transversalmente magnetizadas, ou seja, com os pólos norte e sul correspondendo a suas duas faces (Figura 2). Figura 2: Os cubos magnetizados de von Foerster; extraído de von FOERSTER (1984a (1960): 15). Os cubos magnetizados eram então colocados dentro de uma caixa, que era fechada, sacudida e novamente aberta. Caso a disposição de polaridade em todas as faces fosse a mesma (por exemplo, norte para o lado de fora do cubo e sul para dentro), todos os cubos repelir-se-iam, resultando em nenhuma ordem e máxima desordem; caso metade dos cubos seguisse esse padrão, e para a outra metade fosse invertida a polaridade de apenas uma das faces, os cubos se aglomerariam aos pares, havendo no sistema um também Final Report: Analysis and Synthesis of Cognitive Processes and Systems. Urbana (Illinois): Biological Computer Laboratory, Department of Electrical Engineering, University of Illinois, 1969. 188 Wiener conduzia suas pesquisas no MIT em Cambridge (Massachusetts), McCulloch no Departamento de Psiquiatria da Universidade de Illinois em Chicago, e von Neumann no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Princeton (Nova Jérsei); Wiener e von Neumann, por razões distintas, se haviam desligado do grupo em 1951. 189 Dentre as conferências publicadas pelo Laboratório estão: YOVITS, Marshall C., CAMERON, Scott (eds.). Selforganizing Systems. New York: Pergamon Press, 1960; von FOERSTER, Heinz, ZOPF Jr., George W. (eds.). Principles of Self-organization: The Illinois Symposium on Theory and Technology of Self-organizing Systems. New York: Pergamon Press, 1962; e YOVITS, JACOBI, George T., GOLDSTEIN, Gordon D. (eds.). Self-organizing Systems. Washington DC: Spartan Books, 1962. 190 von FOERSTER, 1984a (1960). Desenvolvimentos posteriores do princípio de ordem a partir do ruído conduziram ao conceito que hoje é conhecido como ressonância estocástica, ou princípio de noise induced order. 56 acréscimo de ordem que atinge seus limites, não sendo possível qualquer novo acréscimo (Figura 3). Figura 3: Os cubos, nas duas primeiras experiências; extraído de von FOERSTER (1984a (1960): 20). Contudo, ao utilizar cubos em que três faces unidas pelo mesmo vértice tinham igual disposição de polaridade, enquanto que para as demais três faces (vértice oposto) essa polaridade era invertida, constatava-se ao abrir a caixa que os cubos haviam formado um sofisticado arranjo ordenado, evocativo de uma obra de arte; a cada vez que novamente se fechava e sacudia a caixa, o arranjo tornava-se ainda mais sofisticado (Figura 4). Figura 4: Os cubos, antes e depois da agitação; extraído de von FOERSTER (1984a (1960): 18-19). 57 A conjunção de um princípio organizador (o magnetismo) com o acaso oriundo do ambiente (a energia da sacudidela) foi percebida como correspondendo à criação de ordens até então inexistentes, e cada vez mais complexas. O sistema de von Foerster atendia aos critérios de Ashby: ele era isolado, porque as regras de interação entre os cubos não mudavam; ele encontrava ao acaso sua nova configuração; ele evoluía por seleção a partir da variedade, porque o equilíbrio para o qual o sistema convergia após cada sacudidela dava-se pela seleção de novas relações estáveis entre os cubos; o resultado dessa seleção era base para o salto evolutivo seguinte (feedback); e colocavase em relevo o papel do ambiente (a sacudidela) para que houvesse evolução: “a pergunta que eu gostaria de ver respondida é: Quanta ordem pode o nosso sistema assimilar a partir de seu ambiente, se de todo alguma?” 191 Para responder a essa pergunta, von Foerster empregou a noção de redundância de Shannon como uma medida do grau de ordem existente no sistema, e relativo à máxima desordem (incerteza a respeito da organização do sistema) verificável caso o sistema fosse totalmente desorganizado. Isso é expresso pela fórmula H = Hmax ( 1 − R ) , em que H é a incerteza ou desordem e Hmax a máxima desordem possível, compreendidas como “quantidades de informação” (entropia de Shannon), um rearranjo da fórmula original de Shannon R =1− H Hmax a partir de que se destaca a redundância R. Assim, um sistema só pode ser auto-organizante (ou seja, em que haja aumento de R) de modo permanente desde que seja capaz de, continuamente, absorver energia do ambiente sob forma de aumento da informação internamente contida (aumentando também tanto H como Hmax ; reparar a identidade entre energia e informação, fruto da “universalidade” presumida para a noção de entropia). Desta forma, o valor de R (que aqui é uma medida da proporção entre ordem e desordem) poderá ir se aproximando da unidade mas sem chegar a ela. 191 Ibid., p. 5. 58 Trata-se de um raciocínio de base matemática, bem ao estilo de Ashby. Uma vez que tal sistema contraria a segunda lei da termodinâmica, von Foerster postula que: Não existe tal coisa como sistemas auto-organizantes.192 ... A despeito ... da inexistência de sistemas auto-organizantes, eu proponho continuarmos a utilizar o termo “sistema autoorganizante”, desde que estejamos cônscios do fato que este termo se torna sem significado, a menos que o sistema esteja em contato estreito com um ambiente, possuidor de energia e ordem disponíveis, com o qual nosso sistema esteja em um estado de perpétua interação, de tal modo que ele dê conta, de alguma forma, de “viver” às expensas desse ambiente.193 Dito de outra forma, um sistema auto-organizante necessita importar perpetuamente energia de seu ambiente, com o conjunto composto por sistema e ambiente continuando a ser entrópico, de modo a cumprir o disposto na segunda lei; como isso não é realista (pois não haverá ninguém a sacudir a caixa indefinidamente), não existiriam sistemas realmente auto-organizantes (em consonância com a posição de Ashby). O que o sistema de cubos permite demonstrar é tão-somente o princípio de ordem a partir do ruído, demonstração que impulsionaria pesquisas posteriores como as de Atlan194 (que servirão de fundamento para as nossas propostas nesse trabalho). Em sua época, porém, isso passou largamente menosprezado. Na consideração de Dupuy: O lugar na História da segunda Cibernética [a capitaneada por von Foerster] ... é modesto, em contraste com a importância dos conceitos por ela desenvolvidos e com a influência que estes conceitos estavam por exercer ... Um de seus tópicos capitais de pesquisa, a auto-organização em sistemas complexos, conduziu a feitos fascinantes ... Seu azar foi ter sido ofuscada pela inteligência artificial e pelo cognitivismo, que estiveram na crista da onda naqueles mesmos anos. Porque von Foerster e seus colaboradores tiveram a audácia – ou talvez apenas porque eles foram tolos o suficiente – de adotar, por sua vez, o rótulo de “Cibernética”, que nesse meio tempo havia adquirido uma reputação inferior, os líderes desses movimentos rivais, então em processo de afirmação de sua primazia, lhes desqualificaram como amadores e chatos.195 192 193 Ibid., p. 2. Ibid., p. 4. 194 Posteriormente, Atlan asseverou que apenas o caso dos cubos que se agrupam aos pares (Figura 3) é regido por um princípio de ordem a partir do ruído (aumento da redundância R); a auto-organização ilustrada na Figura 4 seria regida por um princípio de complexidade a partir do ruído (aumento da quantidade de informação H); o que faltou a von Foerster foi precisamente a noção de que a complexidade está não no real em si (os cubos), mas nos olhos daquele que observa o real (como abordaremos adiante); cf. ATLAN, 1992a (1979): 71-73. 195 DUPUY, 2000 (1994): 10-11. 59 O computador por ferramenta No início da década de 60, a cisão já indicada do movimento cibernético – entre o desvelamento da máquina na mente, e a construção da mente na máquina – está feita. O campo da inteligência artificial nasce sob inspiração da tradição anglo-americana da filosofia analítica196 que, como meio de legitimar a subjetividade humana, preconiza que deva ser buscada uma caracterização científica dos estados psicológicos a partir daquelas que seriam as suas causas físicas, numa “naturalização” da psique. Segundo Dupuy, esta não era a orientação original da Cibernética, em que se considerava ser a subjetividade psíquica desprovida de realidade objetiva – visão que Ashby procurou levar às últimas conseqüências. Na comunicação entre os neurônios, não haveria qualquer conteúdo simbólico, não haveria referência a significados. Tudo o que se possa compreender por “subjetividade” já se encontraria incorporado à matéria, desde que organizada em sistemas de suficiente complexidade. Havia, contudo, identidades profundas: a máquina de Turing, a mente compreendida como lógica, e a lógica compreendida como cálculo mecânico (ou seja, computação). Como forma de compatibilizar o mundo semântico dos símbolos e seus significados com o mundo dos neurônios e seus processos causais físicos, os propositores da inteligência artificial advogaram a existência de um nível intermediário, o da sintaxe. A mente foi vista como uma máquina de Turing portadora de uma lógica interna própria, composta por regras de sintaxe (ou seja, um programa) análogas às linguagens formais de lógica desenvolvidas para computadores; por sua vez, as faculdades superiores da mente foram vistas como o resultado de operações sintáticas de inferência realizadas de forma recursiva (como recursivos são os algoritmos de computador). Em suma, já não se tratava mais do conjunto das computações diretas nos neurônios de seus próprios estados, mas de uma computação de símbolos que corresponderiam a conteúdos mentais – o que implica compreender a cognição como a construção de representações do real. 196 Esta ascendência é analisada em profundidade em DUPUY (1995 (1994)). 60 Este entendimento do conhecimento como a construção de representações predomina amplamente nas sociedades contemporâneas: supõe-se que a realidade seja a mesma para todos, logo o conhecimento que reside dentro das pessoas dar-se-ia pela captação e processamento de informações oriundas da realidade para a produção de uma representação desta. Pode-se desta forma falar em um “bom” ou “mau” conhecimento, de acordo com seu grau de fidedignidade para com a realidade. Uma tal concepção quanto à cognição tornou-se predominante após Kant,197 que postulou ser a razão dotada de formas puras (isto é, anteriores à experiência dos sentidos), por exemplo as faculdades que regem a apreensão quanto a espaço, tempo ou quantidade – pelo que a razão passou a ser compreendida como um formato único para todo e qualquer conhecimento. Tais formas puras seriam inatas, e universais a todos os seres humanos (a razão lhes seria transcendental); os conhecimentos que a razão formata, estes sim, dependeriam da experiência. Kant buscava enfatizar a natureza subjetiva de todo conhecimento; os apóstolos do ideal de objetividade, contudo, vieram a valer-se dessas suas idéias para supor que a razão propiciaria uma “regulação” da objetividade (uma formatação a partir de premissas universais), que poderia ser alcançada pela confrontação dos conhecimentos produzidos pela experiência subjetiva de cada um.198 Com a inteligência artificial surgia, nas ciências cognitivas, o cognitivismo ortodoxo199 (também denominado “linha psicológica” ou “linha simbólica” dessas ciências), em que se buscou uma simulação direta em computadores, sem a necessidade de guardar qualquer correspondência com os processos biológicos reais que propiciam a cognição, de faculdades como o raciocínio abstrato e a formação de conceitos (pensamento), a tomada de decisão (intencionalidade) e a comunicação pela linguagem, compreendidas como manipulação simbólica de conteúdos de conhecimento. Trata-se de uma abordagem top-down, em que os resultados finais desejados são estabelecidos de antemão, e em que todo processamento é serial (seqüencial). 197 Ref. hist.: Kritik der reinen Vernunft. Riga (Letônia): J. F. Hartknoch, 1871. 198 Para uma exploração das identidades entre a inteligência artificial e o pensamento de Kant, ver PROUST, Joëlle. “L’intelligence artificielle comme philosophie”. Le Débat, n. 47, pp. 88-102, nov.-dec. 1987. 199 Como um marco inicial, ver NEWELL, SIMON, op. cit. (nota 37, p. 14), 1961. Para uma abordagem contemporânea, ver CHALMERS, David. The Conscious Mind: In Search of a Fundamental Theory. New York: Oxford University Press, 1996. 61 Os resultados dessa empreitada mostraram-se pífios, devido aos volumes incomensuráveis de informação contextual que a “inteligência” em computadores pareceu requerer para poder mostrar-se proveitosa, e que se mostraram impraticáveis de serem providos.200 Como alternativa, o foco foi direcionado para os chamados sistemas especialistas, subconjuntos da “inteligência” voltados à solução de problemas específicos, de modo a circunscrever a um corpo de conhecimentos (os de um especialista em um dado domínio) a simulação dos processos genéricos de manipulação simbólica do conhecimento. Assim, pressupôs-se como não-relevante o papel desempenhado pela base genérica de experiências e conhecimentos do ser humano em seu processo de tomada de decisões técnicas, com o que estes esforços, tampouco, lograram atingir os resultados esperados.201 Na mesma época em que surgia a inteligência artificial, Rosenblatt 202 prosseguiria o trabalho pioneiro de McCulloch em redes neurais, dando forma àquele que viria a ser o outro ramo das ciências cognitivas, o conexionismo203 (também denominado “linha biológica” dessas ciências), em que se busca a simulação dos processos cognitivos a partir de suas faculdades básicas, como o reconhecimento de formas e de padrões no ambiente, a capacidade de generalização quanto aos padrões distinguidos, e as memórias associativas – em suma, a partir da percepção. Trata-se assim de uma abordagem bottom-up de natureza heurística, em que os resultados finais são a princípio imprevisíveis e em que as simulações buscam uma reprodução dos arranjos físicos de cérebros reais, inspirada na capacidade destes de prosseguir operando com informações incompletas e em meio ao ruído. 200 Para críticas históricas do cognitivismo ortodoxo, ver DREYFUS, Hubert. What Computers Can’t Do: The Limits of Artificial Intelligence. 2nd. ed. New York: Harper and Row, 1979. 1st. ed., 1972; e What Computers still Can’t Do: A Critique of Artificial Reason. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1992. 201 Ver DUTTA, Soumitra. “Strategies for Implementing Knowledge-Based Systems”. IEEE Transactions on Engineering Management, vol. 44, n. 1, pp. 79-90, 1997; e McDERMOTT, Richard. “Why Information Technology Inspired but Cannot Deliver Knowledge Management”. California Management Review, vol. 41, n. 4, pp. 103-117, 1999. 202 Frank Rosenblatt (EUA; 1928-1969). 203 Para uma antologia dos textos fundadores do conexionismo, ver ANDERSON, James A., ROSENFELD, Edward (eds.). Neurocomputing: Foundations of Research. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1988. 62 Mais recentemente, uma compatibilidade no seio das ciências cognitivas204 entre o cognitivismo ortodoxo e o conexionismo tem avançado com predominância deste último, seja pela articulação de modelos híbridos ou, de forma mais freqüente, pela busca de comprovação quanto a que os padrões de regras lógicas que regem a manipulação simbólica de conhecimentos são, ao invés de pré-dados, também fenômenos emergentes nas redes neurais.205 No que tange aos computadores, é também plausível o surgimento futuro de máquinas híbridas que conjuguem processamento paralelo (superior em reconhecimento de padrões, e em filtragem e tratamento de grandes volumes de dados) e processamento seqüencial convencional (superior em computação numérica). Nesse percurso, coube a Rosenblatt no final dos anos 50 criticar, no procedimento de McCulloch e Pitts, terem as faculdades superiores da mente sido tomadas como ponto de partida (para delas se deduzir uma estrutura ótima para a rede) ao invés de chegada.206 Ele então dotou suas redes, em que os neurônios foram arranjados em camadas, de estruturas imprecisas voltadas a aprimoramentos sucessivos, num procedimento exploratório inspirado em Ashby e condizente com os preceitos de von Neumann.207 Em 1969, porém, um livro pelos principais nomes da inteligência artificial à época208 logrou desmoralizar a perspectiva das redes neurais implicando o fim dos financiamentos para pesquisas (à exceção das conduzidas na então União Soviética), que somente foram retomadas nos anos 80, então com avanços notáveis nos modos de interação dos neurônios em camadas para maior aprendizagem, e sobretudo pelo emprego (intuído trinta anos antes por McCulloch)209 de técnicas associativas para 204 Para visões históricas das ciências cognitivas, ver DUPUY (1995 (1994)); OSHERSON, Daniel N., SMITH, Edward E. (eds.). An Invitation to Cognitive Science. 2nd. ed. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1995. 1st. ed., 1990; e GARDNER, Howard E. The Mind’s New Science: A History of the Cognitive Revolution. New York: Basic Books, 1985; (para este último, cf. nota 275, p. 88). 205 206 Cf. DUPUY, 1995 (1994): 75. Cf. ibid., 72. 207 Ver ROSENBLATT, Frank. Principles of Neurodynamics: Perceptrons and the Theory of Brain Mechanisms. 2nd. ed. Washington DC: Spartan Books, 1962. 1st. ed. Buffalo: Cornell Aeronautical Laboratory, 1961. 208 Ver MINSKY, Marvin, PAPPERT, Seymour. Perceptrons. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1969; cf. DUPUY, 1995 (1994): 73. 209 Remeter à p. 38; cf. DUPUY, 1995 (1994): 63. 63 armazenagem e recuperação de conteúdos de memória inspiradas nas pesquisas, em física de sistemas desordenados, com os chamados vidros de spin.210 Também na década de 60, desenvolvimentos a partir das idéias originais de von Neumann para as redes de autômatos celulares resultaram nas redes booleanas aleatórias, em mais uma etapa na busca de uma maior identidade com os arranjos físicos dos organismos vivos. Essas redes são compostas por autômatos celulares do tipo binário (em que as células apresentam somente dois estados, ligado ou desligado), numa simplificação que, além de proporcionar maior viabilidade (os autômatos de von Neumann haviam sido projetados para transitar entre 29 estados), abriu espaço para que fossem introduzidas maiores complexidades nas interações entre os autômatos. Kauffman,211 para simular os processos de progressiva diferenciação celular nos seres vivos pelas diferentes possibilidades de recombinação entre os genes, utilizou-se de redes booleanas aleatórias em que cada célula é conectada a um mesmo número de células aleatoriamente designadas, e em que a função booleana que converte as entradas em uma saída é atribuída, a cada célula, também de modo aleatório. O acaso, como perturbação oriunda do ambiente, já integrava os modelos de McCulloch e Wiener, como vimos. A Ashby é devida a compreensão da existência de uma aleatoriedade interna, em autômatos que preservam sua homeostasis experimentando ao acaso – o que von Foerster procurou comprovar por meio de seus cubos. No final da década de 60, Kauffman (de quem McCulloch fora professor) descobriu que redes de autômatos booleanos que se reconfiguram ao acaso geram um comportamento coletivo cíclico estável, ao convergir para um subconjunto relativamente pequeno do conjunto de estados possíveis;212 na França, pesquisas subseqüentes por Atlan chegaram aos mesmos 210 Em que o marco inicial é HOPFIELD, John J. “Neural Networks and Physical Systems with Emergent Collective Computational Properties”. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA, vol. 79 (Apr.), pp. 25542558, 1982. Reimpresso em: ANDERSON, ROSENFELD, op. cit. (nota 203, p. 62), pp. 460-464, 1988. 211 Stuart Alan Kauffman (EUA; 1939–); ver The Origins of Order: Self-organization and Selection in Evolution. New York: Oxford University Press, 1993; e At Home in the Universe: The Search for the Laws of Self-organization and Complexity. New York: Oxford University Press, 1995. 212 Ver “Metabolic Stability and Epigenesis in Randomly Constructed Genetic Nets”. Journal of Theoretical Biology, vol. 22, pp. 437-467, 1969; “Behaviour of Randomly Constructed Genetic Nets: Binary Element Nets”. In: WADDINGTON, Conrad H. (ed.). Towards a Theoretical Biology. Chicago (Illinois): Aldine Publishing, vol. 3 (Drafts), pp. 18-37, 1970; e “Behaviour of Randomly Constructed Genetic Nets: Continuous Element Nets”. In: WADDINGTON, op. cit. (supra), pp. 38-44. Para o desenvolvimento da noção de emergência em redes de autômatos celulares, ver “Emergent Properties in Random Complex Automata”. Physica D, vol. 10, pp. 145-156, 1984. Para uma síntese dessa trajetória e a postulação do princípio da auto-organização genética como motor da evolução 64 resultados.213 Com surpresa e deslumbramento,214 percebeu-se haver auto-organização na matemática sob forma de algoritmos de que consistem as simulações em computadores, pelo que a corrente (computacional) predominante em Teoria da Complexidade considera essa descoberta o marco zero dessa teoria; para seus seguidores, esta haveria de ser a nova matemática que, finalmente, lograria descrever as emergências sob forma de descontinuidade presentes na Natureza – as transcendências do quantitativo em qualitativo. Havia muito que uma tal nova linguagem formal era buscada, porém a partir da matemática clássica descritiva do contínuo (a novidade representada pela Teoria da Complexidade foi passar a buscá-la nos computadores). A mais emblemática empreitada nesse sentido foi a Teoria das Catástrofes, concebida por Thom215 como a herdeira das proposições de fins do século XIX por Poincaré216 quanto à topologia dos sistemas dinâmicos, ou seja, ela versa sobre uma classificação dos “comportamentos” das representações espaciais (leia-se geométricas) das equações matemáticas descritivas dos comportamentos desses sistemas; ela é assim a teoria de um meta-comportamento dos sistemas. Voltada à descrição das transições possíveis (as catástrofes) entre seus regimes de comportamento estável, ela discorre sobre estados meta-estáveis para os sistemas; de outro modo: haveria uma natureza qualitativa para a solução das equações. A Teoria das Catástrofes surgiu assim como uma “teoria geral das formas e das mudanças de forma”, que seria indicada à descrição dos fenômenos que regem a ocorrência, na Natureza, de formas “estáveis” porém (ou porque) recorrentemente demarcadas por um mesmo tipo de descontinuidades: formas meta-estáveis. Exemplos seriam: a linguagem, a transmissão de características hereditárias por gerações, a estabilidade dos navios no mar e seus modos de emborcamento, o colapso de pontes, o comportamento de luta-ou-fuga dos animais, desastres ecológicos ou motins em prisões. biológica, ver “Antichaos and adaptation”. Scientific American, vol. 265, n. 2, pp. 64-70, 1991; e KAUFFMAN, op. cit. (nota 211, p. 64), 1993. 213 Para uma recapitulação desses trabalhos, ver FOGELMAN-SOULIÉ, Françoise (dir.). Les théories de la complexité. Autour de l’oeuvre de Henri Atlan. Paris: Éditions du Seuil, 1991. 214 Cf. DUPUY, 1995 (1994): 208. 215 René Frédéric Thom (França; 1923-2002); ver Stabilité structurelle et morphogenèse. Reading (Massachusetts): W. A. Benjamin, 1972. 216 Jules Henri Poincaré (França; 1854-1912); ref. hist: “Analysis situs”. Journal de l’École Polytechnique (2ème série), vol. 1, pp. 1-121, 1895. 65 Thom chegou a mapear sete catástrofes elementares217 como compondo o domínio para o comportamento meta-estável dos fenômenos governados por até quatro variáveis independentes. A empreitada não teve, porém, vida longa: a Teoria das Catástrofes veio a ser sucessivamente desacreditada nos meios acadêmicos e, por fim, pelo próprio Thom. No mesmo princípio dos anos 70 em que surgia a Teoria das Catástrofes, Zadeh218 formalizou um dos primeiros arcabouços que implicava recusa do instrumental clássico, a lógica nebulosa,219 uma tentativa de superação da lógica clássica criada por Aristóteles220 e elevada à fundamento da Ciência, segundo a qual uma dada asserção somente pode ser “falsa” ou “verdadeira”, não podendo ser “parcialmente falsa” ou “parcialmente verdadeira”. A lógica nebulosa propõe uma representação, sob forma de valores numéricos (logo, processáveis em computadores) situados entre 0 e 1 (ou seja, entre falso e verdadeiro) dessas situações intermediárias, que na linguagem cotidiana são expressas por qualificadores tais como “muito”, “pouco”, “mais ou menos”, “por volta de”, “quase” etc., bem como por palavras que comportam significado sem expressar quantidade (por exemplo, “perto” – mas, quão perto?). Tais representações são aproximativas ao invés de exatas (o exato corresponde a um caso limite), e assim a lógica nebulosa busca retratar aquela que parece ser a lógica de funcionamento do cérebro humano (a lógica nebulosa veio a contribuir com muitos dos já mencionados progressos em redes neurais), em que a seleção e a associação de informações se dão por processos “nebulosos” – que por isso mesmo são denominados intuitivos.221 217 218 Denominadas dobra, ruga, cauda-de-andorinha, borboleta e umbigos elíptico, hiperbólico e parabólico. Lofti Asker Zadeh (EUA; n. Azerbaijão (União Soviética); 1921–). 219 ZADEH, 1973. Já uma década antes Zadeh havia proposto a teoria dos conjuntos nebulosos; ver “Fuzzy Sets”. Information and Control, vol. 8, n. 3, pp. 338-353, 1965. 220 Aristóteles de Estagira (384-322 AC). 221 “De fato, a ampla presença da nebulosidade nos processos do pensamento humano indica que muita da lógica por detrás do raciocínio humano é ... uma lógica com verdades nebulosas, conexões nebulosas, e regras de inferência nebulosas. A nosso ver, é esta lógica nebulosa, e ainda não bem-compreendida, que desempenha um papel fundamental naquela que pode bem ser uma das mais importantes facetas do pensar humano, a saber, a habilidade para resumir informação – para extrair dos agrupamentos de massas de dados que atingem o cérebro humano aqueles, e somente aqueles, subgrupos que são relevantes ao desempenho da tarefa à mão” (ZADEH, 1973: 28-29). 66 Para propósitos históricos, importa-nos registrar a denúncia por Zadeh da insuficiência dos instrumentos clássicos, um anúncio do tipo de matemática a ser praticado pelos adeptos da Teoria da Complexidade: Dada a tradição profundamente entrincheirada do pensamento científico, que iguala a compreensão de um fenômeno à habilidade para analisá-lo em termos quantitativos, certamente desafina todo aquele que questiona a tendência crescente de analisar-se o comportamento dos sistemas humanos como se estes fossem sistemas mecanicistas, governados por equações de diferença, diferenciais, ou integrais ... Essencialmente, nossa discordância é a de que as técnicas quantitativas convencionais para análise dos sistemas são intrinsecamente inadequadas à lida com os sistemas humanos ou, por extensão, com quaisquer sistemas cuja complexidade seja comparável à dos sistemas humanos.222 Zadeh pondera que, quanto maior a complexidade em um sistema, menor nossa capacidade de descrever seu comportamento em termos que sejam, a um tempo, precisos e relevantes, por se mostrarem estas características mutuamente excludentes, com o que... ... análises quantitativas precisas do comportamento dos sistemas humanos provavelmente não têm muita relevância para os problemas sociais, políticos, econômicos e de outras naturezas do mundo real, que envolvem seres humanos como indivíduos ou em grupos.223 Um tal raciocínio é correlato ao de Klir,224 que distingue duas dimensões de complexidade, uma descritiva (proporcional ao volume de informação necessário à descrição do sistema; trata-se assim de precisão) e outra relativa à incerteza (proporcional ao volume de informação necessário ao tratamento das incertezas associadas; trata-se portanto de relevância), em que a redução de complexidade em uma das dimensões implica aumento na outra.225 222 223 224 Ibid., p. 28. Loc. cit. Cf. KLIR, 1991: 115-121. George Jiri Klir (EUA; n. Tchecoslováquia; 1932–). 225 “A relação entre relevância (ou credibilidade) e os dois tipos de complexidades dos modelos sistêmicos ... até aqui não foi bem compreendida. Em geral, nós tentamos construir modelos altamente relevantes (críveis) que sejam simples (em um sentido descritivo) e, se possível, nós desejamos evitar a incerteza. Infelizmente, estes objetivos conflitam entre si de um modo um tanto quanto complicado. Ainda que a incerteza seja indesejável quando considerada sozinha, ela se torna bastante valiosa quando considerada juntamente com a complexidade descritiva e a relevância. Ela é a única mercadoria que pode ser negociada em troca de uma redução da complexidade em um modelo, um aumento em sua relevância, ou ambos” (KLIR, 1991: 119). Ver também KLIR, George J. “Is there more to Uncertainty than some Probability Theorists might have us Believe?” International Journal of General Systems, vol. 15, n. 4, pp. 347-378, 1989; para um estudo compreensivo, ver KLIR, FOLGER, Tina A. Fuzzy Sets, Uncertainty, and Information. Englewood Cliffs (Nova Jérsei): Prentice-Hall, 1988. 67 Com as descobertas em autômatos booleanos, pôde-se constatar que Ashby esteve percorrendo a trilha correta para a complexidade e a auto-organização. Afirmava ele que sistemas compostos de um grande número de elementos em interação convergem, de maneira espontânea, rumo a padrões estáveis e mais complexos de organização, em que prevalece o ponto de vista do autômato sobre si mesmo – precisamente como viriam a descobrir Kauffman e Atlan.226 O que faltou a Ashby foi abdicar da matemática pura, ou em prol de modos comunicativos para descrição da complexidade observada como o único objetivo alcançável (como Maturana e Varela e como Atlan lograram fazer, conforme veremos), ou ainda em prol de simulações em computadores em busca de um desvendamento da complexidade real (como empreitaram Kauffman e os demais propositores da corrente “computacional” predominante em Teoria da Complexidade).227 Na análise de Dupuy: Ashby levou tão a sério a questão da complexidade que, em certo sentido, toda a sua vida foi dedicada a extrair sua quintessência ... sua influência foi, direta ou indiretamente, considerável sobre aqueles de nossos contemporâneos, e eles são muitos, que se depararam em seu caminho com as idéias da Cibernética ... O problema de Ashby é que, sem querer, ele administrou a prova de que axiomatizar a complexidade é fazê-la desaparecer como fumaça.228 ... Ashby terminou por elevar uma definição matemática e sua relativa arbitrariedade à condição de princípio universal da Natureza.229 Fazia-se necessário edificar uma nova ciência que versasse sobre a autonomia dos sistemas, uma “ciência das populações”, fossem de moléculas, autômatos celulares, organismos ou pessoas. É assim que surge a corrente a que denominamos “computacional” em Teoria da Complexidade, na esteira das simulações que haviam logrado produzir alguma auto-organização, e na expectativa de que a expansão exponencial das capacidades de processamento dos computadores viesse a propiciar também uma reprodução da auto-organização existente na Natureza. Com efeito, nestas simulações a aplicação de regras simples sobre partes que interagem em rede faz emergir padrões sofisticados de comportamento; inferiu-se disso que seriam os 226 227 228 229 Cf. DUPUY, 1995 (1994): 208. Cujo centro de referência é o Santa Fe Institute, fundado em 1984 em Santa Fe no Novo México. Ibid., p. 201. Ibid., p. 203. 68 computadores a ferramenta para o desvendamento das regras simples que se supõe fazerem emergir os padrões sofisticados de comportamento da Natureza. Esta vertente da Teoria da Complexidade surge também na exigência de que fosse abandonado um dos pilares históricos sobre os quais Física se pôde edificar na Matemática: a função de estado, posto que nada indica que os fenômenos coletivos a que se denomina “complexos” sejam integráveis;230 dito de outra forma, eles não têm como ser descritos pelos meios matemáticos clássicos porque estes pressupõem continuidade. A nascente ciência debruça-se sobre sistemas em que seus modos de organização não são manifestações passivas e contínuas do arbítrio de leis mecânicas sobre as partes, mas descontinuidades resultantes dos potenciais de auto-organização do sistema, compreendido como uma rede em que há criação e renovação de ordem por aproveitamento de desordens. Em outras palavras: a dinâmica de interação entre as partes faz emergir, ao nível do sistema como um todo, comportamentos que transcendem a reunião dos comportamentos das partes, e que configuram respostas do sistema frente às mudanças no ambiente. Trata-se, portanto, de sistemas capazes de produzir sua própria evolução (auto-organizar-se), pelo que se considerou a Teoria da Complexidade como apropriada à descrição dos fenômenos biológicos, psíquicos e sociais. Era assim negado o reducionismo que subordina o todo às partes bem como os substancialismos ou holismos que preconizam o oposto (vitalismo, dualismo), todos eles recusados em prol de uma co-determinação entre o todo e as partes, uma causalidade de acoplamento: a auto-organização corresponderia à emergência de descontinuidades em uma rede complexa (ou seja, ao nível do todo) que, simultaneamente, determinam e são determinadas pela dinâmica das interações entre os elementos dessa rede (ou seja, ao nível das partes). A existência de tais descontinuidades, ou passagens do quantitativo ao qualitativo, implica uma multinivelaridade – a compreensão da realidade como composta por múltiplos níveis de complexidade, sucessivamente acoplados. Não será possível reduzir-se a biologia molecular à química, a biologia celular à biologia molecular, a psicologia à neurofisiologia, a sociologia à psicologia... 230 Cf. ibid., p. 210. 69 Como havia intuído von Neumann, tamanhas mudanças de fundo ontológico vieram consolidar outras mudanças de caráter metodológico que já se encontravam em curso. Posto que a Matemática mostrava-se insuficiente para a descrição de inúmeros fenômenos complexos, o advento dos computadores foi percebido como a chave para a tão aguardada superação dessas limitações, por meio da simulação de possibilidades. O objeto em estudo deixava de ser a Natureza e tornava-se o próprio modelo matemático, a especulação a respeito da realidade cuja qualidade se deseja estimar. Da dedução passa-se à heurística, da comprovação empírica em campo ou laboratório passa-se à simulação em computadores, e da matemática fundada em equações diferenciais, voltada à explicação dos sistemas e à predição de seu comportamento futuro, passa-se a uma matemática fundada em algoritmos recursivos, voltada à exploração dos comportamentos possíveis dos sistemas para seleção daquelas tentativas compatíveis com os resultados desejados.231 Havia porém pelo menos dois sonoros senões, que passaram (ainda passam) largamente despercebidos: as redes neurais e os autômatos celulares, disposições em paralelo (tal como os neurônios reais) de grandes volumes de pequenas unidades localmente interconectadas, não têm como ser modeladas em computadores, visto serem estes máquinas seqüenciais; neles, elas podem apenas ser simuladas232 (como exemplo de confusão, usa-se falar agent-based “modeling” ao invés da forma correta agent-based simulation). O advento de computadores de processamento paralelo maciço em arquiteturas que congreguem vários milhões de processadores simples (máquinas que ainda estão por ser tornadas viáveis) poderá vir enfim a permitir modelagens como a das redes de neurônios que compõem o cérebro – mas é ainda prematuro afirmar-se isto. Além disso, nessas simulações o número de estados possíveis para a rede (o máximo número possível de atratores, ou seja, de resultados possíveis) tende a ser muito menor 231 Um artigo da época, em que se defende essa necessidade da Ciência de, ao lidar com sistemas complexos, deslocar sua metodologia do analógico/contínuo para o digital/discreto, é BARTO, Andrew G. “Discrete and Continuous Models”. International Journal of General Systems, vol. 4, n. 3, pp. 163-177, 1978. Reimpresso em: KLIR, 1991, pp. 377-396. 232 Cf. DUPUY, 1995 (1994): 66, 78. 70 que o número de configurações possíveis da rede (ou seja, das “causas” que conduzem aos resultados):233 ... se os fatos observáveis são atratores estáveis em uma rede, está claro que milhares e milhares de diferentes estruturas de conexão na rede, isto é, diferentes modelos dinâmicos, produzirão atratores idênticos. Esta é uma situação obviamente desagradável para o teórico: a dificuldade não é a de achar um bom modelo ou teoria de predição, mas a de escolher entre milhares de diferentes, e nãoredundantes, teorias igualmente boas de predição dos mesmos fatos observáveis.234 Em outras palavras, um resultado válido em uma simulação de um sistema complexo não permite determinar que comportamento do sistema o acarreta – porque este mesmo resultado pode ser obtido por meio de simulações diferentes e não-redundantes. É portanto possível elaborar-se múltiplas teorias concorrentes a respeito do fenômeno estudado, embaraço que os cientistas denominam subdeterminação das teorias pelos dados.235 Por estas duas razões, não é possível considerar-se uma simulação que se apresenta factível como uma reprodução (uma modelagem) da realidade, mas tão somente como um insumo a mais para a composição de uma compreensão qualitativa do fenômeno estudado. Tampouco há sentido em se fazer referência aos assim chamados “modelos” da Teoria da Complexidade – simulações – pelos adjetivos da terminologia ortodoxa, 233 Cf. ATLAN, 1989: 251, 1992c: 57-58, 1998: 27-28. Seja um autômato com N células, s valores possíveis para o estado de cada célula, e p valores possíveis para o estado de cada conexão entre duas células; o número de estados 2 possíveis para o autômato é s N , enquanto que o número de configurações possíveis é p N . Assim, um autômato de apenas cinco células em que cada célula possa estar a cada momento ligada ou desligada (dois estados) e em que cada conexão possa estar a cada momento ativada ou desativada (também dois estados) pode convergir para 2 5 = 32 estados possíveis; no entanto, o número de configurações possíveis é 252 ≅ 10 7 , ou seja, cerca de dez milhões. Se cada conexão puder estar ativada, desativada ou inexistente (três estados), o que seria mais plausível (por exemplo para uma simulação da atividade cerebral), o número de configurações sobe para cerca de 1012 , ou um trilhão; a atribuição de pesos diferenciados para as conexões (ainda mais estados) forneceria simulações mais plausíveis de sistemas reais. Um modo de se reduzir a subdeterminação seria considerar um número maior de estados para cada célula, de modo a aproximar o número de resultados possíveis (estados da rede) do número de “causas” possíveis (configurações); o número de estados possíveis pode ser levado para 35 = 243 (três estados), 4 5 = 512 (quatro) e sucessivamente. Isso claramente não resolve o problema, além de tornar a simulação menos plausível para o cientista que busca uma reprodução de um fenômeno natural. Um outro modo, que aumentaria a plausibilidade, seria associar os resultados aos transientes (a seqüência de estados que o sistema percorre até estabilizar-se no atrator); porém, como toda seqüência origina-se em um estado inicial, novamente haverá apenas 32 transientes possíveis para cada resultado possível (considerando-se dois estados para as células), 243 (três estados) e assim por diante, o que também não resolve o problema. Ainda outro modo seria coletar evidência empírica a respeito da estrutura da rede, tornando irreais diversas dentre as possíveis configurações, mas isso tampouco seria suficiente para eliminar a subdeterminação: o leitor deve atentar para o fato de que os cálculos ilustrados acima pressupõem um autômato composto por apenas cinco células; as dificuldades tornam-se incomensuravelmente maiores se forem considerados, por exemplo, os bilhões de neurônios existentes no cérebro. 234 235 ATLAN, 1998: 27-28. Cf. ATLAN, 1989: 250-253, 1992c: 56-60, 1998: 27-29. 71 como verificáveis, ou válidos; é mais apropriado fazer-se uso da linguagem cotidiana de modo a qualificá-los como bons ou ruins, melhores ou piores, mais ou menos críveis.236 A vertente predominante em Teoria da Complexidade (e que aqui denominamos “computacional”) foi portanto erigida a partir de uma excitante expectativa, ao início da década de 70, quanto a que o vertiginoso avanço tecnológico dos computadores propiciaria simulações cada vez mais poderosas, a ponto de finalmente desvendar as “poucas regras simples” que supostamente governam o comportamento dos sistemas complexos (da mesma forma como uma faixa específica de regras em álgebra booleana dota uma rede de autômatos celulares de um rico comportamento auto-organizante). Em retrospectiva (três décadas e meia, e muitos milhões de dólares depois), ainda não se sabe ao certo sequer se tais regras realmente existem, que dirá identificá-las.237 Tal é a dicotomia com que os cientistas têm se defrontado ao longo das últimas décadas: a ciência de viés reducionista, malgrado toda sua elegante bagagem de comprovação empírica, vem se revelando cada vez mais insuficiente para produzir teorias plausíveis, e isso até mesmo na Física;238 já a Teoria da Complexidade atende à ontologia ao suprir essa lacuna da plausibilidade, porém sua metodologia é ainda incompleta, e seu sucesso em computadores está ainda distante de se refletir em descrições acabadas para a complexidade do mundo real – se é que essa tarefa poderá um dia ser cumprida. Em suma, entendemos não ser possível (pelo menos não até o momento) afirmar que a auto-organização (noção fulcral da Teoria da Complexidade) corresponda a uma “lei” da Natureza. Para tanto seria necessária uma reprodução do real que, como vimos, ainda não foi obtida, e talvez jamais o seja: a incorporação da desordem à explicação científica torna inviável qualquer reprodução da realidade, uma vez que esta precisaria comportar também uma reprodução da desordem existente – tarefa que se mostra impossível. De modo direto: uma realidade que se afigura complexa não tem como ser reduzida a algo mais simples que ela mesma. 236 237 238 Cf. ORESKES, SHRADER-FRECHETTE, BELITZ, 1994. Ver, por exemplo, HORGAN, John. “From Complexity to Perplexity”. Scientific American, vol. 272, n. 6, 1995. Cf., por exemplo, ANDERSON, 1972. 72 Auto-organização (bem como emergência, multinivelaridade, e mesmo complexidade) acabam assim antes como elementos de um discurso a respeito do real que como propriedades intrínsecas dele. Como já se havia dado com os ciberneticistas,239 trata-se de um discurso que expressa o melhor, o mais plausível entendimento do real a que se pode chegar, de um modo consistente com as circunstâncias e os conhecimentos vigentes. Entendemos que, na medida em que as aplicações práticas originadas da vertente “computacional” da Teoria da Complexidade sejam vistas como acréscimos ao repertório de conhecimentos técnicos concernentes a casos particulares (e que, mesmo aí, não sejam tomadas por modelos da realidade), tais contribuições poderão agregar seu justo valor. Na medida porém em que elas sejam vistas como meio para domesticação da complexidade (que é como tais ferramentas têm, repetidas vezes, sido anunciadas no mundo das empresas e dos negócios), tais esperanças frustrar-se-ão. A incerteza não é uma dentre as componentes de uma realidade que sem ela mostrar-se-ia ordenada, ela é um modo imanente da realidade. Complexidade aos olhos do observador A Teoria da Complexidade comporta, não obstante, uma outra vertente, a que nos filiamos, e que aqui denominamos “epistemológica”. Trata-se da legitimação da incerteza que toda complexidade comporta, e da disposição ao diálogo para com ela. Trata-se de buscar situar a complexidade não na realidade em si, mas no entendimento que se tem dela, ou seja, trata-se de um deslocamento da ênfase, da ontologia (referente à realidade) para a epistemologia (referente ao entendimento da realidade, e à interação para com ela). Trata-se de estabelecer teorias que articulem aquilo que conhecemos com aquilo que desconhecemos; teorias cujo objetivo não seja a previsão ou a completa explicação, mas o avanço da compreensão (o que se traduz, sim, em implicações práticas: no que tange às organizações, isso abre horizontes para uma atuação mais compatível com a natureza precípua destas); teorias cujo critério de adequação (pois não cabe qualquer “validação”) científica seja sua credibilidade, ou seja, sua aceitação, 239 O melhor que, à sua época, puderam produzir Ashby e von Foerster foram discursos que continham salvaguardas quanto à Matemática (Ashby) e à segunda lei da termodinâmica (von Foerster). 73 condicionada à sua plausibilidade, pelas comunidades científicas (teremos oportunidade de retornar a isso). As raízes para uma epistemologia nesses termos remontam a trabalhos de autores da tradição francesa em História e Filosofia da Ciência,240 que recusaram por simplista a concepção de que o avanço da Ciência dá-se por circunstâncias felizes de acumulação de evidências puramente empíricas, e trouxeram para relevo o caráter social de toda atividade científica. No seio do movimento cibernético, é exatamente essa atitude de buscar a complexidade mais nos olhos do observador dos sistemas do que neles mesmos o que distingue a chamada “segunda Cibernética” capitaneada por Ashby e von Foerster do movimento original fundado por Wiener e McCulloch. Coube a von Foerster cunhar o seu lema: a Cibernética de segunda ordem (como a chamavam) deixa de ser uma “cibernética dos sistemas observados” (observed systems) para tornar-se uma “cibernética dos sistemas observantes” (observing systems, um jogo de palavras que sugere também “observação de sistemas”). Ashby, devotado a tornar seu trabalho inteligível ao público leigo, recorria com freqüência a exemplos extraídos do cotidiano, como o do açougueiro, a que ele recorreu para realçar o papel do observador: se se considera a complexidade de um sistema pelo prisma do volume de informação necessário para descrevê-lo, então de acordo com o senso comum o cérebro seria complexo e uma bicicleta simples. Do ponto de vista de um açougueiro, porém, o cérebro de uma rês é simples; já uma bicicleta que constitua a única pista para a elucidação de um crime, após exaustivamente estudada, pode vir a apresentar uma quantidade muito grande de detalhes relevantes: [Eu escolhi] medir o grau de “complexidade” pela quantidade de informação requerida para descrever-se o sistema vital. Para o neurofisiologista o cérebro, como um feltro de fibras e uma sopa de enzimas, é sem dúvida complexo; igualmente, a transmissão de uma descrição detalhada sua demandaria bastante tempo. Para um açougueiro o cérebro é simples, na medida em que ele tem de distingui-lo de cerca de apenas trinta outras “carnes”, então não mais que log230, ou seja, em torno de 5 bits, estão em consideração. Este método assumidamente torna a complexidade de um sistema puramente relativa a um dado observador; é recusada a tentativa de se medir uma complexidade absoluta, ou intrínseca; porém a aceitação da complexidade como algo aos olhos do observador é, na minha opinião, o único modo factível de se medir a complexidade.241 240 De que foram expoentes, dentre outros, Gaston Bachelard (França; 1884-1962), Alexandre Koyré (França; n. Rússia; 1892-1964) e Georges Canguilhem (França; 1904-1995). 241 ASHBY, 1973: 1. 74 O encerramento, em 1975, das atividades do Laboratório de Biologia Computacional capitaneado por von Foerster foi já um sinal de que a complexidade como “epistemologia experimental” (a expressão é de McCulloch) não seria bem-vinda em muitas comunidades acadêmicas. Quem encampou a tarefa de transformá-la explicitamente em epistemologia foi Morin242 na França, novamente frente a resistências e indiferença. Entendemos que seja sob este prisma da complexidade vista como discurso a respeito do real que deva ser considerada a teoria das estruturas dissipativas de Prigogine,243 que logra explicar como auto-organização experimentalmente observado por Bénard 244 o até então enigmático 245 ao final do século XIX, fenômeno pelo qual, sob certas condições, um grande número de moléculas amplia seu raio de interdependência (ou seja, as moléculas interagem) convergindo para um comportamento coletivo ordenado: Essa é uma propriedade que todo mundo sempre aceitou nos sistemas vivos, mas em sistemas nãovivos ela era totalmente inesperada ... O aspecto espantoso é que cada molécula sabe de algum modo o que as outras moléculas farão num mesmo momento, através de distâncias relativamente macroscópicas. Estes experimentos provêm exemplos de modos pelos quais as moléculas se comunicam.246 ... nós sempre pensáramos que as moléculas apenas poderiam “sentir” a presença umas das outras se elas estivessem “se tocando” (isto é, se seus campos de força individuais estivessem em interação); assim, cada molécula poderia “conhecer” apenas as suas vizinhas. Porém, quando o sistema aguenta uma instabilidade e advém uma organização espaço-temporal, então o 242 Edgar Morin (França; n. Edgar Nahoun; 1921–); ver Le paradigme perdu. La nature humaine. Paris: Éditions du Seuil, 1973; La méthode. Paris: Éditions du Seuil, vol. 1 (La nature de la nature), 1977, vol. 2 (La vie de la vie), 1980, vol. 3 (La connaissance de la connaissance), 1986, vol. 4 (Les idées. Leur habitat, leur vie, leurs moeurs, leur organisation), 1991; Science avec conscience. Paris: Arthème Fayard, 1982; e Introduction à la pensée complexe. Paris: ESF, 1990. Ver também “Self and autos”. In: ZELENY, Milan (ed.). Autopoeisis: A Theory of Living Organization. New York: North-Holland, pp. 128-137, 1981; e “The concept of System and the Paradigm of Complexity”. In: MARUYAMA, Magoroh (ed.). Context and Complexity: Cultivating Contextual Understanding. New York: Spinger-Verlag, pp. 125-136, 1992. 243 Ilya Romanovich Prigogine (Bélgica; n. Rússia; 1917-2003); ver PRIGOGINE, STENGERS, Isabelle. La nouvelle alliance. Métamorphoses de la science. Paris: Gallimard, 1979. Ver também NICOLIS, Gregoire, PRIGOGINE. Self-organization in Nonequilibrium Systems: From Dissipative Structures to Order through Fluctuations. New York: John Wiley and Sons, 1977; From Being to Becoming: Time and Complexity in the Physical Sciences. San Francisco (Califórnia): W. H. Freeman, 1980; e NICOLIS, PRIGOGINE. Exploring Complexity: An Introduction. New York: W. H. Freeman, 1989. 244 Henri Bénard (França; 1874-1939). 245 Bénard defendeu sua tese junto ao Collège de France em 15 de março de 1901; ref. hist.: “Les tourbillons cellulaires dans une nappe liquide propageant de la chaleur par convection en régime permanent”. Annales de Chimie et de Physique (7ème. série), tome 23, pp. 62144ff., 1901. 246 PRIGOGINE, 1983: 90. 75 comportamento coerente implica que cada molécula “sente” o que bilhões de outras estão fazendo!247 Também sob esse prisma devem ser consideradas duas outras teorias (ambas inspiradas na segunda Cibernética) que particularmente nos interessam por colocar em relevo o papel do observador no entendimento da complexidade, e que tomamos por referencial para a presente tese em Teoria das Organizações. Essas teorias são autopoiesis de Maturana e Varela e a complexidade a partir do ruído de Atlan, que examinaremos em seqüência. 247 PRIGOGINE, 1991 (1985): 484. 76 3. A teoria da autopoiesis de Maturana e Varela A imagem da Cibernética que chega até nossos dias é a de ciência-mãe dos computadores, estas máquinas que vêm a cada dia trazendo transformações profundas para a vida das pessoas. Mas a Cibernética foi também decisiva para o advento (dentre outros campos científicos) da biologia molecular que, valendo-se de uma metáfora de inspiração cibernética (a de “programa” ou “código” genético) e de todo um vocabulário correlato (informação, mensagem, organização), pôde construir a noção de que a vida se desenvolve por seleção entre alternativas previamente codificadas – qual num programa de computador – nas infinitas combinações e recombinações do DNA. A evolução nos organismos vivos apenas aparenta estar direcionada, quando ocorreria que cada novo estado seria apenas uma (selecionada por contingência) dentre as possíveis continuidades para uma seqüência de estados anteriores, de acordo com uma programação prévia. Para que pudesse escapar a conotações de caráter vitalista, a biologia molecular nascente necessitava desvencilhar-se o quanto antes da noção de teleologia (o comportamento propositalmente, ainda que não intencionalmente, orientado a objetivos), adotada pela Cibernética por conveniência,248 e que dava margem a que a evolução biológica fosse compreendida como direcionada a estados de complexidade sempre crescente. Assim, em 1958 Pittendrigh249 introduziu o conceito de teleonomia (do grego telos: fim, resultado + nomos: lei, uso, costume; lei que acarreta resultados), que expressa o cumprimento de objetivos por um modo não proposital, uma vez que todas as possibilidades de evolução já estariam previamente dadas:250 ... os físicos e engenheiros ao construir autômatos sintonizáveis por fins santificaram o uso do jargão teleológico. Parece infeliz que o termo “teleologia” devesse ser ressuscitado e, tal como penso, abusado dessa forma. A ancestral confusão do biólogo seria mais completamente removida se todos os sistemas direcionados a fins fossem descritos por algum outro termo, como “teleonômicos” ... Toda organização é relativa, e direcionada a fins ... [ou seja,] dizer que os seres vivos são organizados é dizer que eles estão adaptados ... Uma organização é um estado improvável em um Universo contingente ... Organização implica ... um conteúdo de informação. O conceito de informação como entropia negativa tem sido desenvolvido em anos recentes por 248 249 Remeter à p. 31. PITTENDRIGH, 1958. Colin Stephenson Pittendrigh (EUA; n. Inglaterra; 1918-1996). 250 Para o desenvolvimento desta noção pela biologia molecular, ver MONOD, Jacques L. Le hasard et la necessité. Essai sur la philosophie naturelle de la biologie moderne. Paris: Éditions du Seuil, 1970; e JACOB, François. La logique du vivant, une histoire de l’hérédité. Paris: Gallimard, 1970. 77 físicos e engenheiros envolvidos com redes de comunicações e com o projeto de autômatos. ... A idéia de informação é a idéia das instruções necessárias à especificação de uma configuração particular em meio a um conjunto de muitas configurações, que são, fisicamente, igualmente prováveis. ... Como pôde o conteúdo de informação do genótipo acumular, face à tendência universal de maximização da entropia? A única resposta abrangente a esta questão é aquela delineada por Darwin: seleção natural. Seleção ... é um dispositivo para geração de um alto grau de improbabilidade.251 (ênfases nossas) Como vimos, foi somente com a Cibernética, por analogia com o comportamento dos seres vivos, que surgiu a noção até então inédita de máquinas organizadas (autômatos).252 Com a posterior formulação de conceitos como o de “programação genética”, o que se constata é uma inversão de princípios: de concepções tecnológicas para as máquinas inspiradas na Biologia, se havia passado à transposição para os seres vivos – entendidos como “máquinas naturais” – de noções cibernéticas concebidas para... máquinas.253 Uma tal transposição que preconizava: que a reprodução das características hereditárias ocorreria pela replicação do DNA; que essas características expressam-se em modos particulares de atividade das células por meio da síntese de proteínas enzimáticas (uma vez que estas catalisam de forma seletiva as reações metabólicas, direcionando assim a atividade celular); por sua vez, que essa síntese seria uma conversão da informação codificada no DNA sob forma de seqüências de bases nucleotídicas para um outro formato, as seqüências de ácidos aminados – que determinam as propriedades enzimáticas das proteínas. Em suma, esta explicação representa uma redução da vida a um conjunto de processos físico-químicos (as interações moleculares), numa aparente vitória tardia do projeto maior da Cibernética, o de construir uma ciência da mente (agora, transmutada em uma ciência da vida) lastreada em princípios universais aplicáveis a máquinas, naturais ou artificiais. Por trás da aparente robustez desta explicação, entretanto, persistem lacunas nãorespondidas: como surgiu o primeiro programa? Como pode um programa (o genético) necessitar dos resultados de sua leitura e execução (as proteínas enzimáticas) exatamente para que possa ocorrer sua leitura e execução? E quanto sentido de fato há 251 252 PITTENDRIGH, 1958: 394-397. Remeter à p. 32. 253 Cf. ATLAN, 1992a (1979): 17-26. Atlan revisa detidamente a trajetória da ascenção da biologia molecular por meio desta inversão dos princípios cibernéticos. 78 no recurso ao artifício de atribuir-se a evolução (por exemplo, das bactérias aos seres humanos) a uma improbabilidade estatística em um Universo supostamente entrópico (no sentido de Boltzmann que, como vimos, não é seguro), apenas como escape à afirmação de que o processo evolutivo de mutação-seleção conduz necessariamente ao aumento da complexidade? Tanto Maturana e Varela quanto Atlan trariam respostas inovadoras a essas perguntas. Distinguindo Biologia de Física Maturana, em fins da década de 50, toma parte na equipe de McCulloch de estudos em neurofisiologia (sobre a percepção visual nas rãs).254 No início da década de 60 ele se dá conta, a partir de reflexões quanto ao caráter circular e continuamente recursivo do funcionamento da célula (pelo que o DNA especifica as proteínas do citoplasma ao passo que as proteínas do citoplasma participam da síntese do DNA), de que a vida caracteriza-se pela natureza fechada sobre si mesma de seus modos organizacionais. Em meados desta mesma década, ao estudar a percepção das cores em pombos, Maturana constata que o sistema nervoso pode chegar a uma percepção idêntica mesmo quando estimulado por situações bastante diversas do espectro luminoso. Ele então compreende que inconsistente é não a observação feita, mas a visão predominante quanto ao que seja o processo da cognição. Em lugar da noção tradicional segundo o que o sistema nervoso acessa sensorialmente a realidade objetiva externa de modo a construir uma representação desta que lhe permita responder de modo apropriado às circunstâncias, Maturana passa a ver o sistema nervoso como redefinindo suas correlações internas de uma forma que é desencadeada por eventos no ambiente, mas que é consumada em referenciais estritamente internos, ou seja, de modo organizacionalmente fechado.255 Em 1968, Maturana está no Laboratório de Biologia Computacional de von Foerster, que o convida a escrever, para um simpósio de antropologia dedicado à cognição, um 254 Ver MATURANA, Humberto, LETTVIN, Jerome Y., McCULLOCH, Warren S., PITTS, Walter H. “Anatomy and Physiology of Vision in the Frog (Rana Pipiens)”. Journal of General Physiology, vol. 43, n. 6, pp. 129-175, 1960; e LETTVIN, MATURANA, McCULLOCH, PITTS. “What the Frog's Eye Tells the Frog's Brain”. Proceedings of the Institute of Radio Engineers, vol. 47, n. 11, pp. 1940-1951, 1959. 255 Ver MATURANA, Humberto, URIBE, Gabriela, FRENK, Samy G. “A Biological Theory of Relativistic Color Coding in the Primate Retina: A Discussion of Nervous System Closure with Reference to Certain Visual Effects”. Archivos de Biología y Medicina Experimentales, vol. 1, pp. 1-30, 1968. 79 artigo256 com foco nos aspectos neurofisiológicos envolvidos, em que Maturana pela primeira vez dispõe que discorrer sobre processos metabólicos da célula como organizacionalmente fechados e discorrer sobre correlações entre estados neuronais do sistema nervoso como o operar de um sistema organizacionalmente fechado são uma mesma e única coisa: a instância última organizacionalmente fechada é o ser vivo. O que se entende por “cognição” é o próprio operar do ser vivo na conservação de sua organização fechada, de que decorre uma congruência (internamente determinada) dele para com as suas circunstâncias ambientais (externas): viver é conhecer, conhecer é viver. Qualquer teoria sobre a cognição deve antes de tudo ser uma teoria sobre a vida, e tal teoria não havia ainda sido concebida. Torna-se cada vez mais claro para Maturana que seria necessário repensar por completo as fundações sobre as quais a Biologia se assenta – desde a seleção natural darwiniana até o papel do DNA; em 1970, no Chile, tem lugar a empreitada de edificação da teoria da autopoiesis,257 por Maturana258 e seu ex-aluno Varela.259 256 MATURANA, 1980a (1969). 257 MATURANA, 1980a (1969), 1975 (1974), 1978, 1980b, 1980c, 1981, 2002 (1999); VARELA, MATURANA, 1972; MATURANA, VARELA, 1980 (1972), 1987 (1984); VARELA, MATURANA, URIBE, 1974; VARELA, 1979, 1981a, 1981b, 1984a (1981), 1984b, 1996; GOGUEN, VARELA, 1979. 258 Ver também “What Is it to See?”. Archivos de Biologia y Medicina Experimentales, vol. 16, pp. 255-269, 1983; “The Biological Foundation of Self Consciousness and the Physical Domain of Existence”. In: CAIANIELLO, Eduardo R. (ed.). Physics of Cognitive Processes. Singapore: World Scientific, pp. 324-379, 1987. Reimpresso revisado em: “Ontology of Observing: The Biological Foundations of Self Consciousness and the Physical Domain of Existence”. In: DONALDSON, Rodney E. (ed.). Texts in Cybernetic Theory: An in-depth Exploration of the Thought of Humberto Maturana, William T. Powers and Ernst von Glasersfeld. Felton (Califórnia): American Society for Cybernetics, pp. 4-52 (conference workbook), 1988; “Everything Is Said by an Observer”. In: THOMPSON, William I. Gaia, a Way of Knowing: Political Implications of the New Biology. Hudson (Nova Iorque): Lindisfarne Press, pp. 11-36, 1987; “Reality: The Search for Objectivity or the Quest for a Compelling Argument”. The Irish Journal of Psychology, vol. 9, n. 1, pp. 25-82, 1988. Reimpresso em: LESER, Norbert, SEIFERT, Josef, PLITZNER, Klaus (eds.). Die Gedankenwelt Sir Karl Poppers. Kritischer Rationalismus im Dialog. Heidelberg (Alemanha): Universitätsverlag Carl Winter Verlag, pp. 282-357, 1991; Biologia de la Cognición y Epistemologia. Temuco (Chile): Ediciones Universidad de la Frontera, 1990; El Sentido de lo Humano. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1991; Desde la Biologia a la Psicologia. Viña del Mar (Chile): Fundación Synthesis, 1993; “Biology of Self Consciousness”. In: TRAUTTEUR, Giuseppe (ed.). Consciousness: Distinction and Reflection. Napoli (Itália): Editorial Bibliopolis, pp. 145-175, 1995; La realidad. ¿Objetiva o Construida? Barcelona: Anthropos, vol. 1 (Fundamentos Biológicos de la Realidad), 1995, vol. 2 (Fundamentos Biológicos del Conocimiento), 1996; e MATURANA, MPODOZIS, Jorge, LETELIER, Juan C. “Brain, Language and the Origin of Human Mental Functions”. Biological Research, vol. 28, n. 1, pp. 15-26, 1995. 259 Ver também VARELA, THOMPSON, Evan T., ROSCH, Eleanor. The Embodied Mind: Cognitive Science and Human Experience. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1991; e WEBER, Andreas, VARELA. “Life after Kant: Natural Purposes and the Autopoietic Foundation of Individuality”. Phenomenology and the Cognitive Sciences, vol. 1, n. 2, pp. 97-125, 2002. 80 No melhor espírito ciberneticista, a “máquina lógica” que eles supõem ser o ser vivo (e que chamarão sua organização) é abstraída das eventuais disposições materiais em que se encontra passível de estar corporificada (o que eles chamarão suas estruturas): Se alguém está para instanciar (construir ou implementar) uma dada máquina, então, ao escolher os componentes, levará em conta apenas aquelas propriedades de componentes que satisfaçam os interrelacionamentos desejados, e levem à seqüência de transições esperada que constitui a descrição da máquina. Isso equivale a dizer que os componentes podem ser quaisquer, desde que seus possíveis interrelacionamentos satisfaçam um dado conjunto de condições desejadas.260 Ao contrário da Física, em que a materialidade é implicada per se, e todos os conceitos são dela derivados e sem ela não fazem sentido, em Biologia a materialidade é também implicada, porém irrelevante no que diz respeito à caracterização dos fenômenos. Não há nada que possa ser chamado de “vida” ao nível das moléculas (materialidade: estrutura); ela apenas emerge ao nível da célula enquanto unidade autônoma (uma organização). A Biologia requer uma descrição dual: estrutura e organização são componentes distintos nas explicações biológicas, ainda que reciprocamente complementares. Somente será possível caracterizar uma dada classe de sistemas (por meio de uma organização que se supõe comum a todos eles) se for possível reconhecer uma tal lógica como consubstanciada em alguma estrutura física concreta; reciprocamente, não será possível apontar nenhuma estrutura em particular como determinante para a fenomenologia decorrente do seu operar, a menos que se possa caracterizar esta estrutura em termos da classe de sistemas a que pertença. Ainda que consorciados, organização e estrutura não têm como ser reduzidos um ao outro: Na medida em que a análise física de sistemas biológicos é ainda Física, o que é específico à Biologia é precisamente a análise da classe de máquinas que são os sistemas vivos... a Biologia não é redutível à Física... Aqui, usamos redução para significar um programa que possibilitaria algum dia derivar a Biologia da Físico-química, de modo a produzir uma ciência unificada.261 260 261 VARELA, 1979: 9. VARELA, MATURANA, 1972: 380. 