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Historias de fronteiras, memorias que
ecoam no presente: relatos entre a
Italia e a ex-Iugoslavia
Histories of frontiers, memories that echoes into the present: accounts between
Italy and former Yugoslavia
Gabriela Kvacek BETELLA1
RESUMO: Para entender a complexidade de alguns romances dos escritores italianos Carlo Sgorlon (1930-2009)
e Fulvio Tomizza (1935-1999), ressaltamos aspectos de literatura de fronteira e de testemunho, a saber, as
imagens percebidas além dos limites da Itália norte-oriental, ponto de encontro com as culturas eslavas,
sobretudo com relação aos acontecimentos entre a década de 1940 e o final do século XX, relacionados à
complicada convivência entre nacionalidades, etnias, religiões e ideologias políticas, especialmente agravada
pelo fascismo, no período 1943-1945. Os episódios na região de Trieste e da Ístria (envolvendo a deportação, a
prisão e a tortura de pessoas), a polêmica chacina de Porzûs (um dos eventos mais controversos da Resistência
italiana) e o dramático extermínio das Foibe são fatos que multiplicam as discussões nas formas de
representação literárias e audiovisuais. Nas décadas seguintes o território balcânico foi partido pela guerra dos
anos de 1990, e tanto autores quanto cineastas não se esquivaram da representação dos eventos e de seus
antecedentes históricos. Chama a atenção uma capacidade de se levar em conta o passado e as maneiras de
absorção da história dessas regiões com a finalidade de colocar o seu conhecimento e reflexão para fora do
conveniente esquecimento.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura de fronteira. Memória. Carlo Sgorlon. Fulvio Tomizza.
ABSTRACT: In order to understand the complexity of some novels by the Italian writers Carlo Sgorlon (19302009) and Fulvio Tomizza (1934-1999), we highlight aspects of the literature of frontier and testimony, namely,
the images perceived beyond the limits of northeastern Italy, the meeting point with the Slavic cultures, above all
in relation to the occurrences between the 1940’s and the end of the 20 th century linked to the complicated
coexistence among nationalities, ethnicities, religions and political ideologies, which was especially aggravated
by Fascism in the period 1943-1945. The episodes in the region of Trieste and Istria involving the deportation,
imprisonment and torture of people, the polemic slaughter of Porzûs (one of the most controversial events of the
Italian resistance) and the dramatic Foibe extermination are facts the multiply the discussion in the forms of
literary and audio-visual representation. In the following decades the Balkanic territory was shattered by the
1990’s war, and both writers and filmmakers did not shun the representation of events and their historical
background. It draws our attention the capacity of these regions to take into account the past and their ways of
absorbing history, with the aim of driving their knowledge and reflexion away from convenient oblivion.
KEYWORDS: Literature of frontier. Memory. Carlo Sgorlon. Fulvio Tomizza.
1
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Faculdade de Ciências e Letras –
Departamento de Letras Modernas. Assis – SP – Brasil. CEP: 19806-900. E-mail:
[email protected].
Guavira Letras, Três Lagoas/MS, n. 21, p. 226-242, jul./dez. 2015
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Desfazendo fronteiras de pensamento
Os recentes estudos que aproximam história e memória têm como núcleo teórico e
metodológico alguns trabalhos que problematizam os temas e formam uma espécie de base
fundamental para os pesquisadores contemporâneos. Os sociólogos Maurice Halbwachs
(1877-1945) e Michael Pollak (1948-1992), os filósofos Paul Ricoeur (1913-2000) e Giorgio
Agamben (1942), o historiador Pierre Nora (1931), entre outros, fornecem condições para
tornar familiar aos estudiosos na área das ciências humanas a temática da memória coletiva,
do enquadramento, de lugares da memória, do esquecimento, da testemunha. As análises e
interpretações nas mais variadas áreas da crítica de arte também puderam, graças a esses
trabalhos, interessar-se de modo mais maduro e humanista pelos fenômenos relacionados à
lembrança e ao esquecimento.
No entanto, alguns abusos não foram contidos, e as efetivas contribuições teóricometodológicas têm produzido algumas mesclas que não consideram as matrizes
epistemológicas, não raro contraditórias entre si, muito menos utilizam os trabalhos dos
autores mencionados como referências analíticas, limitando-se a incorporar termos ao debate,
sem enriquecê-lo. Entre alguns historiadores, o problema se mostra mais grave, pois muitas
vezes não se levam em conta as aproximações e afastamentos entre as diferentes matrizes
teóricas que tratam o tema, surgidas essencialmente de conflitos metodológicos entre a
filosofia e a sociologia desde o século XIX. Quando o mundo se desenvolvia e se preocupava
cada vez mais com a ciência e a tecnologia, também se lamentava a perda dos vínculos
comunitários, o fim das identidades, das referências e das tradições. O fenômeno da memória
passa a despertar interesse de muitos autores, de diversas áreas do conhecimento e da criação
artística. O filósofo Henri Bergson (1859-1941) aproveita os estudos da psicofísica para
afirmar a teoria de que a lembrança representa o ponto de intersecção entre o espírito e a
matéria. A memória, para Bergson (1999), é “sobrevivência das imagens passadas”,
misturadas a nossa percepção do presente.
Pelo caráter de “fenomenologia da lembrança”, no dizer de Ecléa Bosi (1994), por
manter o indivíduo como foco e por enfatizar os elementos afetivos da memória, o trabalho de
Bergson, de 1896 (Matéria e memória), pode ser considerado matriz para os autores que se
seguiram, inclusive os que propõem um enfoque oposto, em que a memória passa a ser
encarada como um fato social, uma reconstrução do passado a partir dos quadros sociais do
presente. Maurice Halbwachs, morto no campo de concentração de Buchenwald, deixa A
memória coletiva em 1949 para comprovar a inexistência de memórias individuais. Ao
afirmar que as lembranças nos são trazidas pelos outros, mesmo que sejamos os únicos
protagonistas do evento lembrado, Halbwachs (1990) sustenta que a memória individual é
apenas um ponto de vista sobre a memória coletiva. Esse ponto de vista estaria condicionado
pela situação do presente da rememoração: acontecimentos, quadros sociais, grupos
identitários. Do mesmo modo, o esquecimento coletivo tem como expressão o esquecimento
individual, condicionado no presente pelo ato de deslembrar, povoado de desapego a
determinados grupos.
As estruturas coletivas são tomadas por Halbwachs como concretas e objetivas. O
presente é valorizado no processo de formação das recordações e, ainda, os componentes
afetivos são desprezados, em favor da memória como elemento de agregação social. Essa
ênfase no coletivo e no racional possibilitou uma grande influência do sociólogo francês sobre
o grupo fundador da escola dos Annales. Contudo, Halbwachs separava a memória da
história, pois esta começaria no ponto onde acaba a tradição, quando se apaga a memória
social. Essa distinção ainda provoca muitos debates sobre as relações entre história e
memória, em tempos em que os interesses pela memória e os medos do esquecimento e da
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perda de identidade parecem reconsiderar a virada do século passado. Prova disso é a revisão
feita por Pierre Nora (1993, p. 7-9) sobre a diferenciação entre memória e história:
Fala-se tanto de memória porque ela não existe mais. [...]. A memória é a vida,
sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em permanente
evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas
deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações, suscetível de
longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre
problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno
sempre atual, um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do
passado. Porque é afetiva e mágica, a memória não se acomoda a detalhes que a
confortam; ela se alimenta de lembranças vagas, telescópicas, globais ou flutuantes,
particulares ou simbólicas, sensível a todas as transferências, cenas, censuras ou
projeções. A história, porque operação intelectual e laicizante, demanda análise e
discurso crítico. A memória instala a lembrança no sagrado, a história a liberta, e a
torna sempre prosaica. A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer
dizer... que há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza,
múltipla e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário,
pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá vocação para o universal. A memória se
enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto. A história só se liga
às continuidades temporais, às evoluções e às relações das coisas. A memória é um
absoluto e a história só conhece o relativo.
