Os novos polícias da moralidade

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Os novos polícias da moralidade
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ANÁLSE
Os novos polícias
da moralidade
Será que numa simples pesquisa na Internet teremos acesso a tudo o
que existe sobre esse tema? Há palavras malditas que nunca se
podem dizer? O sexo terá de ser ainda e sempre tabu? Ao que parece
na tão apregoada aldeia global, o grande «Olho» tem uma fina e
discreta caneta azul…
Texto Andreia Fernandes Silva
HÁ PALAVRAS MÁS? Ou porque é que eu não posso
aceder a todos os conteúdos quando digito a palavra «breast»? Será que o tema «cancer breast» não tem direito a ser
objecto de pesquisa? Pois é, pode parecer estranho mas a
expressão acima referida é uma das inúmeras palavras
más (bad words) censuradas nos Estados Unidos quando
se efectua uma simples pesquisa na rede. No país da
Primeira Emenda, onde se define que não se deve limitar
a liberdade de expressão e de imprensa há já alguns anos
que associações de pais ou organismos criados pelo governo procuram encontrar mecanismos que cerceiam um dos
direitos fundamentais. Mas com que legitimidade, e acima
de tudo, com que critérios, se definem como más palavras
determinados termos? A justificação é simplista: há palavras indecentes que não devem figurar num programa de
televisão, numa emissão de rádio ou até serem procuradas
online. Em relação ao bom ou mau gosto, à boa ou à falta
de educação no emprego de determinadas palavras, todos
podemos concordar que deva prevalecer o bom senso.
Mas não se pode concordar que peito ou mama seja uma
má palavra, mesmo quando, ao que parece, seja capaz de
injuriar o governo americano, sempre zeloso da moral e
dos bons costumes.
Um dos casos que colocou a sociedade americana ao
rubro foi o incidente de Janet Jackson durante o
Superbowl, em 2004. Propositado ou não, a discussão
acesa colocou a nu o lado puritano do país onde qualquer
um pode ter uma arma. No mesmo ano iniciou-se uma
onda de controlo e as queixas relacionadas com as palavras e imagens menos apropriadas. Um dos culpados é
Bono Vox. Numa edição em directo, o líder dos U2 teve a
ousadia de dizer «this is really, really fucking brilliant» e
estalou o verniz aos responsáveis pelo Grande Irmão da
decência.
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O olho vigilante destas indecências é a Federal
Communications Comission (FCC), um organismo nomeado pelo governo para aplicar as multas aos infractores,
segundo critérios subjectivos, que num dia permite que
algumas palavras indecentes possam ser emitidas durante e exibição do filme «O resgate do Soldado Ryan», - aceita-se que um soldado possa proferir determinadas expressões, está contextualizado -, no entanto, já não é adequado que as mesmas palavras vulgares, designadas por «fleeting expletives», possam ser aceites durante a exibição do
documentário «The Blues», de Martin Scorcese. Motivo:
há demasiados palavrões. No filme sobre o resgate do soldado americano podem dizer-se palavras feias, mas num
documentário sobre um estilo musical associado à população negra: não! Esta onda moralista até já levou a que a
estação Fox cortasse a parte do discurso de Sally Field na
entrega dos Emmys de 2007 porque a actriz, vencedora de
um prémio, referiu algumas considerações «inapropriadas» contra a guerra no Iraque…
“EXPLETIVE WORDS”: A NOVA CENSURA
DAS PALAVRAS MÁS
Este assunto surge a propósito de uma palestra de
Marjorie Heins, na Faculdade de Letras da Universidade
do Porto, a 16 de Abril passado. Autora de livros como
“Not in front of children: «Indencency», Censorship and
the Innocent of Youth”, obra vencedora em 2002 do prémio para a liberdade de expressão da American Library
Association, e com uma edição revista e ampliada em
2007, o pretexto desta sua palestra, mas também de “Sex,
Sin and Blasphemy: a guide to America’s censorship
wars” e “The progress of Science and Useful Arts: Why
Copyrigth today threatens intellectual freedom”. Heins é
licenciada em Direito, fundadora e directora do Free
Expression Policy Project (FEPP) e uma empenhada
defensora da liberdade de expressão.
Um dos assuntos abordados por esta norte-americana
é a existência de uma lista de palavras más (expletive
words1) que «possam ser ofensivas para os parâmetros
contemporâneos de um grupo de pessoas», explicou a
autora no Porto. Heins contesta a «subjectividade do
que é indecente» e acima de tudo considera urgente que
se coloque um travão à fúria moralizadora que assola os
Estados Unidos. Marjorie Heins preocupa-se ainda com
as restrições que por exemplo se começam a fazer a
obras artísticas e diz-se «céptica quanto à capacidade de
algumas entidades decidirem o que é certo ou não».
Outro aspecto focado por Heins são os filtros, ou bloqueios, que impedem o acesso a determinados artigos
onde figurem certas palavras. Como exemplo a autora
assinala que «Marsexplanation», um programa da Nasa
sobre a exploração em Marte, é um dos termos proibidos.
Porquê? Imagina-se: surge o termo sex no meio da palavra. Caso se queira pesquisar um local exótico escolher um
destino de férias, fique a saber que outra expressão bloqueada neste índex contemporâneo é “exotic locales”, ou
não vá a sua pesquisa descobrir um clube de dança,
menos apropriado. Esta instrumentalização da tecnologia
deve-nos fazer pensar, na medida em que, subtilmente
podem estar a ser criados mecanismos cada vez mais finos
de censurarem o acesso a assuntos que possam ser incomodativos.
No nosso país o assunto começa a ser falado, ainda que
timidamente. Mas os filtros da Internet já estão aí a seleccionar aquilo que podemos ou não pesquisar e há palavras que não podemos pesquisar numa biblioteca pública.
O problema maior é que se nos Estados Unidos sabe-se
que esses filtros existem, urge levantar a questão: e em
Portugal, existem palavras censuradas? JJ
Para saber mais:
. http://www.fepproject.org/
. http://www.aclu.org/
. http://www.broadcastlawblog.com/archives/indecencycongress-tries-to-overturn-second-circuit-while-third-circuit-hears-janet-jackson-indecency-case-and-the-war-iscensored.html
1 O termo «expletive» é usado na Linguística mas no
presente contexto refere-se também à chamada má linguagem,
associada à indecência. O termo foi usado aquando das célebres
gravações de Richard Nixon, caso Watergate, que se tornaram
públicas com partes do discurso consideradas «expletive
deleted».
JJ|Jan/Mar 2009|33