81 A presença abundante em Biologia de descrições de cunho funcional seria uma decorrência dessa atitude, oriunda da Física, de sempre buscar caracterizar os fenômenos de uma forma exclusivamente referenciada na materialidade. Como exemplos, eles oferecem a consideração das seguintes asserções:262 S1: A função dos elétrons em órbita é balancear as cargas do núcleo. S2: Os elétrons em órbita balanceiam as cargas do núcleo. T1: A função do DNA é codificar as proteínas. T2: O DNA codifica as proteínas. As duas primeiras (da Física), referem-se a uma organização que é uma unidade em si, o átomo. S1 é dispensável em favor de S2, pois não há qualquer necessidade de adicionarse funcionalidade à descrição. Já as duas últimas (da Biologia) referem-se a um “sistema” (DNA-proteínas) que na verdade é subsistema parcial de uma unidade muito mais abrangente, a célula (o ser vivo), e é por este motivo que a funcionalidade da descrição T1 mostra-se conveniente em comparação à T2: “uma descrição funcional, quando não dispensável, é sintomática da ausência de uma teoria... [quanto à organização] de um sistema em que o subsistema, descrito em termos funcionais, existe”.263 A circularidade pela qual o DNA participa da síntese das proteínas que participam da síntese do DNA até então não havia sido percebida como fechada justamente por esta primazia conferida à materialidade física, e por ser a célula uma instância materialmente e termodinamicamente aberta: há um permanente fluxo de moléculas e de energia para dentro, para fora, e através dela. Qualquer invariância teria que ser buscada não na matéria, mas em uma organização percebida para a célula. O que caracteriza um ser vivo como tal não são moléculas (que entram, participam, e saem), são processos que regem produções moleculares. O que é comum à vida, em todas as suas formas (e portanto definidor da Biologia), não estaria nas propriedades da matéria (das partes), mas nas relações constitutivas do todo, independente do substrato material a que estas digam respeito. 262 263 Cf. ibid., p. 381. Loc. cit. 82 Em 1971 é cunhado o termo autopoiesis (do grego autós: próprio + poiein: fazer; produzir a si), e o ser vivo é definido como uma rede de processos (relações) de produção de componentes que, por meio de suas interações, continua e recursivamente regeneram e constituem (produzem) a rede que os produz, tornada distinguível enquanto uma unidade no espaço físico.264 O ser vivo era compreendido como uma máquina homeostática em que a variável fundamental a ser mantida constante é justamente a sua organização. O ser vivo é, antes de tudo, produtor e mantenedor de sua organização – produtor e mantenedor de si próprio. O que caracteriza o ser vivo como tal é um domínio de relações entre processos de produção de componentes, não um domínio de relações entre componentes – ainda que aquelas somente existam de forma concreta (corporificada) como relações entre componentes. São elas as relações constitutivas da organização: “as relações entre componentes que têm de permanecer invariantes em uma unidade composta para que esta não perca sua identidade de classe e torne-se alguma outra coisa, constituem a sua organização”.265 Por sua vez, a totalidade das relações (quaisquer) entre componentes corresponde à estrutura, ao arranjo físico particular (ao ser vivo particular) em que a organização encontra-se materializada: a estrutura compreende tanto os componentes físicos juntamente como o conjunto das relações entre eles. Já as relações definidoras da organização correspondem a um subconjunto invariante das relações que, em cada ser vivo, constituem sua estrutura; assim, uma mesma organização pode encontrar-se corporificada em muitas estruturas distintas (por exemplo, os muitos seres vivos de uma mesma classe, ou ainda, as diferentes etapas na vida de um ser vivo): A natureza dinâmica da organização autopoiética como uma rede de produção de componentes resulta em que a estrutura de um sistema vivo está necessariamente em mudança contínua. Além disso, o fato de que tudo o que tem de permanecer invariante em um sistema autopoiético ... é a sua organização autopoiética, implica em que as mudanças estruturais de um sistema vivo estão necessariamente em aberto, e, em princípio, podem acontecer ininterruptamente, com configurações recorrentes e não-recorrentes.266 264 Maturana e Varela fornecem, em seus textos (listados à nota 257, p. 80) uma série de definições muito próximas umas das outras; optamos aqui por constituir esta definição do ser vivo em autopoiesis como uma síntese das deles. 265 266 MATURANA, 1980b: 48. Ibid., p. 54. 83 Dando seqüência aos trabalhos de Ashby, Maturana e Varela buscaram expressar o caráter autônomo e individualizado dos seres vivos como conseqüência inevitável do mecanicismo; eles inverteram, assim, os termos de um embate histórico na Ciência, em que toda sorte de vitalismos – o contrário do mecanicismo – foram aventados justamente no intuito de afirmação dessa autonomia e individualidade. Para tanto, eles propõem dissociar o mecanicismo de qualquer forma de reducionismo, depurando-o de sua vinculação histórica às propriedades da matéria de modo a distingui-lo como uma ciência daquelas relações que são as constitutivas dos fenômenos. Fenômenos estritamente físicos e químicos são constituídos por relações entre entes materiais definidos por suas propriedades (mecanicismo e reducionismo se sobrepõem). Já os fenômenos biológicos decorrem de propriedades (biológicas) que somente se manifestam em redes de relações entre processos de produção de componentes materiais (mecanicismo puro: organização) – ainda que estes fenômenos possam ser analisados por meio das propriedades (físicas e químicas) destes componentes e de suas relações. Um mecanicismo puro demanda que as interações entre as partes sejam vistas como espontâneas (ou seja, não há qualquer “princípio organizador” derivado de propriedades das partes – por exemplo, o papel atribuído ao DNA pela biologia molecular – que governe a dinâmica dessas interações) e locais (ou seja, o todo não é fator operante nas interações, ele é uma decorrência de interações que se dão, necessariamente, entre partes vizinhas): Moléculas interagem com outras moléculas de maneira que o resultado de suas interações não participa em momento algum da gênese desse resultado. ... Os componentes de quaisquer sistemas existem como entidades locais somente em relações de contigüidade com outros componentes, e qualquer relação entre as partes e o todo sugerida por um observador pode apenas ser uma metáfora para o seu mal-entendido, e não possui presença operacional. É somente no colapsar dos domínios que nós, seres humanos, projetamos em nossas reflexões que o resultado de um processo possa mostrar-se como se ele houvesse participado em sua gênese.267 ... não há princípio ou força organizacional geral guiando o operar das moléculas que o compõem [sistema] na integração de um todo. O sistema vivo como um todo é o resultado da operação local de suas moléculas componentes, não a consumação de um plano. Além disso, um organismo em particular não é um tipo de todo por si, antes ele decorre como um todo particular...268 (ênfases nossas) 267 268 MATURANA, 2002 (1999): 9. Ibid., p. 17. 84 Para Ashby, um tal mecanicismo espontâneo e local implicava, inevitavelmente, evolução e adaptação. Agora, pela autopoiesis, essa evolução e adaptação adquirem caráter autônomo e individualizado. O que era visto como input passa a ser visto como perturbações que desencadeiam (e são compensadas por) mudanças internas na estrutura, internamente determinadas por modos necessariamente subordinados à preservação da organização. A cada instante, é a estrutura, tal como existente, o que determina o domínio das perturbações que ela é capaz de compensar. Dito de outro modo, o ser vivo especifica o domínio de sua própria plasticidade (transformações) frente às perturbações – trata-se de um ser individualizado, que prescreve o domínio de suas próprias mudanças, e autônomo, pois todas as mudanças estão subordinadas à manutenção de sua identidade (organização) própria. A autonomia de um sistema é também caracterizada por esse sistema fazer-se distinguível, na qualidade de uma unidade, em meio a tudo o mais (que, como um todo, configura “ambiente”). A rede de processos de produção de componentes conforma, dentre esses componentes, uma fronteira (no caso da célula, a membrana), o que por sua vez é um requisito para a conformação dessa rede, e que a torna distinguível, enquanto uma unidade no espaço, por um observador externo: ... tomaremos a liberdade de invocar a idéia de um “observador”, uma ou mais pessoas que encarnam o ponto de vista cognitivo que cria o sistema em questão, e a partir de cuja perspectiva ele é subseqüentemente descrito.269 É o observador, a partir do seu ponto de vista, quem atribui a uma classe de sistemas a identidade decorrente de uma organização em comum. Dito de outro modo, na epistemologia da autopoiesis as propriedades do observador (elemento central à epistemologia da Cibernética de segunda ordem a que se filiam Maturana e Varela) devem ser destacadas ao invés de desconsideradas – sistemas observantes, ao invés de sistemas observados. 269 GOGUEN, VARELA, 1979: 32. 85 O ser vivo apresenta assim uma fenomenologia dual: uma, a fenomenologia (física) das interações e transformações de seus componentes; outra, a fenomenologia (biológica) de suas interações e transformações enquanto uma unidade global, tais como percebidas por um observador. Ao nível de seus componentes (estrutura), todas as interações e transformações são determinadas pelas propriedades desses componentes; trata-se aqui da dinâmica causal (ou operacional) de constituição de uma unidade pelas interações entre seus componentes: seu domínio fisiológico. Já ao nível do ser vivo como um todo (organização), as transformações e interações somente são determinadas pelas propriedades de que o ser vivo é portador na qualidade de uma unidade; trata-se agora da distinção cognitiva, pelo observador, das interações dessa unidade enquanto uma totalidade: seu domínio comportamental, ou domínio biológico. Tudo aquilo que observadores discernem em ser vivo distinguido como uma unidade pertence ao espaço relacional em que ela é distinguida, e se refere a dinâmicas relacionais que contam com a participação do meio em que a unidade interage: “para que um fenômeno biológico aconteça, um sistema autopoiético tem de operar em um contexto”.270 Já tudo aquilo que observadores discernem em um ser vivo por meio da distinção de componentes seus refere-se ao operar interno da unidade, para o que o meio é irrelevante. A teoria da autopoiesis também distingue de forma precisa os seres vivos (“máquinas” naturais) das máquinas artificiais: estas também contam com organização e estrutura, porém seus componentes são produzidos por processos outros que não os constitutivos de suas organizações (não é um automóvel, por exemplo, o que produz suas peças). O que ainda resta de comum a ambas é somente o mecanicismo, esteio do caráter eminentemente dinâmico das máquinas, naturais ou artificiais.271 Mais: do que advém o propósito de uma máquina? Da consistência percebida por um observador humano quanto às correlações (também percebidas por ele) entre os comportamentos da máquina e do ambiente, descritas (novamente, por ele) como conexões em termos de inputs e outputs. Qualquer propósito diz respeito ao contexto 270 MATURANA, 1981: 32. 271 “... ‘máquinas’ e ‘sistemas’ indicam a caracterização de uma classe de unidades, em termos de sua organização” (VARELA, 1979: 7). 86 (tal como compreendido pelo observador) em que a máquina opera, ou seja, trata-se de sua função nele – propósito e função são noções necessariamente referenciais. Tudo isso é perfeitamente aplicável a máquinas artificiais, construídas pelo homem precisamente no intuito de satisfazer funções e propósitos por ele concebidos. Mas nada disso é aplicável à fenomenologia do ser vivo. Noções como propósito ou função são intrínsecas ao domínio descritivo no qual observadores constroem consensos a respeito do mundo e por meio deles coordenam suas ações, mas não são constitutivos da organização dos seres vivos, logo não têm serventia como explicações para sua operação. O conceito de teleonomia cunhado pela biologia molecular preconiza uma “determinação ancestral” como mecanismo causal da estrutura dos seres vivos a cada momento; já Maturana e Varela vêem nessa atribuição de “poderes” ao DNA (um elemento dentre outros, ainda que essencial) o sucedâneo da “força vital” evocada pelo vitalismo. A cada momento, o ser vivo é uma unidade em sua integridade, e não uma transição entre um estágio incompleto (embrionário) e outro final (adulto) de acordo com algum projeto inato; tampouco a evolução corresponde à realização de qualquer “projeto” da espécie, ao qual os indivíduos encontrar-se-iam subordinados. O apego a de tais idéias pelos partidários da biologia molecular corresponde a uma projeção sobre a fenomenologia dos seres vivos de descrições pertencentes ao domínio do entendimento lingüístico entre observadores: ... uma predição de um estado futuro de uma máquina consiste tão somente em uma apreensão acelerada, na mente de um observador, de seus sucessivos estados, e qualquer referência a um estado anterior como explicação para um estado subseqüente, em termos de função ou de propósito, é um artifício dessa sua descrição, criada na perspectiva da sua observação mental simultânea dos dois estados, o que induz, na mente do observador, a uma apreensão abreviada da máquina.272 Em nosso entendimento, o advento da teoria da autopoiesis encerra o ciclo, iniciado em Wiener, de identificação entre o natural e o artificial (não obstante tais esforços terem prosseguimento até os dias atuais, por exemplo em empreitadas como as denominadas inteligência artificial 273 e vida artificial 274), o que consuma a transcendência da 272 273 MATURANA, VARELA, 1980 (1972): 86. Remeter às pp. 60-61. 87 Cibernética em Teoria da Complexidade – muito embora os próprios Maturana e Varela recusem essa identificação,275 e tampouco recorram a termos como “complexidade” e “auto-organização”.276 A Cibernética, de McCulloch a Ashby, não havia logrado ultrapassar a noção de função matemática, um operador que converte input em output, e em que a estrutura do input determina a estrutura do output. Ao contrário, do ponto de vista do ser vivo, inexiste input; o ambiente passa ao papel de acionador, uma coleção de eventos que podem (ou não) desencadear mudanças na estrutura do sistema que serão internamente conduzidas e internamente determinadas: “um sistema é autônomo se as relações que o caracterizam na qualidade de uma unidade dizem respeito apenas ao sistema em si, e não a outros sistemas”.277 Cognição, um fenômeno biológico Maturana e Varela anunciam a noção de autopoiesis como necessária e suficiente à caracterização do ser vivo (por dar conta da fenomenologia do indivíduo, toda ela subordinada à manutenção de suas relações constitutivas internas) e à explicação de toda a fenomenologia biológica, como adaptação ao meio, reprodução, hereditariedade e evolução (porque estas requerem o indivíduo e são dele derivadas, como veremos). Até então, as caracterizações do ser vivo eram buscadas na enumeração de propriedades 274 Campo que surge na década de 90 pela perspectiva de que não somente os processos cognitivos, mas também os genéricos processos biológicos de organismos, populações e ecossistemas (crescimento, envelhecimento, morte, sobrevivência, adaptação, mutações, evolução, extinção, gregarismo, colônias, migração, acasalamento, reprodução etc.) seriam suscetíveis de simulação em redes de autômatos celulares, em que agrupamentos de indivíduos (colônias, populações, ecossistemas) podem ser considerados como um único agente “vivo” em interação com outros agentes. 275 Em nosso entender, por duas razões: porque a concepção deles quanto ao real é mecanicista (determinação do todo pelas partes), ao invés da concepção “casada” (co-determinação do todo pelas partes e das partes pelo todo) esposada por Atlan, Dupuy e outros, bem como pelos artífices da corrente a que denominamos “computacional”; e também justamente para melhor se diferenciar desta corrente, então em franca ascensão: “... [a primeira Cibernética] deveria ser vista como o berço e o local de nascimento da maior parte daquilo a que hoje conhecemos como tecnologias da informação, inteligência artificial, Teoria da Complexidade, vida artificial, e ciências cognitivas. Não obstante, esta surpreendente história somente tem sido contada de forma distorcida. No caso das ciências cognitivas, por exemplo, o relato bastante conhecido de Howard Gardner [op. cit. (nota 204, p. 63), 1985] faz parecer como se a opção computacional estabelecida nos anos 60 houvesse se originado como um deus ex machina. Ainda pior é o relato de Mitchell Waldrop [Complexity: The Emerging Science at the Edge of Order and Chaos. New York: Simon and Schuster, 1992], em que a se alega que complexidade já nasceu, esplendorosa e pronta para caminhar sozinha, dos campos mágicos de Santa Fe” (VARELA, 1995: 285). De nossa parte, o que fazem Maturana e Varela é dar conta da complexidade em Biologia, pelo que eles têm lugar, sim, em uma Teoria da Complexidade abrangente. 276 “Propriamente falando não existem sistemas auto-organizantes, apenas comportamentos auto-organizantes, que são indicadores da necessidade de se chegar a uma caracterização explícita do fechamento organizacional de um dado sistema que responde por um tal comportamento” (VARELA, 1984b: 26). A posição de Maturana e Varela em relação à auto-organização é assim consonante com a de Ashby. 277 MATURANA, 1981: 21. 88 (justamente: adaptação, reprodução, hereditariedade, evolução) que juntas propiciam uma explicação da mudança histórica (centrada no papel suposto para o DNA), mas que todavia são insuficientes para caracterizar o ser vivo, por referir-se às espécies ao invés dos indivíduos, vistos como meros transientes cuja organização se supõe subordinada a uma fenomenologia histórica, ao invés de determinante desta. Mas a ocorrência de reprodução requer a existência prévia do ser vivo, e é portanto operacionalmente secundária a ele; a evolução, por sua vez, requer a reprodução, sendo secundária a ela: a atual complexidade da vida sobre a Terra é assim antes uma decorrência da organização autopoiética dos seres vivos que caracterizadora dela. A máquina de estados da Cibernética produzia cada novo estado (novo output) pela operação interna de input mais seu estado presente (output sob forma de feedback). Já uma máquina de estados autopoiética produz cada novo estado (nova estrutura), a cada interação com o ambiente, somente a partir de seu estado (estrutura) presente, de forma desencadeada mas não determinada por esta interação (Maturana e Varela inicialmente chamam-na state-determined,278 depois structure-determined). Assim, pode-se afirmar que o que delimita (melhor, especifica) o escopo das interações em que o ser vivo pode tomar parte é tanto sua organização (perene) quanto sua estrutura (presente), pois a estrutura é a organização corporificada. Dito de outra forma, a organização circunscreve o escopo potencial de mudanças na estrutura, enquanto que, a cada momento, é a estrutura o que prescreve o domínio potencial de interações do ser vivo com o meio (domínio das perturbações passíveis de serem compensadas), domínio este individualizado (e necessariamente limitado) por ser a estrutura individualizada: “tudo o que acontece com ele e a ele [o ser vivo] é determinado, a cada instante, pelo modo como ele se encontra disposto (sua estrutura) naquele instante”.279 Em seu artigo fundador de 1969, Maturana supôs que os seres vivos incorram, de modo recursivo, em inferências quanto a classes de interações, em que cada interação é um evento único, mas tomado como se viesse a ocorrer novamente: ... a inferência indutiva ... emerge como o resultado da organização circular auto-referente que trata toda interação e o estado interno que ela gera como se ela viesse a se repetir, e como se fosse 278 279 Cf. VARELA, MATURANA, 1972. MATURANA, 2002 (1999): 6. 89 um elemento em uma classe. A partir daí, funcionalmente, para um sistema vivo toda experiência é a experiência de um caso geral, e é o caso particular, não o geral, o que demanda muitas experiências independentes de modo a que seja especificado pela interseção de várias classes de interações.280 (ênfases nossas) Seria esse caráter inferencial o que faria do domínio de interações de um ser vivo o seu domínio cognitivo. Entretanto, logo em seguida, Maturana e Varela passam a referir-se apenas à natureza recursiva das interações – o que expressa as regularidades do meio. Ora, uma vez que a homeostasis do ser vivo atua no sentido de preservar a regularidade das relações constitutivas internas, acaba inevitável um “casamento” entre as regularidades dinâmicas do meio (interações recorrentes) e do ser vivo (mudanças recorrentes na estrutura, subordinadas à preservação da organização), ou seja, uma congruência entre as trajetórias de mudança estrutural no meio e no ser vivo, que mutuamente modelamse, sem se determinar: um acoplamento estrutural, noção que transcende o que historicamente se denomina “adaptação” em prol da compreensão de uma co-evolução entre ambiente e seres vivos. A biosfera passa a ser compreendida como uma gigantesca teia multidimensional de acoplamentos estruturais recíprocos que emergem espontaneamente como decorrência da conservação da autopoiesis dos seres vivos: Nós biólogos não nos damos conta facilmente de que a conservação da adaptação é uma relação invariante que constitui uma condição de existência para os sistemas vivos... e isto é assim porque nós usualmente a tratamos como uma variável no discurso sobre a evolução.281 (ênfases nossas) A autopoiesis traduz assim uma dupla vocação: a conservação da organização interna ou da identidade (o operar do ser vivo), e a conservação da adaptação (uma decorrência desse operar). O ser vivo sempre converge para um acoplamento estrutural com seu meio, quaisquer que sejam as circunstâncias, enquanto estiver vivo: a morte como evento corresponde precisamente ao término, seja por esgotamento ou colapso, da capacidade homeostática do ser vivo de conservar sua organização frente ao curso das interações com o meio (se se muda o referencial do ser vivo para o meio, pode-se também dizer: frente a interações desintegradoras). Não existe adaptação “ótima”, 280 281 MATURANA, 1980a (1969): 49. MATURANA, 2002 (1999): 17. 90 apenas adaptações viáveis. Não há seres vivos “mais” ou “menos” adaptados – enquanto vivos, eles sempre aparentarão conhecer como viver em suas circunstâncias próprias: Adaptação... é sempre uma expressão trivial do acoplamento estrutural de um sistema estruturalmente plástico a um meio.282 ... adaptação é ... um truísmo. ... Quando nós dizemos que uma espécie adapta-se a um nicho, nós estamos dizendo nada mais nada menos que, na seqüência das etapas reprodutivas, unidades estão capazes de plasticidade estrutural que resulta em sua reprodução viável.283 Os dois domínios fenomenológicos (fisiológico e comportamental) do ser vivo são distintos, não há interseção entre eles, nem tampouco cabe qualquer reducionismo: não há “causas” (propriedades) em um que possam ser apontadas como determinantes das dinâmicas do outro: “a unidade assim constituída não participa de sua própria constituição, porque é unicamente com respeito a um contexto que ela possui existência operacional”.284 Eles não se determinam, apenas modulam-se mutuamente, à medida que a conservação da adaptação (domínio cognitivo da unidade, domínio comportamental) depende da conservação da autopoiesis (domínio constitutivo da unidade, domínio fisiológico) e vice-versa: ... domínios diferentes não podem explicar um ao outro porque não é possível gerar os fenômenos de um domínio a partir dos elementos do outro ... Um domínio pode gerar os elementos do outro domínio, mas não a sua fenomenologia, que, em cada domínio, é especificada pelas interações dos seus elementos, e os elementos de um domínio se tornam definidos apenas em meio ao domínio que eles geram.285 (ênfases nossas) Não há acesso direto possível a um observador à organização interna dos seres vivos; esta apenas se torna evidente sob forma de seus resultados (ao nível do ser vivo como um todo), jamais na dinâmica ou nas propriedades de seus componentes ou das interações entre eles (ao nível das partes). A organização autopoiética do ser vivo pode apenas ser inferida a partir daquilo que é passível de ser observado: a história de suas interações e de sua dinâmica estrutural. 282 283 284 285 MATURANA, 1978: 39. VARELA, 1979: 263. MATURANA, 1981: 32. MATURANA, 1980a (1969): 55. 91 Assim, cognição e conhecimento dizem respeito, para um observador, ao comportamento percebido como adequado do ser vivo observado – seja este um catedrático ou uma bactéria – num dado contexto dinâmico (meio). Aquilo de que a presença de um sistema nervoso dota os animais, e em particular o homem, é tão somente uma ampliação (ainda que incomensurável) do seu repertório de comportamentos – uma ampliação de seu domínio cognitivo. Mas mesmo uma bactéria é capaz de estabelecer correlações internas como modo de referência a variações externas, tais como frio-quente ou alcalino-ácido; sob circunstâncias ambíguas, as bactérias “decidem”:286 a cognição é corporal (estrutural). Cada mudança na estrutura implica também a mudança, por menor que seja, do domínio cognitivo; reciprocamente, interações inéditas implicam ou mudanças estruturais ou desintegração: viver é conhecer, conhecer é viver. Uma vez que cada novo estado interno (cada nova estrutura) é tanto desencadeado pelo evento externo (interação) como determinado pelo estado presente, os estados internos podem eles próprios também ser compreendidos como fontes de perturbação que desencadeiam no sistema a necessidade de mudanças compensatórias: eles também compõem o domínio cognitivo, ou domínio de interações, do sistema. Desnecessário lembrar que, no homem, seus próprios estados mentais internos conduzem a novos estados mentais, com o que o domínio cognitivo pode ser expandido indefinidamente. A condição sine qua non aos entendimentos da cognição como um fenômeno biológico, do conhecimento como comportamento (conhecer como viver) e vice-versa, e do domínio de interações como domínio cognitivo é o abandono das noções de input e output, em favor da autonomia e da individualidade. Se as interações forem compreendidas sob forma de inputs e outputs, a correspondência espaço-temporal percebida entre mudanças de estado do ser vivo e mudanças recorrentes no ambiente acabará descrita (melhor, inferida) como um acoplamento de natureza semântica, a partir das seguintes pressuposições: a cognição como atributo exclusivo dos organismos dotados de sistema nervoso (visto como capaz de processar informações); a realidade externa como objetiva, e passível de ser diretamente acessada pelo aparelho sensorial dos seres vivos (percepção sob forma de captação de informação); o processamento pelo 286 Ver ADLER, Julius, TSO, Wung-Wai. “ ‘Decision’-making in Bacteria: Chemotatic Response of Escherichia coli to Conflicting Stimuli”. Science, vol. 184, pp. 1292-1294, 1974. 92 sistema nervoso da informação captada, resultando em comportamento adequado à situação (nos animais) e na construção de uma imagem (representação) da realidade (no homem); a evolução como “codificadora” no sistema nervoso, sob forma de comportamento instintivo, do legado histórico desse processo; em suma, a determinação externa (alopoiesis) da cognição e do viver. O que a autopoiesis nos diz é que a realidade externa não é apreendida, ela é especificada. Ao gerar a si (o eu), o ser vivo gera também todo o não-eu – “o meio em que um sistema existe também desponta espontaneamente quando o sistema surge”:287 não há realidade independente daqueles que a conhecem. Ao produzir a si próprio, o ser vivo também produz, como conseqüência, a sua realidade, correspondente ao seu conhecimento. O ser vivo, mais que ser capaz de conhecer por estar vivo, somente pode estar vivo na cognição: “aquilo a que nós seres humanos chamamos cognição é a capacidade que um sistema vivo apresenta de operar em congruência estrutural dinâmica com o meio em que ele existe”.288 Os seres vivos, ao atualizar permanentemente suas estruturas, estabelecem por meio de configurações internas próprias referências a padrões de variação do ambiente, que correspondem a especificações da realidade ao invés de representações dela. Não há transmissão ou passagem de informação nos processos cognitivos – o conceito de “informação” corresponde a uma abstração, um construto mental dos observadores pertencente a seus discursos quanto ao fenômeno da cognição. Já qualquer distinção entre aqueles comportamentos ou conhecimentos instintivos dos aprendidos refere-se tão somente ao processo histórico que originou a estrutura gerativa desses comportamentos: se essa dinâmica estrutural foi tornada estável ao longo do transcurso evolutivo, falamos em comportamento (ou conhecimento) instintivo; do contrário, se ela emerge em um dado ser vivo como resultado da sucessão de seus encontros com o meio, falamos em aprendizagem.289 287 288 MATURANA, 2002 (1999): 18. Ibid., p. 26. 289 “... dado um sistema com fechamento operacional e cuja estrutura varie ligeiramente sob um histórico de perturbações, a um observador ele parecerá (como se houvesse) aprendido, e que guarda ele um registro daquilo que se passou. Para o sistema, entretanto, um tal registro não é necessário ... É apenas para o observador que, se a perturbação for recorrente, este evento parecer-se-á com um reconhecimento” (VARELA, 1984b: 29). 93 O que mais propriamente aqui nos interessa da vasta teoria da autopoiesis é o argumento segundo o que a cognição humana, que emerge em meio à linguagem (medium primordial para a intercompreensão entre os homens), é um fenômeno biológico, o que quer dizer estrutural, o que por sua vez quer dizer corporificado: em suma, é um fenômeno individual – ao invés de transcendental. Uma vez que a teoria da autopoiesis dispõe que toda a fenomenologia biológica, desde a origem da vida até a formação dos consensos culturais humanos lastreados na linguagem (todos eles decorrências espontâneas da autopoiesis nos seres vivos), compõe um continuum – uma trajetória de crescente complexificação estrutural – iremos, como caminho para chegar até a cognição, discorrer agora sobre esta fenomenologia. A fenomenologia autopoiética dos seres vivos A vida surgiu na Terra, há cerca de quatro bilhões de anos, na forma de células com organização bastante simples; desde então, essa organização tem-se mantido invariante. O que lhe é peculiar, e que a distingue de todas as organizações dos sistemas não-vivos, é que seu único produto é ela própria: seu ser e seu operar são inseparáveis. Também desde então, suas estruturas têm se tornado crescentemente complexas – a história da evolução da vida é a história da crescente complexificação das dinâmicas estruturais dos seres vivos. Mas, não se pode considerar que a organização dos seres humanos seja mais complexa que a organização das amebas? Sem sombra de dúvida, mas então já não estaremos falando da organização que define o conjunto da vida sobre a Terra como a classe dos seres vivos (ou seja, a organização autopoiética), falamos agora de outras classes de seres, subconjuntos daquela, com suas organizações próprias (por exemplo, a classe dos seres humanos). Ao categorizarmos uma dada classe de seres vivos (ou seja, ao atribuirlhes uma organização em comum), podemos considerar determinadas dinâmicas estruturais que nessa classe se mostram invariantes como constitutivas dessa organização específica, e reservar o termo “estrutura” para as demais dinâmicas estruturais variantes (por exemplo, na classe dos seres humanos, considerar as diferentes etnias como variações estruturais) – ainda que não seja de muita valia, em termos de 94 caracterização científica, explicitar uma classe cuja organização seja tão complexa que impossibilite na prática sua descrição. Já a observação do operar da célula deixa evidente o caráter autopoiético de sua organização: as relações constitutivas da célula são passíveis de serem descritas em termos estritamente mecanicistas, referentes às reações físico-químicas espontâneas entre compostos moleculares espacialmente vizinhos. Maturana e Varela classificaram as relações constitutivas da organização da célula em três grandes grupos: - As relações de constituição determinam que os componentes produzidos conformem a topologia em que a autopoiesis opera (por exemplo, ao determinar que os componentes estejam à distância adequada uns dos outros). - As relações de especificidade determinam que os componentes produzidos sejam especificamente aqueles definidos em conformidade com sua participação na autopoiesis (ou seja, elas determinam as propriedades dos componentes). - As relações de ordem determinam que a concatenação dos componentes nas relações (de constituição, especificidade e ordem) seja aquela que configura dinamicamente a autopoiesis (por exemplo, determinando que as quantidades corretas dos diversos componentes sejam produzidas no momento correto ao ritmo correto). 95 A origem da vida passa a ser vista não como acidente, mas como inevitável. Uma vez que estejam dadas as condições para que a interação de compostos moleculares diversificados resulte na formação, em um espaço circunscrito, de uma rede de reações moleculares que produza aqueles mesmos compostos moleculares iniciais, o advento espontâneo desta rede constitui um ser vivo (a célula) que, uma vez originado, se autoconserva. A membrana dessa célula primitiva caracteriza o ser vivo como uma unidade no espaço, não apenas delimitando o alcance da rede de produção de componentes, mas participando dela: a rede de transformações dinâmicas produz sua própria fronteira, que por sua vez é uma das condições do operar dessa rede. Pode-se supor que, mantidas as condições que originaram o primeiro ser vivo, outros mais surgiram em diferentes pontos da Terra, portando inúmeras configurações estruturais, por ainda muito tempo: ... toda vez que ocorrerem, no domínio molecular, as condições estruturais dinâmicas adequadas para que surjam entes autopoiéticos moleculares, eles surgirão espontaneamente, e um sistema vivo aparecerá como que do nada.290 Por sua vez, o fenômeno da reprodução é compreendido como o fracionamento de uma unidade autopoiética (uma célula) cuja organização se encontra espacialmente distribuída por meio de um espalhamento uniforme dos componentes, evento que gera duas unidades operacionalmente independentes, que conservam a mesma organização da unidade original porém corporificada em estruturas distintas. Por muito tempo, a reprodução por fragmentação dava-se apenas por causas mecânicas externas, ou seja, por acidente; progressivamente, ocorreu em algumas classes de células um desenvolvimento daquelas suas dinâmicas estruturais que facilitavam a fragmentação da célula (em uma complexificação da autopoiesis), o que progressivamente aumentou a freqüência e a regularidade desse fracionamento até o ponto em que ele se tornou independente de choques ou forças externas. Com o passar do tempo, tais classes de células terminaram por prevalecer sobre as suas congêneres que continuaram a somente se fragmentar por acidente, e assim a reprodução tornou-se (literalmente) incorporada à vida. No que tange às células contemporâneas, naquelas eucarióticas (com núcleo) dá-se a mitose, um processo de distribuição espacial dos componentes do núcleo prévio à fragmentação, e naquelas procarióticas (sem núcleo), 290 MATURANA, 2002 (1999): 23. 96 componentes que porventura existam em dose única são também previamente replicados. A reprodução implica a evolução: a distribuição espacial dos componentes na unidade autopoiética original deve ser suficientemente uniforme para conservar a organização por ocasião do fracionamento (caso contrário, pelo menos uma das novas unidades não será um ser vivo), mas não necessariamente a ponto de produzir duas estruturas exatamente idênticas. Assim, a reprodução implica a regularidade estrutural (o que permite precisamente a definição de classes de seres), ao mesmo tempo em que abre espaço para alguma variação estrutural. As novas unidades, por mais idênticas que sejam, acabarão por realizar suas autopoiesis de forma diferenciada, devido ao meio também não ser dotado de uma uniformidade absoluta. Por sua vez, as variações estruturais resultantes desse viver individualizado poderão também ser conservadas por ocasião de novos eventos reprodutivos. O mecanismo da reprodução seqüencial implica assim um progressivo espalhamento da variação estrutural, oriundo tanto da autopoiesis diferencial (individualizada) quanto do fracionamento reprodutivo. Também este, uma vez que corresponde a um estado tanto da autopoiesis da unidade original (seu último) quanto da autopoiesis das unidades originadas (seu primeiro), corresponde para estas a uma perturbação (a variação estrutural decorrente do fracionamento) que requer para sua compensação alguma complexificação da autopoiesis (novas atualizações estruturais). Pode-se assim compreender a história de unidades encadeadas por reproduções sucessivas como uma contínua complexificação da autopoiesis, em que os indivíduos são os nós de uma rede temporal, e a espécie é a representação histórica dessa rede (é uma descrição de um fenômeno histórico, referenciada na invariância estrutural que permite distinguir uma dada classe de seres). Dito de outra forma, o que evolui não é a espécie, são as dinâmicas estruturais, os padrões de operar autopoiético corporificados; a espécie é uma decorrência dessa evolução: ... não é a mudança o que faz da evolução biológica um processo histórico, mas ... a contínua conservação da autopoiesis e da adaptação como as condições relacionais em torno do que tudo o mais se encontra aberto à mudança. ... o que é primariamente conservado na história dos sistemas vivos é o viver (autopoiesis e adaptação). E o que é secundariamente conservado são as diferentes 97 formas de consumação do viver, por meio da conservação reprodutiva das diferentes maneiras de realização da autopoiesis na conservação da adaptação.291 Uma vez que há reprodução seqüencial e há também a possibilidade de variação em cada evento reprodutivo, o curso evolutivo da dinâmica estrutural nos seres vivos consiste em uma função recursiva do domínio de suas interações com o meio: a evolução dos seres vivos é a evolução de seus domínios cognitivos. Por exemplo, a multiplicidade dos rebuscados formatos das conchas de certas espécies de moluscos decorre da diversidade de materiais à disposição no meio para a satisfação de um mesmo perfil de requisitos autopoiéticos. Ao longo de milhões de anos, os modos (estruturas) inicialmente rudimentares de conservação da autopoiesis sofisticaram-se gradativamente até chegar às formas atuais; também de forma recursiva, a crescente sofisticação dos seres vivos implica a crescente sofisticação daquilo que conforma meio para cada um deles. Ao cunhar a expressão “seleção natural”, Darwin buscava uma metáfora que auxiliasse no entendimento das conseqüências do processo evolutivo, que seriam não mais que análogas aos processos de separação por meio de escolha intencionalmente levados a cabo pelos seres humanos. Como é sabido, interpretações ao pé da letra dessa metáfora abundaram, em que o meio foi visto como fonte de interações de natureza instrutiva para com os seres vivos, o que de forma alguma ocorre. Uma dada seqüência de interações meramente desencadeia uma dada seqüência de modificações estruturais que são internamente determinadas; pode-se tão somente supor que outras seqüências de interações (que não ocorreram) viessem a desencadear cursos estruturais distintos. É apenas nesse sentido que se pode dizer que o meio seleciona o curso de interações pelo qual a autopoiesis se dá de forma diferencial nos seres vivos; ou, ainda, pode-se dizer: seleção natural e autopoiesis diferencial são um mesmo fenômeno: “tanto unidade como meio operam como sistemas independentes que, ao desencadear um no outro uma mudança estrutural, selecionam um no outro uma mudança estrutural”.292 Unicamente aquelas linhagens estruturais cujo curso estrutural 291 292 Ibid., p. 11. MATURANA, 1981: 29. 98 se mantenha complementar ao do meio lograrão efetivamente conservar seu acoplamento estrutural com este meio; ou seja, serão por ele selecionadas para prosseguir em suas trajetórias evolutivas. Reciprocamente, pode-se considerar que a vida seleciona o curso das mudanças estruturais da biosfera: o oxigênio liberado por formas de vida primitivas durante muitos milhões de anos acarretou mudanças estruturais na atmosfera; recursivamente, o progressivo aumento do teor de oxigênio na atmosfera atuou como seletor de variações estruturais em muitas linhagens que implicaram nestas a estabilização de estruturas respiradoras de oxigênio. O fenômeno da hereditariedade corresponde, tanto quanto a reprodução, a um processo estrutural. Hereditariedade é recorrência estrutural em uma série histórica. Assim, o que se entende por genética (o estudo da hereditariedade) deveria ser o estudo da distribuição, igual ou diferencial, das recorrências estruturais ao longo das seqüências históricas, e não o estudo da associação entre algumas estruturas celulares (aquelas relativas ao DNA) e a hereditariedade. Todos os componentes da célula participam de sua dinâmica estrutural (conseqüentemente, da hereditariedade), ainda que cada um deles reflita de forma diferenciada as recorrências estruturais ao longo de gerações. Não há dúvida quanto a que, dentre todos os componentes, é o DNA o que mais apresenta estabilidade transgeracional, e quanto a ser possível correlacionar variações suas com modificações estruturais. O equívoco (que tem origem na ânsia pela identificação de mecanismos causais) reside em confundir-se papel primordial com determinação exclusiva. Autonomia coletiva – organismos e sociedades Quando duas ou mais unidades autopoiéticas tornam-se acopladas, mutuamente especificando “ambiente” umas para as outras; quando tal acoplamento facilita a autopoiesis individual das unidades; quando as interações entre estas tornam-se recorrentes, e a conduta de cada unidade acaba por tornar-se função da conduta das demais; e quando finalmente esse acoplamento recíproco termina por se tornar 99 invariante, emerge uma unidade autopoiética de segunda ordem – um organismo multicelular: Se o acoplamento advém como modo de satisfação da autopoiesis, então quanto mais estável for o acoplamento, mais estável será qualquer unidade de segunda ordem formada a partir dos sistemas autopoiéticos precedentes. De todo modo, em um sentido intuitivo, uma condição bastante estável ao acoplamento se dá se a organização da unidade é gerada precisamente para a manutenção desta organização – isto é, se a unidade se torna autopoiética. Parece, assim, existir uma pressão seletiva sempre atuante para a constituição de sistemas autopoiéticos de ordem superior a partir do acoplamento de unidades autopoiéticas de ordem inferior.293 Da mesma forma, um acoplamento estável entre unidades autopoiéticas de segunda ordem (organismos) configura uma unidade autopoiética de terceira ordem: colônias de insetos, bandos de animais, ecossistemas, sociedades humanas.294 A fenomenologia dual dos seres vivos (domínios fisiológico e comportamental) diz respeito tanto à célula (a unidade autopoiética fundamental, trate-se de um organismo unicelular ou de um componente de um multicelular) quanto às unidades autopoiéticas de ordens superiores: os domínios fenomenológicos que elas conformam como singularidade (unidade) e como composição (de compostos moleculares, no caso da célula; de células, ou órgãos etc., no caso dos organismos) são distintos, e não redutíveis um ao outro. A conservação da identidade (autopoiesis) e a conservação da adaptação dependem uma da outra, mas não se determinam: esta é uma decorrência daquela, que a precede; em contrapartida, se a conservação da adaptação cessa, as interações no meio tornam-se interações desintegradoras, e a autopoiesis também termina por cessar. Ao longo de uma história de mudanças estruturais, a autopoiesis das células dos organismos foi tornada dependente da autopoiesis do organismo como um todo (unidade), como um modo de satisfação dos próprios requisitos de conservação deste. Da mesma forma, a dinâmica autopoiética em animais e insetos gregários convergiu espontaneamente para o aprofundamento da dependência dos indivíduos ao bando ou colônia; também da mesma forma, o homem paulatinamente sofistica sua dependência da vida em sociedade. 293 VARELA, 1979: 53. 294 A princípio, colônias de seres unicelulares, como colônias de bactérias, não seriam unidades de segunda ordem (porque não compõem um organismo), nem de terceira ordem (porque não são agregados de unidades de segunda ordem); nos textos examinados, Maturana e Varela não são conclusivos a esse respeito. 100 Seriam as unidades autopoiéticas de ordens superiores também elas sistemas autopoiéticos? No que tange às unidades de terceira ordem, certamente que não: as redes que as constituem não têm como ser compreendidas como redes de processos de produção de seus componentes, nem tampouco a fronteira que demarca uma tal rede não tem como ser compreendida em termos topológicos. Já no que tange às unidades de segunda ordem, a natureza autopoiética dessas unidades é afirmada sem ter como ser caracterizada. Compreender uma unidade de segunda ordem como um conjunto de moléculas, de células, ou de órgãos, implica definir organizações distintas. A cada um destes níveis corresponde um modo específico de organização constituinte de uma totalidade (a unidade de segunda ordem), e definidor de uma classe particular de seres. A organização autopoiética, definidora da classe dos seres vivos (pois engloba a totalidade das formas de vida sobre a Terra), se dá ao nível molecular. No entanto, e ao contrário do caso da célula, qualquer descrição das redes de interações moleculares constitutivas de um organismo multicelular (em termos de relações de constituição, de especificidade e de ordem, tal como para a célula) é tarefa que se mostra impossível. Uma vez que a produção dos componentes de um organismo de fato ocorre de uma forma contínua e recursiva ao nível molecular (o que já não é possível afirmar, se por componentes consideramos as células ou os órgãos), pode-se assumir, sem se ter como caracterizar ou descrever, que as unidades de segunda ordem são também sistemas autopoiéticos. Há ainda outro fator que concorre para isso: os organismos multicelulares iniciam-se em uma etapa unicelular. Tomando-se por exemplo um dos modos de reprodução mais complexos, a reprodução sexuada, a produção dos gametas (por exemplo, óvulos e espermatozóides) ocorre por fracionamento celular, eles adquirem uma dinâmica operacional independente, e segue-se sua fusão em um organismo também unicelular (o zigoto), a partir de que o organismo se desenvolve. Os seres multicelulares constituem, por diversificados modos, variações sobre um mesmo tema: sua formação corresponde a um processo de contínua divisão e diferenciação celular a partir de uma única célula 101 inicial,295 com acoplamento invariante entre as células originadas. Além disso, em uma série histórica (evolução), é também na fase unicelular que a regularidade e a variação reprodutivas são, respectivamente, conservada e produzida. Desta forma, toda a fenomenologia já descrita relativamente à célula (adaptação, reprodução, hereditariedade, evolução) pode ser também estendida aos multicelulares. Ora, se a organização das unidades de terceira ordem não é autopoiética, e se tampouco há bases seguras para se afirmar que outras organizações constitutivas de unidades de segunda ordem (em que os componentes sejam células, ou tecidos, ou órgãos, ou sistemas fisiológicos) o sejam, como definir tais organizações? Varela e Maturana os propõem como sistemas autônomos, caracterizados por modos organizacionais fechados: uma organização autônoma é definida como uma rede de processos (relações) de interação entre componentes que, por meio de suas interações, continua e recursivamente regeneram esta rede, tornada distinguível enquanto uma unidade no espaço (domínio) em que esses processos operam:296 É como se, uma vez alcançado o fechamento do sistema, este automaticamente se encarrega da geração de suas regularidades internas.297 Dito de outro modo, o que caracteriza os sistemas autônomos é a recursão infinda (indefinite recursion)298 de suas relações constitutivas. E o que permite distinguir classes de sistemas autônomos é a natureza dessas relações constitutivas; por exemplo, os sistemas autopoiéticos são um caso particular dos sistemas autônomos, em que os processos constitutivos são processos de produção de componentes. Os sistemas autônomos, tal como os sistemas autopoiéticos, são mantenedores de si próprios: quaisquer contingências no ambiente somente podem atuar como fonte de perturbações; quaisquer mudanças internas para compensação destas perturbações estarão necessariamente subordinadas à conservação de sua identidade. 295 Ressalve-se que há seres multicelulares que são capazes de reproduzir-se por fracionamento, mas também por meio da etapa unicelular; há ainda outros que apenas reproduzem-se por fracionamento, e nesses a variação geracional não é celular, mas orgânica. 296 Novamente (cf. nota 264, p. 83), Maturana e Varela (especialmente este último) fornecem em seus textos mais de uma definição para um sistema autônomo, de que sintetizamos esta. 297 298 VARELA, 1984b : 26. Cf. VARELA, 1979: 56. 102 Do mesmo modo que a organização autopoiética implica a fenomenologia biológica, a cada classe de organização autônoma corresponde uma fenomenologia própria (por exemplo, a fenomenologia social). Assim, todo advento de uma classe de sistemas autônomos implica a emergência de um domínio fenomenológico particular: o domínio em que o sistema irá interagir sem perda de sua organização fechada (domínio cognitivo); ou ainda, o domínio da correspondência percebida, por um observador, entre os comportamentos do sistema e do ambiente (domínio comportamental). Autonomia implica precisamente que qualquer observação somente se dê como um acoplamento entre observador e sistema em alguma área de interseção entre os domínios de interação de ambos; ou ainda, que o sistema se faça distinguível, pelo observador, por sua própria coerência e viabilidade em um dado contexto (ambiente). Qualquer caracterização dos sistemas sociais, unidades de terceira ordem, demanda a caracterização das relações que definem a sociedade como uma unidade singular – esta, a tarefa precípua da Sociologia. Acompanhando Varela,299 nos é suficiente, por ora, caracterizar os sistemas sociais como sistemas autônomos, o que já incorre em profundas implicações. Por exemplo, se uma dada corporação tem um propósito, este pertence ao domínio descritivo de observadores que a ela o atribuem, mas não é constitutivo do operar da corporação; a atuação de pessoas que esposem um tal propósito, ainda que ocupantes de postos-chave, não corresponderá jamais a uma “instrução” ou “programação”, mas a uma perturbação dentre outras, que o sistema social (a corporação) compensará de um modo voltado à conservação de sua identidade, de modo independente de quaisquer propósitos que lhe sejam formalmente atribuídos. Dentre todos os que buscaram a caracterização dos sistemas sociais com base na teoria da autopoiesis, aquele cujo trabalho obteve maior repercussão (e que muito provavelmente foi o mais denso) foi Luhmann.300 Ao longo da década de 60 Luhmann 299 Ibid. 300 Cf. LUHMANN, 1995 (1984); ver também “The World Society as a Social System”. International Journal of General Systems, vol. 8, n. 2, pp. 131-138, 1982. Reimpresso em: GEYER, R. Felix, van der ZOUWEN, Johannes (eds.). Dependence and Inequality: A Systems Approach to the Problems of Mexico and other Developing Countries. Oxford (Reino Unido): Pergamon Press, pp. 295-306, 1982; “The Autopoiesis of Social Systems”. In: GEYER, van der ZOUWEN (eds.). Sociocybernetic Paradoxes: Observation, Control and Evolution of Self-steering Systems. Beverly Hills (Califórnia): Sage, pp. 172-192, 1986; e “The Modern Sciences and Phenomenology”. In: LUHMANN. Theories of Distinction: Redescribing the Descriptions of Modernity. Stanford (Califórnia): Stanford University 103 debruçara-se sobre o sistema jurídico-legal,301 tendo-o compreendido como autoreferenciado. A identidade desse sistema pode ser percebida como diretamente associada a um, digamos, princípio de aplicação isenta das leis, independente de estarem estas em consonância ou não com as circunstâncias do momento. Assim, devido a que os mecanismos de atualização das leis não contam com agilidade suficiente para acompanhar o ritmo das mudanças que se sucedem em todas as dimensões das sociedades, os sistemas jurídico-legais em todo o mundo têm-se tornado cada vez mais anacrônicos, uma vez que subordinam a compensação de qualquer perturbação oriunda do ambiente (sociedade) à conservação de sua identidade historicamente consolidada. Com o advento da teoria da autopoiesis, Luhmann pôde dispor das bases que lhe faltavam para a consecução de sua teoria da sociedade,302 em que: tanto os sistemas sociais como os sistemas psíquicos (as pessoas) são constituídos por processos de produção de significados (Sinn) que, continua e recursivamente, produzem tais sistemas (com o que Luhmann torna temporal a própria noção de sistema, de uma constituição por componentes para uma constituição por eventos); o que distingue sistemas psíquicos de sistemas sociais é a natureza dos processos produtores de significados (nos sistemas psíquicos, estados de consciência; nos sistemas sociais, comunicações); ambos operam de forma fechada na conservação de suas identidades; e eles compõem domínios fenomenológicos distintos, mutuamente dependentes um do outro para sua própria geração e conservação, porém não determinantes um do outro – o que implica não haver qualquer causalidade direta entre as ações das pessoas e a constituição dos sistemas sociais (!), perspectiva que acaba soando chocante frente a muitas noções usuais. Press, pp. 33-60, 2002. Alternativamente, ver Ökologische Kommunikation. Kann die moderne Gesellschaft sich auf ökologische Gefährdungen einstellen? Opladen (Alemanha): Westdeutscher Verlag, 1986; Essays on Self-reference. New York: Columbia University Press, 1990; Soziologie des Risikos. Berlin: Walter de Gruyter, 1991; Beobachtungen der Moderne. Opladen (Alemanha): Westdeutscher Verlag, 1992; Die Kunst der Gesellschaft. Frankfurt am Main (Alemanha): Suhrkamp Verlag, 1995; e Die Gesellschaft der Gesellschaft. Frankfurt am Main (Alemanha): Suhrkamp Verlag, 1997. 2 vols. 301 Ver Funktionen und Folgen formaler Organisation. Berlin: Duncker und Humblot, 1964; Grundrechte als Institution. Ein Beitrag zur politischen Soziologie, Berlin: Duncker und Humblot, 1965; Zweckbegriff und Systemrationalität. Über die Funktion von Zwecken in sozialen Systemen. Tübingen (Alemanha): Mohr, 1968; e Legitimation durch Verfahren. Neuwied (Alemanha): Luchterhand, 1969. 302 LUHMANN, 1995 (1984). 104 Varela versus Maturana Antes de prosseguir rumo ao tópico da autopoiesis que mais nos importa (a natureza biológica da cognição humana), cabe considerar a validade de descrições estritamente mecanicistas e causais para a caracterização das unidades de terceira ordem, em especial as sociedades. Para tanto, reproduzimos a seguir a divergência de cunho epistemológico havida entre Maturana303 e Varela304 quanto aos modos de explicação para a fenomenologia das unidades de ordens superiores. 303 MATURANA, 1981. Ver também “Scientific and Philosophical Theories”. In: LESER, SEIFERT, PLITZNER, op. cit. (nota 258, p. 80), pp. 358-374, 1991; e “The Nature of the Laws of Nature”. Systems Research and Behavioral Science, vol. 17, n. 5, pp. 459-468, 2000 304 VARELA, 1979, 1981a. 105 Frente ao amplo predomínio do discurso da biologia molecular centrado na idéia de teleonomia (o DNA como uma codificação que determinaria de antemão todos os caminhos evolutivos possíveis),305 eles de início recusam por completo qualquer papel causal, nos dois domínios fenomenológicos dos seres vivos (o domínio fisiológico de sua constituição, ou domínio da conservação de sua autopoiesis, e o domínio cognitivo de suas interações em um meio, ou domínio da conservação de sua adaptação), de noções pertencentes ao domínio do entendimento discursivo entre observadores (como código, informação, programa etc.). Tais noções seriam dispensáveis para uma caracterização do ser vivo, e sua validade seria restrita a contextos puramente pedagógicos (por exemplo, como metáforas). Para Varela, entretanto, o desenvolvimento completo da teoria da autopoiesis (lembremo-nos, referenciado na organização da célula) e suas repercussões terminaram por evidenciar a necessidade de alternativas viáveis para a compreensão de organizações cujas descrições, ao contrário da da célula, mostram-se inacessíveis (como as dos organismos). Ele passa a sustentar, como Maturana, que a noção de autopoiesis é necessária e suficiente para caracterizar o ser vivo; porém, e ao contrário deste, que ela não é suficiente para satisfazer a necessidade por explicações compreensíveis para a totalidade da fenomenologia biológica: Isto, no entanto, é remanescente da afirmação de que toda a história do Universo poderia ser determinada se apenas soubéssemos as posições e os momentos306 de todas as partículas do Universo, de modo a que suas trajetórias futuras pudessem ser calculadas. ... O que nós estamos dizendo, no caso da autopoiesis, é que se nós pudéssemos acompanhar todas as contingências pertinentes, a fenomenologia biológica revelar-se-ia a partir do mecanismo autopoiético.307 ... Se nós não aceitarmos mudar de uma descrição causal, a lida efetiva com o fenômeno evolutivo, que depende de questões de confiabilidade e reprodução, torna-se literalmente impossível de compreender. Como poderíamos conceber e refletir em termos puramente operacionais tudo a respeito de seqüências de unidades autopoiéticas, se nós mal podemos fazê-lo em relação a um único indivíduo? 308 Ambos continuam a concordar quanto a que qualquer relação de correspondência entre os dois domínios fenomenológicos (fisiológico e comportamental) somente pode ser estabelecida em um domínio de descrições por observadores (ou seja, um metadomínio) capazes de correlacionar suas distinções quanto às partes e ao todo por meio de noções 305 306 307 308 Remeter à p. 77. Produto da multiplicação de massa por velocidade. VARELA, 1981a: 42. Ibid., p. 44. 106 – derivadas da experiência humana – como propósito, controle, desenvolvimento, informação ou representação, por exemplo em discursos que relatam a “função exercida pelas células na regulação do organismo”. Maturana prossegue considerando o valor de tais discursos como estritamente pedagógico, ao passo que Varela passa a perseguir critérios que permitam dotá-los de valor explanatório relativo, e que os elevem à condição de modo de explicação complementar ao modo operacional-causal; um modo que ele denomina simbólico (mesmo porque qualquer modo de explicação é um discurso pertencente a um domínio descritivo entre observadores). Um símbolo corresponde a um distanciamento, em alguma medida arbitrário, entre significante e significado, de que a linguagem é o exemplo maior: o curso histórico do acoplamento entre as palavras e aquilo que elas referenciam nos é tão remoto que tudo o que nos resta é tomar este acoplamento por válido, pela razão óbvia de que somos capazes de compreendê-lo. Não nos será jamais possível rastrear os encadeamentos causais entre ondas sonoras no ar e mudanças de estado no cérebro, havidos ao longo de milênios. Podemos unicamente contar com as regularidades históricas desses processos, que já nos chegam expressas sob forma de símbolos. 107 Enquanto a explicação operacional busca nexos causais como que correspondentes a leis, a explicação simbólica busca padrões coerentes de comportamento, tornados identificáveis pela desconsideração deliberada de um grande número de etapas causais intermediárias, em uma abreviação das séries temporais (como se observássemos o fenômeno por uma luz estroboscópica lenta). Por exemplo, as transformações no DNA não são acompanhadas de modo contínuo, mas pela confrontação de instantes colhidos ao longo de gerações, pressupondo-se (o que não tem validade operacional) que todos os demais processos tenham se mantido dinamicamente estáveis. Ou ainda, como vimos, a transição em neurofisiologia de que se valeu a Cibernética, do analógico (contínuo) para o digital (descontínuo).309 Assim, a complementaridade entre explicações operacionais e simbólicas recupera a clássica dualidade entre tempo fisiológico e tempo evolutivo, ambos necessários à composição de um arcabouço explicativo satisfatório para a fenomenologia biológica: ... para compreender por completo como o domínio cognitivo de um tal sistema pode operar e ser modificado, nós temos de olhar para as regularidades dinâmicas que emergem no sistema e que possam ser tratadas como eventos simbólicos. Estes são essenciais porque o comportamento do sistema pode ser tratado como se operasse com base em um número discreto de regularidades, sob forma de regras operando sobre os símbolos de um alfabeto. O domínio cognitivo de um tal sistema pode operar como se sobre um conjunto de símbolos discretos, que respondem por uma dinâmica complexa e no entanto regular.310 (ênfases nossas) Em suma, a explicação operacional gira em torno do por que; a simbólica, do para que. O valor da explicação operacional deve-se a ela propiciar previsão e manipulação; o valor da explicação simbólica reside na comunicação de uma perspectiva inteligível a respeito do sistema ou fenômeno em questão. Na explicação operacional presume-se que os termos e as categorias utilizados sejam inerentes ao domínio em que operam os elementos geradores do fenômeno em tela; já na explicação simbólica o observador acrescenta associações e nexos que são estranhos a esse domínio, pois é ele, do seu ponto de vista, quem as gera. Referir-se a um papel alopoiético de uma unidade autopoiética (como acima, “a função exercida pelas células na regulação do organismo...”) demanda uma mudança de referencial, da autonomia (do sistema, no exemplo a célula) para restrições, dependência 309 310 Remeter à p. 35. VARELA, 1979: 81. 108 ou controle (pelo ambiente, no exemplo o organismo). Somente neste novo contexto pode ser considerado válido (valor comunicativo) o emprego de noções como input e output. Alternar entre os modos de explicação exige mudar o quadro de referência em que se opera, e Varela denomina admissíveis311 apenas aquelas explicações simbólicas em que isso seja deixado explícito. Qualquer obscurecimento quanto à dualidade para os modos de explicação acaba conduzindo ao equívoco de se tomar elementos simbólicos (discursivos) como se operacionais ou causais fossem, o que corresponde ao uso que Varela chama de tosco (naive)312 de noções como informação, função, propósito etc., levado a cabo de forma mesclada com noções de fundo material. Como exemplo maior, a visão representacionista da cognição. E, como não poderia deixar de ser, o papel “codificado” e “programador” do DNA, a que se atribui operacionalidade causal – um único componente a que são subsumidas todas as relações de especificidade313 da célula. A ânsia por explicações operacionais, tidas como as únicas portadoras de validade científica, concorre para que noções simbólicas sejam açodadamente introduzidas em uma explicação causal: Ao persistir com descrições puramente operacionais, nós somos forçados a utilizar outros modos descritivos de uma forma um tanto quanto descuidada e negligente, como é típico na biologia molecular.314 ... toda noção de informação, símbolo, ou sinal, é desprovida de substância e sempre codependente, jamais operacional. Não que alguém não possa fazê-la parecer bastante sólida em situações particulares: o perigo está em esquecer que somos nós que fazemos isso. Se nos esquecemos, então a informação se torna uma entidade mítica, um vago fluido boiando através da Natureza, o estofo a ser descoberto no DNA e nas linguagens aí fora.315 Por outro lado, com as marcantes repercussões da Cibernética e seus desdobramentos sob forma das tecnologias de informação (com os sistemas tornados objeto de projeto e prescrição) deu-se de fato nas sociedades uma ampla transmutação de perspectiva (de operacional para simbólico; teria sido impensável prescrever um computador por meio 311 312 313 314 315 Cf. ibid., pp. 79, 265-266. Cf. ibid., p. 70, VARELA, 1981a: 38. Remeter à p. 95. Ibid., p. 45. VARELA, 1979: 267. 109 das equações diferenciais relativas aos seus milhões de componentes eletrônicos) – que não foi, contudo, reconhecida como tal: O fato é que, no pós-guerra, a imaginação científica saltou dos watts para os bits, e em muito pouco tempo produziu uma mudança dramática não apenas nos contornos daquilo sobre que versa a pesquisa científica, mas, igualmente, na vida de todo mundo ... o computador de fato encarna a metáfora em termos do que tudo o mais é mensurado. A passada veloz no campo do design, com seu ethos inerentemente manipulativo, sobrepujou todas as demais fontes de imagens e de modos de compreensão. A informação ... se torna, inequivocamente, aquilo que é representado, e o que é representado é uma correspondência entre unidades simbólicas em uma estrutura e unidades simbólicas em uma outra estrutura.316 Assim, acabou disseminada, para muito além do domínio meramente prescritivo das engenharias, a noção de que “informação” seja portadora de realidade intrínseca (ao invés de elemento de um discurso entre observadores), seja algo que possa ser “captado” do ambiente, ou “transmitido” entre pessoas. Essas são explicações toscas, que comprometem em muito a tarefa de tornar explícita a distinção de natureza entre explicações operacionais e simbólicas, necessária sobremaneira no âmbito das ciências sociais, em que o papel da comunicação e da compreensão inteligíveis para toda uma comunidade de observadores é central (em detrimento de encadeamentos causais que se mostram impossíveis de serem rastreados, ou sequer identificados). Uma outra significativa contribuição de Varela foi o desenvolvimento de uma matemática descritiva da recursão infinda característica das organizações autônomas e autopoiéticas, em que a distinção entre operador e operando, um dos pilares da matemática clássica, colapsa, e em que são simultaneamente levados em conta as partes (domínio fisiológico), o todo (domínio comportamental) e a relação partes-todo (metadomínio descritivo em que o observador correlaciona ambos).317 316 Ibid., pp. xiii-xiv. 317 VARELA, 1979; GOGUEN, VARELA, 1979. Ver também “A Calculus for Self-reference”. International Journal of General Systems, vol. 2, pp. 5-24, 1975; “On Being Autonomous: The Lessons of Natural History for Systems Theory”. In: KLIR, op. cit. (nota 185, p. 55), pp. 77-85, 1978; e VARELA, GOGUEN, Joseph A. “The Arithmetic of Closure”. In: TRAPPL, Robert, KLIR, George J., RICCIARDI, Luigi M. (eds.). Progress in Cybernetics and Systems Research. Washington DC: Hemisphere Publishing, vol. 3, pp. 38-64, 1978. Reimpresso em: Journal of Cybernetics, vol. 8, pp. 291-324, 1978. Para a posição contrária de Maturana, ver “The Effectiveness of Mathematical Formalisms”. Cybernetics and Human Knowing, vol. 7, n. 2-3, pp. 147-150, 2000. 