Hoje em dia, contudo, por mais deslumbrante que possa parecer, está muito em moda
a ideia de que as memórias possibilitam o questionamento do discurso universalizador da
história e, consequentemente, podem existir várias histórias plausíveis, legítimas e, ainda,
funcionando como memória, reivindicando o absoluto, eliminando as rupturas, e não as
continuidades. Desse modo, fica cada vez mais complicado visualizar, além de um Pierre
Nora raivoso, os limites da dicotomia entre memória e história nos “lugares” da história.
Numa etapa seguinte do percurso, Michael Pollack (1989) aponta o desafio dos
trabalhos mais recentes no sentido de questionarem a força da memória coletiva sobre o
indivíduo com base no caráter capaz de sufocar as memórias “inferiores”. O sociólogo
argumenta que o esquecimento não significa necessariamente desapego ao grupo, como
queria Halbwachs. O esquecimento pode ser uma forma de expressar o dizível e o indizível
em cada época.
Paul Ricoeur (2007) fecharia o ciclo desse debate, ou moveria a espiral, tentando
superar várias oposições aqui mencionadas, voltando a Bergson, a matriz femomenológica. O
filósofo considera Bergson autor da melhor compreensão do vínculo entre a sobrevivência das
imagens e o reconhecimento. Além disso, leva em conta as considerações de Halbwachs e
tenta conciliar os enfoques antagônicos, descobrindo complementaridades ocultadas tanto
pela tendência a valorizar a tradição da “mirada interior”, quanto pelo positivismo da
sociologia do final do século XIX. Quando Ricoeur admite que o fenômeno da memória pode
ser atribuído ao indivíduo e à coletividade, passa a considerar uma memória compartilhada,
mas também afirma que existe uma escala de personalização, inversa a uma gradação de
anonimato, que vai do “nós” autêntico ao “si”, ao “alguém” e aos “outros”.
Reconhecidamente, e de forma paralela aos debates metodológicos acima
mencionados, as formas de testemunho tomaram corpo artístico e têm sido estudadas com
bastante vigor. Os debates tentam trazer à tona o problema do valor artístico (literário,
principalmente, mas também no que diz respeito ao trabalho com as imagens, no caso do
cinema e da fotografia, por exemplo) de produções cuja função teria sido a de denunciar
formas de violência em conflitos históricos. Os trabalhos de análise exigem novos critérios de
valor estético para determinar o lugar de cada obra nos parâmetros do testemunho,
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procedimento que ganha muito com a análise literária apoiada na evidência dos meios de
composição dispostos a incorporar o contexto ou a atmosfera local na estrutura da obra. Para
Márcio Seligmann-Silva (2005) a fragmentação é uma característica fundamental do discurso
que manifesta a necessidade de testemunho. Assim, como as relações entre linguagem e
memória entram em crise, devido à incapacidade de escrever ou filmar a memória
devastadora, a linguagem é reorganizada em função da realidade particular.
O depoimento, por si, é um elemento curioso para a literatura. Seligmann-Silva (2005)
considera a literatura de testemunho como um gênero diferenciado dos autobiográficos e
historiográficos, porque apresenta uma voz que resiste às dificuldades de expressão para
narrar a experiência vivida. A fabulação move os mais diferentes recursos, inclusive a
fragmentação da forma e a introdução de elementos de outras artes, dispostas a reorganizar o
modo de perceber a realidade, de nos deixar em estado de alerta diante de uma ameaça de
catástrofe. Ao lado disso, a obra poderá transparecer o desejo imperioso da sobrevivência,
para que a experiência dos que não mais podem registrá-la, dos que não podem mais ser
testemunhas de si mesmos. Nesse sentido, Giorgio Agamben (1998, p. 17) utiliza uma
oportuna frase de Primo Levi: “seu testemunho se dá por meio de minhas palavras”, referindo
se a Hurbinek, personagem de A trégua, de Levi, uma criança morta após ser libertada de
Auschwitz, quando ainda não era capaz de verbalizar.
Conforme se percebe, Agamben estabelece pontes analíticas importantes entre a
história, a memória, o testemunho, a literatura. Para o filósofo italiano, o trabalho da memória
é fundamental para o testemunho, porém ele só se constitui por meio da lacuna, da
dissociação discursiva e do movimento descontínuo do relato, espelhando a máxima de que o
testemunho vale essencialmente por aquilo que nele falta, ou seja, o que não se pode
descrever, nem ser apreendido e simbolizado com palavras. A desarticulação entre forma e
conteúdo constitui um dos achados para a representação, por meio da memória, de fatos que
desarticularam o passado.
Nosso assunto de pesquisa estabelece fortes ligações com o percurso da teoria, porém
a averiguação do contexto histórico do corpus deste trabalho não pode ultrapassar a
localização dos eventos que serviram de matéria literária na seleção que operamos. Sendo
assim, a pesquisa se desenvolve a partir do estudo das condições para a representação
artística, ao mesmo tempo em que se exploram as formas renovadoras da utilização da
memória e da história para a composição, na tentativa de pensar a contribuição das obras
literárias para um modo de reflexão sobre o passado coerente com o seu tempo de produção,
especialmente no que diz respeito às escolhas para a retomada e as revisões executadas. Por
isso escolhemos obras que lidam com eventos de interpretação bastante contraditória entre os
cientistas políticos, sociólogos e historiadores. A literatura, o cinema e algumas produções
audiovisuais parecem ter enfrentado as dúvidas e questionamentos com mais clareza, ao
menos no nível artístico, e ainda que perfaçam irreconciliáveis as memórias. Dessa forma,
temas que se mostram confusos entre muitas interpretações inflamadas parecem ter sido
desenvolvidos de modo mais orgânico e até mais eficaz em romances e filmes.
Os romances de Fulvio Tomizza, Materada (1960) e La miglior vita (1977), e os de
Carlo Sgorlon, La foiba grande (1991) e La malga di Sîr (1995), são obras que tratam de
temas relacionados à Resistência durante a Segunda Guerra. Para discussão dos parâmetros de
retomada dos fatos históricos no presente da produção artística, escolhemos Underground
(Podzemlje, Emir Kusturica, 1995), sobretudo porque o diretor nascido em Sarajevo foi capaz
de empreender uma volta ao passado da Segunda Guerra e atravessar várias décadas da
história da Iugoslávia a partir de um momento difícil, em que o antigo país se dividia e se
massacrava. As relações que observamos prendem-se sobretudo à memória de episódios
problemáticos da Segunda Guerra localizados na fronteira entre a Itália e a Iugoslávia, região
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do extremo nordeste da península itálica (atualmente, a região de Friuli-Venezia Giulia) e da
Ístria (península hoje dividida entre a Eslovênia, ao norte, e a Croácia, ao sul), território que
concentrou ocupações, êxodos, domínio nazista, guerra de Resistência, massacres,
perseguições, pelo menos durante os dois últimos terços do século XX.
Para explicar melhor os eventos do final da guerra na fronteira do leste italiano,
fazemos um breve apanhado dos caminhos que chegaram aos derradeiros anos de guerra,
começando pela afirmação de que a ascensão do fascismo na Itália deu-se sob condições nada
revolucionárias. A chegada de Mussolini ao poder foi o resultado de ações constitucionais,
assim como também estiveram dentro da legalidade os acontecimentos sucessivos que
transformaram um governo tecnicamente constitucional numa ditadura que perseguiu,
destituiu e eliminou os adversários, graças a uma combinação de brutalidade e procedimentos
legais questionáveis (SASSOON, 2009, p. 20). Nos anos de 1930 a intolerância do
totalitarismo fascista alcançava pela primeira vez o auge dos seus propósitos, trunfo
continuado até a década seguinte.
As representações que estudamos se complementam para ressaltar momentos sombrios
de um dos regimes totalitários que chegaram ao poder como uma espécie de revolução
política e social, recebido com simpatia mesmo por uma respeitada intelectualidade. Nos
primeiros anos, não só o verdadeiro caráter conservador sob pretensões revolucionárias é
revelado, como a face cruel e arbitrária do regime fascista aparece. De um modo geral, a
cultura italiana viveu tempos difíceis, sobretudo após 1925, com o limite das liberdades de
expressão e as consequências de restrições como as prisões e o exílio de pessoas ligadas à
vida cultural e política, a censura de revistas e livros, o prejuízo da narrativa, que sobrevive
nesses anos retomando elementos do naturalismo para deformar a realidade e esconder
problemas, assim como retorna ao romance histórico e incorpora até o realismo mágico.
Na prática, o período fascista pode ser encarado como desastrosa consequência de um
processo que não conseguiu deter certas ambições oportunas. Os efeitos devastadores da
Primeira Guerra puderam ser vistos nas reviravoltas econômicas, políticas e morais por toda a
Europa. Além das dificuldades na passagem de uma situação de guerra para uma situação de
paz, as agitações sociais (do proletariado, da pequena burguesia) e as transformações de
ideias, a Itália particularmente viveu um pós-guerra desastroso devido à fragilidade do
governo de Francesco Nitti, no período entre 1919 e 1920. Contudo, assim que a Itália declara
guerra com a França, em 1940, o governo começa a caminhar para a ruína, em primeiro lugar
pela opinião pública bastante sensibilizada com o rompimento do regime com o povo italiano.
Em seguida, as derrotas em campos de batalha e o recrudescimento da repressão fascista
permitiram o surgimento e a difusão de uma luta antifascista e, além de tudo, os bombardeios
que se intensificaram sobre o país, mais o desembarque de tropas inglesas e norte-americanas
em julho de 1943 na Sicilia (acompanhado de uma série de horrores incomparáveis) traçaram
a destituição do líder Benito Mussolini.
É preciso lembrar que os últimos anos da guerra não pareciam acenar para a paz no
território italiano. Na síntese de Fabris (1996), que aproveitamos aqui, em 25 de julho de 1943
o rei Vittorio Emanuele III assumiu o comando das forças armadas, destituiu Mussolini e o
substituiu pelo marechal Badoglio, formador do novo governo. São estabelecidos acordos
secretos com os Aliados e em 3 de setembro o general Castellano assinava a capitulação das
forças italianas (o “armistício curto”), anunciada somente no dia 8. Ainda no mês de setembro
de 1943, Badoglio ordenou a cessação das hostilidades contra as tropas americanas e a
“rendição incondicional” que o armistício curto tentara evitar. Era o chamado “armistício
longo”, cujas tratativas com os Aliados exigiam, em troca da aliança com a Itália, a
declaração de guerra contra a Alemanha. Isso só acontece em 13 de outubro, e o intervalo é
um dos períodos mais terríveis enfrentados pela população. O país declarava-se inimigo das
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numerosas divisões alemãs, que haviam se tornado exército de ocupação, enquanto o rei, a
corte e os membros militares de seu governo abandonavam Roma e se refugiavam no sul, em
Brindisi, já nas mãos dos Aliados.
No país dividido, o Sul era libertado pelos Aliados, e ali Badoglio governava em nome
da Monarquia. O Centro e o Norte estavam ocupados pelas tropas nazistas. Para completar o
legado de absurdos daquele fatídico mês, em 23 de setembro de 1943, Mussolini proclamou a
República Social Italiana (RSI), que vigorou até 25 de abril de 1945. Durante essa chamada
República de Salò, o fascismo, em manifestações de desespero de seus integrantes,
protagonizou, ao lado dos representantes nazistas, os fatos mais brutais da guerra no norte do
país. Com o surgimento da Resistência, que se organizou em diversas regiões para expulsar
nazistas e fascistas, libertando muitas cidades, a situação é definida por muitos analistas como
guerra civil. Ao explicar o direito dos partigiani de resistir ao nazifascismo, Pavone (1998)
defende o uso da violência e distingue três tipos de guerra durante a Resistência: a guerra
patriótica, a guerra civil e a guerra de classes.
Em 10 de setembro de 1943, portanto apenas dois dias após o 8 de setembro, antes
mesmo de ser criada a República de Salò, a região do Friuli é anexada diretamente ao
Terceiro Reich na província de Adriatisches Küstenland. A cidade de Trieste recebe um staff
muito eficiente, vindo da Polônia. Isso demonstra a importância estratégica da região para os
alemães. Ao mesmo tempo, naquele ano nasce a Resistência com as brigadas Garibaldi
(prevalentemente comunistas) que, ao final de julho de 1944, nas montanhas de Carnia,
tomam conta de um território maior que Luxemburgo, a maior zona livre da Itália. Na vizinha
Iugoslávia, os partigiani da Resistência italiana aliaram-se aos comunistas chefiados pelo
marechal Josip Broz Tito, conhecidos como partigiani titini.
A área de Carnia tornou-se um pequeno Estado partigiano. O Reich decide então
enviar os cossacos russos para a região do Friuli. Os cossacos nunca aderiram ao comunismo
e eram perseguidos pelo comando de Stalin e, para serem convencidos de aceitar a operação
militar e combater os comunistas, tiveram a promessa de ganhar a região inteira como futura
pátria. Em 1944 os cossacos conquistaram Carnia em dois meses de batalha que deram fim à
experiência de zona livre. Em seguida, ocuparam as casas dos habitantes da região. Mais de
trezentos partigiani morreram, muitos civis foram mortos ou deportados, além dos
inumeráveis casos de violência acontecidos. Houve vilas inteiras saqueadas, celeiros
incendiados, estábulos depredados, animais maltratados.
Após o rei Vittorio Emanuele renunciar em favor do filho, Roma foi libertada em 4 de
junho de 1944, com o avanço dos Aliados, cujo movimento decresce no centro da península
durante o inverno de 1944-1945. A Resistência lutou sem cansar até abril de 1945, quando a
“linha gótica” foi vencida. Em 28 de abril Mussolini foi executado após tentar uma fuga para
a Suíça e, no dia 29, as tropas alemãs na Itália assinaram sua rendição. Terminava a luta pela
libertação e, embora em ruínas, a Itália saía moralmente renovada dos fatos trágicos do
período 1943-1945, com alguma garantia de que a consciência das massas poderia contribuir
para um futuro mais democrático (FABRIS, 1996, p. 37).