110 Cognição, um fenômeno individualizado Estamos agora aptos a retomar a trajetória de contínuas transformações estruturais nos seres vivos, que inicia no surgimento das primeiras células e vai até às formas humanas de cognição. O advento dos organismos multicelulares por acoplamentos estáveis entre células desencadeou uma enorme diversidade estrutural, ao possibilitar incontáveis modos de conservação do acoplamento estrutural com o meio (adaptação); por sua vez, o advento da reprodução sexual trouxe ainda mais variedade estrutural, pela riqueza de recombinações estruturais a cada evento reprodutivo. Nessa miríade de linhagens, a conservação de alguns modos particulares de acoplamento estrutural com o meio implicou o desenvolvimento, nestes organismos, de um tipo especial de células que correlacionam as atividades de todas as demais: as células nervosas. O advento de organismos dotados de sistema nervoso acarretou ainda mais diversidade estrutural, pois foi tornada possível aos organismos a capacidade de deslocamento (movimentação) no meio, o que veio ampliar imensamente seus domínios de interação (domínios cognitivos); por exemplo, em muitas espécies (como os animais), a alimentação e a reprodução foram tornadas dependentes do movimento, o que por sua vez implicou uma ainda maior complexificação (mudança estrutural) dos modos de autopoiesis. O caráter, próprio ao sistema nervoso, de instância de correlação entre todas as demais células (ou seja, instância de acoplamento entre elas) levou Maturana e Varela a propôlo como um sistema autônomo (ou seja, organizacionalmente fechado), um todo integrado estruturalmente acoplado tanto ao meio externo quanto ao restante do organismo. Sem a presença de um sistema nervoso, o acoplamento entre grupos celulares diferenciados (sensórios, motores, digestivos etc.) e distantes uns dos outros somente pode se dar pela circulação geral de humores no organismo; o sistema nervoso veio propiciar o estabelecimento de correlações entre áreas distantes de uma forma muitíssimo mais veloz, e por caminhos específicos sem afetação das áreas circundantes (disto decorre a capacidade de movimento). Ao longo das trajetórias de mudança estrutural da espécie (filogência) e do organismo imerso em seu meio (ontogênica), o sistema nervoso opera necessariamente na 111 conservação de suas próprias correlações internas. Assim, por exemplo, quando um gato volta seu olhar na direção de um pássaro que pousa, o que de fato ocorre é a perturbação, por variações do espectro luminoso, de células da retina que mudam de estado (estrutura), o que por sua vez representa uma perturbação para o sistema nervoso como um todo; este imediatamente opera no restabelecimento de suas correlações internas, que incluem acoplamentos entre suas superfícies sensoriais e superfícies motoras. É a mudança de estado nas superfícies motoras que corresponde ao comportamento, percebido pelo observador, de “voltar-se para o pássaro”, na verdade uma compensação estrutural do sistema nervoso (e, em decorrência, do organismo a que esse sistema encontra-se acoplado) a uma perturbação, associada à mudança estrutural do meio (o movimento do pássaro). Eis aqui também um exemplo para a distinção de natureza entre domínio fisiológico e domínio comportamental: qualquer coisa que seja compreendida como comportamento para o gato é uma leitura externa da permanente dança de correlações dinâmicas entre superfícies sensoriais e motoras acopladas, que implica a totalidade do sistema nervoso; uma vez que o número de estados possíveis para a rede neuronal é incomensurável, os comportamentos possíveis do organismo são também praticamente ilimitados (quantas trajetórias possíveis há para o salto de um gato?). Não apenas as ações que envolvem atividade cerebral, mas os próprios atos reflexos são expressão da manutenção das correlações internas do sistema nervoso: o encontro acidental da superfície da pele de um animal com uma superfície pontiaguda desencadeia uma mudança de estado em neurônios sensoriais conectados à medula espinhal, por sua vez conectada a neurônios motores, que imediatamente contraem músculos. O afastamento da pele da superfície pontiaguda desencadeia novas mudanças de estado na superfície sensorial, e é o restabelecimento de uma correlação sensóriomotora que leva à cessação do movimento de afastamento. Todas essas mudanças acabarão por refletir-se também em mudanças na atividade cerebral, por exemplo na sensação de dor e em ainda outras movimentações, como um giro na direção do corpo pontiagudo. Há muitíssimos mais neurônios de ligação (interneurônios) que neurônios sensoriais ou motores. No homem, apenas uns poucos milhares de músculos são ativados por cerca de um milhão de neurônios motores, por sua vez conectados a cerca de cem bilhões de 112 interneurônios aos quais estão também conectados algumas dezenas de milhões de células distribuídas pelas superfícies sensoriais do corpo, o que resulta em uma relação sensório-interno-motora da ordem de 10/100.000/1 – claramente governada pela dinâmica interna do sistema. De volta ao experimento original de Maturana que o levou à idéia de autopoiesis (a percepção visual das cores, em que situações diversas do espectro luminoso podem levar a uma mesma “cor vista”),318 deve ser levado em conta que a região do cérebro responsável pela visão (córtex visual) recebe, para cada neurônio oriundo da retina, cerca de cem neurônios oriundos de outras regiões. Além disso, o feixe de neurônios que conecta a retina ao córtex passa por uma “estação” intermediária (o núcleo geniculado lateral), para o que convergem, com efeitos superpostos, outros feixes de neurônios – oriundos inclusive do próprio córtex visual. Tudo isso indica não haver qualquer correlação direta entre atividade da retina e atividade do córtex visual: “eu tive de abandonar a questão, ‘como é que eu vejo essa cor?’, e perguntar ao invés, ‘o que se passa comigo quando eu digo que vejo uma tal cor?’”.319 O que se passa é a permanente perturbação recíproca entre todas as (muitas) estruturas envolvidas, em que as mudanças (moduladas, porém não determinadas, pela atividade da retina) são determinadas pela atividade relativa de todas essas estruturas, não pela atividade de nenhuma estrutura em particular; essas mudanças se dão de forma subordinada à conservação da identidade do sistema como um todo, paulatinamente constituída ao longo das trajetórias de mudança estrutural filogênica (evolução) e ontogêntica (adaptação ao meio). A “cor” que o animal “vê” é assim uma correlação neuronal interna que corresponde a uma expressão, no presente, dessa identidade histórica, e não a uma “captação” de uma realidade objetiva exterior: ... nós tendemos a pensar na cor como um atributo dos objetos. No entanto, sob um exame acurado a cor é virtualmente independente (exceto em situações muito restritas) da iluminação que chega ao olho. A cor se define para nós, na experiência, por um mecanismo ao qual nós não temos acesso experiencial direto. Tal mecanismo consiste, essencialmente, de uma operação de comparação relativa entre níveis de atividade, e as invariantes provenientes desta espécie de mecanismo correlacionam perfeitamente com nossa experiência de cores.320 318 319 320 Remeter à p. 79. MATURANA, 2002 (1999): 5. VARELA, 1984b: 28-29. 113 Por sua vez, qualquer comensurabilidade entre as “cores vistas” pelos diferentes indivíduos de uma espécie expressa meramente a estabilidade das dinâmicas estruturais que permite a distinção, na qualidade de espécie, de uma dada classe de seres vivos. No caso dos seres humanos, os consensos lingüísticos historicamente constituídos compõem também o lastro dessas dinâmicas estruturais, e assim atribuímos “nomes” supostamente universais às cores – cada um somente vê o seu céu, mas todos o vêem “azul”. Experimentos anteriores aos de Maturana já demonstravam a subordinação, à conservação da autopoiesis, da conservação da adaptação ao meio, expressão do caráter essencialmente autônomo da organização dos seres vivos. Já na década de 40, foram realizados experimentos321 com salamandras em que se secionava parte da musculatura de um dos olhos de uma larva que era então invertido (girado 180 graus; deve-se lembrar que o posicionamento lateral dos olhos da salamandra permite-lhe um campo de visão de 360 graus). Após o desenvolvimento até a fase adulta eram sucessivamente dispostos insetos em uma mesma posição, digamos, à frente e um pouco abaixo da salamandra: ao se cobrir seu olho invertido, o animal projeta sua língua e captura com perfeição o alvo; ao se cobrir seu olho normal, o animal projeta sua língua no vazio, na direção exatamente oposta – para trás, e um pouco acima. As correlações estruturais internas entre as células da retina e os nervos que contraem músculos motores da língua mantêm-se inalteradas, independentemente da realidade exterior “vista”. Poderia uma salamandra com os dois olhos invertidos e mantida viva por outros meios que não a captura de alimento recuperar, com o tempo, sua capacidade de nutrição autônoma (ou seja, de conservação ao meio), pela inversão também na motricidade da língua? Teremos oportunidade de voltar ao tema das condições para um resgate da conservação da adaptação. Não obstante, ao final do século XIX, movido pela indagação quanto a como podemos ver corretamente o que vemos se as imagens são projetadas de modo invertido na retina, Stratton322 adaptou a si próprio óculos que o 321 Ver SPERRY, Roger W. “Restoration of Vision after Crossing of Optic Nerves and after Contralateral Transplantation of Eye”. Journal of Neurophysiology, vol. 8, pp. 15-28, 1945. 322 George Malcolm Stratton (EUA; 1865-1957); ver “Some Preliminary Experiments on Vision without Inversion of the Retinal Image”. Psychological Review, vol. 3, pp. 611-617, 1896; “Upright Vision and the Retinal Image”. 114 faziam ver o mundo de cabeça para baixo. Após cerca de uma semana de severa desorientação, sua visão voltou a gerar imagens em suas posições habituais; alguns dias mais e ele retirou os óculos, com o que por várias horas tudo voltou a ser visto de cabeça para baixo até que, finalmente, seu sistema nervoso resgatou suas correlações originais (não deve ser negligenciado o fato de que Stratton, ao contrário das salamandras, sabia o que se passava com sua visão). Comunicação e linguagem Como vimos, o surgimento de unidades de terceira ordem se dá pela estabilização dos acoplamentos entre unidades de segunda ordem, por sua vez surgidos como modo de satisfação da autopoiesis dessas unidades (na medida em que favorecem sua viabilidade). Em unidades que são dotadas de sistema nervoso, o incomensurável número de seus estados internos configura também perturbações a que o sistema responde. Dessa capacidade do sistema nervoso de interagir de modo recursivo com seus próprios estados internos advém um novo salto qualitativo, o potencial para participação em um modo particular de acoplamentos temporários e recorrentes entre duas ou mais unidades: um modo comunicativo, em que o operar de uma dada unidade se destaca, no meio, como contexto privilegiado para a satisfação da autopoiesis da(s) outra(s), e vice-versa. Um acoplamento comunicativo advém sempre que um dado comportamento de uma unidade deslancha uma seqüência de comportamentos encadeados, ao constituir uma perturbação a ser compensada pela(s) outra(s) unidade(s), por meio de um novo comportamento nesta(s), o que por sua vez é perturbação a ser compensada pela primeira unidade implicando em um novo comportamento para esta, que implica, recursivamente, novas perturbações... novas compensações... novos comportamentos... e assim sucessivamente. Os acoplamentos comunicativos surgem como modos de conservação da adaptação das unidades ao meio na medida em que eles propiciam uma coordenação de Psychological Review, vol. 4, pp. 182-187, 1897; e “Vision without Inversion of the Retinal Image”. Psychological Review, vol. 4, pp. 341-360, 463–481, 1897. 115 comportamentos que favorece essa conservação (basta lembrar que a própria reprodução sexuada, bem como em inúmeros casos o cuidado com os filhotes, requer condutas coordenadas entre macho e fêmea). A comunicação é assim a natureza dos acoplamentos em que as condutas das unidades envolvidas são reciprocamente selecionadas (logo, mutuamente coordenadas). Por exemplo, ao perceber a presença de um intruso, um bando de antílopes montanheses dispara na direção de alguma elevação de onde possa, em segurança, acompanhar a movimentação do estranho, enquanto que um antílope retardatário o mantém sob suas vistas até que o bando já esteja posicionado para voltar a monitorá-lo, e somente então se reúne a ele – trata-se de uma fuga coordenada. Ou ainda, um casal de leões, ou uma alcatéia de lobos, coordena suas atividades de caça com especialização de papéis (impelir a caça na direção desejada, cansar a caça, cortar suas rotas de fuga, abatê-la). De um modo geral é necessária alguma compatibilidade estrutural mínima para que a comunicação possa ocorrer (Maturana se refere a uma “vasta coincidência” entre os domínios cognitivos envolvidos),323 e devido a isso ela se dá predominantemente entre indivíduos de uma mesma espécie. Isso no entanto não impede a ocorrência de interações comunicativas entre seres humanos e seus animais domésticos, ou entre cães e gatos que tenham sido criados juntos, ou ainda entre indivíduos de espécies distintas sob circunstâncias de exceção na Natureza selvagem, numa extraordinária demonstração da capacidade de mudança estrutural nos indivíduos como modo de conservação de sua adaptação ao meio. O repertório de comportamentos comunicativos (que se dão por meio de interações sonoras, olfativas, táteis ou visuais, estas englobando toda sorte de gestos, posturas e movimentos; ou até mesmo pela troca de substâncias gástricas, entre insetos sociais como as formigas) encontra-se corporificado em estruturas que podem ter origem filogênica (ou seja, trata-se de comunicações instintivas para toda uma espécie), ontogênica (comunicações aprendidas pelos indivíduos no curso de sua adaptação ao meio), ou ainda cultural (comunicações aprendidas que são replicadas entre gerações pela imitação dos adultos pelos jovens, e assim tornadas estáveis no tempo). Por exemplo, as trocas químicas entre formigas são instintivas, enquanto que as melodias 323 Cf. MATURANA, 1980a (1969): 27. 116 entre casais de papagaios são próprias a cada casal, portanto aprendidas, sem serem repassadas aos filhotes. Já uma clara distinção entre comunicações instintivas e culturais na Natureza é tarefa que apresenta dificuldades, e assim muitos dos exemplos de comunicações culturais de que dispomos referem-se àquelas desencadeadas, intencionalmente ou não, pela ação humana – portanto passíveis de terem seu início demarcado. Na Inglaterra, após a substituição dos tradicionais lacres de papelão das garrafas de leite por lacres mais delgados de alumínio, alguns chapins (pássaros que se deslocam em grupo e costumam trocar freqüentemente de bando) e tordos (aves que vivem em áreas bem delimitadas e comunicam-se agressivamente entre si nas fronteiras de seus territórios) aprenderam a bicar os lacres das garrafas deixadas nas portas das casas até furá-los; o conhecimento quanto a esse modo de obtenção de alimento disseminou-se rapidamente entre todos os chapins da ilha, e perpetuou-se pelas gerações por meio da imitação (também uma coordenação entre comportamentos), pelos jovens, do comportamento dos mais velhos. O mesmo não ocorreu com os tordos, em que, a cada geração, apenas alguns indivíduos dão conta de aprender a furar os lacres.324 Outro exemplo é um experimento feito com macacos habitantes das matas de arquipélagos do Japão.325 Ao dispor na areia das praias batatas e trigo, os pesquisadores inicialmente conseguiram que alguns macacos passassem a deslocar-se até a praia, comportamento que logo se espalhou para os demais; posteriormente, uma fêmea, a que se chamou Imo, descobriu que as batatas podiam ser limpas da areia se lavadas na água do mar, e esse comportamento também se disseminou; finalmente, Imo descobriu uma forma de mergulhar o trigo e deixá-lo flutuar para separá-lo da areia, e aos poucos todos os outros macacos foram capazes de aprender tal técnica, transmissível entre gerações. Dado interessante (a que retornaremos) é que os que se demoravam mais para assimilar os novos comportamentos eram sempre os indivíduos mais velhos – ou seja, aqueles com dinâmicas estruturais estáveis por mais tempo. 324 Ver WYLES, Jeff S., KUNKEL, Joseph G., WILSON, Allan C. “Birds, Behavior, and Anatomical Evolution”. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA, vol. 80, n. 14, pp. 4394-4397, 1983. 325 Ver KAWAMURA, Shunzo. “The Process of Sub-culture Propagation among Japanese Macaques”. Primates, vol. 2, pp. 43-60, 1959. 117 Ao conjunto das condutas comunicativas Maturana e Varela denominam domínio lingüístico, devido a ser possível ao observador atribuir um significado (ou conteúdo semântico) a cada comportamento comunicativo, e considerar tal significado como determinante para o curso das interações. Já a linguagem é um caso particular de comunicação, que emerge quando os comportamentos comunicativos podem ser tornados, eles próprios, distinguíveis no meio (ou seja, quando passam a guardar correspondência com correlações neuronais específicas que, por sua vez, passam a operar como perturbações para o sistema nervoso, fomentando a coordenação da condutas). Dito de outra forma, as comunicações passam a conformar descrições desse meio, descrições com que se pode interagir (ou seja, tornadas também componentes estruturais do meio a que se acopla, também perturbações cuja compensação se vale da coordenação de comportamentos). É quando o domínio lingüístico torna-se de fato um domínio semântico, porção indistinguível (porque porção de estados do sistema nervoso) do domínio de interações em que tem lugar a conservação da adaptação – para os seres humanos, as palavras (melhor, seus significados percebidos) também operam como seletoras de suas mudanças estruturais. Conservamos nossa adaptação em um mundo de significados em permanente expansão: a recorrência das interações lingüísticas nos permite, em recursão infinda, “descrever nossas descrições” – construir consensualmente novas distinções a partir de distinções já estabelecidas. Uma vez que o homem desenvolveu a capacidade de interagir de modo recursivo com seus próprios estados neuronais internos (capacidade de abstração), ele se encontra em condições de expandir indefinidamente seu domínio cognitivo; e, por dispor de uma linguagem, não há limites para o que ele possa descrever. A própria concepção do termo “autopoiesis” é um exemplo disso: Após alguns anos... eu me dei conta de que a dificuldade era tanto epistemológica quanto lingüística... somente é possível dizer-se, com uma dada linguagem, aquilo que a linguagem permite. Eu tinha de parar de olhar para os sistemas vivos como sistemas abertos definidos em um ambiente, e eu precisava de uma linguagem que me permitisse descrever um sistema autônomo de uma maneira que retivesse a autonomia como um atributo do sistema, ou entidade, especificado pela descrição.326 ... [autopoiesis] era uma palavra sem uma história, uma palavra que poderia diretamente expressar o que acontece nas dinâmicas de autonomia próprias aos sistemas vivos.327 326 327 MATURANA, 1980c: xiii. Ibid., p. xvii 118 Denomina-se domínio semântico ao conjunto das condutas coordenadas por consensos na linguagem devido a ser possível, a um observador, inferir a existência de algum tipo de mapeamento, no sistema nervoso dos participantes, das circunstâncias de suas interações (ou seja, uma representação do meio), e vê-lo como determinante para o curso de suas mudanças de estado. Não obstante, a linguagem é nada mais que um fenômeno biológico, um processo de mudanças estruturais encadeadas em unidades autônomas acopladas que corresponde a uma coordenação de coordenações de comportamentos, ou seja, a uma metacomunicação (comunicações a respeito de comunicações coordenadoras de comportamentos: descrições). A distinção entre comunicação e linguagem pode ser exemplificada pela relação de um homem com seu animal doméstico: um gato, como forma de pedir leite a seu dono, todo dia pela manhã dirige-se até a geladeira e mia, com o que seu dono também vai à geladeira e serve leite ao gato – o gato e seu dono coordenam mutuamente suas condutas: eles se comunicam. Chega um dado dia em que o homem sabe que não há leite na geladeira, portanto não vai à cozinha após o miado do gato, com o que o gato continua a miar. Se nessa hora o gato dispusesse de algum modo de expressar para seu dono algo como “bolas, eu já miei três vezes! Cadê o meu leite?”, isto configuraria uma comunicação a respeito de uma comunicação anterior (o miado de sempre), ou seja, uma descrição em que se distingue o próprio comportamento comunicativo – seria linguagem. A capacidade de operar na linguagem, natural no homem, não é exclusiva a ele: há indicações de que os golfinhos detêm uma linguagem eminentemente auditiva; já chimpanzés e gorilas são até mesmo capazes de aprender com os humanos os rudimentos de linguagens gestuais, como as linguagens usadas pelos surdos-mudos. Aparentemente, a principal limitação desses primatas para a linguagem falada está em seu aparelho vocal, não em suas capacidades cognitivas; pode-se supor que foi o advento da linguagem em suas formas primitivas que induziu, no homem, ao progressivo desenvolvimento estrutural de seu aparelho vocal – e não o contrário. 119 Muito provavelmente, foi na coordenação de atividades como o transporte por longas distâncias de alimentos coletados que os hominídeos primitivos começaram a distinguir (descrever) elementos de seu mundo por meio de vocalizações, e a interagir com essas distinções, expandindo assim seus domínios de interação – seus domínios cognitivos. Seguiram-se distinções de distinções, num processo recursivo e infindo de contínua criação de um mundo em comum na linguagem. Duas ou mais pessoas engajadas na tarefa de cavar um buraco distinguem na linguagem, de modo consensual, elementos de seu mundo tais como “pedra”, “terra” ou “pá”, e ao interagir com essas distinções coordenam suas condutas. Mas, a partir do momento em que um deles passa a chamar o buraco de “cisterna”, “silo”, “cova” ou “lixeira”, emerge um novo consenso a respeito daquele mundo em comum. O homem primitivo, a partir do instante em que descreve (distingue) a si próprio na linguagem e converte a si mesmo em mais um elemento de seu mundo, emerge como observador nele. Toda e qualquer descrição do mundo é uma descrição por alguém, uma descrição que correlaciona elementos do mundo do descritor, inclusive ele próprio: “tudo que é dito é dito por um observador”.328 É na linguagem que se dá a construção e a renovação de consensos a respeito do mundo, um mundo que não tem como ser conhecido em comum, posto que nele toda cognição é individual, mas que é necessariamente vivido em comum – na linguagem. A mais significativa expressão da diversidade cultural humana é a diversidade da linguagem – a diversidade dos mundos historicamente construídos ao longo das trajetórias de mudança estrutural de homens em mútua coordenação de condutas. Esses mundos originam-se em muitos tempos e lugares, e continuamente se bifurcam, dando origem a novos mundos. Por exemplo, dentre os inúmeros modos de distinção consensual do elemento “pai” no mundo para que com ele se possa interagir, muitos tiveram uma origem comum: pater, pai, père, padre, father ou vater, cada um deles resultado de seleção havida em um curso particular de expansão de um dado domínio de interações: ... a estrutura sintática, ou gramática, superficial em uma dada linguagem natural pode apenas ser uma descrição das regularidades na concatenação dos elementos de conduta consensual. Em 328 MATURANA, 1980a (1969): 8. 120 princípio, esta sintaxe superficial pode ser qualquer uma, porque sua determinação é contingente à história de acoplamentos estruturais, e não é um resultado necessário de alguma fisiologia necessária. Reciprocamente, a “gramática universal” de que falam os lingüistas, como o necessário conjunto de regras subjacentes comum a todas as linguagens naturais humanas, pode somente referir-se à universalidade do processo de acoplamento estrutural recursivo que se dá nos humanos, por meio da aplicação recursiva dos componentes de um domínio consensual no329 domínio consensual.330 O caráter aparentemente arbitrário das diversas formas semânticas tende a encobrir a natureza histórica de sua constituição, na recorrência das interações que coordenam as condutas humanas. Tal trajetória recursiva oculta necessariamente suas origens: tendemos a tomar as regularidades de nossos mundos, que vão de cores a normas sociais, como intrinsecamente reais, não como acumulações, construtos históricos. Atingir uma tal consciência corresponde, nas palavras de Maturana, a “uma transição fundamental, de um domínio de ontologias transcendentais para um domínio de ontologias constitutivas”.331 A linguagem não é um “sistema de comunicação” inventado por alguém em sua apreensão do mundo, e a seguir ensinado a outrem – logo, ela não nos serve como meio para revelação desse mundo. A linguagem surgiu não como modo de referenciar entidades independentes, mas como modo de prover orientação, dentro de seu próprio domínio cognitivo, a cada participante de interações em um domínio consensual de condutas. Toda realidade é recursivamente gerada e renovada na linguagem: Seres humanos podem falar sobre coisas porque eles geram as coisas sobre as quais falam ao falar sobre elas. Isto é, seres humanos podem falar sobre coisas porque eles as geram ao fazer distinções que as especificam em um domínio consensual, e porque, operacionalmente, o falar se dá no mesmo domínio fenomenológico em que as coisas são definidas como relações entre atividades neuronais relativas, em uma rede neuronal fechada.332 Nesse processo, é impossível identificar as origens de uma dada percepção. Ela é sempre uma percepção a partir de uma percepção a partir de uma percepção... (a descrição de uma descrição de uma descrição... a distinção de uma distinção...): “não há 329 330 331 332 No original, grafado como “without” ao invés de “within”, para nós um claro erro de transcrição. MATURANA, 1978: 52. MATURANA, 2002 (1999): 34. MATURANA, 1978: 56. 121 lugar algum em que nós possamos lançar âncora e dizer: ‘Aqui foi onde a percepção se iniciou; foi assim que ela se deu’”.333 Não há descrições fora da linguagem, e não há linguagem fora das interações (“uma descrição implica sempre uma interação”).334 Nosso viver é indissociável da trama de acoplamentos estruturais lingüísticos em que nos encontramos imbricados desde sempre. É no viver na linguagem (“nós vivemos e respiramos no diálogo e na linguagem”)335 que nossa cognição é o processo de uma permanente criação, no contexto de um domínio consensual de condutas, de um mundo por cada um. O peso da tradição Pela teoria da autopoiesis, que examinamos em extensão, a chave para o entendimento da cognição humana reside na compreensão do continuum biológico consistido pelos processos históricos de transformação estrutural. Vimos acima (p. 61) as origens da concepção representacionista para a cognição. Vimos ainda (p. 92) que, para Maturana e Varela, o fenômeno da cognição corresponde a uma decorrência (manifestada no domínio comportamental do ser vivo como conservação de sua adaptação ao meio) de um outro fenômeno (este pertencente ao seu domínio fisiológico): a conservação de sua autopoiesis (por sua vez manifestada como especificação contínua de uma realidade). Também vimos que a idéia de uma apreensão da realidade (consubstanciada na construção de uma representação sua) corresponde a nada além de uma projeção, sobre o domínio operacional dos seres vivos, de descrições, de natureza simbólica, pertencentes a um domínio lingüístico de construção de consensos a respeito do real entre observadores: “realidade é uma noção explanatória inventada para explicar a experiência da cognição”.336 333 334 335 336 VARELA, 1984a (1981): 320. MATURANA, 1978: 61. VARELA, 1979: 268. MATURANA, 1978: 32. 122 Esta negação do representacionismo e de sua idéia de um mundo objetivo único não implica, de forma alguma, o resvalar para o caos do solipsismo, a primazia da pura subjetividade. Se não há acesso direto possível ao mundo, apenas a cognição, por cada um, de seu mundo individualizado, tampouco há incomensurabilidade entre o conjunto de mundos em uma comunidade ou sociedade – porque esses mundos somente podem originar-se a partir de alguma tradição, ou seja, como eventos em uma trajetória histórica de acoplamentos comunicativos de natureza cultural entre os indivíduos componentes de unidades de terceira ordem (comunidades e sociedades – unidades autônomas que também operam na conservação de suas identidades): “tudo o que é dito é dito a partir de uma tradição. Toda afirmação reflete uma história de interações à qual não podemos escapar, porque é isto o que torna possível a linguagem humana”.337 Assim, durante milênios os navegadores adentravam os mares aterrorizados com a perspectiva de cair pela borda do mundo – um mundo que era então, para todos, plano. Também durante milênios, os homens que viam o Sol nascer em lado do céu e pôr-se no lado oposto acreditaram girar o Sol em torno da Terra; após construir um telescópio e comprovar a tese de Copérnico338 de que é a Terra que gira em torno do Sol, Galileu339 veio a vivenciar de modo dramático o peso da tradição, e os riscos de propor uma realidade (um mundo) diametralmente contrária à dos demais. É o caso de se perguntar: quantas das “realidades” contemporâneas não estarão, no futuro, igualmente reduzidas à condição de crendices? Há inúmeros outros exemplos: em um mundo que de início somente Gandhi340 conhecia havia espaço para uma Índia independente da Inglaterra sem recurso à violência; seu feito notável foi ter logrado compartilhar essa sua realidade com milhões de compatriotas seus. Há também espaço potencial para quaisquer conjecturas quanto aos mundos que os homens possam se propor a criar juntos: por exemplo, no presente, sabe-se (conhece-se) que já estão concebidos meios tecnológicos potenciais para prover condições dignas de subsistência para a totalidade da população sobre a Terra; sabe-se (conhece-se) também 337 VARELA, 1979: 268. 338 Nicolaus Copernicus (n. Mikolaj Kopernik, Polônia (Prússia); 1473-1543); ref. hist.: De revolutionibus orbium coelestium. Nürnberg (Alemanha): Johann Petreius, 1543. (Publicação póstuma por Andreas Osiander). 339 340 Galileo Galilei (República de Florença (hoje Itália); 1564-1642). Mohandas Karamchand (Mahatma) Gandhi (Índia; 1869-1948). 123 que a instituição “emprego” (que correlaciona aplicação de trabalho com aquisição de meios para subsistência) mostra-se cada vez mais ineficaz como meio para a conservação das sociedades; é possível que, no futuro, se venha a conhecer também a viabilidade de sociedades em que a todos sejam providos, de um modo dissociado, tanto meios de subsistência quanto meios para o exercício de atividades (pois que ambos são necessários à conservação da autopoiesis dos indivíduos).341 O papel de âncora desempenhado pela inércia da tradição nos domínios sociais humanos encontra amplo correlato nos demais domínios biológicos. O observador chama os comportamentos do ser vivo por ele percebidos como inadequados no meio, de comportamento no vazio (se se trata de comportamento instintivo) ou de equívoco ou erro (se se trata de comportamento aprendido); em todo caso, o que ocorre é desacoplamento estrutural circunstancial, devido à independência operacional entre as dinâmicas de mudança de estado no organismo e no meio, uma vez que os respectivos ritmos (time courses)342 de transformação estrutural não propiciaram (ainda) o acoplamento (ou, caso nunca logrem propiciá-lo, conformam desde já interações desintegradoras). É ainda possível ao observador descrever como ansiedade os comportamentos peculiares de um ser vivo ao tomar parte pela primeira vez em uma classe de interações até então inédita para ele. O potencial para mudanças de estado em uma unidade é dado por sua estrutura que, por sua vez, resulta da história de acoplamento estrutural dessa unidade que, por seu turno, traduz uma história de busca por estabilidade: a conservação da identidade em uma unidade, seja de primeira, segunda ou terceira ordem, se dá na produção e renovação de regularidades internas. Devido a isso, a contrapartida da conservação da identidade é a inércia das regularidades estruturais, que face a mudanças buscas no meio tende a constituir empecilho à conservação da adaptação. Como exemplo, a demarcação das distintas eras e períodos geológicos, com durações de dezenas de milhões de anos, se dá pela constatação de extinções maciças de espécies em períodos “curtos” de alguns milhares de anos, atribuídas a mudanças climáticas profundas. 341 342 Cf. BAUER, 2002: 36. Cf. MATURANA, 1978: 46. 124 De modo autônomo, o tempo para que a conservação da autopoiesis acabe por refletir-se também em conservação da adaptação ao meio por via de mudanças estruturais é um tempo necessariamente individualizado: ... se um organismo viesse a ser retirado do meio ao qual é estruturalmente acoplado, ele prosseguiria em suas mudanças de estado estruturalmente determinadas independentemente da inadequação destas às mudanças de estado do novo ambiente, e, cedo ou tarde, desintegrar-seia.343 É devido a isso que a transferência abrupta de seres vivos já adaptados a ambientes muito poluídos para seus supostos ambientes “naturais” (limpos) pode levá-los à morte por choque. Do mesmo modo, prisioneiros mantidos por longos períodos em ambientes sem iluminação podem ficar cegos quando novamente expostos à luz; e, ao final da Segunda Guerra Mundial, foi por oferecer rações militares enlatadas de alto teor calórico a sobreviventes esqueléticos recém-libertados de campos de concentração que soldados americanos inadvertidamente levaram muitos deles à morte. No que diz respeito às adaptações de fundo cultural (tradições), a situação não é diferente. Nosso perfil de acoplamento social mantém-se por tanto tempo estável que é somente quando somos transplantados para um outro meio (uma outra tradição) que, muitas vezes sob efeito de choque, nos damos conta de quantas dentre as nossas “realidades” pouco ou nenhum sentido fazendo para os indivíduos da sociedade estrangeira. Só se logra enxergar o óbvio na perturbação desse óbvio. Mesmo no seio de nossas próprias tradições, a fase inicial de construção de regularidades quando da formação de novos acoplamentos comporta tensões e risco de mal-entendidos. Maturana distingue (e chama-a conversação) a etapa de interações criativas em que há seleção de novos comportamentos e de um perfil específico de acoplamento estrutural, quando então ela cede lugar à comunicação, a coordenação por interações não-criativas de condutas já estabelecidas (rotina).344 343 344 MATURANA, 1975 (1974): 331. Cf. MATURANA, 1978: 54-55. 125 Em suma, o homem é autônomo em sua cognição, porém seu domínio cognitivo é modulado pela identidade, também autônoma, da sociedade a que pertence: Nós fomos educados ... em meio a uma tradição, e com uma estrutura biológica aos quais não temos como escapar, ou fingir não possuir. Portanto nós somos dotados, por necessidade, de um mundo de regularidades compartilhadas o qual não podemos alterar por voluntarismo. De fato, o ato de entendimento situa-se basicamente além da nossa vontade, precisamente porque a autonomia do sistema sócio-biológico em que nos encontramos inseridos se estende para além dos nossos miolos, porque a nossa evolução nos torna parte de um agregado social e de um agregado natural, dotados de uma autonomia compatível com, porém não redutível a, nossas autonomias enquanto indivíduos biológicos. É precisamente por isso que eu tenho insistido tanto [ao contrário de Maturana] em falar a respeito de uma comunidade-observadora ao invés de a respeito de um observador; o conhecedor não é o indivíduo biológico. Assim, esta epistemologia da participação vê o homem em continuidade com o mundo natural, em que o conhecimento vem à vida em unidades autônomas em meio a um emaranhado de histórias inertes entrelaçadas, como um castelo de cartas – estruturado, a despeito de auferir seu conteúdo e solidez a partir de si.345 (ênfases de Varela) Compreender o papel desempenhado pelo social na conformação da cognição humana requer uma vez mais recorrer ao continuum biológico dos processos de transformação estrutural. Do ponto de vista da conservação da identidade da unidade de ordem superior, os componentes (as unidades de ordem inferior) são individualmente dispensáveis ou substituíveis; pode-se considerar que o grau de autonomia efetiva com que contam as unidades de ordem inferior é inversamente proporcional ao tempo em que se encontra estabelecida sua pertença à unidade de ordem superior. Assim, ao longo dos processos de constituição das unidades de segunda ordem (centenas de milhões de anos), a conservação da adaptação dos organismos termina por selecionar a estabilização das propriedades das células que o compõem, e advêm inclusive mecanismos para eliminação das células que saem da norma. Já no processo de constituição de unidades de terceira ordem (centenas de milhares de anos), um equilíbrio entre as conservações individual e coletiva advém na medida em que os organismos incluem a conservação das estruturas sociais a que pertencem como parte da dinâmica de sua própria conservação (como no exemplo apresentado do antílope montanhês), ou seja, em que sua autopoiesis incorpora a pertença ao grupo de que faz parte. Por fim, mesmo os acoplamentos sociais humanos, que são os mais recentes na Natureza (e por isso mesmo os que menos inibem a autonomia de seus componentes) também contam com mecanismos próprios de retenção dos indivíduos em faixas de comportamento socialmente aceitáveis. 345 VARELA, 1979: 275-276. 126 Se de um lado a conservação da adaptação dos seres humanos ao meio demanda sua operação nos domínios de coordenações de condutas tais como existentes, por outro lado cada indivíduo opera antes de tudo na conservação de sua própria identidade. Consideremos um caso pitoresco:346 em uma reunião dos Alcoólicos Anônimos, o monitor propõe ao grupo uma experiência de contato direto com a realidade objetiva. Ele toma então dois frascos de vidro, enche um com água e outro com álcool; pega um pequeno verme e deixa-o cair no frasco com água: o verme afunda, alguns segundos depois começa a se movimentar, chega à superfície e nada até a borda. O monitor apanha novamente o verme, deixando-o desta vez cair no frasco com álcool: ele novamente afunda, porém dessa vez permanece inerte; instantes depois ele começa a se desintegrar. Depois de algum tempo, do verme só resta uma região turva em meio ao líquido cristalino. O monitor então pergunta: “Todos viram?” Sim, todos. “E a que conclusão podemos chegar?” Uma mão se levanta: “Entendo que, se bebermos álcool, não teremos vermes”. Viver é conhecer, conhecer é viver. Aquele alcoólatra renovou o seu conhecimento sobre a sua realidade de forma referenciada em quem ele era – um alcoólatra. Aquilo que somos determina os limites para o que podemos conhecer, ao mesmo tempo que aquilo que conhecemos é o que recria aquilo que somos – autopoiesis: ... a referência última a qualquer descrição é o próprio observador... uma compreensão da cognição como um fenômeno biológico tem de dar conta do observador, e de seu papel quanto a ela.347 ... A pergunta, “O que é o objeto do conhecimento?” torna-se sem sentido. Não há objeto do conhecimento. Conhecer é estar apto a operar adequadamente em uma situação individual ou cooperativa.348 A compreensão biológica da condição humana proposta por Maturana e Varela abre incontáveis desdobramentos em ciência social, e mesmo nas interseções desta com a Biologia (pode-se, por exemplo, compreender o fenômeno da somatização como o reflexo, na unidade de segunda ordem, das inconsistências entre conservação da identidade e conservação da adaptação, oriundas dos modos particulares de acoplamento nas unidades de terceira ordem a que o indivíduo pertence). É digno de 346 347 348 Extraído de BAUER, 2002: 32. MATURANA, 1980a (1969): 8-9. Ibid., p. 53. 127 destaque o que Maturana e Varela chamam “ética da responsabilidade”: construímos internamente o mundo ao nosso redor, pautamos nessa construção toda a nossa atuação nesse mundo, e somos por ele também construídos numa jornada em comum. A noção até então prevalente de que seríamos meros processadores das informações provenientes de um mundo previamente estabelecido induz à acomodação, como se fôssemos guiados por instruções externas, e nos coloca no confortável papel de “consumidores” passivos da realidade, ao invés do papel desafiante de construtores ativos dela. A individualidade tem por contrapartida a responsabilidade: se vivemos nossas vidas de uma forma insatisfatória para nós, se construímos destinos indesejados para nós, a responsabilidade cabe unicamente a nós mesmos. Explorar em detalhe os desdobramentos da autopoiesis nas ciências sociais exigiria um trabalho ainda mais extenso; limitar-nos-emos a indicar aqui as contribuições feitas nesse sentido à época da consolidação da teoria da autopoiesis349 e as que advieram posteriormente, por um mais arrojado Maturana350 (focado na capacidade criativa do indivíduo de operar como observador do meio social em que se encontra imerso) e um mais parcimonioso Varela351 (mais atinente ao papel desempenhado pela tradição), que enveredou pelos caminhos que aqui mais nos interessam: os que buscam desvendar os meandros da cognição humana.352 349 MATURANA, 1978: 61-63, 1980d, 1980c: xxiv-xxx; MATURANA, VARELA, 1980 (1972): 117-118, 1987 (1984). 350 Ver Emociones y Lenguaje en Educacion y Politica. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1990; MATURANA, VERDEN-ZÖLLER, Gerda. Liebe und Spiel. Die vergessenen Grundlagen des Menschseins. Heidelberg (Alemanha): Carl-Auer-Systeme Verlag, 1993; MATURANA, NISIS de REZEPKA, Sima. Formación Humana y Capacitación. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1995; MATURANA, VERDEN-ZÖLLER. “Biology of Love”. In: OPP, Gunther, PETERANDER, Franz (eds.). Focus Heilpädagogik. München (Alemanha): Ernst Reinhardt, 1996; MATURANA, BLOCH, Susana. Biología del Emocionar y Alba Emoting. Respiración y Emoción. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1996; e MATURANA. Transformación en la Convivencia. Santiago de Chile: Dolmen Ediciones, 1999. 351 Ver Un Know-how per l’ettica, The Italian Lectures 3. Roma: Editrice La Terza, 1992. Versão em inglês: Ethical Know-How: Action, Wisdom, and Cognition. Stanford (Califórnia): Stanford University Press, 1999. 352 Ver Connaître: Les sciences cognitives, tendences et perspectives. Paris: Éditions du Seuil, 1988; “Neurophenomenology: A Methodological Remedy for the Hard Problem”. Journal of Consciousness Studies, vol. 3, n. 4, pp. 330-350, 1996. Reimpresso em: SHEAR, Jonathan (ed.). Explaining Consciousness: The Hard Problem of Consciousness. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, pp. 337-358, 1997; “The Specious Present: A Neurophenomenology of Time Consciousness”. In: PETITOT, Jean, VARELA, PACHOUD, Bernard, ROY, JeanMichel (eds.). Naturalizing Phenomenology: Issues in Contemporary Phenomenology and Cognitive Science. Stanford (Califórnia): Stanford University Press, pp. 266-314, 1999; “Consciousness: The inside View”. Trends in Cognitive Sciences, vol. 5, n. 7, pp. 318-319, 2001; e THOMPSON, Evan, VARELA. “Radical Embodiment: Neural Dynamics and Consciousness”. Trends in Cognitive Sciences, vol. 5, n. 10, pp. 418-425, 2001. Ver também VARELA (ed.). Sleeping, Dreaming, and Dying: An Exploration of Consciousness with the Dalai Lama. Boston (Massachusetts): Wisdom Publications, 1997; e VARELA, SHEAR (eds). The View from Within: First-person Approaches to the Study of Consciousness. London: Imprint Academic, 1999. 128 As questões concernentes à natureza do conhecimento são objeto de reflexão e questionamento desde a Antiguidade, e compõem um ramo específico da Filosofia a que se denomina Teoria do Conhecimento. Uma de suas correntes históricas, o empirismo, desenvolvido por pensadores ingleses dos séculos XVI ao XVIII, atribui primazia aos sentidos no processo de construção do conhecimento, em que a experiência sensorial operaria como “importadora” da realidade, de fora para dentro. Após as contribuições de Kant, como vimos,353 a visão representacionista tornou-se predominante, numa sofisticação do antigo empirismo em que era concebida uma entidade universal a todos os seres humanos, a “razão transcendental” que, ao formatar a experiência empírica subjetiva, geraria conhecimentos passíveis de julgamento quanto a seu grau de objetividade. Como linhas derivadas dessa corrente dominante, advieram o realismo (a realidade existente em si e por si mesma), o pragmatismo (os critérios de verdade para o conhecimento como sua eficácia e utilidade) e o positivismo (o conhecimento como um contínuo processo cumulativo, e motor perpétuo do avanço social). Todas estas linhas já se mostravam influentes nas ciências sociais quando, no início do século XX, Malinowski,354 após estudar sociedades tribais, compôs uma teoria pelo que a totalidade dos elementos da sociedade (instituições, costumes, crenças, mitos, ritos, cerimônias, tabus etc.) integraria um todo cultural voltado à satisfação das necessidades biológicas, psicológicas e sociais básicas dos indivíduos, para o que cada um desses elementos concorreria pelo desempenho de sua função específica. Numa superação do período de utopias que foi o século XIX, ganhava legitimidade e estatuto científico uma visão conformista de sociedade que a compreendia como uma etapa em processo natural de progressiva otimização, ao invés de circunstância cuja viabilidade acabou selecionada por contingências. Assume-se a sociedade tal como existente como um valor em si, com o que visões diagnósticas e críticas da sociedade são desqualificadas em prol de proposições tecnicistas de ajuste para maior eficiência (com o que, por exemplo, assuntos relativos à distribuição e uso de poder passam a ser vistos como questões ou problemas de autoridade e controle). A política cada vez mais deixa de ser o 353 Remeter à p. 61. 354 Bronislaw Kasper Malinowski (Inglaterra; n. Polônia (Áustria-Hungria); 1884-1942); ver Argonauts of the Western Pacific: An Account of Native Enterprise and Adventure in the Archipelagoes of Melanesian New Guinea. London: Routledge and Kegan Paul, 1922. 129 espaço do debate ético (“que sociedade queremos?”) e é rebaixada a mero espaço de debates técnicos (“como fazer funcionar melhor a sociedade?”; “como corrigir suas disfuncionalidades?”). Em ciência social, esse paradigma passou a ser chamado Funcionalismo, congregando explicações para a natureza dos assuntos humanos centradas em noções como ordem, equilíbrio, estabilidade, controle, correção de desvios, eficiência e otimização. Tal perspectiva amalgamou-se por completo com a visão representacionista para a cognição humana: a apreensão de uma realidade objetiva dada, única a todos. Ao final do século XIX surgiu um outro paradigma de muito menor penetração, a Fenomenologia (aqui, grafada em maiúscula para distingui-la da acepção de “relativo aos fenômenos”, como em “fenomenologia biológica”), originalmente concebida por Husserl 355 como uma linha em Teoria do Conhecimento em que a cognição era compreendida como um processo, necessariamente individualizado, de relação entre o conhecedor (consciência: a razão transcendental)356 e o conhecido (o fenômeno): é a consciência que constitui os fenômenos (e não a experiência sensorial), ao lhes atribuir sentido e significado, referidos estes à história pessoal do conhecedor e integrantes do seu viver. A “realidade” de cada um não são as coisas “lá fora”, são os sentidos e significados produzidos pela sua consciência. Com o tempo, Fenomenologia passou a designar o paradigma em ciência social em que múltiplas possibilidades de conformação social podem ser percebidas, ganhando primazia o esforço de interpretação. A identidade da autopoiesis para com a Fenomenologia é evidente; em verdade, concepções quanto à natureza subjetiva e individualizada do conhecimento foram propostas desde a Antiguidade, e historiá-las (e a suas identidades para com a autopoiesis) demandaria outro extensivo trabalho.357 Registramos aqui apenas que, dentre todas elas, a que maior correspondência guarda para com a autopoiesis é o 355 Edmund Gustav Albrecht Husserl (Alemanha; n. Tchecoslováquia (Áustria); 1859-1938); ref. hist.: Logische Untersuchungen. Halle (Alemanha): Max Niemeyer, vol. 1 (Prolegomena zur reinen Logik), 1900, vol. 2 (Untersuchungen zur Phänomenologie und Theorie der Erkenntnis), 1901. 356 Remeter à p. 61. 357 Que pode ser encontrado, por exemplo, em von GLASERSFELD, Ernst. Radical Constructivism: A Way of Knowing and Learning. London: Falmer Press, 1995. 130 desdobramento da Fenomenologia husserliana levado a cabo por Merleau-Ponty,358 que deslocou da consciência (a razão, ou sujeito, transcendental, concebida por Kant e endossada por Husserl) para o corpo sensível a faculdade da cognição (de atribuição de sentido e significado), numa superação da histórica dicotomia corpo-mente (res extensa e res cogitans). Também a realidade é vista por Merleau-Ponty como mundo sensível, estabelecendo-se entre corpo e mundo sensíveis uma relação de modulação mútua (um “campo de presença”), correlata à noção de acoplamento estrutural. A linguagem é também vista como manifestação corporal (ou seja, estrutural), e as palavras, ao invés de portadoras de significados dados, são vistas como expressões de uma maneira individualizada de ser que implicam a permanente e recursiva construção de sentido nas interações. Ainda, os conceitos de logos do mundo estético e logos cultural de Merleau-Ponty são em certa medida correlatos, respectivamente, às noções de domínio cognitivo e de domínio consensual de condutas na linguagem. A grande novidade representada pela autopoiesis (e daí decorre o interesse por ela despertado entre os cientistas sociais) é a fundação biológica das concepções fenomenológicas, o que vem conferir um status de credibilidade ao que até então era considerado estritamente especulativo. Com isso, são renovadas as possibilidades para um diálogo entre as concepções funcionalista e fenomenológica de sociedade. Ora, como vimos, qualquer função atribuída a um elemento em uma sociedade (por exemplo, uma instituição) refere-se a uma correlação entre o operar (o “comportamento”) desse elemento e o operar do restante do todo social (o contexto para o elemento, ou seu “ambiente”), correlação que é estabelecida a partir do ponto de vista daquele que interage simultaneamente com ambos, elemento e contexto: o observador. A função é assim componente de uma explicação de caráter simbólico para o fenômeno social em questão. Se essa função é vista como constitutiva da organização da sociedade em questão pelo desempenho de algum papel causal, estamos diante do que Varela denomina explicação simbólica tosca. Se ela é vista como componente de uma comunicação inteligível no seio de uma 358 Maurice Jean Jacques Merleau-Ponty (França; 1908-1961); ver La structure du comportement. Paris: PUF, 1942; Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945; e Signes. Paris: Gallimard, 1960. 131 comunidade de observadores quanto ao fenômeno social em questão, estamos diante do que Varela denomina explicação simbólica admissível; mas, aí, é preciso aceitar que se trata tão somente de uma interpretação desse fenômeno. “Tudo o que é dito, é dito por...” observadores imersos em uma tradição cultural. O cristalizar de uma tradição corresponde ao processo histórico de estabilização para os significados advinda das regularidades nas interações lingüísticas recorrentes entre observadores: ... o conhecimento é realmente pleno de detalhes, mas não se apóia em parte alguma, afora sua tradição, e não leva a parte alguma, afora a uma nova interpretação dentro dessa tradição.359 Se nesta tradição o conhecimento (a cognição) é visto como apreensão de uma realidade objetiva dada (como é notadamente o caso da tradição ocidental de base anglo-saxã), será inevitável que cada interpretação oriunda do (con)senso comum acabe tomada não como uma interpretação viável dentre outras, cujo valor reside em sua plausibilidade ou credibilidade, mas como a única válida, a única possível – como “realidade”: ... nós estamos sempre tendentes a reverter a alguma forma de realismo, e a esquecer que o que nós estamos pensando, ou falando sobre, é, em quaisquer circunstâncias, nossa experiência, e que o “conhecimento” que adquirimos é conhecimento de invariâncias e regularidades derivado de, e pertencente a, nossa experiência.360 (ênfase de Varela) Nós aparentamos ter sido criados em um mundo visto através das descrições dos outros ao invés de através de nossas próprias percepções. Isto tem como conseqüência que, ao invés de usarmos a linguagem como uma ferramenta com a qual expressamos pensamentos e experiências, nós aceitamos a linguagem como uma ferramenta que determina nossos pensamentos e experiências.361 De outro modo: a função de qualquer elemento da sociedade somente adquire um tal sentido de funcionalidade a partir de um ponto de vista próprio a uma dada tradição. Não queremos dizer que o Funcionalismo carece de validade; estamos dizendo que qualquer funcionalismo é um caso particular em uma fenomenologia, é uma 359 360 361 VARELA, 1979: xvii. Ibid., p. 276. von FOERSTER, 1984b (1972): 195. 132 interpretação (na terminologia fenomenológica), ou uma viabilidade (na terminologia da autopoiesis), dentre outras. Dada, porém, a forte e pervasiva presença da tradição funcionalista (já pudemos mostrar o seu peso na tradição específica da Administração), urge fomentar as pontes para um diálogo entre estas duas tradições em ciência social. Novamente, quem opera nesse sentido é Luhmann que, inspirado em toda uma sociologia funcionalista (a de Parsons),362 a estende para o interior de um arcabouço fenomenológico. Assim, da mesma forma como se pode compreender a passagem da primeira para a segunda Cibernéticas como uma abertura para a Fenomenologia a partir de dentro do Funcionalismo (levada a cabo em meio à tradição cultural americana pela tenacidade de um austríaco de nascença e formação, von Foerster), pode-se considerar a sociologia funcionalista de Parsons como sociologia cibernética de primeira ordem, e a sociologia “dialógica” de Luhmann uma sociologia cibernética de segunda ordem (ou sociologia autopoiética). Desnecessário dizer que tamanho pioneirismo epistemológico de Luhmann tornou sua obra alvo de críticas por ambos os lados: ela tem sido vista no universo anglo-saxão como demasiadamente complexa e pouco prática; no universo europeu continental, como ideologicamente conservadora (uma vez que em Parsons a primazia da tradição – no caso, anglo-saxã – é subjacente; já em Luhmann, a primazia de qualquer tradição é reconhecida, e tornada elemento da teoria). Ambos os casos podem ser compreendidos em termos de apego à tradição: aquele, como dificuldade de escapar ao paradigma matriz; este, já no seio de uma tradição aberta à multiplicidade, como preconceito, fidelidade a uma postura de proselitismo. O observador em sua experiência O melhor modo de concluir nossa exposição sobre a teoria da autopoiesis é mostrar que sua validade somente pode advir de bases fenomenológicas. 362 Talcott Parsons (EUA; 1902-1979); ver The Social System. Glencoe (Illinois): Free Press, 1951. 133 Se assumimos a realidade como uma ontologia transcendental, então pressupomos o espaço físico como domínio único de existência das coisas: a explicação para qualquer fenômeno se dá nos termos de sua redução a esse domínio. Porém, se assumimos a realidade como ontologia constitutiva, compreendemos que o domínio de existência das coisas (bem como de nossa própria existência) é o domínio da experiência humana, que emerge para nós de um modo muito concreto na linguagem. A linguagem não é um elemento a mais dentre os que concorrem para o viver humano; a linguagem é o modo de viver humano. A célula, bem como o espaço físico em que ela é percebida, adquirem existência como entidades reais a partir de distinções na linguagem feitas por observadores (distinções que não são criações arbitrárias, mas resultados de uma coordenação de condutas). Tudo o que (para nós) existe, existe como experiência humana. E toda explicação é explicação de nossas experiências por meio das coerências de nossas experiências. Dito de outro modo, toda explicação é uma reprodução da experiência, o que pode se dar de um modo concreto pela síntese de um sistema físico equivalente, de um modo abstrato por um formalismo matemático, ou ainda de um modo conceitual (como é o caso da autopoiesis) pela proposição de uma dinâmica gerativa cujo resultado de seu operar seja o fenômeno que se enseja explicar. Por exemplo, para explicar a célula, é suficiente indicar a organização, ou a configuração de relações, definidora de uma rede de processos de produções moleculares cujo operar gera uma fenomenologia indistinguível da fenomenologia da célula. Uma explicação de uma dada classe de sistemas, por meio da especificação de uma mesma organização a todos os elementos dessa classe, principia em um ato cognitivo por parte do observador, a distinção da classe de sistemas em tela. Por exemplo, se aquilo a que o observador se propõe é o estudo da classe dos “vertebrados que nadam”, sua tarefa seguinte será a caracterização de uma organização comum a pingüins (uma ave), golfinhos (mamífero), cobras (réptil), rãs (anfíbio) além de, é claro, muitos peixes. Uma vez identificada a classe de sistemas na pressuposição de ser sua organização caracterizável, de modo algum esta organização encontra-se ontologicamente dada de 134 forma unívoca. Caberá ao observador, que percebe tanto o operar do sistema quanto suas interações no meio, identificar regularidades (que são a própria razão da distinção de uma classe de sistemas) e interpretá-las de modo a propor uma organização que venha a tornar-se tema de conversações entre observadores, e ser então incorporada (ou não) à tradição em que foi concebida. Em outras palavras, toda distinção se dá a partir de critérios próprios ao observador. O que Maturana e Varela (particularmente este último)363 apontam é que esse passo é em nada trivial. Se o observador se propõe o estudo das possibilidades de controle sobre o comportamento do sistema, será natural que ele foque sua atenção nas regularidades percebidas nas interações do sistema com o ambiente; isto implica compreender as propriedades do sistema como dadas, e o ambiente como fonte de instruções ao sistema ou de restrições a seu comportamento – ou seja, como determinante para sua especificação. Advém, por exemplo, a organização de tipo input-processamento-output dos autômatos da primeira Cibernética, que deu origem aos computadores. Um tal padrão de organização é claramente indicado às ciências tecnológicas voltadas a projeto (como as engenharias), em que o observador especifica de antemão qual será o resultado (output) aceitável. Porém, se o que se propõe o observador é o estudo dos fenômenos decorrentes dos comportamentos tidos como autônomos do sistema (como aprendizagem, adaptação e evolução), será mais indicado buscar as regularidades percebidas nas interações internas ao sistema (ou seja, suas coerências), o que implica compreender as propriedades do sistema como emergentes, e todo comportamento do ambiente como perturbação nãoespecífica ou ruído, logo irrelevante para a especificação do sistema. Este é claramente o caso das ciências biológicas e das ciências sociais, em que o problema central é desvendar os modos pelos quais diferentes sistemas lidam com perturbações ambientais. Adotar a primeira abordagem, em que os modos de organização são caracterizados a partir do externo (o ambiente), implica compreender o fenômeno da adaptação como otimização em um contexto específico (meio), a cognição como apreensão deste meio pela construção de representações, a evolução como a sobrevivência do melhor 363 Cf. VARELA, 1979, 1984b. 135 adaptado, a linguagem como transferência de conteúdos semânticos, e a sociedade como todo integrado de funcionalidades imanentes. Adotar a segunda abordagem, em que os modos de organização são caracterizados a partir do interno (o sistema), permite compreender o fenômeno da adaptação como conservação da identidade por meio da mudança estrutural, a cognição como a especificação de um mundo (pelo estabelecimento de correlações internas como modo de referência a padrões de variação externos), a evolução como conservação da adaptação (viabilidade) por acoplamento estrutural ao meio, a linguagem como coordenação consensual de condutas por acoplamento mútuo, e a sociedade como etapa transitória selecionada por contingências em uma trajetória cultural histórica. Em suma, de um lado temos um paradigma de otimização a partir de interações de natureza instrutiva vistas como inputs e outputs, em que os resultados insatisfatórios em nossa interação com o sistema são erros; de outro, temos um paradigma de viabilização a partir de interações de natureza construtiva vistas como perturbações ao invés de inputs e compensações ao invés de outputs, e em que os resultados insatisfatórios são lacunas de compreensão. O reconhecimento de que quaisquer invariâncias e regularidades (de que provém a caracterização dos sistemas), ainda que oriundas da experimentação empírica, são construtos do observador ao invés de elementos ontológicos da realidade, rompe a vinculação histórica entre empirismo e o ideal de objetividade. A Ciência prossegue empírica, na apreensão das regularidades identificadas nos fenômenos, porém não mais objetiva, pois para um mesmo fenômeno outras regularidades podem se mostrar tão viáveis quanto, no “ambiente” dos domínios consensuais de conduta científica. De acordo com Varela,364 passa-se assim a almejar um empirismo viável ao invés de objetivo, o que guarda correspondência com as prescrições de Feyerabend 365 para a Ciência. Já empirismos que venham a se mostrar inviáveis acabam por perder, tal como 364 Cf. VARELA, 1979: 277. 365 Paul Karl Feyerabend (EUA; n. Áustria; 1924-1994); ver Against Method: Outline of an Anarchistic Theory of Knowledge. London: New Left Books, 1975. Ver também Science in a Free Society. London: New Left Books, 1978; e Farewell to Reason. London: Verso, 1987. 136 os seres vivos, a capacidade de conservação de sua “adaptação”, e não “sobrevivem” – o que é de algum modo correlato aos procedimentos de exposição à falsificação preconizados por Popper.366 A chave do trabalho de Maturana e Varela é mostrar que toda a fenomenologia biológica tem lugar como conseqüência, direta ou indireta, do operar autopoiético. Disto decorre que a teoria da autopoiesis pode ser falseada se vier a ser mostrado que há algum fenômeno biológico que não implica, direta ou indiretamente, a autopoiesis: ... a única indicação possível de que nós atingimos nosso objetivo é a concordância do leitor quanto a que toda a fenomenologia dos sistemas vivos, inclusive reprodução e evolução, realmente requer a autopoiesis e dela depende.367 ... a validade dos nossos argumentos, bem como a validade de qualquer argumento racional ou apreensão fenomenológica concreta, repousa sobre sua validade.368 A única “prova” da teoria da autopoiesis é a observação do operar da célula, em que a dinâmica de produções e transformações moleculares se dá de forma fechada e constitui sua própria fronteira, ao passo que se mantém aberta ao permanente fluxo de matéria e energia através de si. O operar autopoiético não tem como ser observado diretamente uma vez que se dá, como um processo histórico, no fluxo de um presente em permanente mudança; há, contudo, em Biologia, toda uma acumulação que propicia admitir uma natureza autopoiética para a célula. Ao invés de acompanhar a tradição que percebe o domínio físico como domínio ontológico (ou seja, como domínio fenomenológico único), Maturana e Varela escolheram privilegiar a experiência humana, que comporta tanto a experiência da fisiologia (experiência dos fenômenos determinados pelas propriedades dos componentes de um organismo) como a experiência do comportamento (experiência dos fenômenos determinados pelas propriedades do organismo enquanto uma unidade), mas que não necessariamente implica essas duas experiências como componentes de uma mesma e única fenomenologia. 366 Ver Logik der Forschung. Vienna: Julius Springer Verlag, 1934. Versão em inglês (tradução por Popper): The Logic of Scientific Discovery. London: Hutchinson, 1959; cf. nota 12, p. 6. 367 368 MATURANA, VARELA, 1980 (1972): 84. Ibid., p. 122. 