Algumas dessas ruínas começaram a ser descobertas em tempos relativamente
recentes. O romance La foiba grande (1991), de Carlo Sgorlon, revisita uma fase dramática da
Segunda Guerra, além de ser geograficamente circunstanciado. Após o 8 de setembro, a
fronteira do leste precisava de uma definição, e a Itália, que havia sido um violento invasor da
Ístria, ficou numa posição delicada. Houve episódios frequentemente confusos de violência de
habitantes locais não só contra fascistas, mas também contra italianos em geral, que se
repetiram de modo mais consistente em 1945, nos últimos meses de guerra. Muitas pessoas
foram justiçadas e jogadas nas foibe, cavidades naturais do terreno de certas regiões. O
episódio das foibe constitui um dos fatos mais tenebrosos da Segunda Guerra e a polêmica
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sobre o número de mortos constantemente é levantada. Os únicos dados “oficiais”, estimados
pelos anglo-americanos, falam de 2.470 mortos, porém o romance de Sgorlon menciona mais
de dez mil italianos atirados nas cavidades, muitos feridos ou ainda vivos. Em 2001, uma
comissão ítalo-eslovena ficou encarregada de rever a situação e chegou à conclusão de que
houve centenas de execuções sumárias. Resta-nos discutir, portanto, quais as razões que
levaram o escritor a multiplicar os dados em seu romance, bem como quais são as suas fontes,
o que pode tornar o nível ideológico do debate bastante interessante.
Para alguns críticos, o romance assume uma posição rígida que contribui para a
difusão, na trama, de uma fobia antieslava e anticomunista. Se as referências historiográficas
parecem duvidosas, as literárias são mais claras. Em nível artístico, o romance sugere a
hipótese de diálogo com Materada (1960), de Fulvio Tomizza, termo de confronto sobre o
tema que envolve os acontecimentos na região do Friuli e na Ístria ao final da Segunda
Guerra. Sgorlon chegou a criticar Tomizza, alegando que este se dedicava somente às próprias
experiências pessoais e, sobretudo, nunca teria utilizado a palavra “foiba” em seus romances.
Contudo, o termo comparece e o tema é mencionado por Tomizza, tanto em Materada quanto
em La quinta stagione (1965) e em L’albero dei sogni (1969), não obstante o fato de que os
problemas étnicos são norteadores de muitas de suas obras. Em Materada, o ataque movido
contra o novo regime comunista da Iugoslávia após a guerra não se articula em torno ao
episódio das foibe, mas se desenvolve de modo mais orgânico, atacando a substância cultural
da nova realidade. Ideologicamente, possui uma eficácia diversa daquela presente em La foiba
grande.
Para lembrar os sessenta anos do episódio do massacre, a emissora de televisão
RaiUno põe no ar, em fevereiro de 2005, poucos dias antes da primeira Giornata del ricordo
in memoria dei martiri delle foibe (10 de fevereiro), instituída pelo Parlamento italiano, uma
minissérie em dois capítulos, cujo enredo é a fuga de um grupo de crianças do horror, com um
sacerdote disposto ao sacrifício pela missão. A produção reaviva o extermínio de italianos na
Ístria, durante quase dois anos, pelos partigiani titini (ou seja, aqueles comandados por Tito),
em torno do qual se fez um silêncio quase incompreensível durante muito tempo. O diretor
Alberto Negrin chegou a explicar que não houve intenção de fazer um filme histórico no
sentido tradicional. Il cuore nel pozzo conta uma história inventada, passada no final da
Segunda Guerra, sobre os alemães que deixam a zona de ocupação italiana, que havia sido
anexada ao Reich, e a chegada dos titini que avançam até Trieste. Este é o cenário de uma
história privada, contada através dos olhos de um menino que escreve um diário sobre o que
presencia. Os protagonistas são crianças e os acontecimentos se dão na pequena comunidade
istriana perturbada pela chegada dos titini, entre eles o capitão Novak, que procura um
menino para eliminá-lo. A mãe o escondera no orfanato, e Don Bruno, o responsável, é
forçado a fugir com todas as crianças. O epílogo é dramático e, somado à trilha sonora de
Ennio Morricone, constitui parte do apelo que a produção televisiva carrega para levar o
polêmico episódio a uma audiência bastante razoável.
Algumas licenças históricas e factuais levaram a erros imperdoáveis, como a imagem
da foiba, que não corresponde em nada ao tipo de cavidade profunda e extensa, provocada
pelas águas subterrâneas em terrenos calcários. À parte disso, a produção gerou alguma
polêmica ao redor dos interesses políticos que sua exibição poderia afetar. O filme sofreu
acusação de instrumentalização de um fato histórico, teve a autoria praticamente reivindicada
pelo ministro das comunicações da época, enquanto o diretor declarou que não houve nenhum
tipo de pressão durante a execução da obra, bem como conseguiu mantê-la longe das
ideologias. Por fim, a escolha a ambientação numa área de contrastes étnicos não superados
rendeu mais algum transtorno, especialmente entre eslovenos e italianos. Mas o que talvez
tenha causado comentários mais ácidos foi o caráter aparentemente oficial que a exibição da
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minissérie poderia ter, visto que vinha a público dias antes da Giornata del ricordo, instituída
com grande apoio da Alleanza Nazionale, no governo Berlusconi.
Em La malga di Sîr (1995), Sgorlon repercorre a história de um episódio complexo da
Resistência com declarada postura que distingue eventos históricos e verificáveis dos
inventados acontecimentos individuais das personagens:
La malga di Sîr, como outros dos meus romances, é um livro misto de história e
invenção. Todos os personagens são frutos de fantasia, e cada eventual contato entre
eles e pessoas que realmente existiram deve ser considerado puramente casual.
(SGORLON, 1995, p. 6, tradução nossa)
Assim, a verdade objetiva pertence à realidade histórica, enquanto os fatos articulados
na fantasia se imbuem do ponto de vista do personagem que os vive. Os efeitos da ficção não
evitam a história, mas a invadem, contribuindo para a criação de um pacto com o leitor.
O romance se inicia com os anos fascistas e chega ao período de 1943 e ao início da
Resistência. Os partigiani titini chegam ao Valle del Natisone e estupram a jovem
protagonista Marianna, de excepcionais qualidades humanas. O medo da invasão pelo Leste e
o avanço dos comunistas acompanha os habitantes do lugar até fevereiro de 1945. No dia 6,
uma centena de partigiani garibaldini (dos Gruppi di Azione Patriottica, por isso gapiste ou
partigiani rossi, como também eram conhecidos) chega aos campos vizinhos a Porzûs e
chacina os partigiani de uma brigada Osoppo, não comunista (católicos republicanos,
militares, monarquistas, alguns do Partito d’Azione, ou simplesmente partigiani bianchi),
acampados ali. O dia e o acontecimento são reais e a questão, conforme já dissemos, levanta
ainda hoje muita polêmica. O fato passou a ser o principal argumento para deslegitimar os
grupos garibaldinos comunistas. Há acusações recíprocas: de um lado os garibaldinos teriam
se aliado aos eslavos para permitir que Tito ocupasse algumas áreas do Friuli; de outro, os
católicos, em nome do receio disso, teriam se unido aos nazistas numa liga anticomunista,
mesmo contrariando as ordens do CLN. Na emboscada também foi assassinado Guido
Pasolini, irmão de Pier Paolo, que havia chegado há pouco tempo no lugar com o nome de
Ermes.
Sgorlon comete várias imprecisões históricas, conforme a crítica e os historiadores já
assinalaram. Contudo, são raros os trabalhos que se detêm sobre o episódio, tendo talvez
somente a última década abrigado os ensaios mais aprofundados. Torna-se imperioso para o
trabalho de pesquisa consultar as fontes atualizadas, tanto quanto possível imparcial quanto à
finalidade ideológica, o que quase nunca é possível. Contudo, no nível literário Sgorlon revira
o cânon do romance histórico e perfaz uma operação híbrida, tornando os personagens
celebrados pela historiografia os protagonistas na trama, com vida complexa de ficção, porém
mantendo uma ligação com seu correspondente no plano histórico – após serem apresentados
como pura criação literária, sem elos com pessoas que existiram. As convenções são
ultrapassadas quando o romance não cita os personagens históricos para deixá-los ao fundo,
mas os substitui por outros, que aludem fortemente aos primeiros. Ao invés de fazer a ficção
cumprir o papel deixado pela historiografia, Sgorlon coloca a ficção a substituir os dados
historiográficos primários na reflexão dos temas e na expiação das próprias lembranças.
La malga di Sîr pode ser considerado o primeiro romance realmente centrado sobre a
espinhosa questão de Porzûs. Outras obras de ficção afrontaram o tema de modo marginal,
além de respeitar as regras do gênero. Muitos são os elementos textuais que sugerem o
aspecto de fábula. O mundo do autor é camponês, arcaico, revelado pela nuance linguística.
Os cenários são regionais, tradicionais como as referências culturais, as metáforas. Entretanto,
a linguagem de extrema correção busca um formato erudito.
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O filme Porzûs, de Renzo Martinelli, despertou muito interesse na Itália na época de
seu lançamento, conforme resume Tornabuoni (1997). O terrível episódio de 1945 era
ressuscitado, com todas as suas consequências. Os culpados foram condenados em 1952 pelo
tribunal de Lucca, alguns foram para o exterior e outros tiveram uma redução da pena.
Ninguém negou a verdade e nenhuma opinião os defendeu, e os anos que passaram
fermentaram a questão sobre quem teria dado a ordem para conclusão do atentado. O filme
não encontrou obstáculos nem censura, inclusive recebeu financiamento do Estado, além de
ter sido realizado com a colaboração de cineastas de esquerda. Para contar o episódio, o
roteiro do filme apresenta, cinquenta anos depois do evento, um encontro entre o chefe dos
partigiani rossi (Gastone Moschin), desde então refugiado na ex-Iugoslávia, e o único
sobrevivente do massacre (Gabriele Ferzetti), que buscava vingança. Os dois homens velhos,
cansados, desiludidos e doentes evocam o passado e não há assassinato. O estilo popularesco
adotado pelo diretor simplifica e inflama o acontecimento, com algumas cenas acentuadas
pela trilha sonora.
O período final do segundo grande conflito mundial fermenta, na Itália, posições
artísticas e intelectuais cujos efeitos serão vistos no país nos anos seguintes. É possível
entender certas atitudes como algo semelhante a “tomar as rédeas” de um conhecimento
histórico e de uma memória que, após o final da guerra, poderiam ser manipulados por uma
visão oficializada, em nome de uma identidade nacional que falsificaria o passado. O papel
desses artistas e intelectuais foi, essencialmente, o de assumir o desafio de fornecer narrativas
e perspectivas sobre a história imediata, ainda que tratassem de assuntos indigestos e
tocassem em problemas ainda presentes.
À parte daquilo que o cinema italiano conseguiu representar ou documentar levando
para as telas a temática da guerra ou do pós-guerra, com o propósito de mostrar a luta pela
libertação do país2, a literatura revelou obras muito significativas e diversas, como o romance
de forma renovadora Uomini e no (1945), de Elio Vittorini, o primeiro romance de Italo
Calvino, Il sentiero dei nidi di ragno (1947), as suas narrativas curtas recolhidas em Ultimo
viene il corvo (1949) e o representante de uma saga editorial, Il partigiano Johnny (1968), de
Beppe Fenoglio. As obras autobiográficas ou de inspiração memorialista são bastante
conhecidas, como L’Agnese va a morire (1949), de Renata Viganò.
A partir dos anos de 1950 algumas iniciativas recolhem testemunhos de combatentes,
revelando não somente o profundo sentimento de resistência dos que lutaram, como certos
detalhes da ocupação nazifascista e da organização das forças de Resistência italiana. Obras
como Lettere di condannati a morte della Resistenza italiana (1952), livro organizado por
Pietro Malvezzi e Giovanni Pirelli, o diário de Ada Gobetti, Diario partigiano (1956), as
memórias de Carla Capponi, Con cuore di donna (2000) e os depoimentos recolhidos em
iniciativas como o volume organizado por Stefano Faure, Andrea Liparoto e Giacomo Papi, Io
sono l’ultimo (2012), entre inúmeros outros, ampliam o conjunto de representantes das
memórias do período, manifestando um tipo de literatura bastante ligada à cultura oral, se
consideramos o caráter de testemunho e, em alguns casos, a urgência do relato, manifestada
pelos depoentes ou escritores devido ao tempo passado após os fatos e à necessidade de deixar
um registro pessoal e um juízo sobre o passado. De qualquer modo, o efeito estético do
fragmento e os conteúdos incompletos são os reflexos verbalizados da experiência traumática.
2
Antes mesmo de mencionar os filmes neorrealistas de Roberto Rossellini, Vittorio de Sica e Luchino Visconti,
é preciso lembrar o documentário Giorni di gloria (Dias de glória, Giuseppe De Santis, Marcello Pagliero,
Mario Serandrei e Luchino Visconti, 1944-45), que foi uma realização pioneira nesse sentido, com cenas reais,
rodadas quase clandestinamente entre 1944 e 1945, ao lado de encenações que representam a resistência contra
o nazismo e o fascismo, ou, como se passou a chamar na Itália após 1943, o nazifascismo.
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A relação entre os discursos e os efeitos dos períodos traumáticos que revivem
também configura um aspecto singular para o estudo dessas narrativas, possibilitando novas
formas de entendimento do resultado estético. Não podemos deixar de mencionar o romance e
o autor que se tornaram paradigma da memória traumática da Segunda Guerra Mundial: Se
questo è un uomo (1947), de Primo Levi. Sobrevivente de Auschwitz, convicto “de que
nenhuma experiência humana é vazia de conteúdo, de que todas merecem ser analisadas; de
que se podem extrair valores fundamentais (ainda que nem sempre positivos) desse mundo
particular” (LEVI, 1988, p. 88), o autor nos oferece material para as discussões sobre o
testemunho de guerras, sobre experiências de segregação, vivências da tortura, da violência e
exclusão social.
Se os registros pessoais sobre tempos tão difíceis aparecem tanto logo após os
acontecimentos quanto depois de meio século das lembranças, as motivações têm diferentes
origens, mas podemos inferir que o presente da produção dos escritos e das imagens tem
alguma influência na iniciativa. Observando a nota inicial de Carlo Sgorlon em seu La foiba
grande, temos o que poderia ser, naqueles anos de 1990, uma confissão de seu ponto de
partida, não fosse a revelação do andamento do livro:
Entre os acontecimentos que provocaram o meu amadurecimento histórico
estiveram, sem dúvida, o que foi vivenciado pelo povo istriano, durante e depois da
Guerra Mundial, evocados neste romance. Enquanto eu estava na metade do
trabalho, começava a guerra civil entre os povos eslavos do sul que, de qualquer
modo, despertou em muitos os fantasmas daqueles trágicos fatos distantes. Como
outros livros meus, este é um livro de invenção, mas também de história.