137 As explicações tradicionais para a fenomenologia biológica (cujas insuficiências foram expostas), presas à tradição, vão perseguir sua redução a uma fenomenologia físicoquímica que tem lugar no espaço físico. Ora, se o espaço físico (como tudo o mais) existe como ontologia constitutiva na experiência humana, ele não tem como ser caracterizado em termos absolutos. Dito de outro modo: ao se lançar mão de uma lógica explicativa (composta por noções consensuais como “identidade”, “interação”, “seleção” etc.) como modo de caracterizar os fenômenos que ocorrem em um dado espaço, é somente pela ausência de contradições que se pode concluir que, ontologicamente, este é um espaço tal que, nele, a lógica empregada para as descrições é intrinsecamente válida. Mais: sobre o que pode versar uma tal lógica? Sobre as possíveis relações entre as unidades que geram a fenomenologia em questão, não sobre as propriedades específicas dessas unidades geradoras. É por respeitar antes de tudo a coerência da experiência humana, ao invés do primado da tradição em Ciência, que Maturana e Varela propõem então a existência de dois “espaços” distintos em que propriedades atuam (dois domínios fenomenológicos), que dependem mutuamente um do outro para sua conservação e que modelam mutuamente um do outro, porém não determinantes um do outro (portanto não redutíveis mutuamente): o domínio fisiológico (no espaço físico, determinado pelas propriedades das partes) e o domínio comportamental (naquele que poderia ser chamado “espaço biológico”, determinado pelas propriedades do todo). Não é outro o problema central das explicações para a fenomenologia social. A chamada filosofia da consciência (em que consciência corresponde à razão, ou sujeito, transcendental),369 paradigma matriz para as ciências sociais, estabelece como centro da fenomenologia social o conceito de sujeito. Toda ação em um âmbito social é um agir desempenhado pelo sujeito; dito de outro modo, qualquer fenômeno social é necessariamente determinado pelo agir dos sujeitos. Denomina-se “individualismo metodológico” à regra clássica em ciência social que exige jamais tratar os coletivos (sociedades, comunidades, instituições, organizações) como se sujeitos fossem. Ora, esta regra é claramente correlata à regra historicamente predominante nas ciências naturais que exige a redução de toda fenomenologia à fenomenologia do espaço físico. 369 Remeter à p. 61. 138 É, no entanto, perfeitamente viável (e mesmo mais consistente) pressupor a existência de dois domínios fenomenológicos distintos, mutuamente modeladores e dependentes um do outro, mas jamais determinantes um do outro: o domínio individual (ou psíquico, como o chama Luhmann) e o domínio social (no título desta tese, âmbitos individual e social). Em outros termos, é isso o que nos diz Dupuy: ... o sujeito individual não tem mais o monopólio de certos atributos da subjetividade. É preciso admitir que, ao lado dos sujeitos individuais, existem quase-sujeitos, que são entidades coletivas capazes de exibir pelo menos alguns dos atributos que acreditávamos reservados aos sujeitos “de verdade” – os indivíduos – e, em particular, a existência de estados mentais.370 (ênfase de Dupuy) Tais “estados mentais” (uma subjetividade do coletivo) podem ser compreendidos como os significados que emergem das interações humanas (como postularemos, com base em Atlan). Evidentemente, não se trata aqui de uma identificação plena dessa subjetividade coletiva para com a subjetividade individual, pois isto implicaria justamente o reducionismo entre o psíquico e o social que se propõe superar. Sem sombra de dúvida os homens “agem” sua sociedade; ela, porém, dotada de complexidade instrínseca, lhes escapa: não haveria uma causalidade direta entre as ações humanas e seus “efeitos” sociais. Reciprocamente, sem dúvida alguma a sociedade molda os indivíduos; mas esta sua “ação” tampouco tem como ser vista como diretamente determinante do curso das individualidades. Indivíduo e sociedade dependem um do outro para sua própria geração, e permanentemente modelam-se mutuamente; seriam, porém, determinados por suas dinâmicas internas próprias – e, nesse sentido, autônomas. Como referências de pensamento em ciência social que busca compreender a sociedade em termos em alguma medida correlatos a esses, vale mencionar, além dos já citados Luhmann371 e dos próprios Maturana372 e Varela,373 os nomes de Castoriadis,374 370 371 372 373 DUPUY, 1995 (1994): 217. Remeter à nota 300, p. 103. Remeter à nota 350, p. 128. Remeter à nota 351, p. 128. 374 Cornelius Castoriadis (França; n. Kornelios Kastoriades, Turquia; 1922-1997); ver L’institution imaginaire de la société. Paris: Éditions du Seuil, 1975; e Les carrefours du labyrinthe. Paris: Éditions du Seuil, 1978. Ver também Domaines de l’homme. Les carrefours du labyrinthe II. Paris: Éditions du Seuil, 1986; Le monde morcelé. Les 139 Dupuy,375 Morin376 e Atlan,377 além daqueles que participaram da gênese da segunda Cibernética: Bateson378 e Pask.379 Em termos históricos, Dupuy380 situa já em Adam Smith381 (século XVIII) a noção de que os homens constroem a sociedade ao mesmo tempo em que são por ela construídos; tal compreensão ganha bases mais consistentes a partir da década de 30 com as proposições de von Hayek382 em Economia e de Elias383 em Sociologia. carrefours du labyrinthe III. Paris: Éditions du Seuil, 1990; Philosophy, Politics, Autonomy. New York: Oxford University Press, 1991; La montée de l’insignifiance. Les carrefours du labyrinthe IV. Paris: Éditions du Seuil, 1996; World in Fragments. Stanford (Califórnia): Stanford University Press, 1997; Fait et à faire. Les carrefours du labyrinthe V. Paris: Éditions du Seuil, 1997; e Figures du pensable. Les carrefours du labyrinthe VI. Paris: Éditions du Seuil, 1999. 375 Ver Ordres et désordres. Enquête sur un nouveau paradigme. Paris: Éditions du Seuil, 1982; e Introduction aux sciences sociales. Logique des Phénomènes Collectifs. Paris: Ellipses, 1992. Ver também DUMOUCHEL, Paul, DUPUY (eds.). L’auto-organisation. De la physique au politique. Paris: Éditions du Seuil, 1983; DUPUY, LIVET, Pierre (eds.). Les limites de la rationalité. Paris: La Découverte, vol. 1 (Rationalité, éthique et cognition), 1997; DUPUY (ed.) Self-deception and Paradoxes of Rationality. Stanford (Califórnia): CSLI Publications (Stanford University), 1998; Éthique et philosophie de l’action. Paris: Ellipses, 1999; e Pour un catastrophisme éclairé. Quand l’impossible est incertain. Paris: Éditions du Seuil, 2002. 376 Remeter à nota 242, p. 75. 377 Ver A Tort et à raison. Intercritique de la science et du mythe. Paris: Éditions du Seuil, 1986; Tout, non, peut-être. Education et vérité. Paris: Éditions du Seuil, 1991; ATLAN, 1992a (1979); “Is Reality Rational?” Cahiers d’Épistémologie. Montréal: Université du Québec, Groupe de Recherche en Épistémologie Comparée, cahier n. 9314, 1993; ATLAN, 1994; Questions de vie. Entre le savoir et l’opinion (entrevistas editadas por Catherine Bousquet). Paris: Éditions du Seuil, 1994; “Immanent Causality: A Spinozist Viewpoint on Evolution and Theory of Action”. In: van de VIJVER, Gertrudis, SALTHE, Stanley N., DELPOS, Manuela. Evolutionary Systems: Biological and Epistemological Perspectives on Selection and Self-Organization, pp. 215-231, Dordrecht (Holanda): Kluwer Academic Publishers, 1998; ATLAN, 1998; Les étincelles de hasard. Paris: Éditions du Seuil, vol. 1 (Connaissance spermatique), 1999, vol. 2 (Athéisme de l’écriture), 2003; La science est-elle inhumaine? Essai sur la libre necessité. Paris: Bayard, 2002; e ATLAN, 2003. 378 Gregory Bateson (EUA; n. Inglaterra; 1904-1980); ver Steps to an Ecology of Mind. New York: Ballantine, 1972; e Mind and Nature: A Necessary Unit. New York: Bantam, 1979. Como referência inicial à postulação por Bateson da comunicação como chave para apreensão do social, ver RUESCH, Jurgen, BATESON, Gregory. Communication: The Social Matrix of Psychiatry. New York: W. W. Norton, 1951. 379 Andrew Gordon Speedie-Pask (Inglaterra; 1928-1996); ver Conversation, Cognition and Learning. Amsterdam: Elsevier, 1975; e Conversation Theory: Applications in Education and Epistemology. Amsterdam: Elsevier, 1976. 380 Cf. DUPUY, 1995 (1994): 212. Ver também “De l’émancipation de l’économie. Retour sur le ‘problème d’Adam Smith’ ”. L’Année Sociologique, vol. 37, pp. 311-342, 1987; e Le Sacrifice et l’envie. Le libéralisme aux prises avec la justice sociale. Paris: Calman-Lévy, 1992. 381 Adam Smith (Escócia, 1723-1790); ref. hist.: An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. London: W. Strahan and T. Cadell, 1776. 2 vols. 382 Friedrich August von Hayek (Alemanha; n. Áustria (Áustria-Hungria); 1899-1992). Ver MOLDOFSKY, Naomi (ed.). Order – With or Without Design? Selections from F. A. Hayek’s Contribution to the Theory and Application of Spontaneous Order. London: Centre for Research into Communist Economies, 1989. Ver também The Constitution of Liberty. London: Routledge and Kegan Paul, 1960; “The Theory of Complex Phenomena”. In: BUNGE, Mario (ed.). The Critical Approach to Science and Philosophy. New York: Free Press of Glencoe, pp. 332-349, 1964; “A SelfGenerating Order for Society”. In: NEF, John U. (ed.). Towards World Community. Den Haag (Holanda): Dr. W. Junk Publishers, pp. 39-42, 1968; Law, Legislation and Liberty: Rules and Order. London: Routledge and Kegan Paul, vol. 1, 1973; e New Studies in Philosophy, Politics and Economics. London: Routledge and Kegan Paul, 1978. Como marcos iniciais, ver “Economics and Knowledge”. Economica (new series), vol. 4, n. 13, pp. 33-54, 1937. Reimpresso em: von HAYEK. Individualism and Economic Order. London: George Routledge and Sons, pp. 33-56, 1948; “The Use of Knowledge in Society”. American Economic Review, vol. 35, n. 4, pp. 519-530, 1945. Reimpresso em: von HAYEK, op. cit. (supra), pp. 77-91, 1948; e The Sensory Order: An Inquiry into the Foundations of Theoretical Psychology. London: Routledge and Kegan Paul, 1952. 140 De volta às condições de validade para a teoria da autopoiesis: ela é uma caracterização da organização dos seres vivos. A organização autopoiética, por não ter como ser reconhecida nos componentes que a realizam, somente pode ser concebida como uma abstração pelo observador que tanto vê uma história de coerências e regularidades na dinâmica estrutural do ser vivo quanto vê uma história de coerências e regularidades nas suas interações com o meio; é assim que ele infere a organização do ser vivo como o resultado do operar espontâneo de uma arquitetura de interações moleculares locais. Dito de outro modo, o observador caracteriza uma unidade ao enunciar suas condições de operação em um dado espaço (domínio); ele apenas a conhece, porém, ao interagir com ela em um metadomínio de descrições relativo ao domínio em que a caracteriza. Foi aqui mostrado que a fenomenologia dos sistemas autopoiéticos gera observadores, que por sua vez geram a fenomenologia das descrições em que a lógica descritiva da autopoiesis encontra validade. Toda a situação é circular. Como síntese: a teoria da autopoiesis explica a experiência do observador por meio da experiência do observador. Se os seres vivos são estruturalmente determinados, seria também a experiência humana determinada? Sim. Ela não é no entanto, de forma alguma, previsível. Cogitar isso é remeter ao tipo de pensamento que preconizava que, se fossem conhecidas a posição e a velocidade de todas as partículas no Universo, tudo no Universo seria previsível. Em que uma determinação biológica do nosso viver mudaria nossas vidas? Em nada. Tudo o que para nós existe, existe de uma forma muito concreta como experiência humana. E é como experiência humana que a aventura do viver e a beleza da Natureza continuarão a ser, para todos nós, eterna descoberta. 383 Norbert Elias (Holanda; n. Alemanha (hoje Polônia); 1897-1990); ver especialmente o ensaio de 1939 originalmente publicado como Die Gesellschaft der Individuen. Eine Studie von Norbert Elias. Stockholm: Stockholms Universitet, 1983. Ver também Über den Prozeß der Zivilisation. Soziogenetische und psychogenetische Untersuchungen. Basel (Suíça): Haus zum Falken, 1939. 2 vols.; Was ist Soziologie? München (Alemanha): Juventa, 1970; e “Zur Grundlegung einer Theorie sozialer Prozesse”. Zeitschrift für Soziologie, vol. 6, pp. 127-149, 1977. 141 4. A teoria da complexidade a partir do ruído de Atlan384 Uma outra perspectiva também centrada no papel do observador, em que o fenômeno da auto-organização é referido à compreensão que este detém quanto ao operar do ser vivo, é a teoria da complexidade a partir do ruído de Atlan, construída ao longo da mesma década de 70 385 em que foi concebida a teoria da autopoiesis, e sintetizada na obra Entre o Cristal e a Fumaça.386 Retornando, uma vez mais, às perguntas que a biologia molecular não tinha como responder:387 como surgiu o primeiro programa? Como pode um programa (o genético) necessitar dos resultados de sua leitura e execução (as proteínas enzimáticas) exatamente para que possa ocorrer sua leitura e execução? E por que insistir em negar o óbvio (que o processo evolutivo de mutação-seleção conduz necessariamente ao aumento da complexidade) pelo artifício de atribuir-se a evolução a uma improbabilidade estatística em um Universo supostamente entrópico? Para Atlan, 384 Deste ponto em diante, retornaremos à significação consagrada no uso cotidiano de termos como “estrutura”, “organização” e “acoplamento”, a que Maturana e Varela optaram por atribuir definições específicas para fins de composição de um vocabulário adequado (e necessário) à amplitude da mudança de paradigma a que se propuseram. 385 Como etapas dessa construção, ver “Applications of Information Theory to the Study of the Stimulating Effects of Ionizing Radiation, Thermal Energy, and other Environmental Factors: Preliminary Ideas for a Theory of Organization”. Journal of Theoretical Biology, vol. 21, pp. 45-70, 1968; “Rôle positif du bruit en théorie de l’information appliquée à une définition de l’organisation biologique”. Annales de Physique Biologique et Médicale, vol. 1, pp. 15-33, 1970; “Du bruit comme principe d’auto-organisation”. Communications, vol. 18, pp. 21-36, 1972; L’organisation biologique et la théorie de l’information. Paris: Hermann, 1972. 2ème. ed., 1990; “On a Formal Definition of Organization”. Journal of Theoretical Biology, vol. 45, pp. 295-304, 1974; “Organisation em niveaux hiérarchiques et information dans les systèmes vivants”. In: Réflexions sur de nouvelles approches dans l’étude des systèmes. Actes du Colloque ENSTA, 10-12 juin, 1975. Paris: Centre d’édition de l’ENSTA, pp. 218-238, 1975; “Conscience et désirs dans des systèmes auto-organisateurs”. In: MORIN, Edgar, PIATTELLI-PALMARINI, Massimo (eds.). L’unité de l’homme. Invariants biologiques et universaux culturels. Paris: Éditions du Seuil, pp. 449465, 1975; “Le principe d’ordre à partir du bruit. L’apprentisage non dirigé et le rêve”. In: MORIN, PIATTELLIPALMARINI, op. cit. (supra), pp. 469-475; “L’homme: système ouvert”. In: MORIN, PIATTELLI-PALMARINI, op. cit. (supra), pp. 487-490; “Source and Transmission of Information in Biological Networks”. In: MILLER, I. R. (ed.). Stability and Origin of Biological Information. New York: John Wiley and Sons, pp. 95-118, 1975; “Les modèles dynamiques en réseaux et les sources d’information en biologie”. In: LICHNEROWICZ, André, PERROUX, François, GADOFFRE, Gilbert (eds.). Structure et dynamique des systèmes. Paris: Maloine-Doin Éditeurs, pp. 95-131, 1976; “L’organisation du vivant et ses répresentations”. In: Le MOIGNE, Jean-Louis (coord.). Modélisation et maîtrise des systèmes techniques, économiques et sociaux. Actes du Congrès AFCET, Versailles, France, 21-24 nov., 1977. Paris: Editions Hommes et Techniques, pp. 118-150. 1977; “Hierarchical SelfOrganization in Living Systems”. In: ZELENY, op. cit. (nota 242, p. 75), pp. 185-208, 1981. (Apresentação: “The Order from Noise Principle in Hierarchical Self-Organization”, State University of New York, 1977); e “Sources of Information in Biological Systems”. In: DUBUISSON, Bernard. (ed.). Information and Systems: Proceedings of the IFAC Workshop, Compiegne, France, 25-27 oct., 1977. Oxford (Reino Unido): Pergamon Press, pp. 177-184, 1978. 386 ATLAN, 1992a (1979). O título é uma analogia com as noções de ordem (o cristal) e desordem (a fumaça) e também uma referência ao período de perseguição aos judeus a partir da noite dos cristais (9-10 de novembro de 1938) até a fumaça das chaminés dos campos de extermínio. 387 Cf. ATLAN, 1992a (1979): 17-26; remeter à nota 253, p. 78. 142 respostas a essas perguntas requeriam novos modelos explicativos, que incorporassem a auto-organização como atributo dos sistemas. Mas, de que sistemas se trata? Para que a auto-organização propicie a evolução pelo aproveitamento das perturbações impostas pelo ambiente, isto requer, como uma précondição, a capacidade de resistir a tais perturbações. Ou seja, ela diz respeito à confiabilidade dos sistemas frente ao ruído – incomparavelmente superior nos sistemas naturais do que nas máquinas. A confiabilidade do cérebro humano, por exemplo, não encontra paralelo em nenhum autômato artificial; ele é capaz de operar continuamente, a despeito de estarem a todo tempo morrendo células que não são substituídas, de variações bruscas no fluxo de irrigação e na taxa de oxigenação do sangue, de oscilações de volume e pressão, e até eventualmente da amputação de algumas de suas partes, tudo isto pouco afetando seu desempenho. Von Neumann, em suas pesquisas sobre o aumento de confiabilidade dos computadores, já havia concluído que tamanha disparidade impede que se vejam os organismos como dispositivos “aperfeiçoados” em relação a seus “similares” artificiais, mas sim a uns e outros como sistemas governados por princípios de organização qualitativamente diferentes.388 Uma teoria da informação É nesses termos que Atlan dá continuidade ao projeto de renovação da Cibernética empreendido por von Foerster, só que agora buscando chegar a um princípio de complexidade (e não apenas de ordem) a partir do ruído verificável no comportamento de sistemas naturais, mas não em dispositivos artificiais.389 Ele compreende a confiabilidade de um sistema frente ao ruído como função tanto de sua variedade (necessária para compensar os efeitos do ruído, segundo Ashby) como de sua redundância (necessária para neutralizá-lo, segundo Shannon). Por serem estas 388 Von NEUMANN, op. cit. (nota 165, p. 49), 1956, op. cit. (nota 164, p. 49), 1966. 389 “O conceito de sistema auto-organizador surgiu como uma maneira de conceber os organismos vivos sob a forma de máquinas cibernéticas com propriedades específicas. Entretanto, está claro que os únicos sistemas autoorganizadores (e os únicos autômatos auto-reprodutores) conhecidos até o presente são as máquinas naturais, cuja ‘lógica’, justamente, não conhecemos de maneira precisa” (ATLAN, 1992a (1979): 25). 143 condicionantes opostas, Atlan percebe a auto-organização como um compromisso ótimo entre elas. E, como forma de correlacionar redundância, variedade e ruído, ele recorre à teoria quantitativa da informação de Shannon: “A quantidade de informação definida por Shannon é uma maneira, mais elaborada e mais rica de aplicações, de exprimir a variedade ... de um sistema, tal como definido por Ashby”.390 De modo correlato à meneira como Shannon lidou com a variedade dos símbolos contidos em um código de comunicação, a variedade (ou diversidade) dos elementos em um sistema pode ser medida em termos da probabilidade da ocorrência de cada elemento. Quanto mais um sistema for composto por um grande número de elementos diferentes, menor será a probabilidade de que uma reunião ao acaso dos seus componentes resulte idêntica ao sistema tal como ele se encontra de fato disposto, e portanto maior será a quantidade de informação necessária para descrevê-lo. Dito em termos estritamente shanonnianos, quanto maior a quantidade de informação, maior o número de símbolos necessários para descrevê-la em algum código, ou seja, mais complexo é o sistema em questão. Atlan estimou a medida da variedade de um sistema como a taxa de variação dH dt de sua quantidade de informação H ao longo do tempo (como será detalhado logo adiante). Ele assim corroborou a antevisão (em 1949) de von Neumann sobre a complexidade, para quem “este conceito claramente pertence ao campo da informação”.391 390 Ibid., p. 250. Ashby também considera, ainda que de modo mais implícito, a quantidade de informação para sua definição de variedade (como veremos adiante). 391 von NEUMANN, 1966b: 78 (citação replicada; p. 48, nota 163). Ver também as considerações de Klir à p. 67. 144 Ora, ao contrário da via de comunicação considerada por Shannon, em que o ruído implica a redução da quantidade de informação trafegável, a suposição aqui é a de que, no interior de um sistema complexo, o ruído possa ser integrado como fator de reorganização. Seja uma dada via de comunicação entre dois elementos A e B integrantes de um sistema S (Figura 5) como uma dentre inúmeras relações existentes entre os elementos desse sistema, em que A transmite informação para B: Figura 5: Via de comunicação entre dois elementos A e B no interior de um sistema S; extraído de ATLAN (1992a (1979): 43). Se a transmissão ocorre sem erros (ausência de ruído), B se torna uma cópia exata de A (aumento de redundância), e a quantidade total de informação contida no conjunto {A, B} é igual à quantidade de informação em A. Se, ao contrário, o ruído descaracteriza por completo a mensagem, isso acarreta o fim da relação entre A e B (aumento de variedade), com a quantidade de informação de {A, B} sendo igual à quantidade de informação de A mais a de B. Caso o sistema se limitasse a apenas esses dois elementos, ambas essas situações o destruiriam: no primeiro caso, existiriam apenas dois elementos idênticos; no segundo, a independência total entre os elementos também descaracterizaria o sistema como tal. Havendo ruído numa situação intermediária, porém, a quantidade de informação transmitida de A para B é igual à informação em B menos as perdas por ruído; já a quantidade de informação do conjunto {A, B}, entretanto, é igual à informação em B mais o ruído. Dito de outra forma, do ponto de vista da transmissão de A para B o ruído representa perda de informação mas, do ponto de vista da quantidade total de informação contida no sistema, houve aumento de informação – algum aumento de variedade às custas de alguma redução de redundância. E, por estarem A e B ligados a inúmeros outros elementos de S por inúmeras outras vias (muitas das quais possibilitando ligações indiretas entre A e B), nem as eventuais situações-limite de igualdade ou independência entre eles implicam o desaparecimento do sistema. 145 O sistema S, tendo redefinido o seu compromisso variedade-redundância, continua a operar, e conta agora com uma maior variedade de respostas que poderão ser experimentadas frente a perturbações externas (em conformidade com o princípio da variedade indispensável de Ashby), tendo assim ampliado seus horizontes de coevolução com o ambiente. Atlan, em busca de uma mensuração quantitativa para a complexidade, rearruma a equação de Shannon para a redundância informação: H = Hmax (1 − R) , dH dR dHmax = − Hmax + (1 − R) dt dt dt R = 1− H Hmax de modo a destacar a quantidade de e a deriva então para obter sua variação ao longo do tempo: ; ele chega assim a uma formulação em que esta variação corresponde à soma de dois termos, em que o primeiro deles expressa o papel construtivo do ruído (aumento do total de informação contida no sistema às custas de alguma perda de redundância).392 Uma vez que, evidentemente, o funcionamento de um sistema requer a passagem de informação entre seus componentes, o segundo termo expressa o (esperado) papel destrutivo do ruído (redução de informação ao longo do tempo, em relação ao máximo possível Hmax). Atlan foi assim mais um que perseguiu uma descrição para a complexidade com base na clássica matemática diferencial descritiva do contínuo (e em breve ele seria também mais um que a abandonaria, em prol de uma mensuração de ordem mais computacional para a complexidade).393 Não obstante, em diversas passagens ele deixa transparecer que a medida da variedade de um sistema em termos de sua quantidade de informação H seria meramente indicativa para prover a medida de sua complexidade. Em suas próprias palavras: ... no âmbito de algumas hipóteses simplificadoras... esse resultado pode ser compreendido como uma explicação possível da mudança de alfabeto efetivamente observada em todos os organismos vivos, quando passamos dos ácidos nucléicos, escritos numa “linguagem” de quatro símbolos (as dR 392 A progressiva redução da redundância devida ao ruído faz dt tornar-se negativo, o que torna esse primeiro termo positivo, expressando o aumento da informação pelo aumento da variedade. 393 Porque ele continuava a necessitar uma medida para a dimensão estrutural (remeter à p. 3) da complexidade a cada nível, em um sistema hierarquizado. A essa sua nova mensuração ele denominaria sofisticação; ver KOPPEL, Moshe, ATLAN, Henri. “An almost Machine-independent Theory of Program-length Complexity, Sophistication, and Induction”. Information Sciences, vol. 56, pp. 23-33, 1991; ver também ATLAN, 1992b, 1992c, 1998. 146 quatro bases azotadas), para as proteínas, escritas na linguagem de vinte símbolos dos aminoácidos.394 (ênfase nossa) ... a taxa de variação da quantidade de informação dH dt é a soma de dois termos que correspondem, esquematicamente, aos dois efeitos opostos do ruído... Esses dois termos, por sua vez, dependem de duas funções, dR = f 1(t ) dt e dHmax = f 2 (t ) do dt tempo, dependendo de parâmetros que exprimem formalmente a natureza da organização com que estamos lidando... conforme o valor dos parâmetros que determinam f 1 e f 2 , esse efeito será observado ou não e, em caso afirmativo, de maneiras muito diferentes quantitativamente, de acordo com a “organização” do sistema com que estejamos lidando.395 (ênfase nossa) Atualmente, essas idéias se difundiram muito, a ponto de às vezes serem apresentadas como evidências primordiais, a saber, que a criação da informação só pode ser feita a partir do ruído, o que é lamentável, pois nos esquecemos do que constitui o essencial de seu interesse, qual seja, ... como e em que condições a oposição entre organizado e aleatório pode ser substituída por uma espécie de cooperação em que, inevitavelmente, o conceito de organizado e o de aleatório adquirem novos conteúdos.396 [diversas] considerações ... levaram ao esboço de uma teoria da organização ... Essa teoria parece ser de alguma utilidade para explicar, ao menos em alguns aspectos e de um ponto de vista fenomenológico, o que parece ser a organização nas diferentes ciências do ser vivo.397 (ênfases nossas) Devemos portanto deixar claro nosso entendimento quanto a essa formulação quantitativa ter sido proposta por Atlan antes como uma contribuição ao entendimento em torno de uma perspectiva inteligível para o problema da complexidade em um ser vivo do que como formalismo de valor operacional intrínseco. Confiabilidade e aprendizagem Deve-se notar que somente sistemas dotados de suficiente robustez e resiliência estão em condições de resgatar as inevitáveis desorganizações impostas pelo ruído, incorporando-o para restabelecer-se em um patamar superior de organização. Aos já mencionados398 trabalhos de von Neumann para especificar requisitos de confiabilidade 394 395 396 397 398 ATLAN, 1992a (1979): 44-45. Ibid., pp. 45-46. Ibid., p. 56. Ibid., pp. 61-62. À nota 388, p. 143. 147 para os computadores a partir da confiabilidade dos organismos seguiram-se outros,399 e Atlan concluiu por destacar o papel de dois dentre os diversos parâmetros arrolados como primordiais à auto-organização: a redundância inicial e a confiabilidade. Esta requer a existência daquela, mas elas são de naturezas distintas: a redundância inicial de uma natureza a que Atlan chama estrutural (relativa aos componentes do sistema) enquanto a confiabilidade de uma natureza a que ele chama funcional (relativa às relações entre esses componentes). Na Figura 6 são ilustrados diferentes perfis de resposta ao ruído, fruto de diferentes perfis de confiabilidade (ou seja, diferentes organizações): Figura 6: Diferentes organizações, expressas pela evolução da quantidade de informação H ao longo do tempo, em função tanto da redundância inicial Ro , que define a quantidade de informação inicial Ho = Hmaxo − (1 − Ro) , como da confiabilidade, que define a duração do período até tM , quando o sistema atinge seu máximo de informação HM ; extraído de ATLAN (1992a (1979): 48). Numa etapa inicial, predominam os efeitos construtivos do ruído, com elementos inicialmente redundantes adquirindo especificidade (variedade) no curso do 399 Ver WINOGRAD, Shmuel, COWAN, Jack D. Reliable Computation in the Presence of Noise. Cambridge (Massachusetts): MIT Press, 1963; e COWAN. “The Problem of Organismic Reliability”. In: WIENER, Norbert, SCHADÉ, Johannes P. (eds.). Cybernetics of the Nervous System. Amsterdam: Elsevier, pp. 9-63, 1965. 148 desenvolvimento do sistema. Nesta fase, quanto maior a redundância inicial, maior o ganho de complexidade de que o sistema será capaz; quanto maior a confiabilidade, mais prolongado será este salto. Após a quantidade de informação ter atingido o seu máximo, passam a predominar os (sempre presentes) efeitos destrutivos do ruído. Com efeito, esse é o traço comum aos seres vivos, às estrelas e às organizações sociais humanas: inicialmente, eles experimentam crescimento e amadurecimento; depois, envelhecimento e morte. Dentre as características dos sistemas auto-organizantes naturais estão o número abundante de componentes, o número ainda mais abundante de relações entre esses componentes, e a presença de variados níveis de redundância (e, portanto, de potencial para mais variedade) em ambos, componentes e relações;400 assim, é somente em sistemas complexos de alta redundância inicial e confiabilidade – como os seres vivos – que um papel construtivo para o ruído pode coexistir ao lado de seu sempre presente papel destrutivo. É a conversão de redundância em variedade que possibilita aos seres vivos uma superação criativa dos limites impostos pelo ambiente, por meio dos processos de aprendizagem não-dirigida:401 processos cognitivos para o reconhecimento de formas que são constituídas simultaneamente com as (outras) formas que servem de referência a este reconhecimento: ... o que é aprendido é realmente novo e, portanto, perturbador, e aparentemente só poderia ser rejeitado pelo estado anterior de organização do sistema cognitivo, caso este não fosse regido, ele também, pela lógica da complexidade através do ruído.402 Numa aprendizagem dirigida, existe algum “professor” que indica o que deve ser aprendido; numa aprendizagem não-dirigida, um sistema frente ao desconhecido reage 400 Ver, por exemplo, considerações a respeito do cérebro humano feitas à p. 50. 401 Para Piaget (Jean Piaget (Suíça; 1896-1980)), trata-se de assimilação cognitiva; ver La naissance de l’intelligence chez l’enfant. Neuchâtel (Suíça): Delachaux et Niestlé, 1936. 402 ATLAN, 1992a (1979): 26. 149 pela criação de novos padrões de reconhecimento da realidade, ao mesmo tempo em que se condiciona a reconhecer estes novos padrões.403 O processo de percepção da realidade se dá pela projeção dos padrões de reconhecimento preexistentes sobre os estímulos oriundos do ambiente, de modo a reconhecê-los (ou não) pela identificação destes com o padrão. Uma vez que os padrões também estão sendo criados, esta identificação só pode ser aproximativa, jamais exata. Esta ambigüidade, ou ruído, exerce então um papel positivo, na medida em que modifica os padrões pelos estímulos. Ou seja, a definição dos novos padrões corresponde a um processo de diferenciação, de especificidade – de transformação da redundância em variedade, em que os padrões modificados tornam-se referência para o reconhecimento de novos estímulos, e assim sucessivamente. Um exemplo é o sistema imunológico. Os linfócitos travam contato com os agressores externos e também entre si por meio de padrões de reconhecimento molecular ao nível de suas membranas, e a variedade final é total – não existem duas pessoas com perfis idênticos de resposta imunológica. É pelo aproveitamento do ruído que evoluem tanto o sistema imunológico (no horizonte de tempo de uma vida) como as espécies (ao longo de milhões de anos) – o que é consistente com a hipótese de Atlan de que o DNA exerce um papel mais afeito ao de “dados a serem processados” que de um “programa processador”:404 Qual a natureza computacional das cadeias de DNA: são elas programa, ou dados? ... Parece mais plausível que as cadeias de DNA devam ser vistas como dados que alimentam o maquinário do metabolismo celular, que operaria como um programa. Se é este o caso, fica óbvio que o principal pressuposto teórico que dá base ao tão propalado projeto do Sequenciamento do Genoma Humano está errado.405 403 Reparar a correlação (e a diferença) para com a noção de acoplamento estrutural por compensação de perturbações de Maturana e Varela. 404 Ver ATLAN, Henri, KOPPEL, Moshe. “The Cellular Computer DNA: Program or Data?” Bulletin of Mathematical Biology, vol. 52, n. 3, pp. 335-348, 1990; e ATLAN, Henri. La fin du “tout génétique”? Vers de nouveaux paradigmes en biologie. Paris: INRA Éditions, 1999; cf. ATLAN, 1992b, 1998, 1992a (1979): 50-51, 246 nota 15. 405 ATLAN, 1992b: 43. 150 Assim, de uma forma correlata ao postulado por Maturana e Varela, também para Atlan somente a totalidade das relações (para este, o metabolismo celular, para aqueles, a “organização”) poderia desempenhar o papel de um “programa no governo” da célula: ... muitas vezes, a descrição linearmente causal – como na biologia clássica, onde se procura isolar um parâmetro que é variado enquanto os outros ficam supostamente constantes – é inadequada. Por exemplo, a causa de uma mudança do estado da célula num dado momento deve ser buscada no estado da célula no instante anterior, e não na modificação de um único componente, isolado do resto do sistema.406 Auto-organização multinivelar Pode-se, intuitivamente, associar redundância (regularidade, repetição) à idéia de ordem, bem como variedade (diversidade, diferença) à de desordem. Atlan, com efeito, propõe tal associação, mas para tanto ele resgata a questão do significado da informação (propositadamente ausente da teoria quantitativa da informação de Shannon) como a sua maneira de descrever a realidade como composta por múltiplos níveis de complexidade, sucessivamente acoplados. E é aqui que a teoria de Atlan se distingue como o que Varela denomina explicação simbólica admissível – em contraposição às diversas correntes inspiradas em Shannon e tributárias da primeira Cibernética que, por tomar a grandeza “informação” pelo seu valor de face, situam-se no campo das explicações simbólicas a que se pode denominar toscas. Sejam, em termos dos meios de descrição existentes (ou seja, da perspectiva do observador, que é quem descreve), os diferentes níveis de organização relativos a um ser humano: partículas subatômicas, átomos, moléculas, macromoléculas, organelas componentes das células, células, tecidos, órgãos, aparelhos, organismo, psique, comunidade, sociedade: cada um desses níveis possui seu código próprio para o trânsito de informação. O acoplamento entre níveis (ou seja, a passagem de informação) requer assim alguma “tradução”, ainda que parcial, entre códigos de naturezas distintas. Mais que isso: a mesma informação necessariamente porta significados diferentes em níveis diferentes. 406 ATLAN, 1992a (1979): 86. 151 No intuito de descrever o sistema “organismo” a partir dos átomos que o constituem, o observador pode chegar a um valor para H correspondente à quantidade de informação de que ele não dispõe, inferida a partir do que é por ele conhecido: os componentes do sistema, e sua distribuição em termos probabilísticos. Já se a descrição for em termos de suas moléculas, poderá ser levado em conta o conhecimento existente a respeito de como os átomos se associam em moléculas, acreditando-se agora ser possível estimar um valor menor para H, indicativo de uma redução no déficit de informação relativamente à descrição anterior. No entanto, a passagem de um nível elementar (no caso, átomos) para um nível mais abrangente (moléculas) na verdade implica um aumento de complexidade. A informação que para o observador se afigura como “ruído” não somente não destrói o sistema como lhe permite evoluir, de um modo que o observador desconhece – o que significa que aquele conhecimento que ele supostamente possuía era incompleto. E é por isso que aquilo que ao observador parece “ruído”, mas de que o sistema faz uso de modo proveitoso como excedente de informação, representa de fato um aumento do déficit da informação H necessária a uma descrição do sistema pelo observador. A via de comunicação de A para B do sistema S (Figura 2) não “entrega” qualquer informação (ruído incluso) a um observador externo, ela a entrega ao elemento B sob forma de seu significado segundo o código próprio aos elementos do sistema S; já a percepção que um observador externo tem dessa informação e do ruído que ela possa comportar (uma vez que ele ignora em grande medida o código próprio ao sistema) confere a ela um outro significado em um outro código, pertinente ao nível mais abrangente em que se situa o observador. Com efeito, considerar aquilo que sai da via de informação pelas ópticas do sistema ou do observador equivale a situar a observação em níveis hierárquicos distintos. Supondo que a via de comunicação de A para B seja uma das vias de comunicação constitutivas de uma célula, para esta célula qualquer eventual ruído será tomado como negativo mas, para o órgão que a contém – e que portanto se situa ao nível de um “observador” – ele poderá ser positivo (desde que não mate a célula), à medida que aumenta sua própria variedade interna e, em conseqüência, seus desempenhos reguladores para as demais células. 152 Na concepção multinivelar de Atlan, o “observador” corresponde assim ao nível mais abrangente considerado: o órgão em relação à célula, ou o organismo em relação ao órgão, ou o organismo em relação à célula etc. – a depender da esquematização adotada pelo observador humano real; este é assim um outro modo de assinalar a dualidade fenomenológica que Maturana e Varela discerniram para o nível das partes (componentes) e do todo (unidade) Dito em outros termos, a medida da informação tomada a um nível abrangente ignora o seu significado ao nível elementar, e é somente por isso que o que se afigura como destruição de informação ao nível elementar pode ser visto como criação de informação no nível abrangente. E é também por isso que se pode falar em complexidade como uma correlação entre aquilo que se conhece, e que por ser conhecido é considerado ordem (a redundância407 R), e aquilo que se desconhece,408 e que por ser desconhecido é considerado desordem (a quantidade de informação H): O princípio ... da complexidade pelo ruído significa ... que o ruído que reduz as restrições [redundância] dentro de um sistema aumenta sua complexidade. Isso, evidentemente, ainda está ligado à percepção do observador e ao fato de que o conhecimento que temos desses sistemas (naturais) e de seus mecanismos de construção é (ainda ou sempre) imperfeito.409 É somente devido a desconhecer-se o ruído, desconhecendo-se também a dinâmica dos processos que permitem ao sistema integrá-lo em sua reorganização evolutiva, que a redução do conhecimento (R) e o aumento da incerteza (H) podem ser expressos sob forma de conversão de redundância em variedade, com a atribuição de efeitos “construtivos” ou “destrutivos” ao que é interpretado como aleatório, acaso, ruído – interpretações que refletem o nosso desconhecimento quanto à complexa dinâmica de encadeamentos causais própria ao sistema. 407 O grau de ordem em um sistema, expresso pela redundância R, não necessariamente implica uma repetição física dos elementos, como em um cristal; basta que essa ordem seja dedutivamente repetitiva, à medida que o conhecimento de um dado elemento acrescenta também algum conhecimento sobre os demais, reduzindo assim a incerteza a respeito deles. 408 Esse foco no conhecimento de que não se dispõe tem origem em Brillouin (Léon Nicolas Brillouin; EUA; n. França; 1889-1969). Ver Science and Information Theory. New York: Academic Press, 1956. 409 ATLAN, 1992a (1979): 70. 153 Para Maturana, seria devido a tal desconhecimento que o determinismo mecanicista por ele pressuposto para os seres vivos não implicaria de modo algum sua previsibilidade.410 Varela, ao comentar o trabalho de Atlan,411 reitera que nem “ruído” nem “informação” são estruturais ao sistema, e sim relativos à clivagem particular com que “sistema” e “ambiente” (em Atlan, níveis hierárquicos) são distinguidos pelo observador. Já Atlan (aquele que mais ostensivamente se assume como herdeiro da tradição cibernética) tem por estéril a dicotomia ancestral entre mecanicismo e substancialismo (a que se refere como finalismo), e busca justamente integrar a ambos por meio de sua teoria.412 O conceito de “ruído com efeitos positivos” é assim o modo possível de inserção da questão do sentido, do significado, numa teoria quantitativa da organização, visando superar a dificuldade de articulação entre duas lógicas de naturezas distintas: a nossa, de observadores, e a do sistema, fechado em si mesmo no que concerne a seu sentido e finalidade. Os distintos níveis hierárquicos, ou níveis de organização, correspondem na verdade a distintos níveis de observação (tanto quanto Maturana e Varela afirmam que considerar ora os componentes ora a unidade implica constituir, como experiência humana, um domínio fenomenológico próprio àquilo que é considerado): Quando nós, como biólogos, estudamos células vivas... ou qualquer organismo, estamos numa posição de observador exterior... na medida do possível, o desintegramos e olhamos para as diversas partes que o constituem... Observamos o funcionamento do organismo como um todo... mas não presenciamos o todo e as partes conjuntamente, ao mesmo tempo, com as mesmas técnicas de observação e de medida... quando se pensa na célula viva, imagina-se a célula com o núcleo, a membrana... e tem-se também uma imagem daquilo que a célula está fazendo. Quem pensa na célula sabe que existe o DNA, os cromossomos no núcleo, mitocôndrias no citoplasma, membranas com as mais diversas propriedades... Esse é quadro tal como faz o biólogo. Pois bem – esse quadro, uma célula dessas, isso nunca foi visto de fato assim. Quando se olha para uma célula no microscópio, vê-se... o núcleo, e assim por diante, mas não se vê nenhuma das funções. Não se vêem as moléculas. Para ver as moléculas, é preciso usar outra técnica, diferente do microscópio; uma técnica química. Para ver o que a célula está fazendo, é preciso usar técnicas fisiológicas... Portanto, o conceito de célula é uma reconstituição, é o resultado de uma teoria baseada em diferentes técnicas que, entretanto, não podemos empregar ao mesmo tempo. Não podemos fazer simultaneamente bioquímica, microscopia eletrônica, fisiologia... precisamos juntar todas essas coisas e construir uma espécie de modelo.413 410 411 Cf. MATURANA, 1978: 61-62. Bem como os de Shannon, von Foerster e Prigogine; cf. VARELA, 1979: 263-265. 412 Sobre o mecanicismo: “Desde as origens da Cibernética, ... uma espécie de neomecanicismo foi-se impondo progressivamente na Biologia, consistindo em considerar os organismos vivos como máquinas de um tipo particular, chamadas de máquinas naturais numa referência às máquinas artificiais concebidas e fabricadas pelos homens. Entretanto, seria errôneo considerar essa atitude como uma continuação do mecanicismo do século XIX e do início do século XX” (ATLAN 1992a (1979): 36). Sobre o finalismo: “Comumente se observa que é evidente que o nível superior deve agir sobre o nível inferior” (ATLAN 1992a (1979): 60). 413 ATLAN, 2003: 126-127. 154 Atlan indica assim aquele que para nós é um ponto decisivo: da mesma forma como “célula” é antes um conceito, uma teoria, “complexidade” e “auto-organização” são antes um discurso (uma explicação, ou interpretação) que uma propriedade intrínseca (uma “lei universal”) da Natureza. Em 1979 ele escreveu: ... nem toda desordem é necessariamente uma complexidade. Uma desordem só se afigura complexa em relação a uma ordem que temos razões para acreditar que exista, e que procuremos decifrar. Em outras palavras, a complexidade é uma desordem aparente onde temos razões para presumir uma ordem oculta; ou ainda, a complexidade é uma ordem cujo código não conhecemos.414 O que ele complementou em 1987: No caso dos sistemas naturais, ao tentar compreender sua complexidade, nós normalmente nos damos conta de um hiato entre o que temos que explicar e a melhor explicação que conseguimos dar. Eu uma vez defini complexidade natural como uma desordem aparente onde temos razão para acreditar que exista uma ordem [ver acima]. Esta ordem encontra-se oculta de nós, mas, em geral, nós suspeitamos que ela exista, com base na observação de uma função: a desordem aparente parece realizar algo de forma organizada, o que faz algum sentido ... esta falta de conhecimento, ou desordem aparente, pode ainda ser formalizada sob determinadas premissas, e ser usada como uma medida para a complexidade natural.415 Em suma, o que Atlan propõe é um ponto de vista necessariamente externo a respeito de sistemas que são informacionalmente (para Maturana e Varela, organizacionalmente) fechados sobre si mesmos, como modo de articular por um lado o que se conhece e, por outro, o que se ignora sabendo-se estar ignorante; é somente por medir-se a informação por meio de uma abordagem (a de Shannon) que pressupõe a ausência de sentido que o seu oposto, o ruído, pode ser gerador de informação. 414 415 ATLAN, 1992a (1979): 67. ATLAN, 1988: 113. 155 Considerado frente à teoria da autopoiesis, que privilegia o ponto de vista interno ao sistema, o pensamento de Atlan oferece assim uma significativa complementaridade: Varela e Maturana deram um enfoque diferente a esse mesmo problema da auto-organização. Eles enfatizam... uma dinâmica interna... que produz... a “criação de si mesmo”. Já eu enfatizo um aspecto diferente... o da novidade, que aparece para nós como ruído... (Atlan) P – Já se disse que essa também pode ser considerada a diferença entre Bateson e Luhmann. Bateson estaria mais próximo desta sua posição. (entrevistador) R – É o que penso.416 Dito de outro modo, Maturana e Varela tomam o observador como contraponto ao que buscam destacar: a autonomia dos sistemas; por sua vez, Atlan atém-se ao ponto de vista do observador que não tem como desvendar a totalidade dos encadeamentos causais cujos resultados observa, e a que interpreta como “aumento de complexidade por meio do ruído”. Podemos agora compreender ordem e desordem, ou redundância e variedade, como parceiras nos processos evolutivos da Natureza, simultaneamente produtoras e produtos uma da outra (em terminologia autopoiética, domínios fenomenológicos que mutuamente se modulam). Por exemplo, a sociedade (nível abrangente) tanto provê aos indivíduos (nível elementar) uma tradição cultural (redundância) quanto possibilita, justamente por meio desta cultura, o desenvolvimento da individualidade (variedade). Em ambos estes níveis, as possibilidades de “tradução” das informações entre os códigos são apenas parciais: a sociedade é ignorante e inconsciente sobre os desejos, pensamentos e aspirações dos indivíduos, assim como os indivíduos são, ainda que parcialmente, ignorantes e inconscientes a respeito da totalidade social que os engloba – muito embora produzam-se reciprocamente. Assim, entendemos que qualquer caracterização de “ordem” e “desordem” é necessariamente uma atribuição da subjetividade do observador, em que uma é relativa à outra: por exemplo, o bacilo da tuberculose é visto pelos seres humanos como desordem, em oposição à saúde (ordem); frente à doença, os seres humanos terminaram por criar os antibióticos (uma elevação dos níveis de ordem na ciência médica e na saúde pública); expostos aos antibióticos, os bacilos terminaram por desenvolver resistência (novos e imprevistos níveis de desordem), o que por sua vez tem levado os 416 ATLAN, 2003: 135. 156 cientistas a buscar novas formas de lidar com a doença (novos níveis de ordem), que por sua vez poderão acarretar novos efeitos colaterais imprevistos, e assim por diante. Curiosamente, do ponto de vista do bacilo, a perspectiva inversa é também válida: a tuberculose nos pulmões humanos tem sido a ordem natural por milênios, o repentino aparecimento dos antibióticos foi uma desordem imprevista, a que o bacilo reagiu criando novos patamares de ordem (resistência) etc. Como foi visto, uma alternativa elegante para explicar esta dança entre ordem e desordem é o conceito de acoplamento estrutural de Maturana e Varela, segundo o qual sistema e ambiente co-evoluem em estimulação mútua, a re-organização em um patamar superior de complexidade de um correspondendo ao advento de uma (nova) desordem (perturbação) para o outro, e assim sucessivamente. Novamente como exemplo, ao nível da sociedade, a linguagem e a cultura são, a um só tempo, tanto moduladoras dos indivíduos que a integram quanto moduladas por estes. Uma vez examinado o processo de produção de variedade pela redução de redundância, resta ainda abordar o seu inverso. No campo da físico-química, Prigogine,417 em nossa interpretação, logrou demonstrar que, numa situação-limite – o afastamento do equilíbrio termodinâmico – os sistemas inorgânicos podem tornar-se como que “dissipadores” de entropia, pela importação maciça de energia externa que equivale a uma “recarga” de redundância, ou seja, de potencial para a criação de variedade, o que se reflete num salto qualitativo quanto ao padrão de organização do sistema. Atlan também considera a possibilidade de “recarga” de redundância em uma situaçãolimite, a interrupção da passagem (tradução) de significado na transmissão de informação entre níveis. Enquanto que sob circunstâncias normais ocorre perda de informação pela ocorrência de ruído, numa tal circunstância de crise haveria produção de ruído pela negação da informação, com a conseqüente redução da quantidade de informação H e aumento da redundância R, como exemplificado a seguir. 417 Remeter à p. 75. 157 Nas sociedades, o colapso da passagem mútua de significado entre os níveis individual e social pode ser contornado, segundo Atlan,418 mantendo-se a crise em estado latente, de uma dentre duas formas: uma, pela projeção por parte dos indivíduos do sentido produzido por seus códigos pessoais, numa “criação” pelo inconsciente de uma realidade social tornada incompreensível; é o que ocorre nas sociedades de consumo, pela ilusão de que nada é tão valorizado pela sociedade quanto a satisfação dos desejos individuais. A outra, diametralmente oposta, é a imposição do código social aos indivíduos, sob forma de convencimento ideológico compulsório, que ocorre nas sociedades totalitárias. Em ambos os casos, resultam um aumento de redundância sob forma de uniformização dos comportamentos, e uma diluição da variedade (individualidade) naquilo a que se denomina “massas”. Existem assim possibilidades de regeneração da redundância em sistemas naturais submetidos a situações-limite, com conseqüente restauração dos potenciais para autoorganização futura. Como será visto mais à frente, a intencionalidade humana é capaz de prover tais “recargas” de redundância no seio das organizações mesmo em situações de normalidade – tanto quanto já se tornou capaz de provê-las de forma interventiva nos sistemas naturais, por exemplo pelas terapias de regeneração de tecidos pelo implante de células-tronco, matrizes repletas de redundância para a geração da variedade no organismo humano. 418 Cf. ATLAN, 1992a (1979): 79-83. 158 5. Redundância e variedade como conceitos-chave a uma Teoria das Organizações Foram, primeiramente, investigadas as raízes cibernéticas da Teoria da Complexidade, delineadas então as premissas gerais de sua vertente mais conhecida (a que denominamos “computacional”) e, em seqüência, examinadas em detalhe duas dentre as principais teorias constituintes de uma outra vertente, a que nos afiliamos (e que denominamos “epistemológica”; abordaremos ainda, logo à frente, a vertente a que chamamos “metafórica”, particularmente presente em Teoria das Organizações). Estamos agora em condições de (re)definir419 sistemas complexos como aqueles que se mostram evolutivos ao longo do tempo pela compensação de perturbações externas (dito de outro modo, frente à complexificação ambiental). Tal compensação, por sua vez, corresponde a uma complexificação da organização interna aos sistemas, com o que eles podem ser compreendidos como dotados de uma dinâmica autônoma própria e, devido a isso, denominados auto-organizantes. Não há redução possível da fenomenologia específica gerada por esses sistemas à fenomenologia das interações de natureza física e química entre os seus componentes elementares (que admite compreender os comportamentos desses componentes como contínuos no tempo). Trata-se assim de sistemas cujos comportamentos (trajetória evolutiva) são descontínuos no tempo, e que devido a isso não têm como ser descritos pelas ferramentas clássicas, como as equações diferenciais. Como exemplos maiores dos sistemas complexos auto-organizantes, o fenômeno da vida, a psique humana, e as sociedades. Tanto a teoria da complexidade a partir do ruído quanto a da autopoiesis surgiram para dar conta das complexidades no âmbito da Biologia. Não obstante, como arcabouços epistemológicos que são, elas estão em condições de servir de base também a uma compreensão de complexidades em outras esferas, como a das sociedades. Para Atlan, Vimos que, com a ajuda de métodos probabilísticos como os da teoria da informação ... podemos fazer uma idéia de sistemas naturais dos quais temos apenas um conhecimento global, imperfeito em seus pormenores. Tais métodos podem prestar serviços em diversas ciências do ser vivo 419 Ver definição preliminar à p. 27. 159 (Biologia, Sociologia, Economia etc.), onde podem servir para definir melhor os conceitos e para fornecer um arcabouço interpretativo adequado.420 Foi precisamente esse o intento de Luhmann ao buscar, nos aportes da teoria da autopoiesis, transcender a sociologia cibernética de Parsons para a elaboração da sua teoria da sociedade, em que são caracterizados dois distintos domínios fenomenológicos mutuamente moduladores porém não-determinantes um do outro (logo, não-redutíveis um ao outro), o domínio da fenomenologia dos indivíduos (sistemas psíquicos) e o domínio da fenomenologia social (sistemas sociais). Assim, tanto quanto Maturana e Varela, Luhmann chegou a uma elegante explicação operacional (no sentido de causal) que, precisamente devido a isso, apresenta enormes dificuldades para seu desdobramento em aplicações “operacionais” (agora, no sentido de práticas), devido precisamente a não ser possível identificar interseções entre esses dois domínios em termos de nexos e encadeamentos causais. Ora, tais interseções, sob formas que comportem tratamento empírico pelas ciências sociais, somente podem se dar nos termos que Varela definiu como simbólicos. Faz-se portanto necessária a construção de alguma explicação de caráter simbólico que propicie correlacionar as fenomenologias do indivíduo e do coletivo, e dessa forma proveja não apenas inteligibilidade para a compreensão das complexidades organizacionais como perspectivas práticas para a lida com essas complexidades. É esse, precisamente, o nosso intento. Definições formais Nossa concepção em Teoria das Organizações toma por conceitos-chave as grandezas cibernéticas variedade e redundância tais como empregadas por Atlan, em que variedade diz respeito às partes de um sistema (e pode assim ser compreendida como um parâmetro descritivo da fenomenologia dos indivíduos), redundância diz respeito ao sistema como um todo (e pode assim ser compreendida como um parâmetro descritivo 420 Ibid., pp. 84-85. 160 da fenomenologia do âmbito social que estes indivíduos constituem), e ambos geram-se mutuamente. Nesse sentido, iremos primeiramente constituir definições formais para estes dois conceitos, para o que faremos uma recapitulação da compreensão das grandezas redundância e variedade havida nas obras daqueles que os estabeleceram (pela ordem: Shannon, Ashby, von Foerster e Atlan). Não serão incluídas no texto as definições formais desses autores (que, para fins de referência, seguem em notas, no original), por terem estas sido propostas em subordinação a contextos específicos (como transmissão de sinais, ou biologia), e assim conterem terminologia e formulações matemáticas próprias. A Shannon é devida a concepção dessas noções. Ao longo de uma linha de transmissão, a riqueza de informação que é enviada foi por ele compreendida em termos de variedade, ou seja, de diversidade. Ele não se utiliza contudo desses termos, mas optou por referir-se a uma quantidade de incerteza (a entropia de Shannon) na medida que, quanto mais diverso (mais rico) o código utilizado (que à época era, usualmente, a linguagem natural), mais incerteza existe quanto ao símbolo (o elemento do sistema “código”) que é, a cada instante, transmitido. Shannon, frente ao problema da transmissão de sinais em uma linha com ruído, compreendeu que o que chega para o dispositivo receptor (que se espera capaz de recuperar a informação tal como transmitida) é uma “quantidade de incerteza”, que comporta tanto a informação transmitida como ruído. Estudando a linguagem natural humana, em que a probabilidade de aparecimento dos diversos símbolos é claramente desigual, Shannon percebeu uma identidade com o conceito de entropia de Boltzmann, em que a distribuição das moléculas, expressa em termos de probabilidades, converge para a homogeneidade, ou seja, para uma variedade máxima, situação em que qualquer conhecimento quanto à condição de uma dada molécula não acrescenta conhecimento a respeito das demais.421 Ele então deu-se conta 421 We have represented a discrete information source ... Can we define a quantity which will measure, in some sense, how much information is “produced” by such a process? ... Suppose we have a set of possible events whose probabilities of occurrence are p1, p2, ..., pn. These probabilities are known but that is all we know concerning which event will occur. Can we find a measure of how much “choice” is involved in the selection of the event or of how uncertain we are of the outcome? ... Quantities of the form H = − ∑ pi log pi ... play a central role in information 161 de que a distribuição necessariamente desigual de probabilidades no interior da linguagem corresponde à existência de alguma parcela de redundância, regularidades estruturais que correlacionam os elementos da linguagem, e que portanto operam como delimitadoras da incerteza.422 Tal parcela de redundância é passível de ser reduzida por meio do uso de alguma codificação especificamente desenvolvida para esse fim, o que libera “espaço” (vazão) theory as measures of information, choice and uncertainty. The form of H will be recognized as that of entropy as defined in certain formulations of statistical mechanics where pi is the probability of a system being in the cell i of its phase space. H is, then, for example, the H in Boltzmann’s famous H theorem. We shall call H = − ∑ pi log pi the entropy set of probabilities p1, ..., pn. If x is a chance variable we will write H(x) for its entropy; thus x is not an argument of a function but a label for a number, to differentiate it from H(y) say, the entropy of the chance variable y (SHANNON, 1949 (1948): 18-20). Nós representamos uma fonte de informação discreta ... Podemos definir uma quantidade que medirá, em algum sentido, quanta informação é “produzida” por um tal processo? ... Suponha que temos um conjunto de eventos possíveis, cujas probabilidades de ocorrência são p1, p2, ..., pn. Estas probabilidades são conhecidas, mas isso é tudo o que nós sabemos a respeito de qual evento irá ocorrer. Podemos encontrar uma medida de quanta “escolha” está envolvida na seleção do evento, ou de quão incerto nos é o resultado? ... Quantidades na forma H = − ∑ pi log pi ... desempenham um papel central em teoria da informação como medidas de informação, escolha, e incerteza. A forma de H será reconhecida como a da entropia, como definido em certas formulações da mecânica estatística em que pi é a probabilidade de um sistema estar no compartimento i de seu espaço de fase. H é, então, por exemplo, o H no famoso teorema H de Boltzmann. Nós denominaremos H = − ∑ pi log pi ao conjunto entropia de probabilidades p1, ..., pn. Se x é uma variável aleatória nós escreveremos H(x) para sua entropia; assim x não é um argumento de uma função, mas um rótulo para um número, para diferenciá-lo de H(y), digamos, a entropia da variável aleatória y. 422 The ratio of the entropy of a source to the maximum value it could have while still restricted to the same symbols will be called its relative entropy. This ... is the maximum compression possible when we encode into the same alphabet. One minus the relative entropy is the redundancy. The redundancy of ordinary English ... is roughly 50%. This means that when we write English half of what we write is determined by the structure of the language and half is chosen freely (ibid., pp. 25-26). The redundancy is related to the extent to which it is possible to compress the language [, ou código, em questão]. I think I can explain that simply. A telegraph company uses commercial codes consisting of a few letters or numbers for common words and phrases. By translating the message into these codes you get an average compression. The encoded message is shorter, on the average, than the original. Although this is not the best way to compress, it is a start in the right direction. The redundancy is the measure of the extent to which it is possible to compress if the best possible code is used. It is assumed that you stay in the same alphabet, translating English into a twenty-six-letter alphabet. The amount that you shorten it, expressed as a percentage, is then the redundancy. If it is possible, by proper encoding, to reduce the length of English text 40 per cent, English then is 40 per cent redundant. The redundancy can be calculated in terms of probabilities associated with the language; the probabilities of the different letters, pairs of letters; probabilities of words, pairs of words; and so on. The formula for this calculation is related to the formula of entropy ... Actually, to perform this calculation is quite a task (SHANNON, 1951 (1950): 124). A taxa da entropia de uma fonte, relativamente ao valor máximo que ela possa ter enquanto ainda restrita aos mesmos símbolos, será denominada sua entropia relativa. Esta ... é a compressão máxima possível quando nós codificamos para dentro do mesmo alfabeto. Um menos a entropia relativa é a redundância. A redundância do inglês corriqueiro ... é de aproximadamente 50%. Isto significa que, quando nós escrevemos em inglês, metade do que nós escrevemos é determinado pela estrutura da linguagem e metade é livremente escolhido. [...] A redundância é relativa ao grau a que é possível comprimir a linguagem [, ou código, em questão]. Eu penso que possa explicar isso de modo simples. Uma companhia telegráfica utiliza códigos comerciais que consistem de umas poucas letras ou números para palavras e orações comuns. Ao traduzir a mensagem nesses códigos você obtém uma compressão média. A mensagem codificada é mais curta, em média, que a original. Ainda que esta não seja a melhor maneira de comprimir, ela é um começo na direção correta. A redundância é a medida do grau a que é possível comprimir, se o melhor código possível for utilizado. Pressupõe-se que você permaneça no mesmo alfabeto, traduzindo inglês em um alfabeto de vinte e seis letras. A quantidade de que você o reduz, expressa como uma percentagem, é então a redundância. Se for possível, por codificação apropriada, reduzir a extensão do inglês em 40 por cento, então o inglês é 40 por cento redundante. A redundância pode ser calculada em termos das probabilidades associadas com a linguagem; as probabilidades das diferentes letras, pares de letras; probabilidades de palavras, pares de palavras; e assim por diante. A fórmula para este cálculo é relacionada à fórmula da entropia ... Em verdade, efetuar este cálculo é uma tarefa e tanto. 162 no canal para a aplicação, à mensagem, de algum outro padrão de redundância, próprio à codificação escolhida e que, na recepção, é utilizado pelo dispositivo decodificador para a recuperação da variedade original da mensagem transmitida sob condições de ruído.423 A Ashby (e, antes dele, a Wiener)424 é devida a elevação dessas noções à categoria de propriedades gerais dos sistemas. Ashby optou por referenciar o que Shannon denominou “entropia” (quantidade de informação) sob o nome de variedade;425 já o que Shannon havia denominado “redundância”, Ashby formalizou como restrição. O raciocínio é simples, embora não-usual: um determinado sistema se comporta de determinadas maneiras, e não de outras, devido a encontrar-se restrito a somente se comportar daqueles modos; dito de outra forma, a liberdade para o comportamento do sistema não é absoluta porque sobre ele incidem restrições.426 423 If the channel is noisy it is not in general possible to reconstruct the original message ... There are, however, ways of transmitting the information which are optimal in combating noise (SHANNON, 1949 (1948): 35). ... by sending the information in a redundant form the probability of errors can be reduced. ... It is possible to send information ... through the channel with as small a frequency of errors ... as desired by proper encoding (ibid., p. 39). An approximation to the ideal would have the property that if the signal is altered in a reasonable way by the noise, the original can still be recovered. ... This is accomplished at the cost of a certain amount of redundancy in the coding (ibid., p. 43). Se o canal for ruidoso em geral não é possível reconstruir a mensagem original ... Existem, entretanto, maneiras de transmitir a informação que são otimizadas ao combate ao ruído. [...] ao enviar a informação em uma forma redundante a probabilidade de erros pode ser reduzida. ... É possível enviar informação ... através do canal com uma freqüência de erros tão pequena ... quanto desejada, por codificação apropriada. [...] Uma aproximação ao ideal teria a propriedade de, se o sinal for alterado de um modo razoável pelo ruído, o original poder ainda ser recuperado. ... Isto é realizado ao custo de uma certa quantidade de redundância na codificação. 