(SGORLON, 2005, p. 5, tradução nossa)
Ainda que as intenções do escritor não incluíssem as motivações do presente do povo
istriano, o romance nasce sob a guerra que dividiu a Iugoslávia nos anos seguintes. De certo
modo, e apesar de se aliar à história, La foiba grande pode ter surgido para se tornar uma
crítica explícita à natureza da construção histórica e de mitologias nacionalistas. Embora
preocupado com os acontecimentos que envolvem o seu povo, não se pode ler o romance de
Sgorlon sem levar em conta a história dos Bálcãs, região estratégica desde o império romano,
que envolve guerras entre povos irmãos e inimigos desde a Antiguidade. O século XX,
contudo, foi mais tumultuado e sangrento que os anteriores. A Iugoslávia foi criada duas
vezes, primeiro após a Primeira Guerra e, depois, logo depois da Segunda Guerra. Após 1980,
a unidade não pôde mais ser mantida, devido às modificações na ordem internacional, com o
fim da guerra fria, e também por causa da crise financeira global entre 1970-1980 – quando o
marechal Tito morreu, em 1980, o país tinha uma dívida de 20 bilhões de dólares.
Produções do cinema contemporâneo de várias nacionalidades têm contemplado
especialmente a guerra dos anos de 19903. Na verdade, os problemas agravados com a guerra
aparecem nos filmes: miséria, migrações, choque cultural, preconceitos (religioso, racial, de
gêneros), violência, orfandade, solidariedade, conflitos étnicos e familiares. Portanto, a
temática desses filmes estabelece proximidade de sentido com narrativas que reproduzem as
condições de regiões de fronteira em períodos críticos como os de conflitos e
afirmações/definições de nacionalidades.
Underground: mentiras de guerra (Podzemlje: bila jednom jedna zemlja, Emir
Kusturica, 1995) recebeu originalmente o subtítulo de Era uma vez um país (Bila jednom
jedna zemlja) para nomear uma minissérie com duração de 320 min, da qual resulta a versão
3
Entre várias produções, podemos citar Beautiful People (Jasmin Dizdar, 1999), Vukovar, jedna prica (Boro
Drasakovic, 1994), Bela Aldeia, Bela Chama (Lepa Sela Lepo Gore, Srjdan Dragojevic, 1996), Antes da
Chuva (Before the rain, Milco Mančevski, 1994) e Terra de Ninguém (Ničija Zemlja, Danis Tanovic, 2001).
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do longa distribuído internacionalmente. O filme conta a história épica de dois amigos
enquanto retrata a história da Iugoslávia do início da Segunda Guerra até o início do conflito
nos Bálcãs (de 1941 a 1992). A dupla abriga um grupo de refugiados nos subterrâneos de
Belgrado e enriquece com a exploração dessas pessoas, que produzem armas para serem
vendidas no mercado negro. Com o final da guerra, os refugiados são iludidos por quinze
anos e permanecem escondidos, trabalhando para seus exploradores. A metáfora é criativa e a
força das relações torna justificável a exploração dos sentidos da premiada obra de Emir
Kusturica, que foi bastante criticada à época de seu lançamento, inclusive por suposta
propaganda sérvia. A discussão foi inflamada por fatos da vida pessoal do diretor e pela
premiação do filme em Cannes, com a Palma de Ouro.
Examinado por outro ângulo, o filme de Kusturica pode oferecer um quadro mais
amplo que o da crítica à manipulação de um povo e de sua história (pela metáfora da prisão
no subterrâneo e da privação que as pessoas sofrem de participar dos acontecimentos na
superfície) e seu conteúdo pode ser redimensionado para valer tanto para o comunismo
iugoslavo quanto para qualquer outro regime ou território. A universalidade do filme reside na
amplitude da aplicação da metáfora, assim como sua proposta surreal e exacerbada de paixões
para a representação sugere os exageros cometidos pelo racionalismo, incapaz de interpretar
as lembranças daquilo que um dia foi um país e o percurso tortuoso que nos obriga a rever os
pontos de vista na consideração de uma perspectiva histórica única ou, no mínimo, os
conceitos acerca de heroísmo e traição, inimigos e aliados, identidade e alteridade, unidade e
diversidade. Nesse sentido, o filme e os fatos em torno de 1995 pode nos ensinar a
reposicionar o olhar para os acontecimentos de cinquenta anos antes. A fabulação de
Kusturica tem início no oportuno subtítulo do filme, e fecha a obra com a frase “Esta história
não tem fim”, estabelecendo um modo relativizador para a assimilação de atrocidades e
consequências que tentam representar o horror.
Desmistificando fronteiras e territórios
A fronteiriça cidade de Trieste, importante núcleo centralizador histórico e cultural da
região concentra muitas das turbulências vividas por italianos e istrianos, e algumas
exclusividades em termos de opressão nazifascista. Trieste é hoje parte da região FriuliVenezia-Giulia, e faz fronteira com a atual Eslovênia. Foi o mais importante porto do Império
Austro-húngaro, anexada à Itália após a Primeira Guerra mundial. Na região de Trieste, assim
como em Gorizia, na Dalmácia e na Ístria, conviviam os grupos étnicos italiano, esloveno e
croata. Com a inclusão no território italiano, a região desenvolveu o que se chamou de
“fascismo de fronteira”: a ascensão do fascismo proibiu os idiomas e demais manifestações de
culturas estrangeiras, o que provocou situações de revolta e consequências muito graves, na
forma de vinganças que marcaram a história da cidade. Mussolini proclamou as chamadas leis
raciais em Trieste, cidade com maior população hebraica da Itália, em 1938. Ocupada pela
Alemanha nazista após setembro de 1943, a situação torna-se desesperadora. A Risiera di San
Sabba foi utilizada como campo de prisioneiros, para os deportados, para detenção e
eliminação de partigiani italianos e eslavos, dissidentes políticos e judeus. Há quem afirme
que houve cerca de 200 campos na Itália, mas sabe-se com certeza de 46 campos de
concentração e 9 colônias de confinamento. E, comprovadamente, Risiera foi o único campo
de concentração na Itália e na Europa Meridional com forno crematório. No final da guerra, as
tropas alemãs resistiram em Trieste até o início de maio de 1945. Enquanto isso, a
representação local do Comitato di Liberazione Nazionale (o CLN, composto de todas as
forças políticas antifascistas, exceto comunistas) promoveu uma insurreição, e as brigadas
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partigiane iugoslavas com o apoio do Partido Comunista Italiano atacaram, e ficaram com a
fama de terem libertado a cidade, o que fez dos partigiani da CLN clandestinos. O exército
iugoslavo manteve o controle da cidade até 12 de junho. Os chamados “quarenta dias de
Trieste” assistiram a muitas execuções, movidas pela ideologia ou pela vingança pessoal. Em
1947 Trieste (na verdade, território Livre de Trieste) estava dividida entre o comando dos
Aliados e dos iugoslavos. Em 1954 a cidade foi dividida de fato, segundo as duas
administrações. Em 1975 o Tratado de Osimo resolve definitivamente a situação entre a Itália
e a então República Socialista Federal da Iugoslávia.
Assim como Trieste pode ser o parâmetro do período, pois foi atravessada pelas
maiores atrocidades dos últimos anos da guerra, há depoimentos que registram vidas
intensamente modificadas por esse tempo. Ao analisarmos depoimentos reunidos em FAURE,
LIPAROTO e PAPI (2012) pudemos estabelecer ligações com levantamentos importantes e
explorar as atuações do Ispettorato Speciale di Pubblica Sicurezza, instituído por Mussolini
em 1942 como corpo de repressão antipartigiana na Venezia Giulia, com sede em Trieste.
Como única instituição dedicada exclusivamente à captura de antifascistas, teve como
representante maior a chamada “Banda Collotti”, parte mais ativa dos membros do Ispettorato
que, depois do 8 de setembro de 1943, obedeceu as ordens do comandante das SS dos
Adriatisches Küstenland e cometeu vários crimes, sobretudo, mas não somente, contra as
minorias eslovena e croata. Gaetano Collotti foi o comandante da referida tropa, que tinha
cerca de 180 homens, depois de ter sido até 1942 vice-comissário do Ispettorato. Collotti viu
muitos de seus homens passarem às fileiras partigiane depois do 8 de setembro, porém ele
aderiu à Repubblica di Salò. Na luta contra os opositores do fascismo e na perseguição aos
judeus, ficaram famosas as sedes do Ispettorato nas quais a tortura era frequente: a “Villa
Triste” na via Bellosguardo n. 8 e o quartel de via Cologna, sede central da Banda Collotti,
ainda hoje existente.
Algumas obras são capazes de avaliar com os substratos da memória e da ficção a
condição dos homens de fronteira, mas não apenas isso. Também podemos extrair elementos
para estabelecer a crítica do regime totalitário, além de estudar as relações entre o texto
literário, o momento da produção e as diferentes formas de recepção. Nas instâncias literária e
audiovisual, as tramas revelam fenômenos que atravessam os tempos, como o sofrimento pela
falta de meios e a repressão das liberdades, ao lado das formas de resistência.
Fulvio Tomizza tem em sua história de vida o atestado para falar como homem de
fronteira. Nascido na Ístria, migrou para Trieste com a família após os bens terem sido
confiscados – o pai era italiano e foi preso em 1947. Tomizza voltou a Materada, sua terra
natal, e estava lá em 1954, quando o chamado Memorando de Londres passou a região para a
Iugoslávia. Em Trieste ele encontrou sua residência definitiva e tornou-se escritor.
Considerava-se um escritor de fronteira, e sobre essa definição comentou, a partir de
comparações entre obras cuja origem remete aos limites geográficos: a matéria dos escritores
suspensos entre um lado e outro de uma fronteira normalmente se configura como situação
extraordinária, excêntrica, talvez tão paradoxal quanto o território, a ponto de prestar-se a
tratamento literário do tipo experimental, mas a realidade que movia a gente humilde de um
povoado istriano do interior era uma condição de permanente instabilidade, de abusos
externos e de rancores intestinos, que se concluía com o abandono do lugar de origem e se
enquadrava, portanto, na marca de um destino (TOMIZZA, 1971, p. 134). Os efeitos da
Segunda Guerra são os temas centrais da obra de Tomizza, que foi capaz de misturar o
realismo alimentado pelas influências da melhor literatura italiana dos anos de 1940 (chamado
por alguns críticos de neorrealismo) com a introspecção psicológica, agregando à linguagem
uma interessante mistura linguística que sintetiza na forma a coexistência de muitos povos.
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Materada é o romance de estreia de Fulvio Tomizza, no qual o clima político de 1955
é reconstruído. Nesse período, os habitantes da Ístria deveriam decidir entre permanecer com
o regime socialista da então Iugoslávia ou emigrar para a Itália. O romance é um retrato de
uma Ístria dilacerada e um testemunho do sofrimento de indivíduos sujeitos à violência do
poder, primeiro o fascista, depois o comunista. O romance tem como fio condutor o vínculo
entre o homem e a terra, os afetos e as esperanças. Dois romances seguintes de Tomizza vão
completar o que o autor chamou de Trilogia istriana, em 1967. La ragazza di Petrovia (A
moça de Petrovia, 1963) continua a trágica história da população istriana e tem como cenário
um campo de refugiados no Carso, território italiano, onde as pessoas relembram seu mundo
rural, para não deixá-lo desaparecer. Il bosco di acacie (O bosque de acácias, 1966) tem
como protagonistas os membros de uma família de camponeses exilados que reconstroem sua
relação com a terra, entre a nostalgia e a utopia, na nova propriedade conquistada no chamado
baixo Friuli4.
No romance, o narrador-protagonista Francesco Colsovich (Franz), nascido na
província, mora com a família na propriedade do Zio Barba, que tinha uma relação dura com
os sobrinhos, como de proprietário e colonos, os jovens Francesco e Berto eram como servos.
Barba nomeia em testamento seu único herdeiro o filho Carlo, que vive em Trieste. Com a
guerra, o velho se tornou ainda mais intratável, enquanto parte de sua terra era tomada pela
reforma agrária. No novo governo do novo país, além de muitos impostos a pagar, não há
mais os feriados e festas de antes, não há dias santos, nem Natal, nem Páscoa. A perda de
identidade tem etapas relativamente rápidas, que começam pela língua que invade a região de
Materada, língua que os camponeses não entendiam bem. A partir de 1954, quem se sentia
incomodado poderia ir embora para a Itália, e passou a existir mais intimidação nesse sentido.
Francesco, que lembrava da guerra e da libertação como igualmente portadores da miséria e
da desgraça para todos, dizia que nunca iria partir, mesmo sabendo da fúria dos titini os fazia
invadir casas de famílias italianas.
Francesco queria ter direito às terras do tio. O rapaz vai ao juiz, mas não consegue
nada, mesmo após uma conversa do magistrado com o velho proprietário, que não cede,
mesmo com o risco de perder parte dos bens. Enquanto isso, as ameaças dos “estrangeiros”
faziam Francesco imaginar que um dia, assim como passaram os austríacos, os italianos e os
alemães, também os iugoslavos iriam embora. Francesco queria a terra, mas não o regime que
trouxe a dificuldade de comunicação. Logo percebe que o poder e a terra não são tudo, diante
do numeroso deslocamento de trabalhadores da região para Trieste, para a América, para a
Austrália, para o Canadá. Francesco decide partir ao invés de tentar incriminar o tio. A cidade
está quase desabitada, mas viriam todas as raças, eslovenos, croatas, sérvios, bósnios,
montenegrinos, dálmatas. Como a sinalizar a desolação, a solidão e a perda de identidade dos
que ficaram, faltava luz e, no dia da padroeira, os sinos de toda a região tocaram, despedindose dos que deixariam o lugar, pronunciando o último adeus.
Tomizza representa o êxodo, não o exílio. Embora Francesco narre em primeira pessoa
seus desafios, o caráter da narrativa é coletivo. Isso quer dizer que as cenas descritas no
romance envolvem praticamente todos, o que confere o caráter coral para a obra. Os sinais de
identidade coletiva são evidentes, porém expressam o que Edward Said chamou de “fratura
4
Em 1977, La miglior vita (A melhor vida) se tornou o romance mais bem sucedido de Tomizza, especialmente
por ter conquistado o prêmio Strega daquele ano. Na trama são revistos cerca de cem anos da história da Ístria,
experienciados dentro do microcosmo de uma paróquia convulsionada pelos eventos da guerra e pelos dramas
pessoais. Tomizza ainda volta aos temas de fronteira e da procura de uma pátria no romance que será
publicado após sua morte, Il sogno dalmata (O sonho dálmata, 2001), em que o enredo repassa o êxodo de
dálmatas e croatas que, para escapar dos turcos, encontram asilo na Ístria, onde uma dura realidade vai
extinguir as ilusões.