424 Que também tinha por foco os desenvolvimentos matemáticos derivados da noção de entropia (de Boltzmann); cf. WIENER, 1948. 425 The word variety, in relation to a set of distinguishable elements, will be used to mean either (i) the number of distinct elements, or (ii) the logarithm to the base 2 of the number [que corresponde ao número mínimo de bits necessários para referenciar todos os elementos do conjunto] (ASHBY, 1956: 126). O termo variedade, em relação a um conjunto de elementos distinguíveis, será empregado para significar ou (i) o número de elementos distintos, ou (ii) o logaritmo de base 2 do número [que corresponde ao número mínimo de bits necessários para referenciar todos os elementos do conjunto]. 426 ... [uma] constraint ... is a relation between two sets [de elementos de um sistema], and occurs when the variety that exists under one condition is less than the variety that exists under another. ... It seems that constraints cannot be classified in any simple way, for they include all cases in which a set, for any reason, is smaller than it might be (ibid., pp. 127-128). ... when a constraint exists advantage can usually be taken of it. ... Most of it [o trabalho de Shannon] is directed to estimating the variety that would exist if full independence occurred, showing that constraints (there called “redundancy”) exist, and showing how their existence makes possible a more efficient use of the channel. ... the existence of any invariant over a set of phenomena implies a constraint, for its existence implies that the full range of variety does not occur. ... it follows that every law of nature is a constraint. Thus, [por exemplo,] the Newtonian law ... excludes many positions and velocities, predicting that they will never be found to occur. ... Here the larger set is composed of what might happen if the behaviour were free and chaotic, and the smaller set is composed of what does actually happen. ... Seen from this point of view, the world around us is extremely rich in constraints. We are so familiar with them that we take most of them for granted, and are often not even aware that they exist. ... A world without constraints would be totally chaotic (ibid., pp. 130-131). ... [uma] restrição ... é uma relação entre dois conjuntos [de elementos de um sistema], e ocorre quando a variedade que existe sob uma condição é menor que a variedade que existe sob a outra. ... Parece que restrições não podem ser classificadas por nenhum modo simples, porque elas incluem todos os casos em que um conjunto, por qualquer razão, 163 Ashby, que como vimos preocupava-se em ser didático, fazia recurso freqüente a metáforas, como as que aqui transcrevemos, da cadeira, do avião e da cobaia no labirinto. Um objeto físico, no espaço tridimensional, tem seis possibilidades de deslocamento: para frente, trás, cima, baixo, esquerda e direita (qualquer outro movimento é uma combinação destes); a variedade das possibilidades de deslocamento de um conjunto composto por quatro pernas de cadeira avulsas é de 6 x 4 = 24; contudo, esta variedade para uma cadeira (uma unidade em si) de que façam parte as quatro pernas é reduzida a seis: “... a essência de ser a cadeira uma ‘coisa’, uma unidade, ao invés de um agrupamento de partes independentes, corresponde à presença da restrição”.427 Para que a trajetória futura de um avião seja previsível (ou seja, para que se possa estimar a variedade dessa trajetória) é necessário que ela seja restrita: Se um avião, por exemplo, estivesse apto a movimentar-se, segundo após segundo, de um ponto a outro no céu, então a melhor predição antiaérea seria inepta e inútil. ... um avião não pode repentinamente disparar, seja em posição, velocidade ou direção. Existe restrição devida à individualidade do projeto, que faz com que este avião se comporte como um A-10 e aquele se comporte como um Z-20. Existe restrição devida à individualidade do piloto; e assim por diante.428 Da mesma forma, qualquer aprendizagem só é possível por haver restrições. Para que uma cobaia de laboratório aprenda o caminho em um labirinto, este deve conservar um mesmo padrão durante todo o período de aprendizagem. Se o labirinto não apresentar restrições próprias, o animal será incapaz de desenvolver o esperado (e apropriado) comportamento: “a aprendizagem somente vale a pena quando o ambiente apresenta restrição”.429 é menor do que o que ele poderia ser. [...] quando uma restrição existe pode-se geralmente tirar proveito dela. ... A maior parte dele [o trabalho de Shannon] é direcionado a estimar a variedade que existiria se total independência ocorresse, mostrando que as restrições (lá, chamadas “redundância”) existem, e mostrando como a sua existência torna possível um uso mais eficiente do canal. ... a existência de qualquer invariante sobre um conjunto de fenômenos implica uma restrição, porque a sua existência implica que a gama plena de variedade não ocorre. ... segue-se que toda lei da Natureza é uma restrição. Assim, [por exemplo,] a lei newtoniana ... exclui muitas posições e velocidades, predizendo que nunca as veremos ocorrer. ... Aqui o conjunto maior é composto pelo que poderia acontecer se o comportamento fosse livre e caótico, e o conjunto menor é composto pelo que realmente acontece. ... Considerado desse ponto de vista, o mundo ao nosso redor é extremamente rico em restrições. Nós estamos tão familiarizados com elas que nós tomamos a maioria delas por certas, e geralmente não estamos sequer cientes de que elas existem. ... Um mundo sem restrições seria totalmente caótico. 427 428 429 Ibid., p. 131. Ibid., p. 132. Ibid., p. 134. 164 Já em relação a um idioma, o que confere a este uma coerência e identidade próprias são as restrições a que ele se encontra sujeito, ou seja, é a sua redundância. Por exemplo, para escrever corretamente em inglês deve-se necessariamente empregar “a” antes de consoante (ou de vogal que soe como consoante, como em “a university”) bem como “an” antes de vogal (ou de consoante que soe como vogal, como em “an hour”) – e não qualquer outra coisa. A variedade à disposição daquele que fala ou escreve pode ser ampla (tome-se, por exemplo, o Finnegans Wake de Joyce),430 mas ela não é absoluta; por mais plásticos que sejam os seus limites, uma vez que estes sejam ultrapassados já não se trata mais de inglês, o idioma terá se transmutado em alguma outra coisa: The European Union commissioners have announced that agreement has been reached to adopt English as the preferred language for European communications – rather than German, which was the other possibility. As part of the negotiations, Her Majesty’s Government conceded that English spelling had some room for improvement and has accepted a five-year phased plan for what will be known as EuroEnglish (Euro for short). In the first year, “s” will be used instead of the soft “c”. Sertainly, sivil servants will reseive this news with joy. Also, the hard “c” will be replaced with “k”. Not only will this klear up konfusion, but keyboards kan have one less letter. There will be growing publik enthusiasm in the sekond year, when the troublesome “ph” will be replased by “f”. This will make words like “fotograf” 20 per sent shorter. In the third year, publik akseptanse of the new spelling kan be expekted to reach the stage where more komplikated changes are possible. Governments will enkourage the removal of double letters, which have always ben a deterent to akurate speling. Also, al wil agre that the horible mes of silent “e”s in the languag is disgrasful, and they would go. By the fourth year, peopl wil be reseptiv to steps such as replasing “th” by “z” and “w” by “v”. During ze fifz year, ze unesesary “o” kan be dropd from vords kontaining “ou”, and similar changes vud, of kors, be aplid to ozer kombinations of leters. After zis fifz yer, ve vil hav a reli sensibl riten styl. Zer vil be no mor trubls or difikultis and evrivun vil find it ezi tu understand ech ozer. Ze drem vil finali kum tru.431 No que toca à questão organizacional: na medida que a existência de uma organização requer que significados sejam compartilhados por toda uma comunidade de pessoas, a variedade para esses significados pode ser ampla (diferentes pessoas possuem diferentes idéias quanto ao que seja a organização), mas não tem como ser total: uma identidade e 430 431 James Augustine Aloysius Joyce (França; n. Irlanda; 1882-1941). Anedota recolhida da Internet (autor desconhecido). 165 uma coerência próprias àquela organização advêm justamente da redundância que perpassa as percepções dos indivíduos, restrições que inibem que a organização seja percebida como aquilo que ela não é. É portanto a redundância o que determina o escopo para a variedade. Nesse caso da organização, quanto mais robusta a redundância (ou seja, quanto mais consistente a identidade organizacional) mais convergência haverá de ações e comportamentos – o que pode ser vantajoso ou desvantajoso, ou ambos, como será visto mais à frente. Assim, uma restrição corresponde a uma redução não da variedade real, mas da variedade potencial – uma realidade sobre que não incidissem restrições seria completamente caótica. Isso torna imprecisa qualquer descrição e inexata qualquer mensuração da redundância (os cálculos de Shannon a respeito do idioma inglês eram aproximativos), pois ela refere-se ao que o sistema poderia ser – mas não é. Por sua vez, a von Foerster é devida a caracterização do fenômeno da auto-organização como uma dança evolutiva entre ordem e desordem, em que energia é importada do ambiente, e em que cabe à redundância desempenhar o papel de ordem.432 A Atlan, por fim, é devida a caracterização, nos sistemas biológicos, da autoorganização como um processo de especificação de variedade por redução de 432 What we expect is that the systems [auto-organizantes] are increasing their internal order. ... In order to describe this process, ... it would be nice if we would ... have some measure of order. ... we wish to describe by this term two states of affairs. First, we may wish to account for apparent relationships between elements of a set which would impose some constraints as to the possible arrangements of the elements of this system. As the organization of the system grows, more and more of these relations should become apparent. Second, it seems to me that order has a relative connotation, rather than an absolute one, namely, with respect to the maximum disorder the elements of the set may be able to display. This suggests that it would be convenient if the measure of order would assume values between zero and unity, accounting in the first case for maximum disorder and, in the second case, for maximum order. ... what Shannon has defined as “redundancy” seems to be tailor-made for describing order as I like to think of it (von FOERSTER, 1984a (1960): 8-9). O que nós supomos é que os sistemas [auto-organizantes] estejam aumentando sua ordem interna. ... Para descrever este processo, ... seria bom se nós pudéssemos ... ter alguma medida de ordem. ... nós desejamos descrever por este termo dois estados de coisas. Primeiro, nós podemos desejar dar conta dos relacionamentos aparentes entre elementos de um conjunto que imporiam algumas restrições com relação às possíveis disposições dos elementos deste sistema. À medida que a organização do sistema aumenta, mais e mais destas relações devem se tornar aparentes. Segundo, me parece que ordem tem uma conotação relativa ao invés de absoluta, quero dizer, com respeito à máxima desordem que os elementos do conjunto podem ser capazes de exibir. Isto sugere que seria conveniente se a medida de ordem assumisse valores entre zero e a unidade, respondendo no primeiro caso pela máxima desordem e, no segundo caso, pela máxima ordem. ... o que Shannon definiu como “redundância” parece ser sob medida para descrever ordem como eu prefiro considerá-la. 166 redundâncias no sistema433 (o que corresponde a um aumento de complexidade) com aproveitamento de ruído, em que o grau de compromisso434 entre redundância435 e variedade, condicionantes a um tempo opostas e complementares, é o que determina os potenciais para auto-organização. Deve-se também a Atlan uma descrição da realidade como composta por distintos níveis de complexidade436 funcionalmente acoplados, mas que operam segundo códigos próprios. Define-se complexidade, por tudo o que já foi exposto, como a legitimação da incerteza, a aceitação da impossibilidade de se chegar a um conhecimento completo e final. A complexidade em um sistema é portanto a parcela de desordem que corresponde à falta de conhecimento quanto à ordem de que se conjectura ser ele dotado. Define-se agora 433 ... il semble aujourd’hui plus légitime de réserver, comme le faisait von Foerster, le terme d’ordre à ce qui se mesure par une redondance, la varieté et la complexité étant mesurées par l’information, fonction H de Shannon (ATLAN, 1979: 74). ... parece, atualmente, mais legítimo reservar, como o fez von Foerster, o termo ordem ao que se mede por uma redundância, a variedade e a complexidade sendo medidas pela informação, função H de Shannon. 434 ... dans les systèmes complexes, le degré d’organisation ne pourra être réduit ni à sa varieté ... ni à sa redondance, mais consistera en un compromis optimal entre ces deux propriétés opposées (ibid., p. 43). ... nos sistemas complexos, o grau de organização não poderá ser reduzido nem à sua variedade ... nem à sua redundância, mas consistirá em um compromisso ótimo entre estas duas propriedades opostas. 435 ... l’ordre n’apparâit dans une structure qui si on le connaît, si on le comprend les articulations, le code qui régit l’agencement des éléments (ibid., p. 77). L’existence de contraintes internes à l’intérieur du système équivaut à une redondance. En effet, du fait de ces contraintes, la connaissance d’un élément modifie celle qu’on peut avoir sur d’autres éléments. Si cette connaissance est limitée à celle de leurs probabilités d’apparition comme éléments constitutifs du système, les contraintes sont mesurées par des probabilités conditionnelles (de rencontrer un élément sous condition qu’un autre ait été d’abord identifié) (ibid., pp. 78-79). ... a ordem não aparece numa estrutura a menos que a conheçamos, que compreendamos suas articulações, o código que rege a disposição dos elementos. [...] A existência de restrições internas no interior do sistema equivale a uma redundância. Com efeito, devido a estas restrições, o conhecimento de um elemento modifica aquele que se possa ter sobre outros elementos. Se esse conhecimento é limitado ao das probabilidades de suas ocorrências como elementos constitutivos do sistema, as restrições são medidas por probabilidades condicionais (de encontrar um dado elemento, sob condição de que um outro já tenha sido identificado). 436 ... comment peut-on mesurer ... quelque chose qu’on ne connaît pas, en l’occurrence ici l’information qu’on ne possède pas sur le système (ou encore le déficit d’information, l’incertitude sur le système)? On le peut si on connaît les éléments constitutifs du système et leur distribution de probabilités ... A partir de cette information minimale (qu’on possède), on peut calculer l’information qui nous manque pour être capable de reconstruire le système à partir de ses élements, c’est-à-dire de le comprendre. C’est en cela que cette fonction H de Shannon ... mesure la complexité, pour nous observateurs, de ce système. On comprend alors en quoi cette mesure dépend de façon critique du niveau d’observation, on plus exactement du choix de ce qui est considéré comme éléments constitutifs. ... La valeur numérique de H peut varier considérablement car elle dépend du choix des éléments constitutifs : particules élémentaires, atomes, molécules, macromolécules, organelles, cellules, organes, organismes, unités de production et de consommation, sociétés, etc. (ibid., pp. 74-75). ... como se pode medir ... algo que não se conhece, e que se trata aqui da informação que não se possui sobre o sistema (ou ainda o déficit de informação, a incerteza a respeito do sistema)? Isto é possível desde que se conheçam os elementos constitutivos do sistema e sua distribuição de probabilidades ... A partir dessa informação mínima (que se possui), pode-se calcular a informação que nos falta para que se seja capaz de reconstruir o sistema a partir de seus elementos, ou seja, de compreendê-lo. É nesse sentido que essa função H de Shannon ... mede a complexidade, para nós, observadores, deste sistema. Compreende-se então em que essa medida dependa de modo crítico do nível de observação, mais exatamente da escolha do que são considerados elementos constitutivos. ... O valor numérico de H pode variar consideravelmente, pois ele depende da escolha dos elementos constitutivos: partículas elementares, átomos, moléculas, macromoléculas, organelas, células, órgãos, organismos, unidades de produção e de consumo, sociedades etc. 167 variedade como a medida da complexidade de um sistema, e que é devida à diversidade437 percebida nos elementos e na dinâmica de interações entre eles. E definese redundância como a medida em que essa variedade encontra-se restrita pelos graus de ordem presentes (ou seja, pelo conhecimento disponível), e que são devidos à regularidade percebida nos elementos e na dinâmica de interações entre eles. Em suma, redundância é um atributo do sistema relativo ao todo, àquilo que as partes implicam de comum, de coletivo; já variedade é relativa à especificidade, à particularidade das partes. Por fim, os processos por natureza auto-organizantes de mútua produção entre variedade e redundância constituem a dinâmica gerativa da fenomenologia do sistema. Queremos, por esta expressão, referenciar o conjunto de processos interdependentes que produz a fenomenologia do sistema, no sentido de que a evolução no tempo de tais processos constitui o conjunto de fenômenos que caracteriza o sistema como tal. Já foi deixado claro que o que desenvolvemos aqui é uma explicação de natureza simbólica ao invés de operacional, em que não cabe portanto qualquer relação causal direta entre redundância e variedade (ou seja, entre as fenomenologias do todo e das partes). Ainda assim, é importante ressaltar que até mesmo o formalismo cibernético da equação H = Hmax ( 1 − R ) correlaciona uma grandeza que na fórmula é tida como absoluta (variedade) com outra que é tida como relativa (redundância); qualquer falta de clareza quanto a que se trata de grandezas dissimilares induz ao risco de equívocos.438 Reconhecemos que, ao postular que redundância e variedade são mutuamente geradoras uma da outra, estabelecemos um espaço (ou domínio) único para a fenomenologia 437 Em Ashby, a variedade de um sistema corresponde ao número de elementos distintos desse sistema, ou seja, à sua diversidade em termos físicos (cf. nota 425, p. 163); para Shannon, ela corresponde à diversidade da distribuição estatística desses elementos (cf. nota 421, p. Erro! Indicador não definido.); para von Foerster e Atlan, ela corresponde a toda diversidade que ainda é percebida no sistema ao se conhecer, ainda que parcialmente, as restrições (redundância) existentes. Esta última noção é a adotada aqui. 438 Por exemplo, ao extrair parte da redundância de uma mensagem, Shannon torna o sistema “mensagem” mais complexo ou variado (o que, no caso, significa uma mensagem de mais difícil compreensão por um leitor humano) em relação à sua complexidade ou variedade máxima possível. A distribuição (entendida como “quantidade”) da variedade real foi alterada (aumento de H), mas a variedade potencial Hmax que se quer preservar ao longo da transmissão foi mantida. Assim, na frase “o comprimento da mensagem (o tamanho do sistema) foi reduzido, mas sua variedade foi mantida, sem perda de conteúdo da mensagem” fica subentendido que se trata da variedade máxima Hmax . Já na frase “o sistema (mensagem) se tornou mais complexo ou variado pela redução de redundância”, trata-se da distribuição H da variedade. 168 organizacional. O que Maturana e Varela preconizam é a existência de dois domínios fenomenológicos (o fisiológico/físico-químico e o comportamental/biológico) que são distintos porque existentes como experiência do observador, posto que a concepção deles para o real é a de um determinismo mecanicista a que, contudo, não seria possível qualquer acesso direto, e cuja realidade pode assim ser apenas inferida – pela simples razão de que faz sentido frente aos acúmulos em Biologia. Já para Atlan439 (bem como para Dupuy, Morin, Kauffman e outros) faz sentido (frente aos mesmos acúmulos) considerar a existência de uma co-determinação causal entre o todo e as partes – o que, nos termos de Varela, pode corresponder a uma descrição simbólica admissível, desde que em conformidade com critérios que procuramos aqui atender. O que nós buscamos aqui não é a palavra final quanto a esta controvérsia (que muito possivelmente não será dada tão cedo, ou mesmo nunca), mas sim a construção de uma teoria que guarde compatibilidade com ambas essas proposições (as de Atlan e a autopoiesis), e possa assim incorporar os valiosos aportes de ambas. É nesse propósito que afirmamos aqui que, enquanto experiência do observador, faz sentido considerar que os âmbitos individual e social conformam, sim, domínios fenomenológicos distintos, que se modelam mutuamente e que mutuamente dependem um do outro para suas próprias geração e conservação; e que, enquanto descrição simbólica admissível, faz sentido considerar que os âmbitos individual e social, interpretados respectivamente em termos de variedade e de redundância, são sim mutuamente geradores um do outro, no que consistem a dinâmica gerativa da fenomenologia organizacional. Também já vimos que a Teoria da Complexidade não é adequada à modelagem.440 Entendemos contudo que ela propicia uma significativa expansão no horizonte de compreensão qualitativa dos fenômenos – uma ampliação do pensamento humano – que vem possibilitar uma atuação diferenciada (antes no sentido de compatível que no de interveniente) nos ambientes organizacionais.441 439 440 441 Remeter à nota 412, p. 154. Remeter à p. 71. Cf. BAUER, 1999: 223, 225-228. 169 Toda organização é um sistema complexo, pois ela já conta, por sua própria natureza, tanto com redundância como com variedade, em permanente mútua produção. Entendemos assim que a essência da gestão em uma organização corresponde, antes de tudo, a compreender a dinâmica gerativa consistida por esses processos de mútua geração entre redundância e variedade, o que propicia uma atitude de facilitá-los – algo necessariamente prévio a atitudes de caráter interveniente de balanceá-los, pela promoção ou indução de um em detrimento do outro, ou de incrementá-los, por sua importação. Nosso argumento central é que facilitar os processos de mútua geração entre redundância e variedade diz respeito essencialmente ao fomento de qualidade para as interações humanas,442 a que denominamos convivencialidade.443 Passemos, agora, ao exame dos papéis desempenhados por redundância e variedade para a geração da fenomenologia organizacional. A premissa básica para uma compreensão das organizações como sistemas complexos (todos) compostos por indivíduos (partes) em interação é tomar cada individualidade por única – não há como “entrar na cabeça” das pessoas para desvendar o que se passa lá dentro. Na óptica da organização (ou, do ponto de vista de um observador, o que é equivalente), as pessoas representam desordem (no sentido de incerteza, de impossibilidade de conhecimento); elas são variedade. 442 Cf. BAUER, 2002, 1999: 184-188, 192-193, 207, 240. 443 “A relação do EU com o OUTRO (as pessoas, a natureza, a sociedade, o mundo) pode assumir diferentes formas em função da perspectiva do EU. ... Há a separação, o EU diante do OUTRO. Isso em si é saudável: mesmo alguém profundamente integrado à natureza, como um índio, diante de uma árvore é capaz de ver uma canoa, ou lenha para sua fogueira; já nós podemos ver celulose, papel etc. Diante de outro membro da tribo, o índio vê um curandeiro, ou um guerreiro; já nós vemos uns aos outros de acordo com os inúmeros papéis sociais de nossa sociedade complexa. ... E há a totalidade: diante do outro, devemos ser capazes de ver também a nós mesmos. Caso contrário, deixamos de ser humanos, e nos reduzimos a meras máquinas de estratégia para uso e consumo do outro. ... O relacionamento EU-OUTRO é uma dualidade, separação e totalidade se alternam o tempo todo. Convivencialidade é exatamente isso – essa saudável alternância. ... Num relacionamento convivencial, o OUTRO é visto com um igual, se estabelece um senso de respeito, abertura e cuidado. Convivencialidade é fazer-se presente ao outro – em todos os sentidos que esta palavra comporta. ... Há, porém, o risco de irmos aos poucos nos esquecendo que fazemos parte de um todo. Sem a contrapartida da totalidade, a separação degenera em utilitarismo. Num relacionamento utilitário, o EU subordina o OUTRO aos seus interesses e objetivos pessoais. O outro é reduzido a objeto, instrumento; predomina o controle” (REDE PARA A EDUCAÇÃO, O DOM E A EXPRESSÃO, 2002: passim); ver também REDE PARA A EDUCAÇÃO, O DOM E A EXPRESSÃO (Brasil). “Convivencialidade ou Utilitarismo?”. In: AGOSTINHO, Márcia E., BAUER, Ruben, PREDEBON, José (orgs.). Convivencialidade: A Expressão da Vida nas Empresas. São Paulo: Atlas, pp. 15-24, 2002. Infelizmente, não será possível fazer uso da tradução para o inglês (conviviality) do termo convivencialidade (do latim convivere: viver junto, viver em comum), uma vez que naquele idioma inexiste o verbo “to convive” (conviver), porém existe o adjetivo convivial (do latim convivium: uma festa), com o que o termo conviviality acaba referido às idéias de celebração e congraçamento. 170 Contudo, essa falta de conhecimento por parte do sistema “organização” (ou do observador) quanto às partes nunca é absoluta, e assim não há como a desordem ser total, pois as pessoas tanto agem como inter-agem entre si de maneiras que não são de todo desconhecidas. Como exemplo óbvio, elas se comunicam por meio de um idioma comum; neste, elas empregam vocabulários cujos significados elas pressupõem sejam compartilhados por seus interlocutores. Ou seja, a desordem encontra-se circunscrita (restrita) por alguma ordem – por redundância, que se faz presente em diversos níveis. O sistema “organização” é assim composto em parte por variedade ou desordem (o que se desconhece a respeito de suas partes – os indivíduos – e da interdependência entre elas) e em parte por redundância ou ordem (o que se conhece, e que delimita a desordem). É o processo de interação entre as pessoas (variedade) que ocorre com base em algum contexto comum (redundância) o que produz tanto mais variedade (por exemplo, novas idéias na cabeça das pessoas) quanto uma renovação da redundância (por exemplo, novos consensos). A redundância em uma organização corresponde a tudo o que nela é compartilhado pelas pessoas: a identidade organizacional; a cultura organizacional; bases compartilhadas de informação; habilidades e competências comuns. Pode-se promover ou induzir redundância (por exemplo, por iniciativas de reforço da identidade organizacional) ou importá-la (por exemplo, pelo provimento de uma base comum de treinamento). Já a variedade em uma organização corresponde a tudo que se refira à individualidade: os conhecimentos (chamados tácitos) de cada um; as habilidades e competências individuais; as diferentes percepções e interpretações de uma mesma realidade pelas diferentes pessoas; e a ambigüidade, a contradição e o conflito que necessariamente advêm quando da confrontação dessas diferentes percepções e interpretações. Pode-se promover ou induzir variedade (por exemplo, pelo estímulo à experimentação) ou importá-la (por exemplo, contratando mais pessoas). 171 Seja, como modo de se compreender a auto-organização nos termos de Atlan:444 do elemento A (um indivíduo) para o elemento B (outro indivíduo) em um sistema S (uma organização) ocorre uma transmissão de informação (por exemplo, A participa a B sua percepção de uma dada situação). Se sobre essa transmissão incide ruído, B recebe ao menos parte da informação original (o que implica aumento de redundância no sistema) juntamente com o ruído (o que implica aumento de variedade, uma vez que o ruído também compõe o total de informação contida no subconjunto {A, B} do sistema S). Em seguimento, agora nos termos de Maturana e Varela: qualquer “transmissão de informação” de A para B necessariamente implica ruído, uma vez que exercerá sobre B o efeito de uma perturbação que B irá compensar de uma forma subordinada à conservação de sua identidade própria. Dito de outra forma: uma interação lingüística entre A e B não é uma transmissão de conteúdo, é uma coordenação de comportamentos por acoplamento mútuo em que cada mudança estrutural em uma unidade opera como uma perturbação a ser autonomamente compensada pela outra. Em síntese: toda interação humana envolve necessariamente alguma produção de “ruído” (ainda que despercebido), pois toda cognição se dá de forma referenciada no viver individualizado de cada um. De volta a Atlan: na medida em que o sistema S, composto não apenas por A e B mas por outros indivíduos que operam ou como “receptores” do que a A e B lhes “transmitem” ou como observadores do que se passa entre A e B (o que é equivalente; sobre esses outros indivíduos o que incide são também perturbações) for capaz de auferir proveito desses ruídos internos (contradição, ambigüidade, conflito) em monta superior ao efeito destrutivo desses mesmos ruídos, e assim elevar sua capacidade de resposta às perturbações originadas no seu ambiente (do sistema), tem-se que a organização (sistema S) evolui por auto-organização. Ou ainda: se uma “quantidade de variedade” for a medida da informação em um dado nível em um sistema hierarquizado (no caso, o âmbito individual), a redundância 444 Remeter à Figura 5, à p. 145. 172 corresponde ao significado que todo esse agregado de informação expressa em um outro nível (no caso, o âmbito social). Escolhemos tomar por teoria central a de Atlan, por suas já mencionadas vantagens (descrição que incorpora uma dimensão simbólica ao invés de puramente operacional, o que vem propiciar o estabelecimento de uma correlação entre redundância e variedade). Não obstante, é também possível expressar nossa teoria exclusivamente nos termos da autopoiesis: redundância corresponde precisamente às regularidades constitutivas de uma unidade de ordem superior (no caso, terceira) geradas pelos acoplamentos (interações) entre as unidades de uma dada ordem (no caso, segunda); do ponto de vista da unidade de terceira ordem (ou seja, “de fora”: um observador), variedade corresponde à autonomia (conservação da autopoiesis) em cada uma das unidades dessa (segunda) ordem. A vertente metafórica Uma tal capacidade de evolução por auto-organização pode, também, ser ilustrada pelo recurso a metáforas. Iremos agora discorrer sobre a vertente metafórica em Teoria da Complexidade,445 particularmente ativa no que se refere ao universo organizacional. Os abusos e excessos no emprego de metáforas (o que, lamentavelmente, tem sido o caso de muitas dentre as proposições organizacionais inspiradas na Teoria da Complexidade), no limite, induzem a tomar-se o metafórico por real (o que para nós é tão equivocado quanto tomar simulação por modelagem), e têm acarretado um desgaste desse importante instrumento, desde sempre integrante da prática científica: é por meio de metáforas que são ensaiados os primeiros passos em todo processo de transposição de conceitos científicos de uma disciplina para outra. Desde Taylor, com sua metáfora do homem-máquina, as teorias organizacionais lastrearam-se sempre em metáforas. A metáfora concorre para a consolidação de um imaginário compartilhado (redundância...) que por sua vez proporciona uma 445 O que faremos com base em MORGAN, 1997 (1986); ver também LISSACK, Michael. “Mind your Metaphors: Lessons form Complexity Science”. Long Range Planning, vol. 30, n. 2, pp. 294-298, 1997. 173 coordenação coletiva das ações, decisões e comportamentos. As metáforas mecanicistas e, posteriormente, as organicistas, foram portadoras de imagens que emprestaram sua coerência aos contextos organizacionais, facilitando a construção, preservação e renovação de imagens de mundo compartilhadas, e o emprego de uma linguagem comum delas resultante. Por exemplo, referir-se a uma organização como se uma máquina fosse facilita a assimilação da idéia de que a organização foi projetada e construída para a consecução de finalidades e objetivos dados, por meio de um funcionamento estável, previsível e eficiente. A metáfora coletivamente aceita impõe assim uma estrutura subjacente de pensamento (ou seja, um paradigma), que permeia os modos de leitura e interpretação da realidade. A utilidade da metáfora provém da perspectiva de esclarecimento de algum aspecto ainda difuso da realidade em face de outro com que já se esteja familiarizado. O risco do emprego da metáfora reside justamente em saltar-se da mera correlação de similaridades para uma identificação da realidade com a metáfora – uma reificação. Por exemplo, o entendimento de uma organização como uma máquina, malgrado suas vantagens em termos da valorização da eficiência, traz embutido o risco de que as dimensões humanas envolvidas sejam relegadas a um segundo plano – pessoas tratadas como se peças de máquina fossem. Metáforas tradicionais aos ambientes organizacionais são, por exemplo, disputar um jogo ou combater em uma guerra – metáforas sem dúvida adequadas a forjar um espírito competitivo, mas que implicitamente pressupõem ser o jogo disputado em um campo (ou o combate disputado em um relevo) pré-dado e invariante, e que se mostram portanto precárias para descrever um ambiente de mercado mutável. Por serem as organizações sistemas complexos e evolutivos, metáforas inspiradas na Teoria da Complexidade afiguram-se mais indicadas. Assim, há tanto metáforas que reforçam os padrões cristalizados de pensamento como outras que aguçam o pensamento crítico e estimulam novas perspectivas de se pensar e ver o mundo, favorecendo o surgimento de formas criativas para se lidar com o caráter multifacetado da realidade organizacional – metáforas consistentes com os rumos da evolução humana, e capazes de contribuir para essa evolução. 174 Tome-se como exemplo a metáfora do mercado como um ecossistema:446 estudos ecológicos demonstram que, quanto mais consolidada a rede de interrelacionamentos no interior de um ecossistema, mais esta dota seus componentes de robustez para resistirem a deslocamento por alguma espécie competidora intrusa. No ecossistema do arquipélago havaiano, por exemplo, a introdução de espécies exóticas de pássaros e plantas levou à constituição de duas regiões distintas: nas terras baixas, onde a ocupação humana rompeu boa parte dos interrelacionamentos preexistentes, as espécies nativas tornaramse vulneráveis à competição pelos intrusos; já nas terras altas, onde a mata nativa manteve-se praticamente intacta, preservou-se também uma robustez dos laços preexistentes entre plantas e pássaros nativos, com poucas dentre as espécies intrusas conseguindo deslocar seus respectivos oponentes, malgrado pudessem ser, individualmente, mais competitivas. Já em uma rede de negócios, quanto mais produtores e consumidores houver interconectados durante mais tempo, mais o sistema torna resistentes suas partes individuais. Essa seria uma consistente hipótese para o fracasso comercial de produtos tecnologicamente superiores aos concorrentes estabelecidos, como o computador NeXT da Apple ou o microprocessador Alpha da Digital Equipments. Outro aspecto das circunstâncias atuais de mercado é a dificuldade em se definir quem é parceiro e quem é concorrente: a mesma empresa pode mostrar-se aliada em um momento e competidora em outro, ou ainda desempenhar ambos estes papéis simultaneamente. Já em ecossistemas, experiências de campo levam a constatações similares:447 ao se remover um predador do ecossistema, espera-se um aumento populacional de sua presa preferencial; isso de fato ocorre no início, mas depois de um certo tempo a população pode vir a declinar, caso o predador controlasse também a população de outra presa, concorrente da primeira e competitivamente superior. No longo prazo, a presa preferencial do predador retirado pode vir a desaparecer. Propomos agora considerar o sistema imunológico como metáfora à auto-organização pelas interações entre as pessoas nas organizações: os diferentes glóbulos brancos digerem (“processam”) por modos particulares um mesmo agente agressor (o ruído 446 447 Extraída de LEWIN, REGINE, 2000: 63. Ibid., p. 70. 175 externo, perturbação para o sistema como um todo); antes de morrer, eles transmitem suas “interpretações individualizadas” a outros elementos do sistema pela permeabilidade de suas membranas, desta forma injetando informações diversificadas, contraditórias e ambíguas dentro do sistema (ruído interno). É justamente esse excedente de informação o que permite ao sistema experimentar alternativas para chegar a um padrão de resposta imunológica até então inexistente (auto-organização). Já em uma organização, toda novidade que surge no ambiente é “ruído” justamente por ser novidade, ou seja, porque (ainda) não se encontra incorporada aos modos de organização do sistema. Tal novidade chega a diferentes elementos do sistema (pessoas) por diferentes formas, e além disso cada pessoa a interpreta de forma individualizada, com o que o conjunto das interpretações comporta necessariamente algum grau de contradição e ambigüidade. A circulação dessas interpretações no interior da organização, por sua vez, é necessariamente geradora de conflito, que comporta aspectos tanto negativos quanto positivos. Uma predominância dos aspectos positivos tem o potencial de promover a convergência das distintas interpretações rumo a consensos quanto àquela “novidade externa”, que deixa então tanto de ser novidade quanto externa, e se torna algo incorporado ao (agora renovado) operar da organização. Outros autores Em síntese, a teoria das organizações que propomos fundamenta-se na teoria da complexidade a partir do ruído de Atlan (que propicia uma compreensão das organizações como compostas por redundância e variedade, mutuamente produtoras uma da outra) com o concurso de uma teoria de suporte, a teoria da autopoiesis (que permite compreender variedade como individualidade humana). Apresentadas as linhas gerais de nossa proposição, procederemos agora a um histórico do emprego, em Teoria das Organizações, dessas teorias de referência, bem como dos conceitos-chave (redundância e variedade). O emprego da teoria de suporte (autopoiesis) no âmbito da Teoria das Organizações é vasto e diversificado; nos é suficiente apontar a obra de Luhmann, reconhecido como expoente maior nesse campo, e que conta com trabalhos especificamente dedicados ao 176 universo organizacional:448 para ele, o que distingue a organização com um caráter próprio frente aos demais sistemas sociais é que nela a decisão é a operação básica de produção de significado.449 Tudo aquilo que comporte significado no interior de uma organização é tornado objeto de decisões: as organizações são vistas como redes de processos de produção de decisões que, continua e recursivamente, regeneram estas redes. Já a teoria de Atlan é praticamente desconhecida dos estudiosos organizacionais (com pelo menos uma exceção, mencionada adiante). E ignoramos a existência de qualquer outra proposição em Teoria das Organizações, que não esta,450 que configure uma articulação entre essas duas teorias. Segue-se agora um histórico das identidades, localizadas em pesquisa feita na literatura de língua inglesa,451 para com as idéias aqui propusemos; tencionamos também demonstrar que os diversificados modos de compreensão do fenômeno organizacional podem ser tomados por expressões particularizadas desta nossa teoria das organizações.452 O primeiro formulador de proposições organizacionais inspiradas na Cibernética foi Beer,453 dentre as quais subsiste até hoje a pesquisa operacional. Já em 1967 Beer ressaltava a impossibilidade de controle, pela direção, de todas as variáveis existentes em uma organização, e propunha que se tomasse partido das capacidades homeostáticas naturais a toda organização, por meio da articulação (por procedimentos de base matemática) das homeostases intrínsecas aos seus diversos subsistemas, em prol de uma preservação, em faixas de comportamento adequadas, de parâmetros considerados 448 Ver “Organisation”. In: KÜPPER, Willi, ORTMANN, Günther (eds.). Mikropolitik. Rationalität, Macht und Spiele in Organisationen. Opladen (Alemanha): Westdeutscher Verlag, pp. 165-186, 1988; e Organisation und Entscheidung. Opladen (Alemanha): Westdeutscher Verlag, 2000. 449 450 Remeter à p. 104. Ver também BAUER, 1999. 451 A partir do pressuposto que autores em outros idiomas que desejem suas idéias conhecidas em âmbito mundial divulgam-nas também em inglês. 452 Cf. ibid., pp. 241-242. 453 Anthony Stafford Beer (Inglaterra; 1926-2002); ver Cybernetics and Management. London: The English Universities Press, 1959; BEER, 1967; Brain of the Firm: The Managerial Cybernetics of Organization. London: Allen Lane, 1972; The Heart of the Enterprise. Chichester (Reino Unido): John Wiley and Sons, 1979; e BEER, 1994. 177 críticos ao sucesso da organização como um todo (por exemplo, retorno sobre capital investido).454 Na década de 70, Beer cunha o termo “infoset” para designar os grupos que operam com base em interpretações compartilhadas da realidade coletivamente construídas455 (o que aqui chamamos geração de redundância a partir da variedade). Ao longo da obra de Beer, os conceitos de “redundância” e “variedade” são importantes porém não centrais (ele remete ao conceito de redundância de comando potencial, de McCulloch),456 e tomados pelo prisma cibernético clássico, em que redundância corresponde à repetição de elementos físicos ou à replicação de papéis funcionais para estes elementos, e variedade a seu oposto (diversidade, também física ou funcional). Quem primeiro confere centralidade a esses conceitos é Emery,457 um dos propositores do movimento sócio-técnico,458 de volumosa produção acadêmica nas décadas de 60 e 70 mas que logrou obter aceitação ampla somente na Suécia e Noruega. Emery propôs, dentre outros princípios, a adoção de uma “variedade ótima de tarefas” para o trabalho, ao considerar que pouca variedade conduz ao tédio e à fadiga, enquanto variedade em excesso é ineficiente à organização e frustrante para o trabalhador; já uma variedade ótima lhe permitiria periodicamente descansar de altos níveis de concentração e atenção, bem como exercitaria suas capacidades após períodos de rotina. Uma adequada variedade na capacitação dos trabalhadores conferiria também, ao grupo de trabalho, uma maior flexibilidade na condução de suas atividades. Assim, para os sócio-técnicos, variedade é entendida fundamentalmente como variedade de experiências. Emery foi também quem estabeleceu a distinção de natureza entre as formas organizacionais fundadas em dois princípios,459 a “redundância das partes” (replicação 454 455 456 457 458 Cf. BEER, 1967: 150-167. Ver BEER, op. cit. (nota 453, p. 177), 1972. Cf. BEER, 1994: 157-158, 230-233. O conceito de redundância de comando potencial foi abordado à p. 51. Frederick Edmund Emery (Austrália; 1925-1997). Remeter à p. 19. 459 Princípios que no âmbito cibernético foram preliminarmente indicados em von NEUMANN, op. cit. (nota 165, p. 49), 1956, e sistematizados em WINOGRAD, COWAN, op. cit. (nota 399, p. 148), 1963, como os caminhos para um aumento da confiabilidade dos sistemas: “... redundância ... é uma importante propriedade de qualquer sistema, uma 178 de elementos estruturais do sistema) e a “redundância das funções” (replicação, nos elementos, de algumas dentre suas funcionalidades).460 Aquelas, de orientação mecanicista, perseguem a otimização, para o que são requeridos trabalhadores de capacitação e custo mínimos e de fácil substituição, bem como indivíduos especializados em gerir tal processo de substituição; já nestas, organicistas, se toma partido das capacidades excedentes de modo a, por auto-regulação, auferir-se a flexibilidade e o potencial para a inovação necessários a uma sempre renovada adaptação a ambientes turbulentos. O princípio da redundância das funções (diferentes indivíduos capazes de desempenhar uma mesma atividade) é assim complemento do princípio da variedade ótima de tarefas (diferentes atividades componentes do leque de capacitação de cada indivíduo); conjugados, estes princípios concorrem para o provimento de um repertório de respostas que conte com a “variedade indispensável” (Ashby)461 ao acompanhamento da crescente variedade do ambiente. Emery chega a estender tais princípios de projeto (design principles) à sociedade como um todo, no que compreende, em uma sociedade fundada no princípio da redundância das funções, os valores compartilhados pelos membros de uma sociedade como o esteio para uma flexível atribuição de papéis sociais a cada um deles.462 Em 1967, um clássico estudo empírico por Lawrence463 e Lorsch464 (intitulado differentiation and integration in complex organizations)465 revelou que diferenciação (para eles, a segmentação da organização em subsistemas diferenciados uns dos outros em termos das características comportamentais466 dos indivíduos que deles fazem parte) vez que um acréscimo aritmético na redundância tende a produzir um acréscimo logarítmico na confiabilidade” (EMERY, 1967: 230). 460 Cf. EMERY, 1967: 230-231; estes princípios já haviam sido discernidos em WINOGRAD, COWAN, op. cit. (nota 399), 1963. 461 462 463 464 465 Conceito exposto à p. 52. Cf. EMERY, 1967: 230. Paul Roger Lawrence (EUA; 1922–). Jay William Lorsch (EUA; 1932–). LAWRENCE, LORSCH, 1967. 466 Os atributos considerados neste estudo foram: o grau de formalização com que as atividades são conduzidas; a orientação interpessoal (voltada ao cumprimento de tarefas, ou às relações sociais); a orientação quanto ao tempo (voltada ao curto, médio ou longo prazos); e a orientação quanto a objetivos (mercadológica/voltada à competição, 179 e integração (para eles, o grau de convergência dos distintos subsistemas para a consecução dos objetivos da organização) são características antagônicas no interior da organização – em todas as organizações pesquisadas, nas correlações entre cada dois de seus subsistemas (por exemplo, “vendas” com “pesquisa aplicada”), aos maiores graus de diferenciação correspondiam as menores percepções de integração mútua, e viceversa. Não obstante, ambas estas características mostravam-se essenciais ao sucesso: ao se comparar diferentes organizações (todas indústrias de processo químico), aquelas (duas entre seis) que logravam conjugar elevados índices de diferenciação interna com elevadas percepções de integração eram as que apresentavam melhores resultados operacionais (considerada a trajetória dos cinco últimos anos); duas outras (uma com alta diferenciação e baixa integração, e outra na situação inversa) foram classificadas como de média performance; por fim, as duas restantes (uma com alta diferenciação e baixa integração e outra com ambos os parâmetros em baixa) apresentaram os piores resultados. Dois, dentre os fatores distinguidos pelos autores como determinantes para o perfil de correlação entre diferenciação e integração, merecem destaque: o que eles denominaram “locus de influência” (a localização, na hierarquia, da autonomia para a tomada de decisões), e o modo de resolução de conflitos. Verificaram eles a seguinte consistência: nas organizações de melhor performance, quanto maior a incerteza ambiental a cada subsistema, para mais abaixo na hierarquia (ou seja, para onde residem os conhecimentos operacionais específicos) era deslocada a autonomia para a tomada de decisão. E também que, dentre três modos possíveis de resolução de conflitos – imposição (forcing), docilidade (smoothing) e debate aberto (confrontation) – quanto maior o recurso a este último melhor a performance, bem como inversamente (para todas as seis companhias). Outro mérito desse trabalho pioneiro por Lawrence e Lorsch é ilustrar que conceitos como integração e diferenciação (tanto quanto redundância e variedade) são passíveis técnico-econômica/voltada a custos e à produtividade, ou científica/voltada à geração de conhecimento); cf. LAWRENCE, LORSCH, 1967: 22-24. 180 de receber tratamento empírico, de acordo com os critérios específicos que sejam adotados.467 As visões de Lawrence e Lorsch quanto ao que seja diferenciado ou integrado são certamente distintas das nossas em relação ao que, respectivamente, seja variado ou redundante; por exemplo, aquilo que em um dado subsistema (como “vendas” ou “produção”) é visto por eles como diferenciação (em relação aos demais subsistemas) – e corresponderia assim a um modo de variedade – até certo ponto corresponde também aos modos específicos de redundância que são próprios àquele subsistema, e que são vividos em comum pelos indivíduos que dele tomam parte. Ainda assim, muitas de suas conclusões são, em essência, similares às nossas: diferenciação e integração como condicionantes opostas; necessidade de perseguir um compromisso ótimo entre elas; necessidade de autonomia dos indivíduos para a tomada de decisão (tema a que retornaremos); e geração da integração em meio à diferenciação pela qualidade das interações entre as pessoas. É com base em similaridades como essa que afirmamos existir inúmeros modos de se abordar uma mesma questão: a articulação dos âmbitos individual e coletivo nas instâncias sociais que são as organizações. O tema da variedade viria a ser enfocado por múltiplas formas. Por exemplo, nos âmbitos da teoria da contingência468 (em que capacidade de monitoramento das tendências de mudança no ambiente é tida como a chave para a conservação da adaptação da organização; Lawrence e Lorsch filiam-se a esta corrente) e da ecologia populacional 469 (em que a evolução do ambiente, mais que a da organização, é vista como o determinante para essa conservação) a variedade, sob diversas denominações, foi fundamentalmente compreendida como variedade de resposta à mudança ambiental (no sentido de Ashby). Mais recentemente, variedade nas organizações veio a ser compreendida como diversidade na composição dos quadros de pessoal (diversidade de gênero, étnica, de orientação religiosa, de orientação sexual etc.). 467 No caso, Lawrence e Lorsch produziram uma medida de diferenciação por uma soma ponderada das diferenças, a cada par de subsistemas, entre as mensurações relativas a cada atributo considerado (ver nota anterior), por sua vez geradas por critérios específicos; já a medida de integração foi obtida por meio de questionários, com respostas dispostas em escala, de avaliação pelos respondentes das condições de relacionamento entre os subsistemas a cada par considerado. 468 469 Remeter à p. 16. Remeter à p. 16. 181 Já o tema da redundância pôde contar muito menos prestígio e espaço, devido à resistência (em boa parte dos casos, preconceito) dos gerentes e dos teóricos organizacionais em relação a uma noção que, em um sentido intuitivo, vai de encontro às idéias consagradas de eficiência, enxugamento de custos, e eliminação de desperdícios. Remando contra a corrente, Landau470 foi o mais produtivo teórico a se debruçar sobre os múltiplos papéis da redundância no interior das organizações. Já contemporaneamente, outros autores realizaram um extensivo levantamento dos diversificados modos e usos de redundância no universo organizacional.471 Qualquer proposição teórica centrada em uma noção de redundância (ainda que de forma balanceada com seu oposto, a variedade) irá, inevitavelmente, se deparar com essas resistências e preconceitos. Como agravante, há ainda casos particulares como o do Reino Unido onde, a partir de um ato legislativo de 1965, “redundância” foi tornada expressão legal na esfera das relações de trabalho (em que significa a circunstância de extinção de posto de trabalho pela cessação, principalmente devida à mudança tecnológica, da atividade específica que outrora demandara sua criação, e que implica a estipulação de uma indenização ao trabalhador proporcional ao tempo trabalhado).472 Todo significado de que uma palavra possa se revestir para a coordenação de condutas advém da tradição em que os indivíduos em interação se encontram desde sempre imersos; após décadas de emprego específico desse termo, não será nada trivial aos britânicos considerar que “redundância” possa significar alguma outra coisa. 470 Martin Landau (EUA; 1921-2004); ver “Redundancy, Rationality, and the Problem of Duplication and Overlap”. Public Administration Review, vol. 29, n. 4, pp. 346-358, 1969; “Federalism, Redundancy, and System Reliability.” Publius (The Journal of Federalism), vol. 3, n. 2, pp. 173-196, 1973; “On the Concept of a Self-correcting Organization”. Public Administration Review, vol. 33, n. 6, pp. 533-542, 1973; LANDAU, CHISHOLM, Donald, WEBBER, Melvin M. Redundancy in Public Transit. Berkeley (Califórnia): Institute of Urban and Regional Development, University of California, vol. 1 (On the Idea of an Integrated Transit System), 1980; e LANDAU, EAGLE, Eva. On the Concept of Decentralisation. Berkeley (Califórnia): Research Report of the Project on Managing Decentralization, Institute of International Studies, University of California, 1981. 471 Ver LOW, Bobbi, OSTROM, Elinor, SIMON, Carl, WILSON, James. “Redundancy and Diversity: Do they Influence Optimal Management?”. In: BERKES, Frank, COLDING, Johan, FOLKE, Karl (eds.). Navigating Socialecological Systems: Building Resilience for Complexity and Change. Cambridge (Reino Unido): Cambridge University Press, pp. 83-114, 2003. 472 Para o caso britânico ver, por exemplo, WOOD, Stephen, DEY, Ian. Redundancy: Case Studies in Co-operation and Conflict. London: Gower, 1983; e GRUNFELD, Cyril. The Law of Redundancy. 3rd. ed. London: Street and Maxwell, 1989. 1st. ed., 1971. 182 Não obstante, optamos por manter a nomenclatura redundância/variedade. Em primeiro lugar, porque se redundância e variedade dizem respeito também a significados outros que não aqueles que aqui lhes atribuímos, problema idêntico ocorre, em maior ou menor grau, com qualquer outro binômio que seja utilizado em seu lugar (igualdade/diferença, regularidade/descontinuidade, integração/diferenciação, ordem/desordem, coletividade/individualidade identificação/distinção, etc.). A conservação da nomenclatura cibernética (empregada em Teoria das Organizações não apenas no passado, por exemplo por Beer ou pelos sócio-técnicos, mas também por teóricos contemporâneos, como veremos), se não reduz o problema da multiplicidade de significados, ao menos evita agravá-lo. Em segundo lugar, mas não menos importante, entendemos ser preciso transcender a mentalidade resistente à idéia de redundância, por ela ser fundamentalmente antihumana: como se poderia recusar capacidades por natureza redundantes nas pessoas, por exemplo, a de falar um mesmo idioma (compartilhar uma base de significados que permite a coordenação do viver em sociedade) ou a de “falar a língua da empresa” (compartilhar uma base de significados a respeito da natureza da organização e de seus negócios), precisamente para que seja possível não apenas uma compatibilidade para a variedade existente sob forma de individualidade humana, mas mesmo a articulação e conjugação dessa variedade? Passemos agora ao exame de proposições de autores mais recentes, que referenciam redundância e variedade por modos próximos ao nosso. Em seu conhecido imagens da organização (de 1986), Morgan473 discrimina, com base em metáforas, múltiplas abordagens ao fenômeno organizacional. Em uma delas,474 inspirada no operar do cérebro e referenciada em autores ciberneticistas e sóciotécnicos, as organizações são compreendidas como sistemas auto-organizantes que, dentre outros princípios fundamentais, contam com redundância das funções e com variedade indispensável. A redundância das funções é vista como uma projeção do todo sobre as partes: indivíduos capazes de desempenhar diversas dentre as funções 473 474 Gareth Morgan (Canadá; 1943–). O capítulo 4 em MORGAN (1997 (1986)), intitulado Learning and Self-organization: Organizations as Brains. 183 necessárias ao operar da organização. E, uma vez que não é factível replicar todas as funções (“todo o todo”) sobre cada uma das partes, o princípio da variedade indispensável prescreve que essa redundância deva corresponder a, pelo menos, o mínimo necessário a que a organização possa contar com a variedade de respostas requerida para que se mantenha em passo com as mudanças ambientais. Pode-se considerar o raciocínio de Morgan como válido em um sentido intuitivo, uma vez que a redundância interna concorre para um aumento da variedade interna, por sua vez necessária ao acompanhamento da variedade externa. Em um sentido formal, contudo, o que o princípio da variedade indispensável de Ashby prescreve é uma variedade mínima ao sistema como um todo, não o grau de redundância que deve se fazer presente em suas partes para que uma tal variedade se verifique (com o que se pode incorrer no equívoco de supor que toda a variedade em uma organização advenha da redundância nela presente). Com efeito, redundância e variedade acabam em alguma medida confundidas, como que reduzidas a dois “estados no tempo” de uma mesma coisa: O princípio da variedade indispensável provê assim diretrizes claras quanto a como as idéias sobre obter o “todo nas partes” e sobre funções redundantes devam ser postas em prática. Ele indica que a redundância (variedade) deva ser sempre provida em um sistema onde seja diretamente necessária, ao invés de à distância.475 Um entusiasta da redundância das funções, Morgan a vê como o catalisador das condições propícias aos processos participativos de tomada de decisão, em que todos os envolvidos contam com espaço para expor suas idéias, com o reinício, a cada nova sugestão, desse processo de ausculta. Tais procedimentos mostram-se lentos porém robustos, não apenas porque conduzem a decisões que incorporam a variedade de pontos de vista mas porque o consenso final implica comprometimento, o que alavanca sua implementação prática. É também a redundância das funções o que propicia práticas como a de atribuir um mesmo projeto a duas ou mais equipes que operem de modo independente, mas que periodicamente compartilhem resultados, informações e idéias, de modo a ampliar a compreensão geral quanto aos temas em tela.476 475 476 Ibid., p. 112. Cf. ibid., p. 110. 184 Para além da redundância nas capacidades e habilidades das pessoas (redundância das funções), Morgan (sem voltar a se utilizar deste termo) discorre sobre fatores que em nosso entender correspondem a outros modos de redundância. Para ele, metas e objetivos acabam por configurar também constrangimentos potenciais à criatividade; Morgan considera preferível operar a partir de normas, valores e sensos compartilhados de visão e de propósito,477 segundo ele “pontos de referência” 478 para orientação geral, limites que circunscrevem autonomia e liberdade suficientes para que emirjam comportamentos e ações criativos, em condições mesmo de questionar tais limites e de os redefinir. Uma especificação dos aspectos nocivos a serem evitados deve assim tomar o lugar da especificação de metas e objetivos, de modo a que estes se tornem também resultados emergentes do processo. Morgan recorre ao fato de que muitos dentre os códigos de comportamento ao longo da evolução civilizatória, por exemplo os Dez Mandamentos, foram expressos mais em termos de proibições que de especificações quanto a como proceder em cada situação.479 Ainda uma vez referenciado na sócio-técnica,480 ele propõe um princípio de mínima especificação crítica, segundo o que nada deve ser especificado além do mínimo estritamente necessário para que uma dada atividade seja desenvolvida.481 477 478 479 Cf. ibid., pp. 102-103. Cf. ibid., p. 95. Cf. ibid., p. 99. 480 Ver HERBST, Philip G. Socio-technical Design: Strategies in Multidisciplinary Research. London: Tavistock, 1974. Reimpresso em resumo como: “Designing with Minimal Critical Specifications”. In: TRIST, MURRAY, TRIST, op. cit. (nota 50, p. 19), pp. 294-302, 1993. 481 Cf. MORGAN, 1997 (1986): 114-115. 185 Nonaka482 é outro autor que vê na redundância a chave para a conservação da adaptação (geração de variedade de resposta) ao ambiente. Em um texto dedicado ao tema,483 ele se refere à “redundância de informação”, o que é em alguma medida correlato à redundância das funções (uma vez que a detenção de informação concorre para a capacidade de desempenho de atividades). A informação redundante atuaria como um balizador para a informação “variada”, em uma catálise do processo de inovação: Quando informação em excesso é compartilhada em uma organização, isto clarifica o significado da informação requerida específica detida pelos distintos indivíduos e grupos. ... A redundância de informação estimula os poderes criativos da informação, e está associada à geração de informação com novos significados.484 Já a existência de outras redundâncias (não referenciadas por este termo) ao nível da organização como um todo é por ele vista como fator que permite à redundância de informação exercer seus efeitos esperados com contenção dos riscos envolvidos: A redundância de informação, enquanto provê contenção aos perigos do caos e do acaso, produz ordem nas organizações japonesas porque a visão corporativa é clara, e os membros individuais nos grupos compartilham um senso de direção.485 São evidentes as identidades dessas proposições para com as nossas. O pensamento de Nonaka pode assim ser compreendido como (mais) um dentre os diversos possíveis modos de expressar a descrição do fenômeno organizacional nos termos fundamentais de redundância e variedade, e das condições para sua mútua produção. A redundância de informação concorreria em múltiplos níveis para o processo de inovação nas empresas japonesas: as equipes de projeto são compostas por indivíduos com capacitação, comportamentos e percepções diversificados; entre departamentos, o contato e a interação entre os indivíduos envolvidos são fortemente estimulados; entre companhias parceiras, há também esse estímulo à interação, e evita-se ao máximo qualquer divisão estanque dos encargos nos projetos conjuntos. 482 483 484 485 Ikujiro Nonaka (Japão; 1935–). NONAKA, 1990. Ibid., p. 28. Ibid., p. 36. 186 Advêm, como subprodutos da redundância de informação: o que Nonaka denomina “investigação mútua”,486 uma invasão consentida de territórios e especialidades de modo a propiciar a aprendizagem por intrusão (learning by intrusion) e pela geração de problemas; a redundância de comando potencial (McCulloch),487 em que o indivíduo em melhores condições de lidar com o problema a cada momento assume um papel circunstancial de liderança; e o favorecimento ao estabelecimento e reforço dos laços de lealdade e confiança entre indivíduos, departamentos, e empresas parceiras. Para Nonaka, os elevados volumes de informação resultantes da intensa interação somente podem ser adequadamente manuseados no interior de um grupo caso este logre contar com uma variedade mínima necessária de talentos e capacidades – não obstante ser essa mesma variedade, segundo ele, a geradora da redundância de informação. Assim, Nonaka é mais um que vê no princípio da variedade indispensável de Ashby o “regulador” para a redundância (no caso, de informação), o que, ainda uma vez, pode-se considerar como válido a um nível intuitivo ainda que equivocado em termos formais: Devido a suas formações diversificadas, eles [os membros de equipes na Fuji Xerox] não apenas geraram informação pertinente a suas funções específicas como também geraram informação para funções outras. Além disso, uma tal rotação prévia de encargos assegurou que, se o membro do grupo não detivesse uma dada informação requerida, ele ao menos saberia onde obtê-la. ... Isto provê a habilidade para o processamento da significativa sobrecarga de informação oriunda da interação intensiva entre os membros do projeto, e foca a criação de informação a um nível fixo. Isto pode ser chamado o conceito da variedade indispensável em semântica, na medida em que prescreve o nível de redundância. O conceito da variedade indispensável de Ashby em teoria das organizações diz que a construção de canais de informação irá acompanhar o volume de informação gerado no ambiente.488 ... o conceito de redundância de informação, juntamente com o conceito de variedade indispensável, é um fator imprescindível à construção de uma teoria da organização criadora de informação e de conhecimento.489 Morgan e Nonaka (pelo recurso ao princípio da variedade indispensável como “sintonizador” para a redundância), como muitos outros (por modos próprios), tencionam descrever uma dinâmica gerativa para a fenomenologia organizacional; é precisamente uma tal dinâmica que acreditamos ter elucidado pela transposição, ao universo organizacional, das proposições de Atlan em Biologia, com o aporte, como Teoria do Conhecimento, da teoria da autopoiesis. 486 487 488 489 Cf. ibid., p. 33. Conceito exposto à p. 51. Ibid., p. 36. Ibid., p. 37. 187 Contemporaneamente, é no quadro de uma outra dinâmica gerativa (a de Luhmann) que Ahlemeyer490 vem retomar a dualidade variedade-redundância. Referenciado na segunda Cibernética de Bateson, von Foerster e Ashby, Ahlemeyer também vê a complexidade como componente do entendimento do observador quanto ao real, e os sistemas complexos como uma mistura de redundância e variedade. Para Ahlemeyer, que compreende as organizações como redes de processos recursivos de produção de decisões (segundo Luhmann), a redundância corresponde às limitações estruturais que circunscrevem tais processos – as premissas para a tomada de decisão que, de um modo recursivo, implicam que decisões sejam necessariamente tomadas com referência a decisões anteriores, e conformam assim mecanismos de conservação das estruturas, regras etc. (em suma, da identidade) do sistema. Em contrapartida, a única perspectiva para uma renovação dessas premissas reside também, paradoxalmente, na própria tomada de decisões – consideradas agora pelo prisma da variedade, daquilo que conduz à mudança. Ahlemeyer observa que, frente à crescente complexificação dos ambientes, as organizações cada vez mais tomam a mudança com um valor em si – o que não necessariamente implica menos redundância, mas uma cada vez mais rápida ciclagem das redundâncias existentes. 490 AHLEMEYER, 2001. Heinrich Wilhelm Ahlemeyer (Alemanha; 1950–). 188 Em outras palavras, a própria aceleração nos tempos de ciclo da redundância convertese em norma – ou seja, em redundância (“a redundância da organização consiste em seu aumento de variedade”).491 E Ahlemeyer percebe, como conseqüência desse processo, uma dicotomia entre a conservação da adaptação do todo (a organização) e adaptações crescentemente patológicas para vastos contingentes de suas partes (as pessoas): aqueles que se frustram consigo próprios por não se sentirem em condições de acompanhar o ritmo das mudanças, que se vêem como supérfluos e descartáveis, e que se sentem vulneráveis e desorientados, desprovidos tanto das identidades do passado como de horizontes de futuro. Para superar esta que seria a principal disfunção organizacional, Ahlemeyer propõe o que aqui nós referenciamos como fomento à qualidade das interações humanas: A criação de contextos de comunicação não-ameaçadores entre gerentes e empregados, entre inovadores [adaptados à mudança] e mantenedores [não- ou mal-adaptados] ... permite fazer dos traumas do passado um tópico, e sinaliza para um processo de compreensão mútua. O que os membros da organização necessitam são garantias críveis de que, enquanto praticamente tudo pode ter-se tornado contingente para a organização, seus membros permanecem absolutamente necessários a suas operações futuras. Sem a restrição da pertença, afinal de contas, sistemas organizados são incapazes de operar.492 É por se ater ao modo de caráter operacional de Luhmann para descrição das organizações que Ahlemeyer situa a variedade no âmbito das decisões que implicam mudanças (e que terminam por afetar as pessoas), ao invés de situá-la nas pessoas em si – com o que redundância e variedade acabam, mais uma vez, identificadas uma com a outra. Paradoxalmente, as proposições originais de Luhmann quanto aos sistemas sociais genéricos493 (que congregam desde conversações circunstanciais a instituições consolidadas) situam-se mais próximas do que aqui propomos, ao circunscrever a domínios fenomenológicos distintos os significados produzidos pelos estados de consciência (para ele, sistemas psíquicos; para nós, variedade) daqueles produzidos pela comunicação entre as pessoas (para ele, sistemas sociais; para nós, redundância). 491 492 493 Ibid., p. 69. Loc. cit. Menciondas à p. 104. 189 Finalmente, a única proposição organizacional especificamente referenciada em Atlan494 que logramos localizar é a de Langlois495 e Garrouste496 que, também em busca de uma explicação para as organizações que incorpore seus aspectos ordenados e desordenados, compreendem a capacidade evolutiva das organizações por auto-organização como o aumento tanto de redundância (vista como ordenamento) quanto de variedade (vista como complexidade).497 Devido precisamente a isso, porém, consideraram eles a teoria de Atlan como insuficiente498 para dar conta da fenomenologia organizacional, por comportar a produção de variedade a partir da redundância, mas não o seu inverso. Ora, os seres vivos contam com redundâncias em patamares elevados, que os arranjos sociais humanos jamais lograrão atingir (nem deveriam, pois isto significaria uma diluição extrema da individualidade).499 Por exemplo, quando se diz que um ser humano utiliza no máximo algo em torno de cinco por cento de sua capacidade cerebral, isso de modo algum configura “desperdício” (esta seria mais uma projeção, sobre a Natureza, de uma noção derivada do viver humano), mas sim o volume adequado para que o cérebro opere, ao longo de toda uma vida, com a confiabilidade que lhe é peculiar (já na década de 50, McCulloch estimou haver redundâncias no cérebro da ordem de 1:20.000). Por seu turno, os âmbitos sociais humanos contam – e ao contrário dos seres vivos – não somente com a produção de redundância a partir da variedade (por exemplo, na construção de consensos) como com a possibilidade de recargas deliberadas de redundância (por exemplo, pela comunicação de diretrizes por meio de um pronunciamento, ou pela estipulação de normas, padrões e procedimentos, ou ainda por inúmeros outros modos). O que cabe transpor ao domínio organizacional é a dinâmica desvelada por Atlan de geração da variedade a partir da redundância (compreendidas 494 Mais precisamente, na primeira edição de L’organisation biologique et la théorie de l’information (ATLAN, op. cit. (nota 385, p. 142), 1972). 495 496 497 Richard Normand Langlois (EUA; 1952–). Pierre Garrouste (França; 1954–). LANGLOIS, GARROUSTE, 1997 (1994). 498 Os autores propõem então complementá-la com o princípio de ordem a partir do ruído (order from noise) de von Foerster, que para eles explicaria adequadamente o aumento da redundância; entretanto, o próprio Atlan (cuja teoria é precisamente um desenvolvimento da de von Foerster) recusa essa perspectiva, por um raciocínio (que endossamos) que não cabe transcrever aqui; cf. ATLAN, 1992a (1979): 71-73; remeter também à nota 194, p. 59. 499 Remeter à p. 126. 190 como tais por um observador) por intermédio das interações – e não o modo de operação próprio a essa dinâmica nos domínios da Biologia. Pudemos examinar autores em Teoria das Organizações cujas proposições intersecionam as nossas quanto à referência a teorias e quanto ao emprego de vocabulário comum (redundância, variedade, complexidade, auto-organização, autopoiesis), e que, malgrado as discrepâncias assinaladas, guardam compatibilidade para conosco. Não obstante, diversos outros autores também intersecionam conosco em termos de premissas, idéias e conclusões, muito embora façam uso de outros vocabulários e recurso a outras teorias. Ora, uma vez que nossa teoria das organizações consiste de uma dinâmica gerativa para a fenomenologia organizacional, a compatibilidade com outras teorias (outros modos de compreender, expressar e descrever o fenômeno organizacional) é mais que esperada. E será precisamente uma eventual incompatibilidade com alguma outra teoria o que poderá operar no sentido da refutação (no sentido de Popper, que expusemos)500 de uma das duas. Dentre as inúmeras proposições que percebemos como compatíveis, mencionaremos aqui, a título de exemplo, apenas uma delas: o bastante conhecido arcabouço conceitual integrado pelas “cinco disciplinas” de Senge,501 por sua vez derivado da teoria da ação de Argyris.502 A disciplina da visão compartilhada corresponde a um modo de produção de redundância (visão de futuro, bem como outros componentes de direção estratégica) a partir da variedade (compartilhamento das visões individuais); a disciplina dos modelos mentais corresponde a um modo de legitimação da variedade (leituras individualizadas da realidade) existente; a disciplina da aprendizagem em equipe corresponde a um modo de fomento à qualidade dos processos de interação; a disciplina da maestria pessoal corresponde a um modo de aprimoramento da variedade 500 501 Remeter às pp. 6, 137. SENGE, 1990. Peter M. Senge (EUA; 1947–). 502 Ver ARGYRIS, Chris, SCHÖN, Donald A. Theory in Practice: Increasing Professional Effectiveness. San Francisco (Califórnia): Jossey-Bass, 1974; ARGYRIS. “Theories of Action that Inhibit Individual Learning”. American Psychologist, vol. 31, n. 9, pp. 638-654, 1976; ARGYRIS, SCHÖN. Organizational Learning: A Theory of Action Perspective. Reading (Massachusetts): Addison-Wesley, 1978; e ARGYRIS, PUTNAM, Robert, SMITH Diana M. Action Science: Concepts, Methods, and Skills for Research and Intervention. San Francisco (Califórnia): Jossey-Bass, 1985. 191 (desenvolvimento da individualidade); finalmente, a disciplina do pensamento sistêmico (inspirada na Cibernética) corresponde a um modo de compreensão do fenômeno organizacional em termos que são adequados ao operar das demais disciplinas. Há também significativas identidades para com muitos outros autores, tanto referenciados na Teoria da Complexidade (por exemplo, Stacey)503 como mais tradicionais (por exemplo, Drucker);504 desejamos externar nossa apreciação pela obra de um em particular, Weick.505 503 Ralph Douglas Stacey (Inglaterra; 1942–); ver Complexity and Creativity in Organizations. San Francisco (Califórnia): Berrett-Koehler, 1996; Complex Responsive Processes in Organizations: Learning and Knowledge Creation. London: Routledge, 2001; e STACEY, GRIFFIN, Douglas, SHAW, Patricia. Complexity and Management: Fad or Radical Challenge to Systems Thinking? London: Routledge, 2000. 504 Peter Ferdinand Drucker (EUA; n. Áustria (Áustria-Hungria); 1909–). Vasta produção. 505 Karl Edward Weick (EUA, 1936–); ver The Social Psychology of Organizing. 2nd. ed. Reading (Massachusetts): Addison-Wesley, 1979. 1st. ed., 1969; Sensemaking in Organizations. Thousand Oaks (Califórnia): Sage, 1995; e Making Sense of the Organization. Oxford (Reino Unido): Blackwell, 2001. 192 6. Um estudo de caso A finalidade desta tese é estabelecer os alicerces para a edificação uma nova Teoria das Organizações que logre superar e transcender as limitações e os impasses a que chegou o corpus teórico historicamente predominante em Administração (a racionalização). Para seu fundamento fulcral, foi formulada uma dinâmica gerativa da fenomenologia organizacional, que consiste dos processos de produção mútua entre variedade e redundância, processos que sem dúvida podem ser induzidos ou facilitados pela intencionalidade humana, mas que são por natureza espontâneos – são autoorganizantes. A variedade de um sistema corresponde à sua complexidade, e comporta a diversidade percebida nos elementos do sistema e na dinâmica de interações entre eles; ou seja, trata-se do grau de desconhecimento (do observador que apreende a fenomenologia de um dado sistema nos termos de variedade e de redundância) quanto ao sistema. Assim, variedade é relativa à especificidade, à particularidade dos elementos e dos processos que suas interações desencadeiam. Em uma organização tida como um sistema, variedade é, essencialmente, a individualidade das pessoas que a compõem. Ela é também tudo o mais que diga respeito às pessoas em sua individualidade: seus conhecimentos, talentos, habilidades e competências pessoais; suas percepções e interpretações individualizadas da realidade; e – como dado essencial à constituição das organizações, por fenômenos sociais que são – suas percepções e interpretações individualizadas daquilo que outros indivíduos manifestam quando em interação para com elas. Por sua vez, a redundância em um sistema corresponde aos modos percebidos de restrição da variedade existente; ou seja, trata-se do conhecimento sobre o sistema de que dispõe o observador, advindo dos graus de ordenamento e de regularidade percebidos tanto nos elementos como na dinâmica de interações entre eles. Assim, redundância é relativa a tudo àquilo que os elementos, e os processos que suas interações desencadeiam, implicam de comum, de coerente. 193 Em uma organização, redundância é o que se pode discernir de comum ou coerente quanto aos modos como agem e interagem as pessoas que a compõem: identidade, cultura e propósito organizacionais; referenciais comuns quanto a habilidades e competências (a começar do domínio do idioma, a competência comunicativa básica); bem como estoques de informação padronizada (por exemplo, livros, documentos, bases de dados, normas e procedimentos). É com base no quadro conceitual proporcionado por estes dois conceitos que afirmamos de modo terminante que toda organização necessariamente comporta a ambos, variedade e redundância – e é, portanto, um sistema auto-organizante por natureza. Nada raramente, porém, a busca por controlar os resultados de processos autoorganizantes termina por transtornar inadvertidamente a dinâmica espontânea desses processos, e conduz a resultados percebidos como frustrantes relativamente às expectativas depositadas. Para a nova Teoria das Organizações que propomos, preconizamos que a atividade de gestão nas organizações deva corresponder, antes de tudo, a uma compreensão da natureza auto-organizante dos processos de mútua produção entre variedade e redundância gerativos dos fenômenos organizacionais; e também (em decorrência) ao desempenho de um papel de facilitação ao operar de tais processos, o que se dá essencialmente pelo fomento à qualidade para as interações entre as pessoas. O objeto do presente estudo de caso é a teoria aqui apresentada. Nesse sentido, o objetivo deste estudo de caso deve ser o de concorrer para uma demonstração da validade, da aplicabilidade e da adequação da dinâmica gerativa formulada ao estudo, à compreensão e à descrição dos fenômenos organizacionais. Nossa hipótese fundamental é a de que os fenômenos organizacionais são conseqüências do operar desta dinâmica gerativa. Esta teoria é passível de refutação (em conformidade com a epistemologia de caráter popperiano que esposamos) na medida em que trabalhos posteriores logrem demonstrar a existência de fenomenologia organizacional que não seja gerada pela dinâmica gerativa aqui formulada. 194 Como parte desta pesquisa de doutoramento, foi conduzido um estágio no Programa de Pesquisas em Complexidade da London School of Economics and Political Science,506 em que nos foi demandada a confecção de um estudo de caso, o que levamos a cabo como um primeiro teste de credibilidade/refutação para a teoria. Este estudo de caso versa sobre uma corporação de atuação mundial do segmento da indústria de processo, composta por diversas companhias individuais, identificadas por uma marca tradicional e amplamente conhecida. O comando da corporação decidira criar uma nova empresa, englobando uma incubadora de novos negócios e um braço de participações corporativas (corporate venturing),507 com o objetivo de penetrar no segmento de negócios pela Internet (e-business). A principal motivação para a criação da nova empresa foi a incomensurável força da marca, vista como alavanca para esses novos negócios. Por diversos motivos, que envolvem as retrações a nível global do segmento de negócios pela Internet a partir do primeiro semestre de 2000, bem como da própria atividade de incubação de novos negócios, após cerca de dois anos o empreendimento foi encerrado, com o que os ativos foram transferidos para outro ramo da corporação. 506 Quando da seleção da instituição estrangeira para sediar nosso estágio de doutorado, optamos pelo Programa de Pesquisas em Complexidade da London School of Economics and Political Science (vinculado a seu Institute of Social Psychology) por se tratar de instituição consolidada, especializada em modelos de organização e gestão derivados da Teoria da Complexidade, que conta com um quadro fixo de pesquisadores, recebe visitas freqüentes de especialistas de outros países e instituições para condução de oficinas e intercâmbio de idéias, sedia seminários, conferências e congressos, e conduz (desde 1995) pesquisas em parceria com um significativo conjunto de empresas, dentre elas British Telecom, Citibank (Nova Iorque), GlaxoSmithKline, Humberside Training and Enterprise Council (Reino Unido), Legal & General, Mondragon Cooperative Corporation (País Basco, Espanha), Norwich Union, Rolls-Royce Marine, Rolls-Royce Aerospace, Banco Mundial (Washington DC), AstraZeneca, National Health Service (Reino Unido), bem como diversas companhias européias da indústria aeroespacial. Esses projetos de pesquisa contam com acompanhamento e crítica por uma equipe internacional de pares acadêmicos; especificamente para o projeto de que tomamos parte, esta equipe foi composta pelos Professores John Casti (Santa Fe Institute, Novo México, e IIASA, Viena), Chris Clegg (University of Sheffield, Inglaterra), Raul Espejo (Lincoln Business School, Inglaterra), Rachel Harrison (University of Reading, Inglaterra), Janis Kallinikos (London School of Economics and Political Science), Bill McKelvey (Anderson School, UCLA, Califórnia), Arthur I. Miller (University College London), Luciano Pietronero (Università degli Studi di Roma – La Sapienza), Alan Wilson (Leeds University, Inglaterra) e Gerard de Zeeuw (Universiteit van Amsterdam). O projeto de que tomamos parte foi apoiado pela agência de fomento à pesquisa EPSRC do governo britânico (Engineering and Physical Sciences Research Council) com fundos da ordem de meio milhão de libras esterlinas, e compreende pesquisas em diversas dentre as empresas parceiras. 507 Prática, por grandes empresas, da aquisição de parcela do capital de empresas menores, com vistas a se beneficiar das capacidades e qualificações inovadoras destas. A corporação passa a prover financiamento, suporte à gestão e canais de distribuição a que a empresa menor não teria acesso, ao passo que esta propicia àquela acesso privilegiado às suas tecnologias e produtos. No mais das vezes, trata-se de uma etapa que, se bem-sucedida, precede a aquisição integral da empresa-alvo. 195 O material de pesquisa consistiu de entrevistas semi-estruturadas com elementos-chave do processo em todos os níveis: na corporação, na nova empresa criada em seus dois ramos (incubação de novos negócios e participações corporativas), e em um dentre os novos negócios incubados. Foram entrevistadas sete pessoas-chave no processo, a saber: - o executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado; - uma executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe; - uma profissional de RH dos quadros da empresa-mãe; - uma especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado; - uma profissional de TI de uma das empresas-filha, oriunda da empresa-mãe; - uma profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado; e - o executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe. O estudo de caso corresponde à leitura interpretativa, à luz da dinâmica gerativa apresentada, das transcrições das entrevistas, em que a corporação é referenciada como empresa-mãe, o empreendimento como empresa-nova, e os novos negócios incubados como empresas-filha. Redundância e variedade A redundância se faz presente nas organizações sob diversas formas, desde as mais óbvias (por exemplo, a comunicação entre as pessoas por meio de um idioma comum) até as mais sutis (por exemplo, as identificações psicológicas entre os integrantes de uma equipe). Sua contrapartida, a variedade, lhe é o reverso da moeda em todas essas situações: por exemplo, uma equipe pode atribuir, ao vocabulário que compartilha, sutilezas de significado que tendem a passar despercebidas aos que dela não fazem parte, ainda que o idioma seja único a todos. (1) Há, portanto, distintas “classes” de redundância, desde as mais estáveis (ou seja, mais cristalizadas) às mais voláteis (mas não menos essenciais ao dinamismo do sistema com um todo). Pertencente ao primeiro grupo é a identidade da organização, que cumpre a função vital de sinalizar a seus membros o sentido para estarem juntos. Na empresamãe, a marca é percebida como uma poderosa encarnação dessa identidade, e seu 196 prestígio a nível mundial foi a motivação primordial para que se desse início ao empreendimento: ... nosso maior desejo é que ... Wall Street em três anos vai olhar para a [empresa-mãe] e dizer, a marca e os pontos de venda são de fato ativos mais valiosos que os [ativos físicos] ... acreditamos que a Internet irá facilitar esse crescimento no relacionamento com [x] milhões de consumidores ... nós entramos em contato com [y] milhões de consumidores por dia, nós temos uma das mais fortes marcas globais, e nós possuímos essa presença física de [z] [pontos de venda] globalmente. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) ... nós temos estado em todos esses países por mais de [x] anos. Nós entendemos as diferenciações sutis. Nós sabemos como competir com sucesso na França e Itália e Bulgária e China. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) ... esta é uma das mais bem reconhecidas marcas no mundo, e em geral ela expressa coisas como confiabilidade... (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe) Porque essa é a [empresa-mãe] ... você está com o [símbolo na logomarca da empresa-mãe] por todo o mundo e todo mundo tipo, “puxa, você é [empresa-mãe], valeu”. Todo mundo simplesmente tenta te agradar. Ele manda bem, o [símbolo], ele se impõe, ele te dá um bocado de respeito. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado) (2) A marca pertence assim a uma classe de redundância tomada como indisponível para conversão em variedade, o que implicou tensões nas empresas-filha, cujas identidades nascentes, em processo de afirmação, necessitavam portar significados que dissessem respeito aos ambientes de (novos) negócios em que se constituíam: Existem algumas instruções [para a formatação de páginas para a Internet] que dizem: é desse jeito que você deve montar o portal, agora, o uso da cor, o uso de concepções criativas, ou estilo, qualquer coisa, deve ser adequado a um ambiente de negócios ... mas se você olha para a garotada da escola [público-alvo da empresa-filha A] isso pode não parecer atrativo para eles. Então, que caminho você segue? Você adere completamente às instruções da [empresa-mãe] e deixa mesmo tudo desinteressante para as crianças? (profissional de TI de uma das empresas-filha, oriunda da empresa-mãe) ... nós estivemos desenvolvendo os módulos de interação com o usuário ... tudo que eles produziram por lá teve que vir para a [sede da empresa-mãe] para eu meio que dizer, “sim, isso está de acordo com as instruções”, e daí eu tinha que levar tudo até o CMO [executivo de marketing] e ganhar a benção dele. Então esse vem sendo um processo exaustivo ... se você alguma vez conversou com [fulano], que é o cara do marketing por lá, ele se vê tendo que fazer o nosso trabalho ... [ele] estava obviamente impondo suas opiniões ... parecia tão difícil e no fim nós demos conta de tudo. Mas levou três meses ... o CMO ... é tipo, “por que diabos você está usando todas essas cores? Isso está parecendo um quadro do Picasso”. E eu sou tipo, “porque eles [nativos do país x, da empresa-filha A] adoram cores” ... Com imagens é a mesma coisa. Por lá eles gostam de imagens muito alegres, muito família. Aqui [sede da empresa-mãe] eles querem, você entende, que seja tudo certinho e direto e sóbrio. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado) 197 (3) Para além da expansão da base de negócios da empresa-mãe pela incursão em um segmento ainda inexplorado (os negócios pela Internet), o empreendimento embutia também objetivos colaterais, como a oxigenação das práticas de negócio e dos processos de trabalho (por conseguinte, da cultura) da empresa-mãe, pela experimentação de alguma variedade em classes de redundância há muito cristalizadas: ... nós temos feito mudanças dramáticas. Nós tomamos decisões de investimento de cinco milhões assim, ó. O que eu quero dizer é que nós não temos de voltar até o conselho. Isso é novidade na [empresa-mãe], todo mundo tem que autorizar cada vinte centavos ... nós temos especialistas externos no nosso comitê de investimentos e no nosso conselho trimestral. Já [empresa-mãe] é tradicionalmente tipo, “eu não quero ninguém espiando a minha cozinha, eu não quero que eles saibam o que eu estou pensando” ... Então nós temos, nas nossas operações do dia a dia, nas nossas decisões, nós temos pessoas externas que são como conselheiros, não consultores, mas conselheiros, e isso é um tanto quanto novo para a [empresa-mãe]. Toda vez que nós tomamos uma decisão de investimento, você acha que tem uma pessoa externa fazendo perguntas? De jeito nenhum ... as pessoas na [empresa-mãe] em geral têm aversão ao risco ... nós vamos tentar mil coisas e duas vão ser grandiosas. Isso é novo na [empresa-mãe]. Geralmente nós começamos algo e nós agüentamos firme, investimos mais dinheiro e fazemos a coisa. Então, tem também uma educação quanto a más notícias. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) ... até certo ponto, a postura que adotamos, como um negócio emergente, é que nós somos quem quebra as regras, não quem as faz. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) ... existe um grande desejo de, nos primeiros meses, introduzir contratos totalmente inéditos, esquemas de remuneração totalmente inéditos que surgiram. Porque esse esquema de remuneração tem aspectos que têm tudo para ser adotados por outras partes do grupo ... Foi realmente uma barra fazer passar isso no nosso conselho, mas é fantástico que nós estejamos tentando e que nós tenhamos sido autorizados a tentar, para então ver se o nosso modelo, ou uma modificação do nosso modelo, possa, aí, ser implantada no corpo principal da [empresa-mãe]. O mesmo com as participações corporativas, nossas metodologias, nós estamos mais avançados que outras partes do grupo na introdução das nossas metodologias, que agora estão sendo adotadas de volta em outros pontos da [empresa-mãe]. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) ... existem diferentes modelos para esses diferentes negócios das [empresas-filha], mas o bom senso da [empresa-mãe] foi não colocá-la [empresa-nova] debaixo de nenhum dos demais negócios onde, se você estiver desafiando as normas existentes, ela vai ser esmagada. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) Se as possibilidades para qualquer gestão correspondem, como postulamos, às possibilidades para uma “gestão” da evolução temporal de um sistema (a organização) que em verdade é gerada por uma dinâmica a ele intrínseca, tal gestão não deve ser nunca confundida com um poder de controle (que em verdade inexiste), mas ela comporta, sim, potenciais para influenciar (no sentido de procurar orientar) esses processos evolutivos (em outras palavras: o poder – tema a que retornaremos adiante – configura alguma condição de contorno para a auto-organização; ou, na terminologia dos sistemas não-lineares, ele conforma um atrator para o comportamento do sistema). 198 A experimentação para a empresa-mãe de que consiste a empresa-nova, tanto em novas práticas de negócios como em novos processos de trabalho, nos vale aqui como uma constatação empírica deste postulado. (4) Tais anseios por renovação eram compatíveis com algumas atitudes verificadas, dentro da empresa-nova, de resistência à identidade da empresa-mãe (variedade como rejeição à redundância): ... existe um número de pessoas que entrou para a [empresa-nova] ano passado, tanto de dentro como de fora da [empresa-mãe], que estavam desesperadas para tocar a [empresa-nova] de um modo inovador, em um novo prédio, em um novo modo de trabalhar e por aí vai ... Eu acho que houve um enorme desejo ano passado e neste ano de realmente tentar criar alguma coisa inovadora. Há um sentimento de que a [empresa-mãe] estava cansada e velha, já deu o que tinha que dar ... blá blá blá, e que aqui estava uma oportunidade de se criar algo novo, com um monte de gente nova, com um bocado de dinamismo... (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) ... dentro da [empresa-nova], qualquer um que tenha sido transferido da [empresa-mãe] não quer ser visto como uma pessoa da [empresa-mãe]. Então existe uma cultura anti-[empresa-mãe] que é muito mais forte, eu diria, entre as pessoas da [empresa-mãe] do que entre as pessoas de fora da [empresa-mãe]. As pessoas que têm chegado de fora, eu não acho que estejam realmente se importando. Eles não vêem diferença. Minha intuição é que as pessoas que vieram transferidas são aquelas que constantemente falam sobre, “isso aqui não é [empresa-mãe], nós não podemos deixar que fique que nem a [empresa-mãe]”. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) (5) Pôde-se também constatar o processo inverso, de conservação (latente) da redundância representada pela identidade da empresa-mãe, mesmo quando da forja de valores próprios: Os valores no programa que foi conduzido em torno dessa coisa chamada “Espírito da [empresanova]”, não existe um só valor lá que eu não tenha visto expresso nas outras reinvenções, ou novos negócios, a que eu tenha estado associado ... [estes] são valores que têm sido perseguidos pela velha [empresa-mãe] e por equipes na velha [empresa-mãe], bem como por este time daqui. Então a diferença não é tão grande assim, em termos de aspirações. (executivo responsável pela empresanova, oriundo da empresa-mãe) Nós estamos tentando ser mais comunicativos, de igual para igual, abertos, entregando resultados, pensando grande, entregando rápido, não burocráticos, trabalho em equipe. É muito interessante que, se você faz essa lista, então todo mundo na [empresa-mãe] diz, “peraí, nós estamos tentando fazer a mesma coisa”. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresamãe) 199 (6) Por sua natureza mesma (uma incubadora de novos negócios em um segmento de negócios também novo, a arena da Internet), era essencial à empresa-nova a constituição e consolidação de uma identidade própria: ... Eu possuo uma carteira em que eu posso ter cinco negócios diferentes que são criados, que são negócios independentes, que têm suas próprias equipes de gerentes, diferentes segmentos de mercado e eles precisam ser gerenciados de algum modo coerente, de modo que todos eles cumpram algum objetivo estratégico similar. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) ... quando você está contratando tanta gente em sucessão rápida, como você poderia fazer uma ambientação exaustiva? Porque eu ainda preciso me ambientar e a pessoa que chegou um mês depois de mim acredita que eles não foram ambientados, mas eu não estou em posição de ambientá-los, porque eu sei pouca coisa mais do que eles. Então eu acho que existe um sentimento de frustração quanto ao processo incompleto de ambientação ... nós não temos nenhum senso comum de história. Nós apenas conhecemos pessoas com quem nós nos sentamos ou com quem interagimos na prática. Você não tem nada dessa coisa de rede ou de cola social, experiência em comum ... então se você entra e diz, “qual é o jeito de fazer as coisas por aqui?”, eu não sei ... você entende o que eu digo? Todo mundo ainda é um tanto quanto individualista nesse sentido. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) (7) Tal processo de construção e consolidação de uma identidade nascente era naturalmente pleno de tensões, posto que a nova identidade teria, também, de preservar e nutrir laços com a identidade tradicional da empresa-mãe: ... é claro que você ainda está na prática conectado à nave-mãe, e você precisa entender a cultura e os processos de tomada de decisão da nave-mãe, e isso não é uma coisa que qualquer um que eu tenha conhecido aprenda da noite para o dia. Então você realmente precisa de uma mistura das duas culturas ... Então, como você mistura junto essas coisas? Como você cria uma identidade que está vinculada à [empresa-mãe] mas que não está vinculada à [empresa-mãe]? ... [empresa-nova] precisa possuir identidade suficiente para que seja atrativa, mas não tanta identidade que acabe rejeitada ... esse é o paradoxo da [empresa-mãe] que é, para se sobreviver na [empresa-mãe], existe uma enorme quantidade de foco interno, a respeito de administrar as políticas e as redes de relacionamentos e, a meu ver, os negócios rolam numa rede de relacionamentos que são criados a partir de uma carreira de uma vida inteira, e tem muita coisa sobre como o sistema da [empresamãe] funciona. Está nas paredes, não está por escrito, e os processos de tomada de decisão não são claros, e ao mesmo tempo eles estão dizendo, “eu quero criar algo novo”, e trazem para dentro uma penca de pessoas que não sabem como trabalhar aqui ... elas têm que estar dentro do sistema e fora do sistema ao mesmo tempo, e o sistema é muito forte. (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe) (8) Tensões de caráter similar ocorreram também nos processos de formação das identidades das empresas-filha: ... eu era uma pessoa da [empresa-filha A] mais do que qualquer coisa, e minha visão e minhas lealdades até um certo ponto pertencem mais à equipe ... Eu trabalho para a [empresa-nova], mas eu sou um membro da equipe da [empresa-filha A] ... Eu estou apaixonada por esse projeto em que eu tenho estado trabalhando, eu ainda tento ficar conectada com eles e defender as visões locais o 200 máximo que eu possa. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado) No [país y], onde nós estamos abrindo uma [empresa-filha B], e a maioria da equipe simplesmente vem da [subsidiária local da empresa-mãe], isso traz uma outra forma de dificuldade, em termos de onde a lealdade deles está ... No [país y] nós temos encontrado uma mentalidade de, “bem, eu estou temporariamente com esse projeto. Minha verdadeira lealdade pertence à [subsidiária local]”. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) (9) Um obstáculo a esse processo de constituição de uma identidade simultaneamente própria (variedade, para o sistema “empresa-mãe”) e pertencente (redundância) residia no profundo enraizamento cultural da empresa-mãe em uma identidade de matiz tecnológico próprio a seu segmento de atuação (indústria de processo contínuo), consolidada ao longo de décadas – uma tradição, com todo o seu peso, e toda a sua inércia: ... a cultura da [empresa-mãe] é, até certo ponto, uma cultura de engenharia, o que significa que é uma cultura de fatos e dados ... Daqui da [empresa-nova] isso é, de algum modo, uma barreira para a nossa cultura ... porque nós estamos lidando com ambigüidade e incerteza ... um bocado do que nós fazemos é, até certo ponto, guiado por visão de futuro ... Isso volta e meia se choca com os fatos e dados, com a mentalidade do prove que tem razão antes de sair fazendo ... imagine se ... daqui a um ano ou dois ... nós [empresa-nova] sentimos que estamos na iminência de algo, mas eles [empresa-mãe] podem achar que já está na hora de passar para o próximo [negócio] ... No geral, [empresa-mãe] é uma cultura de perfeição ... não há lugar para erro nos processos [da empresa-mãe], e então existe uma robustez para o planejamento por aqui que diz, “faça realmente isso até o enésimo grau, noventa e nove ponto nove nove nove nove, porque não existe margem para erro” ... é uma companhia que faz e planeja no longo prazo. Nós fazemos e planejamos no curto prazo, e nós fazemos e planejamos baseados em uma confiabilidade de setenta a oitenta por cento. Então nós não gastamos muito tempo na montagem das coisas, já que é um ambiente que está sempre mudando ... essas são duas diferentes mentalidades culturais que, de vez em quando, se chocam. Nós mudamos de direção três ou quatro vezes em um assunto. Você jamais mudaria de direção três ou quatro vezes em um assunto na [empresa-mãe], você meio que tem que saber para onde está indo e você deve então fazer com perfeição ... Assim, nós trabalhamos culturalmente em escalas de tempo diferentes, e então isso tem implicações em termos do pessoal [na empresa-mãe] com quem trabalhamos, e de suas visões de mundo. As visões de mundo deles tendem a ... “vamos pensar sobre essa coisa, vamos ter certeza que nós sabemos fazê-la certo, e ter certeza de que faremos para o resto da vida, e ter certeza de que fica expansível e robusta” ... Nós não, porque nós temos que estar prontos para botar abaixo tão rápido quanto montamos as coisas ... nós não temos uma estratégia em algumas coisas. Nós simplesmente reagimos a algumas coisas. Nós simplesmente fazemos algumas coisas. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) (10) Sob tais circunstâncias, os próprios objetivos colaterais de oxigenação das práticas de negócio e dos processos de trabalho eram também fonte de riscos ao sucesso do empreendimento: ... nós implantamos um sistema de pagamento diferente para os empregados na [empresa-nova] que difere do restante da [empresa-mãe], e é um sistema de pagamento que basicamente nos dá uma parcela da geração da riqueza criada por nós ... na [empresa-mãe] isso é uma coisa muito 201 radical, particularmente quando você começa a pensar nos números envolvidos na [empresa-mãe]. [Empresa-mãe] faz [x] por ano de faturamento e [y] por ano de lucro ... eu penso que muitas pessoas ficaram surpresas que eles [da direção da empresa-mãe] dessem suporte a isso, já que, de fato, quando eu entrei, muita gente disse, “isso não vai acontecer, então não perca muito tempo porque isso é perturbador para o resto do sistema”. Isto deixa você de fora do sistema. Isto faz com que o seu potencial remunere mais do que o de outras pessoas na corporação, que estão trabalhando para uma companhia muito bem sucedida fazendo coisas altamente técnicas e maravilhosas. Então, porque você deveria ser mais bem pago por um empreendimento iniciante que não possui retrospecto do que alguém que está trabalhando na atividade-fim da [empresamãe]? ... Mas eles concordaram com isso. Então isso nos surpreendeu de certo modo porque esse foi um grande passo filosoficamente para eles ... [o novo sistema de remuneração] nos permitiu ser competitivos em um segmento diferente de um mercado, em que nós precisávamos recrutar ... isso também demonstrou aos candidatos em potencial que a [empresa-mãe] estava tomando uma posição diferente quanto a isto, e que isto não estava sendo tratado como o restante da [empresamãe]... (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) (11) Havia, na empresa-nova, algum grau de percepção quanto a esse risco, e quanto às crescentes resistências ao empreendimento que se acumulavam na empresa-mãe: O primeiro de todos [os perigos potenciais] é provavelmente ser visto como sendo muito discrepante da ... quaisquer que sejam os limites da [empresa-mãe], o que quer que seja com que estejamos confortáveis, sermos vistos como não tendo nada a ver com isso daqui. Algo que seja assim muito desconectado, muito doido, muito dissociado. (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe) Então por que eles [direção da empresa-mãe] ... deram suporte à [empresa-nova]? Eu acho que a expressão é fazer vista grossa, eles fizeram vista grossa para com ela. Eles a toleraram. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) Nós estivemos nos dando conta, nos últimos doze meses, de que se nós realmente não vendermos nossa “[empresa-mãe]-zice” nas demais partes da [empresa-mãe], aí nós encontraremos ainda mais resistência do que seria o caso. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresamãe) (12) Com efeito, o foco na empresa-mãe progressivamente centrou-se nas expectativas (desde o início elevadas) quanto ao retorno em termos de lucratividade da empresanova, o que terminou por implicar uma erosão da imagem desta em termos de suas perspectivas de sucesso: No começo, todo mundo queria trabalhar para a [empresa-nova] ... as pessoas diziam que era arriscado, mas era estimulante. Isso foi na primavera de [ano]. Agora nós entramos em um período diferente. As pessoas estão dizendo, “não, eu não quero ir para a [empresa-nova]. Eles não realizaram no ano passado, isso custa muito dinheiro”. Existe um risco para todo mundo que trabalha na [empresa-nova], se você deseja continuar na [empresa-mãe] por muito tempo. Suponha que isto tenha sido fechado daqui a um ano, você terá gasto dois anos da sua vida numa unidade que não deu certo, ou deixou uma má reputação. Então existe um risco substancial, não um risco financeiro, um risco em termos de reputação de se juntar à [empresa-nova] ... nós não conseguimos achar talentos de topo para se juntarem a nós no momento, eu lhe digo com absoluta certeza ... sinais disso são aquilo que outras pessoas pensam de nós no resto da [empresa-mãe]. Eu estava na [sede da empresa-mãe] segunda-feira passada nutrindo meus relacionamentos com uma pessoa que é bastante antiga na companhia e a primeira coisa que ele me disse foi, “você faz parte daquele 202 grupo que gasta um monte de dinheiro e não realiza nada?” ... eu vou ser a primeira a dizer que existe um bocado de ceticismo na [empresa-mãe] em relação a isto. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) (13) Em contrapartida, os choques culturais implicaram também alguma erosão da imagem da empresa-mãe na empresa-nova... ... [para ter sucesso, a empresa-nova deve] se manter separada e desvinculada do resto da [empresa-mãe], de modo a não se emaranhar em toda a burocracia e toda a política e todas as estruturas de tomada de decisão que tomam muito tempo ... Eu acharia que esse seria um critério de sucesso porque eles [da empresa-nova] precisam andar mais rápido do que o resto da organização, e no curto para o médio prazo não há como eles poderem ensinar isso ao resto da organização [empresa-mãe]. (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe) (14) ... e, de forma ainda mais acentuada, nas empresas-fihas: ... nós temos um conjunto de ... processos bem específicos da indústria de [processo contínuo] que não necessariamente têm a ver com os velozes empreendimentos de risco da Internet, e eu estou passando por problemas ao tentar fazer as coisas andar para frente, e até aqui eu tenho sentido que eu estou sendo travada por esses processos peso-pesado, que não necessariamente têm a ver com um ambiente de empreendimento de risco típico ... pelo lado da [empresa-mãe], eles precisam entender que nós estamos embarcando em um ambiente novo, e você precisa dessas pessoas que de fato vêem que existe uma necessidade de se mudar isso, ao invés de dizer, “nós somos [empresa-mãe], então nós impomos isto”. E eu vejo um bocado de gente dentro da [empresa-nova] tentando fazer isso, e eu acho que vai haver conflito. (profissional de TI de uma das empresasfilha, oriunda da empresa-mãe) ... vocês, caras da matriz, vocês simplesmente não entendem. Vocês simplesmente não captam a coisa. É tipo, nós estamos aqui nas trincheiras dando o nosso sangue e vocês só fazem tornar as coisas mais difíceis ... Vocês têm que ouvir mais a equipe. Eles sabem o que estão fazendo. Vocês têm uma equipe muito capaz por lá. Deixem eles serem quem são, lhes dêem direção, mas não imponham a eles as suas visões ... [Empresa-mãe], como qualquer grande organização, tem alguma arrogância. Tipo, por estar com a [empresa-mãe], nós somos bem-sucedidos. Nós sabemos como fazer as coisas, logo tudo vai ser cor-de-rosa e não, as coisas não são sempre cor-de-rosa, absolutamente ... Às vezes, se a matriz tivesse sido um pouco mais humilde e ouvido um pouco mais a equipe local e as suas necessidades, algumas coisas poderiam ter sido evitadas, para falar a verdade ... Nós estamos em um segmento não-relacionado, o da educação, que para mim, do ponto de vista do marketing, foi como que super difícil conseguir vender a história. “Olá, nós somos uma companhia [da indústria de processo] e nós queremos entrar em educação”. “Ah, sei, por que?” Pois bem, nós precisamos contar com conhecimento em educação nos embasando. Não se tratava somente de uma questão de obter aprovação. Era também porque nós estávamos tentando construir um empreendimento em educação muito sofisticado e de primeira classe ... nós precisamos ter um pedagogo ... [mas] nos disseram da matriz ... não, nós somos a [empresa-mãe], nós somos a [empresa-mãe]. Nós sabemos como fazer as coisas. Quem se importa se nós não temos um pedagogo? ... Nós sabemos como fazer negócios. Nós sabemos como implementar projetos. Nós temos todos os recursos e os anos e anos de experiência, mas, me desculpe, se você quer nadar, você precisa de um maiô. Se você precisa entrar em educação, você precisa de um pedagogo e esse tem sido o principal problema e porquê ... tudo tem estado atrasado. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado) (15) Dada a condição de novidade, tanto do empreendimento (empresa-nova) quanto de sua arena de atuação, havia não somente consciência da necessidade de importação de 203 variedade em termos de habilidades e conhecimentos específicos (inexistentes no campo tradicional de atuação da empresa-mãe) como também consciência de que a demanda por esta classe de variedade poderia crescer abruptamente: ... Eu preciso desenvolver uma organização que ainda está enxuta porque eu não posso colocar um monte de excedente nela, esperando que o volume apareça. Então eu devo saber que eu preciso de seis gerentes ou de oito gerentes em dezembro, mas eu não posso incorporá-los agora, porque eu não tenho o negócio. Então o que eu posso fazer agora é olhar para o que eu tenho, as capacidades que eu tenho, e tentar organizar agora, mas eu também sei que este é um negócio orientado a volume e os volumes podem crescer geometricamente, e por isso o tamanho e a estrutura organizacional e os agrupamentos podem mudar rapidamente. Então vamos dizer que, com setenta pessoas, se uma das nossas bandeiras de negócio realmente explodir, ela poderia demandar duzentas pessoas em doze meses e isso a partir de uma base de setenta hoje ... Se você entra em um novo negócio que requer novas habilidades, novas competências, você não pode simplesmente cobrir isso com gente vinda dos negócios tradicionais ou existentes. (executivo de RH da empresanova, contratado no mercado) (16) Havia também a consciência de que a empresa-nova deveria despojar-se de algumas classes de redundância herdadas da empresa-mãe, de modo a prover condições favoráveis à retenção das classes de variedade que estavam sendo importadas: À medida que nosso recrutamento cresce no [país x, da empresa-filha A], então os valores que uma penca de caucasianos na [sede da empresa-nova] reúnem, vão ser estes os valores corretos para a [empresa-nova] amanhã, se de fato trinta e três por cento do nosso pessoal está no [país x]? Provavelmente não. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) (17) Como se poderia esperar, a variedade recém-importada ressentiu-se de falta de patamares básicos de identidade (redundância), tanto em termos de identificação com a empresa-mãe... Eu não sabia nada sobre a [empresa-mãe]. Houve inúmeros momentos em que eu não podia realmente tomar decisões porque eu estava tipo, “eu vou estar me metendo em problemas políticos? Existe uma estrutura que eu deveria respeitar e eu não estou fazendo isso?” ... isso realmente me retardou um bocado. Então, se eu tivesse sabido um pouco mais o que a estrutura era, como as pessoas reagem, o que eu poderia esperar da rede de relacionamentos, as coisas teriam sido mais rápidas e fáceis ... às vezes eu estava indo tomar decisões e eu ficava meio que hesitante quanto a isso, e eu tive que voltar até a matriz e pedir a benção para as minhas decisões. Isso não deveria acontecer. Se eu tivesse sabido melhor onde era o meu lugar, teria sido mais fácil. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado) 204 (18) ... quanto em termos de uma identidade própria mínima suficiente (consensos básicos) que conformasse uma base comum para o aproveitamento da variedade, ou seja, da diversidade de idéias, pontos de vista, talentos e habilidades etc.: P – Quais deveriam então ... [ser] os critérios de sucesso, para que a [empresa-nova] se torne um novo negócio bem-sucedido? (entrevistadora) R – Ser claros quanto ao que e quem nós somos, e o que nós estamos tentando alcançar... (profissional de TI de uma das empresas-filha, oriunda da empresa-mãe) (19) Era, no entanto, o próprio ritmo de aquisição de mais variedade o que, na prática, redefinia as formas e estruturas organizacionais na empresa-nova. Assim, a identidade nascente ia sendo atualizada de forma muito rápida, com esse dinamismo na produção da redundância dificultando sua percepção como tal (pois isto requer alguma estabilidade): ... nós nos reestruturamos de novo em janeiro, após nosso início em [mês] de [ano], e nós estamos agora esperando fazer isso de novo este mês, depois da de janeiro. Essas duas foram provavelmente guiadas mais pelo processo de recrutamento, porque nós estamos incorporando pessoal e nós temos trazido pessoas experientes que têm papéis chave a desempenhar, então nós tivemos que reorganizar a organização de modo a refletir essa realidade ... isso tem sido guiado por volume, por um ponto de vista de pessoal. Então, se você tem seis pessoas é uma estrutura organizacional, se você tem trinta e seis provavelmente já é uma diferente, e se você tem oitenta e dois, que é como nós estamos no momento, é provavelmente diferente ... à medida que nosso volume aumenta, nós precisamos ter certeza que ela [a estrutura organizacional da empresa-nova] ainda se adequa ao propósito ... eu esperaria ... que esses novos negócios irão nos mudar, porque agora nós temos que operar esses negócios. Agora mesmo ... mais de noventa por cento das nossas atividades ... são de construir, não de operar. À medida que nós começamos a avançar ... Minha suposição é que isso vai impactar também as nossas formas organizacionais, e habilidades. Então, eu desconfio que noventa por cento de construção neste ano, da próxima vez deveremos provavelmente estar em quarenta por cento de construção e sessenta por cento de operação. Então, a pergunta que faremos ano que vem é, “a estrutura é essa mesma? Os agrupamentos apropriados ... de habilidades e coisas, são estes mesmos?” (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) Temos aqui uma constatação empírica de nosso postulado quanto a que a qualidade da gestão, em uma organização, decorre diretamente da qualidade da compreensão a que se possa chegar quanto à dinâmica, evolutiva no tempo, do sistema “organização” – o que requer uma adequada compreensão dos ritmos de geração de redundância a partir da variedade e vice-versa. 205 (20) Não obstante esse dinamismo, o ritmo de importação de variedade nova era percebido nas empresas-filha como aquém do necessário... ... a equipe da [empresa-filha A] estava correndo direto, estava trabalhando tantos dias numa semana, e trabalhando tantas horas ... para continuar seguindo rumo ao cronograma original, quando o recrutamento começou. E o processo de recrutamento tem sido um processo muito demorado. Ele tem levado a um enorme acúmulo de frustração na equipe ... houve um ... período de quatro meses em que a equipe local esteve dando tudo de si, e trabalhando loucamente, e tentando cumprir o cronograma original ... enquanto eram perturbados por toda uma série de entrevistas e negócios e debulhando ofertas e por aí vai, toda essa história de recrutamento. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) ... como tocar esse projeto que é um projeto de nove a doze meses, e nós estamos na expectativa de crescer, aumentar em escala os recursos do projeto, e nós de fato estamos recrutando localmente no [país x, da empresa-filha A] um pessoal permanente, e isso toma em torno de quatro meses. Então, se este é um projeto de nove a doze meses, e se leva quatro meses ... para se recrutar pessoal para um projeto ... isso não está apropriado ... alguma coisa não está muito certa por lá. (profissional de TI de uma das empresas-filha, oriunda da empresa-mãe) (21) ... ainda que houvesse alguma consciência a respeito de que esse ritmo de importação de variedade já correspondia ao limite do possível (com o que se pode novamente constatar as dificuldades quanto a se lidar com a evolução da organização no tempo): Agora, em defesa do lado do RH, então existe a primeira vez que o lado de RH se engajou neste processo, e assim ... eles estão aprendendo à medida que caminham e, do ponto de vista deles, eles têm realmente estado operando numa velocidade de ruptura, comparado a como seria operar em um negócio normal, maduro... (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresamãe) (22) A dificuldade de aceleração do processo de importação de variedade era percebida como um calcanhar de Aquiles para a empresa-nova: Eu penso que é uma carência de gente bem talentosa, mesmo. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) ... trazer as pessoas certas é tão chave para o sucesso que seria melhor atrasar um pouco o projeto e trazer as pessoas certas, do que continuar a enrolar a nós mesmos de que nós somos capazes de realizar o projeto sem as pessoas certas. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) P – ... olhando no futuro, se você pudesse ver o futuro da [empresa-nova], o que é que você estaria mais interessado em saber? (entrevistadora) R – ... [dentre outras coisas é] ter uma organização que possui a mistura, a reunião certa de qualidades, e a quantidade certa de pessoas para realizar a visão. No momento, nós temos toda uma penca de pessoas que não estão tão bem alinhadas quanto poderiam estar para realizar os empreendimentos ... Nós temos bandos de pessoas motivadas, não se trata de uma questão de atitude. Se trata de uma questão de habilidades básicas, habilidades para tocar negócios, número um. Habilidades em gerenciamento de projetos, número dois, e habilidades profundas nos domínios que nós estamos realmente tentando disputar ... nós somos um negócio recente. Nós recrutamos mais cedo, e corremos o risco de sub-empregar, sub-utilizar as pessoas até que vários 206 empreendimentos adquiram maturidade para precisar dessas pessoas, mas pelo menos nós estamos prontos, ou nós esperamos até que a necessidade apareça, como aconteceu com a [empresafilha A], e então descobrimos que na verdade leva de quatro a cinco meses para se trazer as pessoas certas, tempo em que o nosso projeto pode bem ter desacelerado até parar? ... nós recrutamos em qualidade na profundidade suficiente, e em quantidades suficientes, de modo a nos capacitar a atingir nossas metas? Ou nós nos restringimos de modo a segurar os custos operacionais, e então nós honramos nossos compromissos quanto a custos operacionais, mas perdemos as oportunidades? (23) Malgrado toda essa consciência quanto à necessidade de variedade, a compreensão a respeito do que diversidade significa – em última análise, a valorização da individualidade humana – mostrava-se, em alguns casos, restrita a sentidos estritos do termo (diversidade de gênero, étnica, cultural etc.)... E eu acho que uma coisa que é realmente, realmente especial é que nós temos o que ninguém mais tem no grupo [empresa-mãe], e eu estou lhe dizendo isso, é diversidade ... Nós já temos diferentes sexos, nacionalidades, religiões, orientações sexuais, nós temos isso tudo e nós já acolhemos isso ... Eu não acho que isto aconteça, não desse tanto, em nenhum outro lugar na [empresa-mãe]. Nós somos verdadeiramente, verdadeiramente diversificados, e nós escolhemos ser diversificados ... Nós também temos ... um monte de diferentes orientações sexuais. Já na [empresa-mãe] todo mundo é hétero. Aqui, nem tanta gente é ... as pessoas daqui estão cientes que temos pessoal homossexual, e assim talvez nós também criemos a cultura de que está tudo bem em ser assim. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) (24) ... ainda que estas mesmas pessoas pudessem chegar a percepções que comportassem uma compreensão mais abrangente da diversidade: ... isso não tem a ver só com gênero. Isso é realmente sobre como nós trabalhamos com as pessoas. Nós aceitamos ... Eu quero dizer, há uma total aceitação das habilidades deles ... este cara que trabalha comigo ... tem um estilo muito diferente de gerenciar, e no começo nós não gostamos disso, mas dissemos, isso também é diversidade. Então, nós acolhemos isso. Nós dissemos, tudo bem, ele é diferente, mas isso também é bom... (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) (25) Enquanto que outras já se mostravam conscientes que, para além do mero discurso, a aceitação da diversidade (ou seja, dos “ruídos” internos – ambigüidade, contradição, conflito) é na verdade uma prática, que, como tal, requer proficiência: ... o pessoal da matriz, é mandatório que eles tenham ... que eles sejam pessoas muito diversificadas, no sentido que eles tenham conseguido ficar bastante mente aberta, sabedoria cultural, e isso significa aceitar e respeitar e incorporar as diferenças culturais no projeto. Porque não apenas depois da [empresa-filha A no país x], eu também fui mandada para a [empresa-filha B no país y] e eu vi um padrão similar no sentido de que, mesmo que todos sejam muito internacionais e todos nós entendamos as diferenças culturais, houve muitas ocasiões em que você podia ver que coisas tinham que ser explicadas sete vezes para que houvesse um entendimento. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado) 207 (26) Um aspecto específico quanto ao compromisso entre variedade e redundância era amplamente percebido como necessário – a conjugação de pessoal oriundo da empresamãe, capaz de preservar e nutrir os laços entre ela e a empresa-nova, com profissionais oriundos do mercado, dotados das competências especializadas necessárias: ... é crítico reter laços bastante fortes realmente com o corpo principal da [empresa-mãe], o que significa que é necessário contar com uma mistura de pessoas da [empresa-mãe] e pessoas de fora da [empresa-mãe]. De modo a que as pessoas da [empresa-mãe] possam prover pontes robustas de volta às redes de relacionamentos que existem dentro de uma corporação do tamanho da [empresamãe], e a linguagem da [empresa-mãe] é uma linguagem que tem que ser decodificada pelas pessoas novas... (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) Nós acreditamos que, se você não tem o lado de investimento de risco [refere-se a pessoas de fora] na equipe, então ... você não tem os conhecimentos especializados, você não tem checagem externa ... você somente tem padrão. Se você não tem o lado da [empresa-mãe] ... você não consegue vender para parceiros externos do jeito que a [empresa-mãe] está fazendo, você não tem redes de relacionamentos, você não tem nenhum acesso a ativos corporativos. Você não consegue vender a coisa dentro do sistema, ou pedir mais dinheiro ... Então use as pessoas da [empresa-mãe] que têm credibilidade e podem falar a língua, e use as outras pessoas que estão sendo vistas como sendo especialistas no ramo... (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) Bem, na equipe de executivos é cinqüenta a cinqüenta. Na equipe de gerentes, que é um grupo mais amplo, é provavelmente sessenta a quarenta. Sessenta externos. Eu quero dizer que eu penso que isso esteja apropriado porque, realisticamente, no final das contas, nós somos um negócio da [empresa-mãe]. Nós temos que nos reportar dentro da comunidade da [empresa-mãe]. Nós temos que ter pessoas que sejam capazes de administrar as expectativas da [empresa-mãe] quanto a nós. Assim, portanto, nós precisamos de pessoas que tenham credibilidade dentro da arena da [empresa-mãe], e que saibam como administrar essa credibilidade. Então o fato do nosso CEO [executivo principal] e nossa pessoa das finanças serem pessoas da [empresa-mãe] é provavelmente muito importante, para que nós continuemos a conseguir os fundos com que nós estamos contando. Mas, igualmente, para alcançar essa credibilidade nós temos que provar à [empresa-mãe] que nós de fato possuímos experiência e entendimento da Internet, que é porquê ter alguns dos contratados de fora tem sido tão importante, porque se não fosse assim nós não teríamos credibilidade. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) (27) Pelo menos um dos entrevistados demonstrou perceber, ainda que de forma intuitiva, que toda identidade (redundância) já foi, em sua origem, diversidade (variedade): ... existe um pouco de mito ... quanto a que ... a [empresa-nova] tenha de longe mais gente nova em relação à [empresa-mãe] do que qualquer outra parte da [empresa-mãe]. Absoluta besteira ... toda vez que nós sondamos um novo país ou começamos um novo negócio ... de onde vem o pessoal? Eles não vêm de dentro da [empresa-mãe], afora um ou dois deles. A grande maioria é recrutada de fora ... os negócios que foram criados no período de [ano] até [ano] eram todos absolutamente novos, e foram povoados, predominantemente, por pessoal de fora da [empresamãe]. Talvez um CEO [executivo principal] ou alguma coisa da [empresa-mãe] e o resto era novo em relação à [empresa-mãe]. Então, isso é um mito. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) Com o que, ainda uma vez, constata-se o operar da dinâmica gerativa formulada. 208 A qualidade das interações humanas (28) Como insistimos, o fator-chave aos processos de conversão mútua entre redundância e variedade é a qualidade das interações entre as pessoas, lastreada na valorização da alteridade – a valorização do convívio com aqueles que pensam diferente de nós. A qualidade possível para as interações é, no entanto, muitas vezes percebida como uma condição pré-dada, cuja melhora seria difícil ou mesmo inviável: P – ... [em] sistemas humanos ... nós todos somos capazes de refletir e de mudar nossa atitude ao interagir... (entrevistadora) R – ... [mas] humanos, ou pelo menos humanos adultos, não mudam, fundamentalmente. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) (29) O caminho mais óbvio de voltar o foco à quantidade das interações, por meio das tecnologias de informação, pode mesmo acabar sendo um fator (a mais) de piora para os níveis de qualidade existentes: ... correio eletrônico é muito bom para agregar pessoas e para manter um grupo grande de pessoas informadas, mas no nosso caso as coisas têm que ser muito cuidadosamente explicadas e bem extensamente detalhadas, para que sejam compreendidas corretamente. Como você sabe, comunicações escritas às vezes podem ser mal interpretadas porque o estado de espírito e as intenções por detrás de uma comunicação não são bem transmitidos por correio eletrônico ... Ah, é assim como, “o que você quis dizer com isso? O que você está insinuando com isso?” E eu não estou insinuando nada. Isso acontece com correio eletrônico, então esse é um meio de comunicação traiçoeiro. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado) (30) A tecnologia sem dúvida complementa e expande, mas não é capaz de suprir, os níveis de qualidade inerentes à comunicação natural face-a-face: ... o telefone funciona melhor que o correio eletrônico nesse caso e, obviamente, você sabe, a presença ... quando fulano [responsável pela empresa-filha A] ... também viaja para [país x, da empresa-filha A], é tão impressionante como assuntos que pareciam gigantescos no correio eletrônico, quando você está cara-a-cara ... eu não sei porque mas ... os problemas desaparecem. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado) 209 (31) O próprio ritmo de crescimento acelerado da empresa-nova conduziu também a uma mudança nos padrões de interação entre as pessoas que tendia a prejudicar a qualidade dessas interações: Todo mundo gosta de se sentir consultado e envolvido. É em parte porque, quando isto aqui foi deslanchado, sendo tão pequeno com dez pessoas, todo mundo podia ser envolvido na decisão. Então, eu acho que existe ressentimento das pessoas que foram contratadas inicialmente, mas não mais consultadas no mesmo nível e grau. Mas elas não podem ser, porque a organização cresceu. Se só existem três de você, você pode discutir qualquer coisa. Quando existem trinta e três você não pode. Então isso é parte do crescimento, amadurecimento, evolução. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) (32) Bastante significativo, verificou-se haver alguma consciência quanto a que o aproveitamento da diversidade requer empatia – a atitude de se dispor a procurar ver o mundo pelos olhos do outro – o que, por sua vez, demanda compreender o contexto em que este outro se encontra inserido: Nós temos gente em [diversos países] e nós temos como que uma pessoa no [país a], uma ou duas pessoas no [país b], uma ou duas pessoas no [país c], e eu estou preocupado que nós não estejamos gerenciando ... e isso me preocupa em termo dos comprometimentos deles, do engajamento deles, do nosso entendimento de fundo sobre que está acontecendo por lá, o que está acontecendo com aqueles negócios, o que eles realmente pensam em contraposição ao que os executivos naqueles países possam pensar ... As pessoas estão lá, e elas estão muito desconectadas. ... Quanto mais longe você está da [sede da empresa-mãe], mais desconectado você está das decisões, do modo de pensar e do nosso entendimento do que aconteceu ... nós temos muito pouca visão do que está acontecendo lá no dia-a-dia ... as conexões nos relacionamentos e coisas assim não estão desenvolvidas ... Eu conheceria as pessoas, eu teria uma noção das pessoas. Então, se você me dissesse o nome de alguém no [país y, da empresa-filha B], José, eu teria uma noção vaga do José, o José provavelmente teria uma noção vaga a meu respeito ... Eu não tenho nenhum contexto em termos daquela pessoa, daquele assunto, daquele ambiente para que possa realmente tomar decisões ... É um ambiente hostil? É um ambiente de desconfiança? É um ambiente altamente engajado, comprometido? A mesma decisão em dois ambientes diferentes pode ter implicações totalmente diferentes. Então, é o caso de não alcançar as implicações das decisões, porque não se tem a compreensão contextual. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) (33) É justamente o reconhecimento da ausência de um tal contexto o que pode tornar as pessoas mais abertas à busca por empatia, com o que mesmo as dificuldades percebidas (“ruído”) podem tornar-se fator de aprendizado e superação: Eu acho que é ouvir, ouvir um pouco mais e não tentar impor tanto assim os sistemas. Você sabe, no final das contas, ambos ... o gerente do projeto e [o responsável pela empresa-filha A] estavam viajando muito e ... esse tipo de arrogância de que eu estava falando [imposição] meio que começa a arrefecer, porque você aprende que existe uma tamanha diferença cultural e diferentes maneiras de se fazer as coisas que você domina, que você percebe que pode ser que eles também tenham o direito de pensar do seu jeito, e de fazer as coisas do seu jeito. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado) 210 Com o que se pode constatar a inelutabilidade da dimensão individual (a subjetividade humana) na a conformação da dimensão social. Frente aos dilemas da (in)compreensão mútua, algumas pessoas terminam por adotar atitudes de abertura e empatia, enquanto outras mostram-se mais resistentes – tanto quanto uma mesma pessoa pode mostrar-se mais aberta ou resistente conforme a situação específica vivida. A subjetividade humana – variedade – com todas as percepções de ambigüidade e contradição que desperta (nas demais subjetividades...), é componente imanente a todo sistema social humano, como as organizações. (34) A empatia torna também as pessoas mais abertas à relatividade geral dos pontos de vista, cada qual portador de validade própria. Seguem-se duas asserções contraditórias; pode-se, porém, perceber validade em ambas. É por meio do conflito construtivo de idéias, por sua vez tornado possível pela qualidade das interações, que opiniões divergentes como essas (ambas de pessoas em postos-chave do processo) agregam valor rumo a consensos tanto mais ricos (porque incorporam a diversidade) quanto eficazes (porque no processo de construção de consenso as animosidades são dirimidas): ... para uma organização que está em processo de evolução, eu acho que o fato de que nós reestruturamos não é o problema. O fato de como nós comunicamos isso para as pessoas ... tem sido a nossa ruína ... é algo muito pessoal, é o canto em que você se senta em uma organização, é como você se sente, sua escrivaninha, tudo. Isso precisa ser administrado muito, muito bem. Não por um anúncio de correio eletrônico por fulano [responsável pelo RH da empresa-nova] ... não dando às pessoas diferentes descrições de atribuições sobre as quais não se conversou com ninguém antes, e elas simplesmente receberam uma mensagem de correio eletrônico uma hora antes delas partirem ... isso poderia ter ficado melhor, com um toque mais pessoal etc. Essas coisas são transtornos? Sim, bem, é algum transtorno, mas você faz porque você acha que isso beneficia o negócio no longo prazo. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresamãe) Sim, é quando chega a hora de se fazer um anúncio dos fatos, quando eu, enquanto um indivíduo, posso de repente ter um novo gerente imediato ... Isso meio que abrange o controle das coisas também. Então, em termos de, você sabe, você precisa ter as decisões tomadas muito rapidamente. Então isso implica que você pode ter apenas um número pequeno de pessoas incluídas na decisão ... isso significa que algumas pessoas são informadas, ao invés de consultadas. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) (35) Segue-se um outro caso, este a respeito da atividade de participações corporativas: ... participações corporativas é algo simplesmente inovador, tentar essas mil coisas, claro. Não existe um modelo comprovado, e muitos modelos falharam mas ninguém sabe qual é o modelo certo, e eu acho que não existe o modelo certo. Eu acho que existem modelos que funcionam por determinado período, para determinadas organizações que estão em processo de evolução. Eu tenho cem por cento de clareza disso ... participações corporativas, muita gente faz isso como se 211 fosse uma arte. Ah, nós tentamos um pouco disso, e você tem que ter algum talento. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) ... do ponto de vista de uma concepção organizacional, não há muito desafio lá [em participações corporativas]. Trata-se de um modelo estável de negócio. O mercado não é estável mas o modelo de negócio de se investir em companhias externas é estável. É um negócio estabilizado onde há toda uma indústria de firmas de captação de investimentos que têm estado no negócio já há algum tempo... (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) (36) A empatia diz também respeito à necessidade de se “falar a língua do outro”, ou seja, de assumir a responsabilidade por se fazer entender. Para as pessoas na empresa-nova, foi também o caso de aprender a “falar a língua” da empresa-mãe: ... [a empresa-nova precisa] fazer ... uma quantidade de pequenas coisas que sejam vistas como sendo bem-sucedidas, e que tragam fé ao pessoal da [empresa-mãe] ... [alguns] gerentes com mais tempo de casa entendem o mundo dos recém-formados de alto potencial [refere-se ao mundo das empresas ditas ponto-com]. [Porém] a maior parte deles não deixou de ser operadores de [plantas da indústria de processo contínuo], e não entende esse mundo ... Então na medida em que a [empresa-nova] faça coisas que as pessoas aqui possam entender, pequeno, risco baixo, sucesso grande, isso lhes dará mais espaço ... eu acho que alguns dos projetos que se encaixam nos espaços em branco entre o que a Internet promete fazer e os negócios clássicos, se nós pudéssemos fazê-los funcionar, isso deixaria as pessoas mais confortáveis porque isso seria sentido como uma investida exploratória, e ainda que nós falemos a respeito do desbravamento em negócios, eu penso que nós não fazemos a menor idéia do que isso realmente significa. Eu acho que há um fator de conforto real. Nós somos comandados por engenheiros no topo da companhia. (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe) Ficam também patentes as restrições (em termos do horizonte de possibilidades) devidas às limitações intrínsecas às visões de mundo que são conformadas por uma tradição específica (no caso, uma tradição gerencial de origem técnica, em uma companhia do segmento da indústria de processo contínuo). (37) A atividade de “falar a língua” da empresa-mãe era vista como primordial pelo comando da empresa-nova – e esta foi a principal razão para a sua hipertrofia... ... [há] um engajamento muito pesado com outras partes da [empresa-mãe] por parte de pessoas da equipe de gerenciamento da [empresa-nova]. Então cada um de nós tem a responsabilidade pela administração de interesses, de volta na [empresa-mãe] mais ampla ... a razão pela qual esse papel continua a existir ... tem muito a ver com a coordenação do ... gerenciamento interno de interesses. Isso é crítico para um empreendimento novato como o nosso, que poderia ser espremido e poderia desaparecer. Então é necessário para nós brigar acima das nossas forças e comunicar como o diabo, sem irritar as outras partes da organização ... nós gerenciamos envolvendo essa equipe da [direção da empresa-nova] na lida com a [empresa-mãe] mais ampla. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) 212 (38) ... a ponto do tamanho da equipe de comando ter, inadvertidamente, produzido um outro problema de comunicação – uma sobrecarga de comunicação dentro de si própria... Eu acho que o fluxo de comunicação tem a ver com liderança e gerenciamento. Tudo é sobre o seu estilo de gerenciamento ... nossa equipe de executivos é em torno de sete ou oito, e nossa equipe de gerentes são quinze. Agora, numa organização em que somos apenas setenta ao todo, eu percebo que uma estrutura tão desproporcionalmente pesada no topo ... especialmente na nossa organização, que é tão dinâmica ... você não consegue gerenciar ... com um consenso de quinze pessoas. Você não consegue fazer isso. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) (39) ... o que, somado à urgência para obtenção de resultados, gerou desencontros na equipe, bem como uma percepção de escassez de contribuição relevante: ... é uma equipe razoavelmente grande ... numa companhia de oitenta e cinco pessoas, ter então dez por cento da companhia de executivos, e você aí acrescenta mais outras, arredondando, dez pessoas na equipe de gerentes. Então você está falando sobre em torno de um quarto da companhia de uma forma ou outra em papéis de gerenciamento ... Esse é um percentual enorme. Então você acrescenta pessoas que estão gerenciando projetos, que não foram mencionadas. Então você provavelmente pega mais seis ou sete pessoas ... tentar alinhar um grupo grande desse tanto é quase impossível. ... o empreendimento é então exposto a um painel de investimento em que haverá com uma variedade de visões diferentes ... Existe um desejo de oferecer orientação, mas muito freqüentemente a orientação se dá sob forma daquilo com o que as pessoas estão infelizes ao invés de, “bem, se você mudar isto e mudar aquilo ... então essa será uma solução perfeita” ... se a pessoas estão sendo solicitadas a contribuir, e elas são pessoas muito ocupadas, logo tem muita coisa suspensa no ar, então não é surpreendente que a primeira rodada de contribuições, e a rodada mais fácil de contribuições, seja de fato dizer, “bem, na verdade eu realmente não gosto disso, e isto não funciona, e aquilo não funciona”. Um engajamento muito mais profundo porém mais valioso é dizer, “bem, eu não gosto disso e disso e daquilo, mas eu tenho estado dedicando reflexões sérias a respeito, e se você fizer isso, isso e isso, então isto vai ficar sensacional”. Há, de longe, menos desse último e muito mais daquele primeiro no modo como nós estamos trabalhando no momento, que é algo desconfortável ... Não existe aprofundamento nestas áreas para prover, não apenas comentários, mas orientação a sério. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) Auto-organização Todas essas condicionantes ressaltam claramente a necessidade de tempo para que alguma auto-organização possa ocorrer (em termos dos seus “resultados” emergentes percebidos). 213 (40) Também para os profissionais das empresas-filha, o tempo necessário à construção de consensos podia ser visto como um estorvo: ... é a constante reestruturação que está criando um bocado de confusão e de incerteza ... se você tenta chegar ao consenso, todos eles terão seus próprios interesses de fundo ... então eles irão brigar e brigar até que a coisa se torne aplicável ou adequada a seus próprios ambientes de negócio, e às vezes isso não é alcançável, e aí, no processo de se fazer isso, vai levar dois anos para se chegar a um acordo e dizer, o padrão é este, e até lá ele já pode ter se tornado obsoleto ... Eu acho que, em termos do esforço, do dinheiro, do tempo, do esforço em alcançar um patamar comum muito tênue, isso para mim pesa mais que todo o possível valor ou potencial que isso possa trazer. Então é, como você dispende e o que você recebe de volta no final, e a proporção, é apropriada? E para mim, você está dispendendo muito mais, porém o que você obtém é, quem sabe, muito pouco, e às vezes você pensa, “esse esforço vale isso?” (profissional de TI de uma das empresas-filha, oriunda da empresa-mãe) (41) Não obstante, na empresa-nova a presença de desordem (ruído) sob forma de incerteza pôde também ser vista como fator de estímulo à experimentação, ao aprendizado, e à superação: ... realisticamente, nós estamos apenas seis meses à frente de alguns dos empreendimentos. Então, algumas das coisas que nós estamos colocando no lugar, até certo ponto, nós estamos fazendo coisas para nós mesmos simultaneamente ... A estrutura de organização vai provavelmente mudar a cada seis meses, ou algo assim, e eu não tenho problemas com isso já que, se você olhar para a [empresa-nova], nosso foco é a respeito da criação de novos negócios. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) Bem, eu acho que nós temos tido problemas similares em todos os nossos projetos, para ser perfeitamente honesto. Nós mesmos somos um empreendimento iniciante, [empresa-nova] é um empreendimento novo e então eu acho que nós temos todos os problemas de sermos um empreendimento novo criando empreendimentos novos. Então em relação aos problemas que existem dentro do nosso empreendimento novo, há aí uma ressonância para, e com, os vários outros empreendimentos que nós estamos tentando criar ... Existe uma visão em evolução sobre a espécie de metodologia que nós deveríamos aplicar... (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) (42) A incerteza desempenhava um papel de indutora da abertura para a diversidade e para a valorização do convívio com o “pensar diferente”, por sua vez requisitos para a experimentação e o aprendizado (ou seja, para uma profícua auto-organização): ... esta é mesmo uma discussão em andamento ... conversando com eles, o que você precisa que eles façam, no que eles estão de fato trabalhando, porque você precisa deles agora, por quanto tempo ... Nesse tipo de processo de questionamento você está obtendo informação a respeito de como a sua organização necessita mudar ... já que você está decidindo quanto a empreendimentos, e quanto a quem tem decisões sobre o quê. Isto diz a você, se não estiver claro aonde reside a autoridade para a tomada de decisão, quando que isso implica que você deva mudar. Então, devido à natureza do negócio em que nós estamos, isso é mais em termos de você ficar constantemente fazendo perguntas sobre “onde se encaixam os negócios?”, de um modo que isso encorajaria você a dizer, “bem, agora é a hora em que eu preciso fazer outra mudança”. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) 214 (43) Os recém-chegados eram previamente alertados a não contar com certezas e seguranças – este próprio procedimento correspondendo ao provimento de alguma segurança mínima, relativo ao que eles não deveriam esperar contar com: ... parte do [programa] “Espírito da [empresa-nova]” é o que nós chamamos “assinatura”, que é muito sobre ser explícito quanto ao trato, “é isto o que você pode esperar, é isto o que se espera de você como retorno” ... e se você não estiver vendo alguma coisa por lá que você particularmente valorize, algo assim como status ou hierarquia, então você precisa entender que isto não existe dentro da [empresa-nova]. Então, está você realmente convencido de que você deveria vir? Porque você irá encontrar essas lacunas, particularmente em termos de, se você está procurando por clareza e direção, se você quer etapas bem claras do que está para acontecer depois, e se você não consegue aprender a se virar sem elas, você não deveria entrar. (profissional de RH da empresanova, contratada no mercado) (44) Uma atitude de aceitação da incerteza como algo inexorável (o que, ainda uma vez, é necessariamente referido à subjetividade humana) estimulava a experimentação e o aprendizado: Nós estamos conjecturando sobre as tendências relativas à Internet, a partir da descoberta pelo consumidor passando pela adoção, pela utilização, até os hábitos de consumo, mas esta ainda é uma arena muito pouco testada, tudo está ainda nos estágios iniciais no mundo da Internet ... isso é o mercado mudando porque as pessoas continuam experimentando, e existem sucessos e existem fracassos, e então constantemente as pessoas estão esticando a corda para ver exatamente o que vai funcionar. Então, às vezes é algo que ninguém sequer antecipou ... o mercado simplesmente continua mudando. Ninguém realmente sabe, e coisas que ninguém espera que dêem retorno dão retorno, e coisas que todo mundo espera que dêem retorno não dão retorno. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) ... você está trabalhando com aquelas que são as nossas melhores apostas nesse exato momento. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) (45) Auto-organização pode, também, ser compreendida como a liberdade de ação para a variedade (autonomia na ação das pessoas) pautada, ou balizada, pela redundância necessária (um “sentido comum”, que também se faça presente nas pessoas). Aparentemente, é isso o que se depreende do depoimento abaixo (não obstante poder a autonomia ser também pautada ou balizada por mecanismos mais ou menos sutis de controle): ... [inovação] é basicamente um problema de orçamento ou de dotação de fundos ... toda a questão da [incubadora da empresa-nova] é pegar uma idéia completamente bruta e ver se você consegue fazê-la funcionar. Então, a única restrição quanto a essas idéias é passar por esse processo de teste de um modo suficientemente rigoroso, para que recebam os fundos de que necessitam para seguir em frente. Se você vai além e, digamos, as pessoas querem fazer algo de uma maneira diferente, mais uma vez, o único teste para uma pessoa é, “isso está nos fazendo progredir em termos de 215 valor?” Não há nada que impeça alguém de fazer algo diferente. Eu penso que seja simplesmente em termos de, “isso faz sentido?” Então, é um ambiente bastante adulto, a um ponto de não se fazer as coisas pelas coisas. Você faz as coisas porque você acredita genuinamente que elas farão diferença... (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) (46) A aceitação e legitimação da incerteza favoreciam também uma percepção realista quanto aos aspectos de oportunidade e de ameaça contidos em toda incerteza (papéis construtivo e destrutivo do ruído): ... existe um monte de circunstâncias. Você deve retroceder a mais de um ano atrás, a Internet na crista da onda, grandes altas de mercado, [empresa-mãe] não estava realizando tanto, alguém disse, “vamos fazer alguma coisa”, e nós dissemos, “está certo, vamos fazer sim”. Confiança no sistema, abundância de caixa. Ao mesmo tempo, uma preocupação ... “como diabos nós vamos fazer crescer essa companhia?” ... “De onde nós vamos extrair esse crescimento?” Então nós dissemos, “tudo bem, vamos tentar alguma coisa por aí”. Então eu penso que o ambiente macroeconômico e o ambiente interno de negócios foram favoráveis. Não são tão favoráveis agora, a tecnologia está em baixa, as divisões de Internet em grandes corporações têm sido fechadas, há depreciações significativas. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) ... [no momento] eu não tenho os volumes imaginados ... Mas eu esperaria que, à medida que nos mantenhamos bem-sucedidos, nós ficaremos maiores e maiores porque a vantagem da Internet é a progressão em escala. Então nós podemos lançar um negócio na Austrália com sucesso, levar esse negócio para os EUA ou o Reino Unido ... de todo modo, isso pode acontecer muito rapidamente. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) (47) Havia mesmo alguma consciência a respeito da necessidade de se influenciar a evolução do ambiente, rumo a uma co-evolução com ele... ... trata-se de continuar tocando isso e tentar sentir o que o consumidor vai comprar, e também o outro lado é que tudo isso se trata, em essência, de retreinar o consumidor. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) (48) Muito embora fosse também percebida a impossibilidade de que tal co-evolução pudesse se dar por modos “controláveis”... A tecnologia existe, mas um montão de oportunidades que foram identificadas no ano passado dependiam da mudança maciça de comportamento dos consumidores, e isso foi totalmente subestimado durante a era do ponto-com, e totalmente subestimado também durante o primeiro ano e tanto de existência da [empresa-nova]. Existe uma noção de que, apenas porque uma solução fantástica foi colocada em frente aos consumidores, ou consumidores em potencial, eles começariam a utilizá-la. Como todos sabemos, esse não é o caso. A [empresa-filha A] requer dos professores que mudem a maneira como ensinam. Agora nós podemos ver porque isso beneficiaria os professores ... mas existe ainda todo um bando de professores que tiveram de fato que dispender um tempo significativo para entender como eles poderiam integrar essa contribuição específica nas suas contribuições cotidianas, para que de fato traga benefício, e os primeiros benefícios não vão aparecer por ainda um bom tempo... (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) 216 (49) ... o que, por sua vez, aumentava a sensação de incerteza (conseqüentemente, de insegurança): Nós não podemos prever com nenhuma certeza qual será o nosso tamanho ou volume nos negócios daqui a seis meses. Então, por exemplo, existem doze empreendimentos em vários estágios na incubadora. Alguns deles vão fracassar, porque nós sabemos que provavelmente de quarenta a cinqüenta por dento das coisas que entram na incubadora não vão sair na outra ponta, mas simplesmente faz parte do portfólio, e da exposição ao risco que é intrínseca a esse negócio. Mas, e é por isso que estamos aqui, nós esperamos que alguma parcela desses vá sair na outra ponta. Agora, quais que irão sair, nós não sabemos. Quando? Nós não sabemos... (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) (50) Sob tamanha incerteza, inclinações controladoras da índole humana terminam por sobressair. No depoimento que se segue, “pró-ativo” pode ser compreendido como correspondendo a “capaz de controlar”, enquanto que “reativo” corresponderia a posturas mais tendentes à auto-organização: ... isto provavelmente está ainda um bocado reativo, ao invés de pró-ativo ... nós esperamos até que a evidência tenha chegado ao nível em que uma mudança precisa acontecer, ao invés de nos sentarmos, e aí nós tiramos a nova estratégia para [ano] ... e nós anotamos como em uma agenda, estas são todas as coisas que sentimos necessidade de fazer dentro de um ano no RH, mas nem pensar que nós seremos fisicamente capazes de fazer todas elas. Então, você está constantemente num malabarismo entre as coisas que são absolutamente críticas e as coisas que você pode esperar até ficarem críticas antes de você mexer nelas ... você reage a algo quando é obrigado, ao invés de, como em um negócio mais maduro, você poder contar com um processo mais estruturado de revisão das coisas. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) (51) Por fim, frente à pressão por resultados no curto prazo, as próprias características do empreendimento favorecedoras da auto-organização passaram a alvo de críticas: ... o que nós estamos propensos a fazer é tirar da incubadora todas essas pessoas multidisciplinares e alocá-las nas suas áreas de excelência próprias, como o seu novo lar. Então, se elas são realmente pessoas de finanças, nós vamos colocá-las no financeiro, se reportando ao gerente de finanças. As pessoas de marketing, nós muito provavelmente teremos um executivo de marketing, e teremos elas se reportando a ele. Então, a incubadora será apenas uma unidade de gerenciamento de projetos ... Parte do problema das pessoas é que elas não têm um senso de identidade, por serem apenas parte de um grande repositório de recursos... (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) (52) Enquanto que o desconforto proveniente da existência de erros (inerentes aos processos de experimentação) acabou por concorrer para o desmantelamento das possibilidades de aprendizagem (e, conseqüentemente, de inovação): P – ... o funil está sendo usado agora de uma maneira diferente, ao invés de ter o [processo de geração de novas idéias] totalmente aberto a cada idéia nova e fresca, e agora elas estão 217 tematizadas, o que de fato nos parecia uma maneira de reduzir a inovação, ao focar em demasia. (entrevistadora) R – Esse é sem dúvida o caso, mas de forma muito deliberada, porque a experiência da inovação, e do sucesso da inovação, que estava acontecendo no ano passado quando a [empresa-nova] foi criada, havia montanhas de idéias sendo geradas. Metade das idéias não deveria ter visto a luz do dia ... como uma conseqüência da falta de experiência das pessoas que tocavam o sistema ... eles não estavam experimentando idéias que já estavam de fato prontas ... e havia ainda ... dinheiro sendo dado à investigação de oportunidades do mercado, e qual tecnologia poderia ser necessária, e por aí vai. Então, um bocado de esforço desperdiçado, um bocado de dinheiro desperdiçado... (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) Autonomia, poder e controle Resta ainda abordar as questões relativas ao poder e à sua contraparte, a autonomia, em que se deve levar em conta uma inconsistência que tem se mostrado recorrente em muitos discursos em Teoria das Organizações: costuma-se considerar não o poder como aspecto danoso a ser atenuado, mas o controle508 – sem que se dê conta de que ambos são completamente imbricados. Distinções conceituais entre poder e controle correspondem, por exemplo em Filosofia, à distinção entre potência e ação, mas tratamse evidentemente de distinções muito sutis, em que não há qualquer “linha divisória” – mas antes dois aspectos de uma mesma essência. Por outro lado, diversos perspectivas abordam o poder de forma maniqueísta, em que as organizações são divididas entre os “com” e os “sem poder”; não obstante, Foucault 509 asseverou que o poder encontra-se disperso por todos os níveis em parcelas 508 É quando surgem as idealizações em torno da noção de “liderança”, tomada como o exercício do poder sem (ou com pouco) recurso ao controle. Os exercícios do poder e do controle podem ser dar por uma miríade de formas: carisma, ascendência pessoal, reputação, persuasão argumentativa, influência social, coerção, imposição de sanções, detenção de conhecimento, domínio de habilidades específicas, controle de recursos específicos, recurso a normas, sedução, chantagem e outras. Com efeito, pode-se delinear um perfil de “liderança” lastreado numa combinação de algumas dessas formas e na exclusão deliberada de outras; poucos são, no entanto, os trabalhos nesse sentido que escapam à superficialidade, e que se pautam pelo necessário afastamento da normatividade institucional vigente no sentido da maior isenção possível (que jamais poderá ser absoluta). Ver o capítulo 6 de MORGAN (1997 (1986)), intitulado Interests, Conflicts, and Power: Organizations as Political Systems. Ver também BURRELL, Gibson, MORGAN, Gareth. Sociological Paradigms and Organisational Analysis: Elements of the Sociology of Corporate Life. London: Heinemann, 1979; DRUMMOND, Helga. Power and Involvement in Organizations: An Empirical Examination of Etzioni’s Compliance Theory. Aldershot (Reino Unido): Ashgate, 1993; ALVESSON, Mats. Communication, Power and Organization. Berlin: Walter de Gruyter, 1996; e CZARNIAWSKA-JOERGES, Barbara. Exploring Complex Organizations: A Cultural Perspective. Newbury Park (Califórnia): Sage, 1992; (este último, por um viés antropológico). 509 Michel Foucault (França; n. Paul-Michel Foucault; 1926-1984). 218 infinitesimais, cada qual com sua própria história e suas próprias táticas, compondo uma cacofonia de práticas e situações sociais.510 Isto, evidentemente, não implica negar que, no interior dos arranjos sociais humanos, toda distribuição de poder (conseqüentemente, de autonomia) é necessariamente assimétrica; assim, o que é passível de ser considerado em cada caso é o quão favorável (ou desfavorável) aos processos naturais de auto-organização se mostra a configuração poder-autonomia, tal como existente. (53) No caso da empresa-mãe, de cultura solidamente estabelecida ao longo de décadas (uma tradição), pôde-se constatar ser essa cultura provedora de liberdade de ação, o que, no âmbito da empresa-nova, era favoravelmente visto: Se você sabe como usar a ambigüidade do sistema, e se você sabe como montar uma rede de relacionamentos, então você tem muita liberdade. Assim, existe um bocado de pessoas na organização que têm trabalhos um tanto quanto nebulosos, mas eles são ótimos pensadores, e a organização os tolera de uma maneira que os meus empregadores anteriores diriam provavelmente, “não, há um problema de problema de performance aqui”, e os expeliriam. Na medida em que você cumpre com quaisquer tarefas, quaisquer objetivos que te forem dados, se você quiser explorar outras coisas, a organização é razoavelmente tolerante quanto a isso, e claro, se ninguém te disse, “não”, você pode continuar a trabalhar o assunto até que você consiga encontrar um jeito de fazê-lo ser aprovado. (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe) (54) Na própria empresa-nova, os requisitos de flexibilidade inerentes à natureza da atividade de incubação de novos negócios implicavam a necessidade por liberdade de ação, vista como algo apreciado pelas pessoas: ... pessoas que são alocadas inicialmente a um projeto podem não necessariamente ser as melhores pessoas para serem alocadas aos projetos, mas elas estão disponíveis e por isso elas tocam o projeto, que é o que acontece em qualquer empreendimento iniciante. Você sabe, você tem cinco pessoas e aí as cinco pessoas se vêem fazendo tudo, e não se incomodando muito a respeito de especialização funcional. Mas isso faz parte da graça da coisa, que atrai um montão de gente para cá. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) 510 Ver Surveiller et punir. Naissance de la prison. Paris: Gallimard, 1975; e Microfisica del potere. Interventi politici. Torino (Itália): Nuovo Politecnico Einaudi, 1977. 219 (55) A existência de autonomia suficiente, conjugada com uma identificação pessoal com as atividades desempenhadas, pode conduzir à paixão, um estado de arrebatamento emocional passível de acontecer também no trabalho, no âmbito individual de cada subjetividade... ... talvez nós possamos tentar penetrar nesse mercado [país x, da empresa-filha A] pelos caminhos da TI [tecnologias da informação] ... essa era uma idéia, e ela não saiu da [empresa-nova]. Eu me senti tão arrebatada quanto a isso que eu disse, “eu vou cuidar disso”. Eu não tenho nada a ver com a [empresa-filha A], eu estava ocupada, e eu simplesmente fiz. Eu reuni uma equipe e agora nós temos três projetos no [país x]. Então, eu estou simplesmente dizendo que fazer isso é realmente possível, mas requer pessoas que coloquem paixão por detrás disso e façam tudo ... nós temos pessoas novas, você sabe, vinte e oito, elas diziam, “quando eu boto o olho nessa companhia...”, e nós dizíamos, “pega o avião e vai, te vejo amanhã”. As pessoas são realmente autorizadas por aqui, você simplesmente faz, e outras pessoas vêm aqui e ficam surpresas. Elas supõem que, de início, quando você vem para o trabalho, você vai ficar atrás do computador. Nada disso, pegue uma passagem e vá. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) (56) ... ou mesmo a um âmbito coletivo (social), como se depreende destre outro depoimento: ... era muito desafiador ... Meus dias de trabalho, eles não tinham oito horas. Eles tinham quatorze, e sábados, e domingos ... era como no velho oeste, “vamos nessa, pessoal”, e nós éramos uma equipe. Era como uma grande família, trabalhando juntos por um grande projeto ... Bem, porque uma vez que vocês estão por lá, e vocês estão batalhando juntos, e vocês têm todos esses desafios, e vocês têm que agüentar as malditas linhas telefônicas que não funcionam, e vocês acabam super cansados, e vocês saem para tomar uma cerveja todos juntos e por aí vai, você sabe, nós temos que tocar isso adiante sim. Quando você começa a desenvolver essa paixão pelo projeto, você o compreende, e você conhece ele pelo avesso ... quando você está completamente imerso nele, é inevitável não realizá-lo ... também foi super difícil ficar vivendo num hotel semana após semana após semana ... todos nós estávamos assobiando e chupando cana ao mesmo tempo ... tem sido super, super intenso. Um pouco demais porque eu devo dizer que trabalhei até adoecer. Nós trabalhamos tão pesado mas isso era inevitável, e essa é uma outra coisa, os [nativos do país x, da empresa-filha A] trabalham tão pesado ... se você pedir e esperar que um europeu trabalhe o mesmo número de horas, e com a carga de trabalho de um [nativo], eles vão te mandar ir para o inferno. É impressionante. Então eu estava me sentindo compelida a trabalhar o mesmo número de horas dos meus colegas, e no final eu estava tipo arrebentada ... Eu estava num país onde também é super fácil ficar doente ... é um ambiente completamente diferente, e a comida, e tudo o mais ... eu sinto orgulho disso ... é a paixão pelo projeto ... no final, como eu disse, nós todos acabamos assobiando e chupando cana, porque eu também estava fazendo a parceirização, eu estava fazendo as atividades de treinamento dos professores, eu estava, você sabe, trabalhando na preparação do piloto ... isso foi ótimo, isso foi fantástico porque essa é, obviamente, a maneira de se aprender. (especialista na atividade-fim de uma das empresas-filha, contratada no mercado) (57) As lacunas de formalismo na empresa-nova, mais que favorecer, impunham a necessidade de iniciativa pela ação autônoma: Eu fiquei bastante chocada quando eu me juntei. Eu sabia que a [empresa-nova] era bastante nebulosa, e não tinha uma estrutura organizacional formal ... eu tinha imaginado que, por exemplo ... eu estaria em condições de solicitar para o RH um diagrama da organização. Isso não existe. 220 Então, ninguém pode me dar uma lista de, essas são as pessoas no RH, essas são as atribuições delas, é assim que eles se reportam um aos outros, isso é quem decide o que. Essa coisa não existe ... isso roda sozinho num ambiente de redes de relacionamentos muito mais caótico do que eu tinha me dado conta de cara ... Então, em termos de tomar decisões acerca dos empreendimentos ... até certo ponto, eu posso fazer o que eu quiser. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) (58) Havia, no entanto, quem se manifestasse por menos liberdade de ação e mais controle: ... e sem uma clara cobrança de atribuições. Até onde vai a responsabilidade? Quem é responsável por aquela idéia e, daqui a um ano, nós vamos olhar no olho de quem e dizer, “você concretizou essa idéia?” Porque é tudo dividido, e gente trabalhando vinte por cento nisso e trinta por cento naquilo ... eu acho que nós podemos assumir esse estilo de consultar as pessoas, desde que nós tenhamos produzido lucros. Eu fico mais que feliz em proceder assim, mas até que nós tenhamos provado à [empresa-mãe] que nós somos viáveis, sinto muito. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) (59) Contradições e dificuldades eram também reconhecidas pelo comando da empresa-nova quanto ao exercício de suas funções precípuas: O papel de todo mundo aqui [na direção da empresa-nova] não é um papel corporativo tradicional ... nós não temos um processo de gestão do conhecimento muito bom neste momento, em nenhuma parte da organização... (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) (60) Ao passo que os modos por que este poder era na prática exercido eram também alvo de críticas: Eu pessoalmente não acho que nós tenhamos suficiente talento de gerenciamento na [empresanova]. Eu não digo que nós não temos pessoas talentosas. Nós não temos é liderança de fato, efetiva... (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) (61) Com o que alguns chegaram mesmo a questionar a liberdade de ação com que o comando da empresa-nova contava: P – ... o que não está correto no momento em termos de gerenciamento? (entrevistadora) R – ... Liderança e comunicação, e definição clara quanto a quais são os papéis deles [gerentes], e as responsabilidades deles, e a cobrança quanto às atribuições deles. (profissional de TI de uma das empresas-filha, oriunda da empresa-mãe) 221 (62) O objetivo precípuo da empresa-nova – a ampliação da base de negócios de uma companhia do segmento da indústria de processo – foi gerador de expectativas quanto a resultados, e quanto a produtos provenientes do empreendimento (independentemente de qualquer eventual sucesso em seus objetivos colaterais, como a experimentação em novas práticas de negócios e em novos processos de trabalho): Nosso trato com a [empresa-mãe] é entregar uma determinada quantidade de valor, criar uma determinada quantidade de valor ao longo de um determinado período de tempo. Nós fomos o primeiro negócio dentro da [empresa-mãe] a fazer uso de gerenciamento baseado em valores como o reporte financeiro. Então, nós estamos educando a matriz [empresa-mãe] em termos de, “é assim que se faz, é assim que você calcula o valor do seu negócio, e observa o valor que está sendo criado”. ... o único jeito de você conseguir fundos para isso é uma das coisas que nós temos que fazer, que é mostrar que valor isso irá criar ... quando você está apresentando isso à matriz, você está simplesmente agregando onze planos de negócios, cada qual criando diferentes quantidades de valor, e dizendo, “é isto o que vai acontecer” ... no final das contas, nós simplesmente conseguimos todos os fundos que nós pedimos ... da [empresa-mãe]. Assim, nós temos que estar apresentando nossos dados de um modo com credibilidade suficiente para que eles acreditem que há um mérito naquilo que nós dizemos que nós iremos estar fazendo, e no que nós tenhamos entregue em contrapartida ao que nós dissemos que iríamos erguer até agora. Então ... até aqui, tudo bem. (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) Finanças é a maior área da [empresa-nova] porque é aonde o impacto dos processos de reporte do grupo industrial ... é maior. Assim nós estamos sendo demandados ... a nos reportar como se nós fôssemos um negócio operacional maduro ... e nós não somos, nós somos um empreendimento iniciante. Mas nós estamos sendo tratados exatamente do mesmo jeito que um negócio maduro ... de todo modo, fulana [responsável pelo financeiro na empresa-nova] ainda é obrigada a... a que nós apliquemos exatamente os mesmos padrões da [empresa-mãe]. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) ... [empresa-mãe] tem um bocado de ... “prove para mim”, “prove porque eu deveria avançar para a próxima etapa”. (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe) (63) Tamanhas expectativas fizeram da empresa-nova, desde o seu início, uma espécie de corrida contra o relógio. Um traço comum a todos os depoimentos é a pressão por resultados: [Empresa-nova] está num estágio onde se sente que ela precisa demonstrar o seu profissionalismo. Ela tem subsistido por dezoito meses, então há uma expectativa de que nós estejamos aplicando uma parcimônia correta, e profissional, aos recursos que estão disponíveis para nós. Existe uma pressão tremenda pela entrega de resultados. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) ... se nós entregarmos pelo menos um ou dois projetos que sejam levados em conta pelo restante da organização [empresa-mãe] como sendo bem-sucedidos, e então ... eles têm alguma coisa para oferecer, e por isso nós permitimos que eles consigam mais dinheiro, e permitimos que eles cresçam, porque na minha opinião o que nós precisamos é de um sucesso inicial ... o estilo de gerenciamento dele [o executivo-em-chefe da empresa-nova] é deixar todo mundo feliz, e eu acho que não está na hora de deixar todo mundo feliz. É hora de se alcançar resultados ... [ele] é muito bom ... [ele] vende filosofias. Bem, filosofia não te traz lucro. Então, você sabe, é melhor que você 222 tenha uma estória para contar ... Sim, isso é um experimento, mas tudo bem, você pode dizer, se a coisa não está quebrada, essa pode ser a única oportunidade que você tem para concertá-la. Isso é o que as pessoas também dizem. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) (64) Foi necessário tempo para que alguns percebessem que um sistema social complexo como a empresa-nova comporta os seus próprios tempos (o seu ritmo próprio de autoorganização) para que possa emergir naturalmente o que, no senso comum, corresponde a “resultados”: ... o que eu adoraria saber é se esses projetos irão dar retorno, porque no momento todos eles são experimentos, e nós acreditamos que eles irão dar retorno, mas até que você coloque essa espécie de coisas na frente dos consumidores você simplesmente não sabe, e pode ser que os consumidores simplesmente as rejeitem por completo, ou as aceitem, desde que elas tenham certas coisas a mais que custem tanto dinheiro que ela então não se torna tão lucrativa. Então eu acho que no momento nós ainda estamos todos em um estado de acreditar nos projetos, mas não estando seguros que o valor que nós esperamos que seja criado realmente será ... na verdade, com o passar do tempo, nós descobrimos que não é possível entregar negócios muito rapidamente nesse ambiente, agora. Pode ter sido há dois anos atrás, quando nós primeiramente concebemos isso. Certamente não é agora. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) (65) Sob tais circunstâncias, as expectativas por resultados para a empresa-mãe levaram, no interior da empresa-nova, a uma erosão da confiança em suas chances de sucesso: Bem, o esquema [de remuneração] está aí, os números estão baixos, e se o pessoal não tem segurança que estes lucros vão ser realizados, então para que ter um percentual nessa divisão? Então, ele tem se mostrado não ser tão atrativo assim ... enquanto que, há um ano atrás, todo mundo queria possuir participações, blá blá blá. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) (66) Tudo isso concorreu para uma redefinição da própria natureza da empresa-nova, com um deslocamento de foco, com vistas a resultados rápidos – da ampliação do leque de negócios por meio de uma permanente incubação, para uma consolidação daqueles negócios já incubados: ... acreditou-se que as [empresas-filha] fossem capazes de entregar valor rapidamente. Com o passar desse ano, o foco foi deslocado um pouco, em reconhecimento ao fato de que leva muito mais tempo para se criar novos negócios a partir do nada do que havia sido imaginado há um ano atrás ... haverá menos prestígio e menos dinheiro disponíveis ... para o próximo ano, e mais ênfase na entrega dos empreendimentos existentes que estão no portfólio, que estão na linha de produção... (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) ... ao passo que todas elas são plataformas de crescimento maravilhosas, e elas contêm todos os jargões bacanas da moda, no final das contas nós somos tomadores de dinheiro na [empresa-mãe], e não existe, penso eu, nenhum atalho para a lucratividade ... nós precisamos de sucessos, alguns sucessos visíveis ... eu realmente acho que nós já temos plataformas de idéias suficientes ... alguma hora, você tem que escolher. Ou bem você trabalha nos empreendimentos que você está 223 deslanchando, ou você está trabalhando na alimentação da incubadora, do funil. Quero dizer, você não pode fazer os dois ... eu realmente acho que nós já temos uma linha de produção rica o suficiente. Nossa fraqueza está na execução. Pegar uma idéia e dizer, daqui a um mês, isto é alguma coisa ou não? É aí que está a nossa fraqueza. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) (67) De um modo deliberado, vieram a ser sacrificadas parcelas de flexibilidade e experimentação (e, como decorrência, de aprendizado e inovação): ... [no que tange à incubadora da empresa-nova], acompanhar esta evolução organizacional ... nós assumimos dividi-la em B2C [negócio-ao-consumidor (business-to-consumer)] e B2B [negócio-anegócio (business-to-business)], e no seu desaparecimento enquanto um departamento ... Agora, essa foi exatamente a hora certa de se fazer isso? Bem, eu não sei ... este não é um experimento controlado ... muito freqüentemente alguém morde a isca de rumar para a especialização um pouco cedo demais, e em conseqüência perde alguns dos benefícios de flexibilidade ... há um ano e meio atrás, a [empresa-nova] apenas queria que víssemos a nós mesmos como um projeto inovador, como um grupo, e esse era o potencial para alguém vir se engajar nessa atividade, e por isso havia o desejo de ser da [empresa-nova] ... A diferença com o passar desse ano é que não existe mais a gana de tentar abraçar o mundo com as pernas em termos de inovação. Nós nos tornamos mais objetivos em termos de identificar a estratégia que nós queremos perseguir, e os domínios em que nós queremos operar. A conseqüência disto é que, inevitavelmente, nós queremos inovar em menos áreas, e restringir a informação. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) (68) A geração de produtos foi tomada, desde o início do empreendimento, como um valor em si, independentemente do grau de qualidade do processo que os gera. O pragmatismo do agir racional orientado a objetivos (teleológico) pode ser constatado neste depoimento: ... [imagine que] daqui a dois ou três anos nós tenhamos alavancado as habilidades coletivas e os talentos de nossa organização, e tenhamos criado estes negócios. Assim, fazendo parte disso, evidentemente estará a gestão de pessoas, fazendo parte disso evidentemente estará termos estendido o relacionamento com o cliente, e fazendo parte disso estará termos alavancado as tecnologias de conexão para se fazer essas coisas. Então, ter feito todas essas coisas não necessariamente cria valor. No entanto a suposição é a de que, se você tiver criado valor em seu aspecto de capital puramente humano, você fez essas coisas. Então, é numérico, mas chegar lá implica que você tenha feito um montão de coisas. Assim, é como vencer a corrida, o que implica que você provavelmente tenha praticado muito forte, que você tenha tomado cuidado com sua dieta, que você tenha o equipamento correto, e que você tenha feito um montão de coisas. Nada disso significa que você vai ganhar a corrida. Então, você não necessariamente quer medir esforços. Então, você pode praticar mais pesado do que qualquer um, mas você ainda chega em quinto. Chegar em primeiro, é esse o tipo da medida ... essa é basicamente a medição, nós chegamos ou não em primeiro, por assim dizer. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) A empresa-nova sem dúvida foi, desde o seu início, concebida para conviver com (e tomar partido da) incerteza – dessa forma tornada legítima. Mas, a quais incertezas (ou, à qual “classe” de incerteza) isso diz respeito? Interpretamos que isso diga respeito àquelas inerentes à natureza precípua do empreendimento: incertezas relacionadas à 224 evolução da tecnologia de informação, às expectativas dos consumidores quanto ao uso da Internet, às especificidades das atividades de negócios pela Internet, e de incubação de novos negócios. Todavia, as razões para o prematuro encerramento do empreendimento dizem respeito sobremaneira à mudança de percepção (a nível global) quanto às atividades tanto de negócios pela Internet quanto de incubação de novos negócios, com o que o senso de oportunidade que predominava ao final dos anos 90 cedeu lugar a uma atitude mais cautelosa ou mesmo cética, a partir de meados de 2000. Tais circunstâncias constituíram, portanto, uma outra classe de incerteza, imprevisível à época da concepção do projeto. Mais: tratava-se agora de uma classe de incerteza que afetava não somente os corações e mentes dentro da empresa-nova, mas também dentro do comando da empresa-mãe – onde, evidentemente, não havia sido tornada legítima; onde as expectativas quanto aos tempos de retorno do capital investido independiam do que se passasse na empresa-nova; sobretudo, onde há poder e controle próprios, efetivamente exercidos no sentido do encerramento do empreendimento bem antes dos prazos inicialmente concebidos. Resulta uma clara indicação: mesmo quando predispostas a aceitar a incerteza e a dialogar com ela (como de fato era o caso), o advento de incertezas novas (imprevistas) induz as pessoas a buscar refúgio – nas seguranças com que estão acostumadas a contar, no aumento do controle, na impaciência quanto a suas expectativas, na mentalidade da “resposta certa”. (69) De diversos depoimentos pode-se depreender um tal padrão de reação, presentes nas entrelinhas ou em atos falhos... Mas uma boa idéia é uma boa idéia e uma má idéia é uma má idéia, e aplicar processos muito robustos a uma má idéia não fará dessa má idéia uma boa idéia. (executivo responsável pela empresa-nova, oriundo da empresa-mãe) ... não há sentido em se tentar chegar a mil por cento de precisão no planejamento do projeto... (profissional de RH da empresa-nova, contratada no mercado) 225 Bem, eu tenho que te dizer ... O que eu quero dizer é que tudo mundo está ocupado, eu estou extremamente ocupado ... se eles tiverem vinte minutos livres, pode haver algum assunto de marketing, um projeto que esteja rolando em algum outro lugar que eles possam pegar pé. (executivo de RH da empresa-nova, contratado no mercado) P – Se você fosse explorar o futuro e ter certas perguntas respondidas ... quais seriam elas? (entrevistadora) R – Eu penso que uma provavelmente seria um vislumbre no mundo da Internet, e o que seriam os comportamentos dos consumidores da Internet daqui a três a cinco anos ... o grande ponto de interrogação para todo mundo nesta arena é, “como você monetiza a Internet?” Eu acho que nós temos algumas pessoas que realmente não conseguem olhar para uma proposição a partir de uma perspectiva estrita de negócios e dizer, sim ou não. ... Você sabe, incerteza é o que mata. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) (70) ... ou mesmo de maneira mais explícita: ... então eu não posso simplesmente sair e dizer, “eu estou fazendo um projeto de pesquisa, me diga o que você pensa, e daqui a dois meses, você sabe, daqui a dois meses eu dou retorno sobre estes temas globais para os seus gerentes, e em algum momento de [ano] você irá ouvir falar disso”, mas é tipo, eles [pessoal da empresa-mãe] querem saber o que vai estar diferente na semana que vem. (profissional de RH dos quadros da empresa-mãe) ... há uma outra coisa que poderia ser a ruína dela [empresa-nova], ser vista como sendo caótica demais. Nosso atual presidente e o atual diretor de [segmento de processo contínuo] são, para mim, duas pessoas que gostam um bocado de controle ... eles fazem perguntas, “onde está o seu planejamento de projeto? Qual será o seu próximo passo? O que você fará de diferente a partir de segunda-feira, depois de você ter chegado em casa dessa reunião?” Um tipo muito linear de pensadores ... assim, eu penso que ser vista como caótica, ou fora de controle, ou insegura de seus resultados. (a mesma profissional de RH dos quadros da empresa-mãe) ... “como é que você faz, por que você fez desse jeito que você fez?” “Porque nós pensávamos que essa fosse a melhor prática. Agora nós sabemos”. Então, não existe receita pronta, e eu acho que é por isso que alguns gerentes mais antigos sentem-se expostos. Eles querem deter uma receita ... Aquele livro ... eles dizem que eles querem torná-la [a atividade de participações corporativas] mais como uma ciência, e eu acho que se nós tivermos sucesso em criar pelo menos a percepção de que ela é uma ciência, a gerência tradicional e mais antiga vai se sentir melhor assim. Então, eles entendem que existe um processo, que a coisa pode ser mensurada ... se isso é uma sensação ilusória de segurança, é possível, mas eu realmente acho que pode haver algo nela que interesse, se nós fizermos dela mais uma ciência do que uma arte. Eu penso que ela será mais bem aceita. (executiva da empresa de participações corporativas, oriunda da empresa-mãe) Isso é algo pessoal, tendo me juntado há três meses, para mim não ficou claro. Em termos do foco, em termos da direção para dizer, “o seu foco é esse ou o seu foco é aquele”, eu de fato gostaria de ver direções mais claras ... você simplesmente não consegue uma pista sobre quem está fazendo o que, as atribuições e responsabilidades das pessoas, qual é a direção. Não existe sequer um organograma que diga quem está sentado aonde, quem é responsável pelo que, que claramente esteja definindo papéis e responsabilidades, e como eles se relacionam e como eles se reportam entre si, ninguém sabe ... Se nós estamos tentando deslanchar novos empreendimentos, então eu esperaria pelo menos contar com um bocado de suporte por parte da companhia, em termos de suporte e condução de negócios, orientação, e eu não sinto que esteja obtendo muito disso ... Ser claros quanto ao que e quem nós somos, e o que nós estamos tentando alcançar, e ter os processos certos, ter o tipo certo de conhecimento especializado, gerenciamento forte, e recursos suficientes para prover suporte aos empreendimentos. (profissional de TI de uma das empresas-filha, oriunda da empresa-mãe) 226 Conclusões O estudo de caso apresentado exemplifica a aplicação prática da teoria proposta (dinâmica gerativa), e concorre assim para uma demonstração desta teoria a mais elucidativa possível, no sentido de promover sua correta apreensão de modo a facilitar o trabalho de crítica pelos pares. Procuramos, por meio do presente estudo de caso, deparar com constatações empíricas que nos permitissem demonstrar a dinâmica gerativa concebida como originadora da fenomenologia organizacional, objetivo que consideramos atingido. O outro objetivo que almejamos foi o de pormenorizar o operar dessa dinâmica, para o que as constatações empíricas havidas foram divididas em dois grupos: 1. Constatações relativas à dinâmica auto-organizante em si, gerativa da fenomenologia organizacional; neste domínio, podemos mencionar: • • • • • • • • • • • • A caracterização da existência de diferentes classes de redundância (1, 43). A resiliência de determinadas redundâncias (2, 51). Processos de surgimento de novas redundâncias (2, 6, 41). A produção de redundância a partir da variedade (19, 27, 41, 42). A qualidade das interações como a chave para o aproveitamento da variedade (25, 29-33, 42). Variedade como contradição e ambigüidade (24, 25, 29, 34, 35, 38, 39). O sistema com um balanço entre redundância e variedade (26, 45). A indução à produção de variedade por meio de experimentação (3, 10, 41). A geração de variedade referenciada (seja positiva ou negativamente) nos modos de redundância tais como existentes (4, 5, 7-9). A indução à produção de variedade por sua importação (15, 22). Espaços e limites à expressão da variedade (45, 53-58, 61). Os tempos e ritmos próprios à auto-organização (40, 42, 48-50, 64, 66, 68). 2. Constatações relativas aos limites e as possibilidades para a apreensão, pelo observador, dessa dinâmica gerativa; nesta esfera, pudemos registrar: • • • A necessidade por oxigenação de modos de redundância tidos por estagnados (3, 4, 10, 13, 14, 16). A necessidade por referenciais de redundância (6, 17, 18, 40, 43, 51, 57, 59, 61). As novas manifestações da variedade tomadas por ruído ou perturbação, relativamente ao referencial (a redundância) existente (9, 10, 11, 36, 52). 227 • • • • • • Choques entre expectativa (desígnio de controle da evolução do sistema) e a espontaneidade da auto-organização (12, 40, 46, 48, 50, 62-70). Dificuldades em se dar conta da redundância existente (19). Dificuldades em se dar conta da abrangência da variedade (23, 24, 28). A legitimação da incerteza (44, 48, 49, 57, 64). O diálogo para com a incerteza (47). Os limites à legitimação da incerteza (58, 67-70). Como conclusão-síntese, ter sido empiricamente constatada a essência do modus operandi da dinâmica auto-organizante: o sistema permanentemente produz, referenciado em si próprio, a sua própria identidade (redundância), pela qual torna-se caracterizável como tal; para tanto, concorrem as perturbações ou ruído representados pela expressão da variedade interna (as ações humanas), potencializada pela ocorrência de mudanças externas (incerteza); ainda, o próprio processo de produção de novos modos de redundância a partir da variedade é, ele mesmo, produtor também de novos modos de variedade. Em outras palavras, ordem e desordem são mutuamente produtoras uma da outra: somente se renovam os modos de ordem em presença de desordens; somente concorrem as desordens para a renovação da ordem se, de alguma forma, referenciadas nos modos de ordem tais como existentes; e o processo de contínua renovação da ordem é, ele mesmo, renovador também das desordens. O ideal taylorista da one best way, fulcro das teorias das organizações historicamente predominantes, é em essência negador do ruído (da desordem), e configura portanto apoio em falso para a teorização organizacional. É ainda significativo assinalar a perspectiva da gestão como atuação na dinâmica autoorganizante geradora dos fenômenos organizacionais: é a partir de uma adequada compreensão dessa dinâmica que os agentes de gestão podem procurar influenciar variáveis críticas nos processos que a constituem, como por exemplo o ritmo de expansão de variedade (seja por indução ou importação), de modo a que este não seja tão lento que não logre vencer as inércias estruturais do sistema nem tão acelerado que venha a desestruturá-lo – para o que deverão estar também cientes de que a evolução de uma tal variável acarreta efeitos significativos ao âmbito individual, posto que cada pessoa reage ao novo de modo próprio e individualizado. 228 Do estudo de caso apresentado (e expresso de forma contundente em sua parte final), nossa conclusão mais significativa é a de que a transição rumo a um novo paradigma de gestão, como o que viemos aqui propor, consiste muito mais em uma transição de cultura (transição de valores: oxigenação da tradição) que em uma mera adoção de mais um novo aporte de conhecimentos técnicos. Dedicaremos todo o próximo capítulo a considerar algumas direções nesse sentido. Cabe uma última consideração: o estudo de caso deve ter dado a perceber ao leitor que o volume de transcrições de entrevistas é significativamente maior que o volume de análise oferecido (que conforma, mais propriamente, um fio condutor). Ora, uma vez que a dinâmica gerativa da fenomenologia organizacional tenha sido apreendida pelo observador desta fenomenologia (neste caso, por intermédio da leitura do estudo de caso), esta dinâmica, se de fato operacional, acabará por consumar-se na mente desse observador de uma forma intuitiva, e não apenas analítica ou reflexiva. Dizer “a realidade fala por si” seria funcionalista; digamos, então: “a realidade se deixa interpretar por si”. 229 7. Por uma nova Teoria das Organizações Como vimos ao longo do primeiro capítulo, a mentalidade da one best way – seja para a execução da tarefa (Taylor), para o comportamento social no ambiente de trabalho (Escola das Relações Humanas), para a modelagem do fluxo de informações (ERP) ou para a (des)regulação dos mercados (teoria dos custos de transação), expressa a índole funcionalista da Administração como racionalização, em que a tradição que lhe dá origem (a ocidental, mais particularmente a anglo-saxã) opera como referencial universal – e se trata aqui de uma tradição em que o status quo não é tomado por viabilidade histórica, mas por destino. Frente às recorrentes complexidades, a resposta desse paradigma continua a ser, sempre, mais do mesmo: rotinas, tecnologia, contratos.511 Aplicada a receita, as incertezas que porventura lhe escapem conformam, cada vez mais, substância, e, cada vez menos, resíduo. Para tratá-las, indivíduos que sobressaem por sua peculiar aptidão à decisão rápida e intuitiva, e pelo talento (ou sorte, ou ambos) de tomar decisões que terminem por se mostrar adequadas, são filtrados para cargos de altos executivos com salários não menos altos, em cujas mãos será depositado o destino de muitos, acionistas e trabalhadores, conquanto dêem conta de devotar lealdade à organização e de agir estrategicamente em relação a tudo o mais, e até que, eles também, acabem tragados pelas caprichosas reviravoltas da mudança. O esgotamento desse paradigma revela-se patente não apenas perante suas finalidades precípuas, mas também por seus efeitos colaterais: a degradação da Natureza, a perda de referenciais, a corrosão de valores, a exacerbação do individualismo, a desigualdade de condições de vida e de oportunidades, a angústia, o stress etc. – efeitos colaterais que acabam por conformar, também eles, novas complexidades a serem enfrentadas. Uma superação desse paradigma, sem prejuízo da retenção de suas contribuições válidas, principia em assinalar suas inconsistências e deficiências de fundo, ao que passaremos agora. 511 Remeter à p. 24. 230 Teoria da cooperação Uma dessas inconsistências é o modo como se compreende a relação entre indivíduo e organização. Como vimos, a concertação implícita entre organização e indivíduos preconizada pela corrente do equilíbrio organizacional 512 veio a ter explicitado seu caráter de contrato por ocasião da teoria dos custos de transação,513 e foi finalmente convertida em contratos propriamente ditos (sejam de valor jurídico ou simbólico) pelos mecanismos ditos “de governança”.514 Tais perspectivas implicam uma redução da conjugação indivíduo-organização (em prejuízo de todo um potencial de engajamento humano em atividades que comportem significado de vida) a um contrato entre partes com interesses próprios; numa visão crua, à regulação de uma barganha. Esse pensamento principia na percepção que se constrói quanto ao indivíduo: ao invés de se considerar os seres humanos como automotivados por natureza – desde que possam contar com espaço para expressão de suas individualidades singulares – os modos funcionais de comportamento organizacional acabam tomados como se correspondessem à natureza humana mesma, com o que o conceito de motivação se converte em instrumento de controle e repressão das energias psíquicas naturais das pessoas.515 De acordo como Guerreiro Ramos:516 ... a maior parte daquilo que é usualmente chamado teoria das organizações carece de rigor científico ... tal pensamento toma por seu valor de vitrine os critérios inerentes às organizações. Trata-se de um subproduto dos próprios processos organizacionais. Consideram-se normais e naturais os requisitos organizacionais tais como, casualmente, estes se encontram, em sobreposição à conduta humana de um modo geral.517 Guerreiro Ramos chega mesmo a repudiar a noção de um comportamento humano: ao contrário da ação autônoma, qualquer comportamento é sempre externamente 512 513 Mencionada à p. 14. Mencionada à p. Erro! Indicador não definido.. 514 Mencionados à p. 25. Para uma perspectiva contemporânea ver, por exemplo, SUNDER, Shyam. Theory of Accounting and Control. Cincinnati (Ohio): SouthWestern College Publishing, 1997. 515 516 517 Cf. RAMOS, 1981: 70. Alberto Guerreiro Ramos (EUA; n. Brasil; 1915-1982). Ibid., p. 44. 231 referenciado, ou seja, ele expressa a satisfação de expectativas, exteriores ao indivíduo, quanto a suas atitudes; apenas o homem manipulável se comporta, o homem senhor de si age. Observa ele, com propriedade, que o termo “comportamento” apareceu no Ocidente somente por volta do século XV, como expressão de conformidade a ordens e costumes ditados por conveniências sociais; desde então, a exceção foi tornada regra: a conformidade a normas socialmente estabelecidas encontra-se convertida em padrão moral geral para a conduta humana.518 Essas perspectivas reducionistas quanto ao indivíduo se fazem acompanhar por leituras estereotipadas da organização, desprovidas de uma compreensão quanto a que indivíduo e organização constituem domínios fenomenológicos distintos. Com efeito, o equívoco de se postular uma relação direta indivíduo-organização perpassa toda a Teoria das Organizações, em que, por variadas formas, uma tal relação corresponde a uma identificação por projeção, os “interesses” e as “necessidades” da organização propalados como se interesses e necessidades de natureza humana fossem. No limite, pode-se mesmo chegar a uma personificação explícita da organização,519 como em Rush:520 O “sistema vivo” de uma organização é considerado como uma versão expandida do homem. Acredita-se ser a organização dotada, em uma escala maior, de todas as qualidades de um indivíduo, inclusive crenças, modos de comportamento, objetivos, personalidade, e motivações.521 Não resta dúvida quanto a que o que Taylor considerou mera convergência de interesses pecuniários encontra-se convertido, desde a Escola das Relações Humanas, em uma “teoria da cooperação”. Contudo, uma tal cooperação deveria ser considerada nos termos de uma relação entre dissimilares: os indivíduos e a organização situam-se em dois níveis de realidade distintos, ainda que acoplados; qualquer “comunicação” entre eles é necessariamente indireta. Qualquer realidade para a instância “organização” reside nos consensos a seu respeito construídos e renovados na linguagem, no âmbito de toda uma sociedade. Expresso de 518 519 520 521 Cf. ibid., p. 45. Cf. ibid., p. 68. Harold M. F. Rush (EUA). RUSH, 1969: 8. 232 outro modo, a organização participa, conosco, de um mesmo nível de realidade – embora não diretamente com cada um de nós. Ou ainda: a organização tem existência real, porém não no nível imediato do indivíduo; neste, o que existe são outros indivíduos, alguns dos quais vistos como “encarnações” da organização: supervisores, gerentes, executivos. Com efeito, é somente a totalidade das interações entre esses e outros indivíduos (empregados, clientes, fornecedores, revendedores, consumidores etc.) que confere realidade à organização. Portanto, carece de sentido qualquer “teoria da cooperação” entre indivíduo e organização; necessário é o desenvolvimento de uma verdadeira teoria da cooperação entre pessoas, em que a organização seja percebida como uma realidade correlata, não imediata. Segue-se ainda que fomentar a “cooperação” entre indivíduo e organização se traduz, na prática, em forma de fomento à qualidade para as interações humanas. Tampouco este se trata de um raciocínio novo: já Dejours522 identificara duas linhas clássicas em Teoria das Organizações, ambas voltadas à regulação do que ele denomina “fator humano” (o papel desempenhado pelos indivíduos no concurso dos objetivos organizacionais), e ambas em processo de esgotamento. Uma, que se origina em Taylor, é derivada das ciências tecnológicas (como a Engenharia, a Ergonomia, as tecnologias de informação e a vertente ortodoxa das ciências cognitivas), e orientada a métodos, padrões, procedimentos, tempos e movimentos, e tarefas. O fator humano é compreendido como sujeito a falhas, e as abordagens nesta linha buscam controlá-las, preveni-las ou mesmo erradicá-las. A outra, que se origina em Mayo, corresponde ao que genericamente se denomina Administração, é derivada das ciências sociais (notadamente a psicologia social) e orientada à cultura, valores, normas, clima e processos. O fator humano é visto como 522 DEJOURS, 1999 (1995). Christophe Dejours (França; 1949–). 233 um recurso, e nesta linha os enfoques são voltados a motivar, desenvolver e gerenciar os assim chamados “recursos humanos”. Dejours então indica precisamente aquele que para nós é o ponto central: propõe ele um deslocamento do objeto de estudo, do comportamento e desempenho individuais para as interações entre os indivíduos, posto que é na qualidade dessas interações, bem como na perspectiva de conjugação da diversidade que ela abre, que reside o fator-chave para o sucesso da articulação indivíduo-organização – para uma verdadeira “teoria da cooperação”: Ligar a noção de fator humano à noção de cooperação é indicar que a dimensão que sobredetermina o fator humano é de ordem sociológica, estando os outros dois componentes, fisiológico e psicológico, em posição secundária. ... A cooperação ... constitui ... o nível humano de integração das diferenças entre as pessoas, e funciona precisamente como articulação dos talentos específicos de cada sujeito. ... a cooperação é, no seu conjunto, muito mal-estudada. Avaliar o fator humano é avaliar a qualidade ... dos coletivos de trabalho ... Mas as análises convencionais do fator humano ... permanecem na análise das condutas individuais, o que é insuficiente.523 Teoria do conhecimento A desconsideração da individualidade e subjetividade humanas, desde a Escola das Relações Humanas reduzidas a meios subordinados a fins, que é característica do paradigma dominante em Teoria das Organizações, acarreta a mais crítica dentre suas inconsistências: a ausência, em plena “sociedade do conhecimento”, de uma compreensão adequada do que sejam o conhecimento e seu processo gerador, a cognição. É simplesmente suposto que a realidade seja a mesma para todos, logo o conhecimento que reside dentro das pessoas se dá pela captação e processamento de informações oriundas da realidade, e na elaboração de uma representação desta. É assim possível falar-se em um “bom” ou “mau” conhecimento, de acordo com seu grau de fidedignidade para com a realidade, bem como em um conhecimento “correto” ou “válido”, resultante de processos de confrontação (melhor, seleção natural) entre conhecimentos concorrentes – ainda uma vez, a one best way. 523 Ibid., pp. 93-94. 