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incurável” e, como imagens literárias, são poderosos no sentido de oferecerem a dimensão da
instabilidade, num esforço de remediar a lembrança das sensações do passado e a certeza do
presente, a de que a terra praticamente não existe mais. No microcosmo de Materada, naquele
momento pós-guerra, tudo era rancor, injustiça e vinganças entre italianos e eslavos. Tomizza
não deixa de representar esses sentimentos, porém revive o que poderia unir as pessoas em
episódios quase heróicos:
Dois dias depois seria a festa. Nada de missa, nada de baile, mas a pouca gente que
ficou queria fazer a festa mesmo assim. Oliva tinha torcido o pescoço de uma
galinha e Maria a ajudava a tirar as penas debaixo do carvalho; eu e Berto nos
esforçávamos a fazer as caixas para a partida (...). Quando eis que o sino toca (...).
“Mas o sino está tocando. O que está acontecendo em Materada?”
“É a Nossa Senhora de Agosto, o que você queria que fosse? Tocam para abençoar
os campos” (...) “Oliva, apresse-se sozinha para o almoço. Eu vou correndo para ver.
“Eu também vou”, disse. E em vinte minutos estávamos em Materada. Os poucos
homens que encontrei debaixo do campanário eram quase todos velhos (...). As
mulheres cumprimentavam, entravam na igreja. O grupo de homens foi reforçado
(...). Sentamos nos bancos (...). Vêm à frente os rapazes vestidos de padres e, atrás
deles, Bortoldo Mustacchia com o livro na mão. Ele sempre teve amor por essas
coisas (...). Minha gente. Hoje é a nossa festa. Hoje é dia de Nossa Senhora da Neve,
a santa padroeira de Materada. Não seria justo festejá-la como nos anos passados?
Porque hoje ainda estamos aqui juntos, poucos, mas ainda juntos, mas amanhã onde
estaremos, e o que será de nós todos? (TOMIZZA, 1971, p. 165-166, tradução
nossa)5
Os sinos das pequenas paróquias são ouvidos pela província, e não há como não
imaginar algo próximo da desolação, pois o silêncio que o som característico rompe
sinalizava o abandono. As badaladas que anunciavam os principais acontecimentos do lugar
pareciam anunciar o fim dele. No entanto, o chamado dos sinos é familiar, identitário,
comunitário. Anuncia-se o início da festa religiosa e, mesmo sem padre, ela se realiza na
simplicidade quase de uma despedida, apenas com as palavras encorajadoras. Nessas últimas
cenas do romance, quando Francesco tem a dimensão do significado de sua partida, pois sabe
que além de deixar para trás a identidade religiosa comum e a alegria que não se faz presente
nesta edição da festa, ele também terá de deixar o seu passado e a sua ascendência. A imagem
que representa esse rompimento é bastante significativa:
Saía-se da igreja e entrava-se no cemitério, que é perto. (...) E já se sentia de longe
os sinos de Buje, depois os de Carsette, de Verteneglio, de Petrovia e San Lorenzo.
A grama do cemitério era alta e seca, e cobria todos os túmulos. As mulheres
haviam entoado o canto de Nossa Senhora (...) Os outros sinos pararam; somente o
nosso resistiu ainda por um tempo. Em seguida, ele mostrou que também queria
5
Due giorni dopo era la fiera. Niente messa, niente ballo; ma la poca gente rimasta voleva far festa lo stesso.
Oliva aveva tirato il collo ad una gallina e Maria la aiutava a levar le piume sotto il rovere; io e Berto ci
ingegnavamo a fare i cassoni per la partenza [...] Quand’ecco la campana suonare [...] “Ma la campana suona.
Cosa sta succedendo a Materada?”.
“È la Madonna di agosto, cosa vuoi che succeda? Suonano per benedire le campagne” [...] “Oliva, ti sbrighi da
sola per il pranzo. Io corro a vedere”.
“Vengo anch’io” dissi. E in venti minuti eravamo a Materada. I pochi uomini che trovai sotto il campanile erano
quasi tutti vecchi [...] Le donne salutavano, entravano in chiesa. Il gruppo di uomini si era rafforzato [...]
Sedemmo nei banchi [...] Vengono avanti i ragazzi vestiti da pretini e, dietro, Bortolo Mustacchia con il libro in
mano. Lui aveva sempre avuto amore per queste cose [...] “Gente mia. Oggi è la nostra fiera. Oggi è la
Madonna della Neve, la santa patrona di Materada. Non era forse giusto festeggiarla come negli anni passati?
[...] Perché oggi siamo ancora qui insieme, pochi ma ancora insieme, ma domani dove saremo e cosa sarà di noi
tutti?”
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terminar, então dava somente algum repicado forte e único, como se sacudisse todo
antes de morrer. O canto também cessou. Agora não se ouvia nada além do calor e
dos passos das mulheres que resvalavam pela grama. “Adeus aos nossos mortos,
exclamou com força uma mulher.” (TOMIZZA, 1971, p. 167, tradução nossa) 6
A obra de Tomizza parece demonstrar alguma afinidade teórica com as ideias de
Maurice Halbwachs (1990) voltadas para a tentativa de comprovar a inexistência de memórias
individuais. Para o sociólogo francês, a memória individual seria apenas um ponto de vista
sobre a memória coletiva. Esse ponto de vista estaria condicionado pela situação do presente
da rememoração: acontecimentos, quadros sociais, grupos identitários. Do mesmo modo, o
esquecimento coletivo tem como expressão o esquecimento individual, condicionado no
presente pelo ato de deslembrar, povoado de desapego a determinados grupos.
Se a Resistência italiana mereceu muitas representações através dos romances, dos
poemas, das canções, das memórias e do cinema (a partir do neorrealismo), o território que
escolhemos concentra uma mitologia ainda mais vasta (embora ainda pouco explorada),
devido à quantidade de episódios ligados ao fenômeno de mobilização civil e aos contrastes
presentes na constituição de seus habitantes. Não seria justo deixar de confessar que nossas
origens também justificam o interesse despertado pelo período e pelo território modificado ao
longo daqueles anos e em seguida. Existem algumas questões de identidade a mais, em nosso
caso.
REFERÊNCIAS
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240
BERGSON, H. Matéria e memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.
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CAPPONI, C. Con cuore di donna. Il Ventennio, la Resistenza a Roma, via Rasella: i ricordi di una
protagonista. Milano: Il Saggiatore, 2009.
FABRIS, M. O neo-realismo cinematográfico italiano. São Paulo: Edusp, 1996.
FAURE, S., LIPAROTO, A. e PAPI, G. Io sono l’ultimo. Lettere di partigiani italiani. Torino:
Einaudi, 2012.
FENOGLIO, B. Appunti Partigiani. Torino: Einaudi, 1994.
FENOGLIO, B. Il Partigiano Johnny. Torino: Einaudi, 1970.
GOBETTI, A. Diario partigiano. 5. ed. Torino: Einaudi, 1972.
6
Si uscì dalla chiesa e si entrò nel cimitero che è a due passi. [...] E già si sentivano di lontano le campane di
Buje, poi quelle di Carsette, di Verteneglio, di Petrovia e San Lorenzo. L’erba del cimitero era alta e secca, e
copriva tutte le tombe. Le donne avevano intonato il canto alla Madonna [...] Cessarono le altre campane;
soltanto la nostra resistette ancora per poco. Poi mostrò di voler finire anch’essa; ormai dava soltanto qualche
forte e singolo rintocco come scrollandosi tutta prima di morire. Anche il canto cessò. Ora non si sentiva che il
caldo e i passi delle donne che strisciavano tra l’erba. [...] “Addio ai nostri morti disse forte una donna”.
(TOMIZZA, 1971, p. 165-167)
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