234 Como vimos, o aumento da complexidade nos mercados converge para uma crescente necessidade de tomada de micro-decisões pelos trabalhadores, para junto das desde sempre legitimadas macro- e meso-decisões.524 A chave para a compreensão dessa transição reside no enorme aumento havido no valor do trabalho sobre a informação, relativamente à variação do valor do trabalho sobre a matéria, ou sobre a energia525 (foi esta, evidentemente, a principal razão para a adoção em larga escala das tecnologias de informação nas organizações). Estas tecnologias, como já se pode constatar, mostram-se insuficientes para conter a expansão das micro-complexidades cotidianas, com o que adveio uma mudança de discurso, em que se destaca a transição da chamada “sociedade da informação” para uma “sociedade do conhecimento”. Na prática, porém, a resposta oferecida pelo novo campo denominado gestão do conhecimento foi, mais uma vez, racionalização, mera correção de rumos no emprego das tecnologias de informação com o intento de organizar o conhecimento (compilar, tratar, classificar, padronizar, armazenar, recuperar, disponibilizar, disseminar etc.) com vistas a controlá-lo.526 De um modo geral, considera-se que a produção de conhecimento compreenda um processo de transformação da informação (ou seja, o conhecimento como um estágio “mais avançado” ou “enriquecido” da informação), o que se encontra expresso pelo emprego de termos como “conhecimento explícito” (formalizado, logo tomado por validado) e “conhecimento tácito” (não-formalizado, logo ainda não-validado). Já pudemos nos referir aqui aos processos históricos que levaram ao advento do conceito abstrato de informação (na primeira metade do século XX), à sua consolidação (com Shannon: informação como grandeza mensurável), e à sua ulterior reificação (a reboque da ubiqüidade do computador), com a informação tornada componente mesmo da realidade.527 Acabou “natural” que conhecimento – um tema milenar da humanidade – viesse a ser compreendido nos termos empiricamente manipuláveis da informação. 524 Remeter à p. 25. 525 Cf. VALLE, 2005: 98. Ver também MARQUES, Ivan da C. O Brasil e a Abertura dos Mercados: O Trabalho em Questão. Rio de Janeiro: Contraponto, 2002. 526 Cf. BAUER, 2002: 34. 527 Remeter às pp. 30, 35, 109-110, 135-136. Ver também ROSENBERG, Victor. “The Scientific Premises of Information Science”. Journal of the American Society for Information Science and Technology, vol. 25, n. 4, pp. 263-269, 1974. 235 Nem toda informação seria conhecimento, boa parte é tão somente dados brutos (como séries de números); mas livros, documentos, bases de dados em computadores puderam ser vistos como “conhecimento formatado” – como informação.528 A partir da década de 60, a empreitada da inteligência artificial 529 despontou como o sonho de computação de todo e qualquer conhecimento; aos poucos, no entanto, se foi dando conta da existência de um tipo peculiar de conhecimento que se mostrava “resistente” à formalização, por se encontrar introjetado no indivíduo e imbricado à sua trajetória pessoal de vivências, crenças e sentimentos. Ainda nessa mesma década de 60 (com Polanyi),530 este passa a ser considerado conhecimento tácito;531 por contraposição, todo o restante, todo o conhecimento passível de formalização passa a ser considerado conhecimento explícito. Entrementes, a inteligência artificial assumia a roupagem dos sistemas especialistas,532 concebidos para reter o conhecimento de profissionais especialistas na solução de problemas complexos e, tal como eles, resolvendo-os melhor à medida que mais problemas são resolvidos, ou seja, aprendendo – “robôs de conhecimento tácito”; malgrado as fortunas investidas, tais iniciativas resultaram quase sempre em frustração.533 Ainda hoje, sob o guarda-chuva genérico de “gestão do conhecimento”, prosseguem os esforços para formalização dos conhecimentos vistos como tácitos, em mais uma racionalização fundada em uma compreensão particular (histórica), tida como única, quanto ao que seja o fenômeno da cognição. Ora, como vimos, nas ciências cognitivas contemporâneas a cognição passa a ser vista como um fenômeno emergente ao invés de pré-dado que, a um só tempo, é tanto determinado pela dinâmica das interações entre os neurônios em uma rede complexa como a determina.534 Esta perspectiva para o clássico problema mente-corpo caminha 528 529 530 Cf. BAUER, 2002: 33. Mencionada às pp. 60-61. Michael Polanyi (Inglaterra; n. Mihály Polányi, Hungria (Áustria-Hungria); 1891-1976). 531 Polanyi concebe as bases para uma compreensão do conhecimento de natureza tácita em Personal Knowledge: Towards a Post-critical Philosophy. Chicago (Illinois): University of Chicago Press, 1958; e ele formaliza esse conceito em The Tacit Dimension. Garden City (Nova Iorque): Doubleday, 1966. 532 533 Mencionados à p. 62. Ver DUTTA, op. cit. (nota 201, à p. 62), 1997; e McDERMOTT, loc. cit., 1999. 534 Para uma compreensão mais aprofundada da perspectiva fenomenológica contemporânea nas ciências cognitivas quanto ao fenômeno da cognição, ver ROY et alii (1999). 236 para superar tanto os reducionismos que subordinam o todo às partes quanto os substancialismos que subordinam as partes ao todo: das partes para o todo e vice-versa não caberia qualquer causalidade unidirecional, só o que pode haver é alguma “causalidade de acoplamento”. Assim, o que se entende por sujeito não pode mais ser compreendido como pré-dado, mas antes corresponde às propriedades (entendidas como subjetividade) manifestadas por uma rede complexa (um coletivo) – em outras palavras, o sujeito seria antes um processo que um produto. Estamos cientes que, quando Nonaka propõe seu conhecido modelo dual tácito-explícito de gestão do conhecimento,535 sua intenção é comunicar ao Ocidente – onde o conhecimento explícito tende a ser visto como patrimônio e o tácito como estorvo – o valor que no Japão se confere a este último. Não há dúvida quanto a que alguma identidade para com a tradição (no caso, orientada ao explícito) a que se fala favorece, em muito, a receptividade de um discurso expressivo de uma outra tradição; com efeito, Nonaka é hoje o mais influente nome da escola japonesa de gestão nos meios ocidentais. Entendemos, porém, que é chegado o momento de sepultar de vez a idéia de que o conhecimento possa ser dotado de uma natureza explícita (objetiva). Mais uma vez lastreados na teoria da autopoiesis, afirmamos536 que tudo a que se chama conhecimento explícito (livros, documentos, bases de dados em computadores etc.) é tão somente informação (ou dados) – é “ambiente” para o conhecedor. Pode-se, nesse ambiente, distinguir o que são “dados” do que é “informação” por meio de algum critério de relevância – desde que se trate de critério atinente à individualidade singular do conhecedor, que chamará “informação” aos elementos de seu ambiente que sejam, para ele, portadores de significado. 535 Em que a geração de conhecimento explícito a partir do tácito se dá por um processo de externalização; de tácito a partir do explícito, por um processo de internalização; de tácito a partir do tácito, socialização; e de explícito a partir do explícito, combinação. Ver “A Dynamic Theory of Organizational Knowledge Creation”. Organization Science, vol. 5, n. 1, pp. 14-37, 1994; bem como obras posteriores. 536 Cf. BAUER, 2002. 237 Já conhecimento tácito é, tão somente, conhecimento. Afirmamos não haver conhecimento que não seja “tácito”, com o que esta adjetivação se torna pleonasmo, e portanto dispensável.537 De modo mais detalhado: de acordo com a visão funcionalista tradicional, pode-se falar na extração de conhecimento “de dentro para fora” das pessoas (por exemplo, a preparação de um livro, ou de uma mensagem de correio eletrônico) e na absorção de conhecimento “de fora para dentro” (por exemplo, a leitura desse livro ou dessa mensagem). Porém, de acordo com a visão fenomenológica em ascensão que esposamos, o conhecimento não é um conteúdo universal mas particular. A realidade, ainda que seja única, não tem como ser a mesma para todos. A cognição é um processo vital de construção de uma realidade individualizada, ainda que socialmente compatível com as demais. Assim, o conhecimento resultante da leitura de um livro ou de uma mensagem de correio eletrônico por diferentes pessoas não tem como ser o mesmo, nem tampouco algo que convirja, por confrontação, a um conhecimento “fidedigno” à realidade. E intermediários – a linguagem natural, livros, ou tecnologias do tipo CSCW (computer supported collaborative work) – são mediadores semânticos entre pessoas para estimulação de seus processos vitais cognitivos, mas não são “portadores” dos conhecimentos delas.538 Todo conhecimento reside dentro das pessoas, todo conhecimento é do tipo a que se costumou denominar “tácito”. Portanto, qualquer gestão do conhecimento é, inerentemente, uma gestão da complexidade. Há assim tanto sentido na expressão “gestão do conhecimento” quanto em se falar em uma gestão da incerteza ou da desordem (uma “gestão” daquilo que se desconhece – uma gestão da diversidade humana). 537 A partir da década de 90, outros autores (alguns também referenciados na teoria da autopoiesis) têm chegado a conclusões correlatas com nuances próprias; ver, por exemplo, von KROGH, Georg, ROOS, Johan. Organizational Epistemology. Houndmills (Reino Unido): MacMillan, 1995. A título de outra referência para compreensão de “conhecimento” e “informação” com base na teoria da autopoiesis, ver ZELENY, Milan. “Knowledge versus Information”. In: ZELENY (ed.). The IEBM Handbook of Information Technology in Business. London: International Thomson Business Press, pp. 162-168, 2000. 538 Cf. BAUER, 2002: 35. 238 No que toca à Teoria das Organizações, auferir proveito dos potenciais presentes na diversidade humana significa buscar não mais a redução, mas o aproveitamento da complexidade interna às organizações. Trata-se de transcender um paradoxo até então despercebido: a complexidade externa (ambiente de mercado) vem cada vez mais sendo tomada como irredutível, e é portanto aceita (ainda que a contragosto); já a complexidade interna (diversidade humana) ainda é vista como confinável a limites, o que na prática vem sendo levado a cabo precisamente... às expensas do potencial para um acompanhamento da complexidade externa, ou seja, para uma co-evolução com o ambiente. A todo momento, surgem fatos novos no ambiente – em que o novo é, por definição, incerto (leia-se desordem). Pela perspectiva tradicional, busca-se uma resolução dessa incerteza por sua confrontação com os referenciais preexistentes, em um processo cumulativo de identificação de regularidades, e orientado à solução de problemas. Há (crescentes) riscos: problemas novos poderão ser considerados por perspectivas já cristalizadas, idéias não diretamente associadas ao negócio poderão ser descartadas, clientes que pedem outros tipos de serviços que não os oferecidos poderão ser ignorados, tecnologias não identificadas com as práticas correntes da empresa poderão não despertar interesse etc. Já por uma perspectiva em que a diversidade seja vista como recurso, é aceito que as informações oriundas do ambiente (novidade) sejam interpretadas de forma diferente por diferentes pessoas, e que isso acarrete ambigüidade, contradição e conflito (desordem), o que desencadeia um processo potencialmente construtivo que propicia uma definição de problemas. De outro modo: tornam-se aceitas e legitimadas a ambigüidade e contradição inerentes à condição humana, e o conflito (que comporta aspectos tanto destrutivos como construtivos) inerente à condição social. Por meio dos mediadores semânticos disponíveis – o de maior qualidade a linguagem natural no contato face-a-face, o de maior alcance as tecnologias CSCW (que requerem proficiência na primeira para seu 239 bom aproveitamento o que, apesar de óbvio, está longe de ser a norma)539 – os processos vitais de cognição das pessoas são mutuamente estimulados de um modo recorrente (interpretações das interpretações), o que por sua vez faz emergir significados compartilhados na linguagem. Emergência por meio das interações entre elementos em rede com aproveitamento de desordens: auto-organização. Um senso estratégico comum é também algo que pode ou ser induzido pelos dirigentes com o concurso de especialistas ou emergir como construção e renovação coletivas de significados compartilhados. O caminho a ser cursado advém da perspectiva por que são compreendidas noções como identidade, cultura e propósito organizacionais, e ambiente de mercado (clientes, concorrentes, tecnologias, legislação, meio ambiente etc.). Uma perspectiva em que se tome o conhecimento da realidade por objetivo conduz: à compreensão de uma natureza descritiva para o conhecimento; à sua padronização (one best way) como o ideal a ser perseguido (daí a ênfase nas tecnologias de informação); por extensão, a uma busca por padronização também para os modos de ação; à organização como um somatório dos desempenhos individuais; ao papel dos gerentes como provedores de organização e controle para o conhecimento. Em suma, trata-se da redução da complexidade interna. Já uma perspectiva em que se considere a cognição da realidade como processo vital autônomo, e o fenômeno social como a emergência de significados compartilhados por meio de interações recorrentes na linguagem, permite compreender a natureza construtiva do conhecimento,540 a organização como dinâmica social, e o papel dos gerentes como fomentadores de um padrão de interação social o mais propício possível – trata-se agora do aproveitamento da complexidade interna. Sem dúvida que uma tal transição não é tarefa simples. A nosso ver, predomina nas sociedades ocidentais uma mentalidade linear causa-efeito, que incute nas pessoas a crença de que todo problema tem sua causa específica e, conseqüentemente, admite apenas uma explicação – e uma solução.541 Assim, primeiramente os pais, depois os professores, acabam sucessivamente por adestrar as novas gerações a reconhecer os “dois lados” de toda questão – o “certo” e o “errado” (tudo o mais). Como decorrência, 539 Ver, por exemplo, DAVENPORT, Thomas H. “Saving IT’s Soul: Human-centered Information Management”. Harvard Business Review, vol. 72, n. 2, pp. 119-131, 1994. 540 541 Ver também ROY, Bernard. Méthodologie Multicritère d’Aide à la Décision. Paris: Economica, 1985. Para este parágrafo e os quatro seguintes, cf. BAUER, 2002: 38-39, SENGE, 1990: 281-284. 240 as pessoas tendem a valorizar o convívio apenas com quem pensa igual ou parecido a elas (expresso em termos autopoiéticos, toda identidade tende a preservar a si própria frente ao novo; assim tanto mais será, se essa identidade se constitui precisamente na recusa ao divergente). Em que medida, no interior das organizações, as pessoas costumam expor com franqueza e abertura o que pensam? Em que medida costumam, ao ouvir idéias alheias, sentir-se à vontade para comentar, criticar, propor alterações? De outro modo: até que ponto o conflito é bem-vindo (ou sequer aceito) no interior das organizações? Em que medida as pessoas estão dispostas a valorizar o convívio com quem pensa diferente delas? É por recear o conflito que muitas pessoas evitam emitir suas opiniões de forma plena: elas medem suas palavras sondando o contexto em que se encontram, arriscam-se aos poucos na expressão de suas opiniões, recuam se for o caso. Elas sabem que os outros também evitam a exposição de suas idéias caso estas possam vir a ser confrontadas, pois temem que isso constitua risco para sua imagem profissional perante o grupo. Pessoas que crêem que toda questão comporta uma “resposta certa” tenderão a delegar a outros a responsabilidade (e o risco) de estabelecer uma tal resposta, seja o chefe (autoridade formal), o especialista (autoridade técnica) ou algum colega mais antigo (autoridade conferida pela experiência). Elas até podem intuir que detêm a “resposta certa” mas, se a considerarem em posição frágil para competir com as demais, tenderão a recusar o risco. Questões de natureza complexa admitem não apenas uma, mas várias soluções possíveis. Inexiste a “resposta certa”, somente a resposta melhor, que tanto melhor será quanto emirja em meio ao potencial construtivo do conflito de idéias, que principia nas diferentes percepções e intuições contidas nas diferentes respostas das pessoas, que por sua vez advêm de suas diferentes interpretações da realidade. Isto, que nas organizações costuma ser visto como daninho, precisa passar a ser visto como riqueza potencial. A compreensão de que ninguém detém a “resposta certa” pode se mostrar libertadora, ao eximir as pessoas de precisar sustentar suas opiniões contra as demais; ao ouvir uma crítica ao que disseram, elas podem se permitir cogitar algo como: “que bom, alguém 241 está me dando uma oportunidade para refletir sobre as limitações das minhas idéias, e aperfeiçoá-las”. É uma chance de aprendizagem que, em sendo recíproca, configura um diálogo – qualidade para as interações humanas, e para o processo de auto-organização que são as organizações. Com efeito, as organizações são instâncias auto-organizantes por natureza, de resultados tão mais ricos quanto mais vier a ser facilitada essa sua auto-organização por meio das interações, e tão mais pobres quanto mais for perturbado esse processo. Ao perseguir a one best way, os modelos administrativos clássicos incorrem na disposição de limites (quantitativos e qualitativos) às interações humanas, o que restringe a criatividade emergente do sistema, e tende a retê-lo em regiões de rigidez. O episódio da reengenharia542 é exemplar: concebida precisamente para superação da inércia e da rigidez, as empresas que a adotaram fracassaram em sua grande maioria, devido à ruptura em larga escala dos laços de interrelacionamentos preexistentes (formais e sobretudo informais), e do conseqüente depauperamento de sua capacidade de autoorganização.543 É uma compreensão do conhecimento como individualizado e da interpretação recursiva na linguagem como o caminho para seu aperfeiçoamento o que permite transcender a costumeira atitude para com a delegação para tomada de microdecisões em tempo real, de um “mal necessário” para uma agilidade imprescindível. Se a criação de significados compartilhados concorre para a qualidade das microdecisões, sua renovação conduz a uma avaliação contínua dos cursos de ação que propicia uma correção de rumos também em tempo real. A organização é assim dotada de uma capacidade de ajuste dinâmico,544 uma reordenação por aprendizagem em que mesmo os erros cometidos são também insumos ao conhecimento. Quanto às interações entre empresas, vale citar que não é de outro modo que operam os (verdadeiros) clusters de pequenos e médios produtores sob relações simétricas,545 em 542 543 544 545 Mencionado à p. 24. Cf. KELLY, ALLISON, 1998: 7-8. Cf. VALLE, 2005: 106. Remeter à p. 23. 242 que a vantagem competitiva do conjunto esteia-se na perseguição da inovação e em sua rápida disseminação (numa superação da antiga dicotomia entre flexibilidade e escala).546 Há, em suma, uma bifurcação dos caminhos a cursar: o prosseguimento na compreensão da racionalidade local e parcial apontada por Simon547 como uma limitação a ser contornada, ou sua transcendência, para um recurso a ser explorado. Não se trata de reinventar a natureza das organizações; muito pelo contrário, trata-se de ir ao encontro dessa mesma natureza,548 há tanto tempo desconsiderada. Não é necessária a introdução da “Complexidade” nas empresas por mais uma panacéia de consultores, mas sim sua desobstrução (pela supressão de restrições à rica complexidade da sociabilidade humana) e seu avanço (pelo fomento a essa sociabilidade). Em outras palavras: práticas de gestão compatíveis com a natureza precípua das organizações somente podem advir de uma adequada compreensão desta natureza. Trata-se de edificar uma verdadeira Teoria das Organizações na acepção da expressão, com o que muitas das que hoje são consideradas “teorias organizacionais” deve passar à condição de meras técnicas, úteis sob circunstâncias particulares.549 Ou ainda, trata-se de, a partir de uma perspectiva fenomenológica, prover um arcabouço abrangente que incorpore, na qualidade de um caso particular, o paradigma (funcionalista) até aqui predominante, de aportes indicados a contextos específicos. 546 547 Cf. ibid., p. 131. Remeter à p. 14. 548 Referimo-nos à natureza auto-organizante das organizações. Partimos do princípio de que as organizações são sistemas complexos – ou seja, ainda que possamos supor que elas sejam sistemas regidos por leis mecanicistas (em termos ontológicos), inexistem meios que permitam qualquer redução de sua fenomenologia a um tal mecanicismo. Tudo o podemos é construir perspectivas quanto ao seu operar que provejam inteligibilidade a esta sua fenomenologia, e deste modo forneçam esteio à compreensão em torno dela por meio do entendimento mútuo na linguagem. Com base nesse raciocínio, e em tudo o mais exposto até aqui, afirmamos que as organizações são sistemas auto-organizantes por natureza, e propomos a inteligibilidade desse seu operar auto-organizante nos termos do mecanismo gerativo aqui apresentado. 549 Cf. LEWIN, REGINE, 2000: 18. 243 Teoria da natureza dos conhecimentos As fundações da organização na Era Moderna – o conhecimento técnico, o agir estratégico, e a racionalização pelo tripé rotinas-tecnologia-contratos550 – eficazes por décadas para o desenvolvimento e a geração de riqueza sob condições de baixa complexidade, permanecem úteis. O que é mister reconhecer é sua crescente insuficiência sob circunstâncias de complexidade elevada. Consideremos primeiramente os conhecimentos de cunho técnico (privilegiados pelo agir de cunho instrumental).551 Segundo Jung,552 o ser humano é dotado de quatro distintos modos (para ele, “funções”) de conhecimento da realidade: dois a que denominou racionais, porque predominantemente referenciados em seu interior – o pensamento (reflexão lógica) e o sentimento (apreciação subjetiva) – e dois irracionais, porque predominantemente referenciados em seu exterior – a sensação (percepção por meio dos sentidos) e a intuição (percepção por meio do inconsciente). Propôs ele um arranjo diagramático em dois eixos, racional e irracional, posto que a ênfase em uma dada função arrefece a função oposta: a reflexão a respeito de algo é perturbada por sua valoração subjetiva, e vice-versa; a percepção intuitiva das possibilidades ocultas é mitigada pela atenção conferida à experiência sensorial, e vice-versa. 550 551 552 Remeter à p. 24. Mencionado à p. 11. JUNG, 1971 (1921). Carl Gustav Jung (Suíça; 1875-1961). 244 Na elaboração de sua tipologia para a psique humana, Jung aventou combinações entre uma função principal em um dos eixos com uma função auxiliar no outro eixo.553 E Weil 554 referenciou-se nessa concepção diagramática de Jung para arranjar uma tipologia do conhecimento humano (Figura 7):555 intuição pensamento Filosofia Tradições de sabedoria Ciência e Técnica Arte sentimento sensação Figura 7: Distintas naturezas de conhecimento, combinações entre modos primário e auxiliar de conhecer a realidade; adaptado de WEIL (1993: 17 e 19). Assim, a reflexão abstrata quanto aos conteúdos apreendidos pela experiência sensorial resulta na ciência e na técnica; o conhecimento a que chegamos através da arte situa-se no terreno da apreciação subjetiva da experiência sensível; a filosofia brota da reflexão especulativa quanto a noções intuídas; finalmente, as tradições de sabedoria advêm da valoração de conteúdos intuídos, abarcando não apenas os mitos, ritos e religiões mas todo o legado das práticas éticas e morais da humanidade e de suas normas de convívio social, legado este oralmente transmitido através dos séculos – ainda hoje, a passagem possível de valores de uma geração para outra se dá por meio de conversas; qualquer crise de valores é antes de tudo uma crise de entendimento entre as pessoas. O mérito desta diagramação é indicar distinções de natureza entre os diferentes campos de conhecimento, ainda que ela não permita esgotar todas as possibilidades (por exemplo, do ponto de vista do artista em seu momento de criação a experiência se 553 “Para todos os tipos [psicológicos humanos] encontrados na prática, pode-se ter por certo que, por detrás da função primária consciente, existe uma função auxiliar relativamente inconsciente, que é de todo distinta da natureza da função primária. As combinações resultantes exibem a imagem familiar de, por exemplo, o pensamento prático aliado à sensação, o pensamento especulativo avançando pela intuição, a intuição artística selecionando e apresentando suas imagens com ajuda de valores sentidos, a intuição filosófica sistematizando sua visão em pensamento inteligível por meio de um intelecto poderoso, e assim por diante” (JUNG, 1971 (1921): 406). 554 555 Pierre Gilles Weil (Brasil; n. França; 1924–). Cf. BAUER, 1999: 130-131. 245 desloca do sensorial para o intuitivo, o teólogo procede à reflexão quanto à tradição etc.). Se ao longo dos últimos cem anos a Administração, tanto como teoria quanto como prática, tomou por legítimos apenas aqueles conhecimentos de cunho técnico e científico, cabe ressaltar a descontinuidade que este período configura em relação a um passado em que sabedoria era fator preponderante para o sucesso daqueles em posições de mando, ao passo que os trabalhadores eram herdeiros de uma rica tradição artesanal. Ainda hoje, os conhecimentos de natureza essencialmente técnica que compõem os cursos de MBA são considerados condição necessária à designação para altos cargos executivos; seriam, porém, suficientes? O que distingue um executivo a ponto de tornálo uma legenda é sua fé (“certeza intuitiva”, digamos) nas decisões que toma e nas ações que empreende. Foi um vislumbre intuitivo o que Ford teve diante de carcaças de bois penduradas em um trilho no teto de um abatedouro de Chicago, e que o levou a conceber a primeira linha de montagem; foi também pela ausência de um diploma de graduação que o caráter intuitivo de Bill Gates556 atingiu seu enorme destaque. Os exemplos a respeito de outras naturezas de conhecimento que não a técnica não se restringem a indivíduos: a implantação no Ocidente dos modelos de gestão japoneses deu-se sempre de forma limitada (correspondendo justamente à parcela dos conhecimentos técnicos); os aspectos culturais desses modelos (como a valorização da busca do consenso e do trabalho em equipe), que são derivados das tradições de sabedoria do país, decorrem da primazia do interesse coletivo por sua vez lastreada na legitimação dos distintos interesses particulares, e demandam por exemplo demonstrações públicas de respeito aos superiores hierárquicos e aos mais velhos, e mesmo rituais dentro das empresas – coisas inimagináveis nas empresas ocidentais. 556 William Henry Gates III (EUA; 1951–). 246 Uma eloqüente ilustração do valor do conhecimento em Administração, através dos tempos, como uma complementaridade entre sabedoria, arte, filosofia e técnica, são os escritos do século IV AC de Xenofonte557 a respeito de Sócrates,558 de quem fora discípulo: Nicomaquides – Você quer dizer, Sócrates, que é apropriado a um mesmo homem se encarregar nobremente de um coral e ser um general? Sócrates – O que eu, de minha parte, digo é que, o quer que seja que alguém governe, se ele souber o que é necessário e estiver apto a providenciá-lo, será um bom dirigente, quer seja um coral ou um lar ou uma cidade ou um exército aquilo que ele comande. – Por Zeus, Sócrates, eu jamais imaginei que ouviria de você que bons administradores domésticos podem ser bons generais. – Então venha, vamos recapitular as tarefas de cada um deles ... Não é tarefa de ambos preparar os comandados para ouvi-los com deferência e para obedecê-los? ... ordenar àqueles que estão aptos a se encarregar de cada coisa a fazê-la? ... punir os maus, e honrar os bons? ... manter seus subordinados bem dispostos? ... ganhar a confiança de aliados e daqueles que o irão ajudar? ... estar pronto a guardar sua propriedade? ... ser atencioso e devotado ao trabalho no que tange às suas próprias tarefas? ... [Portanto,] Nicomaquides, não desprezes homens habilidosos na administração doméstica. Porque encarregar-se de negócios privados difere apenas em termos de magnitude do encarregar-se de negócios públicos. Dentre outras significativas similaridades, a maior de todas é que nenhum dos dois se dá sem seres humanos, tampouco as ações são levadas a cabo nos negócios privados por intermédio de certos homens e nos negócios públicos por intermédio de outros. Porque aqueles que se encarregam dos negócios públicos não lidam com seres humanos outros do que aqueles com quem lidam nos negócios privados, ao cuidar de seus assuntos domésticos. E aqueles que compreendem como lidar com estes seres humanos saem-se bem tanto nos negócios privados quanto nos públicos; aqueles que não compreendem, deixam a desejar em ambos.559 Teoria da (inter)ação Consideremos agora o agir de cunho estratégico.560 Uma superação das limitações do paradigma dominante em Teoria das Organizações demanda uma renovação nos modos de co-determinação entre razão e ação – demanda uma renovada racionalização.561 A construção de significados compartilhados pela interpretação recursiva na linguagem requer que co-exista, com o agir estratégico, um agir cuja referência última sejam 557 558 559 560 561 Xenofonte de Atenas (431-355 AC). Sócrates de Atenas (470-399 AC). XENOFONTE, 1994: 78-80. Remeter à p. 11. Remeter à p. 10. 247 normas de convívio social, a que Habermas denominou agir comunicativo – um agir orientado ao entendimento mútuo.562 Habermas é o herdeiro da tradição em Sociologia da chamada Escola de Frankfurt,563 que atribui o depauperamento da individualidade nas sociedades contemporâneas à crescente autonomia dos agires estratégico e instrumental em detrimento das normas e dos valores sociais, o que deságua na massificação, na manipulação das consciências, na degenerescência cultural e na repressão das energias psíquicas naturais das pessoas.564 Marcuse,565 por exemplo, reporta tamanha alienação do homem como uma espécie de “entrave cognitivo”, que faz com que uma realidade exterior opressiva seja percebida como criação autônoma de sua própria consciência.566 Em um distanciamento em relação a seus predecessores, contudo, Habermas distingue arenas de atuação próprias ao agir estratégico e ao agir comunicativo, e atribui tais patologias não mais à existência em si do agir estratégico – para ele, uma decorrência fatal da evolução das sociedades – mas ao seu transbordamento e penetração em espaços de naturezas estranhas à sua.567 Habermas compreende os sucessivos estágios no percurso desde as sociedades primitivas (em que a coesão social advém de mitos e ritos, e as identidades pessoais não passam de “imagens no espelho” da identidade coletiva) até as sociedades contemporâneas como o avanço da capacidade de entendimento mútuo por meio da linguagem (que é o que propicia uma diferenciação das individualidades em compasso com a integração social). Desenvolve-se paulatinamente uma base contextual de significados implícitos compartilhados (o que Habermas denomina mundo-da-vida), que esteia os esforços interpretativos das pessoas em busca de entendimento mútuo a cada novo dissenso. 562 Ver HABERMAS, op. cit. (nota 29, p. 11), 1981. 563 Formalmente o Instituto de Pesquisas Sociais de Frankfurt (fundado em 1923), de orientação marxista nãoortodoxa e voltado às possibilidades de emancipação do homem, em uma retomada da obra do jovem Marx (anterior a 1845; ver, por exemplo, os chamados “Manuscritos Econômicos e Filosóficos”, citados à nota 3, p. 1), antes filosófica que sociológica ou política, e orientada à natureza humana. 564 565 566 567 Ver, por exemplo, MARCUSE, Herbert. One-Dimentional Man. Boston (Massachusetts): Beacon, 1964. Herbert Marcuse (EUA; n. Alemanha; 1898-1979). Ver Eros and Civilization: A Philosophical Inquiry into Freud. Boston (Massachusetts): Beacon, 1955. Cf. VALLE, 1990. 248 As crescentes complexidades econômicas e administrativas das sociedades, no entanto, exacerbam os riscos de dissenso e pressionam por racionalização, com o que o recurso a outros meios para coordenação das ações que não a linguagem (por exemplo, o exercício do poder) acaba por apresentar-se como mais funcional, o que vem legitimar o agir estratégico naqueles espaços voltados ao desenvolvimento material das sociedades, como a fábrica, a corporação, o comércio e o mercado. Já os espaços dedicados ao desenvolvimento simbólico das sociedades (ou seja, ao mundo-da-vida: a transmissão e renovação do saber cultural, a integração social pelo estabelecimento de solidariedades, e a formação e socialização das individualidades pela educação) como a família, a escola, a política, a igreja, o clube, a praça e a rua, não têm como passar a ser regidos pelo agir estratégico senão ao preço das deformações patológicas denunciadas pelos frankfurtianos. A esse processo de invasão pelo agir estratégico dos espaços em que a coordenação das ações pelo entendimento mútuo na linguagem é insubstituível, Habermas denomina colonização do mundo-da-vida. Ora, o que se constata é justamente a necessidade por alguma contra-colonização568 – uma expansão do agir comunicativo nos espaços próprios ao mundo da produção. Mesmo nestes, a adoção do agir estratégico como uma alternativa aparentemente mais funcional (e certamente simplificadora) que o entendimento mútuo na linguagem termina por mostrar-se limitada. Recorreram os homens a ela por medo e insegurança diante da complexidade (governados por tais temores, é quase certo que boa parte deles continue a proceder assim indefinidamente); abraçar a complexidade requer resistir à tentação de atirar-se ao caminho aparentemente mais curto. Afirmamos aqui que, para a promoção de um agir orientado a valores,569 fazem-se necessárias naturezas de conhecimento outras que não a de base técnico-científica, em 568 Cf. ibid. O conceito de contra-colonização é a principal tese de VALLE, op. cit. (nota 65, p. 26), 1989. 569 De acordo com a terminologia formal em Sociologia após Weber, entende-se por agir orientado a valores o agir balizado pela devoção (ou adoração, ou temor) a Deus (ou a alguma entidade mítica); ou seja, esta expressão referese aos modos de ação predominantes anteriormente ao advento da Era Moderna: um agir sem dúvida provedor de solidariedades, porém ao preço da sublimação das individualidades em nome da coletividade, nos termos ditados pela fé. Assim, para Habermas, um crescimento dos espaços do agir orientado a valores (no sentido weberiano), na atual etapa da História (como fato ocorre, pelo recrudescimento dos fundamentalismos), corresponderia a uma involução civilizatória. Portanto, o agir de cunho comunicativo identificado por Habermas (que impulsiona a individualidade ao passo que preserva a coesão social) seria melhor referenciado (em respeito à terminologia sociológica consagrada) pela expressão “agir orientado a normas de convívio social”. Entendemos todavia que – se se enseja convidar à reflexão um público maior que os afeitos à Sociologia – pode-se nos tempos contemporâneos falar em valores precisamente como os referenciais para tais normas de convívio social, ou seja, como os norteadores para um agir 249 complementaridade a esta: as tradições de sabedoria, que retêm o legado das formas de integração social ao longo da evolução humana, e dos valores a elas associados; a arte, um caminho por excelência para a transmissão de valores; e a filosofia, a reflexão sobre valores (Figura 7, p. 245). Malgrado desconsiderados, tais conhecimentos mantêm preservado seu potencial para forja dos valores sociais, por exemplo retido na mitologia greco-romana ou nas peças de Shakespeare570 – para ficarmos apenas em exemplos ocidentais. De modo oportuno, Chomsky571 assevera que o aprendizado quanto a tudo que se refira à vida e à personalidade humanas desenvolve-se mais proficuamente por meio de narrativas romanceadas que pelos caminhos da Ciência: Pode-se imaginar que, ao investigar a história da Ciência, e pela experimentação com sujeitos humanos, nós poderíamos vir a aprender algo a respeito da natureza da capacidade humana de produção de ciência. Se assim o é, nós poderíamos vir também a aprender algo a respeito das classes de problemas que podemos e que não podemos abordar pelo recurso à capacidade de proução de ciência, os métodos científicos. Não há, incidentalmente, nenhuma razão para supor que todos os problemas com que nos deparamos são melhor abordados nestes termos. Assim é perfeitamente possível – forçosamente provável, poder-se-ia pensar – que nós sempre iremos aprender mais a respeito da vida e da personalidade humanas a partir de romances do que a partir da psicologia científica. A capacidade de produção de ciência é apenas uma faceta de nossa dotação mental. Nós a usamos onde podemos, mas não estamos restritos a ela, felizmente.572 Teoria do Brasil Uma última crítica à mentalidade da one best way: as pretensas universalidades para o conhecimento de natureza técnica e para o agir de orientação estratégica vêm obscurecer o fato de que mesmo o conhecimento técnico e o agir estratégico (tanto quanto os comunicativo. Uma tal reabilitação do termo valor, agora não mais necessariamente vinculado a conotações dogmáticas relativas à religião, permite expressar apropriadamente aquilo que possa motivar os indivíduos a (inter)agir comunicativamente entre si – precisamente porque para Habermas o agir comunicativo é racionalmente motivado, enquanto que para nós ele somente pode decorrer de uma integralidade do ser humano, que congregue em complementaridade todas as dimensões de sua cognição (inclusive as dispostas no eixo na vertical da Figura 7 à p. 245, chamado “irracional” por Jung). Feitas assim as devidas ressalvas quanto a que não utilizamos aqui a expressão “agir orientado a valores” no sentido eminentemente histórico e de finalidade didática tal como definido por Weber, insistimos no emprego dessa expressão como equivalente do agir comunicativo habermasiano. 570 571 572 William Shakespeare (Inglaterra; 1564-1616). Avram Noam Chomsky (EUA; 1928–). CHOMSKY, 1988: 158-159. 250 demais) são dotados de uma riqueza de nuances própria a cada tradição específica (o que se encontra documentado, por exemplo, nos trabalhos de Hofstede).573 Já tivemos oportunidade de ilustrar, como contrapontos à tradição anglo-saxã, aspectos que são próprios ao Extremo Oriente e à Europa continental;574 devemos agora abordar o Brasil. Em tempos recentes, as perspectivas para o desenvolvimento de nosso país têm estado restringidas por conta de uma adoção acrítica de referenciais “universais” para balizadores de nossas políticas industrial e regulatória, em uma abdicação voluntária da perspectiva de vir a pautá-las por nossas especificidades culturais e históricas (que sequer reconhecidas são – ou, quando o são, é para serem rotuladas como empecilhos). 573 Geert Hendrik Hofstede (Holanda; 1928–); ver Culture’s Consequences: International Differences in Workrelated Values. Beverly Hills (Califórnia): Sage, 1980; “Dimensions of National Culture”. In: RATH, R., ASTHANA, H. S., SINHA, D., SINHA, J. B. P. (eds.). Diversity and Unity in Cross-Cultural Psychology. Lisse (Holanda): Swets and Zeitlinger, pp. 173-187, 1982; HOFSTEDE, G. H., HOFSTEDE, Gert Jan. Cultures and Organizations: Software of the Mind – Intercultural Cooperation and Its Importance for Survival. New York: McGraw-Hill, 1997; e Culture’s Consequences: Comparing Values, Behaviors, Institutions, and Organizations Across Nations. Thousand Oaks (Califórnia): Sage, 2001. 574 Exemplificados às pp. 19, 22, 23. 251 Segundo Valle,575 no Brasil bem como no restante da América Latina, a prevalência nas últimas décadas de uma diretriz ideológica de abertura comercial irrestrita significou, na prática, a abolição da política como espaço para decisões econômicas em prol de uma regulação exclusiva pelas “leis naturais” de mercado, tomadas como a única racionalidade aceitável. A ampla adesão havida ao assim chamado “Consenso de Washington” 576 foi impulsionada por uma crise financeira (crises de endividamento, fiscal e inflacionária) sem precedentes, que já ao final da década de 70 implicava a paralisação do investimento público; em muito pouco tempo, os ambientes de negócios passaram de fortemente protegidos a fortemente competitivos, e a contar com concorrentes estrangeiros muito mais capitalizados. Como conseqüência, Em vez do esperado “choque de produtividade”, houve sérias dificuldades para as empresas que persistiram produzindo no país, em vez de se transformarem em meras importadoras. Anos depois, mais uma súbita mudança – desvalorizações monetárias destinadas a recuperar o “realismo cambial” – penalizaram, ao contrário, as empresas que importavam peças ou que haviam contraído dívidas em dólar.577 ... No exato momento em que se anunciava uma globalização da economia, as poucas empresas nacionais que poderiam se tornar empresas globais – as estatais ... além de alguma empresa privada na produção em massa de bens de consumo – foram privatizadas, ou adquiridas por oligopólios internacionais. ... Na manufatura e produção em massa, a entrada de capital estrangeiro desmontou e reconstruiu – em termos que finalmente se mostraram desvantajosos para a economia nacional – setores industriais antes sólidos, construídos durante os anos de industrialização acelerada. Os setores de autopeças e de eletrodomésticos, p. ex., ambos núcleos da industrialização paulista, sofreram diretamente os efeitos da globalização produtiva, perdendo quase toda a autonomia para estabelecer estratégias.578 (ênfase de Valle) Identificar e compreender nossas especificidades culturais e históricas é tarefa prévia à definição de qualquer projeto de nação que se pretenda soberano – uma obviedade para, por exemplo, japoneses ou alemães. Sem um tal referencial (uma consciência da própria identidade), os potenciais intrínsecos à tradição são desperdiçados, e seus acúmulos históricos paulatinamente diluídos. A discussão sequer se inicia (a crítica, desprovida de 575 Cf. VALLE, 2005: 4, 70, 82. 576 Conjunto de recomendações em políticas públicas concebido como fórmula para a promoção do desenvolvimento econômico na América Latina, sistematizado em WILLIAMSON, John. “What Washington Means by Policy Reform”. In: WILLIAMSON (ed.). Latin American Adjustment: How Much Has Happened? Washington DC: Institute for International Economics, pp. 7-20, 1990. (Documento de referência da conferência Latin American Adjustment: How Much Has Happened?, organizada por Williamson em torno de representantes dos países latinoamericanos com o objetivo de prover entendimento, ao governo e ao congresso americanos, quanto ao grau efetivo de “ajuste” de cada país frente à crise de endividamento, e que confluiu para o assim chamado “consenso”; Institute for International Economics, Washington DC, Nov. 1989). Tais políticas públicas consistem de: disciplina fiscal, concentração do gasto público em educação, saúde e investimento em infra-estrutura, racionalização tributária, taxas de juros determinadas pelo mercado e positivas em termos reais, câmbio competitivo, liberalização do comércio com tarifas baixas e uniformes, abertura ao investimento estrangeiro, privatização de empresas estatais, desregulação da economia com abertura à competição, e segurança jurídica ao direito de propriedade. 577 578 VALLE, 2005: 70. Ibid., p. 82. 252 alternativa, é vazia), e o “referencial de referência” (desculpem) acaba não tendo como não ser tomado por único. Se assim o é para a regulação dos mercados, tanto quanto para as práticas de gestão. Apenas a título de atiçar dúvidas quanto ao lugar-comum: o que significam noções como “liderança” e “confiança”? Seria a liderança predominantemente um dom de nascença, predestinado a se expandir dadas condições favoráveis mínimas, e portanto individual (o que faz todo o sentido em uma sociedade que rotula seus membros como “vencedores” ou “perdedores”), ou se trataria mais de um atributo conferido a alguém por aqueles que com ele convivem, portanto circunstancial – e social? Ou ainda, até que ponto é ela um artifício socialmente consolidado de evitação de um tema tabu – a necessidade natural das pessoas de exercer, e de contar com, alguma forma de poder em seus relacionamentos sociais e gregários? 579 Quanto à confiança, seria ela mais o produto da constatação de um correto cumprimento de contratos (formais ou verbais), ou um acúmulo em um processo de empatia mútua? Se este for o caso, é precisamente o grau de confiança existente o que abre espaços para que se venha a relevar um eventual descumprimento contratual, no contexto de fatores imprevistos. Distinguir parâmetros peculiarmente brasileiros no universo da Administração não é tarefa trivial (registre-se que esforços são envidados nesse sentido).580 Ocorre que, frente à necessidade premente por um novo paradigma de gestão, calcado na valorização do convívio com o diferente, na abertura para o novo, e na experimentação e criatividade coletivas, torna-se tentador apregoar o Brasil como o “país (da gestão) do futuro” – uma nação receptiva à diversidade, em que os obstáculos são ludibriados no savoir-faire, de 579 Tal como, por séculos e ainda hoje, uma idealização do amor ajudou a evitar abordar os temas relativos à sexualidade biológica humana; ou ainda (e também por séculos, e ainda hoje), a delegação da medicina para a religião da tarefa de tratar junto aos pacientes da questão da morte; cf. OLIVEIRA, 1992; cf. nota 508, p. 218. 580 Como um marco inicial, ver RAMOS, A. Guerreiro. Administração e Estratégia de Desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1966. 2a. ed. Administração e Contexto Brasileiro: Esboço de uma Teoria Geral da Administração. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1983. Como contribuições mais recentes, ver, por exemplo, BARROS, Betânia T. de. Gestão à Brasileira: Uma Comparação entre América Latina, Estados Unidos, Europa e Ásia. São Paulo: Atlas, 2003; MOTTA, Fernando C. P., CALDAS, Miguel P. (orgs). Cultura Organizacional e Cultura Brasileira. São Paulo: Atlas, 1997; e BARROS, Betânia T. de, PRATES, Marco A. S. O Estilo Brasileiro de Administrar. São Paulo: Atlas, 1996; e COHEN, David. “Gestão à Brasileira”. Exame, pp. 200207, 19 abr. 2000. 253 uma gente de índole flexível, adaptativa e intuitiva, que celebra em multidão a alegria do viver. Mas, corresponde tal descrição a uma “teoria da alma brasileira” minimamente fidedigna, em que seja possível fundear a edificação de uma escola brasileira de gestão? Se este não for o caso, avançaremos por voluntarismo até pisar em falso. Benjamin581 reclama precisamente a ausência de uma “teoria do Brasil” atualizada aos tempos atuais, que conte com suficiente respaldo para operar como representação ideológica da sociedade sobre si mesma, como provedora de imaginário coletivo, e como forjadora de valores. Ele recapitula as etapas por que a teoria vigente foi gestada: com Gilberto Freyre,582 negros e índios foram legitimados como atores de nossa formação social, a casa-grande vista como espaço de integração em meio à desigualdade; Sérgio Buarque583 elucidou os meandros de nossa transição de um Brasil rural de raízes ibéricas para um Brasil urbano de referenciais cosmopolitas; com Caio Prado,584 adveio a perspectiva de um Brasil predestinado a construir caminhos próprios, que passamos a chamar “país do futuro”; Celso Furtado585 nos legou a compreensão das condições, limites e potencialidades para nossos processos de modernização e de inserção na economia mundial; finalmente, coube a Darcy Ribeiro586 subverter os termos da lógica etnocêntrica européia há muito introjetada em nós, pela transcendência de nosso caráter miscigenado e tropical, de motivo de vergonha a fator de superioridade ímpar frente à “pureza” dos povos de clima temperado.587 581 BENJAMIN (2004); César de Queiroz Benjamin (Brasil; 1954–). 582 Gilberto de Mello Freyre (Brasil; 1900-1987); ver Casa-grande & Senzala: Formação da Família Brasileira sob o Regime da Economia Patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio, 1933. 583 Sérgio Buarque de Hollanda (Brasil; 1902-1982); ver Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1936. 584 Caio da Silva Prado Júnior (Brasil; 1907-1990); ver Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Martins, 1942. 585 Celso Monteiro Furtado (Brasil; 1920-2004); ver Formação Econômica do Brasil. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1959. 586 Darcy Ribeiro (Brasil; 1922-1997); ver Os Brasileiros - 1. Teoria do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972; Utopia Selvagem. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982; O Povo Brasileiro: A Formação e o Sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995; e O Brasil como Problema. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995. 587 Porque nós contaríamos com o potencial de consolidar, na forma de uma tradição própria (e inovadora perante o mundo), valores como solidariedade, afetividade etc., devido a termos sido constituídos por “índios destribalizados, brancos deseuropeizados e negros desafricanizados”, ainda portadores de suas identidades étnicas mas já apartados 254 Benjamin não contradiz essa “teoria do Brasil”, mas se pergunta em que medida ela prossegue válida, sem que se consiga ponderar a extensão da dilapidação de tais acúmulos históricos e da corrosão de nossos valores sociais peculiares,588 face à prolongada exposição às crescentes violência urbana, exclusão social, e inculcação, pelos meios de comunicação de massa, dos valores de uma “sociedade de consumo” também estranha à nossa formação social (ainda uma vez, a one best way universal, imposta pelas conveniências de mercado). De nossa parte, registramos seu questionamento como válido e pertinente, muito embora creiamos que o lastro de uma tradição preserva o potencial para seu resgate, mesmo dilapidada. E cremos também não apenas na possibilidade, mas na necessidade de compreensão, legitimação e desenvolvimento de nossos talentos e práticas de gestão peculiares, sufocados, porém não extintos, por décadas de encantamento com modelos gestados no ventre de uma cultura díspar da nossa, portanto mal-ajustados à nossa realidade. Teoria e prática Cabem-nos ainda algumas breves palavras, no sentido de ressalvar que a busca por um paradigma alternativo é quase tão antiga quanto o próprio em questão. O pioneirismo em termos teóricos (para além dos autores já mencionados)589 remonta à década 20, quando Follett 590 idealizou as atividades de gestão em termos que hoje de suas tradições originárias, e desta forma uma tal tradição-nova não teria de se basear em nenhum dos fulcros daquelas tradições originárias, como raça, religião, vocação para a expansão imperial, recusa do outro (xenofobias), ou desejo de manter-se isolado. 588 Uma postulação de Benjamin quanto à educação como forjadora de valores que provejam base a um agir comunicativo é “Economia e Educação: Um Debate Invertido”. Disponível em: <http://www.espacoacademico.com.br/012/12col_cesar.htm>. Acesso em: 25 fev. 2005. 589 Como TRIST, BAMFORTH, op. cit. (nota 50, p. 19), 1951, ou RICE, loc. cit., 1951, trabalhos que deram início à Escola Sócio-técnica; ou ainda ARGYRIS, op. cit. (nota 35, p. 13), 1957, cujos trabalhos desembocariam na corrente da Aprendizagem Organizacional. 590 Mary Parker Follett (EUA; 1868-1933). 255 podem perfeitamente ser tomados por auto-organizantes.591 Largamente ignorada em seu próprio país, a América, sua obra veio a compor no Japão da década de 50, juntamente com as contribuições592 de Juran e Deming, a base teórica sobre que se edificou a escola japonesa de gestão. Já em termos práticos, incontáveis iniciativas pessoais (grande parte levada a cabo de modo puramente intuitivo) intentaram transcender as limitações do status quo.593 Hoje, mais que nunca, arranjos organizacionais inovadores contam com receptividade, de forma atrelada às circunstâncias de mercado. Assim, é abundante a massa crítica tanto teórica quanto prática ao estabelecimento e consolidação de um novo paradigma em Teoria das Organizações, que integre as contribuições fragmentadas surgidas, bem como aproprie os acúmulos do paradigma tradicional que permanecem válidos e o transcenda em suas limitações. Um tal novo paradigma já despontou como realidade prática há muito (mesmo que desacompanhado de bagagem teórica consistente); no que diz respeito às atividades dos chamados “trabalhadores do conhecimento”, ele é cada vez mais a norma.594 Se de modo geral o antigo paradigma ainda predomina, isso é devido em grande medida à inércia em perceber que a sinergia do convívio oferece resultados em muito superiores ao somatório das individualidades – quanto mais em tempos de crescentes complexidades. Especificamente quanto à contribuição que procuramos aqui prestar, compreendemos (como não poderia deixar de ser) o processo de construção do conhecimento como um 591 Ver The New State: Group Organization, the Solution for Popular Government. New York: Longmans, Green, 1918; Creative Experience. New York: Longmans, Green, 1924; Dynamic Administration: The Collected Papers of Mary Parker Follett (Henry C. Metcalf, Lyndall F. Urwick, eds.). New York: Harper and Brothers, 1940; Freedom and Co-ordination: Lectures in Business Organization (Lyndall F. Urwick, ed.). London: Management Publications Trust, 1949. Ver também a conferência “The Psychological Foundations of Business Administration”, Bureau of Personnel Administration, New York, 1925; e as conferências “The Psychology of Control”, “The Psychology of Consent and Participation”, “The Psychology of Conciliation and Arbitration” e “Leader and Expert”, de 1925 e 1926, transcritas em METCALF, Henry C. The Psychological Foundations of Management. Chicago (Illinois): A. W. Shaw, 1927. 592 Ver notas 23 e 24, à p. 10. 593 A título de exemplo, ver o relato do processo de criação da operadora de cartões de crédito Visa, em HOCK, Dee. Birth of the Chaordic Age. San Francisco (Califórnia): Berrett-Koehler, 1999. 594 Cf., por exemplo, LEWIN, REGINE, 2000. 256 empreendimento coletivo, de que toma parte a totalidade da comunidade científica de pares, e em que cada nova contribuição (e cada nova crítica) em parte complementa e em parte contesta a base acumulada de contribuições anteriores. Nosso trabalho não é, portanto, nem ponto de partida nem ponto de chegada. Consideramo-nos devedores de todos os autores aqui mencionados (146 ao todo); do mesmo modo, nenhum deles chegou a suas contribuições originais de uma forma totalmente solitária. Por exemplo, as proposições de Wiener sobre a auto-regulação dos sistemas são tributárias das noções de Andronov595 e Pontryagin596 quanto à sua “estabilidade estrutural”;597 o recurso à entropia como medida para a informação contida em um sistema é antecipado em vinte anos a Shannon por Szilard;598 o conceito de “circuitos reverberantes”,599 base de todo o trabalho de McCulloch e Pitts, tem por antecessores a proposição teórica por Kubie600 quanto à persistência de atividades de natureza circular em redes de neurônios, e a demonstração empírica desse fenômeno por Lorente de Nó;601 um delineamento da autopoiesis foi em duas décadas antecipado, por Weiss,602 a Maturana e Varela; e assim se pode prosseguir indefinidamente. 595 596 Aleksandr Aleksandrovich Andronov (Rússia; 1901-1952). Lev Semenovich Pontryagin (Rússia; 1908-1988). 597 Ver ANDRONOV, Aleksandr A., PONTRYAGIN, Lev S. “Systèmes grossiers”. Doklady Akademii Nauk SSSR, vol. 14, pp. 247-251, 1937. 598 Leo Szilard (EUA; n. Leo Spitz, Hungria (Áustria-Hungria); 1898-1964); ver “Über die Entropieverminderung in einem thermodynamischen System bei Eingriffen intelligenter Wesen”. Zeitschrift für Physik, vol. 53, pp. 840-856, 1929. 599 Mencionado à p. 37. 600 Lawrence Schlesinger Kubie (EUA; 1896-1973); ver “A Theoretical Application to some Neurological Problems of the Properties of Excitation Waves which Move in Closed Circuits”. Brain, vol. 53, n. 2, pp. 166-177, 1930. 601 Rafael Lorente de Nó (EUA; n. Espanha; 1902-1990); ver “Analysis of the Activity of the Chains of Internuncial Neurons”. Journal of Neurophysiology, vol. 1, pp. 207-244, 1938. 602 Observação constante da nota 77, à p. 29. 257 Sumário e conclusões finais As insuficiências e dificuldades, por parte das organizações, em acompanhar a evolução dos ambientes de mercado, constituem contemporaneamente o mais agudo problema sobre que se debruça a Teoria das Organizações. Para que possam fazer frente a tais crescentes complexidades externas, as organizações necessitam contar com suficientes complexidades internas, em termos de seu repertório de respostas às mudanças e surpresas no ambiente. Ocorre que já existe uma complexidade interna natural e inerente às organizações, em vasta monta: a sinergia potencial advinda das interações entre as individualidades singulares que as compõem. Todavia – e contrariamente ao que se deveria esperar – tal riqueza potencial tem sido objeto de restrição por parte das teorias e práticas tradicionais no campo da Administração. Não obstante, um volume significativo de organizações – notadamente as que congregam os chamados “trabalhadores do conhecimento” – já logram operar por modos em que se busca auferir proveito dessa complexidade interna potencial, ainda que de maneiras desacompanhadas de uma base teórica consistente, e em boa parte dos casos de forma meramente intuitiva e pragmática (“porque percebemos que assim funciona”). Na presente tese, foram propostas as linhas gerais para um arcabouço teórico em Teoria das Organizações orientado à lida com as complexidades externas por meio do aproveitamento das complexidades internas, o que por sua vez principia em sua aceitação e legitimação. O objetivo último é a superação do esgotamento das teorias tradicionais, e dos impasses para que estas convergiram. Para referencial teórico, foram selecionadas duas teorias componentes de uma dentre as vertentes em Teoria da Complexidade (em que a complexidade é compreendida como componente do entendimento quanto ao real, ao invés de componente mesma do real), ambas da década de 70: a teoria da complexidade a partir do ruído de Atlan, a partir de que concebemos uma dinâmica gerativa para a fenomenologia organizacional, e a teoria 258 da autopoiesis de Maturana e Varela, que propicia uma compreensão em bases fenomenológicas (ou seja, referenciadas na individualidade) para o conhecimento e para seu processo gerador, a cognição. Percorremos, como etapas desta tese: – Foi inicialmente recapitulada (com base em Valle) a trajetória da corrente predominante em Teoria das Organizações, consumada como reação à, e busca de neutralização da, complexidade externa, com domesticação da complexidade interna – a racionalização (ela mesma um caso particular em uma Teoria das Organizações de caráter fenomenológico). – Foi a seguir historiado (com base em Dupuy) o advento das diferentes vertentes em Teoria da Complexidade, a partir de sucessivas inovações de um punhado de cientistas de espírito a um tempo reducionista e desbravador (e não, como reza o imaginário corrente, por qualquer ruptura deliberada para com a Ciência clássica). – Sobre a base conformada por estas contribuições, puderam ser edificadas as teorias de Maturana e Varela, e de Atlan; foram, em seqüência, apresentadas estas duas teorias, em seu contexto originário, a Biologia. – A seguir, constituímos definições formais para redundância e variedade, elementoschave da dinâmica gerativa que propomos. Foi então sistematizado o operar desta dinâmica no domínio organizacional, e foram também recapituladas as contribuições anteriores (aquelas que identificamos) que fazem também recurso aos elementos-chave empregados; procuramos assim demonstrar que a dinâmica gerativa proposta as abarca, bem como a inúmeras outras contribuições orientadas à valorização da individualidade no seio das organizações. – Foi em seqüência apresentado um estudo de caso em que se procurou demonstrar o operar da dinâmica gerativa concebida. – Finalmente, como indicações para o desenvolvimento ulterior desta pesquisa de tese, foram examinadas as limitações dos principais pilares da racionalização em Administração: o conhecimento técnico (derivado do agir instrumental) e o agir estratégico – limitações passíveis de serem transcendidas não por superação, mas por complementaridade (respectivamente, por outras naturezas de conhecimento, e por um agir de cunho comunicativo). 259 Foi-nos possível discriminar as falências mais severas (que se almeja superar e transcender) do corpus teórico historicamente (e ainda hoje) predominante, a saber: 1. As barreiras a uma percepção quanto a que todo conhecimento é individualizado (“tácito”), e portanto que as tecnologias ditas de informação podem e devem operar como mediadoras semânticas em estímulo a seu processo gerador (a cognição), mas jamais como “processadoras” ou “portadoras” de conhecimentos (desconhecem-se, até o momento, quaisquer tecnologias “de conhecimento”); 2. A incapacidade em transcender a mentalidade por que se toma a singularidade da individualidade humana por estorvo, ao invés de chave ao acompanhamento das crescentes complexidades do ambiente; 3. As barreiras a uma percepção quanto a que qualquer cooperação entre indivíduo e organização somente se consubstancia como uma cooperação entre indivíduos, para o que contratos podem ser úteis, mas são insuficientes; 4. A incapacidade quanto a compreender que gestão corresponde, essencialmente, ao fomento do padrão de interação social o mais fecundo possível; 5. Neste sentido, a insuficiência em suprir as necessidades por complementaridade, ao agir estratégico, de um agir orientado a valores, ou agir comunicativo;603 6. Também neste sentido, a insuficiência em suprir as necessidades por complementaridade, aos conhecimentos técnicos e científicos, de conhecimentos de outras naturezas. A todas essas falências, acrescente-se outra, no seio daquelas tradições que não a originadora do paradigma clássico, e até aqui incapazes de cultivar modos de gestão próprios: 7. A inadequação do paradigma clássico a contextos culturais outros que não aquele que lhe deu origem, pelo sub-aproveitamento de seus aportes e, principalmente, pelo desperdício dos potenciais próprios à tradição hospedeira. Ao longo da trajetória de formação da Teoria da Complexidade, sucessivos autores (Shannon, Ashby, von Foerster e finalmente Atlan) vieram a compreender ordem como aquilo que é tomado como geral (ou seja, ao nível do todo), tendo denominado-a redundância (o que restringe o todo de ser distinto de como de fato é), e desordem 603 Esclarecimentos quanto à adequação desta terminologia à nota 569, p. 246. 260 como aquilo que é tomado como particular (ou seja, ao nível das partes), tendo denominado-a variedade (a diversidade das partes). A dinâmica gerativa concebida propõe compreender os significados compartilhados (coletivos) como redundância, os conhecimentos (individuais) como variedade, e o papel dos gerentes como provedores das condições o mais propícias possível aos processos de mútua produção entre variedade e redundância – cuja chave reside nas interações entre as pessoas. O quanto isso tudo comporta de novidade? Uma das características mais perniciosas dos modos por que se tem considerado o conhecimento nas organizações é tomar por obsoleto tudo o que não seja estritamente contemporâneo. Pois muito do que aqui foi exposto quanto à natureza subjetiva do conhecimento já foi postulado por diversos filósofos, séculos atrás.604 E, se nos é possível sintetizar a essência do que foi aqui proposto por meio da frase “somente a complexidade interna pode dar conta da complexidade externa”, isso foi exatamente o que disse um daqueles cientistas de espírito a um tempo reducionista (pois objetivava a modelagem com vistas ao controle) e desbravador que pavimentaram o caminho para o advento da Teoria da Complexidade, Ross Ashby, sob uma outra terminologia – “somente a variedade pode dar cabo da variedade” – há cinqüenta anos.605 604 Uma reconstituição dessa trajetória histórica pode ser encontrada em von GLASERSFELD, op. cit. (nota 357, p. 130), 1995. 605 ASHBY, 1956: 207 (citação replicada; p. 52, nota 177). 261 Referências bibliográficas AHLEMEYER, Heirich W., 2001. “Management by Complexity: Redundancy and Variety in Organizations”. In: GEYER, Felix, van der ZOUWEN, Johannes (eds.). Sociocybernetics: Complexity, Autopoiesis, and Observation of Social Systems. Westport (Connecticut): Greenwood, pp. 59-71. ANDERSON, Philip W., 1972. “More Is Different”. Science, vol. 177, n. 4047, pp. 393-396. ASHBY, W. Ross, 1952. Design for a Brain: The Origin of Adaptive Behavior. London: Chapman and Hall. ______, 1956. An Introduction to Cybernetics. London: Chapman and Hall. ______, 1973. “Some Peculiarities of Complex Systems”. Cybernetic Medicine, vol. 9, n. 2, pp. 1-8. ______, 1981a. “General Systems Theory as a New Discipline”. In: CONANT, Roger C. (ed.). Mechanisms of Intelligence: Ashby’s Writings on Cybernetics. Seaside (Califórnia): Intersystems Publications, pp. 219-230. 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